Culpa Nossa - Mercedes Ron
Culpa Nossa - Mercedes Ron
Culpa Nossa - Mercedes Ron
Reencontro
1
NOAH
Cheguei à estação de caminhos de ferro por volta das sete da tarde. O Sol ainda
não desaparecera no horizonte, em pleno julho só se punha depois das nove, e
foi agradável sair do comboio, esticar as pernas e sentir aquele aroma acolhedor
a mar e a brisa fresca que vem da costa. Havia muito tempo que não ia à praia e
sentia imensas saudades. A minha faculdade ficava a quase duas horas de carro
do mar, e fazia os possíveis por evitar ir a casa da minha mãe. A minha relação
com ela já não era como antigamente e, apesar de se terem passado muitos
meses, não tínhamos resolvido as coisas entre nós. Falávamos apenas de vez em
quando e, quando a conversa se encaminhava para assuntos que eu não estava
simplesmente disposta a debater, desligava-lhe o telefone e pronto.
A Jenna estava à minha espera em frente à estação, no seu carro. Ao ver-me,
saiu do descapotável branco e veio ao meu encontro a correr. Eu fiz o mesmo, e
encontrámo-nos a meio da estrada. Envolvemo-nos num abraço apertado e
desatámos a saltitar como duas possessas.
— Estás aqui!
— Estou aqui!
— Eu vou casar!
— Tu vais casar!
Soltámos gargalhadas até que as buzinadelas insistentes do trânsito que
estávamos a interromper nos obrigaram a separar.
Entrámos para o descapotável, e eu fitei a minha amiga enquanto ela
começava a tagarelar sobre como estava angustiada com todas as coisas que
ainda tínhamos de fazer antes do grande evento. Na verdade, dispúnhamos
apenas de um par de dias para estarmos só as duas, já que os convidados não
tardariam a chegar. Os amigos mais próximos ficavam hospedados na casa dela,
e os restantes tinham casa própria nos Hamptons — quando digo casa, quero
dizer «mansão», claro — ou então ficariam alojados na casa de algum amigo
que vivesse na zona.
A Jenna tinha escolhido esta data por causa disso mesmo. Para não obrigar
toda a gente a deslocar-se para ali, escolheu a época das férias, uma vez que
metade dos seus amigos e conhecidos já estariam nos Hamptons ou então perto
dali.
— Preparei um itinerário que é uma loucura, Noah; nos próximos dias só
precisamos de ir à praia, ao spa, de comer e de beber margaritas. Esta é a minha
despedida de solteira, com o estilo relaxante que tanto desejo.
Assenti enquanto os meus olhos se perdiam na paisagem que me rodeava.
Deus do Céu, aquele lugar era lindo! Senti que me transladaram subitamente
para a época colonial do século xvii. As casinhas da povoação eram de tijolo
branco, com telhas largas e bonitas, alpendres à frente e cadeiras de baloiço
junto às portas. Estava tão habituada ao estilo prático e simples de Los Angeles
que me esquecera de como alguns lugares conseguem ser pitorescos. À medida
que nos afastávamos da povoação, comecei a ver as mansões impressionantes que
se erguiam, imponentes, nas amplas propriedades. A Jenna virou para uma
estrada secundária em direção ao mar, e ali, ao longe, pude ver os telhados altos
de uma mansão espetacular, branca e castanho-clara.
— Diz-me que aquela não é a tua casa…
A Jenna riu-se e tirou um pequeno aparelho do porta-luvas. Carregou no
botão, e as grades imensas do portão exterior abriram-se quase sem fazer
barulho. E ali estava, uma casa impressionante, grande e linda.
Era de estilo colonial, como todas naquela zona, nada moderna, mas de
construção maravilhosa, numa propriedade que dava para o mar — as ondas
ouviam-se de onde estávamos. Uma série de luzes ténues iluminavam o
caminho que dava acesso ao estacionamento, onde cabiam pelo menos dez
carros.
A mansão de tijolo branco tinha um alpendre muito bonito sustentado por
colunas enormes. Os jardins em redor eram de um verde que eu não via há
muito tempo, e destacavam-se os carvalhos centenários, que pareciam receber-
nos com a sua majestosa presença.
— Vais casar-te aqui? Bolas, Jenna, é mesmo bonita! — exclamei, descendo
do carro sem conseguir afastar os olhos da construção sublime, e até estava
acostumada a casas bonitas… Quero dizer, vivera na casa dos Leisters, mas
aquilo era completamente diferente… era mágico.
— Não vou casar aqui; inicialmente, era esse o plano, mas depois, enquanto
falava com o meu pai, percebi que ele fazia gosto que me casasse num sítio em
É
que sempre dissemos que seria lindo casar-me. É uma vinha a cerca de uma
hora, mais coisa menos coisa, onde o meu pai me levava muitas vezes quando eu
era pequena. Costumávamos andar a cavalo, e lembro-me de que, numa dessas
ocasiões, me disse que gostava que eu me casasse ali, porque tem uma magia
difícil de encontrar noutros sítios. Lembro-me de que ainda nem dez anos tinha
e naquela altura sonhava ter um casamento de princesa. O meu pai ainda se
lembra desse dia.
— Bem, se supera esta casa, de certeza que é um sítio maravilhoso.
— É mesmo, vais adorar. Fazem-se lá muitos casamentos.
Dito isto, aproximámo-nos da escada juntas e subimos os dez degraus que
davam acesso ao alpendre. Senti o estalar subtil da madeira sob os meus pés e
soou-me como uma música celestial.
Não conseguem imaginar como era aquela casa por dentro: mal havia paredes,
era um imenso espaço diáfano com chão de madeira de carvalho. No centro
havia um conjunto de sofás dispostos em círculo em volta de uma lareira
redonda e moderna. Uma biblioteca com pequenas poltronas de orelhas ocupava
outra zona ao lado de uma escada que subia para o primeiro andar, onde uma
balaustrada nos permitia observar o piso térreo.
— Quantas pessoas ficam aqui, Jenna?
A Jenna pousou descontraidamente o casaco no sofá, e encaminhámo-nos para
a cozinha. Também era enorme: tinha uma espécie de sala com poltronas
amarelas e uma mesa de pequeno-almoço não muito grande. Pelas janelas
enormes pude ver que a porta dava para um jardim imenso nas traseiras, e, para
lá dele, a alguns metros, havia uma praia de areia branca imaculada que
competia com a enorme piscina quadrada.
— Então, deixa ver… acho que no total somos dez, contando connosco, com o
Lion e com o Nick; o resto das pessoas ficam noutras casas da zona ou no hotel
que há no porto.
Desviei os olhos para a janela ao ouvir o nome do Nick e assenti de forma
despreocupada para que ela não percebesse como me afetava a simples menção
do seu nome.
Mas, mesmo assim, a Jenna percebeu e, depois de ir buscar duas garrafas de
ginger ale ao frigorífico, obrigou-me a olhar para ela.
— Já se passaram dez meses, Noah… Sei que ainda te dói, e em parte esperei
este tempo todo porque não me podia casar sem os meus dois melhores amigos
presentes, mas… achas que vais estar bem? Quero dizer… não o vês desde…
— Eu sei, Jenna, e não te vou mentir e dizer que não me faz diferença
nenhuma ou que já o esqueci, porque não é verdade, mas ambas sabemos que
isto ia acabar por acontecer. Somos praticamente família… era uma questão de
tempo até voltarmos a encontrar-nos.
A Jenna assentiu e tive de desviar o olhar do dela. Não gostava que visse os
meus olhos; quando se falava do Nick, as pessoas pareciam movimentar-se por
terrenos pantanosos. Eu sabia lidar com a minha dor, já o tinha feito e
continuava a fazê-lo todos os dias, não precisava da compaixão de ninguém. Eu
tinha dado cabo da nossa relação, agora ficar sozinha e com o coração
despedaçado era o meu castigo.
A Jenna não demorou muito a mostrar-me o meu quarto, e agradeci-lhe,
porque estava esgotada. Abraçou-me, emocionada, depois de me mostrar como
funcionava o chuveiro, e foi-se embora a gritar que era bom que descansasse,
porque no dia seguinte não ia haver nada que nos parasse. Sorri e, depois de ela
sair, abri a torneira para tomar um banho quente e relaxante.
Sabia que os dias que se aproximavam seriam duros. Ia ter de manter a
compostura pela Jenna, para que ela não percebesse que eu estava destroçada.
Na semana seguinte, teria de levar a cabo a maior atuação da minha vida… e
não só à frente da Jenna, mas também do Nicholas, porque, se ele visse a minha
vulnerabilidade, ia acabar por massacrar mais o meu coração e a minha alma…
afinal, era isso que se propusera.
É
— É um prazer.
A Amy ficou a olhar para mim com um ar de aprovação e tirou um caderno da
mala. Depois, começou a procurar qualquer coisa folheando as páginas de forma
rápida e confiante.
— A Jenna disse-me que eras bonita, mas agora que te vejo… O vestido de
dama de honor vai assentar-te maravilhosamente.
Sorri enquanto sentia o rosto corar.
A Jenna sentou-se ao meu lado e levou um pedaço de torrada à boca.
— Olha que a mais bonita da festa tenho de ser eu. — Com a boca cheia de
comida, mal se apercebeu das suas palavras, mas eu sabia que estava a brincar. A
Jenna era tão bonita que, por mais raparigas giras que houvesse ao seu lado, ela
havia sempre de se destacar entre as demais.
— Olha, Noah, este é o teu vestido — disse a Amy, mostrando-me uma
fotografia da marca Vera Wang. Era um vestido lindo de renda, vermelho, com
um decote em V e duas alças finas que se cruzavam nas costas. O decote atrás
era impressionante. — Gostas?
Como podia não gostar? Quando a Jenna me convidou para ser uma das suas
damas de honor, quase me saltaram as lágrimas, mas fizemos um pacto: para eu
ser sua dama de honor, ela tinha de escolher um vestido que não me fizesse
parecer um bolo de aniversário. E ela levara o meu pedido a sério: o vestido era
incrível.
— Quem mais vai ser dama de honor comigo? — perguntei, sem parar de
olhar para o vestido fascinante.
A Jenna olhou para mim com um sorriso.
— Acabei por decidir ter só uma — admitiu, deixando-me petrificada.
— Espera… o quê? — perguntei com incredulidade. — E a tua prima, a
Janina ou Janora ou lá como ela se chama?…
A Jenna levantou-se e dirigiu-se ao frigorífico, virando-me as costas. A Amy
ignorou-nos por completo; mais do que isso, levantou-se para atender uma
chamada e afastou-se para um canto da cozinha, para ouvir melhor.
A Jenna tirou morangos e leite do frigorífico e pousou-os na bancada.
Enquanto ia buscar o liquidificador, claramente com a intenção de fazer um
batido, encolheu os ombros.
— A Janina é insuportável. Quem quase me obrigou a convidá-la foi a minha
mãe, mas, quando percebeu que não podia, acabou por admitir que, entre ter
apenas duas damas de honor ou uma só, preferia que eu tivesse só uma… Já
sabes, é mais harmonioso, foram estas as suas palavras.
Revirei os olhos; fantástico, agora ia ter de estar ali sozinha, de pé em frente a
centenas de convidados que assistiriam à cerimónia, sem ter mais ninguém ao
meu lado com quem partilhar a minha triste sina.
— Além disso, já sabes… o Lion só vai ter um amigo no altar, por isso não
preciso de me preocupar que fique desequilibrado: assim fica tudo
perfeitamente simétrico.
Antes de compreender o que a minha amiga acabara de dizer, o liquidificador
preencheu o silêncio repentino, afogando os meus pensamentos contraditórios.
Um momento… só um amigo e uma amiga no altar…
— Jenna! — gritei, levantando-me e atravessando a cozinha até chegar ao seu
lado. A minha amiga tinha o olhar fixo no aparelho. Desliguei-a sem
contemplações e obriguei-a a olhar para mim. — Sou a madrinha, não sou?
A Jenna tinha a culpa espelhada no rosto.
— Desculpa, Noah, mas o Lion não tem pai, e já sabias, obviamente, que o
Nick seria o seu padrinho. Como deves compreender, não ia convidar a minha
mãe para madrinha se o Lion não tem o pai como padrinho para a acompanhar.
Não me pareceu correto. Por isso decidimos que seriam os nossos melhores
amigos.
— Sabes o que me estás a pedir?
Não só teria de entrar na igreja ao lado do Nicholas como também devíamos
assegurar que tudo correria de acordo com o planeado; não só teríamos de nos
ver durante a cerimónia como também nos ensaios.
Não percebera que seria assim porque achei que a Jenna já tinha escolhido a
madrinha, conformara-me unicamente com a ideia de que ia ter de ver o Nick
ao longe… Sim, ficaríamos alojados na mesma casa, mas não teríamos de
interagir um com o outro; agora ia tê-lo colado a mim durante toda a
cerimónia, incluindo no jantar da véspera.
A Jenna segurou-me nas mãos e fitou-me.
— São só alguns dias, Noah — disse, tentando transmitir uma calma que
nem a brincar poderia sentir. — Vocês já viraram a página, já passaram tantos
meses… vai correr tudo sobre rodas, vais ver.
«Já viraram a página.»
Sabia apenas de um de nós que conseguira fazê-lo; eu, pelo contrário,
continuava a aguentar-me com as pequenas golfadas de ar que inspirava de vez
em quando, ao vir à superfície.
3
NICK
Olhei para o relógio que tinha na secretária do meu escritório. Eram quatro da
manhã, e eu sem conseguir pregar olho. A minha cabeça não parava de dar
voltas e mais voltas sobre o que ia acontecer nos próximos dias. Raios… ia ter
de voltar a vê-la.
Revirei os olhos ao fitar o bonito convite para o casamento. Neste momento,
não havia nada no mundo que odiasse mais do que uma cerimónia estúpida em
que duas pessoas juram amor eterno: que idiotice descomunal.
Aceitara ser o padrinho porque não era assim tão sacana para negar uma coisa
daquelas ao Lion, sabendo que ele já não tinha pai e que o irmão, Luca, era um
ex-presidiário que nem sequer sabia se teria autorização para entrar na igreja.
Mas, à medida que o dia se aproximava, sentia-me mais nervoso e com um
humor de cão.
Não queria vê-la… até falara pessoalmente com a Jenna, tentara pô-la entre a
espada e a parede para que escolhesse entre ela e eu, mas o Lion quase me deu
uma tareia por estar a colocar a minha amiga nessa situação.
Tinha pensado em mil e uma desculpas para não ir ao casamento, mas
nenhuma delas justificava a sacanice de deixar os meus dois melhores amigos
pendurados.
Levantei-me da cadeira e aproximei-me da janela enorme de onde podia
contemplar a maravilhosa vista da cidade de Nova Iorque. Ali de pé, no andar
sessenta e dois, sentia-me longe de todos… tão longe do que quer que fosse que
senti um frio glacial percorrer-me o corpo inteiro. Eu era assim agora, uma
placa de gelo flutuante.
Os últimos dez meses tinham sido um pesadelo, desci ao inferno e fi-lo
sozinho; queimei-me nas chamas e ressurgi das cinzas transformado em alguém
completamente diferente.
Acabaram-se os sorrisos, acabaram-se os sonhos, acabou-se a sensação de sentir
algo mais do que o simples desejo carnal por alguém. Ali de pé, longe do
mundo, eu transformara-me na minha própria prisão, que era só minha e de
mais ninguém.
Ouvi passos nas minhas costas, e a seguir umas mãos rodearam-me por trás.
Nem sequer me sobressaltei, já não sentia nada, existia simplesmente.
— Porque não voltas para a cama? — perguntou a voz daquela rapariga que
conhecera poucas horas antes num dos melhores restaurantes da cidade.
A minha vida agora resumia-se a uma única coisa: trabalho. Trabalhava sem
parar, ganhava dinheiro que nunca mais acabava e a seguir voltava a trabalhar.
Tinham-se passado apenas dois meses do aniversário das Empresas Leister
quando o meu avô Andrew decidiu que estava cansado deste mundo e que
queria abandoná-lo. Se tiver de admitir alguma coisa é que foi esse momento,
em que recebi o telefonema a dar conta do seu falecimento, que me permitiu
desabar finalmente. Foi nesse instante em que me roubaram outra das pessoas
que amava que percebi que a vida não presta: entregamos o coração a alguém,
deixamos esta parte de nós nas mãos de outra pessoa para acabarmos por
descobrir que não só não tiveram com ele o cuidado que esperávamos como
ainda o fizeram sangrar; e a seguir as pessoas que nos amaram de verdade, as que
decidiram proteger-nos desde o dia em que nascemos, deixam este mundo sem
sequer nos avisarem, vão-se sem deixar rasto. Ficamos sozinhos e sem entender
o que aconteceu, questionamo-nos por que razão tiveram de partir…
O meu avô não desaparecera sem deixar rasto, não: na verdade, deixara para
trás um documento muito importante, que mudou a minha vida de forma
radical.
O meu avô deixou-me absolutamente tudo. Não só a casa em Montana e todas
as suas propriedades mas também a totalidade das Empresas Leister. A mim.
Nem o meu pai recebeu a sua parte da herança, embora também não lhe fizesse
falta, já que fazia parte da direção de uma das melhores sociedades de advogados
do país, mas o meu avô deixou-me todo o seu império, incluindo a Corporação
Leister, a empresa que, juntamente com a do meu pai, dominava grande parte
do sector financeiro do país. Eu sempre ansiara por fazer parte do mundo das
finanças ao lado do meu avô, mas nunca quis que me caísse tudo do céu.
Assim, vi-me de repente obrigado a ocupar esse lugar por que tanto ansiara e
transformara-me oficialmente no dono de um império, tudo nos meus
fantásticos vinte e quatro anos.
Dediquei-me tanto ao trabalho, a provar que era capaz de transpor qualquer
obstáculo, a demonstrar que podia ser o melhor, que já ninguém duvidava das
minhas capacidades. Alcançara o topo… e, no entanto, não conseguia ignorar o
vazio que me preenchia.
Voltei-me para olhar para a rapariga morena com quem quis entreter-me
durante algumas horas. Era esguia, alta, tinha os olhos azuis e seios perfeitos,
mas não era mais do que um corpo bonito. Nem sequer me lembrava do nome
dela. Na verdade, ela já se devia ter ido embora: eu deixara bem claro que só me
interessava sexo e que, quando acabássemos, lhe chamaria um táxi de bom
grado, para ela ir para casa. Não obstante, ao vê-la aqui, depois de me sentir tão
vazio e irritado por ser obrigado a enfrentar uma situação que me enfurecia mais
do que queria admitir, senti a urgência de pelo menos aliviar uma parte da
tensão que o meu corpo parecia acumular.
As mãos dela subiram pelo meu peito enquanto os olhos procuravam os meus.
— Tenho de admitir que os rumores que ouvi a teu respeito não eram de todo
infundados — disse, colando-se a mim de modo tentador.
Segurei-lhe os pulsos e detive a carícia que se avizinhava.
— Não me interessa o que possam dizer sobre mim — disse de forma
determinada. — São quatro da manhã, e daqui a meia hora vou chamar um táxi
para te levar a casa, por isso é melhor aproveitares o tempo.
Apesar da frieza das minhas palavras, a rapariga esboçou um sorriso.
— É para já, senhor Leister.
Cerrei os maxilares com força e permiti simplesmente que ela continuasse a
fazer o que queria fazer. Fechei os olhos e deixei-me levar pelo prazer
momentâneo e pela simples satisfação física, enquanto tentava não sentir o vazio
que me inundava. O sexo já não era o que tinha sido e, para mim… até era
melhor assim.
4
NOAH
A calma que vivemos nos últimos dias desapareceu assim que a campainha
tocou naquela manhã, bem cedo. Tínhamos passado o tempo em idas ao spa em
Sag Harvor, a comer marisco fresco nos restaurantes pitorescos e a torrar ao sol,
deixando que a nossa pele ganhasse um bronzeado muito desejado e que
certamente nos provocaria imensas rugas para o resto da vida.
Amy, a organizadora do evento, deixara-nos sozinhas para podermos
aproveitar este tempo entre amigas de que tanto necessitávamos, mas, a poucos
dias do casamento e com a chegada iminente de inúmeros convidados, foi
impossível continuar com aquele nosso dolce far niente.
A Jenna parecia estar a ficar cada vez mais nervosa e demonstrava-o falando
sem parar e, principalmente, ligando ao Lion de cada vez que lhe dava um
ataque de ansiedade. Depois de passar meses a preparar-se para o exame de
admissão a uma das empresas do pai da Jenna, o Lion conseguira o merecido
lugar de administrador de uma das suas sucursais, e as coisas pareciam estar
finalmente bem encaminhadas para o extraviado do grupo. Ambos conseguiram
perdoar-se pelos erros do passado e estavam mais apaixonados do que nunca.
Naquela manhã, pude finalmente ver o vestido de noiva da Jenna. A modista
chegara com a Amy para a Jenna poder experimentar o vestido pela última vez
e fazer os ajustes necessários. Devo dizer que o vestido era incrível, de renda
branca e justo até à cintura, de onde surgia uma saia em campânula. Fazia-me
lembrar os vestidos das protagonistas dos filmes ou das modelos nas revistas,
que deixam toda a gente babada. A mãe da Jenna desenhara o vestido em
conjunto com uma das modistas mais caras de Los Angeles, e a minha amiga
ficava maravilhosa com ele.
A seguir, chegou uma equipa de trabalhadores que se encarregou de decorar a
entrada da casa com flores, segundo a Jenna, de acordo com o tema floral do
casamento; ao mesmo tempo, outra equipa tratou do catering para a receção de
todos os amigos e familiares que chegariam naquele dia: havia comida para dar
e vender. Em suma, no imenso jardim estava a preparar-se o que seria uma
receção pré-casamento digna de registo.
O jantar de ensaio seria dali a dois dias e teria lugar num salão junto à baía.
Nem é preciso falar do estado de nervos em que me encontrava. Não me sentia
preparada para voltar a ver o Nick e muito menos para passar mais de dois dias
na mesma casa que ele.
A casa depressa se transformou num corrupio de gente, com familiares e
amigos que chegavam sem parar e, emocionados, se aproximavam da Jenna para
lhe perguntar coisas acerca da cerimónia ou simplesmente coscuvilhar sobre o
vestido e outros detalhes.
A minha amiga convidou os amigos mais íntimos a ficarem na mansão, assim
como os familiares mais próximos, principalmente os mais jovens, já que os
adultos preferiam ficar hospedados em hotéis onde a emoção juvenil e a
bebedeira com que certamente todos acabaríamos o dia não incomodaria a sua
tranquilidade.
A Jenna estava rodeada por algumas das suas primas, enquanto pela porta
principal iam entrando as pessoas que trabalhavam no catering e que pareciam
ser mais do que as mães. Ia mesmo a passar junto à porta, com a intenção de ir
para o meu quarto procurar um pouco de sossego, quando um carro conhecido
parou em frente à casa. Levantei a mão para proteger os olhos da luz e vi que era
o irmão do Lion; vinha a sair do carro com aquele sorriso perigoso que parecia
tatuado no seu rosto.
Fez girar as chaves do carro entre os dedos e cravou o olhar no meu ao
aperceber-se de que estava no alpendre a observá-lo.
— Olhem só quem cá está — disse ele com um sorriso retorcido, ao subir os
degraus —, a princesinha desaparecida em combate.
Revirei os olhos. Nunca tinha gostado muito do Luca. Ele passara anos na
cadeia e, pelo que a Jenna me tinha contado, continuava a meter-se em sarilhos,
sarilhos que agora o Lion se encarregava de resolver. Tinha de admitir que o
Luca estava muito diferente desde a última vez em que o vira, meses antes,
naquelas corridas horríveis em que a Jenna acabara com o Lion. Eu e o Nick
também tínhamos tido uma discussão descomunal nesse dia, uma discussão
que, como todas as nossas discussões, acabara em sexo. O sexo não resolvia nada,
só nos ajudava a ter a certeza do inevitável: que nos estávamos a destruir
mutuamente, pouco a pouco.
— Como estás, linda? — cumprimentou, pondo-se à minha frente e
obrigando-me a levantar um pouco o olhar. Se o Lion era um homem alto, o
Luca não lhe ficava atrás. Os seus braços tatuados podiam afugentar qualquer
pessoa de bem, mas ele exibia-os com orgulho, e a mim não me incomodavam
nem um pouco.
— Estou muito bem, Luca, fico contente por te ver — respondi, dando um
pequeno passo atrás; ele aproximara-se demasiado de mim, e eu não achava
muita graça àquela proximidade. — A Jenna está lá dentro, se quiseres
cumprimentá-la.
O Luca olhou por cima do meu ombro sem demonstrar grande interesse. Os
seus olhos verdes, iguais aos do irmão, desceram sobre os meus, percorreram
descaradamente o meu vestido branco, enrugaram-se ao sorrir e voltaram a
pousar sobre a minha cara.
— Tenho tempo para cumprimentar a futura noiva, mas, por falar nisso... É
verdade que estás solteira?
O interesse dele perturbou-me um pouco, e, como não tinha vontade
nenhuma de falar da minha vida sentimental, muito menos com o irmão rufia
do melhor amigo do meu ex-namorado, que certamente sabia de tudo o que
acontecera, sobretudo o que eu tinha feito, a vontade de sair dali a correr e
fechar-me no meu quarto aumentou de forma considerável.
— Tenho a certeza de que sabes a resposta a essa pergunta — afirmei de modo
bastante frio. A recordação da minha situação atual fez com que sentisse uma
pontada no peito.
Nesse preciso instante apareceu a Jenna. O sorriso que fez ao receber o Luca
foi bastante mais agradável do que o meu, e ele abriu os braços para a apertar
contra o peito.
— Olá, futura cunhada — cumprimentou ele, tocando com as mãos no corpo
dela. — Estás mais gorda? Tem cuidado, depois o vestido não te serve.
O Luca sorriu, e a Jenna contorceu-se para se libertar dos braços dele,
afastando-se e fulminando-o com o olhar.
— És um idiota — disse ela, dando-lhe uma palmada no braço.
O Luca voltou a concentrar-se em mim.
— Estava aqui a perguntar à Noah onde é o meu quarto… Já sabes que não
estou acostumado a viver em castelos à beira-mar e que me sinto cansado da
viagem…
A Jenna revirou os olhos.
— Também, só tu te lembrarias de atravessar o país de carro. Não sei se sabes,
mas agora há uns aparelhos voadores chamados aviões?
Arregalei os olhos com surpresa.
— Vieste de carro da Califórnia?
O Luca assentiu, consertando a mochila que trazia ao ombro.
— Adoro os restaurantes de beira de estrada — declarou, passando por nós
para entrar em casa. — Onde é o meu quarto?
A Jenna abanou a cabeça e sorriu. Naquele instante, chamaram-na da cozinha.
— Noah, leva-o até lá acima e mostra-lhe o quarto da direita, aquele ao lado
da varanda.
— Mas…
A Jenna não ficou para ouvir os meus protestos, desapareceu pelo corredor em
direção da cozinha e deixou-me a sós com o Luca.
— Vamos lá, princesa, não tenho o dia todo.
Saí do duche deixando uma imensa nuvem de vapor atrás de mim. Fiquei
debaixo de água mais tempo do que devia, mas era isso ou deixar que todos os
meus músculos permanecessem tão rígidos como cordas de um violino.
Aproximei-me da janela enrolada numa toalha e vi que o jardim das traseiras
estava a transbordar e gente. Todos vestiam de branco, uma ideia que ocorrera
ao pai da Jenna e que se espalhou pela casa de tal forma que parecia que o jantar
se transformara numa espécie de festa em Ibiza em honra dos noivos.
Quando chegámos a casa, transpirados e a cheirar mal, encontrara o Lion e a
Jenna envoltos num abraço apertado junto às escadas do alpendre. Pelos vistos,
ele acabara de chegar, e a Jenna parecia estar agora completa.
Apesar da minha rutura com o Nick, o Lion nunca fizera qualquer comentário
sobre o que acontecera; mais do que isso, recusara-se a tomar partido em tudo o
que tivesse que ver com a nossa separação. Houve uma altura, pouco depois de
nos separarmos, em que me deu para acossar o pobre Lion para que ele me desse
o número novo do Nick. Não consegui, e a Jenna juntou-se à sua
imparcialidade porque nenhum dos dois voltou a falar do Nick à minha frente,
a não ser para me dar apoio quando mais precisei.
Por isso, sim, os momentos que passava com o Lion estavam agora reduzidos
aos encontros inevitáveis quando ele estava com a Jenna.
Afastei-me da janela e comecei a arranjar-me à pressa. Não tinha nenhum
vestido branco, só um simples que costumava levar para a praia, por isso vesti
uma saia branca que me ficava um pouco acima dos joelhos e uma T-shirt justa
com alças da mesma cor. Sequei o cabelo com a toalha para não ir a pingar e
deixei-o húmido, consciente de que a brisa marítima o secaria em minutos.
Quando desci as escadas com a intenção de ir para o jardim das traseiras onde
estava toda a gente, o toque da campainha fez-me parar junto da balaustrada. A
Jenna estava na rua com os seus amigos e familiares, e a casa parecia ter ficado
deserta, à exceção dos empregados, que entravam e saíam da cozinha para levar
os pratos de marisco aos convidados.
Aproximei-me da porta e, repetindo o mesmo gesto que fazia desde que os
convidados começaram a chegar, abri-a e obriguei os meus lábios a instalarem-
se num sorriso acolhedor de boas-vindas.
Quando o Steve retribuiu o meu olhar, o sorriso ficou-me petrificado nos
lábios. Pareceu ficar tão surpreendido quanto eu, embora me tenha
cumprimentado com cordialidade no segundo seguinte. Ao vê-lo ali de pé, com
duas pequenas malas na mão, senti um nó no estômago.
Com o coração a bater a mil à hora, vi atrás do Steve um homem de fato que
saía de um Lexus preto; vinha de óculos de sol e com o telemóvel colado à orelha
esquerda. O Nick tirou os óculos enquanto dizia qualquer coisa brusca a quem
estava do outro lado da linha. Ao fazê-lo, os seus olhos encontraram os meus, e
receei desmaiar ali mesmo.
Estava tão diferente… Tinha cortado o cabelo e já não o usava despenteado e
comprido, como me lembrava, como costumava acordar de manhã; agora tinha
o cabelo curto e bem penteado, o que lhe dava um ar sério, quase intimidante.
O fato que usava só acentuava esta sua nova imagem de empresário. Trazia o
casaco sobre um braço e os primeiros botões da camisa desapertados, as mangas
arregaçadas por cima dos cotovelos, deixando antever os braços bronzeados e
muito mais musculados desde a última vez que o vira.
Fiz todas estas observações em poucos segundos, simples segundos, porque os
seus olhos se cravaram tão fortemente nos meus que tive de desviar o olhar para
o chão para conseguir recuperar do choque de voltar a vê-lo.
Quando o fitei novamente, ele já não estava a olhar para mim; despediu-se da
pessoa com quem falava e guardou o telemóvel no bolso enquanto se
aproximava da porta onde eu me encontrava.
Contive a respiração sem saber o que dizer e, quando ficou à minha frente,
durante aqueles efémeros dois segundos que demorou a contornar o meu corpo
sem sequer vacilar para entrar pela porta sem olhar para trás, senti que voltava a
morrer; senti que tinha passado meses, anos, a caminhar pelo deserto e que de
repente via aparecer à minha frente uma fonte de água… só para me aperceber,
um segundo depois, de que se tratava de uma miragem que desafiava a pouca
sensatez que me restava.
A Noah sempre fora uma droga para mim, uma maldita droga que me deixava
pedrado com a sua mera presença. Tudo nela me chamava para si, tudo me
transformava num imbecil idiota, numa pessoa débil.
Custou-me tanto separar-me dela, magoara-me tanto saber que não voltaria a
tocar-lhe, que não voltaria a beijá-la e a cuidar dela, que ela não ia ser a mulher
da minha vida… Passei da dor ao ódio de uma forma que até a mim me
assustou; porque me abri completamente a ela, entreguei-lhe a minha alma e o
coração, fiz exatamente aquilo que mais temia e enganei-me; foram tantas as
vezes em que pensei em todas as coisas que podiam correr mal, e nunca me
passou pela cabeça que a Noah pudesse deixar que outro tipo lhe tocasse. Nem
era capaz de pensar no sacana do psicólogo. Bastava-me pensar no nome dele, e
mergulhava de cabeça num turbilhão de raiva e loucura incontroláveis.
Aquele tipo tinha tocado na minha namorada, despiu-a… Acho que foram
estas imagens, esta realidade impossível de apagar, que me destroçaram por
completo. Nunca na minha vida me senti tão mal, tão afundado em
infelicidade… A muralha que ergui à minha volta foi de tal forma que apareceu
outra pessoa nova no lugar que antes eu ocupava. Já não tinha capacidade para
nada que não fossem os sentimentos básicos de um homem sem alma. A pouca
que me restava para amar era inteiramente dirigida à minha irmã mais nova, e,
depois disso, acabava-se tudo.
Tivera tanto trabalho para me assegurar minuciosamente de que não precisava
de voltar a ver a Noah que esta situação agora me incomodava muitíssimo.
Estava tão furioso com ela… ainda tão zangado… porque bastou-me vê-la para
voltar a sentir alguma coisa, para perceber que o meu coração acelerava e a
respiração se tornava mais difícil. Odiava essa sensação, odiava todas as
sensações, já não sentia nada, habituara-me a não sentir, e agora o facto de ela
chegar e voltar a torturar-me assim só me dava vontade de a arrastar comigo
para o meu inferno pessoal.
Ali estava ela, tão terrivelmente irresistível como sempre, tão terrivelmente
tentadora… e ainda por cima parecia encolher-se na minha presença, olhava
para mim sem aquele brilho ou a superioridade que sempre acompanhara cada
uma das suas palavras. A Noah que tinha agora à minha frente também
mudara, já não era a mesma, e odiava sentir pena, odiava ver o que nos tinha
acontecido aos dois, odiava culpá-la por isso.
Quando parei o carro, ela saiu de imediato. Abriu o cinto da cadeira do
Jeremy, tirou-o do assento e dirigiu-se à vinha sem sequer esperar por mim.
Trazia vestidos uns calções e uma blusa amarela simples e só com isto já
conseguira transtornar e penetrar em todas as minhas defesas. No carro, o cheiro
do seu perfume, daquele aroma tão característico nela, o mesmo com que às
vezes ainda sonhava e que fazia com que acordasse com uma ereção descomunal
e com vontade de matar alguém… aquele maldito aroma estava agora
entranhado em todos os cantos do meu carro e, o pior de tudo, o mais irritante,
foi que uma parte de mim se deliciara com este aroma como um alcoólico que
bebe um gole de brande depois de muitos anos de abstinência; nem sequer a
deixei abrir a janela, não consegui evitar que a minha cabeça se inundasse com
as imagens das coisas que lhe faria para saciar esta necessidade de a ter, a
necessidade que sentia e sempre sentiria.
Levantei os olhos para o lugar onde os meus melhores amigos iam casar-se e
mal consegui acreditar que fosse acontecer. Sabia que o Lion pedira a Jenna em
casamento um mês depois de me separar da Noah. O meu amigo guardara
aquele segredo de forma quase profissional, e uma parte de mim ficou grata por
isso. Estava feliz por eles, como é óbvio, mas por outro lado, a notícia tinha sido
como esfregar álcool sobre as minhas feridas.
A vinha de Corey Creek era um lugar maravilhoso para um casamento, tinha
vindo muitas vezes passear por ali e comprar merlot do bom. A Jenna e o pai
trouxeram-me consigo, e lembrava-me de andar a cavalo entre os campos, de
ver os casamentos a decorrer ao longe. Um dos donos era amigo do meu pai e do
Greg, por isso tínhamos uma certa liberdade na propriedade.
A Jenna não demorou a dizer-nos para onde devíamos ir; primeiro, passámos
pela bonita receção do lugar, com vigas altas de madeira e tapetes de peles de
animais que certamente tinham sido caçados pelo próprio dono. Havia
candeeiros a óleo e candelabros de cristal suspensos sobre as nossas cabeças de
modo um tanto intimidante. A Jenna estava agitada, a falar com uma mulher
oriental que parecia um pouco stressada; uns minutos depois, apresentaram-ma
como sendo Amy, a organizadora do casamento.
Quando saímos para a parte das traseiras, onde ficavam as vinhas, tive a
certeza de que o casamento seria magnífico, como os que tinha contemplado ao
longe ou talvez até melhor.
O altar feito de flores tinha sido colocado de frente para as vinhas imensas que
se estendiam até onde a vista alcançava sob o dia quente de julho. Os bancos e
as flores ainda não estavam no sítio, mas dava para ter uma ideia de como iam
ficar quando tudo estivesse terminado.
— Os padrinhos? — perguntou a Amy, olhando para nós.
A Noah deu um passo em frente e olhou para mim de soslaio antes de prestar
atenção ao que dizia a organizadora. Um minuto depois, pegou-me no braço e
indicou-me onde devíamos posicionar-nos. A mulher fez uma fila de casais. O
primeiro a entrar seria o Lion e a mãe; a seguir entraria a mãe da Jenna de mão
dada com o Jeremy, que parecia querer fazer tudo menos prestar atenção à Amy;
depois entravamos nós, e finalmente a Jenna, com o pai.
Coloquei-me ao lado da Noah e esforcei-me para disfarçar o meu mau humor.
Quando a Amy se pôs à nossa frente, claramente consciente de que éramos os
únicos que mal se tocavam, franziu o sobrolho e olhou para nós com má cara.
— Que diabo estão a fazer?
«Não faço a menor ideia, linda, a mais pálida ideia.»
Senti os olhos da Noah sobre o meu rosto e tive de contar até dez para não
desaparecer dali e mandar tudo para o inferno.
8
NOAH
A cerimónia foi linda, e o Lion quase desatou a chorar quando viu a Jenna,
mas eu não consegui mesmo evitar fazê-lo. Raios me partissem, porque tinha de
ser tão sentimental?
Os meus amigos leram os seus votos, disseram «Sim, quero» e com umas
simples palavras ficaram unidos para o resto da vida. Quando se inclinaram um
para o outro para darem um beijo incrível que fez com que mais do que um
convidado corasse, não consegui evitar levantar os olhos para o Nicholas e, para
minha surpresa, vi que ele estava a olhar para mim também. Sustivemos o olhar
um do outro e deixámo-nos submergir naqueles instantes mágicos em que tudo
à nossa volta parece desaparecer e só importa a pessoa que está à nossa frente.
Seria esta noite a última vez que nos víamos? Acabei por ser eu a desviar o
olhar, porque a intensidade dos seus olhos sobre os meus fez as minhas pernas
começarem a tremer.
Tivemos de sair atrás dos noivos, e, desta vez, quando entrelacei o meu braço
no dele, temi também que aquela fosse a última vez em que podia tocar-lhe, um
contacto simples em que nem sequer a nossa pele se aflorava de verdade, mas
este corredor seria o último que percorria na companhia dele. Isto magoava-me
tanto que assim que atravessámos as portas me libertei dele quase de imediato e
fui para a direção oposta. Precisava de me sentar, e depressa.
9
NICK
Sabia que tinha estragado tudo ao beijá-la na noite anterior, mas não o consegui
evitar. Ela estava ali, a gritar-me, a deitar as culpas para cima de mim, de mim!
Chamou-me mentiroso. Mentiroso? Nem sequer entendia a que diabo se
referira, mas as minhas opções eram beijá-la ou perder completamente a cabeça.
Ver as mãos asquerosas do Luca no corpo dela, os seus lábios sobre os dela… A
Noah decidira acabar com o pouco autocontrolo que me restava. Vê-la com
outro obrigara-me a reviver aquelas imagens malditas que quase conseguira
eliminar do meu cérebro. Era evidente que, agora que a vira ao fim de tanto
tempo, tudo voltara ao início, tudo voltara a ser como aquela maldita noite em
que descobri que me tinha enganado…
Sentir contra o meu o corpo esbelto dela, lindo e muito mais esguio do que
me recordava, fez-me enlouquecer por alguns instantes. Fez que todos os meus
sentidos colapsassem, e durante breves segundos voltei a ser o Nicholas de
antes, voltei a ser aquele rapaz completamente apaixonado, perdido de amores
por aquela rapariga. Quando a afastei para olhar para ela, para me deixar
inundar pela luz que ela sempre emitira, vi o mesmo nos seus olhos, vi a mesma
ansiedade, o mesmo desejo contido, o desejo que nos puxava um para o outro,
mas também vi outras coisas: arrependimento, desespero e nostalgia… foi como
se me tivessem espetado uma faca no coração e a virassem, voltei a sentir o
mesmo sofrimento que me invadiu quando soube da verdade.
As imagens… as malditas imagens com que a minha imaginação me
torturava voltaram a projetar-se no ecrã do meu cérebro. A Noah, despida, na
cama, a suspirar de prazer daquela forma tão sensual, inocente e tão plena;
aqueles sons que os seus lábios libertavam e me deixavam louco, que
conseguiam fazer-me cair de joelhos. Mas não tinha sido eu a provocar aqueles
sons, tinha sido outro; tinham sido outras mãos a acariciar o seu corpo, não
devagar e à procura do seu prazer, mas de forma brusca: manuseavam-na sem o
cuidado, sem o amor que eu conferia a cada uma das minhas carícias. Mas a
Noah gostara, sentira prazer com elas, porque não fora o meu nome que
gritara…
Nesse instante, senti que me tinham despejado um balde de água gelada
sobre o corpo e tive de a afastar de mim, apesar de ela se agarrar com todas as
suas forças ao meu pescoço, recusando-se a separar-se. Talvez tivesse achado que
não seria capaz de me afastar dela, mas fi-lo e não me arrependia.
Agora, depois de passar uma hora sem dormir, voltava a sofrer um destes
episódios de fragilidade, daqueles em que queria mandar tudo às urtigas,
esquecer tudo o que acontecera, ir ao seu quarto e implorar-lhe para
terminarmos aquilo que tínhamos começado.
Percebi que estava na hora de me ir embora dali.
Fiz a mala, saí do quarto em silêncio e, como o perfeito idiota que sou, não
consegui evitar parar brevemente à porta do quarto da Noah. Fechei os olhos
por um instante, irritado por saber que ela estava a poucos metros de mim, que
seguramente passara a noite a chorar por causa do nosso encontro e que já não
podíamos fazer nada para o consertar. Assim que tive forças, fui-me embora.
Guardei a minha escassa bagagem na mala do carro e lavei a cara com o resto
de uma garrafa de água que encontrei ali; não tinha dormido nada, mas
precisava de arrebitar. Depois de ter abandonado a festa, peguei numa prancha
de surfe e fui até à praia de Georgica, onde surfei sem parar durante horas,
tentando acalmar-me, tentando encontrar um sentido nestas razões todas que
supostamente me mantinham afastado da Noah, as mesmas razões que
pareceram desaparecer assim que a beijei. Surfei naquela praia até que começou
a amanhecer. Depois decidi voltar, tomei um duche e dei a viagem por
terminada.
12
NOAH
Não o ouvi ir embora, mas senti a sua ausência. Pronto, já tinha acabado, agora
restava-me apenas voltar à minha rotina de sempre.
Despedi-me de todos os convidados que ainda estavam em casa, dispostos a
ficar ali mais um par de dias. A mãe da Jenna deu-me um abraço, e o pai
ofereceu-se para me levar à estação, onde havia de apanhar o comboio para Nova
Iorque. Durante o caminho, perguntou-me quais eram os meus planos para o
verão, e eu contei-lhe que, além dos dias que ia estar em Nova Iorque, o resto
do verão seria passado a trabalhar. Não queria dar-lhe muitas explicações acerca
do meu trabalho, já que estava a falar com um magnata do petróleo que de
certeza nem entendia por que motivo a enteada do seu melhor amigo, que era
milionário, precisava de trabalhar como empregada de mesa. Não obstante, ele
foi discreto, e eu fiquei grata por isso.
— Onde vais ficar hospedada durante estes dias, Noah? — perguntou-me
enquanto atravessávamos aquelas ruas tão bonitas. Ainda era cedo, mas já havia
por ali pessoas: algumas passeavam os seus cães, outras caminhavam com as suas
malas e mochilas de marcas exclusivas… quase todas usavam óculos de sol. Tive
pena de ter de ir embora sem conhecer melhor aquela zona, mas, com todos os
afazeres do casamento, não tinha tido tempo.
Olhei para o pai da Jenna e disse-lhe o nome do motel que reservara em Nova
Iorque. Não me importava que fosse um estabelecimento de má fama, não ia lá
passar tempo quase nenhum, só precisava de um sítio para dormir e para tomar
banho. Iria passar as restantes horas do dia a descobrir aquela cidade grandiosa.
Quando lhe disse o nome do motel, o pai da Jenna fitou-me ligeiramente
perplexo, nem sequer o conhecia, o que não era de espantar, tendo em conta as
duas propriedades que tinha naquela cidade, além da casa nos Hamptons.
Fiquei embaraçada por um instante quando ele insistiu em reservar-me um
quarto num hotel do centro, nada mais nada menos que um Hilton. Agradeci-
lhe a oferta, mas não precisava das esmolas de ninguém. Aquelas pessoas a
quem o dinheiro sobrava achavam que os que não podiam desfrutar dos mesmos
luxos eram pessoas infelizes, e isso não era verdade. Eu não me incomodava nem
um pouco em ficar num motel… Também não era nada do outro mundo, por
amor de Deus!
— Noah, não quero intrometer-me, mas Nova Iorque não é como Los
Angeles, é uma cidade que pode ser muito perigosa, e ainda mais se fores
sozinha e sem conheceres nada.
Insistiu nisto até que chegámos à estação.
— Não se preocupe, senhor Tavish, eu sei cuidar de mim, vou ficar bem, a
sério que sim… Além disso, não vou estar sozinha, vou encontrar-me com uma
amiga, por isso não precisa mesmo de se preocupar. — Pronto, esta parte era
mentira, mas era completamente inofensiva. O pai da minha amiga não pareceu
nada convencido; pelo contrário, pareceu ficar incomodado e verdadeiramente
preocupado, como se fosse meu pai.
— Bem, se precisares de alguma coisa, tens o meu número. Eu vou estar nos
Hamptons o resto da semana, mas tenho muitos amigos em Nova Iorque,
amigos que estarão dispostos a acompanhar-te, se for preciso.
Amigos… Sim, claro, sabia muito bem ao que se referia esta gente quando
falavam de «amigos». Bastava olhar para o Steve e pensar na função que tinha
na vida dos Leisters. Não precisava de guarda-costas, muito obrigada.
Despedi-me amavelmente dele e apressei-me a entrar na estação, não se
lembrasse ele de ligar à minha mãe ou algo parecido… já esperava qualquer
coisa.
Entrei na carruagem, entreguei o bilhete do comboio a uma senhora muito
simpática e instalei-me no meu lugar, olhando pela janela e desejando chegar
àquela cidade magnífica. Tentei esquecer-me de quando o Nick me prometera
que um dia me levaria a Nova Iorque, que ia ser ele a mostrar-me a grande
metrópole. Desde então passara-se uma vida inteira, pelo menos era essa a
sensação que tinha.
Quando chegámos ao destino, a primeira coisa que fiz ao sair do comboio foi
arranjar um táxi para me levar ao motel onde tinha o quarto reservado.
Enquanto circulávamos pela cidade, fiquei pasmada com o que via através da
janela. Os arranha-céus impressionantes pareciam não ter fim, e havia tanta
gente na rua que me fazia sentir uma mera formiga, um grão de areia… Era
espetacular, sim, e também um pouco assoberbante.
Quando o taxista se meteu por uma rua estreita e um pouco sombria, por
volta das quatro da tarde, senti-me um tanto aflita. Porém, o homem não tinha
más intenções: o motel situava-se ali, e, apesar de não ser horripilante, não tinha
nada que ver com a fotografia que vira na Internet.
O taxista tirou a minha mala da bagageira, dei-lhe uma gorjeta minúscula, e
o homem foi-se embora pelo mesmo sítio por onde veio, deixando-me ali,
perdida na cidade grande. Respirei fundo e entrei no estabelecimento, que tinha
mais ar de refúgio para pessoas sem-abrigo do que de motel.
A rapariga que estava atrás do balcão mal levantou os olhos da revista quando
cheguei à sua frente a arrastar a mala.
— Nome? — perguntou, mastigando uma pastilha elástica de forma ruidosa
e repugnante. Sempre detestei pastilhas elásticas.
— Noah Morgan. Tenho uma reserva — respondi, olhando em redor. Era
oficial: aquilo não era um motel, mas um edifício bastante mal amanhado que
reservava quartos.
Com um suspiro, a rapariga abriu uma gaveta e tirou uma chave de um
monte.
— Tem cuidado e não a percas, só há uma. O pequeno-almoço é o que
quiseres tirar dessas máquinas de vendas automáticas; o almoço e o jantar são
por tua conta.
Assenti, tentando evitar que as minhas primeiras horas em Nova Iorque
conseguissem deprimir-me. Enfim, só precisava de uma cama. Além disso, ao
passar em frente às máquinas, vi que havia bolachas Oreo… O que mais podia
pedir?
Deixei a mala no quarto minúsculo que me tinham atribuído e fui dar uma
volta. Saí da rua claustrofóbica e sombria do motel e comecei a caminhar pela
cidade. Descobri que o Central Park ficava algumas ruas à frente, como dizia no
site.
Não sei explicar este sítio, mas, depois de passear durante dez minutos, já
queria lá viver. Estava calor, as pessoas deixavam-se estar deitadas sobre a relva a
apanhar sol, as crianças jogavam à bola ou com os seus cães… E também havia
muita gente a correr e a fazer outro tipo de exercícios. O ambiente era incrível,
a natureza ali, no meio de uma cidade cheia de poluição e engarrafamentos.
Aproximei-me do lago onde os patos rasgavam a água e comiam as coisas que
muitas pessoas lhes atiravam. Por um instante, levantei a cabeça em direção ao
céu azul de julho e deixei-me levar por aquela sensação de estar sozinha;
sozinha, mas feliz, no meio de um lugar onde ninguém me conhecia, onde não
sabiam da minha história, onde o Nicholas, a minha mãe, o William ou
qualquer outra das pessoas que me julgaram pela nossa separação podia olhar
para mim com cara de pena ou de irritação. Tinha sido horrível, a notícia
espalhara-se como pólvora pelo campus da universidade onde o Nick era uma
lenda. Tínhamo-nos transformado no casal que todos admiravam, para quem
olhavam de soslaio, e depois, ao saberem que fora eu a meter a pata na poça…
bem, as pessoas conseguem ser muito cruéis.
Passei o resto da tarde no parque, comprei um cachorro-quente e passeei. As
pessoas podiam achar que era maluca: com tantos sítios bonitos para conhecer,
por que razão me deixava ficar por ali sem um plano turístico em mente? Fi-lo
porque às vezes é bom ter tempo para existir simplesmente, para ser mais uma
pessoa entre tantas, e naquele momento era a única coisa que queria fazer.
Queria paz e tranquilidade…
Se bem que não durou muito tempo.
Podia dizer-se que fui tonta, estúpida… ou melhor, que a pouca autoestima que
me restava já não era suficiente para me ajudar a seguir em frente. Porém, as
palavras do Nick atingiram-me bem fundo. Acreditei nelas, assim, sem mais
nem menos.
Depois da minha estada em Nova Iorque, em que não saí do meu quarto de
hotel até ao dia em que tive de ir para o aeroporto, regressei ao meu
apartamento a sentir-me a pessoa mais estúpida e infeliz à face da Terra.
O Nicholas e a Sophia… a Sophia e o Nick. Bolas, como me doía só de pensar
que me tinha mentido durante tanto tempo. Eu não era parva, o Nicholas
amou-me, disso não tinha dúvidas, nem o melhor ator do país teria conseguido
fingir o que ele sentiu por mim, mas era fácil imaginá-lo a apaixonar-se por ela.
Cheguei a Los Angeles destroçada, sim, mas também subitamente curada.
Durante o último ano em que não vi o Nicholas, até ao casamento da Jenna,
acalentei esperanças, permiti-me acreditar que, se nos voltássemos a ver, ele não
ia conseguir continuar a ignorar o que sentia por mim. Agarrei-me a um
simples sonho e agora percebia que não me restava lugar algum onde me
agarrar.
Quando entrei no meu apartamento, vi que tinha uma chamada perdida da
minha mãe. Devia querer saber se eu chegara bem e, apesar de eu ter a certeza
de que não se atreveria a perguntar, queria certamente certificar-se de que o
meu reencontro com o Nick depois de tanto tempo não voltara a dilacerar-me o
coração.
Recuperar a relação com a minha mãe não fora fácil. Nos meses a seguir à
separação, não tive de enfrentar apenas o facto de o Nick se ter ido embora e me
ter deixado mas também toda a situação familiar desconfortável. Naquela noite,
na noite do aniversário dos Leisters, descobri coisas que mudaram a minha
forma de encarar as outras pessoas, principalmente a minha mãe, coisas que até
me fizeram odiá-la com todas as minhas forças.
Voltar a falar com ela foi difícil, no início nem a queria ver, recusei-me
terminantemente a deixá-la entrar no meu apartamento. Se não tivesse sido pelo
apoio da Jenna, não sei como teria saído daquele poço sem fundo onde caí. Um
par de meses depois de o Nick se ter ido embora para Nova Iorque, decidi
atender o telefone à minha mãe e, ao longo de conversas muito demoradas,
acabou por me explicar a sua versão da história. Contou-me que a sua relação
com o William começou quase sem querer; naquela altura, ela trabalhava num
hotel, eu tinha apenas seis anos, e as coisas com o meu pai já começavam a
desmoronar-se. Um dia, pediram-lhe que fosse levar a comida a um dos
hóspedes, algo que não era da sua competência, mas uma das empregadas estava
doente, e a minha mãe teve de a substituir. O hóspede era um William, o
William Leister, com menos treze anos, com o mundo aos seus pés, rico, bonito
e atraente; bastava olhar para o Nick para entender o que a minha mãe viu no
William. Ela tinha apenas vinte e quatro anos, nunca na vida estivera com outra
pessoa a não ser com o meu pai, de quem engravidara ainda muito jovem; não
pudera aproveitar a sua juventude, tivera de ser responsável desde o instante em
que percebera que ia ter um bebé. Quando o William começou a cortejá-la, o
mundo da minha mãe ficou às avessas, nunca ninguém a tratara assim, nunca
lhe haviam dito coisas tão bonitas, nunca ninguém lhe oferecera flores… O meu
pai era um imbecil, sempre foi, mesmo antes de perder completamente o juízo.
A partir de então, os dois tiveram um caso amoroso, mas o William só soube
da minha existência e da do meu pai seis anos depois. A relação dos dois era
extraconjugal, mas o William pensava que só ele era casado. Viam-se muito de
vez em quando, apenas quando ele viajava até ao Canadá; os seus encontros
eram praticamente só… bem, conseguem imaginar como eram.
Na noite do Dia D, quando ligaram à minha mãe para lhe dizer que eu estava
no hospital, quase a morrer, foi a mesma noite em que o William descobriu
tudo o que a minha mãe lhe escondera. As nódoas negras, disfarçava-as com
maquilhagem, o meu pai nunca lhe batia no rosto, pelo menos tentava não
bater; isto para que ninguém descobrisse o que se passava na nossa casa, e a
minha mãe pedia sempre ao William que apagasse as luzes todas.
Foi um choque para o William, nem em sonhos podia imaginar uma coisa
daquelas, que a mulher que o deixava louco, que desestabilizara o seu mundo, a
mulher com quem queria tudo, tinha uma filha e era casada, ainda por cima
com um homem imbecil que lhe batia…
A partir dali, tudo se complicou. A minha mãe perdeu a minha guarda, e o
sentimento de culpa reduziu-a a um estado lastimoso; os maus-tratos que sofria
às mãos do meu pai e o facto de já não a deixarem cuidar de mim… Acabou
com tudo, com o William, com o mundo, e entregou-se à bebida, a tal ponto
que teve de se submeter a uma desintoxicação, paga pelo William. Depois de
meses em tratamento, meses esses que passei num lar de acolhimento,
deixaram-na voltar a ver-me.
A minha mãe não quis ver o William de novo, nunca mais, disse para si
mesma, iria cometer o mesmo erro. A partir desse momento, decidiu que ia
viver por e para mim.
— Nunca consegui perdoar-me pelo que aconteceu naquela noite, Noah —
confessou-me com a voz estrangulada. — O teu pai nunca te tinha encostado
um dedo, e eu… eu fui estúpida, deixei-me cegar pelo amor que sentia pelo
Will, que naquela altura era a única pessoa, além de ti, que me fazia continuar a
viver. Víamo-nos muito poucas vezes e, quando isso acontecia, eu ficava tão
feliz, sentia-me tão especial… tão viva. O William só ia estar na cidade aquela
noite, e eu precisava de o ver… precisava quase tanto dele como de ar para-
respirar.
Naquele dia segurei o telefone contra a orelha e não consegui deixar de pensar
que o que a minha mãe me estava a contar era o mesmo que eu sentira pelo
Nick. Compreendi-a, compreendi, pelo menos, a necessidade de escapar e tive a
noção de que também não podia condená-la eternamente: ela estivera sempre
presente para mim, sacrificara-se para eu poder estudar, para que eu pudesse ter
uma vida melhor.
Acabei por a perdoar, tive de o fazer, era a minha mãe. Não que a relação
tivesse melhorado até ao ponto em que se encontrava antes, mas pelo menos
voltei a casa, almoçámos juntas e chorei… chorei bastante, enquanto ela me
abraçava e me dizia que lamentava e que também lamentava tudo o que
acontecera com o Nick. Disse a mim mesma que o meu amor com o Nicholas
fora real, a vida podia ter-nos separado com os seus problemas e falta de
confiança, mas o nosso amor fora real.
Depois de deixar a mala em cima da cama, levei a mão ao pescoço para tocar
no fio que me servira de âncora durante este tempo todo, mas, ao lembrar-me de
que já não o tinha, deixei cair a mão com pesar.
Tinha de seguir em frente: afinal, ele já o fizera.
Os meses seguintes foram melhores do que esperava. A faculdade, as aulas e o
trabalho deram-me a oportunidade de me concentrar noutras coisas. Não voltei
a saber nada do Nick, pelo menos não em primeira mão, mas a notícia de que
Nicholas Leister namorava com a filha do Senador Aiken não demorou muito a
ocupar páginas em alguns jornais.
Vê-los juntos nas fotografias, de mãos dadas, magoou-me. Como podia não
magoar? Mas também me ajudou a transformar a minha tristeza em rancor e
num distanciamento frio. Disse a mim mesma que era melhor assim, que não
me importava minimamente… claro que estava a tentar enganar-me, mas
ajudou-me a enfrentar os dias, as semanas. Assim, tudo era mais fácil.
Quando dei por ela, o feriado de Ação de Graças estava ao virar da esquina, e,
depois de pensar muito no assunto e de ter deixado a minha mãe pendurada no
ano anterior, disse-lhe que ia a casa. Tinha de sair no dia seguinte para a casa do
William, que ficava a pouco mais de uma hora de viagem, hora essa que passaria
a ouvir música e a fazer contas para determinar o que devia pagar no fim do mês
e como me sobraria dinheiro para poder comprar o livro novo para a cadeira de
Direito. Por sorte, o apartamento estava pago. Tinha-me recusado a que o
William continuasse a pagar-me a renda e até comecei a procurar outro sítio
para viver, mas a senhoria disse-me que o ano estava todo pago: a Briar, ou
melhor, os pais dela, tinham liquidado os dois primeiros anos e, quando ela se
fora embora, não pediram a devolução do dinheiro, por isso pude ficar no lugar
dela, e pouco depois chegou uma nova companheira de casa. Embora a questão
do apartamento estivesse resolvida por enquanto, o meu dinheiro mal chegava
até ao fim do mês. Tinha conseguido arranjar emprego na cafetaria do campus,
mas dois dias antes o meu chefe tinha-me avisado de que não ia renovar o meu
contrato. Abrira outro bar duas ruas à frente, e tínhamos perdido muitos
clientes, por isso ele tinha de reduzir o pessoal, e eu fora a última a ser
contratada.
Assim sendo, ia ter de começar a mexer-me, e depressa.
Como ia passar o fim de semana a casa da minha mãe e do Will, tirei a
pequena mala de viagem do armário e fui colocando roupa lá dentro, meio
distraída. Também não ia precisar de grandes fatiotas e, se fosse preciso alguma
coisa mais especial, usava no que tinha no roupeiro lá de casa. Meti os livros de
Direito na mala: o exame era logo depois do feriado e ia ter de estudar, com
grande pena minha. Detestava aquela cadeira, não sabia se era porque me fazia
lembrar do Nicholas ou simplesmente porque memorizar leis não era a minha
praia, mas, meu Deus, ficava com um humor de cão quando tinha de estudar
para ela! Era uma das cadeiras obrigatórias do curso e centrava-se nos direitos de
autor, de imagem e essas coisas; ansiava pelo dia em que pudesse esquecer estas
patetices que facilmente se encontravam no Google se um dia me fizessem falta.
Como não voltara a usar a mala desde que tinha ido aos Hamptons para o
casamento da Jenna, não estranhei encontrar algumas coisas ainda lá guardadas,
como uma escova de dentes que pensei que tinha perdido, umas cuecas de renda
preta, a minha máscara de pestanas resistente à água e, para minha surpresa, um
cartão com o nome Lincoln Baxwell. No cartão dizia que era advogado,
publicitário e responsável por comunidades.
Lembrava-me dele, era um dos amigos da Jenna que estava no casamento e
fora bastante simpático comigo. Se bem me lembrava, tinha-me dado o seu
cartão para o caso de eu querer trabalhar na área. Oh, céus, mal podia acreditar
nisto! Esquecera-me completamente da sua oferta, sobretudo porque o Nicholas
se aproximara de nós e fizera um comentário desagradável qualquer, obrigando-
me a afastar-me de ambos.
Não fazia a menor ideia do tipo de trabalho que ele podia oferecer a uma
estudante universitária de dezanove anos como eu, mas não perdia nada em
tentar. Olhei para o relógio de pulso e percebi que era demasiado tarde para lhe
ligar, por isso decidi que o faria na manhã seguinte, quando fosse a caminho da
casa do Will, e, se o mundo não me detestava tanto quanto parecia, talvez até
arranjasse um emprego mais depressa do que imaginara.
Fiquei a olhar para o ecrã do computador sem saber muito bem o que sentir, já
que tudo isto me parecia uma loucura absoluta.
Recebi um e-mail da Anne, a assistente social da Maddie, e, nele, explicava-
me que, uma vez que não restavam dúvidas quanto à paternidade da minha
irmã e depois das ações legais a que o meu pai dera início contra a minha mãe
por lhe ter ocultado durante anos que a Maddie era sua filha, ações essas que
resultaram na custódia a favor do meu pai, as visitas à minha irmã que eu tinha
combinadas eram assim anuladas e seriam os meus pais quem deveria dar-me
autorização para a ver ou não. Os mesmos pais que me mentiram, a mim e à
minha irmã, fazendo-nos crer que o seu pai era outro homem, para depois nos
dizerem que tudo aquilo em que acreditáramos até então era uma mentira do
tamanho da sua casa de Las Vegas.
Quando soube de tudo isto, a verdade é que fiquei contente, caramba, claro
que fiquei feliz por a minha irmã o ser por inteiro, de pai e de mãe, nada de
meias-irmãs. Sempre detestara pensar que, ao ter um pai diferente do meu, ela
não me pertencia por completo, detestava as visitas com horários e a má cara
que o Grason fazia sempre que me via levar a Maddie comigo. Era evidente que
agora as coisas iam ser muito mais fáceis, pelo menos assim julguei.
A minha irmã não entendia nada disto; pior ainda, das poucas vezes em que o
meu pai a fora visitar, chorara até ficar sem fôlego. Não queria ir com um
desconhecido, não queria sair da sua casa nem saber nada acerca do seu novo
pai.
Suspirei enquanto levava a mão à cabeça. Neste momento, eu era o
intermediário entre a Maddie e o meu pai, que parecia ter perdido todo o tipo
de prática em relação a filhos mais pequenos. Não que alguma vez tivesse tido
muito paciência, diga-se em abono da verdade, bastava ver a relação que tinha
tido comigo. O que me surpreendeu verdadeiramente foi o esforço e a
determinação dele para tentar conquistar o afeto da minha irmã.
O meu pai não hesitou um instante em pôr todos os processos em marcha para
ficar com a guarda partilhada e quis que ficasse bem claro que a partir de então
Maddie Grason era Maddie Leister. Ainda não estava tudo resolvido… nem de
longe nem de perto, mas quem sofria mais no meio de tudo aquilo era a Mad, e
isso deixava-me nervoso.
O pai dela, bem, aquele que presumivelmente fora o seu pai durante mais de
cinco anos, tinha lavado as mãos do assunto, não queria saber da minha mãe
para nada, nem da menina que tinha visto crescer. O grande filho da mãe nem
sequer quisera fazer parte do processo de adaptação por que a minha irmã tinha
de passar. Tivemos de lhe explicar de forma bastante delicada mas muito direta
que o seu pai já não era aquele homem, mas outro que a amava muitíssimo. O
que acontece normalmente nestes casos é que o pai não biológico luta pela
custódia da criança que julgou ser sua filha, ou pelo menos luta para continuar a
fazer parte da sua vida e, nem é preciso dizer, para continuar do seu lado sempre
que ela precisar dele. Mas não tinha sido esse o caso, e agora a minha irmã só
repetia que queria o seu pai, o seu pai de verdade. Ela não entendia por que
motivo ele tinha deixado de gostar dela e porque a oferecera a outro pai
diferente.
A minha irmã andava irritável e deixara de ser aquela menina adorável e
sempre sorridente para se transformar numa criança magoada e ressentida com
todos.
A minha mãe mudara-se para a cidade, deixara Las Vegas e vivia agora num
bonito apartamento no centro, e a Maddie ainda não se tinha adaptado a tantas
mudanças. A única pessoa que parecia querer ver era eu, e era o único a quem
ligava a altas horas da noite para conseguir adormecer. Estava assustada, não
gostava da casa nova, dizia, os seus brinquedos não eram os mesmos, os amigos
estavam longe, e não queria andar numa escola tão feia como aquela em que
andava agora: queria ir viver comigo; sim, era isto que me dizia de cada vez que
falava com ela ao telefone.
— Quando vens buscar-me, Nick? — perguntava, fazendo beicinho. —
Quando vamos andar na roda-gigante? Quando volto a ver o meu pai? Quando
é que a mamã vai voltar a ser como era antes?
As suas perguntas magoavam-me e deixavam-me de cabeça perdida, porque
percebia claramente através delas que a minha mãe não lhe prestava atenção.
Tudo bem, não lhe faltava nada, comia e estava saudável, mas e o resto?
Continuei a ler o e-mail da Anne no qual me dizia que o meu pai pedira que a
Maddie passasse o Dia de Ação de Graças com ele e com a família. O juiz
concordara em deixá-los escolher que festas passavam com a Maddie, e a minha
mãe aceitara. A Anne despedia-se dizendo que a partir de agora as minhas
visitas cessavam e que devia falar com o meu pai sobre qualquer dúvida que
tivesse a respeito da minha irmã. Ele também me tinha enviado um e-mail em
que me pedia, por favor, que passasse as festividades na sua casa. Dizia que a
Maddie se iria adaptar muito melhor se eu estivesse por perto e que
precisávamos de fazer as coisas o melhor possível, para o bem dela.
Para ser sincero, não fazia a menor tenção de passar quaisquer festividades em
casa. Para mim, as refeições em família, as reuniões e todas as ocasiões parecidas
tinham deixado de fazer sentido. Ia sentar-me à mesma mesa com alguém que
me tinha mentido durante anos, com a mulher que causara o divórcio dos meus
pais e o abandono da minha mãe?
Nem pensar. Além disso, ir àquela casa só me provocaria dor e não era só por
causa das recordações da minha infância, mas por outras memórias muito mais
dolorosas que acabaram por suplantar as mais antigas.
Para mim, aquela casa significava ver a Noah em todos os lugares: a descer as
escadas de pijama ou muito bem arranjada com vestidos bonitos e sapatos de
salto alto — e, quando chegava ao último degrau, atirava-se para os meus
braços e beijávamo-nos apaixonadamente… a Noah na cozinha a tomar o
pequeno-almoço, a Noah no quarto, a dormir, naquela ocasião em que entrei
pela primeira vez e me apercebi de que só de olhar para ela o meu coração batia
mais depressa… a Noah na minha cama, despida, a primeira vez que fiz amor
com ela, a primeira vez que fizemos amor, juntos, porque também foi como a
primeira vez para mim, a primeira vez que amei de verdade.
Não sabia grande coisa dela, só o que o Lion me ia contando de vez em
quando, mas era evidente que ela sabia de mim, como não, se me tinha
transformado num favorito dos fotógrafos de imprensa, que nos perseguiam sem
parar.
Tinha saído nas malditas revistas não apenas por causa da minha relação com a
Sophia mas também pelos despedimentos que levei a cabo na empresa. Muitos
dos jornais chamaram-me perverso, disseram que não tinha coração, e isto,
somado a tudo o resto, andava a deixar-me muito stressado.
Sempre soube que levar este negócio em frente não seria fácil, nada tão grande
como a empresa do meu avô seria fácil de gerir, mas agora que todas as
informações estavam ao alcance de qualquer pessoa, agora que toda a gente
parecia estar a par de absolutamente tudo… Era o que mais me custava, a
minha privacidade, o facto de não poder fazer os meus negócios sem que pessoas
que não faziam a menor ideia do meu trabalho se pusessem a comentar com os
seus artigos estúpidos. Sim, tinha sido obrigado a despedir muita gente, sim,
tinha tido de fechar duas empresas, mas também abrira uma nova, e muitas das
pessoas despedidas iam começar a trabalhar ali dentro de menos de um mês; era
uma empresa que daria muito mais emprego no futuro, com salários melhores
do que ganhavam até então nas outras empresas, em que os recursos eram
escassos e a gestão deficiente.
Tentem explicar isto àquela gente, que só se preocupa em conseguir uma boa
parangona.
Afastei-me do computador. No dia seguinte ia ligar ao meu pai para lhe dizer
que ia passar as festas a casa dele. Que outra opção me restava? Naquele
momento, a minha irmã era a coisa mais importante da minha vida, a única
pessoa a quem queria mostrar a minha melhor cara. Queria cuidar dela e
mostrar-lhe que ainda podia confiar nos crescidos.
A Maddie tinha agora sete anos e meio, estava a crescer e cada vez entendia
melhor as coisas, estava cada vez mais perspicaz e já não se deixava enganar com
jogos e gelados. O que sofrera nos últimos meses marcara-a e fizera-a
amadurecer, transformara-a em alguém reticente em confiar nos outros.
Saí do meu escritório e fui buscar um copo de água. Era tarde, mas estava
bastante desperto e precisava de fazer qualquer coisa. Entrei no meu quarto
durante uns minutos e fiquei a olhar para as costas despidas da Sophia. Já devia
ter-se ido embora… a primeira regra era que não dormíamos juntos, mas esta
regra parecia menos rígida a cada dia que passava. Sentei-me no pequeno sofá
em frente à cama e observei-a: o cabelo escuro na minha almofada, as curvas do
seu corpo por baixo dos lençóis de seda branca… Era muito bonita e
determinada, mas de uma forma muito agradável… não era um terramoto que
destruía tudo o que estivesse ao seu alcance, era uma mulher que arrasava
usando as palavras, os argumentos e os grandes sorrisos sedutores.
Gostava dela, claro que gostava, não era um imbecil. A Sophia era uma
rapariga alegre, de boas famílias, inteligente, decidida e bastante boa na cama; a
este respeito, estávamos quase em pé de igualdade: eu dominava em certas
ocasiões, ela, noutras.
A Sophia era uma namorada perfeita, uma companheira de vida perfeita, o
tipo de mulher que estava sempre presente, que apoia e dá conselhos, que nos
abraça quando precisamos e que nos beija até nos deixar sem fôlego. Também
seria uma boa mãe, uma mãe trabalhadora, claro, aquele tipo de mãe que se
certifica de que os filhos andam na melhor escola, de que estão sempre bem
cuidados, bem vestidos e saudáveis; aquele tipo de mãe que sabe tudo e ao
mesmo tempo não sabe nada, a mãe que chega a casa às tantas, quando as
crianças já estão a dormir, e que lhes dá um beijo antes de se sentar a descansar.
A Sophia era isto tudo e mais ainda… mas não era a Noah.
18
NOAH
Cheguei a casa do Will por volta das onze da manhã, mesmo a tempo de tomar
um pequeno-almoço quente e saboroso. A minha mãe veio receber-me envolta
num xaile de croché que presumi ser bastante mais caro do que parecia. Tinha o
cabelo louro mais curto desde a última vez em que a vi, mais ou menos pelos
ombros, e os seus olhos azuis fitaram-me com carinho e alegria quando saí do
carro e me aproximei para a cumprimentar. Subi os degraus e deixei que me
abraçasse.
Havia uma eternidade que não voltava àquela casa, mais concretamente antes
de me separar do Nick. Sempre que eu e a minha mãe nos encontrámos, fora no
meu apartamento ou em algum restaurante bonito; as recordações com o Nick
perseguiam-me, por isso evitara esta casa com todas as minhas forças.
Agora tinha de passar dois dias na companhia da minha mãe e do marido, mas
pelo menos podia estar tranquila quanto à possibilidade de o Nick vir celebrar
as festas connosco: ele odiava estar naquela casa. Já quando ainda estávamos
juntos era uma luta para ele lá ir. O Nicholas não ia passar o Dia de Ação de
Graças com o pai; melhor para mim.
Entrei na cozinha, onde o Will estava a conversar amigavelmente com a Prett.
Esta abraçou-me com um sorriso afável, e ele também me sorriu. Aproximou-se
de mim e deu-me um abraço que foi muito mais reconfortante do que esperara.
Não podia evitar recordar o que a minha mãe me contara sobre ele e, apesar de
ser o homem com quem ela enganara o meu pai, pelo menos o Will tinha
sabido cuidar dela, soube fazê-la feliz numa fase muito sombria da sua vida.
Nem sequer queria parar para pensar no que teria acontecido se o William não
tivesse internado a minha mãe naquele centro para ela poder recuperar; o mais
certo era ela acabar aos trambolhões na vida, tentando avançar depois de ter sido
maltratada durante tantos anos e de lhe terem tirado a filha por negligência. Eu
teria certamente passado muito mais tempo em lares de acolhimento e talvez
nunca tivesse podido voltar a viver com ela.
Passámos a manhã a pôr a conversa em dia. Ainda não lhes queria contar do
meu despedimento, não queria ver a minha mãe a revirar os olhos ou o Will a
tentar convencer-me a concentrar-me unicamente nos estudos, enquanto me
prometia que era um orgulho para ele ajudar-me financeiramente.
Por isso falámos de outras coisas, e, quando os temas triviais se esgotaram, um
comentário do Will chamou-me a atenção de uma forma mais significativa.
— Tive de batalhar muito para a minha filha poder passar as festas connosco
e, quando o consegui finalmente, percebi que não faço a menor ideia de como
hei de conquistá-la.
«Oh… Maddie, caramba. Ainda era um tema complicado, não era?» Olhei
para a minha mãe, que parecia descontraída, muito mais descontraída do que
naquela maldita noite em que todas as verdades decidiram sair cá para fora
quase ao mesmo tempo.
— A Maddie vai passar as festas aqui? — perguntei, como quem não quer a
coisa.
A última coisa que soube pela minha mãe foi que o Will já tinha conseguido
a custódia e que estavam a tentar fazer que a menina entendesse tudo o que
acontecera.
— Já está na hora de recuperar o tempo perdido — respondeu o Will,
levantando-se da mesa e sorrindo-me com amabilidade. Saiu da cozinha, mas
não sem antes beijar a minha mãe no rosto. Eu aproveitei para indagar um
pouco mais.
— O que se passa, mãe? — perguntei, levando a chávena de café aos lábios.
A minha mãe sentou-se à minha frente e suspirou profundamente.
— O Will sente-se culpado por tudo o que aconteceu. Quer organizar a sua
vida de uma vez por todas… Neste momento está tudo de pernas para o ar.
Acho que ninguém gosta de descobrir de um dia para o outro que tem uma
filha de sete anos com a louca da ex-mulher.
Arregalei os olhos um pouco surpreendida. A minha mãe estava a falar num
tom que nunca usara antes, pelo menos não à minha frente. Sabia que tinha sido
um golpe duro para ela. Nos anos que se seguiram a tudo o que passou comigo,
a sua relação com o Will não foi plácida; na verdade, comportaram-se como um
casal bastante instável: viam-se e discutiam, acabaram a relação várias vezes; não
obstante, descobrir que durante uma destas separações ele engravidara a ex-
mulher era algo que jamais ultrapassaria.
— E tu, como estás? — perguntei, sentindo um pouco de pena dela.
É
— É sempre uma grande porcaria quando há crianças pelo meio — respondeu
e devia estar a passar por um mau bocado para usar uma palavra daquela
natureza. — A menina não entende absolutamente nada, o Will fez os possíveis
para a conquistar de cada vez que a foi visitar, mas a Maddie não quer saber dele
para nada.
Pobre Mad… tão pequena, tão doce e tão querida. Lembrava-me de todas as
ocasiões em que acompanhara o Nick a Las Vegas para a irmos buscar e levar
connosco a passear. O Nick sempre se comportara como um verdadeiro pai para
ela: adorava-a, era a sua menina, a única com quem parecia ter uma paciência
infinita. Para ela deve ter sido horrível perceber que o pai que conhecia não era
o seu pai de verdade. Como se diz uma coisa destas a uma criança? Como se
explica? Até eu tinha dificuldade em entender. Então, ocorreu-me um
pensamento, uma conclusão bastante lógica que me deixou todos os sentidos
em alerta.
— Mãe. O Nick não vai…
Senti um nó no estômago ao ver que a minha mãe levantava os olhos da mesa
e os pousava sobre os meus. Estaria a ver-me entrar em pânico, lenta e
dolorosamente?
— Tem calma, o Nicholas odeia ficar cá em casa. Sei que o William o
convidou para passar as festas aqui, como faz todos os anos, mas duvido que ele
aceite.
A sua resposta não me convenceu, menos ainda porque a irmã também ali iria
estar.
— Quantos dias vai a Maddie cá ficar? — perguntei, tentando acalmar os
batimentos do meu coração.
— Fica o fim de semana.
O Nick vinha cá a casa… e ia ficar. Raios, ia ter de voltar a vê-lo.
Saí de casa do meu pai e fui para um dos muitos bares que havia junto da
Marginal. Com o tempo que estava, tinha a certeza de que os bares estariam
vazios, e do que mais precisava naquele momento era de estar a sós.
Não esperava receber a aprovação do meu pai quando lhe contasse o que
planeava fazer com a empresa, mas também não estava à espera de que fizesse
frente daquela maneira. Desde que assumira o comando do negócio, e depois de
inúmeras reuniões, gráficos e muitas contas, apercebi-me de que havia várias
pequenas empresas na corporação que já deviam ter sido encerradas há muito
tempo. Só nos davam problemas e geravam lucros ridículos. Inicialmente, quase
ninguém apoiara a minha decisão de as vender, mas eu queria liquidá-las de
qualquer maneira e com o dinheiro obtido criar uma empresa nova com uma
visão mais moderna e um foco diferente. A maior parte funcionava
perfeitamente, sendo gerida pelos melhores agentes económicos do país, e um
dos meus trabalhos iniciais consistira em visitar grande parte destas empresas
para me assegurar de que as políticas gerais dos Leisters eram cumpridas.
Pois bem, depois de meses de trabalho e de tentar convencer a direção,
tínhamos decidido pôr à venda aquilo que nos dava mais prejuízos do que
lucros, por isso não tinha pela frente apenas inúmeros despedimentos mas
também a abertura da nova empresa de marketing e comunicação que
reorientaria toda a estratégia económica das Empresas Leister em direção a um
ponto que ainda não tínhamos explorado.
A decisão foi difícil, mas, feitas as contas, era a mais acertada, e deixava-me
mesmo triste que o meu pai não fosse capaz de confiar em mim e ainda mais
que acreditasse que eu podia levar a empresa à ruína. Com os membros da
direção podia eu bem, não tinha problemas com eles, mas uma coisa era
enfrentá-los sendo eu o seu chefe, outra completamente diferente era lidar com
o meu pai. Para piorar as coisas, a Noah presenciara parte da discussão, o que
me deixou ainda mais mal-humorado.
Pedi um uísque e bebi-o de um trago. Aquele almoço estúpido correra pior do
que imaginara.
Paguei a conta e decidi que tinha de voltar para casa. Não devia ter deixado a
Mad ali sozinha, mas, embora me custasse muito admiti-lo, sabia que a Noah
cuidaria bem dela e que a minha irmã estava muito bem entregue. De todas as
pessoas que conhecia, ela era a única a quem podia confiar a minha irmã; nem
sequer ao meu pai a entregava.
Noah… não sabia se a trégua com que concordámos tinha sido um erro. Era
muito mais fácil ignorar o que sentia por ela se continuasse zangado. Falar com
ela como tínhamos feito hoje, como dois adultos, era demasiado perigoso.
Por vezes… muito mais vezes do que me permitia admitir, imaginava-me a
perdoá-la, via-me a esquecer tudo o que acontecera, tudo o que fizemos um ao
outro, e tentava imaginar como seria agora a nossa vida. Mas, quando o fazia, a
recordação do motivo da nossa separação voltava para me atormentar, e tudo se
desvanecia, ficava só o ódio, a que me habituara tão bem ao longo do último
ano.
Maldita Noah… maldita por ter dado cabo de tudo!
Quando cheguei a casa do meu pai, percebi que era bastante mais tarde do
que imaginara inicialmente. As luzes estavam apagadas, e reinava um silêncio
sepulcral em toda a casa, à exceção da sala, cuja luz iluminava ligeiramente a
entrada.
Tirei o casaco, deixei as chaves na entrada e fui para a sala. A Noah estava
sentada no chão, com as costas encostadas ao sofá. Tinha mudado de roupa e
agora vestia uma camisola confortável, apanhara o cabelo num carrapito largo e
tinha uns óculos de massa pretos. Estava concentrada na leitura, com vários
livros abertos ao seu redor. Reparei que o lume na lareira se extinguia.
— O que estás a fazer? — perguntei em voz baixa, ao entrar na sala.
A Noah sobressaltou-se e ia responder, mas ficou calada à medida que me
aproximei de onde estava sentada e peguei no livro que tinha sobre as pernas.
Direito da Comunicação e da Publicidade, volume I.
— Estou a estudar — respondeu finalmente com frieza.
Fitei-a e analisei a sua expressão, não queria que se sentisse desconfortável
com a minha presença. Sabia que durante o dia me tolerara por causa da Maddie
e que o melhor para ambos seria provavelmente passarmos o menos tempo
possível juntos, mas naquele momento só precisava de que a Noah fosse a Noah.
— Pois, estou a ver… Está a correr assim tão mal? — disse-lhe, virando as
costas e pondo mais troncos na lareira. Inclinei-me para assegurar que o calor se
concentrava no centro. A Noah pusera os troncos demasiado separados, assim
nunca ia conseguir fogo suficiente para aquecer a sala. Quando as chamas
começaram a crepitar e a libertar um calor abrasador, levantei-me, sacudi as
mãos e voltei-me novamente para ela, que me observava com atenção.
Reparei que tinha o rosto corado pelo calor. A verdade é que não estava assim
tanto frio, mas a Noah era friorenta; ainda me lembrava de como durante o
inverno que passámos juntos se agarrava a mim por baixo dos lençóis para
aquecer os pés, sempre gelados, com o calor da minha pele, que estava sempre
quente, principalmente por estar perto dela.
— Bastante — disse, voltando a fixar os olhos nos livros. — Se subires e não
encontrares a Maddie, é porque adormeceu na minha cama, assim já ficas a
saber.
Assenti enquanto me aproximava do sofá perto dela e me sentava. A Noah
estava no chão, mas, mesmo assim, a distância que nos separava permitia-nos
suster o olhar um do outro.
— Obrigado por cuidares dela — disse, ainda mantendo a distância.
A Noah observou-me com cuidado, como quem espreita um cão grande que
pode ser meigo ou saltar-nos em cima para nos morder sem hesitar.
— Não tens de agradecer; na verdade, foi o Will que lhe vestiu o pijama e lhe
contou uma história…
Assenti enquanto observava, distraído, o rosto dela a corar mais perante o meu
escrutínio.
— A seguir ainda tentaram que fosse dormir para o seu quarto novo —
continuou, e eu inclinei-me para a frente, distraído com a maneira com que os
seus lábios se moviam —, mas ela insistiu que queria dormir comigo e fartou-se
de perguntar por ti. Não devias ter-te ido embora.
— Precisava de pensar — desculpei-me, fitando algo que até então me passara
despercebido: na maçã do rosto esquerda, próximo do olho, tinha uma pequena
cicatriz branca, direita, como se se tivesse cortado com alguma coisa. — O que
é isto que tens aqui? — perguntei e surpreendi-a quando estendi a mão e lhe
levantei o queixo para poder observar melhor.
Que diabo!
A Noah estremeceu perante o meu toque e afastou-se, obrigando-me a soltá-
la.
— Não é nada — respondei, fixando os olhos no livro.
— Se não fosse nada não deixava marcas. Que te aconteceu?
— Caí — respondeu, encolhendo os ombros.
— Caíste? De onde? Da última vez que te vi não tinhas essa cicatriz. — «Ou
tinha?» Não sabia, a última vez em que a vi não estava propriamente em mim.
A Noah fechou o livro e olhou para mim, um pouco exasperada.
— Tenho esta cicatriz há mais de meio ano, por isso, sim, tinha-a da última
vez em que te vi. Caí de moto, não foi nada do outro mundo, mas tive de levar
pontos.
— Desde quando tens moto? — Não sabia bem por que motivo ficara de
repente tão irritado; quando ali chegara estava sossegado e tranquilo, até gostara
de entrar em casa e de a ver ali, mas agora… bolas, só me apetecia partir
qualquer coisa.
— Não era minha, era de uma amiga. Porque é que estás assim?
Pus-me de pé e afastei-me, mas estava tão irritado que não consegui evitar
dizer a primeira coisa que me veio à cabeça.
— Porque só um idiota anda por aí de moto; a maior parte dos acidentes
mortais que há nas estradas envolvem pessoas que andam nessas motos
estúpidas!
A Noah levantou-se com os lábios comprimidos e deixou o livro de qualquer
maneira sobre o sofá.
— Tu tens uma moto!
— Eu não sou tu, não tenho acidentes.
— Então estás a insinuar que eu sou idiota?
Cerrei o maxilar com força.
— A única coisa que te estou a dizer é que não deves andar de moto —
respondi, tentando acalmar-me. A Noah tinha tido um acidente, um maldito
acidente… há meses. E onde estava eu na altura?
Longe… estava muito longe.
A Noah recolheu os livros e parou à minha frente antes de sair da sala.
— Que pena já não poderes dar-me ordens, não é verdade, Nick?
Fiquei a olhar para ela a afastar-se e senti um travo amargo na boca.
20
NOAH
No dia seguinte, acordei mais cedo do que era habitual durante as férias, mas
tinha uma boa razão para isso e estava entusiasmada.
Voltei-me para a menina que dormia ao meu lado sem fazer muito barulho;
ela dormia tão profundamente que fiquei a observá-la durante algum tempo,
divertida. Era pequena, mas mexia-se mais do que um bichinho rebelde, o que
me fazia lembrar de uma certa pessoa que devia estar a dormir agora mesmo
muito perto dali. O corpo pequeno atravessado ocupava a cama quase toda, e eu
mal tinha espaço para me mexer.
Não queria acordar a Maddie enquanto me vestia; além disso, ainda não
amanhecera, e precisava de acender a luz para me arranjar, por isso levantei-me
da cama com cuidado e peguei nela ao colo, sabendo que não ia fazer mais do
que murmurar qualquer coisa em sonhos antes de voltar a cair adormecida.
As suas mãos pequenas abraçaram o meu pescoço, e saí do quarto com ela
colada a mim como uma lapa. Duvidei se seria boa ideia levá-la para aquele
que, a partir de agora, seria o seu quarto. Não queria que se assustasse quando
acordasse e não soubesse onde estava, por isso parei em frente à porta do Nick.
Podia deixá-la ali, ficavam os dois a dormir até mais tarde, e, quando a Maddie
acordasse, estaria ao lado do irmão mais velho, com quem se sentia segura.
Abri a porta devagar, sentindo-me muito incomodada por estar a invadir a
privacidade dele. Antigamente teria aproveitado todas as oportunidades para
poder dormir com ele e acordarmos abraçados. Cerrei os lábios e apaguei
aqueles pensamentos da cabeça. O Nick estava a dormir profundamente, o
corpo ocupava a cama quase toda, e o seu quarto continuava a ser tão escuro
como a boca de um lobo. Deixei a porta aberta para ver um pouco melhor e
aproximei-me para deitar a menina ao lado dele. Quando a pousei sobre a cama,
a Maddie enroscou-se automaticamente numa bolinha e começou a chuchar no
dedo, a dormir tão profundamente como estivera há poucos instantes na minha
cama.
Mordi o lábio porque, de repente, me senti nervosa. Puxei a colcha para a
tapar. O Nicholas nunca tinha frio, não ligara o aquecimento no quarto, que
parecia um cubo de gelo.
Ao puxar a colcha, não me apercebi de que estava entalada entre as pernas
dele, e embora tenha feito tudo devagar e sem movimentos bruscos, o Nick
abriu os olhos, meio adormecido. Um sorriso aflorou nos seus lábios, e fiquei
parada onde estava, como se também eu tivesse congelada.
A mão dele estendeu-se, pegou-me por um braço e puxou-me até ficar sentada
ao seu lado no colchão.
— O que fazes aqui, sardas, vieste espiar-me? — perguntou e, quando ouvi a
alcunha que costumava usar para mim, o meu coração começou a bater
loucamente. Um ano, passara-se um ano desde que se referira a mim com aquele
nome carinhoso.
Levantou-se e, sem aviso, a sua boca procurou os meus lábios; foi um beijo
inocente e estranho, por isso afastei-me rapidamente como se me tivesse
queimado com fogo. Então, o Nick pareceu aperceber-se do que fizera, abriu os
olhos, olhou em redor, a seguir para a irmã, depois para mim e, no segundo
seguinte, suspirou para resmungar.
— Por um instante, pensei que… — disse.
— Eu sei — interrompi-o.
Entendia perfeitamente o que ele pensara.
Levantei-me do colchão com vontade de desaparecer dali.
— Vim só trazer a Mad, não queria que ela acordasse sozinha sem ninguém
conhecido ao seu lado.
O Nick assentiu ao olhar para a pequena e depois voltou a fitar-me.
— Espera, porquê? Onde vais? — perguntou, afastando a colcha e passando a
mão pela cara.
— Tenho coisas para fazer… recados. — Não ia dizer-lhe onde ia, não, já
passara por isto uma vez.
O Nicholas assentiu com o sobrolho franzido e a seguir abriu os olhos, quando
percebeu o que lhe ocultava.
— Oh, vá lá! — exclamou, demasiado alto.
— Chiu — ralhei. — Vais acordá-la!
O Nick levantou-se da cama, pegou-me pelo braço e conduziu-me até à casa
de banho. Fechou a porta e olhou para mim com ar condescendente.
— Estás doida! — disse, escondendo como isto o divertia.
— Deixa-me em paz! Não te rias de mim, é uma tradição e gosto de a
cumprir… Aceita-o e pronto!
Ele abanou a cabeça com incredulidade.
— Tu odeias ir às compras, irritas-te com a tua mãe porque passa o dia a
comprar coisas e, quando chega a Black Friday, transformas-te numa
compradora compulsiva. Consegues explicar-me porquê?
— Já te expliquei uma vez — respondi, voltando-me para ir embora, mas ele
pôs o maldito corpo à minha frente e impediu-me de passar. Estava a sorrir… O
Nicholas sorria enquanto olhava para mim. Esta realidade afetou-me tanto que
deixei que me detivesse.
— «Porque é a Black Friday… As pessoas compram até ser noite, há
chocolate quente, e as lojas não fecham…» — disse, numa vaga tentativa de
imitar a minha forma de falar.
Fiquei surpreendida por se recordar das mesmíssimas palavras que eu usara
para lhe explicar a minha obsessão por aquele dia, ainda mais tendo em conta
que o tinha feito há dois anos.
— Se sabes, porque perguntas? — respondi, irritada.
O Nick abanou a cabeça, ainda a sorrir.
— Tinha esperança de que tivesses amadurecido, que te tivesse passado essa
maluqueira que chamas de Natal.
Embora soubesse que se dirigira a mim de forma divertida, a palavra
«amadurecido» não me passou despercebida. Lembrei-me do que me dissera no
seu apartamento de Nova Iorque e senti-me invadida por uma onda de fúria.
— Deixa-me em paz, pode ser?
Saí da casa de banho antes que ele pudesse voltar a abrir a boca. Às vezes
esquecia-me de como ele podia ser imbecil.
Meia hora depois, desci à cozinha, usando umas calças de ganga e uma
camisola branca larga e já gasta. Queria ir confortável, a Black Friday era uma
loucura, e eu uma especialista em encontrar os melhores saldos.
Apesar de ser tão cedo, cinco minutos depois de me ter servido de uma
chávena de café, o Nick e a Maddie apareceram na cozinha, ambos de pijama e
cabelos despenteados. O Nick trazia a Mad sobre um ombro, e ela ria-se
enquanto ele ameaçava deixá-la cair. Ao ver-me ali sentada, a menina
contorceu-se para o irmão a libertar e veio a correr sentar-se ao meu lado.
Ajudei-a a subir para uma das cadeiras enquanto o Nick se servia de uma
chávena de café.
— Eu quero comer o mesmo que a Noah! — pediu ela aos saltinhos enquanto
apontava para o meu dónute de chocolate.
O Nick olhou para ela com o sobrolho franzido.
— Primeiro tens de medir os níveis de açúcar, pequenita — disse ele,
apontando para um aparelho pequeno que estava à frente dela, ao lado de um
copo de leite quente.
A Maddie suspirou, mas começou a fazer o que o irmão lhe pedia. Observei-a
sem conseguir acreditar que aos sete anos já o fazia sozinha. Olhei para o Nick,
que estava entretido a mexer ovos, e senti-me na necessidade de fazer alguma
coisa.
— Queres ajuda, querida? — perguntei, embora não fizesse grande ideia de
quais eram os níveis de açúcar certos nem nada dessas coisas.
— Eu consigo sozinha — respondeu ela, tirando uma tira de papel de uma
caixinha, a seguir pegou no dispositivo com uma agulha para picar um dos
dedos, apertou a parte superior e com um clique conseguiu uma pequena gota
de sangue. Com a habilidade incrível de quem fazia isto três vezes por dia desde
que lhe tinham diagnosticado a doença, pôs a gota de sangue na tira de papel e
inseriu-a no dispositivo. Uns segundos depois, leu os níveis de açúcar em voz
alta.
— Não há mais dónutes, Maddie, mas tenho bolachas e uma maçã que está
ótima — disse o Nick, pegando na chávena de chá, nas bolachas e na maçã
antes de se sentar ao lado da irmã, que o fitava com cara de poucos amigos.
Sabia que havia mais dónutes e amaldiçoei o momento em que me lembrara
de comer um naquela manhã. Não queria causar inveja à pobre menina, por isso
levantei-me da mesa e deitei fora o dónute.
— Não gosto dessas bolachas — protestou ela, cruzando os braços.
O Nick observou-a com um suspiro.
— São as que comes sempre, Madison. Gostas delas, sim.
— Não! — gritou, saltando da cadeira com a intenção de sair da cozinha a
correr.
O Nick estendeu o braço e agarrou-a em pleno voo. Naquele instante, o Will
apareceu à porta, também de pijama e a olhar para o filho com má cara.
— Que são estes gritos? — perguntou, olhando em redor e fitando-me alguns
segundos depois. — Que fazes vestida?
Revirei os olhos e contornei-o para ir tirar os ovos mexidos que o Nick deixara
no fogão. Pu-los num prato e levei-os para a mesa, enquanto a Maddie olhava
para o pai com assombro.
— Come o pequeno-almoço — ordenou o irmão, sentando-a novamente na
cadeira.
O Will pegou numa chávena e no jornal que estava em cima da mesa e foi
sentar-se. Então, apercebeu-se de que estávamos os três, o Nick, a Maddie e eu,
a olhar para ele, expectantes.
O William olhou para o Nick, depois para mim — fiz sinal com a cabeça na
direção da Mad —, e depois os seus olhos fixaram-se na pequenita sentada à sua
frente.
— Humm… — disse um segundo depois, pigarreando para aclarar a voz. —
Como dormiste, Maddie?
A menina mergulhou a bolacha no copo de leite e a seguir levou-a à boca
enquanto respondia.
— Dormi com o Nick e a Noah.
O William engasgou-se com o café. A seguir olhou para mim e para o Nick.
— Que diabo?! — exclamou, pousando a chávena na mesa.
O Nicholas olhou-me de relance e começou a explicar ao pai o sucedido.
Alguns segundos depois, o William assentiu, olhando para nós com cara de
poucos amigos. De repente, senti que precisava de sair dali.
— Vou-me embora — anunciei, pegando na mala e deixando a minha
chávena no lava-louça.
O Will observou-me com as sobrancelhas erguidas.
— Vais outra vez meter-te naquele inferno?
O Nicholas sorriu por trás da chávena de café e tive vontade de lhe atirar a
mala à cabeça.
— Sim, William, vou às compras e vou meter-me naquele inferno
voluntariamente, porque sou masoquista, está bem? — respondi, irritada, no
instante em que a minha mãe aparecia na cozinha.
Ai, Deus do Céu, já me tinha esquecido de como era viver naquela casa.
— Mantém-te afastada das enchentes de gente, Noah — aconselhou,
passando à minha frente e entrando na cozinha.
Abanei a cabeça enquanto procurava a chave do carro.
— Onde vai a Noah? — perguntou então a Maddie.
— Vou às compras, Mad — respondi, antes que alguém voltasse a fazer
algum comentário estúpido. A menina arregalou muito os olhos, entusiasmada.
— Eu também quero ir às compras! — gritou, surpreendendo-nos a todos.
O William olhou para ela por cima do jornal.
— És mesmo filha da tua mãe — afirmou entre dentes, voltando à leitura.
Eu sorri, divertida, enquanto o Nick observava a irmã com o sobrolho
franzido.
— Ouviste isto, Nick? A Maddie quer ir às compras — comentei, adorando a
situação como se fosse uma criança.
O Nick fulminou-me com os olhos claros e voltou-se para a pequena.
— Não. A Mad quer ir à praia comigo. Não é verdade, pequenina?
— Não!
Ah, a vingança sabia-me tão bem!
— Vá lá, Madison, disseste-me que querias aprender a fazer surfe!
— Eu detesto surfe! Quero ir a Rodeo Drive!
Todos nos rimos menos o Nicholas, que olhava para a irmã como se esta se
tivesse transformado num pequeno monstro.
— Bem, vou-me embora — informei, saindo pela porta.
O Nick alcançou-me mesmo antes de sair.
— Não pensas que vou enfrentar isto sozinho, pois não? — disse, olhando
para mim com maus modos.
— Enfrentar o quê? — perguntei, tentando não desatar a rir.
— Se eu tenho de passar o dia às compras com uma menina de sete anos, tu
vais comigo, não tenhas a menor dúvida.
— Eu não vou para Rodeo Drive, vou ao Beverly Center — respondi,
encolhendo os ombros com um sorriso nos lábios.
O Nick fulminou-me com os seus olhos azuis, e eu saboreei a minha pequena
vingança.
— Vou buscar-te à hora do almoço, Noah, e é bom que estejas lá quando te
ligar.
— Nicholas…
— E pede ao Steve que te leve: estacionar ali vai ser uma loucura; além disso,
assim podemos voltar para casa juntos.
— Quero ir no meu carro.
— E eu queria ir fazer surfe e aproveitar a praia no inverno e agora, por tua
causa, tenho de ir às compras — respondeu, imperturbável.
Dez minutos depois, ia com o Steve a caminho de um dos maiores centros
comerciais da cidade.
O Beverly Center era um centro comercial situado em Beverly Grove, um
bairro do centro de Los Angeles que ficava a uns meros dez minutos de Beverly
Hills. Sim, tinha atravessado a cidade para ir até ali e ainda por cima ia ter de
me apressar se queria encontrar-me com o Nick e a irmã à hora do almoço, mas
a Black Friday merecia o esforço.
Como sempre, tudo estava uma verdadeira loucura: o centro rebentava pelas
costuras, as filas de clientes chegavam até às portas das lojas, as crianças corriam
de um lado para o outro, choravam ou comiam coisas que as deixavam todas
besuntadas, a elas, aos pais e a quem estivesse por perto. Homens e mulheres
com o seu calçado mais confortável entravam e saíam das lojas como se
estivessem em plena caça à raposa.
Gostava de ir sozinha porque assim não havia distrações. Além disso, eu não
era rápida nas compras, era muito rápida: entrava numa loja, e cinco minutos
depois já sabia se ia ter alguma coisa que me agradasse ou não; não perdia
tempo a procurar por entre a roupa, não, era a roupa quem me chamava e, se ao
entrar nada me chamasse a atenção, adeus e amigos como antes.
Às duas da tarde já tinha comprado quase todos os presentes de Natal. O
telemóvel tocou no meu bolso, e vi que o Nicholas acabara de me mandar uma
mensagem.
Apanho-te na porta da Macy’s daqui a dez minutos.
Sabia que a Noah detestava fazer compras acompanhada e por isso passei a
manhã a sós com a Maddie. Fomos à biblioteca, ao salão de jogos e ao parque
infantil. Implorou-me que lhe comprasse um disfarce; enquanto todas as
meninas da sua idade punham coroas e vestidos de princesa, a minha irmã
escolhera ser uma Tartaruga Ninja. Sim, agora atravessava Beverly Grove com
uma Tartaruga Ninja em miniatura e vários sacos de coisas que não tinha tido a
menor intenção de comprar.
Como o meu pai dissera, a minha irmã era bem filha da nossa mãe.
— Onde está a Noah? — perguntava incessantemente desde que lhe dissera
que íamos ter com ela.
— Isso era o que eu gostava de saber — respondi, sentando-me no exterior do
centro comercial à espera de que ela saísse de uma vez por todas. Dali a pouco o
Steve viria buscar-nos, apesar de o trânsito estar uma loucura… não se
conseguia parar nem em segunda fila.
Quando peguei no telemóvel para lhe ligar, vi-a a aparecer. Vinha carregada
de sacos, a camisola que vestia antes estava atada à cintura e por baixo usava um
top simples de alças que lhe chegava ao umbigo.
A Mad sorriu e correu para a receber enquanto eu subi os óculos de sol para a
cabeça e a observei embasbacado, como se fosse um idiota.
— Adoro o teu disfarce, Mad! — disse ela a sorrir, mostrando os bonitos
dentes brancos. Há tanto tempo que não via aquele sorriso que senti uma
pontada no peito.
— Também havia do teu tamanho, se quiseres de certeza que ainda podemos
ir comprar um — comentou a minha irmã, o que provocou uma gargalhada da
Noah.
A Noah disfarçada de Tartaruga Ninja… era só o que faltava! Embora me
tivesse ocorrido imediatamente imagens da Noah disfarçada de muitas outras
coisas, o que me obrigou a voltar a baixar os óculos e ocultar os meus
pensamentos indecentes.
— Olá — cumprimentei quando nos encontrámos a meio caminho.
— Oi — disse de forma bastante seca.
Franzi o sobrolho com curiosidade.
— Eu ajudo-te — ofereci, pegando nos sacos que trazia. Inicialmente resistiu,
mas depois deixou-me levá-los. Os olhos afastaram-se dos meus e voltaram a
fixar-se na minha irmã.
— Estão aqui há muito tempo?
— Há um par de horas — respondi, pegando no telemóvel e olhando para as
mensagens. O Steve estava à nossa espera na esquina e tinha o carro mal
estacionado. — Vamos.
Cinco minutos depois tínhamos deixado toda aquela loucura para trás.
Levei-as a almoçar a um restaurante afastado das zonas comerciais. Comemos
costeletas com batatas enquanto a minha irmã monopolizava quase toda a
conversa. Para ser sincero, não fazia ideia do que estava a fazer ou que jogo
queria jogar, mas de repente parece que sentia uma necessidade quase vital de
estar a sós com a Noah. Ela mal me dirigira a palavra e, embora as coisas
estivessem tensas entre nós, mais do que tensas, na verdade, pensei que as
nossas tréguas corressem melhor.
Ao sair do restaurante, reparei que no edifício em frente havia um parque de
diversões coberto, daqueles com bolas coloridas e trampolins para saltar, com
escorregas e uma carrada de crianças a correr sem parar.
— Mad, queres ir ali um bocadinho? — perguntei, apontando para aquilo
que era um paraíso para qualquer criança com menos de dez anos.
A minha irmã pôs-se a saltar, doida de alegria, e a Noah olhou para mim com
o sobrolho franzido. Pronto, está bem, não tinha sido tão subtil como pensara.
Paguei para o monstrinho ficar ali durante uma hora e convidei a Noah para dar
um passeio.
— Estás muito calada — comentei enquanto percorríamos uma rua pedonal
cheia de bares, lojas e gelatarias. — Estás cansada?
A Noah continuou a olhar em frente.
— Sim, acho que sim… levantei-me muito cedo.
Continuámos a caminhar sem falar. Aquilo era ridículo, nunca tínhamos
estado tanto tempo juntos sem proferirmos uma palavra. Noah, que nunca se
calava nem debaixo de água, que tantas vezes tivera de calar com um beijo ou
de distrair com carícias para que me desse descanso aos ouvidos, agora parecia
interessada em tudo menos em mim.
— Pronto, já chega! O que raio se passa contigo? — perguntei, irritado.
Ela olhou para mim, surpreendida.
— Comigo não se passa nada… — respondeu, embora no fim da frase me
parecesse hesitante. Esperei, procurando não me exasperar. — É só que não
estava à espera disto. Pensei que íamos estar com a tua irmã. Porque é que a
deixaste naquele parque de diversões idiota? Sabes as doenças que os miúdos
apanham nestes sítios? E piolhos, por exemplo! Agora, de certeza que vamos ter
todos piolhos porque tu decidiste mudar de planos… Pensei que íamos os três
passear pelo parque antes de voltarmos para casa; além disso, ainda me falta
comprar algumas coisas… Quando me ligaste, nem te deste ao trabalho de me
perguntar se já tinha acabado, porque estás muito habituado a dar ordens e
pronto: «Vou-te buscar daqui a cinco minutos.» — Imitou a minha voz. —
Pois se calhar ainda não estava despachada, pensaste nisso? E não, não olhes
assim para mim! Isto é… estranho, não me sinto confortável.
Arregalei os olhos surpreendido, tentando conter a vontade de me rir, ela
estava realmente a conter-se.
— Estás desconfortável com quê? — perguntei com uma incredulidade
fingida.
A Noah parou e voltou-se para mim.
— Com isto! — respondeu, apontando para os dois. — Tu e eu. Ages como se
ainda estivéssemos juntos! — exclamou, como se lhe tivesse custado anos de
vida dizer estas palavras. — Aceitei as tréguas a bem da Maddie, mas não vou
voltar a enganar-me, e agradecia que tu também não o fizesses. Ou queres que
te relembre das coisas que me disseste da última vez que te vi?
Respirei fundo. Na verdade, sabia que a Noah tinha razão. Disse-lhe que
estava apaixonado pela Sophia só para ela virar a página, mas sabia que não ia
ser assim tão fácil.
— Estou a tratar-te apenas como se fosses uma amiga, mais nada — disse,
ficando sério.
A Noah olhou em redor, parecia transtornada. Alguns segundos depois voltou
a olhar para mim.
— Prefiro a tua hostilidade — disse então, e senti uma pontada no peito. —
A sério que a prefiro, porque já sei lidar com ela, estou habituada; isto que estás
a fazer agora, pelo contrário… — Abanou a cabeça enquanto olhava para o
chão. Tive vontade de lhe segurar no queixo e olhar para os seus olhos. — Sei
que só o fazes pela tua irmã, mas isso magoa-me e confunde-me. Não quero
passar tempo contigo, não quero passear contigo, nem almoçar, nem que me
perguntes coisas sobre a minha vida, como porque tenho uma cicatriz ou
porque ando de moto… Isso são assuntos da minha vida, não te dizem respeito,
e já sei que fui eu quem estragou tudo, mas tu tomaste uma decisão e gostava
que a cumprisses.
Desviei o olhar para as árvores atrás de nós, estava a sentir-me uma porcaria.
Sim, era verdade que estava a fazer aquilo pela Maddie, mas uma parte de mim
também queria passar tempo com a Noah, porque, raios, sentia mesmo
saudades dela…
— Muito bem — respondi um pouco cortante. — Vamos buscar a minha
irmã.
Rodei nos calcanhares e comecei a percorrer a rua. A Noah não tardou a pôr-se
ao meu lado, e esta sensação… de a ter tão perto de mim, mas ao mesmo tempo
a quilómetros de distância, conseguiu voltar a transformar-me na estátua de
gelo que sem me aperceber deixara derreter desde o dia anterior.
Passámos em frente a algumas lojas e, mesmo quando íamos a dobrar a
esquina do parque de diversões, a minha mãe, sim, a minha mãe, apareceu à
nossa frente. Parei de caminhar assim que a vi. Não obstante o que a lei
estipulava, eu continuava a recusar-me a vê-la, e fora a ama da minha irmã
quem ma tinha trazido no dia anterior. Tê-la ali novamente, tendo em conta
que não voltáramos a cruzar-nos desde a noite em que decidira começar a
divulgar verdades no aniversário das Empresas Leister, foi uma surpresa mais do
que desagradável.
Como sempre, estava muito elegante, com um vestido de caxemira, salto alto
e o cabelo apanhado num carrapito. Apesar disto, julguei ver olheiras por baixo
dos seus olhos, olheiras essas que a maquilhagem cara que a minha mãe usava
devia disfarçar melhor.
— Nicholas! — exclamou surpreendida ao ver-me mesmo à sua frente.
Cerrei o maxilar com força antes de falar.
— Sim, mãe, que desagradável coincidência encontrarmo-nos assim.
Ela endireitou os ombros, presumo que para encaixar o golpe. A verdade é
que não me importava nem um pouco, a minha relação com ela continuava tão
má como antes… Que digo… Tão má? A relação era inexistente.
— Olá, Noah — cumprimentou, voltando-se para ela, que se retesou ao meu
lado de forma evidente.
Considerando as circunstâncias do nosso passado e dos nossos pais, não devia
estar muito enganado ao pensar que a minha mãe faria parte da lista de pessoas
menos queridas da Noah; mais do que isso, devia estar nos lugares cimeiros.
Não lhe retribuiu o cumprimento.
— Estamos com pressa. Se nos dás licença… — Disse, com a firme intenção
de continuar o meu caminho. Não obstante, a minha mãe deu um passo em
frente e pousou a mão no meu braço, detendo-me.
— Gostava de falar contigo, Nicholas.
— Sim, isso ficou bem claro em todas as mensagens que deixaste com a
minha secretária, mas acho que ela também foi suficientemente esclarecedora
nas suas respostas ao dizer-te que não estou interessado.
Agarrei na mão da Noah como um ato reflexo; subitamente, senti que estava a
afogar-me e que precisava de sair dali o mais depressa possível. Puxei-a comigo
e passámos ao lado da minha mãe com o propósito de nos irmos embora sem
olhar para trás.
— Trata-se da Maddie, Nicholas — anunciou a minha mãe nas minhas costas.
Aquilo conseguiu fazer-me parar. Voltei-me para ela com aborrecimento.
— Podes contar ao pai qualquer coisa que se passe com a minha irmã, ele
encarregar-se-á de me manter informado.
A minha mãe pareceu ir-se abaixo, olhou para mim com os olhos suplicantes,
e todas as minhas defesas se desmoronaram. A minha mãe, a suplicar?
— Concede-me apenas alguns minutos, Nick, por favor.
Os meus olhos desviaram-se para a Noah, que parecia tão intrigada quanto eu.
— Muito bem — concordei. — O que se passa?
A minha mãe fez um gesto entre a surpresa e o alívio e conduziu-nos até uma
cafetaria que havia mesmo em frente. A Noah sentou-se ao meu lado, e a minha
mãe, em frente. Tudo isto me parecia estranhíssimo, mas precisava de acabar
com a situação o quanto antes.
— Bem, diz lá o que é, não temos o dia todo.
Apesar de ter demonstrado uma certa debilidade pedindo-me por favor que
lhe concedesse alguns minutos, perante este último comentário endireitou os
ombros e olhou para mim com cara de poucos amigos.
Ali estava a Anabel Grason de que me recordava.
— Muito bem, uma vez que mal consegues tentar ter um pouco de tato
comigo, vou também deixar-me de rodeios e floreados. Queres que seja breve,
serei breve — disse, pousando a chávena no pires e olhando fixamente para
mim. — Estou doente, Nicholas.
Um silêncio abateu-se sobre a mesa, silêncio esse interrompido pelo copo de
vidro que eu tinha na mão antes de o deixar cair sobre o tampo.
— Que queres dizer com isso de estares doente? — perguntei, irritando-me
de imediato. De certeza que era uma treta qualquer, não sei para que fim, mas
parecia-me patético.
— Que quero dizer? — respondeu e agora, ao olhar para ela com mais
atenção, vi que a sua expressão de dureza fraquejava e deixava a descoberto um
medo e uma insegurança que nunca vi na minha mãe. Respirou fundo e olhou
fixamente para mim antes de pronunciar as seguintes palavras: — Tenho
leucemia.
— Mas que diabo estás a dizer? — respondi, notando quase de imediato que a
minha voz desceu duas oitavas.
A minha mãe juntou as mãos sobre o regaço e chegou-se para trás no assento.
— Diagnosticaram-ma há um ano e meio… Quis contar-te, mas não queria
fazê-lo por telefone, isto se te dignasses a atendê-lo. O teu pai já sabe de tudo
há alguns meses, mas prometeu-me que não te diria nada, queria ser eu a
contar-te… Sei que me odeias, mas és meu filho e…
A sua voz começou a estremecer, e subitamente senti-me a cair, caía
desamparado por um poço sem fundo e ia acabar por me estatelar… era uma
questão de segundos: ia estampar-me e não sabia o que se seguiria, mas de
certeza que não seria nada de bom. Foi então que senti que alguém me apertava
a mão com força, uma mão quente e pequena que se aproximara da minha por
baixo da mesa e que prometia não me largar.
Olhei para a Noah, que estava ao meu lado e olhava para a minha mãe com…
pena? Senti que os meus dedos se agarraram a ela com força, como se de repente
fosse o meu único ponto de referência, porque aquilo que a minha mãe me
estava a dizer não podia ser verdade.
— Não quero contar-te isto para teres pena de mim, só quero explicar-te o
porquê de algumas coisas que fiz ao longo dos últimos meses, tudo o que fiz a
respeito da Maddie, do Grason, do teu pai…
— Estás a falar de quê? — perguntei, aclarando a garganta ao reparar que o
nó que ali se formara me impedia de falar.
— Vou ceder a custódia total da Maddie ao teu pai.
— Como? — perguntei, despertando da minha letargia.
— Nos próximos anos vou ter de enfrentar situações muito difíceis, Nicholas,
situações que não quero que uma menina de sete anos tenha de presenciar.
Quando soube disto, tudo se tornou muito claro para mim: se me acontecer
algo, a última coisa que quero é que a minha filha fique aos cuidados do Grason.
É um homem egoísta e que só se importa com o seu próprio umbigo. Eu cometi
erros, meu Deus, cometi muitíssimos erros na minha vida e sei que estou longe
de ser alguém que merece que a escutes, mas preocupo-me com a Maddie,
preocupo-me muito com ela, Nick, e se me acontecer alguma coisa, se isto não
correr como espero que corra, quero que a minha filha esteja com uma família
que a ame e proteja.
— Espera, espera — interrompi. — Disseste que o meu pai já sabe disto? Ele
está de acordo com esta questão da custódia completa? Mas, como…?
— Tudo o que aconteceu com o Grason, o divórcio, saber quem era o pai da
Maddie… voltei a remexer neste assunto todo porque sabia que havia uma
possibilidade de ela ser filha do teu pai. E não me enganei, como também não
me enganei quando imaginei que assim que o William soubesse que a Maddie
era sua filha iria querer fazer parte da sua vida, que é exatamente o que eu quero
também.
Olhei para ela com incredulidade… tudo o que acontecera, tudo o que se
descobrira… Era porque a minha mãe queria que fosse o meu pai a ficar com a
Maddie caso ela… caso ela morresse?
— E o que pretendes fazer? — perguntei subitamente, sentindo a raiva a
crescer dentro de mim. — Pretendes abandonar a Maddie em casa do meu pai?
Pretendes renunciar aos teus direitos e esperar que a tua filha não tenha
saudades tuas? Isso é uma loucura!
— Nicholas… — começou por dizer a Noah.
— Não! — exclamei, pondo-me de pé. — Não é assim que se fazem as coisas,
bolas! Pretendes fazer com ela o mesmo que fizeste comigo?
A minha mãe inspirou fundo sem olhar para mim.
— Senta-te, por favor — pediu-me, mantendo a calma, embora pudesse ver
que lhe custava muito fazê-lo.
Sentei-me porque, de repente, tinha as pernas a tremer; todo o meu corpo
estava sob tensão, o meu maldito cérebro era um torvelinho de pensamentos
sem sentido que tentava compreender em que mundo as ações da minha mãe
podiam ser justificadas.
— Não quero abandoná-la, Nicholas, vou simplesmente ceder a custódia ao
teu pai enquanto tento sair disto. Estou em contacto com os melhores médicos
do país e vou começar a fazer quimioterapia no Hospital MD Anderson, em
Houston. Os médicos estão otimistas, mas isto pode demorar anos: não queres
que leve a Maddie comigo para Houston, pois não? Quem cuidaria dela
enquanto eu estivesse em tratamento? Só estou a tentar pensar no que será
melhor para todos.
Fiquei calado durante o que podiam ter sido segundos ou minutos, não faço
ideia. Isto era tudo uma merda, uma valente merda.
Foi então que senti o toque de uma mão diferente a segurar na minha. Abri os
olhos e verifiquei que era a da minha mãe. As mãos dela sempre foram assim tão
ossudas? Fitei-a, vi as suas olheiras e percebi que estava bastante mais magra
desde a última vez que a vira. Os meus dedos agiram por vontade própria e
fecharam-se em redor da sua mão quase sem me pedirem autorização.
— Lamento muito tudo isto, Nick — disse ela e um instante depois largou-
me para limpar uma lágrima que decidira escapar-se do seu controlo. — O teu
pai pode explicar-te tudo melhor do que eu. Obrigada por me teres ouvido.
A minha mãe começou a levantar-se, e subitamente senti um vazio imenso no
meu peito e na minha mente.
— Espera — pedi, e nunca na minha vida me sentira tão perdido. — Vou
dar-te… Deixa-me dar-te o meu número de telefone pessoal para me poderes
ligar para dizer quando vais embora ou quando planeias…
Calei-me porque não sabia o que dizer a seguir. Tirei um dos cartões de visita
da carteira e escrevi o meu número atrás com uma caneta. A minha mãe aceitou
o cartão e sorriu-me, agradecida.
— Obrigada, filho — disse, antes de desviar os olhos para a Noah. — E
obrigada a ti também.
O trajeto até casa foi insuportável. O meu corpo gritava-me, implorando que
voltasse, que me metesse na cama com o Nick e que dormisse até já não me
restarem horas, mas a minha mente não parava de me criticar incessantemente
por ter sido tão idiota, tão estúpida ao ponto de pensar que alguma coisa podia
ter mudado. Não deixava de me questionar por que razão, se eu e o Nick já nos
tínhamos separado há mais de um ano, chorava agora como se tudo tivesse
acabado verdadeiramente entre nós. A certa altura, tive de sair da estrada,
desligar o motor do carro e abraçar o volante para soluçar à vontade sem correr o
risco de embater em alguém.
Chorei por tudo o que fomos, por tudo o que podíamos ter sido, chorei pela
sua mãe doente e pela irmã pequena… chorei por ele, por ter conseguido
desiludi-lo tanto, por lhe ter partido o coração, por ter conseguido que ele se
abrisse ao amor apenas para lhe provar que afinal o amor não existe, pelo menos
sem dor, e que esta dor é capaz de nos marcar para a vida.
Chorei por aquela Noah que podia ter sido com ele: cheia de vida, que apesar
dos seus demónios interiores tinha sabido amar com todo o seu coração; soube
amá-lo mais do que a qualquer outra pessoa, e isso também me dava vontade de
chorar. Quando se conhece a pessoa que queremos para o resto da vida, não há
como voltar atrás. Muitas pessoas nunca chegam a conhecer esta sensação,
acham que encontraram essa pessoa, mas estão enganadas. Eu sabia, sei, que o
Nick é o amor da minha vida, o homem que queria como pai dos meus filhos,
aquele que desejava ter ao meu lado nos bons e nos maus momentos, na saúde e
na doença, até que a morte nos separasse.
Nick era essa pessoa, era a minha outra metade, e agora tinha de aprender a
viver sem ele.
23
NICK
Por mais que amasse a minha irmã, naquela manhã não era quem esperava ver
assim que abri os olhos. Levantei-me, tentando situar-me e determinar por que
motivo o lado esquerdo da minha cama estava vazio. Como não me apercebera
de que a Noah acordara e saída do meu quarto? A resposta a esta pergunta era
que, pela primeira vez num ano, conseguira dormir profundamente.
— Onde está a Noah? — perguntava a minha irmã sem parar, enquanto dava
pequenos saltos em cima do colchão. A pergunta apanhou-me desprevenido.
Como assim, onde está?
— Não está no quarto dela? — perguntei, levantando-me finalmente e
passando a mão na cara para tentar acordar de vez. Fui até à casa de banho para
me preparar para aquele dia, o dia em que ia ter de lhe dar muitas explicações e
em que teria de considerar muitas coisas.
O que acontecera ontem não tinha sido apenas sexo, não, de maneira
nenhuma, fora muito mais do que isso, deixei-me levar pelos sentimentos
passados… e pela primeira vez em muito tempo sentira-me bem.
— Ela não está cá, Nick — repetiu a Maddie.
Com o sobrolho franzido, fui até ao quarto dela, abri a porta e, realmente, não
havia ali ninguém. Olhei em redor à procura das suas coisas… os livros e a mala
de viagem pequena tinham desaparecido.
— Porra! — praguejei entre dentes.
— Ah, tu disseste um palavrão!
Baixei os olhos e percebi que não era a melhor altura para ter a Maddie aos
meus cuidados.
— Fofa, vai para a cozinha, a Prett prepara o teu pequeno-almoço, vá! —
Apressei-a quando se preparava para discutir.
— A Noah foi-se embora? — perguntou-me, visivelmente arreliada.
Sim, olha, já éramos dois.
— Não sei, mas agora vai lá para baixo, não vou repetir-me — disse-lhe e
pela maneira como me fulminou com os seus bonitos olhos azuis, percebi que
isto ia ter consequências dentro de muito pouco tempo.
Sem dizer mais nada, voltou-se e começou a correr escadas abaixo.
Eu voltei para o meu quarto e procurei o telemóvel até o encontrar. Sem parar
sequer para pensar, marquei o número dela, não uma, mas duas vezes.
«Bolas, Noah, tinhas de ir embora assim?»
Estava irritado, e muito. Pensei em pegar no carro e ir atrás dela. Por que
motivo se fora embora? Tinha-a tratado mal? Não, claro que não, caramba,
tratei-a como sempre, fizemos amor como fazíamos quando estávamos juntos.
Sim, tudo bem, ela queria mais, pediu-me mais…
«Diz-me que me amas…»
Não podia dizê-lo. Magoava-me de mais.
Desci até à cozinha com um humor de cão; o meu pai e a minha irmã estavam
ali a conversar animadamente sobre qualquer coisa, mas quem falava sem parar
era a Maddie, enquanto a Rafaella as observava com um sorriso nos lábios. Ao
verem-me entrar, ambos se fixaram em mim, e consegui balbuciar os bons-dias
antes de me encaminhar para a porta da entrada com uma chávena de café nas
mãos.
Quando vi o carro velho da Noah, o alívio de saber que não se tinha ido
embora inundou-me completamente. Mas, se o carro estava ali, onde estava a
Noah e as suas coisas?
Não demorei muito tempo a verificar que o seu Audi vermelho já não se
encontrava estacionado na garagem.
Tinha-se ido mesmo embora. Naquele instante, percebi que não lhe dizer o
que mais precisara de ouvir fora mais eficaz para a afastar de mim do que todas
as minhas mentiras. Consegui o que queria: que ela virasse a página. Mas
então… por que razão sentia um vazio dentro de mim, um vazio que
desaparecera assim que voltara a vê-la?
Não ajudou muito ao meu mau humor que o meu pai me chamasse ao seu
escritório para conversarmos. Não voltáramos a falar depois da discussão que
tínhamos tido no Dia de Ação de Graças, mas algo me dizia que desta vez ele
não queria falar de trabalho.
— A tua mãe ligou-me ontem para me dizer que esteve contigo e te contou
que está doente — disse-me quando entrei no escritório.
Soltei uma gargalhada irónica enquanto me encaminhava para o bar e me
servia de um copo. Eram dez da manhã, mas não queria saber.
— Estou a ver que agora são muito amigos, contam tudo um ao outro. O que
acha a Rafaella disso, pai? Ou também lho escondeste?
O meu pai não respondeu à minha provocação, ficou simplesmente à espera de
que eu bebesse o copo e me servisse de outro, com as mãos cruzadas sobre o
estômago, sentado na sua grande poltrona de couro. Quando finalmente me
achei com ânimo suficiente para me voltar para ele, fi-lo cheio de raiva, raiva e
uma tristeza profunda, nova, algo que nunca sentira antes.
— Quando pensavas contar-me? — gritei-lhe.
— A tua mãe pediu-me que não o fizesse — respondeu-me com uma calma
fingida.
Ri-me com sarcasmo.
— Sabes uma coisa, pai? É fantástico ver que, dependendo de se te prejudica
ou não, decides contar as coisas ou ocultá-las. Não tiveste problemas em
esconder-me que enganaste a minha mãe durante praticamente todo o vosso
casamento, nem que ela se foi embora por causa disso mesmo… Deixaste-me
acreditar que se tinha ido sem mais nem menos, sem qualquer explicação!
O meu pai levantou-se da poltrona e virou-se para a janela.
— A tua mãe não planeava voltar, Nicholas, eu conheço-a bem, e quando
decidiu deixar-te aqui, fê-lo muito consciente dos seus atos. Não te contei nada
porque não queria que tivesses esperanças de voltar a vê-la, não queria que
perseguisses uma mentira.
— Toda a minha vida tem sido uma maldita mentira! — Precisava de me
acalmar, precisava de controlar os tremores que pareciam querer apoderar-se do
meu corpo, das minhas mãos. Apertei os punhos com força. — O que vai
acontecer à Madison?
Quando viu que estava a controlar o meu tom de voz, o meu pai voltou-se
novamente para mim.
— Ela tem de ficar aqui connosco, é o melhor para ela — respondeu e eu
comecei a abanar a cabeça… O melhor? O melhor para quem? — Nicholas, a
tua irmã precisa de estar num ambiente seguro e carinhoso, não quero que
esteja rodeada por médicos e hospitais, nem que tenha de ver a vossa mãe a
submeter-se aos tratamentos de quimioterapia; ela é muito pequena.
— Ela precisa da mãe.
O meu pai fitou-me diretamente, e os seus olhos, tão parecidos com os meus,
fixaram-se nas minhas pupilas. Há muito tempo que não me olhava assim, há
anos, talvez, e comecei a sentir um nó na garganta que crescia cada vez mais.
Então, aproximou-se com cuidado e pousou a mão no meu ombro.
— Isto não é a mesma coisa que aconteceu contigo, Nick — disse ele. Ao
ouvir as suas palavras, só consegui cerrar os maxilares com força. — Não vou
deixar que desta vez aconteça o mesmo, prometo-te. A Maddie continuará a ver
a mãe, estará em contacto com ela, não vou cometer o mesmo erro duas vezes.
Abanei a cabeça, as palavras ficavam-me atravessadas na garganta; de repente,
senti-me como quando tinha doze anos e o meu pai me explicou que a minha
mãe não ia voltar.
— Nunca te pedi perdão por isso… Peço-te agora… Cometi um erro,
Nicholas, achei que estava a fazer o que era melhor para ti, achei que eu seria
suficiente, que a tua mãe só ia continuar a magoar-te, mas devia ter lutado
contra isso, devia ter lutado para ela continuar a fazer parte da tua vida, de
qualquer forma, mesmo que estivesses a viver uma mentira. É isso que os pais
fazem, filho, dizem e fazem o que for preciso para que os filhos se sintam
protegidos e queridos, e eu não soube fazê-lo.
Os meus olhos humedeceram-se, e pestanejei várias vezes para conseguir ver
com clareza. Raios me partissem, aquilo era a última coisa que esperava. A vida
continuava a apresentar-me surpresas, a dar-me bofetadas, sempre à espera de
que me levantasse a seguir, dorido, sim, e furioso, mas com força suficiente para
continuar o meu caminho.
— Não deixes que a Maddie fique sem a mãe — pedi-lhe com a voz quebrada
e não estava só a falar de deixar a minha mãe ir embora para outra cidade. O
meu pai entendeu exatamente o que lhe quis dizer.
— Eu vou fazer tudo o que está ao meu alcance para que nenhum dos dois
fique sem mãe Nicholas.
A última coisa de que me lembro foi de o meu pai me puxar para um abraço
que me apanhou completamente de surpresa. Não me lembrava da última vez
que tinha feito algo parecido, não me lembrava quando alguém que não fosse a
Noah precisasse deste tipo de demonstração de carinho da minha parte e, ao
sentir a paz que me invadia o coração, percebi que, ao contrário do que
esperava, eu também precisava de baixar a guarda e deixar que, pelo menos por
uma vez, fossem os outros a proteger-me da escuridão.
24
NOAH
Duas semanas depois do Dia de Ação de Graças, recebi a chamada que tanto
desejava. Contrataram-me! A secretária disse-me que Simon Roger, um dos
sócios maioritários da empresa, precisava de um braço-direito, alguém jovem e
ativo que estivesse disposto a facilitar-lhe um pouco a vida. Começaria na
segunda-feira às sete da manhã e, já que era um estágio, ainda me pagavam um
pouco mais do que costumava receber na cafetaria, por isso, era perfeito.
Ao chegar ao escritório no meu primeiro dia, uma mulher muito bonita, com
o cabelo claro e os olhos castanhos grandes, disse-me onde o senhor Roger
estava à minha espera. Bati à porta e aguardei uns segundos até que me mandou
entrar. Quando entrei, vi um homem muito mais novo do que esperava
encontrar; a sua altura e porte impecáveis deixaram-me desconfortáveis por
instantes. Ele tinha os olhos verdes e o cabelo louro, quase um tom abaixo do
meu. O fato azul-marinho e gravata cinzenta assentavam-lhe como uma luva, e
percebi que estava há demasiado tempo a fitá-lo quando vi aparecer um sorriso
no seu rosto.
— Noah Morgan, não é verdade? — perguntou-me, levantando-se da cadeira,
apertando o botão do casaco com uma mão enquanto me estendia a outra um
segundo depois.
Apertei-lhe a mão com menos força do que seria recomendado.
— Sim, a própria — respondi, sentindo-me um pouco estúpida.
O Roger separou-se da secretária para a contornar e voltar a sentar-se. Fez-me
sinal para o fazer também, e apressei-me a instalar-me numa das cadeiras de
couro que tinha à sua frente. O escritório era bastante simples: uma secretária
de madeira, duas cadeiras de couro em frente, um computador Mac maior do
que uma casa e algumas estantes com pastas.
— Fiquei muito surpreendido quando o Lincoln me disse que a irmã do
Nicholas andava à procura de trabalho aqui, embora vendo o seu currículo e as
recomendações que traz me sinta feliz por preferir trabalhar para mim e não
para o Leister.
Não me apetecia voltar a ouvir o nome do Nicholas, mas, tendo em conta que
se conheciam, não achei estranho que se falasse da família.
— Pois, presumo que não seja exatamente de bom gosto trabalhar para o
padrasto — disse num tom de voz amigável.
O Roger levantou os olhos da pasta que estava a ler e olhou para mim a sorrir.
— Não me referia ao William, mas ao Nicholas. No entanto, presumo que
tem razão — admitiu, pousando a pasta em cima da mesa e observando-me,
entretido. — O trabalho é muito simples: ficará basicamente encarregada de me
fazer recados, de estar nas reuniões e tomar notas, assistir-me em tudo o que lhe
pedir…
Assenti, compreendendo que ia ser uma espécie de secretária.
— Se preferir algo melhor, o seu irmão pode certamente arranjar-lhe…
— Não, não, a última coisa que quero é recorrer ao Nicholas; além disso, teria
de ir para Nova Iorque, não é? — disse, a sorrir animadamente. Tinha
conseguido arranjar trabalho e mal podia esperar para começar!
Foi então que o Roger me observou com o sobrolho franzido.
— Bem, é verdade que neste momento o Nicholas está em Nova Iorque, mas
esta empresa é tanto dele como minha e do Lincoln. Mas entendo que queira
começar por baixo, o que diz muito de si…
Os meus pensamentos congelaram-se de repente, e senti frio.
— Desculpe… mas não estou a entender — comentei, sentindo um suor frio
que me percorria a coluna vertebral e cima a baixo. — Esta empresa é do
Nicholas?
O Roger olhou para mim como se fosse idiota e apontou para o emblema que
havia por cima da sua cabeça, gravado no vidro transparente. Juro que quase me
dava um enfarte: não podia ser.
Leister, Roger & Baxwell Inc.
LRB
Oh, não!
Aquela empresa era do Nicholas?!
— É um projeto que começámos juntos, embora ele seja o acionista
maioritário… Achei que sabia disto — confessou, surpreendido com a minha
reação de absoluta ignorância.
Como podia ter sido tão idiota? Quem se lembra de se apresentar num local
de trabalho sem antes investigar um pouco?
— A verdade é que eu e o meu irmão não temos uma relação muito boa… —
comecei a explicar-me. — Liguei porque o Lincoln Baxwell me ofereceu
trabalho há alguns meses, mas não fazia a menor ideia de que esta empresa fosse
do Nicholas… eu… — Olhei para ele e senti-me corar. — Lamento, não o
devia ter feito perder o seu tempo, é melhor ir embora.
O Roger levantou-se quase ao mesmo tempo que eu e agarrou-me pelo braço
antes que eu saísse dali a correr.
— Espera, Noah — pediu, pronunciando o meu nome de forma muito doce.
— Posso tratar-te por tu? — perguntou, soltando-me quando percebeu que
conseguira impedir a minha fuga.
— Sim, claro, até prefiro — respondi, desejando criar um ambiente menos
patético para tudo aquilo.
O Simon sorriu e elevou a curva dos lábios.
— O Nicholas não precisa de saber que estás a trabalhar aqui, se é isso que te
preocupa — começou por dizer com calma. — Ele trabalha a partir de Nova
Iorque e, que eu saiba, não faz tenção de deixar a cidade.
Respirei fundo, com os meus pensamentos a precipitarem-se a mil à hora.
Sabia muito bem que o Nicholas não ia voltar para Los Angeles, muito menos
agora.
— O teu chefe vou ser eu, não ele — acrescentou, para me convencer.
Meu Deus… Seria capaz de o fazer? Poderia trabalhar para Simon Roger
sabendo que um dos chefes era o meu ex-namorado, o mesmo que não queria
ver durante muito tempo? Se tivesse recebido mais alguma oferta de trabalho,
não teria hesitado um segundo… mas não ia encontrar nada melhor do que
aquilo.
— O que me dizes? — insistiu ele.
Engoli todos os meus medos e advertências e assenti finalmente. O Roger
sorriu-me, mostrando-me os bonitos dentes brancos.
— Bem-vinda à minha equipa… tenho muita vontade de trabalhar contigo.
Forçando um sorriso, despedi-me e saí do escritório dele. «Bolas, Nicholas…
Porque é tão diabolicamente difícil manter-me afastada de ti?
*
À
À medida que os dias passavam, compreendi que não ia cruzar-me com o
Nick, sobretudo porque ele continuava em Nova Iorque e geria os assuntos da
LRB a partir dali, por isso consegui descontrair e trabalhar tranquilamente. A
verdade é que gostava daquele trabalho, não me deixava muito tempo livre para
pensar e dar voltas à cabeça, que era exatamente aquilo de que precisava.
Trabalhava toda a manhã, exceto quando tinha aulas, mas depois regressava ao
escritório para ajudar o Simon naquilo de que ele precisasse.
As semanas passaram-se, e as festividades chegaram rapidamente. Passei o
Natal com a minha mãe, o Will e a Maddie, já que o Nick deixara muito claro
que não ia poder vir a casa por causa do trabalho, embora no fundo eu soubesse
que ele estava apenas a deixar estas festas para mim.
Passei a última noite do ano com a Jenna e o Lion. A minha amiga tentava
não falar do Nicholas quando estávamos juntas, mas o tema acabava sempre por
surgir, quase sem querer.
— Ele não está apaixonado por ela, Noah — assegurou-me durante o jantar
—, mas seguiu com a sua vida.
Esta última frase foi dita enquanto olhava para mim de forma apressada. A
Jenna insistia que, já que eu era solteira, podia e devia sair mais, conhecer
outras pessoas, soltar-me um pouco… Enquanto começávamos a contagem
decrescente para o Ano Novo, pensei que talvez ela tivesse razão e aquele fosse o
momento de começar a sair com outras pessoas.
Olhei para a agenda que a minha secretária acabara de me dar e suspirei ao ver
que mal teria tempo para respirar. Entre a abertura da LRB e o encerramento
das outras empresas, apercebi-me de que não ia poder fazer mais nada que não
fosse dedicar-me completamente ao trabalho. Não me queixava, gostava de
trabalhar, principalmente no projeto novo que tanto me custara pôr em marcha.
Olhei para o jornal naquela manhã e praguejei entre dentes. O Simon Roger
ainda naquela manhã me ligara para insistir que tão depressa não podíamos dar-
nos ao luxo de ter má publicidade na imprensa: segundo ele, a imagem que
apresentássemos neste momento era muito importante e, apesar de saber que ele
estava certo, eu não tinha tempo para posar em frente às câmaras muito
sorridente enquanto explicava o que motivava as minhas decisões. Já me tinha
custado muito convencer a direção, não podia fazê-lo com o mundo inteiro.
Tudo iria melhorar, mas cada coisa ao seu próprio ritmo.
O telefone tocou, e atendi sem pensar. Era a Sophia.
— Estou ocupado — respondi, um pouco mais brusco do que devia.
— Estás sempre ocupado — respondeu simplesmente. — A tua secretária
disse-me que na semana que vem vais para Los Angeles.
— Sim, vou visitar os escritórios da LRB para me assegurar de que tudo está a
correr bem.
— Também me disse que vais dar uma festa para celebrar a inauguração.
— Estou a ver que a Lisa te mantém muito bem informada — comentei,
irritado. — Sim, o Roger insistiu em que déssemos uma festa para
apresentarmos uma boa imagem da empresa.
— Planeavas avisar-me de que vinhas à Califórnia? Preciso de te recordar de
que não nos vemos há mais de um mês?
Levantei-me da cadeira e servi-me de uma chávena de café quente. A verdade
é que estivera tão ocupado com o trabalho e em recordar o meu último encontro
com a Noah que mal tinha pensado na Sophia.
— Claro que planeava avisar-te, só ainda não tinha nada decidido — respondi
com calma.
Ouvia a Sophia pensar, apesar de todos os quilómetros que nos separavam.
— Encontramo-nos no teu apartamento, então? — O entusiasmo com que
falou não me passou despercebido, e, apesar das circunstâncias, aquilo fez-me
sorrir.
— Encontramo-nos lá — confirmei, voltando a sentar-me. — Tens a chave,
não tens?
Não consegui evitar comparar a forma como falava com ela e como falara com
a Noah. Tinha-lhe dado uma chave havia alguns meses, porque às vezes a
Sophia precisava de ficar em Los Angeles em trabalho, e o meu apartamento
estava vazio. Na verdade, só não o vendera por falta de tempo: as recordações
que aquelas paredes guardavam queimavam-me tanto quanto o fogo da lareira
que tinha acesa no escritório…
O meu voo para Los Angeles saía muito cedo, o que me dava tempo mesmo à
justa para ir à reunião de pessoal que convocara para o meio-dia. Queria
assegurar-me de que não se cometiam os mesmos erros da última vez. Além
disso, queria ver a minha irmã, pois desde o Ano Novo não voltara a Los
Angeles. A Noah não aparecera em casa, e uma parte de mim ansiava com todas
as forças voltar a vê-la também. A mãe disse-me que decidira ficar no campus
porque tinha de estudar, mas eu sabia bem que a causa da sua ausência era eu. A
última noite que passámos juntos, havia quase dois meses, estava gravada na
minha memória; cada beijo, cada palavra, cada som, cada sensação… Não sei o
que teria acontecido se ela não se tivesse ido embora. Teria sido eu a deixá-la
depois? Teria tido forças suficientes para me levantar, para sair do seu lado, para
a soltar dos meus braços e dizer-lhe que a nossa história estava encerrada?
Eram perguntas para as quais não tinha, nem nunca teria, resposta. O destino
quis que fosse ela a tomar esta decisão, libertando-me a mim de ter de o fazer, e
assim continuámos com as nossas vidas.
Agora, tinha a Sophia, se bem que ela fosse mais uma obrigação, um simples
cumprimento de expectativas da minha existência. Um dia queria ter filhos,
queria ter uma mulher. Nunca iria amar ninguém como amara a Noah, mas não
podia pôr a minha vida em suspenso; a nossa história seria sempre dolorosa de
recordar, e ela ocuparia eternamente um lugar na minha alma, nas células do
meu sangue, como se me pertencesse. No entanto, isto não significava que não
podia fazer um esforço em nome daquilo que sabia que um dia ia querer para
mim.
O Steve estava à minha espera no aeroporto. Tinha vindo passar uns dias com
o filho mais velho, que no dia seguinte acabava a universidade. Quando o vi,
sorri-lhe, e fomos juntos para o carro.
— Como está o Aaron? — perguntei enquanto punha o cinto de segurança e
ligava o telemóvel para ver as chamadas perdidas e as mensagens.
— Está aliviado por ter acabado o curso.
Sorri, distraído, e olhei para o relógio de pulso.
— É melhor acelerares, não queria chegar atrasado a uma reunião que eu
mesmo convoquei.
O Steve fez o que lhe pedi, e cerca de meia hora depois chegámos à cidade.
Parámos em frente ao edifício que me custara tantos milhões.
Não achei estranha a agitação que parecia inundar o escritório quando me
viram chegar, acabara por me habituar a que isso acontecesse.
— Bom dia, senhor Leister, estão à sua espera na sala de reuniões — anunciou
uma secretária cujo nome não sabia.
— Obrigado. Pode levar-me um café daqui a um minuto? — pedi,
atravessando a sala, sabendo que já estava atrasado. — Simples, sem açúcar,
obrigado.
A secretária apressou-se a ir para a cafetaria que havia na sala contígua, e eu
percorri o corredor até à sala de reuniões. Quando abri a porta fiquei
surpreendido ao ver que todos estavam a rir, não havia ninguém sentado nos
seus lugares; mais do que isso, estavam à volta de qualquer coisa que parecia
diverti-los muitíssimo. Aproximei-me disfarçadamente, sabendo que ninguém
me ouvira entrar, e deparei com uma rapariga de cabelo louro comprido,
sentada numa cadeira, a tentar ganhar ao braço de ferro com o próprio Simon
Roger.
Demorei mais uns segundos até perceber que a rapariga era a Noah.
Não entendi nada, fiquei ali a observá-la a rir-se e a fazer força contra a mão
daquele idiota, que obviamente a estava a deixar ganhar, pelo menos por
enquanto. Os meus olhos pousaram durante alguns segundos nas mãos de
ambos, entrelaçadas, e comecei a ver tudo vermelho.
— Se tiveram tempo para montar este circo nos dez minutos em que cheguei
atrasado, nem quero imaginar o que fazem quando não estou cá — comentei
tão alto que todos pararam para olhar para mim, incluindo os dois que se
fitavam tão divertidos, no jogo.
Ao ouvir a minha voz, a Noah levantou-se de um salto, e fiquei tão
transtornado por voltar a vê-la, sobretudo ali, que a raiva se apoderou de cada
um dos meus sentidos; naquele momento não me importei com mais nada, nem
com os funcionários a quem queria ter causado uma boa impressão, nem sequer
com o facto de que, se a Noah não estivesse ali, o mais provável era ter-me rido
juntamente com eles e até pedido que me deixassem participar no desafio.
Fitei-a e senti que todo o meu mundo voltava a sair dos eixos.
— A reunião está cancelada — disse, quase a gritar. — Amanhã quero-vos
todos aqui às sete da manhã, e veremos se mantêm os vossos postos de trabalho;
isto não é um maldito recreio!
Trespassei todos os presentes com o olhar, principalmente o Roger, que estava
demasiado próximo da minha namorada… raios, demasiado próximo da Noah.
Voltei-me para sair da sala, mas não sem antes dar um último grito:
— Morgan, ao meu escritório!
26
NOAH
Fiquei a olhar para a porta, imersa num silêncio que envolvia todos os que
estavam ali reunidos.
— O chefe que vá passear! — exclamou um dos colegas enquanto reunia as
suas coisas e saía da sala.
— Afinal, o que sai nos jornais é verdade — comentou outro, e eu voltei-me
para olhar para ele.
Muitos dos meus colegas fitavam-me com olhares de pena, uma vez que tinha
sido a única com quem ele gritara e que chamara ao seu escritório.
O Simon pôs-se ao meu lado e perguntou-me ao ouvido:
— Queres que vá contigo? — ofereceu, e tudo o que me fizera sentir ao longo
das últimas semanas deixou de fazer sentido.
O Nick estava ali.
— Não é preciso, está tudo bem, eu sei como lidar com ele — respondi, e ele
olhou para mim com o sobrolho franzido.
Depois do nosso primeiro encontro, tínhamos voltado a sair algumas vezes
para jantar. Um dia, durante um destes jantares, acabei por lhe explicar a minha
relação com o Nick. Nem vale a pena dizer que o Simon ficou muito
surpreendido ao perceber que a minha relação com ele era tudo menos fraterna.
Sorri ao Simon e dispus-me a sair da sala para ir ao escritório que o Nick tinha
no edifício, embora estivesse vazio durante a maior parte do tempo. Quando
cheguei à porta, bati antes de entrar, principalmente porque quem andava por
ali não parava de olhar para mim.
— Entra! — berrou ele do outro lado da porta.
Quando entrei, vi-o andar com nervosismo de um lado para o outro.
— Que diabo fazes aqui?
Respirei fundo e observei-o despir o casaco, atirá-lo de qualquer maneira para
cima de uma cadeira e arregaçar as mangas até aos cotovelos.
— Eu trabalho aqui — respondi com o sobrolho franzido. — Pensei que
sabias.
O Nick parou de tirar a gravata com um puxão e cravou o olhar sobre mim,
com incredulidade.
— Estás a falar de quê, caraças?
— Fiquei sem trabalho e lembrei-me que o Lincoln Baxwell me tinha dado
um cartão de visita durante o casamento da Jenna. Então, liguei-lhe, e ele disse
que me arranjava qualquer coisa. — Encolhi os ombros ao dizer aquilo, como se
tivesse sido a coisa mais simples do mundo, e por acaso até foi.
O Nick encostou-se à secretária e ficou a olhar fixamente para mim.
— Porque não ligaste para mim? — perguntou e reparei que a sua voz tinha
uma ligeira nota de desilusão. — Eu podia ter-te arranjado algo melhor.
Revirei os olhos.
— Nem sequer sabes qual é o meu papel na empresa.
— Está bem — concordou, aproximando-se de mim. — Para quem
trabalhas?
Algo me dizia que não ia achar graça nenhuma quando soubesse, mas também
não lhe podia mentir. Demoraria menos de um minuto a descobrir o que eu
fazia ali e não valia a pena estar a irritá-lo mais.
— Trabalho para o Simon… sou uma espécie de assistente dele.
O Nicholas respirou fundo e demorou uns segundos a expirar.
— Assistente dele? — repetiu em tom trocista, erguendo as sobrancelhas com
intenção. — E que significa isso, raios?
Fitei-o enquanto cruzava os braços.
— O que é que achas, Nicholas? Ajudo-o com a agenda dele, levo-lhe café…
— Café? — repetiu, pronunciando a palavra como se fosse um insulto.
— Sim, sabes, aquela coisa castanha que se bebe de manhã…
— Não te faças de engraçadinha comigo — interrompeu, sentando-se atrás da
secretária e olhando para mim. — Não devias estar a estudar? Continuas a
insistir em trabalhar quando não te faz falta nenhuma?
— A si não lhe faz falta nenhuma, senhor Leister — respondi, enfatizando o
nome dele.
O Nicholas olhou para mim como um diretor de escola olha para uma aluna
que se portou mal.
— Estás mesmo engraçada esta manhã… Fazer parvoíces durante o horário
laboral deixa-te de bom humor, é?
Não devíamos estar a fazer braço de ferro dentro das horas de trabalho, era
verdade, mas ele é que tinha chegado atrasado.
— Não, o que me deixa de bom humor é ver como ficas ciumento ao
constatar que me dou bem com os teus funcionários.
— Com o Roger, queres dizer.
— Não, com os teus funcionários — insisti.
— E não estou ciumento, só chateado por ver que estás a fazer com que as
pessoas que deviam esforçar-se para esta empresa ser bem-sucedida percam o seu
tempo.
— Ah, então agora a culpa por termos estado a matar o tempo enquanto
esperávamos que te dignasses a aparecer numa reunião marcada por ti é
minha…?
— Bem… tu não comeces a falar de culpas, Noah, senão ficamos aqui para
sempre.
Meu Deus, às vezes até me esquecia de como ele podia ser insuportável.
— Posso ir? — perguntei, fulminando-o com o olhar.
— Não.
Os seus olhos brilharam ao encontrarem os meus, com raiva, com fúria, com
desejo…
— Vejo que estás bem — afirmou depois de um silêncio tenso. O elogio
apanhou-me de surpresa. — Ainda bem que já recuperaste os quilos que tinhas
perdido, não gosto de ti tão magra.
— Estás a chamar-me gorda?
O Nick riu-se, e o som quase me provocava uma paragem cardíaca.
— Achas que estás gorda?
Não, claro que não estava gorda, nunca fui, e era verdade que fora
recuperando os quilos que perdera depois da nossa separação. Agora estava com
um ar mais saudável, não tão seco. Era bom sinal, significava que avançara com
a minha vida.
— Também não estás nada mal — disse, para evitar a sua pergunta. — Acho
que a nossa separação está a começar a fazer-te bem.
O meu tom era frio, até eu me apercebi disso. O Nick ficou calado,
observando-me, e presumo que a recordar os últimos momentos que passámos
juntos, que era exatamente o que eu estava a fazer.
— Queres mais alguma coisa? — perguntei, arrancando-nos daquela bolha
em que parecíamos ter-nos fechado. — Devia continuar a trabalhar.
O Nick assentiu sem tirar os olhos de cima de mim.
Que estaria a tentar dizer-me ao olhar para mim daquela maneira?
Virei-lhe as costas e fui até à porta. Antes de sair, voltei-me para trás.
— Devias ser mais simpático com os teus funcionários, Nicholas, são boas
pessoas e estavam todos muito ansiosos por te conhecerem.
O Nick atirou a cabeça para trás, pareceu pensar em alguma resposta, mas
depois limitou-se a assentir. A seguir vim-me embora e deixei-o sozinho.
Presumo que tivesse muito em que pensar.
Na noite seguinte, fui beber um copo com a Jenna. Havia várias noites que
não nos víamos, e tínhamos decidido ter uma só de mulheres para conversarmos
um pouco; eu porque precisava de sentir que ainda tinha dezanove anos, e a
Jenna porque precisava de deixar sair o seu «velho eu», a Jenna que não era
casada e que não costumava passar mais de três dias metida em casa.
Assim, como a noite era merecedora, vesti uma minissaia de couro vermelho,
meias transparentes e uma camisola canelada, quente e escura, que a minha mãe
me ofereceu, assim como as botas de tacão e cano alto. Fiz ondas no cabelo e
deixei-o solto sobre as costas, pintei os lábios da cor da saia. A Jenna ia ficar
orgulhosa de mim.
Depois de me debater durante algum tempo com o GPS, cheguei ao bar onde
combinara encontrar-me com ela. A minha amiga esperava-me à porta e
recebeu-me com um sorriso enorme.
— Estás muito bonita hoje. Vamos caçar, é? — perguntou muito
entusiasmada.
— O facto de me ter arranjado para estar bonita não tem nada que ver com
homens: vesti-me assim para mim; além disso, tu és casada.
A Jenna pareceu não ouvir uma única palavra.
— Este bar é bastante decente, não é tipo uma discoteca, sabes? Podemos
conversar, as luzes são ténues… Quanto apostas que em menos de meia hora já
temos os tipos todos a babar-se e a tentar captar a nossa atenção?
— Pensei que hoje íamos sair para beber uns copos, conversar e divertirmo-
nos sozinhas… Não estou interessada em arranjar um tipo, e, só para ficares um
pouco mais tranquila, tenho… uma cena com o meu chefe.
A Jenna arregalou os olhos.
— Desembucha! — gritou, mais entusiasmada ainda do que com a ideia de
caçar tipos num bar.
Encolhi os ombros como se não fosse nada importante.
— Paga-me o primeiro copo e conto-te tudo, mas aviso-te já que não há
muito para contar…
A Jenna assentiu ainda mais excitada e quase me arrastou para o interior do
bar. Não era muito grande, mas estava a abarrotar. Pediu uns shots de qualquer
coisa cor-de-rosa muito saborosa e sentámo-nos numa mesa afastada a um canto.
De repente, a grande cusca disse:
— Então? Conta-me tudo! Andas a dormir com ele? Andas a dormir com o
teu chefe?
— Não dormi com ele, só saímos para jantar e, bem… beijámo-nos… duas
vezes — esclareci.
A Jenna ficou a olhar para mim fixamente.
— Duas vezes? — repetiu num tom de voz que eu conhecia muito bem. —
Ah, não vás tão depressa, amiga, que ele ainda vai pensar que és uma ordinária
qualquer.
— Oh, cala-te! — disse, atirando-lhe um dos amendoins que nos serviram
com as bebidas.
A Jenna riu-se, mas continuou a olhar para mim como se fosse um bicho
vindo de outra galáxia.
— A sério, Noah, compreendo que para ti o sexo seja algo especial e essas
tretas todas, mas ir para a cama só por prazer também tem as suas vantagens.
Ri-me dela enquanto abanava a cabeça, divertida. Mas a Jenna não se dava por
vencida com facilidade e passou a hora seguinte a tentar arranjar-me um engate
para aquela noite. Quando ia apresentar-me o quinto rapaz do serão, olhei para
o relógio e decidi que estava na hora de me ir embora.
— Lamento, Jenna, mas, se amanhã quero estar na empresa com os olhos
abertos, tenho de ir. Deus queira que o Dom Convencido não volte a chamar-
me ao seu escritório aos gritos.
Ela soltou uma gargalhada.
— Nem te perguntei como estás em relação a ele — comentou com
curiosidade, mas ao mesmo tempo com cautela. Há muito tempo que o tema
Nicholas se transformara em algo que nos fazia sentir um pouco
desconfortáveis. Por mais amigas que fôssemos, a Jenna conhecia o Nick desde
que eram crianças e, apesar de ela sempre ter estado presente para mim, no
fundo não me perdoava por ter despedaçado o coração do seu amigo daquela
maneira.
— Desde que consigamos manter as distâncias, acho que fico bem — afirmei,
sabendo que estava a mentir com quantos dentes tinha na boca: a presença do
Nick afetava-me mais do que estava disposta a admitir.
Naquele momento, vi o Lion, alto e muito bonito, a entrar no bar. Não
demorou a avistar-nos, era como se tivéssemos um sinal sobre a cabeça.
Cumprimentei-o com um sorriso divertido, e a Jenna desviou-se para ele se
sentar ao seu lado.
— Tudo bem, Noah? — perguntou o marido da minha melhor amiga,
enquanto pousava a mão enorme no joelho dela.
— Estou ótima, mas já cansada — respondi, pousando o copo na mesa,
preparada para me levantar a seguir. Agora que sabia que a Jenna não ia ficar
sozinha, chegara a hora de me escapar.
Despedi-me deles e saí do bar em direção ao parque onde estacionara o carro.
Era mais tarde do que previra, mas sentia-me tranquila por ter cedido o lugar
ao Lion: toda a gente sabia o andamento que a Jenna tinha, e não me sentia com
forças para acompanhar o ritmo dela.
Entrei no carro e dirigi-me rapidamente para a autoestrada. Como era sexta-
feira à noite, o trânsito era intenso, por isso decidi que, em vez de me juntar ao
engarrafamento que tinha pela frente, era preferível optar por outro trajeto,
embora me levasse mais tempo.
Liguei o rádio para me distrair, e cerca de dez minutos depois comecei a sentir
qualquer coisa de estranho na condução do carro. A direção começou a prender
o volante, e tinha dificuldade em mantê-lo direito.
Raios!
Comecei a reduzir a velocidade, sabendo que me encontrava numa estrada
secundária, no meio do nada, o solo barrento e escorregadio por causa da chuva
miudinha que caíra durante praticamente todo o dia. Parei do lado direito da
berma e liguei os quatro piscas.
Tentei lembrar-me do que devia fazer nesta situação e saí do carro envolta
numa escuridão quase absoluta, interrompida apenas pelas luzes do carro; abri a
bagageira e procurei uma lanterna, o colete refletor e o triângulo. Mas, para
meu desânimo, não os encontrei. Usei a lanterna do telemóvel e procurei como
uma possuída por toda a bagageira, que estava cheia de tralha, mas… foi em
vão.
Um carro passou por mim a toda a velocidade e fez-me dar um grito e um
salto de quase um metro.
— Grande cretino! — gritei-lhe no meio do nada.
Apontei a luz do telemóvel para as rodas do meu Audi até constatar que,
efetivamente, tinha um pneu furado. Na bagageira não tinha um pneu
suplente, um macaco nem nada que me pudesse ajudar naquela situação.
Porquê? Porque todas essas coisas estavam no meu calhambeque antigo.
Amaldiçoei-me por ter sido tão estúpida ao ponto de me esquecer de mudar as
coisas de um carro para o outro.
Olhei para o telemóvel e liguei à única pessoa que sabia que viria ajudar-me
assim que lhe ligasse.
O telemóvel só tocou uma vez.
27
NICK
Nem vou falar muito deste breve encontro com o Nick, porque não sei o que
magoou mais, que tentasse beijar-me ou que me prometesse que não voltaria a
fazê-lo.
Gostei de ter tido o autocontrolo para impedir que alguma coisa acontecesse,
principalmente porque sabia como me custara recuperar depois de termos ido
para a cama nas últimas férias. O Nicholas era assim, um homem de impulsos,
que fazia o que queria sem pensar nas consequências. Se queria sexo, que fosse à
procura dele com a Sophia… ora! Só de pensar nisso, dava-me vontade de
arrancar todos os cabelos da cabeça, mas não vou ser essa miúda, não, não vou
ser aquela a quem o namorado deixou, mas que vai para a cama com ele sempre
que ele quer; não, estava fora de questão.
Por isso, concentrei-me na pessoa que queria algo mais do que levar-me para a
cama, que me convidara para a festa de inauguração da LRB. Estava um pouco
nervosa com a festa, sobretudo porque o Nicholas levaria a Sophia, e não tinha a
certeza se iria suportar vê-los.
Quando o dia chegou, pus um vestido azul com pequenas incrustações, curto
e justo ao corpo. Há um ano que não o podia vestir precisamente porque estava
demasiado magra, e cheguei ao ponto de ter de encher o sutiã com chumaços
para o decote me ficar bem. Quando me olhei ao espelho sorri, porque agora
começava a reconhecer a imagem que ele me devolvia: sim, os meus seios
tinham voltado, os mesmos que há uns meses tinham desaparecido e que agora,
por sorte, tinham decidido regressar.
Calcei uns sapatos de salto que a Jenna me dera na semana anterior, uns
Louboutin cor de cereja, que combinavam com uma bolsa da mesma cor com
cristais aplicados. Peguei no casaco preto, comprido e elegante, presente de
Natal da minha mãe, e, quando ouvi o apito do carro do Simon, saí.
Quando cheguei à rua, o Simon saiu do carro para me acompanhar.
— Estás maravilhosa — comentou, colocando as mãos na minha cintura e
puxando-me para a sua boca.
Oh, meu Deus, porque ficava sempre tão constrangida quando ele fazia
isto?…
Afastei-me dele um segundo depois e fechei o casaco, já que estava bastante
vento na rua. O carro do Simon era um bonito Porsche clássico, cinzento, e não
pude evitar recordar o dia em que fiz o Nick perder o seu Ferrari… Ainda não
sabia como foi capaz de me perdoar, mas naquela altura estávamos a apaixonar-
nos.
O que faria o Simon se eu batesse ou arranhasse o seu precioso carro?
Abriu-me a porta como um verdadeiro cavalheiro e fomos juntos em direção
ao local da festa.
O sítio era enorme, daqueles com tetos altos e bonitos desenhos lá pintados.
Fiquei surpreendida ao ver ali tanta gente, porque a empresa era nova, apesar de
ser uma de muitas da corporação, claro. Reconheci algumas pessoas que me
cumprimentaram e perguntaram pela minha mãe e pelo Will. Agora que o
Nick era o chefe, o William preferiu dar um passo atrás e deixá-lo à vontade;
além disso, com a sua idade, andava suficientemente atrapalhado a ser pai de
uma menina pequena. Olhei distraidamente em redor, enquanto o Simon
pegava em dois copos de champanhe.
— Procuras alguém?
Bolas.
Fixei os olhos nele e abanei a cabeça enquanto levava o copo aos lábios.
— Estava só a admirar este lugar… é bonito — respondi, antes de beber um
novo gole do meu copo.
Como o Simon tinha um cargo importante na empresa, era sua obrigação
cumprimentar quase toda a gente que ali estava. Inicialmente, ainda me
arrastou com ele, mas ao fim de uma hora decidi que já chegava e fui até ao bar
com a desculpa de que me doíam um pouco os pés. No instante em que a
empregada do bar me trocava o copo vazio por outro com champanhe rosado,
frio e borbulhante, os meus olhos desviaram-se quase como se fossem atraídos
para a porta da entrada por um íman.
Pois bem… ali estavam eles, o rei e a rainha do baile.
A Sophia estava esplêndida, com um vestido de noite elegante, comprido,
bege. Trazia o cabelo apanhado de um dos lados da cabeça, caído sobre o ombro
em ondas escuras. O seu rosto, por outro lado, reluzia com a luz da sala.
Ele estava… soberbo, sim, soberbo era a palavra. Fato cinzento-escuro, camisa
branca, gravata azul-céu e aquela cara que convidava ao pecado, a fazer coisas
más, perigosas e proibidas.
Por sorte, as luzes baixaram de repente para dar início ao jantar, e o Simon
apareceu para me acompanhar até à mesa. Dedicou-me toda a sua atenção;
conversámos, comemos, rimo-nos um pouco e depois da sobremesa levou-me
para dançar na pista onde já estava o resto dos convidados e colegas de trabalho.
Apesar de termos ido juntos, queríamos ser discretos à frente das pessoas, para
não chamarmos a atenção para a nossa relação incipiente, por isso comportámo-
nos como se fôssemos amigos. Mentiria, no entanto, se dissesse que não me deu
um certo prazer ver que o Nicholas não achou graça nenhuma a ver-nos juntos.
A certa altura, estava sozinha a beber um copo, talvez o quinto da noite, e foi
nesse momento que o Nick decidiu aproximar-se. Não vi a Sophia em lado
nenhum, mas senti a sua presença; era como se estivesse algures a observar-nos.
O Simon tinha desaparecido, e não fazia ideia de onde se encontrava, mas eu
estava feliz na companhia do meu amigo barman.
— Chegaste bem ontem à noite? — perguntou o Nick, colocando-se ao meu
lado no bar e olhando para mim com o sobrolho franzido.
— Cheguei perfeitamente bem, obrigada. Tudo correu sobre rodas —
respondi, sem conseguir evitar rir-me da minha própria piada. — Devias
dedicar-te a isso — acrescentei, bebendo mais um gole.
— A mudar pneus? — perguntou ele, olhando para mim divertido. — Bolas,
ainda bem que não ponho o meu futuro nas tuas mãos…
Sorri-lhe por cortesia e levei novamente o copo aos lábios, algo que o Nicholas
observou com nervosismo.
— Vieste com o Simon — disse. Era mais uma afirmação do que uma
pergunta.
— Que perspicaz… Deduziste isso porque nos viste sentados juntos ou
porque não me separei dele durante toda a noite?
— Deduzi-o desde o primeiro instante em que vos vi no escritório. Achei que
não devia haver nada entre os dois… Podia haver demissões só por causa disso.
Levantei os olhos em direção a ele e percebi que estava muito mais tenso do
que tentava aparentar à primeira vista.
— De quem gostavas de te ver livre primeiro, dele ou de mim?
— Sabes perfeitamente qual é a resposta — disse, fixando os olhos nos meus
lábios. Eu fiz o mesmo, mas logo a seguir olhei para os dele. Tinha de me
concentrar.
— A única coisa que sei é que neste momento estou a começar um novo
capítulo na minha vida — comentei sem afastar os olhos dos dele. — Como tu
fizeste há coisa de um ano. Claro que estou muito feliz por ti, Nick, adoro ver
que voltaste a namorar, que estás feliz e que conseguiste ter a rapariga por quem
te apaixonaste desde a primeira vez em a viste. — As minhas palavras saíram
com tanto veneno que dei graças a todos os anjos e santos pelo facto de o Simon
ter aparecido naquele instante, porque não fazia ideia do que podia continuar a
dizer. Perdera o filtro, e isso podia ser muito perigoso.
— Tudo bem? — perguntou ele, pondo-se ao meu lado.
O Nicholas voltou-se para o meu chefe.
— Tudo ótimo — respondeu, com um brilho estranho nos olhos. — Vais à
discoteca quando isto acabar?
O Simon olhou para mim, que não conseguia desviar os olhos do Nick. O que
diabo estava a tramar?
— Queres ir, Noah?
Sair com ele e com a Sophia? Não, nem morta.
Mas, antes de poder responder, a Sophia apareceu vinda do nada e entrelaçou o
braço no do Nick, que se retesou involuntariamente perante o seu toque.
— Olá, meninos — cumprimentou com um sorriso evidentemente falso.
Eu fiz o mesmo, deliciando-me com a possibilidade de me vingar durante o
serão.
— Por acaso apetece-me muito — respondi, pondo o braço em redor da
cintura do Simon, um gesto que ele retribuiu pondo o braço sobre os meus
ombros. O Nick não deixou passar o detalhe em branco.
— Então encontramo-nos lá daqui a pouco — sibilou.
Depois disto, foi uma questão de se despedir dos convidados, não de todos,
claro, e de ver o Nick subir ao pódio e agradecer a presença de todos na festa.
Ali em cima, com o seu fato e o porte impecáveis, com a expressão de triunfo
nos olhos, era a personificação da perfeição. Transformara-se naquilo que sempre
lutara para ser, superara todas as expectativas e estava a dominar o mundo.
Senti-me orgulhosa dele, por mais que quisesse cortá-lo aos bocadinhos e de
os fritar um a um.
Segui o Simon até à rua, para o carro, e fomos até ao sítio para onde o Nick
nos convidara. Era uma discoteca muito moderna, a cerca de dez minutos do
local onde nos encontrávamos. Ao chegar, fiquei contente por tirar o casaco e
pedir mais um copo.
O Simon observou-me, divertido, quando chamei o empregado e pedi dois
shots de tequila. Enquanto preparava os dois copos pequenos à nossa frente,
aproximei-me dele. A música e a pouca luz que ali havia deram-me ânimo para
avançar um passo e pousar os lábios sobre os dele, que me responderam
automaticamente com entusiasmo. Quando meteu a língua dentro da minha
boca senti o sabor a álcool e deixei que a minha língua fosse ao encontro da sua.
— Dois shots de tequila — anunciou o empregado, obrigando-nos a separar.
O Simon beijava… bem? Sim, beijava bem.
Lambi o dorso da mão sem qualquer vergonha, deitei o sal e, um segundo
depois, estendi-o ao meu acompanhante, que tinha ficado a olhar para mim,
pasmado.
— O que foi? — perguntei, pegando no copo com uma mão e no gomo de
limão com a outra, preparando-me.
O Simon riu-se e imitou-me.
— Tu não fazes a menor ideia do que provocas nos homens, pois não? —
perguntou, aproximando-se de mim.
A verdade é que não fazia; o único homem que achei que sentira alguma coisa
por mim acabara por me confessar que se apaixonara por outra.
E por falar do rei de Roma… O meu olhar desviou-se naquele instante para o
casal que acabava de entrar pela porta. Voltei a olhar para o Simon com um
sorriso forçado nos lábios, bati com o meu copo no dele e levei-o aos lábios para
beber o conteúdo de um trago só. A tequila queimou-me a garganta, e, antes de
ter vontade de vomitar, levei o limão à boca e mordi até o devorar.
Vi pelo canto do olho que o Nick nos observava e se dirigia a nós, com a
Sophia atrás. Tive vontade de desatar a correr na direção oposta, mas pensei
melhor e fiquei junto ao bar. O Simon estava de costas para eles e não se
apercebeu de que se aproximavam, por isso, quando o Nick chegou junto a nós,
eu tinha o Simon praticamente a comer-me a orelha.
Ri-me como se tivesse acabado de me contar a melhor piada do mundo e
depois peguei-lhe no braço para que se voltasse para o seu chefe.
— Vejo que começaram sem nós — comentou o Nick, fazendo sinal ao
empregado para nos servir mais uma rodada.
«Ai, bolas, mais um shot!» O meu corpo não ia aguentar.
— Desculpa, acho que não fomos apresentados — disse o Simon à Sophia.
O Nick olhou para mim por um instante e a seguir voltou-se para fazer as
apresentações.
— Simon, Sophia, Sophia, Simon, um dos investidores da LRB, já te falei
dele… — apresentou-os de forma bastante informal.
O Nick nem sequer olhava para ela; mais do que isso, estava tão focado em
mim que até me senti violentada, porque o Simon parecia estar a tomar nota de
cada uma das palavras pronunciadas. Estendi o braço para pegar no shot, mas o
Nick adiantou-se, pegou no copo e levou-os aos lábios, sem sal nem limão,
seguindo os costumes antigos.
Talvez fosse boa ideia deixar de beber álcool por agora, por isso até agradeci
que naquele instante começasse a dar uma música conhecida. Assim tinha a
desculpa perfeita para sair dali.
— Danças comigo, Simon? — perguntei, rodeando-lhe o braço e
pestanejando com a intenção de ser provocante.
— Claro — respondeu, pousando o copo no balcão e desculpando-se com os
demais. Reparei no olhar glacial que o Nick dirigiu à minha nuca, tão fixo que
quase senti o buraco que escavava na minha pele.
Na pista de dança, as pessoas saltavam, e eu movia-me ao ritmo da música.
Virei as costas ao Simon e deixei que me segurasse pela cintura. Com a mão no
meu estômago, senti-me estremecer quando a boca dele começou a mordiscar-
me o pescoço, de uma forma maravilhosa, sensual e nada, mas mesmo nada
decorosa.
— A agir assim, vais conseguir dar cabo de mim, pequena — disse ele, e a
forma como disse esta última palavra fez-me lembrar quando o Nick me
chamava «sardas»… Há demasiado tempo que não ouvia essa palavra, naquele
tom.
Os meus olhos desviaram-se automaticamente para o bar, procurando-o, mas
não estava ali. Onde diabo se metera? Estava a montar aquele pequeno
espetáculo para ele e, ao aperceber-me de que não me observava, fiquei irritada,
muitíssimo irritada. Girei sobre mim mesma e, antes que o Simon voltasse a
beijar-me daquele modo tão escandaloso, pedi desculpa e disse que precisava de
ir à casa de banho. Saí da pista, furiosa, a fumegar e também muito, mas muito
embriagada, devo dizer, porque a tequila me subiu à cabeça demasiado
depressa. Mas, antes de conseguir entrar na casa de banho, antes até de chegar à
longa fila de raparigas que esperavam para entrar, uma mão puxou-me pelo
pulso com toda a força e obrigou-me a entrar num corredor a abarrotar de
gente, com candeeiros pequenos intermitentes em tons de vermelho, verde e
azul. Senti-me um pouco zonza, mas então as minhas costas chocaram contra a
parede, e uma boca que conhecia demasiado bem abateu-se sobre a minha,
enquanto um corpo duro, fibroso e quente me comprimia contra a parede, com
um joelho entre as minhas pernas, apertando-me com força.
Inicialmente ainda me debati, não queria que me tocasse, não, nem morta.
Estava irritada, zangada porque ele estava com ela, furiosa porque ele decidira
não assistir à dança que lhe dedicara e colérica por não ter feito nada que
impedisse o Simon de me tocar. Onde estava o Nick que eu conhecia? O que era
feito dele?
A mão agarrou-me nos pulsos, levantou-mos acima da cabeça e fixou-os ali.
Mal me podia mexer, porque a anca dele me aprisionara contra a parede. Com a
outra mão, segurou-me no queixo e acariciou-me o lábio inferior com o polegar.
Não disse nada, absolutamente nada, limitou-se a baixar a cabeça e a introduzir
a língua na minha boca, tão fundo que quase me tocava nas amígdalas. A certa
altura, os nossos olhos encontraram-se na penumbra, e o que vi neles fez-me
estremecer: ele estava a sofrer pelo mesmo que eu sofria, pelo espaço, o imenso
vazio que se instalara entre nós, quase impossível de atravessar, um abismo que
se rasgara entre as nossas vidas. Ele estava com a Sophia há muito tempo, mais
do que a duração da nossa relação, e eu… bem, eu dera um passo gigantesco,
porque passei de não conseguir sequer conversar com alguém do sexo oposto
para ter encontros com o meu chefe e beijá-lo.
O que seria? O que nos ajudaria a perceber que precisávamos de estar juntos?
Ainda restava alguma coisa para salvar? Algo para recuperar? Restaria ainda
alguma coisa a fazer?
Segundo parecia, não.
O Nick pareceu ouvir os meus pensamentos, foi como se nos tivéssemos
ligado mentalmente através daquele beijo. Ao ver que deixava de me debater,
libertou-me as mãos, que pousei nos seus ombros. A seguir puxei-o para o meu
corpo, abracei-o pelo pescoço e comprimi-me contra ele, desejosa de o sentir
encostado a mim. Precisava de sentir que ele não ia desaparecer. Demos um
beijo desesperado, que não devia ter acontecido, um beijo que já era proibido
entre nós.
Separou-se de mim uns segundos depois e acariciou-me a orelha com os
lábios.
— Ele nunca te vai fazer sentir como eu faço, nunca te esqueças disto —
sussurrou contra a minha pele.
Não soube o que responder… O que podia dizer-lhe? Que estava enganado?
Ambos sabíamos que aquilo não era correto, nem nunca seria.
— Noah… — disse, ao ver que ficara calada. A realidade das suas palavras
atingira-me com força, deixou-me aturdida sem me conseguir mexer.
Por que razão parecia estar a fazer-me uma pergunta ao dizer assim o meu
nome, uma pergunta muito importante?
Antes de conseguir dizer o que quer que fosse, senti uma pontada no
estômago, algo forte e doloroso. Empurrei-o com as mãos débeis, voltei-me para
o lado e comecei a vomitar.
O Nicholas demorou um segundo a mais a reagir, mas segurou-me o rabo de
cavalo para o cabelo não me cair para o rosto; segurou-me para que não caísse
para a frente enquanto expulsava o maldito álcool que bebi durante toda a
noite. Continuei a vomitar durante algum tempo, obrigando-me a não pensar
na sujidade que estava a deixar no chão daquele corredor mal iluminado. Pelo
menos não se via nada, e a música abafava o som dos meus vómitos.
Quando achei finalmente que tinha acabado, levantei-me, e o Nick levou-me
para a rua pela porta das traseiras.
— Não, não — recusei. Queria voltar lá para dentro, o Simon estava lá e ia
ficar preocupado.
— Vou levar-te a casa agora mesmo — disse ele, naquele tom de voz que não
permitia resposta.
Depois de o Nick lhe ligar, o Steve apareceu na esquina com o carro. Ele
entrou comigo para o banco de trás.
— Já estás melhor? — perguntou-me com um tom de voz estranho.
A verdade é que não estava melhor, não. Queria ir para casa e beber um copo
gigante de água; a seguir queria lavar os dentes e tapar-me com uma manta
quentinha, porque estava congelada. Comecei a tiritar, quase com espasmos.
Raios… aquilo batera-me com força.
O Nick puxou-me contra si, tirou o casaco e pôs-mo sobre os ombros; a seguir
abraçou-me, até que tive de apoiar a cabeça no ombro dele, onde adormeci, ou
fiquei inconsciente, quase de imediato.
A reunião com todos os membros do sector foi uma tortura. A mim calhou-
me ficar encarregada da projeção de imagens, o que me punha no centro das
atenções. Estava de pé, enquanto os restantes me observavam dos seus lugares,
principalmente o Nick. Se ele não controlasse a maneira como estava a olhar
para mim, o Simon e toda a gente do escritório ia acabar por desconfiar de
alguma coisa, e não havia nada que eu desejasse menos. Quando a reunião
acabou, o Nicholas levantou-se e pediu-nos que ficássemos mais uns segundos.
— Quero abordar um tema delicado, mas que creio ser importante. — Todos
olhámos para ele com atenção. Não fazíamos ideia por que motivo ficara
subitamente tão frio. — Não sei se alguns de vós não estão a par das normas
desta empresa, por isso mesmo mandei fazer cópias para cada um dos presentes,
com o objetivo de que as façam chegar também ao vosso pessoal. — Toda a
gente o fitava com atenção, e o Nicholas retribuía os olhares de forma
profissional e distante. — A confraternização entre funcionários é estritamente
proibida.
Arregalei os olhos, surpreendida. Vi que os olhos do Simon estavam fixos no
Nicholas e, de repente, abateu-se sobre a sala um silêncio constrangedor.
— É uma norma que sempre prevaleceu em todas as empresas da minha
família e considero-a importante para o bom funcionamento das mesmas. —
Percorreu cada um de nós com o olhar, parando primeiro no Simon e depois em
mim. — Se esta noção ficou bem clara, podem continuar o vosso trabalho,
obrigado.
Um rumor espalhou-se pela sala à medida que as pessoas se apressavam para
sair da reunião o quando antes.
Meu Deus, esta norma era ridícula!
Voltei-me para o Simon, vi que se levantava, mas que não fazia tenção de se
dirigir ao seu gabinete.
O Nicholas acabou de guardar as suas coisas na pasta e, ao levantar os olhos e
ver-nos ali, deixou que o lápis que tinha entre os dedos caísse sobre a mesa de
vidro; endireitou-se disposto a ouvir o que o Simon estava prestes a dizer-lhe.
— Sabes uma coisa, Nicholas? — perguntou, contornando a mesa e
aproximando-se dele.
Olhei para ambos com nervosismo, sem saber muito bem o que fazer ou dizer.
Não devia ter-me envolvido com ele na noite passada, não à frente do Nick.
Também não devia ter falado do Simon no elevador. Caramba, tinha-lhe dado
de bandeja a oportunidade de nos mandar aquilo à cara!
— Parece-me muito bem que exijas que os funcionários cumpram as tuas
regras estúpidas, mas não te esqueças de que sou sócio desta empresa, por isso,
podes enfiar as tuas ordens em relação à minha vida privada naquele sítio que
bem sabes.
O Nicholas não pareceu ficar surpreendido com aquele ataque verbal; mais do
que isso, ergueu-se em toda a sua altura e fez-lhe frente e sem a menor
consideração.
— Bem, eu tenho sessenta por cento dos ativos, e, uma vez que os restantes
quarenta são partilhados entre ti e o Baxwell, isso só te confere vinte por cento.
No contrato da sociedade ficou estabelecido com toda a clareza que a empresa
está sob a jurisdição das Empresas Leister, por isso, se queres marcar uma
reunião com a direção, ou seja, comigo e com os meus conselheiros, força, não
vejo qualquer inconveniente.
«Merda.»
— Nicholas, não estás a ser justo — protestei entre dentes. Não podia
acreditar no que estava a acontecer.
— Se alguma vez algum dos dois quiser dirigir uma empresa, podem fazer
com ela o que vos der na gana, mas até lá as coisas são o que são. Se vos vir
juntos mais alguma vez numa situação comprometedora ou que me faça
desconfiar, acreditar ou simplesmente duvidar se mantêm uma relação
sentimental ou não, ponho-vos aos dois no olho da rua. Entendido?
Fiquei a olhar para o Simon e tive pena dele. Via-se que morria de vontade de
partir a cara ao Nicholas, mas, por mais que a situação merecesse, não ia bater
no chefe. Não podia fazer nem dizer nada, já lhe falara bastante mal e, bem
vistas as coisas, temia que o Nicholas só estivesse à espera de uma oportunidade
para o pôr fora da empresa.
O Simon pegou nas suas coisas e saiu da sala, batendo com a porta.
O Nicholas voltou-se para mim, que continuava ali de pé como uma idiota,
com o sangue a ferver de raiva e a sentir-me profundamente impotente.
Naquele momento, odiei-o por ser tão egoísta, por não me querer para ele, mas
também por não me deixar ser de mais ninguém, odiei-o por continuar a
brincar comigo, apesar de saber que o meu coração ainda chorava por ele.
— Também vais sair daqui como uma adolescente aborrecida? Porque não
podia importar-me menos com isso — disse, reunindo as suas coisas como se
não fosse nada.
— Mas que raio de bicho te mordeu? — perguntei bruscamente, levantando
o tom de voz e cerrando os punhos com força.
O Nicholas dirigiu-me um olhar venenoso.
— Estou a tentar dirigir uma empresa. Não vou permitir que te deites com
um dos meus sócios.
— Mas isso é um assunto que não te diz respeito! — gritei.
— Tu és incrível — afirmou, baixando o tom e olhando para mim com raiva.
— Às vezes tenho mesmo dificuldade em lembrar-me por que motivo estive
apaixonado por ti. Penso, volto a pensar, e tudo se resume a umas centelhas
bastante excitantes, é verdade, mas que não compensam nem de longe nem de
perto todos os momentos de merda que me fizeste passar.
Desde quando isto se transformara numa conversa sobre nós?
— Tu falas como se fosses um maldito santo! Deixa-me recordar-te que fui
para a cama com outro porque me fizeram acreditar que tu tinhas feito o mesmo
com duas mulheres, nas minhas costas. O que eu fiz foi um erro, mas e tu? O
que me dizes de ti, Nicholas? Quantas mulheres levaste para a cama desde que
nos separámos? Até a mim, meu Deus, deixei que fizesses comigo tudo o que
quiseste e, no entanto, namoravas com outra! Eu contigo fui ao fundo do poço.
Tratas-me como se eu fosse tua propriedade, como se fosse um brinquedo com
que te entreténs quando estás entediado! Não me deixas seguir em frente com a
minha vida, e isso é de um egoísmo profundo!
O Nicholas deixou as coisas em cima da mesa e dirigiu-se a mim. Estava
muito irritada, respirava com dificuldade, e as mãos tremiam-me… Tinha
desabafado, precisava de deitar aquilo para fora, aquilo e muito mais, guardar as
coisas dentro de nós não servia de nada.
— Sabes porquê? Porque não planeio deixar que sigas em frente até eu
conseguir fazê-lo. As coisas são assim; não quero ver-te feliz, não quero ver-te
com ninguém, porque eu ainda não terminei a minha história contigo!
Empurrei-o com todas as minhas forças e afastei-me até chegar ao outro lado
da sala.
— Não voltas a tocar-me — disse entre dentes. O resultado das minhas
palavras foi um brilho predador nas suas pupilas dilatadas. — Achas que podes
fazer comigo aquilo que te apetecer, mas não é assim; enquanto estiveres com
outra, o beijo que demos ontem foi o último.
O Nicholas pôs-se à minha frente e pousou as mãos na parede, ao lado da
minha cabeça.
— Não suporto ver-te com este tipo, fico fora de mim — confessou, olhando-
me fixamente, com a paixão e a determinação espelhadas nos seus olhos.
Soltei uma risada irónica.
— Pois, eu também não fico propriamente exultante por ter ver com a
Sophia.
O Nick ignorou o meu comentário e aproximou-se um pouco mais.
— Preciso de estar dentro de ti — disse então, sem qualquer vergonha.
— Não.
Ofereceu-me um daqueles sorrisos de esguelha que tanto me agradavam.
— Sabes perfeitamente que posso fazer-te mudar de opinião tão depressa que
nem saberás o que te aconteceu. — Ao dizer isto, segurou-me no queixo e, com
o polegar, acariciou a maçã do meu rosto até chegar ao lábio inferior.
Peguei-lhe na mão e afastei-a.
— Não vou jogar este jogo outra vez — declarei, afastando-me dele. — Isto
não tem solução, Nicholas, só vamos magoar-nos mais, e eu já sofri tudo o que o
meu corpo consegue suportar, não vou meter mais pessoas nesta história. Tu
estás com a Sophia, eu estou a começar algo com o Simon, e é essa a nossa
realidade.
O Nicholas abanou a cabeça, novamente furioso.
— Não vais começar nada com ele, Noah, pelo menos não aqui — ameaçou-
me sem pejo.
Olhei em redor. Bem, se ele punha as coisas nestes termos…
— Nesse caso, vou-me embora. Despeço-me — disse, deixando-o petrificado.
Afastei-me dele e saí, fechando a porta atrás de mim.
Pronto, estava feito… Não tinha mais nenhum motivo para voltar a vê-lo.
31
NOAH
Não fui atrás dela quando saiu da sala de reuniões, não era o melhor momento,
sabia bem que a tinha tirado do sério. Comportara-me como um autêntico
sacana, mas pensar na Noah a fazer com outro o que fazia comigo deixava-me
furioso e de uma forma que me fazia questionar o meu próprio juízo. Sabia que
eu próprio a tinha impelido a virar a página e sabia também que isso significava
que devia deixá-la refazer a sua vida com outro, mas, desde que a vi com o
Simon, não parava de me questionar se não estaria a enganar-me.
Passei a noite às voltas com esta ideia e no dia seguinte esperei com
impaciência pelo momento em que poderia falar a sós com ela. Para minha
surpresa, foi a Noah quem decidiu apresentar-se no meu escritório.
Nem sequer bateu à porta, coisa que só conseguiu avivar o meu desejo de a
beijar. Observei-a de cima abaixo sem disfarçar. As calças que trazia colavam-se
ao corpo como uma segunda pele, e a blusa, embora elegante, ajustava-se
demasiado às curvas bonitas que eu conhecia tão bem. Tinha as faces rosadas e
os lábios grossos, um pouco inchados. Bastou-me olhar para ela de relance para
saber que passara a noite a chorar.
Aproximou-se e na mão trazia um papel que deixou em cima da secretária.
— É a minha carta de demissão. Como trabalho a tempo parcial, não preciso
de dar as duas semanas à casa. O Simon desenrasca-se sozinho até que decidam
contratar outra pessoa, isso se vos interessar ter mais alguém — disse sem olhar
nos meus olhos.
«Raios!»
Levantei-me e, quando me encaminhei na direção dela, virou-se com a clara
intenção se ir embora depressa. Estendi o braço e puxei-lhe pelo punho na
minha direção.
— Espera, porra — ordenei entre dentes. Encostei-me à secretária para não
ter de a olhar nos olhos, e ela comprimiu os lábios com força, libertou-se com
um puxão e cruzou os braços sobre o peito. — Não deixes o trabalho, Noah,
não era minha intenção que te despedisses.
— Pois, mas quero sair… preciso de sair daqui — disse, olhando-me
fixamente.
— Porquê? Porque haverias de querer deixar um emprego que te abre mais
portas do que qualquer outro que possas encontrar? A sério que preferes ficar
sem um bom ordenado por causa de um idiota como o Simon? Tinha-te por
mais inteligente do que isso.
— Não é por ele, Nicholas, é por ti. Não quero voltar a ver-te, por isso vou-
me embora.
— Espera, espera um segundo — pedi, apressando-me a segurar-lhe na mão
para que não continuasse a afastar-se de mim.
Observei os seus olhos cor de mel durante alguns instantes, e a minha mente
começou a contar as sardas do nariz, embora soubesse quantas eram: vinte e oito
sardas só no nariz… Não queria deixar de ver estas sardas, não queria deixar de
a ver a ela.
— Acho que não lidámos muito bem com isto, pois não?
A Noah olhou para o chão durante um segundo e depois voltou a concentrar-
se em mim.
— Só sabemos magoar-nos… e eu… — Os seus olhos humedeceram-se, e vi
que mordia o lábio com força; não queria desatar a chorar à minha frente, mas
conhecia-a tão bem, sabia que era uma questão de segundos até acabar por
perder o controlo. — Preciso de ultrapassar isto.
A sua voz foi um sussurro que só eu, que estava à frente dela, consegui escutar
com clareza.
Puxei-a instintivamente e abracei-a. Enterrei o rosto no seu pescoço e inspirei
o aroma a morango que a sua pele emanava.
— Tenho tantas saudades tuas… — confessou então contra o meu peito, e as
palavras eram como punhais que se cravavam na minha alma.
Sem dizer nada, fechei o punho entre o cabelo dela, puxei-a para trás e roubei-
lhe um beijo, um beijo de que precisava naquele momento, que tinha de lhe dar
antes de dizer o que ia dizer. Não foi um beijo profundo, não foi um beijo que
procurava algo mais do que simples carinho, amor e saudade. Os meus lábios
comprimiram os seus e selaram uma espécie de promessa.
— Não há nada que possamos fazer para mudar o que aconteceu — disse,
admirando o seu rosto e detendo-me em cada detalhe. — E gostava muito de
pensar que a raiva que carrego dentro de mim um dia vai desaparecer, espero
que desapareça, Noah, a sério que sim, mas neste momento parece-me uma
coisa impossível.
Ela ficou a escutar-me atentamente.
— Nunca me vais perdoar pelo que fiz, pois não? — perguntou com a voz
trémula.
— De todas as coisas que podias ter feito… enganar-me com outra pessoa era
a única capaz de acabar com o que havia entre nós.
Ainda agora, depois de tanto tempo, só de pensar nisto sentia uma dor
insuportável.
— Eu sei… — concordou, secando o rosto com os dedos.
Ficámos imersos num silêncio estranho, um silêncio que não era
constrangedor, mas que parecia o prelúdio de uma decisão importante. Havia
uma coisa que precisava de dizer, algo que não me saía da cabeça desde há
algum tempo e que não era capaz de esquecer.
— Noah… o que aconteceu em casa do meu pai…
Ela apressou-se a interromper-me.
— Estás arrependido, eu sei, não precisas de o dizer.
— Não, não estou arrependido, muito pelo contrário, acho que foi uma forma
bonita de terminar a nossa história, não achas? No dia seguinte quis falar
contigo, perguntar-te se estavas bem, mas desapareceste e também não atendias
as minhas chamadas… Acabei por achar que era melhor assim.
Quando levantou os olhos para me procurar, a luz que entrava pela janela
refletiu-se no seu olhar. Gostaria de ter visto nele outra coisa que não esta dor
que parecia ser tão profunda como a minha. Como podíamos sofrer tanto
estando juntos e também estando separados?
— Vou-me embora esta tarde… e não sei bem quando volto. Podes ficar
descansada que nunca mais voltarei a tocar-te, Noah.
A Noah inspirou profundamente, como se quisesse que o ar nos pulmões a
ajudasse a evitar o que se via tão claramente nos seus olhos humedecidos.
— O pior de tudo é que, apesar do que aconteceu, não quero que te vás
embora — afirmou, tentando controlar-se. A minha mão voltou a agir por
vontade própria e acariciou-lhe o rosto. Os olhos dela fecharam-se por um
segundo e depois pousaram sobre o meu pulso.
Antes de poder fazer o que quer que fosse, segurou-mo entre os dedos e virou-
o para ver a tatuagem que eu fizera há um ano e meio. Olhou para mim durante
um instante e regressámos juntos àquela noite especial… em que a Noah se
entretivera a escrever palavras de amor sobre a minha pele.
«És meu», escrevera no meu pulso, e eu corri a tatuar estas duas palavras,
como se por estarem gravadas para sempre na minha pele se tornassem uma
realidade. De repente, a Noah pousou os lábios mesmo por cima da tatuagem, e
toda a minha pele vibrou como se tivesse recebido uma descarga elétrica. O pior
de tudo é que reparei que o muro que ergui começava a desmoronar-se e senti
medo… medo de voltar a cair, de cometer o mesmo erro; medo de me sentir
exposto outra vez, de voltar a ficar sem o controlo que tanto me custara
conquistar.
«Vais arrepender-te de a teres feito, sei que vais. Vais odiar-me porque ela te
vai fazer lembrar de mim mesmo quando não queiras.»
As palavras que a Noah me dissera depois de descobrir que eu fizera a
tatuagem acorreram-me então como se tivessem sido ditas no dia anterior. Até
parecia que sabia que o que estava a dizer um dia seria verdade.
— Tenho de ir.
Ia contorná-la para partir, ia sair por aquela porta e só voltaria quando fosse
estritamente necessário, mas a Noah pareceu entrar em pânico, e as suas mãos
agarraram os meus braços com força.
— Não, não, não, não — começou a repetir, enquanto as lágrimas lhe
toldavam a visão. Os seus olhos estavam tão inchados que a cor de mel se
transformara num elixir líquido e fundido que tentava impedir o impossível
com todas as suas forças. — Por favor… por favor, vamos tentar mais uma vez,
só mais uma vez, Nicholas — suplicou, cravando-me as unhas na pele.
Cerrei os maxilares com força, não queria nada daquilo. Maldita! Porque tinha
de tornar tudo mais complicado?
— Não se trata de tentar nada, Noah, o que aconteceu acabou com a nossa
relação.
— Eu sei que podes voltar a amar-me… sei que sim; não amas a Sophia, é a
mim que amas, só a mim, lembras-te? Disseste que me amarias para sempre,
acontecesse o que acontecesse; não to pedi porque esperei que o tempo nos
curasse aos dois, mas isso não aconteceu, o que só pode significar uma coisa.
Agora, sim, faço-o, peço-te que nos dês mais uma oportunidade.
— Não me peças uma coisa que não te posso dar — interrompi, segurando-a
pelos punhos e afastando-a de mim. Apertei-lhe as mãos com força, ficaram
suspensas entre os dois e olhei fixamente para ela para que entendesse o que ia
dizer. — Não consigo amar ninguém… Esse barco para mim já zarpou,
entendes? Naquela altura abri-me para ti, sabendo que isso ia contra todos os
meus instintos; tentei, a sério que tentei, mas não fui feito para amar, não sou
uma pessoa que possa ser amada, e tu deixaste isso muito claro.
— Mas eu amo-te — declarou num sussurro, olhando-me nos olhos. Não quis
pensar no que podíamos parecer a quem estivesse de fora, os dois repletos de
más experiências, de maus relacionamentos. Não sabíamos o que era amar,
nenhum de nós, porque recebemos golpes fatais quando éramos muito novos e
acabámos por fazer o mesmo a quem tentasse aproximar-se de nós.
— Tu não me amas, Noah… Pegaste na única arma que podia derrotar-me e
premiste o gatilho.
— Estou aqui! Continuo aqui, e tu também! Mal consegues ficar longe de
mim. Isso significa alguma coisa, tem de significar! Já se passou um ano, e não
conseguimos procurar senão um pelo outro… Queres mesmo que acabe por
ficar com outra pessoa? Pensa bem, Nicholas, porque, se te fores embora agora,
se voltares a deixar-me, quando regressares, posso já não cá estar!
— Isso é uma ameaça?
A simples menção de a Noah estar com outra pessoa deixava-me de cabeça
perdida.
— Esperei por ti, estive à tua espera desde que nos separámos. Passou-se
quase um ano e meio, e continuo à espera de que voltes para mim, e tu vais
voltando, mas nunca por completo. Não consigo aguentar mais isto, Nicholas, é
agora ou nunca porque, se te fores embora, se voltares a deixar-me, o que
tínhamos acabou para sempre.
O silêncio apoderou-se do escritório, e vi nos seus olhos a incredulidade e a
desilusão. Respirei fundo antes de abrir a boca para falar.
— Adeus, Noah — disse e senti uma dor horrível no peito.
A Noah afastou-se de mim como se as minhas palavras a tivessem queimado.
Sabia ao que estava a renunciar se saísse por aquela porta, mas não podia dar-lhe
aquilo de que ela precisava. Recuou um passo, e a tristeza deu lugar a qualquer
coisa mais, algo mais sombrio, mais difícil de decifrar.
— Adeus, Nicholas.
Foi-se embora sem olhar para trás, e eu fiz o mesmo.
PARTE TRÊS
Fazer as contas
33
NOAH
Não sei em que altura adormeci, mas, quando abri os olhos, vi que a Jenna
estava sentada numa poltrona ao lado da minha cama, a observar-me com o
rosto pálido e pleno de preocupação. Ao ver que eu abria os olhos, levantou-se e
aproximou-se de mim, que estava deitada, vestida com a bata do hospital e com
um cateter na mão direita.
— Noah, como te sentes? — perguntou com medo na voz.
Ao vê-la ali e recordar tudo, senti-me como se ambas estivéssemos em
dimensões distintas, como se de repente a minha vida não fosse minha e o que
acabara de descobrir me tivesse fechado todas as portas que um dia estiveram
abertas; era como se só restasse uma destas portas abertas e me obrigassem a
passar por ela.
— Acho que bem — respondi.
Um bebé… para começar, a ideia de ter um bebé sempre fora uma coisa
hipotética. Sempre que me imaginara com um filho, pensava que talvez fosse
adotado. Tinham-me dito que as lesões que sofrera em criança podiam causar-
me problemas. Que, quando quisesse engravidar, teria de recorrer a uma clínica
de fertilidade e ali me diriam o que precisava de fazer. Nunca achei que fosse
possível engravidar de forma natural… Por amor de Deus, se até estava a tomar
contracetivos orais! Nada, absolutamente nada apontava para que isto pudesse
acontecer.
Endireitei-me na cama e destapei-me. Levantei a camisa de dormir do
hospital com uma cautela excessiva e olhei para o meu ventre.
— Então é verdade… não posso acreditar. — Não fui eu quem o disse, foi a
Jenna.
Desviei o olhar para ela e vi que empalidecia ao meu lado.
— Que vou fazer? — perguntei, pousando as mãos e tateando, para ver se
sentia alguma coisa que me indicasse que tinha dentro de mim um bebé de
quatro meses.
A Jenna abanou a cabeça e sentou-se ao meu lado.
— Noah, quem é o pai?
Olhei para ela outra vez. Achei que era óbvio, mas, pensando melhor,
ninguém sabia do que tinha acontecido no Dia de Ação de Graças; bem,
ninguém a não ser eu e o Nick.
— O Nicholas — respondi num sussurro. Só por dizer o seu nome, senti uma
pontada dolorosa no peito.
A Jenna arregalou os olhos com surpresa, e depois um sorriso enorme
apareceu no seu rosto.
— O Nicholas? O nosso Nicholas? Mas quando? Como?
Por que raio estava tão contente?
— Aconteceu no Dia de Ação de Graças, depois de o Nick saber que a mãe
estava doente. Ele estava tão triste, disse-me coisas que…
— Oh, meu Deus, Noah, isto é fabuloso! Espera, disseste no Dia de Ação de
Graças?
Os seus olhos regressaram ao meu ventre e depois a mim. Segundos depois,
pareceu ausentar-se, creio que para fazer contas.
— Quatro meses, Jenna — disse sem uma centelha de felicidade na voz. —
Os médicos não te disseram?
— Estás a brincar? Até há cinco segundos nem sequer sabia se as minhas
suspeitas estavam corretas, só o confirmei quando levantaste a camisa de dormir
e ficaste a olhar para a barriga como se estivesses a olhar para um extraterrestre.
— Então só soubeste agora?
A Jenna assentiu.
— Não sou tua familiar, não quiseram dizer-me nada; pior do que isso, tive
de andar à bulha com as enfermeiras para me deixarem entrar no teu quarto.
Suspirei profundamente, nunca na minha vida me sentira tão perdida.
A Jenna pegou-me na mão e pousou-a sobre o meu ventre que mal se notava.
Quem não soubesse não diria que eu estava grávida.
— Estava assustada, Noah, porque pensei que o bebé fosse de um tipo
qualquer que tivesses conhecido numa discoteca, agora… se é do Nick! Tu e o
Nick! Isso é maravilhoso.
Soltei-me da mão dela e fulminei-a com o olhar.
— O que é maravilhoso, Jenna? — respondi e percebi que estava a ficar
alterada porque as máquinas a que estava ligada começaram a apitar com
insistência. — Estar grávida aos dezanove anos de um homem que não me quer
e que namora com outra? O que tem isso de maravilhoso?
— Acalma-te, Noah, só estava a dizer…
— Não! — gritei-lhe. — Não digas nada, não fiques feliz, porque isto não é
uma boa notícia, é uma notícia de merda. Eu não quero um bebé, não quero
criar um filho sozinha e muito menos um filho do Nicholas. — Senti que as
lágrimas começavam a cair-me pelo rosto e limpei-as com impaciência. — Nem
sequer sabia que estava grávida! Que tipo de mãe não sabe que tem um bebé
dentro de si? Que tipo de mãe vou ser quando não tenho nada para oferecer?
A Jenna parecia tão perdida como eu e sem saber o que dizer; aparentava ter
medo de abrir a boca.
— Noah, quando o Nick souber…
— É que nem te passe pela cabeça! — interrompi-a num acesso de pânico. —
Que não te passe pela cabeça contares isto, Jenna, nem a ele nem a ninguém!
Ela olhou para mim com os olhos arregalados, surpreendida e completamente
em desacordo comigo.
— Noah, tens de lhe contar — afirmou, ignorando as minhas palavras
anteriores.
Raios, queria levantar-me daquela cama e ir-me embora, queria estar sozinha
e pensar, mas, de cada vez que imaginava algum tipo de fuga, a imagem da
ecografia aparecia novamente na minha cabeça.
Antes de poder negar novamente, a porta abriu-se, e o médico entrou no
quarto.
— Trago melhores notícias, menina Morgan — anunciou ele, de pasta na
mão. Ficou a olhar para o que estava à sua frente, tirou os óculos e voltou a
concentrar-se em mim. — Não tem nenhum tipo de doença associada à
gravidez, os batimentos do bebé são fortes e normais — prosseguiu, enquanto
eu começava a sentir uma sensação quente no estômago. — Já entrou no
segundo trimestre, e, embora seja nesta altura que os médicos recomendam que
se conte à família, a sua gravidez é de risco; no entanto, isso não quer dizer que
as coisas vão correr mal. Dentro de duas ou três semanas, já poderá saber o sexo
do bebé, e, se notar algum movimento no ventre, é porque ele já se consegue
mexer.
A Jenna olhava para o médico como se ele lhe estivesse a dizer que tinha a
Hello Kitty na barriga, mas eu também senti a mesma vertigem… era algo que
me deixava simplesmente sem palavras.
Ao ver que não abríamos a boca, o médico aproximou-se de uma mesa e
continuou a falar como se o que estava a dizer não fosse nada de especial, como
se não estivéssemos as duas a passar-nos da cabeça mesmo à sua frente.
— A hemorragia com que deu entrada à meia-noite já cessou, o que é bom,
mas nas próximas semanas teremos de fazer medições ao colo do útero. Vou
receitar-lhe progesterona, porque as análises revelaram níveis baixos. É muito
importante que cumpra todas as indicações que constam da folha que lhe vão
entregar.
Assenti, um pouco aturdida com tanta informação.
— Repouso absoluto, menina Morgan, e por «absoluto» quero dizer que
quero que só se levante para ir à casa de banho, estamos entendidos?
Voltei a assentir, pensando como raio ia explicar na faculdade que não podia
levantar-me da cama sem revelar que estava a gerar uma criatura viva no meu
útero.
— Vemo-nos dentro e duas semanas. Caso volte a ter nova hemorragia, deve
regressar imediatamente ao hospital; se o sangue for acastanhado, é bom sinal:
significa que o hematoma está a cicatrizar, percebeu?
Assenti pela terceira vez, embora no fundo soubesse que devia perguntar-lhe
mil coisas.
— Já falou com o pai? — perguntou-me.
A Jenna comprimiu os lábios com força enquanto eu dizia que não.
Por que raio estava o médico a perguntar-me aquilo? Não era da sua conta!
— Seria bom se pudesse contar com o seu apoio, pelo menos durante estas
semanas em que mal poderá mexer-se.
Ia dizer qualquer coisa, mas a minha amiga antecipou-se:
— Eu e o meu marido cuidamos dela, doutor, não se preocupe.
Naquele instante, senti uma gratidão imensa para com a Jenna e lamentei ter-
lhe falado tão mal poucos minutos antes. Se queria manter aquilo em segredo, a
Jenna ia ser a única que me poderia ajudar.
Porque esta gravidez ia ser um segredo meu… e de mais ninguém.
Ao chegar a casa, não tive outro remédio senão caminhar até ao quarto de
hóspedes. Dei cada um dos passos com medo, não fosse prejudicar o feto;
cheguei finalmente à cama, meti-me entre os lençóis e pude respirar de alívio.
O Lion só chegaria a casa dali a três dias, por isso, até lá eu e a Jenna íamos ter
de nos arranjar sozinhas. A minha amiga parecia estar a morder a língua de cada
vez que vinha ver-me ou perguntar se precisava de alguma coisa.
Nos primeiros dias mal falámos do assunto; eu não voltei a mencionar o
motivo que me mantinha prostrada na cama, e a Jenna respeitou o meu silêncio,
embora soubesse que lhe estava a custar horrores não falar disso.
Apesar de naqueles dias estar em negação profunda, estava também a fazer
tudo o que o médico me recomendara: tomava os medicamentos e procurava
não stressar; dormia muito e bebia muitos líquidos. Os momentos em que a
Jenna me deixava sozinha eram os únicos em que permitia que a minha mente
tentasse encontrar uma solução. Mentiria se dissesse que não pensei em abortar,
que não pensei que fosse a solução mais fácil, aquela que me deixaria prosseguir
com a vida como até agora, que me pouparia a ter de voltar a ver o Nick e
confessar-lhe o que tínhamos feito, mas só de o imaginar, só de pensar em fazer
mal ao meu filho…
Fui incapaz de escolher esse caminho. Todos os meus ideais se desmoronaram,
tudo o que achava que sabia, em que acreditava ou que apoiava deixou de fazer
sentido no mesmíssimo instante em que vi a imagem do feto naquele ecrã. O
facto de ainda não lhe chamar «meu bebé» era apenas um detalhe, mas lá
chegaríamos.
Inicialmente, dediquei-me a recuar no tempo, ao momento da conceção, ao
instante em que cometi o pior erro da minha vida. Culpava o Nick pela minha
tristeza, pelo meu rancor e raiva… e agora também o podia culpar por isto. Ele
não me perdoara pelo que tinha feito, mas agora haveria de recordar até ao fim
da sua maldita vida o momento em que decidira não usar preservativo. Isto se
acabasse por lhe contar, algo que naquele momento não planeava fazer.
Depois desta fase seguiu-se a fase de «todas a coisas que já não posso fazer a
partir de agora». Por exemplo, o que ia fazer em relação à faculdade? Como ia
contar isto à minha mãe? A mesma que engravidou de mim quando tinha
dezoito anos e me dera sermões intermináveis sobre contracetivos; a mesma mãe
que achava que engravidar tão nova tinha sido o maior erro da sua vida, um erro
fruto da irresponsabilidade e insensatez… É verdade, ela insistia sempre que me
amava loucamente, mas que uma coisa não tinha nada que ver com a outra. Ela
até me «proibira» de engravidar antes dos vinte e cinco anos.
«Estuda, Noah, sê a melhor naquilo que escolheres fazer, procura emprego e
sê independente; depois, se te apetecer, pensa em ter filhos, e, se o fizeres depois
de teres uma conta bancária na Suíça, melhor.»
Claro que não tinha uma conta bancária na Suíça… Nem pouco mais ou
menos: o meu capital reduzia-se, com sorte, a dois mil e quinhentos dólares.
A seguir, pensei onde ia viver. O sótão que acabara de arrendar durante um
ano não era o espaço ideal para criar um filho. Deus do Céu, criar um filho! Eu
ia criar um ser vivo! Se queria ter dinheiro para as coisas do bebé, ia ter de
trabalhar como uma louca. Em certa ocasião, estava na Internet e vi que um
carrinho de bebé custava praticamente todo o dinheiro que tinha… Mal me
chegava para comprar um carrinho… Oh, que tristeza! Ia ter de recorrer à
minha mãe, e logo eu que detestava pedir dinheiro.
Ao quarto dia, a Jenna entrou no meu quarto depois de o Lion engolir a nossa
versão de dores de costas e olhou para mim como quem estivera a pensar
demasiado no assunto sem chegar a uma conclusão.
— Tens de lhe contar — disse-me sem preâmbulos.
Se pudesse levantar-me, teria ido para outra divisão, mas, como não podia,
limitei-me a ignorá-la e continuei a ler o livro que tinha nas mãos.
— Noah, vamos falar disto ou vamos continuar a ignorar que tens uma
criança no ventre?
Pousei o livro ao meu lado e olhei fixamente para ela.
— Não há nada para falar. Eu cá me arranjo.
A Jenna soltou uma gargalhada amargurada.
— Ah, sim? E como? — perguntou, apontando para mim com a mão. — Se
nem sequer podes ir à casa de banho sozinha.
Olhei para ela a soltar fogo pelos olhos.
— Isso é só durante alguns dias… Daqui a uma semana vou ao médico, e ele
vai dizer-me que está tudo bem; então, esta loucura toda terá terminado, e
poderei retomar a minha vida.
Este meu plano tinha vários pontos fracos, mas não ia pensar neles agora.
— Tu estás a ouvir o que dizes? — perguntou a Jenna, levantando o tom de
voz. — Isto só vai piorar, bem, não exatamente piorar, mas, Noah, a barriga vai
começar a notar-se! Se olharmos bem, já se nota.
Ambas baixámos os olhos para a minha barriga… que quase não sobressaía.
— Li que há mães que conseguem esconder a gravidez quase até ao oitavo
mês… vou ter de comprar roupas largas e folgadas, mas é possível…
A Jenna abanava a cabeça e olhava para o teto, como se procurasse ali em cima
palavras divinas que me fizessem ver a razão.
— Não consigo entender. Estamos a falar do teu filho! Por que razão não
queres contar ao Nick, porquê?
Senti um calor dentro de mim que não augurava nada de bom. Eu era como
uma bomba-relógio ambulante, em todos os sentidos da palavra, e não queria
descarregar na Jenna. Porém, não consegui evitar que as palavras me saíssem em
catadupa.
— Porque lhe implorei que voltasse comigo e ele disse que não! — gritei-lhe,
enquanto tentava conter as lágrimas. — Disse-me que não era capaz de me
perdoar, que o que eu tinha feito acabara definitivamente com a nossa relação;
fiz-lhe um ultimato, e ele não quis saber. Foi-se embora!
A Jenna abriu os olhos com surpresa, que, poucos segundos depois, deu lugar
à indignação.
— Disse-lhe que o amava, Jenn, e ele nem quis saber; pedi-lhe que ficasse
comigo e ele não o fez — continuei, com a voz entrecortada pelas lágrimas. —
E agora queres que lhe ligue para contar que estou à espera de um filho seu?
Para quê? Para o amarrar a mim, apesar de ter deixado bastante claro que não
quer voltar a ver-me?
— Mas tenho a certeza de que quando souber do bebé…
— Vai querer cuidar dele? Vai querer cuidar de mim, levar-me para casa e
dar-me tudo o que tem e mais ainda? Achas que não sei que o fará? Mas eu não
quero ninguém ao meu lado por obrigação, não quero obrigá-lo a perdoar-me,
e, se lhe contar da gravidez, será exatamente isso que estarei a fazer.
A Jenna suspirou e abanou a cabeça, mas não sabia o que dizer.
— O Nicholas ama-te — afirmou, depois de um minuto em silêncio. — Eu
sei que ama, ele continua loucamente apaixonado por ti e sei que quando souber
do bebé vai ser o homem mais feliz da Terra, Noah. O que aconteceu convosco
foi uma treta, sim, mas já paraste para pensar que talvez este bebé seja
exatamente o que faltava para porem ambos as vossas diferenças de parte e
decidirem tentar mais uma vez? Não imagino melhor motivo.
Vi a imagem que a Jenna queria criar na minha cabeça: eu e o Nick,
novamente juntos, com um bebé lindo para cuidar, a viver a vida que eu sempre
sonhara, apesar de o bebé se adiantar uns oito anos. Era isso que eu queria: uma
vida ao lado do Nick.
Soltei o ar que estava a suster e abanei a cabeça.
— Não quero continuar a falar disto, nem do Nick, nem do bebé; por favor,
deixa-me pelo menos assimilar tudo o que está a acontecer antes de enfrentar o
desafio seguinte, antes de enfrentar o Nick e a nossa vida…
A Jenna olhou-me com carinho e aproximou-se para me dar um abraço.
— Tu vais ser uma mãe maravilhosa, Noah, e esse bebé vai ser o mais lindo
do mundo.
Pestanejei várias vezes, tentando não chorar novamente, mas não consegui
evitar que a imagem de um bebé minúsculo com os traços do Nick entrasse na
minha cabeça.
A Jenna afastou-se de mim e pela primeira vez pousou a mão na minha
barriga.
— E eu vou ser a sua tia favorita. — Esta frase fez-nos desatar a rir.
A minha amiga foi-se embora ver o que o Lion estava a fazer, e eu aproveitei
para me tapar com os cobertores e tentar dormir, embora o medo que sentia por
ter de contar ao Nicholas o que tínhamos pela frente mal me deixou pregar
olho.
Depois de lhe ter dito que não ia conseguir estar na festa de anos do Lion, a
Jenna não parou de me chatear. Estava enterrado em trabalho e, para poder ir
naquela semana a Los Angeles, teria de cancelar pelo menos cinco reuniões e o
encontro com a agente imobiliária que ia tratar da venda do apartamento.
Estava a tomar todas as providências necessárias para me mudar
definitivamente para Los Angeles; era o melhor, não apenas para mim, que
tinha a minha família toda na Califórnia, mas também para a empresa. Já
cumprira a estada em Nova Iorque, as coisas estavam em ordem e corriam bem,
tinha chegado a altura de pôr fim ao meu retiro.
A principal causa para ter mudado a minha vida toda para Nova Iorque fora
afastar-me o mais possível da Noah, mas estava cansado de permanecer na
sombra. A minha irmã estava ali, o meu pai, os meus amigos… além da família
da Sophia, embora este detalhe me importasse muito pouco.
O telemóvel voltou a tocar na minha mão, e atendi a doida da minha amiga
com um suspiro. O trânsito estava insuportável e tive de olhar várias vezes para
cada lado da estrada antes de atravessar, para ninguém me levar à frente. Esta
era outra coisa: a vida em Nova Iorque sugava toda a minha energia vital,
precisava de praia… e com urgência.
— Bolas, Jenna, estás a dar-lhe com força — disse e até eu reparei no tom
irritado da minha voz.
— Ouve uma coisa, Nicholas Imbecil Leister — respondeu ela, e não pude
evitar soltar uma gargalhada de surpresa. — É o aniversário do teu melhor
amigo, a pessoa que sempre te apoiou, que esteve do teu lado de cada vez que
meteste a pata na poça. Deu-te abrigo quando fugiste de casa! Ou já te
esqueceste disso? És o nosso padrinho de casamento, por isso mexe esse rabo e
vem para casa, se não queres que vá até aí e te traga à chapada.
Antes de poder responder, ouvi um ruído do outro lado da linha, e a seguir foi
a vez de o Lion falar.
— Olá, meu — cumprimentou-me e ouvi com atenção o que estava a
acontecer a milhares de quilómetros de distância. — Jenna, vai-te embora,
deixa-me falar com ele. Chiça, miúda, estás irreconhecível! — criticou ele;
depois ouvi uma porta fechar-se. — Nick, tens de vir.
Revirei os olhos.
— Escuta, sei que é o teu aniversário e a sério que tenho pena de não poder
aparecer, mas estou com trabalho que nunca mais acaba, vai ser impossível ir até
aí, desculpa.
— É por causa da Noah — disse-me ele então, e isto conseguiu fazer que
parasse de andar no meio da rua, o que levou algumas pessoas a chocarem
comigo; porém, o tom de voz do meu amigo merecia esta reação.
— O que se passa com a Noah? — perguntei enquanto dobrava a esquina e
me metia numa rua secundária, menos movimentada.
— Não sei ao certo, bem, sei, ela magoou-se nas costas há cerca de três
semanas e tem estado em nossa casa. Teve de ficar de repouso e mal se pode
mexer.
— Nas costas? O que diabo andou a fazer para ter de ficar tanto tempo em
repouso? Ela está bem? É grave? — Mentalmente já estava a cancelar todas as
reuniões dos próximos dias.
O Lion ficou calado durante uns instantes.
— Há aqui qualquer coisa que não bate certo, meu. A Jenna anda
superestranha, nunca na vida a vi tão stressada, e depois a Noah… Não sei, diz
que lhe doem as costas, mas ainda no outro dia a vi mexer-se sem problema
nenhum, acho que elas andam a tramar alguma, e era melhor que estivesses
aqui.
Era tudo ridículo, mas se a Noah estava doente…
— Como diabo se foi ela magoar tanto? Estava a fazer o quê?
O Lion soltou um suspiro profundo.
— Estava a carregar caixas, vai mudar de apartamento. Sei que já te devia ter
dito, mas a Jenna insistiu que não podemos continuar a contar-te coisas sem o
consentimento da Noah.
— Por que raio vai ela mudar de apartamento? Está pago até junho! — gritei,
enquanto atravessava outra rua e levantava a mão para chamar um táxi.
— Pois, mas a Noah não sabe disso, pois não? Acha que o apartamento só
estava pago até um ano depois de a Briar se ir embora. Foi isso que mandaste a
senhoria contar-lhe, não foi?
Entrei no táxi e disse bruscamente a direção ao motorista.
— Raios partam a mulher — exclamei entre dentes. — Onde está ela a viver
agora?
— Por enquanto está connosco, mas alugou um sótão fora do campus.
Não podia acreditar naquilo. Assegurara-me de que a Noah ficaria a viver no
apartamento que partilhara com a Briar durante pelo menos mais um ano. Um
sótão! A zona fora do campus era uma porcaria, e, se ia viver sozinha, seria
perigoso.
— Olha, Nick, disseste o que acho que devias fazer, eu não entendo as
mulheres, e muito menos estas duas, mas sei que há qualquer coisa que não está
bem, e está relacionada contigo. Quando é que viste a Jenna insistir tanto para
qualquer coisa que não fosse ir às compras?
Noutra ocasião ter-me-ia rido, mas naquele momento fiquei um pouco
preocupado. Sabia que a insistência da Jenna era estranha, ainda para mais
depois de a última vez que estivera com a Noah as coisas terem acabado tão
mal.
Talvez estivessem as duas a planear vingar-se e dar-me uma tareia.
Dez minutos depois, cheguei ao meu bloco de apartamentos e comecei a fazer
chamadas. Ia deixar muita gente pendurada durante aquela semana, e uma parte
de mim não deixava de se questionar por que diabo o fazia.
Estar enfiada num quarto sem grande coisa para fazer dá-nos demasiado
tempo para dar voltas à cabeça. Em breve teria de voltar ao médico e,
acontecesse o que acontecesse, ia ter de começar a tomar decisões e a encarregar-
me da situação sozinha. Para começar, tinha de ir ao meu apartamento, não
podia continuar ali, a deixar os meus amigos loucos.
Era evidente que o que acontecera no dia anterior não podia repetir-se, e a
pressão de contar ao Nicholas estava, na verdade, a acabar com a minha força
vital. Não havia voltar a dar, ele era o pai do Mini Eu, que ia sair de dentro de
mim dali a quatro meses, o que significava que muito em breve teria de
começar a pôr as necessidades do bebé à frente das minhas. Por mais que não
quisesse partilhar isto com ele e por mais zangada que estivesse, não me restava
alternativa.
Tinha pensado contar-lhe de forma subtil, sabem como é, a apalpar terreno e
ficando com a sua reação gravada na minha memória até ao dia em que
morresse, mas ver ali a Sophia tinha dado cabo de qualquer resquício de
amabilidade e tato. No dia seguinte, num desses momentos de solidão e inércia,
tomei uma decisão.
Telemóvel.
Contactos.
Nicholas Leister.
Estou grávida.
Enviar.
Fim do problema.
*
Se vos disser que me arrependi quase no mesmo instante em que premia a
tecla Enviar, acham que pareceria muito cobarde da minha parte?
Fiquei a olhar para o ecrã em silêncio quase sem conseguir respirar.
Cinco minutos depois, o telemóvel começou a tocar.
Uma e outra e outra vez.
Peguei no telemóvel com dois dedos, quase sem querer tocar-lhe, e atirei-o
para os pés da cama.
Ai, caraças… por que razão estava subitamente aterrorizada?
— Jenna! — gritei, quase sem ar.
No minuto seguinte, a minha amiga veio ver como eu estava.
— Podemos ir a um lado qualquer? — perguntei, levantando-me da cama e
abrindo o roupeiro.
— Mas o que estás a fazer? — perguntou ela, assustada. — Volta para a cama!
Peguei nuns leggings e vesti-os enquanto o diabo esfrega um olho. A seguir fiz
o mesmo com uma camisola.
— Estou com uma vontade terrível de ir àquela gelataria a que fomos no
outro dia.
Calcei os sapatos sem que a Jenna me pudesse impedir e parei em frente dela,
olhando-a nos olhos.
— Estou a ter um desejo imenso, o maior que já tive até agora. Leva-me lá,
por favor, eu fico sentada no carro, juro, mas preciso de sair daqui.
A Jenna pareceu hesitar, mas, depois de insistir durante alguns minutos,
acabou por aceder. Entrámos no carro, e só quando perdemos o apartamento de
vista consegui respirar profundamente.
Acariciei o ventre com nervosismo, uma e outra vez…
«Ai, Mini Eu… o teu pai vai-me matar.»
O telemóvel da Jenna começou a tocar logo depois de ela sair do carro para
me comprar um gelado. Peguei nele com as mãos trémulas e pu-lo em silêncio,
apesar de saber que estava a agir mal.
Meu Deus, larguei a bomba e a seguir fugi.
Quando a Jenna me trouxe o gelado, mal consegui comer duas colheradas
antes de lhe dizer que me passara o desejo e que agora tinha vontade de
vomitar. Sabia bem que não era por causa do bebé, mas do pânico.
— Então vou levar-te para casa — disse, pondo novamente as chaves na
ignição.
— Não! — gritei sobressaltada. — Porque não vamos ao cinema? Posso fazer
isso, não posso? Estou ali sentada durante um bocado, a descansar…
— Se queres ver um filme, alugamos um em casa, Noah, não podes andar por
aí, precisas de estar na cama, por isso, não, não vamos ao cinema.
— Jenna! — gritei exasperada. — Se ficar mais uma hora fechada no quarto
vou acabar por enlouquecer. Faz-me este favor, caraças!
Os lábios da minha amiga compuseram-se num esgar desagradado.
— Tu estás insuportável desde que engravidaste. Já to tinha dito?
— Um par de vezes, mas vá lá, mexe-te, mexe-te — incentivei.
Quando chegámos ao cinema, ainda faltava meia hora para começar a sessão,
por isso esperámos sentadas no carro.
— Vou avisar o Lion de que chegamos mais tarde a casa, de certeza que está a
questionar-se onde nos enfiámos.
Tirei-lhe o telemóvel das mãos antes que pudesse ver as chamadas perdidas.
— Mas que diabo se passa contigo? — perguntou bruscamente, sem
conseguir conter-se mais. — Dá-me o telemóvel!
«Ai, meu Deus.»
— Dou-te o telemóvel, mas tens de prometer que não ficas zangada comigo.
Estou supernervosa e preciso que fiques do meu lado.
A Jenna teve então uma espécie de revelação.
— O que fizeste? — perguntou, tentando manter a calma. — Porque estamos
a fugir, Noah?
— Não estamos a fugir… só a… esconder-nos — disse, com uma voz débil.
Tirou-me o telemóvel das mãos e fixou os olhos no ecrã.
— Quinze chamadas perdidas do Nicholas! — guinchou, olhando para mim
perplexa. — E outras dez do Lion! O que diabo fizeste, Noah?
Escondi a cabeça entre as mãos, e a Jenna puxou-mas para poder olhar para
mim.
— Contaste-lhe?
— Pode dizer-se que sim…
A Jenna fulminou-me com os olhos amendoados e esperou que me explicasse.
— Talvez lhe tenha enviado uma mensagem.
— A dizer que precisas de falar com ele?
Olhei para ela em silêncio durante uns instantes.
— A dizer que estou grávida.
A minha amiga arregalou os olhos com espanto.
— Noah! — gritou, sem se preocupar com quem nos ouvia. —
Enlouqueceste? Como foste capaz?
— Ele só tem o que merece, não quis dizer-lhe pessoalmente, Jenna, tenho
medo da sua reação. Fazê-lo por telefone permite-me manter uma distância
segura de quilómetros.
— Ele deve estar de cabeça perdida! Disseste-lhe mais alguma coisa na
mensagem? O que escreveste, exatamente?
— «Estou grávida» — respondi, encolhendo os ombros. — Ouve, tu não
olhes para mim assim, eu também recebi a notícia de forma muito estranha,
lembras-te?
A Jenna nem fez caso das minhas palavras.
— Mas disseste-lhe pelo menos que é dele?
Parei para pensar por um instante.
— Parece-me bastante óbvio que é dele — respondi, embora ao chegar ao fim
da frase já estivesse com dúvidas.
— Estamos a falar do Nicholas!
«Oh, raios me partam. Será que ele pensava que o Mini Eu era de outro?»
Eu ficara chocada ao saber que estava de quatro meses porque não se notava
nada. Se o Nicholas fizesse as contas, talvez chegasse à conclusão de que o bebé
não era seu, talvez achasse que eu estava de menos tempo. Caramba, ele ia achar
que o pai era outro!
— Dá-me o teu telemóvel — perdi à Jenna. Ela entregou-me imediatamente.
— Sim, fala com ele… — disse, respirando fundo.
Claro que o bebé é teu.
Enviar.
— Já está — anunciei, recostando-me no assento.
A Jenna virou-se para mim e arrancou-me o telemóvel das mãos.
— «Claro que o bebé é teu»! — gritou agora, completamente exaltada. —
Mas o que é que se passa contigo?!
— Não me grites — gritei-lhe eu também. — É a única forma que me ocorre
de falar com ele sem que arrase comigo!
— Vamos imediatamente para casa — disse, pondo o carro em andamento.
— Não, Jenna! Não faças isto! — implorei. — Por favor, por favor, dá-lhe
algum tempo para interiorizar… para eu me habituar a esta ideia. Por amor de
Deus, para!
— Tu estás louca — atirou-me. Como tinha o telemóvel na mão, viu a
chamada e atendeu sem hesitar.
— Jenna! — pronunciei o seu nome com histerismo.
Ela ignorou-me.
— Sim, está comigo — disse a quem quer que lhe estava a ligar. — Olha,
diz-lhe que se acalme, não, Lion, nós os dois falamos depois, não quero que
fique mais nervosa do que já está, é mau para o bebé… Então, diz-lhe!
Oh, raios, isto, sim, deixava-me mais nervosa.
— Chegamos daqui a cinco minutos.
Olhei pela janela e senti-me como se me estivessem a levar para Guantánamo.
Quando a Jenna estacionou no exterior do bloco de apartamentos, foi como se
todo o meu sangue se concentrasse num único ponto do meu corpo. Senti-me
estremecer porque não fazia ideia de qual seria a sua reação, não sabia o que ia
dizer-me e, o pior de tudo: tinha medo de que as coisas não corressem bem, de
que ele acabasse por ficar com a Sophia e eu sem o meu bebé e sem a pessoa por
quem estava apaixonada.
Abri a porta para sair do carro e vi que a porta do prédio se abriu assim que
pus os pés no chão. O Nicholas saiu e cravou os olhos em mim de uma forma
que me fez querer desaparecer e que a terra me engolisse. Instintivamente,
voltei a entrar no carro e, sem sequer pensar, fechei as portas todas para ficar lá
dentro sozinha. Meus Deus, estava a agir como uma verdadeira cobarde!
Quando a Jenna cruzou os braços ao lado da minha janela e olhou para mim a
abanar a cabeça, senti-me uma idiota.
O Nicholas apareceu então ao meu lado e olhou para mim através do vidro.
Parecia fora de si, embora tentasse demonstrar tranquilidade. Os olhos
observaram-me com preocupação, e a seguir fez-me sinal com o dedo.
— Abre — ordenou com calma.
Abanei a cabeça e olhei para ele com olhos de carneiro mal morto.
O Nick apoiou as mãos na janela e inclinou-se sobre ela tapando quase todo o
meu campo de visão.
— Posso entrar pelo menos? — disse, depois de pensar um segundo em
silêncio.
Vi a Jenna tirar a chave do carro do bolso, mostrá-la ao Nick e, finalmente,
atirar-lha. Ele apanhou-a em pleno voo e contornou o carro para entrar para o
lugar do condutor. Olhei para a Jenna com uma expressão de ódio. Ela limitou-
se a desculpar-se com um sorriso minúsculo, enquanto pegava na mão do Lion
— que também saíra com o Nick — e o levava para casa.
O Nick abriu a porta do carro, sentou-se e sem dizer nada ligou o carro.
— Põe o cinto — mandou, enquanto tirava o carro do parque e entrava na
estrada.
Oh, meu Deus… Porque não explodia ele? Nem falava? Não dizia uma única
palavra. O silêncio estava a dar cabo de mim.
Depois de alguns minutos de silêncio insuportável, lá se decidiu a falar.
— Só tu te lembrarias de dizer uma coisa destas numa mensagem de texto —
criticou, respirando fundo, como se estivesse a tentar não explodir comigo
dentro do carro, não fosse salpicar-me.
— Pois, olha… queria fazer uma coisa original — respondi.
O Nicholas voltou-se para olhar para mim com a veia do pescoço a palpitar
por baixo da pele.
— Quase tive um enfarte, por pouco não tinha um acidente. Onde estavas
com a cabeça? — perguntou, elevando o tom de voz.
O Mini Eu reagiu da sua forma borbulhante, como fizera na noite anterior.
Pareceu-me curioso que só o fizesse quando o Nick estava comigo… Presumo
que as borboletas que sempre senti na barriga agora se tinham transformado
num bebé. A minha mão pousou-se instintivamente no ventre, e o gesto não
passou despercebido ao vulcão em erupção que tinha ao meu lado. Os seus olhos
cravaram-se naquela zona do meu corpo, a seguir em mim e depois desviaram-
se automaticamente para a estrada.
Não respondi à sua última pergunta, algo que dizia que era melhor ficar
calada. O Nicholas continuou a conduzir, parecia que ainda estava a assimilar
tudo e que precisava de ter as mãos ocupadas até conseguir enfrentar-me
finalmente.
Meia hora depois, percebi que se dirigia para a praia. Quando chegámos, senti
uma paz interior inundar-me completamente e comecei a descontrair. O Nick
pareceu sentir o mesmo, porque respirou fundo depois de observar a ondulação
durante uns minutos e voltou-se para mim para me olhar diretamente nos
olhos.
— Vou ser pai? — perguntou e vi medo nos seus olhos azuis.
Estremeci da cabeça aos pés com esta pergunta. Meu Deus, este homem
espetacular era o pai do meu bebé!
— Sim, se tudo correr bem… vamos ser pais — respondi com nervosismo.
— Ainda não consigo acreditar… Como é possível? — perguntou, ainda sem
desviar os olhos de mim.
Levantei as sobrancelhas quase até à linha do cabelo.
— Não queiras ir por aí, Nick, acredita em mim — avisei com ar aborrecido.
Ainda não lhe perdoara por aquilo.
— Posso? — pediu-me, ignorando a minha contestação.
A mão aproximou-se da minha barriga, mas parou a meio do caminho, à
espera da minha resposta.
Estendi o braço e levei a mão dele até ao meu ventre, com a minha por cima.
Foi um momento incrível… um momento que, apesar de tudo o que ainda
carregava guardado dentro de mim, recordaria para sempre. A seguir, o Nick
levantou-me a camisola e pousou a mão sobre a minha pele. Todo o meu corpo
ardeu perante o seu contacto.
— De quanto tempo estás? — perguntou, hesitante, enquanto continuava a
acariciar-me, deslumbrado, como se estivesse atordoado com o que havia por
baixo da minha pele quente, porque… já disse que a mão dele sobre o meu
umbigo me estava a queimar e muito?
— De cinco meses — respondi, soltando um pequeno suspiro entrecortado
quando os dedos dele baixaram demasiado sobre o pequeno arco do meu
estômago. Detive a sua mão antes de ter um ataque cardíaco. Com a outra,
baixei a camisola quase à pressa.
— Já chega de toques — ordenei, nervosa.
O Nick olhou para mim de forma intensa e ao mesmo tempo divertida.
— Já o sentiste mexer? — perguntou, unicamente concentrado em mim.
— Não, mas daqui a pouco tempo começará a fazê-lo… até agora só senti
uma espécie de formigueiro, como se me explodissem pipocas na barriga, não
sei se me explico bem.
O Nick riu-se perante a minha explicação, e olhei para ele, inquieta. Havia
demasiada tensão dentro daquele carro, mais do que conseguia suportar.
— Há quanto tempo sabes, Noah? — perguntou, repentinamente sério.
Percebi que dessa vez era melhor ser sincera.
— Há mais de três semanas.
— Mais de três semanas é muito tempo… Chega e sobra para me ligares e
contares, não achas? — recriminou, aborrecido, olhando para a frente.
Observei-o a franzir o sobrolho.
— Estava zangada contigo… Para ser sincera, ainda estou.
O Nick voltou-se para mim com surpresa.
— Zangada porquê?
Olhei para ele com incredulidade.
— Porque isto é culpa tua — disse, apontando para a barriga. Continuava a
reviver o momento em que deixei que fizesse amor comigo sem proteção… mas
que idiota!
O Nicholas soltou uma risada incrédula.
— Acho que seria mais acertado dizer que é culpa nossa, sardas.
— Isso é um pormenor técnico — respondi, olhando para o mar.
O Nick pareceu divertido com a minha resposta.
Mesmo à nossa frente desenrolava-se um dos pores do sol mais bonitos que já
tinha visto. Acho que a natureza me quis dar aquele presente, pintar com cores
bonitas um quadro que ainda era demasiado cinzento para lhe conseguir
atribuir um nome.
Embora estivéssemos agora os dois a par do que se passava, não conseguia tirar
da cabeça a última conversa que tivera com o Nicholas, antes de ele voltar para
Nova Iorque.
Não sabia o que íamos fazer e também ainda não tinha a certeza de que papel
queria que o Nick tivesse em tudo isto.
— Estou cansada, devias levar-me para casa — pedi-lhe, sentindo-me de
repente muito triste.
O Nick voltou-se para mim e estendeu o braço até o pôr por atrás da minha
nuca. Os dedos acariciaram-me levemente antes de me obrigar a olhar para ele.
— Quero que venhas comigo — anunciou então, apanhando-me com as
defesas em baixo. — Quero que pegues nas tuas coisas e que te mudes hoje
mesmo para o meu apartamento.
— Não, Nicholas, estou na casa da Jenna, e daqui a quatro dias…
— Não vou discutir sobre isto — interrompeu-me. A seguir ligou o carro.
— O que estás a fazer? — perguntei, surpreendida.
— Vou levar-te comigo.
«Raios, já começa!»
— Mas não quero ir.
— O filho que tens dentro de ti é meu, e vou assegurar-me de que está bem.
— O filho que tenho dentro de mim é meu, e já me asseguro de que está
bem, mas obrigada pelo teu interesse — respondi, indignada.
— Tens de estar em repouso, não tens? — perguntou então, olhando
alternadamente para mim e para a estrada.
— Tenho, mas…
— Até o médico te dar outras recomendações, ficas comigo. Não há mais nada
a dizer.
Ia responder, mas sabia que tinha tudo a perder se o fizesse, porque não podia
fazer movimentos bruscos, como, por exemplo, dar-lhe uma bofetada. Limitei-
me a cruzar os braços e a cravar os olhos na estrada.
Tinha-se passado apenas um par de horas desde que soubera da existência do
Mini Eu e já se achava com o direito de pôr e dispor.
«Sim, Mini Eu, este é o idiota do teu pai.»
37
NOAH
O pior é que sabia que nada do que estava naquele apartamento tinha sido
escolhido pelo Nick… Outra pessoa fizera aquelas mudanças, e não demorei
mais de um segundo até o seu nome inundar a minha cabeça.
Bolas, na verdade atingiu-me como um murro no estômago. A Sophia tinha
estado ali, o Nicholas convivera com ela naquele apartamento, da mesma forma
que o fizera comigo… Fui em silêncio até ao quarto, o mesmo em que passámos
os melhores momentos íntimos da nossa relação, tudo o que sabia, tudo o que
ele me ensinara, acontecera naquela cama, naqueles lençóis, naquele espaço.
Limpei a lágrima que me caiu pelo rosto quase com uma bofetada. O quarto
também estava mudado, tudo era diferente.
As imagens do Nick com ela, a beijá-la, a acariciá-la, a tocar-lhe e a fazer com
ela o mesmo que fizera comigo, sucederam-se no meu pensamento como se se
tratasse de uma projeção de imagens imaginárias.
O Nicholas pousou a minha mala em cima de uma banqueta e virou-se para
mim.
— Devias deitar-te na cama.
As suas palavras pareceram fazer-me despertar daquele inferno em que me
metera.
— Já falas comigo? — perguntei, tentando disfarçar a minha tristeza com
raiva.
Ele ficou surpreendido e olhou para mim com cautela.
— Desculpa-me se antes estive tão calado… precisava de pensar nisto tudo…
Compreende que não era exatamente algo que esperava que acontecesse.
— E achas que eu esperava? — respondi com incredulidade.
— Tu tiveste mais de três semanas para assimilar tudo — respondeu,
criticando-me por não lhe ter dito nada assim que soubera.
— Lamento se não fui à tua procura assim que descobri que tinha um bebé
dentro de mim, um bebé que não fiz de propósito nem quero ter!
Assim que proferi estas palavras, senti-me culpada e percebi que era mentira.
Claro que queria aquele bebé, agora mais do que nunca, já não havia volta a dar.
Eu e o Mini Eu estávamos ligados para sempre: aquela história de que o vínculo
maternal começa mesmo antes do nascimento é completamente verdade.
— E achas que eu quero?! — gritou-me então, levando a mão ao rosto num
gesto nervoso. Respirou fundo para se acalmar, embora não parecesse ter dado
grande resultado, e voltou a falar para mim num tom mais calmo: — Não
devíamos estar a discutir por causa disto, por favor, deita-te na cama, Noah.
As suas palavras continuavam a ecoar na minha cabeça, como se fossem
ampliadas por algum tipo de sistema cerebral que era incapaz de parar de as
ouvir.
O Nick não queria o bebé…
— Nesta cama? Queres que me deite na cama onde dormiste sabe Deus com
quantas mulheres? — disse num acesso de raiva e ciúmes. Não, nunca na vida
nos ia meter, a mim e ao Mini Eu, no meio daqueles lençóis, havia de morrer
primeiro.
O Nick não esperava aquela resposta, era evidente, e ficou constrangido, sem
saber muito bem o que dizer. Este silêncio só confirmava as minhas suspeitas.
Peguei numa almofada e saí com o passo pesado até me sentar no sofá da sala,
um sofá horroroso e tão desconfortável como imaginara assim que o vi. Sentei-
me com as pernas cruzadas à chinês e olhei em frente, para a enorme televisão
que parecia ter sido a única coisa escolhida pelo Nick.
Vi pelo canto do olho quando entrou na sala, se dirigiu ao minibar e se serviu
de um copo. Ficou a olhar para o líquido cor de âmbar durante uns segundos,
até que finalmente o pousou na mesa e veio ter comigo. Estendeu-me a mão.
— Vamos — disse com calma. — Vou reservar um quarto num hotel.
Isto apanhou-me completamente desprevenida. Arregalei os olhos com
surpresa, e, ao ver que estava a falar a sério, uma parte da minha fúria
desapareceu.
— A sério?
— Não quero que te sintas desconfortável aqui.
Assenti, levantei-me do sofá e fiquei parada à frente dele. Estava a morrer por
um abraço seu, por mais magoada que estivesse. Toda a situação era do mais
estranho que podia haver… Desde quando o Nick cedia a um dos meus
arrebatamentos? O normal era que nos tivéssemos matado aos gritos, mas ali
estávamos, a rondar-nos mutuamente com precaução, tentando esconder todas
as coisas que ainda não tínhamos dito.
Enquanto íamos no carro, o Nick ligou para o Hotel Mondrian, em West
Hollywood e, para minha surpresa, reservou uma suite para os dois.
— Não precisas de gastar um dinheirão nisto, Nicholas, podíamos ir para o
meu apartamento, ou podias deixar-me lá, isto não foi de todo uma boa ideia.
Ele nem sequer desviou os olhos da estrada.
— Preciso de um lugar onde possa trabalhar e quero ter-te por perto.
Reservar um quarto não é um problema, não te preocupes com isso.
Suspirei enquanto notava o cansaço no meu corpo. Só queria meter-me na
cama. Tudo o que acontecera naquele dia deixara-me exausta.
Adormeci pelo caminho, e o Nick acordou-me com suavidade. Ao abrir os
olhos, vi que já tínhamos chegado e que um empregado esperava pacientemente
que saíssemos do carro.
Saímos, e não pude deixar de reparar na minha roupa — leggings, uma
camisola larga e sapatilhas —, comparando-me com o aspeto elegante do
Nicholas, que ia de camisa, calças de ganga e com uns mocassins reluzentes.
Sentei-me num dos sofás da receção enquanto ele se encarregava do registo.
Estava um pouco preocupada, porque fizera tudo menos repousar; na casa da
Jenna, era o Lion quem me levava para um lado e para o outro, e agora… se
pedisse ao Nick que me ajudasse, ia ter de lhe explicar tintim por tintim tudo o
que estava a acontecer naquela gravidez; uma parte de mim não queria contar-
lhe que o meu útero era incrivelmente deficiente e muito menos todas as coisas
que fizera mal nos primeiros meses… Agira como uma irresponsável… Só de
me lembrar de todo o álcool que consumira, ficava com náuseas e não era por
causa da gravidez, mas por minha causa, porque era incompetente até para isto,
bolas. Ainda me custava acreditar que não tivesse intuído que estava grávida…
Para minha sorte e do Mini Eu, os elevadores não ficavam longe e, quando o
Nick me pegou pela mão para me levar na sua direção, agradeci-lhe do fundo
do coração. O empregado acompanhou-nos até ao quarto, que ficava no último
piso, e deixou ali as nossas malas. Quando entrámos, arregalei os olhos com
surpresa. O Nick deu uma gorjeta ao empregado, que se foi embora, e a seguir
ficámos sozinhos. Meu Deus, aquilo não era um quarto, era um autêntico
apartamento. Dei uns passos em frente enquanto admirava o chão de madeira
reluzente, a cama branca, enorme, com a cabeceira preta, a grande mesa
quadrada com cadeiras transparentes, o sofá imenso, a secretária e a vista
incrível para a cidade.
Tentei não me sentir assoberbada nem sequer pensar no dinheiro que aquela
suite devia custar e limitei-me a ir para a cama, sobre a qual o Nick abrira a
minha mala. Tirei o pijama. A seguir fui para a casa de banho. Tomei um duche
que me ajudou a relaxar… não sabia o que ia acontecer entre nós, havia uma
vibração estranha no ar.
Quando saí da casa de banho — já com o pijama de calções e camisola larga
— o Nick estava encostado à mesa, à minha espera. Parecia perdido nos seus
pensamentos. Ignorei como ficava nervosa só por estar a sós com ele num
quarto, depois de tanto tempo, e sentei-me na cama, com as costas encostadas à
cabeceira, à espera de que um dos dois quebrasse o silêncio ou dissesse alguma
coisa sobre o gigantesco elefante que havia na sala.
Lembrei-me da última vez que estivéramos sozinhos numa cama… Acariciei a
barriga com cuidado e sustive a respiração. Sim, Mini Eu… tu estavas prestes a
entrar em cena.
— Estás a pensar em quê? — perguntou-me, olhando para mim tão
fixamente que o meu coração acelerou.
— Em nada… bem, estava a pensar na última vez que… sabes, quando eu e
tu…
O Nick cerrou os maxilares com força: acho que o que para mim era uma boa
recordação, a ele enfurecia-o.
— Fui um idiota… e um irresponsável.
Olhei para a sua expressão plena de amargura e desejei não ter dito nada.
— O que aconteceu naquela noite nunca devia ter acontecido — sentenciei,
para disfarçar como a sua atitude me deixava triste. — E a culpa não foi só tua.
O Nicholas franziu o sobrolho e fitou o meu rosto.
— O que aconteceu, Noah? — perguntou e quando ouvi o seu tom de voz
levantei os olhos e pousei-os sobre os seus, tão frios. — Mentiste-me?
— O quê?
— Perguntei-te se ainda tomavas a pílula, e tu disseste que sim, por isso
explica-me como raio isto pôde acontecer.
Ele perguntou-me sobre a pílula? Naquela noite estava tão absorta no que
fazíamos que não me lembrava de metade das coisas que dissemos.
Foi como se voltasse a partir-me o coração.
— Achas que fiz isto de propósito?
O Nicholas passou a mão pelo rosto, levantou-se e afastou-se de mim.
— Não sei o que pensar… Quando me disseste que estavas grávida, nem
sequer me passou pela cabeça que pudesse ser meu. Só percebi que era quando
me mandaste aquela segunda mensagem tão esclarecedora — disse, abrindo o
minibar e pegando numa garrafa. Sustive a respiração, sem dizer nada, queria
ouvir o que ele tinha para me dizer. — Fomos para a cama uma vez, raios! Uma
vez em quanto tempo? Um ano e meio, e acontece isto?!
— Preferias que fosse de outro homem? — Nem sequer reconheci a minha
própria voz. De repente só queria fugir dali.
— Sabes perfeitamente que não.
Soltei o ar que estava a conter.
— És um grande cabrão por insinuares sequer que tentei enganar-te. Como se
eu pudesse ter algum interesse em engravidar aos dezanove anos! Sabes que
mais? Não precisas de fazer parte disto. Sou perfeitamente capaz de ir com a
gravidez para a frente sozinha. — Não era verdade, mas não ia reconhecê-lo
agora.
O Nick retribuiu-me o olhar como se o tivesse insultado.
— É isso que queres? — perguntou então e vi que a veia do seu pescoço
começava a latejar com mais força do que era costume. O maxilar ficou tenso, e
o olhar que me dirigiu deixou-me petrificada no meu lugar.
— Não tem de ser uma responsabilidade tua. Muitas mães são capazes de
criar os filhos sozinhas. Neste momento já tens demasiadas coisas na tua vida e
explicaste que não querias voltar a ver-me.
O Nick abanou a cabeça e soltou uma gargalhada amarga de que não gostei
nem um pouco. Claro que não sentia nada disto que estava a dizer, mas ele
deixara bem claro que não queria o bebé, que se arrependia do que acontecera, e
eu não ia ser aquela que o caçara, como milhares de mulheres faziam, só porque
ia ter um filho; não, nem pensar, seria muito difícil, sentia-me assoberbada só
de pensar no assunto, mas jamais o poria entre a espada e a parede.
— Tu sempre viveste a tua vida a querer resolver as coisas sozinha, nunca
deixas que ninguém te ajude ou te diga que estás enganada. E sabes uma coisa,
amor? Até dá pena. — Dito em voz alta, este «amor» pareceu-me o pior
insulto. — Mas vou dizer-te uma coisa, essa criança que tens dentro de ti é tão
tua como minha, por isso tem muito cuidado com o que dizes.
Demorei alguns segundos a mais a responder.
— Estás a ameaçar-me?
— Vou fazer parte da vida dessa criança, e ela vai ter o meu nome.
Por que razão aquilo que queria ter ouvido desde o primeiro instante agora
me fazia sentir tão encurralada?
— A criança terá aquilo que for melhor para ela, e quem vai tomar essa
decisão sou eu.
— Bem, parece-me que nenhum juiz negará que quem está mais bem
equipado para tomar conta do nosso filho sou eu, não achas? Tu não tens nada, a
não ser que vás pedir à tua mãe.
A emoção de o ouvir dizer «nosso filho» esfumou-se num instante. Arregalei
os olhos sem poder acreditar que a palavra «juiz» se tivesse metido no meio da
conversa.
— O que estás a querer dizer-me? — perguntei com um nó na garganta.
O Nicholas parecia fora de si, e a cada segundo que passava se transformava
mais num Nick que eu não queria enfrentar.
— Estou a dizer-te que não vou deixar nenhuma ponta solta. Tu e eu não
vamos voltar a estar juntos, por isso vamos ter de deixar tudo muito bem
resolvido antes de dares à luz. O melhor seria termos a guarda partilhada…
Agora, se me dás licença, tenho coisas importantes para fazer.
Pegou no casaco e nas chaves sem sequer olhar para mim e saiu da suite,
batendo com a porta.
O medo e as lágrimas chegaram depois, acompanhados de uma enorme
sensação de impotência. Ele estava certo, eu não tinha nada, a não ser aquilo que
pedisse, mas que Deus não permitisse que o Nicholas Leister voltasse a dizer
algo de semelhante. Se a sua intenção era enfrentar-me, ia estar à espera dele,
mais preparada do que nunca.
38
NICK
Assim que o Nick saiu da suite, pedi um táxi, e duas horas depois estava rodeada
de caixas por abrir, metida na cama, a comer uma enorme tigela de cereais que
encontrei depois de muito procurar. Não tinha nada no frigorífico, nem leite,
mas pelo menos estava sozinha depois de tantas semanas a viver com a Jenna.
Não sabia onde estava com a cabeça quando aceitara ir com o Nicholas, como
se as coisas pudessem vir a ser como antes. O que acontecera entre nós não
podia desaparecer sem mais nem menos, era indiferente que estivesse grávida ou
que ele fosse o pai; as coisas que insinuara naquele quarto de hotel iam
permanecer na minha memória durante muito mais tempo do que qualquer
outra coisa que me tivesse dito no passado.
Como podia ele sequer acreditar que eu seria reles ao ponto de tentar prendê-
lo com a questão do bebé? Como se atrevera a insinuar que assim que ele
nascesse mo tirava?
Nem o queria ver à minha frente. Se as coisas antes já estavam mal, agora
tinham atingido um nível ainda pior. Tentei acalmar-me, não queria stressar o
Mini Eu, e, embora me tenha custado muito, acabei por conseguir adormecer,
pelo menos até às cinco da manhã, quando o meu telemóvel começou a vibrar
furiosamente.
Não queria falar com ele, raios! Só agora se apercebera de que me tinha vindo
embora? O que diabo esteve a fazer até esta hora?
Era melhor nem perguntar.
Enviei-lhe uma mensagem simples.
Deixa-me em paz.
Tive de ir ver a Sophia. Desde a noite da festa do Lion que não parava de me
ligar; estava furiosa porque, apesar de estar em Los Angeles, não tínhamos
passado nem três horas juntos.
A questão Sophia era algo que tinha de resolver. Na verdade, ao verificar o
pouco que me importava acabar com esta relação, percebi que ela jamais teria
funcionado: eu nunca poderia ser aquilo de que a Sophia precisava. Só a Noah
continuava a ser capaz de pôr o meu mundo de pernas para o ar, mas,
caramba!… Como não poria se bastava respirar para eu ficar louco?
Era tão estranho tê-la outra vez comigo, achava tão inusitado não andarmos a
matar-nos aos gritos, não ter de a odiar. Ao longo do último ano e meio, gastara
todas as minhas energias a odiá-la com toda a força que tinha, só para poder
esconder que a amava, só para conseguir acalmar a vontade terrível que tinha de
voltar a correr para o seu lado, para lhe implorar que voltasse a estar comigo.
Tinha precisado de recorrer a muito autocontrolo para a deixar, para me ir
embora e me convencer de que podia refazer a vida com outra pessoa, mas tudo
não passava de uma mentira do tamanho de uma casa. Todos estes sentimentos
ficaram subitamente em pausa. O ódio parecia já não fazer sentido, e o amor
debatia-se para sair para a luz do dia. Uma parte cada vez maior de mim morria
por estar com ela, por a abraçar e nunca mais me mexer, com a Noah nos meus
braços. Senti um alívio… um alívio infinito. Odiar a mulher que amava tinha
sido a coisa mais difícil que fizera na vida. E agora algo me dizia que devia parar
de lutar, de nadar contra a corrente, que o meu caminho sempre estivera muito
claro, o meu destino era aquela miúda.
Depois de lhe dizer que o meu apartamento tinha tido uma inundação, a
Sophia também estava num hotel. Tive de inventar alguma coisa para ter tempo
e pôr as coisas em ordem. Estacionei e preparei-me para enfrentar alguém que
não queria magoar. Abriu-me a porta do quarto com um vestido bonito, cor de
ameixa. O seu rosto mostrava claramente que sabia que alguma coisa não estava
bem. Um «precisamos de falar» nunca augura nada de bom.
Entrei e não tirei o casaco, nem lhe dei um beijo nos lábios, como quase me
habituara a fazer. A Sophia franziu o sobrolho e convidou-me a entrar na sala da
suite. Uma vez ali, aproximei-me do minibar e servi-me de um copo. Ela
sentou-se no sofá de pele branca e observou-me enquanto eu evitava o seu olhar
e bebia um longo gole de uísque.
— Vais deixar-me, não é verdade? — perguntou, interrompendo o silêncio
repentino que se instalara entre nós.
Levantei os olhos e pousei-os no seu rosto.
— Acho que nunca cheguei a ter-te, Soph.
Ela abanou a cabeça e desviou os olhos para a mesa em frente.
— Achei… achei que a nossa relação estava a avançar, Nicholas. O que te
disse? O que te fiz para agora mudares de opinião? Porque ainda há uma
semana estavas a dizer que querias viver comigo.
Raios, sim, tinha-lhe pedido para vivermos juntos, estava farto de me sentir
mal por causa da Noah, cansado de acordar sozinho durante a noite, a pensar, a
questionar-me se tinha feito o mais correto em deixá-la partir…
— Eu sei… e lamento muito, a sério que sim. Não fiz nada disto para te
magoar, Sophia, mas não posso continuar a negar aquilo que sinto pela Noah.
Se não estiver com ela, prefiro não estar com mais ninguém. Disse-te que o
nosso envolvimento não tinha compromisso, e tu aceitaste, depois as coisas
foram mudando, e não digo que a culpa tenha sido tua, eu também me deixei
levar porque era…
— Fácil? — interrompeu-me ela.
Fiquei calado a olhar para ela. Sim, acertara em cheio. Estar com a Sophia era
fácil, agradável, correto, mas não tinha a menor paixão, magia ou aquele desejo
irracional de a ter, de a possuir, de a fazer minha… Só conseguira sentir isso por
uma pessoa.
— Prefiro acabar isto agora e não te despedaçar o coração mais à frente.
Ela sorriu sem uma centelha de alegria nos olhos.
— O que te faz pensar que não o despedaçaste já?
Não esperou que lhe respondesse, levantou-se do sofá, virou-me as costas e
entrou no quarto. Pensei em ir atrás dela, em pedir-lhe desculpa, em dar-lhe
mais motivos pelos quais aquilo não ia funcionar entre nós, mas a Sophia era
mesmo assim. Ela não ia insistir, não ia suplicar… se me amava, a sua forma de
amar não era a melhor, e um dia acabaria por descobrir.
Eu não era o homem da sua vida.
As duas noites seguintes foram estranhas. O Nicholas passava o dia quase todo
no escritório e, quando chegava, a altas horas da noite, já eu estava envolta num
sono quase profundo. Quando abria os olhos, os lençóis do seu lado não tinham
um único vinco, e encontrava um bilhete a desejar-me um bom dia e a pedir
que não fizesse nada que pudesse prejudicar-nos, a mim e ao bebé.
Na véspera de acabar a minha reclusão e ir à consulta no hospital, obriguei-
me a ficar acordada no sofá, muito irritada porque mal conseguia manter-me
quieta no lugar. As coisas ainda estava tão confusas que a ansiedade e o facto de
estar há quase quarenta e oito horas sem ter uma conversa de jeito com
ninguém começava a afetar-me perigosamente. Sentia-me ansiosa, nervosa, e em
certas ocasiões o medo de que tudo corresse mal ou do que me pudessem dizer
na consulta fazia que os dias, as horas e os minutos passassem com uma lentidão
desesperante.
Eram quase duas da manhã quando a porta do nosso quarto se abriu quase
sem fazer barulho. O sofá estava afastado no lado esquerdo, mas qualquer pessoa
que ali entrasse via-o perfeitamente. O Nick parou, surpreendido, quando me
viu sentada, e algo no seu olhar conseguiu fazer-me sentir o mesmo que uma
pessoa que cai em voo picado numa montanha-russa com trinta metros de
altura.
— O que fazes acordada? — perguntou, controlando a expressão e pousando o
casaco sobre uma banqueta junto à entrada. Ao olhar para ele, verifiquei que
não vinha da empresa, a sua roupa era informal, embora fosse elegante, mas não
tinha gravata nem nenhum dos fatos que mandara ir buscar ao seu apartamento.
— Estou à tua espera — disse, reparando no tom irritado da minha voz. Ele
tinha liberdade de sair, de se encontrar com pessoas e de se comportar como
alguém adulto e sociável; eu, pelo contrário, tinha de estar metida naquele
quarto sem ninguém com quem partilhar o meu medo e ansiedade.
— Devias estar na cama — comentou e, para meu assombro, quando se
aproximou de mim, inclinou-se para me levantar ao colo e me deitar ele
mesmo. Agarrei-me ao pescoço dele, surpreendida que voltasse a tocar-me
depois de dois longos dias em que quase não nos cruzámos.
O meu corpo vibrou como nunca, e desejei voltar a partilhar a intimidade que
tínhamos quando estivemos juntos. Será que se arrependera? Voltara a odiar-me
como antes, mas disfarçava por causa do bebé?
Agora nem sequer me olhava nos olhos, não desde que prometi que ficaria
longe do Michael. Tinha receio de que o seu regresso tivesse despertado todas as
recordações que ainda existiam na sua cabeça, recordações e mágoas que
pareciam não querer desaparecer. Tinha medo de que finalmente, e depois de
tudo o que acontecera, o Nick continuasse a pensar que o melhor era
continuarmos separados e que nada, nem sequer um filho seu, o faria mudar de
opinião a este respeito.
Quando me pousou na cama, não larguei a sua nuca. Puxei-o com a intenção
de que não me largasse. Pedia-lhe assim um beijo, e, quando parou mesmo por
cima dos meus lábios, tão quieto que o meu coração quase se paralisou, todos os
meus medos se revelaram justificados.
— Não posso, Noah — confessou num sussurro, pegando nos meus braços e
afastando-me de si. Nem sequer voltou para olhar de relance para mim, afastou-
se e entrou na casa de banho. Eu, pelo contrário, fiquei onde estava, a assimilar a
sua rejeição.
O meu coração parecia sangrar dentro do peito, percebendo que tínhamos
voltado ao início. Enrosquei-me debaixo dos cobertores e tentei que não se
apercebesse das lágrimas que caíam sem parar pelo meu rosto. Quando ouvi a
porta da casa de banho abrir, fiz de conta que estava a dormir, e foi então que
compreendi que o Nick não tinha dormido comigo na cama e puxado os lençóis
do seu lado depois de se levantar. Não, o Nick dormia no sofá, tão longe de
mim quanto aquele quarto permitia.
No caminho de regresso ao hotel, e agora que sabíamos que o bebé estava bem
e que já podia voltar à minha vida normal, comecei a fazer planos mentais para
conseguir retomar finalmente as rédeas da minha vida. Precisava de voltar a
sentir-me útil. Para uma pessoa como eu, habituada a andar sempre de um lado
para o outro, ter passado quase um mês na cama tinha sido como um pesadelo
horrível.
— Preciso de esticar as pernas, meu Deus, quero sair para correr, quero ir à
faculdade, voltar a trabalhar… — disse de forma sonhadora, enquanto olhava
pela janela.
— Não ouviste o que o médico disse? — perguntou o Nicholas com maus
modos. — O hematoma não desapareceu por completo, não podes voltar a fazer
essas coisas todas como se nada tivesse acontecido.
Voltei o rosto na direção dele.
— E tu, não ouviste o que ele disse? Posso fazer a minha vida normal. É fácil
falar quando não foste tu quem teve de estar um mês esticado na cama.
O Nicholas expirou pelo nariz e agarrou no volante com força.
— Temos de falar sobre o meu apartamento do centro… Sei que não queres
ficar lá e respeito, mas temos de pôr as coisas em ordem. O hotel é bom, mas ali
chamo demasiado a atenção, e isso é a última coisa que quero agora.
«Temos?»
— Tenho o meu apartamento pago e à espera de que me instale, Nick —
disse-lhe, desejando poder voltar para lá e passar algum tempo sozinha a
preparar-me para o que aí vinha. — Tu podes voltar para o teu.
— É isso que queres? Que vivamos separados? — o tom da sua voz transmitia
dor, uma dor que se misturava com a irritação que as minhas palavras
provocavam.
— Não podemos viver juntos basicamente porque não estamos juntos.
Por mais que o detestasse, era esta a realidade.
— Por amor de Deus, Noah, as coisas mudaram, não achas?
Abanei a cabeça, era exatamente isto que não queria que acontecesse.
— O que mudou foi que vou ter um bebé, mas ninguém disse que eu e tu
tínhamos de voltar por causa disso. Já aceitei que não vai acontecer, por isso…
— Por isso, o quê? — disse, virando bruscamente para a direita e entrando no
estacionamento do hotel. — Já sei que fiz asneira, mas agora vou cuidar de
vocês.
— Vais cuidar de nós? — respondi, indignada. — Eu não sou uma
responsabilidade tua e não quero estar com alguém que me disse de forma
bastante clara que não ia conseguir amar-me e muito menos confiar em mim,
por isso voltámos à estaca zero. Podes cuidar do bebé comigo, mas é tudo: não
vou viver contigo, não vou fazer aquilo que me mandas e nem sequer vou
mudar de médico. Até ao dia em que der à luz, sou eu quem toma as decisões,
e, quando o bebé nascer, pomos as coisas em ordem para o podermos criar
juntos, mas cada um na sua casa.
Saí do carro e bati com a porta. Era exatamente isto que temera desde o início,
que o Nicholas visse a gravidez como uma forma retorcida de voltar a estar
comigo. Mas não era assim que as coisas se faziam, não precisava da compaixão
do Nicholas nem queria estar à sua responsabilidade… Por amor de Deus! Por
mais que a sua rejeição ainda me magoasse, jamais lhe faria uma coisa destas,
jamais o obrigaria a voltar a ter uma relação comigo.
O Nicholas manteve-se em silêncio até chegarmos ao quarto.
— Então, o teu plano é cada um de nós prosseguir com a sua vida. E depois?
Ficamos com a guarda partilhada? É isso que queres? — perguntou, sentando-
se na beira da cama e observando-me enquanto eu começava a tirar a minha
roupa dos cabides e a dobrava de uma maneira qualquer sobre a mesa que havia
em frente à cama. Os meus olhos afastaram-se da roupa por um segundo e
fixaram-se nele. Parecia tranquilo, mas, por mais que agora estivesse a conseguir
manter a calma, sabia muito bem o que se escondia por baixo daqueles olhos.
Ele não achara a menor graça ao que eu dissera no carro e, agora que o ouvira
dizê-lo em voz alta, não pude evitar sentir o mesmo. — Vamos ter de dividir os
dias, os fins de semana, as férias… É isso que queres? Queres que o nosso filho
cresça com os pais separados?
Os meus olhos humedeceram-se quando pensei na realidade horrível que me
apresentava. Sabia o que era crescer assim: durante metade da minha vida não
tive pai e passei a outra metade a esconder-me dele com medo de que me fizesse
mal. O Nick também teve de viver com os pais separados, além de que a mãe o
abandonara.
Por instantes imaginei o meu doce bebé, de grandes olhos azuis e cabelo louro
como eu, a passar por tudo o que nós tivéramos de passar, e o meu coração
encolheu-se de uma maneira que nunca sentira antes. Mordi o lábio e tentei
controlar o tremor; o Nicholas levantou-se e veio até mim.
— Deixa-me cuidar de ti — pediu-me então enquanto me acariciava o rosto
com a mão e os olhos mergulhavam nos meus com uma determinação férrea. —
Sei o que te disse, sei que disse que não ia ser capaz de te perdoar e desde que
me fui embora que não consigo tirar esse momento da cabeça: a tua reação, a
tua tristeza… perseguiram-me todos os dias em que estivemos afastados, Noah.
As coisas mudaram, e agora a minha forma de encarar tudo isto não é a mesma,
vejo tudo com cores diferentes. Quando vi o nosso filho naquele ecrã, Noah…
Caramba, senti-me o homem mais feliz da Terra, e não só porque vou ter um
bebé maravilhoso, mas porque vou tê-lo com a mulher que virou o meu mundo
do avesso.
Fechei os olhos com força e senti uma lágrima a boicotar o meu autocontrolo.
O Nick apoiou a testa sobre a minha e suspirou, envolvendo-me no seu alento
morno.
— Nós magoámo-nos muito um ao outro, sardas, não penses nem por um
segundo que não tenho noção de cada palavra horrível que te disse. Não duvides
de que te quis ver a sofrer como eu sofri depois do que aconteceu com o
Michael, mas nunca, Noah, nunca deixei de pensar que és tu a mulher da minha
vida.
Abri os olhos.
— Deixei a Sophia, Noah.
Reparei que o meu coração acelerava ao pensar neles juntos, nas noites que
passei a chorar na cama depois de os ver nas revistas ou na televisão. As coisas
que o Nick me dissera sobre ela, que era uma mulher melhor para si, mais
adulta, mais inteligente, mais tudo… tudo continuava presente na minha
memória, e percebi que seria sempre como um espinho cravado no meu coração.
— Pois não devias tê-lo feito. — Não estava a olhar para ele ao falar, mas a
sua mão segurou-me no queixo e levantou-mo para me obrigar a fazê-lo. Não
compreendeu as minhas palavras, e continuei a falar de forma quase atropelada.
— Nicholas, tu não vais conseguir esquecer que te traí com outra pessoa, e eu
não aguentaria perder-te outra vez… Tenho medo, estou tão assustada que a
última coisa que quero fazer agora é experimentar para ver se isto entre nós
pode voltar a funcionar ou não.
— Deixa-me mostrar-te que o que disse agora é a mais pura verdade, Noah.
Abanei a cabeça, e então segurou-me o rosto entre as mãos e beijou-me como
eu sempre desejara que fizesse desde que nos separámos. Os seus lábios
pousaram sobre os meus, uma vez, duas vezes, e fizeram a pressão suficiente para
me arrancarem um suspiro. A língua entrou na minha boca, e derreti-me com o
seu sabor, derreti-me ao senti-lo contra o meu corpo, o braço dele levantou-me
pela cintura, e as minhas pernas rodearam as suas ancas. Mordeu-me o lábio,
sugou-o e depois beijou-me à espera de uma resposta que não voltou a aparecer.
As suas palavras deixaram-me paralisada. Foi o momento em que vi a luz ao
fundo do túnel, vi-a claramente, mas também percebi que para chegar até ela
teria de ultrapassar todo o tipo de obstáculos, obstáculos esses que não tinha a
certeza se conseguiria superar.
O Nicholas afastou-se da minha boca e pousou-me no chão.
— Nestes últimos dias nem sequer me tocaste… pensei que…
— Não te toquei porque sabia que, se começasse, não ia poder parar —
justificou-se, apoiando a testa sobre a minha. — Queria dar-te espaço, não
queria forçar-te a fazer nada que não quisesses…
Fiquei sem palavras.
— Vou ter um filho contigo, Noah — disse, olhando-me nos olhos —, e vai
ser ao teu lado, por mais que demore a mostrar-te que não pretendo ir a lado
nenhum.
Meus Deus… estaria a falar a sério? Seriam verdade estas palavras? Queria
este homem com toda a minha alma e só desejava que ele voltasse a amar-me
como eu o amava a ele.
— Vamos devagar, Nick — pedi-lhe, e ele endireitou-se para, com um
sorriso, olhar diretamente para os meus olhos cor de mel.
— Melhor do que isso: vamos começar do zero — decidiu.
43
NICK
Ajudei-a a pegar nas coisas e fizemos as malas juntos. Enquanto a Noah andava
de um lado para o outro no quarto, observava-a disfarçadamente, embevecido.
Sabia que não ia ser fácil provar-lhe que as minhas intenções e palavras eram
verdadeiras, menos ainda depois de praticamente lhe ter jurado que não íamos
viver juntos. Mas para mim era indiferente, porque no fundo do meu coração
sempre desejara que acontecesse alguma coisa e que o motivo que me obrigasse
a voltar para ela fosse suficientemente justificável para não sentir que estava a
enganar-me a mim mesmo.
O meu maior medo sempre fora perdê-la de vez. Quando me traiu e nos
separámos durante mais de um ano, achei que estava a fazer o que era mais
correto. Eu não perdoava com facilidade, nisso a Noah tinha toda a razão: a
minha própria mãe, doente com cancro, ainda se debatia para conseguir o meu
perdão, e eu continuava a guerrear comigo próprio para lho poder dar.
«Perdão», era apenas uma palavra… mas era tão importante. A Noah era a
pessoa a quem abrira o meu coração quase completamente, e agora, depois de
saber o que significava perdê-la, saber também que havia uma desculpa para
poder unir-me a esta mulher para o resto da vida dava-me toda a segurança que
me faltara desde o início da nossa relação.
As palavras que lhe disse quando nos despedimos da última vez eram
verdadeiras, pelo menos acreditava nelas quando lhas dirigi. Achava mesmo que
não havia nada que a Noah pudesse fazer para mudar a minha opinião e agora
apercebia-me de que sim, havia uma coisa que podia invalidar completamente
esta afirmação. Sempre me senti como a segunda opção de muitas pessoas. O
meu pai sempre preferira os negócios a mim, e, até agora, depois de conhecer
toda a sua história, sabia que ele amava mais a segunda mulher do que o seu
primeiro filho; a minha mãe, bem, a minha mãe deixara-me para ficar com
outro homem, pusera a sua vontade de vingança contra o meu pai à frente do
amor que devia sentir por mim… e a Noah… a Noah tinha problemas muito
mais graves do que os meus e, por mais que tentasse mostrar-me que me amava
loucamente, para mim sempre foi mais fácil esperar o pior, não acreditar de
todo nela e rezar para que tudo corresse bem. Sabia perfeitamente que os nossos
problemas e inseguranças acabariam por nos trazer ao ponto em que estávamos
agora, mas ao fim de quase vinte e cinco anos encontrara finalmente aquele algo
que me fizera tanta falta para poder relaxar e acreditar que, sim, o amor era
possível e que, sim, havia alguém capaz de me amar acima de todas as coisas.
Este menino que estava a caminho era a minha esperança de um amor
incondicional, e a pessoa que mo dava era nada mais nada menos que a mulher
que eu amava e me amava com todo o seu coração. Como não havia de a
perdoar? Como não havia de deixar o passado para trás quando ela acabara de
me dar tudo aquilo que sempre desejara, embora não o soubesse, desde o
instante em que a vi?
Sentia finalmente paz, paz na minha alma e na minha mente. Foi como se, de
repente, a tempestade que tomara conta do meu mundo se dissipasse e deixasse
no seu lugar um sol radioso que chegava a cegar-me. Acho que é isto que se
sente quando se perdoa alguém de verdade. Uma calma infinita… um amor
incondicional.
Apesar da conversa intensa que tivera com o Nick na noite anterior e depois de
tantas emoções juntas, como descobrir que ia ter um menino e que estava tudo
bem, havia muitos meses que não dormia tão bem. Dormi como uma pedra, ou
como um bebé, nunca a expressão veio mais a calhar, mas o meu despertar não
foi tão agradável como aquelas horas em que permaneci quase inconsciente.
Senti uma cãibra percorrer-me o corpo todo e um suor frio que me molhava a
nuca e as costas. Abri os olhos e, de repente, experimentei umas náuseas
imensas que me fizeram sair a correr em direção à casa de banho para vomitar o
pouco que conseguira meter no estômago na noite anterior.
Deus do Céu.
Estive um bom bocado ajoelhada em frente à sanita, com a testa pegajosa e as
pernas a tremer. Quando já não tinha nada para deitar para fora, senti-me com
forças para entrar no duche e tentar recuperar do que tinham sido os meus
primeiros enjoos matinais.
Não deveria aquilo acontecer logo no início da gravidez?
Tudo o que estava relacionado com o meu bebé parecia ser diferente das coisas
que lia ou que sempre presumira. Cada mulher é um mundo em si, pronto,
muito bem, mas, caramba… pensei que já me tinha livrado daquilo.
Naquele dia ia ter de ir às aulas, não podia continuar a faltar, e também tinha
de voltar a trabalhar. Passei nos exames todos e agora precisava de dinheiro,
mais do que nunca. Quando saí da LRB, o Simon ofereceu-me um emprego na
sua antiga empresa, e eu disse que ia pensar no assunto. Agora que já estava em
condições de voltar a trabalhar, liguei-lhe, e ele disse-me que podia começar na
próxima segunda-feira, ou seja, naquele dia. Tinha pavor de admitir que estava
grávida, mas não podia continuar a esconder a minha situação.
Vesti uma saia com roda e uma camisola preta, já que não quis passar pelo
amargo de boca de ver que as calças de ganga já não me serviam. Saí à rua com
uma fome terrível, as náuseas já tinham desaparecido, e a única coisa que me
apetecia era comer tudo o que tivesse a letra T: torradas, tofu, tortas, tiramisu,
tacos, talharim… estava tão concentrada nestes pensamentos que por pouco não
via quem estava à minha espera encostado a um Mercedes preto.
— Bom dia, sardas — cumprimentou-me, afastando-se do carro para vir ao
meu encontro. Antes de poder assimilar a sua presença, já ele me tinha dado um
beijo casto nos lábios. — Tomas o pequeno-almoço comigo? — perguntou um
segundo depois.
Assenti quase por inércia, e dez minutos depois estávamos sentados numa
cafetaria elegante do centro.
— Como estás? — perguntou-me enquanto me deliciava com um prato de
panquecas com xarope de ácer e sumo de laranja acabado de espremer.
— Depois de ter vomitado tudo o que tinha no estômago? Bastante bem.
O Nick ficou a olhar para mim perplexo.
— Vomitaste? Porque não me ligaste, Noah? — criticou, algures entre o
irritado e o preocupado.
Revirei os olhos.
— Acredita em mim… não ias querer estar presente; além disso, tenho quase
a certeza de que daqui em diante se vai repetir mais vezes, e não te posso ligar
de cada vez que me acontecer uma coisa tão normal como ter enjoos matinais,
Nick. Descontrai.
Não pareceu muito convencido com a minha explicação, mas ficou a olhar
para mim, divertido, enquanto eu comia como uma foca esfomeada.
— Hoje vais trabalhar depois das aulas?
Assenti enquanto acabava o que tinha no prato e lhe prestava um pouco mais
de atenção. Caramba, estava tão bonito! Como não me apercebera disso até
agora? Presumo que outro tipo de fome tinha subido alguns lugares até ficar no
cimo da minha lista de prioridades. Trocar o Nick por panquecas… Meu Deus,
devia ter vergonha!
— Não há nada que possa fazer para te convencer a voltares a trabalhar para
mim, pois não?
Pousei o garfo na mesa e olhei para ele, muito séria.
— Jurei a mim mesma que não voltaria a misturar-te com o trabalho,
Nicholas.
Assentiu, submerso nos seus pensamentos, e fiquei surpreendida ao constatar
que não se irritara, mas que parecia aceitar o que lhe dizia.
— Que tal se te for buscar quando saíres?
Hesitei por instantes.
— Não precisas de ser a minha ama-seca, Nick. Posso perfeitamente pegar no
carro e essas coisas.
Ignorou as minhas queixas.
— Mas quero fazê-lo — disse, muito sério.
Não ia discutir com ele por causa disso, por isso pedi-lhe que me fosse buscar
às sete. Quando me deixou no campus, ia dar-me um beijo na boca, mas, num
gesto instintivo, virei a cara, e os seus lábios roçaram no meu rosto. Saí antes
que pudesse dizer alguma coisa. Ainda me custava fazer de conta que não tinha
acontecido nada no passado, e queria ir com calma. Se sabia alguma coisa acerca
dos beijos do Nicholas Leister, era que podiam ser viciantes… e eu não estava
disponível para vícios desses.
Por mais que tivesse detestado afastar o Nick de mim, sabia que era o mais
acertado a fazer. Ele tinha de perceber o que sentia por mim, e eu tinha de me
questionar se voltar a estar com ele era o melhor para os dois.
Não queria acabar as coisas a mal, palavra de honra que não, não queria criar-
lhe problemas, mas para o Nicholas era tudo ou nada, e eu não podia
simplesmente apagar o que acontecera e abrir uma página nova. Não me sentia
segura, e menos ainda se ele não estava preparado para me amar. A atração era
uma coisa, o sexo era fácil, nunca tínhamos tido problemas nesse aspeto, o mais
difícil era que não sabíamos entender-nos, não sabíamos respeitar-nos
mutuamente e não podíamos começar de novo se ele tinha medo de voltar a
abrir-me o seu coração.
Apesar da discussão daquele dia, na manhã seguinte estava novamente à
espera, em frente ao meu apartamento. Tinha dois copos de papel na mão e,
quando desci as escadas e me aproximei dele, olhou para mim muito sério.
— Olá — cumprimentou timidamente.
— Olá — respondi, aceitando o copo que me dava.
Era chocolate quente… o meu filho já ia nascer viciado em açúcar.
— Vou-me embora daqui a três horas. Só vim despedir-me de ti.
Por mais que lhe tivesse dito que devia ir-se embora, as suas palavras
magoavam-me como punhaladas. Baixei os olhos para tentar esconder a tristeza,
mas ele segurou-me no queixo e obrigou-me a olhar para ele.
— Estou a fazer isto por ti — disse, acariciando-me a maçã do rosto com o
polegar. — Se aprendi alguma coisa durante todo este tempo em que estivemos
separados, e que acabou por nos destruir, é que não posso obrigar-te a fazer nada
que não queiras ou para o qual não estejas preparada.
Mordi o lábio com força.
— Por isso, vou-me embora hoje e vou ligar-te todos os dias. Vamos começar
por conversar, por fazer planos, contas-me as tuas inquietações e eu conto-te as
minhas, falamos sobre como queremos criar este bebé, pensamos nos nomes;
vamos falar do futuro, Noah, porque te amo, amo-te hoje e vou amar-te para o
resto da minha vida.
O meu coração parou de bater durante instantes, sem conseguir acreditar no
que estava a ouvir.
— Se não to disse antes é porque acredito que o amor não se deve exprimir
por palavras. Achei que seria suficiente tudo o que estou disposto a fazer, e, na
realidade, tu sabes no fundo do coração que isto é verdade, porque estás morta
de medo de me deixar entrar novamente na tua vida. Entendo porquê. E é por
isso que me vou embora. Estarei aqui para todas as consultas com o médico e
voltarei sempre que precisares de mim. Vamos com calma nos próximos meses,
mas, Noah, eu vou fazer parte da vida deste bebé. Vou voltar agora para Nova
Iorque para pôr as coisas em ordem, e o passo seguinte será mudar-me
novamente para Los Angeles. Entendes?
Fiquei sem palavras.
O Nick tirou-me o copo de papel da mão e pousou-o ao lado do seu, em cima
do carro. A seguir puxou-me e envolveu-me nos seus braços. Senti os lábios dele
no cimo da minha cabeça e o bater enlouquecido do seu coração.
— Vou pedir-te uma coisa antes de me ir embora… — anunciou. — Bem,
duas, na verdade — acrescentou com calma.
Esperei que se explicasse. Virou-me as costas e foi buscar qualquer coisa à
pasta. Quando voltou para junto de mim trazia um cartão na mão direita. Um
segundo depois, estendeu-mo: era um cartão American Express preto.
— Quero que o uses — disse simplesmente.
Nem sequer lhe toquei.
— Não.
O Nicholas suspirou frustrado.
— É uma extensão do meu cartão. Quero que o uses para comprar o que for
preciso. E não estou a sugerir que o faças, Noah, não vou ceder nisto.
Cruzei os braços, subitamente enjoada.
— Já te disse que não quero que me sustentes, Nicholas.
Ele fulminou-se com os olhos claros.
— Por que diabo tens de ser tão teimosa? E se fosse ao contrário? Se fosses tu
quem tinha mais dinheiro do que eu, e a tarefa de trazer o nosso filho ao mundo
fosse minha? Não ias querer dar-me tudo o que pudesse precisar, Noah?
Mordi o lábio. Sim, claro que sim.
— Então fazemos o seguinte — propôs, encostando a testa à minha. — Como
sei que não vais usar o cartão para ti, pelo menos usa-o com o nosso bebé, está
bem? Qualquer coisa que precises de comprar… por favor, paga com o cartão.
Bem… isso já podia fazer. Afinal, o Nick era o pai, e não ia privar o bebé das
comodidades de nascer com um pai que aos vinte e cinco anos de idade tinha
um American Express preto. Acabei por aceitar o cartão, contrariada, e ele
pareceu ficar muito mais tranquilo.
— Qual era a segunda coisa que querias pedir-me? — perguntei.
— Quero que o Steve fique contigo enquanto eu não estiver cá.
Arregalei os olhos.
— O quê? Não! Não preciso de uma ama-seca, Nicholas! E nem quero o
Steve atrás de mim o dia todo. Isso é ridículo!
— Bem, o trabalho dele é justamente ser teu guarda-costas, amor.
Olhei para ele a soltar lume pelos olhos.
— Porquê? Por que diabo queres pôr um guarda-costas atrás de mim?
O Nick olhou para mim com seriedade.
— Primeiro, porque isso vai fazer com que eu não enlouqueça em Nova
Iorque. Segundo, porque estás grávida e sozinha, o que significa que pode
acontecer-te alguma coisa, e, se isso sucedesse, nunca mais na vida me
perdoaria.
Abanei a cabeça, mas sabia que nada do que dissesse o faria mudar de ideias.
— Está bem — aceitei, rindo-me.
O Nick olhou para mim com uma emoção que não soube decifrar.
— Deixar-te aqui é a coisa mais difícil que vou fazer na vida, Noah.
Não queria que se fosse embora, mas precisávamos de fazer isto bem. Não
podíamos voltar a estragar tudo. Já não podíamos correr esse risco, não com
tudo o que estava em jogo.
Abraçou-me com força. Beijou-me a ponta do nariz e a seguir acariciou-me o
ventre com delicadeza.
— Cuida deste bebé.
Assenti e afastei-me para que entrasse no carro.
Entrei em pânico ao ver que ia realmente embora, mas no fundo do meu
coração sabia que era o que tínhamos de fazer.
Precisava que o Nick regressasse, o bebé estava cada vez maior e já se notava a
barriga. Não insisti porque sabia que, se não estava já comigo, era porque não
podia mesmo viajar. Não tinha a menor dúvida de que o Nick queria estar ali,
mais até do que eu, e isso deixava-me bastante nervosa. A minha mãe já me
ligara duas vezes a pedir que a fosse visitar e até me disse que passava pela
minha casa para irmos almoçar. Disse-lhe que estava em plena época de exames,
que quando pudesse a visitava, mas ela conhecia-me suficientemente bem para
reparar que estava estranha ao telefone.
— Estás a esconder-me alguma coisa, Noah, mas, tudo bem, quando nos
virmos falamos — disse-me na quarta-feira seguinte.
Além do Lion e da Jenna, o Steve era o único que sabia o que se passava. Eu
não lhe disse nada, mas bastava ver como me tratava para comprovar que estava
ao corrente de tudo. Presumo que conhecesse toda a situação: o Nick devia ter-
lhe dito.
Três semanas e meia depois de o Nick se ir embora, tive um grande problema
quando abri o meu armário e vi que já não tinha praticamente roupa que me
servisse. Não havia como escondê-lo. Entrei em pânico e liguei ao Nicholas sem
me importar que estivesse em reuniões ou ocupado. Ele atendeu ao primeiro
toque.
— Tens de voltar, Nicholas — pedi, tentando conter as lágrimas. — Já não
consigo esconder… estou gorda! A roupa não me serve, as pessoas já começaram
a olhar para mim de lado… Tens de voltar! Temos de pensar como vamos contar
isto aos nossos pais!
Estava a ter um ataque de ansiedade brutal, daqueles ataques dementes que de
vez em quando se apoderavam de mim.
— Só um segundo, se me dão licença — disse a alguém, que não a mim. —
Acalma-te, sardas — acrescentou, um instante depois.
— Não posso acalmar-me! — gritei horrorizada. Tinha o quarto num caos, a
roupa espalhada por todo o lado. Já nem a roupa interior me ficava bem,
achava-me horrível, e tinha medo de que, quando me visse, o Nicholas ficasse
espantado ao ver como o meu corpo mudara tanto em tão poucas semanas… —
Eu não consigo fazer isto… preciso de te ver, preciso que me dês um abraço,
que me digas que vai correr tudo bem, preciso…
— Acabei de te mandar um bilhete de avião para o e-mail — informou-me
então num tom de voz calmo e sereno, completamente oposto ao meu.
— O quê?
— Eu também preciso de te ver, mas não posso viajar este fim de semana, por
isso comprei um bilhete de avião para vires tu ver-me. Ia ligar-te esta noite para
te contar, mas, como estás a ter um verdadeiro ataque de ansiedade, é melhor
contar-te agora.
Soltei todo o ar que estava a conter e deixei-me cair sobre o sofá no canto da
sala.
— Vou ver-te este fim de semana? — perguntei, subitamente emocionada. As
últimas pontadas de ansiedade acabaram por desaparecer, como as ondas na
praia.
— Sim, meu amor. Achas que consegues aguentar sem enlouquecer só mais
dois dias?
Revirei os olhos e resmunguei, irritada.
— Se te estivesses a transformar num verdadeiro planeta, aposto que também
ficarias de mau humor, ó engraçadinho — respondei, tentando soar aborrecida,
mas sem conseguir.
Ia sentir finalmente os seus braços à volta do meu corpo e os lábios sobre os
meus!
«Ouviste, pequenote?» — pensei, acariciando a barriga. — «Vamos ver o
papá!»
Como não podia viajar até Nova Iorque com uma T-shirt dos Ramones como
única indumentária, tive de ceder às insistências da Jenna e ir comprar algumas
roupas de pré-mamã.
Detestava esta palavra: «pré-mamã»… Era horrível, fazia-me sentir como um
prato pré-cozinhado ou algo do género.
— Vais ver que vamos encontrar roupa juvenil e que te fique bem. Tens a
sorte de ser uma dessas raparigas que só engordam na barriga; se olhar para ti
pelas costas, nem sequer me ocorreria pensar que estás grávida, nem de longe
nem de perto.
— Olha, ótimo, Jenna, a partir de agora vou dizer a toda a gente que só fale
para a minha nuca.
Estava um pouco resmungona, mas a Jenna aguentava tudo com paciência e
alegria, coisa que ainda me deixava mais stressada.
Tentou levar-me a uma loja de alta-costura, mas recusei-me terminantemente.
Acabei por ir à gap, em que se me desviasse um pouco para a direita,
encontrava roupa de senhora, normal e moderna, coisa que me dava um enorme
alívio mental.
Por algum motivo, a roupa de grávida era três vezes mais cara do que a
normal, e fiquei angustiada ao perceber que ia ter de usar o cartão do Nick.
Ainda não lhe tinha tocado e odiava ter de o fazer para comprar aqueles trapos
estúpidos.
Fui diretamente para a zona da roupa desportiva: peguei num par de leggings e
em três camisolas de capuz. A Jenna, por sua vez, dedicou-se a fazer conjuntos
com três calças e camisas bonitas e também me escolheu um vestido cinzento
justo.
— Onde vais com isso? — perguntei horrorizada. — A ideia é esconder a
barriga, não exibi-la para todo o mundo.
A Jenna olhou para mim irritada.
— Para de esconder o meu afilhado, está bem?
As suas palavras chocaram-me por algum motivo que demorei a entender. O
bebé remexeu-se dentro de mim, inquieto. Agora já sentia quando ele estava a
dormir ou acordado. Também aprendera que, se comesse doces, as suas
perninhas começavam a dar pontapés na barriga, como se ficasse louco de
felicidade… Detestara não estar com o Nick para ele sentir os primeiros
pontapés, tinha sido um momento incrível e por isso precisava tanto de que ele
voltasse. Estava a perder tudo.
Não queria escondê-lo… já não queria.
Na sexta-feira à tarde apanhei o voo direto de Los Angeles para Nova Iorque.
O Nick comprara-me um bilhete para a primeira classe, o que agradeci como
nunca achei que faria. Se ficasse com enjoos, preferia ir vomitar a uma casa de
banho onde só entrava meia dúzia de passageiros. Porque, sim, eu não tinha
enjoos matinais, tinha enjoos em qualquer hora do dia. Mais uma coisa a somar
à lista de uma gravidez completamente fora do comum.
O voo demorava cinco horas e meia a chegar a Nova Iorque, e fui a dormir
durante a maior parte do trajeto. Cheguei por volta das nove da noite. Dei
ouvidos à Jenna e, arranjei-me um pouco melhor e decidi pôr o vestido cinzento
justo ao corpo, um casaco preto e as minhas sapatilhas Adidas favoritas. Estava
confortável, e a minha pequena barriga evidenciava-se como se quisesse dizer ao
mundo: «Cheguei!»
As pessoas olhavam para mim de um modo estranho, havia uma energia
estranha quando se estava grávida, era como se fosse uma pequena bomba-
relógio para quem as pessoas olham com felicidade, nervosismo e admiração.
Era a primeira vez que andava oficialmente na rua como uma grávida, e, não sei
se consigo explicar-me bem, gostei da sensação. O Steve tinha vindo sentado ao
meu lado; era um homem de poucas palavras que apanhei a ler a biografia de
Pablo Escobar. Não fiz qualquer comentário, mas ri-me sem ele ver.
O Nick estaria à minha espera no aeroporto e depois íamos jantar no seu
apartamento.
Meu Deus, estava tão nervosa, tinha tanta vontade de o ver… Dissemos
muitas coisas, algumas das quais nem me atrevia a pronunciar em voz alta, e
morria para me sentir novamente parte de si, parte da sua vida.
Como não fizera o check-in da mala, quando saímos do avião pudemos ir
diretamente para a porta de saída. O Steve levava a minha pequena mala. Não
que eu não pudesse com ela, nada disso, mas ele ficou com um mau humor tal
que acabei por ceder e deixar que me ajudasse. Os meus passos foram-se
tornando cada vez maiores… Queria vê-lo, queria chegar depressa, para voltar a
sentir-me completa.
Chegar até à saída demorou uma eternidade. Quando atravessámos finalmente
a porta, vi-o: ali estava, com um ramo de rosas vermelhas na mão, à minha
espera. Vestia umas calças de ganga e uma camisola de malha azul-marinho.
Destacava-se da multidão pelas flores e pelo cabelo revolto e olhos azuis-
celestes, que brilhavam como dois faróis ao entardecer de um bonito dia de
verão.
Sorrimos um para o outro como se tivessem acabado de nos injetar felicidade
líquida nas veias. O meu coração inchou tanto que pensei que não ia caber-me
no peito.
Mas depois… como se estivesse no meio de um filme de terror, algo
aconteceu.
Não sei se já alguma vez passaram por algum acontecimento traumático, um
evento que vos tenha mudado para sempre. Algo que acontece em câmara-lenta
mesmo em frente aos nossos olhos e em que o cérebro regista cada pormenor
que pagaríamos para esquecer.
Eu vi tudo… e ainda recordo cada maldito detalhe daqueles quinze segundos
em que acreditei que ia morrer.
Recordo-me do grito que ficou afogado na minha garganta. Também me
recordo que as minhas pernas ficaram paralisadas e que não consegui fazer nada
para começar a correr.
O estrondo do primeiro tiro rebentou a bolha de felicidade em que nos
encontrávamos. A mim deixou-me cravada no sítio; ao Nick, pelo contrário, fê-
lo cair ao chão. Ele recebera o impacto da bala pelas costas, à traição.
Ainda consigo ver a expressão de surpresa do Nick quando baixou os olhos e
viu que a mancha de sangue alastrava sobre a sua roupa e no chão, junto aos
seus pés. O segundo tiro surgiu tão rápido como o primeiro. Vi a dor refletida
no seu rosto, senti o meu coração a parar… literalmente, a parar.
Então, tudo aconteceu muito depressa. Alguém me bateu por trás, caí ao chão
e voltei a mim. Até àquele instante, tudo estivera em silêncio, o alvoroço do
aeroporto, as pessoas a movimentarem-se ao meu lado, tudo se apagara para me
deixar ouvir apenas o som da pistola a disparar.
— Noah, não te mexas! — gritou-me o Steve ao ouvido, arrancando-me da
minha letargia, do maldito estado de choque.
Vi, desta feita a uma velocidade normal, quatro polícias derrubarem aquele
homem e as pessoas correrem por todo o lado, completamente horrorizadas. Os
meus olhos só conseguiram fixar-se na pessoa que estava como eu, caída no
chão, com os olhos abertos e a vida a escorrer-lhe entre os dedos.
— Nicholas!
47
NICK
Acho que é verdade aquilo que dizem que quando estamos prestes a morrer,
toda a vida nos passa à frente dos olhos, numa espécie de projeção de
diapositivos… embora não seja exatamente assim. Porque eu só vi uma coisa: a
Noah.
Não precisava de pensar muito para perceber que a Noah era toda a minha
vida, era simples. As imagens que desfilaram perante os meus olhos não foram
os melhores momentos da minha vida, mas os da nossa, e não da vida que
tínhamos partilhado até então, não. Não vi aqueles instantes cheios de altos e
baixos, nem os da separação, da traição ou das brigas… vi exatamente o oposto:
vi a minha vida futura com ela.
Vi-nos a caminhar pela praia, a celebrar o aniversário do nosso filho, vi-a a ela,
linda e radiante, à minha espera todas as noite na cama para me cobrir de beijos
e atenções. Vi-a engravidar outra vez, e agora estávamos mais preparados do que
nunca, sem surpresas, sem medos e sem inseguranças. Vi-a comigo na cozinha,
estávamos a discutir e logo a seguir a devorar-nos com beijos ali mesmo, em
cima da bancada. Vi-a a chorar, a rir, a sofrer e a crescer. Vi a sua vida à frente
dos meus olhos, a sua vida comigo… e adorei-a.
Só que depois questionei-me: «Por que razão estou a ver isto? Porque sinto
que me estão a mostrar uma coisa que nunca vou conseguir ter?» Senti um
buraco a abrir-se no meu peito, um vazio que me percorria por inteiro…
Não.
É que nem a brincar.
Ainda não chegara a minha hora.
48
NOAH
Não sei como explicar os minutos que se seguiram aos tiros, mas posso afirmar
com toda a certeza que foram os piores da minha vida. Guardo-os na memória,
um pouco esbatidos, mas ao mesmo tempo tão claros como se os tivesse visto no
ecrã de uma televisão de última geração.
Segundo me disseram mais tarde, a ambulância não demorou muito a chegar
ao aeroporto. A mim pareceram-me horas, horas eternas em que as minhas mãos
pressionaram o ferimento que o Nick tinha mesmo à altura das costelas. O
Steve, por sua vez, também pressionava o orifício que a bala lhe deixara no
braço esquerdo, destroçando-o. Havia um charco de sangue à volta do Nick, e
eu só me questionava a que velocidade o nosso corpo é capaz de criar sangue
novo e se essa velocidade seria o suficiente para compensar o sangue que ele
estava a perder agora.
Não desmaiei. Acredito que Deus me ajudou a ficar de pé, pelo menos até o
pessoal médico aparecer para se encarregar da situação. Quando a ambulância
chegou e me levantei, ao olhar para mim, senti as mãos separadas do meu corpo
e a minha mente completamente vazia. Nem fui capaz de pedir que me
deixassem acompanhá-lo. O Nick foi levado sozinho, à beira da morte, e eu
fiquei ali parada a vê-lo partir.
Recordo-me de que, quando deixei de ouvir o barulho da ambulância, olhei
para baixo, para as minhas mãos cheias de sangue, e só então fraquejei. Os
soluços deixaram-me praticamente sem respiração, e comecei a chorar
descontroladamente. Umas mãos agarraram-me antes que os meus joelhos
cedessem e caísse no chão.
— Respira fundo, Noah, por favor — disse o Steve, levando-me consigo,
tirando-me dali, afastando-me das pessoas que olhavam para a cena
horrorizadas, como se tudo aquilo fizesse parte de um episódio horrível do CSI.
Meteu-me num táxi, e fomos para o hospital. À medida que os minutos
passavam, pior me sentia.
— Porque foi sozinho na ambulância? Porque não foste com ele? Porque não
fomos os dois com ele?
— Não nos deixaram, Noah — respondeu o Steve enquanto pegava no
telemóvel e começava a marcar números à velocidade da luz.
O trajeto mais próximo entre o aeroporto e as Urgências do hospital demorava
treze minutos de carro, vinte e cinco com trânsito. Demorámos vinte minutos
certos. Quando chegámos, preparei-me para sair do carro, queria ir a correr para
me dizerem que o Nicholas estava bem, só queria vê-lo, precisava de o ver, a
imagem dele que tinha gravada na cabeça estava a matar-me, mas acho que
naquele momento tudo foi demasiado. Assim que pus um pé no chão, o mundo
desatou a girar e comecei a ver manchas negras por todo o lado. O Steve levou-
me até uma zona onde me sentaram e deram água.
Uma médica aproximou-se de mim e começou a tomar-me o pulso.
— Menina Morgan, preciso que se acalme — disse ela, enquanto olhava
fixamente para o relógio. — Ross, liga para as Urgências e pergunta pelo estado
do rapaz.
Olhei para o tal do Ross como se a minha vida dependesse dele.
Enquanto ele falava com alguém para perguntar pelo Nick, uma dor horrível
obrigou-me a agarrar a barriga com força.
— O que está a acontecer?
A médica voltou-se para mim, preocupada.
— Está a ter contrações — respondeu. — Tem de se acalmar, são provocadas
pelo stresse.
Antes de lhe poder responder, o tal do Ross aproximou-se de nós.
— O Nicholas Leister está no bloco operatório com dois ferimentos de balas.
Está estável, tendo em conta a gravidade do quadro. Vai ser operado ao pulmão
e ao braço esquerdo.
— Oh, meu Deus! — exclamei tapando a boca com a mão. — O que lhe vão
fazer? O que significa estável, tendo em conta a gravidade do quadro? Ligue
outra vez e peça que lhe expliquem o que está a acontecer!
A médica voltou a examinar o meu historial.
— A menina é casada com o senhor Leister?
— Quê? Não. O que tem isso que ver com o resto?
O Ross respondeu por ela:
— Não podemos dar-lhe informações, menina Morgan. Só um familiar direto
pode…
— Ele é o pai do meu filho! — gritei, desesperada.
Mas não valia a pena, não me disseram mais nada. O Steve ligou para o
William e para a minha mãe, e ambos foram para o aeroporto, para apanhar o
primeiro avião que conseguissem encontrar.
E eu tive de ficar ali, sem notícias. Só podia fazer uma coisa: rezar.
Uma hora depois, a hora mais negra da minha vida, as contrações pararam, e
tudo o que estava relacionado com o bebé pareceu voltar ao normal.
A minha mãe ligou-me para o telemóvel, estavam histéricos. O William
conseguira falar com um dos seus médicos. Graças a ele, fiquei a saber que o
Nick tinha um traumatismo no pneumotórax e os músculos do braço esquerdo
rasgados. Estava em estado grave, e temia-se que entrasse em choque devido ao
sangue que perdera até a ambulância chegar.
Recebi a informação, desliguei e fiquei ali sentada sem me mexer.
O Nick não podia morrer… não podia. Tínhamos de começar uma vida
juntos, tínhamos de acabar aquilo que começáramos. Depois de tudo o que
conseguimos ultrapassar, não mo podiam arrancar assim.
O atentado não demorou muito a aparecer nas notícias. O Steve preparou-se
para desligar a televisão, mas pedi-lhe que não o fizesse. O homem que tentou
matá-lo chamava-se Dawson J. Lincoln, tinha quarenta e cinco anos e era ex-
funcionário das Empresas Leister. Tinha sido despedido, não conseguira
encontrar outro emprego e por isso tentara assassinar o Nick.
«Nicholas Leister está a ser submetido a uma intervenção cirúrgica de
urgência devido a dois ferimentos de bala, enquanto o seu agressor se encontra
neste momento sob interrogatório numa esquadra da polícia, em Nova Iorque.
Tudo indica que foi um ato premeditado, já que o agressor parecia saber o local
e a hora exata onde o senhor Leister se encontraria para assim atentar contra a
sua vida.
»Nos últimos meses, o jovem advogado e herdeiro de uma das corporações
mais reconhecidas do país foi duramente criticado pela imprensa e pelos seus
ex-funcionários devido às centenas de despedimentos que teve de levar a cabo ao
longo do último ano. Ainda que as duas empresas encerradas estivessem à beira
da bancarrota…»
Deixei de ouvir quando o assunto se afastou do agressor. Outra vez aquela
conversa nojenta sobre o Nicholas. Não queria ouvir nada daquilo. Tinham
tentado matá-lo! Ao Nick! Esfreguei as mãos sobre a cara, precisava de saber
que ele estava bem, tinha de falar com o médico.
Não me mexi da sala de espera durante as três horas seguintes, só me levantei
para ir à casa de banho e para beber água. Aquele lugar era horrível, havia gente
a chorar, à espera de receber notícias sobre os seus entes queridos, exatamente
como nós. O cheiro de hospital sempre me deixara enjoada, e agora mais do que
nunca.
A única coisa que aconteceu naquelas três horas foi o aparecimento de dois
homens de fato, altos e fortes como o Steve, que falaram com ele durante alguns
minutos e a seguir se puseram ao lado das portas da sala de espera. Não lhes
prestei muita atenção, mas levantei-me quase de um salto quando dois
cirurgiões passaram pelas mesmas portas e se dirigiram a mim.
— É familiar de Nicholas Leister?
— Sou a namorada — respondi, tentando controlar o tremor da voz.
O cirurgião de cabelo encaracolado e curto foi o primeiro a falar.
— Só posso dizer-lhe que ele se encontra estável, mas as próximas horas vão
ser cruciais. Perdeu muito sangue, e tivemos de reparar muitos ferimentos
internos provocados pela bala que lhe perfurou o pulmão.
Assenti, mordendo o lábio com força, tentando não desmaiar.
— Ele vai ficar bem? — perguntei com a voz trémula.
— É jovem e forte. Vamos vigiá-lo a todo o instante.
Isto não respondia à minha pergunta.
— Posso vê-lo? — pedi, suplicando com o olhar.
Ambos abanaram a cabeça, embora olhassem para mim com pena.
— Só os familiares diretos, lamento.
Então o Steve pôs o braço sobre os meus ombros e puxou-me para si.
— Ele vai ficar bem, Noah — sussurrou-me ao ouvido enquanto me agarrava
à sua camisa com força, sem conseguir evitar chorar em silêncio.
O telemóvel começou a tocar, limpei as lágrimas e atendi. Era a minha mãe a
dizer que tinham conseguido arranjar voo. Um amigo do William emprestara-
lhe um jato privado, e dali a cinco horas estariam em Nova Iorque. Senti um
alívio imenso no peito ao perceber que ia ter a minha família comigo, que o
William ia poder saber mais sobre o estado do Nick… mas depois percebi que,
se eles fossem para lá, também me iam ver a mim…
Estava na hora de contar tudo… e, como temia, ia ter de o fazer sozinha.
*
Como não quis sair durante toda a noite, o Steve encarregou-se de que me
trouxessem a minha mala e qualquer coisa para jantar. Não tinha fome, mas
comi uma sopa com massa só para não ter de o ouvir insistir que comesse. Com
os meus objetos à minha disposição, fui até à casa de banho e mudei de roupa.
Vesti outra vez peças soltas e largas, que me escondessem pelo menos a barriga,
para a minha mãe não ter um enfarte assim que me visse. Ia contar-lhe, como
era evidente, mas tinha de encontrar o momento adequado. Não queria desviar
a atenção do que era verdadeiramente importante naquele momento: o Nick.
Assim, seis horas depois, seis horas durante as quais mal consegui pregar olho
e em que o meu pescoço, as costas e o ventre me doíam tanto como se tivesse
levado uma tareia, a minha mãe e o William entraram pelas portas da sala de
espera.
Não consegui evitar: corri para os braços da minha mãe; nunca na minha vida
precisara tanta dela. Ela abraçou-me com força e acariciou-me o cabelo com os
seus dedos compridos. A minha barriga incipiente estava entre as duas, mas ela
pareceu não se aperceber de nada. O susto que tomara conta do seu corpo, como
do de todos nós, não a deixou ver mais além do que era imprescindível.
Expliquei-lhes o que acontecera, e o Will foi falar diretamente com os
médicos. Não o deixaram entrar, mas disseram-lhe que de manhã ia haver uma
hora de visitas. O estado do Nick não sofrera alterações, nem para o bem nem
para o mal; por enquanto mantinha-se estável, o que, segundo os médicos, era
bom sinal.
Não tivemos muito tempo para falar. Dois polícias apareceram pouco depois
de eles chegarem e levaram-me a mim e ao Steve para recolherem os nossos
testemunhos. Contei-lhes tudo o que vira com os pelos arrepiados e o medo a
invadir-me o corpo. Nunca iria esquecer os estrondos dos disparos. Jamais.
Quando chegou a hora das visitas, só o William teve autorização para entrar.
Tive vontade de empurrar as portas e desatar a correr em direção aos Cuidados
Intensivos, tive vontade de gritar por não me deixarem passar, mas guardei
tudo para mim. Agora precisava de ficar tranquila, para poder ultrapassar tudo
o que estava a viver, para não prejudicar o bebé… o bebé…
Olhei para a minha mãe, preocupada, sentada ao meu lado com os dedos
entrelaçados nos meus.
A minha mãe… tínhamos passado por um mau bocado, tudo se tornara tão
difícil entre nós. Onde estava a relação que tínhamos quando vivíamos no
Canadá? Quando deixara de confiar nela, de lhe contar as coisas?
Respirei fundo e virei-me na sua direção.
— Mãe… — disse, engolindo em seco. — Tenho uma coisa para te contar…
A minha mãe dirigiu-me toda a sua atenção, olhou para mim, preocupada, e
julguei ver uma certa indulgência na sua expressão.
— Já sei o que me vais dizer, Noah — disse, apertando-me os dedos com
força. — E parece-me bem que tenhas reatado com o Nicholas, filha; mais do
que isso, fico feliz por saber que estão juntos outra vez.
Arregalei os olhos, surpreendida e também aliviada ao verificar que ela não
fazia a menor ideia de que eu estava grávida.
— Nunca deveria ter-me oposto à vossa relação… Ver-vos separados, ver
como viveram destroçados neste último ano… — continuou, enquanto cravava
os olhos nos meus — matou-me por dentro. Se o Nick é a pessoa que te faz
feliz, não vou intrometer-me na vossa vida. É a única coisa que quero, Noah,
ver-te feliz.
Assenti em silêncio, com os olhos húmidos e tentando formular as palavras
certas para confessar à minha mãe que estava grávida de seis meses. Grávida de
um rapaz que, até esse momento, nunca desejara para mim, o mesmo que era
seu enteado.
Como se dizia uma coisa dessas? Como se diz à nossa mãe que dali a três
meses vai ser avó? Reparei no olhar do Steve cravado em mim e, quando olhei
para ele, fez-me sinal para ser forte e contar tudo.
Ai, meu Deus…
— Mãe… — comecei, aproveitando o facto de o Will ter saído para ir beber
um café. — Tenho outra coisa para te contar… algo que não estava nos planos
de ninguém, mas que aconteceu sem mais nem…
Bem… não foi bem sem mais nem menos, mas também não ia entrar em
detalhes.
A minha mãe olhou para mim, preocupada, sem entender nada. Como não me
atrevia a abrir a boca, peguei-lhe na mão e pousei-a sobre a minha barriga. Os
seus olhos arregalaram-se imediatamente e afastou a mão um segundo depois,
assustada.
— Noah… diz-me que não… Diz-me que não estás…
Chegara a hora de contar a verdade.
— Grávida? — acabei a frase quase num murmúrio.
Inicialmente a minha mãe abanou a cabeça, depois percorreu o meu corpo
todo com o olhar até se centrar na minha barriga, bem, na barriga que estava
por baixo da camisola enorme do Nick.
— De quanto tempo estás…?
Engoli em seco para aclarar a voz.
— De seis meses, mas só descobri há dois meses e meio… Não queria
esconder-te isto, mãe, mas eu também fiquei estupefacta, como tu, e precisei de
tempo para interiorizar a notícia, para contar ao Nick e para tentar perceber o
que ia fazer com a minha vida…
— O Nicholas sabe?
O seu tom de voz era novo, um tom recém-criado no seu registo vocal,
presumo que seja comum a todas as mães quando as suas filhas lhes largam
bombas como esta em cima, vindas do nada.
— Sim, o Nicholas sabe.
A minha mãe abanou a cabeça e olhou para a minha barriga. Por mais medo
que tivesse tido ao fazer aquela confissão, agora sentia-me preparada para a
enfrentar a sua reação. Agora que o Nicholas estava a lutar pela vida, o bebé que
trazia dentro de mim era a única coisa que me mantinha de pé. Era a única coisa
que tinha dele, uma parte de si, uma parte de nós. Naquele instante e até que
eu deixasse de existir, este bebé seria a coisa mais importante para ambos, a
nossa âncora na tempestade, a nossa ligação infinita.
Peguei na mão da minha mãe e levei-a novamente à minha barriga.
Ela ficou com os olhos rasos de lágrimas, mas conhecia-a suficientemente bem
para saber todas as coisas que lhe passavam pela cabeça: que eu era muito
nova… que tudo ia ser difícil… Tantas vezes que me disse para esperar até ter
filhos, para estudar, para me preparar, para me formar e crescer…
Mas a vida é mesmo assim, imprevisível. Uma pessoa não consegue controlar
o futuro, nem sequer consegue controlar com quem vai chocar numa esquina.
Só sabemos que estamos no caminho certo depois de o percorrermos. O destino
trouxera-me esta situação e só podia enfrentá-la o melhor que soubesse… a
minha mãe ia ter de fazer o mesmo.
— É um menino — anunciei um instante depois.
A imagem do bebé nos meus braços surgiu então no meu pensamento. O meu
bebé, com as suas bochechas gordinhas e os olhos lindos… o meu bebé, cujo pai
podia nem chegar a conhecer.
A minha mãe abanou a cabeça, sem reagir.
— Se o Nick não se safar disto, não sei o que vou fazer — confessei, morta de
medo. A minha mãe abraçou-me com força, chorámos as duas, não sei durante
quanto tempo, só sei que dissemos coisas muito bonitas uma à outra. Claro que
ela também me repreendeu por ter sido tão irresponsável e por não lhe ter
contado antes. Conversámos enquanto estivemos ali sentadas, até podermos
contar tudo ao William.
O Will quase morria de susto também. Nunca o tinha visto tão devastado, tão
preocupado e tão tremendamente destroçado.
Cada pessoa ama os seus filhos à sua maneira, e, para o Will, o Nick seria
sempre aquele menino moreno de olhos azuis que metia rãs nos bolsos das
calças.
O Nick tinha de ficar bom… não só pelo nosso bebé, mas por todos nós.
Ninguém suportaria perdê-lo. Ninguém.
49
NOAH
Abri os olhos não sei quanto tempo depois, mas não pode ter sido muito,
porque continuávamos no ar. Lá fora já era noite, e a nossa iluminação eram as
luzes pequenas nos lados da cabina.
O Nick estava a olhar para mim, já acordado, brincava distraidamente com
uma madeixa do meu cabelo.
— Acho que nunca te disse como gosto das tuas sardas — comentou então,
acariciando-me o rosto, a orelha e o pescoço com os dedos compridos.
— Já disseste, sim — contradisse-o sem afastar os olhos dos seus.
— Posso ter dado a entender… mas não o expressei claramente por palavras.
Sei onde está cada uma delas, e também reparo quando te aparece uma nova…
fico louco com elas.
Sorri, divertida, com a intensidade com que falava daquelas marcas pequenas
que sempre odiara até o conhecer.
— Achas que o bebé vai ter sardas como as tuas? — perguntou-me então,
divertido.
— Acho que os bebés não têm sardas, Nick — afirmei com um sorriso.
Os seus dedos começaram a brincar com a pele esticada do meu estômago.
— Está muito maior do que a última vez que te vi — disse, fazendo círculos
com o polegar mesmo por cima do meu umbigo.
Estremeci da cabeça aos pés.
— É uma forma subtil de me dizeres que estou gorda — respondi enquanto
fazia uma careta.
— Estás perfeita. Nunca te vi tão bonita como estás agora, meu amor.
Senti uma vertigem com a maneira como olhava para mim e perdi-me nos
seus incríveis olhos azuis.
Foi então que, de repente, me lembrei de uma coisa.
— Disseste-me que tinhas pensado num nome… — comentei, curiosa com a
sua escolha.
O Nick entalou-me o cabelo atrás da orelha e acariciou-me lentamente a maçã
do rosto com o polegar.
— Sim, pensei num nome… — anunciou, subitamente nervoso.
— Prometo que não me rio se for muito feio — disse a sorrir.
O Nick retribuiu-me o sorriso.
— Gostava que se chamasse Andrew — disse, olhando nos meus olhos. Estava
emocionado, à espera da minha reação.
— Andrew? Como o teu avô? — perguntei.
Ele pareceu descontrair ao ver como eu reagia ao nome.
— Sim, como o meu avô — disse, sem afastar os olhos dos meus. — Para
mim, ele sempre foi uma pessoa com quem pude contar. Amava-me e deu-me a
oportunidade mais importante da minha vida. Confiou em mim cegamente ao
deixar-me o seu legado, e sei que, se estivesse vivo, ficaria muito feliz por
darmos o seu nome ao nosso filho.
— Andrew Leister — disse em voz alta. — Gosto.
O Nick beijou-me os lábios com um sorriso contido. Estava feliz.
— Andrew Morgan Leister — corrigiu, afastando-se e dando-me um beijo no
nariz. — Também merece ter o nome do seu próprio avô, não achas?
Senti que o meu coração parava.
Veio-me à cabeça a recordação do meu pai e senti que ficava com os olhos
cheios de lágrimas. O Nick nunca chegara a entender como me sentia em
relação ao meu pai nem como, apesar do que me tinha feito, uma parte de mim
continuava a amá-lo. Nem eu própria entendia, mas a verdade era simplesmente
esta. Uma pessoa nem sempre consegue gerir e controlar os seus sentimentos.
Não obstante tudo o que ele fizera, eu amava o meu pai, a menina que havia em
mim ainda chorava a sua morte.
— Não precisamos de o fazer — respondi, mordendo o lábio.
O Nick voltou a beijar-me, desta vez no pescoço.
— Era o teu pai. Sem ele não estarias aqui, à minha frente, com o meu
primeiro filho dentro de ti. Precisamos de o fazer, sim.
Puxei-o para alcançar os seus lábios, e ele abraçou-me, apertando-me com
força contra si.
— Pensei que querias que se chamasse Nicholas — disse contra o seu peito.
Ele afastou-se para olhar para o meu rosto, com uma expressão divertida.
— Na tua vida só vai haver um Nicholas, Noah, e esse sou eu.
Ri-me com a sua forma possessiva de pensar. Mas o Nick era mesmo assim, e
era verdade: na minha vida só havia um Nicholas Leister.
Afastei-me dele e olhei para a barriga.
— Andrew… — pronunciei o nome em voz baixa e nesse mesmo instante
senti um pontapé.
Arregalei os olhos, surpreendida. Era como se me estivesse a dar a sua
aprovação.
O pontapé seguinte chegou um segundo depois.
— Dá-me a tua mão! — pedi-lhe, emocionada. O bebé pareceu partilhar o
meu entusiasmo, porque voltou a pontapear-me com força.
O Nick estendeu a mão até a pousar no sítio onde sentira o pontapé.
— Sentes? — perguntei, feliz por ele poder finalmente sentir o mesmo que eu
experimentara ao longo das últimas semanas.
O Nick assentiu completamente embasbacado.
— Puxa… — disse quando o pontapé seguinte foi ainda mais forte do que o
anterior. Era uma sensação incrível, a melhor de todas. O meu bebé estava bem
e dava pontapés com fartura.
O Nick levantou os olhos e fixou-os em mim.
— Obrigado, Noah… obrigado por isto.
Fiquei sem palavras, deixei simplesmente que me abraçasse enquanto uma
sensação incrível me percorria o corpo todo: era felicidade.
52
NICK
Estava todo lixado. Sentia tanta raiva dentro de mim pelo que me tinha
acontecido que me custava muitíssimo disfarçar e não falar disto em frente da
Noah. Não queria que se preocupasse, não queria que tivesse sequer de pensar
no que acontecera, mas a minha cabeça não parava de pensar naquilo vinte e
quatro horas por dia.
Tinham tentado matar-me.
Andava obcecado com a ideia de que isto se pudesse repetir, desta feita não
comigo, mas com a maravilhosa mulher que entrava e saía de casa como se não
se tivesse passado nada. A Noah retomara a sua rotina como sempre: ia às aulas,
ia trabalhar e depois vinha ver-me. Ainda não vivíamos juntos, e estava a dar
comigo em doido o facto de a perder de vista.
O Steve encarregava-se de a levar e ir buscar à porta da faculdade para se
assegurar de que nada de mau lhe acontecia, mas, por mim, fechava-a no quarto
comigo e não a deixava sair. Eu mal conseguia sair da cama, a recuperação
estava a ser muito lenta, e só saía do apartamento para ir ao hospital. A
enfermeira que a Noah contratara ajudava-me em casa, mas detestava sentir-me
assim, como um inválido; precisava de estar com a Noah, de me certificar de
que ela estava sempre bem.
Quando vinha visitar-me, passava por uma autêntica tortura. Ela chegava,
sorridente, contava-me como fora o seu dia. O sorriso dela enchia o quarto
inteiro de alegria, e eu morria de vontade de pegar nela, de a despir e de a fazer
minha de uma maldita vez por todas.
A última vez que tínhamos feito amor foi quando concebemos o Andrew. Seis
meses sem a sentir da melhor maneira imaginável, seis meses sem me afundar
dentro de si e a fazer gritar. O pior é que o meu corpo estava feito num oito,
mas a minha mente sentia-se capaz de escalar o Evereste.
Um dia, duas semanas depois de me ter mudado para Los Angeles, apareceu
em casa com um vestido cinzento colado ao corpo; estava cada vez mais
arredondada e bonita. Trazia o cabelo solto, e os olhos brilhavam como nunca.
Já começara a fazer calor, e a sua pele tinha aquele tom bronzeado que lhe
ficava tão bem. Senti que ficava duro só de olhar para ela e tive de me controlar
para não mandar as recomendações dos médicos às urtigas e não fazer amor com
ela ali mesmo, sem parar, para não me cravar nela até ao fundo e recordar o que
estávamos a perder.
— Nick, estás a ouvir-me?
Afastei os meus pensamentos luxuriosos e prestei-lhe atenção.
— Desculpa… estavas a perguntar o quê?
Ela revirou os olhos.
— Não estava a perguntar nada, disse que daqui a pouco tempo acabo as aulas
e que a ti também já não falta muito para que estejas completamente
recuperado, por isso gostava que fôssemos juntos comprar as coisas para o bebé.
Nem sequer fazemos ideia do que é preciso, nem do espaço de que um bebé
precisa. Pensei que, se encostássemos a cama à parede da casa de banho,
ficávamos com espaço de sobra para pôr o berço e aquela coisa onde se mudam
as fraldas…
«Fraldas… caraças, e eu a pensar em despi-la e em dar-lhe orgasmos.»
— E incluíste-me nessa equação? — perguntei, observando-a com
incredulidade. A sério que pensava que ia viver naquele sótão com o nosso bebé
recém-nascido?
— Claro que sim… — respondeu ela a corar por motivos que não consegui
entender. — Não voltámos a falar sobre isso, mas… vais viver comigo, não
vais?
Estava a perguntar-me se queria?
Não pude evitar rir-me.
— Acho que já é suficientemente difícil o que me impede de me meter na
cama contigo todas as noites, sardas. Claro que vou viver contigo, mas, lamento
imenso, não vamos viver naquilo a que chamas apartamento — respondi, sem a
menor intenção de ceder quando a este assunto.
— Mas…
— Mas nada, Noah — interrompi, puxando-a para mim e dando-lhe um
beijo nos lábios. — Não vou criar o meu filho numa caixa de fósforos.
A Noah calou-se e ficou a olhar para mim por instantes.
— Eu não quero viver aqui — disse, referindo-se ao meu apartamento, o
mesmo para onde trouxera a Sophia e que a Noah só tolerava agora porque eu
estava em recuperação.
— Havemos de pensar em alguma coisa — disse, embora já tivesse pensado
em tudo.
Os dias foram passando, e comecei a sentir-me cada vez melhor. Um mês
depois, pude recomeçar a trabalhar. A Noah entrou no terceiro trimestre da
gravidez, e tornou-se impossível continuar a escondê-lo. Em pé, na minha
cozinha, com uma chávena de café nas mãos, ouvi em primeira mão que nos
tornáramos notícia.
Amaldiçoei entre dentes quando vi uma fotografia da Noah a andar na rua, a
barriga já mais do que evidente, comprovando que a notícia era verdadeira.
Nas duas primeiras semanas depois de me terem alvejado, os noticiários
dedicavam pelo menos dez minutos a falar sobre mim, sobre a empresa e os
despedimentos que tive de fazer. Porém, com o passar dos dias, o assunto
deixara de ser importante, e comecei a relaxar ao ver que já quase não se falava
de mim. Mas, agora que se soubera que a Noah estava à espera de um filho meu,
a nossa presença nos noticiários ganharia certamente novo vigor.
Quase me engasguei ao ver a porta do apartamento da Noah e ela a tentar
entrar, desviando-se dos jornalistas sem responder a nenhum tipo de pergunta.
Vi o Steve com uma expressão carrancuda ajudar a minha namorada grávida a
entrar na sua própria casa e senti que uma raiva imensa me inundava o corpo
todo.
«Raios os partam.»
53
NOAH
Sabia que aquilo ia acabar por acontecer, mas nunca pensei que fossem
perseguir-me a mim. Era do Nick que queriam falar, mas, quando se soube que
estava grávida, os jornalistas acossaram-me sem descanso.
O Nicholas estava furioso, tanto que insistiu até mais não para que eu
deixasse o meu apartamento e acabou por me levar para o seu, por uma questão
de segurança. Já toda a gente sabia que eu estava grávida, não tinha sido assim
tão difícil contar aos meus amigos e professores, mas não me sentia muito
confortável por aparecer nas notícias.
Inicialmente tudo se centrou no Nick, no facto de sermos irmãos por
afinidade, na história dos nossos pais… As nossas vidas transformaram-se num
circo com uma multidão de espectadores, e, agora que já tinham contado tudo o
que sabiam sobre o Nick, dedicavam-se a perseguir-me e a falar sobre o meu
aspeto, sobre a roupa que eu vestia… Era uma loucura completa. Quase caí de
espanto quando nos vi aos dois na capa de uma revista cor-de-rosa. O título
dizia: «O solteiro de ouro, Nicholas Leister, assenta finalmente e será pai com a
bonita idade de vinte e cinco anos. Serão os sinos que ouvimos a repicar ao
fundo?»
Não dava para acreditar.
Cheguei ao apartamento mais irritada do que nunca. Não queria transformar-
me numa figura pública e queria menos ainda que vendessem a minha vida
como se fosse um maldito romance de cordel.
Quando saí do elevador, procurei o Nick até que o encontrei no seu pequeno
ginásio caseiro. Toda a minha irritação se esfumou assim que o vi sentado, sem
T-shirt, a transpirar, a levantar pesos com o braço esquerdo e a fazer os exercícios
de recuperação que o médico prescrevera.
Raios… como podíamos não ser notícia quando este homem parecia saído de
um filme de Hollywood?
Observei-o, embasbacada, até que se apercebeu da minha presença. Os lábios
desenharam um sorriso quando me viu e largou o peso no chão, entre os pés.
— Olá, sardas — cumprimentou, pegando na toalha que estava ao seu lado
para limpar a cara e os braços.
Podia ter-lhe dito para não o fazer, o suor a escorrer-lhe pelos abdominais
vincados era uma visão espetacular, mas fiquei parada onde estava até que ele se
levantou e veio ao meu encontro.
— Está tudo bem? — perguntou-me, dando-me um beijo leve no rosto.
Esta era outra coisa que me deixava com um humor de cão: nenhum de nós
tocava no outro, dávamos apenas alguns beijos ternos. Eu tinha medo de que ele
não quisesse fazer nada porque ainda tinha dores nos ferimentos, mas, se já
estava em condições para levantar pesos, o que o impedia de fazer comigo todas
as coisas que me passavam pela cabeça durante a noite, sempre que me deitava
ao seu lado?
Talvez já não gostasse de mim como antes: estava gorda, a barriga metia-se
entre nós… Talvez não me achasse atraente, algo que me deixava horrorizada só
de imaginar.
O Nick entalou uma madeixa do meu cabelo atrás da orelha e observou-me
com o sobrolho franzido.
— O que te preocupa? — perguntou, olhando-me com aqueles olhos que me
deixavam louca.
Tive vontade de o beijar em todo o lado, de lhe tocar no estômago duro e
musculado, quis que me encostasse à parede e fizesse amor comigo de uma vez
por todas. Mas acabei por fechar a boca. Não lhe ia pedir algo que claramente
não queria dar-me.
— Nada… só estou cansada, vou tomar um duche. — Voltei-me para sair da
sala, mas o Nick segurou-me pelo braço, perscrutando o meu rosto à procura de
algum sinal, alguma pista que lhe explicasse que diabo se passava comigo.
— É por causa dos jornalistas? — perguntou-me, beijando-me suavemente
por baixo da orelha.
Fechei os olhos e encostei-me à parede atrás de mim.
— Não… só quero tomar um banho e meter-me na cama.
A sua boca beijou-me a testa. Com suavidade, com ternura.
— Eles vão acabar por se cansar de nós, Noah… É uma questão de tempo até
se decidirem a perseguir outro casal. Estamos em Hollywood, é tudo uma
questão de tempo.
A mão dele acariciou-me o braço de cima a baixo.
Senti raiva e parei a carícia segurando-lhe no pulso.
— Para de me tocar como se eu fosse uma maldita boneca de porcelana,
Nicholas.
Vi os seus olhos arregalarem-se com surpresa antes de me libertar e de
atravessar o corredor em direção ao quarto.
Olhei para a cama… Aquela maldita cama em que ele certamente tinha feito
de tudo com a Sophia Aiken; fiquei ainda mais zangada.
Tudo bem que já não me achasse atraente, mas pelo menos podia disfarçar.
Enquanto tirava o pijama da gaveta, o Nick parou à porta do quarto e
encostou-se à ombreira, observando-me com o sobrolho franzido.
— Que raio de comentário foi esse?
— Não foi nada — respondi querendo despir-me, mas sentia vergonha de que
ele me visse nua naquele estado. Percebi que as lágrimas me subiam aos olhos e
recorri a todo o meu autocontrolo para evitar que caíssem, denunciando-me e
fazendo-me sentir ainda mais patética.
— Noah… — começou ele por dizer, afastando-se da ombreira da porta com
a intenção de se aproximar de mim.
— Ouve, entendo que já não me aches atraente, está bem? Mas, se não queres
fazer nada comigo, também não precisas de me tratar como se eu fosse a tua
irmã mais nova, Nicholas.
Dirigi-me para a casa de banho, mas ele agarrou-me e empurrou-me contra a
parede do quarto. As mãos apoiaram-se ao lado da minha cabeça e inclinou-se
para me fitar nos olhos.
— De que diabo estás tu a falar? — Percebi que o meu último comentário o
afetara tanto como a mim.
Respirei fundo, tentando manter as minhas hormonas controladas por o ter
tão perto de mim, semidespido e tão incrivelmente bonito. Voltei a falar.
— Estou a falar do facto de não me tocares há meses. Sei perfeitamente que
estou enorme e que já não sou atraente, mas também não sou feita de pedra,
sabes? Pões-te para ali a fazer musculação, meio despido, como se eu já não
tivesse olhos, como se me tivesse transformado simplesmente numa grávida que
só pensa em fraldas, berços e bebés a chorar! Eu também tenho as minhas
necessidades! Já pensaste nisso? As minhas hormonas andam todas
descontroladas, e tu não quer…
A sua boca calou-me com um beijo profundo. Fechei os olhos, e tudo o que
estava a dizer se evaporou do meu pensamento. O corpo dele comprimiu-me
contra a parede enquanto a língua ia à procura da minha. Senti-o duro contra
mim e quase me derreti nos seus braços. Afastou-se um minuto depois com a
respiração agitada e a soltar fagulhas pelos olhos.
— Ainda fico surpreendido ao perceber como essa tua cabecinha funciona,
sardas, mas insinuares que já não me excitas é um insulto que não vou permitir
— afirmou, afastando-se de mim. — Se não te toquei desde que voltámos foi
porque pensei que tu não querias e não por não te querer.
O meu coração acelerou dentro do peito.
— Por que razão não havia de te querer? — respondi ainda encostada à
parede. — Esperei que recuperasses, mas não tens feito nada para mostrar que
me desejas, e isso nunca aconteceu antes, Nicholas.
— Raios, Noah… não percebeste nada.
E assim, sem esperar que lhe respondesse, segurou-me no vestido e tirou-mo
pela cabeça. Estremeci, nervosa com a ansiedade e o medo que sentia de que ele
não gostasse das mudanças que o meu corpo sofrera.
Olhou-me de cima abaixo, percorrendo as minhas curvas com os olhos.
— Diz-me… o que queres que te faça?
— O quê?! — exclamei com a voz embargada.
— Segundo consta, descurei as necessidades da minha namorada… Diz-me o
que queres que te faça, e eu faço.
Se não me estivesse a comer com os olhos e não o visse claramente excitado
por baixo das calças, podia parecer que estava a fazer aquilo só por obrigação,
mas, caramba, eu conhecia este olhar melhor do que ninguém.
— Toca-me — pedi-lhe a tremer, antecipando as suas carícias.
— Onde, sardas?… Posso tocar-te em muitos sítios e não quero voltar a
tratar-te como se fosses a minha irmã mais nova.
Os seus dedos acariciaram-me a maçã do rosto com cuidado. Eu não queria
carícias fofinhas, por isso peguei-lhe na mão e levei-a para baixo, até ficar colada
à minha roupa interior. Reconheci os seus dedos acariciarem esta parte de mim
que sentira tanto a sua falta.
Ele sorriu.
— Aqui? Gostas? — perguntou-me entre sussurros para a seguir me morder
o lóbulo da orelha, apertando com força.
Fechei os olhos, desfrutando do prazer que os seus dedos provocavam.
— Gosto… — respondi, inclinando a cabeça para trás.
O Nick segurou-me no queixo com força e voltou a beijar-me, meteu a língua
na minha boca, saboreando-me, acariciando-me e mordendo-me como nunca
tivesse precisado tanto do meu contacto como naquele momento.
Afastei-me e mordi-lhe o maxilar, percorri o queixo com a ponta da língua até
enterrar a boca no pescoço dele e beijar aquela zona em que a veia pulsava,
enlouquecida, por mim. A mão dele voltou a apoiar-se na parede, e grunhiu
enquanto eu traçava um caminho de beijos desde o seu pescoço ao ombro nu.
Os seus dedos penetraram-me com força, e em resposta mordi-lhe.
O Nicholas gemeu e levantou-me com o outro braço. Os nossos rostos ficaram
à mesma altura.
— Quero fazer amor contigo, Noah… Posso? Diz-me se posso, não quero
fazer nada que…
Abanei a cabeça.
— Não vai acontecer nada ao bebé… — respondi a respirar depressa e
fazendo um ruído de pena quando tirou os dedos de dentro de mim. — Não
pares agora… — ordenei, baixando a mão e acariciando-o por cima do tecido
das calças de fato de treino.
O Nicholas sibilou ao sentir o meu toque e levou-me para a cama. Quando
estava deitada, tirou as calças. Pois, estava enganada quando pensei que não me
queria…
— Tu és a única mulher que me deixa neste estado, Noah.
Inclinou-se sobre mim, meteu os dedos nos elásticos das minhas cuecas e
tirou-mas sem demora.
— Vira-te de barriga para baixo — pediu-me, olhando para mim
maravilhado. — Quero que estejas confortável e não te quero esmagar, vira-te.
Fiz o que me pedia, e ele pôs-se atrás de mim. Desapertou-me o sutiã e
começou a beijar-me as costas de cima abaixo. Nesta posição, nem a barriga se
punha entre nós. Foi entrando em mim pouco a pouco, e quase enlouqueci com
a sensação do seu sexo a entrar no meu. Fechei os olhos com força, controlando a
vontade que tinha de gritar.
O Nick pegou numa almofada e colocou-a por baixo da minha barriga para
que ficasse mais confortável e depois começou a mexer-se… a mexer-se de
verdade…
— Não pares — exigi, sentindo um prazer dez vezes mais intenso do que em
qualquer outra das vezes em que tínhamos ido para a cama.
Não consegui aguentar mais e gritei quando os nossos corpos começaram a
mover-se em simultâneo, cada vez mais depressa, até que acabei por libertar o
prazer contido com mais gritos, deixei sair toda a pressão dos últimos meses e
desejei fazer aquilo até não me restarem forças para me mexer. Foi o que o Nick
fez, não parou e continuou a mover-se e a beijar-me as costas.
Chegámos ao mesmo tempo ao orgasmo, eu a gemer contra a almofada, ele a
morder-me com força o ombro direito.
A seguir, adormeci quase instantaneamente.
Não sei quanto tempo se passou até que voltei a abrir os olhos, mas estava
tapada e enroscada contra o Nick, que deslizava a mão para cima e para baixo
nas minhas costas despidas, acariciando-me com ternura.
Ao perceber que estava acordada, baixou os olhos até os cruzar com os meus.
Um sorriso apareceu nos seus lábios bonitos.
— Perdi-te durante um bom bocado, sardas…
Ri-me.
— Acho que fiquei inconsciente de puro prazer.
— Não me digas? — disse, virando-me e colocando-se por cima de mim, com
o cuidado de não me esmagar.
— Tive tantas saudades tuas, Nick — confessei, levantando a mão para afastar
uma madeixa de cabelo rebelde.
— Eu reparei — disse, beijando-me os lábios. — Mas não tantas quantas as
que tive tuas, sardas…
Então, o Andrew deu-me um pontapé, como se quisesse recordar-me de que
continuava ali. Fiz uma careta, e o Nick olhou para mim, preocupado.
— Foi só um pontapé — disse-lhe, para não se preocupar.
O Nick apoiou a cabeça num dos braços e olhou para mim, encantado.
— O que sentes? — perguntou enquanto me acariciava a barriga saliente.
Fiquei a olhar para o movimento da sua mão enquanto pensava na resposta.
— É uma sensação muito estranha… principalmente quando os pontapés são
fortes.
O Nick ouviu-me com atenção, sem parar de me acariciar. Os lábios não
tardaram a pousar sobre a minha pele lisa, o que me provocou uma sensação
muito intensa por dentro.
— Tenho tanta vontade de o conhecer — disse ele, puxando-me para me
abraçar contra o peito.
«Eu também», pensei para comigo.
*
Certo dia, depois de sair de um exame, o Nick veio buscar-me de carro.
Parecia emocionado, contente com alguma coisa que eu desconhecia. Eu
também estava feliz por me ter livrado de um exame.
Um quarto de hora depois, estávamos numa zona da cidade onde nunca tinha
ido. Os prédios eram altos, mas não o suficiente para se considerarem arranha-
céus. Era uma zona bonita, com palmeiras nas ruas e jardins bem cuidados. O
Nick parou o carro em frente a uma casinha branca. Tinha um alpendre a toda a
volta e escadas de madeira que davam acesso à porta. Tinha dois andares e
parecia saída de um conto de fadas.
— Gostas?
Olhei em redor e logo a seguir cravei os olhos nele.
— Não é muito o teu estilo — respondi, um pouco aturdida. O Nicholas
gostava de grandes apartamentos urbanos com janelas do chão ao teto e de
mansões ao pé da praia.
— Não, não é o meu estilo. Comprei-a a pensar em ti.
Arregalei os olhos e fiquei a fitá-lo sem acreditar.
— Tu fizeste o quê?
O Nick saiu do carro e veio até à minha porta para me ajudar a sair.
Quando estava à sua frente, tirou as chaves do bolso de trás das calças e
segurou-as à frente da minha cara.
— Faltam-te dois anos para acabares o curso, Noah. Não quero que tenhas de
abandonar nada, e se for preciso mudar-me para aqui contigo, deixar Nova
Iorque e esperar que descubras quem queres ser na vida, é isso mesmo que vou
fazer. Eu já sei o que quero, o meu futuro está encaminhado porque tive o
tempo necessário para poder fazer as coisas como devem ser feitas. A única coisa
que me falta na vida és tu, por isso vou adaptar-me a ti até estares preparada
para fazer mais mudanças. Não quero levar-te para viveres num apartamento de
luxo nem para uma mansão na praia, porque essa não és tu. Sempre achei que ia
querer viver da mesma forma como cresci, mas não quero uma imensidão de
metros quadrados entre nós, meu amor, quero levantar os olhos sempre que
quiser e ver-te perto. Esta casa é tua, é o meu presente para ti.
Mordi o lábio e abanei a cabeça, aturdida. Não sabia o que dizer. A casa era
linda, pequena, perfeita, a casa que eu teria escolhido para começar uma família.
O Nick aproximou-se de mim e segurou-me o rosto entre as mãos.
— Falta pouco para teres o Andrew, e sei que não queres continuar a viver no
meu apartamento. Aceita este presente, Noah, por favor.
Não me deu tempo para responder, puxou-me pela mão, e aproximámo-nos
da porta. Abriu sem demorar mais um segundo, e entrámos naquela que dali
para a frente se transformaria na nossa casa, o nosso lar.
O entardecer fazia entrar uma luz alaranjada que iluminava a sala de forma
calorosa; o chão era de madeira brilhante, e o espaço estava decorado com sofás
brancos. Toda a casa estava mobilada, era um espaço diáfano, sem paredes, e
tinha janelas enormes viradas para a montanha. O Nick mostrou-me tudo, e,
quanto mais via, mais me apaixonava pela casa. Subimos ao primeiro andar, e
mostrou-me aquele que seria o nosso quarto. Era grande e luminoso, com uma
cama enorme colocada no meio da parede. As janelas tinham cortinas brancas e
leves que deixavam entrar a luz, e no teto havia vigas enormes de madeira. A
casa de banho era linda, toda de mármore negro, uma banheira grande e um
duche funcional. A casa podia não ser uma mansão, mas tinha absolutamente
tudo, não lhe faltava nada.
Puxou-me até que saímos para um pequeno corredor. Atravessámo-lo até
chegarmos a uma zona que ainda não tinha visto. No pequeno vestíbulo havia
duas portas em frente uma da outra e uma janela que dava para o jardim das
traseiras. O Nick abriu a porta da direita e convidou-me a entrar.
— Este seria o quarto do bebé… pensei que gostarias dele.
Era lindo. Estava completamente pintado de branco, não tinha móveis, mas o
chão de madeira brilhava como no resto da casa. Mesmo em frente à porta havia
uma janela enorme com um banco por baixo, daqueles que se abrem para
guardar coisas lá dentro.
Sorri. E consegui vê-lo. Vi-nos a nós. Vi o nosso bebé naquele quarto, a
dormir placidamente, a brincar, a chorar, a rir. Vi-nos aos três juntos a partilhar
momentos incríveis. Esta seria a nossa casa, o nosso cantinho, o nosso lugar.
— Adoro! — exclamei, voltando-me para ele com um sorriso enorme.
O Nick afastou-se da ombreira da porta e veio dar-me um beijo. Olhou-me
nos olhos com uma emoção contida.
— Quero dar-te tudo, Noah… quero que sejas feliz comigo e que consigamos
criar este menino maravilhoso como nenhum dos nossos pais conseguiu fazer
connosco.
Entrelacei os dedos atrás da nuca dele e sorri. Estava absolutamente feliz.
— Boa estratégia para te livrares do meu sótão — disse a rir.
— A casa está no teu nome — acrescentou, puxando-me para si e beijando-
me os lábios. — Não quero que te preocupes com mais nada a não ser com o
bebé e as coisas que querias fazer antes de engravidares. Informei-me, e há um
programa especial para as alunas universitárias que têm filhos durante o curso;
está muito bem estruturado, e serão um pouco mais indulgentes contigo, dão-te
liberdade para te organizares como conseguires e…
Beijei-o e interrompi o que ia dizer.
— Obrigada, Nick — disse, emocionada por tudo o que ele estava a fazer. —
Fazes-me muito feliz, e amo-te.
Voltámos a beijar-nos e passámos o resto da tarde a planear como queríamos
mobilar o resto da casa e quando nos mudaríamos definitivamente.
A minha vida nova estava em marcha, e eu adorava-a.
A Noah estava enorme. Por vezes tinha medo de que a barriga a desequilibrasse
e de que acabasse por cair para a frente. Era de constituição pequena, sempre foi
magra, e parecia que a única coisa que aumentava era a barriga.
Ainda faltava um mês para o fim do tempo, e temia que o bebé continuasse a
crescer. O seu estado de espírito também se transformara numa montanha-
russa. Num instante estava feliz e contente e no instante seguinte desatava a
chorar como uma Madalena arrependida por coisas insignificantes.
Naquele dia ela fazia anos, e reunimo-nos todos em casa dos nossos pais. A
Jenna convidara toda a gente. A Noah estava no jardim, sentada num cadeirão
que tinham posto ali para ela a abrir os presentes com um sorriso de felicidade
no rosto.
A minha irmã não parava de gritar, emocionada, ao ver tantos presentes
juntos, e transformara-se na ajudante oficial da Noah; na verdade, desde que
chegámos a casa que não se separava dela.
A Jenna organizara uma festa maravilhosa, cheia de balões azuis, com um bolo
enorme com um bebé no centro e imensos jogos e lembranças.
Muitos dos meus amigos também ali estavam, e fiquei contente por me poder
escapulir um pouco para jogar Xbox com eles. Tantas mulheres juntas a falar de
bebés acabaram por me deixar enjoado.
Um par de horas depois, fui até à cozinha perguntar à Prett se o bolo de
chocolate da Noah já estava pronto. Estava muito agradecido à Jenna por ter
centrado toda a festa no bebé, mas a Noah merecia um bolo com um «vinte»
bem grande no centro. Quando saí para o jardim com o bolo na mão, todos
ficaram surpreendidos e começaram a cantar o «Parabéns a Você». A Noah
olhou para mim emocionada e soprou as velas, como tinha de fazer.
Pouco depois, e aproveitando que as pessoas estavam distraídas, peguei-lhe
pela mão e levei-a até à casa da piscina.
Ela sorriu-me, divertida, recordando os bons velhos tempos.
— Trouxeste-me aqui para me fazeres alguma coisa sórdida, Nicholas?
Ri-me.
— Não seria o teu aniversário se não tentasse, sardas — expliquei, beijando-a
na boca deliciado com os seus lábios carnudos, com o calor de a sentir nos meus
braços. Afastei-me algum tempo depois e tirei uma caixa pequena do bolso.
— O teu presente — anunciei, entregando-lhe a caixa.
A Noah olhou para mim, emocionada, e, ao abrir a caixa, os seus olhos
arregalaram-se, surpreendidos, para depois se humedecerem e ficar à beira das
lágrimas.
— Ainda o tens… pensei… que o tinhas deitado fora, pensei…
Calei-a com um beijo e sequei-lhe as lágrimas com os dedos.
— Nunca devia ter-te tirado este fio, Noah. Dei-te o meu coração há dois
anos, e agora quero voltar a entregar-to…
A Noah acariciou o coração de prata que lhe ofereci quando fez dezoito anos.
— Mandei-o a uma joalharia para que acrescentassem um pequeno diamante
azul… enfim, o Andrew também vai fazer parte disto, não achas?
A Noah ofereceu-me um sorriso de orelha a orelha, feliz e ainda emocionada.
— É o melhor presente que me podias ter dado. Senti falta deste fio, de tudo
o que ele significava para mim e para ti.
— Eu sei… Nunca devia ter saído do teu pescoço, Noah, estava errado
quando to tirei.
Ela abanou a cabeça.
— Fizeste o que sentiste que devias fazer naquele momento, Nick… Eu
magoei-te, não merecia usá-lo.
Peguei no fio e tirei-o da caixa.
— Agora não haverá nada nem ninguém que volte a tirá-lo do seu lugar —
sentenciei enquanto lho colocava ao pescoço com todo o carinho.
Beijei-lhe o ombro descoberto.
— Se estás cansada e queres voltar para casa, basta dizeres e vamos logo.
Abanou a cabeça, estava feliz.
— Quero aproveitar este dia. Está a ser perfeito em todos os sentidos.
55
NOAH
Quando cheguei a casa, estava um pouco enjoada, por isso fui diretamente
para a cama. O Nick chegou do trabalho um par de horas depois, e achei-o mais
calado do que era habitual.
— Não te importas de desligar o ar condicionado? — pedi-lhe recostada na
nossa cama enquanto o observava a tirar a gravata e o casaco.
Ele franziu o sobrolho e fez o que lhe pedi. Depois pareceu hesitar antes de se
dirigir a mim.
— Sei que foste vê-lo, Noah — disse então, surpreendendo-me
completamente.
Senti um suor frio percorrer-me as costas.
— Como…?
— O Steve.
«Claro… o Steve, bolas.»
— Fui ver o Charlie, mais nada.
O Nick cerrou o maxilar com força.
— Foste ver o Charlie, e, quando chego a casa, encontro-te maldisposta…
Não terá que ver com uma certa pessoa que ali estava, que te deixou assim?
— O quê? Não! — neguei veementemente enquanto me levantava na cama.
Naquele instante uma dor lancinante trespassou-me as costas, deixando-me sem
ar.
— Noah? — disse o Nicholas alarmado e aproximando-se da cama de
imediato.
Respirei fundo, e a dor passou tão depressa como surgira.
— Tem calma, estou bem — afirmei, recostando-me novamente sobre as
almofadas.
— Não estás com boa cara — observou. — Raios, até estás pálida.
Os seus dedos afastaram uma madeixa húmida de cabelo da minha testa.
— Estás com febre, Noah — anunciou ele assustado.
— Não… Estou bem, a sério… Só me sinto um pouco cansada.
Vi-o debater-se entre a irritação por ter ido ver o Charlie e a preocupação com
o meu estado. Não queria vê-lo aborrecido, não queria que achasse que faltara à
minha palavra.
— Nick… eu não vi mesmo o Michael, a sério que não.
— O que me dá cabo da cabeça não é se o viste ou não, mas que tenhas ido à
casa dele sem sequer me dizeres nada. Podia ter ido visitar o teu amigo contigo,
não é a ele que quero partir a cara, entendes?
Forcei um sorriso para ele se acalmar.
— Esse assunto para mim está encerrado… por isso o fui visitar, ele merecia
uma explicação.
O Nicholas observou os meus olhos por instante e a seguir debruçou-se para
me dar um beijo na testa. Um beijo que durou alguns segundos a mais, porque
ele estava a sentir a minha temperatura.
— Eu estou beeem!…
Mas logo a seguir, como se para lhe dar razão, senti outra pontada de dor
muito intensa que me trespassou. Fechei os olhos com força.
— Nick… — disse assustada, pegando na mão dele.
— Estou aqui — afirmou num tom que nunca lhe tinha ouvido antes.
Quando a dor passou, deixei-me cair contra a cabeceira da cama.
— Vamos para o hospital.
— Não! Não é preciso, são contrações de Braxton Hicks, a sério, é norm… —
Ante de poder acabar a frase, uma dor imensa voltou a flagelar-me e quase me
obrigou a dobrar em duas.
Cerrei os dentes com força contendo as lágrimas, que, traiçoeiras,
contradiziam as minhas palavras.
— Não sei o que está a acontecer…
— Acho que estás a entrar em trabalho de parto, Noah — disse-me,
levantando-se da cama. Puxei a sua mão com força.
— Não, é impossível… — contradisse-o enquanto o puxava para mim. —
Ainda falta muito tempo para isso…
E naquele instante, como se fosse uma maldita piada de mau gosto, senti que
as minhas coxas se humedeciam, assim como os lençóis por baixo de mim.
Arregalei os olhos assustada.
— Noah, caraças, o que foi? Estás a assustar-me.
Contive a respiração.
— Acho que me rebentaram as águas.
Andrew Morgan Leister nasceu num sábado de julho e pesava exatamente dois
quilos. Esteve duas noites na incubadora e depois pude finalmente tê-lo comigo.
Deram-me alta algumas horas depois, e o Nick levou-nos para casa, para que
pudéssemos descansar. Eu ainda me sentia débil e esgotada. Não dormira mais
do que algumas horas, preocupada com o nosso bebé precioso, que naquele
momento dormia placidamente na cadeirinha que colocámos no banco de trás
do carro.
O Nick não se separou de mim nem por um instante, estava tão cansado como
eu, mas via-se que também estava mais feliz do que nunca.
Os nossos pais tinham ido ao hospital, todos estavam doidos com o Andrew,
todos queriam pegar nele ao colo, adormecê-lo ou vesti-lo, mas o meu filho só
encontrava paz nos meus braços.
Quando chegámos a casa, encontrei um monte de balões e cestos de presentes
com postais em que nos davam os parabéns. Tínhamos sido acossados ao sair do
hospital, e nunca achei que se dessem ao trabalho de nos oferecer alguma coisa.
O Nick ocupou-se de tirar a cadeirinha do Andy e de o trazer para dentro, e
eu agradeci por poder voltar para casa. Os últimos dias tinham sido uma
loucura.
Peguei no meu bebé ao colo e fui para a cama. O Nick veio atrás de mim.
Devia tê-lo deitado no seu berço, naquele berço tão bonito que tínhamos
preparado para o receber no seu quarto, mas doía-me só de pensar em deixá-lo
ali sozinho. Por isso deitámo-nos juntos, com o Andy entre os dois.
— Mal posso acreditar que ele já esteja aqui connosco — confessou o Nick
enquanto passava um dos seus dedos pelas bochechas rosadas do Andrew.
É
— É o bebé mais bonito que já vi na vida — declarei, baixando-me para lhe
cheirar a cabeça. Cheirava tão bem…
Não era por ser meu filho, mas era um bebé mesmo bonito. Tinha os olhos
azuis e as bochechas gorduchas. A Jenna oferecera-lhe a roupa que trazia
vestida, um conjunto azul-turquesa que dizia «Sou o número Um» bordado no
centro.
Sorri, feliz por estar em casa, com o Nick e por o pior já ter passado… Ou foi
o que achei na altura.
Quando ia a entrar no quarto do meu filho, todo o meu corpo ficou tenso,
petrificado de medo. Não passei da ombreira da porta. A mulher que estava de
costas para mim voltou-se de forma quase automática. Fiquei sem ar. Conhecia-
a, e isso ainda me aterrorizava mais.
— Briar.
A rapariga ruiva que estava à minha frente não tinha nada que ver com a
mulher deslumbrante que vivera comigo durante meses. O cabelo estava ainda
mais curto, quase pelos ombros. Tinha olheiras por baixo dos olhos verdes e não
usava qualquer maquilhagem sobre as pequenas imperfeiçoes. Vestia umas
calças pretas simples e uma camisola cinzenta. Repito: não tinha nada que ver
com a rapariga deslumbrante que vivera comigo.
— Nem mais um passo, Morgan.
A forma estúpida como me tratava, esquecendo sempre o meu nome próprio,
fez-me cerrar os dentes com força.
— Que diabo achas que estás aqui a fazer? — perguntei sem elevar o tom de
voz. O Andy continuava a dormir, demasiado perto da Briar, que estava a
observá-lo no berço, até que a interrompi.
Vi a Briar tirar a mão do bolso, e o metal de uma faca brilhou… O meu
coração desatou a bater descompassado no mesmo instante.
Engoli em seco e fiquei parada no sítio.
— Queria conhecer o filho do Nick — comentou, voltando-se para o berço e
sorrindo completamente embevecida.
Não me passou despercebido o facto de se referir ao Andy como filho no
Nicholas apenas.
Tentei manter a calma, apesar de a única coisa que tinha vontade de fazer ser
afastá-la do meu bebé e fugir dali a correr.
— É lindo… igualzinho a ele — assegurou inclinando-se e acariciando-lhe a
cabecinha.
Dei um passo automaticamente, mas a outra mão da Briar, a que segurava a
faca, levantou-se e apontou para mim com a ponta afiada, fazendo-me parar no
mesmo instante.
— Já te disse para não te mexeres — sibilou, furiosa.
— Briar, por favor… — supliquei, quando pousou as duas mãos no berço e
pegou no Andy, que acordou logo.
O meu bebé pestanejou várias vezes, confuso, e, quando vi que o segurava,
percebi o que ia acontecer. O Andrew desatou a chorar, rasgando o silêncio que
se instalara no quarto. Apertei as mãos com força, queria pegar nele,
tranquilizá-lo. Um ódio horrível percorreu o meu corpo todo. Se ela fizesse mal
ao meu bebé, matava-a, matava-a.
A Briar embalou-o para que deixasse de chorar, e, quando a faca que tinha na
mão se aproximou perigosamente do corpo do Andy, senti a minha alma por
um fio.
— Estás a segurá-lo mal — critiquei, desesperada que o soltasse, para que
afastasse aquela maldita arma do meu bebé recém-nascido.
A Briar levantou os olhos para mim e pareceu-me um pouco angustiada.
— Põe-no de barriga para baixo — disse, controlando o meu tom de voz. —
Isso… — assenti quando fez o que lhe pedia. Nessa posição podia segurar o
bebé com um braço e a maldita faca com o outro.
O Andy choramingou, mas acabou por se acalmar. A Briar ficou satisfeita
enquanto o balançava com uma canção de embalar que nunca tinha ouvido
antes.
— Sabes uma coisa? — disse ela, cravando os olhos nos meus. — O meu bebé
também tinha os olhos azuis…
Engoli em seco sem entender.
— Eu não abortei — contou-me olhando para mim com uma expressão de
desafio. — O pai do Nicholas deu-me dinheiro para o fazer… mas não o fiz.
Mas então…
— Perdi-o — afirmou enquanto os seus olhos se humedeciam, salientando o
bonito tom de esmeralda. — Quando lhes confessei que estava grávida de seis
meses, toda a minha família me virou as costas. Tentei escondê-lo, mas, ao
contrário de ti, não consegui evitar engordar. Começou a notar-se praticamente
às oito semanas.
Meu Deus.
— Era ruivo como eu e tinha os olhos do Nicholas.
Ouvi-la dizer aquilo partiu-me o coração. Não só porque o seu bebé morrera,
mas porque também era filho do Nicholas. Ao olhar para o meu bebé nos braços
dela, senti uma onda de pânico perante a ideia de que algo semelhante lhe
acontecesse.
— Só pude segurá-lo nos meus braços uma vez.
— Briar… lamento muito…
A Briar levantou o braço que segurava o Andy para lhe cheirar a cabeça.
— Avisei-te sobre o Nicholas… mas tu não fizeste caso.
Desta vez, os seus olhos fitaram-me com ódio. O Andy mexeu-se, inquieto.
— Briar, por favor… dá-me o meu bebé — supliquei, notando que as
lágrimas me inundavam os olhos.
Ela abanou a cabeça.
— Eu estava primeiro, Noah… — respondeu, usando o meu nome pela
primeira vez. — Tu não mereces ser mãe antes de mim… O Nicholas não
merece este bebé.
Não sabia o que fazer… Desesperada, olhei para ambos os lados à procura de
qualquer coisa que pudesse servir-me de arma. A Briar estava louca, sempre
soube que esta miúda tinha problemas: mentira-me fazendo-me crer que o
Nicholas tinha ido para a cama com ela enquanto estava comigo, mentira
quando dissera que tinha sido ele a obrigá-la a abortar…
— Eu sou melhor mãe do que tu — declarou, pegando no saco das fraldas que
estava em cima do móvel. Não o tinha posto ali, a Briar deve tê-lo preparado
enquanto eu dormia. Senti-me a pior mãe do mundo. Como pude não a ouvir?
Os meus olhos detiveram-se no intercomunicador que estava ao lado do berço.
Desligado.
— Briar, não podes levá-lo! — implorei quando me ameaçou com a faca e me
pediu que me afastasse da porta.
O Andrew acordou e recomeçou a chorar.
— Olha o que fizeste! — gritou, olhando para mim furiosa.
— Por favor, dá-me o bebé, Briar, sou a sua mãe!
Ela começou a embalá-lo de qualquer maneira, e o Andy contorceu-se nos
seus braços. Estava assustado, e ela segurava-o exatamente onde tinha as
borbulhinhas.
— Dá-mo, raios, estás a magoá-lo!
O choro do bebé encheu o quarto interrompendo o silêncio da noite. A Briar
pousou o saco das fraldas no chão para controlar melhor o Andrew e levantou a
faca na minha direção. Nesse instante, os seus olhos, que até então tinham
estado fixos nos meus, desviaram-se para um ponto algures acima do meu
ombro. Ouvi um ruído e, antes de poder virar-me, alguém me agarrou por trás,
as minhas costas chocaram contra um peito duro, e uma mão tapou-me a boca
abafando o grito que me ficou entalado na garganta.
— Estava a morrer de vontade de te abraçar — sussurrou uma voz conhecida
junto ao meu ouvido.
O meu coração deixou de bater para a seguir começar a corrida mais
desenfreada da minha vida.
Michael.
Tentei libertar-me dos seus braços, mas não me deixou. O cheiro a álcool que
o seu corpo emanava era horrível.
Os olhos da Briar iluminaram-se ao fitarem o meu agressor, e tentei com todas
as forças procurar algum tipo de ligação entre os dois. Como diabo as duas
pessoas que mais me magoaram acabavam juntas no mesmo quarto, ameaçando-
me a mim e ao meu bebé?
— Tens tudo aquilo de que precisas, querida? — perguntou o Michael à
Briar. Ela assentiu e voltou a pegar no saco das fraldas com as coisas do bebé.
Senti um medo terrível apoderar-se de mim, medo e raiva.
— Larga-me!
— Vou levá-lo, e tu não me vais impedir — ameaçou sem sequer olhar para
mim.
O Michael afastou-me da porta para deixar passar a Briar.
— Espera por mim lá em baixo — disse num tom autoritário que nunca o
ouvira usar.
Quando ela começou a caminhar em direção à porta, o meu coração quase
parou.
— Briar… Briar, por favor… devolve-me o bebé, por favor. — Chorei
tentando libertar-me dos braços do Michael. A Briar hesitou por um instante.
Os seus olhos fitaram-me, depois olhou para o Michael e por último para o
Andy.
— Lamento, Noah — desculpou-se e desapareceu pelas escadas abaixo.
— Não! — gritei com todas as minhas forças. O Andrew guinchou, histérico,
e o Michael virou-me, encostando as minhas costas à parede.
— Achavas que ias continuar a tua maldita vida como se nada fosse? Achavas
que eu ia deixar que aquele imbecil te tivesse para si sem que eu fizesse nada?
Comecei a chorar, desconsolada. Não acreditava que aquilo me estivesse a
acontecer.
O Nicholas longe, o Steve também…
Então lembrei-me de uma conversa que tivera com o Nick poucas semanas
antes. Não lhe prestara muita atenção, porque ele andava sempre tão obcecado
com a minha segurança, sempre tão preocupado que alguém nos quisesse fazer
mal… Agora entendia melhor por que razão acedera a levar o Steve consigo…
— Instalei um alarme em casa, Noah — disse o Nick enquanto eu dava o biberão ao
Andrew, embevecida e sem conseguir afastar os olhos do meu bebé. — Considerando o teu
historial com alarmes e para não teres de inserir códigos de cada vez que entrares e saíres
da casa, mandei instalar um botão de pânico, basta carregares no botão, e o alarme
ativa-se na central. Estás a ouvir-me?
Levantei os olhos do bebé e sorri-lhe, distraída.
— Sim, sim, um alarme de pânico. Estou a ouvir.
O Nicholas dirigiu-se para mim e soltou um suspiro.
— Um botão de pânico, Noah, está por baixo da bancada da cozinha.
Naquele momento, o Andy fez uns ruídos amorosos, e a minha atenção voltou a
desviar-se para ele. O Nicholas tirou-me o bebé das mãos e olhou para mim, irritado.
— Caramba, Noah, isto é importante!
Fulminei-o com o olhar e estendi os braços.
— Eu ouvi o que disseste, és um exagerado, mas já entendi. Agora dá-me o Andrew.
O Nick suspirou, abanou a cabeça e devolveu-me o bebé.
— Recorda-me só onde está o botão…
Mas já nem o estava a ouvir… e não me lembrei de absolutamente nada…
— Os dez mil dólares que ele me deu para me ir embora duraram algum
tempo… mas o teu noivinho tem muito mais de dez mil dólares, não tem,
querida? — perguntou o Michael, arrancando-me às minhas recordações.
Ele queria dinheiro… Por que motivo isso não me surpreendia?
— És um grande filho da puta — respondi sentindo por ele um ódio que
nunca experimentara por ninguém.
O Michael apertou-me o maxilar e, antes de conseguir desviar-me, deu-me
uma bofetada na cara.
— Nunca mais voltas a insultar a minha mãe, estás a ouvir?
Estremeci de medo, mas tentei fazer-me de forte. Não acreditava que me
tinha batido…
— Agora diz-me onde está a porra do cofre.
Sabia que havia um no nosso quarto. O código fora escolhido pelo Nick, e era
a data em que nos conhecemos.
Disse-lhe onde estava, e ele empurrou-me até chegarmos ao quarto. Os seus
olhos fixaram-se na cama aberta, nos móveis bonitos e na fotografia que
tínhamos emoldurado e pendurado na parede da cabeceira. Foi a Jenna quem a
tirou, e estávamos os três: eu, o Nick e o Andy.
— O que diria o teu noivo se eu voltasse a foder-te, desta vez na vossa
maravilhosa cama? Achas que voltara a perdoar-te ou que te largava como não
hesitou em fazer há dois anos?
— Tu estás doente — disse, cerrando os dentes e tentando manter a calma.
O Michael riu-se e afastou o quadro que lhe mostrei. O cofre estava escondido
por trás.
— Insere o código.
Puxou-me até eu ficar à sua frente. Fiz o que me mandava e, quando a porta se
abriu, os olhos dele iluminaram-se.
— Puxa, o teu namorado… — exclamou pegando nos maços de notas que
estavam empilhados ao lado de alguns documentos. — Se tem este dinheiro
todo em casa, não imagino quanto terá no banco.
Cerrei os punhos com força.
— Pega no maldito do dinheiro e desaparece daqui.
O Michael sorriu, meteu os maços de notas na mochila que trazia e depois
empurrou-me pelas escadas abaixo. A Briar estava sentada no sofá com o Andy a
dormir nos seus braços.
Quando vi que ele estava bem, senti que o coração voltava a funcionar. Queria
lá saber do dinheiro… Por mim até lhe dava a roupa que tinha no corpo, mas,
por favor, que não fizessem mal ao Andy, por favor, a ele não.
— Já podemos ir? — perguntou a Briar com nervosismo.
— Daqui a um instante, querida — respondeu o Michael, percorrendo o resto
da sala com os olhos.
Quando me puxou em direção da cozinha, senti que todos os meus poros
libertavam adrenalina.
«Onde está o maldito alarme, Nicholas?»
A Briar levantou-se com o Andy nos braços e veio atrás de nós. Odiava ver
como pegava nele, como se o meu bebé lhe pertencesse. O Michael deixou a
mochila cheia de dinheiro em cima da mesa e obrigou-me a sentar numa das
cadeiras. A Briar olhava para um e para o outro alternadamente. Parecia uma
criança à espera de que lhe dissessem o que devia fazer.
— Qual é o teu plano, Michael? — perguntei, tentando prolongar a
permanência naquela divisão. Se se fossem embora antes de poder dar o alarme,
o mais certo era que não voltasse a ver o meu bebé. — Levar o dinheiro e o meu
filho para te vingares do Nicholas?
— É exatamente o que vou fazer — respondeu a sorrir enquanto abria o
frigorífico. Pegou numa cerveja e fitou-me nos olhos. — Adoro ver-te assim tão
assustada… Fico doido por andar por esta casa, beber a cerveja dele, saber que
tenho a sua família à minha mercê.
Estremeci sentada naquela cadeira, questionando-me como pudera ser tão
idiota e não ter percebido como era o Michael O’Neil na realidade.
«És sempre capaz de encontrar uma forma de justificar os erros dos outros.»
As palavras do Nicholas atingiram-me quase com tanta força como a bofetada
que o Michael me dera há alguns minutos. Quis ver o seu lado bom, era
verdade, quis encontrar um motivo para se ter aproveitado da minha
vulnerabilidade, e agora compreendia que nem todo o mundo é feito de
bondade. Também existiam pessoas más, pura e simplesmente más.
O Andy começou a choramingar novamente, e o Michael afastou os olhos de
mim para os fixar no meu filho.
— Tinha muita vontade de conhecer o pequeno Leister… — respondeu,
aproximando-se e tirando o bebé à Briar.
Levantei-me de um salto.
— Não lhe toques! — gritei, fazendo-o chorar, como era minha intenção.
O Michael ignorou a minha advertência e acariciou-lhe a cabecinha.
— É tão parecido com o pai que até dá nojo — comentou, devolvendo-o à
Briar.
O Andrew continuou a chorar.
— Está com fome — anunciei, olhando o Michael nos olhos. — Deixa-me
preparar-lhe o biberão.
Ele sorriu, divertido.
— De certeza que sabes pedir com mais jeitinho — disse, aproximando-se de
mim. O seu hálito a álcool deu-me vómitos.
— Por favor — pedi, tentando controlar a repugnância e o ódio que sentia
por ele.
O Michael agarrou-me pela cintura e enterrou os lábios no meu pescoço.
Fiquei tensa como um pedaço de ferro e contive as lágrimas.
— Fá-lo calar-se — ordenou-me ao ouvido, soltando-me um instante depois.
Afastei-me dele quase de imediato e contornei a ilha da cozinha para pegar no
biberão, nos cereais em pó e no leite. Enquanto o fazia, os meus dedos tateavam
por baixo da bancada, procurando o maldito botão.
Entretanto, o Michael estava a acabar de beber a cerveja com um sorriso
estúpido nos lábios. Não entendia por que razão continuava ali: se fosse ele,
tinha-me ido embora assim que encontrasse o dinheiro, mas, ao ver como estava
descontraído, percebi que o que mais lhe interessava era fazer-me sofrer, mais do
que fugir com o dinheiro. Como disse, estava a gostar de ocupar o lugar do
Nicholas naquela casa.
Quase tive um fanico quando os meus dedos depararam com qualquer coisa
por baixo da bancada. Era o botão de pânico!
Premi-o, rezando que a polícia não demorasse muito a chegar.
Aqueci o leite em banho-maria. Quando o biberão ficou pronto, aproximei-
me da Briar.
— Deixa-me dar-lhe o leite — pedi com um olhar suplicante.
— Não — recusou taxativamente, arrancando-me o biberão das mãos.
O Michael observava-me.
— Sabes uma coisa, Noah? — disse, mudando o tom jovial para outro muito
mais sombrio. — Eu também te podia ter dado tudo isto… — afirmou,
gesticulando em redor. — Se não te tivesses agarrado a alguém como o Leister,
teríamos sido felizes… Que se passa contigo? Por acaso gostas que te tratem
mal? Diz-me… Se quiseres posso fazer o mesmo.
— Deixa-me em paz! — gritei, encarando-o. — És tão idiota que vais passar
a tua vida maldita enfiado na cadeia! E tu também! — gritei à Briar. — Não
vês que ele está a manipular-te? Fez a mesma coisa comigo!
— Cala-te! — ordenou a Briar com raiva. — O Michael ajudou-me mais do
que qualquer outra pessoa… Vamos embora juntos… não vamos? — disse
olhando para ele com os olhos cintilantes de emoção.
Abanei a cabeça sem entender nada.
— O que raio lhe fizeste? — perguntei, voltando-me para ele.
O Michael preparou-se para responder, mas então começou a ouvir-se o ruído
das sirenes da polícia ao fundo.
Teria ficado aliviada de as ouvir, se não fosse pelo mais fundamental de toda
esta situação: a Briar ainda não me devolvera o Andy. Se a polícia entrasse ali e
aquela psicótica ainda o tivesse ao colo, nem queria imaginar o que poderia
acontecer.
O Michael voltou-se para mim depois de deixar a cerveja em cima mesa com
estrondo e agarrou-me no braço com força.
— Que diabo fizeste tu? — perguntou, abanando-me.
Até me estremeceram os dentes, mas sorri-lhe.
— Temos um alarme silencioso em casa, e tu tens meio segundo para
desapareceres daqui.
A Briar olhou, assustada, para o Michael e depois para mim. O Andy começou
a contorcer-se e a berrar, talvez porque a intensidade das sirenes aumentava a
casa instante.
O Michael largou-me, agarrou na mochila que estava em cima da mesa e
voltou-se para a Briar.
— Vamos! — gritou, abrindo a porta do jardim.
A Briar estava morta de medo, via-se nos seus olhos. O Andy estava a chorar,
e a única coisa que ela parecia querer fazer era que se acalmasse.
— Briar, dá-me o bebé… — supliquei.
O Michael não esperou nem mais um segundo. Saiu pela porta com a mochila
às costas e nem olhou para trás.
Desejei que a polícia o apanhasse, desejei-o com todas as minhas forças,
embora naquele instante os meus olhos só conseguissem fixar-se na mulher que
tinha à minha frente, a mesma que segurava o meu filho nos braços. Começou a
caminhar para trás quando me aproximei dela e a obriguei a recuar até à porta
principal que dava para a estrada.
Ela parou, olhando para mim, assustada.
— Lamento, Noah…
Achei que ia morrer quando ela abriu a porta para sair. O choro do Andrew
cravou-se na minha alma. O meu bebé estava a sofrer, e eu não podia fazer nada,
estavam a levá-lo de mim, estavam a roubar-me o meu bebé. Os meus piores
medos estavam a tornar-se realidade, e não havia nada que pudesse fazer.
Então, os carros da polícia apareceram na esquina. Quando os viu, a Briar
parou, com os olhos muito arregalados.
— Quem tem de cuidar do bebé sou eu — disse, olhando para mim com ódio
e apertando o bebé com força.
Os seus gritos aumentaram, dilacerando a minha alma.
Desatou a correr, mas um carro da polícia parou mesmo em frente a casa.
— Largue a arma! — ordenou um polícia, apontando-lhe uma pistola.
Tapei a boca com a mão. Não! Podiam acertar no meu bebé!
A Briar olhou para o outro lado da estrada, mas naquele instante chegou outro
carro da polícia, impossibilitando qualquer hipótese de escapatória.
— Largue a arma! — voltaram a gritar.
A Briar olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas. Um segundo
depois, a faca caiu no passeio.
— Agora, pouse o bebé no chão com cuidado, afaste-se dois passos e ajoelhe-
se!
Contive a respiração e cravei os olhos na Briar, que parecia completamente
aturdida. Levantou o Andy, deu-lhe um beijo na cabeça e agachou-se devagar
até o pousar no chão. O pequeno contorcia-se e chorava mais do que nunca.
Um soluço escapou-se da minha garganta enquanto a Briar se afastava do
Andy e fazia o que os polícias lhe mandavam. Desatei a correr até onde estava o
meu filho, peguei nele e encostei-o ao peito: nunca na vida sentira tanto medo,
nunca desejara matar alguém. O Andy chorava contra o meu corpo enquanto
tentava acalmá-lo.
Não sabia o que se passava à minha volta, só me importava saber que o meu
bebé estava novamente comigo.
— Deixe-me ajudá-la, minha senhora — disse um polícia, ajudando-me a
levantar. Todo o meu corpo tremia; mal conseguia controlar os soluços que me
escapavam da garganta.
— O Michael… fugiu pela porta das traseiras… — informei, tremendo como
varas verdes.
O polícia pediu-me que descrevesse o agressor e enviou reforços para o
procurarem.
Levaram-me para dentro de casa, tentaram fazer-me perguntas, quiseram que
um médico viesse ver-me a mim e ao Andrew, mas recusei, pedi-lhes que me
deixassem em paz e fechei-me com o bebé no seu quarto.
O body branco com abelhinhas que vestira para dormir estava sujo por ter
estado no passeio. Tirei-lho e vesti-lhe uma roupa lavada enquanto ele
continuava a chorar. Sentei-me com ele no sofá e só parei de o embalar quando
parou finalmente de chorar. Os seus olhinhos não se afastaram da minha cara
nem por um instante.
— Já passou… — sussurrei, aninhando-o contra o meu peito. — Já passou,
meu amor…
Só quando vi que o Andy dormia profundamente me permiti descer com ele
nos braços e entrar na sala.
— Senhora Leister, temos de lhe fazer algumas perguntas — anunciou o
polícia. — O seu marido já está a caminho, tratámos de o avisar sobre o
sucedido…
«Nicholas.» Não pensara uma única vez nele. Os meus pensamentos e atenção
estavam apenas centrados no bebé, que agora dormia placidamente nos meus
braços.
— Capturámos o Michael O’Neil, minha senhora — anunciou um dos
polícias que ali estava. — Ele tentou fugir, mas conseguimos imobilizá-lo com
facilidade. Não estava armado.
Assenti, embora não notasse em mim qualquer alívio. Ainda não conseguia
acreditar no que tinha acontecido, estava em estado de choque e só queria
fechar-me com o Andy no meu quarto, sem ver mais ninguém.
— Ao parece, o senhor O’Neil tratava a menina Palvin num programa para
pessoas com perturbações mentais.
O quê?
— A Briar…? — perguntei, sem acreditar no que estava a ouvir.
— A menina Palvin foi internada nesse centro de tratamento há quatro meses
e meio. Aparentemente, tentou suicidar-se, e os seus pais internaram-na. O
senhor O’Neil deve tê-la tirado do centro sem que ninguém soubesse.
Não podia acreditar naquilo… embora aproveitar-se das suas pacientes
parecesse ser o passatempo favorito daquele imbecil. Conseguia ver a satisfação
do Michael por estar a tratar alguém que fazia parte do meu passado e do
Nicholas. Quase conseguia ouvir as conversas entre os dois: a Briar, magoada
pelo que vivera com o Nick, e o Michael, a alimentar-se da sua dor para a
chantagear e levá-la a fazer o que fez.
Controlei a vontade de chorar e passei as horas seguintes a prestar declarações.
Deixaram-me fazê-lo em casa, disse-lhes que não saía dali de maneira nenhuma.
Liguei à Jenna quando os polícias se foram embora: não queria ficar sozinha.
Ela e o Lion vieram de imediato, assombrados e assustados com o que tinha
acontecido.
— Estou cansada — reconheci depois de bebermos um chá na cozinha.
Continuava com o Andy a dormir encostado ao meu peito e recusava-me a
largá-lo. — Vou deitar-me um bocadinho.
A Jenna assentiu e disse-me que não me preocupasse. Não consegui falar com
o Nick porque ele apanhara o primeiro voo para Los Angeles e estava nesse
momento no ar.
Meti-me na cama com o Andy ao meu lado e tentei descansar um pouco.
Ainda tinha o susto no corpo e não fazia ideia de quanto tempo demoraria a
recuperar do que aconteceu.
Abri os olhos um par de horas mais tarde. Quando vi que o Andy não estava
comigo, o meu coração parou de bater. Levantei-me, aterrorizada, mas parei ao
ver o Nick sentado em frente à nossa cama com o Andrew a dormir contra o seu
peito. Acariciava a cabecinha dele com o nariz, e, quando me sentiu a acordar,
os seus olhos viraram-se na minha direção.
Respirei fundo, aliviada, e desatei a chorar.
O Nicholas levantou-se com o nosso filho nos braços e veio até junto de mim,
que estava imóvel, sem conseguir parar de chorar e a sentir-me tão culpada que
nem conseguia falar. Tudo tinha sido culpa minha… o Nicholas avisara-me
sobre o Michael, e eu não fizera caso. Devia ter sido o Charlie quem lhe dera a
minha morada… O meu filho podia estar morto por minha causa…
— Nick… — disse, soluçando descontroladamente. — Desculpa, peço
imensa desculpa…
Ele puxou-me contra o peito, com o nosso bebé a dormir no meio dos dois.
Enterrei a cabeça no pescoço dele e deixei que me apertasse com força.
— Chiu… Noah — acalmou-me com a voz entrecortada enquanto levantava
a mão e a enterrava no meu cabelo. — Não peças desculpa… Nem eu pensei
que aquele filho da mãe fizesse uma coisa destas…
Afastei-me do seu pescoço para poder fitar os seus olhos. Os bonitos olhos
azuis estavam raiados de sangue e olharam para mim como nunca tinham feito
antes.
— O Andy está bem… — disse, tentando consolar-nos a ambos.
— Se vos tivesse acontecido alguma coisa… nem sei o que faria, Noah.
Abracei-o e beijei-lhe o rosto.
— Ainda bem que já estás aqui — disse, aproximando os meus lábios dos
dele. Beijou-me com força, segurando-me contra si durante o que podiam ter
sido minutos.
— Ele fez-te alguma coisa, Noah…? — perguntou, tocando suavemente na
marca que a bofetada do Michael devia ter deixado no meu rosto.
O Nick parecia estar a conter a respiração, com medo da minha resposta.
— Estou bem… Ele ameaçou-me, mas não me tocou — respondi, tentando
falar com calma e não demonstrar como tinha sido horrível, embora tivesse
vivido um verdadeiro inferno.
O polegar dele voltou a acariciar-me o rosto.
— Quero matá-lo — confessou um segundo depois, e vi o ódio atravessar as
suas feições.
— Ele vai passar muito tempo na cadeia… já será castigo suficiente.
O Nick puxou-me para a sua boca, os nossos lábios fundiram-se num beijo
desesperado e pleno de angústia. Quando nos afastámos, ouvimos o Andrew
fazer um ruído enquanto mexia a cabecinha. Estava acordado e olhava fixamente
para nós. Sorri enquanto lhe penteava o cabelo pequenino para trás.
— Amo-vos tanto que nem sei como o exprimir por palavras — disse o Nick,
abraçando-nos com cuidado.
Metemo-nos os três na cama. O Nick a abraçar-me por trás e o Andy a dormir
ao meu lado.
Nunca mais ninguém ia fazer mal à minha família.
58
NICK
No dia seguinte, já com as coisas mais calmas, a Noah contou-me tudo o que
aconteceu, tintim por tintim. Senti que a veia do meu pescoço pulsava
loucamente ao saber como os acontecimentos se descontrolaram.
Também senti dor quando soube que a Briar tinha perdido o bebé aos seis
meses. Nunca soubera de nada, se tivesse tido conhecimento… Devia ter sido
horrível para ela passar por aquilo sozinha. Também era o meu filho e, ao olhar
para o Andrew, percebi que aquilo me magoava tanto ou mais do que qualquer
outra coisa.
Senti necessidade de a visitar. O Michael podia apodrecer na cadeia, mas a
Briar estava doente. Duas semanas depois do sucedido, fui ao centro onde estava
internada. Estava a receber tratamento para a depressão e para o transtorno
bipolar. Sempre pensei que a Briar tinha um problema qualquer que escapava
ao entendimento daqueles que a rodeavam.
A sua vida tinha sido parecida com a minha no sentido em que crescera
sozinha e rodeada de amas-secas que não a amavam. Os pais pareciam só ter
dado por ela quando apareceu em casa grávida, e a única coisa que fizeram foi
virar-lhe as costas. Desejava do fundo do coração que recuperasse de tudo o que
sofrera. Mas jamais lhe perdoaria por ter tentado tirar-me o meu filho.
Ao chegar ao centro de tratamento, informaram-me de que ela estava bastante
melhor. Estava a tomar a medicação e parecia bastante mais animada. Quando
entrei no seu quarto, encontrei-a sentada na cama, a ler um livro. Pelo que a
Noah me contara, quando esteve na nossa casa tinha um aspeto desalinhado e
descuidado. O que via agora na Briar não era nem uma coisa nem outra.
Tinha umas calças de ganga e uma camisa de algodão limpa, azul-céu. O
cabelo curto estava apanhado num bonito rabo de cavalo alto, e os seus lindos
olhos observaram-me com expectativa quando me viu entrar.
Tinham-na informado da minha visita. Estava à minha espera.
— Olá, Nicholas — cumprimentou-me, fechando o livro e pousando-o na
mesa de cabeceira.
Aproximei-me e perguntei-lhe se podia sentar-me.
— Não vou roubar-te muito tempo — expliquei, sem saber bem como
exprimir os meus sentimentos contraditórios. — Só queria dizer-te que lamento
muito o que aconteceu ao nosso filho. Nunca soube do que aconteceu, se
soubesse tinha-te apoiado qualquer que fosse a tua decisão.
A Briar ouviu-me com uma expressão tranquila.
— Não estava nos planos do destino que aquele bebé fizesse parte das nossas
vidas — afirmou, e vi que os seus olhos se humedeciam —, mas era um bebé
lindo…
Segurei a sua mão entre as minhas. Custava-me ouvir as suas palavras.
— Lamento imenso — disse e era verdade. Adorava o meu bebé e contava os
segundos até poder regressar para casa para ele e para a Noah, mas isso não
impedia que uma parte do meu coração se despedaçasse por este meu filho não
ter tido sequer a oportunidade de viver.
— Desculpa-me pelo que fiz — disse ela, interrompendo o silêncio. — Não
sei o que me deu… Eu… o Michael… acreditei que ele me amava, sabes?
Disse-me coisas… sobre a Noah e sobre ti… Pensei que…
— Agora só tens de te concentrar em recuperar, Briar — aconselhei,
levantando-me.
Ela olhou para mim com os olhos muito abertos.
— Achas que algum dia vou conseguir ser como vocês? Que vou ter alguém
que me ame como tu amas a Noah…?
Escolhi as minhas palavras com cuidado.
— Acho que há uma pessoa certa para cada um de nós — disse, olhando-a nos
olhos. — Nunca pensei que podia amar alguém como amo a Noah, tu melhor
do que ninguém sabes como estava destruído por dentro. Por isso, sim, acho
que o teu futuro terá coisas muito boas, Briar. Um dia, levantas-te de manhã e
conheces alguém que vai deixar o teu mundo de pernas para o ar… só tens de
esperar que o teu momento chegue.
Dirigi-me à porta e parei quando me chamou.
— Dei-lhe o teu nome — disse, falando para as minhas costas. — Tinha de te
dizer isto.
Respirei fundo e saí do quarto.
59
NOAH
Olhei fixamente para a mulher que tinha à minha frente. Estava tão bonita que
até fiquei sem ar, sem palavras… Quando a vi entrar na igreja, fiquei
completamente hipnotizado.
Todos os nossos familiares e amigos estavam ali, todas as pessoas de quem
gostávamos vieram assistir à nossa união no sagrado matrimónio.
A Noah estava emocionada. Os seus olhos brilhavam tentando controlar as
lágrimas.
— Sim, aceito — disse, pronunciando cada palavra com clareza.
— Noah, aceitas Nicholas Leister como teu esposo, prometes amá-lo e
respeitá-lo, na saúde e na doença, até que a morte vos separe?
A minha maravilhosa noiva sorriu-me e cravou os olhos nos meus.
— Sim, aceito — respondeu com a voz trémula.
— Em nome de Deus e com o poder concedido pela Santa Igreja, declaro-vos
marido e mulher. Pode beijar a noiva.
Meu Deus, não precisou de me dizer duas vezes. Agarrei-lhe no rosto com as
duas mãos, e fundimo-nos num beijo que nos deixou aos dois sem ar. As nossas
famílias aplaudiram, e tive de me obrigar a afastar-me dela.
— Agora és toda minha, senhora Leister — disse, mais feliz do que nunca.
A Noah sorriu e deixou cair uma lágrima, que sequei com os lábios.
A festa teve lugar em frente ao mar. O dia estava ameno, perfeito, e a Noah,
deslumbrante. Estava tão bonita com o vestido de noiva que me ia fazer pena
despir-lho mais tarde. A renda branca ajustava-se ao seu corpo lindo e
continuava numa saia de tule abobadada a partir da cintura. Os ombros estavam
destapados, à exceção de duas tiras acetinadas brancas que se cruzavam nas
costas, realçando o seu corpo tão belo. As sardas estavam mais bonitas do que
nunca… e tinha um tom bronzeado espetacular por ter apanhado sol nos dias
anteriores ao casamento: estava louco por ela.
— Estás preparada para te ir embora? — perguntei-lhe, horas depois,
enquanto dançávamos no centro da pista. Pedira que passassem a música
«Young at Heart», e a Noah chorou, emocionada, quando recordou aquela noite
bonita de alguns anos antes, quando lhe mostrei como era bom dançarino.
Tinha sido a última noite que passáramos juntos antes de nos separarmos e quis
que se lembrasse disso para reforçar um momento que nunca deveria chegar ao
fim. Agora, quatro anos depois, voltávamos a dançar a mesma música, mas
desta feita depois de jurarmos que íamos amar-nos para sempre.
A Noah olhou em redor, à procura da mãe, que embalava o nosso filho nos
braços. Aguentou acordado mais do que qualquer um de nós imaginara. Correu,
brincou, dançou e no fim acabou por se render ao sono.
— Ele fica bem, Noah — tranquilizei-a, dando-lhe um beijo na testa.
— Nunca passou tanto tempo sem estar com qualquer um de nós…
— Vai divertir-se à grande a brincar com a Maddie e a comer as bolachas da
tua mãe.
A Noah voltou a olhar para mim e sorriu-me com emoção.
— Amo-te tanto — declarou, acariciando-me a nuca.
Inclinei-me sobre ela para me apoderar dos seus lábios. Precisava de estar a sós
com ela, imediatamente.
Despedimo-nos dos convidados e dos nossos familiares. Quando tivemos de
nos despedir do Andrew, a cena tornou-se um pouco lacrimosa.
O pequeno acordou quando a Noah o segurou nos braços. Tinham-no vestido
com um casaco minúsculo que só nos dava vontade de o devorar.
— Meu principezinho — disse a Noah, beijando-lhe as bochechas. — Porta-
te bem, sim?
Tirei-lho das mãos quando vi que a minha recém-esposa ficou com os olhos
húmidos. Se o Andy a visse a chorar, aquilo ia transformar-se num berreiro
infindável.
Peguei no meu bebé e levantei-o no ar, fazendo-o rir. Quando o apertei contra
mim, abraçou-me e deitou a cabeça no meu ombro.
— Nick… não achas que…?
Olhei para ela com uma expressão de aviso. Precisava de estar sozinho com a
minha mulher. Não íamos levar o miúdo, esse assunto já estava arrumado.
A minha mãe aproximou-se e estendeu os braços para pegar nele.
— Vão-se embora, vá… Este menino fica em boas mãos.
A minha mãe deu-me um beijo no rosto como despedida e foi-se embora com
o Andrew.
O choro não demorou a desaparecer por entre o ruído das pessoas e da música.
Aproximei-me da Noah, que olhava para o sítio por onde a minha mãe saíra
com o nosso bebé.
— Vamos — disse, envolvendo-a nos meus braços. — Temos de ir, sardas.
A Noah virou-se para mim e forçou um sorriso.
— Sim, é melhor irmos andando.
As pessoas juntaram-se à porta para se despedirem de nós. Corremos até
entrarmos na limusina branca que nos levaria ao hotel onde reservara uma suite
nupcial. Ficava perto do aeroporto, porque no dia seguinte íamos para a Grécia,
para Mykonos. Alugara uma casa maravilhosa mesmo em frente à praia, só para
nós. Íamos passar uma semana ali e outra na Croácia, num hotel de cinco
estrelas.
Não queria que a Noah se preocupasse com nada. Nos dois últimos anos, só a
vira estudar e cuidar do nosso filho. Precisava daquelas férias mais do que
qualquer outra pessoa e ia dar-lhe tudo o que ele merecia.
Quando chegámos ao hotel, receberam-nos com toda a parafernália reservada
aos recém-casados. O quarto era enorme, e pedira que à nossa espera houvesse
champanhe, bombons e morangos frescos.
Quando entrámos, a Noah ficou boquiaberta.
— Foste tu quem organizou isto tudo?
— As coisas que se conseguem fazer com um telefonema, não é? — disse,
segurando-lhe no cabelo e puxando-a até a fazer chocar contra o meu corpo.
— Estás preparada para fazer amor contigo até ser hora de irmos para o
aeroporto?
Ela fitou-me com os olhos cintilantes de desejo.
— Mas disseste que o voo era só ao meio-dia.
Sorri de forma perversa.
— Exatamente.
Passámos a noite a amar-nos sem descanso. Ela era finalmente minha, com
tudo o que esta palavra significava. Despimo-nos com intenção e cobrimo-nos
de beijos sem dar tréguas um ao outro. O vestido dela ficou esquecido no chão
enquanto fizemos amor com cuidado, com paixão, com ternura e com
brutalidade. Entregámo-nos ao prazer como só conseguem fazer aqueles que
estão perdidamente apaixonados.
E, se fosse um crime amar alguém com loucura… então declarávamo-nos
culpados, a culpa era nossa.
Epílogo
NOAH
Demorei cinco anos a escrever esta trilogia. Quando comecei Culpa Minha, fi-lo
porque foi uma daquelas histórias que não queriam saber do que eu tinha para
fazer: exigiu-me deixar tudo de lado e meter mãos à obra. A Noah e o Nick
chegaram até mim num momento fulcral, e, agora, depois de tanto tempo,
pude finalmente encerrar a sua história.
É assustador deixar de escrever sobre personagens que conheço melhor do que
a mim própria, porque elas se transformaram em algo tão real que despedir-me
delas dói tanto quanto despedir-me de pessoas de carne e osso.
Continuo a não acreditar que esta história tenha sido publicada e que pessoas
de todo o mundo se tenham identificado com uma coisa que saiu diretamente
da minha cabeça. Obrigada a todos os que contribuíram com o seu grão de areia
para que este livro esteja hoje nas livrarias. Às minhas editoras, Aina e Rosa,
sem as quais este livro não seria o que é agora. Obrigada por terem conseguido
que desse o melhor de mim e por me terem ensinado o que é trabalhar
profissionalmente no mundo editorial.
Obrigada ao Wattpad, por me oferecer a melhor maneira de mostrar o meu
trabalho e por me ter ajudado a estar em contacto com os meus leitores de uma
forma tão direta. A todos os que ali escrevem e sonham, como eu sonhei,
incentivo-os a continuar. Nunca se sabe quem pode estar a ler.
Obrigada à minha agente, Nuria, por me acalmar quando há coisas que ainda
não entendo e por me apoiar desde o início.
Devo mais um agradecimento gigante aos meus pais, por me ensinarem que é
preciso lutar por aquilo que se quer, apesar de parecer que tudo está contra nós.
Aprendi com eles que não importa quantas vezes uma pessoa cai: temos de nos
levantar e seguir em frente.
Bar, nunca me vou cansar de agradecer a alegria que puseste neste livro e por
o teres lido até mais vezes do que eu. És a minha leitora zero, e espero que
continues comigo noutro projeto qualquer que venha a pôr em marcha. Os teus
conselhos valem ouro!
Eva, obrigada por te teres tornado uma das minhas melhores amigas, mesmo
sem te aperceberes disso. Obrigada por ouvires todas as minhas inseguranças,
por me acalmares melhor do que ninguém e por me fazeres rir mais do que
nunca. Espero chegar a ver como realizas os teus sonhos da mesma maneira que
me viste realizar os meus. Vais conseguir tudo o que te propuseres.
E por último, a todas as pessoas que estão há meses à espera deste fim, espero
do fundo do coração ter estado à altura das vossas expectativas e ter dado ao
Nick e à Noah o fim que mereciam. Não há nada como escrever para nós
mesmos, mas, quando sabemos que há tanta gente entusiasmada com aquilo
que estamos a criar, a experiência torna-se algo maravilhoso.
Espero que continuem comigo durante muito tempo, da mesma forma que
espero poder partilhar convosco todas as histórias que estão por chegar.
Este livro é para vocês. Adoro-vos, «Culpados»!