Culpa Nossa - Mercedes Ron

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FICHA TÉCNICA

Título: Culpa Nossa


Título original: Culpa Nuestra
Autora: Mercedes Ron
Copyright © 2018, Penguin Random House Grupo Editorial, S.A.U.
Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2023
Tradução: Ana Mendes Lopes
Revisão: Inês Guerreiro/Editorial Presença
Imagem da capa: Shutterstock
Capa: Sofia Ramos/Editorial Presença
Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.
1.ª edição em papel, Lisboa, outubro, 2023

Reservados todos os direitos


para a língua portuguesa (exceto Brasil) à
EDITORIAL PRESENÇA
Estrada das Palmeiras, 59
Queluz de Baixo
2730­-132 Barcarena
info@presenca.pt
www.presenca.pt
.

Para a minha prima Bar.


Obrigada por me acompanhares durante todo o percurso.
Este livro é tanto meu como teu.
Prólogo

Não deixava de me questionar por que razão, se eu e o Nick já nos tínhamos


separado havia mais de um ano, chorava agora como se tudo tivesse acabado
verdadeiramente entre nós. A certa altura, tive de sair da estrada, desligar o
motor do carro e abraçar o volante para soluçar à vontade sem correr o risco de
embater em alguém.
Chorei por tudo o que fomos, por tudo o que podíamos ter sido… chorei por
ele, por ter conseguido desiludi-lo tanto, por lhe ter partido o coração, por ter
conseguido que ele se abrisse ao amor apenas para lhe provar que afinal o amor
não existe, pelo menos sem dor, e que esta dor é capaz de nos marcar para a vida
inteira.
Chorei pela Noah que podia ter sido como ele: cheia de vida, que, apesar dos
seus demónios interiores, tinha sabido amar com todo o coração; soube amá-lo
mais do que a qualquer outra pessoa, e isso também me dava vontade de chorar.
Quando se conhece a pessoa que queremos para o resto da vida, não há como
voltar atrás. Muitos nunca chegam a conhecer esta sensação, acham que
encontraram a sua pessoa, mas estão enganados. Eu sabia, sei, que o Nick é o
amor da minha vida, o homem que queria como pai dos meus filhos, aquele que
desejava ter ao meu lado nos bons e nos maus momentos, na saúde e na doença,
até que a morte nos obrigasse a separar-nos.
O Nick era essa pessoa, era a minha outra metade, e agora tinha de aprender a
viver sem ele.
PARTE UM

Reencontro
1
NOAH

Dez meses depois…


O ruído do aeroporto era ensurdecedor, as pessoas andavam de um lado para o
outro, agitadas, a puxar as malas, a arrastar crianças, a empurrar carrinhos.
Olhei fixamente para o ecrã sobre a minha cabeça, à procura do nome do meu
destino seguinte e da hora exata em que devia embarcar. Não achava muita
graça a ir sozinha, nunca gostei muito de aviões, mas não tinha muitas opções:
agora estava sozinha, só contava comigo e com mais ninguém.
Olhei para o relógio e novamente para o ecrã. Bem, tinha chegado com tempo
e ainda podia ir beber um café no terminal, ler um pouco; de certeza que isso
me deixaria mais tranquila. Fui até à zona dos detetores de metal; detestava que
me revistassem quando passava por eles, e faziam-no sem falha porque tinha
sempre qualquer coisa que disparava os alarmes. Talvez fosse, como uma vez me
disseram, o meu coração de metal: a simples razão do infortúnio que eu atraía
sempre que ia a um lugar com detetores.
Pousei a pequena mochila no tapete, tirei o relógio e as pulseiras, o colar que
usava sempre — embora já o devesse ter tirado há muito tempo — e pousei
tudo juntamente com o telemóvel e as poucas moedas que tinha no bolso.
— As sapatilhas também, minha senhora — disse o jovem segurança num
tom de voz cansado. Entendia-o, aquele trabalho devia ser a personificação de
algo entediante e monótono, o mais certo era o cérebro do rapaz estar meio
adormecido, sempre a fazer e a dizer a mesma coisa. Pus as Converse brancas
numa caixa e alegrei-me por naquele dia não ter calçado meias com bonecos ou
algo do género, porque teria morrido de vergonha. Enquanto as minhas coisas
avançavam pelo tapete, atravessei o detetor e, claro… começou a apitar.
— Venha para este lado, por favor, afaste os braços e as pernas — ordenou-me
o segurança, e eu suspirei. — Leva consigo algum objeto metálico, algum
objeto pontiagudo ou algum…
— Não tenho nada, sempre que passo nestes detetores, eles apitam e não sei
porquê — respondi, deixando que o segurança me revistasse de alto a baixo. —
Deve ser algum chumbo nos dentes.
O rapaz achou graça à minha resposta, e, de repente, só queria que ele tirasse
as mãos de cima de mim.
Quando se afastou e me deixou ir embora, peguei nas minhas coisas e fui
diretamente ao duty-free. Quê? Toblerones gigantes? Muito bem, pode ser. Acho
que era a única coisa agradável num aeroporto. Comprei dois chocolates,
guardei-os na mala de mão e fui procurar o meu portão de embarque. O
aeroporto de LAX era grande, mas por sorte a minha porta de embarque não
ficava muito longe dali. Caminhei pelo piso meio forrado com setas e sinais sob
os meus pés e passei por mil cartazes que diziam «Adeus» em dezenas de
línguas diferentes, até que cheguei ao meu destino. Ainda não havia muita
gente à espera, por isso, entraria sem problemas depois de mostrar o passaporte
e o bilhete, e podia sentar-me, pegar no meu livro e começar a comer um
Toblerone.
As coisas tinham corrido razoavelmente bem até a carta que metera entre as
páginas do livro cair no meu colo, trazendo-me à memória coisas que tinha
jurado esquecer e enterrar. Senti um nó no estômago enquanto as imagens
voltavam a inundar a minha cabeça e aquele dia tão tranquilo se transformava
num desastre.
Nove meses antes…
A notícia de que o Nicholas se tinha ido embora chegara-me por vias
inesperadas. Ninguém me queria contar nada que tivesse que ver com ele, e era
evidente que deixara instruções taxativas a esse respeito. Nem sequer a Jenna
falava do Nick, e eu sabia que se encontrara com ele em mais do que uma
ocasião. A sua expressão de preocupação era o reflexo do que devia presenciar
quando ela e o Lion iam ao apartamento do Nick. A minha amiga estava entre a
espada e a parede, e isso era só mais uma daquelas coisas que eu tinha de
acrescentar à minha lista de culpas.
Eu não voltara a ver o Nicholas, mas as suas ações em relação a mim não se
fizeram esperar. Apenas duas semanas depois de termos acabado, chegaram
algumas caixas com coisas minhas, e, quando vi o N numa transportadora de
animais, tive um ataque de ansiedade tão grande que depois de se me esgotarem
as lágrimas me deixei ficar estendida em cima da cama. O nosso pobre gatinho
que agora era só meu… Tive de o deixar em casa da minha mãe porque a minha
antiga companheira de apartamento era terrivelmente alérgica a gatos. Foi
muito difícil separar-me dele, mas não tive remédio.
Chamei a esta época da minha vida em que só chorava a «minha fase
obscura», porque tinha sido isso mesmo: estava dentro de um túnel negro sem
luz, completamente envolta numa obscuridade da qual não podia sair, não
obstante a luz de um novo dia lá fora e a iluminação artificial do candeeiro ao
lado da minha cama; tinha sofrido ataques de pânico quase diários até que,
finalmente, uma médica me mandou direitinho para o psiquiatra.
Inicialmente, nem queria ouvir falar de psicólogos, mas creio que no fundo
me ajudou porque comecei a levantar-me de manhã para fazer as tarefas básicas
características dos seres humanos… até àquela noite, a noite em que percebi
que, se o Nick se fosse embora, tudo se perderia, desta feita para sempre.
Fiquei a saber daquilo através de uma conversa simples na cafetaria do campus.
Deus do Céu, naquela altura até as universitárias sabiam mais da vida do Nick
do que eu.
Uma rapariga estava a coscuvilhar sobre o meu namorado, perdão, ex-
namorado, e informou-me, sem dar por isso, da sua iminente partida para Nova
Iorque, a poucos dias.
Foi então que alguma coisa se apoderou do meu corpo, me obrigou a entrar no
carro e a ir até ao apartamento dele. Tinha evitado pensar naquele lugar, em
tudo o que acontecera, mas não podia deixá-lo ir embora, pelo menos não sem
antes o ver, sem termos uma conversa. A última vez que o vira tinha sido na
noite em que acabámos.
Com as mãos a tremer e as pernas a ameaçarem fazer-me cair sobre o asfalto,
entrei no prédio do Nick. Entrei no elevador, subi até ao seu andar e deixei-me
ficar em frente da sua porta.
O que ia dizer-lhe? O que podia fazer para que me perdoasse, para que não se
fosse embora, para que voltasse a amar-me?
Toquei à campainha e senti-me à beira do desmaio. Sentia tanto medo, anseio
e tristeza, e foi assim que ele me encontrou quando abriu a porta do
apartamento.
Inicialmente, ficámos calados, a olhar um para o outro. Ele não esperava
encontrar-me ali; mais do que isso, eu era capaz de pôr as mãos no fogo em
como o seu plano era ir embora sem olhar para trás, esquecer-se de mim e fazer
de conta que eu nunca existira, mas estava a contar que lhe facilitasse a vida.
A tensão era quase palpável. Ele estava incrível, de calças de ganga escuras, T-
shirt branca e cabelo um pouco despenteado. Na verdade, classificá-lo como
incrível era um eufemismo, ele estava sempre assim, mas aquele olhar, a luz que
iluminava sempre o seu rosto quando me via chegar, já não existia, apagara-se, a
magia que nos deixava enfeitiçados quando nos víamos frente a frente
extinguira-se.
Ao vê-lo assim tão bonito, tão alto, tão meu… foi como se me esfregassem na
cara o que perdera, foi como um castigo.
— O que vieste cá fazer? — A voz dele era dura e fria como o gelo e fez-me
sair do meu torpor.
— Eu… — comecei, com a voz entrecortada. O que podia dizer-lhe? O que
podia fazer para que voltasse a olhar para mim como se eu fosse a sua luz, a sua
esperança, a sua vida?
Ele nem sequer parecia disposto a ouvir­-me, porque se preparou para me
fechar a porta na cara, mas naquele momento tomei uma decisão: se tinha de
lutar por ele, era exatamente o que faria. Não ia deixá-lo ir embora, não podia
perdê-lo, porque não sobreviveria sem ele, era uma impossibilidade. Doía-me a
alma vê-lo assim à minha frente e não poder pedir-lhe um abraço, pedir-lhe que
acalmasse a dor que me consumia todos os dias. Avancei e esgueirei-me pela
frincha da porta, entrei no apartamento dele e invadi o seu espaço.
— O que achas que estás a fazer? — perguntou ele, seguindo-me quando
avancei para a sala de estar. A casa estava irreconhecível: havia caixas por todo o
lado, mantas brancas cobriam o sofá e a mesa de centro. Recordei os dias em
que tomámos o pequeno-almoço juntos, os beijos roubados no sofá, as carícias
enquanto víamos filmes, ele a preparar-me o pequeno-almoço, eu a suspirar de
prazer entre aquelas almofadas enquanto ele me beijava até me deixar sem
fôlego…
Tudo isso desaparecera. Já não restava nada.
Foi nesse momento que os meus olhos se encheram de lágrimas e me voltei
para ele sem conseguir conter-me.
— Não podes ir embora — sentenciei com a voz entrecortada; ele não podia
deixar-me.
— Sai, Noah, não vou fazer isto — respondeu ele, muito quieto enquanto
cerrava os maxilares com força.
O seu tom de voz fez com que me sobressaltasse, e as minhas lágrimas
passaram a outro nível. Não, raios… não, não ia sair dali, pelo menos sem ele.
— Nick, por favor, não posso perder-te — supliquei com uma voz pesarosa.
As minhas palavras não eram nada do outro mundo, mas eram sinceras,
totalmente sinceras; eu não ia sobreviver sem ele.
A respiração do Nicholas parecia cada vez mais agitada, tinha medo de estar a
pressioná-lo demasiado, mas, já que me tinha ido meter na boca do lobo, o
melhor era ir até ao fim.
— Vai-te embora.
A sua ordem era clara e concisa, mas eu era especialista em lhe desobedecer,
sempre o fizera… não ia mudar agora.
— Não tens saudades minhas? — perguntei, e a minha voz quebrou-se a
meio da pergunta. Olhei em redor e voltei a fixar-me nele. — Porque eu sinto
que mal consigo respirar… mal consigo levantar-me de manhã; deito-me a
pensar em ti, levanto-me a pensar em ti, choro por ti…
Limpei as lágrimas com impaciência, e o Nicholas deu um passo em frente,
mas não com a intenção de me calar, muito pelo contrário. As suas mãos
agarraram os meus braços com força. Com demasiada força.
— E o que é que achas que eu faço?! — disse com raiva. — Tu deste cabo de
mim, destruíste-me!
Sentir as mãos dele na minha pele, por mais grosseiro que fosse o gesto, foi o
suficiente para me dar forças. Senti tanto a falta do seu toque que fui invadida
por uma onda de adrenalina que me inundou até ao âmago da minha alma.
— Perdoa-me — desculpei-me, baixando a cabeça, porque uma coisa era
sentir o ódio dos seus bonitos olhos claros, outra completamente diferente era
aguentá-lo. — Cometi um erro, um erro imenso e imperdoável, mas não podes
deixar que isso acabe com o que existia entre nós. — Levantei os olhos. Desta
vez precisava que ele acreditasse realmente nas minhas palavras, que visse nos
meus olhos que vinham do coração. — Nunca vou amar ninguém como te amo
a ti.
As minhas palavras pareceram queimá-lo porque afastou as mãos de mim,
levantou-as e agarrou no cabelo com desespero, puxou-o e voltou a olhar para
mim. Parecia enlouquecido, a travar a batalha mais difícil da sua vida.
Instalou-se um silêncio absoluto entre nós.
— Como foste capaz de fazer aquilo? — perguntou alguns segundos depois, e
o meu coração dilacerou-se novamente ao ouvir como a sua voz se quebrava na
última palavra.
Dei um passo de forma vacilante. Ele estava magoado por minha causa, e eu
só queria que me envolvesse com os seus braços, que me abraçasse outra vez e
me dissesse que tudo se resolveria.
— Nem sequer me lembro… — admiti, com a voz tomada pela angústia. Era
verdade, não me lembrava de nada, a minha mente bloqueara tudo; mais do que
isso, naquela fatídica noite estava destroçada por pensar que ele tinha feito
exatamente a mesma coisa, que nem sequer tinha sido capaz de o impedir, que o
deixara fazer o que quisesse; foi numa altura em que a minha vida estava tão
destruída que me desligara simplesmente do meu corpo e da minha alma. —
Não guardo nada na memória que não esteja relacionado contigo, Nick. Preciso
que me perdoes, que voltes a olhar para mim como antes. — As minhas
palavras começaram a quebrar-se de forma patética. Doía-me imenso o coração,
mas vê-lo aqui tão perto de mim e senti-lo tão afastado… — Diz-me o que
posso fazer para que me perdoes…
Olhou para mim com incredulidade, como se estivesse a pedir-lhe algo
impossível, como se da minha boca saíssem apenas coisas incoerentes e
ridículas.
E, sim, senti-me ridícula, porque, se fosse ao contrário, seria capaz de lhe
perdoar uma traição? Se o Nick me traísse, perdoá-lo-ia?
Senti uma dor imensa no peito, e foi o suficiente para perceber qual era a
resposta… Não, claro que não perdoaria, só de pensar nisso tinha vontade de
arrancar os meus próprios cabelos para apagar a imagem do Nick nos braços de
outra mulher.
Limpei as lágrimas com o antebraço e percebi que era inútil. Ficámos em
silêncio durante um instante, e soube que devia ir-me embora. Não suportava
aquela sensação de perda, porque o tinha perdido mesmo, e, por mais que
suplicasse, não havia nada que pudesse fazer a esse respeito.
As lágrimas continuaram a cair­-me em silêncio pelo rosto… sabia que íamos
ter uma despedida silenciosa. Uma despedida… Deus do Céu, ia despedir-me
do Nick! Como se faz uma coisa dessas? Como nos despedimos da pessoa que
mais amamos e de que mais precisamos na vida?
Comecei a encaminhar-me para a porta, mas, antes de passar por ele, o Nick
mexeu-se, pôs-se à minha frente e, para minha surpresa, os seus lábios pousaram
sobre a minha boca, as mãos agarraram-me nos ombros, apertaram-me contra si,
e eu fiquei imóvel a receber um beijo que nunca pensei que acontecesse.
— Porquê, raios? — lamentou-se ele um segundo depois, apertando-me os
braços com força.
Segurei-lhe o rosto entre as mãos, e ele nem me deu tempo para perceber o
que estava a acontecer porque as minhas costas chocaram contra a parede da
sala, ele segurou-me ali com força, a sua boca a procurar na minha o ar que
parecia que nos tinha sido roubado. Puxei-o para mim com desespero, a língua
dele entrou na minha boca enquanto as suas mãos desciam pelo meu corpo. Mas
depois alguma coisa mudou, a sua atitude, o beijo, tudo se tornou mais
insistente, mais duro. Separou-se dos meus lábios e voltou a empurrar-me
contra a parede quase sem me deixar mexer.
— Não devias estar aqui — gritou com raiva e, quando abri os olhos, vi que
as lágrimas lhe caíam pelo rosto. Nunca o tinha visto chorar assim, nunca.
Senti que me faltava o ar, percebi que precisava de me afastar dele, que não
estávamos a fazer as coisas bem, que aquilo estava errado, muito errado. Queria
acariciar-lhe o rosto, enxugar as suas lágrimas, abraçá-lo com força e pedir-lhe
perdão mil e uma vezes. Não sei o que o meu olhar mostrava naquele momento,
mas, ao cravar-se nos olhos do Nick, vi-os iluminados com algo a que apenas
posso chamar raiva, raiva e dor, uma dor profunda que eu conhecia muito bem.
— Eu amava-te — afirmou, enterrando o rosto na cova do meu pescoço.
Senti-o tremer, e as minhas mãos agarraram-no como se nunca mais o quisessem
largar. — Eu amava-te, maldita! — Repetiu. Desta vez a gritar, separando-se
de mim.
O Nicholas deu um passo atrás, olhou para mim como se me visse pela
primeira vez, cravou os olhos no chão e a seguir levantou-os até fitar o meu
rosto.
— Sai deste apartamento e nunca mais voltes aqui.
Fitei-o diretamente e percebi que estava tudo perdido. As lágrimas ansiavam
por sair, mas já não havia o menor rasto de amor nos olhos dele, só dor, dor e
ódio; não podia fazer nada para lutar contra aquilo. Tinha acreditado que seria
capaz de o recuperar, que o amor que sentia por ele faria que o dele voltasse,
mas estava muito enganada. Do amor ao ódio vai apenas um passo… estava a
presenciar exatamente isso.
Foi a última vez que vi o Nick.

— Menina — disse uma voz ao meu lado, fazendo-me regressar à realidade.


Levantei os olhos da carta e vi uma hospedeira a observar-me com alguma
impaciência.
— Sim? — respondi, endireitando-me, enquanto o livro e o Toblerone que
tinha ao colo caíam para o chão.
— Já quase todos os passageiros embarcaram, pode dar-me o seu bilhete?
Olhei em redor. Caramba! Era a única que ainda estava na sala. Olhei para as
duas hospedeiras, que me observavam da porta que dava acesso à manga para o
avião, e levantei-me. Bolas!
— Desculpe — disse, pegando na mochila e procurando o passaporte e o
bilhete lá dentro. A rapariga pegou neles e dirigiu-se para a porta. Segui-a,
dando uma vista de olhos à sala para verificar que não deixava ali nada, e
esperei.
— O seu lugar fica ao fundo, à direita… Desejo-lhe um bom voo.
Assenti enquanto entrava na manga e senti-me invadida por uma sensação de
mal-estar no fundo do estômago.
Tinha pela frente seis horas de voo até Nova Iorque.
A viagem foi interminável. Nem queria imaginar a temperatura que devia
estar em Nova Iorque, já que estávamos a meio de julho; fiquei grata por a
minha estada ser bastante curta e ter apenas um motivo.
Ao sair do avião, fui diretamente para a estação de caminhos de ferro. O
trajeto de comboio desde o aeroporto até à estação de Jamaica era breve, mas,
uma vez ali, apanharia outro comboio que me levaria até East Hamptons. Ainda
não conseguia acreditar que ia visitar um lugar tão snobe que nunca me
chamara a atenção, mas a Jenna, bem, a Jenna!, queria festejar o seu casamento
com tudo aquilo a que tinha direito; sim, senhor, ela andara meses a organizar
tudo e queria casar-se nos ­Hamptons, como uma típica americana ricaça. A mãe
dela sempre tivera uma mansão naquela zona requintada. Passavam o verão
quase sempre ali, e a Jenna adorava aquele lugar, pois era lá que estavam quase
todas as suas recordações de infância. Ao investigar um pouco na Internet,
percebi a fortuna que custava ter uma casa ali: fiquei boquiaberta.
A Jenna disse-me que me queria com ela uma semana antes do casamento. Era
terça-feira, e só no domingo a minha melhor amiga deixaria de ser solteira para
sempre. Muitas diriam que casar aos dezanove anos era uma loucura, mas quem
somos nós para julgar o amor de um casal? Eles amavam-se, sentiam-se
preparados e seguros do amor que os unia, por isso as convenções que fossem
para o Inferno.
Assim estava eu, a descer do comboio na estação de Jamaica para enfrentar
duas horas e picos de viagem, durante as quais ia ter de me mentalizar de que
não só ia ver a minha melhor amiga casar como também voltar a ver o Nicholas
Leister, depois de se terem passado dez meses sem saber absolutamente nada
dele, a não ser as poucas notícias que fui lendo na Internet.
O Nick era o padrinho, e eu uma das damas de honor… já podem imaginar o
cenário maravilhoso que se desenhava ali. Talvez tivesse chegado a altura de
sarar as feridas, ou talvez o tempo o tivesse conduzido ao perdão. Não sabia,
mas uma coisa era clara: íamos encontrar-nos frente a frente, e o mais certo era
que rebentasse a Terceira Guerra Mundial.
2
NOAH

Cheguei à estação de caminhos de ferro por volta das sete da tarde. O Sol ainda
não desaparecera no horizonte, em pleno julho só se punha depois das nove, e
foi agradável sair do comboio, esticar as pernas e sentir aquele aroma acolhedor
a mar e a brisa fresca que vem da costa. Havia muito tempo que não ia à praia e
sentia imensas saudades. A minha faculdade ficava a quase duas horas de carro
do mar, e fazia os possíveis por evitar ir a casa da minha mãe. A minha relação
com ela já não era como antigamente e, apesar de se terem passado muitos
meses, não tínhamos resolvido as coisas entre nós. Falávamos apenas de vez em
quando e, quando a conversa se encaminhava para assuntos que eu não estava
simplesmente disposta a debater, desligava-lhe o telefone e pronto.
A Jenna estava à minha espera em frente à estação, no seu carro. Ao ver-me,
saiu do descapotável branco e veio ao meu encontro a correr. Eu fiz o mesmo, e
encontrámo-nos a meio da estrada. Envolvemo-nos num abraço apertado e
desatámos a saltitar como duas possessas.
— Estás aqui!
— Estou aqui!
— Eu vou casar!
— Tu vais casar!
Soltámos gargalhadas até que as buzinadelas insistentes do trânsito que
estávamos a interromper nos obrigaram a separar.
Entrámos para o descapotável, e eu fitei a minha amiga enquanto ela
começava a tagarelar sobre como estava angustiada com todas as coisas que
ainda tínhamos de fazer antes do grande evento. Na verdade, dispúnhamos
apenas de um par de dias para estarmos só as duas, já que os convidados não
tardariam a chegar. Os amigos mais próximos ficavam hospedados na casa dela,
e os restantes tinham casa própria nos ­Hamptons — quando digo casa, quero
dizer «mansão», claro — ou então ficariam alojados na casa de algum amigo
que vivesse na zona.
A Jenna tinha escolhido esta data por causa disso mesmo. Para não obrigar
toda a gente a deslocar-se para ali, escolheu a época das férias, uma vez que
metade dos seus amigos e conhecidos já estariam nos Hamptons ou então perto
dali.
— Preparei um itinerário que é uma loucura, Noah; nos próximos dias só
precisamos de ir à praia, ao spa, de comer e de beber margaritas. Esta é a minha
despedida de solteira, com o estilo relaxante que tanto desejo.
Assenti enquanto os meus olhos se perdiam na paisagem que me rodeava.
Deus do Céu, aquele lugar era lindo! Senti que me transladaram subitamente
para a época colonial do século xvii. As casinhas da povoação eram de tijolo
branco, com telhas largas e bonitas, alpendres à frente e cadeiras de baloiço
junto às portas. Estava tão habituada ao estilo prático e simples de Los Angeles
que me esquecera de como alguns lugares conseguem ser pitorescos. À medida
que nos afastávamos da povoação, comecei a ver as mansões impressionantes que
se erguiam, imponentes, nas amplas propriedades. A Jenna virou para uma
estrada secundária em direção ao mar, e ali, ao longe, pude ver os telhados altos
de uma mansão espetacular, branca e castanho-clara.
— Diz-me que aquela não é a tua casa…
A Jenna riu-se e tirou um pequeno aparelho do porta-luvas. Carregou no
botão, e as grades imensas do portão exterior abriram-se quase sem fazer
barulho. E ali estava, uma casa impressionante, grande e linda.
Era de estilo colonial, como todas naquela zona, nada moderna, mas de
construção maravilhosa, numa propriedade que dava para o mar — as ondas
ouviam-se de onde estávamos. Uma série de luzes ténues iluminavam o
caminho que dava acesso ao estacionamento, onde cabiam pelo menos dez
carros.
A mansão de tijolo branco tinha um alpendre muito bonito sustentado por
colunas enormes. Os jardins em redor eram de um verde que eu não via há
muito tempo, e destacavam-se os carvalhos centenários, que pareciam receber-
nos com a sua majestosa presença.
— Vais casar-te aqui? Bolas, Jenna, é mesmo bonita! — exclamei, descendo
do carro sem conseguir afastar os olhos da construção sublime, e até estava
acostumada a casas bonitas… Quero dizer, vivera na casa dos Leisters, mas
aquilo era completamente diferente… era mágico.
— Não vou casar aqui; inicialmente, era esse o plano, mas depois, enquanto
falava com o meu pai, percebi que ele fazia gosto que me casasse num sítio em
É
que sempre dissemos que seria lindo casar-me. É uma vinha a cerca de uma
hora, mais coisa menos coisa, onde o meu pai me levava muitas vezes quando eu
era pequena. Costumávamos andar a cavalo, e lembro-me de que, numa dessas
ocasiões, me disse que gostava que eu me casasse ali, porque tem uma magia
difícil de encontrar noutros sítios. Lembro-me de que ainda nem dez anos tinha
e naquela altura sonhava ter um casamento de princesa. O meu pai ainda se
lembra desse dia.
— Bem, se supera esta casa, de certeza que é um sítio maravilhoso.
— É mesmo, vais adorar. Fazem-se lá muitos casamentos.
Dito isto, aproximámo-nos da escada juntas e subimos os dez degraus que
davam acesso ao alpendre. Senti o estalar subtil da madeira sob os meus pés e
soou-me como uma música celestial.
Não conseguem imaginar como era aquela casa por dentro: mal havia paredes,
era um imenso espaço diáfano com chão de madeira de carvalho. No centro
havia um conjunto de sofás dispostos em círculo em volta de uma lareira
redonda e moderna. Uma biblioteca com pequenas poltronas de orelhas ocupava
outra zona ao lado de uma escada que subia para o primeiro andar, onde uma
balaustrada nos permitia observar o piso térreo.
— Quantas pessoas ficam aqui, Jenna?
A Jenna pousou descontraidamente o casaco no sofá, e encaminhámo-nos para
a cozinha. Também era enorme: tinha uma espécie de sala com poltronas
amarelas e uma mesa de pequeno-almoço não muito grande. Pelas janelas
enormes pude ver que a porta dava para um jardim imenso nas traseiras, e, para
lá dele, a alguns metros, havia uma praia de areia branca imaculada que
competia com a enorme piscina quadrada.
— Então, deixa ver… acho que no total somos dez, contando connosco, com o
Lion e com o Nick; o resto das pessoas ficam noutras casas da zona ou no hotel
que há no porto.
Desviei os olhos para a janela ao ouvir o nome do Nick e assenti de forma
despreocupada para que ela não percebesse como me afetava a simples menção
do seu nome.
Mas, mesmo assim, a Jenna percebeu e, depois de ir buscar duas garrafas de
ginger ale ao frigorífico, obrigou-me a olhar para ela.
— Já se passaram dez meses, Noah… Sei que ainda te dói, e em parte esperei
este tempo todo porque não me podia casar sem os meus dois melhores amigos
presentes, mas… achas que vais estar bem? Quero dizer… não o vês desde…
— Eu sei, Jenna, e não te vou mentir e dizer que não me faz diferença
nenhuma ou que já o esqueci, porque não é verdade, mas ambas sabemos que
isto ia acabar por acontecer. Somos praticamente família… era uma questão de
tempo até voltarmos a encontrar-nos.
A Jenna assentiu e tive de desviar o olhar do dela. Não gostava que visse os
meus olhos; quando se falava do Nick, as pessoas pareciam movimentar-se por
terrenos pantanosos. Eu sabia lidar com a minha dor, já o tinha feito e
continuava a fazê-lo todos os dias, não precisava da compaixão de ninguém. Eu
tinha dado cabo da nossa relação, agora ficar sozinha e com o coração
despedaçado era o meu castigo.
A Jenna não demorou muito a mostrar-me o meu quarto, e agradeci-lhe,
porque estava esgotada. Abraçou-me, emocionada, depois de me mostrar como
funcionava o chuveiro, e foi-se embora a gritar que era bom que descansasse,
porque no dia seguinte não ia haver nada que nos parasse. Sorri e, depois de ela
sair, abri a torneira para tomar um banho quente e relaxante.
Sabia que os dias que se aproximavam seriam duros. Ia ter de manter a
compostura pela Jenna, para que ela não percebesse que eu estava destroçada.
Na semana seguinte, teria de levar a cabo a maior atuação da minha vida… e
não só à frente da Jenna, mas também do Nicholas, porque, se ele visse a minha
vulnerabilidade, ia acabar por massacrar mais o meu coração e a minha alma…
afinal, era isso que se propusera.

Acordei muito cedo, principalmente porque as cortinas do meu quarto


estavam abertas. Aproximei-me da janela, e as ondas do oceano pareceram dar-
me os bons-dias. Estávamos tão perto do mar que quase sentia a areia sob os
pés.
Vesti o biquíni à pressa e, ao chegar à cozinha, vi que a Jenna já estava
acordada; conversava com uma mulher que bebia café, sentada à sua frente.
Ao ver-me chegar, ambas me sorriram.
— Noah, anda cá para te apresentar — disse a Jenna, levantando-se e
segurando-me por um braço. A mulher que estava à sua frente era muito
bonita, de traços orientais e o cabelo castanho muito bem penteado. Era…
limpa; sim, era esta a melhor palavra para a descrever. — Esta é a Amy, a
organizadora do casamento.
Aproximei-me dela e cumprimentei-a com um aperto de mão e um sorriso.

É
— É um prazer.
A Amy ficou a olhar para mim com um ar de aprovação e tirou um caderno da
mala. Depois, começou a procurar qualquer coisa folheando as páginas de forma
rápida e confiante.
— A Jenna disse-me que eras bonita, mas agora que te vejo… O vestido de
dama de honor vai assentar-te maravilhosamente.
Sorri enquanto sentia o rosto corar.
A Jenna sentou-se ao meu lado e levou um pedaço de torrada à boca.
— Olha que a mais bonita da festa tenho de ser eu. — Com a boca cheia de
comida, mal se apercebeu das suas palavras, mas eu sabia que estava a brincar. A
Jenna era tão bonita que, por mais raparigas giras que houvesse ao seu lado, ela
havia sempre de se destacar entre as demais.
— Olha, Noah, este é o teu vestido — disse a Amy, mostrando-me uma
fotografia da marca Vera Wang. Era um vestido lindo de renda, vermelho, com
um decote em V e duas alças finas que se cruzavam nas costas. O decote atrás
era impressionante. — Gostas?
Como podia não gostar? Quando a Jenna me convidou para ser uma das suas
damas de honor, quase me saltaram as lágrimas, mas fizemos um pacto: para eu
ser sua dama de honor, ela tinha de escolher um vestido que não me fizesse
parecer um bolo de aniversário. E ela levara o meu pedido a sério: o vestido era
incrível.
— Quem mais vai ser dama de honor comigo? — perguntei, sem parar de
olhar para o vestido fascinante.
A Jenna olhou para mim com um sorriso.
— Acabei por decidir ter só uma — admitiu, deixando-me petrificada.
— Espera… o quê? — perguntei com incredulidade. — E a tua prima, a
Janina ou Janora ou lá como ela se chama?…
A Jenna levantou-se e dirigiu-se ao frigorífico, virando-me as costas. A Amy
ignorou-nos por completo; mais do que isso, levantou-se para atender uma
chamada e afastou-se para um canto da cozinha, para ouvir melhor.
A Jenna tirou morangos e leite do frigorífico e pousou-os na bancada.
Enquanto ia buscar o liquidificador, claramente com a intenção de fazer um
batido, encolheu os ombros.
— A Janina é insuportável. Quem quase me obrigou a convidá-la foi a minha
mãe, mas, quando percebeu que não podia, acabou por admitir que, entre ter
apenas duas damas de honor ou uma só, preferia que eu tivesse só uma… Já
sabes, é mais harmonioso, foram estas as suas palavras.
Revirei os olhos; fantástico, agora ia ter de estar ali sozinha, de pé em frente a
centenas de convidados que assistiriam à cerimónia, sem ter mais ninguém ao
meu lado com quem partilhar a minha triste sina.
— Além disso, já sabes… o Lion só vai ter um amigo no altar, por isso não
preciso de me preocupar que fique desequilibrado: assim fica tudo
perfeitamente simétrico.
Antes de compreender o que a minha amiga acabara de dizer, o liquidificador
preencheu o silêncio repentino, afogando os meus pensamentos contraditórios.
Um momento… só um amigo e uma amiga no altar…
— Jenna! — gritei, levantando-me e atravessando a cozinha até chegar ao seu
lado. A minha amiga tinha o olhar fixo no aparelho. Desliguei-a sem
contemplações e obriguei-a a olhar para mim. — Sou a madrinha, não sou?
A Jenna tinha a culpa espelhada no rosto.
— Desculpa, Noah, mas o Lion não tem pai, e já sabias, obviamente, que o
Nick seria o seu padrinho. Como deves compreender, não ia convidar a minha
mãe para madrinha se o Lion não tem o pai como padrinho para a acompanhar.
Não me pareceu correto. Por isso decidimos que seriam os nossos melhores
amigos.
— Sabes o que me estás a pedir?
Não só teria de entrar na igreja ao lado do Nicholas como também devíamos
assegurar que tudo correria de acordo com o planeado; não só teríamos de nos
ver durante a cerimónia como também nos ensaios.
Não percebera que seria assim porque achei que a Jenna já tinha escolhido a
madrinha, conformara-me unicamente com a ideia de que ia ter de ver o Nick
ao longe… Sim, ficaríamos alojados na mesma casa, mas não teríamos de
interagir um com o outro; agora ia tê-lo colado a mim durante toda a
cerimónia, incluindo no jantar da véspera.
A Jenna segurou-me nas mãos e fitou-me.
— São só alguns dias, Noah — disse, tentando transmitir uma calma que
nem a brincar poderia sentir. — Vocês já viraram a página, já passaram tantos
meses… vai correr tudo sobre rodas, vais ver.
«Já viraram a página.»
Sabia apenas de um de nós que conseguira fazê-lo; eu, pelo contrário,
continuava a aguentar-me com as pequenas golfadas de ar que inspirava de vez
em quando, ao vir à superfície.
3
NICK

Olhei para o relógio que tinha na secretária do meu escritório. Eram quatro da
manhã, e eu sem conseguir pregar olho. A minha cabeça não parava de dar
voltas e mais voltas sobre o que ia acontecer nos próximos dias. Raios… ia ter
de voltar a vê-la.
Revirei os olhos ao fitar o bonito convite para o casamento. Neste momento,
não havia nada no mundo que odiasse mais do que uma cerimónia estúpida em
que duas pessoas juram amor eterno: que idiotice descomunal.
Aceitara ser o padrinho porque não era assim tão sacana para negar uma coisa
daquelas ao Lion, sabendo que ele já não tinha pai e que o irmão, Luca, era um
ex-presidiário que nem sequer sabia se teria autorização para entrar na igreja.
Mas, à medida que o dia se aproximava, sentia-me mais nervoso e com um
humor de cão.
Não queria vê-la… até falara pessoalmente com a Jenna, tentara pô-la entre a
espada e a parede para que escolhesse entre ela e eu, mas o Lion quase me deu
uma tareia por estar a colocar a minha amiga nessa situação.
Tinha pensado em mil e uma desculpas para não ir ao casamento, mas
nenhuma delas justificava a sacanice de deixar os meus dois melhores amigos
pendurados.
Levantei-me da cadeira e aproximei-me da janela enorme de onde podia
contemplar a maravilhosa vista da cidade de Nova Iorque. Ali de pé, no andar
sessenta e dois, sentia-me longe de todos… tão longe do que quer que fosse que
senti um frio glacial percorrer-me o corpo inteiro. Eu era assim agora, uma
placa de gelo flutuante.
Os últimos dez meses tinham sido um pesadelo, desci ao inferno e fi-lo
sozinho; queimei-me nas chamas e ressurgi das cinzas transformado em alguém
completamente diferente.
Acabaram-se os sorrisos, acabaram-se os sonhos, acabou-se a sensação de sentir
algo mais do que o simples desejo carnal por alguém. Ali de pé, longe do
mundo, eu transformara-me na minha própria prisão, que era só minha e de
mais ninguém.
Ouvi passos nas minhas costas, e a seguir umas mãos rodearam-me por trás.
Nem sequer me sobressaltei, já não sentia nada, existia simplesmente.
— Porque não voltas para a cama? — perguntou a voz daquela rapariga que
conhecera poucas horas antes num dos melhores restaurantes da cidade.
A minha vida agora resumia-se a uma única coisa: trabalho. Trabalhava sem
parar, ganhava dinheiro que nunca mais acabava e a seguir voltava a trabalhar.
Tinham-se passado apenas dois meses do aniversário das Empresas Leister
quando o meu avô Andrew decidiu que estava cansado deste mundo e que
queria abandoná-lo. Se tiver de admitir alguma coisa é que foi esse momento,
em que recebi o telefonema a dar conta do seu falecimento, que me permitiu
desabar finalmente. Foi nesse instante em que me roubaram outra das pessoas
que amava que percebi que a vida não presta: entregamos o coração a alguém,
deixamos esta parte de nós nas mãos de outra pessoa para acabarmos por
descobrir que não só não tiveram com ele o cuidado que esperávamos como
ainda o fizeram sangrar; e a seguir as pessoas que nos amaram de verdade, as que
decidiram proteger­-nos desde o dia em que nascemos, deixam este mundo sem
sequer nos avisarem, vão-se sem deixar rasto. Ficamos sozinhos e sem entender
o que aconteceu, questionamo-nos por que razão tiveram de partir…
O meu avô não desaparecera sem deixar rasto, não: na verdade, deixara para
trás um documento muito importante, que mudou a minha vida de forma
radical.
O meu avô deixou-me absolutamente tudo. Não só a casa em Montana e todas
as suas propriedades mas também a totalidade das Empresas Leister. A mim.
Nem o meu pai recebeu a sua parte da herança, embora também não lhe fizesse
falta, já que fazia parte da direção de uma das melhores sociedades de advogados
do país, mas o meu avô deixou-me todo o seu império, incluindo a Corporação
Leister, a empresa que, juntamente com a do meu pai, dominava grande parte
do sector financeiro do país. Eu sempre ansiara por fazer parte do mundo das
finanças ao lado do meu avô, mas nunca quis que me caísse tudo do céu.
Assim, vi-me de repente obrigado a ocupar esse lugar por que tanto ansiara e
transformara-me oficialmente no dono de um império, tudo nos meus
fantásticos vinte e quatro anos.
Dediquei-me tanto ao trabalho, a provar que era capaz de transpor qualquer
obstáculo, a demonstrar que podia ser o melhor, que já ninguém duvidava das
minhas capacidades. Alcançara o topo… e, no entanto, não conseguia ignorar o
vazio que me preenchia.
Voltei-me para olhar para a rapariga morena com quem quis entreter-me
durante algumas horas. Era esguia, alta, tinha os olhos azuis e seios perfeitos,
mas não era mais do que um corpo bonito. Nem sequer me lembrava do nome
dela. Na verdade, ela já se devia ter ido embora: eu deixara bem claro que só me
interessava sexo e que, quando acabássemos, lhe chamaria um táxi de bom
grado, para ela ir para casa. Não obstante, ao vê-la aqui, depois de me sentir tão
vazio e irritado por ser obrigado a enfrentar uma situação que me enfurecia mais
do que queria admitir, senti a urgência de pelo menos aliviar uma parte da
tensão que o meu corpo parecia acumular.
As mãos dela subiram pelo meu peito enquanto os olhos procuravam os meus.
— Tenho de admitir que os rumores que ouvi a teu respeito não eram de todo
infundados — disse, colando-se a mim de modo tentador.
Segurei-lhe os pulsos e detive a carícia que se avizinhava.
— Não me interessa o que possam dizer sobre mim — disse de forma
determinada. — São quatro da manhã, e daqui a meia hora vou chamar um táxi
para te levar a casa, por isso é melhor aproveitares o tempo.
Apesar da frieza das minhas palavras, a rapariga esboçou um sorriso.
— É para já, senhor Leister.
Cerrei os maxilares com força e permiti simplesmente que ela continuasse a
fazer o que queria fazer. Fechei os olhos e deixei-me levar pelo prazer
momentâneo e pela simples satisfação física, enquanto tentava não sentir o vazio
que me inundava. O sexo já não era o que tinha sido e, para mim… até era
melhor assim.
4
NOAH

A calma que vivemos nos últimos dias desapareceu assim que a campainha
tocou naquela manhã, bem cedo. Tínhamos passado o tempo em idas ao spa em
Sag Harvor, a comer marisco fresco nos restaurantes pitorescos e a torrar ao sol,
deixando que a nossa pele ganhasse um bronzeado muito desejado e que
certamente nos provocaria imensas rugas para o resto da vida.
Amy, a organizadora do evento, deixara-nos sozinhas para podermos
aproveitar este tempo entre amigas de que tanto necessitávamos, mas, a poucos
dias do casamento e com a chegada iminente de inúmeros convidados, foi
impossível continuar com aquele nosso dolce far niente.
A Jenna parecia estar a ficar cada vez mais nervosa e demonstrava-o falando
sem parar e, principalmente, ligando ao Lion de cada vez que lhe dava um
ataque de ansiedade. Depois de passar meses a preparar-se para o exame de
admissão a uma das empresas do pai da Jenna, o Lion conseguira o merecido
lugar de administrador de uma das suas sucursais, e as coisas pareciam estar
finalmente bem encaminhadas para o extraviado do grupo. Ambos conseguiram
perdoar-se pelos erros do passado e estavam mais apaixonados do que nunca.
Naquela manhã, pude finalmente ver o vestido de noiva da Jenna. A modista
chegara com a Amy para a Jenna poder experimentar o vestido pela última vez
e fazer os ajustes necessários. Devo dizer que o vestido era incrível, de renda
branca e justo até à cintura, de onde surgia uma saia em campânula. Fazia-me
lembrar os vestidos das protagonistas dos filmes ou das modelos nas revistas,
que deixam toda a gente babada. A mãe da Jenna desenhara o vestido em
conjunto com uma das modistas mais caras de Los Angeles, e a minha amiga
ficava maravilhosa com ele.
A seguir, chegou uma equipa de trabalhadores que se encarregou de decorar a
entrada da casa com flores, segundo a Jenna, de acordo com o tema floral do
casamento; ao mesmo tempo, outra equipa tratou do catering para a receção de
todos os amigos e familiares que chegariam naquele dia: havia comida para dar
e vender. Em suma, no imenso jardim estava a preparar-se o que seria uma
receção pré-casamento digna de registo.
O jantar de ensaio seria dali a dois dias e teria lugar num salão junto à baía.
Nem é preciso falar do estado de nervos em que me encontrava. Não me sentia
preparada para voltar a ver o Nick e muito menos para passar mais de dois dias
na mesma casa que ele.
A casa depressa se transformou num corrupio de gente, com familiares e
amigos que chegavam sem parar e, emocionados, se aproximavam da Jenna para
lhe perguntar coisas acerca da cerimónia ou simplesmente coscuvilhar sobre o
vestido e outros detalhes.
A minha amiga convidou os amigos mais íntimos a ficarem na mansão, assim
como os familiares mais próximos, principalmente os mais jovens, já que os
adultos preferiam ficar hospedados em hotéis onde a emoção juvenil e a
bebedeira com que certamente todos acabaríamos o dia não incomodaria a sua
tranquilidade.
A Jenna estava rodeada por algumas das suas primas, enquanto pela porta
principal iam entrando as pessoas que trabalhavam no catering e que pareciam
ser mais do que as mães. Ia mesmo a passar junto à porta, com a intenção de ir
para o meu quarto procurar um pouco de sossego, quando um carro conhecido
parou em frente à casa. Levantei a mão para proteger os olhos da luz e vi que era
o irmão do Lion; vinha a sair do carro com aquele sorriso perigoso que parecia
tatuado no seu rosto.
Fez girar as chaves do carro entre os dedos e cravou o olhar no meu ao
aperceber-se de que estava no alpendre a observá-lo.
— Olhem só quem cá está — disse ele com um sorriso retorcido, ao subir os
degraus —, a princesinha desaparecida em combate.
Revirei os olhos. Nunca tinha gostado muito do Luca. Ele passara anos na
cadeia e, pelo que a Jenna me tinha contado, continuava a meter-se em sarilhos,
sarilhos que agora o Lion se encarregava de resolver. Tinha de admitir que o
Luca estava muito diferente desde a última vez em que o vira, meses antes,
naquelas corridas horríveis em que a Jenna acabara com o Lion. Eu e o Nick
também tínhamos tido uma discussão descomunal nesse dia, uma discussão
que, como todas as nossas discussões, acabara em sexo. O sexo não resolvia nada,
só nos ajudava a ter a certeza do inevitável: que nos estávamos a destruir
mutuamente, pouco a pouco.
— Como estás, linda? — cumprimentou, pondo-se à minha frente e
obrigando-me a levantar um pouco o olhar. Se o Lion era um homem alto, o
Luca não lhe ficava atrás. Os seus braços tatuados podiam afugentar qualquer
pessoa de bem, mas ele exibia-os com orgulho, e a mim não me incomodavam
nem um pouco.
— Estou muito bem, Luca, fico contente por te ver — respondi, dando um
pequeno passo atrás; ele aproximara-se demasiado de mim, e eu não achava
muita graça àquela proximidade. — A Jenna está lá dentro, se quiseres
cumprimentá-la.
O Luca olhou por cima do meu ombro sem demonstrar grande interesse. Os
seus olhos verdes, iguais aos do irmão, desceram sobre os meus, percorreram
descaradamente o meu vestido branco, enrugaram-se ao sorrir e voltaram a
pousar sobre a minha cara.
— Tenho tempo para cumprimentar a futura noiva, mas, por falar nisso... É
verdade que estás solteira?
O interesse dele perturbou-me um pouco, e, como não tinha vontade
nenhuma de falar da minha vida sentimental, muito menos com o irmão rufia
do melhor amigo do meu ex-namorado, que certamente sabia de tudo o que
acontecera, sobretudo o que eu tinha feito, a vontade de sair dali a correr e
fechar-me no meu quarto aumentou de forma considerável.
— Tenho a certeza de que sabes a resposta a essa pergunta — afirmei de modo
bastante frio. A recordação da minha situação atual fez com que sentisse uma
pontada no peito.
Nesse preciso instante apareceu a Jenna. O sorriso que fez ao receber o Luca
foi bastante mais agradável do que o meu, e ele abriu os braços para a apertar
contra o peito.
— Olá, futura cunhada — cumprimentou ele, tocando com as mãos no corpo
dela. — Estás mais gorda? Tem cuidado, depois o vestido não te serve.
O Luca sorriu, e a Jenna contorceu-se para se libertar dos braços dele,
afastando-se e fulminando-o com o olhar.
— És um idiota — disse ela, dando-lhe uma palmada no braço.
O Luca voltou a concentrar-se em mim.
— Estava aqui a perguntar à Noah onde é o meu quarto… Já sabes que não
estou acostumado a viver em castelos à beira-mar e que me sinto cansado da
viagem…
A Jenna revirou os olhos.
— Também, só tu te lembrarias de atravessar o país de carro. Não sei se sabes,
mas agora há uns aparelhos voadores chamados aviões?
Arregalei os olhos com surpresa.
— Vieste de carro da Califórnia?
O Luca assentiu, consertando a mochila que trazia ao ombro.
— Adoro os restaurantes de beira de estrada — declarou, passando por nós
para entrar em casa. — Onde é o meu quarto?
A Jenna abanou a cabeça e sorriu. Naquele instante, chamaram-na da cozinha.
— Noah, leva-o até lá acima e mostra-lhe o quarto da direita, aquele ao lado
da varanda.
— Mas…
A Jenna não ficou para ouvir os meus protestos, desapareceu pelo corredor em
direção da cozinha e deixou-me a sós com o Luca.
— Vamos lá, princesa, não tenho o dia todo.

Depois de lhe mostrar o quarto e com a clara intenção de o perder de vista,


voltei-me para sair e para me fechar no meu quarto, que ficava só duas portas ao
lado, mas o Luca intercetou-me a meio do caminho, colocando-se entre mim e a
porta.
— Vamos à praia — sugeriu ele, com uma expressão determinada.
— Não, obrigada — respondi, tentando desviar-me do seu corpo e chegar à
maçaneta da porta.
— Não me apetece ficar aqui… Vá lá, não sejas aborrecida. Convido-te para
comer um cachorro-quente.
Observei-o demoradamente, tentando adivinhar as suas intenções. Luca era
uma pessoa inquieta, alguém difícil de controlar, tinha a certeza de que ficar em
casa, com os convidados que não paravam de chegar, o deixava mais stressado do
que queria admitir.
— Não quero um cachorro-quente, quero ir para o meu quarto ler um bom
livro, por isso, afasta-te, se fazes favor.
Ele não fez caso.
— Ler? — Pronunciou a palavra como se fosse um insulto. — Lês quando
fores velha. Anda, vamos dar uma volta por este lugar tão finório.
— Luca, não posso sair de casa assim sem mais nem menos. A Jenna precisa
da minha ajuda; além disso, não conhecemos este lugar, e, para dizer a verdade,
não me apetece perder-me contigo nos Hamptons.
O Luca puxou o boné para trás e olhou para mim fixamente.
— Perderes-te comigo era a melhor coisinha que te podia acontecer, linda,
mas não é algo que me interesse agora; só quero sair e comer qualquer coisa em
boa companhia, e tu não és nada má, apesar do teu ar de princesa repelente.
Cruzei os braços sobre o peito e estive prestes a dar-lhe uma palmada, como a
Jenna fizera, mas ele soltou uma gargalhada que interrompeu o insulto que
estava prestes a sair-me da boca.
— Estou a brincar! Vá lá, não sejas chata, prometo que te trago de volta sã e
salva. Deus me livre de a Jenna ficar sem dama de honor.
Naquele momento, um grupo de familiares da Jenna começou a subir a
escadaria imensa e inundou o corredor, que ficou cheio de pessoas a conversar
animadamente; agora, a ideia do Luca de sair de casa já não me parecia assim
tão horrível.
— Saio contigo, mas com uma condição — disse, olhando fixamente para ele
sem uma centelha de um sorriso.
— O que tu quiseres.
— Conduzo eu.

Ao contrário do que esperava, o Luca não se importou minimamente que fosse


eu a conduzir ao volante do seu Mustang preto brilhante; pelo contrário, parecia
satisfeito por não precisar de se concentrar na estrada e por poder observar as
vistas da costa. O sol não tardaria a pôr-se, e corria uma brisa muito agradável.
Íamos envoltos num silêncio nada incómodo, e gostei de conduzir através
daquelas estradas secundárias com a simples intenção de dar um passeio. Sabia
que uma parte do Luca estava a conter-se comigo: ele não era o rapaz típico que
sai com uma rapariga só para passar algum tempo, mas as suas intenções não me
importavam minimamente. Por fim, depois de conduzir durante um tempo sem
rumo, e quando a noite já caíra, parei numa carrinha ambulante de cachorros-
quentes perto do mar. Havia algumas mesas à volta, em que estavam sentados
dois casais e uma família com dois filhos pequenos.
— Estou com fome — anunciei, tirando a chave da ignição.
O Luca sorriu e saiu do carro. Observei-o do lugar junto à janela da carrinha e
saí rapidamente para o alcançar.
— Não sabia que conduzias carros com mudanças — comentou, tirando o
boné e passando a mão pelo cabelo cortado quase a pente zero, para o voltar a
pôr.
— Pois, não nos conhecemos assim tão bem, é normal que não soubesses.
Inclinei-me para a carrinha que vendia o que muitos consideravam comida de
plástico, mas que cheirava maravilhosamente. Pedi um cachorro com tudo,
batatas fritas e uma Coca-Cola. O Luca pediu o mesmo, mas com uma cerveja.
Quando a nossa comida estava pronta, sentámo-nos a uma das mesas. Achei um
pouco estranho estar ali com o irmão do futuro marido da minha melhor amiga,
um rapaz ex-condenado e com muito má fama, mas tinha de reconhecer que até
agora ele se portara bastante bem.
— A cena das dietas não te diz muito, pois não? — perguntou ele, apontando
para o meu prato gordurento.
— Eu faço exercício — respondi, dando uma dentada no cachorro. Estava
delicioso.
O Luca assentiu enquanto bebia um gole de cerveja. Depois, chegou-se para
trás e ficou a olhar para mim.
— Há pouco disseste que não nos conhecíamos muito bem. Porque não
jogamos ao jogo das vinte perguntas?
Pousei cuidadosamente o cachorro-quente no prato e desviei o olhar por
instantes.
Uma pequena parte do meu cérebro apercebeu-se do tom sedutor que ele
ocultara na proposta, mas a outra parte evadiu-se dali para procurar uma
recordação de algum tempo antes, algo que me aproximara do Nick de forma
bastante íntima, em que ambos jogámos a este jogo estúpido para nos
conhecermos melhor.
A recordação daquela época, em que mal nos conhecíamos, a memória de estar
com ele, sem eu saber de nenhum dos seus problemas e ele de nenhum dos
meus, quase me fez levantar e sair dali a correr para me fechar no meu quarto,
de onde não devia ter saído, mas fiz o mais adequado à circunstância: fechei os
olhos durante um segundo, respirei fundo e concentrei-me noutra coisa.
Tinha à minha frente um rapaz atraente, que não me convinha de todo e que
só traria problemas à minha situação já de si complicada, mas o que ele não
sabia era que tanto me fazia o que ele dissesse ou fizesse: nada nem ninguém
conseguiria fazer-me voar como o Nicholas Leister conseguia, com um simples
olhar. Às vezes era só disto que sentia mais falta, do seu olhar, dos seus olhos
fixos sobre os meus daquela forma única e incomparável.
O Luca abanou a mão em frente ao meu rosto para me fazer reagir, e eu voltei
a fitá-lo, olhei para as suas tatuagens, para os olhos verdes carregados de
demasiada curiosidade.
— Podes fazer-me uma única pergunta — disse, para não parecer antipática.
O Luca sorriu e passou a mão pelo queixo, inclinando-se sobre a mesa.
— Se só me deixas fazer uma pergunta, tenho de ir direito ao assunto —
comentou.
Contorci-me na cadeira, um pouco incomodada. Acho que era a primeira vez
em muitos meses que estava a sós com um rapaz, e não me agradava a sensação
que me invadira o estômago. Era como se estivesse a fazer alguma coisa de
errado.
— Sais comigo amanhã à noite?
A pergunta dele era clara, mas a minha resposta não deixou margem para
dúvidas.
— Não.
Esta era eu a ser clara e concisa. A seguir levantei-me da mesa — já não me
apetecia comer mais nada —, mas ele agarrou-me pelo pulso e obrigou-me a
parar ao lado dele; virou-se para me olhar de frente.
— Porque não?
— Porque não posso.
O Luca olhou para mim com uma expressão estranha.
— Não podes porquê? Que raio de resposta é essa?
Mexi-me, um pouco inquieta, mas ele continuava a segurar-me pelo pulso.
— Não quero — afirmei, fixando o olhar no seu ombro direito.
Passaram-se alguns segundos até voltarmos a falar.
— Ah, já estou a perceber… continuas apaixonada por ele — disse, mais
como uma afirmação do que como uma pergunta. Libertei-me com um puxão
violento e dei um passo atrás.
— Isso é um assunto que não te diz respeito, estás a ouvir?
O Luca levantou as mãos e soltou uma risada.
— Noah, só ia propor que saíssemos para correr, está bem? Não é caso para
tanto… Deus do Céu, bem me disseram que tinhas uma personalidade forte,
mas… — O meu olhar pareceu avisá-lo de que não era boa ideia ir por ali. —
Quando o sol baixar e já não estiver tanto calor. Assim sempre nos escapávamos
da loucura que vai ser o dia de amanhã, com todos os convidados que ainda
estão para chegar. A sério, eu só estou a tentar arranjar desculpas para me
escapulir daquela casa, mais nada, por isso podes ficar descansada, podes
continuar apaixonada por quem quiseres, que eu não podia importar-me menos
com isso.
A resposta dele fez-me rever o convite. Estávamos a falar do Luca: era um
vândalo, não tinha o menor interesse na minha vida pessoal, limitava-se a abrir
a boca e a dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça.
Correr… podia ir correr com ele… Era uma atividade aborrecida e impessoal;
além de que… quem convidava alguém para ir correr com outra intenção que
não fosse ter companhia? Eu estaria toda transpirada e horrível, por isso nem
corria perigo… pois não?
— Só para correr? — perguntei e amaldiçoei-me interiormente ao ouvir esta
voz insegura que nem reconheci como minha.
O Luca franziu levemente o sobrolho, soltou-me o pulso e assentiu, forçando
um sorriso nos seus lábios carnudos.
— Só para correr.
Suspirei para mim mesma e voltei a sentar-me para esperar que ele acabasse de
comer.
Passámos a meia hora seguinte a falar do casamento e de coisas sem
importância, mas, apesar disso, não consegui evitar sentir que me expusera
perante ele, deixara que ele percebesse a minha insegurança, a mesma em que
trabalhara durante meses, e não achei graça nenhuma a isto.

Só faltava um dia e meio para o casamento, e o Luca andava colado a mim


como uma lapa. Tínhamos saído para correr como ele pedira, e, para minha
grande surpresa, apercebi-me de que não me incomodou: ele calçou as suas
sapatilhas, eu calcei as minhas, e corremos lado a lado até chegarmos ao porto,
depois regressámos a correr pela praia. Tenho de admitir que era a maneira mais
subtil de nos escaparmos de casa. Já tinham chegado tantos convidados que mal
restavam quartos vazios. Os pais da Jenna tinham vindo na noite anterior, e
sentia-me finalmente um pouco mais livre para a deixar sozinha. A mãe dela era
uma anfitriã nata, e todos pareciam felizes por receberem tantos amigos e
familiares para celebrarem o casamento da filha mais velha.
Naquele momento, estava quase no limite das minhas forças, mas o Luca
insistia para que fôssemos mais longe, e as minhas pernas começavam a oferecer
resistência e a ameaçar fazer-me voltar a caminhar.
— Vamos, anda! — gritou-me ele, muito despachado, a correr para trás para
poder olhar para mim e, ao mesmo tempo, fazer troça. Mostrei-lhe o dedo do
meio e tentei ignorá-lo, mas tive de parar para beber água e recuperar o fôlego.
Dali a um par de horas seria noite e teríamos de estar de banho tomado e
vestidos para jantar com o resto dos convidados. O pai da Jenna contratara um
serviço de catering para aqueles dias; era como uma celebração contínua, com
uma tenda montada no jardim e comida disponível a todas as horas. A casa dos
Tavish transformara-se num hotel de cinco estrelas, e todos pareciam
felicíssimos.
— Não sejas fraquinha!
Expirei lentamente e deitei água sobre a cabeça. O top cor-de-rosa que tinha
vestido ficou encharcado, mas pelo menos a água levou o suor que me deslizava
pelo peito e estômago. Limpei a cara com as mãos e decidi que ia voltar a
caminhar, já forçara de mais o corpo para uma tarde só.
— Vai tu a correr, idiota!
O Luca abanou a cabeça, parou e recuou até ao sítio onde eu tinha parado.
— Pensei que a tua resistência estava a melhorar, princesa. Desiludes-me.
— Anda e cala-te.
Começámos a caminhar juntos pelo passeio em direção à casa da Jenna. Íamos
a subir uma encosta imensa, e o sol punha-se rapidamente ao longe, tingindo o
céu de cores alucinantes.
— Falta pouco para o grande dia. Estás nervosa? — perguntou o Luca
enquanto fazia o mesmo que eu fizera instantes antes e deitava a água da garrafa
por cima da cabeça. Sacudiu-se, e os pingos misturados com suor salpicaram-me
o corpo e o rosto. Empurrei-o com o braço, e ele sorriu como um idiota.
— Não sou eu quem vai casar, Luca — respondi, com dissimulação.
O pouco que tínhamos conversado durante aqueles dois dias deixara bem
claro que certo tema era tabu, embora tendo em conta que, uma vez que já não
faltava muito tempo para o casamento, a sua curiosidade fosse compreensível.
— Mas és a madrinha… tens um papel importante — afirmou, olhando para
a frente.
Não respondi, mas o nervosismo que reprimira naqueles últimos dias
ressurgiu de forma vertiginosa e fez com que o meu estômago desse uma volta.
Não quis perguntar à Jenna quando ele ia chegar; mais do que isso, nem sequer
sabia se ele vinha antes do dia do casamento propriamente dito… Ou apenas no
instante em que os nossos melhores amigos deviam casar-se. Para mim até era
melhor assim; estremecia só de pensar em ter de voltar a vê-lo.
Naquele instante, um carro passou ao nosso lado, mas ia tão depressa que o
Luca me empurrou para a beira da estrada.
— Ó sacana! — gritou ele, mas o Lexus preto já era só uma mancha escura no
fundo da estrada.
Experimentei uma sensação estranha no estômago e fiquei cheia de pressa para
chegar a casa.
5
NICK

Eram seis da tarde, e eu ainda estava em Nova Iorque. A secretária que se


encarregava de organizar a minha agenda enganara-se e marcara uma reunião
com dois idiotas pomposos que só fizeram que perdesse o meu tempo.
Fui obrigado a estar duas horas a responder a perguntas ridículas e, quando
dei finalmente a reunião por encerrada, fechei-me no escritório. Olhei para o
relógio de pulso e percebi que ia chegar mais tarde do que me propusera
inicialmente. Começar a viagem para os Hamptons pouco depois da hora de
ponta era uma loucura, mas não podia adiar mais a minha chegada.
Quando me libertei finalmente do trabalho, o Steve estava à minha espera na
rua.
— Nicholas — cumprimentou ele, inclinando a cabeça e pegando na pequena
mala que estendi na sua direção.
— Como está o trânsito, Steve? — perguntei ao mesmo tempo que sentia o
telemóvel a vibrar.
Ignorei-o por uns instantes e entrei no carro, para o lugar do copiloto.
Precisava de fechar os olhos por uns instantes e sossegar o torvelinho de
pensamentos que me inundava a cabeça.
— Está como sempre — respondeu o Steve, sentando-se ao volante e saindo
para leste da cidade. Tínhamos pela frente mais de duas horas de viagem, isto se
não apanhássemos demasiado trânsito.
O Steve tornara-se no meu braço­-direito, encarregava-se de me levar aos sítios
a tempo e horas, tratava da minha segurança e ajudava-me em tudo aquilo de
que eu precisava. Já trabalhava para a nossa família desde os meus sete anos, por
isso era das poucas pessoas que me conhecia e sabia quando devia falar comigo e
quando permanecer em silêncio. Ele, melhor do que ninguém, sabia o que eu
tinha de enfrentar nos próximos dias, e por isso fiquei grato pela escolha de
música relaxante, nem muito melancólica nem muito acelerada, mas num ritmo
ideal para que pudesse começar a mentalizar-me de que não podia perder as
estribeiras durante as celebrações do casamento; não, ia ter de me controlar, e
não apenas o meu génio, mas também qualquer coisa que ameaçasse fazer ruir a
torre de marfim alta e distante onde agora eu vivia… isolava-me de tudo,
principalmente dela…
Uma hora e meia depois, parámos para descansar numa estação de serviço
perdida no meio da estrada. Depois de me ter permitido dormir um pouco,
comecei a sentir-me cada vez mais inquieto e insisti em mudar de lugar e
conduzir; o Steve não pareceu importar-se; além disso, de repente senti que
precisava de que me falasse sobre qualquer coisa.
Conduzindo um pouco acima do limite de velocidade, começámos a conversar
sobre o jogo dos Knicks contra os Lakers e outros assuntos parecidos, e, quase
sem percebermos, estávamos a entrar nos Hamptons.
Quando me vi naquela parte do estado de Nova Iorque que me trazia tantas
recordações, senti-me invadido por emoções distintas. Os meus pais tinham
comprado uma casa em frente à praia; bem, na verdade tinha sido um presente
de casamento. Era uma casa pequena, nada parecida com as mansões que por ali
havia, mas recordava-me das ocasiões em que passámos ali o verão juntos.
Tinham sido poucas, verdade seja dita, mas, se as minhas memórias não me
traíam, creio que aquela casa foi dos poucos sítios onde fomos realmente uma
família. O meu pai ensinara-me a fazer surfe nas praias de Mountack, e esforcei-
me muito para dar o meu melhor, para ele ficar orgulhoso de mim.
Foi com estes pensamentos na cabeça, e outros um pouco mais amargurados,
que me dirigi para a estrada que dava acesso à casa dos pais da Jenna. Quando a
minha mãe se foi embora, o meu pai trazia-me aos Hamptons durante uma
semana no verão, e ficávamos com os Tavish. Foi ali que demos o nosso primeiro
beijo… Deus do Céu, como eu estava nervoso, e a Jenna tranquila. Para ela era
uma simples experiência; eu, pelo contrário, senti vontade de fugir a correr.
Tinha acontecido debaixo de uma das enormes árvores do jardim das traseiras.
Estávamos a jogar à apanhada e, quando a agarrei, ela puxou-me pela camisa e
obrigou-me a esconder­-me com ela atrás do enorme tronco.
— Tens de mo dar agora, Nick, senão será demasiado tarde.
Naquele instante não fazia ideia daquilo a que ela se referia, mas anos depois
soube que fora debaixo daquela árvore, sob as mesmíssimas folhas, que o pai da
Jenna pedira a mãe em casamento. A Jenna tinha ficado a saber da história
naquele dia, e a menina sonhadora e romântica que ela insistia em esconder veio
à tona. Segundo a Jenna, o nosso primeiro beijo foi asqueroso… mas para mim
foi apenas o começo e desde então nunca mais parei.
Com estes pensamentos a flutuar na cabeça, pisei no acelerador. Estava tão
absorto que demorei uns segundos a mais a travar ao ver um casal que parecia
estar a passear no meio da estrada. Iam vestidos com roupa desportiva e, quando
o carro passou por eles a toda a velocidade, transformando­-os num borrão
indistinto no outro lado da minha janela, senti uma pressão incomodativa no
fundo do estômago. Olhei pelo espelho retrovisor, e essa pressão transformou-se
num calafrio.
6
NOAH

Saí do duche deixando uma imensa nuvem de vapor atrás de mim. Fiquei
debaixo de água mais tempo do que devia, mas era isso ou deixar que todos os
meus músculos permanecessem tão rígidos como cordas de um violino.
Aproximei-me da janela enrolada numa toalha e vi que o jardim das traseiras
estava a transbordar e gente. Todos vestiam de branco, uma ideia que ocorrera
ao pai da Jenna e que se espalhou pela casa de tal forma que parecia que o jantar
se transformara numa espécie de festa em Ibiza em honra dos noivos.
Quando chegámos a casa, transpirados e a cheirar mal, encontrara o Lion e a
Jenna envoltos num abraço apertado junto às escadas do alpendre. Pelos vistos,
ele acabara de chegar, e a Jenna parecia estar agora completa.
Apesar da minha rutura com o Nick, o Lion nunca fizera qualquer comentário
sobre o que acontecera; mais do que isso, recusara-se a tomar partido em tudo o
que tivesse que ver com a nossa separação. Houve uma altura, pouco depois de
nos separarmos, em que me deu para acossar o pobre Lion para que ele me desse
o número novo do Nick. Não consegui, e a Jenna juntou-se à sua
imparcialidade porque nenhum dos dois voltou a falar do Nick à minha frente,
a não ser para me dar apoio quando mais precisei.
Por isso, sim, os momentos que passava com o Lion estavam agora reduzidos
aos encontros inevitáveis quando ele estava com a Jenna.
Afastei-me da janela e comecei a arranjar-me à pressa. Não tinha nenhum
vestido branco, só um simples que costumava levar para a praia, por isso vesti
uma saia branca que me ficava um pouco acima dos joelhos e uma T-shirt justa
com alças da mesma cor. Sequei o cabelo com a toalha para não ir a pingar e
deixei-o húmido, consciente de que a brisa marítima o secaria em minutos.
Quando desci as escadas com a intenção de ir para o jardim das traseiras onde
estava toda a gente, o toque da campainha fez-me parar junto da balaustrada. A
Jenna estava na rua com os seus amigos e familiares, e a casa parecia ter ficado
deserta, à exceção dos empregados, que entravam e saíam da cozinha para levar
os pratos de marisco aos convidados.
Aproximei-me da porta e, repetindo o mesmo gesto que fazia desde que os
convidados começaram a chegar, abri-a e obriguei os meus lábios a instalarem-
se num sorriso acolhedor de boas-vindas.
Quando o Steve retribuiu o meu olhar, o sorriso ficou-me petrificado nos
lábios. Pareceu ficar tão surpreendido quanto eu, embora me tenha
cumprimentado com cordialidade no segundo seguinte. Ao vê-lo ali de pé, com
duas pequenas malas na mão, senti um nó no estômago.
Com o coração a bater a mil à hora, vi atrás do Steve um homem de fato que
saía de um Lexus preto; vinha de óculos de sol e com o telemóvel colado à orelha
esquerda. O Nick tirou os óculos enquanto dizia qualquer coisa brusca a quem
estava do outro lado da linha. Ao fazê-lo, os seus olhos encontraram os meus, e
receei desmaiar ali mesmo.
Estava tão diferente… Tinha cortado o cabelo e já não o usava despenteado e
comprido, como me lembrava, como costumava acordar de manhã; agora tinha
o cabelo curto e bem penteado, o que lhe dava um ar sério, quase intimidante.
O fato que usava só acentuava esta sua nova imagem de empresário. Trazia o
casaco sobre um braço e os primeiros botões da camisa desapertados, as mangas
arregaçadas por cima dos cotovelos, deixando antever os braços bronzeados e
muito mais musculados desde a última vez que o vira.
Fiz todas estas observações em poucos segundos, simples segundos, porque os
seus olhos se cravaram tão fortemente nos meus que tive de desviar o olhar para
o chão para conseguir recuperar do choque de voltar a vê-lo.
Quando o fitei novamente, ele já não estava a olhar para mim; despediu-se da
pessoa com quem falava e guardou o telemóvel no bolso enquanto se
aproximava da porta onde eu me encontrava.
Contive a respiração sem saber o que dizer e, quando ficou à minha frente,
durante aqueles efémeros dois segundos que demorou a contornar o meu corpo
sem sequer vacilar para entrar pela porta sem olhar para trás, senti que voltava a
morrer; senti que tinha passado meses, anos, a caminhar pelo deserto e que de
repente via aparecer à minha frente uma fonte de água… só para me aperceber,
um segundo depois, de que se tratava de uma miragem que desafiava a pouca
sensatez que me restava.

Felizmente, a Jenna apareceu para me resgatar. Só consegui voltar a entrar em


casa quando ouvi o Nicholas e o Steve desaparecerem no corredor do primeiro
andar. Apressei-me a ir para o jardim, para junto dos restantes convidados.
Queria perder-me no meio das pessoas, queria desaparecer, e o que mais
desejava era que a terra se abrisse e me engolisse.
Percebia agora o tremendo erro que cometera ao vir até ali; bem sei que a
Jenna era a minha melhor amiga, mas aquilo era demasiado difícil. Tinham-se
passado meses e meses, e bastara um simples olhar dele para o meu mundo
voltar a estar completamente de pernas para o ar.
Cerca de dez minutos depois, vi-o descer as escadas enquanto conversava
alegremente com os noivos. O Nick era o único que decidira prescindir do
disparate de se vestir todo de branco. Vinha com a mesma roupa com que
chegara, calças de fato pretas e camisa azul-celeste de mangas arregaçadas, sem
gravata. Ao constatar de longe como estava atraente, senti uma pontada de dor
no centro do meu corpo.
Ele não demorou a misturar-se entre as pessoas; muitas aproximaram-se para o
cumprimentarem, e ele conversava com elas de forma distante, mas sempre com
aquela sua elegância tão característica.
Vi o Luca a falar com o Nick e o Lion e percebi então que estava
completamente sozinha: este não era o meu lugar, estes não eram os meus
amigos… tinha a certeza de que a única pessoa que me queria ali era a Jenna.
Fiquei tão triste que tive de recorrer a todo o meu autocontrolo para não desatar
a chorar. Decidi então que, já que não podia fazer nada — ou desfazer nada —,
ia fazer das tripas coração e guardar bem fundo tudo o que ainda sentia por ele.
Talvez o tempo tivesse conseguido curar as suas feridas, talvez tivesse feito com
que deixasse de me odiar, talvez pudéssemos fazer o que tínhamos de fazer como
dois adultos, conviver com cordialidade e respeito, e talvez um dia até
pudéssemos tentar ser amigos.
Eu sei, parece ridículo, mas era isto ou atirar-me da varanda, e esta segunda
opção, por mais apetecível que me parecesse, não iria fazer bem a ninguém,
como é evidente. Por isso, forcei-me a conversar com as pessoas e a descontrair
um pouco. Se ficasse longe dele, não precisava de me sujeitar a nada mais difícil
ou de submeter o meu coração a uma tortura insuportável.
Os pais da Jenna apresentaram-me a um amigo da família, um sócio do Greg,
que, muito amavelmente, começou a falar comigo sobre os meus estudos e os
meus planos para o futuro. Via-se claramente que era uma pessoa importante,
por isso, quando me deu o seu cartão de visita, agradeci-lhe a gentileza. Estava
mais do que perdida em relação ao que faria no futuro, por isso, quantas mais
opções tivesse, melhor.
Do que não suspeitava era de que o Lincoln Baxwell fosse amigo de Nicholas
Leister. Estávamos a conversar amigavelmente quando o senhor Baxwell fez um
gesto com a mão para chamar alguém que estava atrás de mim. Quando me
voltei, o Nicholas apareceu.
Os dois cumprimentaram-se com um aperto de mão, e, quando o Baxwell
começou a fazer as apresentações, vi as veias do pescoço do Nick pulsarem:
poucas vezes o vira tão tenso, de tal maneira que tive de ser eu a falar primeiro.
— Nós já nos conhecemos, senhor Baxwell — disse-lhe, odiando-me ao ouvir
o tom trémulo da minha voz que, em meio segundo, denunciou o desconforto e
insegurança que sentia.
O Baxwell sorriu e olhou para mim e para o Nick alternadamente. O
Nicholas susteve o meu olhar durante um instante, e magoou-me a frieza com
que disse:
— A sério? Já nos conhecemos? — perguntou sem afastar os olhos do meu
rosto. Senti um calafrio percorrer-me a espinha ao voltar a ouvir aquela voz
grave que continuava a aparecer nos meus sonhos, a mesma que me dissera
tantas vezes «amo-te», que me sussurrara tantas coisas doces ao ouvido.
O seu olhar deixou-me de tal forma hipnotizada que mal consegui abrir a
boca.
— Fazes-me lembrar alguém que julguei conhecer, há muito tempo… —
comentou a seguir, de forma fria e impessoal.
Inclinou a cabeça em direção do amigo, virou-se e foi-se embora para
conversar com outras pessoas.
O ruído que se ouviu a seguir foi o meu coração a embater contra o chão.
*
Na manhã seguinte acordei ao amanhecer. Mal consegui pregar olho, foi
impossível dormir… O dia em que dei cabo de tudo, o maldito dia em que fiz
uma coisa que ainda hoje me custa a entender como fui capaz de fazer, voltou a
inundar-me a cabeça.
«Já não há como voltar atrás.»
«Nem sequer consigo olhar para a tua cara.»
«Está tudo acabado entre nós.»
Tinha gravada na memória a expressão do rosto do Nick quando percebera o
que eu fizera com o Michael; nem sequer conseguia pensar no nome dele sem
me sentir culpada.
Saí da cama e vesti-me rapidamente. Queria ver se conseguia sair de casa antes
que alguém se levantasse e me visse sair; nem sequer ia avisar o Luca de que ia
correr; precisava de estar sozinha para pensar e aclarar as ideias, mas precisava
principalmente de estar sozinha para me mentalizar de que ia ter de ver o
Nicholas ao longo dos próximos dias; não apenas isto, mas também que ia ter
de caminhar ao lado dele até chegarmos ao altar.
Correr fez-me muitíssimo bem, e, além disso, por sorte, o resto da manhã
passou a voar porque tivemos mil coisas para fazer. Os convidados andavam à
vontade, e no exterior montava-se tudo para o jantar de ensaio daquela noite.
O maldito jantar de ensaio.
Depois de me ter escapado ao almoço e de não ter voltado a ver o Nicholas ou
o Steve desde a noite anterior, estava naquele momento com os pais da Jenna, à
espera de que ela e o Lion descessem para irmos à vinha, onde se celebraria o
casamento. Nós, os participantes da cerimónia, tínhamos de ensaiar a entrada e,
se não saíssemos agora, a noite acabaria por nos apanhar.
No instante em que a Jenna e o Lion desciam as escadas, a porta da entrada
abriu-se, e o Nicholas apareceu, descontraidamente vestido com umas calças de
ganga e uma camisa branca larga. Não sabia o que ele tinha andado a fazer
durante toda a manhã e parte da tarde, mas era evidente que o seu objetivo
principal fora evitar-me.
— Nick, até que enfim. Já estava a começar a questionar-me onde te tinhas
metido — disse-lhe a mãe da Jenna, aproximando-se dele para lhe dar um beijo
no rosto. O Nick mal esboçou um sorriso para corresponder ao gesto dela e,
como estava tenso, começou a rodar a chave do carro entre os dedos.
A Jenna trocou um olhar estranho com ele, e eu voltei a sentir náuseas. Bolas,
isto estava a ser um verdadeiro inferno.
Ao sairmos para a rua, apercebemo-nos de que éramos demasiado para irmos
num carro só. Estávamos com os pais da Jenna, a mãe do Lion — uma senhora
com um sorriso franco que eu adorara conhecer e que me dera a sua receita
especial de bolo de maçã —, o Lion, a Jenna e o primo dela, que não devia ter
mais de cinco anos e que seria o menino das alianças. E o Nick, claro.
Éramos oito, ao todo, e só rezei para não me meterem no carro do Nick, mas
foi em vão: os pais da Jenna e a mãe do Lion foram direitos ao Mercedes que
estava junto aos demais carros estacionados ali perto. Olhei para a Jenna, que ia
de mão dada com o primo e se aproximou de mim com cara de caso.
— É que nem te passe pela cabeça, Jenna — disse, começando a ficar irritada.
O Nicholas deixara bem claro que não queria estar perto de mim, por isso não
planeava entrar no carro com ele, nem pensar.
A minha amiga fitou-me com uma expressão de culpa no rosto.
— O Nick é o único que tem cadeirinha… sabes… por causa da Maddie. E
eu tenho de ir com os meus pais…
O Nicholas interrompeu-a ao aproximar-se nesse instante. Ignorando a minha
presença, levantou o pequeno Jeremy e fê-lo voar sobre a cabeça para depois o
segurar com força.
— Estás pronto para ser o meu copiloto, pequenito?
O Jeremy riu-se, divertido. O Nick pô-lo na cadeirinha e encaminhou-se para
o seu lugar. A Jenna retribuiu-me o olhar, mordendo o lábio.
Abanei a cabeça e passei à frente dela até chegar à porta do condutor do Lexus.
Não fazia ideia do que acontecera ao 4 x 4 dele, mas também não ia perguntar.
Instalei-me no lugar do passageiro enquanto o Nick prendia o Jeremy no banco
de trás e lhe punha um jogo no telemóvel. Tentei negar como me sentia nervosa
por estar finalmente a sós com ele. O comentário que ele tinha feito durante a
festa atingira-me como uma pedrada, e tinha curiosidade e medo em ver como
iria correr a meia hora seguinte.
Quando se sentou no seu lugar, começou a manipular alguns comandos no
carro e a ajustar o espelho retrovisor. A seguir, fizemo-nos à estrada.
O aroma da sua loção para a barba inundou imediatamente o carro, e a atração
que sempre sentira na presença dele ressurgiu. Deus do Céu, tinha este homem
sentado ao meu lado, o homem de quem tivera mais saudades do que qualquer
outra pessoa no mundo… Morria por poder tocar-lhe, para lhe dar um beijo,
precisava mais do contacto dele do que de ar para respirar. Senti que todo o meu
corpo aquecia, o simples movimento da mão dele na alavanca das mudanças era
suficiente para me deixar nervosa… Os braços dele, uma mão distraidamente
apoiada no volante, a outra nas mudanças… Bolas, porque é que era tão
terrivelmente sedutor ver um homem a conduzir?
Sem conseguir aguentar mais, baixei o vidro para deixar entrar um pouco de
ar e o seu aroma sair, mas, assim que o fiz, ele levantou o vidro com o comando
do seu lado. Voltei-me para olhar para ele.
— Estou com calor — disse, dirigindo-lhe a palavra diretamente, pela
primeira vez em quase um ano. Carreguei novamente no botão para baixar o
vidro, mas percebi de imediato que ele o bloqueara.
Ligou o ar condicionado sem dizer uma única palavra, e o potente ar frio
atingiu-me em cheio no rosto. Tudo bem, isto iria baixar a minha temperatura
corporal, mas o cheiro dele continuava impregnado em todas as partes do carro
e deixava-me a cabeça zonza. Retorci-me, inquieta, no assento de couro e vi
pelo canto do olho que o olhar dele se desviava da estrada para repousar alguns
segundos sobre as minhas pernas desnudas.
Não dera muitas voltas à cabeça antes de me vestir, mas os calções que tinha
deixavam as pernas a descoberto, e não me passou despercebida a forma como
ele apertou o volante com as mãos depois de voltar a fixar os olhos em frente.
O som do jogo do Jeremy acompanhou-nos durante toda a viagem, e tive a
noção de que aquela seria uma oportunidade única para falar com ele sem ter
medo de que me deixasse sozinha na beira da estrada. Com o menino no banco
de trás, teria de controlar o mau feitio… e as palavras.
— Nicholas, queria dizer-te…
— Não estou interessado — interrompeu-me, enquanto virava num
cruzamento que nos levou até a um lago imenso.
Respirei fundo, com a clara intenção de falar com ele.
— Não podes continuar a ignorar-me.
— Não o faço.
Olhei para ele sem poder rebater o tom duro com que se dirigia a mim. Havia
quase um ano que não falávamos, precisava que me dissesse alguma coisa,
precisava de dizer algumas coisas também.
— Não podes continuar a odiar-me assim.
Uma gargalhada amarga saiu dos seus lábios.
— Se te odiasse, isso significava que ainda sentia alguma coisa por ti, Noah,
por isso não te preocupes, o que sinto não é ódio, mas indiferença.
Olhei para o perfil dele, tentando ver algum indício de que estava a mentir…
mas não vi nada.
— Dizes isso porque me queres magoar.
— Se quisesse magoar-te, tinha ido para a cama com outra enquanto estava
contigo… Oh, espera, quem fez isso foste tu.
Foi um golpe baixo, mas também não podia negar que o merecia.
— Se quisermos sobreviver aos próximo dias, temos de estabelecer uma
trégua qualquer entre nós… Não vou conseguir continuar a fazer isto se nem
sequer podemos estar juntos na mesma sala.
Não soube decifrar o que lhe ia na cabeça, nunca conseguira fazê-lo, era algo
tão complicado que só adivinhara os seus pensamentos por breves instantes, em
momentos pontuais, quando partilhávamos um tipo de intimidade que só tivera
realmente com ele.
— E que propões, Noah? — perguntou, voltando-se para mim, deixando-me
ver a raiva no seu olhar. — Fazemos como se nunca tivesse acontecido nada?
Seguro-te na mão e finjo que te amo?
Não tive resposta. «Finjo que te amo…» As suas palavras fizeram sangrar
ainda mais o meu pobre coração dilacerado.
Atrás de nós fez-se um silêncio repentino, e, quando me voltei para olhar para
o Jeremy, ele estava a fitar-nos com os olhos muito arregalados.
— Falta muito para chegarmos? — perguntou ele, fazendo beicinho.
«Bolas! Não, por favor, não te ponhas a chorar agora.»
— Já falta pouco, Jeremy, queres que ligue a música? — ofereceu o Nicholas
enquanto estendia a mão, e uma música rap começava a soar a todo o volume.
O menino sorriu, divertido, e eu voltei a olhar em frente: era evidente quem
ele queria calar com a música.
7
NICK

A Noah sempre fora uma droga para mim, uma maldita droga que me deixava
pedrado com a sua mera presença. Tudo nela me chamava para si, tudo me
transformava num imbecil idiota, numa pessoa débil.
Custou-me tanto separar-me dela, magoara-me tanto saber que não voltaria a
tocar-lhe, que não voltaria a beijá-la e a cuidar dela, que ela não ia ser a mulher
da minha vida… Passei da dor ao ódio de uma forma que até a mim me
assustou; porque me abri completamente a ela, entreguei-lhe a minha alma e o
coração, fiz exatamente aquilo que mais temia e enganei-me; foram tantas as
vezes em que pensei em todas as coisas que podiam correr mal, e nunca me
passou pela cabeça que a Noah pudesse deixar que outro tipo lhe tocasse. Nem
era capaz de pensar no sacana do psicólogo. Bastava-me pensar no nome dele, e
mergulhava de cabeça num turbilhão de raiva e loucura incontroláveis.
Aquele tipo tinha tocado na minha namorada, despiu-a… Acho que foram
estas imagens, esta realidade impossível de apagar, que me destroçaram por
completo. Nunca na minha vida me senti tão mal, tão afundado em
infelicidade… A muralha que ergui à minha volta foi de tal forma que apareceu
outra pessoa nova no lugar que antes eu ­ocupava. Já não tinha capacidade para
nada que não fossem os sentimentos básicos de um homem sem alma. A pouca
que me restava para amar era inteiramente dirigida à minha irmã mais nova, e,
depois disso, acabava-se tudo.
Tivera tanto trabalho para me assegurar minuciosamente de que não precisava
de voltar a ver a Noah que esta situação agora me incomodava muitíssimo.
Estava tão furioso com ela… ainda tão zangado… porque bastou-me vê-la para
voltar a sentir alguma coisa, para perceber que o meu coração acelerava e a
respiração se tornava mais difícil. Odiava essa sensação, odiava todas as
sensações, já não sentia nada, habituara-me a não sentir, e agora o facto de ela
chegar e voltar a torturar-me assim só me dava vontade de a arrastar comigo
para o meu inferno pessoal.
Ali estava ela, tão terrivelmente irresistível como sempre, tão terrivelmente
tentadora… e ainda por cima parecia encolher-se na minha presença, olhava
para mim sem aquele brilho ou a superioridade que sempre acompanhara cada
uma das suas palavras. A Noah que tinha agora à minha frente também
mudara, já não era a mesma, e odiava sentir pena, odiava ver o que nos tinha
acontecido aos dois, odiava culpá-la por isso.
Quando parei o carro, ela saiu de imediato. Abriu o cinto da cadeira do
Jeremy, tirou-o do assento e dirigiu-se à vinha sem sequer esperar por mim.
Trazia vestidos uns calções e uma blusa amarela simples e só com isto já
conseguira transtornar e penetrar em todas as minhas defesas. No carro, o cheiro
do seu perfume, daquele aroma tão característico nela, o mesmo com que às
vezes ainda sonhava e que fazia com que acordasse com uma ereção descomunal
e com vontade de matar alguém… aquele maldito aroma estava agora
entranhado em todos os cantos do meu carro e, o pior de tudo, o mais irritante,
foi que uma parte de mim se deliciara com este aroma como um alcoólico que
bebe um gole de brande depois de muitos anos de abstinência; nem sequer a
deixei abrir a janela, não consegui evitar que a minha cabeça se inundasse com
as imagens das coisas que lhe faria para saciar esta necessidade de a ter, a
necessidade que sentia e sempre sentiria.
Levantei os olhos para o lugar onde os meus melhores amigos iam casar-se e
mal consegui acreditar que fosse acontecer. Sabia que o Lion pedira a Jenna em
casamento um mês depois de me separar da Noah. O meu amigo guardara
aquele segredo de forma quase profissional, e uma parte de mim ficou grata por
isso. Estava feliz por eles, como é óbvio, mas por outro lado, a notícia tinha sido
como esfregar álcool sobre as minhas feridas.
A vinha de Corey Creek era um lugar maravilhoso para um casamento, tinha
vindo muitas vezes passear por ali e comprar merlot do bom. A Jenna e o pai
trouxeram-me consigo, e lembrava-me de andar a cavalo entre os campos, de
ver os casamentos a decorrer ao longe. Um dos donos era amigo do meu pai e do
Greg, por isso tínhamos uma certa liberdade na propriedade.
A Jenna não demorou a dizer-nos para onde devíamos ir; primeiro, passámos
pela bonita receção do lugar, com vigas altas de madeira e ­tapetes de peles de
animais que certamente tinham sido caçados pelo próprio dono. Havia
candeeiros a óleo e candelabros de cristal suspensos sobre as nossas cabeças de
modo um tanto intimidante. A Jenna estava agitada, a falar com uma mulher
oriental que parecia um pouco stressada; uns minutos depois, apresentaram-ma
como sendo Amy, a organizadora do casamento.
Quando saímos para a parte das traseiras, onde ficavam as vinhas, tive a
certeza de que o casamento seria magnífico, como os que tinha contemplado ao
longe ou talvez até melhor.
O altar feito de flores tinha sido colocado de frente para as vinhas imensas que
se estendiam até onde a vista alcançava sob o dia quente de julho. Os bancos e
as flores ainda não estavam no sítio, mas dava para ter uma ideia de como iam
ficar quando tudo estivesse terminado.
— Os padrinhos? — perguntou a Amy, olhando para nós.
A Noah deu um passo em frente e olhou para mim de soslaio antes de prestar
atenção ao que dizia a organizadora. Um minuto depois, pegou-me no braço e
indicou-me onde devíamos posicionar-nos. A mulher fez uma fila de casais. O
primeiro a entrar seria o Lion e a mãe; a seguir entraria a mãe da Jenna de mão
dada com o Jeremy, que parecia querer fazer tudo menos prestar atenção à Amy;
depois entravamos nós, e finalmente a Jenna, com o pai.
Coloquei-me ao lado da Noah e esforcei-me para disfarçar o meu mau humor.
Quando a Amy se pôs à nossa frente, claramente consciente de que éramos os
únicos que mal se tocavam, franziu o sobrolho e olhou para nós com má cara.
— Que diabo estão a fazer?
«Não faço a menor ideia, linda, a mais pálida ideia.»
Senti os olhos da Noah sobre o meu rosto e tive de contar até dez para não
desaparecer dali e mandar tudo para o inferno.
8
NOAH

O Nicholas tratava-me como se eu tivesse lepra. Quando a Amy ficou a olhar


para nós como se fôssemos idiotas, juro que quase morri de vergonha.
— Noah, entrelaça o teu braço no dele, vá — disse ela com modos enérgicos.
Voltei o rosto para ele, com medo da sua reação; limitou-se a olhar em frente e
a abrir um pouco o braço indicando-me que podia fazer o que me mandavam.
Senti o braço dele duro por baixo do meu, e uma corrente elétrica pareceu
trespassar-nos a ambos. Levantei os olhos e vi que ele fechava os seus por um
brevíssimo instante. Depois disto não tivemos oportunidade de parar muito
para analisar os nossos sentimentos porque a Amy nos fez andar para a frente
para trás umas dez vezes, exigiu que caminhássemos em formação, começando
todos com o pé direito, nem demasiado depressa, nem demasiado devagar…
Quem teve mais dificuldade em atinar com a rotina foi o pequeno Jeremy, que,
quando repetimos o desfile pela terceira vez, decidiu que afinal aquilo o
aborrecia e disse que queria ir brincar.
Isto estava a ser realmente difícil, o Nicholas nem sequer olhava para mim;
mais do que isso, fazia como se eu nem sequer existisse, e isto deixava-me de tal
forma tensa que tinha o braço dormente. O resto das pessoas, pelo contrário,
riam-se, divertiam-se e faziam caretas quando a Amy não estava a olhar.
Até que a noite caiu e já não podíamos ensaiar mais. A Amy não estava muito
convencida, mas pelo menos para a Jenna e o Lion ficara bastante claro qual era
o plano e o que deviam fazer em cada momento da cerimónia.
O Jeremy já caíra há algum tempo nos braços de Morfeu, por isso ia a dormir
placidamente na cadeirinha no banco de trás; era como se eu e o Nicholas
estivéssemos sozinhos.
Inicialmente, o silêncio imperou entre nós, já que ele nem se deu ao trabalho
de ligar o rádio. A estrada era reta, e o céu estava tão negro como os meus
pensamentos. Ao estar ali tão perto dele, num espaço tão reduzido e com tantos
sentimentos à flor da pele, sentia que me afogava, não suportava a sua
indiferença, precisava de que ele soubesse o que estava a sentir, tanto me fazia se
ele conseguia olhar para mim ou não, tanto me fazia que o seu amor por mim se
tivesse transformado numa coisa tão feia; precisava de fazer alguma coisa.
— Nick… — disse eu, mantendo o olhar em frente.
Sabia que ele me ouvira, apesar de a minha voz não ter sido mais do que um
leve sussurro.
— Continuo apaixonada por ti.
— Cala-te, Noah — ordenou bruscamente, deixando sair o ar entre dentes.
Voltei-me para ele com o coração comprimido. Ele continuou a olhar em
frente, com o maxilar tão tenso que me fez temer o que pudesse vir a dizer a
seguir, mas não me deixei desencorajar, precisava de dizer aquilo e pronto.
— Continuo apaixonada por ti, Nicholas…
— Já disse para te calares — sibilou ele, voltando-se para mim e fulminando-
me com a ira completa do seu olhar. — Achas que quero saber o que sentes ou
deixas de sentir por mim? — Continuou, completamente fora de si. — As tuas
palavras não valem nada, por isso, poupa-as. Amanhã vamos cumprir com a
nossa função na porcaria da cerimónia e a seguir não precisamos de voltar a ver-
nos.
Tinha sido uma idiota. O que achava eu que podia acontecer? Que ia dizer-me
que sentia o mesmo por mim?
Percebi que uma lágrima me caiu pelo rosto e limpei-a rapidamente, mas
outra e ainda outra sucederam-se quase imediatamente à primeira.
Ele já não me amava, o Nicholas já não me amava; mais do que isso, queria
que desaparecesse completamente da sua vida, as coisas que tínhamos
partilhado já não importavam, não importavam as vezes em que jurara amar-me
acima de tudo o resto; ele acabara de deixar bem claro que a nossa relação
terminara para sempre.
Bem sei, estivemos separados durante dez meses, mas não nos vimos durante
este tempo, não falámos e uma parte de mim recusava-se a pensar que a nossa
história tinha acabado, uma parte de mim queria tê-lo visto para saber se ele
continuava apaixonado por mim como eu estava por ele.
E como estava enganada…
Durante o jantar do ensaio não falei com ninguém. Sentei-me ao lado do
Luca, e ele encarregou-se de falar pelos dois. Assim que tive oportunidade, fugi
para o meu quarto e pude finalmente chorar sobre as almofadas; chorei até
adormecer, com a cabeça a latejar porque não consegui evitar recordar cada
momento, cada carícia, cada palavra dita e também todos os erros cometidos.
O afastamento dele doía-me tanto que sentia que o meu coração sangrava de
facto, como se cada lágrima que caía sobre a almofada fosse uma gota de sangue
que vinha diretamente do coração.
Na manhã seguinte estava exausta, e o pior de tudo era que naquele dia se
celebrava o casamento, naquele dia o meu sorriso devia ser esplendoroso, devia
pôr a minha melhor cara e ser a melhor madrinha da história; além disso, tinha
de aguentar até à noite, algo que, perante o cansaço que sentia, se me afigurava
uma tarefa quase impossível de concretizar.
Lavei a cara com água fria e olhei-me ao espelho. Ao fazê-lo apercebi-me de
quanto mudara durante estes meses todos. O meu olhar, sim, o meu olhar
estava diferente, era um olhar sem vida, era triste. Ansiava com todas as minhas
forças acreditar que podia sair disto, a minha psicóloga falara comigo durante
horas, dissera-me inúmeras vezes que o que acontecera com o Nicholas não
tinha de marcar o meu futuro, que havia milhares de homens no mundo, que eu
era jovem e bonita e que qualquer um deles se apaixonaria por mim, mas só de
pensar em aproximar-me de alguém, só de supor que o faria, começava a tremer
dos pés à cabeça. Bastava recordar-me de como tinham acabado as coisas da
última vez em que estivera com um homem, bastava ver como estava agora para
saber quão perigoso seria relacionar-me com outro homem que não fosse o
Nicholas. Cravei o olhar no espelho e obriguei-me a recompor-me. Não podia
continuar assim, só faltava um dia, um dia, e depois não precisava de voltar a
vê-lo… Ao sentir aquela pontada a trespassar-me novamente o peito, fitei a
minha imagem ao espelho e forcei-me a acalmar.
«Acabou-se, Noah, esquece-te dele, esquece-o e fá-lo agora… fá-lo agora ou
nunca vais conseguir seguir em frente.»
Esta débil voz interior perseguiu-me durante toda a manhã. Por sorte, o
Nicholas estava com o Lion na vinha, já que iam vestir-se ali. Eu encontrava­-me
com a Jenna em casa, seríamos as últimas a sair, nem sequer os pais dela iam no
carro connosco. Quando a vi já pronta, tão deslumbrante que fiquei sem fôlego,
não pude evitar que uma lágrima me caísse pelo rosto e agradeci aos
maquilhadores que nos prepararam naquela manhã por terem usado produtos à
prova de água e a qualquer agente conhecido capaz de arruinar a pintura.
O vestido vermelho que tinha sido feito à minha medida assentava­-me como
uma luva. Ia usar esta cor porque todo o recinto estaria decorado com rosas
vermelhas, iguais às do ramo da Jenna. O vestido era lindo, de seda e renda,
comprido até ao chão e com uma racha de lado que me deixava a perna a
descoberto. À frente tinha um decote em V e, a partir do decote, a parte
superior do peito e os braços ficava coberta com uma renda fina semelhante à do
vestido branco da Jenna. O vestido dela era maravilhoso, e nem é preciso dizer
que lhe ficava incrivelmente bem sobre a pele escura e o corpo perfeito. O Lion
ia passar-se, tinha a certeza, e disse-o à Jenna.
Ela olhou para mim emocionada; eu tentara, com todas as minhas forças, que
ela não se apercebesse de como estava a sofrer naqueles últimos dias. Dedicara
todos os meus esforços a cuidar dela, a apoiá-la e a fazê-la sentir-se tranquila.
Tínhamos rido juntas, bebido champanhe, e eu ouvira atentamente cada uma
das suas preocupações enquanto procurava ajudá-la da melhor maneira possível.
Então, a Amy entrou no quarto da Jenna e disse-nos que estava na hora de
sairmos.
Até eu estava terrivelmente nervosa, mas tentei que não se notasse. Iam estar
centenas de pessoas no casamento, algumas delas muito importantes. Ao pensar
nisso, percebi que, se aquele fosse o meu casamento, não iria suportar ter tanta
gente a observar-me enquanto caminhava até ao altar; nunca me dera para
pensar em como gostava que fosse o dia do meu casamento, mas era evidente
que não seria uma loucura como esta.
A limusina branca estava à espera na porta, e ajudei a Jenna a descer as escadas
sem tropeçar. Quando já estávamos bem instaladas na parte de trás do carro,
rodeadas de tule e renda, não consegui evitar soltar uma gargalhada.
— Quem diria que iríamos estar aqui, depois de ver a bofetada que deste
naquela noite ao Lion — comentei, sem conseguir conter-me.
A Jenna riu-se também e estava tão magnífica que me detive um instante a
tomar nota mental deste momento. Jamais iria esquecer aquela imagem, nós as
duas a rirmos à gargalhada, numa limusina, um pouco animadas pelo
champanhe e completamente histéricas com os nervos. Neste momento, a
minha amiga era a personificação de alguém loucamente apaixonada e feliz.
Quando chegámos à vinha, a organizadora indicou-nos para onde teríamos de
ir e de onde partiríamos em direção ao local onde se instalara o altar e os
convidados nos esperavam. Ali onde nos encontrávamos, conseguíamos ouvir o
burburinho das pessoas, que certamente estavam nervosas como nós; quando
vimos o pai da Jenna a aproximar-se, até eu consegui respirar com um pouco
mais de tranquilidade. A presença de um adulto responsável, por mais que nós,
em adolescentes, insistíssemos em negá-lo a nós mesmas, era sempre
tranquilizadora num momento como aquele.
O sorriso do senhor Tavish iluminou a sala e olhou para a filha de uma forma
tão especial que senti uma dor imensa no coração. A Jenna deu-lhe um beijo no
rosto, e, depois de se agarrar ao braço do pai, seguiram a organizadora em
direção às portas, por onde sairiam majestosamente. Claro que antes deles devia
sair eu com o Nicholas.
Comecei a procurá-lo com o olhar, mas ele não estava naquela sala; fui
espreitar à porta e quase choquei contra o peito dele. Levantei os olhos e deparei
com os seus. Apesar da dor que sentia de cada vez que o via, naquela ocasião ela
surgiu acompanhada de rancor, rancor e raiva por tudo o que me dissera na
noite anterior. Agarrei-me a este rancor para conseguir ultrapassar o dia, ou
pelo menos foi o que me propus fazer.
Ele observou-me fixamente durante alguns instantes, percorrendo o meu
corpo. Mostrou-se muito surpreendido quando chegou aos meus olhos e viu que
estava de sobrolho franzido.
— Saímos daqui a dois minutos — disse-lhe e voltei-me para me encaminhar
para a porta. Senti-o a vir atrás de mim; mais do que isso, senti os seus olhos
cravados nas minhas costas e nuca. Tinha o cabelo apanhado num rabo de cavalo
alto do qual se escapavam alguns caracóis que me chegavam quase a meio das
costas. Conhecendo os gostos dele, e mesmo sabendo como me odiava com
todas as suas forças, sabia que a renda do vestido devia estar a deixá-lo louco.
Apesar de tudo o que acontecera entre nós, nunca íamos deixar de sentir
desejo um pelo outro; bastou-me olhar de relance para o fato azul dele, a
gravata cinzenta, a camisa branca, o corpo incrível e a sua presença para fazer
ainda mais estragos nos meus nervos… Deus do Céu! Porque tinha este homem
de ser tão terrivelmente bonito?
Não podia ter perdido sete quilos, como aconteceu comigo? Não podia ter
perdido aquele seu maldito ar de superioridade, não podia ter as pálpebras
inchadas de tanto chorar, como eu, em vez daqueles incríveis olhos azuis que
pareciam existir unicamente para fazer estremecer qualquer rapariga idiota que
se atravessasse à sua frente?
Quando cheguei à sala, vi a organizadora a ajudar a Jenna com o vestido e a
sua assistente a dar ordens aos que deviam sair dentro de poucos minutos. A
música começou a tocar do outro lado da porta, e foi então que senti uma mão
pousar no fundo das minhas costas, demasiado baixa, diria eu.
Antes de poder dizer o que quer que fosse, Amy fez-nos sinal para nos
colocarmos na fila, e o Nicholas empurrou-me suavemente até ficarmos em
frente à porta ainda fechada.
Respirei fundo para tentar acalmar-me.
— Agarra-te ao meu braço, Noah — pediu o Nicholas, e juro por Deus que
bastou ouvir a sua voz a sussurrar o meu nome para sentir calafrios terríveis.
Tinha passado tanto tempo sem o ouvir murmurar o meu nome assim…
Fiz o que tinha de fazer e entrelacei o braço no dele, o que me permitiu sentir
os seus músculos retesar-se. Esperámos juntos que a marcha nupcial começasse a
tocar. Nessa altura, caminhámos em direção ao altar para aquela que seria a
nossa última atuação enquanto casal.

A cerimónia foi linda, e o Lion quase desatou a chorar quando viu a Jenna,
mas eu não consegui mesmo evitar fazê-lo. Raios me partissem, porque tinha de
ser tão sentimental?
Os meus amigos leram os seus votos, disseram «Sim, quero» e com umas
simples palavras ficaram unidos para o resto da vida. Quando se inclinaram um
para o outro para darem um beijo incrível que fez com que mais do que um
convidado corasse, não consegui evitar levantar os olhos para o Nicholas e, para
minha surpresa, vi que ele estava a olhar para mim também. Sustivemos o olhar
um do outro e deixámo-nos submergir naqueles instantes mágicos em que tudo
à nossa volta parece desaparecer e só importa a pessoa que está à nossa frente.
Seria esta noite a última vez que nos víamos? Acabei por ser eu a desviar o
olhar, porque a intensidade dos seus olhos sobre os meus fez as minhas pernas
começarem a tremer.
Tivemos de sair atrás dos noivos, e, desta vez, quando entrelacei o meu braço
no dele, temi também que aquela fosse a última vez em que podia tocar-lhe, um
contacto simples em que nem sequer a nossa pele se aflorava de verdade, mas
este corredor seria o último que percorria na companhia dele. Isto magoava-me
tanto que assim que atravessámos as portas me libertei dele quase de imediato e
fui para a direção oposta. Precisava de me sentar, e depressa.
9
NICK

Vi-a ir embora com um nó no estômago. Não consegui afastar os olhos dela


durante toda a cerimónia, nem sequer me apercebi de que os noivos já tinham
dito o «Sim, quero» até que os aplausos me despertaram do meu sonho.
Bolas… porque tinha de ser tão incrivelmente bonita, porque tinha o poder
de me deixar louco desta forma tão insuportável. As minhas mãos ardiam com
vontade de lhe tocar e, ao perceber que não podia fazê-lo, que não o faria, fiquei
com um humor de cão. Quando a vi a parar em frente à sala onde todos nos
preparávamos para sair, com aquele vestido que lhe assentava de forma
espetacular no corpo, aquela renda maldita a evidenciar cada uma das suas
curvas, a minha mão quase agiu por vontade própria, e, quando lhe toquei,
quando a pousei no fundo das suas costas, voltei a sentir-me vivo depois de dez
meses malditos.
Não via a hora de acabar com a farsa que desempenhávamos ali, precisava de
me ir embora, de regressar à minha vida, em que tinha tudo sob controlo. A
Noah sempre desestabilizara o meu mundo, deixara-o de pernas para o ar e
fizera de mim um homem completamente à sua mercê. E isso não voltaria a
acontecer. Quando se afastou e mim assim que entrámos na sala, fiquei
secretamente grato. Não suportava tê-la por perto.
A festa não demorou a começar. Tinham montado uma tenda branca enorme
do outro lado da vinha, com mesas de toalhas brancas e milhares de rosas
vermelhas por todo o lado. Era evidente qual a flor favorita da Jenna, e, ao ver a
minha amiga e o Lion a falarem com os convidados, não consegui evitar uma
pontada de inveja. Muitos casais juntaram-se a eles no salão principal, enquanto
os empregados circulavam por entre os convidados com bandejas de canapés e
flutes geladas de champanhe rosado.
Dali a pouco passaríamos para a sala de jantar, e eu, como um idiota, não era
capaz de deixar de procurar a Noah. Não estava em lado nenhum.
«Bolas, ela não te diz respeito, esquece-a.»
Obedeci à minha voz interior e cruzei-me com uma rapariga morena com
grandes olhos verdes que não demorou muito a recorrer a todas as suas armas
para tentar seduzir-me. Mal lhe prestei atenção, e, quando afirmou que já nos
conhecíamos, tive de focar os olhos nela para não ser mal-educado.
— Lamento… mas não me lembro — disse, sem sequer fazer um esforço para
a reconhecer.
A rapariga aproximou-se mais de mim, invadindo o meu espaço pessoal e
impregnando-me com o aroma do seu perfume caro e demasiado forte para o
meu gosto.
— Vá lá, não te faças de tonto… foi uma das melhores noites da minha vida
— disse, e amaldiçoei-me mentalmente porque me lembrei então de que tinha
ido para a cama com ela havia coisa de um mês.
Não fazia sequer ideia do nome dela e estava prestes a despedir-me sem me
importar em ser grosseiro quando finalmente vi a Noah, do outro lado da sala,
de braço dado com o Luca e a sorrir como só ela sabia fazê-lo.
Os ciúmes, tão adormecidos durante tanto tempo, acordaram com a força de
um leão faminto, e tive de expirar devagar para não perder o controlo ali
mesmo.
Não era a primeira vez que isto me acontecia desde que chegara aos
Hamptons; pior ainda, quando me apercebi de que a Noah era a rapariga que vi
a fazer exercício ao lado daquele tipo na estrada, fui invadido por um tal acesso
de loucura que passei duas horas a esmurrar um saco de boxe do spa do Hilton,
antes de me sentir preparado para ir para casa dos Tavish.
O Steve deu-me o raspanete do século, deixando bem claro que não podia
armar a menor confusão ali, não podia lutar com ninguém e devia ser um santo
absoluto durante todo o tempo. Desde que assumira o controlo das empresas,
não podia permitir escândalos e menos ainda por ciúmes. Por este motivo,
mantivera-me afastado de toda a gente, só trabalhava, lidava com economistas,
banqueiros, investidores e raramente levava mulheres para casa, tudo com a
intenção de me manter afastado de problemas. E todos os problemas podiam
resumir-se numa única palavra: Noah.
— A sério que não te lembras de mim? — insistiu a rapariga morena,
chamando novamente a minha atenção.
A Noah continuava ao lado do Luca, que agora tinha a mão pousada nas costas
dela.
Precisava de uma distração e depressa.
— Claro que me lembro — afirmei, segurando-a pelo braço e virando-a
estrategicamente para conseguir falar com ela e controlar a Noah ao mesmo
tempo.
Neste instante, como se soubesse que estava a observá-la, ela levantou a cabeça
e olhou para mim.
Sorri como o imbecil que era e desviei o olhar para a morena.
— Queres dançar? — perguntei, desviando novamente os olhos em direção da
Noah, que agora parecia unicamente concentrada no Luca.
Ele tinha-a levado até uma esquina afastada, e ela estava a rir daquela forma
que eu sabia ser apenas por obrigação.
Pousei as mãos na cintura da rapariga e procurei concentrar-me nela, coisa
difícil de fazer com a Noah por perto. Agora que a tinha ali, já me recordava de
onde nos tínhamos encontrado: numa das discotecas do centro, mais
concretamente, numa das salas privadas, onde nos envolvemos de forma rápida e
fria.
Irritado, subi a mão pelas costas da rapariga até parar junto da nuca.
— Queres ir lá para cima? — sussurrou ela.
«Lá para cima.» A oferta era tentadora, mas o problema era que, em
comparação com os sentimentos que a Noah despertara em mim, não sentia
absolutamente nada por esta rapariga. O simples roçar da mão da Noah
algumas horas antes provocara-me uma ereção que quase não consegui disfarçar,
e esta rapariga… era o seu oposto, em todos os sentidos.
— Agora não, talvez mais tarde — respondi, parando de dançar quando a
música acabou.
Neste instante, indicaram-nos que devíamos sentar-nos para jantar.
Por sorte, não ficara na mesma mesa da morena, embora me tivessem posto na
dos noivos, com os pais da Jenna, a mãe do Lion, o Luca e a Noah. Quando nos
sentámos e nos trouxeram o primeiro prato, ela mal olhou na minha direção. Na
verdade, esteve a refeição inteira a falar e a rir com o Luca e com os demais,
agindo como se não me conhecesse, como se eu não existisse.
Desde que ali chegara, dois dias antes, sempre que me virava encontrava­-a a
olhar para mim; sempre que estávamos juntos parecia querer abordar-me, e,
com efeito, chegara a fazê-lo, e quase perdi a cabeça quando me disse que
continuava apaixonada por mim.
«Apaixonada? O caraças!»
O meu copo chocou ruidosamente contra a mesa, e quase todos os presentes
pararam as suas conversas para olharem para mim. Desculpei-me e levantei-me
para ir à casa de banho.
Por que razão me sentia de repente tão irritado pelo facto de a Noah não estar
dependente de mim? Tinha detestado ver que me perseguia com o olhar, tinha
detestado ver o arrependimento nos seus olhos, a dor que ela sentia… tinha
detestado sentir-me culpado quando eu não tinha culpa de nada e agora ainda
estava aborrecido porque ela parecia estar a pôr-me à prova para ver que diabo
fazia a respeito disto.
Só sabia de uma coisa: era bom que ela tivesse cuidado.
10
NOAH

Procurara manter-me afastada dele, obrigara-me com todas as minhas forças a


não olhar para ele pelo canto do olho. O Luca ajudou-me imenso: encontrou-me
afastada de toda a gente logo a seguir à cerimónia — tive um momento de
fraqueza, senti-me desmoronar e precisei de uns minutos a sós para recuperar
—, e ele deu-me a mão, ajudou-me a recompor e disse qualquer coisa absurda
que me fez esboçar um sorriso.
Quem diria que o rufia do irmão do Lion ia ser uma pessoa tão divertida?
Prometeu-me que não me deixaria sozinha naquela noite, riu-se de mim e disse
que eu parecia o cãozinho abandonado do Nicholas, que olhava para ele com
olhos de carneiro mal morto. Eu não era assim, e, se o Luca se apercebera disto,
de certeza que não escapara ao Nicholas.
Não iria fazê-lo sentir-se incomodado, não queria que sentisse pena de mim,
na verdade, não queria que ninguém tivesse pena. Por isso fizemos um trato: o
Luca ia ser o meu salva-vidas naquela noite, íamos permanecer juntos porque
assim podia evitar qualquer tentação de desabar ou de suplicar ao Nicholas que
me perdoasse, coisa que já me passara pela cabeça inúmeras vezes desde que nos
voltáramos a encontrar ali.
Quando vi como dançava com aquela rapariga, como namoriscava com ela,
senti que me tinham agarrado no coração e que mo haviam apertado até
sangrar. E, se eu me sentia assim só de o ver a dançar com outra mulher, não
consegui evitar imaginar como se sentira ele ao saber que eu fora para a cama
com outro homem.
Eu não era parva, sabia que o Nicholas não se transformara num monge
depois de acabar comigo; mais do que isso, tinha a certeza de que a lista de
miúdas com quem entretanto dormira era infinita.
O Luca viu-me a olhar para ele e repreendeu-me com um beliscão na anca. A
partir dali, perdi-o de vista, concentrara-me apenas nas pessoas que tinha à
minha frente. Claro que tudo se tornara mais difícil quando nos sentaram a
todos na mesma mesa. De vez em quando, os meus olhos desviavam-se na
direção dele, e, de cada vez que o fiz, recebi mais um beliscão por baixo da
mesa. O último que o Luca me deu na anca fez-me soltar uma gargalhada, por
causa das cócegas que senti. Nesse momento, o Nicholas quase partiu o copo
batendo com ele de forma ruidosa sobre a mesa. Levantou-se e a seguir
desapareceu para a casa de banho.
— Está cheio de ciúmes — declarou o Luca, observando o Nick com má cara.
«Ciúmes?»
— Não está nada… só não suporta ter-me por perto — respondi, deprimida;
a seguir bebi um gole de champanhe.
O Nicholas apareceu pouco depois com uma rapariga pelo braço. As pessoas já
tinham começado a levantar-se da mesa, a música estava a tocar e convidava a
dançar. Os noivos abriram o baile com a primeira dança, e pouco depois o
ambiente transformou-se por completo: as luzes mudaram, a pista de dança
encheu-se de gente a mover o corpo, e a maioria levava nas mãos cocktails
carregados de álcool.
O Luca pegou em mim para me levar a dançar, e agradeci poder afastar-me do
Nicholas sem ter de ver como praticamente enfiava a mão na morena por baixo
da mesa. Deus do Céu, estava enojada com aquilo, enojada e profundamente
enciumada. Começámos a dançar como dois amigos. O Luca estava a portar-se
muito bem, não se insinuara a mim por um instante que fosse. A certa altura,
juntámo-nos ao Lion e à Jenna e começámos a dançar os quatro juntos, a rir e a
divertirmo-nos muitíssimo; na verdade, foi o melhor momento até então. O
Nicholas estava longe de mim, a fazer sabe Deus o quê com a tal rapariga, e,
embora a ideia me fizesse ferver o sangue, os copos que bebera ajudavam-me a
levar tudo com maior descontração.
O que aconteceu a seguir… bem, tenho de admitir que foi culpa minha.
Enquanto dançava, virei-me na pista de dança e vi-o… vi-o a beijar o pescoço
daquela rapariga, sentada ao colo dele, mas isto nem foi o pior: enquanto a
beijava, estava a olhar para mim. Tinha os lábios colados ao pescoço dela e os
olhos cravados nos meus. Sorriu-me e, de repente, parei de dançar. E o que fiz…
maldita seja, será que não ia aprender nunca?
O Luca aproximou-se, consciente do local onde os meus olhos estavam
pousados, ia para me dizer alguma coisa, aproximou-se do meu ouvido para que
o ouvisse por cima do ruído ensurdecedor da música… e foi neste instante que a
antiga Noah se apoderou de mim, deitei ao lixo tudo o que aprendera durante
aqueles meses, todas as sessões de terapia, todos os meus lamentos, porque
agarrei o Luca pelo pescoço, puxei-o para baixo e comprimi os meus lábios
contra os dele.
O mais estranho foi que ele não me afastou, muito pelo contrário. Mais do
que isso, senti a sua língua a entrar na minha boca, a mão nas minhas costas,
puxando-me para si.
Que diabo estava eu a fazer?
Não tive muito tempo para pensar nisso porque, de repente, alguém o puxou
para trás, e, quando dei por ele, já o Luca estava caído no chão com o lábio
rachado e manchado de sangue. Levantei os olhos e deparei com o Nicholas
completamente fora de si. Olhou para o Luca, sacudindo a mão com dor, e
depois olhou para mim. Senti um calafrio ao ver o seu olhar magoado… e
terrivelmente furioso. Cerrou o maxilar com força e virou-me as costas. Pouco
depois, o Luca começou a levantar-se — ou melhor, quem estava ali por perto
ajudou-o —, e eu fiquei a ver o Nick a sair na direção oposta da festa.
Não sei que raio me passou pela cabeça, talvez o elevado teor de álcool
daquele champanhe chique me tivesse toldado perigosamente o juízo, porque
fui atrás dele, claro que fui, e não foi para lhe pedir perdão.
Ele dirigiu-se à parte onde se celebrara a cerimónia; as cadeiras ainda estavam
perfeitamente dispostas, assim como as flores. A zona estava deserta, e o ruído
ensurdecedor da festa estendia-se até ali.
— Onde vais, Nicholas? — perguntei-lhe com a voz sonante.
Quase cambaleio ao descer as escadas. E ele voltou-se para mim com o rosto
roxo de raiva ao perceber que o seguia.
— Não tens o menor direito de fazer o que acabaste de fazer! — gritei-lhe,
agora furiosa.
Bem, sim, estava enlouquecida e meio embriagada… juntar a raiva a tudo isto
não era certamente uma boa combinação.
Caminhei na direção dele, que parecia estar a ponderar muito seriamente o
que fazer comigo… Deus, chegava a dar medo! Mas não me acobardei, muito
pelo contrário. O ataque de ciúmes que ele acabara de ter demonstrava alguma
coisa, era evidente… ele não podia ter-me esquecido, recusava-me a acreditar
nisso, e, se fosse preciso enfrentar a sua ira para conseguir que o confessasse, fá-
lo-ia.
Quando cheguei junto dele, empurrei-o.
— És um mentiroso! — gritei. Os meus punhos voltaram a mover-se, desta
É
feita para lhe bater com toda a força no peito. — És um sacana mentiroso,
Nicholas!
Inicialmente ele nem se mexeu, mas alguns segundos depois vi que o seu
peito subia e descia. Só me deixou bater-lhe mais duas vezes, depois segurou-me
nos punhos. Este contacto incendiou-me mais do que qualquer outra coisa.
— Dizes que me esqueceste? Não é isso que os teus atos demonstram!
Disseste que nada nos podia separar!
Ele fitou-me com incredulidade.
— Quem quebrou todas as promessas que me fez foste tu, quem decidiu dar
cabo de tudo foste tu! Porra! Não vales nada, Noah, para mim não vales nada.
— As suas palavras pararam o meu assalto, deixaram-me petrificada, e senti um
nó a formar-se no estômago.
Engoli para aclarar a voz. Os meus olhos procuraram os dele, e fitei-o com
estranheza, não conseguia vê-lo bem, não o via nitidamente, estava desfocado…
Demorei muito tempo a perceber que não conseguia vê-lo bem porque tinha os
olhos inundados de lágrimas.
— Como podes dizer uma coisa dessas? — perguntei, com a voz a quebrar-se
duas vezes.
O Nicholas observou-me. De pé, ali plantado à minha frente, parecia tão
enlouquecido, tão desgraçado como eu me sentia… Como podia ele dizer­-me
estas coisas?
— Digo porque é a verdade.
Virou-me as costas, indiferente, e começou a afastar-se.
— Eu cometi um erro, Nicholas, um maldito erro! — gritei-lhe, mas ele
continuou a andar. — A louca da tua ex-namorada fez-me crer que me tinhas
traído! Envolveste-te com a Sophia mesmo debaixo do meu nariz, e quem deu
cabo de tudo fui eu? Tu também deste cabo de tudo o que tínhamos! Obrigaste-
me a cometer o pior erro da minha vida! Permitiste que me usassem, que me
utilizassem como se fosse… como se fosse…
Não consegui continuar a falar, os soluços não permitiram. Caramba, estava
tão furiosa, tão despedaçada por dentro… Contudo, sentia como sendo verdade
o que estava a dizer: se não tivessem sido as suas mentiras, nunca me teria visto
na situação de precisar de recorrer à ajuda de alguém que acabou por se
aproveitar da minha fragilidade, que tirou partido daquilo que lhe contei
confidencialmente. Quando levantei os olhos, ele estava ali, à minha frente.
Tinha voltado para trás. Olhou para mim furioso, com uma raiva tão pura, tão
terrivelmente aterradora que quase dei um passo atrás com medo, mas então ele
fez a última coisa que esperava que fizesse: a mão rodeou a minha cintura e os
seus lábios chocaram com os meus. Por um instante, achei que estava a ter um
pesadelo, um daqueles que me assaltavam ultimamente quando acabava por cair
vencida pelo sono; neles aparecia com o Nicholas, como éramos antes, felizes, a
beijarmo-nos, e no segundo seguinte ele ia embora, e eu não conseguia fazer
nada para o impedir. Corria e corria atrás dele, mas as minhas pernas não
conseguiam mover-se suficientemente depressa.
Mas isto não era um sonho, não era mesmo. O braço dele levantou-me do
solo, apertando os meus seios contra o seu tronco incrivelmente duro, e a língua
faminta entrou na minha boca. Demorei uns segundos a assimilar o que estava a
acontecer, mas o meu corpo pareceu iluminar-se perante o contacto do seu. Os
meus braços rodearam o pescoço dele com força, puxando-o para mim. Deus,
como precisava de o sentir! Foi como se toda a energia do meu corpo regressasse
finalmente depois de me ter abandonado durante tantos meses.
O outro braço do Nick agarrou-me por trás e segurou-me no ar, a língua a
acariciar a minha vorazmente, com ânsia. Agarrei-lhe o cabelo com força, mas
isto já não era como antes: o cabelo estava curto, demasiado para o conseguir
puxar, como gostava de fazer. Com a respiração entrecortada, ele levantou a mão
pelas minhas costas até chegar à nuca e ficou ali pousada enquanto a sua boca se
separava da minha e me trespassava com o olhar… As pupilas estavam dilatadas
com a excitação, com o desejo, com o desejo carnal puro que achei que nunca
mais ia sentir.
Fitámos fixamente o olhar um do outro, e quis dizer-lhe muitas coisas… Mas
então alguma coisa mudou… algo cruzou o pensamento dele, voltou a
atormentá-lo, e percebi que ia voltar a perdê-lo. Desesperada, puxei o pescoço
dele para mim e voltei a pousar os lábios sobre os dele, mas agora já não obtive
a mesma resposta. Senti os seus braços descontraírem e pousarem-me no chão.
Entrei em pânico, temi que se fosse embora, que voltasse a deixar-me.
As lágrimas voltaram a inundar-me os olhos, afastei a boca da sua e enterrei o
rosto no pescoço dele. Continuava com os braços em redor do seu pescoço e
recusava-me a largá-lo, não queria deixá-lo ir.
— Não posso fazer isto, Noah — declarou o Nicholas com toda a clareza,
embora a sua voz parecesse afogada em sentimentos.
— Não — recusei, agarrando-me a ele com mais força. As minhas lágrimas
deviam estar a manchar-lhe a camisa, mas nem queria saber, não podia deixar
que ele se fosse embora, precisava dele e ele de mim, tínhamos de estar juntos.
A seguir, as mãos dele soltaram a minha cintura e agarraram-me nos pulsos.
Fez força até que eu o soltasse. Agarrou-me nas mãos em frente ao corpo e olhou
para o meu rosto.
— Não me deixes — implorei de modo lastimoso. Estava a suplicar, bem sei,
mas no dia seguinte ele partiria e nunca mais voltaria a vê-lo. Sabê-lo estava a
matar-me por dentro.
— Quando fecho os olhos, só te vejo com ele — confessou, engolindo em
seco. Os seus olhos pareciam fraquejar perante os meus, que lhe suplicavam que
ficasse, que me amasse, que voltasse a proteger-me.
— Eu nem sequer me lembro de nada, Nicholas — respondi, recusando­-me a
deixá-lo libertar-me. Era verdade, não conseguia lembrar-me do que acontecera
naquela noite: sabia que tinha ido para a cama com o Michael, mas eu não tinha
feito parte do ato, deixara-me simplesmente ir porque não tivera forças para
dizer que não… Naquela altura nada me importava, porque a minha vida se
transformara num inferno.
Vi que os olhos dele ficavam húmidos e senti-me morrer.
— Não consigo fazer isto… lamento. — E largou-me.
Deu meia-volta e afastou-se, deixando-me ali…

A Jenna não demorou a descobrir o que tinha acontecido na pista de dança e


encontrou-me duas horas depois, sentada numa das cadeiras da cerimónia,
abraçada às minhas próprias pernas e tentando recompor-me. Aquele beijo, as
suas palavras, não me fizeram bem algum. Vi que os braços dela estavam à
minha volta, mas nem sequer os sentia. Fiquei a achar-me ainda mais culpada
por estar a perturbá-la naquele dia tão especial.
— Desculpa, Jenna — pedi, tentando parar de chorar.
— Eu é que tenho de te pedir desculpa, Noah, isto foi tudo culpa minha —
disse e olhei para ela sem entender. — Esta situação toda, escolher-vos aos dois
como padrinhos, meter-vos no mesmo carro, até pôr-vos a dormir porta com
porta. — A minha amiga olhou para mim com o rosto pesaroso, mas ainda
assim estava linda de morrer. — Quis que tivessem outra oportunidade,
achei… achei que, se forçasse um pouco as coisas…
— Nós beijámo-nos — confessei, sabendo que, apesar daquele beijo, do
último beijo, as coisas não iam melhorar entre nós, por mais empenhada que a
Jenna estivesse.
Ela pareceu ficar surpreendida e confusa. Olhou em redor, como se tentasse
entender o que acontecera, por que motivo o Nick não estava comigo.
— Acabou-se tudo entre nós, Jenna — afirmei e tive de levar a mão à boca
para abafar os soluços. Meu Deus, era tão patética… mas, caramba, isto
magoava-me tanto… doía-me tanto tê-lo perdido!
A Jenna voltou a abraçar-me, e deixei que me consolasse. Ali estávamos as
duas: ela no dia mais feliz da sua vida, e eu enterrada na maior infelicidade.
A Jenna voltou a fixar os olhos nos meus, e vi uma certa determinação neles.
— Eu não devia dizer-te isto, Noah, a sério que não, mas conheço bem o
Nick, vi que ele era uma pessoa completamente diferente durante os meses em
que esteve contigo. Independentemente dos problemas que vocês tinham, ele
nunca tinha estado tão estável, tão… como hei de dizer, tão normal. Toda a vida
do Nick foi uma treta, vi-o chorar muitas vezes quando era pequeno, quando a
mãe se foi embora, vi-o chorar durante meses, até que depois endureceu e criou
esta couraça que agora exibe em todo o lado com tanto orgulho, tornou-se uma
pessoa impenetrável… Tu conseguiste chegar até ele, penetrar na sua
carapaça… Não estou a dizer que vai ser fácil, mas, bolas, Noah, ele é o amor da
tua vida! Quero que os meus melhores amigos sejam tão felizes como me sinto
neste instante, preciso, mais do que isso, rogo-te, Noah, rogo-te que não o
deixes ir embora, por mais coisas que te diga, por mais vezes que repita que não
te ama e que não consegue perdoar-te… Tem de haver uma maneira.
Levantei-me da cadeira e olhei para ela. Um sorriso triste espalhou-se nos
meus lábios.
— Sei que queres acreditar no que estás a dizer, Jenn… e eu também quero
— declarei, olhando para o sítio por onde ele tinha desaparecido —, mas eu
destruí-lhe o coração… acreditei que ele me tinha enganado e achei que ia
morrer, a sério que sim, por isso sei exatamente como ele se sente… Não me vai
perdoar, jamais o fará.
A Jenna ia dizer-me alguma coisa, mas voltou a fechar a boca. Acho que, pela
primeira vez na vida, ficara sem palavras. Aproximei-me dela e dei-lhe um beijo
na cabeça.
— Aproveita o teu dia.
Depois disto, fiz das tripas coração para voltar a ser a rapariga que fora
durante toda a semana. Recusava-me a deixar o Lion e a Jenna sem os seus dois
melhores amigos, por isso fiquei na festa até a minha presença ser necessária.
Obriguei-me a dançar e a aproveitar tudo o que me rodeava. A certa altura, dei
por mim à frente do Luca. Os seus olhos verdes observaram-me com cautela,
mas sem réstia de rancor por o ter usado, literalmente, para fazer ciúmes ao
Nicholas.
— Desculpa-me — pedi com sinceridade, esperando que as minhas palavras
fossem o suficiente para obter o seu perdão. Comportara-me como uma
verdadeira imbecil, como a menina imatura que jurara deixar para trás, e
lamentava profundamente se com isto dera falsas esperanças ao irmão do Lion.
— Não há nada para desculpar — respondeu ele e, logo a seguir, pegou-me
pela mão e puxou-me até chocar contra o seu peito. — Calma — disse antes de
conseguir escapulir-me ou entrar em pânico perante o que ele pudesse achar que
podia estar a acontecer entre nós. — Não me importo que me uses para fazer
ciúmes àquele idiota, porque, na verdade, estou a fazer exatamente o mesmo
contigo. — Fez-me rodopiar e obrigou-me a encostar as costas contra o seu
peito. Movendo-se ao som da música, aproximou-se do meu ouvido para que o
escutasse com clareza. — Estás a ver aquela miúda ali? — perguntou,
levantando um dedo dissimuladamente para um grupo de jovens que estava
junto ao bar. Assenti, divertida, entendo de repente o que ele queria dizer. — A
loura que está ali a observar-nos como se não lhe interessasse nada o que estou a
fazer contigo — disse, voltando a fazer-me girar e pousando descaradamente as
mãos no fundo das minhas costas, quase a roçar o meu traseiro, gesto pelo qual
o fulminei com o olhar. — Fomos para a cama há coisa de um mês; na verdade,
andamos embrulhados um com o outro desde que tenho uso da razão, ou de
outro órgão, se é que me entendes… — revirei os olhos. — Bem, tinha perdido
o contacto dela quando fui para a prisão, e agora reencontrámo-nos numa festa
no meu bairro. É filha da melhor amiga da minha mãe, e quero que fique
completamente louca quando vir onde estou prestes a meter a mão.
Soltei uma gargalhada e dei-lhe um empurrão. O Luca reagiu levando a mão
ao coração como se o tivesse magoado profundamente. Depois, devagar, puxou-
me novamente e sussurrou-me algo ao ouvido, mas num tom completamente
diferente.
— Não te arrastes atrás dele, Noah — disse, antes de me fitar. — O que tu
fizeste não foi correto, mas toda a gente comete erros.
O conselho do Luca não foi uma revelação para mim, mas fez-me
compreender que toda a gente se apercebera de quão patética fui durante
aqueles dias sempre que o Nicholas estava por perto.
Não podia fazer muito mais agora, e, apesar de saber que tinha cometido um
erro, o mais difícil de perdoar, também sabia que nem tudo tinha sido culpa
minha: as mentiras, os nossos passados, a intensidade da nossa relação tinham-
nos levado, quase à força, até a um ponto sem retorno.
Continuei a dançar com o Luca e com os demais até que chegou a hora em que
os noivos decidiram ir embora, cumpridos que estavam todos os rituais
obrigatórios de um casamento: cortou-se o bolo, que mal provei, e a Jenna
também tinha atirado o ramo de noiva. Bem, quanto a isto, convém esclarecer
que não o lançou exatamente; depois de simular durante alguns segundos que o
ia atirar, voltou-se e aproximou-se de mim com um sorriso nos lábios. Sem
entender nada e quase como um ato reflexo, aceitei o ramo de flores que me
estendia.
— Isto é para que saibas que ainda confio que o teu dia chegará, Noah¸ e será
com aquele que nós sabemos.
Senti um nó formar-se no estômago e não soube o que dizer. Admirava a sua
determinação, a sua esperança, mas este gesto só conseguiu fazer com que me
afundasse mais na minha tristeza. Subitamente, já não aguentava mais estar ali,
rodeada de tanta gente, por isso, quando a Jenna me deu um beijo no rosto e
correu com o Lion para a limusina que os levaria ao hotel de luxo de onde
partiriam no dia seguinte rumo à sua lua de mel paradisíaca, entrei num dos
muitos carros com motorista que estavam ali à disposição dos convidados e
pedi, por favor, que me levasse a casa.
Precisava de dar aquela noite por encerrada.
11
NICK

Sabia que tinha estragado tudo ao beijá-la na noite anterior, mas não o consegui
evitar. Ela estava ali, a gritar-me, a deitar as culpas para cima de mim, de mim!
Chamou-me mentiroso. Mentiroso? Nem sequer entendia a que diabo se
referira, mas as minhas opções eram beijá-la ou perder completamente a cabeça.
Ver as mãos asquerosas do Luca no corpo dela, os seus lábios sobre os dela… A
Noah decidira acabar com o pouco autocontrolo que me restava. Vê-la com
outro obrigara-me a reviver aquelas imagens malditas que quase conseguira
eliminar do meu cérebro. Era evidente que, agora que a vira ao fim de tanto
tempo, tudo voltara ao início, tudo voltara a ser como aquela maldita noite em
que descobri que me tinha enganado…
Sentir contra o meu o corpo esbelto dela, lindo e muito mais esguio do que
me recordava, fez-me enlouquecer por alguns instantes. Fez que todos os meus
sentidos colapsassem, e durante breves segundos voltei a ser o Nicholas de
antes, voltei a ser aquele rapaz completamente apai­xonado, perdido de amores
por aquela rapariga. Quando a afastei para olhar para ela, para me deixar
inundar pela luz que ela sempre emitira, vi o mesmo nos seus olhos, vi a mesma
ansiedade, o mesmo desejo contido, o desejo que nos puxava um para o outro,
mas também vi outras coisas: arrependimento, desespero e nostalgia… foi como
se me tivessem espetado uma faca no coração e a virassem, voltei a sentir o
mesmo sofrimento que me invadiu quando soube da verdade.
As imagens… as malditas imagens com que a minha imaginação me
torturava voltaram a projetar-se no ecrã do meu cérebro. A Noah, despida, na
cama, a suspirar de prazer daquela forma tão sensual, inocente e tão plena;
aqueles sons que os seus lábios libertavam e me deixavam louco, que
conseguiam fazer-me cair de joelhos. Mas não tinha sido eu a provocar aqueles
sons, tinha sido outro; tinham sido outras mãos a acariciar o seu corpo, não
devagar e à procura do seu prazer, mas de forma brusca: manuseavam-na sem o
cuidado, sem o amor que eu conferia a cada uma das minhas carícias. Mas a
Noah gostara, sentira prazer com elas, porque não fora o meu nome que
gritara…
Nesse instante, senti que me tinham despejado um balde de água gelada
sobre o corpo e tive de a afastar de mim, apesar de ela se agarrar com todas as
suas forças ao meu pescoço, recusando-se a separar-se. Talvez tivesse achado que
não seria capaz de me afastar dela, mas fi-lo e não me arrependia.
Agora, depois de passar uma hora sem dormir, voltava a sofrer um destes
episódios de fragilidade, daqueles em que queria mandar tudo às urtigas,
esquecer tudo o que acontecera, ir ao seu quarto e implorar-lhe para
terminarmos aquilo que tínhamos começado.
Percebi que estava na hora de me ir embora dali.
Fiz a mala, saí do quarto em silêncio e, como o perfeito idiota que sou, não
consegui evitar parar brevemente à porta do quarto da Noah. Fechei os olhos
por um instante, irritado por saber que ela estava a poucos metros de mim, que
seguramente passara a noite a chorar por causa do nosso encontro e que já não
podíamos fazer nada para o consertar. Assim que tive forças, fui-me embora.
Guardei a minha escassa bagagem na mala do carro e lavei a cara com o resto
de uma garrafa de água que encontrei ali; não tinha dormido nada, mas
precisava de arrebitar. Depois de ter abandonado a festa, peguei numa prancha
de surfe e fui até à praia de Georgica, onde surfei sem parar durante horas,
tentando acalmar-me, tentando encontrar um sentido nestas razões todas que
supostamente me mantinham afastado da Noah, as mesmas razões que
pareceram desaparecer assim que a beijei. Surfei naquela praia até que começou
a amanhecer. Depois decidi voltar, tomei um duche e dei a viagem por
terminada.
12
NOAH

Não o ouvi ir embora, mas senti a sua ausência. Pronto, já tinha acabado, agora
restava-me apenas voltar à minha rotina de sempre.
Despedi-me de todos os convidados que ainda estavam em casa, dispostos a
ficar ali mais um par de dias. A mãe da Jenna deu-me um abraço, e o pai
ofereceu-se para me levar à estação, onde havia de apanhar o comboio para Nova
Iorque. Durante o caminho, perguntou-me quais eram os meus planos para o
verão, e eu contei-lhe que, além dos dias que ia estar em Nova Iorque, o resto
do verão seria passado a trabalhar. Não queria dar-lhe muitas explicações acerca
do meu trabalho, já que estava a falar com um magnata do petróleo que de
certeza nem entendia por que motivo a enteada do seu melhor amigo, que era
milionário, precisava de trabalhar como empregada de mesa. Não obstante, ele
foi discreto, e eu fiquei grata por isso.
— Onde vais ficar hospedada durante estes dias, Noah? — perguntou-me
enquanto atravessávamos aquelas ruas tão bonitas. Ainda era cedo, mas já havia
por ali pessoas: algumas passeavam os seus cães, outras caminhavam com as suas
malas e mochilas de marcas exclusivas… quase todas usavam óculos de sol. Tive
pena de ter de ir embora sem conhecer melhor aquela zona, mas, com todos os
afazeres do casamento, não tinha tido tempo.
Olhei para o pai da Jenna e disse-lhe o nome do motel que reservara em Nova
Iorque. Não me importava que fosse um estabelecimento de má fama, não ia lá
passar tempo quase nenhum, só precisava de um sítio para dormir e para tomar
banho. Iria passar as restantes horas do dia a descobrir aquela cidade grandiosa.
Quando lhe disse o nome do motel, o pai da Jenna fitou-me ligeiramente
perplexo, nem sequer o conhecia, o que não era de espantar, tendo em conta as
duas propriedades que tinha naquela cidade, além da casa nos Hamptons.
Fiquei embaraçada por um instante quando ele insistiu em reservar-me um
quarto num hotel do centro, nada mais nada menos que um Hilton. Agradeci-
lhe a oferta, mas não precisava das esmolas de ninguém. Aquelas pessoas a
quem o dinheiro sobrava achavam que os que não podiam desfrutar dos mesmos
luxos eram pessoas infelizes, e isso não era verdade. Eu não me incomodava nem
um pouco em ficar num motel… Também não era nada do outro mundo, por
amor de Deus!
— Noah, não quero intrometer-me, mas Nova Iorque não é como Los
Angeles, é uma cidade que pode ser muito perigosa, e ainda mais se fores
sozinha e sem conheceres nada.
Insistiu nisto até que chegámos à estação.
— Não se preocupe, senhor Tavish, eu sei cuidar de mim, vou ficar bem, a
sério que sim… Além disso, não vou estar sozinha, vou encontrar-me com uma
amiga, por isso não precisa mesmo de se preocupar. — Pronto, esta parte era
mentira, mas era completamente inofensiva. O pai da minha amiga não pareceu
nada convencido; pelo contrário, pareceu ficar incomodado e verdadeiramente
preocupado, como se fosse meu pai.
— Bem, se precisares de alguma coisa, tens o meu número. Eu vou estar nos
Hamptons o resto da semana, mas tenho muitos amigos em Nova Iorque,
amigos que estarão dispostos a acompanhar-te, se for preciso.
Amigos… Sim, claro, sabia muito bem ao que se referia esta gente quando
falavam de «amigos». Bastava olhar para o Steve e pensar na função que tinha
na vida dos Leisters. Não precisava de guarda-costas, muito obrigada.
Despedi-me amavelmente dele e apressei-me a entrar na estação, não se
lembrasse ele de ligar à minha mãe ou algo parecido… já esperava qualquer
coisa.
Entrei na carruagem, entreguei o bilhete do comboio a uma senhora muito
simpática e instalei-me no meu lugar, olhando pela janela e desejando chegar
àquela cidade magnífica. Tentei esquecer-me de quando o Nick me prometera
que um dia me levaria a Nova Iorque, que ia ser ele a mostrar-me a grande
metrópole. Desde então passara-se uma vida inteira, pelo menos era essa a
sensação que tinha.
Quando chegámos ao destino, a primeira coisa que fiz ao sair do comboio foi
arranjar um táxi para me levar ao motel onde tinha o quarto reservado.
Enquanto circulávamos pela cidade, fiquei pasmada com o que via através da
janela. Os arranha­-céus impressionantes pareciam não ter fim, e havia tanta
gente na rua que me fazia sentir uma mera formiga, um grão de areia… Era
espetacular, sim, e também um pouco assoberbante.
Quando o taxista se meteu por uma rua estreita e um pouco sombria, por
volta das quatro da tarde, senti-me um tanto aflita. Porém, o homem não tinha
más intenções: o motel situava-se ali, e, apesar de não ser horripilante, não tinha
nada que ver com a fotografia que vira na Internet.
O taxista tirou a minha mala da bagageira, dei-lhe uma gorjeta minúscula, e
o homem foi-se embora pelo mesmo sítio por onde veio, deixando-me ali,
perdida na cidade grande. Respirei fundo e entrei no estabelecimento, que tinha
mais ar de refúgio para pessoas sem-abrigo do que de motel.
A rapariga que estava atrás do balcão mal levantou os olhos da revista quando
cheguei à sua frente a arrastar a mala.
— Nome? — perguntou, mastigando uma pastilha elástica de forma ruidosa
e repugnante. Sempre detestei pastilhas elásticas.
— Noah Morgan. Tenho uma reserva — respondi, olhando em redor. Era
oficial: aquilo não era um motel, mas um edifício bastante mal amanhado que
reservava quartos.
Com um suspiro, a rapariga abriu uma gaveta e tirou uma chave de um
monte.
— Tem cuidado e não a percas, só há uma. O pequeno-almoço é o que
quiseres tirar dessas máquinas de vendas automáticas; o almoço e o jantar são
por tua conta.
Assenti, tentando evitar que as minhas primeiras horas em Nova ­Iorque
conseguissem deprimir-me. Enfim, só precisava de uma cama. Além disso, ao
passar em frente às máquinas, vi que havia bolachas Oreo… O que mais podia
pedir?
Deixei a mala no quarto minúsculo que me tinham atribuído e fui dar uma
volta. Saí da rua claustrofóbica e sombria do motel e comecei a caminhar pela
cidade. Descobri que o Central Park ficava algumas ruas à frente, como dizia no
site.
Não sei explicar este sítio, mas, depois de passear durante dez minutos, já
queria lá viver. Estava calor, as pessoas deixavam-se estar deitadas sobre a relva a
apanhar sol, as crianças jogavam à bola ou com os seus cães… E também havia
muita gente a correr e a fazer outro tipo de exercícios. O ambiente era incrível,
a natureza ali, no meio de uma cidade cheia de poluição e engarrafamentos.
Aproximei-me do lago onde os patos rasgavam a água e comiam as coisas que
muitas pessoas lhes atiravam. Por um instante, levantei a cabeça em direção ao
céu azul de julho e deixei-me levar por aquela sensação de estar sozinha;
sozinha, mas feliz, no meio de um lugar onde ninguém me conhecia, onde não
sabiam da minha história, onde o Nicholas, a minha mãe, o William ou
qualquer outra das pessoas que me julgaram pela nossa separação podia olhar
para mim com cara de pena ou de irritação. Tinha sido horrível, a notícia
espalhara-se como pólvora pelo campus da universidade onde o Nick era uma
lenda. Tínhamo-nos transformado no casal que todos admiravam, para quem
olhavam de soslaio, e depois, ao saberem que fora eu a meter a pata na poça…
bem, as pessoas conseguem ser muito cruéis.
Passei o resto da tarde no parque, comprei um cachorro-quente e passeei. As
pessoas podiam achar que era maluca: com tantos sítios bonitos para conhecer,
por que razão me deixava ficar por ali sem um plano turístico em mente? Fi-lo
porque às vezes é bom ter tempo para existir simplesmente, para ser mais uma
pessoa entre tantas, e naquele momento era a única coisa que queria fazer.
Queria paz e tranquilidade…
Se bem que não durou muito tempo.

Quando ia a dobrar a esquina para entrar na rua do motel e vi aparecer um


homem alto, de fato, que saiu das sombras, quase me deu um enfarte. Estive
prestes a desatar a correr, mas depois reconheci-o e levei uma mão ao coração,
tentando recuperar do susto.
— Porra, Steve! — exclamei, sem sequer me arrepender do palavrão. O que
diabo estava ele a fazer ali?
— Noah — disse ele com simplicidade, olhando para mim com má cara.
Agarrou-me num braço e quase me obrigou a entrar no motel. — Vai buscar as
tuas coisas, por favor.
Franzi o sobrolho e deixei que me levasse até à porta do quarto, passando em
frente à rececionista, que parecia estar tão espantada como eu. Consegui sacudir
o torpor e soltar-me com um puxão para lhe fazer frente.
— O que queres, Steve? — perguntei bruscamente, sentindo a irritação
crescer dentro de mim. — Porque estás aqui?
— O Nicholas pediu-me que viesse buscar-te, este sítio é perigoso. — A
resposta do Steve era como ele, prática e breve. O pequeno senhor Leister
mandava e os seus lacaios obedeciam. Que sorte já não fazer parte deste círculo
estúpido!
— Eu não vou a lado nenhum — respondi, passando à frente dele e abrindo a
porta do meu quarto.
O que pretendia fazer? Deixar o Steve ali e fechar-lhe a porta na cara? Ele não
tinha culpa de trabalhar para um idiota.
— Noah, esquece o Nicholas, não devias andar sozinha em Nova Iorque, e
muito menos nesta zona da cidade, é perigosa. Deixa-me só levar-te para um
sítio onde não corras perigo.
Meu Deus, que absurdo!
— Mas como me encontraram? — não consegui evitar gritar. Virei-lhe as
costas e levei as mãos à cabeça.
A janela ao lado da cama dava para um beco sem saída com escadas de
incêndio incluídas. Dali viam-se os contentores do lixo e algumas pessoas a
fumar na esquina. Tinha de reconhecer que não tinha bom ar e até já me passara
pela cabeça gastar o resto das minhas poupanças a procurar um alojamento um
pouco mais decente, mas detestava que me obrigassem a alguma coisa,
sobretudo a mando do Nicholas... Ele perdera todo o direito de se preocupar
comigo e agora vinha com isto?
— O que te disse o Nicholas, exatamente? — perguntei, voltando-me para
ele.
O Steve devolveu-me o olhar de forma imperturbável.
— Disse-me para te tirar deste antro e levar-te para um lugar em condições.
Para me levar… Ou seja, mandava o Steve e nem sequer planeava dar a cara.
Obrigada por nada.
— Quero falar com ele — exigi, cruzando os braços.
O Steve olhou para mim, indeciso.
— Ele hoje já tem compromissos depois do trabalho, tem uma reserva para
jantar…
Senti uma pontada no coração, e a minha parte mais sensata quase me deu um
pontapé na canela. «O que achas, idiota, que ele se tornou monge?»
— A que horas é o encontro dele? — perguntei, tentando evitar que a voz me
tremesse.
O Steve suspirou.
— Daqui a meia hora — respondeu.
— Então liga-lhe para o telemóvel. A mim não me vai atender.
O Steve susteve o meu olhar durante alguns instantes e assentiu. Porém, antes
de fazer a chamada, pegou na minha mala, que ainda estava fechada, e
acompanhou-me até à rua onde o carro estava estacionado. Abriu-me a porta
para eu entrar e, depois de se instalar no lugar do condutor, marcou o número
do Nick para falar com ele através do kit mãos­-livres.
— Nicholas, a Noah quer falar contigo — anunciou, quando o Nick atendeu.
— Não quero falar com ela — declarou ele, um segundo depois.
Desliguei o kit mãos­-livres e encostei o telemóvel do Steve ao ouvido.
— Já nem o meu nome dizes? — recriminei, sem conseguir controlar-me.
— Só quando é estritamente necessário — respondeu ele. Sabia que podia
desligar a chamada a qualquer instante, por isso tentei acalmar-me, mas não
pude evitar o que lhe disse a seguir:
— Não dizes o meu nome, mas mandas o Steve levar-me para um hotel em
condições… Explica-me isto, Nicholas, porque juro que estou muito confusa.
Tive a sensação de que as minhas palavras o afetaram de certa forma, porque o
ouvi suspirar ao telefone.
— O Greg ligou-me, para me dizer que ficou preocupado ao saber do sítio
onde planeavas hospedar-te nos próximos dias — comentou, como quem não
quer a coisa.
Maldito Greg Tavish! Não podia meter-se na sua vida? Ele não era meu pai.
— Ah, então estás a fazer isto pelo Greg, não é verdade? — perguntei e até eu
notei a desilusão na minha voz.
— Para com isso, Noah — disse ele e reparei na mudança da sua voz, como se
estivesse inundada de raiva. — Tens uma reserva em teu nome no Hilton,
queres usá-la? Ótimo! Não queres? Estou a marimbar-me para isso.
Não tive tempo para dizer mais nada, porque desligou a chamada.
O Steve observava-me em silêncio, expectante, a ver o que eu dizia. Não ia
fazer o que o Nick mandava. Beijara-me e a seguir fora-se embora sem me dizer
mais nada. E agora dava-se ao trabalho de me reservar um quarto de hotel… e
queria que eu pensasse que tanto lhe dava se aproveitasse a reserva ou não?
Podia fingir o que quisesse, podia dizer-me que não se importava com o que eu
fizesse ou deixasse de fazer… mas eu conhecia-o: era o Nicholas, só tinha
garganta.
Naquele instante, tomei uma decisão arriscada.
— Leva-me até à casa dele.
O Steve não pareceu muito entusiasmado com a ideia, mas disse-lhe que ou
me levava ou não sairia daquele motel. Senti-me um pouco culpada por estar a
pô-lo entre a espada e a parede, mas mantive-me firme: essa seria a única forma
de me fazer sair dali.
Aproveitei a viagem para olhar pela janela. Embora não gostasse de o admitir,
estar no carro com o Steve fazia-me sentir segura, protegida, por assim dizer.
Reconhecia que chegar sozinha a uma cidade como Nova Iorque, sem ninguém
com quem partilhar a experiência, era bastante deprimente e também um
pouco assustador.
— Estamos quase a chegar — informou-me o Steve algum tempo depois.
Comecei a ficar nervosa, ainda mais quando parámos em frente a um edifício
incrível, muito alto e com uma vista impressionante para o Upper East Side. O
rio ficava à minha direita, e um pouco mais à frente via-se claramente a copa das
árvores do Central Park. Tínhamos demorado pouco mais de meia hora, e
percebi que aquela parte da cidade estava exatamente do lado oposto à que
visitara naquela manhã.
Comecei a mexer no cabelo. O que ia dizer-lhe? Na verdade, não eram as
palavras que me estavam a deixar nervosa, mas conhecer a sua vida atual, vê-lo
naquele ambiente, vê-lo ser o Nicholas Leister, que vivia sozinho num
apartamento do centro de Nova Iorque, o advogado e empresário no seu estado
puro… eu não conhecia esta sua faceta, só conhecia o Nick que saía à noite, que
me abraçava, que metia a mão nos lugares mais secretos do meu corpo, que fazia
corridas de carros e que se metia em brigas para ganhar dinheiro… o Nick que
estava apaixonado, aquele que me adorava e que morria se passasse mais de
vinte e quatro horas sem saber de mim, sem falar comigo ou sem me ver.
Onde estava esse Nick agora?
O Steve entrou na garagem do edifício imponente, e comecei a reparar que os
nervos se apoderavam verdadeiramente de mim.
— Ele está em casa? — perguntei depois de sair do carro, enquanto o seguia
até ao elevador.
— Não.
Respirei fundo quando vi o Steve a digitar um código no teclado ao lado dos
botões dos andares. Com espanto vi que havia 62… — meu Deus, eram
tantos… — e o código dava acesso ao último andar.
A subida de elevador pareceu-me supersónica, e, quando a campainha soou
rasgando o silêncio que se instalara entre nós, não consegui evitar sobressaltar-
me.
As portas abriam-se diretamente para um átrio bastante grande, com um
espelho que me devolveu o olhar. Devo dizer que me custou reconhecer­-me
naquele reflexo, parecia realmente acabada, por isso apressei-me a mudar a
expressão do meu rosto. Não podia aparentar nervosismo, tinha de me mostrar
mais segura de mim mesma.
Gostava de ter outra coisa vestida e não uma simples saia de ganga, sapatilhas
Converse cor-de-rosa e uma T-shirt básica branca. Parecia uma miúda de quinze
anos.
Antes de seguir o Steve, tirei o elástico que me segurava o cabelo e deixei-o
cair solto pelas costas… Isto ajudaria, não?
Segui o Steve até ao interior do apartamento. Uau! Isto não tinha nada que
ver com o apartamento que ele arrendara em Los Angeles… isto era… jogar
noutro campeonato. Sabia que ele tinha herdado uma grande fortuna do avô e
também que o dinheiro nunca fora um problema para ele, claro, mas aquele
apartamento era qualquer coisa.
O espaço era enorme, sem paredes, apenas algumas colunas estrategicamente
posicionadas para marcarem as diferentes zonas. A cozinha ficava do lado
direito, e os sofás do centro estavam orientados para as enormes janelas de onde
se podia ver a cidade em todo o seu esplendor. O chão de madeira reluzia, e
algumas partes estavam forradas com tapetes grossos de cor bege, tão fofos que
até devia dar para dormir sobre eles. Num dos lados, junto a um pequeno bar
de vidro, uma imponente escada de mármore escuro dava acesso ao piso de
cima.
Era aqui que o Nicholas vivia agora? Aquilo era seu? Vivia ali ­sozinho?
O Steve voltou a suspirar e olhou para mim de sobrolho franzido.
— Tens a certeza de que queres fazer isto, Noah? Ele não vai gostar nem um
pouco.
— Por favor, Steve — disse, quase a suplicar. — Deixa-me fazer isto à minha
maneira… Eu só… só preciso de uma oportunidade para falar com ele.
O Steve olhou para mim como quem olha para uma criança que acabou de
descobrir que o Pai Natal não existe: com pena.
Assentiu com pesar e, depois de me dizer que lhe ligasse se precisasse de
alguma coisa, foi-se embora. Subi a escada e, de repente, senti-me muito
cansada. Abri a primeira porta que encontrei: era um quarto, mas não sabia se
era o do Nick ou um quarto de hóspedes. Deixei-me cair na cama e fiquei a
olhar para o teto.
Ia esperar por ele… ia esperar acordada até ele voltar e, quando isso
acontecesse, faria tudo, absolutamente tudo o que estivesse ao meu alcance para
que ele acreditasse em mim, em nós, no perdão e no amor.
13
NICK

Entrei no carro e saí do parque do escritório acelerando a fundo. Devia ter


cancelado o jantar, devia ter ido embora, dizer-lhe todas as coisas que morria
por lhe dizer, todas as que ainda guardava dentro de mim e que de certeza
acabariam por sair um dia.
Apertei a cana do nariz, tentando acalmar-me. Não podia aparecer no jantar
naquele estado, não seria correto… nem justo.
Tinha de tirar a Noah da cabeça. Estava certo de que não ia recusar a oferta do
hotel, ela não era parva, sabia que seria uma loucura ficar naquele bairro de má
fama, e, se não me desse ouvidos, então o problema já não era meu. Uma voz
dentro de mim gritou «Mentiroso!» alto e bom som, mas ignorei-a enquanto
atravessava a cidade para chegar a um dos restaurantes mais em voga, desejando
que a noite fosse tranquila.
Quando entreguei a chave do carro ao porteiro para que o estacionasse, vi a
rapariga morena que estava à porta. O vestido que trazia era elegante e caro, as
sandálias de salto faziam-na parecer muito mais alta do que era na realidade, e o
cabelo escuro brilhava, solto, sobre as costas.
Ao ver-me, o seu olhar iluminou-se, embora tenha tentado disfarçar o melhor
que pôde. Senti uma pontada de culpa no peito, mas eu já deixara as coisas bem
claras entre nós, e ela parecia entender.
— Olá — disse, forçando um sorriso caloroso.
Os seus dentes brancos reluziram quando lhe rodeei a cintura com o braço e
me inclinei para lhe dar um beijo no rosto. Cheirava a framboesa e limão…
tinha sempre aroma a frutas, e eu gostava bastante disso.
— Achei que não vinhas — confessou, enquanto lhe empurrava suavemente
as costas para entrarmos no restaurante. As coisas estavam difíceis, e a última
coisa que queria era um fotógrafo qualquer a tirar-nos fotografias.
— Surgiu um pequeno imprevisto, desculpa — comentei. A seguir dei o meu
nome ao funcionário, que se apressou a levar-nos para a mesa que reservara
quase com um mês de antecedência.
O restaurante era agradável, acolhedor, com uma iluminação ténue que
ajudava ao ambiente cálido. Um pianista tocava música ao vivo. Por algum
motivo estranho, aquela luz e a música agradável deixaram-me mais
descontraído… respirei fundo e desfrutei ao ver-me ali sentado com aquela
mulher, a mesma que me apoiara desde que me separara da Noah, a que sempre
estivera ao meu lado e se transformara numa boa amiga.
— Estás bonita — disse-lhe, sabendo que assim conseguia arrancar-lhe um
sorriso. A razão pela qual as coisas com ela eram diferentes era muito clara, pelo
menos para mim.
A Sophia sorriu com timidez e pegou no menu com leveza. O empregado de
mesa aproximou-se e cada um de nós pediu um tipo de vinho diferente. Ela
gostava mais de vinho branco; eu, por outro lado, gostava mais de tinto,
especialmente de um bom Bordéus de 82. Por um instante lembrei-me da
Noah, de como ela não sabia absolutamente nada de vinhos, de gastronomia e
de muitas outras coisas, na verdade. A sua simplicidade cativara-me, fizera-me
acreditar que podia ensinar-lhe tudo, que podia oferecer-lhe o mundo…
Pigarreei, obrigando-me a voltar à realidade.
Estaria no hotel? Talvez a tomar banho? Ou a chorar? A dormir? A comer? A
sentir a minha falta?
«Para com isso!», ordenei a mim mesmo e concentrei os olhos na minha
bonita companhia.
As coisas com a Sophia aconteceram sem serem planeadas. No início, depois
do que acontecera com a Noah, transformei-me em alguém que mal conseguia
manter uma conversa coerente com outra pessoa, tudo me irritava, estava
irascível, zangado com o mundo inteiro, ferido e sem querer relacionar-me com
nada nem ninguém.
Fechei-me no meu apartamento e deixei-me afundar em autocomiseração… O
telefone tocava, e eu ignorava as chamadas; o correio acumulava-se no aparador
da entrada sem que me desse ao trabalho de o abrir… Transformei-me numa
pessoa completamente autodestrutiva. Bebia até ficar quase inconsciente e cair
na cama, parti móveis, bati em coisas… Num par de vezes até dei cabo da mão.
Meti-me numa briga num bar, embora por sorte não tenha acabado com sangue
derramado. A minha mente divagava, imaginava coisas, resumia-se a um
redemoinho de ódio, tristeza e desilusão. Ninguém, nem sequer o Lion,
conseguiu chamar-me à razão ou ajudar-me; o meu pai veio ver-me, gritou
comigo, depois tentou conversar de forma mais civilizada, voltou a gritar-me e
a seguir desapareceu. Eu não queria ouvir ninguém, não me interessava…
Nestes momentos sentia uma dor insuportável no peito, sentia-me atraiçoado.
Até que um dia a Sophia apareceu no meu apartamento.
Sempre fora uma rapariga sensata, com a cabeça no lugar. Não vale a pena
mentir, ela gritou comigo, disse-me poucas e boas, não porque se importasse
comigo ou porque estivesse preocupada, mas porque o seu trabalho dependia de
mim, e eu mal punha os pés no escritório. Gritou-me que, se estava assim tão
mal, que me fosse embora para Nova Iorque. Atirou-me tantas coisas à cara,
estava tão furiosa com a minha atitude — segundo ela, imatura e irracional —,
que só me ocorreu uma forma de a fazer calar-se.
Agarrei-a pela cintura e encostei-a contra a parede. Ficámos a olhar um para o
outro, eu destroçado, ela confusa, e acabei por fazer aquilo que me apeteceu
naquele instante, o que o meu corpo precisava que eu fizesse e o que a minha
mente doentia sentiu que devia fazer para se vingar da Noah.
Fizemos sexo durante a noite inteira, sem parar, sem descanso nem tréguas, e
o melhor de tudo foi que, quando acabámos, a Sophia levantou-se, vestiu-se e
foi-se embora sem dizer nada.
No dia seguinte, fui trabalhar. Ela falou comigo como se nada tivesse
acontecido, como se continuássemos a ser os mesmos colegas de trabalho que se
suportavam simplesmente e que partilhavam o mesmo escritório. Eu agi da
mesma forma, como se não se tivesse passado nada, até que um dia ela se
levantou, fechou a porta do escritório, aproximou-se de mim, sentou-se no meu
colo e convenceu-me a repetir.
Que uma coisa fique bem clara: ambos sabíamos que aquilo não ia dar em
nada. A Sophia sabia como eu estava destroçado por causa da Noah, e ela
também só precisava de alguém que lhe aquecesse a cama de vez em quando.
Quando falámos sobre o assunto, permaneceu imperturbável e aceitou as
minhas condições: que era apenas sexo e que podíamos fazer o que nos desse na
real gana.
Via-me com outras, claro, e a Sophia também era livre de ter encontros com
outros homens, mas nunca falámos disso. Ela sabia as coisas que eu fazia e
parecia aceitar, eu não me importava com quem ela saía, com quem dormia ou
combinava ir tomar café. Mas tratava-a com o respeito que ela merecia. Era
minha amiga, a única que me ajudou, que me obrigou a levantar da cama e que
conseguiu que me concentrasse no trabalho.
Pouco depois de aceitar o emprego em Nova Iorque, o meu avô morreu, e o
resto é história.
Agora estávamos a jantar num restaurante bonito, ela a dizer-me que
precisava de falar comigo sobre um assunto, e eu só conseguia pensar que a
Noah estava na cidade, que morria de vontade de ir ao seu encontro e de fazer
amor com ela como só eu sabia, para lhe recordar quem enganara quem e o que
estava a perder.
Passei a mão pela testa e concentrei-me na Sophia.
— Tenho um favor para te pedir — disse-me então, depois de conversarmos
sobre alguns temas banais e, sobretudo, de coisas relacionadas com o trabalho.
A Sophia parecia nunca descansar, a sua ambição não tinha limites, e, ainda por
cima, agora o pai estava a candidatar-se às eleições de governador da Califórnia.
Era a rapariga que todos queriam e que todos pareciam conhecer. Não me
importava minimamente com isso, mas, quando começou a falar, tive de prestar
atenção ao que dizia: — Preciso que formalizemos a nossa relação.
Olhei para ela sem entender uma única palavra que saía da sua boca.
— Só pelas aparências, claro — esclareceu, levando o copo aos lábios. — O
meu pai está a exigir-me que aparentemos estabilidade, que formemos uma
frente unida. Ele não para de me apresentar tipos, filhos dos amigos dele que só
querem estar comigo porque sou filha do senador Riston Aiken. É horrível, não
o suporto.
— Espera, espera — disse, tentando entender o que acabara de me dizer. —
Estás a dizer que queres informar a imprensa de que estamos juntos? Como um
casal oficial e tudo o mais?
A Sophia assentiu e levou um ravióli à boca.
— Claro que podes continuar a levar a tua vida como quiseres… desde que
sejas discreto. Mas preciso de aparentar ter um namorado oficial. Eras capaz de
fazer isso por mim?
Noutro momento qualquer, ter-me-ia rido na cara dela, mas naquele dia,
depois de ter falado com a Noah, de a ter beijado no casamento da Jenna, de ter
visto o passado voltar a esmurrar-me em cheio da cara… o que a Sophia me
propunha nem parecia ser má ideia.
Ouvi a voz na minha cabeça a avisar-me das consequências de aceitar a
proposta da Sophia. Sabia que, se o fizesse, se confirmasse que namorava com
ela, se a imprensa publicasse a notícia de que estávamos juntos, a Noah sofreria
imenso… Aceitar a proposta faria de mim um autêntico imbecil, mas talvez
fosse esta a forma de nos fazer virar finalmente a página.

Voltei para casa por volta da uma da manhã. A Sophia perguntou-me se


queria dormir com ela no seu hotel — estava em Nova Iorque para resolver
alguns problemas da empresa em que eu já não trabalhava e só se ia embora no
dia seguinte —, mas recusei o convite; não estava com disposição.
Cheguei ao apartamento, que se encontrava iluminado apenas por algumas
luzes quentes de presença. Deixei as chaves em cima da mesa da cozinha e servi-
me de mais um copo.
Este apartamento pertencera a um amigo do meu pai, que, quando soubera
que eu ia mudar-me para Nova Iorque, mo oferecera a um preço que não podia
recusar. Queria começar do zero, num sítio que pudesse considerar só meu, e
não me apeteceu aceitar a oferta do meu pai de me instalar num apartamento
que tinha em Brooklyn — perto de vários escritórios espalhados por
Manhattan. Não queria recordar o que vivera naquela cidade quando era
criança.
Quando descobri que o meu pai enganara a minha mãe durante praticamente
todo o casamento de ambos, o ódio que sentia em relação a ela transformou-se
em algo diferente. Uma parte de mim compreendeu, mais ou menos, por que
motivo tudo correra mal, e odiei o meu pai por me fazer sentir pena dela.
Continuava a odiar a minha mãe, isso não mudara, mas aquela história toda
com a mãe da Noah fez-me repensar se esse ódio seria justificado.
Traições… Como podia culpar a minha mãe por ter perdido a cabeça depois
de também eu perder a minha por motivos bastante idênticos?
Nunca lhe perdoaria por me ter abandonado, isso não tinha qualquer
justificação possível, mas quem era eu para julgar as reações de uma pessoa
depois de passar por algo assim? Voltei a pensar na Noah… era difícil ver o
futuro que tinha planeado com alguém, todas as imagens que ainda não se
tinham concretizado esfumar-se mesmo à frente dos meus olhos.
Imaginei uma vida plena com ela, sabia que não seria uma relação fácil… Não
era parvo, a nossa relação não era idílica, mas os nossos problemas surgiam
sempre por causa de terceiros. Se alguém tivesse insinuado que a Noah me
poderia trair, teria posto as mãos no fogo por ela e chamado o acusador de
louco…
E, no entanto…
Acabei de beber o copo e fui para o meu quarto.
Entrei sem me dar ao trabalho de acender a luz e tirei a camisa, que deixei
caída ao acaso no chão. Amanhã a empregada haveria de a apanhar.
Voltei-me para a cama com a intenção de acender um dos candeeiros e fiquei
petrificado, literalmente transformado em pedra, quando vi quem estava entre
os meus lençóis.
O coração começou a bater-me loucamente no peito, tanto que quase me
magoava, quase a rebentar-me com os ouvidos. A minha respiração acelerou,
todo o meu corpo reagiu à imagem da Noah deitada na minha cama, a dormir,
foi como se tivesse voltado ao passado, quando regressava a casa e a tinha ali à
minha espera, com as pernas de pele suave enroscadas a uma almofada, os braços
por cima dos lençóis e o cabelo espalhado sobre o colchão…
Fechei os olhos por um segundo e quase pude sentir como seria deitar-me ao
lado dela, afastar os lençóis brancos do seu corpo e deixar que os meus dedos
acariciassem a sua pele… Voltava-a lentamente para mim, ela abria os olhos,
meio adormecida, mas sorria, feliz por me ver, com aquele brilho que que
conseguia sempre provocar de cada vez que lhe tocava. «Estava à tua espera»,
dizia-me ela, e eu sentia-me inflamado com todo aquele amor que julgara nunca
mais poder sentir. Punha-me em cima dela, afastava-lhe o cabelo louro com
cuidado e, devagarinho, pousava os lábios sobre os seus, inchados do sono,
suaves e ansiosos pelo meu toque. O meu braço baixava pelas suas costas,
colava-se à cova da sua coluna e levantava-a ligeiramente do colchão para colar o
meu corpo ao seu sem a esmagar. Beijava suavemente a parte de cima do seu
pescoço até chegar à orelha, a seguir inspirava o aroma da sua pele, um aroma
que não era frutado nem doce nem nada parecido com perfumes caros, era
simplesmente o aroma da Noah… só ela o tinha.
Abri os olhos e obriguei-me a ver a realidade. Quase desejei que tivesse sido
uma miragem vê-la ali na minha cama, entre os meus lençóis. Não podia
fraquejar, por mais que me ardessem as mãos de tanta vontade que tinha em
tocar-lhe, não ia ceder perante ela. Não fazia a menor ideia do que estava ali a
fazer, mas deixei que a raiva devorasse todos os outros sentimentos e saí do
quarto com passos pesados.
14
NOAH

Ouvi um ruído, e os meus olhos abriram-se quase sem me aperceber.


Inicialmente não percebi onde estava, mas o aroma que me rodeava
tranquilizou-me: estava em casa. Estava com o Nick.
Demorei alguns segundos a entender que esta última frase não fazia o menor
sentido… pelo menos não agora. Levantei-me daquela cama desconhecida e,
graças à luz débil que passava pela porta entreaberta, consegui olhar em redor.
Até que, com um nó no estômago, saí da cama e desci a escada até à sala. As
luzes estavam apagadas e só se viam algumas de presença, daquelas fracas que
impedem que tropecemos se nos levantarmos a meio da noite para ir beber
água. Avancei descalça até que o vi: estava sentado no sofá, a mesa de centro em
frente era de vidro, e tinha um copo e uma garrafa meio vazia; vi-o com os
cotovelos apoiados em cima dos joelhos e a cabeça enterrada entre as mãos.
Tinha sido certamente um golpe baixo para ele encontrar-me na sua cama,
como se não fosse nada do outro mundo, como se aquele apartamento fosse meu
e tivesse algum direito a dormir enquanto esperava por ele. Senti-me uma
intrusa.
Devo ter feito algum barulho ou então ele pressentiu simplesmente a minha
presença, porque voltou a cabeça devagar na minha direção. Tinha os olhos
brilhantes, e, ao ver que cerrava o maxilar com força, tive vontade de sair a
correr na direção oposta. Mas eu conhecia-o, conhecia o Nick o suficiente para
saber que, por baixo daquele ódio que parecia consumi-lo, o amor que sentia
por mim, ou que sentira um dia, ainda existia no seu coração, como existia no
meu, e estava apenas à espera do momento certo em que voltaríamos a amar-
nos.
— O que fazes aqui, Noah? — perguntou-me, e quase me desmoronei ali
mesmo ao ouvir como a sua voz soava destruída.
— Estou aqui por ti — respondi, encolhendo levemente os ombros. A minha
voz parecia um eco da sua. O Nicholas recostou-se no sofá e fechou os olhos
enquanto suspirava profundamente.
— Tens de ir embora… tens de sair da minha vida — disse, ainda sem olhar
para mim.
Inclinou-se com a intenção de encher o copo mais uma vez, mas não o queria
embriagado, não, precisava dele lúcido, lúcido para mim, porque queria que ele
entendesse o que ia dizer-lhe.
Acabei com o espaço que nos separava, agarrei na garrafa, os meus dedos a
roçar os dele enquanto o fazia, e arranquei-lha das mãos para a pousar em cima
da mesa, longe dele, de nós.
Ele levantou os olhos até os pousar em mim, e vi que estavam vermelhos, mas
não era só do álcool.
Estendi a mão com a intenção de lhe acariciar o cabelo. Meu Deus, precisava
de apagar aquela expressão de sofrimento do rosto dele, a dor que existia ali por
minha causa, mas ele agarrou-me no pulso antes de conseguir fazê-lo. Para mim
tanto fazia, porque a sua mão entrou em contacto com a minha pele, e isso foi o
suficiente para mim. A centelha, aquela centelha que se acendia sempre entre
nós os dois, a sensação do fogo, do desejo carnal puro, o mesmo desejo que
sentíamos desde o primeiro instante em que entrei na cozinha da sua antiga casa
e o vi a procurar qualquer coisa no frigorífico. Percebi desde esse momento que
algo meu deixou de me pertencer.
Ele hesitou durante uns segundos que me pareceram uma eternidade, mas
depois puxou-me, o meu corpo chocou contra o peito dele, e as mãos ajudaram-
me a sentar-me no seu colo, com os joelhos apoiados no sofá, ao lado das suas
coxas. As minhas mãos agarram-lhe a nuca, e as dele pararam na minha cintura.
Os nossos olhos encontraram-se na penumbra, e tive medo de continuar.
Hesitei, e ele também; era como se estivéssemos prestes a saltar de um
precipício sem saber se teríamos a sorte de cair na água ou a desgraça de cair
sobre a rocha, mas só descobriríamos depois de saltar.
Olhou-me durante mais um eterno segundo e a seguir colou a sua boca contra
a minha. Fê-lo tão bruscamente que a minha mente nem conseguiu processar o
que estava a acontecer… Os meus lábios abriram-se perante o impacto, e a
língua dele inundou o interior da minha boca, fazendo-me estremecer. Não
demorou a encontrar a minha língua, que se enroscou na sua sem pudor, como
se a nossa vida dependesse disso. As minhas mãos puxaram-lhe a nuca para se
aproximar de mim, e as mãos dele acariciaram-me as coxas, dos joelhos ao
traseiro, e ali ficaram a apertar-mo com força, conseguindo que os nossos corpos
chocassem e nos dessem prazer com os movimentos e toque; quase revirei os
olhos, tinha-se passado demasiado tempo… tempo de mais, em que não sentira
nada, absolutamente nada. Cheguei a pensar que o meu corpo morrera, que a
minha libido desaparecera depois da separação, mas como estava enganada!
Uma simples carícia, um simples roçar das mãos deste homem conseguiram
fazer que perdesse a cabeça.
Afastei-me da sua boca para conseguir respirar, e os lábios dele desenharam
um caminho de beijos pelo meu maxilar, o que me provocou calafrios. Ele
estava em tronco nu, e os meus dedos baixaram do pescoço para o acariciarem.
Todos e cada um dos seus malditos abdominais se retesaram sob o toque das
minhas unhas contra a sua pele.
O Nicholas soltou um grunhido gutural e afastou-se do meu pescoço,
procurando os meus olhos.
— O que queres de mim, Noah? — perguntou, segurando-me nas mãos e
afastando-as do seu corpo quase à força.
Olhei para o peito dele, para o suor que fazia brilhar a sua pele, com a tensão
que ambos sentíamos ao pensar que o que estava prestes a acontecer podia pôr
os nossos mundos de pernas para o ar… outra vez.
— Quero que… me faças esquecer… — pedi, com um nó na garganta —, só
durante alguns minutos… Faz de conta que me perdoaste.
Reparei que o peito dele subia e descia, acelerado, e também que a força com
que me segurava as mãos afrouxou. Soltei-as e voltei a enterrá-las no cabelo
dele, obrigando-o a concentrar-se em mim e não em tudo o que nos rodeava.
Desta vez fui eu quem pousou os lábios sobre os dele. Meu Deus, sabiam
maravilhosamente! Era do que tinha mais saudades, de o beijar, era viciada nos
seus beijos e precisava de mais, precisava de os sentir em todo o lado, era uma
necessidade quase dolorosa.
— Vou fazê-lo… — assegurou, desencostando as costas do sofá para se colar a
mim. Os nossos narizes quase se tocavam. — Vou esquecer-me durante alguns
minutos daquilo que fizeste… mas amanhã sais daqui, sais da minha vida e
deixas-me em paz.
O meu coração parou de bater, acho que parou mesmo, de verdade, mas
obriguei-me a ignorar este detalhe que ele evidenciara. Ia esquecer… Era o que
tinha dito, não era? Por agora, isso bastava. Amanhã enfrentaria o resto.
Assenti, apesar de saber que estava a mentir, mas não ia recusar a
oportunidade de poder estar com ele, em menos de meia hora conseguira fazer
com que me sentisse novamente viva, não podia renunciar a isso.
As suas mãos agarraram-me as coxas com força, e levantou-se do sofá. Rodeei-
lhe o pescoço com os braços e juntei os meus lábios aos seus. Sabiam tão bem!
Cheiravam tão bem! Cheirava a ele, ao meu Nick, à pessoa que amava
loucamente, quase com desespero.
Levou-me para o quarto e deitou-me no colchão quase com reverência, com
muito cuidado, como se tivesse medo de que eu desaparecesse. Ficou aos pés da
cama, a observar-me. Quando me apercebi, apoiei-me nos cotovelos para o
observar também. Como podia ser tão perfeito? Tinha o cabelo despenteado, os
lábios mais grossos depois dos meus beijos, a barba de dois dias que lhe ficava
terrivelmente bem. Arranhara-me a pele com ela, mas não queria saber; de
repente quis que me arranhasse noutras partes do corpo também. Estava a
tremer de desejo, desejo puro e carnal por aquele homem.
— Não vamos fazer sexo — sentenciou enquanto tirava o cinto das calças e o
deixava cair no chão. A surpresa deve ter transparecido no meu rosto, assim
como a desilusão, porque me sorriu, mas não como costumava sorrir, sorriu-me
sem afeto, luxúria ou amor, mas como quem explica alguma coisa óbvia a uma
menina de dez anos que acha adorável —, mas podemos fazer outras coisas.
Aproximou-se de mim e acomodou-se no meio das minhas pernas, pousou a
mão no meu estômago e fez pressão para que me deitasse para trás no colchão.
A seguir, inclinou-se sobre mim e puxou-me a saia até ma tirar e deixá-la cair
de qualquer maneira no chão. Afastou-me as pernas com o joelho, e as suas
mãos subiram por baixo da minha T-shirt, tirando-ma pela cabeça e fazendo-a
desaparecer.
Os seus olhos pousaram sobre o meu corpo durante um instante, sobre os
seios, tapados por um sutiã de renda cor-de-rosa que não era nada do outro
mundo, mas era confortável, ou pelo menos assim pensara naquela manhã
quando o vestira para sair e passear pela cidade. Franziu levemente o sobrolho, e
a palma da mão que ainda estava sobre o meu estômago moveu-se para as
minhas costas. Levantou-me suavemente até os lábios pousarem sobre o meu
umbigo.
— Estás mais magra — disse num sussurro que nem sequer registei.
A boca foi descendo até à parte superior da minha roupa interior. Enquanto
isso, as mãos acariciavam-me as pernas, de cima a baixo. Os seus olhos
procuraram os meus, e quase tive um colapso quando vi o desejo desmedido que
pareciam emitir. Desceu na cama, ajoelhou-se e tirou-me as cuecas com rapidez.
Senti uma certa trepidação. Não que tivesse vergonha, mas há muito tempo
que ninguém me tocava, há meses, e mais ainda desde que o Nick me tocara
assim. Mexi-me, um pouco inquieta, e ele pareceu perceber porque, apesar de a
sua respiração denunciar que estava morto de vontade de continuar, cravou o
olhar em mim durante um segundo, pedindo-me que me acalmasse. Foi só
durante um segundo, mas aquele era o Nick… quem me olhou naquele
segundo foi o Nick de antigamente. Fechei os olhos e guardei este momento,
vi-o na minha cabeça por um instante mais até que me acalmei.
— Nick…
— Chiu.
A sua boca foi percorrendo as minhas coxas, primeiro apenas com beijos, mas
depois senti os dentes dele na minha pele; na verdade, primeiro mordia-me
suavemente para a seguir passar a língua de forma sensual sobre a pele. Mexi-
me na cama, e a mão dele pressionou o meu estômago contra o colchão,
imobilizando-me.
— Por favor… — quase implorei, já sem a menor vergonha e contorcendo-
me sob as suas carícias.
Ignorou-me e continuou a beijar-me em todo o lado, menos no sítio que mais
atenção lhe exigia.
— Que queres, Noah? Diz-me, quero ouvir-te dizer o que queres.
Fechei os olhos com força e abanei a cabeça contra o colchão. Porquê, meu
Deus?
Senti que a boca dele roçava a minha pele mas sem chegar a tocar-lhe e mexi-
me com frustração.
— Diz, Noah, diz o que queres, e eu dou-to.
Não me sentia capaz de o dizer, pelo menos em voz alta e ele sabia disso. Era
esta a sua forma de me castigar? Abri os olhos e vi-o ali, à espera.
— Beija-me — pedi, num sussurro entrecortado.
Ele levantou-se e pôs-se por cima de mim; os lábios chocaram contra os meus,
beijou-me com brusquidão, e eu gemi com frustração. Quando as suas ancas
fizeram pressão sobre as minhas, senti uns segundos de alívio, mas uns segundos
apenas, porque, assim que se apercebeu, o Nick levantou-se e apoiou-se sobre as
mãos.
— Isto não é como antes, Noah — disse, segurando-me no queixo. — Tu já
não és a doce Noah inexperiente a quem é preciso ensinar com cuidado o que
deve fazer…
Fitei os seus olhos e vi que a raiva que ele tinha tão bem guardada começava a
escapar-se. Não gostei do que vi, por isso levantei-me um pouco mais até que os
meus lábios encontraram os seus. A seguir, puxei rapidamente os seus ombros
para os colar ao meu corpo, para voltar a senti-lo preso a mim. As minhas
pernas envolveram a sua cintura, e vi que sibilava. De repente, queria que tudo
fosse mais rápido, não queria que houvesse tempo para dúvidas ou
recriminações.
A minha mão segurou nas calças de ganga dele, e vi que o Nicholas perdia a
batalha. Tinha-me esquecido da sensação de o ter nas minhas mãos, de o ver
perder o controlo, de como a sua respiração se agitava com as minhas carícias.
Queria voltar a sentir aquela ligação, que voltássemos a mover-nos juntos, que
déssemos prazer um ao outro sem jogos, unindo-nos simplesmente num só e
deixando que tudo o resto seguisse o seu curso.
Rebolámos sobre o colchão e fiquei em cima dele. Senti-me um pouco
insegura nesta posição, mas não ia deixar que ele percebesse. Com as mãos
trémulas, puxei-lhe as calças de ganga para baixo e, ao perceber que não
conseguia tirá-las, ele ajudou-me. Segundos depois, estava completamente nu, e
eu só tinha o sutiã. Ele voltou a rebolar e encurralou-me debaixo do seu corpo.
— Já te disse que não vamos fazer sexo — esclareceu, segurando-me as mãos
sobre a cabeça.
— Raios, Nicholas… — protestei frustrada, precisava de que me tocasse, não
havia nada no mundo de que necessitasse mais do que do contacto com ele.
Um dos seus dedos entrou em mim sem aviso prévio. Fiz um esgar
involuntário. Para minha surpresa, e para a dele também, senti dor.
— Tu não…?
Corei de vergonha… O que ia responder-lhe? Que desde que aquilo
acontecera nunca mais deixara que ninguém, muito menos outro rapaz, olhasse
para mim duas vezes? Que o meu apetite sexual se evaporara como água no
deserto? Que desde a última vez em que fizemos amor na sua casa, quando fiz
desenhos sobre a sua pele, não voltei a sentir absolutamente nada?
Nem pensar, não era assim tão patética. Mas o meu corpo denunciou-me.
Alguma coisa mudou na sua expressão, não sei se foi alívio ou o quê, mas não
se fez mais de rogado, voltou a ajoelhar-se ao lado da cama, puxou-me, e a sua
língua começou a desenhar círculos sobre a parte mais sensível do meu corpo.
Gemi em voz alta e isto incentivou-o a continuar.
Parecia tão necessitado quanto eu. Voltou a introduzir o dedo em mim, desta
feita com mais cuidado, e, em vez de sentir dor, senti ­alívio; a pressão começou
a ser mais forte, a sua boca continuava a trabalhar, a mão subiu pelo meu
estômago até se colocar por baixo do sutiã e me apertar o peito com força.
Era tudo demasiado, demasiado tempo sem fazer aquilo, demasiadas emoções
contidas, demasiados estímulos… As minhas costas separaram-se da cama e
gritei sem conseguir controlar-me. O orgasmo arrasou com tudo à minha volta,
levou-me ao sétimo céu e incendiou-me como o fogo do Inferno.
O Nicholas continuou a acariciar-me até o seu toque me magoar e afastou-se
para me deixar recuperar. E eu recuperei, depressa. Precisava de mais, e ele
também, já que começara a acariciar-se com a mão direita, os olhos cravados nos
meus e a expressão dura de quem quer ceder, mas não pode.
Não íamos fazer amor aquela noite, mas não planeava deixar as coisas por ali.
Por isso, levantei-me, puxei-o e obriguei-o a sentar-se. A sua respiração estava
descontrolada, e não me importei de, dessa vez, tomar as rédeas.
Afastei-me dele e ajoelhei-me entre as suas pernas, sem nunca deixar de olhar
para ele.
— O que vais fazer? — perguntou-me com a voz rouca, já não havia como
voltar atrás, tínhamos entrado neste jogo de paixão, de amor e de ódio, tudo ao
mesmo tempo, e não íamos sair dele com facilidade.
Não lhe respondi e comecei a fazer o que nunca fizera antes.
Nem fazia ideia se estava a fazê-lo bem, mas ele parecia gostar. Abri os olhos e
procurei o olhar dele. Isto deixou-o enlouquecido. A seguir, a sua mão agarrou-
me no cabelo com cuidado e começou a mover-se.
— Porra…
Não me deixou chegar ao fim. Afastou-me dele, agarrou em mim e deitou-me
na cama. Esfregou o corpo no meu, mas depois agarrou no meu sexo e eu fiz o
mesmo com o dele. Os olhos arderam sobre o meu corpo, e percebi que o
segundo orgasmo ameaçava fazer-me perder os sentidos.
Atingimo-lo os dois ao mesmo tempo com os olhos fixos um no outro, quase
sem nos tocarmos, apenas a olharmo-nos enquanto nos questionávamos como
tínhamos chegado àquele ponto.
*
Adormeci na cama do Nicholas, não abraçada a ele, mas a uma simples
almofada. Quando acabou, ele levantou-se, meteu-se na casa de banho, tomou
um duche e saiu do quarto.
Presumi que os minutos de perdão tinham chegado ao fim, e a verdade é que
não tinha forças para pensar em tudo aquilo. Os meus sentimentos estavam à
flor da pele, só queria fechar os olhos, fechá-los simplesmente e não analisar o
que acontecera ali, porque, se o fizesse, iria aperceber-me de que tudo estivera
envolto num véu de frieza, não tinha existido amor, não, tinha sido apenas um
alívio carnal; permitimos que os nossos sentimentos e emoções se escondessem
num recanto inalcançável das nossas almas para deixar que o desejo mais
primitivo ocupasse o seu lugar.
Teria gostado de que o Nicholas me abraçasse com força, que me apertasse
entre os seus braços e me dissesse que ia correr tudo bem; porém, ele foi-se
embora, e eu não tive forças para ir atrás dele.
Permiti que o sono e o esgotamento assumissem o controlo, fechei os olhos e
deixei-me levar.
15
NICK

Arrependi-me no mesmíssimo instante em que saí do quarto. Tinha


sucumbido, caíra em tentação, voltara a morder a maçã proibida, e tinha a
certeza de que as consequências seriam terríveis.
Doía-me o coração, se é que isso era possível. Era uma dor tão forte e tão
profunda que tive de me obrigar a ficar longe dela. Fechei-me no escritório,
tentei de tudo para fazer de conta que a Noah não estava na minha cama,
procurei esquecer-me do corpo nu dela, das suas mãos a acariciar-me, da boca a
dar-me prazer… fizera-o tão bem, tão bem que por momentos senti raiva.
Já o tinha feito a outros?
Este pensamento deixou-me fora de mim. Tanto me dava que na cama me
tivesse parecido a mesma Noah de sempre… A mesma Noah pura que eu
conhecera e que tinha ido para a cama com outro enquanto estava comigo.
Quem sabia se não o fizera com outros estando nós separados?
A Noah nas mãos de outro homem… raios, precisava de sair daqui, precisava
de me esquecer da sensação de a ter por baixo de mim, da suavidade da sua pele,
de como os seus beijos eram doces.
O seu aroma ainda me perseguia, mesmo depois de ter tomado um duche. De
repente, o apartamento parecia-me pequeno, e o meu corpo só queria entrar
naquele quarto para terminar o que deixara a meio.
Vesti umas calças de fato de treino, uma camisola Nike branca e as sapatilhas
de correr e saí para o Central Park. Eram só cinco da manhã, mas já havia gente
a fazer desporto no parque. Não me detive muito tempo, nem sequer aqueci,
limitei-me a correr e a correr, enquanto desejava com todas as minhas forças
que, quando chegasse a casa, a Noah já se tivesse ido embora, que fizesse o que
lhe pedi e desaparecesse da minha vida.
Queria que o fizesse? Sim. Era a única coisa que tinha bem claro na minha
cabeça. Estar com ela magoava-me demasiado, e não me via com forças para
perdoar o que ela fizera; simplesmente não era capaz.
Cheguei a casa duas horas depois de ter saído, e tudo parecia estar igual.
Entrei no meu quarto e voltei a encontrá-la entre os meus lençóis.
Estava a dormir de barriga para baixo, com o lençol a tapar-lhe apenas metade
do corpo; as costas despidas chamavam por mim, gritavam-me que as
acariciasse até a acordar. Ia beijá-la, fazer amor com ela devagar, e depois íamos
tomar o pequeno-almoço a uma das melhores confeitarias da cidade. Ia
comprar-lhe chocolates, mostrar-lhe todos os recantos que aquela cidade parecia
esconder e a seguir, quando já estivesse farta de fazer turismo, íamos voltar para
aquele quarto, eu ia afundar-me no meio das suas pernas e faria com que
gritasse o meu nome até ficar sem fôlego.
Tive de me esbofetear para regressar à realidade: nada disso ia acontecer, tudo
acabara naquela noite em que eu descobrira que ela estivera nos braços de outro
homem.
Fui para a casa de banho e tomei um duche frio. Ao sair, apenas com umas
calças de pijama cinzentas vestidas, encontrei-a sentada na cama, com as costas
contra a cabeceira e o lençol bem seguro nas mãos, tapando qualquer indício de
nudez. Os seus olhos observavam-me, hesitantes, como se não soubesse o que
devia fazer. Agachei-me e agarrei na T-shirt branca que atirara para o chão.
Atirei-lha.
— Veste-te — ordenei, tentando soar tranquilo, tentando controlar-me.
A Noah pareceu hesitar, e, ao olhar para o rosto dela, para o cabelo
despenteado e para a boca que ansiava morder com força, tive de me obrigar a
sair do quarto. Fui diretamente para a cozinha, peguei no telemóvel e liguei ao
Steve. Ele mudara-se para a cidade e vivia num apartamento não muito longe
dali. O meu pai insistira que de agora em diante ele trabalhasse para mim, e eu
fiquei contente por ter alguém de confiança como guarda-costas.
— Preciso que a leves daqui — disse-lhe, reparando no desespero da minha
voz.
O Steve suspirou do outro lado da linha, e percebi que faria o que lhe pedia.
Ele devia-mo. Para começar, nem a devia ter trazido até ao meu apartamento.
Desliguei o telemóvel, fiz café, e um minuto depois ela apareceu na cozinha.
Não se tinha vestido, pelo menos não com a sua roupa. Tinha a minha T-shirt
branca, que lhe chegava acima dos joelhos, mas parecia ter passado pela casa de
banho, porque o cabelo já não estava tão despenteado e a cara via-se fresca e
limpa, sem vestígios dos beijos da noite anterior.
— Liguei ao Steve para te vir buscar — comuniquei, enquanto me servia de
uma chávena de café. Estava a tentar falar com calma, como se fosse o esperado
de mim, como se mandar embora a pessoa por quem estivera apaixonado fosse a
coisa mais normal do mundo.
— Não quero ir embora — respondeu num sussurro. Olhei para ela, para a
forma como mudara desde a nossa separação. Estava tão magra… Perdera tanto
peso que à noite, quando olhei para o seu corpo, tive medo de a partir. Já não
era a Noah que eu recordava, a miúda corajosa que me fazia frente a todo o
instante, que fazia que a minha vida fosse muito mais interessante.
As discussões com ela sempre tinham sido brutais, e agora… parecia que
tinha à minha frente uma pequena corça assustada, e isso ainda me irritava
mais.
— O que queres, Noah? — perguntei, com um tom de voz mais frio. Não
queria chegar ao ponto de perder o controlo sobre mim mesmo e deixar sair
toda a raiva que sabia que ainda tinha acumulada, mas precisava de a fazer
entender que nada ia mudar entre nós. — Não há nada que possas dizer ou fazer
para alterar o que aconteceu. Esta noite foi muito boa, mas o que fizemos, posso
fazê-lo com outra qualquer, não me interessa continuar a jogar este jogo
contigo.
— Tu ainda estás apaixonado por mim — afirmou, dando um passo em
frente. Tinha a intenção de me tocar, e retrocedi enquanto sentia asco de mim
mesmo, por ter deixado que as coisas se descontrolassem durante a noite. Não
queria dar-lhe falsas esperanças, não tinha sido a minha intenção.
— Eu estive apaixonado por ti — pronunciei com toda a calma. — Estive,
Noah, passado. Traíste-me, e até podem existir pessoas que conseguem perdoar
aquilo que tu fizeste, mas acho que me conheces o suficiente para saber que eu
não sou como os outros.
— E eu sou? — respondeu, abraçando o próprio corpo de forma quase
inconsciente. — Não podes fingir que o que aconteceu há algumas horas não te
afetou tanto quanto a mim… Vi-o nos teus olhos, Nicholas, vi-o ontem à noite
e vi-o no casamento da Jenna: continuas a sentir alguma coisa por mim,
continuas…
— O que queres que te diga, Noah? — perguntei, furioso. Na verdade, não
estava furioso com ela, mas comigo, por não ter conseguido conter-me, por ter
caído, não uma mas duas vezes, estava furioso por não conseguir esconder que,
apesar de todos os meus esforços, ainda sentia alguma coisa por esta rapariga. —
Parece-me evidente que sabes jogar este jogo melhor do que eu.
Ela pestanejou sem entender.
— Não estou a jogar jogo nenhum, a única coisa que quero…
Não acabou a frase, mas também não era preciso, porque sabia perfeitamente
o que ela queria de mim.
— É melhor ires-te embora — disse-lhe alguns segundos depois. Peguei na
chávena que tinha à minha frente e voltei-me para a pôr no lava-louça, uma
desculpa para não ter de continuar a olhar para ela.
— Como é que consegues? — perguntou então, e o seu tom de voz fez-me
voltar para olhar novamente para ela. Uma onda de ira cruzou os seus olhos cor
de mel. — Explica-me como consegues continuar com a tua vida, porque eu
não consigo!
Aquilo era ridículo. Eu não tinha vida, a vida que tinha consistia num
redemoinho incessante de trabalho no qual o amor não tinha espaço para existir.
Era feliz assim, sem toda a carga sentimental. O amor era uma treta, dera tudo
por amor, e agora via-se bem onde isso me tinha levado.
Sabia que, se quisesse afastá-la de mim de uma vez por todas, se quisesse fazê-
la entender que nada ia mudar, se quisesse mesmo vê-la sair pela porta e não
voltar a magoar-me, teria de ser duro, teria de esfregar sal na ferida.
Olhei fixamente para ela, e algo que até então me passara despercebido
chamou a minha atenção: ela tinha o fio de prata que eu lhe oferecera quando
fizera dezoito anos.
Aproximei-me dela sem desviar os olhos. A minha mão foi até à sua nuca e
encontrei o fecho do fio quase sem esforço. A Noah, perdida no meu olhar, não
percebeu o que eu estava a fazer até que dei um passo atrás com o fio na mão e o
guardei no bolso de trás das calças.
— Devolve-me isso — pediu, incrédula, sem entender muito bem o que eu
acabara de fazer.
Cerrei o maxilar com força.
— Não podes continuar a agarrar-te a algo que já não existe, caramba.
— Devolve-me o fio, Nicholas — insistiu entre dentes.
— Porquê? — perguntei então, elevando o tom de voz e fazendo com que se
sobressaltasse. — Porque diabo continuas a usá-lo? Queres invocar recordações?
Queres minar a minha sensibilidade? Porque não estás a conseguir.
A Noah pestanejou várias vezes, surpreendida com as minhas palavras, mas
depois empurrou-me o peito com força.
— Queres saber porque o uso? — gritou furiosa. — Porque me recorda de ti,
só isso — disse. — Não gostas de o ouvir? Pois é a maldita verdade, ouviste?
Tenho saudades tuas!
Não queria ouvir a verdade, pelo menos não esta, não queria sentir-me
culpado, não queria admitir em voz alta que também tinha saudades dela…
Caramba, nem queria admitir para mim mesmo que me doía tanto quanto a ela
estar a tirar-lhe algo que lhe dera para que me tivesse sempre consigo, um gesto
com o qual quis demonstrar quanto a amava.
Precisava de acabar com aquilo de uma vez por todas.
— Estou com uma pessoa — anunciei, cravando os meus olhos nos dela.
A Noah ficou petrificada onde estava, a ira de há pouco abandonou os seus
olhos profundos enquanto assimilava lentamente as minhas palavras. Pareceu
ficar perdida durante alguns segundos, mas depois conseguiu encontrar a voz
para voltar a falar.
— O que… o que queres dizer com isso?
Fechei os olhos e passei a mão pela cara com fastio. Tinha mesmo de fazer
isto? Era necessário? Ainda era preciso magoarmo-nos mais um ao outro?
Sim, era.
— Estou numa relação, Noah, numa relação com a Sophia.
As minhas palavras pareceram golpear-lhe o peito como se tivesse disparado
diretamente para o seu coração. Os olhos arregalaram-se ao ouvir aquele nome,
e olhou para mim como se a tivesse traído, como se tivesse finalmente acabado
com o engano.
Sentia um formigueiro nas mãos com a vontade que me invadiu de a abraçar
contra o peito e de lhe dizer que era mentira, mas não o podia fazer, tinha de
acabar com aquilo, e o melhor era fazê-lo depressa, sem deixar espaço para
dúvidas.
Ela baixou os olhos para o chão e deixou-os ficar ali pousados, entre os dois. Lá
fora, o dia amanhecia, e os primeiros raios de luz inundavam o apartamento,
levando consigo a obscuridade das mentiras e as sombras do que fizemos poucas
horas antes. Estava dito, não havia como voltar atrás. Quando olhou novamente
para mim, percebi que a deixara dilacerada.
— Sempre foi ela, não é verdade? — A voz quebrou-se três vezes… e o meu
coração outras tantas. Senti raiva ao ver a facilidade com que acreditava na
minha mentira. Demonstrara assim tão mal quanto a tinha amado? Era assim
tão fácil acreditar nisto e tão difícil pensar que para mim não existia mais
ninguém além dela?
Apertei os punhos com força.
— Sim — disse, alto e bom som. — Apaixonei-me pela Sophia assim que a
conheci, desde o primeiro instante em que pus os olhos no rosto dela; é uma
mulher bonita, inteligente, partilhamos os mesmos interesses e ambições.
Lamento, Noah, mas com ela tudo é mais fácil. Não há drama, não há
problemas. A Sophia é uma mulher, não uma miúda.
O sarcasmo era tão evidente… bem, se era evidente, qualquer pessoa que me
ouvisse teria percebido.
Mas, pelos vistos, não a Noah. Comprimiu os lábios com força e pestanejou
para limpar os olhos e livrar-se das lágrimas.
— Este tempo todo… — respondeu, dando um passo na minha direção,
como se quisesse empurrar-me. Não conseguiu, foi mais uma tentativa débil de
me chamar à razão. Agora que penso nisto e recordo aquela manhã, acho que foi
neste instante que acabámos realmente o que tínhamos começado: ambos
quebrados, ambos destroçados… e a única forma de o resolver tinha sido
descartada.
— É melhor ires-te embora — acrescentei, com as poucas forças que ainda me
restavam.
Nem sequer olhou para mim, contornou o meu corpo, afastou-se e
desapareceu para o quarto.
Depois disto, só me certifiquei de que o Steve a deixara no hotel.
PARTE DOIS

Superação… ou algo parecido


16
NOAH

Podia dizer-se que fui tonta, estúpida… ou melhor, que a pouca auto­estima que
me restava já não era suficiente para me ajudar a seguir em frente. Porém, as
palavras do Nick atingiram-me bem fundo. Acreditei nelas, assim, sem mais
nem menos.
Depois da minha estada em Nova Iorque, em que não saí do meu quarto de
hotel até ao dia em que tive de ir para o aeroporto, regressei ao meu
apartamento a sentir-me a pessoa mais estúpida e infeliz à face da Terra.
O Nicholas e a Sophia… a Sophia e o Nick. Bolas, como me doía só de pensar
que me tinha mentido durante tanto tempo. Eu não era parva, o Nicholas
amou-me, disso não tinha dúvidas, nem o melhor ator do país teria conseguido
fingir o que ele sentiu por mim, mas era fácil imaginá-lo a apaixonar-se por ela.
Cheguei a Los Angeles destroçada, sim, mas também subitamente curada.
Durante o último ano em que não vi o Nicholas, até ao casamento da Jenna,
acalentei esperanças, permiti-me acreditar que, se nos voltássemos a ver, ele não
ia conseguir continuar a ignorar o que sentia por mim. Agarrei-me a um
simples sonho e agora percebia que não me restava lugar algum onde me
agarrar.
Quando entrei no meu apartamento, vi que tinha uma chamada perdida da
minha mãe. Devia querer saber se eu chegara bem e, apesar de eu ter a certeza
de que não se atreveria a perguntar, queria certamente certificar-se de que o
meu reencontro com o Nick depois de tanto tempo não voltara a dilacerar-me o
coração.
Recuperar a relação com a minha mãe não fora fácil. Nos meses a seguir à
separação, não tive de enfrentar apenas o facto de o Nick se ter ido embora e me
ter deixado mas também toda a situação familiar desconfortável. Naquela noite,
na noite do aniversário dos Leisters, descobri coisas que mudaram a minha
forma de encarar as outras pessoas, principalmente a minha mãe, coisas que até
me fizeram odiá-la com todas as minhas forças.
Voltar a falar com ela foi difícil, no início nem a queria ver, recusei-me
terminantemente a deixá-la entrar no meu apartamento. Se não tivesse sido pelo
apoio da Jenna, não sei como teria saído daquele poço sem fundo onde caí. Um
par de meses depois de o Nick se ter ido embora para Nova Iorque, decidi
atender o telefone à minha mãe e, ao longo de conversas muito demoradas,
acabou por me explicar a sua versão da história. Contou-me que a sua relação
com o William começou quase sem querer; naquela altura, ela trabalhava num
hotel, eu tinha apenas seis anos, e as coisas com o meu pai já começavam a
desmoronar-se. Um dia, pediram-lhe que fosse levar a comida a um dos
hóspedes, algo que não era da sua competência, mas uma das empregadas estava
doente, e a minha mãe teve de a substituir. O hóspede era um William, o
William Leister, com menos treze anos, com o mundo aos seus pés, rico, bonito
e atraente; bastava olhar para o Nick para entender o que a minha mãe viu no
William. Ela tinha apenas vinte e quatro anos, nunca na vida estivera com outra
pessoa a não ser com o meu pai, de quem engravidara ainda muito jovem; não
pudera aproveitar a sua juventude, tivera de ser responsável desde o instante em
que percebera que ia ter um bebé. Quando o William começou a cortejá-la, o
mundo da minha mãe ficou às avessas, nunca ninguém a tratara assim, nunca
lhe haviam dito coisas tão bonitas, nunca ninguém lhe oferecera flores… O meu
pai era um imbecil, sempre foi, mesmo antes de perder completamente o juízo.
A partir de então, os dois tiveram um caso amoroso, mas o William só soube
da minha existência e da do meu pai seis anos depois. A relação dos dois era
extraconjugal, mas o William pensava que só ele era casado. Viam-se muito de
vez em quando, apenas quando ele viajava até ao Canadá; os seus encontros
eram praticamente só… bem, conseguem imaginar como eram.
Na noite do Dia D, quando ligaram à minha mãe para lhe dizer que eu estava
no hospital, quase a morrer, foi a mesma noite em que o William descobriu
tudo o que a minha mãe lhe escondera. As nódoas negras, disfarçava-as com
maquilhagem, o meu pai nunca lhe batia no rosto, pelo menos tentava não
bater; isto para que ninguém descobrisse o que se passava na nossa casa, e a
minha mãe pedia sempre ao William que apagasse as luzes todas.
Foi um choque para o William, nem em sonhos podia imaginar uma coisa
daquelas, que a mulher que o deixava louco, que desestabilizara o seu mundo, a
mulher com quem queria tudo, tinha uma filha e era casada, ainda por cima
com um homem imbecil que lhe batia…
A partir dali, tudo se complicou. A minha mãe perdeu a minha guarda, e o
sentimento de culpa reduziu-a a um estado lastimoso; os maus-tratos que sofria
às mãos do meu pai e o facto de já não a deixarem cuidar de mim… Acabou
com tudo, com o William, com o mundo, e entregou-se à bebida, a tal ponto
que teve de se submeter a uma desintoxicação, paga pelo William. Depois de
meses em tratamento, meses esses que passei num lar de acolhimento,
deixaram-na voltar a ver-me.
A minha mãe não quis ver o William de novo, nunca mais, disse para si
mesma, iria cometer o mesmo erro. A partir desse momento, decidiu que ia
viver por e para mim.
— Nunca consegui perdoar-me pelo que aconteceu naquela noite, Noah —
confessou-me com a voz estrangulada. — O teu pai nunca te tinha encostado
um dedo, e eu… eu fui estúpida, deixei-me cegar pelo amor que sentia pelo
Will, que naquela altura era a única pessoa, além de ti, que me fazia continuar a
viver. Víamo-nos muito poucas vezes e, quando isso acontecia, eu ficava tão
feliz, sentia-me tão especial… tão viva. O William só ia estar na cidade aquela
noite, e eu precisava de o ver… precisava quase tanto dele como de ar para- ­
respirar.
Naquele dia segurei o telefone contra a orelha e não consegui deixar de pensar
que o que a minha mãe me estava a contar era o mesmo que eu sentira pelo
Nick. Compreendi-a, compreendi, pelo menos, a necessidade de escapar e tive a
noção de que também não podia condená-la eternamente: ela estivera sempre
presente para mim, sacrificara-se para eu poder estudar, para que eu pudesse ter
uma vida melhor.
Acabei por a perdoar, tive de o fazer, era a minha mãe. Não que a relação
tivesse melhorado até ao ponto em que se encontrava antes, mas pelo menos
voltei a casa, almoçámos juntas e chorei… chorei bastante, enquanto ela me
abraçava e me dizia que lamentava e que também lamentava tudo o que
acontecera com o Nick. Disse a mim mesma que o meu amor com o Nicholas
fora real, a vida podia ter-nos separado com os seus problemas e falta de
confiança, mas o nosso amor fora real.
Depois de deixar a mala em cima da cama, levei a mão ao pescoço para tocar
no fio que me servira de âncora durante este tempo todo, mas, ao lembrar-me de
que já não o tinha, deixei cair a mão com pesar.
Tinha de seguir em frente: afinal, ele já o fizera.
Os meses seguintes foram melhores do que esperava. A faculdade, as aulas e o
trabalho deram-me a oportunidade de me concentrar noutras coisas. Não voltei
a saber nada do Nick, pelo menos não em primeira mão, mas a notícia de que
Nicholas Leister namorava com a filha do Senador Aiken não demorou muito a
ocupar páginas em alguns jornais.
Vê-los juntos nas fotografias, de mãos dadas, magoou-me. Como podia não
magoar? Mas também me ajudou a transformar a minha tristeza em rancor e
num distanciamento frio. Disse a mim mesma que era melhor assim, que não
me importava minimamente… claro que estava a tentar enganar-me, mas
ajudou-me a enfrentar os dias, as semanas. Assim, tudo era mais fácil.
Quando dei por ela, o feriado de Ação de Graças estava ao virar da esquina, e,
depois de pensar muito no assunto e de ter deixado a minha mãe pendurada no
ano anterior, disse-lhe que ia a casa. Tinha de sair no dia seguinte para a casa do
William, que ficava a pouco mais de uma hora de viagem, hora essa que passaria
a ouvir música e a fazer contas para determinar o que devia pagar no fim do mês
e como me sobraria dinheiro para poder comprar o livro novo para a cadeira de
Direito. Por sorte, o apartamento estava pago. Tinha-me recusado a que o
William continuasse a pagar-me a renda e até comecei a procurar outro sítio
para viver, mas a senhoria disse-me que o ano estava todo pago: a Briar, ou
melhor, os pais dela, tinham liquidado os dois primeiros anos e, quando ela se
fora embora, não pediram a devolução do dinheiro, por isso pude ficar no lugar
dela, e pouco depois chegou uma nova companheira de casa. Embora a questão
do apartamento estivesse resolvida por enquanto, o meu dinheiro mal chegava
até ao fim do mês. Tinha conseguido arranjar emprego na cafetaria do campus,
mas dois dias antes o meu chefe tinha-me avisado de que não ia renovar o meu
contrato. Abrira outro bar duas ruas à frente, e tínhamos perdido muitos
clientes, por isso ele tinha de reduzir o pessoal, e eu fora a última a ser
contratada.
Assim sendo, ia ter de começar a mexer-me, e depressa.
Como ia passar o fim de semana a casa da minha mãe e do Will, tirei a
pequena mala de viagem do armário e fui colocando roupa lá dentro, meio
distraída. Também não ia precisar de grandes fatiotas e, se fosse preciso alguma
coisa mais especial, usava no que tinha no roupeiro lá de casa. Meti os livros de
Direito na mala: o exame era logo depois do feriado e ia ter de estudar, com
grande pena minha. Detestava aquela cadeira, não sabia se era porque me fazia
lembrar do Nicholas ou simplesmente porque memorizar leis não era a minha
praia, mas, meu Deus, ficava com um humor de cão quando tinha de estudar
para ela! Era uma das cadeiras obrigatórias do curso e centrava-se nos direitos de
autor, de imagem e essas coisas; ansiava pelo dia em que pudesse esquecer estas
patetices que facilmente se encontravam no Google se um dia me ­fizessem falta.
Como não voltara a usar a mala desde que tinha ido aos Hamptons para o
casamento da Jenna, não estranhei encontrar algumas coisas ainda lá guardadas,
como uma escova de dentes que pensei que tinha perdido, umas cuecas de renda
preta, a minha máscara de pestanas resistente à água e, para minha surpresa, um
cartão com o nome Lincoln Baxwell. No cartão dizia que era advogado,
publicitário e responsável por comunidades.
Lembrava-me dele, era um dos amigos da Jenna que estava no casamento e
fora bastante simpático comigo. Se bem me lembrava, tinha-me dado o seu
cartão para o caso de eu querer trabalhar na área. Oh, céus, mal podia acreditar
nisto! Esquecera-me completamente da sua oferta, sobretudo porque o Nicholas
se aproximara de nós e fizera um comentário desagradável qualquer, obrigando-
me a afastar-me de ambos.
Não fazia a menor ideia do tipo de trabalho que ele podia oferecer a uma
estudante universitária de dezanove anos como eu, mas não perdia nada em
tentar. Olhei para o relógio de pulso e percebi que era demasiado tarde para lhe
ligar, por isso decidi que o faria na manhã seguinte, quando fosse a caminho da
casa do Will, e, se o mundo não me detestava tanto quanto parecia, talvez até
arranjasse um emprego mais depressa do que imaginara.

Na manhã seguinte estava bastante frio, e o sistema de aquecimento do meu


carro não era nada do outro mundo. A minha mãe insistira muito para que
voltasse a usar o meu Audi, mas não me sentia à vontade com a ideia. Ela
insistia que tinha sido um presente, que o carro era meu e que se não o usasse
estava só a ser demasiado orgulhosa. Talvez até tivesse razão, o meu pequeno
carrinho estava quase a dar as últimas, e não havia a menor hipótese de poder
comprar um novo, por isso ia aproveitar esta viagem para fazer a troca. Afinal,
era verdade que tinha sido um presente e que o carro estava parado ali em casa,
sem ninguém pegar nele — e, caramba, era um Audi.
Quando estava na autoestrada e achei que a hora era razoável, decidi ligar ao
Lincoln Baxwell, mas estava nervosa. O telemóvel tocou algumas vezes, e,
quando estava prestes a desligar, uma mulher atendeu e deu-me os bons-dias.
— Bom dia, gostaria de falar com Lincoln Baxwell. O meu nome é Noah
Morgan, sou enteada de William Leister — disse com um pouco de timidez.
Não costumava usar o nome do Will para me abrir portas, mas não estava em
condições de me armar em esquisita.
— Um momento, por favor.
Alguns minutos depois, o senhor Baxwell atendeu-me.
— Lamento a demora. Noah, certo? — Desculpou-se o Baxwell de forma
amistosa e educada, um comportamento que condizia com a sua atitude na
festa. Tinha vergonha de lhe dizer o que motivava o meu telefonema, mas,
enfim, ele tinha-me entregado o seu cartão de visita por algum motivo, não era?
— Bom dia, senhor Baxwell. Sim, sou a Noah Morgan, nós conhecemo-nos…
— No casamento da Jenna Tavish, sim, sim, lembro-me de ti, és a meia-irmã
do Nicholas Leister, não é?
Fechei os olhos por um instante.
— Sim, exatamente — afirmei um pouco contrariada.
«Vá, Noah, acalma-te.»
— Em que posso ajudar-te?
Chegara a altura de mendigar, por assim dizer.
— Bem, estou a ligar-lhe porque no dia do casamento, quando conversámos,
o projeto que tinha em mente me pareceu muito interessante… LN… — aqui
duvidei um pouco.
— LRB — esclareceu ele amavelmente.
Raios me partam, podia pelo menos ter decorado o nome do projeto, ele devia
pensar que eu era estúpida.
— Sim, desculpe, LRB. A verdade é que adoraria poder aceitar a sua oferta
para trabalhar numa empresa importante que está prestes a abrir. Ainda não
tenho muita experiência fora do campus e gostava de tentar várias áreas antes de
me decidir por uma área de especialização…
Era evidente o que eu queria, não era?
O senhor Baxwell assentiu, encantado.
— Não há problema nenhum, Noah, vou mexer uns cordelinhos, e a minha
secretária depois liga-te. É verdade que fico surpreendido por me ligares, mas
fico muito contente por te ter na minha equipa. Tenho a certeza de que és uma
miúda trabalhadora. Gostava que enviasses à minha secretária o teu certificado
de habilitações, o horário das aulas e qualquer tipo de referência que tenhas
recebido. A minha área é puramente comercial, preciso de uma equipa que
esteja disposta a facilitar-me a vida, por isso, se fores boa com papelada,
podemos arranjar uma forma de trabalhares durante algumas horas por dia sem
perturbar o horário da universidade. Parece-te bem?
Eu estava prestes a gritar de alegria. Meu Deus, como fora fácil, mal podia
acreditar! Bem, é verdade que podia ter pedido o mesmo favor ao Will, mas
assim era melhor; afinal, o Baxwell deu-me o seu cartão de visita, não deu?
Depois de lhe agradecer, despedi-me dele e estava tão feliz e tão distraída que
quase choquei com o carro que estava parado no semáforo vermelho à minha
frente.
Já não estava desempregada!
17
NICK

Fiquei a olhar para o ecrã do computador sem saber muito bem o que sentir, já
que tudo isto me parecia uma loucura absoluta.
Recebi um e-mail da Anne, a assistente social da Maddie, e, nele, explicava-
me que, uma vez que não restavam dúvidas quanto à paternidade da minha
irmã e depois das ações legais a que o meu pai dera início contra a minha mãe
por lhe ter ocultado durante anos que a Maddie era sua filha, ações essas que
resultaram na custódia a favor do meu pai, as visitas à minha irmã que eu tinha
combinadas eram assim anuladas e seriam os meus pais quem deveria dar-me
autorização para a ver ou não. Os mesmos pais que me mentiram, a mim e à
minha irmã, fazendo-nos crer que o seu pai era outro homem, para depois nos
dizerem que tudo aquilo em que acreditáramos até então era uma mentira do
tamanho da sua casa de Las Vegas.
Quando soube de tudo isto, a verdade é que fiquei contente, caramba, claro
que fiquei feliz por a minha irmã o ser por inteiro, de pai e de mãe, nada de
meias-irmãs. Sempre detestara pensar que, ao ter um pai diferente do meu, ela
não me pertencia por completo, detestava as visitas com horários e a má cara
que o Grason fazia sempre que me via levar a Maddie comigo. Era evidente que
agora as coisas iam ser muito mais fáceis, pelo menos assim julguei.
A minha irmã não entendia nada disto; pior ainda, das poucas vezes em que o
meu pai a fora visitar, chorara até ficar sem fôlego. Não queria ir com um
desconhecido, não queria sair da sua casa nem saber nada acerca do seu novo
pai.
Suspirei enquanto levava a mão à cabeça. Neste momento, eu era o
intermediário entre a Maddie e o meu pai, que parecia ter perdido todo o tipo
de prática em relação a filhos mais pequenos. Não que alguma vez tivesse tido
muito paciência, diga-se em abono da verdade, bastava ver a relação que tinha
tido comigo. O que me surpreendeu verdadeiramente foi o esforço e a
determinação dele para tentar conquistar o afeto da minha irmã.
O meu pai não hesitou um instante em pôr todos os processos em marcha para
ficar com a guarda partilhada e quis que ficasse bem claro que a partir de então
Maddie Grason era Maddie Leister. Ainda não estava tudo resolvido… nem de
longe nem de perto, mas quem sofria mais no meio de tudo aquilo era a Mad, e
isso deixava-me nervoso.
O pai dela, bem, aquele que presumivelmente fora o seu pai durante mais de
cinco anos, tinha lavado as mãos do assunto, não queria saber da minha mãe
para nada, nem da menina que tinha visto crescer. O grande filho da mãe nem
sequer quisera fazer parte do processo de adaptação por que a minha irmã tinha
de passar. Tivemos de lhe explicar de forma bastante delicada mas muito direta
que o seu pai já não era aquele homem, mas outro que a amava muitíssimo. O
que acontece normalmente nestes casos é que o pai não biológico luta pela
custódia da criança que julgou ser sua filha, ou pelo menos luta para continuar a
fazer parte da sua vida e, nem é preciso dizer, para continuar do seu lado sempre
que ela precisar dele. Mas não tinha sido esse o caso, e agora a minha irmã só
repetia que queria o seu pai, o seu pai de verdade. Ela não entendia por que
motivo ele tinha deixado de gostar dela e porque a oferecera a outro pai
diferente.
A minha irmã andava irritável e deixara de ser aquela menina adorável e
sempre sorridente para se transformar numa criança magoada e ressentida com
todos.
A minha mãe mudara-se para a cidade, deixara Las Vegas e vivia agora num
bonito apartamento no centro, e a Maddie ainda não se tinha adaptado a tantas
mudanças. A única pessoa que parecia querer ver era eu, e era o único a quem
ligava a altas horas da noite para conseguir adormecer. Estava assustada, não
gostava da casa nova, dizia, os seus brinquedos não eram os mesmos, os amigos
estavam longe, e não queria andar numa escola tão feia como aquela em que
andava agora: queria ir viver comigo; sim, era isto que me dizia de cada vez que
falava com ela ao telefone.
— Quando vens buscar-me, Nick? — perguntava, fazendo beicinho. —
Quando vamos andar na roda-gigante? Quando volto a ver o meu pai? Quando
é que a mamã vai voltar a ser como era antes?
As suas perguntas magoavam-me e deixavam-me de cabeça perdida, porque
percebia claramente através delas que a minha mãe não lhe prestava atenção.
Tudo bem, não lhe faltava nada, comia e estava saudável, mas e o resto?
Continuei a ler o e-mail da Anne no qual me dizia que o meu pai pedira que a
Maddie passasse o Dia de Ação de Graças com ele e com a família. O juiz
concordara em deixá-los escolher que festas passavam com a Maddie, e a minha
mãe aceitara. A Anne despedia-se dizendo que a partir de agora as minhas
visitas cessavam e que devia falar com o meu pai sobre qualquer dúvida que
tivesse a respeito da minha irmã. Ele também me tinha enviado um e-mail em
que me pedia, por favor, que passasse as festividades na sua casa. Dizia que a
Maddie se iria adaptar muito melhor se eu estivesse por perto e que
precisávamos de fazer as coisas o melhor possível, para o bem dela.
Para ser sincero, não fazia a menor tenção de passar quaisquer festividades em
casa. Para mim, as refeições em família, as reuniões e todas as ocasiões parecidas
tinham deixado de fazer sentido. Ia sentar-me à mesma mesa com alguém que
me tinha mentido durante anos, com a mulher que causara o divórcio dos meus
pais e o abandono da minha mãe?
Nem pensar. Além disso, ir àquela casa só me provocaria dor e não era só por
causa das recordações da minha infância, mas por outras memórias muito mais
dolorosas que acabaram por suplantar as mais antigas.
Para mim, aquela casa significava ver a Noah em todos os lugares: a descer as
escadas de pijama ou muito bem arranjada com vestidos bonitos e sapatos de
salto alto — e, quando chegava ao último degrau, atirava-se para os meus
braços e beijávamo-nos apaixonadamente… a Noah na cozinha a tomar o
pequeno-almoço, a Noah no quarto, a dormir, naquela ocasião em que entrei
pela primeira vez e me apercebi de que só de olhar para ela o meu coração batia
mais depressa… a Noah na minha cama, despida, a primeira vez que fiz amor
com ela, a primeira vez que fizemos amor, juntos, porque também foi como a
primeira vez para mim, a primeira vez que amei de verdade.
Não sabia grande coisa dela, só o que o Lion me ia contando de vez em
quando, mas era evidente que ela sabia de mim, como não, se me tinha
transformado num favorito dos fotógrafos de imprensa, que nos perseguiam sem
parar.
Tinha saído nas malditas revistas não apenas por causa da minha relação com a
Sophia mas também pelos despedimentos que levei a cabo na empresa. Muitos
dos jornais chamaram-me perverso, disseram que não tinha coração, e isto,
somado a tudo o resto, andava a deixar-me muito stressado.
Sempre soube que levar este negócio em frente não seria fácil, nada tão grande
como a empresa do meu avô seria fácil de gerir, mas agora que todas as
informações estavam ao alcance de qualquer pessoa, agora que toda a gente
parecia estar a par de absolutamente tudo… Era o que mais me custava, a
minha privacidade, o facto de não poder fazer os meus negócios sem que pessoas
que não faziam a menor ideia do meu trabalho se pusessem a comentar com os
seus artigos estúpidos. Sim, tinha sido obrigado a despedir muita gente, sim,
tinha tido de fechar duas empresas, mas também abrira uma nova, e muitas das
pessoas despedidas iam começar a trabalhar ali dentro de menos de um mês; era
uma empresa que daria muito mais emprego no futuro, com salários melhores
do que ganhavam até então nas outras empresas, em que os recursos eram
escassos e a gestão deficiente.
Tentem explicar isto àquela gente, que só se preocupa em conseguir uma boa
parangona.
Afastei-me do computador. No dia seguinte ia ligar ao meu pai para lhe dizer
que ia passar as festas a casa dele. Que outra opção me restava? Naquele
momento, a minha irmã era a coisa mais importante da minha vida, a única
pessoa a quem queria mostrar a minha melhor cara. Queria cuidar dela e
mostrar-lhe que ainda podia confiar nos crescidos.
A Maddie tinha agora sete anos e meio, estava a crescer e cada vez entendia
melhor as coisas, estava cada vez mais perspicaz e já não se deixava enganar com
jogos e gelados. O que sofrera nos últimos meses marcara-a e fizera-a
amadurecer, transformara-a em alguém reticente em confiar nos outros.
Saí do meu escritório e fui buscar um copo de água. Era tarde, mas estava
bastante desperto e precisava de fazer qualquer coisa. Entrei no meu quarto
durante uns minutos e fiquei a olhar para as costas despidas da Sophia. Já devia
ter-se ido embora… a primeira regra era que não dormíamos juntos, mas esta
regra parecia menos rígida a cada dia que passava. Sentei-me no pequeno sofá
em frente à cama e observei-a: o cabelo escuro na minha almofada, as curvas do
seu corpo por baixo dos lençóis de seda branca… Era muito bonita e
determinada, mas de uma forma muito agradável… não era um terramoto que
destruía tudo o que estivesse ao seu alcance, era uma mulher que arrasava
usando as palavras, os argumentos e os grandes sorrisos sedutores.
Gostava dela, claro que gostava, não era um imbecil. A Sophia era uma
rapariga alegre, de boas famílias, inteligente, decidida e bastante boa na cama; a
este respeito, estávamos quase em pé de igualdade: eu dominava em certas
ocasiões, ela, noutras.
A Sophia era uma namorada perfeita, uma companheira de vida perfeita, o
tipo de mulher que estava sempre presente, que apoia e dá conselhos, que nos
abraça quando precisamos e que nos beija até nos deixar sem fôlego. Também
seria uma boa mãe, uma mãe trabalhadora, claro, aquele tipo de mãe que se
certifica de que os filhos andam na melhor escola, de que estão sempre bem
cuidados, bem vestidos e saudáveis; aquele tipo de mãe que sabe tudo e ao
mesmo tempo não sabe nada, a mãe que chega a casa às tantas, quando as
crianças já estão a dormir, e que lhes dá um beijo antes de se sentar a descansar.
A Sophia era isto tudo e mais ainda… mas não era a Noah.
18
NOAH

Cheguei a casa do Will por volta das onze da manhã, mesmo a tempo de tomar
um pequeno-almoço quente e saboroso. A minha mãe veio receber-me envolta
num xaile de croché que presumi ser bastante mais caro do que parecia. Tinha o
cabelo louro mais curto desde a última vez em que a vi, mais ou menos pelos
ombros, e os seus olhos azuis fitaram-me com carinho e alegria quando saí do
carro e me aproximei para a cumpri­mentar. Subi os degraus e deixei que me
abraçasse.
Havia uma eternidade que não voltava àquela casa, mais concretamente antes
de me separar do Nick. Sempre que eu e a minha mãe nos encontrámos, fora no
meu apartamento ou em algum restaurante bonito; as recordações com o Nick
perseguiam-me, por isso evitara esta casa com todas as minhas forças.
Agora tinha de passar dois dias na companhia da minha mãe e do marido, mas
pelo menos podia estar tranquila quanto à possibilidade de o Nick vir celebrar
as festas connosco: ele odiava estar naquela casa. Já quando ainda estávamos
juntos era uma luta para ele lá ir. O Nicholas não ia passar o Dia de Ação de
Graças com o pai; melhor para mim.
Entrei na cozinha, onde o Will estava a conversar amigavelmente com a Prett.
Esta abraçou-me com um sorriso afável, e ele também me sorriu. Aproximou-se
de mim e deu-me um abraço que foi muito mais reconfortante do que esperara.
Não podia evitar recordar o que a minha mãe me contara sobre ele e, apesar de
ser o homem com quem ela enganara o meu pai, pelo menos o Will tinha
sabido cuidar dela, soube fazê-la feliz numa fase muito sombria da sua vida.
Nem sequer queria parar para pensar no que teria acontecido se o William não
tivesse internado a minha mãe naquele centro para ela poder recuperar; o mais
certo era ela acabar aos trambolhões na vida, tentando avançar depois de ter sido
maltratada durante tantos anos e de lhe terem tirado a filha por negligência. Eu
teria certamente passado muito mais tempo em lares de acolhimento e talvez
nunca tivesse podido voltar a viver com ela.
Passámos a manhã a pôr a conversa em dia. Ainda não lhes queria contar do
meu despedimento, não queria ver a minha mãe a revirar os olhos ou o Will a
tentar convencer-me a concentrar-me unicamente nos estudos, enquanto me
prometia que era um orgulho para ele ajudar-me financeiramente.
Por isso falámos de outras coisas, e, quando os temas triviais se esgotaram, um
comentário do Will chamou-me a atenção de uma forma mais significativa.
— Tive de batalhar muito para a minha filha poder passar as festas connosco
e, quando o consegui finalmente, percebi que não faço a menor ideia de como
hei de conquistá-la.
«Oh… Maddie, caramba. Ainda era um tema complicado, não era?» Olhei
para a minha mãe, que parecia descontraída, muito mais descontraída do que
naquela maldita noite em que todas as verdades decidiram sair cá para fora
quase ao mesmo tempo.
— A Maddie vai passar as festas aqui? — perguntei, como quem não quer a
coisa.
A última coisa que soube pela minha mãe foi que o Will já tinha conseguido
a custódia e que estavam a tentar fazer que a menina entendesse tudo o que
acontecera.
— Já está na hora de recuperar o tempo perdido — respondeu o Will,
levantando-se da mesa e sorrindo-me com amabilidade. Saiu da cozinha, mas
não sem antes beijar a minha mãe no rosto. Eu aproveitei para indagar um
pouco mais.
— O que se passa, mãe? — perguntei, levando a chávena de café aos lábios.
A minha mãe sentou-se à minha frente e suspirou profundamente.
— O Will sente-se culpado por tudo o que aconteceu. Quer organizar a sua
vida de uma vez por todas… Neste momento está tudo de pernas para o ar.
Acho que ninguém gosta de descobrir de um dia para o outro que tem uma
filha de sete anos com a louca da ex-mulher.
Arregalei os olhos um pouco surpreendida. A minha mãe estava a falar num
tom que nunca usara antes, pelo menos não à minha frente. Sabia que tinha sido
um golpe duro para ela. Nos anos que se seguiram a tudo o que passou comigo,
a sua relação com o Will não foi plácida; na verdade, comportaram-se como um
casal bastante instável: viam-se e discutiam, acabaram a relação várias vezes; não
obstante, descobrir que durante uma destas separações ele engravidara a ex-
mulher era algo que jamais ultrapassaria.
— E tu, como estás? — perguntei, sentindo um pouco de pena dela.
É
— É sempre uma grande porcaria quando há crianças pelo meio — respondeu
e devia estar a passar por um mau bocado para usar uma palavra daquela
natureza. — A menina não entende absolutamente nada, o Will fez os possíveis
para a conquistar de cada vez que a foi visitar, mas a Maddie não quer saber dele
para nada.
Pobre Mad… tão pequena, tão doce e tão querida. Lembrava-me de todas as
ocasiões em que acompanhara o Nick a Las Vegas para a irmos buscar e levar
connosco a passear. O Nick sempre se comportara como um verdadeiro pai para
ela: adorava-a, era a sua menina, a única com quem parecia ter uma paciência
infinita. Para ela deve ter sido horrível perceber que o pai que conhecia não era
o seu pai de verdade. Como se diz uma coisa destas a uma criança? Como se
explica? Até eu tinha dificuldade em entender. Então, ocorreu-me um
pensamento, uma conclusão bastante lógica que me deixou todos os sentidos
em alerta.
— Mãe. O Nick não vai…
Senti um nó no estômago ao ver que a minha mãe levantava os olhos da mesa
e os pousava sobre os meus. Estaria a ver-me entrar em pânico, lenta e
dolorosamente?
— Tem calma, o Nicholas odeia ficar cá em casa. Sei que o William o
convidou para passar as festas aqui, como faz todos os anos, mas duvido que ele
aceite.
A sua resposta não me convenceu, menos ainda porque a irmã também ali iria
estar.
— Quantos dias vai a Maddie cá ficar? — perguntei, tentando acalmar os
batimentos do meu coração.
— Fica o fim de semana.
O Nick vinha cá a casa… e ia ficar. Raios, ia ter de voltar a vê-lo.

A manhã do Dia de Ação de Graças começou fria e chuvosa. O céu estava


muito nublado, e tive pena ao ver que o sol se esconderia num dia como aquele.
No Canadá, celebrávamos o Dia de Ação de Graças em outubro e não em
novembro, e a possibilidade de o dia estar pouco agradável era maior. Acordei
cedo, demasiado cedo, e vesti um roupão quentinho, cor de alfazema, com umas
sapatilhas de andar por casa.
A minha mãe tinha-me dito que seríamos uns quantos para o almoço,
incluindo um casal amigo do Will, com os seus filhos pequenos. «Pelo menos
assim, a Maddie terá com quem brincar», pensei para comigo.
Não tinha a confirmação se o Nick ficava ali em casa ou não, por isso tentei
convencer-me de que ele vinha ali deixar a irmã e depois ia com a namorada
nova ou que se dedicaria aos seus superprojetos de mega­empresário.
Desci até à cozinha para tomar o pequeno-almoço e encontrei a Prett bastante
atarefada. Estava a vigiar o peru, que, como bem sabia, ia demorar umas
quantas horas a assar. Em cima da bancada da cozinha havia batatas, ervilhas,
especiarias e todo o tipo de alimentos já preparados para serem cozinhados.
— Olá, Prett — cumprimentei com um sorriso, sentando-me à sua frente e
inspirando o aroma maravilhoso da cozinha.
A cozinheira limpou as mãos ao avental e sorriu-me com afeto. Sempre soube
que gostava de mim, apesar de ficar sempre do lado do Nicholas quando
discutíamos. Recorri a ela muitas vezes para barafustar a respeito dele,
principalmente durante os primeiros meses do nosso namoro. A Prett já
trabalhava para os Leisters há muitos anos, desde que o Nick era pequeno, e
conhecia-o bastante bem. Na verdade, estragava-o com mimos, algo que de vez
em quando me deixava desesperada.
— Posso ajudar-te?
Não me importava de cozinhar; na verdade, gostava de o fazer, sobretudo em
dias especiais como aquele. Inicialmente, disse-me que não era preciso, que
dava conta do recado, mas insisti, e duas horas depois estávamos as duas em
grande azáfama, a descascar batatas, a ferver água para fazer o puré ou a amassar
a massa da tarte de abóbora e maçã, entre muitas outras coisas.
A manhã passou a voar, e, quando estava quase tudo pronto, a Prett serviu
dois bons copos de sidra e brindámos ao trabalho bem executado. Além disso,
serviu uns pães de queijo ótimos: merecíamos comê-los, cozinháramos como
autênticas profissionais.
Quando olhei para as horas, sobressaltei-me e desci do banco. Era melhor
despachar-me se quisesse estar apresentável antes de os convidados chegarem.
Assim, despedi-me da Prett, assegurando que, quando estivesse pronta, voltaria
para a ajudar com o peru.
Como cheirava a comida e a especiarias, dei-me ao luxo de encher a banheira e
preparar o banho com os sais com aroma a limão e manga de que tanto gostava.
Enquanto isso, fui ao quarto de vestir para escolher uma roupa. Encontrei uma
saia grená, com alguma roda, que se fechava na cintura com duas fitas negras.
Era bonita e combinei-a com uma blusa clara, justa ao corpo e com uns botões
pequenos nas costas.
Quando desci para a sala, vi que a minha mãe estava naquele instante a
receber o primeiro casal de convidados com os seus filhos, dois meninos gémeos
de oito anos com o cabelo louro penteado para trás e vestidos com calças e
gravatas azul-claras. Achei que já tinha visto os pais noutras ocasiões; presumi
que fossem amigos do Will, porque a minha mãe os recebeu com entusiasmo.
Eu também os devia conhecer, porque se aproximaram e me cumprimentaram
cordialmente. Da minha parte, esbocei um sorriso que só se apagou do rosto
quando eles foram para a sala, onde já estavam o resto dos convidados. Naquele
instante, a campainha voltou a tocar, e, para me escapulir das pessoas, dirigi-me
à porta, sem sequer pensar.
Uns olhos da cor de gelo profundo cravaram-se nos meus assim que abri a
porta. Fiquei paralisada, sem dizer nada, só a olhar para ele como uma menina
tonta e impressionável. Senti uma imensidão de emoções contraditórias: anseio,
desejo, rancor, amor… todas se atropelavam no meu peito e fizeram que ficasse
sem palavras.
Haviam-se passado mais de três meses desde que o vira pela última vez, mas
pareceram-me um sopro quando me verifiquei que me recordava vividamente
tudo o que tínhamos feito naquela noite. Senti que ficava cheia de calor só de
pensar e incentivei-me mentalmente a bloquear todo o tipo de pensamentos não
recomendados para menores de dezoito anos.
Raios me partam.
Ele estava incrível… Trazia calças de ganga escuras e uma camisa branca, com
os dois primeiros botões desapertados, e umas sapatilhas Converse cinzentas. A
sua expressão era de surpresa, evidentemente não esperara encontrar-me ali.
Ao seu lado estava a irmã, que lhe dava pela cintura. A sua mãozinha
escondia-se atrás da do Nick, a menina de sete anos com um vestido cinzento
escocês com xadrez vermelho e branco. Os sapatos eram pretos, de verniz, e na
cabeça trazia uma fita vermelha, a condizer com o vestido.
Todo este escrutínio durou poucos segundos, mas, quando a Maddie me
reconheceu, largou a mão do Nick e saltou para os meus braços.
— Noah! — gritou, emocionada, juntando-se às minhas pernas e abraçando-
me pela cintura.
Por instantes, os meus olhos cruzaram-se com os do Nick, cuja expressão
inicial de surpresa já mudara para uma máscara fria e impassível. As minhas
mãos pousaram imediatamente nos caracóis bem penteados da Maddie, e recorri
a todas as minhas forças para afastar o olhar dele.
— Olá, querida! — cumprimentei-a, apercebendo-me de como crescera desde
a última vez em que a vira. Aquela menina ia ser uma beldade quando fosse
mais velha, e agora percebia-se que era filha do Will: encontrava nela traços que
também via no Nick e que erradamente atribuíra à mãe de ambos… Agora não
restavam dúvidas, os olhos grandes e as pestanas quilométricas eram traços
herdados do Will, tinha a certeza. A mãe do Nicholas era demasiado loura para
ter pestanas assim, e até era capaz de pôr as mãos no fogo em como as suas eram
postiças.
A Maddie separou-se das minhas pernas e olhou alternadamente para mim e
para o Nick com um sorriso, como se estivesse à espera de alguma coisa.
Fiquei tensa quando o Nick deu um passo em frente e pousou uma das suas
grandes mãos na minha cintura enquanto roçava com os lábios no meu rosto.
Foi um beijo fugaz, um mero raspão contra a minha pele, mas fiquei toda
arrepiada.
— Feliz Dia de Ação de Graças, Noah — disse, quando se separou de mim.
— Feliz Dia de Ação de Graças, Noah! — gritou então a Maddie, dando
saltinhos e segurando-me na mão com força.
Entendi então o que se passava ali: o Nick não queria que a irmã mais nova se
apercebesse do que acontecera entre nós, ou melhor, de como ele nem conseguia
olhar para mim sem que o seu rosto se contorcesse de repulsa. A Maddie vira-
nos muitas vezes juntos, vira como o Nick me abraçava, como me beijava, como
nos ríamos um com o outro… Ele dissera-lhe milhares de vezes que éramos as
miúdas dele, as suas preferidas, e que nos amava loucamente.
Agora, a tensão estava de cortar à faca, assim como a frieza. Com efeito, o
beijo que acabara de me dar era do mais falso e forçado possível. Não fazia ideia
se a menina percebia, mas, se ele estava à espera de que o tratasse como antes,
estava muito enganado. Franzi o sobrolho, irritada. Não pensava fingir à frente
dela, não ia sujeitar-me a isso. O Nicholas fizera-me mal, e eu a ele, sim, mas
pelo menos sempre mantivera os meus sentimentos claros.
«Lamento, Noah, mas com ela tudo é mais fácil. Não há drama, não há
problemas. A Sophia é uma mulher, não uma miúda.»
Cerrei os lábios com força e dirigi-lhe um olhar venenoso. Depois, forcei um
sorriso e puxei a Maddie para dentro de casa.
O Nicholas entrou atrás de mim, tirou o casaco e pendurou-o no bengaleiro.
Depois de entrar, a Maddie já não parecia tão risonha, e a sua carinha contraiu-
se numa careta que ia do medo ao desgosto. Ajoelhei-me ao seu lado e tirei-lhe
o casaco vermelho. Estendi o braço para o entregar ao Nicholas, que o segurou e
pendurou ao lado do seu.
Neste instante, o Will e a minha mãe apareceram no átrio. O Nick
aproximou-se da Maddie, que se pôs entre nós os dois, com a cabeça escondida
atrás de mim. De repente, parecia ter ficado nervosa e tímida.
— Olá, Maddie! — cumprimentou-a a minha mãe, aproximando-se de nós.
— Eu sou a mãe da Noah. Posso ver o vestido tão lindo que trazes?
Ao ouvir que era minha mãe, a Maddie subiu os olhos na minha direção, e eu
sorri-lhe com tranquilidade, para a incentivar a sair do esconderijo.
— És a mãe da Noah? — perguntou, olhando para ela de alto a baixo e saindo
de trás de mim com alguma curiosidade.
— Sim, sou a mãe da Noah e também sou casada com o teu pai, o Will —
respondeu, enquanto se aproximava de nós. Os nervos do Will eram palpáveis,
nunca o tinha visto assim e percebi que aquele fim de semana era muito
importante para ele.
A Maddie levantou os olhos azuis em direção ao pai e a seguir fez beicinho.
— Ele não é meu pai.
A sua voz saiu determinada. Santo Deus, sete anos e era capaz de deixar
quatro adultos petrificados com as suas palavras! Naquele momento, o Nick
decidiu intervir. Inclinou-se e pegou na Maddie ao colo para começar a fazer-lhe
cócegas. A menina distraiu-se e começou a rir.
O Will, por sua vez, pareceu recuperar do choque de ouvir a filha a rejeitá-lo
tão abertamente e forçou um sorriso.
— Vamos almoçar! — propôs alegremente. — Há comida suficiente para um
regimento, por isso espero que comam até rebentar!
Fomos todos para a sala, onde já estavam os restantes convidados. A Maddie
pareceu ficar contente ao ver que tinha dois meninos com quem brincar e foi a
correr em direção a um comboio telecomandado que o Will trouxera para os
miúdos se entreterem, e a seguir sentou-se a vê-los manusear as pequenas
carruagens. Vi que o Will não conseguia desviar os olhos da Maddie e
questionei-me o que poderia ele fazer para conquistar a aceitação da filha.
Preparava-me para os seguir quando o Nick me segurou pelo cotovelo e me
conduziu novamente para o átrio, afastando-me do grupo.
— Ficas aqui durante o fim de semana? — perguntou, e percebi pela sua
expressão que achava tanta graça como eu a estarmos novamente debaixo do
mesmo teto.
— Vou-me embora na segunda-feira, tenho exame de Direito na terça —
expliquei, como se isto lhe interessasse. A verdade era que, agora que o tinha à
minha frente, não conseguia deixar de pensar nas últimas palavras que
trocáramos e nas fotografias que vira dele com a Sophia. A raiva que sentia
dentro de mim e que procurara enterrar bem no fundo do meu ser ressurgiu,
impedindo-me de manter o controlo.
— Deviam ter-me avisado disto — disse, mais para si do que para mim.
As suas palavras irritaram-me. Não era o único a sentir-se incomodado com
esta situação.
Tentei afastar-me, só queria ficar longe dele, mas voltou a segurar-me no
braço. Odiei o seu contacto e sacudi-o com brusquidão. Coloquei-me à sua
frente e vi que me observava com estranheza, algures entre o envergonhado e o
irritado.
— Antes de entrarmos na sala… — começou por dizer, sem me olhar nos
olhos — quero avisar-te de que a minha irmã não sabe da nossa separação.
Era como tinha pensado.
— Não contaste à tua irmã que já não estamos juntos? — acusei-o,
agarrando-me à raiva que sentia.
— Ela é pequenina, não ia entender.
Olhei para o teto e expirei profundamente.
— Então qual é o teu plano, Nicholas? Fazer de conta que não se passou
nada? Acho que já tentámos fazer isso, e o resultado não foi bom.
Caramba, não devia ter mencionado o nosso encontro escaldante em Nova
Iorque, mas não era exatamente a isso que me estava a referir. O Nicholas
desviou os olhos quase involuntariamente para o meu corpo e a seguir para o
rosto, o que o deixou um pouco alterado, obrigando­-­o a tentar disfarçar
passando a mão no cabelo.
Quando se voltou novamente para mim, parecia um pouco nervoso e
preocupado.
— Sei que não devia pedir-te isto, mas não lhe quero contar, pelo menos
agora, que os pais se separaram, e ela tem de se adaptar a uma família nova…
— Acalmei-me um pouco ao vê-lo assim tão angustiado; a preocupação
inundava o seu olhar, e eu sabia qual era a razão: a irmã, a menina encantadora,
estava a sofrer com tudo aquilo. — A ­Maddie adora-te, não parou de perguntar
por ti, e eu simplesmente…
— Ocultaste-lhe a verdade — terminei a sua frase.
— É uma forma elegante de dizer que lhe menti, mas, sim — disse, sorrindo
ligeiramente.
Observei os seus lábios… não me lembrava da última vez que o vira sorrir e
por instantes deixei-me perder naquele sorriso.
— Ouve, não quero que finjamos nada, está bem? Só que tentemos dar-nos
bem durante o fim de semana, pela Maddie e por nós. Prometo que não me
comporto como um pulha.
Mordi o lábio com nervosismo. «Darmo-nos bem», seria possível?
Não sabia se ia poder fazer o que ele me pedia. Não quando só de olhar para
ele sentia uma dor imensa, que aumentava ao pensar que estava apaixonado por
outra pessoa e que me tinha mentido. Afastei-me dele e olhei para a sala. A
Maddie estava sozinha, deslocada no meio de uma família que mal conhecia, e
fez-me recordar de mim mesma quando cheguei a esta casa.
— De acordo — disse, evitando olhar para ele. — Vamos dar-nos bem. Pela
Maddie.
Ele quis dizer alguma coisa, mas voltei-lhe as costas, queria afastar-me.
Ao regressar à sala percebi que, apesar de a nossa conversa ter acontecido no
átrio, o Will e a minha mãe se tinham dado conta da nossa ausência e nos
observavam com expectativa, para verem qual o nosso estado de alma. Ignorei
os seus olhares inquisitivos e apressei-me a sentar-me à mesa, onde a Prett já
começara a servir a comida. O Nick fez o mesmo e voltou-se para a irmã, que
começara a chorar durante os minutos em que estivemos ausentes.
— Não me deixes aqui sozinha, Nick — pediu-lhe, enquanto ele pegava nela
e a sentava ao seu colo.
— Só estive a falar um pouco com a Noah, mas agora já estou aqui. Queres
comer batatas? — perguntou com carinho.
Observei o Nick com a Maddie enquanto ele esperava pacientemente que ela
comesse. Limpou-lhe as lágrimas que caíram pelas faces com dois beijos suaves
e fez-me lembrar de todas as vezes em que também me beijara as lágrimas para
depois pousar os lábios sobre os meus. Dizia que ficavam mais macios depois de
eu chorar… Ele levantou os olhos e fitou-me, como se tivesse conseguido ler-me
os pensamentos. Senti um nó no estômago e desviei os olhos para o prato.
Brinquei com a comida e, quando a Prett nos trouxe a sobremesa, só consegui
dar duas ou três garfadas da tarte de abóbora e maçã, que estava ótima.
Depois do almoço, todos voltámos para a sala de estar, e, assim que passou
pela porta, a Maddie saiu a correr para ir buscar o comboio telecomandado e
começar a brincar. O Nick sentou-se num dos sofás enquanto o Thor, o cão dele,
se aproximava dos seus pés para este lhe fazer festas atrás das orelhas.
Sem qualquer aviso, o N, o nosso gatinho, que, entretanto, crescera e se
transformara numa grande bola de pelo e que não pudera manter no meu
apartamento porque a minha companheira era alérgica, saltou para o colo no
Nick, fazendo com que o Thor rosnasse, irritado. Estes dois não eram os
melhores amigos, mas pelo menos toleravam-se. O Nick pareceu ficar
surpreendido por ver ali o N, e juro que quando os seus olhos se cruzaram com
os meus tinham uma expressão de culpa. Afinal, aquele tinha sido o nosso gato,
e ele abandonara-o.
— Meu Deus… o que deram de comer ao N? — perguntou, franzindo o
sobrolho enquanto o gato andava lentamente à sua volta a ronronar, sem se
lembrar de que ele era o nosso inimigo em comum.
Traidor!
A Maddie largou o comboio e veio a correr para brincar com o gatinho. Agora
que ia passar mais tempo naquela casa, fiquei contente por ter um animal de
companhia com que se entreter. O Nick levantou os olhos, e, antes que pudesse
dizer ou perguntar alguma coisa, saí da sala e fui para a cozinha. Não queria ter
de explicar que também acabara por perder o gato.
Dez minutos depois, já tinha posto o avental e estava a conversar alegre­mente
com a Prett na cozinha, enquanto a ajudava a secar os talheres à medida que ela
os lavava. Apesar de não querer fazê-lo, estava a rir-me com ela a contar uma
história do Nicholas em pequeno.
— Uma vez lembrou-se de encher os bolsos de gafanhotos, dezenas deles.
Quando lhe tirei a roupa para lhe dar banho, os bichos asquerosos fugiram e
desataram a saltar, invadiram a casa de banho, até a água da banheira. Eu e o
Steve estivemos quase três horas a apanhar os malditos gafanhotos pela casa. Por
sorte, quando o senhor chegou, o menino já estava metido na cama, de jantar na
barriga e exausto. Lembro-me de que até me deu os parabéns por estar a fazer
um trabalho tão bom na nossa tentativa de domar o pequeno monstro. Se ele
soubesse…
Ri-me, imaginando o pequeno Nick, com os seus grandes olhos azuis e cabelo
revolto, de calções e a caçar gafanhotos para levar a cabo aquela travessura.
Tinha a certeza — mais do que isso, poria as mãos no fogo — de que a sua
intenção fora mesmo essa, chamar a atenção do Steve e da Prett.
Ouvi um pigarrear atrás de mim, e voltámo-nos as duas, surpreendidas: ele
estava ali, encostado à parede, e não tirava os olhos de cima de mim. Assim que
o vi, parei de me rir, embora a Prett continuasse a sorrir e a abanar a cabeça.
— Estás a contar as minhas diabruras, Prett? A roupa suja lava-se em casa, em
privado. Devias ter vergonha.
— Sujos ficávamos nós, eu e o Steve, de cada vez que voltavas da rua, sim
senhor — respondeu ela, voltando-se para continuar a lavar a louça.
Fiquei presa no olhar dele… estava ali, meio molhada de sabão, o cabelo
apanhado de qualquer maneira num rabo de cavalo frouxo, e ele a observar-me
de modo pensativo.
— Estás a pensar em voltar para a sala? As pessoas começam a perguntar onde
te meteste.
«As pessoas ou tu, Nicholas?» Era o que tinha vontade de perguntar, mas
mordi a língua e tirei o avental.
— Deus me livre de perder toda a diversão — respondi com sarcasmo e
aproximei-me da porta e dele.
Neste instante, ouviu-se um grito agudo que ecoou por toda a casa. O
Nicholas apressou-se a contornar-me e foi diretamente para a sala, comigo a
pisar-lhe os calcanhares.
— Nós somos mais velhos do que tu, por isso brincamos primeiro! — dizia
um dos gémeos à Maddie, que estava de punhos cerrados ao lado do corpo.
Primeiro olhou para o Nick, a seguir para o Will, como se quisesse certificar-
se de que os crescidos estavam a ouvir tamanha injustiça.
— O comboio é do meu pai, por isso brinco eu primeiro! Não é, Will?
O William ficou a olhar para a Maddie, como se as palavras que acabavam de
sair da sua boca não fizessem sentido. Eu e o Nicholas olhámos para a Mad,
surpreendidos, e a minha mãe sorriu no seu lugar junto à lareira. Então, foi a
vez de o Will fazer alguma coisa com aquela elegância que tão bem o
caracterizava e aproximou-se das crianças, ajoelhou-se ao lado deles e ficou à
altura da Maddie, a quem sorriu com afeto.
— Bem, este comboio era meu desde que eu era muito pequeno, depois foi do
Nick, para ele brincar, e agora, tendo em conta que ainda não pudeste brincar
com ele, acho que está na hora de ele ter uma dona nova. És capaz de cuidar do
comboio, Maddie? Olha que é uma relíquia familiar, e só os Leisters podem
manobrar este comboio.
A Maddie parecia absorta nas palavras do Will, ouvia-o com muita atenção, e
depois da sua pergunta assentiu com seriedade.
— Então, meninos, o comboio é da minha filha, por isso, se ela quiser brincar
primeiro, vocês têm de esperar um bocadinho, apesar de eu saber que a Maddie
é uma boa menina e que gosta de partilhar, não é verdade, Maddie?
O Will voltou a levantar-se, e a Mad ergueu os olhos para o observar. Assentiu
e a seguir virou-se para os gémeos, que pareciam estar muito aborrecidos.
— Deixo-vos olhar para o comboio, mas nada de mexer! — esclareceu, muito
decidida.
Quase todos os presentes na sala desataram a rir.

A tarde passou-se sem incidentes, as crianças brincaram sem problemas, o


Nick e o pai retiraram-se para o escritório para falar da empresa, por isso fiquei
a conversar com a minha mãe e a sua amiga. Estávamos entretidas na conversa
quando, de repente, ouvimos uma porta bater e gritos do outro lado do
corredor.
— Raios, não tenho de te dar mais satisfações do que as que dei à direção! —
Ouvi a voz do Nick a protestar. — Achas que queria fazer aquilo? Não havia
outra opção! O problema é que ainda ninguém os teve no sítio para tomar esta
decisão, e irrita-te que agora o nome Leister esteja associado a isto.
Quando o Nick e o pai apareceram, a meio da discussão, fez-se silêncio na
sala.
— Devias pelo menos ter-me consultado, isto é muito arriscado. Não,
Nicholas, ouve-me! — gritou o Will, ao ver que o filho abria a boca para o
interromper. — Se isto não correr bem, podes levar a empresa à bancarrota!
Ambos, pai e filho, se fitavam furiosamente, e foi o ruído do comboio que os
arrancou daquela bolha em que estavam metidos. O Nicholas parecia prestes a
rebentar, conhecia-o muito bem… A forma como cerrava os punhos, como
olhava para o pai como se o fosse comer vivo de um momento para o outro.
Depois, ao ver que o observava, dirigiu-me um olhar glacial, daqueles que
conseguem deixar-nos os joelhos a tremer, mas não sexualmente falando.
— Já começa a estar na altura de confiares em mim, pai — disse o Nicholas,
para a seguir nos virar as costas a todos e sair de casa, batendo com a porta.
Olhei para o canto da sala e vi que a Maddie olhava para nós com os olhos
muito arregalados.
Não fazia ideia do que acontecera para começarem aquela discussão, mas
também não tinha interesse em presenciar mais nada, muito menos aguentar
olhares que não merecia. Fui até ao canto e peguei na Maddie ao colo.
— Queres que te mostre o meu quarto, Mad?
A menina assentiu, embora não parasse de olhar para a porta por onde o irmão
desaparecera havia poucos instantes. Sorri para os convidados e subi as escadas
com a Maddie empoleirada na minha anca.
— Tu vives aqui, Noah?
— Já vivi, meu anjo… já vivi.
19
NICK

Saí de casa do meu pai e fui para um dos muitos bares que havia junto da
Marginal. Com o tempo que estava, tinha a certeza de que os bares estariam
vazios, e do que mais precisava naquele momento era de estar a sós.
Não esperava receber a aprovação do meu pai quando lhe contasse o que
planeava fazer com a empresa, mas também não estava à espera de que fizesse
frente daquela maneira. Desde que assumira o comando do negócio, e depois de
inúmeras reuniões, gráficos e muitas contas, apercebi-me de que havia várias
pequenas empresas na corporação que já deviam ter sido encerradas há muito
tempo. Só nos davam problemas e geravam lucros ridículos. Inicialmente, quase
ninguém apoiara a minha decisão de as vender, mas eu queria liquidá-las de
qualquer maneira e com o dinheiro obtido criar uma empresa nova com uma
visão mais moderna e um foco diferente. A maior parte funcionava
perfeitamente, sendo gerida pelos melhores agentes económicos do país, e um
dos meus trabalhos iniciais consistira em visitar grande parte destas empresas
para me assegurar de que as políticas gerais dos Leisters eram cumpridas.
Pois bem, depois de meses de trabalho e de tentar convencer a direção,
tínhamos decidido pôr à venda aquilo que nos dava mais prejuízos do que
lucros, por isso não tinha pela frente apenas inúmeros despedimentos mas
também a abertura da nova empresa de marketing e comunicação que
reorientaria toda a estratégia económica das Empresas Leister em direção a um
ponto que ainda não tínhamos explorado.
A decisão foi difícil, mas, feitas as contas, era a mais acertada, e deixava-me
mesmo triste que o meu pai não fosse capaz de confiar em mim e ainda mais
que acreditasse que eu podia levar a empresa à ruína. Com os membros da
direção podia eu bem, não tinha problemas com eles, mas uma coisa era
enfrentá-los sendo eu o seu chefe, outra completamente diferente era lidar com
o meu pai. Para piorar as coisas, a Noah presenciara parte da discussão, o que
me deixou ainda mais mal-humorado.
Pedi um uísque e bebi-o de um trago. Aquele almoço estúpido correra pior do
que imaginara.
Paguei a conta e decidi que tinha de voltar para casa. Não devia ter deixado a
Mad ali sozinha, mas, embora me custasse muito admiti-lo, sabia que a Noah
cuidaria bem dela e que a minha irmã estava muito bem entregue. De todas as
pessoas que conhecia, ela era a única a quem podia confiar a minha irmã; nem
sequer ao meu pai a entregava.
Noah… não sabia se a trégua com que concordámos tinha sido um erro. Era
muito mais fácil ignorar o que sentia por ela se continuasse zangado. Falar com
ela como tínhamos feito hoje, como dois adultos, era demasiado perigoso.
Por vezes… muito mais vezes do que me permitia admitir, imaginava-me a
perdoá-la, via-me a esquecer tudo o que acontecera, tudo o que fizemos um ao
outro, e tentava imaginar como seria agora a nossa vida. Mas, quando o fazia, a
recordação do motivo da nossa separação voltava para me atormentar, e tudo se
desvanecia, ficava só o ódio, a que me habituara tão bem ao longo do último
ano.
Maldita Noah… maldita por ter dado cabo de tudo!
Quando cheguei a casa do meu pai, percebi que era bastante mais tarde do
que imaginara inicialmente. As luzes estavam apagadas, e reinava um silêncio
sepulcral em toda a casa, à exceção da sala, cuja luz iluminava ligeiramente a
entrada.
Tirei o casaco, deixei as chaves na entrada e fui para a sala. A Noah estava
sentada no chão, com as costas encostadas ao sofá. Tinha mudado de roupa e
agora vestia uma camisola confortável, apanhara o cabelo num carrapito largo e
tinha uns óculos de massa pretos. Estava concentrada na leitura, com vários
livros abertos ao seu redor. Reparei que o lume na lareira se extinguia.
— O que estás a fazer? — perguntei em voz baixa, ao entrar na sala.
A Noah sobressaltou-se e ia responder, mas ficou calada à medida que me
aproximei de onde estava sentada e peguei no livro que tinha sobre as pernas.
Direito da Comunicação e da Publicidade, volume I.
— Estou a estudar — respondeu finalmente com frieza.
Fitei-a e analisei a sua expressão, não queria que se sentisse desconfortável
com a minha presença. Sabia que durante o dia me tolerara por causa da Maddie
e que o melhor para ambos seria provavelmente passarmos o menos tempo
possível juntos, mas naquele momento só precisava de que a Noah fosse a Noah.
— Pois, estou a ver… Está a correr assim tão mal? — disse-lhe, virando as
costas e pondo mais troncos na lareira. Inclinei-me para assegurar que o calor se
concentrava no centro. A Noah pusera os troncos demasiado separados, assim
nunca ia conseguir fogo suficiente para aquecer a sala. Quando as chamas
começaram a crepitar e a libertar um calor abrasador, levantei-me, sacudi as
mãos e voltei-me novamente para ela, que me observava com atenção.
Reparei que tinha o rosto corado pelo calor. A verdade é que não estava assim
tanto frio, mas a Noah era friorenta; ainda me lembrava de como durante o
inverno que passámos juntos se agarrava a mim por baixo dos lençóis para
aquecer os pés, sempre gelados, com o calor da minha pele, que estava sempre
quente, principalmente por estar perto dela.
— Bastante — disse, voltando a fixar os olhos nos livros. — Se subires e não
encontrares a Maddie, é porque adormeceu na minha cama, assim já ficas a
saber.
Assenti enquanto me aproximava do sofá perto dela e me sentava. A Noah
estava no chão, mas, mesmo assim, a distância que nos separava permitia-nos
suster o olhar um do outro.
— Obrigado por cuidares dela — disse, ainda mantendo a distância.
A Noah observou-me com cuidado, como quem espreita um cão grande que
pode ser meigo ou saltar-nos em cima para nos morder sem hesitar.
— Não tens de agradecer; na verdade, foi o Will que lhe vestiu o pijama e lhe
contou uma história…
Assenti enquanto observava, distraído, o rosto dela a corar mais perante o meu
escrutínio.
— A seguir ainda tentaram que fosse dormir para o seu quarto novo —
continuou, e eu inclinei-me para a frente, distraído com a maneira com que os
seus lábios se moviam —, mas ela insistiu que queria dormir comigo e fartou-se
de perguntar por ti. Não devias ter-te ido embora.
— Precisava de pensar — desculpei-me, fitando algo que até então me passara
despercebido: na maçã do rosto esquerda, próximo do olho, tinha uma pequena
cicatriz branca, direita, como se se tivesse cortado com alguma coisa. — O que
é isto que tens aqui? — perguntei e surpreendi-a quando estendi a mão e lhe
levantei o queixo para poder observar melhor.
Que diabo!
A Noah estremeceu perante o meu toque e afastou-se, obrigando-me a soltá-
la.
— Não é nada — respondei, fixando os olhos no livro.
— Se não fosse nada não deixava marcas. Que te aconteceu?
— Caí — respondeu, encolhendo os ombros.
— Caíste? De onde? Da última vez que te vi não tinhas essa cicatriz. — «Ou
tinha?» Não sabia, a última vez em que a vi não estava propriamente em mim.
A Noah fechou o livro e olhou para mim, um pouco exasperada.
— Tenho esta cicatriz há mais de meio ano, por isso, sim, tinha-a da última
vez em que te vi. Caí de moto, não foi nada do outro mundo, mas tive de levar
pontos.
— Desde quando tens moto? — Não sabia bem por que motivo ficara de
repente tão irritado; quando ali chegara estava sossegado e tranquilo, até gostara
de entrar em casa e de a ver ali, mas agora… bolas, só me apetecia partir
qualquer coisa.
— Não era minha, era de uma amiga. Porque é que estás assim?
Pus-me de pé e afastei-me, mas estava tão irritado que não consegui evitar
dizer a primeira coisa que me veio à cabeça.
— Porque só um idiota anda por aí de moto; a maior parte dos acidentes
mortais que há nas estradas envolvem pessoas que andam nessas motos
estúpidas!
A Noah levantou-se com os lábios comprimidos e deixou o livro de qualquer
maneira sobre o sofá.
— Tu tens uma moto!
— Eu não sou tu, não tenho acidentes.
— Então estás a insinuar que eu sou idiota?
Cerrei o maxilar com força.
— A única coisa que te estou a dizer é que não deves andar de moto —
respondi, tentando acalmar-me. A Noah tinha tido um acidente, um maldito
acidente… há meses. E onde estava eu na altura?
Longe… estava muito longe.
A Noah recolheu os livros e parou à minha frente antes de sair da sala.
— Que pena já não poderes dar-me ordens, não é verdade, Nick?
Fiquei a olhar para ela a afastar-se e senti um travo amargo na boca.
20
NOAH

No dia seguinte, acordei mais cedo do que era habitual durante as férias, mas
tinha uma boa razão para isso e estava entusiasmada.
Voltei-me para a menina que dormia ao meu lado sem fazer muito barulho;
ela dormia tão profundamente que fiquei a observá-la durante algum tempo,
divertida. Era pequena, mas mexia-se mais do que um bichinho rebelde, o que
me fazia lembrar de uma certa pessoa que devia estar a dormir agora mesmo
muito perto dali. O corpo pequeno atravessado ocupava a cama quase toda, e eu
mal tinha espaço para me mexer.
Não queria acordar a Maddie enquanto me vestia; além disso, ainda não
amanhecera, e precisava de acender a luz para me arranjar, por isso levantei-me
da cama com cuidado e peguei nela ao colo, sabendo que não ia fazer mais do
que murmurar qualquer coisa em sonhos antes de voltar a cair adormecida.
As suas mãos pequenas abraçaram o meu pescoço, e saí do quarto com ela
colada a mim como uma lapa. Duvidei se seria boa ideia levá-la para aquele
que, a partir de agora, seria o seu quarto. Não queria que se assustasse quando
acordasse e não soubesse onde estava, por isso parei em frente à porta do Nick.
Podia deixá-la ali, ficavam os dois a dormir até mais tarde, e, quando a Maddie
acordasse, estaria ao lado do irmão mais velho, com quem se sentia segura.
Abri a porta devagar, sentindo-me muito incomodada por estar a invadir a
privacidade dele. Antigamente teria aproveitado todas as oportunidades para
poder dormir com ele e acordarmos abraçados. Cerrei os lábios e apaguei
aqueles pensamentos da cabeça. O Nick estava a dormir profundamente, o
corpo ocupava a cama quase toda, e o seu quarto continuava a ser tão escuro
como a boca de um lobo. Deixei a porta aberta para ver um pouco melhor e
aproximei-me para deitar a menina ao lado dele. Quando a pousei sobre a cama,
a Maddie enroscou-se automaticamente numa bolinha e começou a chuchar no
dedo, a dormir tão profundamente como estivera há poucos instantes na minha
cama.
Mordi o lábio porque, de repente, me senti nervosa. Puxei a colcha para a
tapar. O Nicholas nunca tinha frio, não ligara o aquecimento no quarto, que
parecia um cubo de gelo.
Ao puxar a colcha, não me apercebi de que estava entalada entre as pernas
dele, e embora tenha feito tudo devagar e sem movimentos ­bruscos, o Nick
abriu os olhos, meio adormecido. Um sorriso aflorou nos seus lábios, e fiquei
parada onde estava, como se também eu tivesse congelada.
A mão dele estendeu-se, pegou-me por um braço e puxou-me até ficar sentada
ao seu lado no colchão.
— O que fazes aqui, sardas, vieste espiar-me? — perguntou e, quando ouvi a
alcunha que costumava usar para mim, o meu coração começou a bater
loucamente. Um ano, passara-se um ano desde que se referira a mim com aquele
nome carinhoso.
Levantou-se e, sem aviso, a sua boca procurou os meus lábios; foi um beijo
inocente e estranho, por isso afastei-me rapidamente como se me tivesse
queimado com fogo. Então, o Nick pareceu aperceber-se do que fizera, abriu os
olhos, olhou em redor, a seguir para a irmã, depois para mim e, no segundo
seguinte, suspirou para resmungar.
— Por um instante, pensei que… — disse.
— Eu sei — interrompi-o.
Entendia perfeitamente o que ele pensara.
Levantei-me do colchão com vontade de desaparecer dali.
— Vim só trazer a Mad, não queria que ela acordasse sozinha sem ninguém
conhecido ao seu lado.
O Nick assentiu ao olhar para a pequena e depois voltou a fitar-me.
— Espera, porquê? Onde vais? — perguntou, afastando a colcha e passando a
mão pela cara.
— Tenho coisas para fazer… recados. — Não ia dizer-lhe onde ia, não, já
passara por isto uma vez.
O Nicholas assentiu com o sobrolho franzido e a seguir abriu os olhos, quando
percebeu o que lhe ocultava.
— Oh, vá lá! — exclamou, demasiado alto.
— Chiu — ralhei. — Vais acordá-la!
O Nick levantou-se da cama, pegou-me pelo braço e conduziu-me até à casa
de banho. Fechou a porta e olhou para mim com ar condescendente.
— Estás doida! — disse, escondendo como isto o divertia.
— Deixa-me em paz! Não te rias de mim, é uma tradição e gosto de a
cumprir… Aceita-o e pronto!
Ele abanou a cabeça com incredulidade.
— Tu odeias ir às compras, irritas-te com a tua mãe porque passa o dia a
comprar coisas e, quando chega a Black Friday, transformas-te numa
compradora compulsiva. Consegues explicar-me porquê?
— Já te expliquei uma vez — respondi, voltando-me para ir embora, mas ele
pôs o maldito corpo à minha frente e impediu-me de passar. Estava a sorrir… O
Nicholas sorria enquanto olhava para mim. Esta realidade afetou-me tanto que
deixei que me detivesse.
— «Porque é a Black Friday… As pessoas compram até ser noite, há
chocolate quente, e as lojas não fecham…» — disse, numa vaga tentativa de
imitar a minha forma de falar.
Fiquei surpreendida por se recordar das mesmíssimas palavras que eu usara
para lhe explicar a minha obsessão por aquele dia, ainda mais tendo em conta
que o tinha feito há dois anos.
— Se sabes, porque perguntas? — respondi, irritada.
O Nick abanou a cabeça, ainda a sorrir.
— Tinha esperança de que tivesses amadurecido, que te tivesse passado essa
maluqueira que chamas de Natal.
Embora soubesse que se dirigira a mim de forma divertida, a palavra
«amadurecido» não me passou despercebida. Lembrei-me do que me dissera no
seu apartamento de Nova Iorque e senti-me invadida por uma onda de fúria.
— Deixa-me em paz, pode ser?
Saí da casa de banho antes que ele pudesse voltar a abrir a boca. Às vezes
esquecia-me de como ele podia ser imbecil.
Meia hora depois, desci à cozinha, usando umas calças de ganga e uma
camisola branca larga e já gasta. Queria ir confortável, a Black Friday era uma
loucura, e eu uma especialista em encontrar os melhores saldos.
Apesar de ser tão cedo, cinco minutos depois de me ter servido de uma
chávena de café, o Nick e a Maddie apareceram na cozinha, ambos de pijama e
cabelos despenteados. O Nick trazia a Mad sobre um ombro, e ela ria-se
enquanto ele ameaçava deixá-la cair. Ao ver-me ali sentada, a menina
contorceu-se para o irmão a libertar e veio a correr sentar-se ao meu lado.
Ajudei-a a subir para uma das cadeiras enquanto o Nick se servia de uma
chávena de café.
— Eu quero comer o mesmo que a Noah! — pediu ela aos saltinhos enquanto
apontava para o meu dónute de chocolate.
O Nick olhou para ela com o sobrolho franzido.
— Primeiro tens de medir os níveis de açúcar, pequenita — disse ele,
apontando para um aparelho pequeno que estava à frente dela, ao lado de um
copo de leite quente.
A Maddie suspirou, mas começou a fazer o que o irmão lhe pedia. Observei-a
sem conseguir acreditar que aos sete anos já o fazia sozinha. Olhei para o Nick,
que estava entretido a mexer ovos, e senti-me na necessidade de fazer alguma
coisa.
— Queres ajuda, querida? — perguntei, embora não fizesse grande ideia de
quais eram os níveis de açúcar certos nem nada dessas coisas.
— Eu consigo sozinha — respondeu ela, tirando uma tira de papel de uma
caixinha, a seguir pegou no dispositivo com uma agulha para picar um dos
dedos, apertou a parte superior e com um clique conseguiu uma pequena gota
de sangue. Com a habilidade incrível de quem fazia isto três vezes por dia desde
que lhe tinham diagnosticado a doença, pôs a gota de sangue na tira de papel e
inseriu-a no dispositivo. Uns segundos depois, leu os níveis de açúcar em voz
alta.
— Não há mais dónutes, Maddie, mas tenho bolachas e uma maçã que está
ótima — disse o Nick, pegando na chávena de chá, nas bolachas e na maçã
antes de se sentar ao lado da irmã, que o fitava com cara de poucos amigos.
Sabia que havia mais dónutes e amaldiçoei o momento em que me lembrara
de comer um naquela manhã. Não queria causar inveja à pobre menina, por isso
levantei-me da mesa e deitei fora o dónute.
— Não gosto dessas bolachas — protestou ela, cruzando os braços.
O Nick observou-a com um suspiro.
— São as que comes sempre, Madison. Gostas delas, sim.
— Não! — gritou, saltando da cadeira com a intenção de sair da cozinha a
correr.
O Nick estendeu o braço e agarrou-a em pleno voo. Naquele instante, o Will
apareceu à porta, também de pijama e a olhar para o filho com má cara.
— Que são estes gritos? — perguntou, olhando em redor e fitando-me alguns
segundos depois. — Que fazes vestida?
Revirei os olhos e contornei-o para ir tirar os ovos mexidos que o Nick deixara
no fogão. Pu-los num prato e levei-os para a mesa, enquanto a Maddie olhava
para o pai com assombro.
— Come o pequeno-almoço — ordenou o irmão, sentando-a novamente na
cadeira.
O Will pegou numa chávena e no jornal que estava em cima da mesa e foi
sentar-se. Então, apercebeu-se de que estávamos os três, o Nick, a Maddie e eu,
a olhar para ele, expectantes.
O William olhou para o Nick, depois para mim — fiz sinal com a cabeça na
direção da Mad —, e depois os seus olhos fixaram-se na pequenita sentada à sua
frente.
— Humm… — disse um segundo depois, pigarreando para aclarar a voz. —
Como dormiste, Maddie?
A menina mergulhou a bolacha no copo de leite e a seguir levou-a à boca
enquanto respondia.
— Dormi com o Nick e a Noah.
O William engasgou-se com o café. A seguir olhou para mim e para o Nick.
— Que diabo?! — exclamou, pousando a chávena na mesa.
O Nicholas olhou-me de relance e começou a explicar ao pai o sucedido.
Alguns segundos depois, o William assentiu, olhando para nós com cara de
poucos amigos. De repente, senti que precisava de sair dali.
— Vou-me embora — anunciei, pegando na mala e deixando a minha
chávena no lava-louça.
O Will observou-me com as sobrancelhas erguidas.
— Vais outra vez meter-te naquele inferno?
O Nicholas sorriu por trás da chávena de café e tive vontade de lhe atirar a
mala à cabeça.
— Sim, William, vou às compras e vou meter-me naquele inferno
voluntariamente, porque sou masoquista, está bem? — respondi, irritada, no
instante em que a minha mãe aparecia na cozinha.
Ai, Deus do Céu, já me tinha esquecido de como era viver naquela casa.
— Mantém-te afastada das enchentes de gente, Noah — aconselhou,
passando à minha frente e entrando na cozinha.
Abanei a cabeça enquanto procurava a chave do carro.
— Onde vai a Noah? — perguntou então a Maddie.
— Vou às compras, Mad — respondi, antes que alguém voltasse a fazer
algum comentário estúpido. A menina arregalou muito os olhos, entusiasmada.
— Eu também quero ir às compras! — gritou, surpreendendo-nos a todos.
O William olhou para ela por cima do jornal.
— És mesmo filha da tua mãe — afirmou entre dentes, voltando à leitura.
Eu sorri, divertida, enquanto o Nick observava a irmã com o sobrolho
franzido.
— Ouviste isto, Nick? A Maddie quer ir às compras — comentei, adorando a
situação como se fosse uma criança.
O Nick fulminou-me com os olhos claros e voltou-se para a pequena.
— Não. A Mad quer ir à praia comigo. Não é verdade, pequenina?
— Não!
Ah, a vingança sabia-me tão bem!
— Vá lá, Madison, disseste-me que querias aprender a fazer surfe!
— Eu detesto surfe! Quero ir a Rodeo Drive!
Todos nos rimos menos o Nicholas, que olhava para a irmã como se esta se
tivesse transformado num pequeno monstro.
— Bem, vou-me embora — informei, saindo pela porta.
O Nick alcançou-me mesmo antes de sair.
— Não pensas que vou enfrentar isto sozinho, pois não? — disse, olhando
para mim com maus modos.
— Enfrentar o quê? — perguntei, tentando não desatar a rir.
— Se eu tenho de passar o dia às compras com uma menina de sete anos, tu
vais comigo, não tenhas a menor dúvida.
— Eu não vou para Rodeo Drive, vou ao Beverly Center — respondi,
encolhendo os ombros com um sorriso nos lábios.
O Nick fulminou-me com os seus olhos azuis, e eu saboreei a minha pequena
vingança.
— Vou buscar-te à hora do almoço, Noah, e é bom que estejas lá quando te
ligar.
— Nicholas…
— E pede ao Steve que te leve: estacionar ali vai ser uma loucura; além disso,
assim podemos voltar para casa juntos.
— Quero ir no meu carro.
— E eu queria ir fazer surfe e aproveitar a praia no inverno e agora, por tua
causa, tenho de ir às compras — respondeu, imperturbável.
Dez minutos depois, ia com o Steve a caminho de um dos maiores centros
comerciais da cidade.
O Beverly Center era um centro comercial situado em Beverly Grove, um
bairro do centro de Los Angeles que ficava a uns meros dez minutos de Beverly
Hills. Sim, tinha atravessado a cidade para ir até ali e ainda por cima ia ter de
me apressar se queria encontrar-me com o Nick e a irmã à hora do almoço, mas
a Black Friday merecia o esforço.
Como sempre, tudo estava uma verdadeira loucura: o centro rebentava pelas
costuras, as filas de clientes chegavam até às portas das lojas, as crianças corriam
de um lado para o outro, choravam ou comiam coisas que as deixavam todas
besuntadas, a elas, aos pais e a quem estivesse por perto. Homens e mulheres
com o seu calçado mais confortável entravam e saíam das lojas como se
estivessem em plena caça à raposa.
Gostava de ir sozinha porque assim não havia distrações. Além disso, eu não
era rápida nas compras, era muito rápida: entrava numa loja, e cinco minutos
depois já sabia se ia ter alguma coisa que me agradasse ou não; não perdia
tempo a procurar por entre a roupa, não, era a roupa quem me chamava e, se ao
entrar nada me chamasse a atenção, adeus e amigos como antes.
Às duas da tarde já tinha comprado quase todos os presentes de Natal. O
telemóvel tocou no meu bolso, e vi que o Nicholas acabara de me mandar uma
mensagem.
Apanho-te na porta da Macy’s daqui a dez minutos.

Que maravilha… a minha vontade de me encontrar com ele era praticamente


nula.
21
NICK

Sabia que a Noah detestava fazer compras acompanhada e por isso passei a
manhã a sós com a Maddie. Fomos à biblioteca, ao salão de jogos e ao parque
infantil. Implorou-me que lhe comprasse um disfarce; enquanto todas as
meninas da sua idade punham coroas e vestidos de princesa, a minha irmã
escolhera ser uma Tartaruga Ninja. Sim, agora atravessava Beverly Grove com
uma Tartaruga Ninja em miniatura e vários sacos de coisas que não tinha tido a
menor intenção de comprar.
Como o meu pai dissera, a minha irmã era bem filha da nossa mãe.
— Onde está a Noah? — perguntava incessantemente desde que lhe dissera
que íamos ter com ela.
— Isso era o que eu gostava de saber — respondi, sentando-me no exterior do
centro comercial à espera de que ela saísse de uma vez por todas. Dali a pouco o
Steve viria buscar-nos, apesar de o trânsito estar uma loucura… não se
conseguia parar nem em segunda fila.
Quando peguei no telemóvel para lhe ligar, vi-a a aparecer. Vinha carregada
de sacos, a camisola que vestia antes estava atada à cintura e por baixo usava um
top simples de alças que lhe chegava ao umbigo.
A Mad sorriu e correu para a receber enquanto eu subi os óculos de sol para a
cabeça e a observei embasbacado, como se fosse um idiota.
— Adoro o teu disfarce, Mad! — disse ela a sorrir, mostrando os bonitos
dentes brancos. Há tanto tempo que não via aquele sorriso que senti uma
pontada no peito.
— Também havia do teu tamanho, se quiseres de certeza que ainda podemos
ir comprar um — comentou a minha irmã, o que provocou uma gargalhada da
Noah.
A Noah disfarçada de Tartaruga Ninja… era só o que faltava! Embora me
tivesse ocorrido imediatamente imagens da Noah disfarçada de muitas outras
coisas, o que me obrigou a voltar a baixar os óculos e ocultar os meus
pensamentos indecentes.
— Olá — cumprimentei quando nos encontrámos a meio caminho.
— Oi — disse de forma bastante seca.
Franzi o sobrolho com curiosidade.
— Eu ajudo-te — ofereci, pegando nos sacos que trazia. Inicialmente resistiu,
mas depois deixou-me levá-los. Os olhos afastaram-se dos meus e voltaram a
fixar-se na minha irmã.
— Estão aqui há muito tempo?
— Há um par de horas — respondi, pegando no telemóvel e olhando para as
mensagens. O Steve estava à nossa espera na esquina e tinha o carro mal
estacionado. — Vamos.
Cinco minutos depois tínhamos deixado toda aquela loucura para trás.
Levei-as a almoçar a um restaurante afastado das zonas comerciais. Comemos
costeletas com batatas enquanto a minha irmã monopolizava quase toda a
conversa. Para ser sincero, não fazia ideia do que estava a fazer ou que jogo
queria jogar, mas de repente parece que sentia uma necessidade quase vital de
estar a sós com a Noah. Ela mal me dirigira a palavra e, embora as coisas
estivessem tensas entre nós, mais do que tensas, na verdade, pensei que as
nossas tréguas corressem melhor.
Ao sair do restaurante, reparei que no edifício em frente havia um parque de
diversões coberto, daqueles com bolas coloridas e trampolins para saltar, com
escorregas e uma carrada de crianças a correr sem parar.
— Mad, queres ir ali um bocadinho? — perguntei, apontando para aquilo
que era um paraíso para qualquer criança com menos de dez anos.
A minha irmã pôs-se a saltar, doida de alegria, e a Noah olhou para mim com
o sobrolho franzido. Pronto, está bem, não tinha sido tão subtil como pensara.
Paguei para o monstrinho ficar ali durante uma hora e convidei a Noah para dar
um passeio.
— Estás muito calada — comentei enquanto percorríamos uma rua pedonal
cheia de bares, lojas e gelatarias. — Estás cansada?
A Noah continuou a olhar em frente.
— Sim, acho que sim… levantei-me muito cedo.
Continuámos a caminhar sem falar. Aquilo era ridículo, nunca tínhamos
estado tanto tempo juntos sem proferirmos uma palavra. Noah, que nunca se
calava nem debaixo de água, que tantas vezes tivera de calar com um beijo ou
de distrair com carícias para que me desse descanso aos ouvidos, agora parecia
interessada em tudo menos em mim.
— Pronto, já chega! O que raio se passa contigo? — perguntei, irritado.
Ela olhou para mim, surpreendida.
— Comigo não se passa nada… — respondeu, embora no fim da frase me
parecesse hesitante. Esperei, procurando não me exasperar. — É só que não
estava à espera disto. Pensei que íamos estar com a tua irmã. Porque é que a
deixaste naquele parque de diversões idiota? Sabes as doenças que os miúdos
apanham nestes sítios? E piolhos, por exemplo! Agora, de certeza que vamos ter
todos piolhos porque tu decidiste mudar de planos… Pensei que íamos os três
passear pelo parque antes de voltarmos para casa; além disso, ainda me falta
comprar algumas coisas… Quando me ligaste, nem te deste ao trabalho de me
perguntar se já tinha acabado, porque estás muito habituado a dar ordens e
pronto: «Vou-te buscar daqui a cinco minutos.» — Imitou a minha voz. —
Pois se calhar ainda não estava despachada, pensaste nisso? E não, não olhes
assim para mim! Isto é… estranho, não me sinto confortável.
Arregalei os olhos surpreendido, tentando conter a vontade de me rir, ela
estava realmente a conter-se.
— Estás desconfortável com quê? — perguntei com uma incredulidade
fingida.
A Noah parou e voltou-se para mim.
— Com isto! — respondeu, apontando para os dois. — Tu e eu. Ages como se
ainda estivéssemos juntos! — exclamou, como se lhe tivesse custado anos de
vida dizer estas palavras. — Aceitei as tréguas a bem da Maddie, mas não vou
voltar a enganar-me, e agradecia que tu também não o fizesses. Ou queres que
te relembre das coisas que me disseste da última vez que te vi?
Respirei fundo. Na verdade, sabia que a Noah tinha razão. Disse-lhe que
estava apaixonado pela Sophia só para ela virar a página, mas sabia que não ia
ser assim tão fácil.
— Estou a tratar-te apenas como se fosses uma amiga, mais nada — disse,
ficando sério.
A Noah olhou em redor, parecia transtornada. Alguns segundos depois voltou
a olhar para mim.
— Prefiro a tua hostilidade — disse então, e senti uma pontada no peito. —
A sério que a prefiro, porque já sei lidar com ela, estou habituada; isto que estás
a fazer agora, pelo contrário… — Abanou a cabeça enquanto olhava para o
chão. Tive vontade de lhe segurar no queixo e olhar para os seus olhos. — Sei
que só o fazes pela tua irmã, mas isso magoa-me e confunde-me. Não quero
passar tempo contigo, não quero passear contigo, nem almoçar, nem que me
perguntes coisas sobre a minha vida, como porque tenho uma cicatriz ou
porque ando de moto… Isso são assuntos da minha vida, não te dizem respeito,
e já sei que fui eu quem estragou tudo, mas tu tomaste uma decisão e gostava
que a ­cumprisses.
Desviei o olhar para as árvores atrás de nós, estava a sentir-me uma porcaria.
Sim, era verdade que estava a fazer aquilo pela Maddie, mas uma parte de mim
também queria passar tempo com a Noah, porque, raios, sentia mesmo
saudades dela…
— Muito bem — respondi um pouco cortante. — Vamos buscar a minha
irmã.
Rodei nos calcanhares e comecei a percorrer a rua. A Noah não tardou a pôr-se
ao meu lado, e esta sensação… de a ter tão perto de mim, mas ao mesmo tempo
a quilómetros de distância, conseguiu voltar a transformar-me na estátua de
gelo que sem me aperceber deixara derreter desde o dia anterior.
Passámos em frente a algumas lojas e, mesmo quando íamos a dobrar a
esquina do parque de diversões, a minha mãe, sim, a minha mãe, apareceu à
nossa frente. Parei de caminhar assim que a vi. Não obstante o que a lei
estipulava, eu continuava a recusar-me a vê-la, e fora a ama da minha irmã
quem ma tinha trazido no dia anterior. Tê-la ali novamente, tendo em conta
que não voltáramos a cruzar-nos desde a noite em que decidira começar a
divulgar verdades no aniversário das Empresas Leister, foi uma surpresa mais do
que desagradável.
Como sempre, estava muito elegante, com um vestido de caxemira, salto alto
e o cabelo apanhado num carrapito. Apesar disto, julguei ver olheiras por baixo
dos seus olhos, olheiras essas que a maquilhagem cara que a minha mãe usava
devia disfarçar melhor.
— Nicholas! — exclamou surpreendida ao ver-me mesmo à sua frente.
Cerrei o maxilar com força antes de falar.
— Sim, mãe, que desagradável coincidência encontrarmo-nos assim.
Ela endireitou os ombros, presumo que para encaixar o golpe. A verdade é
que não me importava nem um pouco, a minha relação com ela continuava tão
má como antes… Que digo… Tão má? A relação era inexistente.
— Olá, Noah — cumprimentou, voltando­-se para ela, que se retesou ao meu
lado de forma evidente.
Considerando as circunstâncias do nosso passado e dos nossos pais, não devia
estar muito enganado ao pensar que a minha mãe faria parte da lista de pessoas
menos queridas da Noah; mais do que isso, devia estar nos lugares cimeiros.
Não lhe retribuiu o cumprimento.
— Estamos com pressa. Se nos dás licença… — Disse, com a firme intenção
de continuar o meu caminho. Não obstante, a minha mãe deu um passo em
frente e pousou a mão no meu braço, detendo-me.
— Gostava de falar contigo, Nicholas.
— Sim, isso ficou bem claro em todas as mensagens que deixaste com a
minha secretária, mas acho que ela também foi suficientemente esclarecedora
nas suas respostas ao dizer-te que não estou interessado.
Agarrei na mão da Noah como um ato reflexo; subitamente, senti que estava a
afogar-me e que precisava de sair dali o mais depressa possível. Puxei-a comigo
e passámos ao lado da minha mãe com o propósito de nos irmos embora sem
olhar para trás.
— Trata-se da Maddie, Nicholas — anunciou a minha mãe nas minhas costas.
Aquilo conseguiu fazer-me parar. Voltei-me para ela com aborrecimento.
— Podes contar ao pai qualquer coisa que se passe com a minha irmã, ele
encarregar-se-á de me manter informado.
A minha mãe pareceu ir-se abaixo, olhou para mim com os olhos suplicantes,
e todas as minhas defesas se desmoronaram. A minha mãe, a suplicar?
— Concede-me apenas alguns minutos, Nick, por favor.
Os meus olhos desviaram-se para a Noah, que parecia tão intrigada quanto eu.
— Muito bem — concordei. — O que se passa?
A minha mãe fez um gesto entre a surpresa e o alívio e conduziu-nos até uma
cafetaria que havia mesmo em frente. A Noah sentou-se ao meu lado, e a minha
mãe, em frente. Tudo isto me parecia estranhíssimo, mas precisava de acabar
com a situação o quanto antes.
— Bem, diz lá o que é, não temos o dia todo.
Apesar de ter demonstrado uma certa debilidade pedindo-me por favor que
lhe concedesse alguns minutos, perante este último comentário endireitou os
ombros e olhou para mim com cara de poucos amigos.
Ali estava a Anabel Grason de que me recordava.
— Muito bem, uma vez que mal consegues tentar ter um pouco de tato
comigo, vou também deixar-me de rodeios e floreados. Queres que seja breve,
serei breve — disse, pousando a chávena no pires e olhando fixamente para
mim. — Estou doente, Nicholas.
Um silêncio abateu-se sobre a mesa, silêncio esse interrompido pelo copo de
vidro que eu tinha na mão antes de o deixar cair sobre o tampo.
— Que queres dizer com isso de estares doente? — perguntei, irritando-me
de imediato. De certeza que era uma treta qualquer, não sei para que fim, mas
parecia-me patético.
— Que quero dizer? — respondeu e agora, ao olhar para ela com mais
atenção, vi que a sua expressão de dureza fraquejava e deixava a descoberto um
medo e uma insegurança que nunca vi na minha mãe. Respirou fundo e olhou
fixamente para mim antes de pronunciar as seguintes palavras: — Tenho
leucemia.
— Mas que diabo estás a dizer? — respondi, notando quase de imediato que a
minha voz desceu duas oitavas.
A minha mãe juntou as mãos sobre o regaço e chegou-se para trás no assento.
— Diagnosticaram-ma há um ano e meio… Quis contar-te, mas não queria
fazê-lo por telefone, isto se te dignasses a atendê-lo. O teu pai já sabe de tudo
há alguns meses, mas prometeu-me que não te diria nada, queria ser eu a
contar-te… Sei que me odeias, mas és meu filho e…
A sua voz começou a estremecer, e subitamente senti-me a cair, caía
desamparado por um poço sem fundo e ia acabar por me estatelar… era uma
questão de segundos: ia estampar-me e não sabia o que se seguiria, mas de
certeza que não seria nada de bom. Foi então que senti que alguém me apertava
a mão com força, uma mão quente e pequena que se aproximara da minha por
baixo da mesa e que prometia não me largar.
Olhei para a Noah, que estava ao meu lado e olhava para a minha mãe com…
pena? Senti que os meus dedos se agarraram a ela com força, como se de repente
fosse o meu único ponto de referência, porque aquilo que a minha mãe me
estava a dizer não podia ser verdade.
— Não quero contar-te isto para teres pena de mim, só quero explicar­-te o
porquê de algumas coisas que fiz ao longo dos últimos meses, tudo o que fiz a
respeito da Maddie, do Grason, do teu pai…
— Estás a falar de quê? — perguntei, aclarando a garganta ao reparar que o
nó que ali se formara me impedia de falar.
— Vou ceder a custódia total da Maddie ao teu pai.
— Como? — perguntei, despertando da minha letargia.
— Nos próximos anos vou ter de enfrentar situações muito difíceis, Nicholas,
situações que não quero que uma menina de sete anos tenha de presenciar.
Quando soube disto, tudo se tornou muito claro para mim: se me acontecer
algo, a última coisa que quero é que a minha filha fique aos cuidados do Grason.
É um homem egoísta e que só se importa com o seu próprio umbigo. Eu cometi
erros, meu Deus, cometi muitíssimos erros na minha vida e sei que estou longe
de ser alguém que merece que a escutes, mas preocupo-me com a Maddie,
preocupo-me muito com ela, Nick, e se me acontecer alguma coisa, se isto não
correr como espero que corra, quero que a minha filha esteja com uma família
que a ame e proteja.
— Espera, espera — interrompi. — Disseste que o meu pai já sabe disto? Ele
está de acordo com esta questão da custódia completa? Mas, como…?
— Tudo o que aconteceu com o Grason, o divórcio, saber quem era o pai da
Maddie… voltei a remexer neste assunto todo porque sabia que havia uma
possibilidade de ela ser filha do teu pai. E não me enganei, como também não
me enganei quando imaginei que assim que o ­William soubesse que a Maddie
era sua filha iria querer fazer parte da sua vida, que é exatamente o que eu quero
também.
Olhei para ela com incredulidade… tudo o que acontecera, tudo o que se
descobrira… Era porque a minha mãe queria que fosse o meu pai a ficar com a
Maddie caso ela… caso ela morresse?
— E o que pretendes fazer? — perguntei subitamente, sentindo a raiva a
crescer dentro de mim. — Pretendes abandonar a Maddie em casa do meu pai?
Pretendes renunciar aos teus direitos e esperar que a tua filha não tenha
saudades tuas? Isso é uma loucura!
— Nicholas… — começou por dizer a Noah.
— Não! — exclamei, pondo-me de pé. — Não é assim que se fazem as coisas,
bolas! Pretendes fazer com ela o mesmo que fizeste comigo?
A minha mãe inspirou fundo sem olhar para mim.
— Senta-te, por favor — pediu-me, mantendo a calma, embora pudesse ver
que lhe custava muito fazê-lo.
Sentei-me porque, de repente, tinha as pernas a tremer; todo o meu corpo
estava sob tensão, o meu maldito cérebro era um torvelinho de pensamentos
sem sentido que tentava compreender em que mundo as ações da minha mãe
podiam ser justificadas.
— Não quero abandoná-la, Nicholas, vou simplesmente ceder a custódia ao
teu pai enquanto tento sair disto. Estou em contacto com os melhores médicos
do país e vou começar a fazer quimioterapia no Hospital MD Anderson, em
Houston. Os médicos estão otimistas, mas isto pode demorar anos: não queres
que leve a Maddie comigo para Houston, pois não? Quem cuidaria dela
enquanto eu estivesse em tratamento? Só estou a tentar pensar no que será
melhor para todos.
Fiquei calado durante o que podiam ter sido segundos ou minutos, não faço
ideia. Isto era tudo uma merda, uma valente merda.
Foi então que senti o toque de uma mão diferente a segurar na minha. Abri os
olhos e verifiquei que era a da minha mãe. As mãos dela sempre foram assim tão
ossudas? Fitei-a, vi as suas olheiras e percebi que estava bastante mais magra
desde a última vez que a vira. Os meus dedos agiram por vontade própria e
fecharam-se em redor da sua mão quase sem me pedirem autorização.
— Lamento muito tudo isto, Nick — disse ela e um instante depois largou-
me para limpar uma lágrima que decidira escapar-se do seu controlo. — O teu
pai pode explicar-te tudo melhor do que eu. Obrigada por me teres ouvido.
A minha mãe começou a levantar-se, e subitamente senti um vazio imenso no
meu peito e na minha mente.
— Espera — pedi, e nunca na minha vida me sentira tão perdido. — Vou
dar-te… Deixa-me dar-te o meu número de telefone pessoal para me poderes
ligar para dizer quando vais embora ou quando ­planeias…
Calei-me porque não sabia o que dizer a seguir. Tirei um dos cartões de visita
da carteira e escrevi o meu número atrás com uma caneta. A minha mãe aceitou
o cartão e sorriu-me, agradecida.
— Obrigada, filho — disse, antes de desviar os olhos para a Noah. — E
obrigada a ti também.

Dez minutos depois estávamos no parque de diversões para irmos buscar a


minha irmã. Sentia-me como se, de repente, a minha vida não fosse minha,
como se estivesse a representar um papel que não me pertencia… Assim, sem
mais nem menos, estava tão irritado, tão zangado com a vida por brincar
comigo desta forma, por me ter posto outra pedra no caminho, que reparei que
começava a arder por baixo da pele, reparei que os meus músculos ficavam
tensos, criando uma energia que não fazia a menor ideia de como podia
eliminar.
A Maddie saiu do parque de diversões e veio a correr na minha direção.
Esperava-a de braços abertos porque precisava de a abraçar, queria metê-la
debaixo da minha pele e poupar-lhe toda a dor que sabia que teria de enfrentar
em tão tenra idade. Não só aquele que julgara ser o seu pai se ia embora sem a
menor intenção de a voltar a ver como agora também a mãe estava doente e a ia
deixar com o pai que acabara de conhecer.
Uma parte de mim sentiu uma necessidade repentina de a meter num avião e
levá-la comigo, levá-la para Nova Iorque, onde podia cuidar dela, mas… Por
mais que naquele momento desejasse sê-lo, eu não era o pai dela. Abracei-a com
força e levantei-a no ar. Estava corada da brincadeira e falava sem parar, muito
entusiasmada. A Noah deve ter percebido que eu mal interiorizava o que ela
dizia porque começou a preencher os silêncios entre as minhas escassas palavras
e pensamentos razoáveis.
Tempo… agora, o tempo parecia crucial, tempo perdido, o tempo que restava
para viver, porque durante quanto tempo viveria? Conseguiria superar aquilo?
Ia para Houston e eu nunca mais a voltaria a ver? Nem a minha irmã?
Chegámos a casa, saí do carro e segui-as até à porta da entrada. Sabia que a
Noah ainda não tirara os olhos de mim e, quando fiquei na soleira da porta, sem
entrar em casa e sem conseguir dar um passo mais que fosse, ela voltou-se para
mim e perguntei-lhe qualquer coisa, algo que nem ouvi.
— Preciso… preciso de ficar sozinho agora. Podes… podes cuidar da…?
A Noah vacilou, como se quisesse dizer alguma coisa, mas não se atrevesse.
Acabou por assentir, e agarrei a chave do carro que o Steve me atirou. Ele
observava-me, preocupado, mas eu não tinha forças para lhe explicar nada.
Entrei no carro e desapareci durante horas.

Quando entrei em casa, já era praticamente meia-noite. Tinha tido muito


tempo para pensar, e, quando se está realmente abalado, pensar pode ter
consequências das quais muito provavelmente nos vamos arrepender com o
passar do tempo.
Subi as escadas na penumbra, nem me dando ao trabalho de acender luzes.
Para quê? Ao passar pela porta do quarto da Noah, uma dor aguda e intensa
trespassou-me o coração. Ali dentro estava o amor da minha vida… o mesmo
que me magoara tanto quanto todas as outras pessoas que deixara entrar no meu
coração.
Odiava a Noah?
Odiara-a, sim, e havia a probabilidade muito elevada de continuar a odiá-la
naquele mesmo instante; o que digo? Foi nesse instante que mais a odiei,
porque foi quando mais precisei dela, quando a sua ausência me custou mais,
quando a minha mente me gritou que fosse à sua procura e o meu coração
acalentou esperanças de que alguém me administrasse algum tipo de paz
interior, algum tipo de trégua para esta dor que sentia.
Abri a porta do quarto dela sem sequer me dar ao trabalho de bater. Ela estava
na cama, acordada e novamente rodeada de livros. A minha irmã estava a
dormir na sua cama, atravessada no colchão e a chuchar no dedo, como fazia
desde os dez meses de idade. Voltei a olhar para a Noah, que fechou o livro com
cuidado, tirou os óculos e concentrou todas as suas atenções em mim.
— Onde estiveste? — perguntou sem elevar a voz. — Saíste daqui há cinco
horas… Estás bem, Nicholas?
Aproximei-me dela, tirei-lhe o livro das mãos e pousei-o sobre a mesa de
cabeceira.
— Quero falar contigo — disse, apontando para a porta. A Noah hesitou, e
isto acendeu alguma coisa dentro de mim. — Deves-me isso — acrescentei com
os dentes cerrados.
Ficámos a olhar um para o outro durante o que podiam ter sido minutos. Até
que por fim, sem dizer uma palavra, se levantou da cama e me seguiu até ao
meu quarto. Quando os nossos olhos se cruzaram, não consegui conter-me mais,
segurei-lhe o rosto entre as mãos e beijei-a com todas as minhas forças. As suas
costas chocaram contra a porta do meu quarto e senti que voltava a respirar. Na
obscuridade que nos rodeava, só consegui sentir que estava tensa, mas, depois
de alguns segundos muito intensos, voltou o rosto e afastou-se de mim.
— Não faças isto, Nicholas — avisou-me num sussurro que mal se percebia.
A minha mão afastou uma madeixa do seu cabelo e prendeu-a atrás da orelha,
com cuidado, prolongando o mais possível o contacto. Sentia-me rodeado pela
sua fragrância, deixava-me louco de desejo, de amor… Este seu aroma era tão
característico, tão bom, tão especial. Seria capaz de me embebedar só de a
cheirar. E era exatamente disso que precisava naquele momento.
A minha mãe acariciou o seu rosto, e ela fechou os olhos, soltando ar de forma
entrecortada. Estaria a sofrer como eu? Sofreria com o facto de estar longe de
mim?
— Porque não consigo esquecer-te? — perguntei, encostando a testa à sua. —
Porque sinto que és a única pessoa que me pode ajudar num momento como
este?
— Nicholas… — disse, abrindo os olhos para me fitar. O que senti quando os
nossos olhares se encontraram foi tão intenso que me inclinei e enterrei o rosto
no seu pescoço; não conseguia suster o seu olhar, não o suportava.
Pousei os lábios na pele suave da sua garganta, primeiro devagar, mal roçando
nela, depois acariciei com a ponta do nariz uma linha desde o seu cabelo até à
clavícula. A minha mão viajou para a sua cintura e puxei-a para mim, precisava
de mais, de muito mais. As mãos da Noah apoiaram-se sobre o meu peito:
inicialmente pensei que ia acariciar-me, mas, perdido como estava nela, só
alguns segundos depois entendi que o que queria era empurrar-me para trás.
— Não estás a pensar com clareza, tu não queres fazer isto — afirmou.
Separei-me um pouco dela. As minhas mãos subiram pelas suas coxas
despidas, mal tapadas pela camisa de dormir, e acariciei-lhe as pernas
delicadamente. Parei ao chegar ao seu traseiro, pensando se o que estava a
acontecer naquele momento não era apenas uma loucura da qual me
arrependeria depois.
Os meus lábios beijaram as maçãs do seu rosto, os lábios entreabertos, as
pálpebras, para depois voltar a descer e me enterrar na sua garganta. Já não a
beijava… naquele momento deixei-me levar, suguei, mordisquei à vontade.
Estava perdido nela, perdido numa espécie de limbo onde tudo o que fizemos
um ao outro parecia ter deixado de existir. A Noah soltou um suspiro
entrecortado, e isto incentivou-me a continuar. Levantei-a ao colo e pus as suas
pernas em redor da minha cintura. As mãos seguraram o meu rosto, e ficámos a
olhar um para o outro como se nos tivéssemos acabado de encontrar depois de
uma eternidade. Não vi rancor nos seus olhos, não vi mais nada além do amor
que sentia por ela, o amor que tinha a certeza que continuava a viver no seu
coração, um amor que tinha de desaparecer, raios, um amor que, por mais que o
tentasse ­enterrar acabava sempre por vir à superfície nos piores momentos,
fazendo-me agir contra todos os meus princípios.
— Preciso de ti — confessei sobre os seus lábios. A respiração dela misturou-
se com a minha e achei que ia desmaiar ali mesmo de prazer. Até que enfim, o
toque que acalmaria toda a minha dor.
Não hesitei mais, deixei de jogar no instante em que os seus lábios roçaram os
meus numa resposta tímida às minhas palavras. Lancei-me sobre ela, sobre a sua
boca, o meu corpo apertou-a contra a porta, e os lábios da Noah entreabriram-se
para me receberem. Beijei-a como se fosse a primeira vez. Comprimi o seu
corpo, precisava de a sentir, de roçar o meu corpo contra o seu, de alguma coisa
que aliviasse a tortura a que estava a sujeitar o meu corpo.
— Vou fazer amor contigo, Noah — anunciei como se fosse uma coisa
inevitável, como se tivesse de acontecer. — Desde que nos separámos que tudo
é uma porcaria, a minha vida continua a desmoronar-se um pouco mais a cada
dia que passa; odeio precisar de ti como preciso, odeio saber que agora mesmo
és a única pessoa capaz de me fazer esquecer que a minha mãe está a morrer,
nem que seja só durante alguns minutos. — Senti as lágrimas acorrerem-me aos
olhos e beijei-a para que não se apercebesse.
Ela abanou a cabeça, e o luar que entrava pela janela deixou-me ver as
lágrimas que também humedeceram a sua pele.
— Sabes que isto só vai piorar as coisas — sussurrou, encostando a testa à
minha e fechando os olhos com força. Conseguia sentir que o seu coração batia
descompassado, quase ao ritmo do meu.
— As coisas já não podem piorar mais… nada pode estar mais lixado do que
está neste momento — respondi, segurando-lhe no queixo e fitando os seus
olhos brilhantes e tristes.
— Isto só nos vai magoar mais… — voltou a sussurrar. — Amanhã de manhã
nada terá mudado, vai estar tudo na mesma…
Beijei uma das suas lágrimas, recolhi-a com a ponta da língua e saboreei o
gosto salgado na minha boca.
— Naquela noite, em Nova Iorque, pediste-me que fizesse de conta que te
tinha perdoado — comentei, pousando novamente os lábios e apanhando outra
lágrima na maçã do seu rosto. — Agora preciso que faças o mesmo por mim.
Senti o tremor do seu corpo contra o meu, pousei os lábios sobre os dela com
força e voltei-me com ela em direção à minha cama.
22
NOAH

Não se separou de mim quando me deixou em pé junto da sua cama e a boca


começou a beijar cada parte do meu corpo com infinita ternura, à medida que
me despia. Primeiro subiu-me a camisa de dormir com uma lentidão dolorosa,
puxando-ma por cima da cabeça e deixando-a cair ao seu lado. Observei,
espantada, que tirava a camisa e as calças, ficando só de boxers.
Forcei-me a afastar os olhos daquele corpo capaz de causar enfartes e vi os seus
olhos escurecer quando me fitou ali, à sua frente: era como se não
acreditássemos no que estávamos prestes a fazer. Era muito diferente do que
acontecera em Nova Iorque. Naquela altura estávamos os dois feridos e
zangados, o nosso encontro foi frio e sexual, mas agora, depois das nossas
tréguas, de termos passado dias praticamente sem discutir e de ficarmos a saber
uma notícia tão cruel, a carga emocional que sentíamos era impossível de
ignorar.
Os seus dedos desceram até ao fundo das minhas costas, e ficou a olhar para
mim. Eu tinha um sutiã de renda preta, não era nada do outro mundo, nada
que tivesse vestido se soubesse que ia acontecer algo como aquilo… Porque ia
deixar que acontecesse, não ia?
As dúvidas e o medo inundaram a minha mente, e ele percebeu porque me
puxou para si e encostou os lábios à minha orelha.
— Por favor, Noah — pediu-me, descendo a mão pelas minhas costas e
voltando a subi-la, numa carícia que conseguiu deixar-me a pele arrepiada. A
boca desceu até roçar a parte de cima dos meus seios.
Fechei os olhos com força, sustive a respiração e desejei que ele não tivesse
este magnífico controlo sobre mim, sobre o meu corpo. Então, voltou-me ao
contrário, as minhas costas contra o seu peito, e enquanto a boca se arrastava
pelo meu pescoço, beijando-me a nuca e acariciando o meu cabelo, a outra mão
foi descendo pelo meu estômago, desceu e desceu até entrar por baixo das
minhas cuecas e me acariciar sem pudor nem vergonha.
Os lábios pousaram sobre a minha orelha e lamberam-me a pele tão sensível.
Soltei um gemido entrecortado e desejei de verdade que aquilo fosse realmente
fazer amor, desejei com todas as minhas forças que pudesse esquecer-me do
nosso passado e fingir que estávamos juntos, que o Nick me estava a tocar e que
íamos fazê-lo na sua cama, como na primeira vez, quando me tirou a virgindade
e me disse que me amava.
Despiu-me a roupa interior e deitou-me na cama, para a seguir se pôr em
cima de mim. Beijou-me os seios e mordiscou-os, até que as minhas costas se
arquearam de desejo. A mão acariciou-me a perna esquerda, pegou-me pelo
tornozelo e levantou-o até a sola do meu pé estar pousada no colchão ao lado da
sua anca. Beijou-me a perna até chegar à coxa, deu-me mordidelas suaves e
passou a língua pela minha pele, como se ela soubesse a chocolate. Torturou-me
durante longos minutos até que achei que ia acabar por explodir com a próxima
carícia. Perguntou-me qualquer coisa, e assenti sem sequer perceber o que me
perguntara.
Com cuidado, aproximou a boca da minha, e senti o peso do seu corpo sobre o
meu. Os nossos olhares cruzaram-se durante uns segundos infinitos até que,
finalmente, me segurou na cintura e entrou em mim com um movimento
rápido.
Magoou-me, e soltei um grito involuntário.
Os seus olhos procuraram os meus com um misto de confusão e preocupação.
— Há quanto tempo não o fazes, Noah? — perguntou ao meu ouvido, e de
cada vez que se movia provocava-me dor, mas também prazer… Eu já nem
sabia onde estava, nem o que fazia, só podia concentrar-me em sentir, sentir,
sim, porque há meses que não sentia absolutamente nada.
— Há demasiado tempo — respondi, agarrando-me ao seu corpo com força.
O Nicholas parou e os seus olhos procuraram os meus.
— Não fizeste nada desde Nova Iorque? — perguntou com incredulidade,
mas seria alívio o que os meus olhos viam na sua expressão?
— Não fiz nada desde que nos separámos, Nicholas.
Os seus olhos incendiaram-se, e beijou-me com força, ao mesmo tempo que
recomeçava os movimentos. As suas investidas tornaram-se mais lentas, mais
carinhosas, a boca voltou a beijar-me, puxou-me o lábio inferior e a seguir
chupou-o com doçura. As minhas mãos agarraram os seus braços e concentrei-
me no prazer de voltar a partilhar esta união tão especial com ele.
Colei o rosto ao dele e agarrei-me com força.
— Diz-me que me amas — pedi-lhe ao ouvido com a voz rouca. O meu
pedido fê-lo parar. — Por favor…
— Não me peças isso — queixou-se, cravando os olhos nos meus. —
Esquecer-te foi a coisa mais difícil que alguma vez tive de fazer na minha vida.
Nem sequer sei o que vou fazer para regressar à realidade depois disto.
— Então, fica comigo — supliquei, aproveitando-me da vulnerabilidade
deste momento. Não queria saber, precisava dele tanto ou mais do que ele
precisava de mim.
As minhas mãos enterraram-se no cabelo dele, e, quando comecei a acariciá-lo
devagar, os seus olhos fecharam-se com força. Beijei-o em todo o lado, agarrei-
me a ele com todas as minhas forças.
— Diz-me, Nick… por favor — pedi com a voz trémula. A sua boca
silenciou-me, os beijos tornaram-se mais intensos. Queria calar-me, queria que
estivesse apenas dependente do embate entre os nossos corpos… O seu,
transpirado, comprimia-se contra o meu, a pele com a pele, na mais íntima das
carícias. Parecia irritado, excitado e triste, tudo ao mesmo tempo.
— Vamos, Noah… dá-me o que quero, dá-me aquilo de que necessito… por
favor.
As suas investidas tornaram-se mais fortes, mais rápidas. Fui perdendo a
ligação com o que me rodeava, com os sentimentos, com os problemas, com
tudo; o orgasmo aproximava-se, perigoso, daqueles que arrasam com tudo.
Até que gritei finalmente de prazer, arqueando a costas e afastando-me da
cama. Ele continuou a movimentar-se até se vir dentro de mim, soltando um
grunhido que afogou sobre a minha pele antes de se deixar cair sobre o meu
peito.
Tinha sido perfeito, sim, mas não me disse «Amo-te».

Quando recuperámos, o Nicholas foi à casa de banho, e pensei que ia


acontecer o mesmo que em Nova Iorque, quando saiu depois de tomar duche,
me atirou a T-shirt para cima e me pediu que me vestisse, mas estava enganada:
voltou e deitou-se ao meu lado, abraçando-me junto ao seu corpo. Não entendia
nada… Aquilo significava alguma coisa? Apoiei o rosto no peito dele, sentindo-
me como se me tivessem injetado felicidade líquida diretamente nas veias. Não
queria que se fosse embora, não queria voltar a perdê-lo. Abracei-o com força e
fechei os olhos, estava esgotada. O Nicholas começou a passar os dedos pelo
meu cabelo, para cima e para baixo, acariciando-me, até que comecei a ficar
sonolenta. Percebi que naquela noite ia sonhar com coisas bonitas, connosco
juntos outra vez… finalmente. Teria um sonho em que o ódio e os erros não
existiam e o amor que jurávamos entre nós era a única coisa que importava.
Inevitavelmente, a manhã trouxe consigo todo um repertório de verdades e
inseguranças e quando abri os olhos, ainda muito cedo, compreendi que o que
acontecera naquele quarto não se repetiria: o Nicholas tinha outra pessoa e não
era uma pessoa qualquer, era a Sophia, ela, uma das responsáveis do
alinhamento dos planetas naquela noite fatídica em que fui obrigada a fazer o
que fiz.
Olhei para ele, a dormir e com o braço a apertar-me contra si, como se nunca
mais me quisesse largar. Eu daria tudo para poder congelar aquele momento,
mas sabia que, quando os seus olhos voltassem a abrir-se, me devolveriam o
rancor e o arrependimento e sabia também que não estava preparada para isso.
Ele tinha precisado de mim, a mãe estava doente, usou-me para acalmar as
suas feridas… «Deves-me isso», disse ele, olhando-me fixamente e sem papas na
língua, e era verdade, sim, devia-lhe aquilo! Mas agora, poucas horas depois,
apercebia-me de que o que acontecera ali fora errado, as coisas não se faziam
assim, não se pediam daquela forma; por isso, este episódio ia apenas juntar-se à
longa lista de recordações dolorosas, embora preferisse guardá-lo só para mim,
preferia ficar-me com esta «despedida», por assim dizer, do que esperar que ele
acordasse para me rejeitar novamente.
Peguei no braço do Nicholas com cuidado, para não o acordar, e tirei-o de
cima de mim. O melhor era ir-me embora, afastar-me dele, da irmã, e deixar
para trás todas as recordações dolorosas. Depois inventava uma desculpa para a
minha mãe ou talvez nem precisasse de inventar nada. Não podia continuar
assim, tinha de o ultrapassar, tinha de seguir com a minha vida. O Nicholas
fizera parte de mim, teria sempre um lugar no meu coração, o que digo!, ele
teria o meu coração para sempre, mas eu precisava de voltar a ser eu, de voltar a
amar-me e de aprender a perdoar-me.
Fiz a mala o mais depressa e silenciosamente possível. A Maddie continuava
enroscada nos meus lençóis, a dormir como um anjo. Quando saí do meu
quarto, já vestida e preparada para me ir embora, em vez de me sentir aliviada
por ter acabado finalmente com aquela história, senti-me como se estivesse a
fechar um livro que me tocara a alma, um livro que recordaria para sempre…
Senti aquele pesar que se sente quando acabamos de ler um livro mágico e
incrível, mas que, mesmo que voltemos a lê-lo, já não será como a primeira vez.
Ali, naquela manhã, fechei um capítulo importante da minha vida. Um
capítulo… sim, mas nunca devemos esquecer-nos de que depois de um capítulo
pode sempre vir outro, ou um epílogo, por exemplo.

O trajeto até casa foi insuportável. O meu corpo gritava-me, implorando que
voltasse, que me metesse na cama com o Nick e que dormisse até já não me
restarem horas, mas a minha mente não parava de me criticar incessantemente
por ter sido tão idiota, tão estúpida ao ponto de pensar que alguma coisa podia
ter mudado. Não deixava de me questionar por que razão, se eu e o Nick já nos
tínhamos separado há mais de um ano, chorava agora como se tudo tivesse
acabado verdadeiramente entre nós. A certa altura, tive de sair da estrada,
desligar o motor do carro e abraçar o volante para soluçar à vontade sem correr o
risco de embater em alguém.
Chorei por tudo o que fomos, por tudo o que podíamos ter sido, chorei pela
sua mãe doente e pela irmã pequena… chorei por ele, por ter conseguido
desiludi-lo tanto, por lhe ter partido o coração, por ter conseguido que ele se
abrisse ao amor apenas para lhe provar que afinal o amor não existe, pelo menos
sem dor, e que esta dor é capaz de nos marcar para a vida.
Chorei por aquela Noah que podia ter sido com ele: cheia de vida, que apesar
dos seus demónios interiores tinha sabido amar com todo o seu coração; soube
amá-lo mais do que a qualquer outra pessoa, e isso também me dava vontade de
chorar. Quando se conhece a pessoa que queremos para o resto da vida, não há
como voltar atrás. Muitas pessoas nunca chegam a conhecer esta sensação,
acham que encontraram essa pessoa, mas estão enganadas. Eu sabia, sei, que o
Nick é o amor da minha vida, o homem que queria como pai dos meus filhos,
aquele que desejava ter ao meu lado nos bons e nos maus momentos, na saúde e
na doença, até que a morte nos separasse.
Nick era essa pessoa, era a minha outra metade, e agora tinha de aprender a
viver sem ele.
23
NICK

Por mais que amasse a minha irmã, naquela manhã não era quem esperava ver
assim que abri os olhos. Levantei-me, tentando situar-me e determinar por que
motivo o lado esquerdo da minha cama estava vazio. Como não me apercebera
de que a Noah acordara e saída do meu quarto? A resposta a esta pergunta era
que, pela primeira vez num ano, conseguira dormir profundamente.
— Onde está a Noah? — perguntava a minha irmã sem parar, enquanto dava
pequenos saltos em cima do colchão. A pergunta apanhou-me desprevenido.
Como assim, onde está?
— Não está no quarto dela? — perguntei, levantando-me finalmente e
passando a mão na cara para tentar acordar de vez. Fui até à casa de banho para
me preparar para aquele dia, o dia em que ia ter de lhe dar muitas explicações e
em que teria de considerar muitas coisas.
O que acontecera ontem não tinha sido apenas sexo, não, de maneira
nenhuma, fora muito mais do que isso, deixei-me levar pelos sentimentos
passados… e pela primeira vez em muito tempo sentira-me bem.
— Ela não está cá, Nick — repetiu a Maddie.
Com o sobrolho franzido, fui até ao quarto dela, abri a porta e, realmente, não
havia ali ninguém. Olhei em redor à procura das suas coisas… os livros e a mala
de viagem pequena tinham desaparecido.
— Porra! — praguejei entre dentes.
— Ah, tu disseste um palavrão!
Baixei os olhos e percebi que não era a melhor altura para ter a Maddie aos
meus cuidados.
— Fofa, vai para a cozinha, a Prett prepara o teu pequeno-almoço, vá! —
Apressei-a quando se preparava para discutir.
— A Noah foi-se embora? — perguntou-me, visivelmente arreliada.
Sim, olha, já éramos dois.
— Não sei, mas agora vai lá para baixo, não vou repetir-me — disse-lhe e
pela maneira como me fulminou com os seus bonitos olhos azuis, percebi que
isto ia ter consequências dentro de muito pouco tempo.
Sem dizer mais nada, voltou-se e começou a correr escadas abaixo.
Eu voltei para o meu quarto e procurei o telemóvel até o encontrar. Sem parar
sequer para pensar, marquei o número dela, não uma, mas duas vezes.
«Bolas, Noah, tinhas de ir embora assim?»
Estava irritado, e muito. Pensei em pegar no carro e ir atrás dela. Por que
motivo se fora embora? Tinha-a tratado mal? Não, claro que não, caramba,
tratei-a como sempre, fizemos amor como fazíamos quando estávamos juntos.
Sim, tudo bem, ela queria mais, pediu-me mais…
«Diz-me que me amas…»
Não podia dizê-lo. Magoava-me de mais.
Desci até à cozinha com um humor de cão; o meu pai e a minha irmã estavam
ali a conversar animadamente sobre qualquer coisa, mas quem falava sem parar
era a Maddie, enquanto a Rafaella as observava com um sorriso nos lábios. Ao
verem-me entrar, ambos se fixaram em mim, e consegui balbuciar os bons-dias
antes de me encaminhar para a porta da entrada com uma chávena de café nas
mãos.
Quando vi o carro velho da Noah, o alívio de saber que não se tinha ido
embora inundou-me completamente. Mas, se o carro estava ali, onde estava a
Noah e as suas coisas?
Não demorei muito tempo a verificar que o seu Audi vermelho já não se
encontrava estacionado na garagem.
Tinha-se ido mesmo embora. Naquele instante, percebi que não lhe dizer o
que mais precisara de ouvir fora mais eficaz para a afastar de mim do que todas
as minhas mentiras. Consegui o que queria: que ela virasse a página. Mas
então… por que razão sentia um vazio dentro de mim, um vazio que
desaparecera assim que voltara a vê-la?
Não ajudou muito ao meu mau humor que o meu pai me chamasse ao seu
escritório para conversarmos. Não voltáramos a falar depois da discussão que
tínhamos tido no Dia de Ação de Graças, mas algo me dizia que desta vez ele
não queria falar de trabalho.
— A tua mãe ligou-me ontem para me dizer que esteve contigo e te contou
que está doente — disse-me quando entrei no escritório.
Soltei uma gargalhada irónica enquanto me encaminhava para o bar e me
servia de um copo. Eram dez da manhã, mas não queria saber.
— Estou a ver que agora são muito amigos, contam tudo um ao outro. O que
acha a Rafaella disso, pai? Ou também lho escondeste?
O meu pai não respondeu à minha provocação, ficou simplesmente à espera de
que eu bebesse o copo e me servisse de outro, com as mãos cruzadas sobre o
estômago, sentado na sua grande poltrona de couro. Quando finalmente me
achei com ânimo suficiente para me voltar para ele, fi-lo cheio de raiva, raiva e
uma tristeza profunda, nova, algo que nunca sentira antes.
— Quando pensavas contar-me? — gritei-lhe.
— A tua mãe pediu-me que não o fizesse — respondeu-me com uma calma
fingida.
Ri-me com sarcasmo.
— Sabes uma coisa, pai? É fantástico ver que, dependendo de se te prejudica
ou não, decides contar as coisas ou ocultá-las. Não tiveste problemas em
esconder-me que enganaste a minha mãe durante praticamente todo o vosso
casamento, nem que ela se foi embora por causa disso mesmo… Deixaste-me
acreditar que se tinha ido sem mais nem menos, sem qualquer explicação!
O meu pai levantou-se da poltrona e virou-se para a janela.
— A tua mãe não planeava voltar, Nicholas, eu conheço-a bem, e quando
decidiu deixar-te aqui, fê-lo muito consciente dos seus atos. Não te contei nada
porque não queria que tivesses esperanças de voltar a vê-la, não queria que
perseguisses uma mentira.
— Toda a minha vida tem sido uma maldita mentira! — Precisava de me
acalmar, precisava de controlar os tremores que pareciam querer apoderar-se do
meu corpo, das minhas mãos. Apertei os punhos com força. — O que vai
acontecer à Madison?
Quando viu que estava a controlar o meu tom de voz, o meu pai voltou-se
novamente para mim.
— Ela tem de ficar aqui connosco, é o melhor para ela — respondeu e eu
comecei a abanar a cabeça… O melhor? O melhor para quem? — Nicholas, a
tua irmã precisa de estar num ambiente seguro e carinhoso, não quero que
esteja rodeada por médicos e hospitais, nem que tenha de ver a vossa mãe a
submeter-se aos tratamentos de quimioterapia; ela é muito pequena.
— Ela precisa da mãe.
O meu pai fitou-me diretamente, e os seus olhos, tão parecidos com os meus,
fixaram-se nas minhas pupilas. Há muito tempo que não me olhava assim, há
anos, talvez, e comecei a sentir um nó na garganta que crescia cada vez mais.
Então, aproximou-se com cuidado e pousou a mão no meu ombro.
— Isto não é a mesma coisa que aconteceu contigo, Nick — disse ele. Ao
ouvir as suas palavras, só consegui cerrar os maxilares com força. — Não vou
deixar que desta vez aconteça o mesmo, prometo-te. A Maddie continuará a ver
a mãe, estará em contacto com ela, não vou cometer o mesmo erro duas vezes.
Abanei a cabeça, as palavras ficavam-me atravessadas na garganta; de repente,
senti-me como quando tinha doze anos e o meu pai me explicou que a minha
mãe não ia voltar.
— Nunca te pedi perdão por isso… Peço-te agora… Cometi um erro,
Nicholas, achei que estava a fazer o que era melhor para ti, achei que eu seria
suficiente, que a tua mãe só ia continuar a magoar-te, mas devia ter lutado
contra isso, devia ter lutado para ela continuar a fazer parte da tua vida, de
qualquer forma, mesmo que estivesses a viver uma mentira. É isso que os pais
fazem, filho, dizem e fazem o que for preciso para que os filhos se sintam
protegidos e queridos, e eu não soube fazê-lo.
Os meus olhos humedeceram-se, e pestanejei várias vezes para conseguir ver
com clareza. Raios me partissem, aquilo era a última coisa que esperava. A vida
continuava a apresentar-me surpresas, a dar-me bofetadas, sempre à espera de
que me levantasse a seguir, dorido, sim, e furioso, mas com força suficiente para
continuar o meu caminho.
— Não deixes que a Maddie fique sem a mãe — pedi-lhe com a voz quebrada
e não estava só a falar de deixar a minha mãe ir embora para outra cidade. O
meu pai entendeu exatamente o que lhe quis dizer.
— Eu vou fazer tudo o que está ao meu alcance para que nenhum dos dois
fique sem mãe Nicholas.
A última coisa de que me lembro foi de o meu pai me puxar para um abraço
que me apanhou completamente de surpresa. Não me lembrava da última vez
que tinha feito algo parecido, não me lembrava quando alguém que não fosse a
Noah precisasse deste tipo de demonstração de carinho da minha parte e, ao
sentir a paz que me invadia o coração, percebi que, ao contrário do que
esperava, eu também precisava de baixar a guarda e deixar que, pelo menos por
uma vez, fossem os outros a proteger-me da escuridão.
24
NOAH

Duas semanas depois do Dia de Ação de Graças, recebi a chamada que tanto
desejava. Contrataram-me! A secretária disse-me que Simon Roger, um dos
sócios maioritários da empresa, precisava de um braço­-direito, alguém jovem e
ativo que estivesse disposto a facilitar-lhe um pouco a vida. Começaria na
segunda-feira às sete da manhã e, já que era um estágio, ainda me pagavam um
pouco mais do que costumava receber na cafetaria, por isso, era perfeito.
Ao chegar ao escritório no meu primeiro dia, uma mulher muito bonita, com
o cabelo claro e os olhos castanhos grandes, disse-me onde o senhor Roger
estava à minha espera. Bati à porta e aguardei uns segundos até que me mandou
entrar. Quando entrei, vi um homem muito mais novo do que esperava
encontrar; a sua altura e porte impecáveis deixaram-me desconfortáveis por
instantes. Ele tinha os olhos verdes e o cabelo louro, quase um tom abaixo do
meu. O fato azul-marinho e gravata cinzenta assentavam-lhe como uma luva, e
percebi que estava há demasiado tempo a fitá-lo quando vi aparecer um sorriso
no seu rosto.
— Noah Morgan, não é verdade? — perguntou-me, levantando-se da cadeira,
apertando o botão do casaco com uma mão enquanto me estendia a outra um
segundo depois.
Apertei-lhe a mão com menos força do que seria recomendado.
— Sim, a própria — respondi, sentindo-me um pouco estúpida.
O Roger separou-se da secretária para a contornar e voltar a sentar­-se. Fez-me
sinal para o fazer também, e apressei-me a instalar-me numa das cadeiras de
couro que tinha à sua frente. O escritório era bastante simples: uma secretária
de madeira, duas cadeiras de couro em frente, um computador Mac maior do
que uma casa e algumas estantes com pastas.
— Fiquei muito surpreendido quando o Lincoln me disse que a irmã do
Nicholas andava à procura de trabalho aqui, embora vendo o seu currículo e as
recomendações que traz me sinta feliz por preferir trabalhar para mim e não
para o Leister.
Não me apetecia voltar a ouvir o nome do Nicholas, mas, tendo em conta que
se conheciam, não achei estranho que se falasse da família.
— Pois, presumo que não seja exatamente de bom gosto trabalhar para o
padrasto — disse num tom de voz amigável.
O Roger levantou os olhos da pasta que estava a ler e olhou para mim a sorrir.
— Não me referia ao William, mas ao Nicholas. No entanto, presumo que
tem razão — admitiu, pousando a pasta em cima da mesa e observando-me,
entretido. — O trabalho é muito simples: ficará basicamente encarregada de me
fazer recados, de estar nas reuniões e tomar notas, assistir-me em tudo o que lhe
pedir…
Assenti, compreendendo que ia ser uma espécie de secretária.
— Se preferir algo melhor, o seu irmão pode certamente arranjar-lhe…
— Não, não, a última coisa que quero é recorrer ao Nicholas; além disso, teria
de ir para Nova Iorque, não é? — disse, a sorrir animadamente. Tinha
conseguido arranjar trabalho e mal podia esperar para começar!
Foi então que o Roger me observou com o sobrolho franzido.
— Bem, é verdade que neste momento o Nicholas está em Nova Iorque, mas
esta empresa é tanto dele como minha e do Lincoln. Mas entendo que queira
começar por baixo, o que diz muito de si…
Os meus pensamentos congelaram-se de repente, e senti frio.
— Desculpe… mas não estou a entender — comentei, sentindo um suor frio
que me percorria a coluna vertebral e cima a baixo. — Esta empresa é do
Nicholas?
O Roger olhou para mim como se fosse idiota e apontou para o emblema que
havia por cima da sua cabeça, gravado no vidro transparente. Juro que quase me
dava um enfarte: não podia ser.
Leister, Roger & Baxwell Inc.
LRB
Oh, não!
Aquela empresa era do Nicholas?!
— É um projeto que começámos juntos, embora ele seja o acionista
maioritário… Achei que sabia disto — confessou, surpreendido com a minha
reação de absoluta ignorância.
Como podia ter sido tão idiota? Quem se lembra de se apresentar num local
de trabalho sem antes investigar um pouco?
— A verdade é que eu e o meu irmão não temos uma relação muito boa… —
comecei a explicar-me. — Liguei porque o Lincoln Baxwell me ofereceu
trabalho há alguns meses, mas não fazia a menor ideia de que esta empresa fosse
do Nicholas… eu… — Olhei para ele e senti-me corar. — Lamento, não o
devia ter feito perder o seu tempo, é melhor ir embora.
O Roger levantou-se quase ao mesmo tempo que eu e agarrou-me pelo braço
antes que eu saísse dali a correr.
— Espera, Noah — pediu, pronunciando o meu nome de forma muito doce.
— Posso tratar-te por tu? — perguntou, soltando-me quando percebeu que
conseguira impedir a minha fuga.
— Sim, claro, até prefiro — respondi, desejando criar um ambiente menos
patético para tudo aquilo.
O Simon sorriu e elevou a curva dos lábios.
— O Nicholas não precisa de saber que estás a trabalhar aqui, se é isso que te
preocupa — começou por dizer com calma. — Ele trabalha a partir de Nova
Iorque e, que eu saiba, não faz tenção de deixar a cidade.
Respirei fundo, com os meus pensamentos a precipitarem-se a mil à hora.
Sabia muito bem que o Nicholas não ia voltar para Los Angeles, muito menos
agora.
— O teu chefe vou ser eu, não ele — acrescentou, para me convencer.
Meu Deus… Seria capaz de o fazer? Poderia trabalhar para Simon Roger
sabendo que um dos chefes era o meu ex-namorado, o mesmo que não queria
ver durante muito tempo? Se tivesse recebido mais alguma oferta de trabalho,
não teria hesitado um segundo… mas não ia encontrar nada melhor do que
aquilo.
— O que me dizes? — insistiu ele.
Engoli todos os meus medos e advertências e assenti finalmente. O Roger
sorriu-me, mostrando-me os bonitos dentes brancos.
— Bem-vinda à minha equipa… tenho muita vontade de trabalhar contigo.
Forçando um sorriso, despedi-me e saí do escritório dele. «Bolas, Nicholas…
Porque é tão diabolicamente difícil manter-me afastada de ti?
*

À
À medida que os dias passavam, compreendi que não ia cruzar-me com o
Nick, sobretudo porque ele continuava em Nova Iorque e geria os assuntos da
LRB a partir dali, por isso consegui descontrair e trabalhar tranquilamente. A
verdade é que gostava daquele trabalho, não me deixava muito tempo livre para
pensar e dar voltas à cabeça, que era exatamente aquilo de que precisava.
Trabalhava toda a manhã, exceto quando tinha aulas, mas depois regressava ao
escritório para ajudar o Simon naquilo de que ele precisasse.
As semanas passaram-se, e as festividades chegaram rapidamente. Passei o
Natal com a minha mãe, o Will e a Maddie, já que o Nick deixara muito claro
que não ia poder vir a casa por causa do trabalho, embora no fundo eu soubesse
que ele estava apenas a deixar estas festas para mim.
Passei a última noite do ano com a Jenna e o Lion. A minha amiga tentava
não falar do Nicholas quando estávamos juntas, mas o tema acabava sempre por
surgir, quase sem querer.
— Ele não está apaixonado por ela, Noah — assegurou-me durante o jantar
—, mas seguiu com a sua vida.
Esta última frase foi dita enquanto olhava para mim de forma apressada. A
Jenna insistia que, já que eu era solteira, podia e devia sair mais, conhecer
outras pessoas, soltar-me um pouco… Enquanto começávamos a contagem
decrescente para o Ano Novo, pensei que talvez ela tivesse razão e aquele fosse o
momento de começar a sair com outras pessoas.

Numa das poucas manhãs em que as aulas me permitiam estar no escritório, o


Simon passou pelo meu pequeno cubículo, que ficava ligado ao seu escritório
por uma porta de madeira muito escura. Levantei os olhos do computador e
observei-o até se colocar em frente à cadeira. Pousou as mãos nas costas e olhou
para mim com um sorriso.
— Estás a fazer um bom trabalho, Noah — afirmou com um brilho de
orgulho nos olhos. Eu já tinha reparado que ele me tomara sob a sua proteção:
era a mais nova da equipa e de todo o piso, e ele protegia-me e ensinava-me
como se fosse sua discípula. No escasso mês em que ali trabalhara, aprendera
muitíssimo e sentia-me muito agradecida por isso.
— Obrigada, Simon — respondi, a corar. Era uma das coisas que aconteciam
com grande frequência, uma vez que o maldito homem era lindo de morrer.
Naquele dia trazia umas calças de fato cinzentas e uma camisa branca
imaculada, cujas mangas já arregaçara até aos cotovelos. O cabelo louro estava
penteado um pouco para cima, e os olhos verdes observavam-me com um ar
divertido e contido.
— Vinha convidar-te para irmos beber um copo. — Franzi o sobrolho, mas
ele continuou a falar. — Vamos todos, queremos festejar por fecharmos o
contrato com a Coca-Cola para a campanha da primavera. Vá, não olhes para
mim assim! Tu és a mais nova do escritório, lembras-te?
Sorri, divertida, e senti um certo entusiasmo no estômago. Há muito tempo
que não saía para me divertir e, se todos fossem, não ia ser eu a única a negar-
me, certo?
Aceitei o convite e também o gesto de cortesia que teve para comigo ao
ajudar-me a vestir o casaco. Lá fora fazia frio, por isso, assim que cheguei à rua,
pus um cachecol azul-claro à volta do pescoço. Saímos só os dois.
— Onde está o resto do pessoal? — perguntei, desconfiada.
— Já devem estar no bar, nem todos trabalham tanto como tu.
Ignorei a alfinetada disfarçada de elogio e fui atrás dele. Dobrámos a esquina
do edifício alto da empresa e começámos a percorrer a rua rodeados por uma
multidão de pessoas, veículos… o habitual da hora de ponta. Fomos a conversar
enquanto caminhávamos, e fiquei surpreendida ao constatar como era fácil falar
com ele fora do ambiente de trabalho e de como me sentia confortável ao seu
lado. Ainda me estava a rir de uma piada qualquer que acabara de contar
quando ele parou de repente.
— Posso ser sincero contigo? — perguntou, olhando-me nos olhos.
Fiquei nervosa com a mudança de tom… mas assenti, fitando-o com cautela.
— Prefiro sempre a verdade à mentira.
Voltou a sorrir, e a sua mão afastou-me uma madeixa de cabelo e ajeitou-ma
atrás da orelha. Aquele gesto fez-me reviver uma sensação esquecida, e senti
uma agitação leve no estômago.
— Eu gosto de ti, Noah… gosto muito de ti e gostava de te convidar para
jantar — confessou e fê-lo sem vergonha, com segurança, a mesma segurança
que tem um homem que conseguiu muitíssimo em muito pouco tempo, que é
brilhante, divertido e bom chefe.
— Queres convidar-me para jantar agora… ou vamos primeiro beber um
copo com os colegas? — Estava nervosa e convencida de que ele percebia o meu
estado.
— Para dizer a verdade, inventei essa história… Queria convidar-te de forma
subtil, mas estava com medo de que dissesses que não, por isso contei-te uma
mentirinha.
— Ah, estou a ver… — disse, sem saber muito bem se achava graça ao facto
de me ter mentido.
— Vá lá, só quero conhecer-te melhor… Falamos um bocadinho, jantamos
num lugar bonito, pedimos o melhor vinho da carta e depois vai cada um para a
sua casa.
Aquilo soava-me bem, mas… seria um encontro?

Levou-me a um restaurante elegante, mas não em demasia, pelo menos não o


suficiente para me sentir desconfortável. As paredes estavam decoradas com
discos de vinil de várias cores, embora fossem todos de álbuns da década de
oitenta; as mesas tinham toalhas com quadrados brancos e vermelhos, muito
graciosas, com uma vela no centro, o que fazia que todo o espaço tivesse um
ambiente acolhedor e caseiro.
Era um restaurante italiano, por isso tinha a certeza de que ia gostar da
comida. Pedi raviólis com molho de queijo, e ele uma lasanha vegetariana. A
verdade é que gostei do jantar, da conversa, de falar só por falar e da troca de
perguntas que fizemos para nos conhecermos melhor. Há muito tempo que não
tinha um encontro com ninguém… antes de estar com o Nicholas namorava
com o Dan e, entretanto, mal tivera oportunidade para sair com outras pessoas e
passar tempo a conhecê-las melhor.
Contou-me que era o filho mais velho, o único homem entre quatro irmãs que
o enlouqueciam. Além disso, vinha de uma família abastada, o pai era
arquiteto, e a mãe, médica — e ele era a ovelha ronhosa que se dedicara ao
marketing e às telecomunicações.
O jantar passou depressa, e voltámos a pé para o estacionamento do escritório.
O meu Audi vermelho estava ao lado do carro dele: coincidências desta vida.
— Bem, Noah — começou a dizer quando era óbvio que já não havia mais
caminho a percorrer. — Gostei muito de jantar contigo hoje e quero repetir o
quanto antes.
Ri-me. Tinha corrido tudo tão bem que mal podia acreditar. Sem dramas, sem
choro, sem truques, só um rapaz e uma rapariga sentados à mesma mesa a trocar
informações sobre as suas vidas. Sim, gostara do nosso encontro, mas, quando
ele deu um passo em frente com a intenção de me beijar, retesei-me.
Foi instintivo, mas virei o rosto, e os lábios dele roçaram suavemente na
minha face.
— Humm — disse ele, algures entre o divertido e o desagradado.
Fitei-o, vi como era bonito, daquela forma doce e masculina, nada que ver
com a beleza arrebatadora do Nick.
— Desculpa… gostei muito do jantar, mas prefiro levar as coisas com calma
— disse, sentindo-me uma criança, uma criança idiota que nem sequer
consegue dar um beijo na boca a um rapaz que acabara de gastar mais de cem
dólares num jantar.
O Simon acariciou-me o rosto com a ponta dos dedos. Gostei do seu toque.
— Muito bem… não és uma miúda fácil, mas gosto mais assim.
E, sem dizer mais nada, virou-se, entrou no carro e foi-se embora.
Eu ainda demorei uns segundos, mas, quando me fui embora, não consegui
evitar que os meus olhos se enchessem de lágrimas.
25
NICK

Olhei para a agenda que a minha secretária acabara de me dar e suspirei ao ver
que mal teria tempo para respirar. Entre a abertura da LRB e o encerramento
das outras empresas, apercebi-me de que não ia poder fazer mais nada que não
fosse dedicar-me completamente ao trabalho. Não me queixava, gostava de
trabalhar, principalmente no projeto novo que tanto me custara pôr em marcha.
Olhei para o jornal naquela manhã e praguejei entre dentes. O Simon Roger
ainda naquela manhã me ligara para insistir que tão depressa não podíamos dar-
nos ao luxo de ter má publicidade na imprensa: segundo ele, a imagem que
apresentássemos neste momento era muito importante e, apesar de saber que ele
estava certo, eu não tinha tempo para posar em frente às câmaras muito
sorridente enquanto explicava o que motivava as minhas decisões. Já me tinha
custado muito convencer a direção, não podia fazê-lo com o mundo inteiro.
Tudo iria melhorar, mas cada coisa ao seu próprio ritmo.
O telefone tocou, e atendi sem pensar. Era a Sophia.
— Estou ocupado — respondi, um pouco mais brusco do que devia.
— Estás sempre ocupado — respondeu simplesmente. — A tua secretária
disse-me que na semana que vem vais para Los Angeles.
— Sim, vou visitar os escritórios da LRB para me assegurar de que tudo está a
correr bem.
— Também me disse que vais dar uma festa para celebrar a inauguração.
— Estou a ver que a Lisa te mantém muito bem informada — comentei,
irritado. — Sim, o Roger insistiu em que déssemos uma festa para
apresentarmos uma boa imagem da empresa.
— Planeavas avisar-me de que vinhas à Califórnia? Preciso de te recordar de
que não nos vemos há mais de um mês?
Levantei-me da cadeira e servi-me de uma chávena de café quente. A verdade
é que estivera tão ocupado com o trabalho e em recordar o meu último encontro
com a Noah que mal tinha pensado na Sophia.
— Claro que planeava avisar-te, só ainda não tinha nada decidido — respondi
com calma.
Ouvia a Sophia pensar, apesar de todos os quilómetros que nos separavam.
— Encontramo-nos no teu apartamento, então? — O entusiasmo com que
falou não me passou despercebido, e, apesar das circunstâncias, aquilo fez-me
sorrir.
— Encontramo-nos lá — confirmei, voltando a sentar-me. — Tens a chave,
não tens?
Não consegui evitar comparar a forma como falava com ela e como falara com
a Noah. Tinha-lhe dado uma chave havia alguns meses, porque às vezes a
Sophia precisava de ficar em Los Angeles em trabalho, e o meu apartamento
estava vazio. Na verdade, só não o vendera por falta de tempo: as recordações
que aquelas paredes guardavam queimavam-me tanto quanto o fogo da lareira
que tinha acesa no escritório…

O meu voo para Los Angeles saía muito cedo, o que me dava tempo mesmo à
justa para ir à reunião de pessoal que convocara para o meio-dia. Queria
assegurar-me de que não se cometiam os mesmos erros da última vez. Além
disso, queria ver a minha irmã, pois desde o Ano Novo não voltara a Los
Angeles. A Noah não aparecera em casa, e uma parte de mim ansiava com todas
as forças voltar a vê-la também. A mãe disse-me que decidira ficar no campus
porque tinha de estudar, mas eu sabia bem que a causa da sua ausência era eu. A
última noite que passámos juntos, havia quase dois meses, estava gravada na
minha memória; cada beijo, cada palavra, cada som, cada sensação… Não sei o
que teria acontecido se ela não se tivesse ido embora. Teria sido eu a deixá-la
depois? Teria tido forças suficientes para me levantar, para sair do seu lado, para
a soltar dos meus braços e dizer-lhe que a nossa história estava encerrada?
Eram perguntas para as quais não tinha, nem nunca teria, resposta. O destino
quis que fosse ela a tomar esta decisão, libertando-me a mim de ter de o fazer, e
assim continuámos com as nossas vidas.
Agora, tinha a Sophia, se bem que ela fosse mais uma obrigação, um simples
cumprimento de expectativas da minha existência. Um dia queria ter filhos,
queria ter uma mulher. Nunca iria amar ninguém como amara a Noah, mas não
podia pôr a minha vida em suspenso; a nossa história seria sempre dolorosa de
recordar, e ela ocuparia eternamente um lugar na minha alma, nas células do
meu sangue, como se me pertencesse. No entanto, isto não significava que não
podia fazer um esforço em nome daquilo que sabia que um dia ia querer para
mim.
O Steve estava à minha espera no aeroporto. Tinha vindo passar uns dias com
o filho mais velho, que no dia seguinte acabava a universidade. Quando o vi,
sorri-lhe, e fomos juntos para o carro.
— Como está o Aaron? — perguntei enquanto punha o cinto de segurança e
ligava o telemóvel para ver as chamadas perdidas e as mensagens.
— Está aliviado por ter acabado o curso.
Sorri, distraído, e olhei para o relógio de pulso.
— É melhor acelerares, não queria chegar atrasado a uma reunião que eu
mesmo convoquei.
O Steve fez o que lhe pedi, e cerca de meia hora depois chegámos à cidade.
Parámos em frente ao edifício que me custara tantos milhões.
Não achei estranha a agitação que parecia inundar o escritório quando me
viram chegar, acabara por me habituar a que isso acontecesse.
— Bom dia, senhor Leister, estão à sua espera na sala de reuniões — anunciou
uma secretária cujo nome não sabia.
— Obrigado. Pode levar-me um café daqui a um minuto? — pedi,
atravessando a sala, sabendo que já estava atrasado. — Simples, sem açúcar,
obrigado.
A secretária apressou-se a ir para a cafetaria que havia na sala contígua, e eu
percorri o corredor até à sala de reuniões. Quando abri a porta fiquei
surpreendido ao ver que todos estavam a rir, não havia ninguém sentado nos
seus lugares; mais do que isso, estavam à volta de qualquer coisa que parecia
diverti-los muitíssimo. Aproximei-me disfarçadamente, sabendo que ninguém
me ouvira entrar, e deparei com uma rapariga de cabelo louro comprido,
sentada numa cadeira, a tentar ganhar ao braço de ferro com o próprio Simon
Roger.
Demorei mais uns segundos até perceber que a rapariga era a Noah.
Não entendi nada, fiquei ali a observá-la a rir-se e a fazer força contra a mão
daquele idiota, que obviamente a estava a deixar ganhar, pelo menos por
enquanto. Os meus olhos pousaram durante alguns segundos nas mãos de
ambos, entrelaçadas, e comecei a ver tudo vermelho.
— Se tiveram tempo para montar este circo nos dez minutos em que cheguei
atrasado, nem quero imaginar o que fazem quando não estou cá — comentei
tão alto que todos pararam para olhar para mim, incluindo os dois que se
fitavam tão divertidos, no jogo.
Ao ouvir a minha voz, a Noah levantou-se de um salto, e fiquei tão
transtornado por voltar a vê-la, sobretudo ali, que a raiva se apoderou de cada
um dos meus sentidos; naquele momento não me importei com mais nada, nem
com os funcionários a quem queria ter causado uma boa impressão, nem sequer
com o facto de que, se a Noah não estivesse ali, o mais provável era ter-me rido
juntamente com eles e até pedido que me deixassem participar no desafio.
Fitei-a e senti que todo o meu mundo voltava a sair dos eixos.
— A reunião está cancelada — disse, quase a gritar. — Amanhã quero-vos
todos aqui às sete da manhã, e veremos se mantêm os vossos postos de trabalho;
isto não é um maldito recreio!
Trespassei todos os presentes com o olhar, principalmente o Roger, que estava
demasiado próximo da minha namorada… raios, demasiado próximo da Noah.
Voltei-me para sair da sala, mas não sem antes dar um último grito:
— Morgan, ao meu escritório!
26
NOAH

Fiquei a olhar para a porta, imersa num silêncio que envolvia todos os que
estavam ali reunidos.
— O chefe que vá passear! — exclamou um dos colegas enquanto reunia as
suas coisas e saía da sala.
— Afinal, o que sai nos jornais é verdade — comentou outro, e eu voltei-me
para olhar para ele.
Muitos dos meus colegas fitavam­-me com olhares de pena, uma vez que tinha
sido a única com quem ele gritara e que chamara ao seu escritório.
O Simon pôs-se ao meu lado e perguntou-me ao ouvido:
— Queres que vá contigo? — ofereceu, e tudo o que me fizera sentir ao longo
das últimas semanas deixou de fazer sentido.
O Nick estava ali.
— Não é preciso, está tudo bem, eu sei como lidar com ele — respondi, e ele
olhou para mim com o sobrolho franzido.
Depois do nosso primeiro encontro, tínhamos voltado a sair algumas vezes
para jantar. Um dia, durante um destes jantares, acabei por lhe explicar a minha
relação com o Nick. Nem vale a pena dizer que o Simon ficou muito
surpreendido ao perceber que a minha relação com ele era tudo menos fraterna.
Sorri ao Simon e dispus-me a sair da sala para ir ao escritório que o Nick tinha
no edifício, embora estivesse vazio durante a maior parte do tempo. Quando
cheguei à porta, bati antes de entrar, principalmente porque quem andava por
ali não parava de olhar para mim.
— Entra! — berrou ele do outro lado da porta.
Quando entrei, vi-o andar com nervosismo de um lado para o outro.
— Que diabo fazes aqui?
Respirei fundo e observei-o despir o casaco, atirá-lo de qualquer maneira para
cima de uma cadeira e arregaçar as mangas até aos cotovelos.
— Eu trabalho aqui — respondi com o sobrolho franzido. — Pensei que
sabias.
O Nick parou de tirar a gravata com um puxão e cravou o olhar sobre mim,
com incredulidade.
— Estás a falar de quê, caraças?
— Fiquei sem trabalho e lembrei-me que o Lincoln Baxwell me tinha dado
um cartão de visita durante o casamento da Jenna. Então, liguei-lhe, e ele disse
que me arranjava qualquer coisa. — Encolhi os ombros ao dizer aquilo, como se
tivesse sido a coisa mais simples do mundo, e por acaso até foi.
O Nick encostou-se à secretária e ficou a olhar fixamente para mim.
— Porque não ligaste para mim? — perguntou e reparei que a sua voz tinha
uma ligeira nota de desilusão. — Eu podia ter-te arranjado algo melhor.
Revirei os olhos.
— Nem sequer sabes qual é o meu papel na empresa.
— Está bem — concordou, aproximando-se de mim. — Para quem
trabalhas?
Algo me dizia que não ia achar graça nenhuma quando soubesse, mas também
não lhe podia mentir. Demoraria menos de um minuto a descobrir o que eu
fazia ali e não valia a pena estar a irritá-lo mais.
— Trabalho para o Simon… sou uma espécie de assistente dele.
O Nicholas respirou fundo e demorou uns segundos a expirar.
— Assistente dele? — repetiu em tom trocista, erguendo as sobrancelhas com
intenção. — E que significa isso, raios?
Fitei-o enquanto cruzava os braços.
— O que é que achas, Nicholas? Ajudo-o com a agenda dele, levo-lhe café…
— Café? — repetiu, pronunciando a palavra como se fosse um insulto.
— Sim, sabes, aquela coisa castanha que se bebe de manhã…
— Não te faças de engraçadinha comigo — interrompeu, sentando-se atrás da
secretária e olhando para mim. — Não devias estar a estudar? Continuas a
insistir em trabalhar quando não te faz falta nenhuma?
— A si não lhe faz falta nenhuma, senhor Leister — respondi, enfatizando o
nome dele.
O Nicholas olhou para mim como um diretor de escola olha para uma aluna
que se portou mal.
— Estás mesmo engraçada esta manhã… Fazer parvoíces durante o horário
laboral deixa-te de bom humor, é?
Não devíamos estar a fazer braço de ferro dentro das horas de trabalho, era
verdade, mas ele é que tinha chegado atrasado.
— Não, o que me deixa de bom humor é ver como ficas ciumento ao
constatar que me dou bem com os teus funcionários.
— Com o Roger, queres dizer.
— Não, com os teus funcionários — insisti.
— E não estou ciumento, só chateado por ver que estás a fazer com que as
pessoas que deviam esforçar-se para esta empresa ser bem-sucedida percam o seu
tempo.
— Ah, então agora a culpa por termos estado a matar o tempo enquanto
esperávamos que te dignasses a aparecer numa reunião marcada por ti é
minha…?
— Bem… tu não comeces a falar de culpas, Noah, senão ficamos aqui para
sempre.
Meu Deus, às vezes até me esquecia de como ele podia ser insuportável.
— Posso ir? — perguntei, fulminando-o com o olhar.
— Não.
Os seus olhos brilharam ao encontrarem os meus, com raiva, com fúria, com
desejo…
— Vejo que estás bem — afirmou depois de um silêncio tenso. O elogio
apanhou-me de surpresa. — Ainda bem que já recuperaste os quilos que tinhas
perdido, não gosto de ti tão magra.
— Estás a chamar-me gorda?
O Nick riu-se, e o som quase me provocava uma paragem cardíaca.
— Achas que estás gorda?
Não, claro que não estava gorda, nunca fui, e era verdade que fora
recuperando os quilos que perdera depois da nossa separação. Agora estava com
um ar mais saudável, não tão seco. Era bom sinal, significava que avançara com
a minha vida.
— Também não estás nada mal — disse, para evitar a sua pergunta. — Acho
que a nossa separação está a começar a fazer-te bem.
O meu tom era frio, até eu me apercebi disso. O Nick ficou calado,
observando-me, e presumo que a recordar os últimos momentos que passámos
juntos, que era exatamente o que eu estava a fazer.
— Queres mais alguma coisa? — perguntei, arrancando-nos daquela bolha
em que parecíamos ter-nos fechado. — Devia continuar a trabalhar.
O Nick assentiu sem tirar os olhos de cima de mim.
Que estaria a tentar dizer-me ao olhar para mim daquela maneira?
Virei-lhe as costas e fui até à porta. Antes de sair, voltei-me para trás.
— Devias ser mais simpático com os teus funcionários, Nicholas, são boas
pessoas e estavam todos muito ansiosos por te conhecerem.
O Nick atirou a cabeça para trás, pareceu pensar em alguma resposta, mas
depois limitou-se a assentir. A seguir vim-me embora e deixei-o sozinho.
Presumo que tivesse muito em que pensar.

A reunião do dia seguinte foi muito melhor. O Nick mostrou-se amável e


divertido com toda a gente, mas não pediu desculpas pelo seu comportamento
no dia anterior. Afinal, era o patrão, e creio que encontrar todo o escritório a rir
e a brincar na sala da direção não ia cair bem a ninguém que dirigisse uma
empresa. Pareceu conseguir conquistar toda a gente, com a exceção do Simon,
que o observava com uma educação fria. Não gostava daquela atitude, mas
também não podia fazer nada. O Nick tratava-me com o devido respeito e
instaurara uma certa distância entre nós, o que agradeci. De vez em quando, o
meu olhar cruzava-se com o dele, como se o apanhasse desprevenido enquanto
me observava. Não podia negar a mim mesma que gostava de o ter ali, mas que
ao mesmo tempo me magoava. No entanto, procurei concentrar-me no
trabalho, e ele também não tinha muitas oportunidades para falar diretamente
comigo; as suas reuniões eram privadas e quase nunca requeriam a minha
presença, eu era apenas uma bolseira.
Porém, tudo começou a piorar no dia em que saí do meu escritório e dei de
caras com ela… com a Sophia. Ficámos ambas a olhar fixamente uma para a
outra, e, embora por dentro me sentisse a morrer, recorri a todas as minhas
forças para manter a calma.
— Fico contente por te ver — disse no tom mais alegre e calmo que consegui
invocar.
A Sophia olhou para mim, surpreendida, e o Nick, que ia a caminho do
escritório do Simon e ouvira as minhas palavras, colocou-se ao lado dela a
observar-me com cautela, mas sem conseguir esconder o interesse dos seus olhos
azul-celeste.
— Se me dão licença…
Dei meia-volta nos calcanhares e fui para a casa de banho, onde me concedi
um minuto para dar o meu melhor e não desatar a chorar.
«Acalma-te, Noah… já estás a começar a esquecê-lo, lembras-te? Respira,
respira… Não lhe dês a satisfação de ver que ainda te afeta.»
A imagem dos dois juntos, lado a lado, ia perseguir-me para sempre. Vê-los
pessoalmente não era a mesma coisa que em fotografias; afetou-me ver como o
rosto da Sophia se iluminou assim que o sentiu ao seu lado, ao ver como o
Nicholas pousara suavemente a mão no fundo das costas dela…
«Bolas, não chores agora, não chores, não sejas parva…»
Levantei-me e refresquei o rosto com um pouco de água, com cuidado para
não borrar a maquilhagem dos olhos. A seguir, peguei no batom com brilho e
apliquei mais uma camada, para dar segurança. Tinha de parecer forte, tão forte
como a Noah madura que demonstrara ser ainda há instantes.
Quando saí da casa de banho, o Nick e a Sophia não estavam onde os deixara.
Fui para o escritório do Simon, bati à porta e, quando ele me mandou entrar, vi-
me em frente ao Nick, que se aproximara para me abrir a porta.
Os seus olhos perscrutaram o meu rosto detalhadamente, e eu desviei o olhar,
contornando-o para me aproximar do meu chefe.
— Depois mando-te os números que pediste, Nicholas, não te preocupes —
disse-lhe o Simon.
Ele assentiu, distraído. Os seus olhos continuavam fixos em mim.
«Porque estás a olhar assim para mim, Nicholas? Vai ter com a tua namorada,
deixa-me sozinha com o meu sofrimento!»
O Nick pareceu ouvir os meus pensamentos, porque assentiu e saiu do
escritório fechando a porta atrás de si.
O Simon olhou para mim e aproximou-se para me segurar nas mãos.
— Estás bem?
Disse que sim com a cabeça e aproximei-me dele, que se apoiou na secretária;
puxou-me para ficar mais perto de si.
Eu e o Simon só nos tínhamos beijado, nada mais, e mesmo assim só
acontecera duas vezes. Sabia que não podia continuar a brincar com ele como se
tivéssemos quinze anos: ele tinha vinte e oito e já deixara bem claro que gostava
de mim, demasiado até.
Quando me segurou o rosto entre as mãos e pousou os lábios sobre os meus,
senti qualquer coisa, um ligeiro formigueiro, mas nada como a sensação de
embriaguez que me assaltava apenas quando o Nicholas olhava nos meus olhos.
O Simon pareceu aperceber-se de que não estava com grande disposição para
aquilo, deve ter visto que estava distraída, e era verdade: naquele momento,
pensava em tudo menos nele.
— Queria pedir-te uma coisa — anunciou, separando-se de mim e voltando
para trás da secretária. Abriu uma gaveta e tirou um envelope cor de marfim.
— A festa de inauguração da empresa é daqui a uns dias; toda a gente vai, e
gostava muito que me acompanhasses.
Abri ligeiramente a boca, prestes a dizer que não. Ir como sua acompanhante?
Era como gritar aos quatro ventos que tínhamos qualquer coisa, mas, por outro
lado, não seria boa ideia, para fazer frente aos sentimentos do Nicholas? De
certeza que ele iria com a Sophia, por isso, qual era o problema?
— O que me dizes? — insistiu o Simon com esperança.
— Digo que vou ter de comprar um vestido novo… se o meu chefe me
deixar, claro.
O Simon sorriu com uma alegria genuína, e eu apressei-me a sair, antes que
me arrependesse.
Estava a meter-me na boca do lobo.

Na noite seguinte, fui beber um copo com a Jenna. Havia várias noites que
não nos víamos, e tínhamos decidido ter uma só de mulheres para conversarmos
um pouco; eu porque precisava de sentir que ainda tinha dezanove anos, e a
Jenna porque precisava de deixar sair o seu «velho eu», a Jenna que não era
casada e que não costumava passar mais de três dias metida em casa.
Assim, como a noite era merecedora, vesti uma minissaia de couro vermelho,
meias transparentes e uma camisola canelada, quente e escura, que a minha mãe
me ofereceu, assim como as botas de tacão e cano alto. Fiz ondas no cabelo e
deixei-o solto sobre as costas, pintei os lábios da cor da saia. A Jenna ia ficar
orgulhosa de mim.
Depois de me debater durante algum tempo com o GPS, cheguei ao bar onde
combinara encontrar-me com ela. A minha amiga esperava-me à porta e
recebeu-me com um sorriso enorme.
— Estás muito bonita hoje. Vamos caçar, é? — perguntou muito
entusiasmada.
— O facto de me ter arranjado para estar bonita não tem nada que ver com
homens: vesti-me assim para mim; além disso, tu és casada.
A Jenna pareceu não ouvir uma única palavra.
— Este bar é bastante decente, não é tipo uma discoteca, sabes? Podemos
conversar, as luzes são ténues… Quanto apostas que em menos de meia hora já
temos os tipos todos a babar­-se e a tentar captar a nossa atenção?
— Pensei que hoje íamos sair para beber uns copos, conversar e divertirmo-
nos sozinhas… Não estou interessada em arranjar um tipo, e, só para ficares um
pouco mais tranquila, tenho… uma cena com o meu chefe.
A Jenna arregalou os olhos.
— Desembucha! — gritou, mais entusiasmada ainda do que com a ideia de
caçar tipos num bar.
Encolhi os ombros como se não fosse nada importante.
— Paga-me o primeiro copo e conto-te tudo, mas aviso-te já que não há
muito para contar…
A Jenna assentiu ainda mais excitada e quase me arrastou para o interior do
bar. Não era muito grande, mas estava a abarrotar. Pediu uns shots de qualquer
coisa cor-de-rosa muito saborosa e sentámo-nos numa mesa afastada a um canto.
De repente, a grande cusca disse:
— Então? Conta-me tudo! Andas a dormir com ele? Andas a dormir com o
teu chefe?
— Não dormi com ele, só saímos para jantar e, bem… beijámo-nos… duas
vezes — esclareci.
A Jenna ficou a olhar para mim fixamente.
— Duas vezes? — repetiu num tom de voz que eu conhecia muito bem. —
Ah, não vás tão depressa, amiga, que ele ainda vai pensar que és uma ordinária
qualquer.
— Oh, cala-te! — disse, atirando-lhe um dos amendoins que nos serviram
com as bebidas.
A Jenna riu-se, mas continuou a olhar para mim como se fosse um bicho
vindo de outra galáxia.
— A sério, Noah, compreendo que para ti o sexo seja algo especial e essas
tretas todas, mas ir para a cama só por prazer também tem as suas vantagens.
Ri-me dela enquanto abanava a cabeça, divertida. Mas a Jenna não se dava por
vencida com facilidade e passou a hora seguinte a tentar arranjar-me um engate
para aquela noite. Quando ia apresentar-me o quinto rapaz do serão, olhei para
o relógio e decidi que estava na hora de me ir embora.
— Lamento, Jenna, mas, se amanhã quero estar na empresa com os olhos
abertos, tenho de ir. Deus queira que o Dom Convencido não volte a chamar-
me ao seu escritório aos gritos.
Ela soltou uma gargalhada.
— Nem te perguntei como estás em relação a ele — comentou com
curiosidade, mas ao mesmo tempo com cautela. Há muito tempo que o tema
Nicholas se transformara em algo que nos fazia sentir um pouco
desconfortáveis. Por mais amigas que fôssemos, a Jenna conhecia o Nick desde
que eram crianças e, apesar de ela sempre ter estado presente para mim, no
fundo não me perdoava por ter despedaçado o coração do seu amigo daquela
maneira.
— Desde que consigamos manter as distâncias, acho que fico bem — afirmei,
sabendo que estava a mentir com quantos dentes tinha na boca: a presença do
Nick afetava-me mais do que estava disposta a admitir.
Naquele momento, vi o Lion, alto e muito bonito, a entrar no bar. Não
demorou a avistar-nos, era como se tivéssemos um sinal sobre a cabeça.
Cumprimentei-o com um sorriso divertido, e a Jenna desviou-se para ele se
sentar ao seu lado.
— Tudo bem, Noah? — perguntou o marido da minha melhor amiga,
enquanto pousava a mão enorme no joelho dela.
— Estou ótima, mas já cansada — respondi, pousando o copo na mesa,
preparada para me levantar a seguir. Agora que sabia que a Jenna não ia ficar
sozinha, chegara a hora de me escapar.
Despedi-me deles e saí do bar em direção ao parque onde estacionara o carro.
Era mais tarde do que previra, mas sentia-me tranquila por ter cedido o lugar
ao Lion: toda a gente sabia o andamento que a Jenna tinha, e não me sentia com
forças para acompanhar o ritmo dela.
Entrei no carro e dirigi­-me rapidamente para a autoestrada. Como era sexta-
feira à noite, o trânsito era intenso, por isso decidi que, em vez de me juntar ao
engarrafamento que tinha pela frente, era preferível optar por outro trajeto,
embora me levasse mais tempo.
Liguei o rádio para me distrair, e cerca de dez minutos depois comecei a sentir
qualquer coisa de estranho na condução do carro. A direção começou a prender
o volante, e tinha dificuldade em mantê-lo direito.
Raios!
Comecei a reduzir a velocidade, sabendo que me encontrava numa estrada
secundária, no meio do nada, o solo barrento e escorregadio por causa da chuva
miudinha que caíra durante praticamente todo o dia. Parei do lado direito da
berma e liguei os quatro piscas.
Tentei lembrar-me do que devia fazer nesta situação e saí do carro envolta
numa escuridão quase absoluta, interrompida apenas pelas luzes do carro; abri a
bagageira e procurei uma lanterna, o colete refletor e o triângulo. Mas, para
meu desânimo, não os encontrei. Usei a lanterna do telemóvel e procurei como
uma possuída por toda a bagageira, que estava cheia de tralha, mas… foi em
vão.
Um carro passou por mim a toda a velocidade e fez-me dar um grito e um
salto de quase um metro.
— Grande cretino! — gritei-lhe no meio do nada.
Apontei a luz do telemóvel para as rodas do meu Audi até constatar que,
efetivamente, tinha um pneu furado. Na bagageira não tinha um pneu
suplente, um macaco nem nada que me pudesse ajudar naquela situação.
Porquê? Porque todas essas coisas estavam no meu calhambeque antigo.
Amaldiçoei-me por ter sido tão estúpida ao ponto de me esquecer de mudar as
coisas de um carro para o outro.
Olhei para o telemóvel e liguei à única pessoa que sabia que viria ajudar-me
assim que lhe ligasse.
O telemóvel só tocou uma vez.
27
NICK

Eram duas da manhã, e eu continuava a questionar-me que raio estava ali a


fazer, rodeado de gente superficial e idiota que não só não me agradava nem um
pouco como, além disso, não parava de me dar graxa como se fosse transformar-
se nos meus melhores amigos.
Estávamos num clube do centro da cidade, um daqueles lugares em que o
meu pai se encontrava com os amigos e no qual tinha ido porque era ali que
muitos contratos se concretizavam e negócios chegavam a bom porto. Até
entendia a atração do golfe, desde que era pequeno o meu pai levara-me várias
vezes a jogar, e era um desporto de que gostava, não tanto quanto de surfe, mas
pelo menos entretinha-me. No entanto, as reuniões em sítios como aquele era
algo que me deixava de muito mau humor. Além de estar rodeado por homens
de fato, sentados nos sofás de couro a fumar os seus charutos enquanto se
achavam os deuses do Universo, ainda tinha de tolerar o facto de tentarem
modificar as cláusulas de um contrato em que andávamos a trabalhar havia
quase seis meses.
Apanharam-me desprevenido, e acabei por aparecer ali de improviso, razão
pela qual todos estavam impecavelmente vestidos e eu ia de calças de ganga,
camisa informal e uma gravata que o Steve tinha ido buscar ao meu
apartamento, senão os grandes sacanas não me deixariam entrar no clube.
Enquanto tirava um cigarro do maço, o sexto que fumava naquela noite, vi o
Steve afastar-se para atender uma chamada. Por instantes ainda pensei que me
ia ligar para me dar uma desculpa para sair dali o quanto antes; não obstante,
quando desligou, depois de franzir o sobrolho e assentir, aproximou-se do local
onde eu estava, e dediquei-lhe toda a minha atenção.
— Tenho de me ausentar por um instante — anunciou, olhando para mim
muito sério.
«Ausentar-se?»
— O que aconteceu? — perguntei, levantando-me e afastando-me para um
canto da sala para falar abertamente com ele, mas não sem antes me desculpar
com os presentes. — Se isto for uma desculpa para me tirares daqui, dou-te um
aumento, Steve.
O meu guarda-costas sorriu, mas abanou a cabeça.
— A Noah acabou de me ligar.
Ao ouvir o nome dela, o meu corpo ficou automaticamente tenso.
— Parece que teve um furo e não tem pneu sobresselente. Está numa estrada
secundária no meio do nada — informou-me, abanando com a cabeça e falando
entre dentes. — Pediu-me que fosse ajudá-la.
«Espera, o quê?»
— Eu vou lá — decidi, surpreendendo-me a mim mesmo ao perceber que
queria mesmo ir. — Dá-me a morada.
— Nicholas, ela perguntou-me se estava contigo e pediu-me expressamente
que não te dissesse nada.
Sorri, divertido.
— É evidente que não lhe deste ouvidos. Eu vou lá, Steve, não te estou a
pedir a opinião.
Ele suspirou, frustrado.
— Muito bem, eu vou de táxi para casa. Mando-te a localização dela por
mensagem; na mala do carro tens tudo de que precisas — explicou-me
pacientemente.
Dei-lhe uma palmada amistosa no ombro e aproximei-me dos homens de fato.
— Meus senhores, lamento muito dizer-vos que tenho de me ausentar:
aconteceu algo que exige a minha presença imediata — disse, regozijando-me
com as suas expressões indignadas. — Podemos continuar a reunião no meu
escritório, num horário mais razoável… Boa noite.
Saí sem sequer lhes dar hipótese de responderem: a Noah era sempre a minha
melhor desculpa.

Enquanto seguia as instruções do GPS, comecei a ficar preocupado ao ver que


o carro estava numa zona quase deserta, numa daquelas malditas estradas
secundárias que muita gente escolhia para evitar o trânsito. Sempre dissera à
Noah para não se meter nestes lugares, que eram perigosos, que os pisos
estavam em mau estado, mas ela tinha sempre de fazer o que lhe dava na real
gana.
Avistei o carro dela um pouco depois da saída, o que era um perigo, porque
qualquer pessoa que fosse distraída podia abalroá-lo. Não tinha o triângulo na
estrada nem nada. Fiz-lhe sinais de luzes para a avisar de que estava a chegar.
Estacionei à sua frente e saí do carro. Ela fez a mesma coisa e ficámos a olhar um
para o outro; eu, com vontade de a meter no meu carro e tirá-la da estrada, e ela
como se quem tivesse acabado de sair do meu carro fosse o próprio Satanás.
Aproximei-me e aproveitei para a observar rapidamente. As luzes da frente do
carro faziam-na aparecer a contraluz, o que salientava cada uma das suas curvas
e fazia com que o cabelo brilhasse de forma incrível. Parecia um anjo rodeado de
escuridão.
— O que estás a fazer aqui? — perguntou, cruzando os braços. Tentou que
parecesse um gesto irritado, mas consegui ver que estava gelada. A minissaia
que trazia vestida não deixava muito à imaginação, e, quase sem querer, a
minha mente começou a despi-la ali mesmo, devagar… Era capaz de apostar
um braço em como trazia um cinto de ligas de renda colado às coxas
maravilhosas.
Parei à sua frente, invadindo o seu espaço sem conseguir evitá-lo: com a Noah
tinha sempre muita dificuldade em respeitar os limites, a distância adequada
entre duas pessoas, como fazia com toda a gente: as coisas com ela eram muito
diferentes.
— É assim que recebes a pessoa que te veio socorrer? — perguntei, desejando
abraçá-la para que parasse de tiritar.
— Eu liguei ao Steve, não a ti — respondeu, desviando o olhar. A minha
maneira de cravar os olhos nos seus deixara-a perturbada.
— Pois, mas, uma vez que o Steve trabalha para mim…
— O Steve disse-me que quando tivesse algum problema podia contar sempre
com ele.
— E quem achas que lhe disse para te dizer isso?
Não pude evitar sorrir perante a cara de espanto dela.
— Não tinhas nada melhor para fazer? Sabes, agora que és uma pessoa tão
ocupada… E a Sophia? — perguntou, como quem não quer a coisa.
A menção da Sophia não era algo que me deixasse de muito bom humor;
ainda tinha gravada na memória a expressão da Noah quando a vira no
escritório da LRB. Por mais que tivesse tentado manter as aparências, conhecia-
a suficientemente bem para saber que a afetara tanto quanto a mim quando
pensava que ela podia estar com outra pessoa qualquer.
— Ela está com os pais em São Francisco… Agora, anda — disse, segurando-
lhe na mão e puxando-a até à bagageira. Tinha ali tudo o que era necessário para
mudar um pneu. Procurei entre as coisas até encontrar o colete refletor. —
Veste isto, por favor.
A Noah soltou-se da minha mão e aceitou o colete amarelo que lhe estendia.
Vestiu-o sem resmungar, e eu fiz o mesmo com o segundo colete que ali tinha
guardado.
— Nem preciso de te explicar como é irresponsável não teres estas coisas no
teu próprio carro — comentei, tirando o pneu suplente da bagageira. — Pega
no macaco e anda comigo.
A Noah fez o que lhe pedi. Muitas raparigas nem sequer sabiam o que era um
macaco, mas tinha a certeza de que, se desse o pneu à Noah, ela o mudaria sem
problema e até mais depressa do que eu. As suas palavras seguintes
confirmaram-no.
— Posso fazer isto sozinha, não precisas de ficar aqui — disse, agachando-se
ao meu lado quando me coloquei ao lado do pneu furado.
— Não digas disparates e não te afastes do carro — respondi levantando-me e
pegando nos triângulos de sinalização. Quando voltei para junto da Noah, já
tinha posto o macaco por baixo do carro e estava a empurrar a alavanca com
força.
Segurei-a pelos ombros e resmunguei entre dentes.
— Não te importas de esperar? — perguntei, irritado. Olhei para baixo e vi
que tinha os joelhos sujos de lama e que as meias se haviam rasgado ao roçar nas
pedras do chão. — Não precisas de me provar nada, sei que és perfeitamente
capaz de mudar um pneu; custa-te assim tanto aceitar que vim ajudar-te?
— Eu não quero a tua ajuda, Nicholas — declarou.
Voltei-me para ela, tentando controlar o que estas palavras despertavam em
mim.
— Então não precisas do pneu? — perguntei, olhando para ela muito sério. A
Noah comprimiu os lábios com força. — Posso ir-me embora e levá-lo, o
reboque pode demorar entre vinte e quarenta e cinco minutos a vir buscar-te…
E isto sem contar com a multa que podem passar-te por andares na estrada sem
pneu sobresselente.
— Era por isso que não queria que o Steve te dissesse nada… Acabas sempre
por me atirar as coisas à cara — disse sem pestanejar.
Não tinha sido essa a minha intenção: a verdade era que preferia estar no meio
daquela estrada em mau estado às duas da manhã com ela do que em qualquer
outra parte, e o meu problema era mesmo esse.
Mais irritado comigo mesmo do que com ela, virei costas sem responder e
pus-me a trabalhar. Reparei que o seu olhar não se afastou das minhas mãos
durante o tempo todo. O único ruído que interrompia o silêncio da noite era o
dos carros a passar ao nosso lado e do vento, que parecia querer levantar-nos do
chão.
Ao acabar, levantei-me, pronto para me ir embora, e encontrei a Noah muito
calada, ligeiramente encostada ao meu carro e com o olhar cravado no meu
rosto. Um carro passou ao nosso lado e obrigou-me a dar um passo na sua
direção; ela encostou-se à porta, e eu senti que as minhas ancas se uniam às suas
num movimento quase magnético.
Os nossos olhos encontraram-se naquela escuridão parcial, e, de repente, senti
uma necessidade quase dolorosa de tocar na sua pele e de verificar se a
temperatura subira tanto quanto a minha. Quase sem pestanejar, a minha mão
apoiou-se na anca dela, e os dedos entraram por baixo da camisola.
— Estás gelada — comentei, juntando-me ainda mais, desejando senti-la;
porém, a mão dela meteu-se entre nós. Pousou-a sobre o meu peito e empurrou-
me ligeiramente para trás.
— Não faças isso, Nick — avisou-me, evitando olhar nos meus olhos.
— Só estava a assegurar-me de que não entras em hipotermia — disse tão
baixo que acho que nem me ouviu. Tudo pareceu desvanecer-se. Só queria
segurar no rosto dela e beijar aqueles lábios até o Sol subir no horizonte e
estarmos os dois com a mesma temperatura corporal… Odiava não poder puxá-
la para mim, abraçá-la, odiava que não me pedisse para se abrigar debaixo do
meu casaco até que o frio abandonasse o seu corpo, odiava não ter visto o seu
sorriso radiante quando me avistou a chegar.
Ia beijá-la, raios, nem sequer tive dúvidas — para que tinham sido feitos
aqueles lábios senão para serem beijados pelos meus? —, mas a Noah não me
deu oportunidade: agachou-se e escapou-se por baixo do meu braço levantado.
— Tenho de ir — anunciou quase sem hesitar, abrindo a porta do condutor e
sentando-se.
Quando se afastou, fui eu quem sentiu frio, mas não queria que se fosse
embora assim. Tinha sido um pulha com ela, não podia fazer-lhe aquilo, mas
nunca conseguia pensar com clareza quando estávamos sozinhos.
— Espera, Noah — disse, baixando-me à altura da janela do carro dela. Ela
parou com a chave na ignição e baixou o vidro para me ver melhor. — Isto não
vai voltar a acontecer, prometo-te.
Não sei o que lhe passou pela cabeça, mas o olhar que me lançou deixou-me
louco durante dias.
28
NOAH

Nem vou falar muito deste breve encontro com o Nick, porque não sei o que
magoou mais, que tentasse beijar-me ou que me prometesse que não voltaria a
fazê-lo.
Gostei de ter tido o autocontrolo para impedir que alguma coisa acontecesse,
principalmente porque sabia como me custara recuperar depois de termos ido
para a cama nas últimas férias. O Nicholas era assim, um homem de impulsos,
que fazia o que queria sem pensar nas consequências. Se queria sexo, que fosse à
procura dele com a Sophia… ora! Só de pensar nisso, dava-me vontade de
arrancar todos os cabelos da cabeça, mas não vou ser essa miúda, não, não vou
ser aquela a quem o namorado deixou, mas que vai para a cama com ele sempre
que ele quer; não, estava fora de questão.
Por isso, concentrei-me na pessoa que queria algo mais do que levar-me para a
cama, que me convidara para a festa de inauguração da LRB. Estava um pouco
nervosa com a festa, sobretudo porque o Nicholas levaria a Sophia, e não tinha a
certeza se iria suportar vê-los.
Quando o dia chegou, pus um vestido azul com pequenas incrustações, curto
e justo ao corpo. Há um ano que não o podia vestir precisamente porque estava
demasiado magra, e cheguei ao ponto de ter de encher o sutiã com chumaços
para o decote me ficar bem. Quando me olhei ao espelho sorri, porque agora
começava a reconhecer a imagem que ele me devolvia: sim, os meus seios
tinham voltado, os mesmos que há uns meses tinham desaparecido e que agora,
por sorte, tinham decidido regressar.
Calcei uns sapatos de salto que a Jenna me dera na semana anterior, uns
Louboutin cor de cereja, que combinavam com uma bolsa da mesma cor com
cristais aplicados. Peguei no casaco preto, comprido e elegante, presente de
Natal da minha mãe, e, quando ouvi o apito do carro do Simon, saí.
Quando cheguei à rua, o Simon saiu do carro para me acompanhar.
— Estás maravilhosa — comentou, colocando as mãos na minha cintura e
puxando-me para a sua boca.
Oh, meu Deus, porque ficava sempre tão constrangida quando ele fazia
isto?…
Afastei-me dele um segundo depois e fechei o casaco, já que estava bastante
vento na rua. O carro do Simon era um bonito Porsche clássico, cinzento, e não
pude evitar recordar o dia em que fiz o Nick perder o seu Ferrari… Ainda não
sabia como foi capaz de me perdoar, mas naquela altura estávamos a apaixonar-
nos.
O que faria o Simon se eu batesse ou arranhasse o seu precioso carro?
Abriu-me a porta como um verdadeiro cavalheiro e fomos juntos em direção
ao local da festa.
O sítio era enorme, daqueles com tetos altos e bonitos desenhos lá pintados.
Fiquei surpreendida ao ver ali tanta gente, porque a empresa era nova, apesar de
ser uma de muitas da corporação, claro. Reconheci algumas pessoas que me
cumprimentaram e perguntaram pela minha mãe e pelo Will. Agora que o
Nick era o chefe, o William preferiu dar um passo atrás e deixá-lo à vontade;
além disso, com a sua idade, andava suficientemente atrapalhado a ser pai de
uma menina pequena. Olhei distraidamente em redor, enquanto o Simon
pegava em dois copos de champanhe.
— Procuras alguém?
Bolas.
Fixei os olhos nele e abanei a cabeça enquanto levava o copo aos lábios.
— Estava só a admirar este lugar… é bonito — respondi, antes de beber um
novo gole do meu copo.
Como o Simon tinha um cargo importante na empresa, era sua obrigação
cumprimentar quase toda a gente que ali estava. Inicialmente, ainda me
arrastou com ele, mas ao fim de uma hora decidi que já chegava e fui até ao bar
com a desculpa de que me doíam um pouco os pés. No instante em que a
empregada do bar me trocava o copo vazio por outro com champanhe rosado,
frio e borbulhante, os meus olhos desviaram-se quase como se fossem atraídos
para a porta da entrada por um íman.
Pois bem… ali estavam eles, o rei e a rainha do baile.
A Sophia estava esplêndida, com um vestido de noite elegante, comprido,
bege. Trazia o cabelo apanhado de um dos lados da cabeça, caído sobre o ombro
em ondas escuras. O seu rosto, por outro lado, reluzia com a luz da sala.
Ele estava… soberbo, sim, soberbo era a palavra. Fato cinzento-escuro, camisa
branca, gravata azul-céu e aquela cara que convidava ao pecado, a fazer coisas
más, perigosas e proibidas.
Por sorte, as luzes baixaram de repente para dar início ao jantar, e o Simon
apareceu para me acompanhar até à mesa. Dedicou-me toda a sua atenção;
conversámos, comemos, rimo-nos um pouco e depois da sobremesa levou-me
para dançar na pista onde já estava o resto dos convidados e colegas de trabalho.
Apesar de termos ido juntos, queríamos ser discretos à frente das pessoas, para
não chamarmos a atenção para a nossa relação incipiente, por isso comportámo-
nos como se fôssemos amigos. Mentiria, no entanto, se dissesse que não me deu
um certo prazer ver que o Nicholas não achou graça nenhuma a ver-nos juntos.
A certa altura, estava sozinha a beber um copo, talvez o quinto da noite, e foi
nesse momento que o Nick decidiu aproximar-se. Não vi a Sophia em lado
nenhum, mas senti a sua presença; era como se estivesse algures a observar-nos.
O Simon tinha desaparecido, e não fazia ideia de onde se encontrava, mas eu
estava feliz na companhia do meu amigo barman.
— Chegaste bem ontem à noite? — perguntou o Nick, colocando-se ao meu
lado no bar e olhando para mim com o sobrolho franzido.
— Cheguei perfeitamente bem, obrigada. Tudo correu sobre rodas —
respondi, sem conseguir evitar rir-me da minha própria piada. — Devias
dedicar-te a isso — acrescentei, bebendo mais um gole.
— A mudar pneus? — perguntou ele, olhando para mim divertido. — Bolas,
ainda bem que não ponho o meu futuro nas tuas mãos…
Sorri-lhe por cortesia e levei novamente o copo aos lábios, algo que o Nicholas
observou com nervosismo.
— Vieste com o Simon — disse. Era mais uma afirmação do que uma
pergunta.
— Que perspicaz… Deduziste isso porque nos viste sentados juntos ou
porque não me separei dele durante toda a noite?
— Deduzi-o desde o primeiro instante em que vos vi no escritório. Achei que
não devia haver nada entre os dois… Podia haver demissões só por causa disso.
Levantei os olhos em direção a ele e percebi que estava muito mais tenso do
que tentava aparentar à primeira vista.
— De quem gostavas de te ver livre primeiro, dele ou de mim?
— Sabes perfeitamente qual é a resposta — disse, fixando os olhos nos meus
lábios. Eu fiz o mesmo, mas logo a seguir olhei para os dele. Tinha de me
concentrar.
— A única coisa que sei é que neste momento estou a começar um novo
capítulo na minha vida — comentei sem afastar os olhos dos dele. — Como tu
fizeste há coisa de um ano. Claro que estou muito feliz por ti, Nick, adoro ver
que voltaste a namorar, que estás feliz e que conseguiste ter a rapariga por quem
te apaixonaste desde a primeira vez em a viste. — As minhas palavras saíram
com tanto veneno que dei graças a todos os anjos e santos pelo facto de o Simon
ter aparecido naquele instante, porque não fazia ideia do que podia continuar a
dizer. Perdera o filtro, e isso podia ser muito perigoso.
— Tudo bem? — perguntou ele, pondo-se ao meu lado.
O Nicholas voltou-se para o meu chefe.
— Tudo ótimo — respondeu, com um brilho estranho nos olhos. — Vais à
discoteca quando isto acabar?
O Simon olhou para mim, que não conseguia desviar os olhos do Nick. O que
diabo estava a tramar?
— Queres ir, Noah?
Sair com ele e com a Sophia? Não, nem morta.
Mas, antes de poder responder, a Sophia apareceu vinda do nada e entrelaçou o
braço no do Nick, que se retesou involuntariamente perante o seu toque.
— Olá, meninos — cumprimentou com um sorriso evidentemente falso.
Eu fiz o mesmo, deliciando-me com a possibilidade de me vingar durante o
serão.
— Por acaso apetece-me muito — respondi, pondo o braço em redor da
cintura do Simon, um gesto que ele retribuiu pondo o braço sobre os meus
ombros. O Nick não deixou passar o detalhe em branco.
— Então encontramo-nos lá daqui a pouco — sibilou.
Depois disto, foi uma questão de se despedir dos convidados, não de todos,
claro, e de ver o Nick subir ao pódio e agradecer a presença de todos na festa.
Ali em cima, com o seu fato e o porte impecáveis, com a expressão de triunfo
nos olhos, era a personificação da perfeição. Transformara-se naquilo que sempre
lutara para ser, superara todas as expectativas e estava a dominar o mundo.
Senti-me orgulhosa dele, por mais que quisesse cortá-lo aos bocadinhos e de
os fritar um a um.

Segui o Simon até à rua, para o carro, e fomos até ao sítio para onde o Nick
nos convidara. Era uma discoteca muito moderna, a cerca de dez minutos do
local onde nos encontrávamos. Ao chegar, fiquei contente por tirar o casaco e
pedir mais um copo.
O Simon observou-me, divertido, quando chamei o empregado e pedi dois
shots de tequila. Enquanto preparava os dois copos pequenos à nossa frente,
aproximei-me dele. A música e a pouca luz que ali havia deram-me ânimo para
avançar um passo e pousar os lábios sobre os dele, que me responderam
automaticamente com entusiasmo. Quando meteu a língua dentro da minha
boca senti o sabor a álcool e deixei que a minha língua fosse ao encontro da sua.
— Dois shots de tequila — anunciou o empregado, obrigando-nos a separar.
O Simon beijava… bem? Sim, beijava bem.
Lambi o dorso da mão sem qualquer vergonha, deitei o sal e, um segundo
depois, estendi-o ao meu acompanhante, que tinha ficado a olhar para mim,
pasmado.
— O que foi? — perguntei, pegando no copo com uma mão e no gomo de
limão com a outra, preparando-me.
O Simon riu-se e imitou-me.
— Tu não fazes a menor ideia do que provocas nos homens, pois não? —
perguntou, aproximando-se de mim.
A verdade é que não fazia; o único homem que achei que sentira alguma coisa
por mim acabara por me confessar que se apaixonara por outra.
E por falar do rei de Roma… O meu olhar desviou-se naquele instante para o
casal que acabava de entrar pela porta. Voltei a olhar para o Simon com um
sorriso forçado nos lábios, bati com o meu copo no dele e levei-o aos lábios para
beber o conteúdo de um trago só. A tequila queimou-me a garganta, e, antes de
ter vontade de vomitar, levei o limão à boca e mordi até o devorar.
Vi pelo canto do olho que o Nick nos observava e se dirigia a nós, com a
Sophia atrás. Tive vontade de desatar a correr na direção oposta, mas pensei
melhor e fiquei junto ao bar. O Simon estava de costas para eles e não se
apercebeu de que se aproximavam, por isso, quando o Nick chegou junto a nós,
eu tinha o Simon praticamente a comer-me a orelha.
Ri-me como se tivesse acabado de me contar a melhor piada do mundo e
depois peguei-lhe no braço para que se voltasse para o seu chefe.
— Vejo que começaram sem nós — comentou o Nick, fazendo sinal ao
empregado para nos servir mais uma rodada.
«Ai, bolas, mais um shot!» O meu corpo não ia aguentar.
— Desculpa, acho que não fomos apresentados — disse o Simon à Sophia.
O Nick olhou para mim por um instante e a seguir voltou-se para fazer as
apresentações.
— Simon, Sophia, Sophia, Simon, um dos investidores da LRB, já te falei
dele… — apresentou-os de forma bastante informal.
O Nick nem sequer olhava para ela; mais do que isso, estava tão focado em
mim que até me senti violentada, porque o Simon parecia estar a tomar nota de
cada uma das palavras pronunciadas. Estendi o braço para pegar no shot, mas o
Nick adiantou-se, pegou no copo e levou-os aos lábios, sem sal nem limão,
seguindo os costumes antigos.
Talvez fosse boa ideia deixar de beber álcool por agora, por isso até agradeci
que naquele instante começasse a dar uma música conhecida. Assim tinha a
desculpa perfeita para sair dali.
— Danças comigo, Simon? — perguntei, rodeando-lhe o braço e
pestanejando com a intenção de ser provocante.
— Claro — respondeu, pousando o copo no balcão e desculpando-se com os
demais. Reparei no olhar glacial que o Nick dirigiu à minha nuca, tão fixo que
quase senti o buraco que escavava na minha pele.
Na pista de dança, as pessoas saltavam, e eu movia-me ao ritmo da música.
Virei as costas ao Simon e deixei que me segurasse pela cintura. Com a mão no
meu estômago, senti-me estremecer quando a boca dele começou a mordiscar-
me o pescoço, de uma forma maravilhosa, sensual e nada, mas mesmo nada
decorosa.
— A agir assim, vais conseguir dar cabo de mim, pequena — disse ele, e a
forma como disse esta última palavra fez-me lembrar quando o Nick me
chamava «sardas»… Há demasiado tempo que não ouvia essa palavra, naquele
tom.
Os meus olhos desviaram-se automaticamente para o bar, procurando-o, mas
não estava ali. Onde diabo se metera? Estava a montar aquele pequeno
espetáculo para ele e, ao aperceber-me de que não me observava, fiquei irritada,
muitíssimo irritada. Girei sobre mim mesma e, antes que o Simon voltasse a
beijar-me daquele modo tão escandaloso, pedi desculpa e disse que precisava de
ir à casa de banho. Saí da pista, furiosa, a fumegar e também muito, mas muito
embriagada, devo dizer, porque a tequila me subiu à cabeça demasiado
depressa. Mas, antes de conseguir entrar na casa de banho, antes até de chegar à
longa fila de raparigas que esperavam para entrar, uma mão puxou-me pelo
pulso com toda a força e obrigou-me a entrar num corredor a abarrotar de
gente, com candeeiros pequenos intermitentes em tons de vermelho, verde e
azul. Senti-me um pouco zonza, mas então as minhas costas chocaram contra a
parede, e uma boca que conhecia demasiado bem abateu-se sobre a minha,
enquanto um corpo duro, fibroso e quente me comprimia contra a parede, com
um joelho entre as minhas pernas, apertando-me com força.
Inicialmente ainda me debati, não queria que me tocasse, não, nem morta.
Estava irritada, zangada porque ele estava com ela, furiosa porque ele decidira
não assistir à dança que lhe dedicara e colérica por não ter feito nada que
impedisse o Simon de me tocar. Onde estava o Nick que eu conhecia? O que era
feito dele?
A mão agarrou-me nos pulsos, levantou-mos acima da cabeça e fixou-os ali.
Mal me podia mexer, porque a anca dele me aprisionara contra a parede. Com a
outra mão, segurou-me no queixo e acariciou-me o lábio inferior com o polegar.
Não disse nada, absolutamente nada, limitou-se a baixar a cabeça e a introduzir
a língua na minha boca, tão fundo que quase me tocava nas amígdalas. A certa
altura, os nossos olhos encontraram-se na penumbra, e o que vi neles fez-me
estremecer: ele estava a sofrer pelo mesmo que eu sofria, pelo espaço, o imenso
vazio que se instalara entre nós, quase impossível de atravessar, um abismo que
se rasgara entre as nossas vidas. Ele estava com a Sophia há muito tempo, mais
do que a duração da nossa relação, e eu… bem, eu dera um passo gigantesco,
porque passei de não conseguir sequer conversar com alguém do sexo oposto
para ter encontros com o meu chefe e beijá-lo.
O que seria? O que nos ajudaria a perceber que precisávamos de estar juntos?
Ainda restava alguma coisa para salvar? Algo para recuperar? Restaria ainda
alguma coisa a fazer?
Segundo parecia, não.
O Nick pareceu ouvir os meus pensamentos, foi como se nos tivéssemos
ligado mentalmente através daquele beijo. Ao ver que deixava de me debater,
libertou-me as mãos, que pousei nos seus ombros. A seguir puxei-o para o meu
corpo, abracei-o pelo pescoço e comprimi-me contra ele, desejosa de o sentir
encostado a mim. Precisava de sentir que ele não ia desaparecer. Demos um
beijo desesperado, que não devia ter acontecido, um beijo que já era proibido
entre nós.
Separou-se de mim uns segundos depois e acariciou-me a orelha com os
lábios.
— Ele nunca te vai fazer sentir como eu faço, nunca te esqueças disto —
sussurrou contra a minha pele.
Não soube o que responder… O que podia dizer-lhe? Que estava enganado?
Ambos sabíamos que aquilo não era correto, nem nunca seria.
— Noah… — disse, ao ver que ficara calada. A realidade das suas palavras
atingira-me com força, deixou-me aturdida sem me conseguir mexer.
Por que razão parecia estar a fazer-me uma pergunta ao dizer assim o meu
nome, uma pergunta muito importante?
Antes de conseguir dizer o que quer que fosse, senti uma pontada no
estômago, algo forte e doloroso. Empurrei-o com as mãos débeis, voltei-me para
o lado e comecei a vomitar.
O Nicholas demorou um segundo a mais a reagir, mas segurou-me o rabo de
cavalo para o cabelo não me cair para o rosto; segurou-me para que não caísse
para a frente enquanto expulsava o maldito álcool que bebi durante toda a
noite. Continuei a vomitar durante algum tempo, obrigando-me a não pensar
na sujidade que estava a deixar no chão daquele corredor mal iluminado. Pelo
menos não se via nada, e a música abafava o som dos meus vómitos.
Quando achei finalmente que tinha acabado, levantei-me, e o Nick levou-me
para a rua pela porta das traseiras.
— Não, não — recusei. Queria voltar lá para dentro, o Simon estava lá e ia
ficar preocupado.
— Vou levar-te a casa agora mesmo — disse ele, naquele tom de voz que não
permitia resposta.
Depois de o Nick lhe ligar, o Steve apareceu na esquina com o carro. Ele
entrou comigo para o banco de trás.
— Já estás melhor? — perguntou-me com um tom de voz estranho.
A verdade é que não estava melhor, não. Queria ir para casa e beber um copo
gigante de água; a seguir queria lavar os dentes e tapar-me com uma manta
quentinha, porque estava congelada. Comecei a tiritar, quase com espasmos.
Raios… aquilo batera-me com força.
O Nick puxou-me contra si, tirou o casaco e pôs-mo sobre os ombros; a seguir
abraçou-me, até que tive de apoiar a cabeça no ombro dele, onde adormeci, ou
fiquei inconsciente, quase de imediato.

Abri os olhos e estremeci quando o Nick pegou em mim para me tirar do


carro.
— Vai buscar a Sophia e leva-a ao apartamento; depois vem buscar-me —
disse ao Steve, sem sequer olhar para ele enquanto pegava em mim ao colo.
— Eu consigo andar — queixei-me debilmente.
Ao chegar à porta, pôs-me no chão, procurou na minha bolsa até encontrar as
chaves e entrámos no meu apartamento. No instante em que ele me pousou
sobre a cama, senti uma pontada dolorosa no estômago e dobrei-me sobre mim
mesma.
— Tenho de ir à casa de banho — comentei, tentando disfarçar como me
sentia mal, não queria que ele soubesse como fora irresponsável. Maldita
tequila, maldito champanhe e maldito gim. Também, só eu me lembraria de
misturar três tipos de álcool diferentes.
— Vais vomitar? — perguntou e notei o tom de irritação da sua voz.
Levantei os olhos e vi que me fitava com asco.
— Já podes ir embora, Nicholas — disse, com desdém.
— Ai posso ir embora? Obrigado pela autorização.
— Vais acordar a minha companheira de casa — avisei, fulminando-o com o
olhar.
— Quero lá saber — disse ele com brusquidão.
Cerrei os maxilares com força e levantei-me para ele não ficar ali a olhar para
mim do alto. Aquele movimento quase conseguiu acabar comigo. Tinha tanta
vontade de vomitar, e, mais do que isso, quando me levantei senti qualquer
coisa… raios partam, só podia ser uma brincadeira.
Afastei-o e fui direta à casa de banho. Ao entrar, vi que me tinha vindo o
período.
Por isso sentia aquelas pontadas horríveis.
Sem sequer me importar que o Nicholas estivesse do outro lado da porta,
despi-me, atirei o vestido para o cesto da roupa suja e meti-me debaixo da água
gelada. Iria ajudar, de certeza. Não estive ali muito tempo, só o suficiente para
tomar um duche rápido e para a minha mente clarear um pouco. Ao sair pus
um tampão, embrulhei-me na toalha e entrei no quarto, à espera de que ele se
tivesse ido embora; mas ali estava, sentado aos pés da minha cama.
— Já podes ir — disse, encaminhando-me para o armário, quase sem olhar
para ele.
— Vou quando achar que devo ir; agora bebe isto — disse, entregando-me
um copo grande de água fria.
Ainda estava embrulhada na toalha, e o meu cabelo pingava para a alcatifa do
quarto.
— Vou vestir-me, por isso vira-te de costas — pedi, entre dentes.
O Nicholas revirou os olhos. O que tinha eu que ele não tivesse já visto? Mas
naquele momento a lógica não me importava nem um pouco.
Fiquei a olhar para ele até que se virou e ficou de costas para mim. Com toda a
rapidez que o meu estado de embriaguez me permitia, vesti umas cuecas de
algodão, uns calções e uma camisola de pijama.
— Já está — anunciei e aproximei-me para pegar no copo que ele tinha na
mão.
— E o ibuprofeno também — disse e percebi que para encontrar os
comprimidos teve de abrir a minha mesa de cabeceira. Se não estava enganada, a
sua carta estava ali, a carta que me dera há muito tempo e que eu relia mais
vezes do que aquelas que estava disposta a admitir em voz alta.
Tirei-lhe o comprimido das mãos, e os meus olhos soltavam faíscas; depois de
o tomar, meti-me na cama e tapei-me com a colcha até ao pescoço, de costas
para ele, virada para a parede.
Uns segundos depois, senti-o sentar-se ao meu lado no colchão. Os dedos
acariciaram-me o cabelo, afastando-o com cuidado, e fechei os olhos com força
ao sentir o seu toque tão quente, tão especial.
— Devias deitá-la fora… aquelas palavras já não significam nada.
Depois de o dizer, foi-se embora.
29
NICK

O Steve deixou-me à porta do bloco de apartamentos que fechara há muito


tempo com a ideia óbvia de nunca mais ali voltar. Regressar àquele lugar mais
de um ano depois foi muito duro: as recordações, as malditas recordações
estavam presentes em cada esquina, em cada canto, em cada divisão.
Naquele dia, vê-la com o Simon foi como se me tivessem cortado o coração
com uma faca. Maldito Simon Roger, como teria gostado de lhe partir a cara!
Quando o vi a beijar-lhe o pescoço, a pele… os lábios, tive vontade de lhe dar
um murro que lhe fizesse saltar os dentes todos da boca.
Depois houve o momento em que a encurralei contra a parede, o momento em
que me esqueci de tudo o que tinha acontecido, em que parecia que estávamos
dispostos a apagar tudo e seguir em frente. Tê-la nos meus braços era sempre
uma ocasião magnética, atração pura, contra a qual nada podia fazer. Porém, de
repente, alguma coisa pareceu atingir-me como uma bola demolidora: apercebi-
me de que existia um véu invisível, um véu em que nunca tinha reparado antes
e que agora se instalara entre nós.
O que era? O tempo? As nossas vidas quase refeitas, mas em separado? Um
amor que começava a congelar-se na memória?
Naquele momento, senti medo, tive medo ao aperceber-me de que a separação
entre nós era uma coisa consumada, tangível e muito mais real do que alguma
vez pude imaginar.
Entrei no elevador a pensar no rosto dela deitado na almofada, nos cabelos
espalhados sobre os lençóis brancos, na carta que vira na mesa de cabeceira,
sempre à mão, por perto…
Aquelas palavras tinham deixado de fazer sentido?
Sim, claro que sim… por mais que perdesse o controlo quando estava à frente
dela, por mais que a desejasse, por mais que quisesse voltar ao ponto em que
tínhamos parado, a verdade é que ela me traíra com outro homem.
Ao abrir a porta, vi que as luzes estavam acesas. A Sophia estava sentada no
sofá, a olhar para a televisão apagada e com um copo de vinho nas mãos. Tirei o
casaco e pousei-o no sofá em frente a ela. Os olhos dirigiram-se a mim, e vi
qualquer coisa que não me agradou.
— Estavas com ela?
De que me servia mentir? Claro que estava com ela, não era preciso ser muito
inteligente para chegar a essa conclusão.
— Sim, levei-a a casa, não se sentia bem — respondi, virando-lhe as costas e
servindo-me de um copo.
— Ela tem outra pessoa, Nicholas, ele podia tê-la levado a casa…
Pensar no Simon como essa outra pessoa deixou-me fora de mim.
— A sério que estás a interrogar-me, Sophia? Já sabes que não gosto de dar
satisfações a ninguém — disse, pousando a garrafa com um baque seco.
A Sophia levantou-se do sofá e pôs-se à minha frente com um passo seguro.
— O que temos não é um jogo, e, se é para ir em frente, vais ter de ter mais
consideração por mim, Nicholas. Por isso, sim, estou a interrogar-te. Antes não
me importava com o que fazias ou deixavas de fazer, o tipo de relação que
tínhamos era bastante evidente, mas já há algum tempo que as coisas não são
exatamente assim, por isso gostava que cumprisses a tua palavra.
Observei atentamente os seus olhos negros e vi muito mais do que ela queria
mostrar-me.
Dei um passo em frente, segurei-lhe o queixo e fitei-a ainda mais
intensamente.
— Eu cumpro a minha palavra — afirmei, acariciando a sua pele com um
toque leve dos meus dedos. — Mas cumpre tu a tua também.
A Sophia fechou os olhos um instante e voltou a olhar fixamente para mim,
desta vez ocultando muitas coisas.
— Não vou apaixonar-me por ti, não precisas de te preocupar.
Dito isto, separou-se de mim, virou-me as costas e foi para o meu quarto.
Bebi o que restava no copo e fui atrás dela.
Era a minha vez de cumprir promessas.
30
NOAH

Depois de o Nick se ir embora e de eu dormir um par de horas, a dor no


estômago e uma nova vontade de vomitar acordaram-me do meu sono. Com a
pressa de chegar à casa de banho, quase caí da cama.
Estava tão esgotada que quase nem me apercebi de que tinha de ir trabalhar.
Levantei-me como pude e lavei a cara. Tinha manchas negras do resto da
maquilhagem do dia anterior e umas olheiras enormes debaixo dos olhos.
Maquilhei-me e gastei um frasco quase inteiro para ocultar a minha vergonha.
Peguei na mochila, no casaco e nas chaves do carro e saí apressadamente do
apartamento. A última coisa que queria era dar ao Nick mais um motivo para
me despedir; ao pensar naquilo, não pude evitar recordar o beijo ardente da
noite anterior. Enquanto conduzia, vi as mensagens do telemóvel, algo que não
se pode fazer, já sei, mas percebi que tinha dez chamadas perdidas do Simon.
«Oh, raios!»
Esquecera-me de que já não estava sozinha, caramba. E agora, o que diabo ia
dizer-lhe? Que o meu ex-namorado me levara a casa depois de me enfiar a
língua quase até à garganta?
Precisava de beber café, um café iria ajudar-me a pensar com clareza, a
enfrentar as consequências da noite anterior, mas, quando estava mesmo a entrar
no edifício e me encaminhava para o elevador, vi-o. Ali estava o Nick, de fato e
olhos fixos no telemóvel enquanto esperava que o elevador chegasse. Respirei
fundo, amaldiçoei a minha sorte e aproximei-me. Ainda pensei em ir pelas
escadas, mas subir catorze andares, ainda por cima de ressaca, não era uma coisa
que me apetecesse muito fazer. Parei ao lado dele, e o Nick levantou os olhos do
telemóvel para os pousar em mim.
Quem me dera que fosse daquelas pessoas a quem o álcool fazia esquecer tudo.
A situação seria menos constrangedora.
— O que fazes aqui?
— Eu trabalho aqui — respondi, revirando os olhos.
O Nick ignorou a minha resposta impertinente.
— Pensei que não vinhas, ontem estavas que dava dó…
— Bem, não queria dar-te motivos para me despedires — respondi,
ignorando o melhor que pude a sua presença e entrando no elevador vazio
quando as portas se abriram.
O Nicholas seguiu-me e guardou o telemóvel no bolso.
— Como te sentes? — perguntou, com um tom estranho na voz.
— Estou bem — respondi, surpreendida pelo facto de estar preo­cupado
comigo.
Ontem as coisas tinham voltado a escapar do nosso controlo; sei que o tinha
provocado, mas nunca pensei que caísse como caiu.
«Devias deitá-la fora… aquelas palavras já não significam nada.»
As suas palavras inundaram a minha cabeça como se tivessem sido resgatadas
de uma neblina densa. Porque me tinha dito aquilo? Para me magoar? Se
acreditava de verdade que aquelas palavras que me escrevera havia tanto tempo
já não significavam nada, por que razão me beijara mais uma vez, porque me
levara a casa para se assegurar de que eu estava bem, porque me perguntava
agora como me sentia?
Aquilo tinha de acabar, não podia continuar a andar assim, às cegas.
Sem pensar muito no que estava a fazer, dei um passo em frente e carreguei no
botão vermelho que parava o elevador. A cabina fez um solavanco estranho,
soltou um apito agudo e parou.
Voltei-me para o Nick, que estava tão surpreendido quanto confuso.
— Porquê? — perguntei, cruzando os braços tentando sentir-me protegida
dele, era a única forma de fazer de conta que havia uma barreira entre nós.
— Porquê o quê? — perguntou com o sobrolho franzido.
— Porque me beijaste?
Como resposta, o Nick ficou a olhar para mim.
— Não devias tê-lo feito.
Levantou as sobrancelhas com ceticismo.
— Não te ouvi a queixares-te.
Senti-me corar. Ele sorriu de uma forma que me deixou sem ar.
— Agora vais dizer-me que o espetáculo que montaste na pista de dança não
foi para me fazeres ciúmes.
Arregalei os olhos, fingindo indignação.
— Tu não és o centro do Universo, não tinha nada que ver contigo — menti.
— Além disso, o que tem isso que ver com o resto? Já é a segunda vez que fazes
isso… És tu quem me procura, fizeste-o em casa do teu pai e fizeste-o agora;
não gosto que o faças, deixas-me confusa e…
— E, quê? — interrompeu-me, dando um passo na minha direção. Desta vez
não recuei, deixei-me ficar quieta onde estava: ia fazer-lhe frente nesta situação,
estava farta daqueles altos e baixos emocionais que continuavam a suceder-se a
cada encontro nosso. De cada vez que pensava que podia esquecê-lo, ele aparecia
e fazia coisas que me deixavam a questionar a minha sanidade.
— E estou farta disto, Nicholas, já passou muito tempo, estou a tentar
avançar com a minha vida.
Não pareceu achar muita graça a este último comentário.
— Avançar ao lado do Simon? — Cada uma das suas palavras tinha veneno
inoculado.
— Com o Simon ou com quem quer que seja… eu também mereço ser feliz
— afirmei com determinação. — Quero voltar a ter o que nós tínhamos,
Nicholas… e, se o Simon…
Não me deixou acabar a frase. A sua mão agarrou no meu punho e puxou-me
com força até o meu peito chocar com o seu, os nossos pés alinhados no chão.
— Repete isso. Repete que queres que o Simon te dê o mesmo que eu te dei.
Fiquei sem respiração por o ter tão perto de mim. O perfume dele inundou
todos os meus sentidos, e quis afastar-me para recuperar o controlo, mas ele
impediu-me, colocando a outra mão nas minhas costas e apertando-me contra
si.
— Algum dia hei de estar com outro homem, Nicholas. Não podes querer
que nunca mais ninguém me toque, que fique à tua inteira disposição, à espera
de quando te der vontade de vires ter comigo. Estou com o Simon, aceita-o,
como eu aceito que estejas com a Sophia — disse, sentindo um travo amargo na
boca só de mencionar este nome estúpido. — Lembras-te da Sophia? A tua
namorada? — acrescentei com repulsa.
A expressão do Nicholas mudou, observou-me durante alguns instantes que
me pareceram uma eternidade e vi que a cólera que as minhas palavras
provocavam nele o transformavam por instantes noutra pessoa.
— Estás a brincar com o fogo, Noah. — O punho dele apertou as minhas
costas com força.
— Não estou a brincar a nada, quem parece querer jogar nas duas frentes és
tu.
O Nicholas soltou uma gargalhada amargurada.
— É tão irónico que uma coisa dessas saia da tua boca, não achas?
«Deus do Céu, sempre a mesma coisa! Chiça! Será que nunca ia parar de mo
recordar?»
Sem desviar os olhos dele, estendi a mão e voltei a premir o botão vermelho
do elevador. A cabina pôs-se em movimento mais uma vez enquanto
continuávamos a travar a batalha mais longa da história. Antes de as portas se
abrirem, fiz um último comentário:
— Por mais que nos custe… ambos sabíamos que este momento ia chegar.
Vi que ia dizer alguma coisa, mas as portas abriram-se, e passei rapidamente
entre elas, fugindo das palavras dolorosas que ele pudesse dizer.
Pela primeira vez desde que tínhamos terminado, quis que ele se fosse
embora.

Ao sair do elevador, fui diretamente para o escritório do Simon. Devia-lhe


uma explicação. Ao entrar, vi-o apoiado na secretária, com os braços cruzados e
um semblante preocupado.
— O que te aconteceu ontem, Noah? — perguntou quando me viu e senti-
me corar. — Num segundo dizes que vais à casa de banho, a seguir procuro-te
por todo o lado, preocupado… Pensei que te tinha acontecido alguma coisa,
caramba, a sério, não voltes a fazer uma coisa destas.
— Desculpa, sei que te deixei sozinho, eu…
— Andei uma hora à tua procura, até que um tipo encasacado qualquer me
veio dizer que tinhas ido para casa… Porque te foste embora?
Bolas, sentia-me tão culpada… Tinha sido uma perfeita idiota, e agora pusera
em risco algo que estava apenas a começar com o Simon.
Dei um passo vacilante, angustiada por perder aquilo que tinha todo o ar de ir
na direção certa.
— Fiquei num estado lastimoso, tenho vergonha só de te contar. Gostava de
te dizer sem vacilar que tive simplesmente de sair porque alguém me pediu
ajuda numa emergência, ou que alguma amiga acabou com o namorado e me
ligou para que fosse consolá-la, ou que torci um tornozelo e tive de ir às
Urgências, mas a verdade é que passei mal por causa do que bebi. Não quero
que penses que sou uma criança que não sabe beber ou algo pior, mas a verdade
é esta: estava completamente embriagada… e asseguro-te que a ressaca que
sinto neste momento já é castigo suficiente; por favor, perdoa-me.
Respirei fundo para recuperar do meu monólogo e percebi que o Simon estava
a começar a olhar para mim como habitualmente. Afastou-se da secretária e
aproximou-se até ficar a um palmo de mim.
— Da próxima vez avisa-me, e serei eu a levar-te a casa sã e salva… Sei que só
nos conhecemos há algumas semanas, mas gosto de ti e quero que confies em
mim se alguma vez estiveres em apuros.
Meninos e meninas, isto é uma reação adulta.
Ofereci-lhe um sorriso que não me alcançou os olhos. Ele pôs uma mão na
minha cintura e aproximou-me do seu corpo.
— Ontem à noite diverti-me muito, mas acho que para ti não foi bem assim.
— Foi ótimo até que decidi beber aquele terceiro shot; aí estraguei tudo, mas
o resto da noite foi incrível, a sério, diverti-me a valer.
O Simon subiu a mão pela minha blusa azul-marinho e puxou-me para si.
Depois da discussão com o Nick, queria, precisava, que esta relação com o
Simon resultasse. Beijou-me os lábios de forma terna e carinhosa. As minhas
mãos subiram até à nuca dele e puxei-o para o obrigar a aprofundar o beijo;
queria que me fizesse esquecer o homem que estava a poucos metros de
distância de nós.
Separámo-nos com a respiração um pouco acelerada, e vi que o Simon estava a
sorrir.
— Estou perdoada?
— Mais do que isso, acho que vou ralhar contigo mais vezes…
Ri-me, e nesse instante a porta do escritório abriu-se.
Era a secretária do Nick.
— O senhor Leister convocou uma reunião para daqui a uma hora. Quer-nos a
todos na sala.

A reunião com todos os membros do sector foi uma tortura. A mim calhou-
me ficar encarregada da projeção de imagens, o que me punha no centro das
atenções. Estava de pé, enquanto os restantes me observavam dos seus lugares,
principalmente o Nick. Se ele não controlasse a maneira como estava a olhar
para mim, o Simon e toda a gente do escritório ia acabar por desconfiar de
alguma coisa, e não havia nada que eu desejasse menos. Quando a reunião
acabou, o Nicholas levantou-se e pediu-nos que ficássemos mais uns segundos.
— Quero abordar um tema delicado, mas que creio ser importante. — Todos
olhámos para ele com atenção. Não fazíamos ideia por que motivo ficara
subitamente tão frio. — Não sei se alguns de vós não estão a par das normas
desta empresa, por isso mesmo mandei fazer cópias para cada um dos presentes,
com o objetivo de que as façam chegar também ao vosso pessoal. — Toda a
gente o fitava com atenção, e o Nicholas retribuía os olhares de forma
profissional e distante. — A confraternização entre funcionários é estritamente
proibida.
Arregalei os olhos, surpreendida. Vi que os olhos do Simon estavam fixos no
Nicholas e, de repente, abateu-se sobre a sala um silêncio constrangedor.
— É uma norma que sempre prevaleceu em todas as empresas da minha
família e considero-a importante para o bom funcionamento das mesmas. —
Percorreu cada um de nós com o olhar, parando primeiro no Simon e depois em
mim. — Se esta noção ficou bem clara, podem continuar o vosso trabalho,
obrigado.
Um rumor espalhou-se pela sala à medida que as pessoas se apressavam para
sair da reunião o quando antes.
Meu Deus, esta norma era ridícula!
Voltei-me para o Simon, vi que se levantava, mas que não fazia tenção de se
dirigir ao seu gabinete.
O Nicholas acabou de guardar as suas coisas na pasta e, ao levantar os olhos e
ver-nos ali, deixou que o lápis que tinha entre os dedos caísse sobre a mesa de
vidro; endireitou-se disposto a ouvir o que o Simon estava prestes a dizer-lhe.
— Sabes uma coisa, Nicholas? — perguntou, contornando a mesa e
aproximando-se dele.
Olhei para ambos com nervosismo, sem saber muito bem o que fazer ou dizer.
Não devia ter-me envolvido com ele na noite passada, não à frente do Nick.
Também não devia ter falado do Simon no elevador. Caramba, tinha-lhe dado
de bandeja a oportunidade de nos mandar aquilo à cara!
— Parece-me muito bem que exijas que os funcionários cumpram as tuas
regras estúpidas, mas não te esqueças de que sou sócio desta empresa, por isso,
podes enfiar as tuas ordens em relação à minha vida privada naquele sítio que
bem sabes.
O Nicholas não pareceu ficar surpreendido com aquele ataque verbal; mais do
que isso, ergueu-se em toda a sua altura e fez-lhe frente e sem a menor
consideração.
— Bem, eu tenho sessenta por cento dos ativos, e, uma vez que os restantes
quarenta são partilhados entre ti e o Baxwell, isso só te confere vinte por cento.
No contrato da sociedade ficou estabelecido com toda a clareza que a empresa
está sob a jurisdição das Empresas Leister, por isso, se queres marcar uma
reunião com a direção, ou seja, comigo e com os meus conselheiros, força, não
vejo qualquer inconveniente.
«Merda.»
— Nicholas, não estás a ser justo — protestei entre dentes. Não podia
acreditar no que estava a acontecer.
— Se alguma vez algum dos dois quiser dirigir uma empresa, podem fazer
com ela o que vos der na gana, mas até lá as coisas são o que são. Se vos vir
juntos mais alguma vez numa situação comprometedora ou que me faça
desconfiar, acreditar ou simplesmente duvidar se mantêm uma relação
sentimental ou não, ponho-vos aos dois no olho da rua. Entendido?
Fiquei a olhar para o Simon e tive pena dele. Via-se que morria de vontade de
partir a cara ao Nicholas, mas, por mais que a situação merecesse, não ia bater
no chefe. Não podia fazer nem dizer nada, já lhe falara bastante mal e, bem
vistas as coisas, temia que o Nicholas só estivesse à espera de uma oportunidade
para o pôr fora da empresa.
O Simon pegou nas suas coisas e saiu da sala, batendo com a porta.
O Nicholas voltou-se para mim, que continuava ali de pé como uma idiota,
com o sangue a ferver de raiva e a sentir-me profundamente impotente.
Naquele momento, odiei-o por ser tão egoísta, por não me querer para ele, mas
também por não me deixar ser de mais ninguém, odiei-o por continuar a
brincar comigo, apesar de saber que o meu coração ainda chorava por ele.
— Também vais sair daqui como uma adolescente aborrecida? Porque não
podia importar-me menos com isso — disse, reunindo as suas coisas como se
não fosse nada.
— Mas que raio de bicho te mordeu? — perguntei bruscamente, levantando
o tom de voz e cerrando os punhos com força.
O Nicholas dirigiu-me um olhar venenoso.
— Estou a tentar dirigir uma empresa. Não vou permitir que te deites com
um dos meus sócios.
— Mas isso é um assunto que não te diz respeito! — gritei.
— Tu és incrível — afirmou, baixando o tom e olhando para mim com raiva.
— Às vezes tenho mesmo dificuldade em lembrar-me por que motivo estive
apaixonado por ti. Penso, volto a pensar, e tudo se resume a umas centelhas
bastante excitantes, é verdade, mas que não compensam nem de longe nem de
perto todos os momentos de merda que me fizeste passar.
Desde quando isto se transformara numa conversa sobre nós?
— Tu falas como se fosses um maldito santo! Deixa-me recordar-te que fui
para a cama com outro porque me fizeram acreditar que tu tinhas feito o mesmo
com duas mulheres, nas minhas costas. O que eu fiz foi um erro, mas e tu? O
que me dizes de ti, Nicholas? Quantas mulheres levaste para a cama desde que
nos separámos? Até a mim, meu Deus, deixei que fizesses comigo tudo o que
quiseste e, no entanto, namoravas com outra! Eu contigo fui ao fundo do poço.
Tratas-me como se eu fosse tua propriedade, como se fosse um brinquedo com
que te entreténs quando estás entediado! Não me deixas seguir em frente com a
minha vida, e isso é de um egoísmo profundo!
O Nicholas deixou as coisas em cima da mesa e dirigiu-se a mim. Estava
muito irritada, respirava com dificuldade, e as mãos tremiam-me… Tinha
desabafado, precisava de deitar aquilo para fora, aquilo e muito mais, guardar as
coisas dentro de nós não servia de nada.
— Sabes porquê? Porque não planeio deixar que sigas em frente até eu
conseguir fazê-lo. As coisas são assim; não quero ver-te feliz, não quero ver-te
com ninguém, porque eu ainda não terminei a minha história contigo!
Empurrei-o com todas as minhas forças e afastei-me até chegar ao outro lado
da sala.
— Não voltas a tocar-me — disse entre dentes. O resultado das minhas
palavras foi um brilho predador nas suas pupilas dilatadas. — Achas que podes
fazer comigo aquilo que te apetecer, mas não é assim; enquanto estiveres com
outra, o beijo que demos ontem foi o último.
O Nicholas pôs-se à minha frente e pousou as mãos na parede, ao lado da
minha cabeça.
— Não suporto ver-te com este tipo, fico fora de mim — confessou, olhando-
me fixamente, com a paixão e a determinação espelhadas nos seus olhos.
Soltei uma risada irónica.
— Pois, eu também não fico propriamente exultante por ter ver com a
Sophia.
O Nick ignorou o meu comentário e aproximou-se um pouco mais.
— Preciso de estar dentro de ti — disse então, sem qualquer ver­gonha.
— Não.
Ofereceu-me um daqueles sorrisos de esguelha que tanto me agradavam.
— Sabes perfeitamente que posso fazer-te mudar de opinião tão depressa que
nem saberás o que te aconteceu. — Ao dizer isto, segurou-me no queixo e, com
o polegar, acariciou a maçã do meu rosto até chegar ao lábio inferior.
Peguei-lhe na mão e afastei-a.
— Não vou jogar este jogo outra vez — declarei, afastando-me dele. — Isto
não tem solução, Nicholas, só vamos magoar-nos mais, e eu já sofri tudo o que o
meu corpo consegue suportar, não vou meter mais pessoas nesta história. Tu
estás com a Sophia, eu estou a começar algo com o Simon, e é essa a nossa
realidade.
O Nicholas abanou a cabeça, novamente furioso.
— Não vais começar nada com ele, Noah, pelo menos não aqui — ameaçou-
me sem pejo.
Olhei em redor. Bem, se ele punha as coisas nestes termos…
— Nesse caso, vou-me embora. Despeço-me — disse, deixando-o petrificado.
Afastei-me dele e saí, fechando a porta atrás de mim.
Pronto, estava feito… Não tinha mais nenhum motivo para voltar a vê-lo.
31
NOAH

Embora tivesse tomado aquela decisão de forma precipitada, naquela noite,


quando estava na minha cama, percebi que era o melhor que podia ter feito.
Tinha de virar a página de uma vez por todas e não ia conseguir fazê-lo
trabalhando para ele, era um absurdo.
Tinha várias chamadas perdidas do Simon, tentara entrar em contacto comigo,
perguntar-me se estava bem, e eu ignorei-o, estava concen­trada na minha raiva
em relação ao Nicholas. Porém, decidi atender uma das suas chamadas.
Perguntei-lhe se se importava que fosse ao seu apartamento e, quando
recuperou da surpresa, não hesitou em dar-me a morada.
Não demorei muito a chegar ao complexo onde o Simon vivia; ficava a dois
passos do apartamento onde eu vivera com o Nick. Quando cheguei à sua porta,
estava mais do que determinada quanto ao que queria fazer.
O Simon recebeu-me com uma expressão preocupada no rosto. Vestia umas
calças de fato de treino cinzentas e uma T-shirt larga vermelho-escura. Vermelho
era a cor que via por todo o lado. Nem sequer o deixei falar; assim que me abriu
a porta, lancei-me nos seus braços.
«Toma e embrulha, Nicholas Leister.»
O Simon rodeou-me a cintura com um braço enquanto batia com a porta da
entrada. Quando ficou com as mãos livres, agarrou-me pela cintura e levantou-
mo do chão num gesto que me recordou demasiado o Nick. Raios, por que
razão gostava tanto que os rapazes me levantassem no ar e me levassem ao colo?
«Concentra-te, Noah.»
Quando me pousou em cima da bancada da cozinha, cheguei-me para trás
para ver a reação dele ao meu ataque. O Simon estava a olhar para mim como
se, na realidade, nunca me tivesse visto.
— Quando há uma hora me ligaste para dizer que vinhas aqui, juro que isto
era a última coisa que pensei que acontecesse.
Não queria falar, não era disso que precisava naquele momento, necessitava de
tirar o Nicholas da cabeça, da pele, da alma. Despi a T-shirt pela cabeça e fiquei
só de sutiã, sempre com os olhos cravados no Simon, aqueles olhos verdes-
escuros de pestanas louras.
— Porra! — exclamou o Simon, puxando-me pela nuca e reclamando a minha
boca mais uma vez.
Deixei-o brincar com a minha língua enquanto quis, mas, quando a mão dele
começou a descer pelas minhas costas despidas, fiquei involuntariamente tensa.
— Estás bem? — perguntou, afastando-se de mim e parando a mão no fecho
do meu sutiã.
— É só que… podemos ir para o teu quarto?
Escuridão… precisava da escuridão, que era algo que não acontecia há muito
tempo. O Simon sorriu e voltou a levantar-me ao colo até uma porta no
corredor meio iluminado.
— Eu sei andar — não consegui evitar dizer.
— Eu sei, mas gosto de te sentir como te sinto agora.
E como me estava a sentir, a ereção dele cravava-se na minha pele como uma
maldita vara de alumínio. O Simon pousou-me na cama, tirou a T-shirt e
deitou-se em cima de mim, sustendo o peso do corpo enquanto me dava
pequenos beijos no estômago. Fechei os olhos com força… Deus, não, porquê?
Porque tinha tanta vontade de chorar?
Ele desapertou-me o primeiro botão das calças de ganga, e de repente senti-
me invadida por recordações do Michael, daquela noite, da sua boca na minha
pele, dos lábios nos meus. Foi como reviver tudo aquilo outra vez, a traição, o
engano, o maior erro de toda a minha vida. E agora ia cometê-lo novamente?
Não! Caramba, não estava a fazer nada de mal, o Simon não era um tipo
qualquer, ele queria ter alguma coisa comigo, importava-se comigo, mais do
que o Michael, mais do que o Nicholas…
O Nicholas…
O seu rosto apareceu no meu pensamento, os malditos olhos azul-celeste que
me olhavam como se eu fosse o próprio diabo, os lábios, a forma de me beijarem
como se não houvesse amanhã, a maneira como me esmagava contra a cama,
querendo sentir-me com tanto desespero que por vezes até me deixava sem
respiração. As mãos que naquele momento tentavam despir-me não eram as
suas, nunca seriam as suas, e não tinha a certeza se algum dia iria conseguir
esquecer-me do seu toque, se iria poder apreciar qualquer outro homem.
Prestes a sofrer um ataque de histeria e pânico, afastei o Simon com um
empurrão e pus-me de pé num salto.
— Desculpa… mas não posso fazer isto — desculpei-me, abotoando as calças
e procurando a saída como se fosse um animal enjaulado, mas a jaula eram os
meus próprios pensamentos.
— Noah, espera, desculpa se não estás preparada…
— Tenho de ir embora — disse, ignorando-o e saindo pela porta que havia na
outra parede. Fui à sala e encontrei a minha T-shirt caída algures no chão da
cozinha. Aproximei-me, apanhei-a e vesti-a bruscamente.
O Simon segurou-me os braços e obrigou-me a olhar para ele.
— Podes dizer-me o que está a acontecer? — perguntou então, algures entre
preocupado e irritado. — É por causa do Leister? Porque, se é, digo-te já que
não quero saber nem um pouco das suas regras da empresa. Estás a ouvir?
Abanei a cabeça e limpei uma lágrima com as costas da mão.
— Agora só preciso de ir para casa, mais nada — disse, tentando controlar
quão perdida me sentia.
O Simon endireitou-se, observou-me durante alguns segundos e a seguir
assentiu.
— Está bem — concordou, suspirando profundamente. — Mas, qualquer
coisa, liga-me, combinado?
Assenti e senti pena por ele, que não merecia nada daquilo, não merecia ter de
lidar com alguém como eu. Senti-me culpada e aproximei-me para lhe dar um
beijo leve no rosto antes de pegar na minha mala e sair sem olhar para trás.
Nicholas, dez; Noah, menos cinco.
32
NICK

Não fui atrás dela quando saiu da sala de reuniões, não era o melhor momento,
sabia bem que a tinha tirado do sério. Comportara-me como um autêntico
sacana, mas pensar na Noah a fazer com outro o que fazia comigo deixava-me
furioso e de uma forma que me fazia questionar o meu próprio juízo. Sabia que
eu próprio a tinha impelido a virar a página e sabia também que isso significava
que devia deixá-la refazer a sua vida com outro, mas, desde que a vi com o
Simon, não parava de me questionar se não estaria a enganar-me.
Passei a noite às voltas com esta ideia e no dia seguinte esperei com
impaciência pelo momento em que poderia falar a sós com ela. Para minha
surpresa, foi a Noah quem decidiu apresentar-se no meu escritório.
Nem sequer bateu à porta, coisa que só conseguiu avivar o meu desejo de a
beijar. Observei-a de cima abaixo sem disfarçar. As calças que trazia colavam-se
ao corpo como uma segunda pele, e a blusa, embora elegante, ajustava-se
demasiado às curvas bonitas que eu conhecia tão bem. Tinha as faces rosadas e
os lábios grossos, um pouco inchados. Bastou-me olhar para ela de relance para
saber que passara a noite a chorar.
Aproximou-se e na mão trazia um papel que deixou em cima da secretária.
— É a minha carta de demissão. Como trabalho a tempo parcial, não preciso
de dar as duas semanas à casa. O Simon desenrasca-se sozinho até que decidam
contratar outra pessoa, isso se vos interessar ter mais alguém — disse sem olhar
nos meus olhos.
«Raios!»
Levantei-me e, quando me encaminhei na direção dela, virou-se com a clara
intenção se ir embora depressa. Estendi o braço e puxei-lhe pelo punho na
minha direção.
— Espera, porra — ordenei entre dentes. Encostei-me à secretária para não
ter de a olhar nos olhos, e ela comprimiu os lábios com força, libertou-se com
um puxão e cruzou os braços sobre o peito. — Não deixes o trabalho, Noah,
não era minha intenção que te despedisses.
— Pois, mas quero sair… preciso de sair daqui — disse, olhando-me
fixamente.
— Porquê? Porque haverias de querer deixar um emprego que te abre mais
portas do que qualquer outro que possas encontrar? A sério que preferes ficar
sem um bom ordenado por causa de um idiota como o Simon? Tinha-te por
mais inteligente do que isso.
— Não é por ele, Nicholas, é por ti. Não quero voltar a ver-te, por isso vou­-
me embora.
— Espera, espera um segundo — pedi, apressando-me a segurar-lhe na mão
para que não continuasse a afastar-se de mim.
Observei os seus olhos cor de mel durante alguns instantes, e a minha mente
começou a contar as sardas do nariz, embora soubesse quantas eram: vinte e oito
sardas só no nariz… Não queria deixar de ver estas sardas, não queria deixar de
a ver a ela.
— Acho que não lidámos muito bem com isto, pois não?
A Noah olhou para o chão durante um segundo e depois voltou a concentrar-
se em mim.
— Só sabemos magoar-nos… e eu… — Os seus olhos humedeceram-se, e vi
que mordia o lábio com força; não queria desatar a chorar à minha frente, mas
conhecia-a tão bem, sabia que era uma questão de segundos até acabar por
perder o controlo. — Preciso de ultrapassar isto.
A sua voz foi um sussurro que só eu, que estava à frente dela, consegui escutar
com clareza.
Puxei-a instintivamente e abracei-a. Enterrei o rosto no seu pescoço e inspirei
o aroma a morango que a sua pele emanava.
— Tenho tantas saudades tuas… — confessou então contra o meu peito, e as
palavras eram como punhais que se cravavam na minha alma.
Sem dizer nada, fechei o punho entre o cabelo dela, puxei-a para trás e roubei-
lhe um beijo, um beijo de que precisava naquele momento, que tinha de lhe dar
antes de dizer o que ia dizer. Não foi um beijo profundo, não foi um beijo que
procurava algo mais do que simples carinho, amor e saudade. Os meus lábios
comprimiram os seus e selaram uma espécie de promessa.
— Não há nada que possamos fazer para mudar o que aconteceu — disse,
admirando o seu rosto e detendo-me em cada detalhe. — E gostava muito de
pensar que a raiva que carrego dentro de mim um dia vai desaparecer, espero
que desapareça, Noah, a sério que sim, mas neste momento parece-me uma
coisa impossível.
Ela ficou a escutar-me atentamente.
— Nunca me vais perdoar pelo que fiz, pois não? — perguntou com a voz
trémula.
— De todas as coisas que podias ter feito… enganar-me com outra pessoa era
a única capaz de acabar com o que havia entre nós.
Ainda agora, depois de tanto tempo, só de pensar nisto sentia uma dor
insuportável.
— Eu sei… — concordou, secando o rosto com os dedos.
Ficámos imersos num silêncio estranho, um silêncio que não era
constrangedor, mas que parecia o prelúdio de uma decisão importante. Havia
uma coisa que precisava de dizer, algo que não me saía da cabeça desde há
algum tempo e que não era capaz de esquecer.
— Noah… o que aconteceu em casa do meu pai…
Ela apressou-se a interromper-me.
— Estás arrependido, eu sei, não precisas de o dizer.
— Não, não estou arrependido, muito pelo contrário, acho que foi uma forma
bonita de terminar a nossa história, não achas? No dia seguinte quis falar
contigo, perguntar-te se estavas bem, mas desapareceste e também não atendias
as minhas chamadas… Acabei por achar que era melhor assim.
Quando levantou os olhos para me procurar, a luz que entrava pela janela
refletiu-se no seu olhar. Gostaria de ter visto nele outra coisa que não esta dor
que parecia ser tão profunda como a minha. Como podíamos sofrer tanto
estando juntos e também estando separados?
— Vou-me embora esta tarde… e não sei bem quando volto. Podes ficar
descansada que nunca mais voltarei a tocar-te, Noah.
A Noah inspirou profundamente, como se quisesse que o ar nos pulmões a
ajudasse a evitar o que se via tão claramente nos seus olhos humedecidos.
— O pior de tudo é que, apesar do que aconteceu, não quero que te vás
embora — afirmou, tentando controlar-se. A minha mão voltou a agir por
vontade própria e acariciou-lhe o rosto. Os olhos dela fecharam-se por um
segundo e depois pousaram sobre o meu pulso.
Antes de poder fazer o que quer que fosse, segurou-mo entre os dedos e virou-
o para ver a tatuagem que eu fizera há um ano e meio. Olhou para mim durante
um instante e regressámos juntos àquela noite especial… em que a Noah se
entretivera a escrever palavras de amor sobre a minha pele.
«És meu», escrevera no meu pulso, e eu corri a tatuar estas duas palavras,
como se por estarem gravadas para sempre na minha pele se tornassem uma
realidade. De repente, a Noah pousou os lábios mesmo por cima da tatuagem, e
toda a minha pele vibrou como se tivesse recebido uma descarga elétrica. O pior
de tudo é que reparei que o muro que ergui começava a desmoronar-se e senti
medo… medo de voltar a cair, de cometer o mesmo erro; medo de me sentir
exposto outra vez, de voltar a ficar sem o controlo que tanto me custara
conquistar.
«Vais arrepender-te de a teres feito, sei que vais. Vais odiar-me porque ela te
vai fazer lembrar de mim mesmo quando não queiras.»
As palavras que a Noah me dissera depois de descobrir que eu fizera a
tatuagem acorreram-me então como se tivessem sido ditas no dia anterior. Até
parecia que sabia que o que estava a dizer um dia seria verdade.
— Tenho de ir.
Ia contorná-la para partir, ia sair por aquela porta e só voltaria quando fosse
estritamente necessário, mas a Noah pareceu entrar em pânico, e as suas mãos
agarraram os meus braços com força.
— Não, não, não, não — começou a repetir, enquanto as lágrimas lhe
toldavam a visão. Os seus olhos estavam tão inchados que a cor de mel se
transformara num elixir líquido e fundido que tentava impedir o impossível
com todas as suas forças. — Por favor… por favor, vamos tentar mais uma vez,
só mais uma vez, Nicholas — suplicou, cravando-me as unhas na pele.
Cerrei os maxilares com força, não queria nada daquilo. Maldita! Porque tinha
de tornar tudo mais complicado?
— Não se trata de tentar nada, Noah, o que aconteceu acabou com a nossa
relação.
— Eu sei que podes voltar a amar-me… sei que sim; não amas a Sophia, é a
mim que amas, só a mim, lembras-te? Disseste que me amarias para sempre,
acontecesse o que acontecesse; não to pedi porque esperei que o tempo nos
curasse aos dois, mas isso não aconteceu, o que só pode significar uma coisa.
Agora, sim, faço-o, peço-te que nos dês mais uma oportunidade.
— Não me peças uma coisa que não te posso dar — interrompi, segurando-a
pelos punhos e afastando-a de mim. Apertei-lhe as mãos com força, ficaram
suspensas entre os dois e olhei fixamente para ela para que entendesse o que ia
dizer. — Não consigo amar ninguém… Esse barco para mim já zarpou,
entendes? Naquela altura abri-me para ti, sabendo que isso ia contra todos os
meus instintos; tentei, a sério que tentei, mas não fui feito para amar, não sou
uma pessoa que possa ser amada, e tu deixaste isso muito claro.
— Mas eu amo-te — declarou num sussurro, olhando-me nos olhos. Não quis
pensar no que podíamos parecer a quem estivesse de fora, os dois repletos de
más experiências, de maus relacionamentos. Não sabíamos o que era amar,
nenhum de nós, porque recebemos golpes fatais quando éramos muito novos e
acabámos por fazer o mesmo a quem tentasse aproximar-se de nós.
— Tu não me amas, Noah… Pegaste na única arma que podia derrotar­-me e
premiste o gatilho.
— Estou aqui! Continuo aqui, e tu também! Mal consegues ficar longe de
mim. Isso significa alguma coisa, tem de significar! Já se passou um ano, e não
conseguimos procurar senão um pelo outro… Queres mesmo que acabe por
ficar com outra pessoa? Pensa bem, Nicholas, porque, se te fores embora agora,
se voltares a deixar-me, quando regressares, posso já não cá estar!
— Isso é uma ameaça?
A simples menção de a Noah estar com outra pessoa deixava-me de cabeça
perdida.
— Esperei por ti, estive à tua espera desde que nos separámos. Passou-se
quase um ano e meio, e continuo à espera de que voltes para mim, e tu vais
voltando, mas nunca por completo. Não consigo aguentar mais isto, Nicholas, é
agora ou nunca porque, se te fores embora, se voltares a deixar-me, o que
tínhamos acabou para sempre.
O silêncio apoderou-se do escritório, e vi nos seus olhos a incredulidade e a
desilusão. Respirei fundo antes de abrir a boca para falar.
— Adeus, Noah — disse e senti uma dor horrível no peito.
A Noah afastou-se de mim como se as minhas palavras a tivessem queimado.
Sabia ao que estava a renunciar se saísse por aquela porta, mas não podia dar-lhe
aquilo de que ela precisava. Recuou um passo, e a tristeza deu lugar a qualquer
coisa mais, algo mais sombrio, mais difícil de decifrar.
— Adeus, Nicholas.
Foi-se embora sem olhar para trás, e eu fiz o mesmo.
PARTE TRÊS

Fazer as contas
33
NOAH

A biblioteca estava a rebentar pelas costuras, em breve acabavam os prazos para


as entregas dos trabalhos, e teriam lugar alguns exames da época de recurso.
Não fazia ideia de há quanto tempo estava ali metida, porque tinha escolhido
uma mesa longe das janelas para não me distrair nem ficar deprimida ao ver as
pessoas livres nas ruas, a aproveitar os últimos dias de inverno.
A Jenna estava ali, ao meu lado, e parecia tudo menos concentrada no livro de
Biologia que tinha à frente dos olhos.
— Já chega? — perguntou-me pela oitava vez.
Fulminei-a com o olhar, exasperada.
— Vamos, Noah, a este ritmo vou acabar por estudar isto, vou passar e tudo.
Não consegui evitar rir-me enquanto soltava um suspiro profundo.
— Um café rápido, Jenna, estou a falar a sério.
A minha amiga ofereceu-me um enorme sorriso, e reunimos as nossas coisas
para sairmos daquele isolamento autoimposto.
Ao sair, apercebi-me de que não tardaria a anoitecer e abracei-me a mim
mesma para me proteger do vento gelado que agitava as árvores. Já estava há
tantas horas na biblioteca que perdera a noção do tempo.
Os dois meses que trabalhei na LRB serviram-me para aprender imenso sobre
o mundo real, mas, agora que os exames se aproximavam, estava contente por
poder dedicar todo o meu tempo aos estudos; tinha poupado algum dinheiro e
ia conseguir aguentar-me pelo menos durante alguns meses. O Simon ofereceu-
se para me arranjar um trabalho parecido noutra empresa, e ficar-lhe-ia
eternamente grata por isso, mas por enquanto era melhor assim. Além disso, a
nossa relação… bem, estava em suspenso. Fui sincera com ele e expliquei-lhe
que ainda não tinha ultrapassado o Nick, que precisava de estar algum tempo
sozinha. Encontrávamo-nos de vez em quando, mas como amigos: ele vinha
buscar-me, íamos comer qualquer coisa ou ficávamos com um grupo de amigos
para passar um bom bocado.
Ao sairmos da biblioteca, a Jenna encostou-se a mim, entrelaçou o braço no
meu, e fomos juntas até ao café mais próximo. Pedi um café triplo e um pretzel,
e a Jenna pediu um chocolate quente. Sentámo-nos num dos bancos do parque e
tentámos apreciar do nosso momento de descanso.
— Queria convidar-te para o aniversário do Lion, vou dar uma festa na nossa
casa. Vai ser fantástica, porque ele não está à espera. Disse-lhe que só podíamos
sair para jantar porque no dia seguinte tinha um exame muito importante… O
que é mentira, já que o meu último exame é depois de amanhã, por isso,
quando ele entrar em casa vai apanhar um susto e peras.
Sorri ao imaginar a cena.
— Quando é? — perguntei, bebendo um gole de café.
— Daqui a duas semanas; estou a avisar-te com tempo, por isso tens de vir!
Fiz-me de difícil durante algum tempo. Gostava de a ver a sacar de todas as
armas de persuasão, mas depois acabei por lhe dizer que sim, que iria, e a Jenna
pareceu respirar mais tranquila. Não que fizesse gosto especial em ir à festa,
estava esgotada, mais do que nunca, nem o café conseguia manter-me de pé,
mas no fundo até me ia saber bem sair um bocadinho e distrair-me. Ficámos
algum tempo a conversar sobre coisas sem importância. A Jenna contou-me que
o Lion se irritara muitíssimo com ela há alguns dias porque a viu com um
martelo na mão, com a clara intenção de arranjar qualquer coisa lá em casa; se
fosse outra pessoa qualquer, isto podia não ser muito importante, mas a Jenna
tinha magoado um dedo há pouco tempo com o mesmíssimo martelo, por isso o
marido proibira-a de voltar a aproximar-se das suas ferramentas.
Divertia-me imenso ao ver a Jenna acatar as regras do Lion, ou melhor
dizendo, tolerá-las.
— Devias tê-lo visto: «As minhas ferramentas, as minhas regras!» E enquanto
eu revirava os olhos, ele começou a arranjar-me o banco do toucador quase sem
ser preciso pedir nada. É uma boa tática, não achas? Quando lhe peço alguma
coisa diretamente, diz que sim, que trata disso quando puder, mas depois, assim
que me vê com um martelo na mão, sai disparado para acabar o que eu fiz de
conta que estava a começar!
— Tu és má pessoa — disse, levantando-me para regressar à biblioteca, e a
Jenna fez o mesmo. Ao virar a esquina que nos levava diretamente à biblioteca,
quase embatemos em alguém. Uma pessoa que jurara nunca mais voltar a ver: o
Michael.
— O que diabo fazes aqui? — gritou-lhe a Jenna, fulminando-o com o olhar.
O Michael ficou a olhar fixamente para mim. Os seus olhos percorreram todo
o meu corpo e pararam nos meus olhos durante alguns segundos, antes de
voltarem a fixar-se na minha amiga.
— Voltei — respondeu ele e a seguir fitou-me mais uma vez.
O meu envolvimento com o Michael não foi fácil de esquecer. Não só
arruinou a minha relação com o Nick como também traiu a minha confiança,
aproveitando-se de mim num momento de absoluta vulnerabilidade.
— Disseste que não voltarias aqui — recriminei, agarrando-me à Jenna com
nervosismo. — Foi esse o combinado.
O Michael encolheu os ombros com indiferença.
— As pessoas mudam de opinião.
Fiquei calada sem acreditar no que estava a ouvir. Voltar a vê-lo provocou­-me
uma sensação desagradável; recordei coisas que tinha enterrado no fundo da
minha alma e que jurava não reviver.
O Michael achou que, depois da minha separação do Nick, eu e ele podíamos
começar um relacionamento. Andou uns dias obcecado com a ideia de que eu
tinha de estar com ele, de que devia dar-lhe uma oportunidade. O favor que me
fez ao retirar as acusações contra o Nick foi apenas para depois me poder
chantagear com isso. Depois de sair do hospital, veio ver-me todos os dias desde
que o Nicholas partira para Nova Iorque e, quando lhe disse que não ia haver
nada entre nós, chamou-me de tudo um pouco, acusou-me de ter brincado com
ele, inventou coisas que eu nunca tinha dito e tentou até forçar-me. Nesse dia,
ameacei-o com uma ordem de restrição.
O irmão dele, o Charlie, veio visitar-me e confessou-me que o Michael já
tinha tido este tipo de problemas antes e que por pouco uma miúda não acabara
com a sua carreira. Nesse dia, fiquei a saber que o Charlie e o Michael tinham
sofrido muito desde a morte da mãe de ambos. Afetou-os de tal forma que o
Michael se transformou numa pessoa instável e o Charlie se virou para a
bebida… Não tinha sido fácil para eles ultrapassarem essa fase, muito menos
quando ficaram órfãos, já que o pai os abandonara quando eram pequenos. O
Michael ocupou-se do Charlie, mas sofria de transtorno de personalidade e caíra
numa depressão. Até que o Charlie conseguiu finalmente que o irmão aceitasse
uma proposta de trabalho no Arizona, jurando­-me que ele não ia voltar a
incomodar-me.
A Jenna tirou o telemóvel da mala.
— Vou ligar à polícia — ameaçou-o, mais furiosa do que alguma vez a vira na
vida.
Eu continuava com os olhos postos no Michael, o motivo pelo qual a minha
relação se desmoronara e a minha vida se transformara numa porcaria. Depois
de descobrir tudo o que me ocultara, percebi que se aproveitara de mim…
Embora eu o tivesse permitido, tirara partido da minha situação e usara as
minhas confissões nas sessões de terapia para me levar até onde queria.
— E vais dizer-lhes o quê? — perguntou o Michael, despreocupado. — Não
fiz nada de mal, voltei depois de um ano para visitar o meu irmão e procurar
emprego. É isso que vais dizer à polícia?
A Jenna deu um passo em frente.
— Vou dizer-lhes que encurralaste a minha amiga, que a perseguiste durante
semanas, imbecil!
Ele mal olhava para a Jenna; os seus olhos estava pousados em mim com uma
expressão arrepiante.
— Isso podia resultar se a Noah me tivesse denunciado depois do que se
passou… Mas como não o fez, não têm prova nenhuma contra mim.
Na altura, achei que estava a fazer o mais correto não apresentando queixa
contra ele, mas agora, ao vê-lo assim, à minha frente, a observar-me com esta
atitude de superioridade e rancor escondido… já não tinha tanta certeza.
— Vamos embora, Jenna — disse à minha amiga, desejando desaparecer dali
o mais depressa possível.
— Mantém-te bem longe da Noah, estás a ouvir? — Avisou-o a Jenna, sem
fazer caso do que lhe disse.
O Michael sorriu como um idiota, olhou para nós com condescendência e
voltou a dirigir-se a mim.
— Estás linda.
— Vai-te lixar! — respondi, sentindo a raiva aumentar dentro de mim.
Não fiquei à espera da sua resposta. Peguei na Jenna para me assegurar de que
não se atirava a ele. Para ela era igual que ele fosse bastante mais alto e que
tivesse o dobro da largura dela. Desaparecemos pela porta do edifício principal.
Assim que entrei, e sabendo que ele já não nos podia ver, desabei; sentei-me no
primeiro banco que encontrei e comecei a hiperventilar.
A Jenna sentou-se ao meu lado e começou a barafustar enquanto procurava
que me acalmasse.
Porque tinha ele regressado? Porquê?
Tinha-me convencido de que o Michael era apenas um rapaz com problemas
como tantos outros, que seria incapaz de me fazer mal. Quando se foi embora,
sabia que não o tinha feito por mim, porque para ele tanto lhe dava se eu tinha
medo ou não, mas agora, depois de voltar a vê-lo, algo em mim apontava para a
direção oposta, algo que dizia que o regresso dele não me traria nada de bom;
além disso, sentia que devia fazer alguma coisa, contar a alguém.
— Vou ligar ao Lion.
— Nem penses! — disse, recuperando milagrosamente e arrancando-lhe o
telemóvel das mãos.
— É preciso fazer alguma coisa! — protestou a Jenna, completamente fora de
si.
— Não, não vamos fazer nada. Ele disse que veio visitar o Charlie, com sorte
depois voltar a ir embora. Já passou muito tempo, não me parece que esteja
aqui por minha causa, Jenna.
Ela abriu os olhos com incredulidade e devolveu-me o olhar como se eu
tivesse enlouquecido.
— Ouviste como ele falou contigo?
Assenti, levantando-me; de repente, tinha uma vontade imensa de vomitar:
remexer em recordações antigas não era nada bom, ainda menos agora, raios.
— Não quero problemas, Jenna. Não quero remexer no que aconteceu, e a
última coisa que quero é que o Lion saiba disto e que vá contar a quem tu
sabes… Não vamos fazer nada. E não quero falar mais disto.
A minha amiga ia dizer qualquer coisa, mas adiantei-me e não a deixei falar:
— Eu tenho cuidado, está bem? Se vir alguma coisa que não me agrade ou se
ele voltar a aproximar-se de mim, vamos as duas à polícia e podes contar a
quem quiseres; mas, agora, vamos continuar a estudar.
A Jenna estava aborrecida com a minha atitude e, antes de entrarmos na
biblioteca, disse-me:
— Da última vez obrigaste-me a esconder de toda a gente o que aconteceu,
mas ao menor sinal, ao menor indício de que este filho da mãe se aproximou de
ti mais uma vez, vou ligar diretamente ao Nicholas. Ouviste-me bem?
Engoli as minhas opiniões em relação a esta ameaça e limitei-me a deixar
passar.

Nos dias a seguir ao encontro súbito com o Michael, os nervos e a ansiedade


dominaram-me por completo. Tentei manter estes sentimentos ao longe,
principalmente porque estava ocupada a encaixotar as minhas coisas para me
mudar para o meu novo apartamento. Tinha feito o último exame no dia
anterior, por isso tinha finalmente tempo para me ocupar da mudança.
O apartamento novo era um sótão fora do campus. Era um espaço amplo, onde
se distribuía uma pequena cozinha, uma zona de estar e uma zona de dormir.
Também tinha uma casa de banho pequena com banheira. Não era nada do
outro mundo, mas era a única coisa que podia pagar.
O problema era que tinha havido um problema com o fornecimento de água
no apartamento novo, e só podia mudar-me dali a uma semana. Já tinha avisado
a senhoria de que me ia embora, por isso pedi à Jenna se podia ficar na casa
deles durante alguns dias, até poder mudar-me de vez. A minha amiga deu-me
abrigo de imediato, e, dali a poucas horas, aparecia para me ajudar a levar as
caixas todas para o apartamento novo. O que não sabia era que viria
acompanhada pelo Lion.
Quando abri a porta, fiquei surpreendida por o encontrar ali. Havia muito
tempo que não nos cruzávamos, e fiquei contente de o ver.
— Tudo bem, Noah? — cumprimentou, envolvendo-me no seu braço
gigantesco.
— Obrigada por nos ajudares, Lion, não precisavas de o fazer.
— Oh, precisava, sim — disse a Jenna, mostrando-me as suas unhas de gel
novas, pintadas com um excêntrico tom de vermelho.
Revirei os olhos e comecei a pegar nas caixas que conseguia levantar com
facilidade para as levar para a carrinha do Lion. Ele encarregava-se das mais
pesadas, enquanto eu e a Jenna levávamos as mais frágeis para o carro. O
problema é que havia mais coisas frágeis do que pesadas, por isso tínhamos de
trabalhar no duro.
A certa altura, quando me agachei para pegar numa das caixas cheias de
livros, senti uma dor lancinante que me percorreu as costas. Fiquei petrificada.
— Estás bem? — perguntou o Lion, acorrendo ao sítio onde fiquei dobrada
sobre mim mesma.
A Jenna observou-nos intrigada até que viu a minha cara, que devia estar
pálida.
— Noah!
Respirei fundo para ver se a dor acalmava e sentei-me no chão como pude.
— Acho que acabei de dar cabo das costas, mas tudo bem — anunciei com a
voz trémula.
— Para que foste pegar nessas caixas? Isso é o trabalho do Lion, tonta.
Ignorei o ralhete que começou a dar-me enquanto a dor recuava com uma
lentidão exasperante.
O Lion agachou-se ao meu lado e olhou-me nos olhos. Os seus eram
incrivelmente verdes, e fiquei presa no contraste do verde-claro com o tom
escuro da sua pele. Era normal que a Jenna tivesse dedicado metade dos seus
votos de casamento aos olhos dele: eram hipnotizantes.
— Consegues levantar-te? — perguntou-me, e a ideia pareceu-me muito
difícil de executar.
— Humm… — hesitei alguns segundos. — Não estou muito segura.
A Jenna abanou a cabeça enquanto o Lion me punha a mão nas costas. Tentei
levantar-me sozinha, mas a dor expandira-se até ao estômago, e encolhi-me,
aflita, quando senti como se me estivessem a cravar facas afiadas na barriga.
— Estás com um ataque de lumbago, amiga — disse a Jenna enquanto o Lion
se inclinava para pegar em mim ao colo.
— Vou levar-te para o carro, e em casa podes deitar-te a descansar. Vai passar,
vais ver. Só deves ter dado mau jeito, mais nada.
Assenti porque mal conseguia emitir um som que fosse.
Aquela dor… bolas, era mesmo horrível.
O Lion deixou-me no banco da frente e acabou de carregar as caixas na parte
de trás da carrinha. Quando pudemos ir finalmente embora, só rezei por chegar
a casa deles e deitar-me numa superfície macia e quente.
— Se quiseres, posso chamar a minha massagista, é excelente. Saberá o que
fazer contigo — propôs-me a Jenna do banco de trás, enquanto levava M&M’s
aos lábios pintados de vermelho.
Nem lhe consegui responder, só queria poder deitar-me. Como antes, ao
chegarmos ao apartamento deles, mal consegui mexer-me. O Lion, preocupado,
voltou a levar-me ao colo até ao pequeno quarto de hóspedes que amavelmente
tinham preparado para mim. Quando me pousou sobre a cama, a dor
trespassou-me e obrigou-me a fechar os olhos com força.
— Noah… de certeza que estás bem?
A Jenna apareceu então com um copo de água e um relaxante muscular. Meti
o comprimido na boca enquanto o diabo esfrega um olho.
— Sim, não há problema, isto já me passa — respondi, um pouco zonza com
a dor.
O Lion não pareceu ficar muito convencido, mas dali a menos de três horas
tinha de estar no aeroporto. Tinha uma reunião em Filadélfia e só regressava
passados quatro dias.
— Eu cuido dela — afirmou a Jenna, recostando-se ao meu lado na cama. O
Lion inclinou-se para lhe dar um beijo terno nos lábios.
— Sendo assim, vou andando. Se precisarem de ajuda com a mudança, já vos
disse que o Luca está disposto a dar-vos uma mãozinha. Adeus, Noah, põe-te
boa — despediu-se despenteando-me o cabelo.
Quando finalmente se foi embora, deixei-me cair sobre as almofadas e comecei
a contar devagar mentalmente.
— De certeza que não queres que te leve ao hospital? — perguntou-me a
Jenna pela oitava vez.
Antes tinha dito que não porque me parecia uma idiotice ir para o hospital só
por causa de um mau jeito nas costas, mas, como a dor parecia estar a aumentar
em vez de diminuir e me sentia à beira de desmaiar, a ideia já não me parecia
assim tão descabida.
— Vamos esperar que o comprimido faça efeito — disse-lhe, ainda hesitante,
porque só de pensar em levantar-me e dirigir-me para a porta fazia com que
visse estrelas.
Duas horas depois percebi que alguma coisa não estava mesmo bem.
— Noah, estou a ficar assustada contigo… — comentou a Jenna ao ver como
me contorcia com dores.
— Leva-me ao hospital — pedi-lhe com a voz trémula.
Andar até ao carro já foi uma agonia, mas o trajeto até às Urgências do
hospital mais próximo foi uma tortura. Ao chegar, caminhei como pude até à
sala de espera enquanto a Jenna preenchia os formulários que nos deram na
receção.
Então, enquanto estávamos à espera e eu ficava cada vez mais nervosa, tive
uma sensação estranha no meio das pernas. Quando olhei para baixo, vi que
uma mancha vermelha se expandia pelas calças do meu pijama. A Jenna emitiu
uma exclamação abafada e, a seguir, dei por mim sentada numa cadeira de rodas
e a ser levada imediatamente para a sala de observações. A Jenna teve de ficar na
rua.
— Querida? Ouviste-me? — perguntava uma das enfermeiras que me estava
a ajudar a tirar a roupa e a vestir uma daquelas batas de hospital. — O médico
vem aqui a seguir, mas preciso que me respondas a algumas perguntas…
Olhei fixamente para a enfermeira, tinha o cabelo ruivo e era forte; parecia um
dos gémeos gordinhos de Alice no País das Maravilhas, só que era mulher e não
parava de falar comigo.
— De quantas semanas estás? — perguntou-me então.
— Não… isto só aconteceu hoje…
A enfermeira olhou para mim com o sobrolho franzido e então fez-me a
pergunta, a ditosa pergunta que me puxou para a realidade como se tivesse
saltado de um prédio de dez andares para me estatelar de cabeça no chão.
— Está a falar de quê?… — perguntei com a voz trémula.
Ela observou-me primeiro com uma expressão de surpresa e a seguir de pena.
— Oh, querida… o mais certo é que estejas a sofrer um aborto.
Mas o que diabo dizia esta mulher! Por amor de Deus! Mas, então, tudo
pareceu ficar em suspenso, e a palavra «aborto» abateu-se sobre mim como se
fosse um martelo gigantesco.
«Aborto», «aborto», «aborto»… Não importava quantas vezes a dissesse
mentalmente, era impossível, impossível, porque, para poder sofrer um aborto,
tinha de estar grávida, e eu não estava.
— O médico vem já a seguir… Acalma-te, de certeza que vai correr tudo
bem.
O que é que vai correr bem? Que coisa que contivesse a palavra «aborto»
podia correr bem?
A minha cabeça começou a dar voltas e mais voltas, a contar pelos dedos, a
memorizar datas e números, e cheguei à mesma conclusão de antes: era
impossível. Impossível. Aquilo tranquilizou-me um pouco porque era óbvio
que aquela enfermeira não sabia de nada. Não lhe expliquei que senti dor ao
pegar na caixa, que o mais provável era que tivesse deslocado alguma coisa ao
levantar tanto peso e que isso dera lugar a sintomas parecidos com os de um…
Porque era impossível, não era? Já se tinha passado demasiado tempo desde a
última vez que…
A porta abriu-se interrompendo os meus pensamentos atormentados, e um
médico de meia-idade cumprimentou-me com formalismo.
— Como está, menina Morgan? — perguntou, aproximando-se de onde eu
estava.
Não lhe respondi, e ele fez-me sinal para me deitar.
— Vou fazer-lhe uma ecografia, está bem? — informou-me, depois de me
levantar a camisa de dormir e de palpar o meu ventre de forma meticulosa.
— Não estou grávida — declarei e a seguir comecei a repeti-lo mentalmente,
como um mantra.
«Não estou grávida, não estou grávida, não estou grávida…»
— Bem, daqui a uns segundos já teremos a confirmação — disse ele,
sentando-se ao meu lado e aproximando uma mesinha com o ecógrafo. — Este
gel está um pouco frio, mas é normal.
Quando espalhou o gel no meu ventre, senti um calafrio. Com a respiração
entrecortada, voltei a cabeça para ver o que ela fazia. Percorreu a minha barriga
com uma sonda manual e a seguir carregou num botão e virou o ecrã para que
também pudesse ver o que ele estava a ver.
— Acho que isto prova que estava enganada, não lhe parece?
No ecrã, via-se a imagem de um bebé a preto­-e­-branco, com pontinhos
intermitentes a toda a volta… e não era um bebé minúsculo, não, este bebé
tinha cabeça, pés e mãos e ocupava grande parte do ecrã do ecógrafo.
— Oh, meu Deus! — exclamei, enquanto levava a mão à boca, com medo,
com terror puro e duro.
— Está aproximadamente de dezasseis semanas — informou-me o médico,
depois de largar a bomba e, como se nada fosse, virou o aparelho de novo e
começou a deslizar a sonda sobre a minha barriga enquanto carregava em vários
botões diferentes. Vi que estava a franzir o sobrolho com preocupação. Depois
de uns segundos que me pareceram uma eternidade, um ruído constante e forte
ecoou por toda a sala. O homem suspirou, aliviado, e voltou-se para mim. —
Tem pulsação, menina Morgan.
De repente, a palavra «aborto» passou a ter um significado completamente
diferente, e senti que voltava a cair, mas desta feita num buraco negro e
profundo.
— Estou a perder o bebé? — perguntei com a voz trémula. O médico voltou
a virar o ecrã para mim e apontou para uma mancha negra que rodeava o bebé;
assim que a vi, percebi que aquilo não devia estar ali.
— Isto é um hematoma intrauterino, é bastante grande, está numa posição
perigosa, e, tendo em conta que acabou de descobrir que está grávida, presumo
que achou que o seu período menstrual continuava a vir com regularidade ou
estou enganado?
Olhei para o médico, tentando entender o que me dizia.
— Não costumo ser muito regular, mas, sim… nos últimos meses tive
período, embora não me durasse tanto como devia, mas pensei…
— Toma a pílula? — perguntou-me então.
— Sim, tomo precisamente para regular o período.
— E costuma falhar alguma toma?
«Raios!»
— Às vezes, sim, mas costumo tomá-la com a do dia seguinte…
— Isso terá seguramente interrompido o efeito contracetivo, mas não é o mais
importante, o que importa agora é que ao longo dos últimos meses teve
repetidos ameaços de aborto.
Os meus olhos voltaram a concentrar-se no ecrã do ecógrafo. Mãe do Céu,
aquilo era um bebé… um bebé que nem sabia que crescia dentro de mim… não
tinha tido cuidados com nada… Meu Deus! Tinha bebido álcool e tudo…
— Doutor, eu não sabia, não fazia ideia… Nem sequer se nota!
Ele olhou para mim, mantendo a calma.
— Agora precisa de se acalmar, está bem? Vamos fazer todos os exames
necessários para nos assegurarmos de que o bebé e a menina estão bem. Ficaria
surpreendia com a quantidade de casos como o seu. As mudanças começam a
fazer-se notar no terceiro ou quarto mês, já que até às doze semanas o útero
ainda se encontra alojado na pélvis e só quando cresce e sai para fora dessa área
se começa a evidenciar a gravidez. Como está com uma hemorragia, vamos
interná-la até que tudo volte à normalidade, não quero que fique demasiado
stressada. Sei que acabou de descobrir que está grávida, mas é fundamental que
neste momento permaneça em repouso absoluto. Quando a hemorragia parar,
farei um exame pélvico para medir o colo do útero; se tudo estiver bem,
descartaremos a hipótese de um parto prematuro.
«Parto prematuro…»
Meu Deus, senti-me como se de repente me tivessem metido numa bolha
onde as palavras «bebé», «parto prematuro», «hematoma intrauterino» e
«aborto» eram absolutamente desprovidas de significado.
Nem sequer tinha interiorizado o que acabara de me dizer, ainda tentava
assimilar a imagem que via naquele ecrã, e ele bombardeava-me com palavras
que não entendia e que nunca tinha ouvido até agora.
— A enfermeira vem aqui para lhe fazer algumas perguntas. Vamos colher
sangue para descartar qualquer complicação adicional, embora neste momento o
mais importante seja que o hematoma desapareça. O mais certo é ter os níveis
de progesterona baixos; se for o caso, vamos administrar-lhe o necessário para
manter o bebé aí dentro. Parece-lhe bem? — informou-me, num tom que devia
ter a intenção de me tranquilizar.
Senti pânico, um ataque de pânico imenso, queria sair dali a correr,
desaparecer do hospital e regressar ao que a minha vida era apenas uma hora
antes.
— Doutor… eu só tenho dezanove anos, não estou pronta para ser mãe.
Ele assentiu e aproximou-se com amabilidade.
— Compreendo que não estava nos seus planos… — respondeu-me com tato.
— Mas esse bebé existe, e também existe o risco de acabar por o perder. É
jovem e tem pela frente alguns meses complicados, vai precisar de apoio
daqueles que a rodeiam. Sabe quem é o pai?
«O pai.»
O pai deste bebé era Nicholas Leister… estava no outro lado do país, com
outra mulher, depois de ter deixado bem claro que não queria voltar a fazer
parte da minha vida.
— Sim… sei quem é o pai… mas não lhe posso dizer nada.
Naquele momento, a enfermeira entrou, e o médico voltou-se para ela para
lhe dizer tudo o que precisavam de me fazer. Antes de se ir embora, sorriu-me
para me dar coragem. Depois de ele sair, a enfermeira aproximou-se de mim e
deu-me umas palmadinhas na mão.
— Tens de te aclamar, querida — disse enquanto outra enfermeira entrava no
quarto e começavam a trabalhar as duas sobre o meu corpo. — Vamos pôr-te
um cateter para administramos as vitaminas e um calmante, para que possas
descansar. Quando acordares, de certeza que as notícias serão melhores.
— Não, não, não quero calmante nenhum! A senhora não entende! Isto não
devia ter acontecido, não estou preparada para ser mãe, nem devia poder ser
mãe, não sei se percebe isso. Disseram-me que era muito improvável que
alguma vez conseguisse engravidar, que era quase impossível, e agora…
— Estás grávida de quatro meses, querida. Segundo o teu historial e a forma
como esta gravidez está a decorrer, isto é um verdadeiro milagre.
«Um verdadeiro milagre.»
Fechei os olhos tentando acalmar-me, tentando assimilar tudo aquilo. Quatro
meses… Maldito Nicholas Leister!
34
NOAH

Não sei em que altura adormeci, mas, quando abri os olhos, vi que a Jenna
estava sentada numa poltrona ao lado da minha cama, a observar-me com o
rosto pálido e pleno de preocupação. Ao ver que eu abria os olhos, levantou-se e
aproximou-se de mim, que estava deitada, vestida com a bata do hospital e com
um cateter na mão direita.
— Noah, como te sentes? — perguntou com medo na voz.
Ao vê-la ali e recordar tudo, senti-me como se ambas estivéssemos em
dimensões distintas, como se de repente a minha vida não fosse minha e o que
acabara de descobrir me tivesse fechado todas as portas que um dia estiveram
abertas; era como se só restasse uma destas portas abertas e me obrigassem a
passar por ela.
— Acho que bem — respondi.
Um bebé… para começar, a ideia de ter um bebé sempre fora uma coisa
hipotética. Sempre que me imaginara com um filho, pensava que talvez fosse
adotado. Tinham-me dito que as lesões que sofrera em criança podiam causar-
me problemas. Que, quando quisesse engravidar, teria de recorrer a uma clínica
de fertilidade e ali me diriam o que precisava de fazer. Nunca achei que fosse
possível engravidar de forma natural… Por amor de Deus, se até estava a tomar
contracetivos orais! Nada, absolutamente nada apontava para que isto pudesse
acontecer.
Endireitei-me na cama e destapei-me. Levantei a camisa de dormir do
hospital com uma cautela excessiva e olhei para o meu ventre.
— Então é verdade… não posso acreditar. — Não fui eu quem o disse, foi a
Jenna.
Desviei o olhar para ela e vi que empalidecia ao meu lado.
— Que vou fazer? — perguntei, pousando as mãos e tateando, para ver se
sentia alguma coisa que me indicasse que tinha dentro de mim um bebé de
quatro meses.
A Jenna abanou a cabeça e sentou-se ao meu lado.
— Noah, quem é o pai?
Olhei para ela outra vez. Achei que era óbvio, mas, pensando melhor,
ninguém sabia do que tinha acontecido no Dia de Ação de Graças; bem,
ninguém a não ser eu e o Nick.
— O Nicholas — respondi num sussurro. Só por dizer o seu nome, senti uma
pontada dolorosa no peito.
A Jenna arregalou os olhos com surpresa, e depois um sorriso enorme
apareceu no seu rosto.
— O Nicholas? O nosso Nicholas? Mas quando? Como?
Por que raio estava tão contente?
— Aconteceu no Dia de Ação de Graças, depois de o Nick saber que a mãe
estava doente. Ele estava tão triste, disse-me coisas que…
— Oh, meu Deus, Noah, isto é fabuloso! Espera, disseste no Dia de Ação de
Graças?
Os seus olhos regressaram ao meu ventre e depois a mim. Segundos depois,
pareceu ausentar-se, creio que para fazer contas.
— Quatro meses, Jenna — disse sem uma centelha de felicidade na voz. —
Os médicos não te disseram?
— Estás a brincar? Até há cinco segundos nem sequer sabia se as minhas
suspeitas estavam corretas, só o confirmei quando levantaste a camisa de dormir
e ficaste a olhar para a barriga como se estivesses a olhar para um extraterrestre.
— Então só soubeste agora?
A Jenna assentiu.
— Não sou tua familiar, não quiseram dizer-me nada; pior do que isso, tive
de andar à bulha com as enfermeiras para me deixarem entrar no teu quarto.
Suspirei profundamente, nunca na minha vida me sentira tão perdida.
A Jenna pegou-me na mão e pousou-a sobre o meu ventre que mal se notava.
Quem não soubesse não diria que eu estava grávida.
— Estava assustada, Noah, porque pensei que o bebé fosse de um tipo
qualquer que tivesses conhecido numa discoteca, agora… se é do Nick! Tu e o
Nick! Isso é maravilhoso.
Soltei-me da mão dela e fulminei-a com o olhar.
— O que é maravilhoso, Jenna? — respondi e percebi que estava a ficar
alterada porque as máquinas a que estava ligada começaram a apitar com
insistência. — Estar grávida aos dezanove anos de um homem que não me quer
e que namora com outra? O que tem isso de maravilhoso?
— Acalma-te, Noah, só estava a dizer…
— Não! — gritei-lhe. — Não digas nada, não fiques feliz, porque isto não é
uma boa notícia, é uma notícia de merda. Eu não quero um bebé, não quero
criar um filho sozinha e muito menos um filho do Nicholas. — Senti que as
lágrimas começavam a cair-me pelo rosto e limpei-as com impaciência. — Nem
sequer sabia que estava grávida! Que tipo de mãe não sabe que tem um bebé
dentro de si? Que tipo de mãe vou ser quando não tenho nada para oferecer?
A Jenna parecia tão perdida como eu e sem saber o que dizer; aparentava ter
medo de abrir a boca.
— Noah, quando o Nick souber…
— É que nem te passe pela cabeça! — interrompi-a num acesso de pânico. —
Que não te passe pela cabeça contares isto, Jenna, nem a ele nem a ninguém!
Ela olhou para mim com os olhos arregalados, surpreendida e completamente
em desacordo comigo.
— Noah, tens de lhe contar — afirmou, ignorando as minhas palavras
anteriores.
Raios, queria levantar-me daquela cama e ir-me embora, queria estar sozinha
e pensar, mas, de cada vez que imaginava algum tipo de fuga, a imagem da
ecografia aparecia novamente na minha cabeça.
Antes de poder negar novamente, a porta abriu-se, e o médico entrou no
quarto.
— Trago melhores notícias, menina Morgan — anunciou ele, de pasta na
mão. Ficou a olhar para o que estava à sua frente, tirou os óculos e voltou a
concentrar-se em mim. — Não tem nenhum tipo de doença associada à
gravidez, os batimentos do bebé são fortes e normais — prosseguiu, enquanto
eu começava a sentir uma sensação quente no estômago. — Já entrou no
segundo trimestre, e, embora seja nesta altura que os médicos recomendam que
se conte à família, a sua gravidez é de risco; no entanto, isso não quer dizer que
as coisas vão correr mal. Dentro de duas ou três semanas, já poderá saber o sexo
do bebé, e, se notar algum movimento no ventre, é porque ele já se consegue
mexer.
A Jenna olhava para o médico como se ele lhe estivesse a dizer que tinha a
Hello Kitty na barriga, mas eu também senti a mesma vertigem… era algo que
me deixava simplesmente sem palavras.
Ao ver que não abríamos a boca, o médico aproximou-se de uma mesa e
continuou a falar como se o que estava a dizer não fosse nada de especial, como
se não estivéssemos as duas a passar-nos da cabeça mesmo à sua frente.
— A hemorragia com que deu entrada à meia-noite já cessou, o que é bom,
mas nas próximas semanas teremos de fazer medições ao colo do útero. Vou
receitar-lhe progesterona, porque as análises revelaram níveis baixos. É muito
importante que cumpra todas as indicações que constam da folha que lhe vão
entregar.
Assenti, um pouco aturdida com tanta informação.
— Repouso absoluto, menina Morgan, e por «absoluto» quero dizer que
quero que só se levante para ir à casa de banho, estamos entendidos?
Voltei a assentir, pensando como raio ia explicar na faculdade que não podia
levantar-me da cama sem revelar que estava a gerar uma criatura viva no meu
útero.
— Vemo-nos dentro e duas semanas. Caso volte a ter nova hemorragia, deve
regressar imediatamente ao hospital; se o sangue for acastanhado, é bom sinal:
significa que o hematoma está a cicatrizar, percebeu?
Assenti pela terceira vez, embora no fundo soubesse que devia perguntar-lhe
mil coisas.
— Já falou com o pai? — perguntou-me.
A Jenna comprimiu os lábios com força enquanto eu dizia que não.
Por que raio estava o médico a perguntar-me aquilo? Não era da sua conta!
— Seria bom se pudesse contar com o seu apoio, pelo menos durante estas
semanas em que mal poderá mexer-se.
Ia dizer qualquer coisa, mas a minha amiga antecipou-se:
— Eu e o meu marido cuidamos dela, doutor, não se preocupe.
Naquele instante, senti uma gratidão imensa para com a Jenna e lamentei ter-
lhe falado tão mal poucos minutos antes. Se queria manter aquilo em segredo, a
Jenna ia ser a única que me poderia ajudar.
Porque esta gravidez ia ser um segredo meu… e de mais ninguém.

Ao chegar a casa, não tive outro remédio senão caminhar até ao quarto de
hóspedes. Dei cada um dos passos com medo, não fosse prejudicar o feto;
cheguei finalmente à cama, meti-me entre os lençóis e pude respirar de alívio.
O Lion só chegaria a casa dali a três dias, por isso, até lá eu e a Jenna íamos ter
de nos arranjar sozinhas. A minha amiga parecia estar a morder a língua de cada
vez que vinha ver-me ou perguntar se precisava de alguma coisa.
Nos primeiros dias mal falámos do assunto; eu não voltei a mencionar o
motivo que me mantinha prostrada na cama, e a Jenna respeitou o meu silêncio,
embora soubesse que lhe estava a custar horrores não falar disso.
Apesar de naqueles dias estar em negação profunda, estava também a fazer
tudo o que o médico me recomendara: tomava os medicamentos e procurava
não stressar; dormia muito e bebia muitos líquidos. Os momentos em que a
Jenna me deixava sozinha eram os únicos em que permitia que a minha mente
tentasse encontrar uma solução. Mentiria se dissesse que não pensei em abortar,
que não pensei que fosse a solução mais fácil, aquela que me deixaria prosseguir
com a vida como até agora, que me pouparia a ter de voltar a ver o Nick e
confessar-lhe o que tínhamos feito, mas só de o imaginar, só de pensar em fazer
mal ao meu filho…
Fui incapaz de escolher esse caminho. Todos os meus ideais se desmoronaram,
tudo o que achava que sabia, em que acreditava ou que apoiava deixou de fazer
sentido no mesmíssimo instante em que vi a imagem do feto naquele ecrã. O
facto de ainda não lhe chamar «meu bebé» era apenas um detalhe, mas lá
chegaríamos.
Inicialmente, dediquei-me a recuar no tempo, ao momento da conceção, ao
instante em que cometi o pior erro da minha vida. Culpava o Nick pela minha
tristeza, pelo meu rancor e raiva… e agora também o podia culpar por isto. Ele
não me perdoara pelo que tinha feito, mas agora haveria de recordar até ao fim
da sua maldita vida o momento em que decidira não usar preservativo. Isto se
acabasse por lhe contar, algo que naquele momento não planeava fazer.
Depois desta fase seguiu-se a fase de «todas a coisas que já não posso fazer a
partir de agora». Por exemplo, o que ia fazer em relação à faculdade? Como ia
contar isto à minha mãe? A mesma que engravidou de mim quando tinha
dezoito anos e me dera sermões intermináveis sobre contracetivos; a mesma mãe
que achava que engravidar tão nova tinha sido o maior erro da sua vida, um erro
fruto da irresponsabilidade e insensatez… É verdade, ela insistia sempre que me
amava loucamente, mas que uma coisa não tinha nada que ver com a outra. Ela
até me «proibira» de engravidar antes dos vinte e cinco anos.
«Estuda, Noah, sê a melhor naquilo que escolheres fazer, procura emprego e
sê independente; depois, se te apetecer, pensa em ter filhos, e, se o fizeres depois
de teres uma conta bancária na Suíça, melhor.»
Claro que não tinha uma conta bancária na Suíça… Nem pouco mais ou
menos: o meu capital reduzia-se, com sorte, a dois mil e quinhentos dólares.
A seguir, pensei onde ia viver. O sótão que acabara de arrendar durante um
ano não era o espaço ideal para criar um filho. Deus do Céu, criar um filho! Eu
ia criar um ser vivo! Se queria ter dinheiro para as coisas do bebé, ia ter de
trabalhar como uma louca. Em certa ocasião, estava na Internet e vi que um
carrinho de bebé custava praticamente todo o dinheiro que tinha… Mal me
chegava para comprar um carrinho… Oh, que tristeza! Ia ter de recorrer à
minha mãe, e logo eu que detestava pedir dinheiro.
Ao quarto dia, a Jenna entrou no meu quarto depois de o Lion engolir a nossa
versão de dores de costas e olhou para mim como quem estivera a pensar
demasiado no assunto sem chegar a uma conclusão.
— Tens de lhe contar — disse-me sem preâmbulos.
Se pudesse levantar-me, teria ido para outra divisão, mas, como não podia,
limitei-me a ignorá-la e continuei a ler o livro que tinha nas mãos.
— Noah, vamos falar disto ou vamos continuar a ignorar que tens uma
criança no ventre?
Pousei o livro ao meu lado e olhei fixamente para ela.
— Não há nada para falar. Eu cá me arranjo.
A Jenna soltou uma gargalhada amargurada.
— Ah, sim? E como? — perguntou, apontando para mim com a mão. — Se
nem sequer podes ir à casa de banho sozinha.
Olhei para ela a soltar fogo pelos olhos.
— Isso é só durante alguns dias… Daqui a uma semana vou ao médico, e ele
vai dizer-me que está tudo bem; então, esta loucura toda terá terminado, e
poderei retomar a minha vida.
Este meu plano tinha vários pontos fracos, mas não ia pensar neles agora.
— Tu estás a ouvir o que dizes? — perguntou a Jenna, levantando o tom de
voz. — Isto só vai piorar, bem, não exatamente piorar, mas, Noah, a barriga vai
começar a notar-se! Se olharmos bem, já se nota.
Ambas baixámos os olhos para a minha barriga… que quase não sobressaía.
— Li que há mães que conseguem esconder a gravidez quase até ao oitavo
mês… vou ter de comprar roupas largas e folgadas, mas é ­possível…
A Jenna abanava a cabeça e olhava para o teto, como se procurasse ali em cima
palavras divinas que me fizessem ver a razão.
— Não consigo entender. Estamos a falar do teu filho! Por que razão não
queres contar ao Nick, porquê?
Senti um calor dentro de mim que não augurava nada de bom. Eu era como
uma bomba­-relógio ambulante, em todos os sentidos da palavra, e não queria
descarregar na Jenna. Porém, não consegui evitar que as palavras me saíssem em
catadupa.
— Porque lhe implorei que voltasse comigo e ele disse que não! — gritei-lhe,
enquanto tentava conter as lágrimas. — Disse-me que não era capaz de me
perdoar, que o que eu tinha feito acabara definitivamente com a nossa relação;
fiz-lhe um ultimato, e ele não quis saber. Foi-se embora!
A Jenna abriu os olhos com surpresa, que, poucos segundos depois, deu lugar
à indignação.
— Disse-lhe que o amava, Jenn, e ele nem quis saber; pedi-lhe que ficasse
comigo e ele não o fez — continuei, com a voz entrecortada pelas lágrimas. —
E agora queres que lhe ligue para contar que estou à espera de um filho seu?
Para quê? Para o amarrar a mim, apesar de ter deixado bastante claro que não
quer voltar a ver-me?
— Mas tenho a certeza de que quando souber do bebé…
— Vai querer cuidar dele? Vai querer cuidar de mim, levar-me para casa e
dar-me tudo o que tem e mais ainda? Achas que não sei que o fará? Mas eu não
quero ninguém ao meu lado por obrigação, não quero obrigá-lo a perdoar-me,
e, se lhe contar da gravidez, será exatamente isso que estarei a fazer.
A Jenna suspirou e abanou a cabeça, mas não sabia o que dizer.
— O Nicholas ama-te — afirmou, depois de um minuto em silêncio. — Eu
sei que ama, ele continua loucamente apaixonado por ti e sei que quando souber
do bebé vai ser o homem mais feliz da Terra, Noah. O que aconteceu convosco
foi uma treta, sim, mas já paraste para pensar que talvez este bebé seja
exatamente o que faltava para porem ambos as vossas diferenças de parte e
decidirem tentar mais uma vez? Não imagino melhor motivo.
Vi a imagem que a Jenna queria criar na minha cabeça: eu e o Nick,
novamente juntos, com um bebé lindo para cuidar, a viver a vida que eu sempre
sonhara, apesar de o bebé se adiantar uns oito anos. Era isso que eu queria: uma
vida ao lado do Nick.
Soltei o ar que estava a suster e abanei a cabeça.
— Não quero continuar a falar disto, nem do Nick, nem do bebé; por favor,
deixa-me pelo menos assimilar tudo o que está a acontecer antes de enfrentar o
desafio seguinte, antes de enfrentar o Nick e a nossa vida…
A Jenna olhou-me com carinho e aproximou-se para me dar um abraço.
— Tu vais ser uma mãe maravilhosa, Noah, e esse bebé vai ser o mais lindo
do mundo.
Pestanejei várias vezes, tentando não chorar novamente, mas não consegui
evitar que a imagem de um bebé minúsculo com os traços do Nick entrasse na
minha cabeça.
A Jenna afastou-se de mim e pela primeira vez pousou a mão na minha
barriga.
— E eu vou ser a sua tia favorita. — Esta frase fez-nos desatar a rir.
A minha amiga foi-se embora ver o que o Lion estava a fazer, e eu aproveitei
para me tapar com os cobertores e tentar dormir, embora o medo que sentia por
ter de contar ao Nicholas o que tínhamos pela frente mal me deixou pregar
olho.

Aquelas duas semanas foram as mais compridas da minha vida, embora me


tivessem permitido pensar em muitas coisas. A primeira era que já me sentia
capaz de chamar ao bebé «o meu bebé», o que achei que era um grande passo.
A segunda foi que me permiti ler coisas na ­Internet sobre o desenvolvimento do
feto, e sabia que o meu bebé — a quem apelidara de Mini Eu,
independentemente de ser menino ou menina, para mim era igual, era meu e
seria como eu, por isso a alcunha Mini Eu assentava-lhe como uma luva — já
conseguia mexer as pernas e as mãos, era sensível à luz e recetivo a estímulos, o
que queria dizer que já me ouvia quando falava com ele, algo que comecei a
fazer quando estava sozinha em casa. Também já era capaz de segurar a cabeça, e
as unhas começaram a crescer. De acordo com a Internet, era do tamanho de um
abacate e, presumivelmente, já tinha sexo determinado.
Quando a Jenna se encarregou de me levar novamente ao médico, tivemos de
voltar a mentir ao Lion, que nos olhava como se estivéssemos a tramar alguma
coisa. Naquela manhã, quando me vesti, fiquei inquieta porque, por ter passado
as duas últimas semanas de pijama, não me tinha apercebido de que o bebé
continuava a crescer, e eu com ele.
Deixara as calças para trás e vestira uma saia com roda e elástico na cintura,
com uma T-shirt dos Ramones… sim, era verdade que parecia uma verdadeira
mãe.
Desta vez fomos para a ala da maternidade do hospital, não às Urgências, e
senti pânico de que alguém nos visse ali; para ser sincera, parecíamos duas
crianças que se tinham perdido no hospital e não sabiam encontrar a saída. As
mulheres que ali estavam pareciam todas mais adultas, daquelas a quem alguém
chamaria «mamã»; eu, por outro lado, via a minha imagem refletida no espelho
e parecia acabada de sair da escola.
Quando chamaram o meu nome, senti-me corar e só desejei que a terra se
abrisse e me engolisse. Várias mulheres olharam para nós com curiosidade, e
muitas fitaram a minha barriga.
Entrámos no consultório do doutor Hubber, e uma enfermeira pediu-me que
me recostasse na marquesa, dizendo que ele não tardaria a chegar. A Jenna
começou a inspecionar a sala e pegou num bebé de plástico que estava entalado
num útero a fingir e mostrou-mo.
— E isto vai ter de sair por aqui — disse, apontando para o orifício
minúsculo da vagina.
Fulminei-a com o olhar enquanto ficava cada vez mais nervosa. A Jenna
pousou o modelo e sentou-se na cadeira em frente à secretária. Uns minutos
depois, o especialista apareceu e sorriu-me de modo ­amigável.
— Como está, menina Morgan? — perguntou, aproximando-se de onde eu
estava recostada.
— Acho que estou bem, já sabe como é… a assimilar as coisas. Trate-me por
Noah, por favor.
O doutor Hubber assentiu, divertido, e repetiu o que fizera da última vez.
Sentou-se ao meu lado numa cadeira e puxou o ecógrafo para poder vê-lo bem e
mexer nele.
— Vamos ver como está o feto e se o hematoma continua como estava antes.
Começou então a aplicar o gel frio e passou a sonda pela minha barriga. Uns
instantes depois, o bater do coração do bebé ecoou com toda a força na sala, e
pudemos vê-lo no ecrã.
— Oh, olha, Noah! — exclamou a Jenna, inclinando-se para ver melhor.
Ali estava o Mini Eu, um pouco maior do que a última vez que o vira; estava
numa posição bastante estranha, e as mãos apertavam o que achei que devia ser
o cordão umbilical.
— Está a brincar… é bom sinal — informou-me o médico com um sorriso de
esguelha. Depois disto começou a medir o feto: as medições eram perfeitas, o
tamanho da cabeça também, até tinha um bocadinho de cabelo no cocuruto.
Senti que os meus olhos se enchiam de lágrimas… Vê-lo outra vez, depois de
ter assimilado a sua existência e saber que estava saudável, provocou em mim
uma felicidade que não sentia há anos… uma felicidade que gostava de ter
partilhado com alguém especial.
— Querem saber o sexo do bebé? — perguntou o doutor Hubber enquanto
movimentava a sonda para ver melhor.
— Sim! — respondeu a Jenna.
— Não! — respondi eu. A minha negação fez o médico parar para olhar para
mim. A Jenna também o fez, e as lágrimas começaram a cair-me pelo rosto;
comecei a chorar como uma Madalena arrependida, porque não podia saber o
sexo do Mini Eu se o Nick não estivesse comigo. Como podia recusar-lhe este
momento? O Mini Eu também lhe pertencia, não tanto quanto a mim, mas
metade dele viera do Nick… aquele bebé maravilhoso que brincava com o
cordão umbilical tinha um pai que de certeza o amaria acima de todas as coisas.
Como podia eu privar o meu bebé disso?
A Jenna pareceu compreender por que razão eu chorava e apertou-me a mão
com força.
— Ela prefere esperar, doutor — disse por mim.
O doutor Hubber assentiu, mas voltou a fitar o ecrã.
— Agora, a má notícia é que o hematoma está praticamente do mesmo
tamanho, sarou um pouco, mas não o que esperava que sarasse depois de duas
semanas em repouso.
— O que significa isso?
— Significa que a probabilidade de ainda vires a sofrer um aborto é muito
elevada, e um aborto às dezasseis semanas não comprometeria apenas a vida do
bebé, mas também seria muito perigoso para ti.
Olhei para o médico com medo nos olhos.
— Vais continuar em repouso, e vou receitar-te mais vitaminas. Sei que estás
assustada, Noah, mas isto não é uma coisa assim tão rara: acontece a muitas
mulheres, principalmente durante a primeira gravidez — explicou-me com um
sorriso animador. — Tens de ser paciente, é só isso, e não sair da cama.
Tudo isto me soava tão mal… Mais duas semanas de repouso absoluto! O que
ia fazer? A Jenna não podia continuar a cuidar de mim a tempo inteiro, e o Lion
ia acabar por perceber que alguma coisa não estava bem, e isto sem contar que
dentro de muito pouco tempo já não ia conseguir esconder a barriga por baixo
de uma T-shirt dos Ramones.
Bolas… estava a ficar sem tempo!
— Temos de contar a alguém. Deixa-me dizer ao Lion, eu obrigo-o a jurar
que não se descai com ninguém — disse-me a Jenna no caminho de regresso a
casa.
Obrigara-a a parar numa gelataria, porque de repente ficara com uma vontade
imensa de comer gelado de chocolate e nozes. Acho que acabara de ter o meu
primeiro desejo oficial e estava a deliciar-me com o gelado enquanto a minha
amiga olhava em frente com ar preocupado.
— Não podemos contar ao Lion, ele não aguenta muito tempo sem ligar ao
melhor amigo para lhe contar.
— Então à tua mãe — propôs a Jenna, batendo no volante com desespero.
A minha mãe… Bolas, se havia coisa que me fazia mais medo do que perder o
bebé era contar à minha mãe.
— Olha, podes deixar-me um pouco de comida numa caixa, ao lado da cama,
assim nem preciso de me mexer; também não quero que fiques presa por minha
causa.
A Jenna voltou-se para mim com uma expressão irritada.
— Não vou deixar-te sozinha, isso está fora de questão — afirmou, voltando a
olhar para a estrada. — Ouve, Noah, chegou a hora, lamento, meu anjo, mas
não tens mais três meses para ir assimilando as coisas, estás de quatro meses,
daqui a pouco começará a ser mais do que evidente… Queres que o Nicholas
chegue aqui um destes dias e te encontre com uma barriga enorme? Ele
também precisa de tempo para interiorizar isto, para se habituar à ideia e essas
coisas todas, a vida dele também vai mudar…
— Não me fales do Nicholas, não quero saber as mudanças que ele vai querer
fazer ou não, já estou a passar por mudanças suficientes, muito obrigada.
A Jenna suspirou mais uma vez, e pouco depois chegámos a casa.
Para minha sorte, ou não, o Lion estava a estacionar o carro naquele preciso
instante à entrada do prédio. Ao ver-nos chegar, aproximou-se de nós.
— Que tal as costas? — perguntou, olhando-me divertido. Segundo parecia,
tinha achado piada que tivesse dado cabo das costas daquela maneira só por
agarrar numa caixa de livros e, por causa disso, ter de passar duas semanas na
cama. Já me tinha mandado várias indiretas sobre os benefícios de fazer
exercício físico.
Se ele soubesse…
A Jenna saiu do carro, deu-lhe um beijo nos lábios e olhou para ele com cara
de caso.
— O médico mandou-a ficar mais duas semanas de repouso — informou-o
ela, e naquele momento percebi que me odiava por a obrigar a mentir ao
marido.
O Lion arregalou os olhos, surpreendido.
— Caramba, Noah, estou a começar a ficar preocupado contigo!
Abanei a mão num gesto de desvalorização enquanto saía do carro. A Jenna
olhou para mim, assustada, embora não houvesse razões para isso. Estava bem.
— Leva-a ao colo, Lion — pediu-lhe com demasiada urgência.
— Eu estou bem, Jenna — disse, arregalando os olhos quando o Lion não
estava a olhar.
Ele aproximou-se de mim em menos de um segundo.
— Não me importo de te levar. Anda lá, malandra, agarra-te ao meu pescoço
— disse, agachando-se e levantando-me um instante depois. Agarrei-me com
força ao pescoço dele, e a imagem do Lion a tropeçar nas escadas deixando-me
cair sobre a barriga manteve-me alerta e assustada durante todo o trajeto. —
Isto de não te mexeres tem as suas consequências… estás mais gorda — disse
ele antes de soltar uma gargalhada.
A Jenna deu-lhe uma palmada, e eu, depois de entrar em pânico ao pensar que
me tinha descoberto a careca, olhei para ele com maus modos e fiz-me de
ofendida.
— És muito engraçadinho! — exclamei enquanto entrávamos no quarto. Ele
pousou-me sobre a cama, e recostei-me, suspirando profundamente.
O Lion ficou a olhar para mim durante um instante que me pareceu uma
eternidade, e, por mais que gostasse de conseguir ler os pensamentos dele, algo
me dizia que seria melhor não os conhecer.
— Qualquer coisa, dá um grito — disse ele, saindo do quarto.
Nem sequer liguei a televisão. Fiquei recostada na cama a pensar em qual
seria a melhor forma de contar tudo aquilo ao Nicholas… Mãe do Céu, não
conseguia imaginar a sua expressão, a surpresa… De certeza que ia ficar irritado
ou que me atiraria qualquer coisa à cara. Raios, ele ia odiar-me! Ia odiar-me
porque eu acabara de fazer o que qualquer mulher ardilosa podia ter feito a um
homem como ele: caçá-lo. E fizera-o da forma mais antiga e mais patética
possível.
Uns minutos depois ouvi murmúrios atrás da porta. A seguir a Jenna entrou
no quarto para falar comigo.
— O Lion quer contar ao Nick.
— Contaste-lhe?! — quase gritei, endireitando-me na cama.
Ela abanou rapidamente a cabeça.
— Quer contar-lhe a versão da dor de costas, e estive a discutir com ele para
não dizer nada ao Nick, mas não sei se me vai dar ouvidos.
«Espera… O quê?»
— Por que razão havia o Lion de contar algo tão insignificante ao Nicholas?
A Jenna mordeu o lábio, um pouco nervosa, e percebi que acabara de a
apanhar em alguma coisa menos própria.
— É que… — disse, contorcendo-se na cama. — Caramba, isto de ter os
meus dois melhores amigos apaixonados e depois separados é uma treta —
confessou-me com ar aborrecido. — Ouve, Noah, depois de terem acabado, o
Nick pediu-nos que o mantivéssemos informados… Sabes, sobre como estavas e
como ia a tua vida e assim.
— O Nicholas pediu-vos o quê?
Assimilei as suas palavras, completamente apanhada de surpresa.
— Ele queria saber tudo, como corria o teu trabalho, as aulas, como estavas a
reagir à vossa separação… Sei que não tinha o direito de lhe contar coisas sobre
ti, mas achei que era bom sinal ele querer saber… Sabes, se tinha sido ele a
acabar, e mesmo assim demonstrava interesse por ti, isso podia conduzir a…
Passei a mão pelo rosto sem acreditar no que estava a ouvir.
— A que me perdoasse? — terminei a frase com incredulidade. — Jenna, o
Nicholas só queria controlar-me. É isso que ele faz, bolas, até depois de me
deixar continuava a controlar-me através de vocês… — De repente, lembrei-me
de uma coisa. — Não te contei nada acerca da minha queda de moto, pois não?
— perguntei, entendendo de supetão por que razão ele ficara tão transtornado
em casa dos nossos pais: porque ninguém o informara sobre o acidente. Eu
escondi o sucedido de toda a gente. Foi uma coisa tão estúpida que não quis que
me dessem sermões por causa disso.
— Tu caíste de moto? — perguntou a minha amiga.
Expirei enquanto tapava a cara com as mãos.
— Jenna, diz ao Lion que não abra a maldita boca. A vida é minha, caramba,
nenhum dos dois tem o direito de lhe contar o que quer que seja.
A Jenna parecia envergonhada, e eu começava a ficar farta daquela situação
toda.
— Diz-lhe que venha — disse um minuto depois, sem sequer olhar para ela.
— O quê? — perguntou, surpreendida.
— A festa de anos do Lion é na semana que vem, não é? — perguntei,
observando como as folhas das árvores caíam e se acumulavam no parapeito da
janela. — Convida-o… Quando cá estiver, posso contar-lhe.
35
NICK

Depois de lhe ter dito que não ia conseguir estar na festa de anos do Lion, a
Jenna não parou de me chatear. Estava enterrado em trabalho e, para poder ir
naquela semana a Los Angeles, teria de cancelar pelo menos cinco reuniões e o
encontro com a agente imobiliária que ia tratar da venda do apartamento.
Estava a tomar todas as providências necessárias para me mudar
definitivamente para Los Angeles; era o melhor, não apenas para mim, que
tinha a minha família toda na Califórnia, mas também para a empresa. Já
cumprira a estada em Nova Iorque, as coisas estavam em ordem e corriam bem,
tinha chegado a altura de pôr fim ao meu retiro.
A principal causa para ter mudado a minha vida toda para Nova Iorque fora
afastar-me o mais possível da Noah, mas estava cansado de permanecer na
sombra. A minha irmã estava ali, o meu pai, os meus amigos… além da família
da Sophia, embora este detalhe me importasse muito pouco.
O telemóvel voltou a tocar na minha mão, e atendi a doida da minha amiga
com um suspiro. O trânsito estava insuportável e tive de olhar várias vezes para
cada lado da estrada antes de atravessar, para ninguém me levar à frente. Esta
era outra coisa: a vida em Nova Iorque sugava toda a minha energia vital,
precisava de praia… e com urgência.
— Bolas, Jenna, estás a dar-lhe com força — disse e até eu reparei no tom
irritado da minha voz.
— Ouve uma coisa, Nicholas Imbecil Leister — respondeu ela, e não pude
evitar soltar uma gargalhada de surpresa. — É o aniversário do teu melhor
amigo, a pessoa que sempre te apoiou, que esteve do teu lado de cada vez que
meteste a pata na poça. Deu-te abrigo quando fugiste de casa! Ou já te
esqueceste disso? És o nosso padrinho de casamento, por isso mexe esse rabo e
vem para casa, se não queres que vá até aí e te traga à chapada.
Antes de poder responder, ouvi um ruído do outro lado da linha, e a seguir foi
a vez de o Lion falar.
— Olá, meu — cumprimentou-me e ouvi com atenção o que estava a
acontecer a milhares de quilómetros de distância. — Jenna, vai-te embora,
deixa-me falar com ele. Chiça, miúda, estás irreconhecível! — criticou ele;
depois ouvi uma porta fechar-se. — Nick, tens de vir.
Revirei os olhos.
— Escuta, sei que é o teu aniversário e a sério que tenho pena de não poder
aparecer, mas estou com trabalho que nunca mais acaba, vai ser impossível ir até
aí, desculpa.
— É por causa da Noah — disse-me ele então, e isto conseguiu fazer que
parasse de andar no meio da rua, o que levou algumas pessoas a chocarem
comigo; porém, o tom de voz do meu amigo merecia esta reação.
— O que se passa com a Noah? — perguntei enquanto dobrava a esquina e
me metia numa rua secundária, menos movimentada.
— Não sei ao certo, bem, sei, ela magoou-se nas costas há cerca de três
semanas e tem estado em nossa casa. Teve de ficar de repouso e mal se pode
mexer.
— Nas costas? O que diabo andou a fazer para ter de ficar tanto tempo em
repouso? Ela está bem? É grave? — Mentalmente já estava a cancelar todas as
reuniões dos próximos dias.
O Lion ficou calado durante uns instantes.
— Há aqui qualquer coisa que não bate certo, meu. A Jenna anda
superestranha, nunca na vida a vi tão stressada, e depois a Noah… Não sei, diz
que lhe doem as costas, mas ainda no outro dia a vi mexer-se sem problema
nenhum, acho que elas andam a tramar alguma, e era melhor que estivesses
aqui.
Era tudo ridículo, mas se a Noah estava doente…
— Como diabo se foi ela magoar tanto? Estava a fazer o quê?
O Lion soltou um suspiro profundo.
— Estava a carregar caixas, vai mudar de apartamento. Sei que já te devia ter
dito, mas a Jenna insistiu que não podemos continuar a contar-te coisas sem o
consentimento da Noah.
— Por que raio vai ela mudar de apartamento? Está pago até junho! — gritei,
enquanto atravessava outra rua e levantava a mão para chamar um táxi.
— Pois, mas a Noah não sabe disso, pois não? Acha que o apartamento só
estava pago até um ano depois de a Briar se ir embora. Foi isso que mandaste a
senhoria contar-lhe, não foi?
Entrei no táxi e disse bruscamente a direção ao motorista.
— Raios partam a mulher — exclamei entre dentes. — Onde está ela a viver
agora?
— Por enquanto está connosco, mas alugou um sótão fora do campus.
Não podia acreditar naquilo. Assegurara-me de que a Noah ficaria a viver no
apartamento que partilhara com a Briar durante pelo menos mais um ano. Um
sótão! A zona fora do campus era uma porcaria, e, se ia viver sozinha, seria
perigoso.
— Olha, Nick, disseste o que acho que devias fazer, eu não entendo as
mulheres, e muito menos estas duas, mas sei que há qualquer coisa que não está
bem, e está relacionada contigo. Quando é que viste a Jenna insistir tanto para
qualquer coisa que não fosse ir às compras?
Noutra ocasião ter-me-ia rido, mas naquele momento fiquei um pouco
preocupado. Sabia que a insistência da Jenna era estranha, ainda para mais
depois de a última vez que estivera com a Noah as coisas terem acabado tão
mal.
Talvez estivessem as duas a planear vingar-se e dar-me uma tareia.
Dez minutos depois, cheguei ao meu bloco de apartamentos e comecei a fazer
chamadas. Ia deixar muita gente pendurada durante aquela semana, e uma parte
de mim não deixava de se questionar por que diabo o fazia.

Cheguei no próprio dia de anos do Lion, e já atrasado. Só tinha conseguido


encontrar aquele voo e não estava exatamente de bom humor, digamos assim.
Não me apetecia muito estar ali e menos ainda ter de ir a casa do Lion para uma
festa quando o que me queria mesmo era dormir durante horas.
O Steve mandara deixarem­-me o carro no aeroporto, por isso fui diretamente
para casa e entrei no trânsito quase a ultrapassar os limites de velocidade. Disse
à Sophia que a encontrava lá, embora não soubesse se ela ia ter tempo, andava
quase tão ocupada como eu.
O apartamento da Jenna e do Lion ficava numa bonita zona residencial, perto
do campus universitário, mas sem estudantes, o que fazia dele o sítio perfeito.
Mudavam-se para ali muitos casais recém-casados. Para mim, o único defeito
que tinha era não ficar perto do mar.
Pouco depois de chegar, consegui um lugar para estacionar perto do
apartamento deles. Antes de sair, tirei a gravata, atirei-a para o banco de trás,
desabotoei alguns botões da camisa e tentei pentear um pouco o cabelo com os
dedos, mas foi em vão: parecia acabado de sair do avião e completamente
exausto.
Sabia que a Noah ia estar na festa e até fiquei um pouco nervoso. Não fazia
ideia de qual seria a sua reação ao ver-me entrar pela porta, só esperava que
tivesse as armas guardadas: naquele dia não estava ali para discutir com
ninguém.
Entrei no prédio e fui para o elevador. Subi até ao quarto andar e, quando as
portas se abriram, ouvi o barulho que dali vinha. A porta do apartamento estava
aberta, e havia gente a beber junto à entrada. Conhecia a maior parte das
pessoas, e todos me cumprimentaram com entusiasmo ao ver-me chegar.
Quando entrei em casa, a primeira pessoa que vi foi a Jenna, que trazia um
vestido e uns sapatos muito bonitos. Levava dois copos na mão e pareceu
pressentir a minha presença, porque parou imediatamente e veio direito a mim.
— Deus do Céu, estás mesmo aqui! — exclamou num tom de voz bastante
histérico.
— Estou aqui! — guinchei, imitando-a.
Não se riu da minha brincadeira; mais do que isso, olhou em redor com
nervosismo. Estava esquisita, pois estava.
— Como não confirmaste nada, pensei…
— Disse ao Lion que ia tentar, mas só consegui voo hoje de manhã… bem,
aqui me tens — disse, tirando-lhe um dos copos vermelhos das mãos e levando-
o à boca.
Fiz uma careta de repulsa.
— O que diabo é isto? — exclamei, devolvendo-lhe o copo.
— Sumo de ananás — respondeu a Jenna arqueando as sobrancelhas.
Olhei para as pessoas à minha volta até voltar a pousar os olhos nela.
— Sumo de ananás… Temos doze anos e não me apercebi disso?…
A Jenna disse qualquer coisa que não percebi e deu-me o outro copo.
Uísque… Humm, estava melhor.
— Muito bem, Jenn… Onde está o Lion?
— Na cozinha, já nos vemos — respondeu, escapulindo-se em direção à sala.
Não sei porquê, mas deu-me para ir atrás dela. A sala estava a abarrotar de
gente, e tive de abrir caminho quase à cotovelada; depois vi por cima da cabeça
das pessoas que a Jenna se inclinava na direção de alguém que estava sentado no
sofá.
Fui até lá e vi que se tratava da Noah. Quando a Jenna estava a levantar-se, a
Noah voltou-se na minha direção, e, apesar da distância que nos separava, vi
que empalidecia.
O Lion apareceu à minha frente e deu-me um abraço que quase me partiu os
ossos todos das costas.
— Obrigado por teres vindo, meu! — exclamou ele, e retribuí o seu sorriso,
embora sem afastar os olhos da Noah, que, sentada no sofá, olhava na minha
direção e parecia ter ficado tão tensa como as cordas de um violino.
O Lion seguiu o meu olhar e assentiu.
— Pobrezinha… está ali sentada desde que a festa começou; ainda lhe disse
que não precisava de descer, mas ela insistiu.
— Pois — concordei num tom seco.
Só a Noah se lembraria de ir a uma festa mesmo estando lesionada.
Acabei o que me restava no copo e deixei-o em cima do piano de cauda.
Afinal, tinha ido ali por algum motivo… não?
Enquanto me aproximava e via que ela não saía a correr na direção oposta,
percebi que estava mesmo mal. Estava muito bonita ali no sofá, com uma
camisola preta e uma manta sobre as pernas. O seu rosto era radiante, de tal
maneira que senti uma pontada no coração quando me aproximei e me sentei à
sua frente, em cima da mesa de centro. Olhei para as vinte e oito sardas do seu
nariz com um sorriso, tinha tido tantas saudades delas, e os meus olhos pararam
um segundo a mais sobre os seus lábios.
— Olha para ti… pareces um passarinho ferido que não consegue voar —
comentei com um sorriso nos lábios.
Não queria voltar a passar pela última situação que partilhámos: desde que
regressara a Nova Iorque, a imagem da Noah destroçada nos meus braços a
dizer que me amava e a pedir-me por favor que não a deixasse atormentara-me
todas as noites.
— Pensava que não vinhas — comentou, agarrando-se à manta como se a sua
vida dependesse disso.
Inclinei a cabeça para o lado e assenti uns segundos depois.
— Fiz umas chamadas e consegui um lugar num voo comercial. Estou todo
rebentado, nunca tinha viajado em classe turística.
A Noah assentiu, olhando para mim distraída.
— Porquê? Se soubesses que vinha estarias aí sentada? — continuei, ao ver
que não dizia nada.
As maçãs do seu rosto tingiram-se de um tom rosado demasiado atraente para
a minha saúde mental, mas pelo menos acusava o toque.
— Estás bem? — não consegui evitar perguntar com a doçura de outros
tempos. Alguma coisa ali não parecia encaixar, e comecei a ficar um pouco
nervoso.
A Noah olhou para todos os lados, como se estivesse à procura de alguém ou
de alguma coisa. A música não estava demasiado alta, mas incomodava-me os
ouvidos, e tive a sensação de que a ela também.
— Estou bem, só um pouco cansada.
— Estás à procura de quem? — perguntei num tom que conseguiu fazer com
que os seus olhos voltassem a fixar-se em mim. Vi no seu olhar um medo que
nunca divisara antes… e fiquei completamente tenso, esperando ver o que
conseguira provocar este temor nela…
Demorei um pouco mais do que devia a perceber que era a mim que temia.
De repente, e sem que antes tivesse oportunidade de lhe perguntar o que se
estava a passar, a Jenna apareceu ao nosso lado e sentou-se no sofá com a Noah,
pegou-lhe na mão e apertou-a com força, o que fez que um enorme sorriso se
desenhasse no seu rosto.
— Está tudo bem por aqui?
Ia responder, mas depois a Noah abriu a boca.
— Lion! — chamou. O meu amigo apareceu num abrir e piscar de olhos. —
Podes levar-me lá para cima? Acho que por hoje já chega.
A Jenna fez má cara e fulminou a Noah com os seus olhos cor de café, e,
quando vi que o Lion se inclinava para pegar nela ao colo, o meu corpo mexeu-
se de forma instintiva. Pus-lhe uma mão no peito para ele parar.
De repente, senti-me encurralado, notava o ambiente estranho, e o facto de a
Noah preferir o Lion a mim mesmo que eu estivesse à sua frente doeu-me tanto
como se tivesse levado um murro no estômago.
— Eu levo-a para cima — ofereci-me, descontraindo o corpo. Agachei­-me
junto da Noah e apanhei-a desprevenida; reagiu agarrando-se ao meu pescoço
com força. Senti-a estremecer nos meus braços e apressei-me a sair daquela sala
a abarrotar de gente para me dirigir para as escadas.
— Não te pedi que me trouxesses — censurou, e percebi que estava a cerrar
os dentes com força.
Ótimo, agora conseguira fazer que ficasse aborrecida.
Fui diretamente para o quarto de hóspedes do apartamento. Sabia qual era
porque também já ali ficara algumas vezes depois de passar noites animadas
com os meus amigos e me sentir incapaz de conduzir depois de tantas cervejas.
Apertei-a contra mim, talvez de forma pouco adequada, tendo em conta que
já não estávamos juntos, e inspirei o aroma do seu pescoço quando me inclinei
sobre a cama para a pousar contra as almofadas.
Para quem estava magoada das costas, pontapeou os cobertores demasiado
depressa para os pés da cama e a seguir meteu-se debaixo deles, tapando-se
quase por completo. Observei-a com incredulidade, tentando não me rir.
Então, estendeu a mão e pegou na minha, puxando-me até me fazer sentar ao
seu lado no colchão. Endireitou-se até ficar encostada à cabeceira da cama e
olhou-me diretamente nos olhos.
— Tenho uma coisa para te contar — anunciou com a voz trémula enquanto
me apertava a mão com força.
Franzi o sobrolho à espera de que continuasse a falar e, no instante em que
parecia disposta a começar, a porta do quarto abriu-se, e a Sophia apareceu à
entrada.
A Noah empalideceu quase até ficar sem cor.
— Disseram-me que te tinham visto subir — disse a Sophia, olhando para
mim com uma calma fingida.
Pus-me de pé e olhei alternadamente para uma e para outra.
Olhando para a Noah, percebi que nada de bom podia resultar daquela
reunião, mas o pior de tudo é que não queria seguir a Sophia escadas abaixo,
muito pelo contrário: queria fechar-lhe a porta na cara e ouvir aquilo que a
Noah estivera prestes a contar-me.
36
NOAH

«Diz o que tens a dizer, Noah, di-lo, di-lo, di-lo, di-lo.»


Repeti esta frase na minha cabeça assim que o vi entrar na sala da Jenna.
Pensava que, depois de tudo o que acontecera e de como estava zangada com
ele, a atração que sentia teria desaparecido. Não sei, agora que ia ser mãe, as
minhas prioridades não deviam ter mudado? Pois, parece que não, porque,
quando o vi atravessar a sala para se aproximar do sofá em que estava, todo o
meu corpo começou a tremer, e não foi só de nervos.
Mostrou-se amável comigo, demasiado amável para aquilo a que estava
habituada, e fiquei praticamente sem palavras. Quando me levantou ao colo
daquela maneira, temi que reparasse em alguma coisa, não sei, talvez que tinha
ganhado uns quilos… O Lion tinha reparado, e o Nick nunca conseguia conter
a vontade de me picar, por isso ou não se apercebeu de nada ou sabia que o
ambiente estava tenso e preferiu ficar calado.
Apesar dos nervos, consegui reunir força suficiente para lhe dizer que
tínhamos de falar, mas tudo acabou por me explodir na cara quando a porta do
meu quarto se abriu e a Sophia apareceu, mesmo a tempo de interromper um
dos momentos mais importantes das nossas vidas.
Não sei se foi por causa da raiva que sentia dentro de mim, se por ódio ao
Nicholas por a ter trazido até ali ou até pelo desespero que senti ao constatar
que continuavam juntos, que eram um casal, que ele lhe pertencia… mas senti
que os ciúmes me rasgavam por dentro. Nunca na minha vida sentira o coração
bater tão depressa na presença de alguém. Todos os meus instintos me faziam
querer sair daquele quarto e nunca mais voltar a vê-los. O meu estado de nervos
deve ter afetado o Mini Eu porque senti um frémito no ventre, um movimento
leve, quase impercetível, mas que fez saltar cá para fora todo o meu instinto
maternal, sem pejo nem filtros.
— Fora do meu quarto! — gritei, completamente alterada.
Ambos arregalaram os olhos enquanto eu agarrava na primeira coisa que tinha
à mão, que por acaso foi uma almofada, e atirava à Sophia com toda a força. A
almofada mal chegou a roçar nela, por isso preparei-me para agarrar noutra
coisa que lhe acertasse em cheio, mas depois a Jenna apareceu à porta, olhou,
surpreendida, para a Sophia e a seguir olhou rapidamente na minha direção.
Desta vez, as minhas mãos agarraram algo mais duro, acho que era um
candeeiro.
— Tira-a daqui! — ordenei aos gritos, levantando o objeto pesado.
Neste instante, uma mão agarrou-me no pulso: era o Nick. Estava a olhar para
mim, furioso.
— Que diabo se passa contigo?! — gritou. Senti uma vontade repentina de
lhe fazer mal. Maldito idiota… Não se apercebia de nada? Não o via nos meus
olhos? Comecei a dar-lhe murros com a mão que tinha livre, até que não
consegui continuar porque também ma agarrou.
— Larga-a, Nicholas! — gritou a Jenna, tão histérica como eu.
Tentei libertar-me da sua mão, contorci-me e fiz pressão com o meu corpo
para que me deixasse em paz: foi neste momento, ao fazer força que senti uma
leve humidade entre as pernas.
Fiquei imediatamente paralisada.
«Não.»
«Não, não, não, não, não, não, não.»
Senti que o pânico tomava conta de mim, um medo intenso apoderava-se de
cada célula do meu corpo. Desatei a chorar, e o Nicholas largou-me, olhando
para mim perplexo.
— Nicholas, sai daqui — disse a Jenna num tom de voz que nunca a ouvira
usar com ninguém.
Não vi quando ele se foi embora, não ouvi o que ele disse, limitei-me a
abraçar o meu corpo por baixo dos cobertores.
— Lamento que ele a tenha trazido, Noah, eu não sabia — desculpou-se a
Jenna junto ao meu ouvido.
Abanei a cabeça tentando acalmar-me, precisava que a adrenalina
desaparecesse do meu corpo, precisava de descontrair, pelo Mini Eu, pelo bebé,
pelo meu bebé, que estava inquieto por minha causa, eu sabia, percebia-o.
A Jenna deitou-se ao meu lado, sorrindo-me sem grande entusiasmo enquanto
secava as lágrimas que me caíam pelo rosto.
— Tudo se vai resolver — afirmou com calma. — Prometo-te, tudo vai correr
bem.
Assenti, desejando acreditar nela.
— Há pouco… — disse num sussurro entrecortado —, senti qualquer coisa
estranha… acho que o bebé estava stressado, e isso fez que…
A Jenna abriu os olhos, assustada, e levantei-me com cuidado. Desci da cama
e fui à casa de banho. A Jenna esperou que saísse alguns minutos depois.
— Falso alarme — anunciei com a voz trémula.
A Jenna suspirou ao fechar os olhos e eu voltei a sentir alguma paz.

Estar enfiada num quarto sem grande coisa para fazer dá-nos demasiado
tempo para dar voltas à cabeça. Em breve teria de voltar ao médico e,
acontecesse o que acontecesse, ia ter de começar a tomar decisões e a encarregar-
me da situação sozinha. Para começar, tinha de ir ao meu apartamento, não
podia continuar ali, a deixar os meus amigos loucos.
Era evidente que o que acontecera no dia anterior não podia repetir-se, e a
pressão de contar ao Nicholas estava, na verdade, a acabar com a minha força
vital. Não havia voltar a dar, ele era o pai do Mini Eu, que ia sair de dentro de
mim dali a quatro meses, o que significava que muito em breve teria de
começar a pôr as necessidades do bebé à frente das minhas. Por mais que não
quisesse partilhar isto com ele e por mais zangada que estivesse, não me restava
alternativa.
Tinha pensado contar-lhe de forma subtil, sabem como é, a apalpar terreno e
ficando com a sua reação gravada na minha memória até ao dia em que
morresse, mas ver ali a Sophia tinha dado cabo de qualquer resquício de
amabilidade e tato. No dia seguinte, num desses momentos de solidão e inércia,
tomei uma decisão.
Telemóvel.
Contactos.
Nicholas Leister.
Estou grávida.

Enviar.
Fim do problema.
*
Se vos disser que me arrependi quase no mesmo instante em que premia a
tecla Enviar, acham que pareceria muito cobarde da minha parte?
Fiquei a olhar para o ecrã em silêncio quase sem conseguir respirar.
Cinco minutos depois, o telemóvel começou a tocar.
Uma e outra e outra vez.
Peguei no telemóvel com dois dedos, quase sem querer tocar-lhe, e atirei-o
para os pés da cama.
Ai, caraças… por que razão estava subitamente aterrorizada?
— Jenna! — gritei, quase sem ar.
No minuto seguinte, a minha amiga veio ver como eu estava.
— Podemos ir a um lado qualquer? — perguntei, levantando-me da cama e
abrindo o roupeiro.
— Mas o que estás a fazer? — perguntou ela, assustada. — Volta para a cama!
Peguei nuns leggings e vesti-os enquanto o diabo esfrega um olho. A seguir fiz
o mesmo com uma camisola.
— Estou com uma vontade terrível de ir àquela gelataria a que fomos no
outro dia.
Calcei os sapatos sem que a Jenna me pudesse impedir e parei em frente dela,
olhando-a nos olhos.
— Estou a ter um desejo imenso, o maior que já tive até agora. Leva-me lá,
por favor, eu fico sentada no carro, juro, mas preciso de sair daqui.
A Jenna pareceu hesitar, mas, depois de insistir durante alguns minutos,
acabou por aceder. Entrámos no carro, e só quando perdemos o apartamento de
vista consegui respirar profundamente.
Acariciei o ventre com nervosismo, uma e outra vez…
«Ai, Mini Eu… o teu pai vai-me matar.»

O telemóvel da Jenna começou a tocar logo depois de ela sair do carro para
me comprar um gelado. Peguei nele com as mãos trémulas e pu-lo em silêncio,
apesar de saber que estava a agir mal.
Meu Deus, larguei a bomba e a seguir fugi.
Quando a Jenna me trouxe o gelado, mal consegui comer duas colheradas
antes de lhe dizer que me passara o desejo e que agora tinha vontade de
vomitar. Sabia bem que não era por causa do bebé, mas do pânico.
— Então vou levar-te para casa — disse, pondo novamente as chaves na
ignição.
— Não! — gritei sobressaltada. — Porque não vamos ao cinema? Posso fazer
isso, não posso? Estou ali sentada durante um bocado, a descansar…
— Se queres ver um filme, alugamos um em casa, Noah, não podes andar por
aí, precisas de estar na cama, por isso, não, não vamos ao cinema.
— Jenna! — gritei exasperada. — Se ficar mais uma hora fechada no quarto
vou acabar por enlouquecer. Faz-me este favor, caraças!
Os lábios da minha amiga compuseram-se num esgar desagradado.
— Tu estás insuportável desde que engravidaste. Já to tinha dito?
— Um par de vezes, mas vá lá, mexe-te, mexe-te — incentivei.
Quando chegámos ao cinema, ainda faltava meia hora para começar a sessão,
por isso esperámos sentadas no carro.
— Vou avisar o Lion de que chegamos mais tarde a casa, de certeza que está a
questionar-se onde nos enfiámos.
Tirei-lhe o telemóvel das mãos antes que pudesse ver as chamadas perdidas.
— Mas que diabo se passa contigo? — perguntou bruscamente, sem
conseguir conter-se mais. — Dá-me o telemóvel!
«Ai, meu Deus.»
— Dou-te o telemóvel, mas tens de prometer que não ficas zangada comigo.
Estou supernervosa e preciso que fiques do meu lado.
A Jenna teve então uma espécie de revelação.
— O que fizeste? — perguntou, tentando manter a calma. — Porque estamos
a fugir, Noah?
— Não estamos a fugir… só a… esconder-nos — disse, com uma voz débil.
Tirou-me o telemóvel das mãos e fixou os olhos no ecrã.
— Quinze chamadas perdidas do Nicholas! — guinchou, olhando para mim
perplexa. — E outras dez do Lion! O que diabo fizeste, Noah?
Escondi a cabeça entre as mãos, e a Jenna puxou-mas para poder olhar para
mim.
— Contaste-lhe?
— Pode dizer-se que sim…
A Jenna fulminou-me com os olhos amendoados e esperou que me explicasse.
— Talvez lhe tenha enviado uma mensagem.
— A dizer que precisas de falar com ele?
Olhei para ela em silêncio durante uns instantes.
— A dizer que estou grávida.
A minha amiga arregalou os olhos com espanto.
— Noah! — gritou, sem se preocupar com quem nos ouvia. —
Enlouqueceste? Como foste capaz?
— Ele só tem o que merece, não quis dizer-lhe pessoalmente, Jenna, tenho
medo da sua reação. Fazê-lo por telefone permite-me manter uma distância
segura de quilómetros.
— Ele deve estar de cabeça perdida! Disseste-lhe mais alguma coisa na
mensagem? O que escreveste, exatamente?
— «Estou grávida» — respondi, encolhendo os ombros. — Ouve, tu não
olhes para mim assim, eu também recebi a notícia de forma muito estranha,
lembras-te?
A Jenna nem fez caso das minhas palavras.
— Mas disseste-lhe pelo menos que é dele?
Parei para pensar por um instante.
— Parece-me bastante óbvio que é dele — respondi, embora ao chegar ao fim
da frase já estivesse com dúvidas.
— Estamos a falar do Nicholas!
«Oh, raios me partam. Será que ele pensava que o Mini Eu era de outro?»
Eu ficara chocada ao saber que estava de quatro meses porque não se notava
nada. Se o Nicholas fizesse as contas, talvez chegasse à conclusão de que o bebé
não era seu, talvez achasse que eu estava de menos tempo. Caramba, ele ia achar
que o pai era outro!
— Dá-me o teu telemóvel — perdi à Jenna. Ela entregou-me imediatamente.
— Sim, fala com ele… — disse, respirando fundo.
Claro que o bebé é teu.

Enviar.
— Já está — anunciei, recostando-me no assento.
A Jenna virou-se para mim e arrancou-me o telemóvel das mãos.
— «Claro que o bebé é teu»! — gritou agora, completamente exaltada. —
Mas o que é que se passa contigo?!
— Não me grites — gritei-lhe eu também. — É a única forma que me ocorre
de falar com ele sem que arrase comigo!
— Vamos imediatamente para casa — disse, pondo o carro em andamento.
— Não, Jenna! Não faças isto! — implorei. — Por favor, por favor, dá-lhe
algum tempo para interiorizar… para eu me habituar a esta ideia. Por amor de
Deus, para!
— Tu estás louca — atirou-me. Como tinha o telemóvel na mão, viu a
chamada e atendeu sem hesitar.
— Jenna! — pronunciei o seu nome com histerismo.
Ela ignorou-me.
— Sim, está comigo — disse a quem quer que lhe estava a ligar. — Olha,
diz-lhe que se acalme, não, Lion, nós os dois falamos depois, não quero que
fique mais nervosa do que já está, é mau para o bebé… Então, diz-lhe!
Oh, raios, isto, sim, deixava-me mais nervosa.
— Chegamos daqui a cinco minutos.
Olhei pela janela e senti-me como se me estivessem a levar para Guantánamo.
Quando a Jenna estacionou no exterior do bloco de apartamentos, foi como se
todo o meu sangue se concentrasse num único ponto do meu corpo. Senti-me
estremecer porque não fazia ideia de qual seria a sua reação, não sabia o que ia
dizer-me e, o pior de tudo: tinha medo de que as coisas não corressem bem, de
que ele acabasse por ficar com a Sophia e eu sem o meu bebé e sem a pessoa por
quem estava apaixonada.
Abri a porta para sair do carro e vi que a porta do prédio se abriu assim que
pus os pés no chão. O Nicholas saiu e cravou os olhos em mim de uma forma
que me fez querer desaparecer e que a terra me engolisse. Instintivamente,
voltei a entrar no carro e, sem sequer pensar, fechei as portas todas para ficar lá
dentro sozinha. Meus Deus, estava a agir como uma verdadeira cobarde!
Quando a Jenna cruzou os braços ao lado da minha janela e olhou para mim a
abanar a cabeça, senti-me uma idiota.
O Nicholas apareceu então ao meu lado e olhou para mim através do vidro.
Parecia fora de si, embora tentasse demonstrar tranquilidade. Os olhos
observaram-me com preocupação, e a seguir fez-me sinal com o dedo.
— Abre — ordenou com calma.
Abanei a cabeça e olhei para ele com olhos de carneiro mal morto.
O Nick apoiou as mãos na janela e inclinou-se sobre ela tapando quase todo o
meu campo de visão.
— Posso entrar pelo menos? — disse, depois de pensar um segundo em
silêncio.
Vi a Jenna tirar a chave do carro do bolso, mostrá-la ao Nick e, finalmente,
atirar-lha. Ele apanhou-a em pleno voo e contornou o carro para entrar para o
lugar do condutor. Olhei para a Jenna com uma expressão de ódio. Ela limitou-
se a desculpar-se com um sorriso minúsculo, enquanto pegava na mão do Lion
— que também saíra com o Nick — e o levava para casa.
O Nick abriu a porta do carro, sentou-se e sem dizer nada ligou o carro.
— Põe o cinto — mandou, enquanto tirava o carro do parque e entrava na
estrada.
Oh, meu Deus… Porque não explodia ele? Nem falava? Não dizia uma única
palavra. O silêncio estava a dar cabo de mim.
Depois de alguns minutos de silêncio insuportável, lá se decidiu a falar.
— Só tu te lembrarias de dizer uma coisa destas numa mensagem de texto —
criticou, respirando fundo, como se estivesse a tentar não explodir comigo
dentro do carro, não fosse salpicar-me.
— Pois, olha… queria fazer uma coisa original — respondi.
O Nicholas voltou-se para olhar para mim com a veia do pescoço a palpitar
por baixo da pele.
— Quase tive um enfarte, por pouco não tinha um acidente. Onde estavas
com a cabeça? — perguntou, elevando o tom de voz.
O Mini Eu reagiu da sua forma borbulhante, como fizera na noite anterior.
Pareceu-me curioso que só o fizesse quando o Nick estava comigo… Presumo
que as borboletas que sempre senti na barriga agora se tinham transformado
num bebé. A minha mão pousou-se instintivamente no ventre, e o gesto não
passou despercebido ao vulcão em erupção que tinha ao meu lado. Os seus olhos
cravaram-se naquela zona do meu corpo, a seguir em mim e depois desviaram-
se automaticamente para a estrada.
Não respondi à sua última pergunta, algo que dizia que era melhor ficar
calada. O Nicholas continuou a conduzir, parecia que ainda estava a assimilar
tudo e que precisava de ter as mãos ocupadas até conseguir enfrentar-me
finalmente.
Meia hora depois, percebi que se dirigia para a praia. Quando chegámos, senti
uma paz interior inundar-me completamente e comecei a descontrair. O Nick
pareceu sentir o mesmo, porque respirou fundo depois de observar a ondulação
durante uns minutos e voltou-se para mim para me olhar diretamente nos
olhos.
— Vou ser pai? — perguntou e vi medo nos seus olhos azuis.
Estremeci da cabeça aos pés com esta pergunta. Meu Deus, este homem
espetacular era o pai do meu bebé!
— Sim, se tudo correr bem… vamos ser pais — respondi com ­nervosismo.
— Ainda não consigo acreditar… Como é possível? — perguntou, ainda sem
desviar os olhos de mim.
Levantei as sobrancelhas quase até à linha do cabelo.
— Não queiras ir por aí, Nick, acredita em mim — avisei com ar aborrecido.
Ainda não lhe perdoara por aquilo.
— Posso? — pediu-me, ignorando a minha contestação.
A mão aproximou-se da minha barriga, mas parou a meio do caminho, à
espera da minha resposta.
Estendi o braço e levei a mão dele até ao meu ventre, com a minha por cima.
Foi um momento incrível… um momento que, apesar de tudo o que ainda
carregava guardado dentro de mim, recordaria para sempre. A seguir, o Nick
levantou-me a camisola e pousou a mão sobre a minha pele. Todo o meu corpo
ardeu perante o seu contacto.
— De quanto tempo estás? — perguntou, hesitante, enquanto continuava a
acariciar-me, deslumbrado, como se estivesse atordoado com o que havia por
baixo da minha pele quente, porque… já disse que a mão dele sobre o meu
umbigo me estava a queimar e muito?
— De cinco meses — respondi, soltando um pequeno suspiro entrecortado
quando os dedos dele baixaram demasiado sobre o pequeno arco do meu
estômago. Detive a sua mão antes de ter um ataque cardíaco. Com a outra,
baixei a camisola quase à pressa.
— Já chega de toques — ordenei, nervosa.
O Nick olhou para mim de forma intensa e ao mesmo tempo divertida.
— Já o sentiste mexer? — perguntou, unicamente concentrado em mim.
— Não, mas daqui a pouco tempo começará a fazê-lo… até agora só senti
uma espécie de formigueiro, como se me explodissem pipocas na barriga, não
sei se me explico bem.
O Nick riu-se perante a minha explicação, e olhei para ele, inquieta. Havia
demasiada tensão dentro daquele carro, mais do que conseguia suportar.
— Há quanto tempo sabes, Noah? — perguntou, repentinamente sério.
Percebi que dessa vez era melhor ser sincera.
— Há mais de três semanas.
— Mais de três semanas é muito tempo… Chega e sobra para me ligares e
contares, não achas? — recriminou, aborrecido, olhando para a frente.
Observei-o a franzir o sobrolho.
— Estava zangada contigo… Para ser sincera, ainda estou.
O Nick voltou-se para mim com surpresa.
— Zangada porquê?
Olhei para ele com incredulidade.
— Porque isto é culpa tua — disse, apontando para a barriga. Continuava a
reviver o momento em que deixei que fizesse amor comigo sem proteção… mas
que idiota!
O Nicholas soltou uma risada incrédula.
— Acho que seria mais acertado dizer que é culpa nossa, sardas.
— Isso é um pormenor técnico — respondi, olhando para o mar.
O Nick pareceu divertido com a minha resposta.
Mesmo à nossa frente desenrolava-se um dos pores do sol mais bonitos que já
tinha visto. Acho que a natureza me quis dar aquele presente, pintar com cores
bonitas um quadro que ainda era demasiado cinzento para lhe conseguir
atribuir um nome.
Embora estivéssemos agora os dois a par do que se passava, não conseguia tirar
da cabeça a última conversa que tivera com o Nicholas, antes de ele voltar para
Nova Iorque.
Não sabia o que íamos fazer e também ainda não tinha a certeza de que papel
queria que o Nick tivesse em tudo isto.
— Estou cansada, devias levar-me para casa — pedi-lhe, sentindo-me de
repente muito triste.
O Nick voltou-se para mim e estendeu o braço até o pôr por atrás da minha
nuca. Os dedos acariciaram-me levemente antes de me obrigar a olhar para ele.
— Quero que venhas comigo — anunciou então, apanhando-me com as
defesas em baixo. — Quero que pegues nas tuas coisas e que te mudes hoje
mesmo para o meu apartamento.
— Não, Nicholas, estou na casa da Jenna, e daqui a quatro dias…
— Não vou discutir sobre isto — interrompeu-me. A seguir ligou o carro.
— O que estás a fazer? — perguntei, surpreendida.
— Vou levar-te comigo.
«Raios, já começa!»
— Mas não quero ir.
— O filho que tens dentro de ti é meu, e vou assegurar-me de que está bem.
— O filho que tenho dentro de mim é meu, e já me asseguro de que está
bem, mas obrigada pelo teu interesse — respondi, indignada.
— Tens de estar em repouso, não tens? — perguntou então, olhando
alternadamente para mim e para a estrada.
— Tenho, mas…
— Até o médico te dar outras recomendações, ficas comigo. Não há mais nada
a dizer.
Ia responder, mas sabia que tinha tudo a perder se o fizesse, porque não podia
fazer movimentos bruscos, como, por exemplo, dar-lhe uma bofetada. Limitei-
me a cruzar os braços e a cravar os olhos na estrada.
Tinha-se passado apenas um par de horas desde que soubera da existência do
Mini Eu e já se achava com o direito de pôr e dispor.
«Sim, Mini Eu, este é o idiota do teu pai.»
37
NOAH

Demorámos mais de uma hora a chegar ao antigo apartamento do ­Nicholas.


Fizemos o caminho de regresso da praia em silêncio e parámos em casa da Jenna
para ir buscar algumas das minhas coisas. Não falámos por eu querer ficar
calada, não, pelo contrário, foi ele quem ligou a música no carro e se remeteu a
um silêncio quase total.
Como estava muito irritada, fui com os olhos presos na estrada, embora tenha
de confessar que por vezes olhava de esguelha para o Nick, sem que ele
percebesse, não fosse apanhar-me a espiá-lo como uma desesperada que anseia
que o pai do seu filho diga qualquer coisa como «Estou felicíssimo» ou «Vai
correr tudo bem».
Não houve nada disto, o momento mágico que vivemos no carro desvaneceu-
se, ficou na praia; o entardecer aproximou-se e depois chegou a escuridão da
noite que parecia ter-se infiltrado no ambiente entre nós. Que raio se passava
com ele? Tudo bem, era uma notícia que não deixava ninguém indiferente, mas,
caramba, uma conversa de circunstância teria sido suficiente.
Quando parou no estacionamento, saí do carro sem sequer esperar por ele. Fui
direito ao elevador. Teoricamente, nem devia estar a caminhar, mas também não
lhe ia dizer isso; mais ainda, apercebi-me então de que o Nick não fazia ideia
dos problemas que a minha gravidez apresentava, e uma parte de mim temia ter
de lhe contar. A Jenna podia ligar-lhe a qualquer altura e pô-lo a par, mas,
agora que tínhamos saído juntos, a minha amiga parecia muito mais
descontraída e feliz, na verdade, parecia estar nas nuvens. Pobre ingénua,
acreditava que, pelo simples facto de lhe ter contado, nos íamos transformar
subitamente no casal feliz de antigamente…
Era ridículo, sim, mas não vou dizer que não tivesse pensado nisso também,
que não o tivesse desejado, pelo menos um pouco.
O Nicholas alcançou-me, e subimos juntos ao quarto andar. Ele trazia a
minha pequena mala de viagem na mão.
Assim que entrei, percebi que aquele lugar não era para mim… e muito
menos para o Mini Eu. O apartamento estava diferente, as nossas fotografias, os
quadros que escolhemos juntos, as almofadas coloridas… tudo tinha
desaparecido; mais ainda, até os móveis tinham sido substituídos por outros
caríssimos e elegantes, sem personalidade nenhuma e com ar de serem muito
desconfortáveis.

O pior é que sabia que nada do que estava naquele apartamento tinha sido
escolhido pelo Nick… Outra pessoa fizera aquelas mudanças, e não demorei
mais de um segundo até o seu nome inundar a minha cabeça.
Bolas, na verdade atingiu-me como um murro no estômago. A Sophia tinha
estado ali, o Nicholas convivera com ela naquele apartamento, da mesma forma
que o fizera comigo… Fui em silêncio até ao quarto, o mesmo em que passámos
os melhores momentos íntimos da nossa relação, tudo o que sabia, tudo o que
ele me ensinara, acontecera naquela cama, naqueles lençóis, naquele espaço.
Limpei a lágrima que me caiu pelo rosto quase com uma bofetada. O quarto
também estava mudado, tudo era diferente.
As imagens do Nick com ela, a beijá-la, a acariciá-la, a tocar-lhe e a fazer com
ela o mesmo que fizera comigo, sucederam-se no meu pensamento como se se
tratasse de uma projeção de imagens imaginárias.
O Nicholas pousou a minha mala em cima de uma banqueta e virou-se para
mim.
— Devias deitar-te na cama.
As suas palavras pareceram fazer-me despertar daquele inferno em que me
metera.
— Já falas comigo? — perguntei, tentando disfarçar a minha tristeza com
raiva.
Ele ficou surpreendido e olhou para mim com cautela.
— Desculpa-me se antes estive tão calado… precisava de pensar nisto tudo…
Compreende que não era exatamente algo que esperava que acontecesse.
— E achas que eu esperava? — respondi com incredulidade.
— Tu tiveste mais de três semanas para assimilar tudo — respondeu,
criticando-me por não lhe ter dito nada assim que soubera.
— Lamento se não fui à tua procura assim que descobri que tinha um bebé
dentro de mim, um bebé que não fiz de propósito nem quero ter!
Assim que proferi estas palavras, senti-me culpada e percebi que era mentira.
Claro que queria aquele bebé, agora mais do que nunca, já não havia volta a dar.
Eu e o Mini Eu estávamos ligados para sempre: aquela história de que o vínculo
maternal começa mesmo antes do nascimento é completamente verdade.
— E achas que eu quero?! — gritou-me então, levando a mão ao rosto num
gesto nervoso. Respirou fundo para se acalmar, embora não parecesse ter dado
grande resultado, e voltou a falar para mim num tom mais calmo: — Não
devíamos estar a discutir por causa disto, por favor, deita-te na cama, Noah.
As suas palavras continuavam a ecoar na minha cabeça, como se fossem
ampliadas por algum tipo de sistema cerebral que era incapaz de parar de as
ouvir.
O Nick não queria o bebé…
— Nesta cama? Queres que me deite na cama onde dormiste sabe Deus com
quantas mulheres? — disse num acesso de raiva e ciúmes. Não, nunca na vida
nos ia meter, a mim e ao Mini Eu, no meio daqueles lençóis, havia de morrer
primeiro.
O Nick não esperava aquela resposta, era evidente, e ficou constrangido, sem
saber muito bem o que dizer. Este silêncio só confirmava as minhas suspeitas.
Peguei numa almofada e saí com o passo pesado até me sentar no sofá da sala,
um sofá horroroso e tão desconfortável como imaginara assim que o vi. Sentei-
me com as pernas cruzadas à chinês e olhei em frente, para a enorme televisão
que parecia ter sido a única coisa escolhida pelo Nick.
Vi pelo canto do olho quando entrou na sala, se dirigiu ao minibar e se serviu
de um copo. Ficou a olhar para o líquido cor de âmbar durante uns segundos,
até que finalmente o pousou na mesa e veio ter comigo. Estendeu-me a mão.
— Vamos — disse com calma. — Vou reservar um quarto num hotel.
Isto apanhou-me completamente desprevenida. Arregalei os olhos com
surpresa, e, ao ver que estava a falar a sério, uma parte da minha fúria
desapareceu.
— A sério?
— Não quero que te sintas desconfortável aqui.
Assenti, levantei-me do sofá e fiquei parada à frente dele. Estava a morrer por
um abraço seu, por mais magoada que estivesse. Toda a situação era do mais
estranho que podia haver… Desde quando o Nick cedia a um dos meus
arrebatamentos? O normal era que nos tivéssemos matado aos gritos, mas ali
estávamos, a rondar-nos mutuamente com precaução, tentando esconder todas
as coisas que ainda não tínhamos dito.
Enquanto íamos no carro, o Nick ligou para o Hotel Mondrian, em West
Hollywood e, para minha surpresa, reservou uma suite para os dois.
— Não precisas de gastar um dinheirão nisto, Nicholas, podíamos ir para o
meu apartamento, ou podias deixar-me lá, isto não foi de todo uma boa ideia.
Ele nem sequer desviou os olhos da estrada.
— Preciso de um lugar onde possa trabalhar e quero ter-te por perto.
Reservar um quarto não é um problema, não te preocupes com isso.
Suspirei enquanto notava o cansaço no meu corpo. Só queria meter-me na
cama. Tudo o que acontecera naquele dia deixara-me exausta.
Adormeci pelo caminho, e o Nick acordou-me com suavidade. Ao abrir os
olhos, vi que já tínhamos chegado e que um empregado esperava pacientemente
que saíssemos do carro.
Saímos, e não pude deixar de reparar na minha roupa — leggings, uma
camisola larga e sapatilhas —, comparando-me com o aspeto elegante do
Nicholas, que ia de camisa, calças de ganga e com uns mocassins reluzentes.
Sentei-me num dos sofás da receção enquanto ele se encarregava do registo.
Estava um pouco preocupada, porque fizera tudo menos repousar; na casa da
Jenna, era o Lion quem me levava para um lado e para o outro, e agora… se
pedisse ao Nick que me ajudasse, ia ter de lhe explicar tintim por tintim tudo o
que estava a acontecer naquela gravidez; uma parte de mim não queria contar-
lhe que o meu útero era incrivelmente deficiente e muito menos todas as coisas
que fizera mal nos primeiros meses… Agira como uma irresponsável… Só de
me lembrar de todo o álcool que consumira, ficava com náuseas e não era por
causa da gravidez, mas por minha causa, porque era incompetente até para isto,
bolas. Ainda me custava acreditar que não tivesse intuído que estava grávida…
Para minha sorte e do Mini Eu, os elevadores não ficavam longe e, quando o
Nick me pegou pela mão para me levar na sua direção, agradeci-lhe do fundo
do coração. O empregado acompanhou-nos até ao quarto, que ficava no último
piso, e deixou ali as nossas malas. Quando entrámos, arregalei os olhos com
surpresa. O Nick deu uma gorjeta ao empregado, que se foi embora, e a seguir
ficámos sozinhos. Meu Deus, aquilo não era um quarto, era um autêntico
apartamento. Dei uns passos em frente enquanto admirava o chão de madeira
reluzente, a cama branca, enorme, com a cabeceira preta, a grande mesa
quadrada com cadeiras transparentes, o sofá imenso, a secretária e a vista
incrível para a cidade.
Tentei não me sentir assoberbada nem sequer pensar no dinheiro que aquela
suite devia custar e limitei-me a ir para a cama, sobre a qual o Nick abrira a
minha mala. Tirei o pijama. A seguir fui para a casa de banho. Tomei um duche
que me ajudou a relaxar… não sabia o que ia acontecer entre nós, havia uma
vibração estranha no ar.
Quando saí da casa de banho — já com o pijama de calções e camisola larga
— o Nick estava encostado à mesa, à minha espera. Parecia perdido nos seus
pensamentos. Ignorei como ficava nervosa só por estar a sós com ele num
quarto, depois de tanto tempo, e sentei-me na cama, com as costas encostadas à
cabeceira, à espera de que um dos dois quebrasse o silêncio ou dissesse alguma
coisa sobre o gigantesco elefante que havia na sala.
Lembrei-me da última vez que estivéramos sozinhos numa cama… Acariciei a
barriga com cuidado e sustive a respiração. Sim, Mini Eu… tu estavas prestes a
entrar em cena.
— Estás a pensar em quê? — perguntou-me, olhando para mim tão
fixamente que o meu coração acelerou.
— Em nada… bem, estava a pensar na última vez que… sabes, quando eu e
tu…
O Nick cerrou os maxilares com força: acho que o que para mim era uma boa
recordação, a ele enfurecia-o.
— Fui um idiota… e um irresponsável.
Olhei para a sua expressão plena de amargura e desejei não ter dito nada.
— O que aconteceu naquela noite nunca devia ter acontecido — sentenciei,
para disfarçar como a sua atitude me deixava triste. — E a culpa não foi só tua.
O Nicholas franziu o sobrolho e fitou o meu rosto.
— O que aconteceu, Noah? — perguntou e quando ouvi o seu tom de voz
levantei os olhos e pousei-os sobre os seus, tão frios. — Mentiste-me?
— O quê?
— Perguntei-te se ainda tomavas a pílula, e tu disseste que sim, por isso
explica-me como raio isto pôde acontecer.
Ele perguntou-me sobre a pílula? Naquela noite estava tão absorta no que
fazíamos que não me lembrava de metade das coisas que dissemos.
Foi como se voltasse a partir-me o coração.
— Achas que fiz isto de propósito?
O Nicholas passou a mão pelo rosto, levantou-se e afastou-se de mim.
— Não sei o que pensar… Quando me disseste que estavas grávida, nem
sequer me passou pela cabeça que pudesse ser meu. Só percebi que era quando
me mandaste aquela segunda mensagem tão esclarecedora — disse, abrindo o
minibar e pegando numa garrafa. Sustive a respiração, sem dizer nada, queria
ouvir o que ele tinha para me dizer. — Fomos para a cama uma vez, raios! Uma
vez em quanto tempo? Um ano e meio, e acontece isto?!
— Preferias que fosse de outro homem? — Nem sequer reconheci a minha
própria voz. De repente só queria fugir dali.
— Sabes perfeitamente que não.
Soltei o ar que estava a conter.
— És um grande cabrão por insinuares sequer que tentei enganar-te. Como se
eu pudesse ter algum interesse em engravidar aos dezanove anos! Sabes que
mais? Não precisas de fazer parte disto. Sou perfeitamente capaz de ir com a
gravidez para a frente sozinha. — Não era verdade, mas não ia reconhecê-lo
agora.
O Nick retribuiu-me o olhar como se o tivesse insultado.
— É isso que queres? — perguntou então e vi que a veia do seu pescoço
começava a latejar com mais força do que era costume. O maxilar ficou tenso, e
o olhar que me dirigiu deixou-me petrificada no meu lugar.
— Não tem de ser uma responsabilidade tua. Muitas mães são capazes de
criar os filhos sozinhas. Neste momento já tens demasiadas coisas na tua vida e
explicaste que não querias voltar a ver-me.
O Nick abanou a cabeça e soltou uma gargalhada amarga de que não gostei
nem um pouco. Claro que não sentia nada disto que estava a dizer, mas ele
deixara bem claro que não queria o bebé, que se arrependia do que acontecera, e
eu não ia ser aquela que o caçara, como milhares de mulheres faziam, só porque
ia ter um filho; não, nem pensar, seria muito difícil, sentia-me assoberbada só
de pensar no assunto, mas jamais o poria entre a espada e a parede.
— Tu sempre viveste a tua vida a querer resolver as coisas sozinha, nunca
deixas que ninguém te ajude ou te diga que estás enganada. E sabes uma coisa,
amor? Até dá pena. — Dito em voz alta, este «amor» pareceu-me o pior
insulto. — Mas vou dizer-te uma coisa, essa criança que tens dentro de ti é tão
tua como minha, por isso tem muito cuidado com o que dizes.
Demorei alguns segundos a mais a responder.
— Estás a ameaçar-me?
— Vou fazer parte da vida dessa criança, e ela vai ter o meu nome.
Por que razão aquilo que queria ter ouvido desde o primeiro instante agora
me fazia sentir tão encurralada?
— A criança terá aquilo que for melhor para ela, e quem vai tomar essa
decisão sou eu.
— Bem, parece-me que nenhum juiz negará que quem está mais bem
equipado para tomar conta do nosso filho sou eu, não achas? Tu não tens nada, a
não ser que vás pedir à tua mãe.
A emoção de o ouvir dizer «nosso filho» esfumou-se num instante. Arregalei
os olhos sem poder acreditar que a palavra «juiz» se tivesse metido no meio da
conversa.
— O que estás a querer dizer-me? — perguntei com um nó na garganta.
O Nicholas parecia fora de si, e a cada segundo que passava se transformava
mais num Nick que eu não queria enfrentar.
— Estou a dizer-te que não vou deixar nenhuma ponta solta. Tu e eu não
vamos voltar a estar juntos, por isso vamos ter de deixar tudo muito bem
resolvido antes de dares à luz. O melhor seria termos a guarda partilhada…
Agora, se me dás licença, tenho coisas importantes para fazer.
Pegou no casaco e nas chaves sem sequer olhar para mim e saiu da suite,
batendo com a porta.
O medo e as lágrimas chegaram depois, acompanhados de uma enorme
sensação de impotência. Ele estava certo, eu não tinha nada, a não ser aquilo que
pedisse, mas que Deus não permitisse que o Nicholas Leister voltasse a dizer
algo de semelhante. Se a sua intenção era enfrentar-me, ia estar à espera dele,
mais preparada do que nunca.
38
NICK

Peguei no carro e saí a pisar o acelerador a fundo. Precisava de estar sozinho e de


pensar. A frase «Estou grávida» ainda ecoava na minha cabeça; tentara levar
aquilo com calma, palavra de honra que sim, mas não só tudo me parecia uma
piada de mau gosto como ainda por cima acabara de comprovar que a Noah não
queria que fizesse parte da sua vida e da do bebé. Por isso demorara mais de três
malditas semanas a contar-me e, tinha a certeza, seria capaz de pôr a mão no
fogo por isto, que só acabou por me contar porque a Jenna conseguiu convencê-
la.
«Estou grávida.»
Acho que nunca na minha vida duas palavras me afetaram tanto. Duas
palavras simples, e quase me espetei contra o carro que ia à minha frente. Por
sorte, consegui travar a tempo!… O telemóvel escorregou-me das mãos, e tive
de sair da estrada para o apanhar e voltar a lê-las.
O mundo caiu-me em cima. Foi como se me tivessem tirado todo o ar dos
pulmões, o sangue das veias e os pensamentos coerentes do cérebro; a única
coisa concreta em que consegui pensar foi «Vou matá-lo». Ainda bem que a
segunda mensagem chegou com tempo de sobra para evitar que cometesse um
homicídio… Só a Noah seria capaz de escrever mensagens como «Estou
grávida» e «Claro que o bebé é teu» e ficar-se por aqui.
Entrei num bar da cidade, um dos muitos onde os estudantes com idade para
beber costumam ir para se divertirem. Sabia que beber não me ajudaria a aclarar
as ideias, mas, caramba!, ou bebia alguma coisa forte ou voltava àquele quarto
para deixar bem claro àquela insensata que tanto o bebé como ela eram meus,
que ia ser eu a cuidar de ambos.
O ódio que senti inicialmente em relação à Noah amainou assim que pousei a
mão sobre a sua barriga e me apercebi de que no seu interior crescia o meu
próprio filho, o nosso filho. Nunca pensei que algo semelhante pudesse chegar a
acontecer… Além disso, por mais que tivesse tentado não pensar no assunto, as
dificuldades que a Noah poderia enfrentar para poder conceber eram como um
manto negro que pairava sobre as nossas cabeças desde que soubemos que
estávamos apaixonados.
Bebi o uísque escocês de um trago e pedi outro.
Tinha-lhe dito qualquer coisa sobre um juiz?
Passei as mãos pela cara, a música era absolutamente insuportável, e havia
demasiadas pessoas a dançar à minha volta. O balcão ficava no meio do bar, e era
um inferno estar ali. Levei o copo aos lábios e cerrei os maxilares com força para
suportar o ardor da bebida.
A Noah ia ser mãe… aos dezanove anos.
Nesse momento odiei-me, odiei ter-me enganado tanto, tê-la obrigado a fazer
algo que, por mais que ambos o desejássemos, ela deixra bem claro que não
queria fazer.
Tinha-a forçado?
Não, raios, não a forcei, fiz amor com ela, tratei-a bem, abracei-a durante toda
a noite e quis acordar ao seu lado. Quando abri os olhos na manhã seguinte e vi
que não estava ali, doeu-me a alma; não importava o que acontecesse, ela
acabava sempre por fugir.
A minha cabeça começou a mostrar-me o tipo de vida que teríamos tido se na
maldita noite da festa do meu pai eu tivesse simplesmente pegado no carro e
levado a Noah para Nova Iorque comigo, como queríamos fazer, como lhe
prometi que faríamos. Ninguém teria cometido estes erros, ninguém teria
encostado um dedo na minha namorada, e eu agora estaria com ela e não num
bar piroso a tentar habituar-me à ideia de que ia ser pai, pai, caraças, ia ser pai
de um bebé. A minha vida ia dar uma volta de cento e oitenta graus, e tinha
apenas quatro meses para me habituar à ideia e me preparar.
Que diabo ia fazer com a empresa? Que ia fazer com a Noah?
Quando já ia no quinto copo e a minha mente começava a nublar-se, os olhos
fixaram-se em alguma coisa, ou melhor dizendo, em alguém que estava sentado
ao balcão, a poucos metros de mim. Soube quem era pela forma como o meu
corpo reagiu quase de imediato: todos os meus músculos se contraíram.
Levantei-me do banco com cuidado e fui até à esquina do bar. Agarrei-o pela T-
shirt e apanhei-o completamente desprevenido.
— O que estás a fazer aqui, monte de esterco? — perguntei, encostando a
testa à sua e entrando num estado em que só me vira uma vez, um ano e meio
antes, na pior noite da minha vida.
Michael O’Neil empurrou-me com força e depois olhou-me com uma
determinação férrea.
— Paguei-te para te ires embora da minha maldita cidade! — gritei,
lançando-me sobre ele.
Caímos os dois no chão, fazendo que as pessoas se afastassem e chamassem os
seguranças. Caraças! Naquela noite ia ter de largar muito dinheiro para não
acabar metido em problemas de verdade. Afastando este pensamento da cabeça,
assentei-lhe outro murro nas costelas, e ele aproveitou para me dar outro nos
queixos. Senti o sangue na boca e cuspi para o chão ainda com mais vontade de
o matar e de acabar com aquilo de uma vez por todas.
— Decidi que não quero saber do acordo que fizemos — disse ele, usando os
pés como alavanca e assumindo o controlo por instantes; o punho dele chocou
contra a minha face esquerda, e senti a pele a rasgar. — E, já agora… a Noah
está mais bonita do que nunca.
O sangue acumulou-se na minha cabeça, comecei a ver tudo vermelho, até vi
manchas à minha volta, e a última coisa de que me lembro é que havia três
tipos a tentar tirar-me de cima daquele filho da mãe. Levaram-nos por portas
diferentes, a mim, por ser quem era, deixaram-me recuperar numa das salas
privadas e até me deram um telemóvel para ligar a alguém que me viesse
buscar. Quando o Steve apareceu na porta das traseiras, percebi que algo se
passava.
— Há vários jornalistas lá fora. Alguém deve ter dado com a língua nos
dentes — anunciou, enquanto eu me amaldiçoava interiormente. Era o que
mais me faltava.
E, de facto, ao sair, por mais que tentasse aparentar que não tinha acontecido
nada e ocultar os ferimentos do rosto, tiraram-me imensas fotografias, até que
consegui esconder-me no banco de trás do Mercedes do meu pai. O Steve ficou
calado, embora tenha parecido surpreendido quando lhe pedi que me levasse ao
Mondrian. Nem queria pensar como a imprensa iria reagir quando se soubesse
da gravidez da Noah e muito menos como reagiria a nossa família… ia ser um
escândalo, sobretudo porque quase toda a gente pensava que eu e ela éramos só
irmãos. A Sophia ia matar-me, o escândalo atingiria também a sua família e
quem sabe se prejudicaria a carreira política do pai.
Desci do carro a tremer e pedi ao Steve que fosse buscar o meu carro ao bar.
Quando entrei na suite, o silêncio sepulcral deixou-me com os pelos arrepiados.
O quarto estava escuro, e isso só podia significar uma coisa… acendi a luz e vi
que se encontrava completamente vazia. Aproximei-me da cama e peguei no
bilhete que tinha sobre a almofada.
«Merda.»
39
NOAH

Assim que o Nick saiu da suite, pedi um táxi, e duas horas depois estava rodeada
de caixas por abrir, metida na cama, a comer uma enorme tigela de cereais que
encontrei depois de muito procurar. Não tinha nada no frigorífico, nem leite,
mas pelo menos estava sozinha depois de tantas semanas a viver com a Jenna.
Não sabia onde estava com a cabeça quando aceitara ir com o ­Nicholas, como
se as coisas pudessem vir a ser como antes. O que acontecera entre nós não
podia desaparecer sem mais nem menos, era indiferente que estivesse grávida ou
que ele fosse o pai; as coisas que insinuara naquele quarto de hotel iam
permanecer na minha memória durante muito mais tempo do que qualquer
outra coisa que me tivesse dito no passado.
Como podia ele sequer acreditar que eu seria reles ao ponto de tentar prendê-
lo com a questão do bebé? Como se atrevera a insinuar que assim que ele
nascesse mo tirava?
Nem o queria ver à minha frente. Se as coisas antes já estavam mal, agora
tinham atingido um nível ainda pior. Tentei acalmar-me, não queria stressar o
Mini Eu, e, embora me tenha custado muito, acabei por conseguir adormecer,
pelo menos até às cinco da manhã, quando o meu telemóvel começou a vibrar
furiosamente.
Não queria falar com ele, raios! Só agora se apercebera de que me tinha vindo
embora? O que diabo esteve a fazer até esta hora?
Era melhor nem perguntar.
Enviei-lhe uma mensagem simples.
Deixa-me em paz.

E ele deixou… durante algum tempo.


*
Na manhã seguinte, apareceu no meu apartamento. Presumo que a Jenna não
lhe tivesse querido dar a minha morada até já ser uma hora razoável, mas
gostava que me tivesse perguntado primeiro se lha podia dar ou não. Estava
farta que ela e o Lion se metessem onde não eram chamados.
Quando abri a porta, encontrei-o com dois copos de papel e um saco do
Starbucks. Vinha de fato e tinha um olho negro, uma ferida na maçã do rosto
esquerda e o lábio rachado. A combinação era ridícula. Parecia um rufia a fazer-
se passar por empresário.
— Posso entrar?
Cruzei os braços. Não, não queria que entrasse, mas tínhamos de conversar.
Virei-lhe as costas e fui para a cama. Detestava ter de o enfrentar em
desvantagem, ter de me enfiar na cama enquanto ele estava ali, sentia-me
impotente, como se ele fosse um adulto e eu uma menina.
— Vejo que continuas a meter-te em brigas… acho que não será um ponto
favorável para ti quando formos a tribunal lutar pela guarda da criança.
— Já chega, Noah — interrompeu-me, enquanto pousava as bebidas e o saco
na bancada da minha pequena cozinha. — Sabes bem que não estava a falar a
sério.
— Pareceste-me bastante decidido quando deixaste bem claro que eu não vou
ser capaz de cuidar deste bebé.
O Nicholas passou a mão pelo rosto e a seguir observou a casa. Senti vergonha
por estar tudo tão desarrumado. O meu sótão era o espaço menos adequado para
criar um filho, e tinha a certeza de que era exatamente isso que o Nicholas
estava a pensar naquele instante.
— Mesmo que te faltassem as duas mãos, serias capaz de cuidar dessa criança,
Noah — afirmou ele, pegando no copo de papel e trazendo-o até à minha cama.
— É chocolate quente.
Aceitei a bebida, contrariada, mas estava a morrer de fome.
— Não quero voltar a ouvir-te dizer que me vais tirar o bebé, estás a
entender? — disse-lhe, mais séria do que nunca.
— Jamais o faria… Caramba, por quem me tomas?
Abanei a cabeça, nem conseguia olhar para ele, não queria tê-lo ali à minha
frente. Voltara a magoar-me, enfiara os dedos na chaga e estava a atingir-me
onde mais me doía, naquilo que mais me assustava, que era não poder levar o
Mini Eu adiante.
Sentou-se ao meu lado na cama.
— Olha para mim, Noah — pediu-me com a voz firme.
Recusei-me a obedecer, principalmente porque sentia que, se o fizesse, ia
desatar a chorar como uma Madalena arrependida, e a última coisa que queria
naquele momento era mostrar-me fragilizada.
Pegou-me no queixo e obrigou-me a olhar para os seus olhos.
— Desculpa-me tudo o que te disse ontem à noite — afirmou, enquanto me
acariciava o queixo com o dedo. — Vou estar sempre aqui para ti.
— Não é o que queres — respondi com a voz trémula.
Eu tinha desejado com toda a minha alma voltar a estar com ele, formar uma
família, começar do zero, mas ele deixara muito claro que isso era impossível.
Agora estava grávida, e, sim, as coisas tinham mudado. Agora tinha de olhar
pelo Mini Eu, não por mim, e isso implicava voltar a entrar na vida de Nicholas
Leister, por mais que ele tivesse tentado deixar-me fora dela.
Ia ter de engolir os meus sentimentos, fingir que tudo podia voltar a ser como
antes… era o que me restava fazer. Iria protagonizar o maior filme da história. E
o Nick também sabia disso.
— Volta para o hotel comigo — pediu-me, limpando uma lágrima do meu
rosto.
Daria o que fosse preciso para não ter de estar de repouso, para poder ser
independente e não precisar de ninguém, mas não era esse o caso, precisava de
descansar, a não ser que o médico me dissesse que o bebé já não corria perigo.
Por isso aceitei, voltei para o hotel com ele. Quando chegámos, o Nicholas
ajudou-me a instalar-me novamente e desculpou-se dizendo que tinha algumas
coisas para tratar no escritório da LRB. Achei-o estranho, estávamos os dois
estranhos, não parecíamos nós mesmos, por isso fiquei contente que se fosse
embora. Passei o resto do dia, até à noite, metida na cama a ler O Monte dos
Vendavais. Nunca tinha gostado muito daquele romance — as personagens
viviam todas demasiado atormentadas, e a trama era excessivamente dramática
para o meu gosto —, mas algo me tinha feito querer lê-lo novamente. Quando
acabei, pousei o livro na mesa de cabeceira e tentei dormir. Não tinha tido
notícias do Nicholas e, embora me magoasse o facto de não me ter ligado o dia
todo para saber como estava, também entendia que ele ainda não fazia ideia do
que se passava com o Mini Eu. Acontecera tudo tão depressa que nem sequer
me perguntara por que razão precisava de estar em repouso. Só sabia da gravidez
havia um dia e meio, mas o facto de nos termos sentado para conversar de
verdade era indicador de como a notícia o afetara. Fechei os olhos e deixei que o
sono se apoderasse de mim.
40
NICK

Tive de ir ver a Sophia. Desde a noite da festa do Lion que não parava de me
ligar; estava furiosa porque, apesar de estar em Los Angeles, não tínhamos
passado nem três horas juntos.
A questão Sophia era algo que tinha de resolver. Na verdade, ao verificar o
pouco que me importava acabar com esta relação, percebi que ela jamais teria
funcionado: eu nunca poderia ser aquilo de que a Sophia precisava. Só a Noah
continuava a ser capaz de pôr o meu mundo de pernas para o ar, mas,
caramba!… Como não poria se bastava respirar para eu ficar louco?
Era tão estranho tê-la outra vez comigo, achava tão inusitado não andarmos a
matar-nos aos gritos, não ter de a odiar. Ao longo do último ano e meio, gastara
todas as minhas energias a odiá-la com toda a força que tinha, só para poder
esconder que a amava, só para conseguir acalmar a vontade terrível que tinha de
voltar a correr para o seu lado, para lhe implorar que voltasse a estar comigo.
Tinha precisado de recorrer a muito autocontrolo para a deixar, para me ir
embora e me convencer de que podia refazer a vida com outra pessoa, mas tudo
não passava de uma mentira do tamanho de uma casa. Todos estes sentimentos
ficaram subitamente em pausa. O ódio parecia já não fazer sentido, e o amor
debatia-se para sair para a luz do dia. Uma parte cada vez maior de mim morria
por estar com ela, por a abraçar e nunca mais me mexer, com a Noah nos meus
braços. Senti um alívio… um alívio infinito. Odiar a mulher que amava tinha
sido a coisa mais difícil que fizera na vida. E agora algo me dizia que devia parar
de lutar, de nadar contra a corrente, que o meu caminho sempre estivera muito
claro, o meu destino era aquela miúda.
Depois de lhe dizer que o meu apartamento tinha tido uma inundação, a
Sophia também estava num hotel. Tive de inventar alguma coisa para ter tempo
e pôr as coisas em ordem. Estacionei e preparei-me para enfrentar alguém que
não queria magoar. Abriu-me a porta do quarto com um vestido bonito, cor de
ameixa. O seu rosto mostrava claramente que sabia que alguma coisa não estava
bem. Um «precisamos de falar» nunca augura nada de bom.
Entrei e não tirei o casaco, nem lhe dei um beijo nos lábios, como quase me
habituara a fazer. A Sophia franziu o sobrolho e convidou-me a entrar na sala da
suite. Uma vez ali, aproximei-me do minibar e servi-me de um copo. Ela
sentou-se no sofá de pele branca e observou-me enquanto eu evitava o seu olhar
e bebia um longo gole de uísque.
— Vais deixar-me, não é verdade? — perguntou, interrompendo o silêncio
repentino que se instalara entre nós.
Levantei os olhos e pousei-os no seu rosto.
— Acho que nunca cheguei a ter-te, Soph.
Ela abanou a cabeça e desviou os olhos para a mesa em frente.
— Achei… achei que a nossa relação estava a avançar, Nicholas. O que te
disse? O que te fiz para agora mudares de opinião? Porque ainda há uma
semana estavas a dizer que querias viver comigo.
Raios, sim, tinha-lhe pedido para vivermos juntos, estava farto de me sentir
mal por causa da Noah, cansado de acordar sozinho durante a noite, a pensar, a
questionar-me se tinha feito o mais correto em deixá-la partir…
— Eu sei… e lamento muito, a sério que sim. Não fiz nada disto para te
magoar, Sophia, mas não posso continuar a negar aquilo que sinto pela Noah.
Se não estiver com ela, prefiro não estar com mais ninguém. Disse-te que o
nosso envolvimento não tinha compromisso, e tu aceitaste, depois as coisas
foram mudando, e não digo que a culpa tenha sido tua, eu também me deixei
levar porque era…
— Fácil? — interrompeu-me ela.
Fiquei calado a olhar para ela. Sim, acertara em cheio. Estar com a Sophia era
fácil, agradável, correto, mas não tinha a menor paixão, magia ou aquele desejo
irracional de a ter, de a possuir, de a fazer minha… Só conseguira sentir isso por
uma pessoa.
— Prefiro acabar isto agora e não te despedaçar o coração mais à frente.
Ela sorriu sem uma centelha de alegria nos olhos.
— O que te faz pensar que não o despedaçaste já?
Não esperou que lhe respondesse, levantou-se do sofá, virou-me as costas e
entrou no quarto. Pensei em ir atrás dela, em pedir-lhe desculpa, em dar-lhe
mais motivos pelos quais aquilo não ia funcionar entre nós, mas a Sophia era
mesmo assim. Ela não ia insistir, não ia suplicar… se me amava, a sua forma de
amar não era a melhor, e um dia acabaria por descobrir.
Eu não era o homem da sua vida.

Quando entrei na suite, a fragância do champô da Noah invadiu-me os


sentidos. O espaço estava quase todo às escuras, só havia um candeeiro de pé
aceso num dos cantos. A Noah estava deitada, com a cabeça na almofada e os
cabelos espalhados. Senti que ficava duro por baixo das calças só de olhar para
ela… bolas, era tão bonita!
Sabia que o melhor era ir embora ou pelo menos esperar que o álcool que me
corria nas veias por causa dos copos que bebera num bar depois de ter falado
com a Sophia desaparecesse do meu corpo, mas de repente só conseguia pensar
numa coisa. Enquanto caminhava até aos pés da cama, despi a camisa. Os meus
olhos detiveram-se na curva do traseiro dela, nas pernas compridas que se
agarravam a uma almofada, no rosto corado. Sentei-me na cama e observei-a
demoradamente. Há muito tempo que não o fazia, e senti uma paz interior no
centro da minha alma. Ver a Noah a dormir sempre fora um verdadeiro
espetáculo, mas naquele momento só queria que ela abrisse os olhos… Maldita,
nem sequer se apercebia de que era o centro do meu mundo, queria que voltasse
a olhar para mim como antes.
Olhei para o livro que ela estava a ler e que deixara sobre a mesa de cabeceira.
Abri-o e comecei na página em que ela tinha ficado.
Um parágrafo chamou-me a atenção e continuei a ler:
…nem a infelicidade, nem o envelhecimento, nem a morte, nem nada que Deus ou o Diabo
pudessem ter reservado seria capaz de nos separar; e tu fizeste-o por vontade própria. Não
fui eu quem te destruiu o coração; fizeste-o a ti mesmo, e ao fazê-lo destruíste o meu
também. Para mim é pior se for forte. Que necessidade tenho de viver? Que vida será a
minha quando…? Ai! Meu Deus! Gostavas de viver se a tua alma já estivesse na sepultura?

Cerrei os maxilares com força. A frase seguinte estava sublinhada a lápis.


Tu também me abandonaste, mas não te recrimino por isso. Perdoo-te. Perdoa-me tu
também!

Fechei o livro e contei até dez.


41
NOAH

O meu sonho era inquieto, estava em trabalho de parto, e um monte de


médicos gritava-me que tinham surgido complicações e que o bebé estava em
risco. Fazia força e voltava a fazer porque achava que era o que devia ser feito.
Os meus olhos procuravam ao meu redor pela única pessoa que podia fazer
desaparecer os meus medos mais horríveis.
— Não consigo fazer isto sozinha… por favor… o Nick… Preciso dele, por favor…
— O senhor Leister disse que não vinha… insistiu que não queria este bebé, nem a ti
tão-pouco.
Reparei que chorava, não apenas pela dor, mas porque estava muito sozinha.
O Mini Eu estava prestes a sair, mas, quando o fez, o choro agudo de um recém-
nascido não ecoou na sala de partos. O que se ouviu foi o mais absoluto silêncio.
Alguém sem rosto aproximou-se de mim e entregou-me um vulto embrulhado
em mantas.
O bebé não se mexia.
— Lamento… nasceu morto.
Abri os olhos e levantei-me na cama.
Tinha tido um pesadelo… percebi que as lágrimas me caíam pelo rosto e o
coração batia a mil à hora. Então, os meus olhos pousaram na pessoa que estava
à minha frente. O Nicholas tinha adormecido sentado no sofá. Nem hesitei.
Afastei os lençóis, saí da cama e fui ter com ele. Quando me sentei no seu
regaço, levantando-lhe um braço para que pudesse abraçar-me, ele abriu os
olhos, sobressaltado.
— Noah… — disse, inicialmente aturdido, mas abraçando-me com força um
segundo depois, de forma quase automática.
Enterrei o rosto no pescoço dele e comecei a tremer como varas verdes.
— O que aconteceu? Estás bem? O bebé está bem?…
Abanei a cabeça sentindo um nó na garganta que me impedia de emitir
qualquer som.
O Nick segurou o meu queixo entre os dedos e procurou os meus olhos com
os seus.
— Estás a chorar porquê? — perguntou, assustado.
Fechei os olhos quando os seus dedos me acariciaram o rosto, levando as
minhas lágrimas consigo.
— Tive um pesadelo…
Ele pareceu descontrair-se um pouco, e os seus braços rodearam-me com força,
apertando-me contra si.
— Queres contar-me? Às vezes, ajuda…
Esta situação era muito estranha. Durante quase todo o nosso namoro, nunca
lhe contara que, quando estava com ele, me custava muito menos conciliar o
sono; ele sempre me protegera dos pesadelos e nem sequer sabia que o fazia,
com ele dormia sempre sem problemas.
— Estava em trabalho de parto… — expliquei com a voz muito baixa —, e
tu não estavas lá.
O Nick cerrou os maxilares com força, mas esperou que eu continuasse a falar.
— E eu fazia força, fazia tudo o que os médicos me mandavam… mas no fim
o Mini Eu nasceu morto, e eu… eu…
O Nick abraçou-me, e deixei-me engolir pelos seus grandes braços, com a
imagem do meu bebé morto colada à minha cabeça.
— Isso não vai acontecer, Noah — assegurou ele, acariciando-me o cabelo
com os dedos compridos.
— Como sabes? — perguntei, apoiando a cabeça no ombro dele e fechando os
olhos.
O Nick afastou-me para que olhasse para ele.
— Para começar, porque não há nada nem ninguém capaz de me impedir de
estar contigo quando estiveres em trabalho de parto.
Olhei-o fixamente durante alguns segundos.
— Prometes? — Não consegui evitar perguntar.
— Vou segurar na tua mão desde que comece até ao momento em que acabe,
tens a minha palavra.
Apesar de nunca ter esperado que fizesse outra coisa, senti um alívio imenso
percorrer todo o meu corpo. A mão dele saiu então do meu cabelo e pousou
sobre o meu ventre.
— Não se devia notar mais? — perguntou, franzindo o sobrolho.
— Há de crescer… — respondi, sustendo a respiração quando a mão dele
À
entrou por baixo da minha T-shirt. — Às vezes acho que estava só à espera de
que soubesses para se deixar ver…
— Ainda me custa acreditar, sabes? — confessou, sem desviar os olhos dos
meus.
Tudo aquilo era demasiado assoberbante, o Mini Eu, ele, nós… ainda não me
conseguira habituar a tudo aquilo. Eram demasiadas mudanças, e estavam a
acontecer quase todas ao mesmo tempo.
— Tenho medo — disse, desejando que o tempo parasse de andar. Queria
voltar ao princípio, quando éramos só os dois e os problemas ainda não tinham
começado a fazer-nos mal.
— É normal que tenhas… eu estou aterrorizado — afirmou, olhando em
frente. — Mas vai correr tudo bem, vais ver.
— E se não correr? — perguntei entre sussurros, temendo expressar os meus
medos em voz alta. — Isto nem devia ter acontecido, eu não devia ser mãe… o
meu corpo…
— O teu corpo é perfeito — disse ele sem a menor hesitação.
— Nick… o bebé… estive quase a perdê-lo — admiti, com medo de o olhar
diretamente nos olhos.
— Estás a falar de quê?
Tentei acalmar-me para conseguir explicar-lhe.
— Lembras-te da noite da festa da inauguração?… Quando tiveste de me
levar a casa?
O Nick não demorou mais de dois segundos a recordar, e tudo nele ficou
alerta. Estávamos tão próximos que tive plena noção de como a veia do seu
pescoço começava a pulsar ameaçadoramente. Era evidente que se lembrava de
como estava embriagada.
— Acho que foi nesse dia que tive a primeira ameaça de aborto… pensei
simplesmente que me tinha vindo o período, mas não…
— Não te sintas culpada por uma coisa que, na altura, não sabias —
aconselhou.
— Eu fiz-lhe mal… e agora tive de ficar de cama durante duas semanas; nem
sequer sei o que o médico vai dizer na consulta de depois de amanhã.
— É por isso que tens de estar em repouso?…
— Tenho um hematoma no útero e até ele desaparecer não vou poder fazer
praticamente nada. O médico disse-me que é normal na primeira gravidez,
embora, com o avançar da gestação, se torne mais perigoso não só para o bebé
mas também para mim.
O Nick retesou-se por baixo de mim.
— Repete essa parte de estares em perigo — pediu-me, olhando fixamente
para mim, com o medo tão presente nas pupilas que até eu tive receio.
— Só no caso de o perder, mas isso não vai acontecer — disse com firmeza.
O Nick parecia ter ficado sem palavras, como se de repente o aterrorizasse a
possibilidade real de perder o bebé e a mim. Levantou-se do sofá comigo nos
braços e deixou-me na cama. Começou a andar de um lado para o outro do
quarto, com a cabeça a milhas dali. Quando se aproximou novamente de mim,
o seu rosto estava desfigurado pelo medo.
— Lamento tanto, Noah… — desculpou-se, segurando-me o rosto entre as
mãos. — Isto não devia ter acontecido… Se te acontecer alguma coisa…
Ia dizer-lhe que agora o importante era o bebé e não eu, eu estava bem… mas
os seus lábios pousaram-se sobre os meus, e o mundo parou. A boca dele parecia
querer encontrar consolo na minha. Demorei um par de segundos a deixá-lo
entrar, por estar tão aturdida ao sentir que me beijava apaixonadamente depois
de tanto tempo. Senti a sua língua roçar os meus lábios, e, quando os entreabri,
o seu ar inebriante provocou-me calafrios. As minhas mãos foram até ao seu
cabelo e puxei-o para mim, mas ele não deixou que o beijo se prolongasse.
Afastou-se olhando-me nos olhos.
— Volta a dormir — disse então, com a respiração acelerada. — Precisas de
descansar, e eu…
Preparava-se para se ir embora, mas agarrei-lhe na mão, prendendo-o ao meu
lado.
— Fica comigo até adormecer, por favor.
O Nick parecia estar a travar uma enorme batalha interior. Até que por fim
tirou os sapatos e se recostou ao meu lado na cama. Puxou-me para os seus
braços, e apoiei a cabeça no seu peito. Não queria pensar muito no que acabara
de acontecer. Não sabia em que ponto estávamos nem o que íamos fazer a
seguir. Um beijo não significava nada, pois não? Ou significava? Adormeci
finalmente com a sua mão a acariciar-me o cabelo e o bater do seu coração a
acompanhar-me como uma doce canção de embalar.
Na manhã seguinte, quando abri os olhos, só ouvi o som das teclas do
computador. Em frente à cama, havia uma cortina transparente que dividia o
quarto do resto da suite, e ao levantar-me vi o Nick desfocado, sentado no sofá,
de sobrolho franzido e cara de poucos amigos, a olhar para o ecrã do
computador que tinha ao colo.
Lembrei-me do momento que partilhámos na noite anterior. Havia mais de
um ano e meio que não recorria ao Nick para me sentir melhor, havia um ano e
meio que não me segurava entre os seus braços enquanto eu adormecia… Sim,
portara-se muito bem comigo, mas não fazia a menor ideia em que ponto
estávamos, e até tinha medo de perguntar.
O Nick apercebeu-se de que estava acordada, porque levantou os olhos do
computador e os cravou em mim. Ambos sustivemos o olhar um do outro, sem
respirar, pelo menos eu, até que ele fechou o portátil, o pousou em cima da
mesa e veio até à cama.
Eu não disse nada, limitei-me a esperar para agir de acordo com o que ele
fizesse. Quando se pôs ao meu lado, olhando-me de cima, senti que ficava sem
ar.
— Como te sentes — perguntou e acariciou-me o rosto com a mão, ajeitando
uma madeixa de cabelo atrás da minha orelha.
— Muito bem — respondi de forma automática. O meu cérebro estava
concentrado na carícia leve dos seus dedos.
Assentiu e virou-me as costas, afastando-se de novo.
— Vais-te embora? — não consegui evitar perguntar.
— Tenho muitas coisas para fazer, incluindo encontrar o melhor obstetra da
cidade — respondeu, tirando o telemóvel do bolso e olhando para o ecrã. —
Veste-te. Vou pedir que nos mandem o pequeno-almoço.
Fiquei a olhar para ele, pasmada, e o Nick dirigiu-me um olhar para me
apressar.
Vesti rapidamente a primeira camisola de desporto que encontrei e fiquei com
os calções de pijama. Dez minutos depois, trouxeram-nos o pequeno-almoço em
duas bandejas estupidamente grandes com comida suficiente para um
regimento. O Nick mal largara o telemóvel e não o fez até que fiquei
praticamente sem mais vontade de comer. Quando finalmente se aproximou da
cama, olhou para mim com desagrado ao ver que ainda tinha o prato a meio.
— Come — ordenou-me simplesmente.
— Não me apetece comer mais — respondi, remexendo os ovos no prato com
distração.
Não tínhamos falado sobre nós, e isso deixava-me nervosa. Não conseguia
tirar da cabeça as palavras que me dissera da última vez e em como parecia certo
de que nunca conseguiria perdoar-me.
— Para de brincar com a comida, não comeste quase nada — acusou-me,
exasperado.
Fiz-lhe má cara.
— Então agora vai ser assim? — respondi irritada. — Tu a dares-me ordens
sem parar? Se soubesse, tinha ficado em casa da Jenna.
O Nick fez cara de poucos amigos, mas, antes de me poder responder, alguém
bateu à porta. Uns segundos depois, o Steve entrou, taciturno, e um par de
revistas na mão.
— Está por todo o lado, Nicholas — comentou e não pareceu ficar espantado
por me encontrar ali sentada, com uma bandeja a transbordar e ovos, fruta,
cereais e café.
— Já sei — disse ele, virando-me as costas e atravessando o quarto até chegar
à secretária que havia na suite. O Steve foi atrás dele… e eu também.
— O que é que está por todo o lado? — perguntei e, antes que alguém me
pudesse impedir, tirei a revista People das mãos do Steve e vi um dos títulos.
«Nicholas Leister volta à borga», dizia. Por baixo do título via-se uma
fotografia sua com ar de poucos amigos e um golpe no maxilar, a sair de um bar.
Ia procurar a página para continuar a ler, mas ele tirou-me a revista das mãos, e,
ao olhar para ele, encontrei um Nick furioso que me olhava com uma expressão
sombria de aviso.
— Volta para a cama, Noah. Já — acrescentou, ao ver que cruzava os braços
para lhe fazer frente.
— Só quando me disseres o que se passa.
Ficou tenso e observou-me com nervosismo.
— Depois conto-te o que quiseres, mas agora, por favor, vai para a cama.
O seu olhar cruzou-se com o meu e vi o medo que ali estava presente, alojado
no fundo daquelas íris espetaculares. Fiz o que me pedia e senti-me bastante
estranha por ter ali o Steve a seguir cada um dos meus movimentos. O Nick só
pareceu respirar com tranquilidade quando me viu por baixo dos lençóis.
— Fala com a Margot, Steve, ela trata disto — disse o Nick e a seguir deitou
a revista para o lixo.
O Steve não parava de olhar para mim.
— O que se passa aqui? — perguntou, dirigindo-se a mim.
Nunca vira o Steve olhar para mim daquela maneira; mais do que isso, o olhar
que dirigiu ao Nicholas foi claramente de censura; pela primeira vez desde que
o conhecia, vi que o Steve se dirigia a ele de forma ameaçadora.
— Assim que puder, explico-te tudo; mas agora, por favor, faz o que te pedi.
Fala com a Margot e tenta que nada do que se passa aqui saia para a luz do dia.
A última coisa que quero é que a imprensa saiba que a Noah está comigo.
Isto magoou-me, não vale a pena mentir, mas estava mais preocupada em
tentar decifrar o que diabo acontecera para terem publicado aqueles títulos e
para o Steve fazer frente ao Nick pela primeira vez, já que sempre cuidara dele e
o protegera desde que era praticamente uma criança.
O Steve ignorou quem era o seu chefe de verdade e aproximou-se da cama
onde eu estava deitada.
— Está tudo bem? — perguntou, observando-me com preocupação.
Atrás dele, vi o Nick cruzar os braços e lançar-lhe um olhar penetrante; era
evidente que não achava graça nenhuma a que o Steve o ignorasse e, menos
ainda, se bem o conhecia, que se aproximasse da cama onde eu estava recostada
e debaixo dos lençóis.
— Não precisas de te preocupar comigo, Steve — respondi, tentando
transmitir tranquilidade com o tom relaxado da minha voz.
Não pareceu muito convencido com a minha resposta, mas pelo menos
assentiu e saiu pela porta sem voltar a abrir a boca e sem sequer olhar para o
Nick.
— O que foi isto? — perguntei, espantada com a sua reação.
O Nicholas continuava com os olhos fixos no lugar por onde o Steve acabara
de sair.
— Parece-me evidente que as prioridades do Steve se alteraram — respondeu,
irritado, embora eu reparasse numa centelha de aprovação na sua voz.
— Vais contar-me de uma vez por todas com quem andaste à briga e porquê?
— perguntei já com uma voz cansada.
Ele passou a mão pela cara, a barba a nascer, o que lhe dava um ar de
malandro que me fazia vibrar o corpo todo.
— Encontrei o Michael num dos bares do campus — explicou com um olhar
desafiante, sem nunca afastar os olhos dos meus, porque parecia estar a avaliar a
minha reação com grande atenção. Por mais que quisesse disfarçar o meu
assombro, não fui capaz. Fiquei tensa por baixo dos lençóis, e o medo instalou-
se no meu corpo todo. — Andámos à bulha e expulsaram-nos aos dois do bar,
mas a imprensa acabou por saber, e agora andam a publicar estas coisas com o
intuito de me desacreditarem.
O Michael e o Nick… Caramba, da última vez as coisas tinham acabado
muito mal. Esta preocupação desaparecera quando o Michael se fora embora da
cidade e o Nick fizera o mesmo. A última coisa que esperava era que se
encontrassem no mesmo bar e, muito menos, que andassem à tareia.
— Não devias ter lutado com ele — disse-lhe. Embora tivesse soado
recriminatório, a verdade é que estava assustada, assustada por ele, porque sabia
que não podia meter-se em sarilhos. Se o Michael o denunciasse, não sabia ao
certo o que podia acontecer, mas o que acontecera naquela noite, há tanto
tempo, não podia voltar a suceder.
Ele aproximou-se dos pés da cama com os músculos todos a notarem-se por
baixo da roupa.
— Voltaste a vê-lo?
Será que o Michael lhe disse alguma coisa sobre o nosso pequeno encontro, há
coisa de um mês?
— Encontrei-o no campus da faculdade, nem três palavras trocámos, Nicholas,
tenho tanta vontade de olhar para ele como tu; pensei que ele não ia voltar aqui,
mas, pelos vistos, é essa a sua intenção.
— Não quero que te aproximes dele, Noah — as suas palavras soaram
claramente como uma ameaça.
— Eu também não planeio fazê-lo.
O assombro cruzou as suas feições. Era evidente que não esperava aquela
resposta da minha parte. A explicação do seu espanto era que o Nicholas não
fazia a menor ideia da perseguição que eu sofrera por parte do Michael poucas
semanas depois de o Nick ir para Nova Iorque. Não ia contar-lhe nada, até
porque tinha quase a certeza de que as intenções do Michael não iam além de
um desejo imaturo de irritar o Nick, já que nunca gostara dele.
— Não quero que esse filho da mãe esteja perto de ti — sentenciou,
aproximando-se agora até se sentar ao meu lado na cama. — Promete-me.
Pestanejei quando percebi que a minha resposta era tão importante para ele
como era para mim que se mantivesse longe do Michael.
— Prometo.
— Que bom — disse, voltando a levantar-se. — Agora tenho de ir para o
escritório.
Olhei para ele, desiludida, mas também não podia estar à espera de que ficasse
fechado naquele quarto comigo durante o que ainda podiam ser alguns meses.
— Se precisares de alguma coisa, do que quer que seja, liga-me para o
telemóvel e, por favor, não te levantes da cama, Noah — pediu-me com
firmeza.
Assenti, e pouco depois o Nick foi-se embora; prometeu não chegar tarde e
deixou-me sozinha naquele quarto estranho à espera de que regressasse.
42
NOAH

As duas noites seguintes foram estranhas. O Nicholas passava o dia quase todo
no escritório e, quando chegava, a altas horas da noite, já eu estava envolta num
sono quase profundo. Quando abria os olhos, os lençóis do seu lado não tinham
um único vinco, e encontrava um bilhete a desejar-me um bom dia e a pedir
que não fizesse nada que pudesse prejudicar-nos, a mim e ao bebé.
Na véspera de acabar a minha reclusão e ir à consulta no hospital, obriguei-
me a ficar acordada no sofá, muito irritada porque mal conseguia manter-me
quieta no lugar. As coisas ainda estava tão confusas que a ansiedade e o facto de
estar há quase quarenta e oito horas sem ter uma conversa de jeito com
ninguém começava a afetar-me perigosamente. Sentia-me ansiosa, nervosa, e em
certas ocasiões o medo de que tudo corresse mal ou do que me pudessem dizer
na consulta fazia que os dias, as horas e os minutos passassem com uma lentidão
desesperante.
Eram quase duas da manhã quando a porta do nosso quarto se abriu quase
sem fazer barulho. O sofá estava afastado no lado esquerdo, mas qualquer pessoa
que ali entrasse via-o perfeitamente. O Nick parou, surpreendido, quando me
viu sentada, e algo no seu olhar conseguiu fazer-me sentir o mesmo que uma
pessoa que cai em voo picado numa montanha-russa com trinta metros de
altura.
— O que fazes acordada? — perguntou, controlando a expressão e pousando o
casaco sobre uma banqueta junto à entrada. Ao olhar para ele, verifiquei que
não vinha da empresa, a sua roupa era informal, embora fosse elegante, mas não
tinha gravata nem nenhum dos fatos que mandara ir buscar ao seu apartamento.
— Estou à tua espera — disse, reparando no tom irritado da minha voz. Ele
tinha liberdade de sair, de se encontrar com pessoas e de se comportar como
alguém adulto e sociável; eu, pelo contrário, tinha de estar metida naquele
quarto sem ninguém com quem partilhar o meu medo e ansiedade.
— Devias estar na cama — comentou e, para meu assombro, quando se
aproximou de mim, inclinou-se para me levantar ao colo e me deitar ele
mesmo. Agarrei-me ao pescoço dele, surpreendida que voltasse a tocar-me
depois de dois longos dias em que quase não nos cruzámos.
O meu corpo vibrou como nunca, e desejei voltar a partilhar a intimidade que
tínhamos quando estivemos juntos. Será que se arrependera? Voltara a odiar-me
como antes, mas disfarçava por causa do bebé?
Agora nem sequer me olhava nos olhos, não desde que prometi que ficaria
longe do Michael. Tinha receio de que o seu regresso tivesse despertado todas as
recordações que ainda existiam na sua cabeça, recordações e mágoas que
pareciam não querer desaparecer. Tinha medo de que finalmente, e depois de
tudo o que acontecera, o Nick continuasse a pensar que o melhor era
continuarmos separados e que nada, nem sequer um filho seu, o faria mudar de
opinião a este respeito.
Quando me pousou na cama, não larguei a sua nuca. Puxei-o com a intenção
de que não me largasse. Pedia-lhe assim um beijo, e, quando parou mesmo por
cima dos meus lábios, tão quieto que o meu coração quase se paralisou, todos os
meus medos se revelaram justificados.
— Não posso, Noah — confessou num sussurro, pegando nos meus braços e
afastando-me de si. Nem sequer voltou para olhar de relance para mim, afastou-
se e entrou na casa de banho. Eu, pelo contrário, fiquei onde estava, a assimilar a
sua rejeição.
O meu coração parecia sangrar dentro do peito, percebendo que tínhamos
voltado ao início. Enrosquei-me debaixo dos cobertores e tentei que não se
apercebesse das lágrimas que caíam sem parar pelo meu rosto. Quando ouvi a
porta da casa de banho abrir, fiz de conta que estava a dormir, e foi então que
compreendi que o Nick não tinha dormido comigo na cama e puxado os lençóis
do seu lado depois de se levantar. Não, o Nick dormia no sofá, tão longe de
mim quanto aquele quarto permitia.

A consulta com o médico era ao meio-dia, e fiquei surpreendida ao ver que,


naquela manhã, o Nick ficou a trabalhar na suite do hotel. Entrei no duche
quase sem olhar para ele e, quando me vi ao espelho, percebi que os meus olhos
estavam inchados e vermelhos. Não queria que ele visse que a sua rejeição na
noite anterior me afetara, por isso dediquei um bom bocado a esconder as
olheiras e a arranjar-me para ter um aspeto medianamente aceitável. São
incríveis os milagres que uma boa maquilhagem pode fazer.
Ao que não achei muita graça foi ao facto de, quando fui escolher que roupa
devia vestir, perceber que já nem tudo me servia. Era uma novidade para mim:
nunca tinha tido problemas de peso, nunca precisara de me deitar na cama e de
encolher a barriga para apertar umas calças de ganga. Embora a barriga de
grávida mal se visse, a verdade é que me sentia como uma autêntica baleia. O
meu mau humor era tão evidente que quando saí da casa de banho bati com a
porta. O Nick levantou os olhos do computador e ficou a olhar para mim com
curiosidade.
— Preciso que me deixes a chave do teu carro — disse, amuada e a desejar
sair o quanto antes daquelas quatro paredes.
Ele franziu o sobrolho.
— Para quê, posso saber?
Olhei para ele com incredulidade. Ter-se-ia esquecido?
— Para ir à consulta com o médico que está a cuidar da saúde do teu filho: é
para isso que preciso das chaves.
O Nick tentou esconder o sorriso que ameaçava desenhar-se nos seus lábios e
levantou-se da cadeira. Fechou o portátil, pegou nas chaves do carro e fê-las
girar nos seus dedos.
— Sei perfeitamente que hoje tens consulta com o obstetra, o que não
entendo é o que te faz pensar que vais tu a conduzir.
Cerrei os maxilares com força.
— Sou perfeitamente capaz de conduzir um carro; na verdade, até posso
afirmar que o faço melhor do que tu.
O Nick aproximou-se, já a sorrir sem disfarçar, e por uns instantes os seus
olhos percorreram todo o meu corpo. Se pudesse, tinha vestido uma burca:
naquele momento sentia-me muito pouco atraente, e o facto de ele estar tão
espetacular só conseguiu irritar-me ainda mais.
— Depois mostras-me as tuas capacidades de condução, sardas, mas, agora, a
última coisa que quero é pôr-te atrás de um volante — disse, enquanto agarrava
nos nossos casacos e me abria a porta. — Vamos, estou cheio de vontade de
conhecer o meu filho.
Demorei uns segundos a reagir, mas lá consegui obrigar as pernas a mexer.
Não saímos pela porta principal do hotel, mas pelo estacionamento. Quando
entrámos na autoestrada, senti que, por mais irritada que estivesse, tinha de lhe
dizer uma coisa.
— Talvez hoje nos digam o sexo do bebé — comentei, como se não fosse nada
para aligeirar o assunto, embora por dentro estivesse a morrer por saber se o que
gerava dentro de mim era uma mini-Noah ou um mini-Nick.
O Nicholas voltou-se para mim e arregalou os olhos com surpresa.
— Hoje? — perguntou, virando-se novamente para a estrada; vi pela forma
como agarrava o volante que estava mais nervoso do que queria mostrar.
— Podia ter sabido há umas semanas, mas… preferi esperar — admiti,
olhando para o outro lado.
Não queria admitir que a ideia de receber aquela notícia sem ele estar ao meu
lado era insuportável. Não queria que soubesse como precisava dele naqueles
momentos, que era mais do que alguma vez confessaria.
O Nick agarrou-me na mão de repente e levou-a aos lábios para me dar um
beijo fugaz. Olhei para ele, surpreendida por ele ter derrubado aquele muro que
construíra à nossa volta de modo tão eficiente.
— Obrigado por esperares por mim — disse ele com emoção, olhando-me
nos olhos com uma ternura infinita. Nem tinha sido preciso dizê-lo em voz alta,
ele conhecia-me quase melhor do que eu a mim mesma.
Depois disto, instalou-se entre nós um silêncio menos incómodo, e a
curiosidade que sentia em saber no que estava a pensar com tamanha
concentração obrigou-me a interrompê-lo, apesar da minha hesitação.
— O que preferes?
O Nick sorriu, mas desta feita não olhou para mim.
— E tu?
— Perguntei primeiro.
O Nicholas riu-se e fitou-me fugazmente antes de voltar a concentrar-se nos
carros que seguiam à nossa frente.
— Acho que me dou muito bem com raparigas — reconheceu, depois de
pensar uns segundos.
— Nem me digas nada. — Não consegui evitar.
A minha acusação não passou despercebida, mas ele decidiu ignorá-la.
— Se bem me recordo, há algumas noites ouvi-te chamar o bebé de Mini Eu,
ou estou enganado?
Senti-me corar; sim, era assim que o tratava mentalmente, mas isso não
significava que achasse que era uma menina.
— Não sei se seria capaz de aguentar um Nicholas em miniatura — disse na
defensiva, embora um calor infinito se tenha apoderado do meu corpo quando
imaginei nos meus braços um bebé igual ao Nick.
— Uma Noah em miniatura também ia dar-me cabo da paciência, sardas. Às
vezes até tenho pena da tua pobre mãe, o que ela teve de aguentar…
Fulminei-o com o olhar, apesar de saber que estava a brincar.
— Não te preocupes, eu cuidarei da nossa filha quer ela seja insuportável
como eu ou pedante como o pai.
O Nick continuou a olhar em frente com um sorriso enorme no rosto, já nem
sequer se dava ao trabalho de o disfarçar.
— Se tivermos uma filha, será a menina mais amada deste mundo. Noah, não
vai haver neste planeta um pai que cuide tão bem dela como eu vou cuidar,
podes ter a certeza disso.
As piadas e brincadeiras desapareceram enquanto o dizia, e tive de olhar pela
janela para esconder o meu rosto e as emoções que as suas palavras acabavam de
despertar em mim.
Eu nunca soubera o que era ter um pai que me amasse e protegesse acima de
todas as coisas, e o simples facto de o imaginar, de ver o ­Nicholas com o nosso
filho ou filha, fez-me compreender que, não importava o que acontecesse entre
nós, o nosso bebé seria muito amado, e não me restavam quaisquer dúvidas a
este respeito.
Chegámos ao hospital pouco tempo depois, e não consegui tirar da cabeça a
ideia de que entrar ali com ele para vermos o bebé na ecografia em conjunto
tornava tudo ainda mais real. Na sala de espera havia muitas mulheres
acompanhadas pelos seus parceiros. Eu e o Nick éramos os mais novos de todos.
Achei mesmo estranho ver-nos naquela situação. Quando chamaram o meu
nome, não consegui evitar e peguei na mão do Nick para nos dirigirmos ao
consultório.
De repente, voltei a sentir muito medo do que nos fossem dizer acerca do
bebé, ainda mais agora que as coisas estavam a tornar-se mais reais e tangíveis.
Não havia nada que desejasse mais do que trazer ao mundo um bebé saudável e
feliz e detestava pensar que o meu corpo podia impedir que este sonho se
tornasse realidade.
O doutor Hubber cumprimentou-me com afeto quando entrámos no
consultório juntos e olhou para o Nick com curiosidade quando este lhe
estendeu a mão e o observou com uma educação fingida. Já o conhecia
suficientemente bem para saber que ia começar a apontar-lhe defeitos.
— Doutor, este é Nicholas Leister, o meu… bem, o pai — esclareci, corando
e sentindo-me bastante estúpida.
O Nicholas não acrescentou nenhuma outra informação e, apesar de ter
gostado de ver que marcava o território como costumava fazer quando
estávamos juntos, naquele momento só conseguia desejar que tudo estivesse
bem com o Mini Eu.
O doutor Hubber fez-me sinal para me recostar na marquesa enquanto me
fazia algumas perguntas rotineiras.
O Nicholas parecia dedicar toda a sua atenção às minhas respostas, e, ao ouvir
algumas, o seu sobrolho foi ficando cada vez mais franzido. Quando o médico
aproximou a sonda e me pediu que levantasse a camisola, o Nick deu um passo
em frente e colocou-se ao meu lado, os olhos fixos em cada movimento do
médico. Este aplicou o gel frio e começou a deslizar a sonda sobre a minha pele
despida; uns segundos depois, o Mini Eu apareceu no ecrã. Embora só se
tivessem passado duas semanas, as diferenças eram muito evidentes. O bebé
estava muito maior do que na última vez, e os seus traços fisionómicos
começavam a afastar-se dos de um girino com pernas e braços.
A sensação de o ver sempre fora incrível, mas desta vez foi muito mais
especial. Fixei-me na expressão do Nick, que parecia totalmente aturdido, e
compreendi esta sensação: uma coisa era dizerem-nos que há um bebé, outra
completamente diferente é vermos com os nossos próprios olhos.
O obstetra continuou a mexer a sonda e começou a fazer os seus cálculos e
medições.
— Tenho boas notícias — anunciou, olhando para nós. — O hematoma já
desapareceu quase por completo; embora ainda exista ali uma pequena sombra,
é quase certo que nos próximos dias vai acabar por se dissipar.
— Isso significa que o bebé já não corre perigo? — perguntei, emocionada, e
sentindo um alívio tão grande que só então percebi o peso imenso que carregara
durante aquelas semanas todas quase sem me dar conta.
— Vamos continuar a controlar a situação todos os meses, mas, sim, por agora
está tudo como devia estar — respondeu o médico com um sorriso amável. —
Fizeste um bom trabalho, Noah.
Deixei cair a cabeça para trás e suspirei de alívio.
— Então já posso fazer a minha vida normal, doutor?
Foi neste instante que o Nick o interrompeu, olhando para ele com
desconfiança.
— Disse que o hematoma ainda não desapareceu completamente. Não seria
aconselhável que continuasse em repouso, pelo menos durante mais um par de
semanas?
«O quê? Não!»
Fulminei o Nick com o olhar, mas ele ignorou-me completamente.
— Ela pode fazer a sua vida normal, senhor Leister, embora não deva fazer
esforços nem andar stressada; como lhe disse da primeira vez que a vi, esta
gravidez é complicada devido ao seu historial médico e pela forma como se tem
desenrolado. Não precisa de se preocupar, mas é aconselhável que faça a sua vida
com calma. Já está no segundo trimestre, as coisas a partir de agora vão começar
a suceder muito mais depressa. O bebé cresceu bastante desde a última vez que
o vi, mas não o suficiente, o que me indica que esse pulo no crescimento irá
ocorrer nas próximas semanas.
Ótimo, isto queria dizer que ia mesmo ficar uma baleia.
— Gostava de pedir uma segunda opinião, se o senhor não se importar —
comentou o Nick, ainda meio desconfiado.
— Nicholas — repreendi-o, cheia de vergonha.
O médico não pareceu nada ofendido com o seu último comentário.
— Não vejo qualquer inconveniente: se quiser posso recomendar-lhe um dos
meus colegas, senhor Leister.
— Não será necessário.
Ficaram ambos a suster o olhar um do outro durante mais alguns segundos, e
eu só tive vontade de que a terra me engolisse. Maldito Nicholas, nem pensar
que ia consultar outro médico: gostava do doutor Hubber, era um bom médico,
investigara o seu nome na Internet para ter a certeza, e revelou ser um dos
melhores na sua especialidade. Como sempre, o Nicholas estava a exagerar.
— Gostavam de saber o sexo do bebé? — perguntou-nos então com um
sorriso amável que afastou o ambiente tenso de imediato.
Olhei para o Nick com nervosismo, e ele sorriu, fazendo-me sentir uma
tranquilidade que ainda me afetou mais.
— Adoraríamos, doutor — respondeu ele, segurando-me na mão.
O médico voltou a deslizar a sonda sobre a minha pele e, depois do que me
pareceu uma eternidade, olhou-nos com um sorriso jovial.
— É um menino.
O mundo parou, e o meu coração também.
Um menino… Fui assaltada por tantas emoções que os meus olhos se
encheram de lágrimas. Os nossos olhos cruzaram-se, e ambos sorrimos,
divertidos, ao recordar a conversa que tivéramos no carro. Ver a reação do Nick
foi algo que ainda hoje guardo como uma das melhores recordações da minha
vida. A sua emoção foi de tal forma que ficou com os olhos fixos no ecrã durante
vários segundos. O que fez a seguir apanhou-me de surpresa: inclinou-se sobre
mim e deu-me um beijo nos lábios, um beijo que recebi com vontade e
vergonha, já que o doutor Hubber estava a menos de meio metro de distância.
Quando se separou da minha boca, os seus olhos procuraram os meus, e senti
que me derretia completamente.
— O Mini Tu acabou por se transformar num Mini Eu — comentou, a sorrir.
— Espero que não te suba à cabeça — avisei, feliz.

No caminho de regresso ao hotel, e agora que sabíamos que o bebé estava bem
e que já podia voltar à minha vida normal, comecei a fazer planos mentais para
conseguir retomar finalmente as rédeas da minha vida. Precisava de voltar a
sentir-me útil. Para uma pessoa como eu, habituada a andar sempre de um lado
para o outro, ter passado quase um mês na cama tinha sido como um pesadelo
horrível.
— Preciso de esticar as pernas, meu Deus, quero sair para correr, quero ir à
faculdade, voltar a trabalhar… — disse de forma sonhadora, enquanto olhava
pela janela.
— Não ouviste o que o médico disse? — perguntou o Nicholas com maus
modos. — O hematoma não desapareceu por completo, não podes voltar a fazer
essas coisas todas como se nada tivesse acontecido.
Voltei o rosto na direção dele.
— E tu, não ouviste o que ele disse? Posso fazer a minha vida normal. É fácil
falar quando não foste tu quem teve de estar um mês esticado na cama.
O Nicholas expirou pelo nariz e agarrou no volante com força.
— Temos de falar sobre o meu apartamento do centro… Sei que não queres
ficar lá e respeito, mas temos de pôr as coisas em ordem. O hotel é bom, mas ali
chamo demasiado a atenção, e isso é a última coisa que quero agora.
«Temos?»
— Tenho o meu apartamento pago e à espera de que me instale, Nick —
disse-lhe, desejando poder voltar para lá e passar algum tempo sozinha a
preparar-me para o que aí vinha. — Tu podes voltar para o teu.
— É isso que queres? Que vivamos separados? — o tom da sua voz transmitia
dor, uma dor que se misturava com a irritação que as minhas palavras
provocavam.
— Não podemos viver juntos basicamente porque não estamos juntos.
Por mais que o detestasse, era esta a realidade.
— Por amor de Deus, Noah, as coisas mudaram, não achas?
Abanei a cabeça, era exatamente isto que não queria que acontecesse.
— O que mudou foi que vou ter um bebé, mas ninguém disse que eu e tu
tínhamos de voltar por causa disso. Já aceitei que não vai acontecer, por isso…
— Por isso, o quê? — disse, virando bruscamente para a direita e entrando no
estacionamento do hotel. — Já sei que fiz asneira, mas agora vou cuidar de
vocês.
— Vais cuidar de nós? — respondi, indignada. — Eu não sou uma
responsabilidade tua e não quero estar com alguém que me disse de forma
bastante clara que não ia conseguir amar-me e muito menos confiar em mim,
por isso voltámos à estaca zero. Podes cuidar do bebé comigo, mas é tudo: não
vou viver contigo, não vou fazer aquilo que me mandas e nem sequer vou
mudar de médico. Até ao dia em que der à luz, sou eu quem toma as decisões,
e, quando o bebé nascer, pomos as coisas em ordem para o podermos criar
juntos, mas cada um na sua casa.
Saí do carro e bati com a porta. Era exatamente isto que temera desde o início,
que o Nicholas visse a gravidez como uma forma retorcida de voltar a estar
comigo. Mas não era assim que as coisas se faziam, não precisava da compaixão
do Nicholas nem queria estar à sua responsabilidade… Por amor de Deus! Por
mais que a sua rejeição ainda me magoasse, jamais lhe faria uma coisa destas,
jamais o obrigaria a voltar a ter uma relação comigo.
O Nicholas manteve-se em silêncio até chegarmos ao quarto.
— Então, o teu plano é cada um de nós prosseguir com a sua vida. E depois?
Ficamos com a guarda partilhada? É isso que queres? — perguntou, sentando-
se na beira da cama e observando-me enquanto eu começava a tirar a minha
roupa dos cabides e a dobrava de uma maneira qualquer sobre a mesa que havia
em frente à cama. Os meus olhos ­afastaram-se da roupa por um segundo e
fixaram-se nele. Parecia tranquilo, mas, por mais que agora estivesse a conseguir
manter a calma, sabia muito bem o que se escondia por baixo daqueles olhos.
Ele não achara a menor graça ao que eu dissera no carro e, agora que o ouvira
dizê-lo em voz alta, não pude evitar sentir o mesmo. — Vamos ter de dividir os
dias, os fins de semana, as férias… É isso que queres? Queres que o nosso filho
cresça com os pais separados?
Os meus olhos humedeceram-se quando pensei na realidade horrível que me
apresentava. Sabia o que era crescer assim: durante metade da minha vida não
tive pai e passei a outra metade a esconder-me dele com medo de que me fizesse
mal. O Nick também teve de viver com os pais separados, além de que a mãe o
abandonara.
Por instantes imaginei o meu doce bebé, de grandes olhos azuis e cabelo louro
como eu, a passar por tudo o que nós tivéramos de passar, e o meu coração
encolheu-se de uma maneira que nunca sentira antes. Mordi o lábio e tentei
controlar o tremor; o Nicholas levantou-se e veio até mim.
— Deixa-me cuidar de ti — pediu-me então enquanto me acariciava o rosto
com a mão e os olhos mergulhavam nos meus com uma determinação férrea. —
Sei o que te disse, sei que disse que não ia ser capaz de te perdoar e desde que
me fui embora que não consigo tirar esse momento da cabeça: a tua reação, a
tua tristeza… perseguiram-me todos os dias em que estivemos afastados, Noah.
As coisas mudaram, e agora a minha forma de encarar tudo isto não é a mesma,
vejo tudo com cores diferentes. Quando vi o nosso filho naquele ecrã, Noah…
Caramba, senti-me o homem mais feliz da Terra, e não só porque vou ter um
bebé maravilhoso, mas porque vou tê-lo com a mulher que virou o meu mundo
do avesso.
Fechei os olhos com força e senti uma lágrima a boicotar o meu autocontrolo.
O Nick apoiou a testa sobre a minha e suspirou, envolvendo-me no seu alento
morno.
— Nós magoámo-nos muito um ao outro, sardas, não penses nem por um
segundo que não tenho noção de cada palavra horrível que te disse. Não duvides
de que te quis ver a sofrer como eu sofri depois do que aconteceu com o
Michael, mas nunca, Noah, nunca deixei de pensar que és tu a mulher da minha
vida.
Abri os olhos.
— Deixei a Sophia, Noah.
Reparei que o meu coração acelerava ao pensar neles juntos, nas noites que
passei a chorar na cama depois de os ver nas revistas ou na televisão. As coisas
que o Nick me dissera sobre ela, que era uma mulher melhor para si, mais
adulta, mais inteligente, mais tudo… tudo continuava presente na minha
memória, e percebi que seria sempre como um espinho cravado no meu coração.
— Pois não devias tê-lo feito. — Não estava a olhar para ele ao falar, mas a
sua mão segurou-me no queixo e levantou-mo para me obrigar a fazê-lo. Não
compreendeu as minhas palavras, e continuei a falar de forma quase atropelada.
— Nicholas, tu não vais conseguir esquecer que te traí com outra pessoa, e eu
não aguentaria perder-te outra vez… Tenho medo, estou tão assustada que a
última coisa que quero fazer agora é experimentar para ver se isto entre nós
pode voltar a funcionar ou não.
— Deixa-me mostrar-te que o que disse agora é a mais pura verdade, Noah.
Abanei a cabeça, e então segurou-me o rosto entre as mãos e beijou-me como
eu sempre desejara que fizesse desde que nos separámos. Os seus lábios
pousaram sobre os meus, uma vez, duas vezes, e fizeram a pressão suficiente para
me arrancarem um suspiro. A língua entrou na minha boca, e derreti-me com o
seu sabor, derreti-me ao senti-lo contra o meu corpo, o braço dele levantou-me
pela cintura, e as minhas pernas rodearam as suas ancas. Mordeu-me o lábio,
sugou-o e depois beijou-me à espera de uma resposta que não voltou a aparecer.
As suas palavras deixaram-me paralisada. Foi o momento em que vi a luz ao
fundo do túnel, vi-a claramente, mas também percebi que para chegar até ela
teria de ultrapassar todo o tipo de obstáculos, obstáculos esses que não tinha a
certeza se conseguiria superar.
O Nicholas afastou-se da minha boca e pousou-me no chão.
— Nestes últimos dias nem sequer me tocaste… pensei que…
— Não te toquei porque sabia que, se começasse, não ia poder parar —
justificou-se, apoiando a testa sobre a minha. — Queria dar-te espaço, não
queria forçar-te a fazer nada que não quisesses…
Fiquei sem palavras.
— Vou ter um filho contigo, Noah — disse, olhando-me nos olhos —, e vai
ser ao teu lado, por mais que demore a mostrar-te que não pretendo ir a lado
nenhum.
Meus Deus… estaria a falar a sério? Seriam verdade estas palavras? Queria
este homem com toda a minha alma e só desejava que ele voltasse a amar-me
como eu o amava a ele.
— Vamos devagar, Nick — pedi-lhe, e ele endireitou-se para, com um
sorriso, olhar diretamente para os meus olhos cor de mel.
— Melhor do que isso: vamos começar do zero — decidiu.
43
NICK

Ajudei-a a pegar nas coisas e fizemos as malas juntos. Enquanto a Noah andava
de um lado para o outro no quarto, observava-a disfarçadamente, embevecido.
Sabia que não ia ser fácil provar-lhe que as minhas intenções e palavras eram
verdadeiras, menos ainda depois de praticamente lhe ter jurado que não íamos
viver juntos. Mas para mim era indiferente, porque no fundo do meu coração
sempre desejara que acontecesse alguma coisa e que o motivo que me obrigasse
a voltar para ela fosse suficientemente justificável para não sentir que estava a
enganar-me a mim mesmo.
O meu maior medo sempre fora perdê-la de vez. Quando me traiu e nos
separámos durante mais de um ano, achei que estava a fazer o que era mais
correto. Eu não perdoava com facilidade, nisso a Noah tinha toda a razão: a
minha própria mãe, doente com cancro, ainda se debatia para conseguir o meu
perdão, e eu continuava a guerrear comigo próprio para lho poder dar.
«Perdão», era apenas uma palavra… mas era tão importante. A Noah era a
pessoa a quem abrira o meu coração quase completamente, e agora, depois de
saber o que significava perdê-la, saber também que havia uma desculpa para
poder unir-me a esta mulher para o resto da vida dava-me toda a segurança que
me faltara desde o início da nossa relação.
As palavras que lhe disse quando nos despedimos da última vez eram
verdadeiras, pelo menos acreditava nelas quando lhas dirigi. Achava mesmo que
não havia nada que a Noah pudesse fazer para mudar a minha opinião e agora
apercebia-me de que sim, havia uma coisa que podia invalidar completamente
esta afirmação. Sempre me senti como a segunda opção de muitas pessoas. O
meu pai sempre preferira os negócios a mim, e, até agora, depois de conhecer
toda a sua história, sabia que ele amava mais a segunda mulher do que o seu
primeiro filho; a minha mãe, bem, a minha mãe deixara-me para ficar com
outro homem, pusera a sua vontade de vingança contra o meu pai à frente do
amor que devia sentir por mim… e a Noah… a Noah tinha problemas muito
mais graves do que os meus e, por mais que tentasse mostrar-me que me amava
loucamente, para mim sempre foi mais fácil esperar o pior, não acreditar de
todo nela e rezar para que tudo corresse bem. Sabia perfeitamente que os nossos
problemas e inseguranças acabariam por nos trazer ao ponto em que estávamos
agora, mas ao fim de quase vinte e cinco anos encontrara finalmente aquele algo
que me fizera tanta falta para poder relaxar e acreditar que, sim, o amor era
possível e que, sim, havia alguém capaz de me amar acima de todas as coisas.
Este menino que estava a caminho era a minha esperança de um amor
incondicional, e a pessoa que mo dava era nada mais nada menos que a mulher
que eu amava e me amava com todo o seu coração. Como não havia de a
perdoar? Como não havia de deixar o passado para trás quando ela acabara de
me dar tudo aquilo que sempre desejara, embora não o soubesse, desde o
instante em que a vi?
Sentia finalmente paz, paz na minha alma e na minha mente. Foi como se, de
repente, a tempestade que tomara conta do meu mundo se dissipasse e deixasse
no seu lugar um sol radioso que chegava a cegar-me. Acho que é isto que se
sente quando se perdoa alguém de verdade. Uma calma infinita… um amor
incondicional.

Carreguei a mala para o apartamento da Noah e vi com nervosismo que ela se


mexia de um lado para o outro, tirando coisas das caixas e insistindo em colocá-
las nas estantes. Quando a vi subir para uma cadeira para chegar a uma
prateleira, ia tendo um enfarte. Fui até ali, peguei-a ao colo e pousei-a no chão
antes que o coração me saísse pela boca.
— Caramba, Noah! — exclamei, pousando-a no chão e arrancando-lhe das
mãos o que estava a tentar pousar lá em cima. — Hoje é o primeiro dia em que
andas de pé depois de semanas na cama. Não podes ter um pouco mais de
calma?
— Estou nervosa e não consigo estar quieta, desculpa — disse e afastou-se de
mim como se a minha proximidade a queimasse. Observei-a pelo canto do olho
enquanto atravessava a sala até ficar o mais longe possível de mim.
— Tens a certeza de que não queres que passe aqui a noite? — perguntei,
detestando a ideia de ter de a deixar.
Agora ia ser muito difícil para mim separar-me dela, caramba, queria levá-la
para viver comigo, cuidar dela e dar-lhe tudo aquilo de que precisasse.
Antes de ter tempo para me responder, a porta do apartamento abriu-se, e o
Lion e a Jenna entraram, ambos com um sorriso radiante no rosto e um monte
de balões azuis na mão.
— É um menino!
Olhei surpreendido na direção da Noah, e, um segundo depois, ela encolheu
os ombros a sorrir. A Jenna atirou-se a ela para lhe dar um abraço, e os balões
voaram até tocarem no teto. O Lion veio na minha direção com um pequeno
urso de peluche azul e entregou-mo com um sorriso idiota nos lábios.
— Com que então vais ser pai? — disse e senti um nó na garganta ao ouvir
esta palavra.
Meu Deus… ia ser pai, mais valia começar a habituar-me à ideia.
— Isto requer uma celebração! — propôs a Jenna, aplaudindo e atirando-se
aos meus braços no segundo seguinte. — Se não me escolherem para madrinha,
conto os teus podres todos ao teu filho — sussurrou ao meu ouvido, enquanto
eu aproveitava o momento para lhe puxar o cabelo. — Aonde querem ir?
Podemos ir jantar, ir a um bar ou até podemos ir passar o fim de semana a
algum lado. Isto merece uma verdadeira festa!
Bastou-me olhar para a Noah de relance para perceber que não era nada
daquilo que ela queria. A vinda do bebé não era algo que tínhamos planeado, e,
por mais felizes que estivéssemos por o termos, sabia que a Noah queria sentir
que tudo continuava como antes. Podia finalmente fazer a sua vida normal, e a
primeira coisa que disse foi que queria voltar às aulas, ao trabalho e a sair. Não
falou de todo no bebé.
Não queria massacrá-la muito com o assunto, conhecia-a suficientemente bem
para saber que mais cedo ou mais tarde havia de se habituar à ideia, mas temia
que se desmoronasse antes disso. Só esperava estar ao seu lado quando isso
acontecesse.
— Podemos ir dançar — sugeri, engolindo todos os meus desejos de meter a
Noah na cama e obrigá-la a ficar sossegada debaixo dos lençóis. Ela olhou para
mim com surpresa. — Desde que vás com calma. Apetece-te?
Um sorriso franco surgiu nos seus lábios, e senti que o meu coração parava de
bater durante alguns instantes.
— Sim, seria divertido — disse, mostrando-se feliz pela primeira vez desde
que saímos do consultório do médico.
A Jenna concordou com a minha ideia, e, enquanto eu e o Lion fomos para a
rua para esperar que a Noah acabasse de mudar de roupa, peguei num cigarro e
fumei pela primeira vez desde que soubera que ia ter um filho.
— Como estás? — perguntou o Lion, observando-me disfarçadamente.
Também acendeu um cigarro.
— Estou a tentar habituar-me à ideia de que, daqui a quatro meses, a minha
vida vai mudar e nunca mais será a mesma.
— E como estão as coisas com a Noah? Estão juntos novamente? —
perguntou-me com tato.
Olhei fixamente para a porta do apartamento.
— Estou a tratar disso — respondi, e as raparigas apareceram naquele
instante. A Noah mudara de calças de ganga para um vestido que parecia uma
T-shirt, meias transparentes e botas de cano alto. Soltara o cabelo e maquilhara
os lábios e olhos. Juro por Deus, nunca na minha vida a tinha visto mais bonita.
A minha ânsia de a meter em casa e levar para a cama aumentaram quase
tanto quanto a vontade de fazer que se divertisse ao máximo naquela noite. Veio
ter comigo com a hesitação espelhada no rosto.
— Está tudo bem? — perguntei, contendo a vontade terrível de a puxar para
mim e a beijar até ela ficar sem fôlego.
Assentiu sem me olhar diretamente nos olhos. Sabia que ia levar o seu tempo
até estarmos bem juntos, mas agora, mais do que nunca, precisava de a reclamar
como minha.
Quando liguei o carro, vi que a Noah se contorcia, inquieta, no assento.
— O que foi? — perguntei, observando-a pelo canto do olho sem desviar a
atenção da estrada.
A Noah abanou a cabeça em silêncio, e percebi claramente que alguma coisa a
preocupava.
— Podes contar-me, Noah.
— É só que… O que vamos dizer aos nossos pais?
«Então é isto que a deixa preocupada?»
— Noah, não fiques angustiada a pensar no que as pessoas vão dizer, está
bem? Os nossos pais conhecem a nossa história. Vamos dizer-lhes que estamos
juntos novamente e, quando te sentires preparada, contamos-lhes do bebé.
— A minha mãe vai ter um enfarte — afirmou ela em voz baixa e olhando
pela janela. — Além disso, ainda não sabemos se estamos juntos ou não…
Temos de ver se isto corre bem. O melhor será não lhes contarmos nada, pelo
menos por enquanto; também mal se nota, não é?
Ambos desviámos o olhar para a sua barriga, e a verdade era que era quase
impercetível, mas isso não ia demorar muito a mudar, já era bastante invulgar
que não se notasse, a não ser que observássemos a sua barriga com atenção: a
Noah estava de cinco meses. Os nossos pais iam ter de saber, e o resto das
pessoas também não demoraria muito a perceber o que se passava. Subitamente,
senti-me ansioso porque queria proteger a Noah de qualquer tipo de falatório
que pudesse surgir por causa da gravidez. Para todos os efeitos, eu ainda estava
com a Sophia Aiken, por isso, quando se soubesse da Noah, ia ser um escândalo
e tanto. Tinha de a preparar para conseguir enfrentar o que aí vinha.
— Acho que já não podemos esperar muito mais, mas só contamos quando
estiveres preparada, está bem?
A Noah assentiu, e pouco depois chegámos à discoteca. O ambiente era
ensurdecedor, e pedi que nos abrissem uma sala reservada. A Jenna não parava
de falar do bebé, do nome que íamos dar-lhe, de onde íamos viver, da cor com
que pintaríamos o quarto… até eu comecei a ficar enjoado. A Noah tentava
seguir o entusiasmo da amiga, mas até o Lion pareceu perceber que já estava a
passar das marcas.
O Lion e a Jenna foram dançar, e a Noah ficou a observar a multidão ao longe.
A certa altura, a Jenna puxou-a e levou-a para dançarem na pista durante algum
tempo. Observei cada um dos movimentos da Noah, tentando controlar a
respiração, mas percebi que alguma coisa não estava bem quando voltou
passados dez minutos e se sentou ao meu lado.
Não estava a divertir-se.
— Queres ir-te embora? Estás cansada? — perguntei, com todos os sinais de
alerta a disparar na minha cabeça.
A Noah forçou um sorriso e abanou a cabeça.
Aguentámos mais uma hora, e acabei por ser eu a insistir que nos fôssemos
embora. Sabia que ela tinha alguma coisa, e, por mais que tentasse disfarçar
com os nossos amigos, continuava a conhecê-la bastante bem para perceber os
seus estados de espírito. Despedimo-nos da Jenna e do Lion e fomos buscar o
carro. Fizemos o caminho de regresso ao apartamento em silêncio. Uma vez em
casa, não consegui aguentar mais. Puxei-a para mim e estreitei-a entre os meus
braços.
— Diz-me o que te está a preocupar.
Ela envolveu as minhas costas nos seus braços também e apoiou o rosto no
meu peito.
— Acho que não foi muito boa ideia sair esta noite — comentou sem olhar
para mim. — Já não é o meu lugar, pois não? As festas, as noitadas, a
universidade… Vou deixar de ser eu mesma para me transformar numa…
Afastei-a para poder olhá-la nos olhos.
— Não vais transformar-te em nada, Noah; lá porque vais ser mãe não quer
dizer que tenhas de mudar quem és.
Ela abanou a cabeça com o sobrolho carregado. Parecia estar metida num
dilema mental sem solução.
— Não, isso não é verdade. Ouviste a Jenna, ela não parou de falar do bebé…
As pessoas agora vão ver-me apenas assim, como uma mãe. Já não vou ser a
mesma miúda de antes, e tenho medo, porque acho que ainda nem consegui
descobrir quem sou.
Não queria que ela fosse por ali, que pensasse que ia ter de renunciar a alguma
coisa.
— Juro que vais continuar a ser a mesma pessoa que conheci há três anos,
Noah… A mesma que me deixou louco só de entrar na minha cozinha, a que
me atirou um olhar venenoso, a mesma que me fez perder um Ferrari, a mesma
que jogou comigo o jogo das vinte perguntas, a que queria ser escritora, que
queria viajar e abrir um abrigo para animais, aprender a surfar, a mesma
rapariga que jurou beijar-me todos os dias até sermos capazes de o fazer, a
mesma que um dia me disse que não podia ter filhos… Vais ser tudo isto e
muito mais, Noah.
Ela abanou a cabeça e separou-se dos meus braços.
— Sei que é horrível pensar assim. Amo muito este bebé, juro-te que sim —
confessou com os olhos marejados de lágrimas —, mas não o queria agora,
entendes? Nem sequer sei o que vou fazer amanhã ou em que vou trabalhar…
Agora dependo de ti, Nick, e, por mais que insistas em querer voltar a estar
comigo, não posso fazer de conta que os últimos meses nunca existiram…
— Noah… — comecei por dizer, mas ela interrompeu-me.
— Não foi assim que planeei a minha vida, não era isto que queria. Sei que
parece muito tradicional, mas queria estar casada, ter uma casa, ter segurança
financeira, um trabalho, uma vida antes de decidir formar uma família. Não
tenho nada disto, tudo na minha vida é incerto, e tenho muito medo de trazer
este bebé ao mundo e não poder dar-lhe o melhor.
— Mas ele terá o melhor, Noah, e tu também. Estou aqui, olha para mim,
estou aqui e não vou a lugar nenhum.
Como podia fazê-la entender que o meu objetivo de vida seria fazê-la feliz?
— Mas foi mesmo isso que fizeste… foste-te embora — respondeu, afastando-
se de mim quando me aproximei com a intenção de lhe tocar. Queria que se
acalmasse, que visse o lado positivo das coisas.
— Tive de ir — respondi, ficando muito sério. — Este ano e meio em que
estivemos separados mudou-nos muito, Noah, não podíamos continuar a viver
no estado em que acabámos, naquele momento não éramos bons um para o
outro. Eu não te fazia feliz, e tu conseguiste magoar-me mais do que qualquer
pessoa que já conheci.
A Noah pareceu deixar de respirar.
— Não quero estar agora a atirar-te nada à cara, quero apenas que vejas as
coisas a partir de uma perspetiva diferente. O destino decidiu que devíamos
voltar a encontrar-nos, este bebé trouxe-te de volta para mim, e sinto-me muito
feliz por isso. E tu também vais sentir-te feliz, Noah, será esse o meu
compromisso.
— E se desta vez for eu quem não consegue fazer-te feliz?
Abanei a cabeça e segurei o seu rosto entre as mãos.
— Isso é impossível…
Beijei-lhe os lábios, precisava dela mais do que nunca, queria fazer amor com
ela, devagar, recomeçar onde tínhamos ficado, precisava de sentir a sua pele
contra a minha, ouvir os gemidos que saíam dos seus lábios, ouvi-la dizer o meu
nome uma e outra vez… Mas prometi-lhe que íamos fazer aquilo com calma.
— É melhor ir-me embora — disse, afastando a minha boca da sua. O rosto
da Noah estava corado, e era tão perdidamente adorável que tive de recorrer a
todas as minhas forças para me afastar dela. — Ligo-te amanhã, pode ser?
O que vi nos seus olhos afetou-me e beijei-a novamente. Quando me afastei,
sussurrei-lhe ao ouvido.
— Se quiseres que fique só tens de dizer.
Ela recuou um passo.
— Estou bem.
Senti uma pontada de dor, mas forcei um sorriso.
— Adeus, sardas.
44
NOAH

Apesar da conversa intensa que tivera com o Nick na noite anterior e depois de
tantas emoções juntas, como descobrir que ia ter um menino e que estava tudo
bem, havia muitos meses que não dormia tão bem. Dormi como uma pedra, ou
como um bebé, nunca a expressão veio mais a calhar, mas o meu despertar não
foi tão agradável como aquelas horas em que permaneci quase inconsciente.
Senti uma cãibra percorrer-me o corpo todo e um suor frio que me molhava a
nuca e as costas. Abri os olhos e, de repente, experimentei umas náuseas
imensas que me fizeram sair a correr em direção à casa de banho para vomitar o
pouco que conseguira meter no estômago na noite anterior.
Deus do Céu.
Estive um bom bocado ajoelhada em frente à sanita, com a testa pegajosa e as
pernas a tremer. Quando já não tinha nada para deitar para fora, senti-me com
forças para entrar no duche e tentar recuperar do que tinham sido os meus
primeiros enjoos matinais.
Não deveria aquilo acontecer logo no início da gravidez?
Tudo o que estava relacionado com o meu bebé parecia ser diferente das coisas
que lia ou que sempre presumira. Cada mulher é um mundo em si, pronto,
muito bem, mas, caramba… pensei que já me tinha livrado daquilo.
Naquele dia ia ter de ir às aulas, não podia continuar a faltar, e também tinha
de voltar a trabalhar. Passei nos exames todos e agora precisava de dinheiro,
mais do que nunca. Quando saí da LRB, o Simon ofereceu-me um emprego na
sua antiga empresa, e eu disse que ia pensar no assunto. Agora que já estava em
condições de voltar a trabalhar, liguei-lhe, e ele disse-me que podia começar na
próxima segunda-feira, ou seja, naquele dia. Tinha pavor de admitir que estava
grávida, mas não podia continuar a esconder a minha situação.
Vesti uma saia com roda e uma camisola preta, já que não quis passar pelo
amargo de boca de ver que as calças de ganga já não me serviam. Saí à rua com
uma fome terrível, as náuseas já tinham desaparecido, e a única coisa que me
apetecia era comer tudo o que tivesse a letra T: torradas, tofu, tortas, tiramisu,
tacos, talharim… estava tão concentrada nestes pensamentos que por pouco não
via quem estava à minha espera encostado a um Mercedes preto.
— Bom dia, sardas — cumprimentou-me, afastando-se do carro para vir ao
meu encontro. Antes de poder assimilar a sua presença, já ele me tinha dado um
beijo casto nos lábios. — Tomas o pequeno-almoço comigo? — perguntou um
segundo depois.
Assenti quase por inércia, e dez minutos depois estávamos sentados numa
cafetaria elegante do centro.
— Como estás? — perguntou-me enquanto me deliciava com um prato de
panquecas com xarope de ácer e sumo de laranja acabado de espremer.
— Depois de ter vomitado tudo o que tinha no estômago? Bastante bem.
O Nick ficou a olhar para mim perplexo.
— Vomitaste? Porque não me ligaste, Noah? — criticou, algures entre o
irritado e o preocupado.
Revirei os olhos.
— Acredita em mim… não ias querer estar presente; além disso, tenho quase
a certeza de que daqui em diante se vai repetir mais vezes, e não te posso ligar
de cada vez que me acontecer uma coisa tão normal como ter enjoos matinais,
Nick. Descontrai.
Não pareceu muito convencido com a minha explicação, mas ficou a olhar
para mim, divertido, enquanto eu comia como uma foca esfomeada.
— Hoje vais trabalhar depois das aulas?
Assenti enquanto acabava o que tinha no prato e lhe prestava um pouco mais
de atenção. Caramba, estava tão bonito! Como não me apercebera disso até
agora? Presumo que outro tipo de fome tinha subido alguns lugares até ficar no
cimo da minha lista de prioridades. Trocar o Nick por panquecas… Meu Deus,
devia ter vergonha!
— Não há nada que possa fazer para te convencer a voltares a trabalhar para
mim, pois não?
Pousei o garfo na mesa e olhei para ele, muito séria.
— Jurei a mim mesma que não voltaria a misturar-te com o trabalho,
Nicholas.
Assentiu, submerso nos seus pensamentos, e fiquei surpreendida ao constatar
que não se irritara, mas que parecia aceitar o que lhe dizia.
— Que tal se te for buscar quando saíres?
Hesitei por instantes.
— Não precisas de ser a minha ama­-seca, Nick. Posso perfeitamente pegar no
carro e essas coisas.
Ignorou as minhas queixas.
— Mas quero fazê-lo — disse, muito sério.
Não ia discutir com ele por causa disso, por isso pedi-lhe que me fosse buscar
às sete. Quando me deixou no campus, ia dar-me um beijo na boca, mas, num
gesto instintivo, virei a cara, e os seus lábios roçaram no meu rosto. Saí antes
que pudesse dizer alguma coisa. Ainda me custava fazer de conta que não tinha
acontecido nada no passado, e queria ir com calma. Se sabia alguma coisa acerca
dos beijos do ­Nicholas Leister, era que podiam ser viciantes… e eu não estava
disponível para vícios desses.

Foi estranho voltar a entrar na rotina. Ninguém pareceu aperceber-se de nada,


e pouco depois consegui agir como se realmente tudo continuasse igual. Foi
como viver numa mentirinha inocente. Conversei com os meus colegas de
turma, expliquei aos professores que tinha estado doente e, quando chegou a
hora de ir trabalhar, quase nem me lembrava de que estava grávida. A empresa
era pequena, e percebi que a minha função ali seria quase idêntica à que
desempenhara na LRB; além disso, os colegas revelaram-se encantadores.
Adorei voltar a sentir-me eu, só a Noah e não um ovo Kinder no processo de
fabricação da surpresa.
Quando saí estava bastante cansada, uma sensação que me assaltara depois de
ter estado todo o dia fora da cama; a minha energia parecia ter-se reduzido a
metade, por isso, quando vi o Nick à minha espera, agradeci não ter de pegar
no carro e conduzir até casa.
— Então, que tal o regresso? — perguntou-me ele já no carro.
— Foi muito estimulante. Ninguém se apercebeu de nada. — Tudo bem, a
minha voz soou demasiado feliz com isto, mas ignorei o sobrolho carregado do
Nick.
O silêncio abateu-se sobre nós, e, uns minutos depois, o Nick interrompeu-o
para dizer algo que me deixou imediatamente tensa.
— Vou deixar Nova Iorque. Vou vender o apartamento e mudar-me para cá
contigo.
— O quê? — perguntei, olhado para ele com incredulidade. O ­Nicholas
tinha a sua vida, o trabalho, o futuro, tudo, em Nova Iorque…
— Não achas bem? — perguntou, completamente perdido enquanto estendia
o braço para me segurar no queixo e poder olhar para mim.
Voltei a cara para me libertar.
— Não devias tomar esta decisão tão depressa. Achas que está tudo resolvido,
que podemos voltar a estar juntos como se não se tivesse passado nada, mas a
verdade é que da última vez nos despedaçámos um ao outro. O que te faz pensar
que estamos preparados para começar do zero?
— Vamos ter um filho, Noah — respondeu, imitando o meu tom de voz.
— Isso não é razão suficiente para abandonares a tua vida. Estás a forçar as
coisas, e não é assim que quero resolver os nossos problemas.
O Nicholas abanou a cabeça e resmungou entre dentes.
— Eu estou disposto a tentar de novo, sei que vai correr bem… Não sei que
diabo queres de mim, pensei que ias ficar contente. Estou a fazer tudo o que se
presume que devo fazer.
— Exato, tu próprio o disseste: estás a fazer tudo o que se presume que deves
fazer, mas não o que queres fazer.
— O que quero é estar contigo — respondeu, furioso.
Abanei a cabeça. Já tínhamos chegado ao meu apartamento.
— Mas eu acho que isso não é verdade, penso que estás a fazê-lo porque
consideras ser o mais acertado.
Saí do carro com a intenção de entrar em casa, mas o Nicholas impediu-me.
— Porque tens de complicar tanto as coisas? Vamos ter um filho, temos
finalmente uma razão para voltarmos a estar juntos, e, em vez de o aceitares,
tu…
— Supliquei-te que voltasses para mim e disseste-me que não — interrompi.
— Fico feliz por saber que o nosso filho nos vai ter a ambos e tenho a certeza de
que serás o melhor pai do mundo, mas neste momento, é só isso que vais ser,
Nicholas.
— Sabes perfeitamente que não vou aceitar aquilo que estás a dizer.
Olhei nos seus olhos e vi que estava a ser sincero. Mas eu também estava a
fazer aquilo por ele. O Nick nunca fora plenamente feliz ao meu lado,
magoámo-nos demasiado. Não queria começar novamente uma relação tóxica,
cujo único fundamento era que íamos ser pais.
— Pedi-te tempo, disse-te que queria levar as coisas com calma, que quero
concentrar-me neste bebé… A nossa relação pode esperar. Não quero que tomes
decisões precipitadas, das quais te podes arrepender ao longo da tua vida.
— Caramba, Noah! Por que razão não acreditas em mim quando digo que
quero estar contigo?
— Porque ainda não me disseste que me amas! — acabei por lhe gritar.
O silêncio instalou-se entre nós. O Nick olhou-me nos olhos, e vi a raiva e a
dor que os seus guardavam. Não me tinha perdoado, ainda não. E ele sabia
disso.
— Na última vez que disse que te amava, partiste-me o coração. Jurei nunca
mais voltar a dizer essas palavras, mas isso não significa que não queira passar o
resto da minha vida contigo e com o nosso bebé.
Contive as lágrimas o melhor que pude e voltei a falar.
— As coisas não funcionam assim, Nick — disse-lhe. — Volta para o teu
trabalho, volta para Nova Iorque, porque a bolha em que vivemos nestes
últimos dias acabou de rebentar.
Não esperei que me respondesse. Entrei no apartamento, e ele não veio atrás
de mim.

Por mais que tivesse detestado afastar o Nick de mim, sabia que era o mais
acertado a fazer. Ele tinha de perceber o que sentia por mim, e eu tinha de me
questionar se voltar a estar com ele era o melhor para os dois.
Não queria acabar as coisas a mal, palavra de honra que não, não queria criar-
lhe problemas, mas para o Nicholas era tudo ou nada, e eu não podia
simplesmente apagar o que acontecera e abrir uma página nova. Não me sentia
segura, e menos ainda se ele não estava preparado para me amar. A atração era
uma coisa, o sexo era fácil, nunca tínhamos tido problemas nesse aspeto, o mais
difícil era que não sabíamos entender-nos, não sabíamos respeitar-nos
mutuamente e não podíamos começar de novo se ele tinha medo de voltar a
abrir-me o seu coração.
Apesar da discussão daquele dia, na manhã seguinte estava novamente à
espera, em frente ao meu apartamento. Tinha dois copos de papel na mão e,
quando desci as escadas e me aproximei dele, olhou para mim muito sério.
— Olá — cumprimentou timidamente.
— Olá — respondi, aceitando o copo que me dava.
Era chocolate quente… o meu filho já ia nascer viciado em açúcar.
— Vou-me embora daqui a três horas. Só vim despedir-me de ti.
Por mais que lhe tivesse dito que devia ir-se embora, as suas palavras
magoavam-me como punhaladas. Baixei os olhos para tentar esconder a tristeza,
mas ele segurou-me no queixo e obrigou-me a olhar para ele.
— Estou a fazer isto por ti — disse, acariciando-me a maçã do rosto com o
polegar. — Se aprendi alguma coisa durante todo este tempo em que estivemos
separados, e que acabou por nos destruir, é que não posso obrigar-te a fazer nada
que não queiras ou para o qual não estejas preparada.
Mordi o lábio com força.
— Por isso, vou-me embora hoje e vou ligar-te todos os dias. Vamos começar
por conversar, por fazer planos, contas-me as tuas inquietações e eu conto-te as
minhas, falamos sobre como queremos criar este bebé, pensamos nos nomes;
vamos falar do futuro, Noah, porque te amo, amo-te hoje e vou amar-te para o
resto da minha vida.
O meu coração parou de bater durante instantes, sem conseguir acreditar no
que estava a ouvir.
— Se não to disse antes é porque acredito que o amor não se deve exprimir
por palavras. Achei que seria suficiente tudo o que estou disposto a fazer, e, na
realidade, tu sabes no fundo do coração que isto é verdade, porque estás morta
de medo de me deixar entrar novamente na tua vida. Entendo porquê. E é por
isso que me vou embora. Estarei aqui para todas as consultas com o médico e
voltarei sempre que precisares de mim. Vamos com calma nos próximos meses,
mas, Noah, eu vou fazer parte da vida deste bebé. Vou voltar agora para Nova
Iorque para pôr as coisas em ordem, e o passo seguinte será mudar-me
novamente para Los Angeles. Entendes?
Fiquei sem palavras.
O Nick tirou-me o copo de papel da mão e pousou-o ao lado do seu, em cima
do carro. A seguir puxou-me e envolveu-me nos seus braços. Senti os lábios dele
no cimo da minha cabeça e o bater enlouquecido do seu coração.
— Vou pedir-te uma coisa antes de me ir embora… — anunciou. — Bem,
duas, na verdade — acrescentou com calma.
Esperei que se explicasse. Virou-me as costas e foi buscar qualquer coisa à
pasta. Quando voltou para junto de mim trazia um cartão na mão direita. Um
segundo depois, estendeu-mo: era um cartão American Express preto.
— Quero que o uses — disse simplesmente.
Nem sequer lhe toquei.
— Não.
O Nicholas suspirou frustrado.
— É uma extensão do meu cartão. Quero que o uses para comprar o que for
preciso. E não estou a sugerir que o faças, Noah, não vou ceder nisto.
Cruzei os braços, subitamente enjoada.
— Já te disse que não quero que me sustentes, Nicholas.
Ele fulminou-se com os olhos claros.
— Por que diabo tens de ser tão teimosa? E se fosse ao contrário? Se fosses tu
quem tinha mais dinheiro do que eu, e a tarefa de trazer o nosso filho ao mundo
fosse minha? Não ias querer dar-me tudo o que pudesse precisar, Noah?
Mordi o lábio. Sim, claro que sim.
— Então fazemos o seguinte — propôs, encostando a testa à minha. — Como
sei que não vais usar o cartão para ti, pelo menos usa-o com o nosso bebé, está
bem? Qualquer coisa que precises de comprar… por favor, paga com o cartão.
Bem… isso já podia fazer. Afinal, o Nick era o pai, e não ia privar o bebé das
comodidades de nascer com um pai que aos vinte e cinco anos de idade tinha
um American Express preto. Acabei por aceitar o cartão, contrariada, e ele
pareceu ficar muito mais tranquilo.
— Qual era a segunda coisa que querias pedir-me? — perguntei.
— Quero que o Steve fique contigo enquanto eu não estiver cá.
Arregalei os olhos.
— O quê? Não! Não preciso de uma ama-seca, Nicholas! E nem quero o
Steve atrás de mim o dia todo. Isso é ridículo!
— Bem, o trabalho dele é justamente ser teu guarda-costas, amor.
Olhei para ele a soltar lume pelos olhos.
— Porquê? Por que diabo queres pôr um guarda-costas atrás de mim?
O Nick olhou para mim com seriedade.
— Primeiro, porque isso vai fazer com que eu não enlouqueça em Nova
Iorque. Segundo, porque estás grávida e sozinha, o que significa que pode
acontecer-te alguma coisa, e, se isso sucedesse, nunca mais na vida me
perdoaria.
Abanei a cabeça, mas sabia que nada do que dissesse o faria mudar de ideias.
— Está bem — aceitei, rindo-me.
O Nick olhou para mim com uma emoção que não soube decifrar.
— Deixar-te aqui é a coisa mais difícil que vou fazer na vida, Noah.
Não queria que se fosse embora, mas precisávamos de fazer isto bem. Não
podíamos voltar a estragar tudo. Já não podíamos correr esse risco, não com
tudo o que estava em jogo.
Abraçou-me com força. Beijou-me a ponta do nariz e a seguir acariciou-me o
ventre com delicadeza.
— Cuida deste bebé.
Assenti e afastei-me para que entrasse no carro.
Entrei em pânico ao ver que ia realmente embora, mas no fundo do meu
coração sabia que era o que tínhamos de fazer.

Naquela semana tudo pareceu regressar à normalidade. Voltei à faculdade e


continuei a esconder a minha gravidez. Não se passou um dia em que o Nick
não mandasse entregar-me um ramo de flores e um pequeno-almoço completo.
Até travei amizade com o rapaz das entregas. No tabuleiro vinha comida
suficiente para um regimento: café, chá, madalenas, croissants, panquecas,
chocolate, ovos, torradas… e chegava sempre tudo quentinho, pronto a comer.
— Estás maluco, sabias? — disse-lhe sete dias depois de se ter ido embora.
Falávamos todos os dias, uma ou duas vezes por dia, às vezes mais. Sempre que
ele tinha um tempo livre, ligava-me, e eu tentava fazer o mesmo nos meus
intervalos. Percebi que era mais fácil esperar que fosse ele a ligar-me, porque,
sejamos sinceros, ele tinha um trabalho mais complicado, e não era tão simples
esgueirar-se.
Enquanto segurava o telemóvel entre o ombro e a orelha, enchia uma das
poucas jarras de vidro vazias que me restavam para poder pôr o ramo gigante de
rosas azuis que me enviara.
— É uma boa forma de me assegurar de que te alimentas — justificou­-se
enquanto o ouvia a teclar do outro lado da linha.
Revirei os olhos… a questão da comida não era um problema para mim.
Tinha fome a todas as horas, e não era uma fome normal, não, apetecia-me
coisas como pão com manteiga e banana ou manteiga de amendoim com
esparguete. Juro. Estava a perder a cabeça ou todo e qualquer sentido de
gosto… Sei lá, mas estas coisas pareciam-me verdadeiros manjares.
— Que tal a mistura das laranjas com chili? — perguntou-me num tom
divertido.
— Bastante interessante, um dia faço para provares — respondi, sentando-me
na cadeira e apoiando as pernas em cima da mesa. Suspirei, cansada, e acariciei a
barriga com distração.
Contou-me que estava a resolver tudo para poder voltar a Los Angeles o
quanto antes, mas que estava a demorar mais tempo do que previra
inicialmente. Tinha de contratar alguém para o substituir, e não confiava em
ninguém para ocupar o seu lugar.
Contei-lhe como corriam as aulas; dali a pouco tempo, começavam as férias de
verão, e agora estávamos todos concentrados nos trabalhos para entregar e na
preparação para os exames finais, embora ainda faltasse um par de meses. A data
prevista para o nascimento era só em agosto, por isso ainda tinha algumas
semanas extras para poder cuidar do Mini Eu antes de decidir o que ia fazer em
relação ao trabalho e à faculdade.
Ficava um pouco triste por ter de abandonar o curso, mas depois de dar voltas
e mais voltas à cabeça acabei por compreender que era o mais acertado.
— Não precisas de abandonar o curso, Noah — comentou o Nick quando lhe
contei da minha decisão. — Isso é ridículo, há muitas mulheres que estudam e
têm filhos, há creches, e eu já vou estar aí para te ajudar…
— Não quero que o meu filho seja criado por amas, não quero fazer as coisas
mal, e tenho medo de que, se continuar a estudar e a cuidar do bebé, acabe por
não fazer nenhuma das duas coisas em condições; além disso, tu quase não tens
tempo para me ligar, quanto mais para ficar em casa a cuidar de um bebé.
— Do meu bebé — corrigiu ele, e um sorriso rasgou-se nos meus lábios. — E
estás a esquecer-te de um pequeno detalhe: o patrão sou eu, posso fazer o que
me apetecer.
— Ai, sim? — perguntei com ironia. — Então diz-me: podes estar aqui para
a próxima consulta com o obstetra?
Fez-se um silêncio do outro lado da linha.
— Não te estou a julgar, eu entendo, vais ter de trabalhar, e eu vou ter de
cuidar dele… Depois logo se vê como faço para continuar o curso, podia estudar
à distância…
Não era uma possibilidade que me entusiasmasse, gostava de ir à faculdade,
de sair com os meus amigos e de ir às aulas, mas não podia ter tudo, e não me
imaginava a deixar o meu bebé com outra pessoa.
— Noah, a minha situação é provisória — afirmou ele, interrompendo as
minhas divagações. — Agora está tudo de pernas para o ar, mas, quando
resolver as coisas aqui, serei todo teu.
Não tínhamos falado sobre nós, embora nas nossas conversas sempre nos
incluíssemos nos planos um do outro. Gostava disso, mas ao mesmo tempo
tinha medo de estragar o que estávamos a construir. Por isso, não insisti quando
disse que por enquanto não podia voltar.
O que não esperava era vê-lo antes do tempo no noticiário das quatro. Quando
ouvi o seu nome na televisão, subi o volume e fiquei a ver muito preocupada.
«Os ex-funcionários das Empresas Leister manifestaram-se em frente ao novo
edifício da LRB exigindo a restituição dos seus empregos.»
Quem dava a notícia era uma jornalista que já tinha visto algumas vezes na
BBC. As imagens mostravam a entrada do edifício onde ele trabalhava antes e
as pessoas ali reunidas com cartazes nas mãos. A polícia isolara a zona, mas,
mesmo assim, não tinham intenção de sair dali.
«Há pouco mais de um ano, o primogénito do abastado advogado William
Leister herdava o império que Andrew James Leister ergueu ao longo de anos e
anos de esforço, transformando as Empresas Leister numa das companhias mais
prósperas e reconhecidas do país. Não foram poucos os que consideraram uma
loucura entregar uma responsabilidade desta monta a um jovem que mal
atingira a idade suficiente para saber o que é uma empresa.»
Subi o volume e olhei, indignada, para o ecrã.
«A primeira ação de Leister foi encerrar duas grandes empresas, empresas
estas que o seu avô construiu praticamente do nada; o novo dono despediu mais
de quinhentas pessoas, deixando-os no desemprego com o ambicioso plano de
abrir uma nova empresa que ainda está em estudo quanto à sua rentabilidade e
que pode transformar-se no primeiro fracasso da história da família Leister.
Hoje, as pessoas que foram despedidas injustamente manifestaram-se em frente
aos escritórios da LRB para exigir que os seus empregos lhes sejam
devolvidos…»
Aquilo era ridículo. Sabia que o Nicholas estava a trabalhar, mas precisava de
falar com ele. Atendeu ao terceiro toque.
— Estás bem? — perguntou, preocupado, em jeito de cumprimento.
— Sim, estou ótima, mas parece que tu nem por isso. Vieste nas notícias… O
que aconteceu? Quando ias contar-me o que se passa, Nicholas?
Não podia acreditar que estivesse com problemas e não me tivesse dito nada.
— Não é algo com que precises de te preocupar.
Soltei uma gargalhada amarga.
— Não tenho de me preocupar? Estão a esventrar-te na televisão!
— É o que a imprensa faz, pega num punhado de mentiras e transforma-as
em notícias.
— Mas… e os funcionários e o que dizem da LRB?
Uma sensação de amargura inundou-me o peito. Não queria ouvir aquelas
coisas horríveis sobre o Nick, magoavam-me mais do que se as estivessem a
dizer sobre mim.
Ele suspirou do outro lado da linha.
— Tive de despedir aquelas pessoas porque as empresas teriam falido daqui a
quatro anos. Não estavam a ser bem geridas, mal davam lucro. Se as encerrasse
agora, com o dinheiro da liquidação podia começar um negócio novo e voltar a
contratar as pessoas que despedir, mas isso leva tempo.
— Não precisas de me dar explicações. Sei que não o fizeste com gosto.
— Neste ramo é preciso tomar decisões difíceis, que são uma treta.
— Tu estás a fazer um ótimo trabalho, Nicholas, essa gente não faz ideia.
Ele ficou em silêncio durante um instante.
— A Empresa Leister nunca teve tanto lucro como agora; a minha intenção é,
daqui a um ano, abrir outra sucursal da LRB. Para isso, contrataria quase
setenta por cento dos antigos funcionários.
Sabia que o Nicholas nunca iria despedir tanta gente sem ter um trunfo na
manga. Odiava pensar que aquelas pessoas o criticavam quando ele tinha um
plano em marcha para melhorar as coisas.
— O que vais fazer agora? — perguntei, com medo de que isso o obrigasse a
prolongar a sua estada em Nova Iorque mais tempo do que o previsto.
— Vou deixar que os meus advogados continuem a fazer o seu trabalho. É
como te disse, não precisas de te preocupar com isto.
— Está bem…
As conversações alongaram-se durante mais três semanas, e as coisas
começaram a complicar-se. Em primeiro lugar, as nossas chamadas começaram a
subir de tom à medida que nos íamos apercebendo de que estarmos separados e
falarmos todos os dias era mais difícil do que não termos falado durante quase
um ano. Percebi que precisava de o ter comigo e que, à medida que o bebé
crescia, maior era a minha vontade de lhe implorar que regressasse.
— Preciso de te tocar, Noah — confessou-me em certa noite. — Já se passou
tanto tempo que nem me lembro como é estar dentro de ti.
— Nicholas…
— Nunca devia ter vindo embora, devia ter sido egoísta, um egoísta que faria
amor contigo todas as manhãs nesse maldito apartamento em miniatura de que
te orgulhas tanto.
Sorri perante o seu arrebatamento e percebi que o calor provocado pelas suas
palavras me percorria dos pés à cabeça.
— Espero que ninguém te esteja a ouvir dizer isso — comentei, ­nervosa.
— Estou no meu apartamento, no quarto, na mesma cama onde te despiste
para me deixares completamente louco, lembras-te?
Fechei os olhos com força, sim, claro que me lembrava; o Nicholas entre as
minhas pernas, a beijar-me, a lamber-me e a tornar-me sua de forma indecente e
muito pouco saudável. Naquela altura estávamos emocionalmente destroçados,
mas não trocaria aquele momento por nada…
— Volta, Nick — disse então, provocando um silêncio do outro lado da
linha.
— O quê?
Sorri para o teto, nervosa e com o telemóvel bem colado à minha orelha.
— Volta para mim.
— Estás a falar a sério?
— Quero tentar, de verdade, quero-te comigo todos os dias, quero beijar-te,
quero que me abraces. Nicholas, quero que voltes, e o Mini Eu também quer.
Ele riu-se do outro lado da linha.
— Vou apanhar o primeiro voo que conseguir e vou fazer-te tudo o que te está
a passar por essa cabecinha.
Tapei a cara com a mão enquanto tentava esconder a minha alegria e
vergonha. Bem, as coisas que me passavam pela cabeça…
— E, por falar em Mini Eu… pensei num nome.
— A sério? Qual? — Isto apanhou-me de surpresa. Ele já pensara num nome?
O Mini Eu, ou melhor, o mini-Nick, ia ter um nome próprio e um apelido?
Toquei inconscientemente na barriga.
— Quando te vir, digo-te, mas, se não gostares, pensamos noutros. De certeza
que também já tens alguns em mente…
Corei ao perceber que ainda não pensara num único nome.
Acabámos por nos despedir com «amo-te» e com a promessa de voltarmos a
ver-nos. O reencontro seria especial, estávamos finalmente na mesma onda…
Morria de vontade de o beijar, de aceitar tudo o que quisesse fazer comigo,
todas as coisas que me queria dar, esse futuro que pintava tão bem à frente dos
meus olhos.
Estava finalmente preparada para começar do zero.
45
NICK

Estava a ter muitos problemas na empresa. Tinham-nos chegado muitas queixas


por causa dos despedimentos. As manifestações também começaram a acontecer
junto à sede, em Nova Iorque, e a última coisa que podia fazer agora era
anunciar que me ia embora. Não quis dizer à Noah o que estava a acontecer
porque não desejava que se preocupasse, mas temia que o meu regresso a Los
Angeles se adiasse mais tempo do que qualquer um de nós desejava.
Não havia nada que me custasse tanto quanto estar longe dela naquele
momento. Andava a deixar o Steve louco, porque lhe ligava várias vezes para
perguntar se a Noah tinha comido, como a achara naquela manhã, que aspeto
tinha… estava obcecado, com medo de que lhe acontecesse alguma coisa. Tinha
pavor de que a imprensa descobrisse que estava grávida e acordava todas as
noites com um maldito pesadelo recorrente em que a Noah perdia o bebé e
morria no parto.
Precisava de a ver, de lhe tocar, de sentir o meu filho e de me assegurar de que
estava tudo bem. Sabia que a Noah não ia demorar muito a pedir-me que
voltasse, sabia que só precisava de tempo, e, agora que mo pedira, todos os dias
tinha reuniões malditas a que não podia faltar.
A Noah já estava de seis meses, não me tinha enviado fotografias, mas o Steve
contara-me que já se notava a barriga. Disse-me que a sentia nervosa e que sabia
que ela andava com medo da reação das pessoas e a dos nossos pais. Quando lhes
contássemos, ia rebentar a Terceira Guerra Mundial, mas não podia importar-
me menos com isso. Estava finalmente feliz, depois de tanto tempo. Amava
aquela miúda mais do que qualquer outra pessoa no mundo e queria aquele
bebé com todo o meu coração.
46
NOAH

Precisava que o Nick regressasse, o bebé estava cada vez maior e já se notava a
barriga. Não insisti porque sabia que, se não estava já comigo, era porque não
podia mesmo viajar. Não tinha a menor dúvida de que o Nick queria estar ali,
mais até do que eu, e isso deixava-me bastante nervosa. A minha mãe já me
ligara duas vezes a pedir que a fosse visitar e até me disse que passava pela
minha casa para irmos almoçar. Disse-lhe que estava em plena época de exames,
que quando pudesse a visitava, mas ela conhecia­-me suficientemente bem para
reparar que estava estranha ao telefone.
— Estás a esconder-me alguma coisa, Noah, mas, tudo bem, quando nos
virmos falamos — disse-me na quarta-feira seguinte.
Além do Lion e da Jenna, o Steve era o único que sabia o que se passava. Eu
não lhe disse nada, mas bastava ver como me tratava para comprovar que estava
ao corrente de tudo. Presumo que conhecesse toda a situação: o Nick devia ter-
lhe dito.
Três semanas e meia depois de o Nick se ir embora, tive um grande problema
quando abri o meu armário e vi que já não tinha praticamente roupa que me
servisse. Não havia como escondê-lo. Entrei em pânico e liguei ao Nicholas sem
me importar que estivesse em reuniões ou ocupado. Ele atendeu ao primeiro
toque.
— Tens de voltar, Nicholas — pedi, tentando conter as lágrimas. — Já não
consigo esconder… estou gorda! A roupa não me serve, as pessoas já começaram
a olhar para mim de lado… Tens de voltar! Temos de pensar como vamos contar
isto aos nossos pais!
Estava a ter um ataque de ansiedade brutal, daqueles ataques dementes que de
vez em quando se apoderavam de mim.
— Só um segundo, se me dão licença — disse a alguém, que não a mim. —
Acalma-te, sardas — acrescentou, um instante depois.
— Não posso acalmar-me! — gritei horrorizada. Tinha o quarto num caos, a
roupa espalhada por todo o lado. Já nem a roupa interior me ficava bem,
achava-me horrível, e tinha medo de que, quando me visse, o Nicholas ficasse
espantado ao ver como o meu corpo mudara tanto em tão poucas semanas… —
Eu não consigo fazer isto… preciso de te ver, preciso que me dês um abraço,
que me digas que vai correr tudo bem, preciso…
— Acabei de te mandar um bilhete de avião para o e-mail — informou-me
então num tom de voz calmo e sereno, completamente oposto ao meu.
— O quê?
— Eu também preciso de te ver, mas não posso viajar este fim de semana, por
isso comprei um bilhete de avião para vires tu ver-me. Ia ligar-te esta noite para
te contar, mas, como estás a ter um verdadeiro ataque de ansiedade, é melhor
contar-te agora.
Soltei todo o ar que estava a conter e deixei-me cair sobre o sofá no canto da
sala.
— Vou ver-te este fim de semana? — perguntei, subitamente emocionada. As
últimas pontadas de ansiedade acabaram por desaparecer, como as ondas na
praia.
— Sim, meu amor. Achas que consegues aguentar sem enlouquecer só mais
dois dias?
Revirei os olhos e resmunguei, irritada.
— Se te estivesses a transformar num verdadeiro planeta, aposto que também
ficarias de mau humor, ó engraçadinho — respondei, tentando soar aborrecida,
mas sem conseguir.
Ia sentir finalmente os seus braços à volta do meu corpo e os lábios sobre os
meus!
«Ouviste, pequenote?» — pensei, acariciando a barriga. — «Vamos ver o
papá!»

Como não podia viajar até Nova Iorque com uma T-shirt dos Ramones como
única indumentária, tive de ceder às insistências da Jenna e ir comprar algumas
roupas de pré-mamã.
Detestava esta palavra: «pré-mamã»… Era horrível, fazia-me sentir como um
prato pré-cozinhado ou algo do género.
— Vais ver que vamos encontrar roupa juvenil e que te fique bem. Tens a
sorte de ser uma dessas raparigas que só engordam na ­barriga; se olhar para ti
pelas costas, nem sequer me ocorreria pensar que estás grávida, nem de longe
nem de perto.
— Olha, ótimo, Jenna, a partir de agora vou dizer a toda a gente que só fale
para a minha nuca.
Estava um pouco resmungona, mas a Jenna aguentava tudo com paciência e
alegria, coisa que ainda me deixava mais stressada.
Tentou levar-me a uma loja de alta-costura, mas recusei-me terminantemente.
Acabei por ir à gap, em que se me desviasse um pouco para a direita,
encontrava roupa de senhora, normal e moderna, coisa que me dava um enorme
alívio mental.
Por algum motivo, a roupa de grávida era três vezes mais cara do que a
normal, e fiquei angustiada ao perceber que ia ter de usar o cartão do Nick.
Ainda não lhe tinha tocado e odiava ter de o fazer para comprar aqueles trapos
estúpidos.
Fui diretamente para a zona da roupa desportiva: peguei num par de leggings e
em três camisolas de capuz. A Jenna, por sua vez, dedicou-se a fazer conjuntos
com três calças e camisas bonitas e também me escolheu um vestido cinzento
justo.
— Onde vais com isso? — perguntei horrorizada. — A ideia é esconder a
barriga, não exibi-la para todo o mundo.
A Jenna olhou para mim irritada.
— Para de esconder o meu afilhado, está bem?
As suas palavras chocaram-me por algum motivo que demorei a entender. O
bebé remexeu-se dentro de mim, inquieto. Agora já sentia quando ele estava a
dormir ou acordado. Também aprendera que, se comesse doces, as suas
perninhas começavam a dar pontapés na barriga, como se ficasse louco de
felicidade… Detestara não estar com o Nick para ele sentir os primeiros
pontapés, tinha sido um momento incrível e por isso precisava tanto de que ele
voltasse. Estava a perder tudo.
Não queria escondê-lo… já não queria.

Na sexta-feira à tarde apanhei o voo direto de Los Angeles para Nova ­Iorque.
O Nick comprara-me um bilhete para a primeira classe, o que agradeci como
nunca achei que faria. Se ficasse com enjoos, preferia ir vomitar a uma casa de
banho onde só entrava meia dúzia de passageiros. Porque, sim, eu não tinha
enjoos matinais, tinha enjoos em qualquer hora do dia. Mais uma coisa a somar
à lista de uma gravidez completamente fora do comum.
O voo demorava cinco horas e meia a chegar a Nova Iorque, e fui a dormir
durante a maior parte do trajeto. Cheguei por volta das nove da noite. Dei
ouvidos à Jenna e, arranjei-me um pouco melhor e decidi pôr o vestido cinzento
justo ao corpo, um casaco preto e as minhas sapatilhas Adidas favoritas. Estava
confortável, e a minha pequena barriga evidenciava-se como se quisesse dizer ao
mundo: «Cheguei!»
As pessoas olhavam para mim de um modo estranho, havia uma energia
estranha quando se estava grávida, era como se fosse uma pequena bomba-
relógio para quem as pessoas olham com felicidade, nervosismo e admiração.
Era a primeira vez que andava oficialmente na rua como uma grávida, e, não sei
se consigo explicar-me bem, gostei da sensação. O Steve tinha vindo sentado ao
meu lado; era um homem de poucas palavras que apanhei a ler a biografia de
Pablo Escobar. Não fiz qualquer comentário, mas ri-me sem ele ver.
O Nick estaria à minha espera no aeroporto e depois íamos jantar no seu
apartamento.
Meu Deus, estava tão nervosa, tinha tanta vontade de o ver… Dissemos
muitas coisas, algumas das quais nem me atrevia a pronunciar em voz alta, e
morria para me sentir novamente parte de si, parte da sua vida.
Como não fizera o check-in da mala, quando saímos do avião pudemos ir
diretamente para a porta de saída. O Steve levava a minha pequena mala. Não
que eu não pudesse com ela, nada disso, mas ele ficou com um mau humor tal
que acabei por ceder e deixar que me ajudasse. Os meus passos foram-se
tornando cada vez maiores… Queria vê-lo, queria chegar depressa, para voltar a
sentir-me completa.
Chegar até à saída demorou uma eternidade. Quando atravessámos finalmente
a porta, vi-o: ali estava, com um ramo de rosas vermelhas na mão, à minha
espera. Vestia umas calças de ganga e uma camisola de malha azul-marinho.
Destacava-se da multidão pelas flores e pelo cabelo revolto e olhos azuis-
celestes, que brilhavam como dois faróis ao entardecer de um bonito dia de
verão.
Sorrimos um para o outro como se tivessem acabado de nos injetar felicidade
líquida nas veias. O meu coração inchou tanto que pensei que não ia caber-me
no peito.
Mas depois… como se estivesse no meio de um filme de terror, algo
aconteceu.
Não sei se já alguma vez passaram por algum acontecimento traumático, um
evento que vos tenha mudado para sempre. Algo que acontece em câmara-lenta
mesmo em frente aos nossos olhos e em que o cérebro regista cada pormenor
que pagaríamos para esquecer.
Eu vi tudo… e ainda recordo cada maldito detalhe daqueles quinze segundos
em que acreditei que ia morrer.
Recordo-me do grito que ficou afogado na minha garganta. Também me
recordo que as minhas pernas ficaram paralisadas e que não consegui fazer nada
para começar a correr.
O estrondo do primeiro tiro rebentou a bolha de felicidade em que nos
encontrávamos. A mim deixou-me cravada no sítio; ao Nick, pelo contrário, fê-
lo cair ao chão. Ele recebera o impacto da bala pelas costas, à traição.
Ainda consigo ver a expressão de surpresa do Nick quando baixou os olhos e
viu que a mancha de sangue alastrava sobre a sua roupa e no chão, junto aos
seus pés. O segundo tiro surgiu tão rápido como o primeiro. Vi a dor refletida
no seu rosto, senti o meu coração a parar… literalmente, a parar.
Então, tudo aconteceu muito depressa. Alguém me bateu por trás, caí ao chão
e voltei a mim. Até àquele instante, tudo estivera em silêncio, o alvoroço do
aeroporto, as pessoas a movimentarem-se ao meu lado, tudo se apagara para me
deixar ouvir apenas o som da pistola a disparar.
— Noah, não te mexas! — gritou-me o Steve ao ouvido, arrancando-me da
minha letargia, do maldito estado de choque.
Vi, desta feita a uma velocidade normal, quatro polícias derrubarem aquele
homem e as pessoas correrem por todo o lado, completamente horrorizadas. Os
meus olhos só conseguiram fixar-se na pessoa que estava como eu, caída no
chão, com os olhos abertos e a vida a escorrer-lhe entre os dedos.
— Nicholas!
47
NICK

Acho que é verdade aquilo que dizem que quando estamos prestes a morrer,
toda a vida nos passa à frente dos olhos, numa espécie de projeção de
diapositivos… embora não seja exatamente assim. Porque eu só vi uma coisa: a
Noah.
Não precisava de pensar muito para perceber que a Noah era toda a minha
vida, era simples. As imagens que desfilaram perante os meus olhos não foram
os melhores momentos da minha vida, mas os da nossa, e não da vida que
tínhamos partilhado até então, não. Não vi aqueles instantes cheios de altos e
baixos, nem os da separação, da traição ou das brigas… vi exatamente o oposto:
vi a minha vida futura com ela.
Vi-nos a caminhar pela praia, a celebrar o aniversário do nosso filho, vi-a a ela,
linda e radiante, à minha espera todas as noite na cama para me cobrir de beijos
e atenções. Vi-a engravidar outra vez, e agora estávamos mais preparados do que
nunca, sem surpresas, sem medos e sem inseguranças. Vi-a comigo na cozinha,
estávamos a discutir e logo a seguir a devorar-nos com beijos ali mesmo, em
cima da bancada. Vi-a a chorar, a rir, a sofrer e a crescer. Vi a sua vida à frente
dos meus olhos, a sua vida comigo… e adorei-a.
Só que depois questionei-me: «Por que razão estou a ver isto? Porque sinto
que me estão a mostrar uma coisa que nunca vou conseguir ter?» Senti um
buraco a abrir-se no meu peito, um vazio que me percorria por inteiro…
Não.
É que nem a brincar.
Ainda não chegara a minha hora.
48
NOAH

Não sei como explicar os minutos que se seguiram aos tiros, mas posso afirmar
com toda a certeza que foram os piores da minha vida. Guardo-os na memória,
um pouco esbatidos, mas ao mesmo tempo tão claros como se os tivesse visto no
ecrã de uma televisão de última geração.
Segundo me disseram mais tarde, a ambulância não demorou muito a chegar
ao aeroporto. A mim pareceram-me horas, horas eternas em que as minhas mãos
pressionaram o ferimento que o Nick tinha mesmo à altura das costelas. O
Steve, por sua vez, também pressionava o orifício que a bala lhe deixara no
braço esquerdo, destroçando-o. Havia um charco de sangue à volta do Nick, e
eu só me questionava a que velocidade o nosso corpo é capaz de criar sangue
novo e se essa velocidade seria o suficiente para compensar o sangue que ele
estava a perder agora.
Não desmaiei. Acredito que Deus me ajudou a ficar de pé, pelo menos até o
pessoal médico aparecer para se encarregar da situação. Quando a ambulância
chegou e me levantei, ao olhar para mim, senti as mãos separadas do meu corpo
e a minha mente completamente vazia. Nem fui capaz de pedir que me
deixassem acompanhá-lo. O Nick foi levado sozinho, à beira da morte, e eu
fiquei ali parada a vê-lo partir.
Recordo-me de que, quando deixei de ouvir o barulho da ambulância, olhei
para baixo, para as minhas mãos cheias de sangue, e só então fraquejei. Os
soluços deixaram-me praticamente sem respiração, e comecei a chorar
descontroladamente. Umas mãos agarraram-me antes que os meus joelhos
cedessem e caísse no chão.
— Respira fundo, Noah, por favor — disse o Steve, levando-me consigo,
tirando-me dali, afastando-me das pessoas que olhavam para a cena
horrorizadas, como se tudo aquilo fizesse parte de um episódio horrível do CSI.
Meteu-me num táxi, e fomos para o hospital. À medida que os minutos
passavam, pior me sentia.
— Porque foi sozinho na ambulância? Porque não foste com ele? Porque não
fomos os dois com ele?
— Não nos deixaram, Noah — respondeu o Steve enquanto pegava no
telemóvel e começava a marcar números à velocidade da luz.
O trajeto mais próximo entre o aeroporto e as Urgências do hospital demorava
treze minutos de carro, vinte e cinco com trânsito. Demorámos vinte minutos
certos. Quando chegámos, preparei-me para sair do carro, queria ir a correr para
me dizerem que o Nicholas estava bem, só queria vê-lo, precisava de o ver, a
imagem dele que tinha gravada na cabeça estava a matar-me, mas acho que
naquele momento tudo foi demasiado. Assim que pus um pé no chão, o mundo
desatou a girar e comecei a ver manchas negras por todo o lado. O Steve levou-
me até uma zona onde me sentaram e deram água.
Uma médica aproximou-se de mim e começou a tomar-me o pulso.
— Menina Morgan, preciso que se acalme — disse ela, enquanto olhava
fixamente para o relógio. — Ross, liga para as Urgências e pergunta pelo estado
do rapaz.
Olhei para o tal do Ross como se a minha vida dependesse dele.
Enquanto ele falava com alguém para perguntar pelo Nick, uma dor horrível
obrigou-me a agarrar a barriga com força.
— O que está a acontecer?
A médica voltou-se para mim, preocupada.
— Está a ter contrações — respondeu. — Tem de se acalmar, são provocadas
pelo stresse.
Antes de lhe poder responder, o tal do Ross aproximou-se de nós.
— O Nicholas Leister está no bloco operatório com dois ferimentos de balas.
Está estável, tendo em conta a gravidade do quadro. Vai ser operado ao pulmão
e ao braço esquerdo.
— Oh, meu Deus! — exclamei tapando a boca com a mão. — O que lhe vão
fazer? O que significa estável, tendo em conta a gravidade do quadro? Ligue
outra vez e peça que lhe expliquem o que está a acontecer!
A médica voltou a examinar o meu historial.
— A menina é casada com o senhor Leister?
— Quê? Não. O que tem isso que ver com o resto?
O Ross respondeu por ela:
— Não podemos dar-lhe informações, menina Morgan. Só um familiar direto
pode…
— Ele é o pai do meu filho! — gritei, desesperada.
Mas não valia a pena, não me disseram mais nada. O Steve ligou para o
William e para a minha mãe, e ambos foram para o aeroporto, para apanhar o
primeiro avião que conseguissem encontrar.
E eu tive de ficar ali, sem notícias. Só podia fazer uma coisa: rezar.

Uma hora depois, a hora mais negra da minha vida, as contrações pararam, e
tudo o que estava relacionado com o bebé pareceu voltar ao normal.
A minha mãe ligou-me para o telemóvel, estavam histéricos. O ­William
conseguira falar com um dos seus médicos. Graças a ele, fiquei a saber que o
Nick tinha um traumatismo no pneumotórax e os músculos do braço esquerdo
rasgados. Estava em estado grave, e temia-se que entrasse em choque devido ao
sangue que perdera até a ambulância chegar.
Recebi a informação, desliguei e fiquei ali sentada sem me mexer.
O Nick não podia morrer… não podia. Tínhamos de começar uma vida
juntos, tínhamos de acabar aquilo que começáramos. Depois de tudo o que
conseguimos ultrapassar, não mo podiam arrancar assim.
O atentado não demorou muito a aparecer nas notícias. O Steve preparou-se
para desligar a televisão, mas pedi-lhe que não o fizesse. O homem que tentou
matá-lo chamava-se Dawson J. Lincoln, tinha quarenta e cinco anos e era ex-
funcionário das Empresas Leister. Tinha sido despedido, não conseguira
encontrar outro emprego e por isso tentara assassinar o Nick.
«Nicholas Leister está a ser submetido a uma intervenção cirúrgica de
urgência devido a dois ferimentos de bala, enquanto o seu agressor se encontra
neste momento sob interrogatório numa esquadra da polícia, em Nova Iorque.
Tudo indica que foi um ato premeditado, já que o agressor parecia saber o local
e a hora exata onde o senhor Leister se encontraria para assim atentar contra a
sua vida.
»Nos últimos meses, o jovem advogado e herdeiro de uma das corporações
mais reconhecidas do país foi duramente criticado pela imprensa e pelos seus
ex-funcionários devido às centenas de despedimentos que teve de levar a cabo ao
longo do último ano. Ainda que as duas empresas encerradas estivessem à beira
da bancarrota…»
Deixei de ouvir quando o assunto se afastou do agressor. Outra vez aquela
conversa nojenta sobre o Nicholas. Não queria ouvir nada daquilo. Tinham
tentado matá-lo! Ao Nick! Esfreguei as mãos sobre a cara, precisava de saber
que ele estava bem, tinha de falar com o médico.
Não me mexi da sala de espera durante as três horas seguintes, só me levantei
para ir à casa de banho e para beber água. Aquele lugar era horrível, havia gente
a chorar, à espera de receber notícias sobre os seus entes queridos, exatamente
como nós. O cheiro de hospital sempre me deixara enjoada, e agora mais do que
nunca.
A única coisa que aconteceu naquelas três horas foi o aparecimento de dois
homens de fato, altos e fortes como o Steve, que falaram com ele durante alguns
minutos e a seguir se puseram ao lado das portas da sala de espera. Não lhes
prestei muita atenção, mas levantei-me quase de um salto quando dois
cirurgiões passaram pelas mesmas portas e se dirigiram a mim.
— É familiar de Nicholas Leister?
— Sou a namorada — respondi, tentando controlar o tremor da voz.
O cirurgião de cabelo encaracolado e curto foi o primeiro a falar.
— Só posso dizer-lhe que ele se encontra estável, mas as próximas horas vão
ser cruciais. Perdeu muito sangue, e tivemos de reparar muitos ferimentos
internos provocados pela bala que lhe perfurou o pulmão.
Assenti, mordendo o lábio com força, tentando não desmaiar.
— Ele vai ficar bem? — perguntei com a voz trémula.
— É jovem e forte. Vamos vigiá-lo a todo o instante.
Isto não respondia à minha pergunta.
— Posso vê-lo? — pedi, suplicando com o olhar.
Ambos abanaram a cabeça, embora olhassem para mim com pena.
— Só os familiares diretos, lamento.
Então o Steve pôs o braço sobre os meus ombros e puxou-me para si.
— Ele vai ficar bem, Noah — sussurrou-me ao ouvido enquanto me agarrava
à sua camisa com força, sem conseguir evitar chorar em silêncio.
O telemóvel começou a tocar, limpei as lágrimas e atendi. Era a minha mãe a
dizer que tinham conseguido arranjar voo. Um amigo do William emprestara-
lhe um jato privado, e dali a cinco horas estariam em Nova ­Iorque. Senti um
alívio imenso no peito ao perceber que ia ter a minha família comigo, que o
William ia poder saber mais sobre o estado do Nick… mas depois percebi que,
se eles fossem para lá, também me iam ver a mim…
Estava na hora de contar tudo… e, como temia, ia ter de o fazer sozinha.
*
Como não quis sair durante toda a noite, o Steve encarregou-se de que me
trouxessem a minha mala e qualquer coisa para jantar. Não tinha fome, mas
comi uma sopa com massa só para não ter de o ouvir insistir que comesse. Com
os meus objetos à minha disposição, fui até à casa de banho e mudei de roupa.
Vesti outra vez peças soltas e largas, que me escondessem pelo menos a barriga,
para a minha mãe não ter um enfarte assim que me visse. Ia contar-lhe, como
era evidente, mas tinha de encontrar o momento adequado. Não queria desviar
a atenção do que era verdadeiramente importante naquele momento: o Nick.
Assim, seis horas depois, seis horas durante as quais mal consegui pregar olho
e em que o meu pescoço, as costas e o ventre me doíam tanto como se tivesse
levado uma tareia, a minha mãe e o William entraram pelas portas da sala de
espera.
Não consegui evitar: corri para os braços da minha mãe; nunca na minha vida
precisara tanta dela. Ela abraçou-me com força e acariciou-me o cabelo com os
seus dedos compridos. A minha barriga incipiente estava entre as duas, mas ela
pareceu não se aperceber de nada. O susto que tomara conta do seu corpo, como
do de todos nós, não a deixou ver mais além do que era imprescindível.
Expliquei-lhes o que acontecera, e o Will foi falar diretamente com os
médicos. Não o deixaram entrar, mas disseram-lhe que de manhã ia haver uma
hora de visitas. O estado do Nick não sofrera alterações, nem para o bem nem
para o mal; por enquanto mantinha-se estável, o que, segundo os médicos, era
bom sinal.
Não tivemos muito tempo para falar. Dois polícias apareceram pouco depois
de eles chegarem e levaram-me a mim e ao Steve para recolherem os nossos
testemunhos. Contei-lhes tudo o que vira com os pelos arrepiados e o medo a
invadir-me o corpo. Nunca iria esquecer os estrondos dos disparos. Jamais.
Quando chegou a hora das visitas, só o William teve autorização para entrar.
Tive vontade de empurrar as portas e desatar a correr em direção aos Cuidados
Intensivos, tive vontade de gritar por não me deixarem passar, mas guardei
tudo para mim. Agora precisava de ficar tranquila, para poder ultrapassar tudo
o que estava a viver, para não prejudicar o bebé… o bebé…
Olhei para a minha mãe, preocupada, sentada ao meu lado com os dedos
entrelaçados nos meus.
A minha mãe… tínhamos passado por um mau bocado, tudo se tornara tão
difícil entre nós. Onde estava a relação que tínhamos quando vivíamos no
Canadá? Quando deixara de confiar nela, de lhe contar as coisas?
Respirei fundo e virei-me na sua direção.
— Mãe… — disse, engolindo em seco. — Tenho uma coisa para te contar…
A minha mãe dirigiu-me toda a sua atenção, olhou para mim, preocupada, e
julguei ver uma certa indulgência na sua expressão.
— Já sei o que me vais dizer, Noah — disse, apertando-me os dedos com
força. — E parece-me bem que tenhas reatado com o Nicholas, filha; mais do
que isso, fico feliz por saber que estão juntos outra vez.
Arregalei os olhos, surpreendida e também aliviada ao verificar que ela não
fazia a menor ideia de que eu estava grávida.
— Nunca deveria ter-me oposto à vossa relação… Ver-vos separados, ver
como viveram destroçados neste último ano… — continuou, enquanto cravava
os olhos nos meus — matou-me por dentro. Se o Nick é a pessoa que te faz
feliz, não vou intrometer-me na vossa vida. É a única coisa que quero, Noah,
ver-te feliz.
Assenti em silêncio, com os olhos húmidos e tentando formular as palavras
certas para confessar à minha mãe que estava grávida de seis meses. Grávida de
um rapaz que, até esse momento, nunca desejara para mim, o mesmo que era
seu enteado.
Como se dizia uma coisa dessas? Como se diz à nossa mãe que dali a três
meses vai ser avó? Reparei no olhar do Steve cravado em mim e, quando olhei
para ele, fez-me sinal para ser forte e contar tudo.
Ai, meu Deus…
— Mãe… — comecei, aproveitando o facto de o Will ter saído para ir beber
um café. — Tenho outra coisa para te contar… algo que não estava nos planos
de ninguém, mas que aconteceu sem mais nem…
Bem… não foi bem sem mais nem menos, mas também não ia entrar em
detalhes.
A minha mãe olhou para mim, preocupada, sem entender nada. Como não me
atrevia a abrir a boca, peguei-lhe na mão e pousei-a sobre a minha barriga. Os
seus olhos arregalaram-se imediatamente e afastou a mão um segundo depois,
assustada.
— Noah… diz-me que não… Diz-me que não estás…
Chegara a hora de contar a verdade.
— Grávida? — acabei a frase quase num murmúrio.
Inicialmente a minha mãe abanou a cabeça, depois percorreu o meu corpo
todo com o olhar até se centrar na minha barriga, bem, na barriga que estava
por baixo da camisola enorme do Nick.
— De quanto tempo estás…?
Engoli em seco para aclarar a voz.
— De seis meses, mas só descobri há dois meses e meio… Não queria
esconder-te isto, mãe, mas eu também fiquei estupefacta, como tu, e precisei de
tempo para interiorizar a notícia, para contar ao Nick e para tentar perceber o
que ia fazer com a minha vida…
— O Nicholas sabe?
O seu tom de voz era novo, um tom recém-criado no seu registo vocal,
presumo que seja comum a todas as mães quando as suas filhas lhes largam
bombas como esta em cima, vindas do nada.
— Sim, o Nicholas sabe.
A minha mãe abanou a cabeça e olhou para a minha barriga. Por mais medo
que tivesse tido ao fazer aquela confissão, agora sentia-me preparada para a
enfrentar a sua reação. Agora que o Nicholas estava a lutar pela vida, o bebé que
trazia dentro de mim era a única coisa que me mantinha de pé. Era a única coisa
que tinha dele, uma parte de si, uma parte de nós. Naquele instante e até que
eu deixasse de existir, este bebé seria a coisa mais importante para ambos, a
nossa âncora na tempestade, a nossa ligação infinita.
Peguei na mão da minha mãe e levei-a novamente à minha barriga.
Ela ficou com os olhos rasos de lágrimas, mas conhecia-a suficientemente bem
para saber todas as coisas que lhe passavam pela cabeça: que eu era muito
nova… que tudo ia ser difícil… Tantas vezes que me disse para esperar até ter
filhos, para estudar, para me preparar, para me formar e crescer…
Mas a vida é mesmo assim, imprevisível. Uma pessoa não consegue controlar
o futuro, nem sequer consegue controlar com quem vai chocar numa esquina.
Só sabemos que estamos no caminho certo depois de o percorrermos. O destino
trouxera-me esta situação e só podia enfrentá-la o melhor que soubesse… a
minha mãe ia ter de fazer o mesmo.
— É um menino — anunciei um instante depois.
A imagem do bebé nos meus braços surgiu então no meu pensamento. O meu
bebé, com as suas bochechas gordinhas e os olhos lindos… o meu bebé, cujo pai
podia nem chegar a conhecer.
A minha mãe abanou a cabeça, sem reagir.
— Se o Nick não se safar disto, não sei o que vou fazer — confessei, morta de
medo. A minha mãe abraçou-me com força, chorámos as duas, não sei durante
quanto tempo, só sei que dissemos coisas muito bonitas uma à outra. Claro que
ela também me repreendeu por ter sido tão irresponsável e por não lhe ter
contado antes. Conversámos enquanto estivemos ali sentadas, até podermos
contar tudo ao William.
O Will quase morria de susto também. Nunca o tinha visto tão devastado, tão
preocupado e tão tremendamente destroçado.
Cada pessoa ama os seus filhos à sua maneira, e, para o Will, o Nick seria
sempre aquele menino moreno de olhos azuis que metia rãs nos bolsos das
calças.
O Nick tinha de ficar bom… não só pelo nosso bebé, mas por todos nós.
Ninguém suportaria perdê-lo. Ninguém.
49
NOAH

Felizmente, dois dias depois, o Nick começou a reagir ao tratamento, e tiraram-


no dos Cuidados Intensivos. Uma vez fora desta unidade, o hospital foi mais
indulgente em relação às visitas e, depois de quatro dias sem o ver, deixaram-
me entrar. Estava sedado e tinha o tronco completamente enfaixado. O braço
esquerdo estava pousado sobre uma tala para que não o mexesse. A sombra
escura da barba por fazer cobria-lhe o rosto, dando-lhe um ar desalinhado que
nunca lhe vira antes.
Deixaram-me entrar sozinha, e fiquei agradecida porque vê-lo ali assim
deitado, tão débil e frágil, partiu-me o coração. Senti um ódio profundo por
aquele homem que lhe fizera tanto mal. Aproximei-me dele e passei a mão pelo
seu cabelo, afastei-lho esperando obter uma reação, mas ela não chegou.
Não chorei, não sei porquê, deixei-me ficar simplesmente a olhar para ele, a
memorizar os seus traços, com vontade de o abraçar com força, mas sabendo que
não podia fazê-lo porque ia magoá-lo.
O meu abraço ia magoá-lo… como era irónica a forma como as coisas
mudavam.
Sentei-me numa cadeira ao lado dele e peguei-lhe na mão.
— Nick… — disse, com um nó na garganta —, preciso que te ponhas
bom… Tinha tantas coisas para te dizer e agora…
Mordi o lábio com força e observei-o para ver se tinha algum tipo de reação,
se acontecia algum milagre como acontece tantas vezes nos filmes. Os seus olhos
continuaram fechados, e eu continuei a falar para não enlouquecer com o
silêncio sepulcral interrompido apenas com os apitos das máquinas.
— Os nossos pais já sabem do Mini Eu… a minha mãe ia tendo um enfarte,
mas acho que o facto de estares aqui deitado a fez repensar a vontade de me
matar por ter engravidado…
Contei-lhe da reação do pai ao saber da notícia, que os telefones não paravam
de tocar a perguntar por ele, informei-o sobre o seu agressor e também o
tranquilizei dizendo que o Steve pusera dois seguranças no hospital para que
não se repetisse o que acontecera no aeroporto. Falei-lhe de mim, que, quando
abrisse os olhos e me visse ia ficar muito surpreendido. Contei-lhe que o nosso
bebé continuava a dar pontapés como se estivesse num jogo de futebol… Não
importava as coisas que lhe dizia, o Nick continuava com os olhos fechados
enquanto eu me fui apagando aos poucos, apaguei-me até me transformar numa
sombra do que fui, em alguém irreconhecível.

— Noah, tens de descansar, filha — disse-me a minha mãe enquanto me


acariciava a cabeça. Tinha-me deitado num dos sofás do quarto do Nick e
apoiado a cabeça no seu colo. — Já todos nós saímos do hospital para dormir e
tomar banho. Tens de dormir numa cama, querida, isto não é bom para ti nem
para o bebé.
— Não quero deixá-lo sozinho — disse, com os olhos postos no Nick.
«Acorda, por favor, preciso de ver os teus olhos azuis, preciso de ouvir
novamente a tua voz.»
Os médicos temiam que a perda de sangue e a falta de oxigénio que sofrera
logo após os tiros pudessem ter deixado sequelas neurológicas que não
permitissem que acordasse. Diziam que agora só dependia dele e que podíamos
apenas esperar enquanto o vigiávamos.
— Ele não vai ficar sozinho, Noah: eu e o Will não vamos sair do seu lado. O
Lion disse que daqui a meia hora está aqui, e a Jenna ofereceu-se para te
acompanhar ao apartamento. Por favor, vai e descansa um par de horas…
O Lion e a Jenna chegaram no dia a seguir ao acidente e não se separaram
mais de nós.
A minha mãe tinha razão: estava esgotada, há quatro dias que quase não
dormia, tinha medo de fechar os olhos, de acordar e de constatar que o Nick já
ali não estava.
— E se ele acorda e eu não estou aqui…?
— Noah, se ele abrir os olhos, serás a primeira pessoa a quem vou ligar. Por
favor, se o Nick pudesse falar agora mesmo, ficaria furioso contigo ao ver que
não estás a cuidar nada bem de ti…
Acabei por aceitar, embora contrariada. Despedi-me do Nick com um beijo
no rosto e saí do quarto para procurar a Jenna.
O Steve levou-nos ao apartamento imenso. A última vez em que ali estive foi
depois do casamento da Jenna. Ao entrar, não consegui evitar recordar o que
fizemos, as coisas que dissemos… estas paredes impressionantes não guardavam
boas recordações, e, de repente, quis voltar àquele tempo em que não
conseguíamos tirar as mãos de cima um do outro, àquele instante em que o
Nick me deu tudo o que eu queria e mais ainda. Não queria estar ali, muito
menos sem ele.
— Vai tomar banho enquanto eu preparo alguma coisa para comermos —
disse a Jenna com um sorriso que não lhe chegava aos olhos.
Para ela, o Nick era como um irmão mais velho. Vi-a a chorar abraçada ao
Lion quando chegaram ao hospital e percebi que eles também estavam a passar
terrivelmente mal com aquilo. Assenti e fui até ao quarto. Na casa de banho,
comecei a despir-me lentamente. Os meus olhos pousaram no espelho à minha
frente. Já não havia a menor dúvida de que estava grávida. Entrei no chuveiro,
lavei o cabelo e os dentes também. Quando saí, vesti os leggings pretos e uma
camisola do Nick que encontrei no armário. Cheirava a ele, e isto tranquilizou-
me um pouco, deu-me esperanças. Jantámos em silêncio, sentadas no sofá, com
a televisão ligada. Não tinha fome nenhuma, mas obriguei-me a comer tudo o
que tinha no prato. Depois disso fui para o quarto do Nick, abracei a sua
almofada e, ao sentir o cheiro dele, fechei os olhos para tentar descansar.
Horas depois, a Jenna veio acordar-me com um sorriso no rosto.
— Noah, ele acordou!
Levantei-me tão depressa que quase caí da cama.
«Oh, meu Deus, oh, meu Deus, o Nick acordou!»
50
NICK

Abri os olhos quase sem me aperceber. Tinha estado desaparecido numa


escuridão profunda, um negrume em que só me chegavam sons abafados e frases
desconexas que morria por conseguir ordenar e compreender e, de repente, dei
por mim a olhar para o quarto de hospital com toda a clareza. Os apitos das
máquinas que me rodavam tinham-se transformado na banda sonora dos
últimos dias, os ruídos das máquinas e a voz doce de uma rapariga cujas
palavras me embalaram como se fossem uma canção que me ajudou a dormir.
Abri os olhos à procura desta voz, precisava dela, mas encontrei alguém
completamente diferente.
— Oh, meu Deus, Nick! — gritou a Sophia ao meu lado, e não pude evitar
fazer um esgar de dor. Sentia que a minha cabeça estava prestes a rebentar. —
Vou chamar um médico — disse e saiu do quarto a correr.
Pestanejei várias vezes tentando habituar-me à luz vespertina que entrava pela
janela. O quarto onde estava era pequeno, com espaço apenas para um sofá
minúsculo, a cama e uma televisão. Tentei levantar-me, mas senti uma pontada
de dor no braço que me fez repensar todo e qualquer movimento.
Um segundo depois, a Sophia regressou acompanhada pelo médico. Deixei
que me examinassem, que me informassem acerca do meu estado e, enquanto
tentava prestar atenção ao que me diziam, só consegui formular uma pergunta,
algo que de repente me fez sentir tenso, inquieto e nervoso…
— Onde está a Noah? — perguntei, fazendo tenção de me levantar da cama,
mas arrependendo-me de imediato. Uma dor insuportável trespassou-me as
costelas, e foi como se me estivessem a queimar vivo por dentro.
Raios.
A Sophia empurrou-me com cuidado até eu ficar recostado sobre as almofadas.
O que fazia a Sophia ali?
— A Noah está no teu apartamento, creio que a descansar.
Respirei fundo, tentando acalmar a minha ansiedade. Olhei para baixo, para
as minhas costelas enfaixadas, e logo de seguida apercebi-me de que o meu
braço inteiro estava ligado e imobilizado contra o peito, impedindo-me de fazer
qualquer movimento.
— Grande filho da mãe — disse pensando em quem tinha disparado sobre
mim. — Onde está o Steve? Bolas, preciso de me levantar, preciso…
— Não podes, Nicholas — disse a Sophia, e desta vez, ao fitar melhor o seu
rosto, vi que tinha os olhos inchados e vermelhos. Trazia o cabelo apanhado
num rabo de cavalo alto, calças de ganga e uma T-shirt branca simples. — Tens
de repousar; por favor, fica quieto.
Recostei-me e procurei manter a calma. Se a Noah estava a descansar, isso
queria dizer que estava bem, não? De certeza que o Steve estava com ela…
Os meus olhos voltaram a fixar-se na rapariga que me fitava com um misto de
alívio, alegria e saudade. Lembrei-me do momento em que lhe disse que a nossa
relação tinha acabado. De todas as raparigas com quem tinha estado, a Sophia
foi realmente a única que não quis mesmo magoar. Ela ajudara-me durante
aquele ano, à sua maneira, e, embora tivéssemos partilhado muito mais do que
uma amizade, sempre soube que nunca poderíamos ser mais do que isso:
amigos.
Nada nem ninguém podia fazer-me sentir o que a Noah fazia ao meu corpo e
coração com um simples olhar, e a Sophia sempre soube disso.
— O que estás a fazer aqui, Soph? — perguntei olhando-a nos olhos.
Ela encolheu os ombros e limpou uma lágrima que caíra pela face esquerda.
— Precisava de te ver e de saber se estavas bem… soube pelas notícias o que
se passara contigo… — respondeu, aproximando-se até conseguir segurar-me
na mão com cuidado. — Sabes quando te apercebes de que a relação que tinhas
com um rapaz não era uma relação de verdade?
Fiquei a olhar para ela, calado.
— Quando ninguém da sua família se lembra de pegar num telemóvel para te
avisar de que ele teve um acidente.
— Sophia, tu e eu…
— Já sei, terminámos há um mês, Nicholas, não me esqueci disso, mas pensei
simplesmente…
Precisava de acabar a bem com a Sophia, de verdade, mas via nos seus olhos a
esperança de alguma coisa e não queria enganá-la. A Sophia continuava à espera
de que o que acontecera com a Noah me afetasse tanto que a deixaria outra vez,
mas isso já não ia acontecer, não estávamos nesse ponto, tínhamos avançado,
amadurecido…
— Sophia, a Noah está à espera de um filho meu — informei-a com todo o
cuidado que pude.
Senti que a mão que segurava a minha ficou gelada, e largou-ma logo a seguir.
Acho que demorou alguns segundos a interiorizar a informação, segundos em
que qualquer réstia de esperança acabou por desaparecer.
— Foi por isso que voltaste para ela?
— Não, voltei para ela porque a amo — respondi com calma. Não a amava
apenas, amava-a mais do que tudo e todos, mas não lho disse para não a magoar.
A Sophia assentiu, achei-a perdida como se o que acabara de lhe dizer fosse a
última coisa que esperava ouvir da minha boca.
— Sabes uma coisa? Por instantes pensei que… Abriste os olhos porque
ouviste a minha voz, por um instante julguei ver…
Abrira os olhos precisamente porque a voz que precisava de ouvir já não
estava ali. Abri-os, desesperado, à procura dela, da Noah.
— Nunca foi minha intenção magoar-te, Sophia. Este último ano que passei
contigo… a pouca luz que me iluminou as noites escuras era a tua luz.
Ela assentiu, inspirou e, quando voltou a olhar para mim, percebi que a
minha mensagem era clara. A Sophia não era uma menina a quem precisasse de
explicar as coisas, era uma mulher feita, a única por quem me podia ter
apaixonado se a Noah não tivesse entrado na minha vida e arrasado com tudo à
sua passagem.
Não me retesei quando ela se inclinou e me deu um beijo casto nos lábios.
— Fico feliz por saber que estás bem.
Assenti e observei-a enquanto pegava nas suas coisas e saía do quarto. Mais
uma janela que se fechava para me deixar abrir a porta principal da vida que
queria começar com a Noah.
51
NOAH

As portas do hospital estavam cheias de jornalistas, e o Steve recusou-se


terminantemente a deixar-me sair do carro e expor-me à multidão. Não fazia
ideia do que a imprensa sabia a meu respeito, mas aparecer em frente deles e
mostrar-lhes o meu estado era a última coisa que queríamos fazer agora.
O Steve teve de falar com o diretor do hospital para nos deixarem entrar pela
porta das traseiras, por onde normalmente só as ambulâncias das Urgências
podiam passar. Quando pude subir até ao quarto do Nick, já se passara mais de
meia hora desde que supostamente tinha acordado.
Entrei no quarto dele com o coração nas mãos e, quando vi que abria os olhos
para mim e me sorria da cama, ferido, mas com os olhos azuis a transbordar de
felicidade, senti que podia finalmente respirar.
— Onde te meteste, sardas? — perguntou, abrindo-me o braço e convidando-
me a ir até ele, abraçá-lo e não o largar nunca mais.
Foi exatamente o que fiz.
Enterrei a cabeça na cova do seu pescoço e deixei que me embalasse com
cuidado. Subi para a cama e deitei-me ao lado dele em silêncio, só a ouvir o
bater forte do seu coração.
Não conseguia falar, as palavras ficaram-me entaladas na garganta.
O Nick também não disse nada. Sabíamos que o que acontecera nos deixara a
ambos completamente horrorizados, eu por ver em primeira mão como podia
ser a minha vida se perdesse o Nick de verdade, e ele porque sofrera a pior parte
desta provação, vendo-se privado da sua liberdade, da sua força e da indiscutível
vontade de viver.
Tive medo de abrir a boca, de exprimir por palavras o que podia ter
acontecido.
Não me deixaram ficar muito tempo com ele, e, embora me pareça algo sem
sentido, quando saí daquele quarto senti-me aliviada. A ­pressão que senti no
peito assim que o vi desapareceu quando já não estava à minha frente. Sabia que
estava a comportar-me como uma louca, que o Nick estava a sofrer mais do que
eu, por mais que tentasse demonstrar que as dores que lhe trespassavam o corpo
eram algo perfeitamente suportável.
Nos dias seguintes, passei o menos tempo possível com ele. Inventava mil e
uma desculpas para me manter ocupada. Comecei a organizar o seu regresso a
Los Angeles, os médicos disseram que podíamos levá-lo no avião privado que o
Will partilhava com os seus sócios. Certifiquei-me de que uma enfermeira
viajaria connosco no avião e também deixei o seu apartamento fechado e tudo
em ordem, limpo e preparado para que, quando ele o quisesse vender ou voltar
a usar, tudo estivesse perfeito.
Entrava para o ver quando sabia que estaria a dormir e, quando ele abria os
olhos e me abraçava contra o peito sem dizer nada, sabia que o fazia por mim.
Não me entendia, mas, se era disto que eu precisava, ele dava-mo sem
questionar.
E eu… eu voltei simplesmente a ser a rapariga cuja cabeça funcionava ao
contrário da de toda a gente. Era bem sabido que as experiências traumáticas
me provocavam sempre um desajuste mental do qual me custava sair, mas,
caramba, não podia parar com aquilo? Não podia ser simplesmente eu mesma, a
pessoa de quem o Nick precisava naquele momento?
Mas não fui, e o Nick não se queixou. Nem sequer falámos do bebé; ele só
puxou o assunto numa única ocasião.
— Disseram-me que no dia do acidente tiveste contrações… — comentou ele
numa das poucas ocasiões em que lhe permiti que enterrasse a boca no meu
pescoço para me beijar lentamente enquanto a mão me acariciava a barriga com
tanta ternura que me deixou com um nó na garganta.
Não lhe respondi porque fiquei a pensar na palavra que utilizara…
«acidente». Teria sido um acidente? «Acidente» é uma palavra que se usa para
descrever um facto que ninguém pode controlar, algo não premeditado, um
instante em que as coisas se alienam de forma «acidental» dando lugar a efeitos
indesejados. Por que motivo usava a palavra «acidente» para dizer que o
tentaram matar?
— Noah, onde estás? — sussurrou-me ao ouvido. — Volta daí, meu amor,
porque está a matar-me ver-te neste estado.
Não entendi bem a sua pergunta, mas agradeci o facto de as enfermeiras
aparecerem e me mandarem embora.
Não queria estar com ele, não podia e também não entendia porquê. Só sabia
que, assim que entrava naquele quarto, se formava um nó horrível dentro do
meu peito, sentia-me presa, encurralada, e o nó só afrouxava quando saía dali.
Tinha o dia da viagem completamente organizado. Os nossos pais já tinham
voltado para Los Angeles, o Nick estava um pouco melhor, teria de ir ao
hospital três dias por semana para lhe mudarem as ligaduras e fazer fisioterapia
para recuperar aos poucos a mobilidade do braço. Avisaram-no de que seria um
processo longo, mas tinha de dar graças a Deus por estar vivo: nem todas as
pessoas que passavam por uma coisa daquelas sobreviviam para contar a
história.
Eu nunca andara de avião privado e também não achei grande graça. Se voar
num avião comercial já me deixava nervosa, voar num pequeno assustava-me
três vezes mais.
Levaram o Nick numa cadeira de rodas até se sentar num banco de couro
bege, em frente ao meu e com uma grande janela que não tinha nada que ver
com as dos aviões convencionais. Viajámos só os dois e a enfermeira que tinha
contratado, a Judith.
Durante o voo, o Nick parecia mais cansado do que era habitual. Acho que a
saída e a viagem do hospital gastaram a pouca energia que agora tinha.
Fiquei grata por o Nick adormecer, assim não tinha de falar com ele nem
tentar explicar que diabo me estava a acontecer, mas, quando me levantei para
ir à casa de banho, regressei e encontrei-o de olhos abertos, fixos em mim.
Parei junto à porta da casa de banho, olhando para ele também e para a
Judith, que parecia ter desaparecido da cabina.
— Disse-lhe que podia dormir um par de horas no quarto lá atrás — disse o
Nick, claramente consciente do que eu estava a pensar.
Olhei para ele. Para o rosto barbeado, o cabelo lavado e revolto, a camisola
escura e as calças de ganga claras. Tinha olheiras debaixo dos olhos e o cansaço
espelhado em todos os seus traços tão bonitos.
A viagem podia ter sido completamente diferente, podia estar a levar um
caixão no avião… podia ter passado a semana a organizar um funeral e não uma
mudança…
Mordi o lábio com força, quase até fazer sangue.
— Vem cá, Noah — pediu-me o Nick, estendendo a mão e olhando para
mim preocupado, nervoso e angustiado.
— Quase te perdi, Nick — comentei olhando para ele fixamente.
— Eu sei… mas estou aqui, Noah… — disse, movendo-se no lugar para
chegar até mim, mas sem conseguir levantar-se.
Comecei a chorar em silêncio, presa ao chão. Havia duas semanas que andava
a conter as lágrimas, para tentar ser forte por ele, por mim, pelo bebé… mas eu
não era forte, muito pelo contrário, era débil, mais do que isso…
— Noah… — pronunciou o meu nome com a voz estrangulada pela pena, o
braço ainda estendido na minha direção enquanto eu continuava ali parada, a
chorar, a olhar para ele como se estivesse paralisada.
— Não podes morrer — disse então, limpando as lágrimas com um
movimento brusco da mão. — Estás a ouvir? — gritei-lhe, de repente furiosa
com ele, comigo, com o mundo… não sei com quem nem porquê.
O Nick respirou fundo e assentiu. Mas eu ainda não tinha acabado.
— Prometeste-me que nunca me abandonarias, juraste-me que não havia
nada capaz de nos separar. E depois quase voltas a deixar-me!
Olhou para mim sem dizer nada… mas os seus olhos humedeceram-se.
— Íamos resolver a nossa situação, íamos criar este bebé juntos!
Os soluços ficara-me presos na garganta.
— Noah…
— O que teria feito se tivesses morrido, Nicholas?! — guinchei, chorando
desconsoladamente. Tapei a cara com a mão, não aguentava aquilo…
Levantar-me de manhã sabendo que o Nicholas já cá não estava… Não poder
voltar a beijá-lo, abraçá-lo, não poder sentir a sua pele contra a minha, nem
perder-me no seu olhar, não voltar a saber o que era sentir-me segura…
Abri os olhos um instante depois, enxuguei as lágrimas e levantei o olhar na
direção dele.
Quando uma lágrima caiu pelo seu rosto, senti-me como se uma cãibra me
tivesse sacudido o corpo, uma descarga maldita que me fez reagir. Fui até ao seu
assento e deixei que me abraçasse. Sentei-me ao colo dele com muito cuidado e
enterrei a cabeça na cova do seu pescoço, a chorar descontroladamente e sem
saber como parar.
— Nunca na minha vida tive tanto medo — confessei, manchando-lhe a
camisola com as minhas lágrimas e sentindo-o a estremecer por baixo do meu
corpo.
— Eu sei — disse, acariciando-me o cabelo e abraçando-me com força. — Eu
sei porque senti o mesmo medo que tu… Mas não vou morrer, Noah, não vou a
lado nenhum…
Deixei que continuasse a dizer-me coisas bonitas ao ouvido. Enquanto isso, fui
inundada pelo seu cheiro, pelo calor do seu corpo, pela sua proximidade, pelo
som do coração a bater como um louco contra o meu.
— Desculpa ter-te dito para te ires embora… Se não te tivesse pedido que
fosses, nada disto teria acontecido, a culpa é toda minha, Nick, tenho outra vez
sobre os ombros a culpa de quase te ter perdido…
O Nicholas segurou-me no queixo com força.
— Tu não tens culpa de nada, estás a ouvir? — respondeu, furioso.
— Se tivesse sabido aceitar o que me querias dar… se não estivesse morta de
medo de que voltássemos a estar juntos…
— Noah, cala-te um bocadinho, sim? — interrompeu-me para me dar um
beijo que me fez estremecer. Beijou-me como só ele sabia, como desejei que
fizesse desde que se fora embora… como desejei fazer na noite em que
acabámos, como quis que fizesse até ao dia em que me disse que nunca mais iria
conseguir amar-me…
— Amo-te, Nick — declarei quando se afastou de mim para me deixar
respirar. Os seus olhos percorreram o meu rosto como se quisessem memorizar
cada uma das minhas feições. Pousei a mão no rosto barbeado dele e acariciei-o,
desejando nunca mais me afastar dele. Beijou-me o rosto, o maxilar e o nariz.
Levantou-me a camisola e pousou a mão sobre a minha barriga já grande.
— Nada nos vai separar, Noah, nunca mais. Juro-te pelo nosso filho.
Abracei-o com força e enterrei a cabeça no seu pescoço. Não queria mexer-me
dali, não queria afastar-me dele. Abracei-o até que adormecemos os dois.

Abri os olhos não sei quanto tempo depois, mas não pode ter sido muito,
porque continuávamos no ar. Lá fora já era noite, e a nossa iluminação eram as
luzes pequenas nos lados da cabina.
O Nick estava a olhar para mim, já acordado, brincava distraidamente com
uma madeixa do meu cabelo.
— Acho que nunca te disse como gosto das tuas sardas — comentou então,
acariciando-me o rosto, a orelha e o pescoço com os dedos compridos.
— Já disseste, sim — contradisse-o sem afastar os olhos dos seus.
— Posso ter dado a entender… mas não o expressei claramente por palavras.
Sei onde está cada uma delas, e também reparo quando te aparece uma nova…
fico louco com elas.
Sorri, divertida, com a intensidade com que falava daquelas marcas pequenas
que sempre odiara até o conhecer.
— Achas que o bebé vai ter sardas como as tuas? — perguntou-me então,
divertido.
— Acho que os bebés não têm sardas, Nick — afirmei com um ­sorriso.
Os seus dedos começaram a brincar com a pele esticada do meu estômago.
— Está muito maior do que a última vez que te vi — disse, fazendo círculos
com o polegar mesmo por cima do meu umbigo.
Estremeci da cabeça aos pés.
— É uma forma subtil de me dizeres que estou gorda — respondi enquanto
fazia uma careta.
— Estás perfeita. Nunca te vi tão bonita como estás agora, meu amor.
Senti uma vertigem com a maneira como olhava para mim e perdi-me nos
seus incríveis olhos azuis.
Foi então que, de repente, me lembrei de uma coisa.
— Disseste-me que tinhas pensado num nome… — comentei, curiosa com a
sua escolha.
O Nick entalou-me o cabelo atrás da orelha e acariciou-me lentamente a maçã
do rosto com o polegar.
— Sim, pensei num nome… — anunciou, subitamente nervoso.
— Prometo que não me rio se for muito feio — disse a sorrir.
O Nick retribuiu-me o sorriso.
— Gostava que se chamasse Andrew — disse, olhando nos meus olhos. Estava
emocionado, à espera da minha reação.
— Andrew? Como o teu avô? — perguntei.
Ele pareceu descontrair ao ver como eu reagia ao nome.
— Sim, como o meu avô — disse, sem afastar os olhos dos meus. — Para
mim, ele sempre foi uma pessoa com quem pude contar. Amava-me e deu-me a
oportunidade mais importante da minha vida. Confiou em mim cegamente ao
deixar-me o seu legado, e sei que, se estivesse vivo, ficaria muito feliz por
darmos o seu nome ao nosso filho.
— Andrew Leister — disse em voz alta. — Gosto.
O Nick beijou-me os lábios com um sorriso contido. Estava feliz.
— Andrew Morgan Leister — corrigiu, afastando-se e dando-me um beijo no
nariz. — Também merece ter o nome do seu próprio avô, não achas?
Senti que o meu coração parava.
Veio-me à cabeça a recordação do meu pai e senti que ficava com os olhos
cheios de lágrimas. O Nick nunca chegara a entender como me sentia em
relação ao meu pai nem como, apesar do que me tinha feito, uma parte de mim
continuava a amá-lo. Nem eu própria entendia, mas a verdade era simplesmente
esta. Uma pessoa nem sempre consegue gerir e controlar os seus sentimentos.
Não obstante tudo o que ele fizera, eu amava o meu pai, a menina que havia em
mim ainda chorava a sua morte.
— Não precisamos de o fazer — respondi, mordendo o lábio.
O Nick voltou a beijar-me, desta vez no pescoço.
— Era o teu pai. Sem ele não estarias aqui, à minha frente, com o meu
primeiro filho dentro de ti. Precisamos de o fazer, sim.
Puxei-o para alcançar os seus lábios, e ele abraçou-me, apertando-me com
força contra si.
— Pensei que querias que se chamasse Nicholas — disse contra o seu peito.
Ele afastou-se para olhar para o meu rosto, com uma expressão divertida.
— Na tua vida só vai haver um Nicholas, Noah, e esse sou eu.
Ri-me com a sua forma possessiva de pensar. Mas o Nick era mesmo assim, e
era verdade: na minha vida só havia um Nicholas Leister.
Afastei-me dele e olhei para a barriga.
— Andrew… — pronunciei o nome em voz baixa e nesse mesmo instante
senti um pontapé.
Arregalei os olhos, surpreendida. Era como se me estivesse a dar a sua
aprovação.
O pontapé seguinte chegou um segundo depois.
— Dá-me a tua mão! — pedi-lhe, emocionada. O bebé pareceu partilhar o
meu entusiasmo, porque voltou a pontapear-me com força.
O Nick estendeu a mão até a pousar no sítio onde sentira o pontapé.
— Sentes? — perguntei, feliz por ele poder finalmente sentir o mesmo que eu
experimentara ao longo das últimas semanas.
O Nick assentiu completamente embasbacado.
— Puxa… — disse quando o pontapé seguinte foi ainda mais forte do que o
anterior. Era uma sensação incrível, a melhor de todas. O meu bebé estava bem
e dava pontapés com fartura.
O Nick levantou os olhos e fixou-os em mim.
— Obrigado, Noah… obrigado por isto.
Fiquei sem palavras, deixei simplesmente que me abraçasse enquanto uma
sensação incrível me percorria o corpo todo: era felicidade.
52
NICK

Estava todo lixado. Sentia tanta raiva dentro de mim pelo que me tinha
acontecido que me custava muitíssimo disfarçar e não falar disto em frente da
Noah. Não queria que se preocupasse, não queria que tivesse sequer de pensar
no que acontecera, mas a minha cabeça não parava de pensar naquilo vinte e
quatro horas por dia.
Tinham tentado matar-me.
Andava obcecado com a ideia de que isto se pudesse repetir, desta feita não
comigo, mas com a maravilhosa mulher que entrava e saía de casa como se não
se tivesse passado nada. A Noah retomara a sua rotina como sempre: ia às aulas,
ia trabalhar e depois vinha ver-me. Ainda não vivíamos juntos, e estava a dar
comigo em doido o facto de a perder de vista.
O Steve encarregava-se de a levar e ir buscar à porta da faculdade para se
assegurar de que nada de mau lhe acontecia, mas, por mim, fechava-a no quarto
comigo e não a deixava sair. Eu mal conseguia sair da cama, a recuperação
estava a ser muito lenta, e só saía do apartamento para ir ao hospital. A
enfermeira que a Noah contratara ajudava-me em casa, mas detestava sentir-me
assim, como um inválido; precisava de estar com a Noah, de me certificar de
que ela estava sempre bem.
Quando vinha visitar-me, passava por uma autêntica tortura. Ela chegava,
sorridente, contava-me como fora o seu dia. O sorriso dela enchia o quarto
inteiro de alegria, e eu morria de vontade de pegar nela, de a despir e de a fazer
minha de uma maldita vez por todas.
A última vez que tínhamos feito amor foi quando concebemos o Andrew. Seis
meses sem a sentir da melhor maneira imaginável, seis meses sem me afundar
dentro de si e a fazer gritar. O pior é que o meu corpo estava feito num oito,
mas a minha mente sentia-se capaz de escalar o Evereste.
Um dia, duas semanas depois de me ter mudado para Los Angeles, apareceu
em casa com um vestido cinzento colado ao corpo; estava cada vez mais
arredondada e bonita. Trazia o cabelo solto, e os olhos brilhavam como nunca.
Já começara a fazer calor, e a sua pele tinha aquele tom bronzeado que lhe
ficava tão bem. Senti que ficava duro só de olhar para ela e tive de me controlar
para não mandar as recomendações dos médicos às urtigas e não fazer amor com
ela ali mesmo, sem parar, para não me cravar nela até ao fundo e recordar o que
estávamos a perder.
— Nick, estás a ouvir-me?
Afastei os meus pensamentos luxuriosos e prestei-lhe atenção.
— Desculpa… estavas a perguntar o quê?
Ela revirou os olhos.
— Não estava a perguntar nada, disse que daqui a pouco tempo acabo as aulas
e que a ti também já não falta muito para que estejas completamente
recuperado, por isso gostava que fôssemos juntos comprar as coisas para o bebé.
Nem sequer fazemos ideia do que é preciso, nem do espaço de que um bebé
precisa. Pensei que, se encostássemos a cama à parede da casa de banho,
ficávamos com espaço de sobra para pôr o berço e aquela coisa onde se mudam
as fraldas…
«Fraldas… caraças, e eu a pensar em despi-la e em dar-lhe orgasmos.»
— E incluíste-me nessa equação? — perguntei, observando-a com
incredulidade. A sério que pensava que ia viver naquele sótão com o nosso bebé
recém-nascido?
— Claro que sim… — respondeu ela a corar por motivos que não consegui
entender. — Não voltámos a falar sobre isso, mas… vais viver comigo, não
vais?
Estava a perguntar-me se queria?
Não pude evitar rir-me.
— Acho que já é suficientemente difícil o que me impede de me meter na
cama contigo todas as noites, sardas. Claro que vou viver contigo, mas, lamento
imenso, não vamos viver naquilo a que chamas apartamento — respondi, sem a
menor intenção de ceder quando a este assunto.
— Mas…
— Mas nada, Noah — interrompi, puxando-a para mim e dando-lhe um
beijo nos lábios. — Não vou criar o meu filho numa caixa de fósforos.
A Noah calou-se e ficou a olhar para mim por instantes.
— Eu não quero viver aqui — disse, referindo-se ao meu apartamento, o
mesmo para onde trouxera a Sophia e que a Noah só tolerava agora porque eu
estava em recuperação.
— Havemos de pensar em alguma coisa — disse, embora já tivesse pensado
em tudo.
Os dias foram passando, e comecei a sentir-me cada vez melhor. Um mês
depois, pude recomeçar a trabalhar. A Noah entrou no terceiro trimestre da
gravidez, e tornou-se impossível continuar a escondê-lo. Em pé, na minha
cozinha, com uma chávena de café nas mãos, ouvi em primeira mão que nos
tornáramos notícia.
Amaldiçoei entre dentes quando vi uma fotografia da Noah a andar na rua, a
barriga já mais do que evidente, comprovando que a notícia era verdadeira.
Nas duas primeiras semanas depois de me terem alvejado, os noticiários
dedicavam pelo menos dez minutos a falar sobre mim, sobre a empresa e os
despedimentos que tive de fazer. Porém, com o passar dos dias, o assunto
deixara de ser importante, e comecei a relaxar ao ver que já quase não se falava
de mim. Mas, agora que se soubera que a Noah estava à espera de um filho meu,
a nossa presença nos noticiários ganharia certamente novo vigor.
Quase me engasguei ao ver a porta do apartamento da Noah e ela a tentar
entrar, desviando-se dos jornalistas sem responder a nenhum tipo de pergunta.
Vi o Steve com uma expressão carrancuda ajudar a minha namorada grávida a
entrar na sua própria casa e senti que uma raiva imensa me inundava o corpo
todo.
«Raios os partam.»
53
NOAH

Sabia que aquilo ia acabar por acontecer, mas nunca pensei que fossem
perseguir-me a mim. Era do Nick que queriam falar, mas, quando se soube que
estava grávida, os jornalistas acossaram-me sem descanso.
O Nicholas estava furioso, tanto que insistiu até mais não para que eu
deixasse o meu apartamento e acabou por me levar para o seu, por uma questão
de segurança. Já toda a gente sabia que eu estava grávida, não tinha sido assim
tão difícil contar aos meus amigos e professores, mas não me sentia muito
confortável por aparecer nas notícias.
Inicialmente tudo se centrou no Nick, no facto de sermos irmãos por
afinidade, na história dos nossos pais… As nossas vidas transformaram-se num
circo com uma multidão de espectadores, e, agora que já tinham contado tudo o
que sabiam sobre o Nick, dedicavam-se a perseguir-me e a falar sobre o meu
aspeto, sobre a roupa que eu vestia… Era uma loucura completa. Quase caí de
espanto quando nos vi aos dois na capa de uma revista cor-de-rosa. O título
dizia: «O solteiro de ouro, Nicholas Leister, assenta finalmente e será pai com a
bonita idade de vinte e cinco anos. Serão os sinos que ouvimos a repicar ao
fundo?»
Não dava para acreditar.
Cheguei ao apartamento mais irritada do que nunca. Não queria transformar-
me numa figura pública e queria menos ainda que vendessem a minha vida
como se fosse um maldito romance de cordel.
Quando saí do elevador, procurei o Nick até que o encontrei no seu pequeno
ginásio caseiro. Toda a minha irritação se esfumou assim que o vi sentado, sem
T-shirt, a transpirar, a levantar pesos com o braço esquerdo e a fazer os exercícios
de recuperação que o médico prescrevera.
Raios… como podíamos não ser notícia quando este homem parecia saído de
um filme de Hollywood?
Observei-o, embasbacada, até que se apercebeu da minha presença. Os lábios
desenharam um sorriso quando me viu e largou o peso no chão, entre os pés.
— Olá, sardas — cumprimentou, pegando na toalha que estava ao seu lado
para limpar a cara e os braços.
Podia ter-lhe dito para não o fazer, o suor a escorrer-lhe pelos abdominais
vincados era uma visão espetacular, mas fiquei parada onde estava até que ele se
levantou e veio ao meu encontro.
— Está tudo bem? — perguntou-me, dando-me um beijo leve no rosto.
Esta era outra coisa que me deixava com um humor de cão: nenhum de nós
tocava no outro, dávamos apenas alguns beijos ternos. Eu tinha medo de que ele
não quisesse fazer nada porque ainda tinha dores nos ferimentos, mas, se já
estava em condições para levantar pesos, o que o impedia de fazer comigo todas
as coisas que me passavam pela cabeça durante a noite, sempre que me deitava
ao seu lado?
Talvez já não gostasse de mim como antes: estava gorda, a barriga metia-se
entre nós… Talvez não me achasse atraente, algo que me deixava horrorizada só
de imaginar.
O Nick entalou uma madeixa do meu cabelo atrás da orelha e observou­-me
com o sobrolho franzido.
— O que te preocupa? — perguntou, olhando-me com aqueles olhos que me
deixavam louca.
Tive vontade de o beijar em todo o lado, de lhe tocar no estômago duro e
musculado, quis que me encostasse à parede e fizesse amor comigo de uma vez
por todas. Mas acabei por fechar a boca. Não lhe ia pedir algo que claramente
não queria dar-me.
— Nada… só estou cansada, vou tomar um duche. — Voltei-me para sair da
sala, mas o Nick segurou-me pelo braço, perscrutando o meu rosto à procura de
algum sinal, alguma pista que lhe explicasse que diabo se passava comigo.
— É por causa dos jornalistas? — perguntou-me, beijando-me suavemente
por baixo da orelha.
Fechei os olhos e encostei-me à parede atrás de mim.
— Não… só quero tomar um banho e meter-me na cama.
A sua boca beijou-me a testa. Com suavidade, com ternura.
— Eles vão acabar por se cansar de nós, Noah… É uma questão de tempo até
se decidirem a perseguir outro casal. Estamos em Hollywood, é tudo uma
questão de tempo.
A mão dele acariciou-me o braço de cima a baixo.
Senti raiva e parei a carícia segurando-lhe no pulso.
— Para de me tocar como se eu fosse uma maldita boneca de porcelana,
Nicholas.
Vi os seus olhos arregalarem-se com surpresa antes de me libertar e de
atravessar o corredor em direção ao quarto.
Olhei para a cama… Aquela maldita cama em que ele certamente tinha feito
de tudo com a Sophia Aiken; fiquei ainda mais zangada.
Tudo bem que já não me achasse atraente, mas pelo menos podia disfarçar.
Enquanto tirava o pijama da gaveta, o Nick parou à porta do quarto e
encostou-se à ombreira, observando-me com o sobrolho franzido.
— Que raio de comentário foi esse?
— Não foi nada — respondi querendo despir-me, mas sentia vergonha de que
ele me visse nua naquele estado. Percebi que as lágrimas me subiam aos olhos e
recorri a todo o meu autocontrolo para evitar que caíssem, denunciando-me e
fazendo-me sentir ainda mais patética.
— Noah… — começou ele por dizer, afastando-se da ombreira da porta com
a intenção de se aproximar de mim.
— Ouve, entendo que já não me aches atraente, está bem? Mas, se não queres
fazer nada comigo, também não precisas de me tratar como se eu fosse a tua
irmã mais nova, Nicholas.
Dirigi-me para a casa de banho, mas ele agarrou-me e empurrou-me contra a
parede do quarto. As mãos apoiaram-se ao lado da minha cabeça e inclinou-se
para me fitar nos olhos.
— De que diabo estás tu a falar? — Percebi que o meu último comentário o
afetara tanto como a mim.
Respirei fundo, tentando manter as minhas hormonas controladas por o ter
tão perto de mim, semidespido e tão incrivelmente bonito. Voltei a falar.
— Estou a falar do facto de não me tocares há meses. Sei perfeitamente que
estou enorme e que já não sou atraente, mas também não sou feita de pedra,
sabes? Pões-te para ali a fazer musculação, meio despido, como se eu já não
tivesse olhos, como se me tivesse transformado simplesmente numa grávida que
só pensa em fraldas, berços e bebés a chorar! Eu também tenho as minhas
necessidades! Já pensaste nisso? As minhas hormonas andam todas
descontroladas, e tu não quer…
A sua boca calou-me com um beijo profundo. Fechei os olhos, e tudo o que
estava a dizer se evaporou do meu pensamento. O corpo dele comprimiu-me
contra a parede enquanto a língua ia à procura da minha. Senti-o duro contra
mim e quase me derreti nos seus braços. Afastou-se um minuto depois com a
respiração agitada e a soltar fagulhas pelos olhos.
— Ainda fico surpreendido ao perceber como essa tua cabecinha funciona,
sardas, mas insinuares que já não me excitas é um insulto que não vou permitir
— afirmou, afastando-se de mim. — Se não te toquei desde que voltámos foi
porque pensei que tu não querias e não por não te querer.
O meu coração acelerou dentro do peito.
— Por que razão não havia de te querer? — respondi ainda encostada à
parede. — Esperei que recuperasses, mas não tens feito nada para mostrar que
me desejas, e isso nunca aconteceu antes, Nicholas.
— Raios, Noah… não percebeste nada.
E assim, sem esperar que lhe respondesse, segurou-me no vestido e tirou-mo
pela cabeça. Estremeci, nervosa com a ansiedade e o medo que sentia de que ele
não gostasse das mudanças que o meu corpo sofrera.
Olhou-me de cima abaixo, percorrendo as minhas curvas com os olhos.
— Diz-me… o que queres que te faça?
— O quê?! — exclamei com a voz embargada.
— Segundo consta, descurei as necessidades da minha namorada… Diz-me o
que queres que te faça, e eu faço.
Se não me estivesse a comer com os olhos e não o visse claramente excitado
por baixo das calças, podia parecer que estava a fazer aquilo só por obrigação,
mas, caramba, eu conhecia este olhar melhor do que ninguém.
— Toca-me — pedi-lhe a tremer, antecipando as suas carícias.
— Onde, sardas?… Posso tocar-te em muitos sítios e não quero voltar a
tratar-te como se fosses a minha irmã mais nova.
Os seus dedos acariciaram-me a maçã do rosto com cuidado. Eu não queria
carícias fofinhas, por isso peguei-lhe na mão e levei-a para baixo, até ficar colada
à minha roupa interior. Reconheci os seus dedos acariciarem esta parte de mim
que sentira tanto a sua falta.
Ele sorriu.
— Aqui? Gostas? — perguntou-me entre sussurros para a seguir me morder
o lóbulo da orelha, apertando com força.
Fechei os olhos, desfrutando do prazer que os seus dedos provocavam.
— Gosto… — respondi, inclinando a cabeça para trás.
O Nick segurou-me no queixo com força e voltou a beijar-me, meteu a língua
na minha boca, saboreando-me, acariciando-me e mordendo-me como nunca
tivesse precisado tanto do meu contacto como naquele momento.
Afastei-me e mordi-lhe o maxilar, percorri o queixo com a ponta da língua até
enterrar a boca no pescoço dele e beijar aquela zona em que a veia pulsava,
enlouquecida, por mim. A mão dele voltou a apoiar-se na parede, e grunhiu
enquanto eu traçava um caminho de beijos desde o seu pescoço ao ombro nu.
Os seus dedos penetraram-me com força, e em resposta mordi-lhe.
O Nicholas gemeu e levantou-me com o outro braço. Os nossos rostos ficaram
à mesma altura.
— Quero fazer amor contigo, Noah… Posso? Diz-me se posso, não quero
fazer nada que…
Abanei a cabeça.
— Não vai acontecer nada ao bebé… — respondi a respirar depressa e
fazendo um ruído de pena quando tirou os dedos de dentro de mim. — Não
pares agora… — ordenei, baixando a mão e acariciando-o por cima do tecido
das calças de fato de treino.
O Nicholas sibilou ao sentir o meu toque e levou-me para a cama. Quando
estava deitada, tirou as calças. Pois, estava enganada quando pensei que não me
queria…
— Tu és a única mulher que me deixa neste estado, Noah.
Inclinou-se sobre mim, meteu os dedos nos elásticos das minhas cuecas e
tirou-mas sem demora.
— Vira-te de barriga para baixo — pediu-me, olhando para mim
maravilhado. — Quero que estejas confortável e não te quero esmagar, vira-te.
Fiz o que me pedia, e ele pôs-se atrás de mim. Desapertou-me o sutiã e
começou a beijar-me as costas de cima abaixo. Nesta posição, nem a barriga se
punha entre nós. Foi entrando em mim pouco a pouco, e quase enlouqueci com
a sensação do seu sexo a entrar no meu. Fechei os olhos com força, controlando a
vontade que tinha de gritar.
O Nick pegou numa almofada e colocou-a por baixo da minha barriga para
que ficasse mais confortável e depois começou a mexer-se… a mexer-se de
verdade…
— Não pares — exigi, sentindo um prazer dez vezes mais intenso do que em
qualquer outra das vezes em que tínhamos ido para a cama.
Não consegui aguentar mais e gritei quando os nossos corpos começaram a
mover-se em simultâneo, cada vez mais depressa, até que acabei por libertar o
prazer contido com mais gritos, deixei sair toda a pressão dos últimos meses e
desejei fazer aquilo até não me restarem forças para me mexer. Foi o que o Nick
fez, não parou e continuou a mover-se e a beijar-me as costas.
Chegámos ao mesmo tempo ao orgasmo, eu a gemer contra a almofada, ele a
morder-me com força o ombro direito.
A seguir, adormeci quase instantaneamente.
Não sei quanto tempo se passou até que voltei a abrir os olhos, mas estava
tapada e enroscada contra o Nick, que deslizava a mão para cima e para baixo
nas minhas costas despidas, acariciando-me com ternura.
Ao perceber que estava acordada, baixou os olhos até os cruzar com os meus.
Um sorriso apareceu nos seus lábios bonitos.
— Perdi-te durante um bom bocado, sardas…
Ri-me.
— Acho que fiquei inconsciente de puro prazer.
— Não me digas? — disse, virando-me e colocando-se por cima de mim, com
o cuidado de não me esmagar.
— Tive tantas saudades tuas, Nick — confessei, levantando a mão para afastar
uma madeixa de cabelo rebelde.
— Eu reparei — disse, beijando-me os lábios. — Mas não tantas quantas as
que tive tuas, sardas…
Então, o Andrew deu-me um pontapé, como se quisesse recordar-me de que
continuava ali. Fiz uma careta, e o Nick olhou para mim, preocupado.
— Foi só um pontapé — disse-lhe, para não se preocupar.
O Nick apoiou a cabeça num dos braços e olhou para mim, encantado.
— O que sentes? — perguntou enquanto me acariciava a barriga saliente.
Fiquei a olhar para o movimento da sua mão enquanto pensava na resposta.
— É uma sensação muito estranha… principalmente quando os pontapés são
fortes.
O Nick ouviu-me com atenção, sem parar de me acariciar. Os lábios não
tardaram a pousar sobre a minha pele lisa, o que me provocou uma sensação
muito intensa por dentro.
— Tenho tanta vontade de o conhecer — disse ele, puxando-me para me
abraçar contra o peito.
«Eu também», pensei para comigo.
*
Certo dia, depois de sair de um exame, o Nick veio buscar-me de carro.
Parecia emocionado, contente com alguma coisa que eu desconhecia. Eu
também estava feliz por me ter livrado de um exame.
Um quarto de hora depois, estávamos numa zona da cidade onde nunca tinha
ido. Os prédios eram altos, mas não o suficiente para se considerarem arranha-
céus. Era uma zona bonita, com palmeiras nas ruas e jardins bem cuidados. O
Nick parou o carro em frente a uma casinha branca. Tinha um alpendre a toda a
volta e escadas de madeira que davam acesso à porta. Tinha dois andares e
parecia saída de um conto de fadas.
— Gostas?
Olhei em redor e logo a seguir cravei os olhos nele.
— Não é muito o teu estilo — respondi, um pouco aturdida. O Nicholas
gostava de grandes apartamentos urbanos com janelas do chão ao teto e de
mansões ao pé da praia.
— Não, não é o meu estilo. Comprei-a a pensar em ti.
Arregalei os olhos e fiquei a fitá-lo sem acreditar.
— Tu fizeste o quê?
O Nick saiu do carro e veio até à minha porta para me ajudar a sair.
Quando estava à sua frente, tirou as chaves do bolso de trás das calças e
segurou-as à frente da minha cara.
— Faltam-te dois anos para acabares o curso, Noah. Não quero que tenhas de
abandonar nada, e se for preciso mudar-me para aqui contigo, deixar Nova
Iorque e esperar que descubras quem queres ser na vida, é isso mesmo que vou
fazer. Eu já sei o que quero, o meu futuro está encaminhado porque tive o
tempo necessário para poder fazer as coisas como devem ser feitas. A única coisa
que me falta na vida és tu, por isso vou adaptar-me a ti até estares preparada
para fazer mais mudanças. Não quero levar-te para viveres num apartamento de
luxo nem para uma mansão na praia, porque essa não és tu. Sempre achei que ia
querer viver da mesma forma como cresci, mas não quero uma imensidão de
metros quadrados entre nós, meu amor, quero levantar os olhos sempre que
quiser e ver-te perto. Esta casa é tua, é o meu presente para ti.
Mordi o lábio e abanei a cabeça, aturdida. Não sabia o que dizer. A casa era
linda, pequena, perfeita, a casa que eu teria escolhido para começar uma família.
O Nick aproximou-se de mim e segurou-me o rosto entre as mãos.
— Falta pouco para teres o Andrew, e sei que não queres continuar a viver no
meu apartamento. Aceita este presente, Noah, por favor.
Não me deu tempo para responder, puxou-me pela mão, e aproximámo-nos
da porta. Abriu sem demorar mais um segundo, e entrámos naquela que dali
para a frente se transformaria na nossa casa, o nosso lar.
O entardecer fazia entrar uma luz alaranjada que iluminava a sala de forma
calorosa; o chão era de madeira brilhante, e o espaço estava decorado com sofás
brancos. Toda a casa estava mobilada, era um espaço diáfano, sem paredes, e
tinha janelas enormes viradas para a montanha. O Nick mostrou-me tudo, e,
quanto mais via, mais me apaixonava pela casa. Subimos ao primeiro andar, e
mostrou-me aquele que seria o nosso quarto. Era grande e luminoso, com uma
cama enorme colocada no meio da parede. As janelas tinham cortinas brancas e
leves que deixavam entrar a luz, e no teto havia vigas enormes de madeira. A
casa de banho era linda, toda de mármore negro, uma banheira grande e um
duche funcional. A casa podia não ser uma mansão, mas tinha absolutamente
tudo, não lhe faltava nada.
Puxou-me até que saímos para um pequeno corredor. Atravessámo-lo até
chegarmos a uma zona que ainda não tinha visto. No pequeno vestíbulo havia
duas portas em frente uma da outra e uma janela que dava para o jardim das
traseiras. O Nick abriu a porta da direita e convidou-me a entrar.
— Este seria o quarto do bebé… pensei que gostarias dele.
Era lindo. Estava completamente pintado de branco, não tinha móveis, mas o
chão de madeira brilhava como no resto da casa. Mesmo em frente à porta havia
uma janela enorme com um banco por baixo, daqueles que se abrem para
guardar coisas lá dentro.
Sorri. E consegui vê-lo. Vi-nos a nós. Vi o nosso bebé naquele quarto, a
dormir placidamente, a brincar, a chorar, a rir. Vi-nos aos três juntos a partilhar
momentos incríveis. Esta seria a nossa casa, o nosso cantinho, o nosso lugar.
— Adoro! — exclamei, voltando-me para ele com um sorriso enorme.
O Nick afastou-se da ombreira da porta e veio dar-me um beijo. Olhou-me
nos olhos com uma emoção contida.
— Quero dar-te tudo, Noah… quero que sejas feliz comigo e que consigamos
criar este menino maravilhoso como nenhum dos nossos pais conseguiu fazer
connosco.
Entrelacei os dedos atrás da nuca dele e sorri. Estava absolutamente feliz.
— Boa estratégia para te livrares do meu sótão — disse a rir.
— A casa está no teu nome — acrescentou, puxando-me para si e beijando-
me os lábios. — Não quero que te preocupes com mais nada a não ser com o
bebé e as coisas que querias fazer antes de engravidares. Informei-me, e há um
programa especial para as alunas universitárias que têm filhos durante o curso;
está muito bem estruturado, e serão um pouco mais indulgentes contigo, dão-te
liberdade para te organizares como conseguires e…
Beijei-o e interrompi o que ia dizer.
— Obrigada, Nick — disse, emocionada por tudo o que ele estava a fazer. —
Fazes-me muito feliz, e amo-te.
Voltámos a beijar-nos e passámos o resto da tarde a planear como queríamos
mobilar o resto da casa e quando nos mudaríamos definitivamente.
A minha vida nova estava em marcha, e eu adorava-a.

Passei a primeira semana do meu oitavo mês praticamente toda na faculdade.


Já não me incomodava que as pessoas olhassem para mim sempre que entrava
ou saía da biblioteca, e percebi que o melhor que se podia fazer quando se é o
alvo de mexericos de algum lugar é agir como se nada se passasse.
No fim, os meus colegas e até os professores se habituaram, e toda a gente
tentava ajudar-me sempre que podia: levavam-me a mochila, o portátil e até me
compravam comida. A minha barriga transformou-se na atração principal da
faculdade; de repente, todos queriam saber do bebé, tocar-me na barriga…
Enquanto isto, sentia-me cada vez mais desconfortável: o Andrew quase
triplicara de tamanho, e eu sentia-me um verdadeiro dúplex ambulante.
O Nick não achava graça nenhuma a que estivesse tanto tempo fora de casa,
mas aquela seria a minha última semana no campus antes das férias de verão.
Precisava de deixar tudo organizado. Quando ali voltasse, já ia ter um recém-
nascido em casa, e aí, sim, as coisas iam complicar-se.
Numa das minhas saídas da biblioteca, coisa que fazia sobretudo para ir à casa
de banho, ocorreu algo que já acontecera havia alguns meses. Voltei a encontrar
o Michael.
Ficámos a olhar um para o outro durante alguns segundos, e eu continuei a
andar, com a intenção de o contornar e de me ir embora dali. O Michael
bloqueou-me o caminho e olhou para mim com uma expressão que nunca lhe
vira antes: nojo.
— Então deixaste que ele te emprenhasse… Que forma tão patética de o
fazeres voltar para ti, não achas?
As suas palavras magoaram-me.
— Deixa-me em paz — respondi, furiosa.
Quando me preparei para me ir embora, ele agarrou-me no braço.
— O teu namorado contou-te que nos encontrámos há uns tempos? —
perguntou, olhando fixamente para os meus olhos.
Quis libertar-me da sua mão, mas não consegui.
— Ele não achou graça nenhuma ao ver que tinha regressado depois de me
pagar uma fortuna para jurar que nunca mais te levaria para a cama.
Fiquei petrificada ao ouvi-lo dizer aquilo.
— Mas acho que me arrependi da jura…
Nesse momento, quando estava prestes a pegar no telemóvel para ligar ao
Steve e pedir-lhe que viesse buscar-me, apareceu o Charlie, o irmão do Michael,
e aproximou-se de nós.
— Noah! — exclamou, sem se aperceber da tensão que havia entre o irmão e
eu.
Forcei um sorriso e não me afastei quando me deu um abraço forte.
— Puxa, estás enorme! — observou a rir.
Queria ir-me embora dali, não suportava ver que o Michael não tirava os olhos
de mim e, por mais contente que ficasse por voltar a ver o Charlie, também eu
fizera uma jura ao Nicholas e não queria faltar à minha palavra.
— Charlie, fico muito feliz por te ver, mas tenho de ir… — declarei,
obrigando-me a sorrir.
Ele olhou para o irmão, que se afastara dois passos de nós, e depois para mim.
Assentiu e suspirou.
— Liga-me quando quiseres, este é o meu novo número — disse ele,
entregando-me um cartão. — Temos muito para conversar — acrescentou junto
ao meu ouvido em tom de cumplicidade.
Assenti enquanto tentava manter a calma e depois fui-me embora.
Algo me dizia que não ia ser a última vez que o Michael se aproximava para
me incomodar.
54
NICK

A Noah estava enorme. Por vezes tinha medo de que a barriga a desequilibrasse
e de que acabasse por cair para a frente. Era de constituição pequena, sempre foi
magra, e parecia que a única coisa que aumentava era a barriga.
Ainda faltava um mês para o fim do tempo, e temia que o bebé continuasse a
crescer. O seu estado de espírito também se transformara numa montanha-
russa. Num instante estava feliz e contente e no instante seguinte desatava a
chorar como uma Madalena arrependida por coisas insignificantes.
Naquele dia ela fazia anos, e reunimo-nos todos em casa dos nossos pais. A
Jenna convidara toda a gente. A Noah estava no jardim, sentada num cadeirão
que tinham posto ali para ela a abrir os presentes com um sorriso de felicidade
no rosto.
A minha irmã não parava de gritar, emocionada, ao ver tantos presentes
juntos, e transformara-se na ajudante oficial da Noah; na verdade, desde que
chegámos a casa que não se separava dela.
A Jenna organizara uma festa maravilhosa, cheia de balões azuis, com um bolo
enorme com um bebé no centro e imensos jogos e lembranças.
Muitos dos meus amigos também ali estavam, e fiquei contente por me poder
escapulir um pouco para jogar Xbox com eles. Tantas mulheres juntas a falar de
bebés acabaram por me deixar enjoado.
Um par de horas depois, fui até à cozinha perguntar à Prett se o bolo de
chocolate da Noah já estava pronto. Estava muito agradecido à Jenna por ter
centrado toda a festa no bebé, mas a Noah merecia um bolo com um «vinte»
bem grande no centro. Quando saí para o jardim com o bolo na mão, todos
ficaram surpreendidos e começaram a cantar o «Parabéns a Você». A Noah
olhou para mim emocionada e soprou as velas, como tinha de fazer.
Pouco depois, e aproveitando que as pessoas estavam distraídas, peguei-lhe
pela mão e levei-a até à casa da piscina.
Ela sorriu-me, divertida, recordando os bons velhos tempos.
— Trouxeste-me aqui para me fazeres alguma coisa sórdida, Nicholas?
Ri-me.
— Não seria o teu aniversário se não tentasse, sardas — expliquei, beijando-a
na boca deliciado com os seus lábios carnudos, com o calor de a sentir nos meus
braços. Afastei-me algum tempo depois e tirei uma caixa pequena do bolso.
— O teu presente — anunciei, entregando-lhe a caixa.
A Noah olhou para mim, emocionada, e, ao abrir a caixa, os seus olhos
arregalaram-se, surpreendidos, para depois se humedecerem e ficar à beira das
lágrimas.
— Ainda o tens… pensei… que o tinhas deitado fora, pensei…
Calei-a com um beijo e sequei-lhe as lágrimas com os dedos.
— Nunca devia ter-te tirado este fio, Noah. Dei-te o meu coração há dois
anos, e agora quero voltar a entregar-to…
A Noah acariciou o coração de prata que lhe ofereci quando fez dezoito anos.
— Mandei-o a uma joalharia para que acrescentassem um pequeno diamante
azul… enfim, o Andrew também vai fazer parte disto, não achas?
A Noah ofereceu-me um sorriso de orelha a orelha, feliz e ainda emocionada.
— É o melhor presente que me podias ter dado. Senti falta deste fio, de tudo
o que ele significava para mim e para ti.
— Eu sei… Nunca devia ter saído do teu pescoço, Noah, estava errado
quando to tirei.
Ela abanou a cabeça.
— Fizeste o que sentiste que devias fazer naquele momento, Nick… Eu
magoei-te, não merecia usá-lo.
Peguei no fio e tirei-o da caixa.
— Agora não haverá nada nem ninguém que volte a tirá-lo do seu lugar —
sentenciei enquanto lho colocava ao pescoço com todo o carinho.
Beijei-lhe o ombro descoberto.
— Se estás cansada e queres voltar para casa, basta dizeres e vamos logo.
Abanou a cabeça, estava feliz.
— Quero aproveitar este dia. Está a ser perfeito em todos os sentidos.
55
NOAH

Depois da festa, apressámo-nos a deixar o quarto do Andrew pronto. O Nick


acompanhou-me, e comprámos tudo o que nos faltava: o muda-fraldas, um
carrinho lindo que mais parecia um robô mutante… e milhares de outras coisas
que até então nem sabia que existiam e que a minha mãe nos ajudou a escolher.
Na festa também nos ofereceram imensas coisas, e coisas caras — vantagem
de todos os nossos amigos serem milionários… Ainda faltava algum tempo até
o nosso bebé nascer, mas sentia necessidade de ter tudo preparado, só assim ia
conseguir descontrair como tanto me pediam que fizesse.
Já nem me reconhecia. Passava por oscilações de humor que deixavam o Nick
louco, mas ele aguentava tudo com paciência.
Acabara por ligar ao Charlie. Tinha de lhe dizer que, apesar de me magoar
muito, não podíamos continuar a ser amigos: a minha relação com o Nick era
mais importante, e não ia fazer nada que a deitasse a perder. Como achava que
não eram conversas para se ter pelo telefone, quando lhe liguei propus-lhe que
nos encontrássemos numa daquelas tardes para beber um café, e ele sugeriu a
sua casa. Jurou-me que o Michael não iria aparecer por lá, e decidi aceitar.
Quando o Charlie me abriu a porta, senti uma alegria imensa, e um segundo
depois demos um abraço apertado, que era um pouco complicado, tendo em
conta o meu estado.
— Estás mais bonita do que nunca — comentou, mexendo-me no cabelo.
Revirei os olhos e entrei na sua casa. De repente, fui assaltada pelas recordações
daquela noite, e tive de respirar fundo várias vezes para me tranquilizar e
apreciar o que ali tinha ido fazer.
O Charlie não merecia o que lhe tinha feito, nunca devia ter deixado de lhe
falar, mas as coisas nem sempre corriam como queríamos. Depois de acabar com
o Nicholas, eu mudara, para pior, e fechara-me muito. Não teria sido uma boa
amiga para ele.
Contou-me que abandonara o curso e que passara cinco meses num centro de
reabilitação. O Charlie era alcoólico, e senti-me mal por não ter percebido até
então que sofrera uma recaída. Disse-me que nunca se sentira melhor e que
aqueles meses o tinham transformado numa nova pessoa.
Tudo correu muito bem, até que não pudemos evitar abordar o tema do
irmão.
— Já sei que nem sequer queres ouvir falar do meu irmão, mas juro que ele se
arrependeu de tudo o que te fez, Noah — explicou, olhando para mim de modo
suplicante. Parecia ser mais importante para ele que o perdoasse e esquecesse
tudo do que para o próprio Michael. — Voltaram a contratá-lo na faculdade, e
trabalha com vários alunos com distúrbios mentais… Ele ajuda-os muito,
sabes?
— Sei que ele é teu irmão, Charlie, mas é alguém que quero deixar para
trás… entendes? Lamento muito que isso também te inclua a ti, mas não quero
arriscar estar perto do Michael. Espero que entendas.
O Charlie assentiu, pesaroso.
— Fico contente por saber que estás novamente com o Nicholas. Vejo que
estás feliz.
— Obrigada — disse, dando-lhe um abraço forte. — E obrigada por teres
sido um amigo tão bom.
Saí da sua casa com o coração apertado. Detestava despedidas, mas agora ia
começar uma vida nova, e, se o Nick conseguira começar do zero, eu também
tinha de fazer o mesmo.

Quando cheguei a casa, estava um pouco enjoada, por isso fui diretamente
para a cama. O Nick chegou do trabalho um par de horas depois, e achei-o mais
calado do que era habitual.
— Não te importas de desligar o ar condicionado? — pedi-lhe recostada na
nossa cama enquanto o observava a tirar a gravata e o casaco.
Ele franziu o sobrolho e fez o que lhe pedi. Depois pareceu hesitar antes de se
dirigir a mim.
— Sei que foste vê-lo, Noah — disse então, surpreendendo-me
completamente.
Senti um suor frio percorrer-me as costas.
— Como…?
— O Steve.
«Claro… o Steve, bolas.»
— Fui ver o Charlie, mais nada.
O Nick cerrou o maxilar com força.
— Foste ver o Charlie, e, quando chego a casa, encontro-te maldisposta…
Não terá que ver com uma certa pessoa que ali estava, que te deixou assim?
— O quê? Não! — neguei veementemente enquanto me levantava na cama.
Naquele instante uma dor lancinante trespassou-me as costas, deixando-me sem
ar.
— Noah? — disse o Nicholas alarmado e aproximando-se da cama de
imediato.
Respirei fundo, e a dor passou tão depressa como surgira.
— Tem calma, estou bem — afirmei, recostando-me novamente sobre as
almofadas.
— Não estás com boa cara — observou. — Raios, até estás pálida.
Os seus dedos afastaram uma madeixa húmida de cabelo da minha testa.
— Estás com febre, Noah — anunciou ele assustado.
— Não… Estou bem, a sério… Só me sinto um pouco cansada.
Vi-o debater-se entre a irritação por ter ido ver o Charlie e a preo­cupação com
o meu estado. Não queria vê-lo aborrecido, não queria que achasse que faltara à
minha palavra.
— Nick… eu não vi mesmo o Michael, a sério que não.
— O que me dá cabo da cabeça não é se o viste ou não, mas que tenhas ido à
casa dele sem sequer me dizeres nada. Podia ter ido visitar o teu amigo contigo,
não é a ele que quero partir a cara, entendes?
Forcei um sorriso para ele se acalmar.
— Esse assunto para mim está encerrado… por isso o fui visitar, ele merecia
uma explicação.
O Nicholas observou os meus olhos por instante e a seguir debruçou-se para
me dar um beijo na testa. Um beijo que durou alguns segundos a mais, porque
ele estava a sentir a minha temperatura.
— Eu estou beeem!…
Mas logo a seguir, como se para lhe dar razão, senti outra pontada de dor
muito intensa que me trespassou. Fechei os olhos com força.
— Nick… — disse assustada, pegando na mão dele.
— Estou aqui — afirmou num tom que nunca lhe tinha ouvido antes.
Quando a dor passou, deixei-me cair contra a cabeceira da cama.
— Vamos para o hospital.
— Não! Não é preciso, são contrações de Braxton Hicks, a sério, é norm… —
Ante de poder acabar a frase, uma dor imensa voltou a flagelar-me e quase me
obrigou a dobrar em duas.
Cerrei os dentes com força contendo as lágrimas, que, traiçoeiras,
contradiziam as minhas palavras.
— Não sei o que está a acontecer…
— Acho que estás a entrar em trabalho de parto, Noah — disse-me,
levantando-se da cama. Puxei a sua mão com força.
— Não, é impossível… — contradisse-o enquanto o puxava para mim. —
Ainda falta muito tempo para isso…
E naquele instante, como se fosse uma maldita piada de mau gosto, senti que
as minhas coxas se humedeciam, assim como os lençóis por baixo de mim.
Arregalei os olhos assustada.
— Noah, caraças, o que foi? Estás a assustar-me.
Contive a respiração.
— Acho que me rebentaram as águas.

Ao levantar o lençol e ver que estava encharcada, a minha respiração começou


a acelerar, e quase hiperventilei.
Ainda não estava preparada… não estava pronta para aquilo.
O Nick segurou-me ao colo e levou-me para a casa de banho. Estava tão
assustada que fiquei grata por ver que ele ainda conservava alguma calma,
embora pouca. Sentou-me na sanita e segurou-me o rosto entre as mãos.
— Respira, Noah — aconselhou, tirando-me o vestido que acabara de vestir.
— Estou toda besuntada — queixei-me trémula.
O Nick observou-me sem entender.
— Queres tomar um duche?
Assenti enquanto ele abria a água e se assegurava de que não saía demasiado
quente.
— Fica aqui — disse-me, saindo da casa de banho e voltando um segundo
depois com roupa limpa.
O Nick ajudou-me a despir o resto da roupa e deixou-me debaixo da água
morna do duche. Demorei poucos minutos a tomar banho. Quando saí, o Nick
envolveu-me numa toalha e secou-me o corpo todo.
Quando já estava completamente vestida, uma nova contração obrigou­-me a
curvar-me sobre mim: era uma sensação horrível, dolorosa, e só queria que
aquilo acabasse.
— Vamos para o hospital, sardas — disse ele beijando-me a testa quando
consegui voltar a respirar normalmente.
Assenti, mas tinha medo.
O bebé ainda não estava pronto…
56
NOAH

As horas que se seguiram à minha chegada ao hospital foram as mais dolorosas e


angustiantes da minha vida.
Como já imaginava, era cedo para o bebé nascer, mas, quando as águas
rebentaram, o Andrew encaixou-se no canal de parto, e já não havia como voltar
atrás. Dilatei muito depressa, e, mal cheguei, levaram-me diretamente para a
sala de partos. Que ingénua fui! Pensei que quando fosse a hora de fazer força as
coisas seriam tão rápidas como tinham sido com a dilatação, mas nada estava
mais longe da realidade: estive a fazer força durante oito horas. Oito horas
durante as quais toda a minha energia se esgotou e achei que não ia ser capaz de
continuar.
— Noah… tens de continuar, tens de fazer força, sardas, mais uma vez… só
mais uma vez. — O Nicholas falava-me ao ouvido. Tinha as duas mãos a
agarrar as minhas com força, e o mais certo era acabar por lhe partir os dedos
todos.
— Estou tão cansada… — confessei ao descontrair depois de uma contração.
Doía-me o corpo todo, o efeito da epidural parecia já ter passado há muito
tempo, e eu só rezava para que tudo aquilo acabasse de uma vez.
Ouvia os médicos falar em voz baixa, dizer qualquer coisa sobre a minha
pélvis e que o bebé não tinha espaço suficiente para sair. Sempre soube disso: o
meu útero não tinha sido feito para ter bebés.
— Nick… tira-me daqui… leva-me para longe, não aguento mais estas dores
— implorei a chorar, enquanto via que os seus olhos se humedeciam tanto
quanto os meus.
— Quando isto acabar, vamos, meu amor, vamos para onde tu quiseres, mas
agora tens de fazer força.
Outra contração fez com que o meu ventre ficasse rijo como uma pedra, cerrei
os dentes com força e voltei a empurrar. As enfermeiras incentivaram­-me, e o
médico continuava a dizer-me para empurrar. Alguém me pôs um pano
molhado na testa, e, quando percebi que a contração estava a passar e o bebé
continuava sem nascer, tive vontade de morrer.
— Isto não está a resultar… — lamentei-me.
— Doutor! Ela está esgotada! Faça alguma coisa, por amor de Deus!
— Fazer uma cesariana nesta altura seria muito perigoso para a mãe —
respondeu o obstetra.
Vi que o Nick empalidecia.
— Noah… quero que na contração seguinte empurres com todas as tuas
forças, está bem? Vou usar os fórceps para tirar o bebé, tem de sair: registámos
sofrimento fetal.
O meu bebé estava a sofrer, sofria por minha causa, porque não era capaz de o
ajudar a sair.
— Levanta-te — indicou o médico, e mal tive forças para levantar a cabeça.
— Senhor Leister, sente-se atrás dela para que apoie as costas no seu peito.
O Nicholas fez o que lhe pediam, e saber que estava nos seus braços deu-me
força para continuar.
— Tu és capaz, meu amor… Vamos, só mais uma vez.
A contração seguinte chegou poucos segundos depois. Não sei onde fui buscar
as forças, mas fi-lo. Apertei as mãos do Nick com toda a força, empurrei e
empurrei até que quase perdi a consciência.
— Está a sair! — anunciou o médico, e um minuto depois ouvimos o choro
histérico de um bebé bastante aborrecido.
Deixei-me cair sobre o Nicholas, não era capaz de manter sequer os olhos
abertos.
— Noah… é lindo… olha para ele, meu amor.
Abri os olhos, e a enfermeira aproximou-se com uma trouxinha pequena
envolta numa manta azul.
— É um menino muito bonito — comentou a enfermeira enquanto mo
entregava para que o segurasse.
Os meus braços estremeceram, e o Nick ajudou-me por trás para o segurar
contra o peito.
— Meu Deus…! — exclamei, emocionada.
Assim que ouviu a minha voz, o Andy deixou de chorar. As lágrimas
saltaram-me do rosto e inclinei-me para lhe dar um beijo na cabecita coberta
por uma leve camada de cabelo escuro.
— É perfeito… — ouvi o Nick a dizer ao meu ouvido. — Obrigado, Noah.
Amo-te tanto! Portaste-te como uma valente.
Nesse instante, o Andrew abriu os olhos e olhou para nós com curiosidade.
Dois faróis azuis como o céu deixaram-nos a ambos sem fôlego: era a cara
chapada do Nick.
Não pude continuar a olhar para ele, maravilhada, porque mo tiraram dos
braços.
— Ele vai ter de ficar na incubadora até nos assegurarmos de que está tudo
bem. Este pirralho tinha muita vontade de nascer.
Mordi o lábio com força quando o ouvi voltar a chorar, furioso por o
incomodarem mais uma vez. Estava tão sereno nos meus braços…

Andrew Morgan Leister nasceu num sábado de julho e pesava exatamente dois
quilos. Esteve duas noites na incubadora e depois pude finalmente tê-lo comigo.
Deram-me alta algumas horas depois, e o Nick levou-nos para casa, para que
pudéssemos descansar. Eu ainda me sentia débil e esgotada. Não dormira mais
do que algumas horas, preocupada com o nosso bebé precioso, que naquele
momento dormia placidamente na cadeirinha que colocámos no banco de trás
do carro.
O Nick não se separou de mim nem por um instante, estava tão cansado como
eu, mas via-se que também estava mais feliz do que nunca.
Os nossos pais tinham ido ao hospital, todos estavam doidos com o Andrew,
todos queriam pegar nele ao colo, adormecê-lo ou vesti-lo, mas o meu filho só
encontrava paz nos meus braços.
Quando chegámos a casa, encontrei um monte de balões e cestos de presentes
com postais em que nos davam os parabéns. Tínhamos sido acossados ao sair do
hospital, e nunca achei que se dessem ao trabalho de nos oferecer alguma coisa.
O Nick ocupou-se de tirar a cadeirinha do Andy e de o trazer para dentro, e
eu agradeci por poder voltar para casa. Os últimos dias tinham sido uma
loucura.
Peguei no meu bebé ao colo e fui para a cama. O Nick veio atrás de mim.
Devia tê-lo deitado no seu berço, naquele berço tão bonito que tínhamos
preparado para o receber no seu quarto, mas doía-me só de pensar em deixá-lo
ali sozinho. Por isso deitámo-nos juntos, com o Andy entre os dois.
— Mal posso acreditar que ele já esteja aqui connosco — confessou o Nick
enquanto passava um dos seus dedos pelas bochechas rosadas do Andrew.
É
— É o bebé mais bonito que já vi na vida — declarei, baixando-me para lhe
cheirar a cabeça. Cheirava tão bem…
Não era por ser meu filho, mas era um bebé mesmo bonito. Tinha os olhos
azuis e as bochechas gorduchas. A Jenna oferecera-lhe a roupa que trazia
vestida, um conjunto azul-turquesa que dizia «Sou o número Um» bordado no
centro.
Sorri, feliz por estar em casa, com o Nick e por o pior já ter passado… Ou foi
o que achei na altura.

Por incrível que pareça, não tivemos muita dificuldade em adaptarmo-nos ao


Andy. Não era um bebé que passasse o dia a chorar, pelo contrário, por vezes até
tínhamos de o acordar para comer.
Por alguma razão que desconhecia, só consegui dar de mamar durante as duas
primeiras semanas. Comecei a reparar que o bebé tinha dificuldade em mamar e
que, na verdade já não podia continuar a amamentar. Custou-me perder este
vínculo tão especial com ele. Não há nada mais mágico do que dar de mamar ao
nosso bebé, senti-lo agarradinho a nós, mas não havia nada que pudéssemos
fazer.
— Encara isto pelo lado positivo — disse a Jenna enquanto embalava o Andy
com um ar embevecido. — Assim não ficas com o peito descaído.
Revirei os olhos. Se ela alguma vez tivesse um bebé, também entenderia
porque isso me deixava tão triste.
— Também quero um— declarou então a Jenna, apanhando-me
desprevenida.
Ri-me enquanto continuava a dobrar a roupa do Andy e a guardá-la no
armário do seu quarto. Tinha tanta roupa que nem chegaria a vestir metade das
coisas. Ele crescia a olhos vistos, já não tinha nada que ver com o bebé pequeno
que era quando nascera. Agora já pesava quase quatro quilos e meio.
— Então, diz isso ao Lion — disse-lhe, sentando-me à sua frente e observando
o vaivém da chupeta do Andy. Depois de ter deixado de mamar, cedemos a este
capricho. Ele não se separava da chupeta por nada deste mundo.
— Já disse… Mas ele respondeu que quer esperar — explicou-me, fazendo
uma careta. — Vou ter de recorrer a um truque qualquer para acontecer por
acidente.
— Jenna! — exclamei com os olhos arregalados.
A minha amiga riu-se, e as suas gargalhadas acordaram o bebé. Tirei-lho do
colo e deitei-o no berço para que voltasse a dormir.
— Estava a brincar! — respondeu a Jenna, divertindo-se à minha custa.
Passado um pouco, ela e o Lion foram-se embora, e o Nick veio à minha
procura. Encontrou-me sentada no sofá com o Andy acordado mas calmo nos
meus braços. Os seus olhinhos não se afastavam dos meus, parecia querer dizer-
me alguma coisa.
O Nick beijou-me no alto da cabeça e sentou-se à minha frente.
— Estás tão bonita — comentou ele a sorrir, inclinando-se sobre os joelhos e
fixando os olhos em nós.
— É incrível como já se passaram três semanas desde que estava a fazer força
sem descanso para este minorca sair — disse acariciando-lhe o cabelo escuro
com os dedos. Ele tinha a pele suave e era capaz de passar horas a fazer-lhe
festinhas.
— Queria dizer-te uma coisa, Noah — anunciou o Nick, subitamente sério.
Levantei os olhos e fitei-o.
— O que se passa?
Sabia que andava nervoso por causa do julgamento contra o homem que
tentara matá-lo e que este se realizaria dali a duas semanas. Todos
aguardávamos com ansiedade que metessem aquele pulha atrás das ­grades.
— Não se passa nada… quero dizer, na verdade, passa-se tudo — disse,
segurando na minha mão e beijando os nós dos meus dedos. — Queria dizer-te
que fizeste de mim o homem mais feliz do mundo, sardas — disse, inclinando-
se e beijando o cocuruto da cabeça do Andy, que, entretanto, fechara os olhos e
dormia, alheio a tudo. — Tudo o que vivemos, todas as situações que tivemos
de enfrentar juntos… Já se passou tanto tempo desde aquele primeiro beijo que
demos em cima do carro, numa noite de verão como esta, sob as estrelas.
Lembro-me que morria por encontrar uma desculpa qualquer que me fizesse
saborear a tua boca, tocar na tua pele, acariciar-te o corpo todo. Fizeste de mim
uma pessoa melhor, Noah, salvaste-me de uma vida vazia e solitária, uma vida
onde o amor não tinha espaço e que era apenas governada pelo ódio. Tu és
sempre capaz de encontrar uma forma de justificar os erros dos outros, queres
sempre ver o lado positivo das pessoas que aparecem na tua vida… E, se há um
erro injustificável que se possa aplicar a mim, é não o ter feito antes…
Com o coração apertado, vi que tirava uma caixinha de veludo preto do bolso.
Quando a abriu, fiquei sem fôlego porque lá dentro estava um anel maravilhoso,
deslumbrante.
— Casa comigo, Noah… partilha a tua vida comigo de uma vez por todas. Sê
minha, e eu serei teu para sempre.
Levei a mão à boca e fiquei momentaneamente sem palavras.
— Eu… — Continuava com um nó na garganta. Olhei para o Andrew a
dormir entre nós dos dois; de repente, senti as mãos a tremer. O Nick pegou no
bebé e pô-lo com todo o cuidado no berço.
Depois veio até mim, ajoelhou-se à minha frente e fixou os olhos nos meus.
— O que dizes, sardas?
Um sorriso apareceu nos meus lábios sem que pudesse fazer alguma coisa para
o evitar. Puxei-lhe pelos colarinhos da camisa e beijei-o na boca com veemência.
— Isso é um sim? — perguntou ele a sorrir sobre os meus lábios.
— Claro que é um sim — afirmei, emocionada, com os olhos húmidos de
felicidade.
O Nick pegou-me na mão esquerda e pôs o anel no dedo anelar.
— Amo-te tanto… — disse, beijando-me outra vez.
Pegou em mim ao colo e levou-me para o nosso quarto. Amámo-nos com
loucura, acariciámo-nos, beijámo-nos e trocámos todo o tipo de promessas. Quis
que me cobrisse de beijos, e ele obedeceu, quis senti-lo muito, muito próximo
de mim, e fez-me a vontade da melhor maneira…

Quando o Andy fez um mês, o Nick teve de voltar a trabalhar. Na verdade,


nunca deixara de o fazer, mas fazia-o a partir de casa, sentado no sofá, com o
portátil ao colo. Adorava entrar na sala e vê-lo com o Andy a dormir sobre o seu
peito enquanto ele teclava muito sério, com os olhos colados ao ecrã. Vê-los
juntos derretia-me a alma. Duas cabeças morenas, dois pares de olhos celestes…
eram tão parecidos que por vezes até irritava.
— Deves estar muito satisfeito… — resmunguei um dia enquanto
brincávamos com o bebé em cima da nossa cama. — De mim não herdou nem o
branco dos olhos…
O Nick sorriu, orgulhoso, mas abanou a cabeça.
— Vai ter as tuas sardas… sei que vai.
— E depois vai odiar-me por isso.
O Nicholas soltou uma gargalhada.
— O nosso bebé vai ser um quebra-corações, Noah. Não tenho a menor
dúvida.
O Andy riu-se pela primeira vez, e nós ficámos a olhar para ele, encantados.
Este menino cativara-nos por completo, e estávamos totalmente à sua mercê.

Mais de um mês depois de o Andy nascer, mais concretamente num sábado, a


Jenna veio buscar-me para irmos dar uma volta ao centro. Mal saíra de casa
desde que ele nascera e ainda ficava nervosa por andar com ele na rua, mas,
depois de a minha amiga insistir bastante, acabei por pegar no carrinho­-robô,
que aprendera a utilizar há pouquíssimo tempo, e fomos a pé para o centro
comercial que ficava a poucos passos da minha casa. Estava muito calor, e não
queria que o Andy apanhasse sol, por isso entrámos numa cafetaria a falar do
meu casamento e de todos os preparativos que ocupavam a cabeça da Jenna.
— Já te disse, Jenn — avisei, com a voz cansada. — Estamos noivos, mas só
vamos casar quando o menino for um pouco maior.
— Isso é um disparate!
— Não, não é. Não posso organizar um casamento e cuidar de um recém-
nascido!
— Então organizo-o eu por ti, tonta!
Abanei a cabeça, exasperada, e continuei a ouvi-la tagarelar. Os nossos pais
ficaram muito felizes quando lhes contámos que íamos casar. Nenhum dos dois
achava muita graça que tivéssemos feito tudo pela ordem inversa. Ambos nos
tinham criado para seguirmos as convenções, até na questão do casamento —
namorar, casar, viver juntos e a seguir ter um filho —, mas eu e o Nick
deixámos bastante claro que não éramos nada convencionais.
Para ser sincera, ainda não tinha pensado um segundo no casamento, estava
demasiado concentrada no bebé e no Nick, que me apanhou completamente de
surpresa com o pedido. Éramos muito jovens para nos comprometermos para a
vida, mas também o éramos para ter um filho e para viver algumas experiências
que passam ao lado das pessoas comuns.
Sentia-me feliz, e o Nick também, para mim era o mais importante.
Um par de horas depois, decidimos voltar para casa. O Steve já não me
acompanhava para todo o lado. Depois de insistir muito com o Nick, e ao ver
que tudo regressara mais ou menos à normalidade, fiz-lhe entender que era
exagerado ter alguém a seguir todos os meus passos, a toda a hora. O Nicholas,
por sua vez, estava sempre rodeado de gente importante, o julgamento era um
tema mediático que estava na ordem do dia, e quem tinha sido agredido e quase
assassinado fora ele.
Temia por ele, o Steve era o melhor na sua profissão, e, para dizer a verdade, o
pobre homem morria de tédio a acompanhar-me ao parque e a comprar fraldas.
O Nick acabou por aceitar, e naquela mesma noite iam viajar juntos para São
Francisco. Disse-me que tentaria chegar ao fim do dia, mas eu sabia que as suas
reuniões ali se alongavam sempre mais do que a conta. Seria a primeira noite
que passava sozinha desde que tinha o Andrew, e o Nick estava nervoso. Eu não
me preocupava muito, sabia desenrascar-me bastante bem com o bebé e recusei
a oferta de ir com ele. Não queria meter-me num avião com uma criança de um
mês e muito menos baralhar-lhe as rotinas.
Quando lhe expliquei as minhas razões, o Nick deixou de insistir.
— De certeza que não queres que fique contigo? — perguntou a minha
amiga quando lhe disse que tinha de passar na farmácia. O Andrew tinha uma
erupção cutânea provocada pelas fraldas e, pobrezinho, estava muito
desconfortável com aquilo.
— Não te preocupes — respondi, despedindo-me dela com um abraço.
A Jenna agachou-se para beijar o Andy na cabecinha.
— A roupa que eu lhe compro é a melhor — disse ela, e não pude evitar
revirar os olhos.
Naquele dia usava uns calções brancos e uma T-shirt com uma mensagem no
peito.
só demorei oito horas a sair.
— Cuida do meu afilhado! — gritou, afastando-se.
Fui à farmácia e comprei o creme. Enquanto regressava para casa a empurrar o
carrinho pela mesma rua que percorria praticamente todos os dias, tive uma
sensação estranha.
Um calafrio percorreu-me a coluna vertebral. Voltei a cabeça para olhar por
cima do ombro, mas não vi ninguém. Era estranho não ter o Steve ao meu lado,
e o mais certo era ter-me esquecido de como era ir a algum lado sozinha.
Continuei a caminhar, desejando chegar a casa, e a sensação estranha ficou para
trás.
O Andy não parou de chorar desde que tínhamos chegado a casa. A erupção
cutânea que tinha incomodava-o, e qualquer coisa que roçasse na pele o fazia
guinchar com histeria. Só se acalmava quando estava ao meu colo, de barriga
para baixo: ficava com o rabito virado para cima e a cabeça apoiada no meu
braço. Naquele momento, estava encostado contra o meu peito, como o Nick
costumava fazer, e acabou por adormecer. Meti-o no berço e tapei-o, olhando
para ele, embevecida.
Como se podia amar tanto alguém de forma quase automática? O meu
homenzinho… com a sua chupeta e as bochechas gorduchas, era o bebé mais
bonito que já vira na vida. Sofria quando o ouvia chorar e chegava a tocar nas
estrelas quando ele sorria. E pensar que já vivera uma vida inteira sem ele…
Agora, só de pensar em não o ter comigo, sentia-me desfalecer.
Deitei o bebé na cama depois de falar com o Nick durante algum tempo, que,
como eu sabia, naquela noite ia ter de ficar num hotel. Quando desliguei,
adormeci quase de imediato. Estava esgotada.
Abri os olhos, e todos os pelos do meu corpo se arrepiaram. Não me
perguntem porquê, aconteceu simplesmente. Tudo estava silencioso, mas um
pressentimento estranho fez-me levantar na cama. A minha respiração acelerou,
e levantei-me pondo os pés no chão quase sem fazer barulho.
Forcei-me a acalmar-me. O mais provável era que tivesse sido um pesadelo. Já
não eram tão frequentes como antes, mas como o Nick não estava comigo era
mais provável que os tivesse.
Desta vez nem sequer me lembrava de nada, mas procurei tranquilizar­-me
antes de ir ver o bebé. O Andy era capaz de perceber o meu estado de espírito e,
se estava nervosa ou alterada, reagia chorando irritado.
Quando me acalmei um pouco, saí do quarto e atravessei o corredor até ao
quarto do Andrew.
O meu coração parou debater.
Havia ali alguém.
O meu bebé não estava sozinho.
57
NOAH

Quando ia a entrar no quarto do meu filho, todo o meu corpo ficou tenso,
petrificado de medo. Não passei da ombreira da porta. A mulher que estava de
costas para mim voltou-se de forma quase automática. Fiquei sem ar. Conhecia-
a, e isso ainda me aterrorizava mais.
— Briar.
A rapariga ruiva que estava à minha frente não tinha nada que ver com a
mulher deslumbrante que vivera comigo durante meses. O cabelo estava ainda
mais curto, quase pelos ombros. Tinha olheiras por baixo dos olhos verdes e não
usava qualquer maquilhagem sobre as pequenas imperfeiçoes. Vestia umas
calças pretas simples e uma camisola cinzenta. Repito: não tinha nada que ver
com a rapariga deslumbrante que vivera comigo.
— Nem mais um passo, Morgan.
A forma estúpida como me tratava, esquecendo sempre o meu nome próprio,
fez-me cerrar os dentes com força.
— Que diabo achas que estás aqui a fazer? — perguntei sem elevar o tom de
voz. O Andy continuava a dormir, demasiado perto da Briar, que estava a
observá-lo no berço, até que a interrompi.
Vi a Briar tirar a mão do bolso, e o metal de uma faca brilhou… O meu
coração desatou a bater descompassado no mesmo instante.
Engoli em seco e fiquei parada no sítio.
— Queria conhecer o filho do Nick — comentou, voltando-se para o berço e
sorrindo completamente embevecida.
Não me passou despercebido o facto de se referir ao Andy como filho no
Nicholas apenas.
Tentei manter a calma, apesar de a única coisa que tinha vontade de fazer ser
afastá-la do meu bebé e fugir dali a correr.
— É lindo… igualzinho a ele — assegurou inclinando-se e acariciando-lhe a
cabecinha.
Dei um passo automaticamente, mas a outra mão da Briar, a que segurava a
faca, levantou-se e apontou para mim com a ponta afiada, fazendo-me parar no
mesmo instante.
— Já te disse para não te mexeres — sibilou, furiosa.
— Briar, por favor… — supliquei, quando pousou as duas mãos no berço e
pegou no Andy, que acordou logo.
O meu bebé pestanejou várias vezes, confuso, e, quando vi que o segurava,
percebi o que ia acontecer. O Andrew desatou a chorar, rasgando o silêncio que
se instalara no quarto. Apertei as mãos com força, queria pegar nele,
tranquilizá-lo. Um ódio horrível percorreu o meu corpo todo. Se ela fizesse mal
ao meu bebé, matava-a, matava-a.
A Briar embalou-o para que deixasse de chorar, e, quando a faca que tinha na
mão se aproximou perigosamente do corpo do Andy, senti a minha alma por
um fio.
— Estás a segurá-lo mal — critiquei, desesperada que o soltasse, para que
afastasse aquela maldita arma do meu bebé recém-nascido.
A Briar levantou os olhos para mim e pareceu-me um pouco angustiada.
— Põe-no de barriga para baixo — disse, controlando o meu tom de voz. —
Isso… — assenti quando fez o que lhe pedia. Nessa posição podia segurar o
bebé com um braço e a maldita faca com o outro.
O Andy choramingou, mas acabou por se acalmar. A Briar ficou satisfeita
enquanto o balançava com uma canção de embalar que nunca tinha ouvido
antes.
— Sabes uma coisa? — disse ela, cravando os olhos nos meus. — O meu bebé
também tinha os olhos azuis…
Engoli em seco sem entender.
— Eu não abortei — contou-me olhando para mim com uma expressão de
desafio. — O pai do Nicholas deu-me dinheiro para o fazer… mas não o fiz.
Mas então…
— Perdi-o — afirmou enquanto os seus olhos se humedeciam, salientando o
bonito tom de esmeralda. — Quando lhes confessei que estava grávida de seis
meses, toda a minha família me virou as costas. Tentei escondê-lo, mas, ao
contrário de ti, não consegui evitar engordar. Começou a notar-se praticamente
às oito semanas.
Meu Deus.
— Era ruivo como eu e tinha os olhos do Nicholas.
Ouvi-la dizer aquilo partiu-me o coração. Não só porque o seu bebé morrera,
mas porque também era filho do Nicholas. Ao olhar para o meu bebé nos braços
dela, senti uma onda de pânico perante a ideia de que algo semelhante lhe
acontecesse.
— Só pude segurá-lo nos meus braços uma vez.
— Briar… lamento muito…
A Briar levantou o braço que segurava o Andy para lhe cheirar a cabeça.
— Avisei-te sobre o Nicholas… mas tu não fizeste caso.
Desta vez, os seus olhos fitaram-me com ódio. O Andy mexeu-se, inquieto.
— Briar, por favor… dá-me o meu bebé — supliquei, notando que as
lágrimas me inundavam os olhos.
Ela abanou a cabeça.
— Eu estava primeiro, Noah… — respondeu, usando o meu nome pela
primeira vez. — Tu não mereces ser mãe antes de mim… O ­Nicholas não
merece este bebé.
Não sabia o que fazer… Desesperada, olhei para ambos os lados à procura de
qualquer coisa que pudesse servir-me de arma. A Briar estava louca, sempre
soube que esta miúda tinha problemas: mentira-me fazendo-me crer que o
Nicholas tinha ido para a cama com ela enquanto estava comigo, mentira
quando dissera que tinha sido ele a obrigá-la a abortar…
— Eu sou melhor mãe do que tu — declarou, pegando no saco das fraldas que
estava em cima do móvel. Não o tinha posto ali, a Briar deve tê-lo preparado
enquanto eu dormia. Senti-me a pior mãe do mundo. Como pude não a ouvir?
Os meus olhos detiveram-se no intercomunicador que estava ao lado do berço.
Desligado.
— Briar, não podes levá-lo! — implorei quando me ameaçou com a faca e me
pediu que me afastasse da porta.
O Andrew acordou e recomeçou a chorar.
— Olha o que fizeste! — gritou, olhando para mim furiosa.
— Por favor, dá-me o bebé, Briar, sou a sua mãe!
Ela começou a embalá-lo de qualquer maneira, e o Andy contorceu-se nos
seus braços. Estava assustado, e ela segurava-o exatamente onde tinha as
borbulhinhas.
— Dá-mo, raios, estás a magoá-lo!
O choro do bebé encheu o quarto interrompendo o silêncio da noite. A Briar
pousou o saco das fraldas no chão para controlar melhor o Andrew e levantou a
faca na minha direção. Nesse instante, os seus olhos, que até então tinham
estado fixos nos meus, desviaram-se para um ponto algures acima do meu
ombro. Ouvi um ruído e, antes de poder virar-me, alguém me agarrou por trás,
as minhas costas chocaram contra um peito duro, e uma mão tapou-me a boca
abafando o grito que me ficou entalado na garganta.
— Estava a morrer de vontade de te abraçar — sussurrou uma voz conhecida
junto ao meu ouvido.
O meu coração deixou de bater para a seguir começar a corrida mais
desenfreada da minha vida.
Michael.
Tentei libertar-me dos seus braços, mas não me deixou. O cheiro a álcool que
o seu corpo emanava era horrível.
Os olhos da Briar iluminaram-se ao fitarem o meu agressor, e tentei com todas
as forças procurar algum tipo de ligação entre os dois. Como diabo as duas
pessoas que mais me magoaram acabavam juntas no mesmo quarto, ameaçando-
me a mim e ao meu bebé?
— Tens tudo aquilo de que precisas, querida? — perguntou o Michael à
Briar. Ela assentiu e voltou a pegar no saco das fraldas com as coisas do bebé.
Senti um medo terrível apoderar-se de mim, medo e raiva.
— Larga-me!
— Vou levá-lo, e tu não me vais impedir — ameaçou sem sequer olhar para
mim.
O Michael afastou-me da porta para deixar passar a Briar.
— Espera por mim lá em baixo — disse num tom autoritário que nunca o
ouvira usar.
Quando ela começou a caminhar em direção à porta, o meu coração quase
parou.
— Briar… Briar, por favor… devolve-me o bebé, por favor. — Chorei
tentando libertar-me dos braços do Michael. A Briar hesitou por um instante.
Os seus olhos fitaram-me, depois olhou para o Michael e por último para o
Andy.
— Lamento, Noah — desculpou-se e desapareceu pelas escadas abaixo.
— Não! — gritei com todas as minhas forças. O Andrew guinchou, histérico,
e o Michael virou-me, encostando as minhas costas à parede.
— Achavas que ias continuar a tua maldita vida como se nada fosse? Achavas
que eu ia deixar que aquele imbecil te tivesse para si sem que eu fizesse nada?
Comecei a chorar, desconsolada. Não acreditava que aquilo me estivesse a
acontecer.
O Nicholas longe, o Steve também…
Então lembrei-me de uma conversa que tivera com o Nick poucas semanas
antes. Não lhe prestara muita atenção, porque ele andava sempre tão obcecado
com a minha segurança, sempre tão preocupado que alguém nos quisesse fazer
mal… Agora entendia melhor por que razão acedera a levar o Steve consigo…
— Instalei um alarme em casa, Noah — disse o Nick enquanto eu dava o biberão ao
Andrew, embevecida e sem conseguir afastar os olhos do meu bebé. — Considerando o teu
historial com alarmes e para não teres de inserir códigos de cada vez que entrares e saíres
da casa, mandei instalar um botão de pânico, basta carregares no botão, e o alarme
ativa-se na central. Estás a ouvir-me?
Levantei os olhos do bebé e sorri-lhe, distraída.
— Sim, sim, um alarme de pânico. Estou a ouvir.
O Nicholas dirigiu-se para mim e soltou um suspiro.
— Um botão de pânico, Noah, está por baixo da bancada da cozinha.
Naquele momento, o Andy fez uns ruídos amorosos, e a minha atenção voltou a
desviar-se para ele. O Nicholas tirou-me o bebé das mãos e olhou para mim, irritado.
— Caramba, Noah, isto é importante!
Fulminei-o com o olhar e estendi os braços.
— Eu ouvi o que disseste, és um exagerado, mas já entendi. Agora dá-me o Andrew.
O Nick suspirou, abanou a cabeça e devolveu-me o bebé.
— Recorda-me só onde está o botão…
Mas já nem o estava a ouvir… e não me lembrei de absolutamente nada…
— Os dez mil dólares que ele me deu para me ir embora duraram algum
tempo… mas o teu noivinho tem muito mais de dez mil dólares, não tem,
querida? — perguntou o Michael, arrancando-me às minhas recordações.
Ele queria dinheiro… Por que motivo isso não me surpreendia?
— És um grande filho da puta — respondi sentindo por ele um ódio que
nunca experimentara por ninguém.
O Michael apertou-me o maxilar e, antes de conseguir desviar-me, deu-me
uma bofetada na cara.
— Nunca mais voltas a insultar a minha mãe, estás a ouvir?
Estremeci de medo, mas tentei fazer-me de forte. Não acreditava que me
tinha batido…
— Agora diz-me onde está a porra do cofre.
Sabia que havia um no nosso quarto. O código fora escolhido pelo Nick, e era
a data em que nos conhecemos.
Disse-lhe onde estava, e ele empurrou-me até chegarmos ao quarto. Os seus
olhos fixaram-se na cama aberta, nos móveis bonitos e na fotografia que
tínhamos emoldurado e pendurado na parede da cabeceira. Foi a Jenna quem a
tirou, e estávamos os três: eu, o Nick e o Andy.
— O que diria o teu noivo se eu voltasse a foder-te, desta vez na vossa
maravilhosa cama? Achas que voltara a perdoar-te ou que te largava como não
hesitou em fazer há dois anos?
— Tu estás doente — disse, cerrando os dentes e tentando manter a calma.
O Michael riu-se e afastou o quadro que lhe mostrei. O cofre estava escondido
por trás.
— Insere o código.
Puxou-me até eu ficar à sua frente. Fiz o que me mandava e, quando a porta se
abriu, os olhos dele iluminaram-se.
— Puxa, o teu namorado… — exclamou pegando nos maços de notas que
estavam empilhados ao lado de alguns documentos. — Se tem este dinheiro
todo em casa, não imagino quanto terá no banco.
Cerrei os punhos com força.
— Pega no maldito do dinheiro e desaparece daqui.
O Michael sorriu, meteu os maços de notas na mochila que trazia e depois
empurrou-me pelas escadas abaixo. A Briar estava sentada no sofá com o Andy a
dormir nos seus braços.
Quando vi que ele estava bem, senti que o coração voltava a funcionar. Queria
lá saber do dinheiro… Por mim até lhe dava a roupa que tinha no corpo, mas,
por favor, que não fizessem mal ao Andy, por favor, a ele não.
— Já podemos ir? — perguntou a Briar com nervosismo.
— Daqui a um instante, querida — respondeu o Michael, percorrendo o resto
da sala com os olhos.
Quando me puxou em direção da cozinha, senti que todos os meus poros
libertavam adrenalina.
«Onde está o maldito alarme, Nicholas?»
A Briar levantou-se com o Andy nos braços e veio atrás de nós. Odiava ver
como pegava nele, como se o meu bebé lhe pertencesse. O Michael deixou a
mochila cheia de dinheiro em cima da mesa e obrigou-me a sentar numa das
cadeiras. A Briar olhava para um e para o outro alternadamente. Parecia uma
criança à espera de que lhe dissessem o que devia fazer.
— Qual é o teu plano, Michael? — perguntei, tentando prolongar a
permanência naquela divisão. Se se fossem embora antes de poder dar o alarme,
o mais certo era que não voltasse a ver o meu bebé. — Levar o dinheiro e o meu
filho para te vingares do Nicholas?
— É exatamente o que vou fazer — respondeu a sorrir enquanto abria o
frigorífico. Pegou numa cerveja e fitou-me nos olhos. — Adoro ver-te assim tão
assustada… Fico doido por andar por esta casa, beber a cerveja dele, saber que
tenho a sua família à minha mercê.
Estremeci sentada naquela cadeira, questionando-me como pudera ser tão
idiota e não ter percebido como era o Michael O’Neil na realidade.
«És sempre capaz de encontrar uma forma de justificar os erros dos outros.»
As palavras do Nicholas atingiram-me quase com tanta força como a bofetada
que o Michael me dera há alguns minutos. Quis ver o seu lado bom, era
verdade, quis encontrar um motivo para se ter aproveitado da minha
vulnerabilidade, e agora compreendia que nem todo o mundo é feito de
bondade. Também existiam pessoas más, pura e simplesmente más.
O Andy começou a choramingar novamente, e o Michael afastou os olhos de
mim para os fixar no meu filho.
— Tinha muita vontade de conhecer o pequeno Leister… — respondeu,
aproximando-se e tirando o bebé à Briar.
Levantei-me de um salto.
— Não lhe toques! — gritei, fazendo-o chorar, como era minha intenção.
O Michael ignorou a minha advertência e acariciou-lhe a cabecinha.
— É tão parecido com o pai que até dá nojo — comentou, devolvendo­-o à
Briar.
O Andrew continuou a chorar.
— Está com fome — anunciei, olhando o Michael nos olhos. — Deixa-me
preparar-lhe o biberão.
Ele sorriu, divertido.
— De certeza que sabes pedir com mais jeitinho — disse, aproximando-se de
mim. O seu hálito a álcool deu-me vómitos.
— Por favor — pedi, tentando controlar a repugnância e o ódio que sentia
por ele.
O Michael agarrou-me pela cintura e enterrou os lábios no meu pescoço.
Fiquei tensa como um pedaço de ferro e contive as lágrimas.
— Fá-lo calar-se — ordenou-me ao ouvido, soltando-me um instante depois.
Afastei-me dele quase de imediato e contornei a ilha da cozinha para pegar no
biberão, nos cereais em pó e no leite. Enquanto o fazia, os meus dedos tateavam
por baixo da bancada, procurando o maldito botão.
Entretanto, o Michael estava a acabar de beber a cerveja com um sorriso
estúpido nos lábios. Não entendia por que razão continuava ali: se fosse ele,
tinha-me ido embora assim que encontrasse o dinheiro, mas, ao ver como estava
descontraído, percebi que o que mais lhe interessava era fazer-me sofrer, mais do
que fugir com o dinheiro. Como disse, estava a gostar de ocupar o lugar do
Nicholas naquela casa.
Quase tive um fanico quando os meus dedos depararam com qualquer coisa
por baixo da bancada. Era o botão de pânico!
Premi-o, rezando que a polícia não demorasse muito a chegar.
Aqueci o leite em banho-maria. Quando o biberão ficou pronto, aproximei-
me da Briar.
— Deixa-me dar-lhe o leite — pedi com um olhar suplicante.
— Não — recusou taxativamente, arrancando-me o biberão das mãos.
O Michael observava-me.
— Sabes uma coisa, Noah? — disse, mudando o tom jovial para outro muito
mais sombrio. — Eu também te podia ter dado tudo isto… — afirmou,
gesticulando em redor. — Se não te tivesses agarrado a alguém como o Leister,
teríamos sido felizes… Que se passa contigo? Por acaso gostas que te tratem
mal? Diz-me… Se quiseres posso fazer o mesmo.
— Deixa-me em paz! — gritei, encarando-o. — És tão idiota que vais passar
a tua vida maldita enfiado na cadeia! E tu também! — gritei à Briar. — Não
vês que ele está a manipular-te? Fez a mesma coisa comigo!
— Cala-te! — ordenou a Briar com raiva. — O Michael ajudou-me mais do
que qualquer outra pessoa… Vamos embora juntos… não vamos? — disse
olhando para ele com os olhos cintilantes de emoção.
Abanei a cabeça sem entender nada.
— O que raio lhe fizeste? — perguntei, voltando-me para ele.
O Michael preparou-se para responder, mas então começou a ouvir-se o ruído
das sirenes da polícia ao fundo.
Teria ficado aliviada de as ouvir, se não fosse pelo mais fundamental de toda
esta situação: a Briar ainda não me devolvera o Andy. Se a polícia entrasse ali e
aquela psicótica ainda o tivesse ao colo, nem queria imaginar o que poderia
acontecer.
O Michael voltou-se para mim depois de deixar a cerveja em cima mesa com
estrondo e agarrou-me no braço com força.
— Que diabo fizeste tu? — perguntou, abanando-me.
Até me estremeceram os dentes, mas sorri-lhe.
— Temos um alarme silencioso em casa, e tu tens meio segundo para
desapareceres daqui.
A Briar olhou, assustada, para o Michael e depois para mim. O Andy começou
a contorcer-se e a berrar, talvez porque a intensidade das sirenes aumentava a
casa instante.
O Michael largou-me, agarrou na mochila que estava em cima da mesa e
voltou-se para a Briar.
— Vamos! — gritou, abrindo a porta do jardim.
A Briar estava morta de medo, via-se nos seus olhos. O Andy estava a chorar,
e a única coisa que ela parecia querer fazer era que se acalmasse.
— Briar, dá-me o bebé… — supliquei.
O Michael não esperou nem mais um segundo. Saiu pela porta com a mochila
às costas e nem olhou para trás.
Desejei que a polícia o apanhasse, desejei-o com todas as minhas forças,
embora naquele instante os meus olhos só conseguissem fixar-se na mulher que
tinha à minha frente, a mesma que segurava o meu filho nos braços. Começou a
caminhar para trás quando me aproximei dela e a obriguei a recuar até à porta
principal que dava para a estrada.
Ela parou, olhando para mim, assustada.
— Lamento, Noah…
Achei que ia morrer quando ela abriu a porta para sair. O choro do Andrew
cravou-se na minha alma. O meu bebé estava a sofrer, e eu não podia fazer nada,
estavam a levá-lo de mim, estavam a roubar-me o meu bebé. Os meus piores
medos estavam a tornar-se realidade, e não havia nada que pudesse fazer.
Então, os carros da polícia apareceram na esquina. Quando os viu, a Briar
parou, com os olhos muito arregalados.
— Quem tem de cuidar do bebé sou eu — disse, olhando para mim com ódio
e apertando o bebé com força.
Os seus gritos aumentaram, dilacerando a minha alma.
Desatou a correr, mas um carro da polícia parou mesmo em frente a casa.
— Largue a arma! — ordenou um polícia, apontando-lhe uma ­pistola.
Tapei a boca com a mão. Não! Podiam acertar no meu bebé!
A Briar olhou para o outro lado da estrada, mas naquele instante chegou outro
carro da polícia, impossibilitando qualquer hipótese de escapatória.
— Largue a arma! — voltaram a gritar.
A Briar olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas. Um segundo
depois, a faca caiu no passeio.
— Agora, pouse o bebé no chão com cuidado, afaste-se dois passos e ajoelhe-
se!
Contive a respiração e cravei os olhos na Briar, que parecia completamente
aturdida. Levantou o Andy, deu-lhe um beijo na cabeça e agachou-se devagar
até o pousar no chão. O pequeno contorcia-se e chorava mais do que nunca.
Um soluço escapou-se da minha garganta enquanto a Briar se afastava do
Andy e fazia o que os polícias lhe mandavam. Desatei a correr até onde estava o
meu filho, peguei nele e encostei-o ao peito: nunca na vida sentira tanto medo,
nunca desejara matar alguém. O Andy chorava contra o meu corpo enquanto
tentava acalmá-lo.
Não sabia o que se passava à minha volta, só me importava saber que o meu
bebé estava novamente comigo.
— Deixe-me ajudá-la, minha senhora — disse um polícia, ajudando-me a
levantar. Todo o meu corpo tremia; mal conseguia controlar os soluços que me
escapavam da garganta.
— O Michael… fugiu pela porta das traseiras… — informei, tremendo como
varas verdes.
O polícia pediu-me que descrevesse o agressor e enviou reforços para o
procurarem.
Levaram-me para dentro de casa, tentaram fazer-me perguntas, quiseram que
um médico viesse ver-me a mim e ao Andrew, mas recusei, pedi-lhes que me
deixassem em paz e fechei-me com o bebé no seu quarto.
O body branco com abelhinhas que vestira para dormir estava sujo por ter
estado no passeio. Tirei-lho e vesti-lhe uma roupa lavada enquanto ele
continuava a chorar. Sentei-me com ele no sofá e só parei de o embalar quando
parou finalmente de chorar. Os seus olhinhos não se afastaram da minha cara
nem por um instante.
— Já passou… — sussurrei, aninhando-o contra o meu peito. — Já passou,
meu amor…
Só quando vi que o Andy dormia profundamente me permiti descer com ele
nos braços e entrar na sala.
— Senhora Leister, temos de lhe fazer algumas perguntas — anunciou o
polícia. — O seu marido já está a caminho, tratámos de o avisar sobre o
sucedido…
«Nicholas.» Não pensara uma única vez nele. Os meus pensamentos e atenção
estavam apenas centrados no bebé, que agora dormia placidamente nos meus
braços.
— Capturámos o Michael O’Neil, minha senhora — anunciou um dos
polícias que ali estava. — Ele tentou fugir, mas conseguimos imobilizá-lo com
facilidade. Não estava armado.
Assenti, embora não notasse em mim qualquer alívio. Ainda não conseguia
acreditar no que tinha acontecido, estava em estado de choque e só queria
fechar-me com o Andy no meu quarto, sem ver mais ninguém.
— Ao parece, o senhor O’Neil tratava a menina Palvin num programa para
pessoas com perturbações mentais.
O quê?
— A Briar…? — perguntei, sem acreditar no que estava a ouvir.
— A menina Palvin foi internada nesse centro de tratamento há quatro meses
e meio. Aparentemente, tentou suicidar-se, e os seus pais internaram-na. O
senhor O’Neil deve tê-la tirado do centro sem que ninguém soubesse.
Não podia acreditar naquilo… embora aproveitar-se das suas pacientes
parecesse ser o passatempo favorito daquele imbecil. Conseguia ver a satisfação
do Michael por estar a tratar alguém que fazia parte do meu passado e do
Nicholas. Quase conseguia ouvir as conversas entre os dois: a Briar, magoada
pelo que vivera com o Nick, e o Michael, a alimentar-se da sua dor para a
chantagear e levá-la a fazer o que fez.
Controlei a vontade de chorar e passei as horas seguintes a prestar declarações.
Deixaram-me fazê-lo em casa, disse-lhes que não saía dali de maneira nenhuma.
Liguei à Jenna quando os polícias se foram embora: não queria ficar sozinha.
Ela e o Lion vieram de imediato, assombrados e assustados com o que tinha
acontecido.
— Estou cansada — reconheci depois de bebermos um chá na cozinha.
Continuava com o Andy a dormir encostado ao meu peito e recusava-me a
largá-lo. — Vou deitar-me um bocadinho.
A Jenna assentiu e disse-me que não me preocupasse. Não consegui falar com
o Nick porque ele apanhara o primeiro voo para Los Angeles e estava nesse
momento no ar.
Meti-me na cama com o Andy ao meu lado e tentei descansar um pouco.
Ainda tinha o susto no corpo e não fazia ideia de quanto tempo demoraria a
recuperar do que aconteceu.

Abri os olhos um par de horas mais tarde. Quando vi que o Andy não estava
comigo, o meu coração parou de bater. Levantei-me, aterrorizada, mas parei ao
ver o Nick sentado em frente à nossa cama com o Andrew a dormir contra o seu
peito. Acariciava a cabecinha dele com o nariz, e, quando me sentiu a acordar,
os seus olhos viraram-se na minha direção.
Respirei fundo, aliviada, e desatei a chorar.
O Nicholas levantou-se com o nosso filho nos braços e veio até junto de mim,
que estava imóvel, sem conseguir parar de chorar e a sentir-me tão culpada que
nem conseguia falar. Tudo tinha sido culpa minha… o Nicholas avisara-me
sobre o Michael, e eu não fizera caso. Devia ter sido o Charlie quem lhe dera a
minha morada… O meu filho podia estar morto por minha causa…
— Nick… — disse, soluçando descontroladamente. — Desculpa, peço
imensa desculpa…
Ele puxou-me contra o peito, com o nosso bebé a dormir no meio dos dois.
Enterrei a cabeça no pescoço dele e deixei que me apertasse com força.
— Chiu… Noah — acalmou-me com a voz entrecortada enquanto levantava
a mão e a enterrava no meu cabelo. — Não peças desculpa… Nem eu pensei
que aquele filho da mãe fizesse uma coisa destas…
Afastei-me do seu pescoço para poder fitar os seus olhos. Os bonitos olhos
azuis estavam raiados de sangue e olharam para mim como nunca tinham feito
antes.
— O Andy está bem… — disse, tentando consolar-nos a ambos.
— Se vos tivesse acontecido alguma coisa… nem sei o que faria, Noah.
Abracei-o e beijei-lhe o rosto.
— Ainda bem que já estás aqui — disse, aproximando os meus lábios dos
dele. Beijou-me com força, segurando-me contra si durante o que podiam ter
sido minutos.
— Ele fez-te alguma coisa, Noah…? — perguntou, tocando suavemente na
marca que a bofetada do Michael devia ter deixado no meu rosto.
O Nick parecia estar a conter a respiração, com medo da minha resposta.
— Estou bem… Ele ameaçou-me, mas não me tocou — respondi, tentando
falar com calma e não demonstrar como tinha sido horrível, embora tivesse
vivido um verdadeiro inferno.
O polegar dele voltou a acariciar-me o rosto.
— Quero matá-lo — confessou um segundo depois, e vi o ódio atravessar as
suas feições.
— Ele vai passar muito tempo na cadeia… já será castigo suficiente.
O Nick puxou-me para a sua boca, os nossos lábios fundiram-se num beijo
desesperado e pleno de angústia. Quando nos afastámos, ouvimos o Andrew
fazer um ruído enquanto mexia a cabecinha. Estava acordado e olhava fixamente
para nós. Sorri enquanto lhe penteava o cabelo pequenino para trás.
— Amo-vos tanto que nem sei como o exprimir por palavras — disse o Nick,
abraçando-nos com cuidado.
Metemo-nos os três na cama. O Nick a abraçar-me por trás e o Andy a dormir
ao meu lado.
Nunca mais ninguém ia fazer mal à minha família.
58
NICK

Saber de tudo o que estava a acontecer com o Michael e a Briar enquanto me


encontrava noutra cidade sem poder fazer nada a não ser apanhar um avião foi
uma verdadeira tortura. Só me acalmei horas depois, quando pude entrar na
nossa casa.
Quando abri a porta, a Jenna e o Lion estavam acordados a beber café e a falar
em voz baixa. Estava tudo calmo, não havia polícias nem sangue… Não havia
nada do que imaginara no tempo em que demorei a chegar a casa.
— Onde está a Noah? — perguntei em jeito de cumprimento. Não conseguia
contentar-me com um relato, precisava de ver que as duas pessoas que mais
amava no mundo estavam bem.
Subi ao primeiro andar e entrei no quarto do bebé. Ao ver que não estava ali,
fui diretamente para o nosso quarto com os nervos em franja. Quando entrei,
libertei todo o ar que estava a conter: a Noah estava a dormir, ao seu lado, e o
nosso lindo bebé abanava as pernas e os braços, acordado.
Aproximei-me deles com o coração apertado. O Andy olhou para cima, com a
chupeta na boca e os olhos inchados por ter estado a chorar. Peguei nele ao colo
e apertei-o contra mim.
Tinham querido roubá-lo de nós.
O Andy fez um ruído queixoso, e levei-o comigo para me sentar no sofá que
havia em frente à cama.
— Olá, campeão — cumprimentei-o e deixei que me agarrasse o dedo com a
mão minúscula. — Foste muito valente hoje, filho — disse, beijando-lhe as
bochechas e inspirando o seu cheiro a recém-nascido.
O Andy sorriu como se me tivesse entendido. Apertei-o contra mim e não
consegui evitar que as lágrimas me caíssem pelo rosto.
Como podiam ter-nos feito uma coisa daquelas?
A Briar… o Michael… Aquele filho da mãe ia apodrecer na cadeia, ia
assegurar-me disso.
Fitei a Noah. Devia ter sido horrível para ela. Caramba, isto nunca deveria ter
acontecido.
Agradeci de todo o coração ter instalado o alarme e a Noah saber como o usar.
Se pensasse no que poderia ter acontecido…

No dia seguinte, já com as coisas mais calmas, a Noah contou-me tudo o que
aconteceu, tintim por tintim. Senti que a veia do meu pescoço pulsava
loucamente ao saber como os acontecimentos se descontrolaram.
Também senti dor quando soube que a Briar tinha perdido o bebé aos seis
meses. Nunca soubera de nada, se tivesse tido conhecimento… Devia ter sido
horrível para ela passar por aquilo sozinha. Também era o meu filho e, ao olhar
para o Andrew, percebi que aquilo me magoava tanto ou mais do que qualquer
outra coisa.
Senti necessidade de a visitar. O Michael podia apodrecer na cadeia, mas a
Briar estava doente. Duas semanas depois do sucedido, fui ao centro onde estava
internada. Estava a receber tratamento para a depressão e para o transtorno
bipolar. Sempre pensei que a Briar tinha um problema qualquer que escapava
ao entendimento daqueles que a rodeavam.
A sua vida tinha sido parecida com a minha no sentido em que crescera
sozinha e rodeada de amas-secas que não a amavam. Os pais pareciam só ter
dado por ela quando apareceu em casa grávida, e a única coisa que fizeram foi
virar-lhe as costas. Desejava do fundo do coração que recuperasse de tudo o que
sofrera. Mas jamais lhe perdoaria por ter tentado tirar-me o meu filho.
Ao chegar ao centro de tratamento, informaram-me de que ela estava bastante
melhor. Estava a tomar a medicação e parecia bastante mais animada. Quando
entrei no seu quarto, encontrei-a sentada na cama, a ler um livro. Pelo que a
Noah me contara, quando esteve na nossa casa tinha um aspeto desalinhado e
descuidado. O que via agora na Briar não era nem uma coisa nem outra.
Tinha umas calças de ganga e uma camisa de algodão limpa, azul-céu. O
cabelo curto estava apanhado num bonito rabo de cavalo alto, e os seus lindos
olhos observaram-me com expectativa quando me viu entrar.
Tinham-na informado da minha visita. Estava à minha espera.
— Olá, Nicholas — cumprimentou-me, fechando o livro e pousando-o na
mesa de cabeceira.
Aproximei-me e perguntei-lhe se podia sentar-me.
— Não vou roubar-te muito tempo — expliquei, sem saber bem como
exprimir os meus sentimentos contraditórios. — Só queria dizer-te que lamento
muito o que aconteceu ao nosso filho. Nunca soube do que aconteceu, se
soubesse tinha-te apoiado qualquer que fosse a tua decisão.
A Briar ouviu-me com uma expressão tranquila.
— Não estava nos planos do destino que aquele bebé fizesse parte das nossas
vidas — afirmou, e vi que os seus olhos se humedeciam —, mas era um bebé
lindo…
Segurei a sua mão entre as minhas. Custava-me ouvir as suas palavras.
— Lamento imenso — disse e era verdade. Adorava o meu bebé e contava os
segundos até poder regressar para casa para ele e para a Noah, mas isso não
impedia que uma parte do meu coração se despedaçasse por este meu filho não
ter tido sequer a oportunidade de viver.
— Desculpa-me pelo que fiz — disse ela, interrompendo o silêncio. — Não
sei o que me deu… Eu… o Michael… acreditei que ele me amava, sabes?
Disse-me coisas… sobre a Noah e sobre ti… Pensei que…
— Agora só tens de te concentrar em recuperar, Briar — aconselhei,
levantando-me.
Ela olhou para mim com os olhos muito abertos.
— Achas que algum dia vou conseguir ser como vocês? Que vou ter alguém
que me ame como tu amas a Noah…?
Escolhi as minhas palavras com cuidado.
— Acho que há uma pessoa certa para cada um de nós — disse, olhando-a nos
olhos. — Nunca pensei que podia amar alguém como amo a Noah, tu melhor
do que ninguém sabes como estava destruído por dentro. Por isso, sim, acho
que o teu futuro terá coisas muito boas, Briar. Um dia, levantas-te de manhã e
conheces alguém que vai deixar o teu mundo de pernas para o ar… só tens de
esperar que o teu momento chegue.
Dirigi-me à porta e parei quando me chamou.
— Dei-lhe o teu nome — disse, falando para as minhas costas. — Tinha de te
dizer isto.
Respirei fundo e saí do quarto.
59
NOAH

Dois anos depois…


Acabei o curso. A felicidade corria-me pelas veias, e não era capaz de parar de
sorrir. Não tinha sido fácil, não vou mentir. Voltar à faculdade depois de ter
tido o Andrew custou-me muitíssimo. Odiava afastar-me dele, mas pouco a
pouco fomo-nos adaptando. A obsessão que parecia ter desenvolvido pelo meu
bebé depois de no-lo terem tentado roubar foi-se dissolvendo com o tempo, e
com a ajuda do Nick voltei a sentir-me segura e capaz de o deixar com alguém
que cuidasse dele enquanto eu ia às aulas e acabava o curso.
O Nicholas foi tudo o que me prometeu que seria e mais ainda. Jurou
proteger os meus sonhos e ambições e ajudar-me para que não precisasse de
renunciar a nada, e assim foi. Nick… o meu noivo bonito que um dia seria o
meu marido.
Fomos adiando o casamento até que decidimos fazê-lo com tempo e sem
angústias. O Andrew já era um homenzinho de dois anos, dava connosco em
doidos, mas, como já era mais crescido, podíamos perfeitamente deixá-lo com
os avós e tirar duas semanas a sós para irmos de lua de mel.
Sorri com alegria quando recebi o diploma do reitor da faculdade e procurei
os meus dois rapazes favoritos com o olhar.
Quando me voltei no palco, feliz, o Nick levantou-se do lugar. O Andy
aplaudia, sentado aos ombros do Nick, o cabelo indomável tão despenteado
como o do pai e os olhinhos felizes com algo que nem sequer entendia. A minha
mãe e o Will aplaudiam, satisfeitos, e a Anabel e a Maddie sorriam na minha
direção.
A Anabel estava livre do cancro e retomara a relação com o Nick. A Maddie
continuava a viver com o Will, mas passava os fins de semana com a mãe.
Vinham quase sempre à nossa casa. A mãe do Nick estava doida com o Andy e
com a Maddie também. A menina transformara-se numa beldade de cabelos
louros e cara angelical. Com os seus dez anos, já fazia que as pessoas se virassem
para olhar para ela.
Reunimo-nos todos na nossa casa para fazermos uma pequena celebração da
minha licenciatura. Estava ali toda a família, assim como os nossos amigos. Em
certa altura, aproveitando que ficara sozinha na cozinha, o Nicholas pegou-me
pela mão e arrastou-me até ao nosso quarto.
As minhas costas chocaram contra a porta, e os seus lábios apoderaram-se dos
meus com infinita paixão e ternura.
— Amanhã serás finalmente minha, já não há por onde escapar, sardas —
disse, percorrendo o meu pescoço com veneração.
— Ainda estou a tempo de te deixar plantado no altar — avisei a rir.
Respondeu-me com uma mordidela forte no ombro que me provocou dor e
prazer em simultâneo.
As mãos colaram-se à minha saia rodada, e levantou-me, obrigando-me a
rodear as suas ancas com as pernas enquanto me apertava contra a parede.
Agarrou-me com força, sem permitir que me mexesse.
— Explica-me mais uma vez esta ideia estúpida de não irmos para a cama até
estarmos casados.
A ideia foi da Jenna. Desafiou-nos a passar duas semanas sem sexo para que a
lua de mel fosse mais intensa e romântica, segundo a própria.
— Não sei do que estás a falar — respondi, puxando-o para mim e deixando
que me beijasse na boca. As nossas línguas entrelaçaram-se, e gemi em voz
baixa quando a mão dele se colou a lugares proibidos, torturando-me sem
piedade.
— Isto é quebrar as regras? — perguntou. Atirei a cabeça para trás
suspirando com força e fechando os olhos para apreciar as suas carícias.
— Sempre foste ótimo a quebrar regras, não sei por que razão te preocupas
agora com isso… — disse, contorcendo-me debaixo da sua mão, procurando o
que o meu corpo tanto ansiava.
O Nick beijou-me a parte de cima do peito, enquanto os dedos continuavam a
brincar com o meu corpo.
— Vá lá, amor… dá-me o que eu quero — disse, sussurrando ao meu ouvido.
E então alguém bateu à porta.
O Nicholas parou.
Abri os olhos. A minha respiração estava agitada, o corpo, trémulo.
— O que diabo estão a fazer? — disse a voz da Jenna do outro lado da porta.
Oh, raios.
— Jenna, desaparece — ordenou o Nick, dando-me um beijo e pousando-me
no chão.
— Se não saírem daí agora mesmo…!
Resmunguei entre dentes, odiando a minha amiga com todas as forças.
— Regressamos à festa? — perguntou-me o Nick, na boa.
— És um idiota. Vou pagar-te na mesma moeda.
Ele encurralou-me contra a porta e fitou-me os olhos.
— O que te leva a pensar que não estou a sofrer tanto ou mais do que tu neste
momento?
Um olhar para o meio das suas pernas bastou para confirmar que estava a dizer
a verdade.
— Nada de sexo até estarmos casados…
— Os nossos pais ficariam orgulhosos.
Ri-me com o seu último comentário e abrimos a porta para enfrentarmos a
chata da nossa amiga.
— Mamã! — exclamou o Andy estendendo os braços para pegar nele. A
Jenna trazia-o à cintura. A sua barriga de seis meses era mais do que visível por
baixo do vestido amarelo.
Peguei no meu bebé maravilhoso e descemos juntos para o jardim da nossa
pequena casinha. O Lion estava de serviço no churrasco, com o William ao seu
lado. Ambos tinham aventais que diziam «Amo o cozinheiro». Presente da
Jenna, claro.
O Andy agitou-se nos meus braços e pousei-o no chão. Foi a correr em direção
aos baloiços onde a Maddie esperava por ele de braços abertos, pronta para
brincar com o sobrinho.
O Nicholas aproximou-se deles. Adorava aqueles meninos mais do que nada
neste mundo… Olhei em redor, toda a minha família estava ali, todos com
caras sorridentes.
O dia seguinte seria igualmente maravilhoso.
60
NICK

Olhei fixamente para a mulher que tinha à minha frente. Estava tão bonita que
até fiquei sem ar, sem palavras… Quando a vi entrar na igreja, fiquei
completamente hipnotizado.
Todos os nossos familiares e amigos estavam ali, todas as pessoas de quem
gostávamos vieram assistir à nossa união no sagrado matrimónio.
A Noah estava emocionada. Os seus olhos brilhavam tentando controlar as
lágrimas.
— Sim, aceito — disse, pronunciando cada palavra com clareza.
— Noah, aceitas Nicholas Leister como teu esposo, prometes amá-lo e
respeitá-lo, na saúde e na doença, até que a morte vos separe?
A minha maravilhosa noiva sorriu-me e cravou os olhos nos meus.
— Sim, aceito — respondeu com a voz trémula.
— Em nome de Deus e com o poder concedido pela Santa Igreja, declaro-vos
marido e mulher. Pode beijar a noiva.
Meu Deus, não precisou de me dizer duas vezes. Agarrei-lhe no rosto com as
duas mãos, e fundimo-nos num beijo que nos deixou aos dois sem ar. As nossas
famílias aplaudiram, e tive de me obrigar a afastar-me dela.
— Agora és toda minha, senhora Leister — disse, mais feliz do que nunca.
A Noah sorriu e deixou cair uma lágrima, que sequei com os lábios.
A festa teve lugar em frente ao mar. O dia estava ameno, perfeito, e a Noah,
deslumbrante. Estava tão bonita com o vestido de noiva que me ia fazer pena
despir-lho mais tarde. A renda branca ajustava-se ao seu corpo lindo e
continuava numa saia de tule abobadada a partir da cintura. Os ombros estavam
destapados, à exceção de duas tiras acetinadas brancas que se cruzavam nas
costas, realçando o seu corpo tão belo. As sardas estavam mais bonitas do que
nunca… e tinha um tom ­bronzeado ­espetacular por ter apanhado sol nos dias
anteriores ao casamento: estava louco por ela.
— Estás preparada para te ir embora? — perguntei-lhe, horas depois,
enquanto dançávamos no centro da pista. Pedira que passassem a música
«Young at Heart», e a Noah chorou, emocionada, quando recordou aquela noite
bonita de alguns anos antes, quando lhe mostrei como era bom dançarino.
Tinha sido a última noite que passáramos juntos antes de nos separarmos e quis
que se lembrasse disso para reforçar um momento que nunca deveria chegar ao
fim. Agora, quatro anos depois, voltávamos a dançar a mesma música, mas
desta feita depois de jurarmos que íamos amar-nos para sempre.
A Noah olhou em redor, à procura da mãe, que embalava o nosso filho nos
braços. Aguentou acordado mais do que qualquer um de nós imaginara. Correu,
brincou, dançou e no fim acabou por se render ao sono.
— Ele fica bem, Noah — tranquilizei-a, dando-lhe um beijo na testa.
— Nunca passou tanto tempo sem estar com qualquer um de nós…
— Vai divertir-se à grande a brincar com a Maddie e a comer as bolachas da
tua mãe.
A Noah voltou a olhar para mim e sorriu-me com emoção.
— Amo-te tanto — declarou, acariciando-me a nuca.
Inclinei-me sobre ela para me apoderar dos seus lábios. Precisava de estar a sós
com ela, imediatamente.
Despedimo-nos dos convidados e dos nossos familiares. Quando tivemos de
nos despedir do Andrew, a cena tornou-se um pouco lacrimosa.
O pequeno acordou quando a Noah o segurou nos braços. Tinham-no vestido
com um casaco minúsculo que só nos dava vontade de o devorar.
— Meu principezinho — disse a Noah, beijando-lhe as bochechas. — Porta-
te bem, sim?
Tirei-lho das mãos quando vi que a minha recém-esposa ficou com os olhos
húmidos. Se o Andy a visse a chorar, aquilo ia transformar-se num berreiro
infindável.
Peguei no meu bebé e levantei-o no ar, fazendo-o rir. Quando o apertei contra
mim, abraçou-me e deitou a cabeça no meu ombro.
— Nick… não achas que…?
Olhei para ela com uma expressão de aviso. Precisava de estar sozinho com a
minha mulher. Não íamos levar o miúdo, esse assunto já estava arrumado.
A minha mãe aproximou-se e estendeu os braços para pegar nele.
— Vão-se embora, vá… Este menino fica em boas mãos.
A minha mãe deu-me um beijo no rosto como despedida e foi-se embora com
o Andrew.
O choro não demorou a desaparecer por entre o ruído das pessoas e da música.
Aproximei-me da Noah, que olhava para o sítio por onde a minha mãe saíra
com o nosso bebé.
— Vamos — disse, envolvendo-a nos meus braços. — Temos de ir, sardas.
A Noah virou-se para mim e forçou um sorriso.
— Sim, é melhor irmos andando.
As pessoas juntaram-se à porta para se despedirem de nós. Corremos até
entrarmos na limusina branca que nos levaria ao hotel onde reservara uma suite
nupcial. Ficava perto do aeroporto, porque no dia seguinte íamos para a Grécia,
para Mykonos. Alugara uma casa maravilhosa mesmo em frente à praia, só para
nós. Íamos passar uma semana ali e outra na Croácia, num hotel de cinco
estrelas.
Não queria que a Noah se preocupasse com nada. Nos dois últimos anos, só a
vira estudar e cuidar do nosso filho. Precisava daquelas férias mais do que
qualquer outra pessoa e ia dar-lhe tudo o que ele merecia.
Quando chegámos ao hotel, receberam-nos com toda a parafernália reservada
aos recém-casados. O quarto era enorme, e pedira que à nossa espera houvesse
champanhe, bombons e morangos frescos.
Quando entrámos, a Noah ficou boquiaberta.
— Foste tu quem organizou isto tudo?
— As coisas que se conseguem fazer com um telefonema, não é? — disse,
segurando-lhe no cabelo e puxando-a até a fazer chocar contra o meu corpo.
— Estás preparada para fazer amor contigo até ser hora de irmos para o
aeroporto?
Ela fitou-me com os olhos cintilantes de desejo.
— Mas disseste que o voo era só ao meio-dia.
Sorri de forma perversa.
— Exatamente.
Passámos a noite a amar-nos sem descanso. Ela era finalmente minha, com
tudo o que esta palavra significava. Despimo-nos com intenção e cobrimo-nos
de beijos sem dar tréguas um ao outro. O vestido dela ficou esquecido no chão
enquanto fizemos amor com cuidado, com paixão, com ternura e com
brutalidade. Entregámo-nos ao prazer como só conseguem fazer aqueles que
estão perdidamente apaixonados.
E, se fosse um crime amar alguém com loucura… então declarávamo-nos
culpados, a culpa era nossa.
Epílogo
NOAH

Oito anos depois…


Fechei a porta da garagem com um sorriso nos lábios.
— O papá vai ficar passado da cabeça, Julie — disse à minha filha de dois
anos, enquanto contornávamos o jardim para entrarmos na nossa casa
espetacular.
Não nos tínhamos mudado há muito tempo; na verdade, fazia naquele dia
dois anos. Quando soubemos que íamos ser pais pela segunda vez, percebemos
que a nossa casinha na cidade era pequena de mais e decidimos que o melhor era
mudarmo­-nos para uma maior, junto à praia, para as crianças poderem
aproveitar o mar e tudo o que ele oferecia.
O mais interessado nesta mudança foi o Nick. Ofereceu-me a minha casinha
no centro para que pudesse continuar a estudar depois de o Andrew nascer.
Depois, por uma razão ou outra, não quisemos sair dali até que se tornou
inevitável. O Nick estava feliz por poder viver novamente em frente ao mar, e
eu estava feliz por ele. O Andrew tornara-se um surfista de primeira: com
apenas dez anos, já competia no campeonato nacional e ganhara muitos troféus,
por isso a mudança também foi uma alegria para ele.
O Andrew era a cópia do Nick, ninguém podia negar que era seu filho e,
como afirmei assim que o vi, de mim não herdou nem o branco dos olhos. Mas
pelo menos agora tinha uma pessoa pequenina que era a minha cara chapada: a
Julie, a minha filha, era loura como o sol e na cara tinha centenas de sardas que
dava vontade de devorar com beijos. A única coisa que herdara do Nick foram
os olhos, azuis-celestes como os do Andrew.
A Julie não veio de surpresa; pelo contrário, tentámos durante longos anos.
Como presumira, a minha primeira gravidez fora um autêntico milagre; agora
que olhava para trás, tinha a certeza de que Deus nos enviara o Andy como
única forma de nos juntar novamente.
Quando soubemos que era uma menina, ficámos loucos de felicidade. O Nick
tinha uma paixão imensa pela filha, mas ela, fiel à sua mãe, não queria saber de
se meter no mar e muito menos de que ele a levasse na prancha. A minha filha
era feliz nos meus braços, e eu adorava dedicar-lhe todo o meu tempo.
O Andy entrou em casa todo molhado e com os pés cheios de areia.
— Já podemos comer o bolo? — perguntou, sentando-se à mesa e beliscando
as bochechas à irmã. A Julie gritou como uma doida, e o Andrew riu-se com a
mesma expressão malandra que via no rosto do pai tantas vezes por dia,
sobretudo quando estávamos sozinhos.
— Só quando o papá chegar — respondi.
Naquele dia o Nick, fazia trinta e cinco anos. Ainda me custava a acreditar
como o tempo passara tão depressa. Tinha a sensação de que ainda ontem
andávamos a passear pelas praias de Mykonos, entretidos um com o outro, a
devorar-nos aos beijos durante a noite e continuando a fazer o mesmo durante o
dia. Eu tinha feito trinta em junho e também me custava habituar-me à ideia.
O Nick pediu-me que não fizéssemos grandes festas para o seu aniversário,
queria uma noite tranquila em família, e eu respeitei os seus desejos… mais ou
menos.
Sorri enquanto acabava de pôr a cobertura no bolo que lhe fiz. As crianças
estavam na sala a ver desenhos animados, embora os gritos histéricos da Julie
indicassem que o mais certo era estarem à briga.
Assustei-me quando umas mãos me agarraram pela cintura e um corpo
incrivelmente musculado se colou às minhas costas.
— Estás a cozinhar para mim, sardas? — sussurrou o Nick ao meu ouvido,
mordiscando o lóbulo da minha orelha de forma muito sensual.
— Não te habitues — disse, pousando a espátula sobre a mesa e voltando-me
para o receber como ele merecia.
— Feliz aniversário — disse, levantando os braços e puxando-o para o beijar
nos lábios.
O Nick sorriu sobre a minha boca.
— Nada de festas-surpresa? — perguntou, deslizando a mão pelas minhas
costas acima e acariciando-me com ternura e desejo.
Abanei a cabeça.
— Somos só nós — respondi com propósito. O Nicholas sorriu, satisfeito, e
apertou-me com força contra si.
Uma pessoa pequenina apareceu então para nos interromper, mesmo junto aos
nossos pés, distraindo-nos do nosso pequeno jogo.
— Papá! — chamou a Julie, levantando os braços para o pai pegar nela. O
Nick afastou-se de mim um tanto contrariado e pegou na sua segunda miúda
favorita.
Ao contrário do Andy, que sempre adorara que o Nick o atirasse no ar e
rodopiasse com ele sem parar, a Julie detestava essas coisas. A minha filha era,
nesse sentido, muito melindrosa. O Nick beijou-lhe os caracóis louros e sentou-
a sobre a anca enquanto tirava uma garrafa de vinho do frigorífico. Ao fundo,
ouviam-se os sons de videojogos na televisão.
— Como está a menina mais bonita do mundo? — perguntou o Nick,
enquanto fazia cócegas à Julie. A nossa filha riu-se, mostrando os dois únicos
dentes que tinha e abanando as pernas com força para o pai a pôr no chão. Foi a
correr ter com o irmão.
O Nick aproximou-se de mim e beijou-me novamente na boca.
— Hoje vai ser uma noite muito longa… — avisou de um modo sensual.
Senti um formigueiro no estômago com a ansiedade e obriguei-me a acabar o
bolo.
Passámos uma noite maravilhosa em família, jantámos todos juntos e
cantámos o «Parabéns a Você». A Julie aplaudiu como uma louca, era das
poucas canções que sabia cantar sem se enganar, e o Andrew deliciou-se a comer
o bolo que tanta vontade tivera de provar.
Quando as crianças já estavam na cama, peguei na mão do Nick e fi-lo descer
ao rés do chão.
— Tenho uma surpresa para ti — anunciei, nervosa, sem conseguir evitar
sorrir como uma idiota.
O Nick fitou-me, desconfiado.
— O que fizeste, sardas? Não vão sair palhaços de trás do sofá, pois não?
Revirei os olhos, isso só tinha acontecido uma vez.
— Vem… vais adorar — disse, abrindo a porta da rua e parando em frente à
garagem.
O Nick enfiou as mãos nos bolsos, olhando para mim, divertido e curioso.
— Estás preparado? — perguntei, mordendo o lábio.
— Claro que não! — respondeu, brincando comigo.
Ignorei-o e carreguei no botão para abrir o portão da garagem. Era uma
garagem enorme, onde tínhamos um ginásio e guardávamos muitos brinquedos
dos miúdos. Quando o portão acabou de se abrir, os olhos do Nicholas fitaram o
que tinha à sua frente.
— Feliz aniversário! — gritei, emocionada.
— Raios me partam… — foi o seu único comentário. — Mas tu perdeste a
cabeça? — disse, dando quatro passos em frente.
— Eu disse que te devia um Ferrari, e não sou pessoa de esquecer as minhas
dívidas.
O Nicholas fitou-me, incrédulo, e soltou uma gargalhada que me encheu o
peito de alegria. Veio até mim e levantou-me nos braços, rodopiando comigo ao
colo.
— Não posso crer… — reconheceu, olhando fixamente para mim antes de
franzir o sobrolho. — Espera…
Pousou-me no chão e percebi que vinha aí bronca.
— Tu não… — começou a dizer enquanto me afastava dele disfarçadamente.
— Diz-me que não gastaste o dinheiro que pus na tua conta a comprar um
presente para mim.
Encolhi os ombros.
— Disse-te que não queria aquele dinheiro.
— Mas tu és minha mulher!
— E tu és meu marido! — respondi, sem evitar o meu regozijo.
— Não sei se te mate ou te cubra de beijos… Diz-me lá, espertinha, o que
queres fazer?
Sorri com presunção.
— Quero fazer uma corrida.
Agradecimentos

Demorei cinco anos a escrever esta trilogia. Quando comecei Culpa Minha, fi-lo
porque foi uma daquelas histórias que não queriam saber do que eu tinha para
fazer: exigiu-me deixar tudo de lado e meter mãos à obra. A Noah e o Nick
chegaram até mim num momento fulcral, e, agora, depois de tanto tempo,
pude finalmente encerrar a sua história.
É assustador deixar de escrever sobre personagens que conheço melhor do que
a mim própria, porque elas se transformaram em algo tão real que despedir-me
delas dói tanto quanto despedir-me de pessoas de carne e osso.
Continuo a não acreditar que esta história tenha sido publicada e que pessoas
de todo o mundo se tenham identificado com uma coisa que saiu diretamente
da minha cabeça. Obrigada a todos os que contribuíram com o seu grão de areia
para que este livro esteja hoje nas livrarias. Às minhas editoras, Aina e Rosa,
sem as quais este livro não seria o que é agora. Obrigada por terem conseguido
que desse o melhor de mim e por me terem ensinado o que é trabalhar
profissionalmente no mundo editorial.
Obrigada ao Wattpad, por me oferecer a melhor maneira de mostrar o meu
trabalho e por me ter ajudado a estar em contacto com os meus leitores de uma
forma tão direta. A todos os que ali escrevem e sonham, como eu sonhei,
incentivo-os a continuar. Nunca se sabe quem pode estar a ler.
Obrigada à minha agente, Nuria, por me acalmar quando há coisas que ainda
não entendo e por me apoiar desde o início.
Devo mais um agradecimento gigante aos meus pais, por me ensinarem que é
preciso lutar por aquilo que se quer, apesar de parecer que tudo está contra nós.
Aprendi com eles que não importa quantas vezes uma pessoa cai: temos de nos
levantar e seguir em frente.
Bar, nunca me vou cansar de agradecer a alegria que puseste neste livro e por
o teres lido até mais vezes do que eu. És a minha leitora zero, e espero que
continues comigo noutro projeto qualquer que venha a pôr em marcha. Os teus
conselhos valem ouro!
Eva, obrigada por te teres tornado uma das minhas melhores amigas, mesmo
sem te aperceberes disso. Obrigada por ouvires todas as minhas inseguranças,
por me acalmares melhor do que ninguém e por me fazeres rir mais do que
nunca. Espero chegar a ver como realizas os teus sonhos da mesma maneira que
me viste realizar os meus. Vais conseguir tudo o que te propuseres.
E por último, a todas as pessoas que estão há meses à espera deste fim, espero
do fundo do coração ter estado à altura das vossas expectativas e ter dado ao
Nick e à Noah o fim que mereciam. Não há nada como escrever para nós
mesmos, mas, quando sabemos que há tanta gente entusiasmada com aquilo
que estamos a criar, a experiência torna-se algo maravilhoso.
Espero que continuem comigo durante muito tempo, da mesma forma que
espero poder partilhar convosco todas as histórias que estão por chegar.
Este livro é para vocês. Adoro-vos, «Culpados»!

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