O Rapaz Que Desenhava Constelac - ALICE KELLEN - 240616 - 064920

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FICHA TÉCNICA

Título original: El chico que dibujaba constelaciones

Autora: Alice Kellen

Copyright © Editorial Planeta, S.A., 2022

Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2022

Tradução: Cláudia Gomes Oliveira

Revisão: Maria João Fonseca/Editorial Presença

Imagens da capa: Shutterstock

Capa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial Presença

Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

a
1. edição, Lisboa, novembro, 2022

o
Depósito legal n. 504 961/22

Reservados todos os direitos

para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

EDITORIAL PRESENÇA

Estrada das Palmeiras, 59

Queluz de Baixo

2730­­-132 Barcarena

info@presenca.pt

www.presenca.pt
CANÇÕES REFERIDAS NA OBRA

«Cuéntame» — Fórmula V

«Chica ye ye» — Concha Velasco

«Black is black» — Los Bravos

«Mi gran noche» — Raphael

«Te quiero, te quiero» — Nino Bravo

«The wind» — Cat Stevens

«Enamorado de la moda juvenil» — Radio Futura

«Chica de ayer» — Nacha Pop

«Forever and ever» — Demis Roussos


que inspiraram esta história.

A ela, que ainda está comigo.

A ele, que já não está, embora o sinta próximo.

Por fazer parte da mudança. Pelas bonitas recordações.


«A única maneira de conhecer, realmente,

um escritor é através do rasto de tinta que vai

deixando, já que a pessoa que julgamos

ver não é mais do que uma personagem vazia

e a verdade esconde-se sempre na ficção.»

Carlos Ruiz Zafón


PRÓLOGO

Vou ser sincera — quando a minha editora me sugeriu que escrevesse um

prólogo sobre o significado desta história para mim, não fazia a menor ideia do

que dizer. Fiquei em branco. Portanto, disse que ia pensar e optei por reler o

romance antes de tomar uma decisão. Quando cheguei ao fim, abri um novo

documento e comecei a delinear estas palavras.

O Rapaz Que Desenhava Constelações continua a ser o meu romance mais pessoal

e também aquele que mais alegrias me tem proporcionado. Não só pela emoção

ao receber mensagens cheias de magia durante estes anos — netas que o leem às

suas avós e mães e filhas, partilhando um mesmo livro —, mas também porque

nunca esperei nada desta história, que, afinal, tornaram vossa. E isso tem uma

explicação: escrevi-a para mim. Fi-lo enquanto atravessava um dos momentos

mais difíceis da minha vida; agora, tudo isso ficou para trás e tornou-me mais

forte, empática e sensível. Porém, naquela altura, presa entre dezembro e

janeiro de um inverno que parecia não acabar, as letras tornaram-se um refúgio

seguro.

Embora os meus avós nada tivessem que ver com a razão da minha tristeza,

pensei muito neles. Talvez por sempre o ter feito, na realidade. Tive a sorte de

passar longas temporadas junto deles quando era pequena. Com ele, que

brincava comigo como um miúdo (por talvez ainda o ser um pouco), que me

chamava «nena» com um sotaque tipicamente valenciano e que, todas as noites,

pegava no carro para ir comprar o meu gelado de menta preferido. E com ela,

que ainda está ao meu lado e cujos braços sempre foram um consolo e uma fonte

de carinho para mim, aqueles que agora envolvem o seu bisneto sempre que a

visitamos; se não tivessem já passado décadas e se as rugas da sua pele não

revelassem a verdade, qualquer pessoa diria que o tempo parou quando a ouço a

trautear as mesmas canções que me ensinou a mim.

Os meus avós viveram toda a sua vida no edifício que é retratado nesta

história, com um jardim interior que eu costumava contemplar da janela do

terceiro andar, na porta número dezasseis. Até que, quando ele morreu, ela

decidiu ir-se embora, já que aquele teto e aquelas paredes se haviam

transformado numa prisão repleta de recordações. E, no verão, plantávamos

tomates. E dançávamos ao som das canções que salpicam estas páginas. E

passávamos dias de sol com sabor a verão em Cullera. Mas ela nunca deixou de
limpar casas. E ele trabalhou durante muitos anos numa oficina de estofos. Por

isso, agarrei na história deles e perguntei-me como poderia ter sido se ela tivesse

tido asas e ele, mais possibilidades. Eis, então, que eles apareceram: Gabriel e

Valentina, quem sabe demasiado perfeitos um para o outro, mas, quando nos

deixamos levar pela imaginação, não estará, porventura, implícito o ato de

idealizar? Estas poderiam ter sido as vidas dos meus avós. Ou dos meus pais.

Ou, talvez, também dos teus. É provável que as recordações te assaltem, ao

mergulhares nestas páginas; afinal, se há algo de que eu me apercebi é que os

seres humanos têm vidas parecidas e que todos ansiamos por coisas similares,

apesar das diferenças que nos distinguem. Curioso, não é? Tanta procura

quando, por vezes, na sua essência, a felicidade se limita a uma mão-cheia de

coisas: a família, a amizade, o autoconhecimento, a ambição, os sonhos…

E o amor. O amor enquanto motor universal.

Aquele amor capaz de perdurar no tempo.

Será, talvez, por isso que gostamos tanto de livros: por permanecerem

inalteráveis enquanto os relógios prosseguem o seu curso. Aqui te deixo este,

um pequeno pedaço da história de um país, de uma geração e de duas

personagens que se amaram nos bons e nos maus momentos, enquanto

desenhavam, juntos, as constelações da sua vida.


Aquela inocente década de 1960

Lembro-me da primeira vez em que te vi como se fosse hoje.

Tive a sensação de que um fio invisível me obrigava a manter os olhos fixos

em ti. Inquieta, caminhei mais depressa enquanto abraçava o saco de croché

onde levava um cacete ainda quente. Depois de passar por ti, respirei fundo,

mas o meu pulso continuava acelerado. Não percebi o que despertou aquilo.

Evidentemente, tu, é claro. Mas disse a mim própria que tinha de haver outra

razão, como talvez a descontração da tua postura, recostado como estavas na

fachada de um edifício. Ou a tua cabeleira rebelde e escura, estando eu

habituada a ver os meus irmãos com o cabelo sempre perfeitamente penteado

com brilhantina e risco ao lado. Ou a tua maneira de segurar no cigarro e de me

olhar com descaramento.

E a tua voz. Sim, aquela que ouvi, depois, atrás de mim.

— Precisas de ajuda? — Não respondi. Acelerei o passo e tu seguiste-me,

caminhando ao meu lado. Vi-te atirar o cigarro para o chão antes de meteres as

mãos nos bolsos. — Vives longe daqui? — Mais silêncio. — O gato comeu-te a

língua?

— Não. E obrigada, mas acho que consigo carregar o pão sozinha.

Então, pela primeira vez, contemplei aquele sorriso que me acompanharia

durante o resto da minha vida. Era quase brincalhão, porém, repleto de

intenções. Perigoso. E, ao mesmo tempo, reconfortante. Tanto que, quando me

apercebi, estava embasbacada a olhar para ti. E, por isso, fui contra aquela

senhora mal-humorada.

— Por amor da santa! — exclamou, indignada. — Vê por onde andas,

menina! Estes jovens de hoje em dia nem sabem andar pelo passeio.

Lançou-me um último olhar cheio de irritação antes de se afastar, com a

cabeça erguida e um ar altivo. E, então, aconteceram duas coisas: dei-me conta

de que tu me estavas a segurar no braço e também de que o pão tinha caído

numa poça de água.

— Tenho… tenho de o levar à senhora…

— Não te preocupes. Compramos outro.


— Não, não. — Comecei a ficar nervosa. — Tem de ser desta padaria, e,

quando me vim embora, já estava quase a fechar, portanto…

— Porque é que só pode ser dessa padaria?

— Porque ela diz que é a melhor da cidade.

Sorriste outra vez. Fechavas ligeiramente os olhos ao fazê-lo, e percebi que

eram escuros como uma noite sem estrelas, mas intensos, abrasadores.

— Vem comigo, prometo que conheço um sítio em que fazem um pão

melhor.

— Eu… não posso. Vou atrasar-me. E nem sequer te conheço.

— Chamo-me Gabriel.

— Mas…

— Agora, é a altura em que me dizes o teu nome.

— É que… tenho de me ir embora…

Reparei no teu ar desconfiado. E, a seguir, um Citroën DS passou pela estrada

e tu ficaste a olhá-lo, como todos nós fazíamos sempre que víamos um carro

assim, naquela época. Mas não te mostraste deslumbrado ao contemplar as rodas

que giravam consoante o carro se afastava, ficaste somente pensativo e a calcular

o teu passo seguinte.

— Está bem, fazemos um acordo. Eu vou buscar-te um cacete ao melhor sítio

que conheço e tu ficas aqui à minha espera. Quando eu voltar, dizes-me como te

chamas.

Estava tão desconcertada que a voz não me saiu, mas assenti e ali fiquei até te

perder de vista. Provavelmente, não sabias que eu não estava habituada a falar

com homens como tu, porque, apesar de aparentares ter pouco mais de vinte

anos, tinhas uns traços duros e marcados, e uma segurança que me custava

encarar.

Mas esperei por ti. Não sei durante quanto tempo, talvez cinco ou dez

minutos. Esperei, apesar de saber que a senhora Gómez se zangaria se eu me

atrasasse. Pensei que aquele pequeno risco valeria a pena. Parecia um disparate,

mas, durante vários meses, foste o contratempo mais inesperado da minha vida.

Tinha uma rotina tão bem definida que raramente me deparava com

imprevistos.

Levantava-me cedo, antes do nascer do sol. Comia pão com marmelada caseira

ao pequeno-almoço e bebia leite, que o meu irmão costumava trazer na véspera.

A seguir, ia para a casa dos Gómez e levava o filho deles à escola. Por sorte, o
Marcos era um menino encantador e com uma personalidade serena, nada que

ver com a sua mãe. Durante o resto da manhã, limpava aquela casa enorme,

preparava o almoço e saía para fazer compras. Depois, regressava, servia a

refeição quente e terminava as tarefas, até que chegava a hora de ir buscar o

Marcos. Duas vezes por semana, frequentava aulas para adultos, ao final da

tarde. No resto do tempo, ajudava a minha mãe em casa, e, ao domingo, se a

semana tivesse corrido bem e se me sobrasse dinheiro, ia passear com as minhas

amigas pelo centro de Valência e comprávamos castanhas assadas, milho

acabado de fazer ou aqueles caramelos de nata de que eu tanto gostava. Eram,

sem dúvida, os melhores momentos da minha monótona existência.

Até tu apareceres, porque, aí, tudo mudou.

Chegaste quando já estava decidida a ir-me embora. Dobraste a esquina e

voltaste a sorrir-me antes de levantares o saco de papel com o cacete. Com a tua

presença, voltaram também os nervos. Enquanto tentava abrir o porta-moedas,

sentia os dedos como que entorpecidos, e não era do frio. Negaste com a cabeça

e fizeste-me agarrar no pão.

— Não me deves nada.

— Mas… devia…

— Faço questão — sussurraste.

— Muito obrigada.

Como não sabia que mais dizer ou fazer, dei meia-volta, como uma tonta, e

comecei a encaminhar-me para a casa da senhora Gómez. Ouvi os teus passos

apressados atrás de mim.

— Então? Onde pensas que vais?

— Trabalho ali. — Apontei para o edifício vermelho.

— É bom saber isso. — Sorriste. Parecias estar sempre a sorrir. Inspiraste

fundo, dando um passo para mim, e eu senti que o ar em redor ficava carregado

de eletricidade. — O teu nome. O prometido é devido.

— Valentina.

— Gosto. Valentina…

Nos teus lábios, soou de maneira diferente. Como guizos a abanar. Ou mel a

derramar. Jamais houve alguém que pronunciasse o meu nome como tu o fazias,

com delicadeza e força ao mesmo tempo. Naquele dia, memorizei o som e

guardei-o entre as nossas primeiras recordações.

Balbuciei um breve «agora, tenho de me ir embora» e desapareci dentro do


vestíbulo. O esforço ao subir as escadas nada teve que ver com a rapidez com

que me batia o coração. Enquanto servia o guisado de carne com ervilhas do dia

nos pratos e cortava o cacete em fatias, recordei os teus olhos negros, cada gesto

e cada palavra que havíamos partilhado, como se fossem cenas fugazes de um

filme que eu desejava guardar na memória.

Estava tão absorta que quase tropecei ao entrar na sala, mas, no último

instante, consegui manter o equilíbrio e colocar o prato diante do senhor

Gómez. Fiz uma segunda viagem para servir a senhora e levar o jarro com o

sumo de laranja e o pão. Depois, sentei-me na mesa que havia na cozinha e comi

um pouco do que sobrara, ainda distraída, a pensar em ti, perguntando-me por

que me terias causado tamanha impressão quando eras somente mais um

desconhecido: um desconhecido que, provavelmente, eu não voltaria a ver.

— Valentina! Podes chegar aqui um instante?

Levantei-me e limpei as mãos num pano antes de ir à sala. A senhora Gómez

tinha uma fatia de pão na mão e olhava-a com o sobrolho franzido.

— Precisa de mais alguma coisa? — perguntei.

— Este não é o pão do costume.

— Não. É que… — hesitei, nervosa.

— Eu não mordo, garota — resmungou ela.

— Atrasei-me. Já tinha fechado — menti.

— E onde compraste este?

— Noutro sítio ali perto.

Olhou para o marido, que permanecia absorto a ler o jornal com um ar

distraído, e depois voltou a fixar o seu olhar perspicaz em mim. Estremeci.

Pensei que me ia despedir. Pensei que me diria que não voltasse no dia seguinte

e tremi só de imaginar o momento em que teria de dar a notícia em casa, numa

altura em que não nos sobrava nem uma peseta, e o meu pai era um homem

com pouca, ou nenhuma, paciência.

— Quero que voltes a comprá-lo.

— Este… este pão? — balbuciei, incrédula.

— Sim. É tudo. Podes ir.

Virei-me e saí dali apressadamente, aliviada e preocupada ao mesmo tempo.

Aliviada porque, ao que parecia, a senhora tinha gostado da alteração e não me

despediria. E preocupada porque só tu sabias onde se vendia aquele pão, e, ou

bem que eu tinha a sorte de dar novamente de caras contigo, ou teria de me


preparar para percorrer todas as padarias da zona.

De qualquer modo, nesse dia, a minha rotina quebrou-se.

As pequenas alterações podem ser significativas.

E ainda mais quando essa mudança foste tu, Gabriel.


2

Ali estavas tu, de novo, apoiado na mesma parede daquele edifício onde te vira

pela primeira vez, no dia anterior. Desta vez, estavas sozinho e também tinhas

um cigarro na mão, mas largaste-o quando passei por ti e seguiste-me rua

abaixo.

— Valentina, Valentina… — murmuraste, baixinho.

Olhei-te. Reprimi um sorriso. O teu acentuou-se.

— Preciso que me faças um favor — disse-te.

— Está bem. E o que me dás em troca?

Franzi o sobrolho, o que te fez rir.

Tinhas luz no olhar. Quando os lábios se curvavam, notavam­-se as covinhas

nas faces. E, ao mesmo tempo, parecias misterioso e perspicaz. Ou talvez fosse

impressão minha, que queria ver-te assim, porque lembro-me de pensar que

nunca conhecera um homem tão atraente como tu, com aquele ar rebelde. Não

percebia porque te mostravas interessado em mim. Atravessámos a rua Pie de la

Cruz a passo ligeiro.

— Então, tenho de te devolver o favor…

— Tudo tem um preço, Valentina.

Detive-me diante da porta do Mercado Central, que se erguia, majestoso,

sobre as suas robustas colunas, exibindo uma extraordi­nária combinação de

metal, vidro e cerâmica: no interior, era possível apreciar a grande cúpula

coroada por um cata-vento. Das escadas que conduziam à porta principal,

ouviam-se as vozes dos vendedores e sentia-se o cheiro a peixe, a especiarias e a

fruta fresca de primeira.

— Está bem. Que queres?

— Um encontro. — Observaste-me atentamente.

— Eu… — Inspirei fundo. — Não sei se… Não posso.

— Porquê? És comprometida? — A voz falhou-te.

— Não, mas não tenho tempo para encontros.

— Nunca tens folgas, porventura?

— Aos sábados à tarde. E aos domingos.

— Muito bem, no domingo dá-me jeito.

— Mas, não é… não é essa a questão… — gaguejei, com o coração na

garganta. Incapaz de aguentar o teu olhar, fixei-o no saco de lona que trazia no
braço. — Nem sequer te conheço. Não sei nada sobre ti. E não posso permitir-

me distra… distra…

— Distrações — ajudaste-me.

— Isso. — Estava envergonhada.

— Pergunta-me o que quiseres.

— Não percebo o que queres…

— Disseste que não me conhecias e tens razão.

— Mas, não sei… Não saberia por onde começar.

Ri-me, porque a situação era tão surreal que começou a parecer-me engraçada.

Conseguias sempre isso, que qualquer momento desse lugar a sorrisos

improvisados. Talvez fosse a determinação que encontrei nos teus olhos, ou, no

fundo, talvez também me apetecesse averiguar a razão daquele formigueiro que

me percorria as costas quando estavas por perto.

— Trabalhas em quê? — As palavras escaparam-se-me em voz baixa.

— Isso é o que mais te interessa sobre mim? — Ergueste uma sobrancelha e

abanaste a cabeça, como se soubesses que eu mentia.

E estavas certo. Porque o que eu desejava realmente saber sobre ti eram

muitas outras coisas, como se gostavas de cerejas maduras ou da sensação da

areia quente da praia na pele, se eras daqueles que cantavam em voz alta ou se,

ao anoitecer, assomavas à janela e olhavas as estrelas.

— Trabalho na oficina de estofos do meu pai, mas ainda estou a estudar. É

uma longa história…

— Eu também estou a estudar. Embora seja algo básico.

— Que queres dizer com isso? — Naturalmente, retomaste o passo e entraste

no mercado, por isso, eu segui-te enquanto pensava na melhor maneira de me

explicar.

— Vivi e cresci numa aldeia até termos vindo embora, há uns anos. Quando

era pequena, não fui muito à escola, era muito longe e, além disso, tinha de

ajudar com os animais e nas tarefas diárias. Mas, quando nos mudámos para a

cidade, convenci o meu pai a deixar-me ter aulas à noite, depois do trabalho.

— Que te ensinam nessas aulas?

— Matemática. A ler e a escrever. Na realidade, eu já sabia, mas era muito

lenta, e agora vou ganhando cada vez mais… mais…

— Prática — disseste, sorrindo.

— Sim. E tu, que estudas?


— Filosofia e Letras. Então, vemo-nos no domingo?

Sorri com timidez antes de afastar o olhar e de o fixar numa banca de fruta.

Lembrei-me de que a senhora Gómez me pedira que comprasse laranjas, e as

que havia naquela banca, ao lado das maçãs, tinham um aspeto magnífico.

Trouxe também tangerinas para o pequeno Marcos, que preferia comer os

gomos um a um, ao lanche.

Quando acabei de pagar, retomei o passo.

— Estás a fazer-me sofrer, Valentina.

— Não é minha intenção. É só que… não percebo…

— Que é que não percebes? Sê clara comigo.

Respirei fundo e parei de caminhar. Olhei-te nos olhos.

— Não percebo porque queres sair comigo.

— Pois. És daquelas pessoas que procuram uma explicação lógica e

pormenorizada para tudo, certo? Daquelas que nunca se atiram para o vazio sem

pensar. Está bem. Então, digo-te que quero sair contigo porque gosto de ti. E

antes que digas que não te conheço, vou adiantar-me e deixar-te claro que essa

é, precisamente, a razão pela qual preciso de passar o domingo à tarde contigo.

Se ainda tens dúvidas sobre o que me fez reparar em ti no outro dia, quando te

vi na rua, bem, não sei, e isso é o melhor de tudo, a parte do icebergue que se

esconde debaixo de água, aquilo que não se consegue ver nem que esteja

debaixo do teu nariz. Não te consigo dar uma resposta que ainda não tenho, só

sei que adoro o teu olhar desconfiado, como pareces mastigar cada palavra antes

de a soltares e que, neste momento, me estejas a interrogar para aceitares sair

comigo…

A tua voz foi como um bálsamo e, por um segundo, permiti-me fantasiar com

a ideia de passar algumas horas ao teu lado sem estar naquele mercado cheio de

gente, de cheiros e de vozes.

— Talvez possa sair contigo, sim…

— Gosto de ouvir isso. — Curvaste os lábios com satisfação. Esse é o gesto de

que me lembro melhor daquele dia: o desenho de uma meia-lua no teu rosto.

— …porque tenho de descobrir de onde veio o pão.

— Fiquei com o orgulho ferido — brincaste.


3

Falei de ti à minha mãe, mas não disse nada ao meu pai nem aos meus irmãos.

No domingo à tarde, ela ajudou-me a arranjar-me, apanhou-me o cabelo e

convenceu-me a enrolar as pestanas e a pôr blush nas faces. Apesar de, noutras

partes do mundo, a moda hippy ter surgido na década de 1960, em Espanha

continuávamos presos a um estilo de vida mais clássico e conservador. Como se

via pelo vestido que escolhi, o melhor que tinha, de cintura estreita, tecido

amarelo-pálido e saia plissada.

— Estás linda, Valentina — disse-me a minha mãe.

— Obrigada pela ajuda. Prometo chegar cedo.

— Assim espero. Disse ao teu pai que ias sair com as tuas amigas, por isso,

não venhas tarde.

Assegurei-lhe, mais uma vez, de que cumpriria o recolher obrigatório e saí.

Tinha combinado contigo na rua onde nos encontráramos pela primeira vez. Ao

virar a esquina, vi que já lá estavas, à minha espera. Pela primeira vez, também

parecias estar nervoso, e fiquei aliviada ao perceber que não era a única a sentir-

me assim. Olhámo-nos como dois tolinhos durante alguns instantes eternos

antes de começarmos a caminhar na direção de uma zona mais movimentada da

cidade.

— Onde vamos? — perguntei, insegura.

— Não temos muito tempo, se tens de estar em casa daqui a uma hora e

meia, mas pensei que podíamos ir comer um gelado a um sítio que conheço. Ou

qualquer outra coisa que te apeteça — acrescentaste, rapidamente. — Tinhas

alguma ideia em mente?

— Não, claro que não. Perguntei por curiosidade. — Sorri para ti.

Embrenhámo-nos por ruas mais estreitas. Nalgumas zonas, como naquela por

onde passávamos, havia casas que tinham televisor, e as pessoas deixavam as

portas abertas para que as crianças pudessem reunir-se do lado de fora e assistir

um pouco. Ao passarmos por um grupo de crianças, desviámo-nos de um pião

e, quando estava prestes a tropeçar, agarraste-me pela cintura. O que posso

dizer, Gabriel? Creio que, naquele instante, quando levantei o olhar e nos

olhámos em silêncio e nervosos, alheios às vozes dos miúdos, percebi que me

apaixonaria por ti. Ou talvez tivesse sido antes, quando te vi pela primeira vez.

Ou dia após dia, consoante me ias demonstrando, com atos e certezas, que eras o
melhor homem que eu alguma vez conhecera.

Pouco depois, chegámos à geladaria.

— Vais escolher chocolate, já sei — disseste.

— Tu tens pinta de nata — repliquei.

— Rapariga esperta. Espera aqui um momento.

Fiquei sentada enquanto te aproximavas do balcão e fazias o pedido. Esfreguei

as mãos debaixo da mesa, ainda nervosa. Não conseguia deixar de olhar para ti.

Mais tarde, cheguei a pensar que tinha havido ali feitiço. Que, naquele dia,

quando passei por ti naquela rua, alguém nos tinha lançado um fio invisível que

nos ligou, se encheu de nós e nos amarrou com força.

Porque tu despertavas a minha pele, Gabriel.

Foste isso mesmo, um despertar, em todos os sentidos.

— Chocolate para a mais bonita da cidade. — Deste-me o gelado. — Nata

para o mais sortudo do dia — acrescentaste, com um sorriso travesso antes de

provares um pouco.

No rádio, em cima do balcão, ouvia-se «Cuéntame», dos ­Fórmula V.

— É delicioso — sussurrei.

— É a melhor geladaria.

— Concordo. — Saboreei o chocolate, embora parecesse que te saboreava a ti

ao não tirar os olhos de cima de ti. Vi como levantavas as sobrancelhas,

divertido. — Estava só… a olhar para a tua camisola. É como uma que o Paul

McCartney às vezes usa. — Tão negra como os teus olhos e de gola alta, já que,

ao fim do dia, arrefecia. Dava-te um ar intelectual.

— Não vou negar que gosto dos Beatles.

— Eu também. Porque estudas Literatura?

— Porque também gosto de livros. E, para ser sincero, porque sei que o meu

pai fica orgulhoso de mim. Qualquer outro desejaria que me limitasse a

aprender o ofício e herdasse a oficina de estofos, mas ele… é um homem

especial.

— Que queres dizer com isso?

— A minha mãe morreu.

— Sinto muito.

— Já foi há muito tempo. A questão é que o meu pai sofreu, mas, ainda

assim, continua a ser a pessoa mais incrível que conheço. E todos os dias me

esforço por ser mais como ele. Se dependesse de mim, encarregar-me-ia da


oficina sem reclamar. Tenho jeito para a coisa. É fácil, passei a vida inteira ali.

Mas ele quer que eu faça mais, percebes? Por isso, vou acabar os estudos.

Prometi-lhe que o faria. Vou um pouco mais devagar do que os outros porque

não podemos prescindir de toda a minha ajuda na oficina.

O facto de falares tanto era algo que me fascinava em ti. Tinhas sempre algo a

dizer, havia sempre mais uma palavra a passear-se pela tua cabeça. Eu tentava

apanhá-las, escutá-las e guardá-las num lugar seguro. Aprender-te. É isso que

acontece quando duas pessoas se conhecem: tudo é novo e fascinante, e os

espaços vazios daquilo que ainda não sabemos podem encher-se de fantasias

sobre as quais cairá, depois, o peso da maturidade.

— Como é que consegues fazer isso?

— O meu pai conhece um professor importante da Universidade de Valência,

um homem com muitos contactos. Salvou-lhe a vida há muitos anos, quando os


1
cinzentos lhe deram uma tareia, e levou-o para casa, onde lhe tratou das feridas

e o deixou re­
cuperar. Portanto, desde então, o Martínez sente-se em dívida para

com ele; embora, no fundo, se tenham tornado tão amigos que são como

família. Ele paga-me os estudos e o material, conseguiu-me um cartão da

biblioteca e costuma dar-me uma ajuda.

— A maneira como falas do teu pai é bonita.

— Então, e o teu? — perguntaste.

Apoiaste um braço nas costas da tua cadeira. Parecias descontraído e tão

seguro de ti mesmo que eras irresistível. Acho que não estavas ciente disso.

Com o passar do tempo, compreendi que não estamos cientes do poder atrativo

da juventude, apenas nos damos conta disso muitos anos depois, quando, ao

vermos fotografias antigas, descobrimos a beleza que encerrava aquele rosto,

que, outrora, ao olharmo-nos ao espelho, julgávamos ser tão imperfeito.

— É… é um bom homem… — hesitei.

Franziste o sobrolho e inclinaste a cabeça.

— Valentina, estás a mentir-me?

— Não, não é isso… — Houve qualquer coisa na tua expressão que me disse

que, se não fosse honesta contigo, te afastarias. Querias ver-me,

verdadeiramente, com luzes e sombras, como tu mesmo te mostraras ante mim.

— É egoísta, mas por vezes, entendo-o. Quer que eu trabalhe até me casar,

porque precisamos do dinheiro em casa, por isso, foi difícil convencê-lo a

inscrever-me nas aulas à noite, mas, a minha mãe… ela apoia-me.


— Gostas de ler?

— Custa-me, mas sim.

— Posso ajudar-te. Na próxima vez, trago um livro.

Lambi a colher. Tu fitaste os meus lábios.

— Gosto muito desta canção — sussurrei.

Inclinaste-te, com os cotovelos sobre a mesa.

— Talvez por seres parte da revolução. Sabes o que isso significa, Valentina?

«Com o cabelo alvoroçado e as meias coloridas…» A música pop é um conceito,

uma maneira de estar, de vestir, uma mudança social. Já alguma vez usaste

minissaia? — Neguei com a cabeça e senti que se me ruborizavam as faces. Tu

riste-te. — E já alguma vez foste a uma festa? — Voltei a negar, ainda sem

saber que abririas as frinchas do meu mundo para deixar a luz do sol entrar.

1
«Grises», no original (em português, «cinzentos»), era a denominação coloquial da polícia

franquista em Espanha. (NT)


4

Todos os dias, tentavas escapar-te da oficina à hora do almoço de modo que isso

coincidisse com a altura em que eu ia às compras. Encontrávamo-nos a meio do

caminho e conversávamos sobre tudo e sobre nada, principalmente tu, que

sempre tiveste o dom da palavra. A princípio, eu tinha vergonha de te contar

coisas porque pensava que eram pouco interessantes em comparação com o que

tu dizias: aquela revolução sobre a qual adoravas fantasiar, aquela maneira que

tinhas de falar sobre conceitos com que eu me começava, então, a familiarizar,

como a liberdade, os sonhos e o divertimento. A tua mente caótica e repleta de

esperança fascinava-me.

Mas tinha medo de me afeiçoar a ti.

Pensava que, em algum momento, te cansarias de estar comigo. Como é que

uma rapariga tão simples encaixaria na tua vida? Que poderia eu oferecer-te?

Na maior parte do tempo, permanecia em silêncio, tentando assimilar tudo o

que me dizias. E não entendia o brilho que encontrava nos teus olhos quando

me olhavas, por isso, mantinha-me alerta.

— No próximo domingo, vamos a uma festa — anunciaste, depois de uma

longa conversa sobre música. Suspirei fundo e cruzei os braços.

— Não vai ser possível. Desculpa.

— Porquê? — Foste atrás de mim.

— Porque… não posso sair contigo…

— Há dois domingos que saímos juntos.

— Por isso mesmo — expliquei.

— Estamos a conversar, agora.

— É uma coisa casual, fortuita.

— Valentina, Valentina…

Seguraste-me pelo cotovelo e sustive a respiração. Rezei para que tivesses pena

de mim, porque sabia que nada conseguiria fazer ante aquele teu sorriso.

Inclinaste a cabeça, olhando-me como se tentasses desvendar algum tipo de

enigma. Que viste naquele momento, Gabriel? Que te fez insistir e não

desistir?

— Diz-me o que mudou.

— Passamos demasiado tempo juntos.

— E qual é o problema?
— Poderia dar-te a entender coisas que não sou.

Tinha o coração na garganta. Tu limitaste-te a sorrir. Continuavas a segurar-

me pelo cotovelo e não sei em que momento deste um passo para mim, mas,

subitamente, senti que estávamos muito perto, demasiado perto um do outro.

Na rua, ninguém parecia prestar-nos atenção, mas eu transpirava das mãos e

tinha a garganta seca. Reparaste nisso, sei que reparaste.

— De que coisas estamos a falar, Valentina?

— Tu sabes. De ti. E de mim. De nós.

— E isso seria uma coisa má? — Ergueste uma sobrancelha.

Engoli em seco, insegura. Abanei a cabeça.

— Depende daquilo que queiras.

— Quero sair contigo. — Não hesitaste.

— Como é que sei que posso confiar em ti?

Ouvira as minhas amigas a dizer que alguns homens se divertiam com as

raparigas com pouca experiência, que ficavam deslum­bradas ante as primeiras

adulações. Depois de alguns meses de diversão, acabavam sempre por lhes partir

o coração e casavam com alguma jovem do seu meio, daquelas que por vezes

olhavam por cima do ombro, ao passar na rua.

— Não sabes, por isso, tu é que escolhes: podes arriscar ou viver a vida inteira

na dúvida do que poderia ter acontecido. Está nas tuas mãos. Só depende de ti.

Tomei fôlego. Tinhas razão, como sempre. Não havia bola de cristal alguma

em que pudesse ver o futuro, se me enganaria em relação a ti ou se valeria a

pena dar um passo em frente e abandonar as grades através das quais via a

minha vida a passar.

A curiosidade acabou por vencer aquela batalha.

— Acho que talvez possa escapulir-me por um bocadinho…


5

Enquanto caminhávamos até ali, contaste-me que a casa onde decorria a festa

era de um conhecido de uns amigos teus, mas, ao que parecia, a piada daquilo

era precisamente isso, podermo-nos reunir num sítio para dançar, comer e

conhecer pessoas. Percebi-o ao transpor a ombreira da porta e ao sermos

envolvidos pela música. Cumprimentaste um par de rapazes antes de o anfitrião

nos perguntar se queríamos beber um refresco. Bebemo-lo até ao fim

praticamente sem falarmos, encostados a uma parede, ligeiramente afastados

dos restantes, e a olhar um para o outro por cima do copo. Quando tocou

«Black is black», pegaste-me na mão e começámos a mover-nos ao ritmo da

música.

Eu envergava o mesmo vestido amarelo-pálido que usara no primeiro

domingo e havia um grupo de raparigas que pareciam cochichar sobre nós

enquanto te admiravam com descaramento, mas em breve tudo isso deixou de

me incomodar. Só tinha olhos para ti. Comecei a descontrair. E a sorrir.

Dançámos até nos cansarmos, e, quando fomos embora, já começara a anoitecer

e pouco faltava para o meu recolher.

Na rua, o vento era húmido, mas agradável.

Acendeste um cigarro. Ao passarmos por uma pequena praça, pediste-me para

que nos sentássemos um pouco e tiraste um livro do bolso interior do casaco.

Estava gasto, quase dobrado, com as folhas amarelecidas e a capa fissurada.

Deste-mo.

— Conheces este? — Exalaste o fumo.

Era de um tal Jack London. Neguei com a cabeça.

— Fica com ele. Vais gostar. — Sentaste-te ao meu lado.

— Demoraria anos a acabar de o ler — murmurei enquanto o abria e

folheava. Apercebi-me de que, lá dentro, havia anotações e deduzi que aquela

caligrafia cursiva e bonita era tua. Por instantes, invejei-te, porque a minha

letra era horrível, como a de uma criança.

— Então, podíamos lê-lo juntos, talvez.

— Estás a falar a sério? — Olhei-te entusiasmada.

— Claro. Trá-lo-ei sempre comigo, cada vez que te vir. E não só este. —

Deixaste o cigarro nos lábios e tiraste-me o livro das mãos. — Leremos mais.

Todos os que quiseres. Bastará umas poucas páginas por dia, quando nos
encontrarmos a caminho do mercado.

Engoli em seco, com as mãos no colo. Levantei o rosto para ti e ficaste calado,

mas os teus olhos desceram até pousarem nos meus lábios. Deitaste fora o

cigarro.

— Porque é que fazes tudo isto por mim? — perguntei-te.

— É evidente, não? Vou casar contigo, Valentina.

Desatei a rir-me, embora o coração me batesse tão depressa que pensei que tu

o escutarias. Mas depois, sob os nervos, franzi o sobrolho e fiquei séria. Não

compreendia como podias estar tão seguro. Também não compreendia porque

me afetavas tanto. Aquilo que sabia era que não sentiria o mesmo se o rapaz que

me pedisse para sair tivesse sido o meu vizinho da frente, aquele que o meu pai

considerava ser um bom partido e que, a mim, me parecia enfadonho, porque só

sabia falar dos coelhos que conseguia caçar em cada fim de semana que ia ao

campo.

— Não brinques comigo — sussurrei baixinho.

— Não me partas tu o coração.

E, enquanto a tua voz me envolvia, seguraste-me no queixo com os dedos,

inclinaste-te e os teus lábios roçaram os meus. Fechei os olhos, trémula. Gabriel,

o teu nome deslizou pela minha pele como se tentasse permanecer gravado em

cada linha e em cada sinal, mas não o proferi em voz alta porque, naquele

momento, só conseguia pensar na suavidade da tua boca sobre a minha. Não

sabia o que fazer com as mãos, não me conseguia mexer, mas sentia-me como

um fósforo cuja cabeça sulfúrea acaba de ser raspada na caixa. E, de repente,

acendi-me. Uma torrente cálida começou a trepar lentamente pelas minhas

costas até que te afastaste, devagar, e me olhaste.

Então, sorrimos sob a lua cheia.


6

Cumpriste a tua palavra. Tentávamos ver-nos todos os dias, se não fosse quando

eu ia às compras, de manhã, juntávamo-nos ao fim da tarde quando eu ia buscar

o Marcos à escola e o levava a casa dos Gómez. Esses momentos alongavam-se

cada vez mais, e rapidamente começámos a avançar nas páginas daquele livro

em que mergulhávamos juntos. Aos domingos, aproveitávamos o tempo livre

para assistir a alguma sessão dupla de cinema, para dar as mãos e roubar beijos

um ao outro, na última fila. Quando o calor do verão chegou, adotámos o

hábito de nos sentarmos a ler ao ar livre; tu eras paciente e sabias ensinar muito

melhor do que os professores das aulas que eu frequentava à noite. Seguias a

linha com a ponta do dedo, e, quando eu tinha dificuldade com alguma palavra,

em vez de bufares, impaciente, sorrias.

Eu estava louca por ti, Gabriel.

Adorava o teu sorriso travesso e aqueles olhos que me faziam lembrar uma

noite cerrada e sem estrelas, o timbre profundo da tua voz e acariciar-te o cabelo

com os dedos quando passava a mão pela tua nuca: tinha-lo um pouco mais

comprido do que ditavam as normas sociais e chegava-te às orelhas, como se

quisesses gritar ao mundo que eras diferente. E, sim, se eras. Não eras nada

parecido com os meus irmãos, e muito menos com o meu pai. E a tua cabeça

estava cheia de ideias incríveis e de sonhos que eu começava a ansiar cumprir ao

teu lado.

Apresentaste-me ao teu pai. E tinhas razão: era um homem maravilhoso, de

olhar humilde e carácter afável. O Aurelio tinha tanto orgulho em ti como tu

nele, e ficou radiante por saber que estávamos a namorar. Ao contrário do meu,

que não se mostrou satisfeito quando lhe contámos, apesar de ter acabado por

aceitar a ideia com o tempo, e graças à insistência da minha mãe, que gostou

imediatamente de ti.

Quando o inverno chegou, já tinhas acabado os estudos e o Martínez, o amigo

do teu pai, arranjou-te emprego a tempo parcial num colégio privado como

professor de Literatura. Fiquei tão feliz que, no dia em mo contaste, lancei-me

nos teus braços no meio da rua, uma vez que, entretanto, já deixara de ser tão

cautelosa e tímida.

Um mês depois, pediste-me que nos encontrássemos numa qualquer tarde de

quinta-feira, e, quando te perguntei onde iríamos, limitaste-te a negar com a


cabeça um par de vezes. Parecias pensativo. Quando algo te preocupava,

costumavas roer as unhas, pelo que as tinhas rentes e nada bonitas, mas até

desse pormenor ridículo eu gostava. Tal como da tua maneira de me dar a mão,

sempre com aquela firmeza que me transmitia serenidade. Como naquele dia,

quando caminhávamos com um passo firme pela rua Jesús. Detiveste-te diante

de um edifício de quatro andares, de cor creme, com janelas amplas, e dirigiste

o olhar para cima.

— Gostas? — perguntaste, inquieto.

— Sim. Porquê? Que estamos aqui a fazer?

Nesse momento, fomos interrompidos por um homem vestido com um fato

castanho que te cumprimentou com cordialidade após perceber que eras o

Gabriel Alcañiz, a pessoa com quem havia combinado encontrar-se. Entrámos

no edifício. Tinha um pátio interior que dava para um jardim algo selvagem

entre dois edifícios adjacentes, e as escadas pelas quais subíamos eram estreitas e

com um corrimão bonito, de madeira escura com os veios à vista.

Ele sacou de umas chaves, abriu a porta número dezasseis do terceiro andar e

convidou-nos a entrar. Mostrou-nos as divisões, que eram luminosas e com um

grande pé-direito com bonitas sancas. Falou sem parar dos aspetos positivos do

edifício: próximo do centro, jardim, portaria, cozinha pequena, mas prática…

Quando nos deixou a sós para que pudéssemos dar uma vista de olhos por nossa

conta, aproximaste-te de mim encurtando a distância que nos separava e

pegaste-me na mão. Nunca te tinha visto tão nervoso, nem mesmo no dia em

que estive prestes a recusar voltar a sair contigo por recear que quisesses apenas

divertir-te.

— Preciso de saber o que achas desta casa.

— Gabriel… é muito bonita, quem sabe, demasiado…

— Preferes uma coisa diferente? Por mim, pode ser. Basta dizeres­
-me

exatamente aquilo que queres, e eu tentarei consegui-lo.

— Não podemos pagá-la — disse com a voz sumida.

— Cá nos arranjaremos, não te preocupes com isso.

— Tu e eu nem sequer… ainda não…

— Diz-me só se gostas. Este é o último apartamento à venda no prédio e vai

ser vendido rapidamente. Está numa zona boa e dá para duas ruas, a sala de

jantar é ampla e soalheira.

— Gosto muito! É lindo, mas…


— Era só isso que precisava de ouvir.

Abraçaste-me e eu agarrei-me ao calor do teu corpo, mesmo sabendo que

aquilo era uma loucura. Apesar disso, naquela noite sonhei que estávamos

naquele sítio, só que já não era tão luminoso; agora, albergava móveis em cada

divisão e estava cheio de vida, aquela vida própria de um lar: correntes de ar ao

abrir as janelas, portas que chiavam e o odor a café que tudo impregnava pela

manhã. E precisamente ali no meio, cada um de nós com um copo na mão,

olhávamo-nos, sorridentes e repletos de alegria.

Dois dias depois, estávamos sentados no banco do pequeno jardim onde

costumávamos ir. A sombra alongada de uma árvore protegia-nos do sol e criava

sombras no solo arenoso, enquanto um par de pássaros se refrescava na fonte.

Estávamos ambos imersos numa história fascinante, até que virei a página do

livro e li em voz alta o bilhetinho que encontrei, escrito por ti: «Casa comigo,

Valentina.» Não era uma pergunta. E isso fez-me sorrir antes de deixar o

romance cair ao chão e de te abraçar com força. Nenhum dos dois disse palavra.

Ficámos apenas em silêncio durante aquilo que pareceu uma eternidade, a

escutar o piar dos pardais e o som dos ramos que se moviam com o vento. Foi

tão bonito quanto simples. O prólogo das nossas vidas.


7

Casámos alguns meses depois. Há muitas coisas desse dia de que já não me

lembro: não sei o que comemos depois da curta cerimónia, nem se estava sol ou

se o céu estava nublado. Aquilo que permanece intacto na minha memória é o

teu olhar cheio de ternura enquanto esperávamos, um em frente ao outro,

nervosos e a sorrir como crianças prestes a iniciar uma aventura empolgante.

Eu sentia­
-me exultante e apaixonada. Tu parecias estar prestes a roer as unhas

ali mesmo. Quando me puseste a aliança, com as nossas iniciais gravadas por

dentro, a mão tremia-me. E depois, quando o padre deu por terminada a

cerimónia, decidiste que era um bom momento para me beijares e

escandalizares os meus irmãos e o meu pai, ainda que, felizmente, já não

houvesse volta a dar.

«Eras o meu marido.»

Parece impossível que, após tantos anos, continue a saborear esta frase e a

sorrir pelo gosto doce que me fica nos lábios, como quando como uma colher de

caramelo quente.

Uma quentura semelhante à nossa primeira noite juntos.

Admito que estava um pouco assustada. Quem não estaria, quando se tratava

de uma coisa de que ninguém falava? A minha mãe não me dera conselho

algum e, até então, tu e eu só tínhamos trocado umas poucas carícias furtivas.

As mulheres da minha geração foram ensinadas a considerar o sexo como um

pecado, algo proibido antes do casamento, um prazer que parecia estar

destinado apenas aos homens. Tu encarregaste-te de me demonstrar que as

ideias que nos haviam incutido eram ridículas. Com o tempo, fui conhecendo

melhor o meu próprio corpo e descobrindo o poder do desejo. Porém, naquela

noite, quando chegámos àquela casa vazia que, para mim, era mais a minha casa

do que aquela que acabava de deixar, ainda nada sabia sobre o prazer. Onde

deveria tocar-te? Onde quereria que me tocasses? Ao aperceberes-te das minhas

dúvidas, sorriste e tentaste tranquilizar-me. As tuas mãos pousaram no meu

rosto e deste-me um beijo suave nos lábios, e depois outro, e mais outro. E cada

carícia fazia com que o medo se dissipasse.

— Amo-te — sussurraste a meia-voz.

Abraçámo-nos em silêncio. No quarto, havia apenas uma cortina, que se

agitava quando o vento soprava, e uma cama de casal coberta por uma colcha
bordada à mão pela minha mãe e que fora o seu presente de casamento. Era

tarde. A cidade dormia.

A proximidade dos nossos corpos era incandescente.

— Quero ver-te. — Custou-me pedir-to.

O teu sorriso rasgou-se e começaste a despir a camisa, lentamente. Deixaste-a

cair ao chão e eu percebi que alguma coisa se agitava dentro de mim. Seria,

provavelmente, o meu coração, que reagiu ao ver-te assim, sem nada que te

protegesse, como se, ao livrares-te da roupa, tivesses deixado à vista todas as

tuas emoções, aquelas que encontrei nos teus olhos: a adoração, o afeto, a

paixão… e o amor. Um amor que pulsou com força quando te aproximaste e me

pediste que me virasse, antes de desapertares sem pressa todos e cada um dos

pequenos botões brancos do meu vestido. Ao encostar as costas a ti, parei de

tremer. Os teus lábios roçaram-me o pescoço e as tuas mãos fixaram-se às

minhas ancas antes de voarem, livres, e subirem até ao meu peito. Sustive a

respiração. Aquilo nada tinha que ver com as carícias que havíamos trocado até

então. Foi mais íntimo, mais perigoso. Senti um profundo deleite ao

compreender que tínhamos a vida toda diante de nós.

Os teus beijos foram traçando um caminho serpeante.

— Valentina, como poderia não me apaixonar por ti?

— Porquê? — Virei-me e olhei-te de frente.

— Porque tinhas o mundo aos teus pés, mas ainda não o sabias. E eu queria

estar ao teu lado quando começasses a descobri-lo.

Abracei-te. Balançámos ao sabor de uma canção de silêncio enquanto

acabávamos de nos despir na penumbra. O teu melhor fato acabou ao lado do

meu discreto vestido de noiva, aos pés da cama. Beijaste-me por todo o corpo e

as tuas mãos deixavam um rasto de calor onde me tocavam. Sentir o peso do teu

peito junto ao meu fez com que o nosso mundo, aquele pequeno quarto,

começasse a girar muito depressa e se enchesse de respirações entrecortadas e de

sussurros. Contudo, quando o teu corpo encaixou no meu… Gabriel, quando

encaixámos pela primeira vez, entendi, simplesmente, que éramos duas estrelas

perdidas num imenso firmamento que tinham tido a sorte de se encontrar por

acaso.

Disse-to, pouco depois, quando ainda estávamos abraçados.

— Gosto disso. — Tocaste na minha face, franziste o sobrolho e levantaste-te.

— Espera um instante. — Saíste do quarto e regressaste com qualquer coisa na


mão e um cigarro aceso na boca.

— Que estás a fazer? — Ri-me, tapando-me com o lençol enquanto tu te

enroscavas na cama e olhavas a parede por cima da cabeceira de ferro forjado da

cama. E, então, fizeste-o. Traçaste um minúsculo ponto escuro sobre a superfície

lisa. Abri a boca, pasmada. — Enlouqueceste? A parede é nova! Pintada de

fresco!

— Por isso mesmo. É a nossa parede. Nossa, Valentina. Podemos fazer com

ela o que quisermos. E isso das estrelas deu-me uma ideia. Devíamos recordar

cada momento.

— Existem álbuns de fotografias.

— Mas isto é diferente. Uma estrela por cada instante importante. Uma

marca que só tu e eu saibamos decifrar. Serão as constelações da nossa vida.

Sorri com o olhar cravado naquele ponto solitário: o dia do nosso casamento, a

primeira vez em que fizemos amor. E, de seguida, os teus lábios cobriram os

meus ao cairmos novamente na cama, e a madrugada surpreendeu-nos entre

carícias e beijos eternos.


Aquela cinzenta década de 1970

Os primeiros meses ao teu lado foram como viver numa nuvem cómoda e

esponjosa. É assim que recordo a nossa viagem de lua de mel, naquele verão, no

início da década de 1970, algum tempo depois do casamento. Fomos a Ibiza e

passámos seis dias a passear pela ilha, perdendo-nos entre enseadas e recantos

fantásticos. O teu pai oferecera-nos uma máquina fotográfica Kodak e tu

parecias querer imortalizar cada instante, ainda que não conseguisses retratar a

brisa marinha e a sensação de liberdade que nos envolvia, como se, pelo facto de

nos afastarmos de casa, nos tornássemos duas pessoas com um passado em

branco que poderiam fazer qualquer coisa. Foi lá que comprei o meu primeiro

biquíni, numa época em que a sociedade conservadora ainda o rejeitava; não era

daqueles com a parte de baixo alta, pelo contrário, era bastante diminuto.

Quando chegámos à praia, convenceste-me a tirar a roupa e sorriste como um

menino antes de me pegares ao colo e de correres até à água cristalina,

ignorando os olhares dos que, quem sabe, pensavam que estávamos loucos.

E, em parte, estávamos. Loucos de amor. Desfrutámos dessa primeira etapa

delirante e intensa, na qual tudo ganha cores vibrantes e uma pessoa julga

poder alimentar-se somente de paixão. Um dia, disse-te que, por vezes, sentia a

tua falta mesmo quando está­vamos juntos, e tu desataste a rir-te, mas era

verdade. Que sensação, aquela, Gabriel. Felizmente, não dura para sempre, e o

amor amadurece e a pessoa serena, caso contrário, o coração dos humanos

acabaria por se avariar pelo uso excessivo em potência máxima.

Porém, nem tudo era perfeito.

Às vezes, o céu tornava-se violáceo e escurecia. Tu agarravas-me na mão, mas

não conseguias puxar por mim, porque havia coisas que eu tinha de aprender a

fazer sozinha.

Tal como era habitual naquela altura, quando casámos, deixei de trabalhar.

Despedi-me da família Gómez, apesar de estarmos apertados de dinheiro, e

tentei seguir os conselhos da minha mãe. «Uma boa esposa tem as refeições

prontas quando o marido chega a casa.» «Deves arranjar-te todos os dias. Ouve

o que eu digo, ou ele acabará por procurar outra, mais bonita do que tu. Os
homens são assim.» «Dá-lhe um filho quanto antes, Valentina. É importante.»

Não lhe guardo rancor, tenho pena dela. A minha mãe sabia apenas aquilo

que lhe fora ensinado, um mundo inteiro condensado num berlinde que podia

segurar entre os dedos. Crescera no campo e tinha uma visão limitada, na qual

tudo se resumia a conseguir sobreviver dia após dia, sem aborrecer o seu pai, e,

mais tarde, o seu marido. A privação da cultura para conseguir manter o

rebanho obediente e controlado.

De modo que tentei. Não tanto porque ela mo dissesse, mas porque era o que

todas nós fazíamos, na altura. Casávamos e a vida limitava­-se a ter filhos e a

manter a casa impecável. A rotina das jovens esposas resumia-se a ver quem

fazia um guisado melhor, quem costurava mais depressa e quem lutava

ferozmente contra as partículas de pó. E, apesar de ter mudado bastante desde

que entraras na minha vida, como se pequenos raios de luz fossem passando por

entre as fendas abertas, estava habituada a seguir as regras e tinha experiência

em ocupar-me da casa dos outros.

Portanto, não me rebelei contra o sistema por causa de um impulso

tresloucado e visceral, não compreendi, na altura, que tinha valor para muito

mais, não me apercebi de que as regras existiam para serem quebradas. Ficar em

casa enquanto tu ias trabalhar não foi o motivo, mas o que estava a acontecer

afetou esse aspeto. Ou melhor, o que não estava a acontecer.

O bebé que não chegava.

Conforme os meses iam passando, comecei a sentir um nó incómodo que se

apertava mais quando me vinha o período. Março, abril, maio, junho, julho,

agosto, e lá estava sempre aquele lembrete repleto de nada. Setembro, outubro,

novembro…

Nunca falámos abertamente do assunto. Era uma chuva suave e constante que

caía sobre nós e se infiltrava em cada silêncio partilhado, mas tentávamos evitá-

la. Fingíamos que não havia problema algum. Tu tinhas conseguido que te

dessem mais horas e cada vez davas mais aulas. Eu começava a sentir-me presa

entre aquelas quatro paredes. Tu prosperavas e envolvias-te em assuntos

políticos. Eu fui deixada para trás, dentro da minha carapaça.

Não sei em que momento deixámos de ser as duas pessoas mais felizes e

abertas do mundo para sermos um casal que fugia e se escondia de um

problema como aquele, algo que, no fundo, nos preocupava a ambos. Falávamos

sobre tudo, Gabriel, tu sabes. Falávamos dos nossos sonhos, de ideias loucas que
te passavam pela cabeça, de como imaginávamos o futuro, do que aconteceria se

algum dia a situação em que vivíamos mudasse e se a ditadura acabasse.

Falávamos daquela casa de campo que ambicionávamos ter para passar os verões

ou do apartamento na praia que poderíamos arrendar, uma vez por outra, em

Perelló ou perto de Cullera, de livros e de histórias incríveis, de filmes e de

música, dos pormenores mais corriqueiros. Falávamos de sexo, daquilo de que

tu gostavas e do que me excitava.

Mas não podíamos falar daquele problema.

E a desilusão chegava sempre, todos os meses.

Então, tornávamo-nos dois desconhecidos.

Poderíamos ter prosseguido assim, penso eu, já que, apesar de estarmos

completamente encharcados por aquela chuva miudinha, seguíamos em frente.

Contudo, por vezes, algo estalava no momento mais inesperado, e naquele dia

não só não leváramos guarda-chuva, como estava um vento gélido.

Tínhamos acabado de celebrar o nosso segundo aniversário. A noite caíra e

estávamos a passear por um mercado de Natal que todos os anos organizavam

no centro. Cheirava a maçarocas de milho e a castanhas assadas, e tu apertaste-

me contra ti assim que te deste conta de que eu estava com frio. Sorri ante esse

gesto. Estavas sempre atento a mim, eras esse tipo de homem que não ligava

muito às datas significativas, mas que enchia o dia a dia de pormenores:

tapavas-me quando eu adormecia no sofá a ler, sabias qual era a minha marca

preferida de chá e percorrias um trajeto de quinze minutos a pé, desde o

trabalho, para o ir comprar, trazias-me o jornal e assinalavas as páginas que

julgavas terem interesse para mim, e conseguias perceber como eu me sentia

apenas com um breve olhar.

Por isso, naquele dia, houve algo que mudou. Avançávamos pelo mercado

quando, de repente, um menino tão pequeno que cambaleava chocou contra as

minhas pernas e eu agarrei-o antes que caísse para trás, com o impacto.

Olhei-o.

Olhei-o fixamente enquanto ouvia a voz agradecida da sua mãe e a tua, a

responder-lhe com amabilidade. Mas, naquele momento… naquele momento,

só conseguia pensar que aquele bebé poderia ser o nosso, Gabriel. E quis, com

todas as minhas forças, segurá-lo nos meus braços e levantá-lo para ti, para que

o levasses aos ombros enquanto passeávamos por aquele lugar repleto de luzes e

de cânticos de Natal. Desejava-o… desejava-o tanto…


— Valentina, estás bem? — Puxaste-me para que eu voltasse a mim.

O menino desapareceu com a sua mãe, e tu e eu ficámos a olhar-nos, alheios às

pessoas que passavam à nossa volta, sem saberem que, naquele instante, sem

motivo aparente, o nó se rompera. Desejara que crescesse e que me apertasse

tanto que foi como abrir subitamente uma represa e deixar fluir a água.

Os meus olhos encheram-se de lágrimas.

— Lamento. Lamento muito, Gabriel…

Tu pestanejaste e calaste a dor. Embora não falássemos, já me conhecias bem.

Sabias o quanto me custava, por vezes, expressar-me e conhecias a minha forma

de canalizar as coisas: gota a gota, até que enchia por dentro e não as conseguia

conter durante mais tempo.

— Não digas isso, não voltes a dizer isso. Vem cá.

Pegaste-me na mão e afastámo-nos dali até chegarmos a uma rua sem saída,

sossegada. Inclinaste-te para mim, levantaste-me o rosto e limpaste-me as

lágrimas com os polegares enquanto eu tentava concentrar-me em respirar…

apenas em respirar…

— Há alguma coisa que não está bem connosco.

— Nem te atrevas a pensar isso. Ouve, Valentina: escolhi-te a ti, percebes?

Não escolhi uns filhos que não conheço, que talvez nunca venha a conhecer,

escolhi-te somente a ti porque te amo e quero partilhar a vida contigo. Tudo o

resto é prescindível.

Solucei ao abraçar-me a ti, agarrando-me ao teu casaco.

Sabes aquilo de que me lembro melhor desse dia? Não é do mercado de Natal,

nem do rosto inocente daquele menino, nem da sensação de leveza quando

quebrei completamente e deixei de me esforçar por manter as partes unidas.

Aquilo de que me lembro melhor é que a tua dor era tão grande quanto a

minha, mas não podíamos cair os dois ao mesmo tempo, éramos uma equipa,

por isso, viste-me a tropeçar e seguraste-me, ignorando as tuas feridas, que

também estavam em carne viva. Demonstraste-me que a força tem muito que

ver com o amor. Naquela noite, precisava tanto de ti que a tua própria angústia

minguou um pouco, ao pores-me a mim em primeiro lugar. Nunca conheci um

homem tão generoso e corajoso como tu.

Regressámos a casa em silêncio. Aqueceste leite num tachinho enquanto eu

trocava de roupa e tirava a maquilhagem. Acendi o candeeiro da mesa de

cabeceira, afastei os cobertores da cama para um lado e sorri-te com tristeza


quando surgiste com um copo e o pousaste na mesa. Respiraste fundo e olhaste-

me com uma ternura infinita.

— Temos de falar, Valentina. Devíamos tê-lo feito há muito tempo. E peço

desculpa por tê-lo evitado, mas, não sabia… não sabia como abordar o assunto,

e, à medida que os meses iam passando, tornou-se mais difícil. Mas somos nós.

Olha para nós. Prometemos que não teríamos segredos, que partilharíamos

tudo: as coisas boas e as más.

Assenti com a cabeça e mordi o lábio quando as lágrimas brotaram uma vez

mais. Tinha aberto aquela porta fechada à chave e não havia maneira de a

conseguir fechar. E também não o queria fazer. Antes, era um lugar escuro e

sem frestas por onde a luz pudesse entrar.

— Gostaria que as coisas fossem diferentes…

— Eu sei, mas esta é a nossa realidade.

— Sabes? A princípio, nem sequer o desejava, realmente. Era meramente uma

ideia lógica que se seguia ao casamento, como quando lês uma lista de compras

e sabes de cor o que se segue. Nem sequer fiquei triste ao ver que não chegava.

Não senti nada. Mas, depois, houve alguma coisa que mudou, não sei quando

nem porquê, mas aconteceu, e comecei a sentir um buraco imenso e vazio que

não consigo tapar com nada e que não devia existir porque não é lógico sentir

saudade de uma coisa que nunca se teve. Mas eu quero. Quero as suas faces

rosadas e as suas mãozinhas pequeninas e as suas perninhas roliças. Custa-me

mais a cada mês que passa. E dói-me também por ti. Porque reparo na maneira

como olhas para os filhos das outras pessoas na rua. Não consegues esconder

uma coisa destas, Gabriel, não de mim.

— Valentina, querida…

Mas eu não conseguia parar. Nem mesmo ante a súplica na tua voz.

— Sempre que me levanto de manhã, só vejo diante de mim outro dia vazio,

pelo menos até tu chegares a casa. Nessa altura, fico um pouco melhor… Nessa

altura… ainda encontro consolo quando lemos juntos ou te enroscas na cama,

ao meu lado, mas, durante o resto do tempo, não sei quem sou, e, aqui, só há

silêncio e vazio…

Pestanejaste. Parecias surpreendido ao compreenderes que eu não era feliz.

Talvez confuso por ser a primeira vez em que não tinhas antecipado os meus

próprios sentimentos. Porque, normalmente, era assim: conseguias, quase

sempre, ver através da minha pele.


Porém, naquele momento, não deixei que o fizesses. A culpa não foi tua.

— Não quero ver-te assim — sussurraste.

— Eu sei. Desculpa tudo isto…

— Não faças isso. Não peças desculpa.

— É que as coisas deviam ser diferentes.

— As coisas são como são, Valentina. Não podemos mudar isso, mas podemos

mudar-nos a nós próprios. E não quero que a tua vida gire em torno de tudo

isto, não quero que te voltes a sentir assim nunca mais. — Limpaste-me as

lágrimas com os polegares.

Então, tive uma ideia que me pareceu maravilhosa, apenas porque sabia que

me manteria ocupada e teria menos tempo para pensar ou para me lamentar.

— Talvez… talvez eu pudesse trabalhar…

Esfregaste a nuca, pensativo. Uma ruga de preocupação surgiu­-te na testa e ali

ficou. Aquilo apanhara-te de surpresa e parecias incomodado.

— Não me faças isso, Valentina — disseste, então, antes de fechares os olhos e

respirares fundo. — Sabes que não te posso proibir, mas não suporto pensar que

voltarás a trabalhar naquele sítio, a limpar e a deixar que aquela convencida

idiota te dê ordens o tempo inteiro…

— Mas é a única coisa que sei fazer.

— Podias fazer muito mais, Valentina.

— Acho que assim me iria distrair e sentir útil.

Quem sabe se, por um breve instante, não te passou pela cabeça que as coisas

seriam muito mais fáceis se eu me limitasse a comportar-me como as outras

mulheres: a maioria ocupava-se, simplesmente, das suas tarefas em casa e em

agradar ao marido. Mas era suposto nós sermos diferentes. Era o que tu dizias

sempre. Prometeras-me que não haveria limites nem regras que nos cortassem

as asas. E ali estávamos, naquela noite, a olhar-nos como se, de repente,

falássemos línguas diferentes. Foi um bombardeamento imprevisto: o bebé, eu

querer começar a trabalhar e o facto de tu perceberes que eu precisava de mais.

Estávamos casados há apenas dois anos e estávamos a viver uma das piores

crises por que passaríamos. Porque eu estava perdida. E porque tu ainda não o

sabias e não me tinhas ido buscar. Portanto, não nos encontrávamos. Estávamos

a alguns metros de distância, a contemplar-nos um ao outro, e não nos

encontrávamos, Gabriel. Quão nocivo pode ser, por vezes, o silêncio num

casamento. E, naquele dia, quebrámo-lo, mas agora era preciso apanhar todas
aquelas palavras que não disséramos antes e compreendê-las.

Saíste do quarto. Ouvi o estalido do isqueiro, ao longe, e esperei, esperei até

que regressaste e fechaste a porta devagar antes de te aproximares. Afastaste os

cobertores, meteste-te na cama e senti o teu braço a envolver-me. Tinhas as

mãos geladas, por teres estado a fumar à janela da sala: eu não te vira, mas sabia,

porque apoiavas sempre os cotovelos no parapeito e observavas a rua e o céu.

— Pensava que eras feliz — murmuraste contra o meu cabelo.

Demorei a responder, porque não queria que pensasses que aquilo tinha algo

que ver connosco. Tu eras o melhor que já me acontecera na vida, o antes e o

depois que tudo iluminava. O problema era que não podias preencher todos os

meus vazios, não teria sido justo nem para ti nem para mim. Tinha de começar

a descobrir quem era, sozinha.

— E sou, Gabriel. Quando estamos juntos, tudo é perfeito, não preciso de

mais. Mas, quando fico só, sinto que me falta alguma coisa, percebes? É como

um buraco que cada vez se torna mais profundo, como se crescesse sem parar, e

eu não consigo preenchê-lo nem tapá-lo nem fingir que não o sinto aqui. —

Peguei na tua mão e levei-a ao meu peito. Percebi que deixavas escapar o ar que

estavas a suster. — Talvez alguma coisa não esteja bem comigo…

Nenhum dos dois falou durante um longo minuto, mas ouvi um ligeiro

roçagar dos lençóis e o ranger do colchão quando te viraste para me olhares.

— Não. Tens razão, imagino o que seja passar o dia entre estas paredes, mas

penso que poderias fazer outra coisa, algo de que ­gostes. Dá-me um mês, pode

ser? Dá-me esse tempo para ver se me lembro de alguma coisa, e, se não, tu

decides o que queres fazer.

— Está bem. — Sorri e aconcheguei-me a ti.

Os nossos lábios encontraram-se.

— E quanto ao bebé…

— Não digas nada — pedi.

— Devíamos deixar de pensar nisso.

O murmúrio da noite envolveu-nos. Abracei-te com mais força, procurei, às

apalpadelas, os botões do teu pijama e comecei a desapertá-los à pressa,

enquanto te ouvia a respirar fundo. Sussurrei que te amava. Sussurrei-to mil

vezes.
9

Era uma terça-feira qualquer, mas chegaste a casa de bom humor. Sei-o porque,

sempre que o dia te corria bem, ligavas o gira-discos que compráramos no

Natal anterior e escolhias um disco de vinil do pequeno repertório que era cada

vez maior. «Mi gran noche», de Raphael, inundou a sala e eu sorri, porque

gostava dessa música e tu troçavas de mim. Costumavas gostar mais de bandas

estrangeiras, daquelas que se ouviam menos na rádio, embora Nino Bravo fosse

o teu ponto fraco. Estendeste-me a mão e fizeste-me rodopiar antes de me

encostares a ti e de começares a cantar-me ao ouvido.

— «Qué pasará, qué misterio habrá? Puede ser mi gran noche…»

— Que é que te deu, hoje? — perguntei.

— «Caminaré, abrazado a mi amor, por las calles sin rumbo…»

— Gabriel, tenho o arroz ao lume. — Desatei a rir.

— Então, é melhor apagá-lo, porque isto é importante. — E foste

rapidamente à cozinha enquanto a canção prosseguia. Depois, pediste-me que

me sentasse no sofá estofado que tu mesmo fizeras para nós na oficina do teu

pai. — Acho que vais adorar isto. Vi-o no outro dia, pendurado na parede dos

anúncios da universidade, já falei com o Martínez e ele disse que é uma boa

oportunidade.

— Estás a deixar-me nervosa.

Sacaste de um papel dobrado do bolso das calças e estendeste-mo. Parecias

entusiasmado. Enquanto esperavas pela minha reação, sorrias com os olhos. Li-

o. «Curso de Estenografia e Datilografia». Pestanejei, confusa, antes de levantar

o olhar.

— O que te parece? Pensei que ias gostar.

— Mas… Gabriel, não posso fazer isto.

— Porque não? — Franziste o sobrolho.

— Estás a brincar comigo? — Levantei-me. — Não tenho estudos! Até te

conhecer, apenas sabia ler como uma criança. E agora queres que faça isto?... —

Agitei o papel do anúncio na mão, irritada, enquanto tu me olhavas sem saberes

o que dizer.

Quando conseguiste raciocinar, envolveste-me a cintura com os braços. Tentei

libertar-me, mas pediste-me que me acalmasse e respirei fundo.

— Confio em ti, Valentina. E sabia que ias gostar. Adoras o mundo das letras,
das palavras, e é uma área com bastante procura. Poderias trabalhar como

secretária nalgum escritório de advogados, ou nos tribunais, ou em muitos

outros sítios. Não era isso que querias, meu amor? Diz-me aquilo de que

precisas, porque juro que vou ficar louco se te continuar a ver tão apática a cada

dia que passa. Sabes que eu também sofro com isso, não sabes? — sussurraste

com o olhar brilhante, desafiando-me enquanto ambos respirávamos

agitadamente. — É importante que saibas isso. Que isto tudo também me dói a

mim. E que estou prestes a ir-me abaixo…

Tu, o rapaz valente e idealista que tinha sempre um sorriso para mim, estavas

«prestes a ir-te abaixo». Houve alguma coisa nessa frase que se me cravou na

alma. Ou talvez fosse por aquilo que encontrei nos teus olhos, uma incerteza

que já não conseguias dissimular.

Limpei as lágrimas com as costas da mão.

— Tenho medo de não ser capaz. De te dececionar.

— Nunca me poderias dececionar, Valentina.

— Não te mereço. — Escondi o rosto no teu peito.

— Não voltes a dizer isso. Espera um segundo. — Dirigiste-te ao gira-discos,

tiraste o vinil de Raphael e puseste o de Nino Bravo, o teu preferido. Começou

a tocar a canção «Te quiero, te quiero», e eu sorri, embora ainda estivesse a

chorar. Adoravas aquela canção e costumavas cantarolá-la ao meu ouvido. —

Devíamos ir sair e celebrar. Ir ao cinema, por exemplo.

— Parece-me bem. É claro que sabes que o meu pai vai tentar matar-te, não

sabes? Consentir que a sua filha estude para nada menos do que arranjar um

emprego…

— Pareço-te preocupado? — Os teus lábios roçaram a minha orelha. — «Te

quiero, vida mía. Te quiero noche y día, no he querido nunca así. Te quiero con ternura,

con miedo, con locura, solo vivo para ti… Yo te seré siempre fiel, pues para mí quiero en

flor ese clavel de tu piel e de tu amor. Mi voz igual que un niño, te pide con cariño, ven a

mí, abrázame…»

Ri-me enquanto dançávamos juntos, com as minhas mãos à volta do teu

pescoço e a tua respiração a fazer-me cócegas na face. Nesse dia, quando fomos

para a cama, apercebi-me de que ainda sentia medo, Gabriel. Temia não estar ao

nível dos restantes alunos do curso, de ficar para trás e de não conseguir superar

aquele desafio que tinha diante de mim. Porém, depois de te dar um beijo de

boas-noites, desenhei um sorriso na almofada.


E senti um formigueiro na barriga.

Há quem lhe chame «entusiasmo».


10

Reparaste que eu estava nervosa e deste-me a mão antes de cruzarmos a

ombreira da porta. Era domingo. Talvez devesse ter posto o vestido mais

recatado que habitualmente usava quando ia visitar os meus pais, mas, naquele

dia, não me apeteceu. Vesti um modelo azul-céu que comprara pouco tempo

antes, num dia em que foras comigo à modista: ficava uns centímetros acima do

joelho, de corte direito e gola redonda. Arregalavas muito os olhos sempre que

o vestia e eu gostava disso, que me continuasses a olhar como naquele primeiro

dia, quando nos encontrámos na rua. Além disso, fazia-me sentir segura e

poderosa, como se estivesse a quebrar alguma regra. E, em parte, estava.

Quebrava as regras do meu pai. Que ridículo pareceria isto anos mais tarde,

quando as mulheres podiam vestir o que lhes desse na gana sempre que abriam

o roupeiro.

O meu pai só reparou na minha roupa quando tirei o casaco e me sentei à

mesa. Tentei não reagir ao seu olhar inquisitivo. Os meus irmãos, um deles

acompanhado da sua noiva, sentaram-se em frente a nós. Enquanto nos

servíamos da caçarola que a minha mãe preparara, perguntaram-te pelas tuas

aulas e, quando se queixaram das últimas greves de estudantes, senti-te a ficar

tenso ao meu lado. Eles não sabiam, mas tu cada vez estavas mais embrenhado

nas revoltas a favor da liberdade de expressão: queixavas-te frequentemente da

censura, contavas-me aquilo que se dizia nos corredores da universidade quando

o Martínez te pedia que lhe desses uma ajuda com os seus alunos.

— Já não há respeito nas aulas — queixou-se o meu irmão.

Tu cravaste o olhar no prato quente e felicitaste a minha mãe, dizendo-lhe que

estava delicioso; ela, como sempre, corou porque não estava habituada a receber

elogios de ninguém. O meu irmão continuou a falar. Eu sabia que a tua opinião

estava tão distante da deles que, sempre que almoçávamos com os meus pais,

tinhas de fazer um esforço por te manteres quieto na cadeira, e eles talvez nem

imaginassem que eras contra os métodos que os docentes usavam antigamente.

Uma vez, contaste-me, ainda com rancor, acerca das reguadas que te davam nas

pontas dos dedos, com uma régua de madeira, quando eras apenas uma criança,

ou das vezes em que vos sentavam de joelhos debaixo do quadro, com os braços

estendidos em cruz durante toda a tarde. A ti, que tiveras um pai à frente do

seu tempo e que jamais te levantou a mão e que te educou com palavras e
carinho.

E, então, veio o pior, talvez por estar distraída e de aquilo me ter apanhado

desprevenida. A Teresa, a minha futura cunhada, olhou-me, sorridente, e fez a

última pergunta que eu queria ouvir naquele momento. Não foi com maldade,

ela não tinha maldade.

— Já pensaram no nome que darão aos vossos filhos? O teu irmão e eu

estivemos a falar sobre isso, porque seria bom não terem os mesmos nomes que

os nossos, agora que vamos ser família — acrescentou, após limpar a boca ao

guardanapo evitando tirar o batom.

Julgo ter reparado na tua mão sobre a minha coxa, por baixo da mesa. Não

tenho a certeza, porque estava ocupada a organizar as ideias e a decidir que já

bastava, que não continuaria a responder às perguntas constantes sobre o

assunto. Estava cansada de ouvir o meu pai perguntar «quando pensava dar-lhe

um neto», sempre no masculino, claro, e de forçar um sorriso sempre que a

minha mãe mostrava os sapatinhos que tinha feito, o cachecol colorido e o gorro

de lã, que, afinal, acabava por oferecer às vizinhas.

— Podem usar os nomes que quiserem, nós ainda não sabemos se vamos ter

filhos. Na verdade… — pousei a colher na beira do prato e levantei o olhar —

decidi inscrever-me num curso de Estenografia e Datilografia. Quero começar a

trabalhar no próximo ano.

O silêncio foi denso e pegajoso. Todos sustiveram a respiração até que o meu

pai apontou para ti com o talher antes de bater na mesa com tanta força que

abanou a louça.

— Que tipo de marido é que não consegue sustentar a mulher?

— A questão não é se eu consigo ou não, mas sim se ela quer que eu o faça.

— Deixa-te dessa conversa e sê um homem como Deus manda! — Pôs-se em

pé, afastando a cadeira para trás enquanto tu tentavas manter a calma. — Olha

para ela, vestida como uma pega e incapaz de ter filhos, de que lhe serve ter-se

casado contigo?

Levantaste-te de repente. E talvez por ninguém esperar uma reação assim, os

meus irmãos não conseguiram impedir-te de agarrares o meu pai pelo pescoço.

Vi como o apertavas. Vi a raiva que havia dentro de ti quando o olhaste. A

Teresa gritou, aflita. A minha mãe levou uma mão ao peito. Então, as tuas

palavras encheram a sala.

— Se volta a falar assim da minha mulher, mato-o.


Soltaste-o tão depressa como o havias agarrado.

O meu pai tinha os olhos muito abertos e parecia consternado. Nunca

ninguém o havia enfrentado daquela maneira. Os meus irmãos respeitavam-no e

temiam-no em igual medida, a minha mãe nem sequer era capaz de o

contradizer. Quando voltou a falar, tinha o rosto vermelho.

— Fora daqui! — gritou. — Fora da minha casa.

— Vamos. — Seguraste-me a mão com firmeza.

— E nunca mais se atrevam a voltar!

— Com certeza que não — disseste em voz baixa, mas penso que ele não te

ouviu, entre o lamento da minha mãe e aquilo que ele continuava a gritar, até

quando já estávamos no patamar.

Apertavas-me a mão com tanta força, enquanto caminhavas com o olhar turvo

pela rua abaixo, que tive de te pedir que me soltasses quando me começaste a

magoar. Então, raciocinaste. Paraste de andar, beijaste-me os dedos e respiraste

fundo. Vi como humedecias os lábios, incapaz de falar, incapaz de me olhar nos

olhos.

— Tudo bem, Gabriel, está tudo bem.

— Desculpa, desculpa. — Abraçaste-me.

— Não peças desculpa. — Afastei-me e segurei-te no rosto. — Olha para

mim. Não fizeste nada errado, a culpa não foi tua. Muito… muito já tu

aguentaste. Hei de arranjar maneira de falar com a minha mãe, está bem? Sei

quando é que ela sai para ir às compras todos os dias.

Assentiste, mas parecias estar prestes a desabar.

Naquele dia, houve algumas portas que se fecharam. O meu pai cumpriu a

sua palavra e não houve mais almoços de domingo, mas, de certa forma, isso foi

um alívio e não um castigo. Como eu previra, continuei a ver a mamã

frequentemente, embora fosse às escondidas e tivesse de lhe explicar uma e

outra vez porque não permitiria que tu pedisses desculpa ao meu pai. Não

queria que o fizesses. Não me parecia justo para ti, e muito menos para mim.

Estava cansada de baixar a cabeça e de ter de obedecer a uma série de regras

ridículas.

Sei que, durante muitos anos, continuaste a sentir-te culpado, apesar de eu te

tentar convencer do contrário. Nunca pensei que me tivesses tirado nada,

Gabriel. Nunca te guardei rancor. E, a partir de então, os domingos começaram

a ser muito melhores. Mais bonitos e interessantes. Íamos visitar o teu pai,
lembras-te? O Aurelio comprava-me sempre aquelas bolachas com canela de

que eu tanto gostava e guardava-as numa caixa de latão que escondia no armário

da sala de jantar, ou noutro sítio qualquer fácil de encontrar para que eu

pudesse ir à procura delas. Almoçávamos na sala e, depois, ríamos e

conversávamos, ou eu entretinha-me com ele quando me mostrava o catálogo de

tecidos que os fornecedores lhe deixavam, porque valorizava a minha opinião

como se fosse importante. Gostava do teu pai como nunca fui capaz de gostar

do meu, embora, hoje em dia, não me arrependa disso. Porque o amor é livre e

nada entende de regras sociais.

E tu e eu, Gabriel, não tínhamos sido feitos para seguir as regras.


11

Comprámos por uma pechincha uma máquina de escrever que iam deixar de

usar no colégio onde trabalhavas; não era muito prática porque era muito

pesada, mas eu estava tão contente que não me importei e não cedi quando me

tentaste convencer a gastar as nossas poupanças numa outra, mais recente e mais

bonita. Estava entusiasmada. Tanto que, na noite antes de começar o curso, mal

dormi e não parei de dar voltas na cama.

No dia seguinte, acompanhaste-me até à sala em que decorriam as aulas. Era

dentro de um edifício da universidade, que frequentavas cada vez mais como

forma de ganhar algum dinheiro extra ao fim do mês. Tremiam-me as pernas.

Sentia-me como no dia de Natal, antes de abrir os presentes, mas também como

quando nos pedem para fazer uma apresentação de Física Quântica diante de

mil pessoas e não fazemos ideia do que dizer.

O medo de fracassar misturava-se com o entusiasmo.

— Acho melhor ir para casa — disse, entre risos.

— O pior é que sei que não estás a brincar. — Inclinaste-te e deste-me um

beijo na testa. — Vai correr tudo bem, vais ver. Tenho a certeza de que as outras

pessoas também se sentem assim. Vá, entra. Estarei aqui à tua espera quando

saíres. — Deste meia-volta, acendeste um cigarro e foste-te embora sem olhar

para trás, caminhando pelo corredor repleto de estudantes.

Tomei fôlego e entrei na sala. Quase todos os alunos que lá estavam tinham a

máquina de escrever sobre a mesa, assim como o manual que usaríamos durante

todo o curso. Reparei que eram quase todas raparigas jovens, de lábios pintados

e roupa da moda. Fiquei feliz por ter escolhido aquele vestido menos clássico,

naquele dia, e acabei por me sentar na terceira fila, ao lado de uma jovem de

cabelo louro encaracolado, que me sorriu.

— Sou a Clara. — Passou o olhar pela minha mão e fixou-se na aliança que eu

usava no dedo anelar. — Ena, és casada? Que sorte.

Retribuí-lhe o sorriso.

— Sim. Chamo-me Valentina.

Naquele momento, quando desviei o olhar para ver o professor a entrar na

sala, não imaginava que ela se tornaria uma das minhas melhores amigas. Ela e

também outras raparigas daquele curso. Depressa descobri que eu era a única

rapariga casada, pois todas as outras eram mulheres solteiras cujos pais lhes
haviam permitido estudar, mas, ali no meio, sentia-me como uma delas.

Pensávamos da mesma maneira, almejávamos as mesmas coisas e tínhamos

ideias parecidas. «Somos uma nova geração», costumava dizer a Clara, uma

geração que não se conformava em seguir as regras do Guia da Boa Esposa,

aquele manual que muitas de nós havíamos sido obrigadas a ler enquanto

crescíamos. Aspirávamos a mais. Já não queríamos apenas ter asas, queríamos

começar a voar sem paraquedas e sem esperar que alguém nos desse permissão

para o fazermos.
12

Tinha o coração na garganta. Eram onze da noite e tu ainda não tinhas

aparecido, quando costumavas chegar sempre a meio da tarde, nos dias em que

não me ias buscar depois das aulas. Quando ouvi o som das chaves na porta, fui

a correr abri-la.

— Gabriel! Que aconteceu?

— Os cinzentos — sussurraste.

Na madrugada do dia 23 de abril de 1971, foi levada a cabo uma das maiores

rusgas ao Partido Comunista Espanhol na Universidade de Valência. Toda a

estrutura foi detida, incluindo mais de trinta estudantes. Os que não foram

detidos esconderam-se para o evitar. Submeteram-nos a interrogatórios e

torturas. A universidade ficou paralisada. No entanto, as manifestações, os

protestos e o ambiente de agitação constante continuaram durante anos, até

então. Eu sentia orgulho em ti, por lutares pelos teus ideais, por teres coragem

para fazer aquilo que valia a pena, mas nessa noite, quando te vi com o rosto

ensanguentado, desejei somente que nunca mais te voltasses a envolver em nada

que pudesse pôr-te em perigo.

Peguei-te no braço e levei-te para a casa de banho.

Tinhas uma ferida na testa, quase na linha do cabelo, e estavas a sangrar do

nariz e do lábio. Fui buscar uma caixa em que guardávamos gaze, aspirinas e

um antissético. Limpei-te as feridas em silêncio. Não precisávamos de falar para

nos entendermos. Sabia que tinhas feito o que consideravas certo. E também

sabia que isso poderia ter consequências. Tu estavas ciente de quão nervosa eu

estava, por isso, quando comecei a tremer, seguraste-me na mão em que eu

tinha a gaze, suspiraste e levantaste o olhar.

— Desculpa, está bem? Vou tentar…

— Não ir parar à prisão? — disse, ofegante.

— É um bom objetivo, sim.

— Gabriel…

— Já sabias disto.

— Sim, mas agora… agora…

Os teus olhos negros cravaram-se nos meus.

Apercebi-me de que as pernas me tremiam e sentei-me ao teu lado, na beira

da banheira. Respirei fundo enquanto contemplava os azulejos esverdeados,


que, anos mais tarde, estariam cruelmente obsoletos. Eu tinha decidido esperar,

sobretudo quando a possibilidade me parecia quase uma miragem no meio do

deserto.

— Que mudou, Valentina?

Engoli em seco e olhei-te.

— É que acho que estou grávida. Só estou uma semana atrasada, mas costumo

ser muito regular. Não te queria contar até ter a certeza, para não criar

expectativas, porque detestaria estar errada, e agora não sei…

— Vem cá, meu amor.

Abraçaste-me com tanta força que me agarrei ao teu pescoço para não cair.

Senti a tua respiração na minha pele enquanto murmuravas; porém, o meu

coração batia tão depressa que eu mal escutava o que dizias, mas sei que eram

palavras repletas de enternecimento e promessas sussurradas sobre tudo o que

estava para vir. E quis agarrar-me a tudo aquilo.


13

Continuei a assistir às aulas. Passava o dia com enjoos e com sono, mas,

subitamente, aquele curso deixou de ser uma opção para passar a ser um

objetivo que eu queria alcançar. Talvez por ter percebido que gostava mais de

estenografia do que pensara, ou por, naquele ambiente, ter começado a

descobrir-me e a sentir que fazia parte daquele grupo de raparigas que não

tinham medo de dizer o que pensavam e que saíam aos domingos à tarde para se

divertirem.

Depois de almoçarmos com o teu pai e do habitual jogo de dominó,

incentivavas-me a sair com elas, mas eu estava tão cansada que só me apetecia ir

para casa, enroscar-me no sofá e ouvir um dos nossos discos preferidos.

— No próximo domingo — disse-te eu.

— Tu é que sabes. Toma, querida.

Deste-me um caramelo de nata, daqueles que eu adorava e aos quais nunca

resistia. Sorri e meti-o na boca enquanto tu fazias o mesmo com outro e

começávamos a caminhar para casa de mão dada, em silêncio. Havia qualquer

coisa nesses momentos, nos passeios que dávamos juntos, que me desenhava um

sorriso tonto no rosto. Era então que sentia, enquanto avançávamos por aquela

cidade que nos acolhia, que éramos «companheiros de vida», a caminhar numa

mesma direção.

— Queres que aqueça leite? — perguntaste ao chegarmos a casa enquanto

tiravas o casaco. — Acho que ainda há biscoitos. — Lanchavas sempre qualquer

coisa doce.

Assenti, distraída. Começara a sentir-me incomodada ao almoço e, aos poucos,

o mal-estar agravara-se. Doía-me a barriga. Por isso, decidi que beberia o copo

de leite e, a seguir, talvez lesse na poltrona antes de fechar os olhos por alguns

momentos. Pendurei o cachecol grená no cabide atrás da porta e tirei os brincos

antes de ir à casa de banho.

Não me tinha apercebido de nada até àquele momento. No entanto, ali

estava: um rasto vermelho que simbolizava a perda, a desilusão e a angústia. As

pernas falharam-me e senti tonturas.

Solucei com tanta força que deves ter-me ouvido na cozinha. O som poderia

ter sido o de um animal ferido, algo que saiu do mais profundo do meu ser.

Bateste à porta, mas não fui capaz de responder. Estava paralisada e destroçada.
Voltaste a bater, com mais força.

— Valentina, vou entrar.

Ficaste pálido ao abrir a porta. Levaste uma mão ao peito enquanto me

olhavas e a dor assomava ao teu rosto, embora te esforçasses por escondê-la. Eu

sangrava cada vez mais e mais. E só conseguia pensar: porquê? Tentei afastar-te

quando te aproximaste para me abraçares e me dizeres que tínhamos de ir ao

médico. Queria gritar, mas a voz não me saía. Estava a desfazer-me em mil

pedaços diante de ti e tu nada podias fazer para o evitar. Não teria sido preciso

que, meia hora depois, o médico nos explicasse que havíamos perdido o bebé.

Eu já o sabia. Sentia um vazio imenso, surdo e latente. Portanto, a única coisa

que fiz, ainda trémula, foi olhar-te.

— Lamento — murmurei muito baixinho.

— Eu também lamento, meu amor.

Deste-me um beijo terno na testa.

Os dias seguintes foram uma sucessão de silêncios e de olhares carregados de

palavras não ditas. A princípio, eu estava zangada. Estava zangada porque

aqueles eram os nossos primeiros anos, aqueles em que merecíamos ser felizes.

Estava zangada porque nos amávamos e sentia-me frustrada por não

conseguirmos ter algo que outros nem sequer desejavam e conseguiam. Creio

que passei por todos os estados de espírito em poucas semanas. A tristeza,

a desilusão, a melancolia. Depois, chegou a raiva, a ira, a incompreensão. O

pensamento constante de que aquilo «era injusto», «era injusto», «era injusto».

E depois, surpreendentemente, chegou a calma.

Ir às aulas e sair com a Clara e as meninas foi um estímulo, uma vez que

percebi que a minha vida não girava em torno de uma só coisa. Assim, as horas

do dia rapidamente se encheram de outras coisas: ia às aulas, tomávamos café

juntas e, de vez em quando, ia até à biblioteca e passava horas a percorrer os

corredores cheios de livros e a escolher a minha leitura seguinte. Às vezes, a

caminho de casa, sentava-me naquele jardim onde me havias ensinado a ler com

fluidez, anos antes, e perdia-me numa qualquer história. À medida que passava

as páginas, ia compreendendo melhor o mundo que me rodeava: a frondosidade

das árvores, os nomes de alguns pares de namorados gravados nos troncos, o céu

índigo e as pequenas flores que cresciam entre as pedras da calçada. E suponho

que, em algum momento, me dei conta de que estava em paz comigo mesma.

Mas nem sempre percorremos todos os caminhos de mãos dadas, pois não,
Gabriel?

Por vezes, um de nós soltava-se sem querer e ficava para trás, por mais que

tentasse correr para alcançar o outro. Não é fácil que duas pessoas caminhem

sempre ao mesmo ritmo, pelo mesmo trajeto, na mesma direção. Aprendemos

que, de vez em quando, devemos olhar para trás para nos assegurarmos de que

não abandonamos a pessoa amada.

E, nessa ocasião, aconteceu-te a ti. Tropeçaste. Caíste e esfolaste os joelhos,

mas não encontraste coragem para me pedir ajuda porque temias arrastar-me

contigo. Soube-o naquela tarde, quando cheguei a casa e tu não me ouviste a

entrar. Tinhas posto música. Eu deveria chegar ao final do dia, mas mudei de

ideias à última hora e decidi que me apetecia mais passar um pouco de tempo

contigo do que com as minhas amigas. E ali estavas tu, sentado no chão da sala,

com as costas apoiadas na parede e o olhar húmido e perdido.

Ajoelhei-me à tua frente e acariciei-te a face.

Não disseste nada. Partiu-me o coração ver-te assim.

Recuei para te poder alcançar.

— Que sentes, Gabriel?

Respiraste fundo, afastando o olhar.

— Vazio. E medo. E tristeza. Sinto-me como se tivesse constantemente

alguma coisa presa no peito, e não sei porquê, não consigo compreender,

Valentina. Sei que devia estar inteiro para ti e ser mais forte. Mas, desta vez, não

estou a conseguir. Mata-me pensar que o teu pai pudesse ter razão e que um dia

te apercebas de que a tua vida não mudou por teres casado comigo, porque eu

amo-te mais do que tudo. Loucamente, por necessidade, porque te sinto aqui.

— Levaste uma mão ao peito. — E queria dar-te tudo. Lembras-te do que te

disse na primeira noite que passámos nesta casa? Que me apaixonei por ti

porque tinhas o mundo a teus pés, mas que ainda não o sabias.

— Gabriel… — solucei e abracei-te com força.

— Queria estar ao teu lado no momento em que descobrisses esse pedaço de

mundo que ainda não sabias que te pertencia, mas tenho medo de que falte um

pedaço tão grande que…

— Não. — Obriguei-te a olhar-me, e o alívio atingiu-me quando percebi que

grande parte da tua dor se desvanecia, porque a única coisa de que precisavas era

de falar comigo, deixar as palavras voar sem que te preocupasses, por uma vez,

em ser aquele que tem de manter a calma. — Tu vais ser sempre o meu melhor
acaso. Sabes porquê? Porque tinhas razão: eu não o sabia, Gabriel. Tinha uma

venda nos olhos e nunca a tinha tentado tirar. Agora, parece um disparate, mas

eu nem sonhava que podia fazê-lo. A única coisa que me ensinaram, antes de vir

para a cidade, foi a matar animais, a cozinhar e a manter a casa limpa.

Sorriste. E achei que tinhas o sorriso mais bonito do mundo: era em meia-lua,

mas chegava-te sempre aos olhos, e, em redor, surgiam pequenas rugas.

— Agora, não te imagino a fazer isso.

— O quê? A matar animais? — Sentei-me ao teu lado, no chão. — Tinhas de

me ver. Não tinha jeito nenhum. Ainda bem que nos mudámos. Na primeira

vez em que a minha avó me pediu que matasse uma galinha, pensei que seria

fácil, mas… garanto-te que não foi. São mais resistentes do que parece. Deixei a

tarefa a meio e saí dali espavorida.

Soltaste uma gargalhada rouca e formaram-se duas covinhas nas tuas faces

enquanto tiravas o maço de tabaco do bolso das calças para acenderes um

cigarro.

— Fico contente que prefiras a estenografia.

— Adoro. E tudo graças a ti.

— Podes ter a certeza de que o mérito não é meu.

— Tu ensinaste-me a ler e a escrever melhor.

— Ao que parece, isso contribuiu para que casasses comigo.

Dei-te um suave encontrão no ombro e desatámos a rir-nos. Começáramos

aquela conversa com um lamento e terminámo-la com um sorriso.

— Estive a pensar, e acho que, neste verão, devíamos ir de férias. — Mordi o

lábio inferior e acrescentei: — Temos tido uns anos complicados. Merecemos.

Merecemos um descanso e não pensar em nada, o que te parece? Não

precisamos de ir muito longe, podíamos ir onde vão os turistas todos, a

Benidorm ou à Costa Brava.

Seguraste-me no rosto com uma mão, apertando-me as bochechas de forma

carinhosa.

Sorri quando me beijaste com aquela tua segurança.

— Acho que é uma ideia perfeita, meu amor.

Puseste-te em pé e puxaste-me para que eu me levantasse.

— Onde vamos? — perguntei, seguindo-te.

— Preciso de fazer uma coisa, preciso… disto…

Olhaste para a parede do quarto. Já lá figuravam várias estrelas que tínhamos


acumulado com o passar dos anos. Na realidade, nem sequer eram estrelas

propriamente ditas, embora lhes chamássemos assim. Eram pontos minúsculos

que simbolizavam enormes recordações. O daquela primeira noite que passámos

juntos, naquele quarto. O daquela vez em que passámos a tarde a dançar na sala

e bebemos demasiado vinho e nos rimos até que a barriga nos doesse. O do meu

primeiro dia de aulas. Todos eles sobre a cabeceira da nossa cama.

— Tens a certeza, Gabriel? — perguntei-te.

Olhaste-me. Sim, tinhas a certeza. Vi-o.

— As más recordações também fazem parte de quem nós somos.

E, então, traçaste mais uma estrela. A da perda. A de «aquilo que podia ter

sido e não foi», aquela que marcou o fim de alguma coisa porque, a seguir,

uniste os pontos até formares a nossa primeira constelação. Achei-a bonita.

Agridoce. Única.
14

Eu achava piada ao teu relógio biológico. Se estávamos de férias, dormias mais

do que toda a gente. No entanto, em qualquer outro dia normal, costumavas

levantar-te antes do nascer do sol. Lembro-me particularmente disso porque te

dizia sempre que não havia nada mais prazeroso do que abrir os olhos ainda na

cama e ficar mais um pouco no meio dos cobertores a observar a primeira luz

pálida da manhã. «E estás a perder isto tudo», acrescentava. Ou talvez fosse

porque, quando acordava e via o teu lugar na cama vazio, do lado direito,

começava a sentir-te a falta.

Como era habitual, foi o que encontrei naquele dia.

Vesti o robe e, quando entrei na cozinha, sorri ao ver que tinhas ido à padaria

da esquina comprar biscoitos de anis acabadinhos de fazer. Servi-me de café e

fui até à sala. Estavas sentado na poltrona com o corpo inclinado para a frente e

os cotovelos apoiados nos joelhos, sem tirares os olhos da televisão. Quando me

viste, levantaste o rosto, mas continuaste a roer as unhas. Depois, sorriste.

Parecias preocupado, embora também feliz.

— O que se passa?

— O Franco morreu.

E, então, uma nova palavra passou a fazer parte da vida que conhecíamos.

«Incerteza». Ninguém sabia o que ia suceder, embora os acontecimentos que se

seguiriam fossem determinantes para as nossas vidas. Contudo, e ainda antes do

começo da Transição, rapidamente percebemos que as melhores mudanças

implicam sacrifícios e riscos.


15

Lembro-me daquele verão como se fosse hoje. Lembro-me da luz do sol ao

amanhecer, tão clara, tão suave. Lembro-me dos nossos corpos entrelaçados por

baixo dos lençóis, naquele colchão cheio de molas soltas sobre o qual demos

rédea solta à paixão. Lembro-me do teu sorriso, Gabriel, sempre o teu sorriso.

Cheio, pleno, honesto. Lembro-me das tuas mãos na minha pele coberta pela

areia da praia e do quanto nos rimos naquele restaurante em que nos

permitimos o luxo de jantar e no qual o empregado se enganou em todos os

pratos, mas estávamos tão felizes que isso não teve importância nenhuma para

nós. Lembro-me do sussurro da tua voz, todas as noites, durante a leitura do

livro que estávamos a ler na altura, quão mágico era escutar-te e imaginar

histórias, viver dentro daquelas páginas ao teu lado. Lembro-me de que não

precisávamos de mais nada para nos sentirmos satisfeitos porque, naqueles dias

repletos de sol, mar e olhares brilhantes, apercebemo-nos de que nos teríamos

sempre um ao outro. E que mais poderíamos desejar?

É pena que tenhamos somente um par de fotografias dessa viagem.

Divertimo-nos tanto no parque de campismo que, a partir do segundo dia, não

nos voltámos a lembrar de pegar na máquina fotográfica.

E regressámos mais apaixonados do que nunca.

Porque essa era uma das teorias que eu tinha em relação a ti.

Era possível apaixonar-me por ti muitas vezes. Comprovei o facto ao longo

dos anos. Por vezes, andávamos em maré de azar, e, noutras ocasiões, a vida

trocava-nos as voltas de tal maneira que mal sabíamos o que fazíamos ali,

vivendo-a juntos e de mãos dadas. Até que acontecia. Talvez fosse algum

instante que o desencadeasse, ou alguma frase, um gesto ou um olhar, mas,

subitamente, voltava a sentir-me aquela menina ingénua que, antes, estava

louca por ti. E tu e eu voltávamos a ser, amando-nos mais e melhor, como se

cada contratempo nos reforçasse.

Aquela viagem foi um ponto à parte, um dos bons.

Quando regressámos, estava exausta, mas radiante. Desenhámos juntos aquela

nova constelação, uma constelação que recordaríamos sempre com carinho,

aquela que veio depois da que estava tingida de dor, embora a quiséssemos

conservar porque, como era habitual, tinhas razão: «As más recordações

também fazem parte de quem nós somos.»


Portanto, quando, algumas semanas depois, fomos ao médico para sabermos

se me podia receitar vitaminas ou alguma coisa para a gripe, não esperávamos

aquela notícia. Estávamos tão perdidos a encontrar-nos de novo e a saborear

cada instante que não prestei atenção ao calendário.

Depois de me examinar, o médico suspirou fundo.

— Não está doente, está grávida.


16

A Sofía nasceu numa morna manhã de primavera.

E, ainda agora, tantos anos depois, tenho dificuldade em encontrar as palavras

certas para descrever o que senti naquele momento, quando a segurei nos braços

pela primeira vez e te vi a chorar, Gabriel. Não paravas de olhar para a tua filha.

Deste-lhe o teu coração sem hesitar no momento em que lhe pegaste, com os

olhos ainda brilhantes, embalando-a junto ao teu peito, e nunca mais lho

pediste nem o tentaste recuperar.

Passou a ser dela, assim, de modo incondicional.


17

A cinzenta década de 1970, como alguns a recordam, começou por ser um céu

nublado que, mais tarde, o sol banhou com a sua luz. Costumavas dizer que foi

como quando se dá uma dentada numa maçã demasiado ácida e, inicialmente,

se quer cuspir; porém, consoante se vai comendo, pensa-se que talvez não esteja

assim tão má, incluindo a casca, as sementes azedas e o caroço fibroso. Porque

foi o princípio da mudança. Após alguns anos difíceis naquela época agitada,

confusa e complicada, a ditadura ficou para trás e a primavera chegou, depois de

um inverno comprido: a moda tornou-se mais eclética e ousada, os bares

encheram-se de música que deram lugar à Movida, as artes começaram a sair

daquele casulo asfixiante de seda onde haviam permanecido durante demasiado

tempo.

Eu acabei o curso de Estenografia e Datilografia com distinção e recebi uma

primeira oferta de trabalho que recusei por recear dar à luz no primeiro dia,

mas, ainda assim, foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida

porque me senti orgulhosa de mim própria e fiquei com um punhado de amigas

que me acompanhariam sempre. Estreou o filme Tubarão e tu fizeste questão de

o ir ver, embora eu morresse de medo; em troca, vinguei-me alguns anos depois,

convencendo-te a vires comigo ver o Grease – Brilhantina, que te deixou

horrorizado. O Elvis Presley e o Charlie Chaplin morreram. Comprámos a nossa

primeira televisão. E também um carro. Parecias um miúdo com um brinquedo

novo. Era um Renault 4 e custou-nos 234 296 pesetas. Agora, é engraçado

recordar que era tão pequeno que mal lá conseguíamos meter a bagagem toda

quando viajávamos, e, no verão, assávamos lá dentro, mesmo com todos os

vidros abertos. Naquela época, achávamos que não podíamos desejar mais nada,

que estávamos no topo do mundo.

E, então, a nossa pequena Sofía chegou.

Quando menos esperávamos…

Quando já havíamos perdido quase todas as esperanças…

Virou a nossa vida de pernas para o ar. Estávamos apaixonados por ela. Por

aquelas pernas roliças com as quais deu os primeiros passos pouco antes de fazer

um ano, aquele que celebrámos em casa do teu pai, num domingo em que a

minha mãe se conseguiu escapulir para se juntar a nós. E pelos seus olhos, que

eram iguais aos teus, negros e profundos, repletos de verdade. A Sofía sempre
foi parecida contigo em tudo. No carácter. No sorriso. No seu jeito sonhador e

idealista. Na maneira de enfrentar as coisas, com aquele seu hábito de engolir

tudo até não aguentar mais e, depois, deixar sair tudo de repente.

E talvez esse tenha sido sempre o teu ponto fraco.

Adorava contemplar-vos em silêncio enquanto brincavam na carpete da sala.

Era maravilhoso ver como ela te olhava com adoração. E confiava cegamente em

ti quando a atiravas ao ar e lhe pedias que fizesse alguma coisa: «Vá, esconde-te

na despensa e conta até cem», ou «Diz ao avô que tem cara de beringela». Sabes

quão difícil é encontrar um amor tão puro e inocente? Ganhava-lo a pulso, disso

não tinha dúvidas. Adoravas ser pai e estavas sempre disponível para ela: não só

nos momentos bons, mas também nos mais complicados, como naquela noite

em que não conseguíamos que a febre dela baixasse e te meteste na banheira,

abraçando a Sofía contra o teu peito e consolando-a enquanto chorava. Levavas

sempre a sério o que ela dizia, até quando era tão pequenina que o resto dos

adultos a ignoravam. Dedicavas-lhe tempo.

E o que pode haver de mais valioso para um filho?


Aquela maravilhosa década de 1980

18

Que efervescente foi a década de 1980. Tão nossa, tão louca e imprevisível.

Vivemo-la expectantes. Mal havia tempo para assimilar uma coisa, que logo

aparecia outra novidade, mas éramos insaciáveis. Quando, mais tarde, te

perguntavam por aqueles tempos, costumavas dizer que foram como as Peta

Zetas, efervescentes na ponta da língua.

Apareceram também aqueles livros de banda desenhada de que tanto gostavas

e os anúncios que incentivavam o consumismo. Os blusões de cabedal, os

penteados multicolores, os enchumaços e os cabelos ripados cheios de laca. Os

primeiros videojogos, nos quais acabaste por ficar viciado com o tempo, para

surpresa geral. Programas televisivos que surpreendiam, como La Edad de Oro,

ou, mais tarde, o Un, Dos, Tres; e também séries como Falcon Crest e Dallas.

Bebíamos Schweppes enquanto a vocalista dos Mecano dava a conhecer a Coca-

Cola Light. Foi a revolução sexual e musical com os Radio Futura, Alaska y los

Pegamoides, Los Imperdibles Azules ou o Nacha Pop. No meio daquela

pândega inesgotável, vivemos a morte de Chanquete, de Verão Azul, e

testemunhámos a queda do Muro de Berlim, entre muitas outras coisas.

A década de 1980 foi especial não só por ter marcado um antes e um depois,

mas também por ter sido a época mais doce da nossa vida. Depois de passarmos

a década anterior com altos e baixos e a comer maçãs ácidas umas atrás das

outras, decidimos que chegara o momento de fazer alguma coisa diferente,

cortámo-las às rodelas e metemo-las num pastel fofo e delicioso. Aquilo com

que nos deparámos, ao abrirmos o forno, foi uma época inesquecível. Criámos

uma família. Tu e eu, Gabriel, juntos. Foi o nosso grande feito.


19

— Papá, olha! Olha, papá! Não estás a ver!

— Sim, estou a ver, fofinha. Ena, que salto tão alto!

A Sofía sorriu e correu pela areia até à beira-mar, rindo-se de cada vez que a

espuma das ondas lhe molhava os pés. Olhaste-me sob a luz do sol daquela

manhã de verão e inclinaste-te para me dares um beijo breve nos lábios antes de

te pores em pé para correres atrás dela. Contemplei-vos ao longe com um

sorriso nos lábios. Ela chapinhava na água. Tu rias-te ao olhar para ela. Ela

puxou-te pela mão para que a seguisses e acabaram os dois sentados à beira-mar

a brincar com o balde e a pá que tínhamos comprado. Deitei-me na toalha e

relaxei. Quando abri os olhos, vinte minutos depois, tinham começado a

construir um castelo de areia com um fosso em redor para que a água circulasse

à volta sem o desmanchar.

— Deviam fazer uma torre — comentei.

— Pedimos à mamã para a fazer?

— Sim! — A Sofía deu-me o ancinho, contente.

É engraçado ver o quanto as pessoas mudam ao longo da vida. Éramos outros,

para o bem e para o mal. Éramos aqueles que cresceram em caminhos separados

e também os que se encontraram, dez anos antes, e que decidiram partilhar uma

mesma direção. Éramos as canções que dançáramos e todos os momentos que

salpicavam a parede em que desenhavas constelações. Éramos a menina que

tinhas junto a ti e também a casa que transformáramos num lar. E, apesar de

tudo o que alcançámos, apesar dos passos que dávamos em cada dia como se não

nos fosse possível parar, ainda tínhamos sonhos e ambições, metas e planos que

traçávamos sobre aqueles que haviam ficado para trás.

E, por vezes, despertavam com força…

Mas, nesse dia, não. Nesse dia, enquanto vos olhava, senti que tudo era

perfeito, que não precisava de mais nada. Uma vez, disseste-me que acreditavas

que a vida era feita de instantes, fotografias que ficavam presas à nossa

memória, como se alguém as colocasse lá com um pionés, e palavras soltas que

guardamos na alma.

Tinhas razão, Gabriel.

A vida é, afinal, um punhado aleatório de cenas desconexas do filme que

começamos a rodar desde o dia em que chegamos ao mundo até que alguém
grita «corta».

Creio que é por essa razão que ainda me lembro daquele momento: nós os três

a brincar na areia, à beira-mar. A Sofía ficou exausta e adormeceu assim que

entrou para o banco de trás do carro, por isso, percorremos o trajeto sem falar, a

ouvir «The wind», de Cat Stevens, com os vidros abertos e a olhar-nos de

soslaio em cada semáforo, como se tivéssemos acabado de nos conhecer e

fôssemos dois adolescentes tontos. Porquê? Não sei. Creio que esses instantes

surgem quando menos se espera, como estrelas cadentes. Passamos a vida a

planear dias especiais, os aniversários, a passagem de ano e tantos outros, que

muitas vezes esquecemos mais depressa do que os dias mais simples, o

quotidiano, aqueles dias tão difíceis de prever que nunca se sai de casa com a

máquina fotográfica pendurada ao pescoço para os poder captar. Vivem somente

na nossa memória e, quando chegamos ao fim do caminho, transformam-se

simplesmente em poeira, em nada.

Uma vez, disse-te que isso me parecia triste…

…e tu respondeste que era bonito.

Agora, compreendo, Gabriel. Agora, lembro-me daquele dia na praia, os

nossos olhares a entrelaçarem-se dentro do carro, o teu rosto sorridente com

aquele bigode que tinhas deixado crescer porque estava na moda, e a maneira

como agarravas despreocupadamente no volante com uma mão, e penso…

penso que é triste que um dia o sabor doce desse instante vá desaparecer, mas

compreendo que tenha de acontecer. Porque era só nosso. Pertencia-nos. E

quando chegámos a casa, embora parecesse só mais um dia, nem foi preciso

dizer nada antes de irmos diretamente para o quarto desenhar outra estrela por

cima da cabeceira da cama, uma estrela que encetou uma nova constelação.
20

— Que tens hoje? Pareces zangada.

Estávamos num café próximo da universidade. Às vezes, ia lá com a Sofía,

levava um livro dos que líamos juntas, ou, se ela se entretivesse com alguma

brincadeira, eu comprava uma revista no quiosque que havia nessa rua. Bebia

um café e pedia um sumo para ela até tu saíres do trabalho e passares a buscar-

nos. A Sofía costumava apoiar as mãos no vidro quando te via a chegar a pé, e tu

imitava-la do lado de fora antes de entrares. Depois, regressávamos a casa os três

juntos.

Naquele dia, tinhas chegado mais cedo e eu tinha o sobrolho franzido

enquanto dava uma vista de olhos à revista que tinha nas mãos. Nada. Não

estava em lado nenhum. Nem na secção «caixa de sugestões», nem em

«perguntas e respostas das leitoras».

— Não percebo. Aqui diz que, se tens alguma observação, ou se quiseres

entrar em contacto com a revista, podes escrever uma carta para este apartado.

— Estou a ver — disseste, enquanto a Sofía se sentava nos teus joelhos.

— Vai fazer dois meses que enviei a minha e ninguém me respondeu.

Alargaste o colarinho para veres melhor aquela secção de que eu falava.

— Querida, duvido que respondam a todas as cartas que chegam.

— Pois, então, contratem alguém para o fazer! — protestei, e tu sorriste até

perceberes que eu estava realmente zangada, e, depois, a expressão desvaneceu-

se dos teus lábios. — Consigo entender que não a publiquem, mas deviam dar-

se ao trabalho de responder. É uma questão de princípio. De respeito. E ainda

mais numa revista que se dirige principalmente a mulheres, com a quantidade

de tempo em que já nos sentimos ignoradas. Não é justo. Ou, pelo menos, que

avisem, em letra pequena, que, sim, podes escrever, mas ninguém te irá

responder.

— Valentina…

— Não, estou a falar a sério.

— A mamã está zangada… — disse a Sofía, baixinho.

— Não estou zangada, meu amor. Apenas indignada.

— Papá, o que é «indignada»?

Mordeste a língua para não dizeres em voz alta que «indignação» era

aborrecimento, ira ou irritação, porque tínhamos o hábito de não nos


contrariarmos diante da nossa filha. Eu sacudi a cabeça sem parar de folhear a

revista. O facto de me sentir ignorada incomodava-me. Tinha escrito aquelas

folhas cheias de sugestões com todo o carinho do mundo, passando a limpo e

teclando na minha máquina de escrever durante uma manhã inteira, enquanto a

Sofía corria de um lado para o outro na sala. Depois, metera-a num sobrescrito,

fechara-o antes de ir comprar um selo, e enfiara-a no marco do correio.

É claro que esperava uma resposta.

Além disso, na minha carta, queixava-me sobre parte do conteúdo da revista.

Na sua essência, as ideias eram boas, mas o resultado final, não tanto. Era uma

das publicações mais lidas por mulheres na época, mas nós evoluíamos depressa,

e aquelas páginas, pelo contrário, começavam a tornar-se um pouco antiquadas.

Já para não dizer que aquelas secções em que nos convidavam a participar não

faziam muito sentido se, ao que parecia, a nossa voz não era ouvida por quem

dirigia a revista.

— Não interessa, temos de ir embora — disse.

— Claro que interessa. Espera. Vou pagar e já me contas melhor, a caminho

de casa, pode ser? — Levantaste-te, deste-me um beijo na testa e foste até ao

balcão, enquanto sacavas da carteira do bolso das calças de ganga, aquele estilo

de calças que havia chegado para ficar e que se tornara o teu preferido.
21

A relação com a minha família continuava tensa, mas voltámos a falar-nos. Não

os via com tanta frequência como antes, e tu evitavas estar com o meu pai. Eu

percebia-te. Percebia que vocês eram duas pessoas tão diferentes que tinhas

medo de voltar a chocar de frente com ele, que ele dissesse alguma coisa que te

fizesse perder as estribeiras. Embora não gostasses particularmente deles, não

querias interferir na nossa relação. Porque, excetuando a mamã, talvez eu já não

gostasse tanto deles, de modo incondicional, como quando somos crianças,

simplesmente por termos nascido naquele ninho e não conhecermos mais nada,

mas continuavam a ser a minha família. De alguma forma estranha, o facto de

os saber bem tranquilizava-me. De saber que os meus irmãos eram felizes

depois de terem casado, que a Sofía podia conhecer os seus primos, que tu

guardavas o que pensavas porque respeitavas a minha decisão, até quando não

concordavas com tudo, ou que, por vezes, eu te visse a roer as unhas quando

estavas nervoso.

Sou-te grata por isso, Gabriel.

Por nunca te impores. Por não me dares ordens nem tentares convencer-me de

coisas que, em determinadas ocasiões, vias de maneira mais clara, de fora. Por

seres generoso nos teus conselhos. Por cederes. Por me amares com os meus

defeitos e por me deixares ver os teus.

Apesar dos progressos com a minha família, passávamos muito mais tempo

com o teu pai. Era inevitável. O Aurelio era o homem mais doce que tive o

prazer de conhecer: nunca se zangava, tu tinhas uma personalidade mais

impulsiva, que herdaste da tua mãe. Lembro-me de cada momento ao seu lado

com uma nostalgia secreta. Ele comprava-me sempre aquelas bolachas de que

eu tanto gostava; anos depois, descobri que tinha de ir a pé até uma padaria do

bairro de Carmen para conseguir aquele saquinho que eu devorava num abrir e

fechar de olhos enquanto ele me observava, satisfeito, e me servia mais café.

Então, quando lhe contavas como correra a semana no trabalho ou lhe falavas do

manual escolar no qual te haviam pedido para participar, o Aurelio deixava sair

o ar para esconder o orgulho que sentia, e, a mim, dava-me vontade de chorar.

E com a Sofía… era louco pela Sofía, desde o primeiro dia.

Ela fazia o que queria com o avô, lembras-te?

Tu rias-te ao ver que ela tentava subir para as costas dele para que ele a levasse
como um cavalinho, como tu costumavas fazer com ela. A Sofía gostava de dar

ordens e era de ideias fixas, e o Aurelio permitia que ela o tratasse como queria.

Naquele dia em meados da primavera, fomos almoçar à casa do teu pai e

reparei que vocês pareciam esconder algum segredo porque, honestamente, o

Aurelio era incapaz de fingir, não sei como te passou pela cabeça que eu não iria

descobrir.

— Há alguma coisa que eu não saiba?

— O quê? Não! Claro que não! Porque dizes isso?

— O Aurelio ficou nervoso — insisti.

— Isso não é verdade! É claro que não!

— Parece que lhe vai dar um ataque.

— Teve uma semana difícil na oficina — desculpaste-o, antes de te sentares

ao lado dele e de lhe passares um braço pelos ombros. O teu pai assentiu,

exageradamente. Olhei-vos. Eram como duas gotas de água, embora ele tivesse

o cabelo salpicado de brancos e os traços mais suaves, e tu tivesses acabado de

fazer trinta e quatro anos e emanasses vitalidade. Mas o vosso nariz era igual. E

os dedos compridos, ásperos, também. Tinham o mesmo vício de roer as unhas

quando estavam nervosos.

— Acho que já sabem que não me conseguem enganar.

— Quem é que está a enganar quem? — perguntou a Sofía.

— Não olhes para mim — respondeste a rir.

Atirei-te uma peça de dominó, da qual te desviaste.

O teu pai também acabou por se rir baixinho, e eu levantei uma sobrancelha,

incrédula, porque não estava a perceber o que estava a acontecer e, ah, não havia

ninguém que detestasse mais surpresas do que eu. E tu sabia-lo, claro que

sabias. No Natal anterior, passaste semanas a falar-me do meu presente e eu

revolvi a casa inteira. A sério. Inteira. Procurei em cima dos armários, debaixo

da cama e até na oficina de estofos do teu pai, quando o fui visitar. Tinha de

saber o que me tinhas comprado porque o facto de não saber estava a matar-me.

Não o cheguei a encontrar. No fim, percebi que andava sempre contigo, na tua

carteira. Eram dois bilhetes para um espetáculo de teatro que eu queria muito

ver e que sabia que tu detestarias, mas que, a mim, me fez chorar de emoção.

Foi a primeira vez que deixámos a Sofía com o teu pai para sairmos sozinhos,

uma coisa que, naquela altura, nem todas as pessoas viam com bons olhos —

pelo menos, foi o que me disse a vizinha da frente, por entre dentes, alguns dias
mais tarde. Sinceramente, eu não ligava muito. Lembro-me daquela noite com

carinho, apesar de a sopa que pediste estar fria e insossa, e de ter começado a

chover torrencialmente.

A questão é que, nesse dia, estavas tão estranho quanto o teu pai, e, quando

chegámos a casa, assim continuaste enquanto demos banho à Sofía e a deitámos,

antes de ficarmos um pouco na sala a ler ou a ver televisão.

Cruzei os braços à tua frente, indignada.

— Quando é que estás a pensar contar-me?

— Contar-te o quê, meu amor? Hoje estás com os azeites.

— Que engraçadinho, Gabriel. Eu conheço-te. Desembucha.

Sorriste como uma criança, com os olhos semicerrados.

— Porque é que queres sempre estragar as surpresas?

— Eu sabia! — Apontei para ti com o dedo. — Eu sabia! Maldito sejas.

Atirei-me para cima de ti e debatemo-nos e brincámos como crianças no sofá

até que caímos na carpete da sala. Fizeste-me cócegas, o meu ponto fraco, e eu

revirei-me e gritei. Tu levaste um dedo aos lábios para me fazeres calar.

— Vais acordar a Sofía.

— E a culpa é tua…

Ainda estavas a sorrir quando os teus lábios cobriram os meus. Envolvi-te o

pescoço com as mãos e, durante aquele momento, desde que começaste a tirar-

me a camisa de dormir até que acabámos a gemer em uníssono, pele com pele,

esqueci-me do mistério. Só até ao momento em que, pouco depois, voltaste a

olhar-me de relance com aquele brilho travesso, ainda deitado de barriga para

cima na carpete. Esticaste-te para um lado para alcançares o maço de tabaco e

acenderes um cigarro. Depois, afastaste-me o cabelo da testa.

— Promete-me que não te zangas.

— Meus Deus, o que foi que fizeste, Gabriel?

— Foi um impulso. Depois, lembrei-me que detestas surpresas.

— Percebes que me estás a matar lentamente? — Olhei-te enquanto acabava

de apertar os botões minúsculos da camisa de dormir azul-marinho.

— A questão é que, há algumas semanas, tu disseste que… disseste uma coisa

que me pareceu interessante. Por isso, fiquei a pensar nisso. Alguns dias depois,

fui almoçar com o Martínez e, não sei como, o tema veio à baila… e, de

repente, ele disse que era uma ideia brilhante e que poderia fazer umas quantas

chamadas para te conseguir uma entrevista e eu…


O coração batia-me tão depressa que eu mal te conseguia ouvir.

— Uma entrevista? Como assim? Sê mais claro.

Endireitaste-te ligeiramente, ainda com o cigarro nos lábios. Deste um bafo

longo, deixaste sair o fumo e demoraste alguns segundos a cravar o olhar em

mim, porque sabias que, subitamente, o ar se havia tornado rarefeito e não

podias alongar mais o momento.

— É para um emprego. Foi tudo pensado e falado ali, no momento. Não sei,

quando ele perguntou, disse-lhe que sim, que era fantástico. Mas, agora que me

estás a olhar dessa maneira, penso que talvez me tenha enganado. Sabes uma

coisa? Não temos de ir, posso cancelar o compromisso.

— Deixa-te de floreados, Gabriel — rosnei.

Deixaste escapar um breve sorriso. Noutra ocasião, confessaste­-me que foi

porque, naquele instante, e sem razão aparente, te lembraste daqueles primeiros

dias que passámos juntos, quando eu corava só por olhares para mim e

gaguejava ao falar contigo. Achaste engraçado veres-me assim e constatares o

quanto eu havia mudado, o quanto ambos mudáramos.

— Disseste que alguém devia responder às cartas da revista.

— Não estou a perceber. Estamos a falar da mesma coisa?

— Falavas a sério? Queres mesmo responder às cartas das leitoras?

— Estás a brincar. Diz-me que estás a brincar.

— Ainda não está nada definido, mas sabes que o Martínez tem muitos

contactos, e conhece o filho do diretor da revista. Ao que parece, em breve, irá

ficar à frente da empresa e quer renová-la um pouco, por isso, quando ele lhe

disse que era amigo de uma leitora indignada pela forma como algumas coisas

na revista funcionavam, achou piada e disse estar disposto a ter uma reunião

contigo e a ouvir essas sugestões que tinhas para eles.

— Não posso acreditar! Minha Nossa Senhora, Gabriel.

— Gostas da ideia? — Olhaste-me fixamente.

— Mas eu não sou ninguém! Como é que vou ter uma reunião com o

diretor?…

— És uma mente criativa e inquieta. — Sorriste. — Ouve, só tens de lá ir,

sentas-te com ele e sê tu mesma. Diz-lhe o que pensas. Às vezes, uma coisa

viciada precisa apenas de uma visão diferente. Se quiseres ir, vamos daqui a

quatro dias.

— Vamos onde? — perguntei, ainda embasbacada.


— A Madrid. Não te disse? A reunião é lá, nos escritórios da revista. Não te

preocupes com nada, já falei com o meu pai e ele fica com a Sofía. Sugeri-lhe

que viesse aqui para casa para ser mais cómodo, se não te importares…

Fechei os olhos para tentar assimilar toda aquela informação. Voltei a sentir

aquele formigueiro na barriga, tal como sentira no primeiro dia do curso que

fizera anos antes, e a sensação do entusiasmo a subir lentamente. Tu aguardavas,

impaciente. Eu não disse nada, mas deslizei uma mão pelo teu peito ainda

despido, percorri a barriga e subi até chegar à linha do teu maxilar, e olhámo-

nos com aquela intensidade dos grandes momentos que ambos saboreávamos

até antes de acontecerem, como se fôssemos capazes de adivinhar que, com o

tempo, os recordaríamos. Uma viagem. Um desafio. Madrid.

— E a Sofía… — hesitei um instante, nervosa.

— O meu pai leva-a para a oficina todos os dias.

— Mas… não sei, Gabriel… isto…

— Quando eu era pequeno, passava as tardes na oficina, ela fica bem. E nós

também, apesar de nos separarmos dela durante alguns dias. Vamos fazer isto,

Valentina.

Sorri devagar, hesitante, mas tu percebeste logo que em breve estaríamos a

rumar para a outra cidade, não só por eu estar desejosa de passar um fim de

semana contigo a sós, sem interferências, mas também por ter de aproveitar

aquela oportunidade.

Tinha lido o significado daquela palavra, precisamente, no dicionário, poucas

semanas antes. «Oportunidade»: momento ou circunstância conveniente para

algo. E aquele era o meu. Sabia-o. A Sofía estava a crescer a olhos vistos e eu

queria avançar e fazer alguma coisa diferente. Visitei o sótão da minha alma e

encontrei uma caixinha coberta de poeira onde guardava todos aqueles sonhos e

desafios que ainda me esperavam.

Chegara o momento de os resgatar.


22

Lembro-me de tudo daquela escapadela, até da viagem de carro: quando não

ouvíamos música, eu lia em voz alta o último livro que escolhêramos juntos. Tu

sorrias sempre que algum diálogo te soava engraçado, sobretudo, quando eu me

entusiasmava demasiado e imitava as vozes que imaginava nas personagens. As

horas passaram a voar, e, quando nos apercebemos, já estávamos a passar pela

Puerta de Alcalá.

Quando chegámos, já tinha anoitecido e pedimos sanduíches no hotel, que

comemos no quarto. As paredes estavam forradas com um papel florido, a

alcatifa já vira melhores tempos e ouvíamos os hóspedes do quarto ao lado a

discutir. Olhámo-nos nervosos.

— Assim não me estás a ajudar, Gabriel — queixei-me, a rir.

— Desculpa. — Comeste a côdea da minha sanduíche, consoante a ia

deixando no prato. — É só que… acho que esta é uma grande oportunidade.

— Mas, se ele não me quiser contratar, não há problema, pois não?

— Que disparate, é claro que não.

— Porque fizemos esta viagem toda…

— E então? Depois da entrevista, aconteça o que acontecer, vamos divertir-

nos. Só tu e eu, Valentina. Como nos velhos tempos. Lembras-te daqueles dias

na praia?

— Quando engravidei da Sofía.

— Pura estatística. Quantas vezes por dia fazíamos amor?

— Não sei, mas parece que foi noutra vida.

Houve alguma coisa que mudou no teu olhar enquanto deslizavas os olhos

pelo meu corpo, ali sentados na cama ainda coberta pela colcha salmão. Sei que

achavas que, ultimamente, não fazíamos amor com tanta frequência. Por vezes,

quando o fim do dia chegava e nos deitávamos, estávamos tão exaustos que

dávamos somente um beijo rápido de boas-noites e adormecíamos. E aquele

desejo louco e intenso do início sossegou, tal como o amor efervescente dera

lugar a um outro, mais maduro e íntimo.

— É melhor irmos dormir. Amanhã será um longo dia.

— Sim, tens razão. — Levantei-me e deitei fora os restos do jantar. Depois,

vestimos o pijama, cada um no seu lado da cama, apagámos a luz dos candeeiros

nas mesas de cabeceira e encontrámo-nos debaixo dos cobertores. Abracei-te.


No dia a dia, nem sempre era fácil parar e desfrutar daquelas pequenas coisas

que inicialmente ofuscam tudo: quão maravilhoso era sentir que estremecias

quando eu te envolvia a cintura, a sensação confortável ao sentir a tua respiração

contra a minha face ou o quanto me acalmava escutar o pulsar ritmado e sereno

do teu coração. — Amo-te, Gabriel — sussurrei muito baixinho.

— Eu também te amo, meu amor.

Levantei-me com dez minutos de atraso e o estômago às voltas. Tu

permanecias sentado na cama com o olhar perdido enquanto eu me vestia e ia

para o banho. Olhei-me ao espelho e tentei arranjar-me um pouco: disfarcei as

olheiras, pus um pouco de rímel nas pestanas e batom vermelho. Naquela

época, tinha o cabelo escuro, pelos ombros, a direito, um corte de que eu

gostava, por isso, só me penteei com os dedos.

Tomámos o pequeno-almoço no hotel, embora eu mal tenha comido, por

causa dos nervos. Pouco depois, enquanto seguíamos pela rua dos escritórios e

tu me apertavas a mão para me dares ânimo, apercebi-me de que aquilo era uma

loucura. Eu estava ali porque um amigo nos fizera um favor, e tinha a impressão

de que o filho do diretor, um tal de Samuel Jiménez, nem sequer se iria lembrar

de que naquele dia tinha uma reunião comigo. Porque, afinal, quem era eu?

Somente uma dona de casa que, anos antes, fez um curso de Estenografia e

Datilografia e que, em termos práticos, lhe serviu para escrever cartas de

opinião com queixas e sugestões e propostas a revistas e a outros meios.

— É melhor darmos meia-volta e irmos para casa.

— Não sejas medricas, Valentina. — Desataste a rir.

— Estou a falar a sério, Gabriel. Isto foi um erro.

— Vá lá, sobe. Eu fico aqui à tua espera. Não tenhas pressa, vou beber um

café naquele bar ali em frente. E fica sossegada, meu amor. Basta que digas o

que pensas.

Assenti, apesar de ter as pernas a tremer. Deste-me um beijo na testa e

atravessaste a rua sem olhar para trás enquanto acendias um cigarro. Suspirei

fundo antes de entrar no edifício e de dar o meu nome na receção. A rapariga

sorriu e disse que estavam à minha espera, coisa que me surpreendeu e aliviou,

em igual medida. O interior do edifício estava decorado com tons claros, que

contrastavam com os móveis escuros de aspeto clássico: havia candeeiros de

cristal e carpetes com desenhos confusos que me chamaram a atenção. Segui as

indicações e subi até ao último andar, onde se situavam os gabinetes. Uma vez
lá, tomei fôlego, bati à porta e esperei, com um nó na garganta.

O homem que abriu a porta devia ter mais ou menos a minha idade. Não era

o que eu esperava. Vestia-se de modo informal e o seu gabinete estava um

desastre, com papéis e pastas por todo o lado. Afastou a cadeira para trás e

convidou-me a sentar antes de se desculpar.

— Peço desculpa pela desorganização. Em breve, vou mudar-me para o

gabinete principal e tenho andado bastante atarefado. Quer tomar alguma

coisa? Peço que lhe tragam um café?

— Não, mas obrigada.

— Fantástico. Posso tratá-la por Valentina?

— Sim, claro, senhor Jiménez — respondi.

— Samuel, apenas. Assim, é mais fácil. — Circundou a secretária e sentou-se

na cadeira preta, do outro lado, antes de me olhar com um ar crítico. — Ora

bem, pelo que o Martínez me contou ao telefone, escreveu uma carta para a

revista e nunca chegou a obter uma resposta.

— Dito assim, em voz alta, não parece nada de mais, mas…

— Vá, desabafe. Não se acanhe — incentivou ele.

«Diz o que pensas», aconselharas-me tu.

— É uma falta de respeito. — Ele levantou uma sobrancelha, talvez

ligeiramente surpreendido, mas lá prossegui sem hesitar. — A revista dirige-se,

maioritariamente, ao público feminino, e, agora que por fim a nossa opinião é

tida em conta, creio que é revoltante que incentivem as leitoras a escreverem

para a revista, mas que ninguém se dê ao trabalho de lhes responder. Além

disso, que tipo de fidelidade esperam conseguir ignorando quem vos põe o pão

na mesa?

— Parece uma metralhadora.

— Isto não tem graça, senhor Jiménez.

— Samuel — corrigiu ele. — E aquilo que acho engraçado é o seu

entusiasmo, que é admirável. Não sei se o Martínez comentou consigo, mas,

agora que ficarei a dirigir a revista, faço tenções de lhe dar uma cara nova. Nos

últimos anos, perdemos assinantes.

— Não me admira — deixei escapar.

Ele limitou-se a sorrir mais abertamente.

— Gostaria de poder contar consigo. Recebemos centenas de cartas, das quais

costumamos selecionar algumas, ao acaso, para publicar. Neste momento, não


temos, simplesmente, pessoal suficiente para as ler e filtrar. No entanto, creio

que, tendo em conta o seu currículo e que é formada em Datilografia, poderia

estar interessada no emprego. A minha proposta, Valentina, é a seguinte: a cada

duas semanas, receberia o material em casa através de um estafeta e encarregar-

se-ia de responder às cartas das leitoras e também de me fazer chegar aquelas

que contenham as sugestões que considerar mais interessantes. Neste momento,

não consigo oferecer-lhe um ordenado elevado até vermos resultados, mas,

no futuro…

— Quero o emprego — interrompi-o sem hesitar.

O Samuel procurou alguma coisa no molho de papéis.

— Como eu estava a dizer, acredito que, com a mudança de rumo que

queremos dar à publicação, as coisas corram melhor, o que será, seguramente,

bom para todos.

— Podia fazer um resumo mensal com as recomendações mais interessantes.

Imagino que esteja ocupado a dirigir a revista, e isso agilizaria as coisas.

— Boa ideia. Bem-vinda a bordo, Valentina.

Quando saí daquele gabinete, vinha a pairar numa nuvem. Desci as escadas só

para poder dar uma vista de olhos ao piso da redação, e, quando abri a porta que

dava para a rua, tu estavas à minha espera com a vista cravada no céu cinzento.

Lancei-me nos teus braços: tão feliz, tão entusiasmada…

— Tenho um emprego, Gabriel! Um emprego incrível!

— Eu sabia. Tinha um bom pressentimento. Eu sabia!

Olhámo-nos, sorridentes, pegaste-me na mão e começámos a caminhar pelas

ruas da cidade, perdendo-nos entre lojas, montras e bares, enquanto eu falava

sem parar de tudo o que acontecera no gabinete e dos planos que tinha. Tu

escutavas e sorrias, como sempre, deixando-me desfrutar daquele momento. Eu

estava eufórica. Disse-te que, como referira o Samuel quando nos despedimos,

se a proposta corresse bem, talvez tivesse de vir a Madrid para me reunir com

ele, de vez em quando. Tranquilizaste-me, assegurando-me que o teu pai

cuidaria da Sofía e que, se alguma vez ele não pudesse, tu pedirias que te

substituíssem no trabalho nesse dia.

Mais tarde, ligámos para casa, quando regressámos ao hotel para mudar de

roupa antes de irmos jantar. O Aurelio garantiu-me que estava tudo controlado,

que a Sofía comera os espinafres que ele preparara (uma coisa surpreendente,

uma vez que ela resistia sempre muito a comer legumes) e que já estava de
pijama, prestes a ir para a cama.

Nessa noite, decidi usar um vestido que me ficava muitíssimo bem, e tu

concordaste ao veres-me a sair da casa de banho. Era largo e curto, informal.

Como as tuas calças de ganga e a camisa que escolheste antes de sairmos do

quarto de hotel para irmos a pé até ao restaurante. Eu protestei, pois era um

pouco caro, mas recordaste-me de que, a partir daquele momento, contaríamos

com dois ordenados, e, além disso, tínhamos de festejar aquele dia e permitir-

nos um luxo. E fazia sentido. Sempre seguira o ditado «Se tens três pesetas,

gasta uma e guarda duas», e, embora tivesses mais a tendência para fazer o

contrário, não eras esbanjador e encorajavas-me a viver o presente e a abraçar os

prazeres do dia a dia. Portanto, naquela noite, desfrutámos do jantar: a carne

estava no ponto, tenra, e a sobremesa, um pudim de queijo, estava tão deliciosa

que até lambi a colher depois de engolir o último pedaço.

— Sabes que não há nada mais maravilhoso do que ver-te comer?

— Acho que nunca me tinhas dito isso.

— Mas é o que penso sempre. Penso na maneira como fechas os olhos e sorris

quando dás uma trinca em alguma coisa de que gostas muito. É excitante.

— Excitante?

— Provocador…

Estavas a olhar para mim daquela maneira que me fazia suster a respiração,

aquela maneira que, quando te conheci, anos antes, me aquecia as faces e me

fazia baixar o olhar. Mas, agora, já não. Por isso, não afastei os olhos dos teus,

enquanto te inclinavas sobre a mesa sem tirares os olhos de mim, faminto, como

se tivesses reparado na minha presença após alguns meses sem me veres. A

rotina é um véu silencioso.

— Estou mortinho por chegar ao hotel… — sussurraste.

— Desejam mais alguma coisa? — interrompeu-nos o empregado.

— Não, obrigado. Só a conta — disseste sem olhar para ele, e eu estremeci

com a expectativa, porque havia algo ardente e perigoso nos teus olhos escuros.

E eu queria-o.

Demos a mão ao sair do restaurante e caminhámos depressa, rua abaixo. E,

então, percebi que não estávamos a ir pelo mesmo caminho por onde

chegáramos.

— É para o outro lado, Gabriel.

— Não penses que a ideia não me tenta, mas tenho um plano melhor. Vamos
divertir-nos. Talvez possamos beber um pouco, como se tivéssemos vinte anos.

Ri-me e decidi deixar-me levar, porque, contigo, isso era fácil. Acabámos no

bairro de Malasaña a beber cerveja num bar chamado La Vía Láctea, onde se

ouvia uma música vibrante que falava de amores radioativos. Enquanto

dançávamos, o teu corpo estava cada vez mais perto do meu, até que me deixei

cair no teu colo, numa poltrona grená. Deste um gole na bebida que tinhas

acabado de pedir, sem tirares os olhos de mim, embevecido, e, a seguir,

deslizaste a mão pela minha perna, lentamente, até a pousares na coxa.

— Devias usar este vestido todos os dias.

— É ótimo para ir à padaria e ter toda a gente a olhar para mim.

— Eu gosto. — Acariciaste a borda do vestido com os dedos e subiste mais

um pouco. Sustive a respiração. — Sabes que, quando te vi pela primeira vez,

pensei que não podias ser mais perfeita? Pois bem, enganei-me. Como é aquela

expressão sobre o bom vinho e o passar dos anos?…

Soltei uma gargalhada. Por nenhum motivo em particular, apenas pelo

momento, pelas pessoas que estavam à nossa volta com roupas que, pouco

tempo antes, nem conseguíamos imaginar (cristas no cabelo às cores, minissaias,

meias esburacadas, blusões de cabedal e alfinetes de ama como acessório), e

porque parecias mais novo do que nunca, a fitar-me com os olhos brilhantes,

repletos de desejo. Quando dei um gole na tua bebida, tossi. Era um licor forte.

— Escolhe tu a próxima — disseste-me.

Acho que acabei por pedir qualquer coisa com sabor a lima, e que era muito

doce. Aquilo de que me lembro é que a bebemos de pé, a mover-nos ao ritmo

da música sem parar de rir. As tuas mãos estavam em todo o lado, como se não

fosses capaz de não me tocar. Começou a tocar «La chica de ayer», e cantaste-a

ao meu ouvido enquanto eu te beijava o pescoço e recordava a suavidade da tua

pele e o quanto gostava da água-de-colónia que usavas. Depois, dançámos

«Enamorado de la moda juvenil» com vários desconhecidos, e, naquele instante,

enquanto saltávamos sem pensar em nada, voltámos atrás no tempo, voltámos a

olhar-nos como se aquele fosse o nosso primeiro encontro e quiséssemos mais.

É incrível constatar o quanto nos esquecemos dos rostos que vemos

diariamente, como se, em algum momento impreciso, deixássemos de prestar

atenção. Porém, ali estavas tu. Sempre tu. Aqueles olhos insondáveis, as

sobrancelhas arqueadas, um nariz com personalidade, o cabelo revolto…

Para ser sincera, não me lembro bem de como chegámos ao hotel. A pé, sim,
mas esqueci-me de quanto tempo demorámos e que ruas percorremos. Só me

recordo do eco das nossas gargalhadas porque tu só dizias disparates sem

sentido. E que, a meio do trajeto, me encostaste a um carro para me beijares

como se fôssemos adolescentes que tinham de se despedir antes de regressar a

casa dos pais, depois de uma noite de farra.

E, então, começou a chover, uma chuva forte e intensa.

Isso deu-nos mais uma razão para rir enquanto corríamos, ignorando as

cornijas dos edifícios que nos poderiam proteger. Pensei que não

conseguiríamos chegar ao hotel, mas conseguimos. Subimos até ao terceiro

andar e fechaste a porta enquanto entrávamos no quarto. Ficámos parados a

olhar-nos fixamente, encharcados.

Respiraste fundo, lambendo os lábios molhados e, depois, fundimo­-nos num

beijo. Um beijo diferente, que sabia a ti e a mim, a quem éramos naquele

instante que partilhávamos. Apenas nós. Só a nossa respiração ofegante

preenchia o quarto, e as tuas mãos tiravam-me o vestido apressadamente e

percorriam a minha pele como se traçassem um caminho infinito.

Fizemos amor como se não o fizéssemos há mais de uma década. Descobrimo-

nos de novo, como na primeira vez. Encontrámo-nos. Amámo-nos.


23

Um mês depois, precisamente quando a minha primeira remessa de cartas

chegou, descobri que estava grávida. E, olhando para trás, reconheço que foi um

momento estranho. Inoportuno, quem sabe? Talvez fosse essa a palavra mais

adequada. Ambos queríamos ter mais filhos, mas, mais uma vez, aconteceu sem

esperarmos, num momento em que a minha vida profissional estava prestes a

descolar. Já havia sacrificado essa parte da minha vida uma vez, porque não

pude aceitar o emprego que me ofereceram quando estava grávida de oito

meses, e, naquele preciso momento, estava tão concentrada no projeto que tinha

em mãos que a notícia foi como o zumbido de uma abelha.

Queria outro bebé, queria mesmo…

Mas, também queria trabalhar…

— Estou a ser egoísta. Devia estar a dar pulos de alegria. E estou. Estou

entusiasmada, a sério que estou, mas não quero renunciar a tudo o resto…

— Ouve, desta vez vai ser diferente, está bem? Trabalhas a partir de casa e

podes continuar a fazê-lo. Eu posso trocar o meu horário à tarde para ir buscar a

Sofía à escola. Nós arranjamo-nos.

Assenti com um nó na garganta.

Um nó que desapareceu ao longo das semanas e meses que se seguiram,

conforme o Pablo crescia dentro de mim. De facto, foi uma gravidez tranquila e

senti-me muito melhor do que na da Sofía. Em algum momento impreciso,

criei uma ligação com ele. E foi uma ligação maravilhosa, única e repleta de

amor. Talvez pelo facto de, pela primeira vez em muitos anos, passar as manhãs

sozinha acompanhada apenas pela máquina de escrever e pelos pontapés que o

Pablo me dava sem cessar. Partilhávamos aquela rotina: o descafeinado com

leite, os momentos em que ficava pensativa a contemplar a rua através da janela,

as cartas que íamos buscar e levar aos correios e a satisfação que eu sentia por

estar a fazer uma coisa útil, que me preenchia, trocando correspondência com

mulheres de todas as regiões de Espanha. E também com homens, embora

fossem muito menos. Sempre acreditei que nós, mulheres, somos muito mais

comunicativas, que gostamos de partilhar, de dar, de nos abrir e de nos envolver

em tudo de uma maneira mais emocional.

Reuni-me com o Samuel duas vezes, e em ambas fomos almoçar a um

restaurante cuja especialidade era peixe. Ele queria discutir comigo algumas das
propostas que eu havia selecionado da «caixa de sugestões». Aquilo que o

Samuel tinha de positivo era que, ao contrário do seu pai, estava disposto a

ouvir. Não olhava para as pessoas com um ar altivo e não se ria se alguém

dissesse uma patetice, tendo em conta a sua experiência. Pelo contrário, levava

tudo muito a sério, até o comentário mais insignificante. Eu gostava do facto de

que ele se preocupava com a revista e com os conteúdos que publicavam. Estava

convencida de que o problema não eram os temas, mas sim o facto de o público-

alvo se ter começado a interessar por outros assuntos. Algum tempo depois,

quando me propôs que escrevesse alguns textos à experiência, para perceber se

poderia participar em alguma das secções da revista, recusei.

— Nem consigo dar conta das cartas todas das leitoras. São demasiadas. Não

posso dedicar-me a mais nada, Samuel. E muito menos, agora.

— Podemos contratar alguém para te ajudar.

— Tens a certeza? — perguntei, um pouco receosa.

— Claro. A notícia de que temos em conta a opinião das leitoras, entre outras

coisas, já se espalhou, e, neste último trimestre, as vendas correram melhor. Não

me quero precipitar, mas creio que estamos no bom caminho. Tudo se resume a

dar aos clientes o que eles querem, não é assim? E, olha para ti, quem sabe disso

melhor do que tu, Valentina? És exatamente o tipo de mulher que nos lê. Que

idade tens?

— Trinta e um.

— Precisamente.

Suspirei e pensei no que ele estava a propor.

— Tenho uma grande amiga que estudou comigo e que adorou a ideia de

responder a cartas. Chama-se Clara, é inteligente e aprende muito depressa.

— Perfeito. Estamos conversados.

E foi assim que a Clara passou a fazer parte daquele projeto. Trabalhávamos

juntas muitas vezes. Ela ia lá a casa, preparávamos alguma coisa para o almoço e

respondíamos a cartas — a algumas, respondíamos em conjunto, quando

tratavam de temas complicados; noutras ocasiões, cada uma concentrava-se na

sua tarefa e mal trocávamos uma palavra até terminarmos.

Eu estava feliz. E ainda mais quando o Pablo chegou.

O Pablo, com as suas mãos rechonchudas e os olhos tão escuros quanto os

teus. Com aquela cabeça cheia de cabelo e o riso que se lhe escapava sempre que

a irmã fazia caretas. A quem começaste a chamar «camarada» antes que ele
soubesse sequer o significado da palavra, e a quem mudaste mais fraldas do que

eu, que estava cheia de trabalho, apesar da ajuda da Clara, mas que, ainda assim,

não queria parar porque precisava de provar a mim própria que conseguiria

fazê-lo. O Pablo foi uma pequena estrela imprevista que chegou num momento

em que talvez não o esperássemos, mas que encheu a casa desde o primeiro dia

em que o levámos do hospital e o deitámos no berço, com os seus bracinhos a

agitar-se como uma lagosta (foi o que disseste, fazendo-me rir). E, depois,

apenas um minuto depois, terminámos juntos mais uma constelação, essa cheia

de pontos magníficos, porque a década de 1980 foi assim, maravilhosa, com

salpicos na parede que encerravam a recordação do meu primeiro emprego,

daquela viagem a Madrid, de dias lânguidos na praia, no verão, de momentos

do dia a dia que nos haviam abraçado e do nosso Pablo.

Alguns anos depois, já no final dessa década, comprámos uma pequena casa

no campo. Não era nada de mais. Tinha um pedaço de terreno, no qual

começaste a trabalhar, plantando árvores de fruto, flores nos canteiros e alguns

tomateiros que a Sofía costumava observar contigo, espantada, testemunhando a

forma como cresciam e amadureciam: no dia em que fizeram a colheita (seis

tomates), estavam ambos eufóricos. Fizeram uma salada, e, quando a comemos

ao almoço, não paravam de dizer que o sabor daqueles tomates era inigualável.

Eu não reparei em nada de diferente, relativamente aos do mercado, mas assenti

com a cabeça.

Adorava ver-vos juntos, Gabriel.

Em 1989, o Pablo tinha oito anos. Menos quatro do que a irmã, e andava

atrás de ti para todo o lado. Era a tua sombra. Olhava-te com admiração e

tentava imitar tudo o que dizias e fazias. Algum tempo depois, isso mudaria e

teriam os vossos altos e baixos. Acho que é mesmo assim, a vida, nem sempre é

idílica, nem sempre é como desejaríamos. Porém, aqueles verões foram vossos.

Ensinaste-o a andar de bicicleta, ficaste aflito com a sua primeira queda e

ajudaste-o a trepar às árvores sempre que se escapavam para o monte, embora

soubesses que eu não achava piada nenhuma a isso porque tinha medo de que

ele se magoasse. Aprendeu contigo o mais importante: a ser um homem de

palavra, a reconhecer os seus erros e a saber pedir desculpa, apesar de ser

teimoso e orgulhoso desde pequeno. Nisso, não saía a ti, que não te acanhavas

em dizer «desculpa» quando era preciso, tal como a Sofía.

Com ela foi diferente, Gabriel. Nem melhor, nem pior, simplesmente
diferente. Há coisas que não podemos forçar, coisas que acontecem e pronto. E

foi assim desde o princípio, quando a seguraste nos braços no quarto do hospital

e a olhaste com os olhos repletos de lágrimas. Conseguiam entender-se sem

falar, tinham uma linguagem só vossa, e eu reconheço que às vezes isso me

magoava, às vezes sentia inveja, até que aceitei que o facto de não partilharmos

as mesmas coisas com os nossos filhos não era uma coisa má, porque cada

relação é um mundo que se vai tecendo ao longo dos anos com tantos fios que é

um erro acreditar que são todos iguais.

Mas que especiais foram aqueles anos.

Ver como cresciam, como sujavam as mãos na lama e brincavam juntos, antes

de comprarmos o primeiro videojogo ao Pablo e de ele passar a preferir matar os

monstros da televisão que via, desde pequeno, na sua imaginação, no jardim.

Rir-nos quando tu os molhavas com a mangueira sempre que passavam perto de

ti enquanto regavas as plantas. Fazer conservas para o inverno. Beber Coca-Cola

no terraço nas noites de verão, em que os grilos cantavam e a Lua nos

acompanhava. Aqueles gelados de menta que não há meio de voltar a encontrar.

Discutir quando não estávamos de acordo sobre alguma coisa e reconciliarmo-

nos depois, debaixo dos lençóis, tentando não fazer barulho. Caminhar junto

deles, percorrer aquele caminho todos juntos…

…Separar-nos noutros. Aprender a libertar-nos.

Cada vez me dediquei mais ao trabalho, porque gostava muito do que fazia:

pela primeira vez, sentia-me completa de uma forma que não conseguia

explicar. Tu abrandaste. Trocaste as aulas na universidade por uma escola

pública perto de casa e adoravas os teus alunos, mas, quando a jornada

terminava, fechavas essa porta. Desfrutavas dos nossos filhos e começaste a

interessar-te por fotografia e por aviões, que te fascinavam. Lias muito. Lias

tanto que, a certa altura, deixámos de o fazer juntos. Cortámos esse laço que nos

uniu desde o princípio e que sabíamos que tinha importância, embora não o

tivéssemos percebido na altura. O problema dessas coisas é que nunca

acontecem num instante concreto, mas sim de uma forma paulatina e silenciosa:

passa despercebida.

Durante aqueles anos, passámos por um golpe de Estado, trocámos os discos

de vinil pelas cassetes de música, testemunhámos o desastre nuclear de

Chernobil e a queda do Muro de Berlim. Quando a década estava a chegar ao

fim, sopraste quarenta velas num domingo, acompanhado pelos nossos amigos e
pela família: o teu pai, o Martínez com a mulher e os filhos, a Clara com o

marido e o bebé acabado de nascer, e alguns amigos da escola onde trabalhavas,

incluindo a Elena, aquela professora que parecia sempre muito interessada em

ti. Eu não lhe queria dar importância, mas, um dia, ao cair da noite, comentei o

facto contigo, quando nos estávamos a deitar, e tu pegaste num livro da mesa de

cabeceira.

— Aquela rapariga… — sussurrei — acho que gosta de ti, Gabriel.

— A Elena? — Vi que hesitaste antes de suspirares e de voltares a pousar o

livro sem o teres aberto. Olhaste-me. A luz do candeeiro da mesa de cabeceira

iluminava o teu rosto, revelando as primeiras rugas à volta dos teus olhos e os

brancos que haviam surgido e que nunca quiseste esconder. — Talvez. Mas foi

há muito tempo.

— Estás a brincar? O que foi que não me contaste?

— Quando ela veio lá para a escola, perguntou à Maria se eu era casado ou se

tinha namorada, e depois ela contou-me. Não tem importância. Foi engraçado.

— Eu sabia! Eu sabia! — Endireitei-me na cama.

— Não gostas da ideia de ter um marido irresistível?

— Muito engraçado — resmunguei enquanto me abraçavas.

— Vá lá, não te chateeis, amor. É uma parvoíce.

— Ela é muito bonita — admiti com um suspiro.

— Estás com ciúmes? Por favor.

— Não gosto da maneira como ela olha para ti.

— Valentina, depois de tantos anos, vens-me com isto? — Começaste a rir-te,

e eu libertei-me dos teus braços porque não percebia o que tinha tanta graça e

aquilo apanhou-me de surpresa. — Vem cá. — Deixaste-te cair por cima de

mim e seguraste-me as mãos por cima da cabeça enquanto continuavas a sorrir

como o perfeito idiota que eras. — Sabes que te estás a comportar como uma

miúda de quinze anos, não sabes?

— Não é justo. Devias ter-me contado.

— Acabei de o fazer. Nem sequer me lembrava disso.

Respirei fundo e, a seguir, fechei os olhos quando os teus lábios roçaram o

meu pescoço. Sussurraste o meu nome. Sussurraste que, se alguma vez voltasse a

duvidar, que olhasse para as constelações que tinhas desenhado na nossa parede,

todas as estrelas que nos tinham marcado, unido e fortalecido: as que tínhamos

terminado e as que ainda estavam abertas e presentes. Nós os dois. Sempre nós
os dois.
Aquela complicada década de 1990

24

— Porque é que tenho de ser sempre eu a impor as regras? Não olhes para mim

assim, Gabriel. Ela só tem catorze anos, e estamos no inverno, anoitece cedo,

não pode sair até às tantas.

— Dez da noite não é «até às tantas».

— Pois não, mas é mais tarde do que é suposto.

— A sessão de cinema acaba a essa hora.

— Então, devias ter-lhe dito que não podia ir ao cinema.

Suspiraste e reviraste os olhos, e isso ainda me irritou mais. Não era a

primeira vez que tínhamos aquela discussão. Com a Sofía, cedias facilmente,

dizias que «confiavas plenamente nela», e não é que eu não confiasse, mas ela

ainda era uma criança. Eu não confiava era nos outros: em desconhecidos que

lhe pudessem fazer alguma coisa, ou nas más companhias que ela pudesse

arranjar. Eu tinha medo, Gabriel. Comecei a ter medo à medida que ela crescia

e deixou de precisar tanto de nós. Chorei baba e ranho no dia em que teve a

menstruação pela primeira vez, e também quando nos anunciou que iria à

viagem de fim de curso da escola. Agora que já passou mais tempo, admito que

talvez me tenha enganado, mas, naquele momento, não soube fazer as coisas de

outra maneira, porque era um sentimento visceral que me oprimia e não me

deixava respirar nem ver para lá do que me preocupava.

— Está bem, eu vou buscá-la à porta do cinema, pode ser assim?

— Sim, mas também seria bom que, na próxima vez, fosses tu a dizer-lhe que

não. Sou sempre eu, Gabriel, tenho de estar sempre a impor limites e a ser a má

da fita.

— Estás a exagerar. Estás… a fazer isso outra vez.

— A fazer o quê?

— Não interessa. Deixa estar.

— Ah, assim é muito fácil.

— Não quero discutir.

Passaste por mim sem me tocares, pegaste no maço de tabaco e saíste de casa.

Eu fiquei na cozinha, a pensar… a pensar… naquele disparate. No facto de não


me teres tocado. Podia ser uma tontice, mas apercebi-me de que há muito

tempo que não o fazias. Não o fazíamos, no plural. E não só em momentos

como aquele, quando nos zangávamos, mas no dia a dia. Porque, anos antes,

aproveitavas qualquer desculpa para me tocar, fosse ela qual fosse. Podíamos até

estar de mau humor, mas tu arranjavas maneira de que os nossos corpos

esbarrassem um no outro, ou que surgisse uma série de olhares. E, na sua

essência, esses gestos não eram meramente uma ligação que mantínhamos

durante a adversidade, eram também uma forma de me dizeres: «Neste

momento, estou zangado, mas continuo a precisar de te ter perto de mim.»

Uma prova irrefutável de que, depois da tempestade, vem sempre a bonança.

Não sei em que momento deixámos de procurar essa certeza.

Não estávamos a atravessar uma fase boa, nem juntos nem individualmente.

Eu tinha sempre muito trabalho para fazer, e, de certo modo, nunca acabava:

não tinha um horário, como tu, que saías às cinco da tarde todos os dias, e, além

disso, eras daqueles que aproveitavam as horas livres do apoio escolar para

corrigir testes e não os trazeres para casa. Eu, pelo contrário, parava quando

decidia que devia parar, e, ultimamente, não sabia bem onde estabelecer o

limite, porque queria fazer mais, e cada hora extra, cada hora que deixava de

fazer outras coisas, acumulava-se ao resto. Por vezes, as crianças brincavam

mesmo ao meu lado e eu mal lhes prestava atenção porque estava embrenhada

nalguma tarefa. Noutras alturas, quando íamos ao campo ao fim de semana, eu

ficava a trabalhar no terraço para adiantar um pouco mais e ouvia-os a brincar

com a água da mangueira ou a fazer alguma travessura.

Sempre que pensava que nos estávamos a afastar, dizia a mim própria que

«éramos nós os dois», todas as letras. «Nós os dois». Ia ficar tudo bem.

Estávamos bem.
25

— Quem é que entende os homens? — A Clara acendeu um cigarro e negou

com a cabeça antes de soltar o fumo. — Às vezes, tenho a sensação de que vivo

sozinha, sabes? Quando nos conhecemos, não era assim. Ele não chegava a casa a

cheirar a cerveja. O futebol. O problema é o futebol, Valentina. Devia ser

proibido.

O seu riso soou-me triste, apagado. Estávamos a lanchar numa pastelaria

conhecida, decorada em estilo barroco. A Clara estava com olheiras e envergava

uma espécie de túnica larga castanha, embora normalmente usasse saias curtas e

vistosas.

— Suponho que sim… — respondi, distraída, enquanto tirava o invólucro a

um pequeno chocolate que me serviram juntamente com o café.

— Bem, estava a esquecer-me de que tu tens o Gabriel.

— Que queres dizer com isso?

— Tu sabes o que quero dizer. Que ele é perfeito.

Em qualquer outro momento, aquilo ter-me-ia feito sentir orgulhosa, mas,

naquele instante, irritou-me. Talvez pelo facto de vivermos na mesma casa, mas

aquele calor do lar que antes se colava às paredes, parecia estar agora a arrefecer

lentamente. Talvez por eu saber que tinhas defeitos, como toda a gente, que eras

humano, que te enganavas. Talvez pela mágoa que sentia pelo facto de alguma

coisa entre nós ter mudado, embora eu nem soubesse expressá-lo de outra

maneira que não a irritação. Talvez por terem passado meses desde a última vez

que fizéramos amor e eu não percebesse porquê. Agora, sei que tu também não.

Por vezes, estamos tão concentrados no dia a dia, a seguir em frente, que não

somos capazes de respirar, abrandar nem perceber o que está a acontecer. Se

calhar, estávamos só a atravessar uma fase má. Ou tínhamo-nos desviado do

caminho e não nos lembrávamos de como se esticava um braço para puxar o

outro. Duas pessoas perdidas numa floresta têm uma maior probabilidade de

sobreviver se se mantiverem juntas; pois então, porque é que nos estávamos a

afastar cada vez mais? E porque é que nada fazíamos para nos tentarmos

aproximar, um passo de cada vez, se ambos estávamos cientes da situação? Ah, o

orgulho. E a rotina. As responsabilidades. E aqueles pequenos defeitos do outro

que nos tiravam do sério: era assim tão difícil lavar o lavatório depois de fazeres

a barba? Porque é que nunca me apoiavas quando eu castigava os nossos filhos e


não eras capaz de lhes impor limites? Porque é que tinhas de dar um maldito

puxão aos lençóis quando te viravas na cama e eu acabava por morrer de frio

todas as noites? E essa tua mania de comentar o Twin Peaks enquanto estávamos

a assistir à série, em vez de me deixares ouvir o que diziam?…

— O Gabriel não é perfeito. Estás enganada.

Ela franziu o sobrolho e olhou-me com atenção.

— Passa-se alguma coisa? Há uns meses que andas esquisita, esquiva, e,

quanto ao Gabriel, acho que percebeste mal. Terá as suas coisas, como todos

nós, mas não te deixa abandonada todos os dias para ir sabe-se lá onde. Ou com

quem.

Ela tinha razão. Claro que tinha. De repente, todas as minhas queixas me

pareceram vazias e superficiais, em comparação. Aclarei a garganta.

— Clara, desculpa, não queria…

— Quero o divórcio — interrompeu-me ela.

— Lamento muito. Não fazia ideia de que estavam tão mal… — Senti um

aperto no peito. — Diz-me de que precisas. Não te preocupes com o trabalho,

eu consigo organizar-me sozinha e, se vir que é demasiado, falo com o Samuel.

— Ainda não lhe disse, mas já arranjei um advogado.

— Admiro a tua coragem. Fazes muito bem, se não és feliz.

— Espero que sim. Não vou negar que tenho medo. A minha mãe perdeu a

cabeça quando lhe contei, há uns dias, mas não quero passar o resto da minha

vida com ele…

Estendi uma mão sobre a mesa para a pousar em cima da dela, que tremia.

Agora, pode parecer coisa pouca, mas, no início da década de 1990, o divórcio

não era assim tão comum como começou a ser algum tempo depois, apesar de

ser legal desde 1981. Anos antes, Adolfo Suárez enfrentara a Igreja Católica

para promover a Lei do Divórcio, e não foi simples por causa da recusa dos mais

conservadores. O Ministro da Justiça que promoveu a lei disse: «Não podemos

impedir que os casamentos se desfaçam, mas podemos impedir o sofrimento dos

casamentos desfeitos.»

Desde então, eu tentara abordar o assunto com a minha mãe umas quantas

vezes, mas ela não me queria ouvir. Embora fosse uma decisão dela, eu não

conseguia deixar de sentir pena. Era uma boa mulher e teve uma vida

desgraçada e triste. Tentei ajudá-la em várias ocasiões, disse-lhe que, se ela

decidisse dar o passo e deixasse o meu pai, poderia ficar em nossa casa durante o
tempo que quisesse para se recompor; contudo, há corações tão magoados que já

não sabem como bater a um ritmo diferente daquele que um dia lhes foi

imposto.

Quando os meus pais ficaram mais velhos, regressaram à aldeia onde eu nasci

e, portanto, perdi ainda mais o contacto com eles. Ia visitá-los de longe a longe,

sobretudo para que ela pudesse estar com os netos. E falávamos por telefone ao

domingo, mas não tínhamos muito para dizer, além de perguntar como

estávamos, se estava tudo bem, as notas das crianças na escola e alguma

bisbilhotice do campo que a minha mãe me contava em voz baixa, como se

alguém a pudesse ouvir através das paredes.

Não houve nenhuma mudança. Não houve nenhum milagre.

— Vai correr tudo bem, vais ver — assegurei-lhe.

Falámos mais um pouco antes de nos despedirmos à porta da pastelaria, até à

segunda-feira seguinte. Era sexta-feira, o dia em que o Aurelio ia sempre buscar

a Sofía e o Pablo para passar a tarde com eles e levá-los a comer churros com

chocolate em Santa Catalina. Caminhei em passo rápido, pensativa. E, quando

passei pelo Mercado Central, fui subitamente assaltada pela memória daquele

dia tão longínquo em que me acompanhaste até à porta e me convidaste para

sair. Depois, afastei a memória.

O teu pai sorriu ao ver-me a entrar pela porta. Tinha um sorriso

maravilhosamente afetuoso, daqueles que ficam debaixo da pele. Dei-lhe um

abraço antes de dar um beijo à Sofía e de lhe afastar o cabelo da cara, enquanto o

Pablo me contava que tinha marcado três golos, durante o recreio, tendo obtido

a melhor classificação.

— Muito bem! Vem cá, deixa-me limpar-te o chocolate.

— É um porquinho — brincou a Sofía.

— Ela chamou-me porco! — gritou o Pablo, indignado.

— «Porquinho» — esclareci —, e de certeza que o disse com carinho.

— Ao menos não tenho a cara cheia de borbulhas, como ela.

A Sofía abriu a boca, indignada, e eu tentei apaziguar a situação, mas sem

êxito. Estavam sempre a discutir. Essa era mais uma coisa que me deixava

doida, naquela altura. Tinha a impressão de que nunca estava «tudo bem»:

quando não éramos nós, eram eles, juntos ou separadamente, era frequente que

a Sofía se insurgisse, ou era o Pablo que fazia uma das suas birras. A diferença

de quatro anos entre eles parecia notar-se mais do que nunca, como se vivessem
em planetas diferentes e não fossem capazes de comunicar.

— Comprei-te bolachas de canela, minha querida Valentina. — O Aurelio

pôs o chapéu e piscou-me o olho. — Se fores lá a casa e as encontrares, dou-tas.

Aquela era a brincadeira, desde sempre. Perguntei-me onde teria ele

guardado, nessa ocasião, a caixinha de latão com as bolachas: costumava

escondê-la na sala. Era uma tradição que, para os outros, não fazia sentido, mas

que se criou no primeiro momento em que pus um pé naquela casa, mais de

vinte anos antes, quando ele me recebeu como se fosse sua filha. E eu adorava.

Adorava, mas, apesar disso, naquele dia, respondi:

— Talvez para a próxima. Já está a ficar tarde.

— Sempre com pressa, Valentina. — Abanou a cabeça.

Estava cheio de razão. Eu queria fazer tanta coisa que, por vezes, não chegava

para tudo. Queria trabalhar mais, queria ser uma mãe perfeita, queria passar

mais tempo com as minhas amigas para tomar café ou ir passear à tarde, queria

começar um projeto meu e pessoal, embora nem soubesse sobre o quê. E

queria… queria saber o que estava a falhar entre nós, para que tudo voltasse a

ser como dantes.

Quando cheguei a casa, olhei-te. Estavas sentado no sofá a ler um romance

com um ar ausente. Quis aproximar-me de ti, Gabriel. Desejei deslizar, como

outrora, para o teu colo para ler algumas linhas contigo, como fazíamos antes.

Mas não fui capaz. Era como se houvesse uma parede entre nós que antes não

existia, e que me impedia de chegar a ti. A culpa não era tua. E talvez também

não fosse minha. Creio que foi aquela fase, o pouco tempo que restava para nós

no meio da rotina, pequenos rancores e irritações por coisas tão disparatadas que

já nem me lembro. O peso dos meses ancorados àquele tédio enevoado que

foram ficando para trás no calendário imparável da vida.


26

Não conseguia adormecer. A Sofía celebrava o seu décimo sexto aniversário e

tínhamo-la deixado ficar a dormir em casa de uma das suas melhores amigas.

Era uma noite fresca, apesar de estarmos no final da primavera, e, subitamente,

fui sacudida por uma memória distante. Virei-me na cama, fiquei de barriga

para cima e suspirei fundo.

Ouvi a tua voz rouca.

— Não consegues dormir?

— Não. Tu também não?

Negaste com a cabeça enquanto te punhas numa posição igual à minha.

Ficámos ali, os dois com o olhar cravado no teto. Ouvia a tua respiração, sempre

tão pausada, tão serena. A memória que momentos antes abrira caminho na

escuridão da noite era maravilhosa e fazia parte de uma constelação que

tínhamos completado havia muito tempo. Por isso, fiquei admirada que

começasse a fazer-se sentir de forma pungente, quase dolorosa.

— Em que estás a pensar? — perguntaste.

— Ficarias surpreendido. É um disparate.

— Queres contar-me?

Lambi os lábios ressequidos.

— Estava a pensar em ti, em mim e naquela noite que passámos em Madrid.

Parece que já foi há uma eternidade, quando jantámos naquele sítio e depois

voltámos para o hotel a rir. Parece… — A voz falhou-me. — Parece que foi

noutra vida.

O silêncio acompanhou-nos durante alguns instantes.

— Foi uma grande noite — sussurraste.

— Isso magoa-me. — Abafei um soluço.

— Valentina, amor…

Encontrámo-nos no meio da obscuridade. Senti as tuas mãos nas faces, o toque

dos teus dedos enquanto me limpavas as lágrimas e respiravas contra a minha

pele, perto de mim, mais perto do que havíamos estado em muito tempo,

embora fosse apenas uma coisa física. Isso consolou-me. Um penso frágil sobre

uma ferida em carne viva.

— Não sei o que nos está a acontecer…

— Eu também não — disseste, e as palavras foram um golpe inesperado,


porque parecias ter sempre a solução para tudo nalgum bolso, e levavas-nos para

a superfície quando nos afundávamos no oceano profundo sem nos

apercebermos. Eu era mais egoísta, mais voltada para mim. Tu eras uma janela

aberta, disposta a receber luz, mas, nesse dia, compreendi que há muito que

havias fechado o trinco, e eu nem me apercebera até ao momento. E era tarde.

Estava obstruído.

— Quero voltar àquela noite e que voltemos a ser aquelas pessoas. Não

percebo. Não sei o que nos aconteceu durante estes últimos anos, mas começo a

achar…

Era suposto dizeres alguma coisa, Gabriel. Era naquele momento que

apareciam as palavras mágicas. Um «está tudo bem», ou qualquer coisa como

«vamos ultrapassar isto juntos», «isto é só uma fase, Valentina». Mas não houve

nada. Só as tuas mãos no meu corpo, a despirem-me. E, a seguir, os teus lábios a

cobrir a minha boca com desespero e raiva. Como se não encontrasses o que

procuravas, embora te fundisses em mim com força, uma e outra vez. Estávamos

a tocar-nos, sim. E satisfizemo-nos. Mas fizemo-lo de uma maneira diferente,

com um plástico invisível e impermeável entre a tua pele e a minha.


27

Houve uma série de alterações na revista, por isso, durante alguns meses, tive

de ir a Madrid com mais frequência para comparecer a reuniões e ficar a par dos

assuntos. Deixei de ser a responsável por responder às cartas das leitoras e passei

a administrar a área direcionada para a publicidade: escolhia as marcas que

poderiam ter interesse para as leitoras, selecionava as colaborações porque, por

vezes, organizavam-se ações na capital e eu negociava com as agências.

Passar mais tempo fora de casa não nos ajudou a que nos encontrássemos.

Certo dia, disseste que devíamos pôr a casa de campo à venda, porque raramente

lá íamos. Eu não te estava a prestar muita atenção quando te respondi que me

parecia bem.

A Sofía estava em plena adolescência, rebelde.

O Pablo continuava a ser teimoso e difícil.

Tu e eu até deixámos de discutir.


28

Um dia, enquanto eu fazia a cama, levantei o olhar para a nossa parede repleta

de constelações e sustive a respiração ao dar-me conta do tempo que passara

desde a última vez em que desenharas uma nova estrela, como se a nossa

história juntos tivesse ficado congelada no passado. Todas aquelas memórias

pareciam olhar-me. Perguntei-me se já não haveria mais. E tive medo. Fui

atravessada por uma dor lancinante e inexplicável, e o lençol escorregou-me das

mãos antes de eu sair do quarto, como se fosse possível fugir de mim mesma e

da realidade.
29

As tempestades de verão são imprevisíveis e estalam de repente quando,

minutos antes, o céu estava coberto de aprazíveis nuvens de algodão. E, então,

acontece. Fica tudo escuro, há alguma coisa que se quebra lá em cima e a chuva

cai com força, como se estivesse em contenção há demasiado tempo. Porque essa

é uma palavra terrível, «contenção»: sentimentos, paixões ou impulsos

reprimidos. O problema é que, embora não os deixemos sair, eles continuam lá.

E incrustam-se debaixo da pele. Se os deixarmos circular livremente, podem

chegar aos órgãos vitais: ao coração, aos rins, ao fígado… e, aí, já não há nada a

fazer.

O comboio deixou-me na Estação do Norte de Valência às cinco da tarde,

duas horas antes do previsto. Cheguei a casa e encontrei um bilhete da Sofía, em

que dizia que tinha ido com algumas amigas ao salão de jogos, a duas ruas da

nossa casa. Suspirei e deixei a mala meio desfeita porque estava exausta e

porque, de repente, apercebi-me de que, àquela hora, tu já devias estar em casa.

Liguei para a sala de professores.

Noutro dia qualquer, talvez não o tivesse feito, mas, naquele momento, senti

um impulso, um palpite. Quem atendeu a chamada foi o Héctor, um colega teu

que, anos antes, se tornara um amigo. Disse-me que não era a tua vez de ficar a

dar apoio e que tinhas saído quando acabaste as aulas. Eu estava inquieta.

Preparei um chá e fiquei à tua espera na sala de jantar.

Parecias normal. Parecia mais uma tarde igual às outras.

Era sexta-feira e o Pablo estava com o avô.

— Chegaste mais cedo. — Inclinaste-te e deste-me um beijo leve nos lábios.

Continuávamos a fazê-lo, mas mais por hábito do que outra coisa.

— E tu, mais tarde — respondi, olhando para o relógio.

— Fui beber um copo com o Héctor.

Naquele momento, o mundo parou. Foi assim que senti, como se o mundo

parasse de girar e tu e eu estivéssemos congelados, cada um num extremo

oposto. Norte e sul. Este e oeste. Muito, muito distantes. A uma distância tão

abismal que comecei a ficar enjoada e a ver-te desfocado. Tinha um nó na

garganta. Não sei como te apercebeste de que eu não me estava a sentir bem,

porque não movi um único músculo. Continuava sentada em frente à mesa da

nossa sala, com as mãos junto ao chá que arrefecia.


— Acabei de falar com o Héctor.

Olhei-te. Tu não afastaste o olhar.

E, então, os teus olhos inundaram-se de algo obscuro. Temor? Culpa?

Angústia? Não estava preparada para saber. Não estava, embora precisasse de o

fazer. Tinha tanto medo que fiquei sem ar, como se os meus pulmões se

encolhessem sobre si mesmos, assustados…

— Valentina…

— Não sei se quero ouvir.

Levantei-me sem conseguir olhar para ti nem mais um segundo e fui para o

quarto. Não foi uma boa ideia. Foi ali que me despiste pela primeira vez, e que

desenhaste as nossas constelações, e sempre foi um lugar de encontro e de

conversas sussurradas ao cair da noite e de uma intimidade que, pensava eu, era

indestrutível.

Foste atrás de mim e fechaste a porta.

— Espera, Valentina. Ouve-me.

— Não sei se consigo — gemi em voz baixa.

— Não é nada do que estás a pensar. Juro que não…

— Que foi que fizeste, Gabriel? — gritei, a tremer.

— Estive com a Elena. Mas não aconteceu nada.

Nunca tinha sentido uma dor tão esmagadora e tão profundamente dentro de

mim, enredada nos meus ossos. Jamais havia imaginado que seríamos esse tipo

de casais que acabavam assim, a enganar e a magoar o outro. Depois de tudo o

que tínhamos construído… Depois do longo caminho que tínhamos percorrido

juntos, de mãos dadas…

Seguraste-me pelo cotovelo e levantaste-me o queixo.

Mas eu não queria olhar para ti, Gabriel. Não queria.

Quando me soltei e afastei de ti para abrir a janela, deixaste sair o ar que

estavas a suster. Fiquei ali, a respirar com dificuldade, enquanto as pessoas na

rua seguiam o seu curso e os pássaros pousavam nos cabos que atravessavam os

postes telefónicos e o céu azul troçava da minha dor. Estremeci ao sentir os teus

braços a envolverem-me, a tua boca na minha nuca, o teu peito contra as

minhas costas, amparando-me. Escapou-se-me um soluço.

— Amo-te, Valentina. Amo-te mais do que à minha própria vida, apesar de

tudo. Mas não aguento mais e precisava de falar com alguém… precisava de

sentir que alguém me ouvia, e, quando perguntaste onde tinha estado, pensei
que, se te dissesse, iria piorar ainda mais as coisas. E juro-te que não o

aguentaria, porque não entendo, não te entendo…

Virei-me, a chorar tanto que mal te via.

— Mas mentiste-me! Acabaste de me mentir.

— Fomos apenas beber um copo e conversar.

— E o que tinham de tão importante para conversar?

— Acabei de te dizer. Vês como não me ouves? Porra, eu só precisava de…

desabafar. Partilhar com alguém isto que nos está a acontecer, isto que…

— Mas tu contas-lhe os nossos problemas?

— Pelo menos com ela consigo falar deles.

Puseste o dedo diretamente na ferida. Com força, sem pensares no quanto as

tuas palavras me magoariam. Um dano colateral quando duas pessoas se

perdem: desatam a desferir golpes a torto e a direito sem pensarem nos

sentimentos do outro.

— Como te atreves? Como é que pudeste?…

— Desculpa, Valentina, não queria…

E calaste-te. Talvez o teu pedido de desculpa não fosse sincero, e quisesses, de

facto, magoar-me. Levaste as mãos à cabeça para remexeres no cabelo, inquieto.

— Isso foi um golpe baixo! — gritei.

— Nem conseguimos ter uma conversa normal!

— Sobre o quê, pode saber-se? Sobre a maneira como passas o tempo com

outra enquanto eu chego do trabalho, depois de estar dois dias fora? Já, ao

menos, paraste para pensar nisso?

— E é culpa minha que agora tudo se resuma ao teu trabalho?

— Estás a atirar-me isso à cara? — Eu estava histérica.

Tínhamos começado a subir o tom de voz. Tínhamos começado a falar ao

mesmo tempo. Tínhamos deixado que toda a raiva contida saísse. E tínhamos

deixado de nos ouvir, por entre os gritos, as recriminações, os olhares mordazes,

a cólera que exalávamos e o espalhafato repleto de desdém.

— Estás a gozar? Sempre te apoiei, porra. Sempre.

— Então, qual é o problema? O que se passa?

Se existisse uma máquina fotográfica para captar a alma dos seres humanos

para lá da pele e dos ossos e dos músculos, poder-se-ia ter visto os nossos

corações quebradiços e cheios de fissuras no instante antes de se partirem em

dois. No entanto, como não existia, a imagem que projetávamos era a de um


homem e de uma mulher carregados de dor, a contemplarem-se como dois

desconhecidos no meio do seu próprio quarto.

— O problema é que tu não estás aqui, Valentina, nunca estás! Sinto-me

sozinho, percebes? Sinto-me como se tu estivesses no outro lado do mundo, até

quando estás à minha frente…

— E não te ocorreu que talvez eu me sinta da mesma maneira?

— Valentina… — Levaste uma mão ao peito, e pareceu-me um gesto tão

simbólico que me tremeram as pernas, porque, a mim, também me doía ali,

precisamente ali.

Ficámos calados durante alguns instantes, a olhar-nos.

— Se calhar, um de nós devia dormir no sofá.

— Mas os miúdos… — sussurraste.

— Já são crescidos, Gabriel.


30

No sábado, levaste o Pablo a um jogo de futebol da escola, e eu aproveitei essa

manhã para estar um pouco a sós com a Sofía. Fomos às compras na rua Colón e,

após uma bela caminhada, fomos a uma das nossas pastelarias preferidas do

centro. Pedíamos sempre o mesmo: dois batidos de morango enormes, que eram

servidos com natas e pedaços de fruta.

Já tínhamos falado sobre os estudos e os planos para o verão seguinte. Depois,

como a nossa menina nunca tivera papas na língua, perguntou-me:

— O que se passa com o papá?

— Nada que vos deva preocupar, querida.

— Vão divorciar-se? — Olhou-me, séria.

Creio que, até àquele momento, nem sequer me ocorrera a ideia de me

divorciar de ti. Mesmo apesar da fase complicada que estávamos a atravessar e

da negligência que arrastávamos, nunca ponderei essa hipótese. Talvez pelo

mero facto de que imaginar-me a assinar os papéis e imaginar a nossa casa sem

ti fosse como levar um murro no estômago.

Eu amava-te. Sempre te amei.

Até nos piores momentos.

— Não, Sofía, claro que não.

— Porque estão zangados?

— É difícil de explicar… — Afastei o batido, incomodada, porque não sabia

como falar daquele assunto com a nossa filha. Já não a podia tratar como uma

criança. Mas ela também ainda não era adulta. — Não há… não há um motivo

concreto para estarmos zangados…

— Não vos percebo — replicou.

O mais engraçado era que eu também não percebia, mas não lho disse porque

pareceria ridículo. Qual era o problema? Que era aquilo que tanto nos irritava

no outro? Em que momento deixámos de ser uma equipa e nos tornámos rivais?

Não me conseguia lembrar. Por mais que me esforçasse, não me ocorria

nenhuma situação específica, alguma coisa que marcasse um antes e um depois.

Percebi que não se tratava de algo que tu ou eu tivéssemos feito, mas sim

daquilo que não tínhamos feito. Foi como uma espécie de revelação. Não nos

tínhamos mimado, ouvido, dedicado tempo, apoiado…

— É uma espécie de estado de espírito.


Foi o melhor que consegui dizer.

— Sim. Mas o papá ama-te.

— Eu sei, e eu também o amo.

— Tenho saudades de quando estavam bem e vos via a lerem juntos, ou de

quando ele te acompanhava numa das tuas viagens de trabalho — disse ela em

voz baixa, quase num sussurro, sem saber que essas palavras se me cravavam na

pele como farpas.

A nossa filha tinha razão, Gabriel. Apesar de tudo, amávamo-nos. Portanto,

que estávamos nós a fazer? Tínhamo-nos abandonado, e agora éramos os

resquícios de um naufrágio. Tinhas-me mentido. E, sim: eu tinha deixado de te

ouvir.

Naquele sábado à noite, enquanto ainda cismava nas palavras da Sofía,

apareceste na cozinha para me perguntar se eu precisava de ajuda. Noutro dia

qualquer, ter-te-ia dito que não, apenas por ser mais prático estar sozinha;

porém, assenti e pedi-te que descascasses as batatas enquanto eu acabava de

preparar o tempero para o peixe.

Fizemos o jantar juntos, lado a lado.

Não falámos, mas o momento não foi desconfortável, apenas simples e

rotineiro. Quase reconfortante. Naquela cozinha, com o aroma do jantar a pairar

no ar, voltei a sentir-me um pouco mais próxima de ti. Quando me tiraste a

colher para provar o molho, os nossos dedos roçaram-se e nenhum dos dois se

afastou. Talvez pareça um disparate, mas aquele pequeno gesto alegrou-me o

coração. E há tanto tempo que não pulsava por ti, assim…


31

Parecia uma tarde qualquer, mas foi um ponto de viragem.

As coisas estavam ligeiramente melhores, embora ainda não estivessem bem.

Não é fácil deixar uma coisa exposta à intempérie durante anos e, depois,

recolher os pedaços para os voltar a unir. E tu e eu, Gabriel, tínhamo-nos

abandonado durante demasiado tempo. Não tínhamos sabido parar e ir buscar-

nos. Por isso, naquele momento, tínhamos de nos esforçar e trabalhar para nos

reconstruirmos.

Estava a pensar nisso enquanto ajudava o Pablo com os trabalhos de casa na

mesa da sala, porque ele tinha tido negativa a um par de disciplinas naquele

último trimestre, e eu estava preocupada.

Ouvi o tilintar das chaves. O clique da fechadura.

Levantei-me enquanto o teu filho terminava um exercício. Avancei pelo

corredor até ao hall de entrada, perguntando-me porque não entravas e nos

cumprimentavas, como era habitual. E, então, vi-te: tinhas os olhos vermelhos,

o rosto contraído de dor e uma mão apoiada na porta que acabavas de fechar. E

percebi que algo tinha acontecido.

— Gabriel… — Aproximei-me de ti.

— O meu pai morreu… O meu pai…

Fiquei sem ar. Abracei-te. Abraçámo-nos com tanta força que, durante

aqueles segundos, fomos um só coração a bater em sintonia, a sofrer

juntamente.

Mas, depois… depois deixei de prestar atenção à minha dor, em tudo o que o

Aurelio era para mim, porque só conseguia pensar em ti. Quem me dera ser

capaz de aliviar o teu sofrimento. Partia-me o coração saber aquilo por que

estavas a passar naquele momento e nada poder fazer para o evitar.

Agarraste-te a mim e desabaste. Contaste-me que ele tinha caído de uma

escada, na oficina, e que tinha batido com a cabeça. Morreu instantaneamente.

Foi encontrado por alguns clientes, que entraram e chamaram imediatamente

uma ambulância e a polícia. Tu correste para lá assim que te ligaram e ficaste

desvairado quando soubeste, ao chegares, que já nada podiam fazer.

Beijei-te as faces, limpando-te as lágrimas.

— Papá, o que se passa?

O Pablo olhou-nos do corredor.


Segurei-te no rosto antes que tentasses fingir que estava tudo bem, como

sempre, engolindo a dor. Naquele momento, enquanto olhava para os teus olhos

húmidos e tristes, apercebi-me de que continuavas a ser tu próprio.

Continuavas a ser o rapaz que pintava constelações. Continuavas a ser o grande

amor da minha vida. Continuavas a ser o melhor homem que eu alguma vez

conhecera, com as tuas virtudes e os teus defeitos. Continuavas a ser a única

pessoa, além dos nossos filhos, por quem eu seria capaz de fazer qualquer coisa.

Sabes aquela ideia tão visceral que nos faz pensar: «quem me dera trocar

contigo»? Assaltou-me, nesse momento. Desejei passar por aquele momento

crítico por ti. Se aquilo não era amor, que outra coisa seria?

— Eu falo com ele, não te preocupes.

— Mamã… — A voz do Pablo soava assustada.

— Gabriel, vai para a casa de banho e toma um duche de água quente.

Assentiste, meio alheado, e, quando vi que fechavas a porta, abracei o Pablo e

dei-lhe um beijo na testa, antes de caminhar junto dele até à sala. Não fazia

ideia de como lhe contar, mas precisava de ser eu a gerir a situação e de te tirar

esse peso de cima. Sentei-me em frente dele na poltrona e tentei explicar-lhe

devagar, com ternura. Embora já tivesse doze anos, julgo que lhe foi difícil

entender. A princípio, ficou em silêncio a olhar para mim, sem reagir durante

tanto tempo que fiquei inquieta, até que, subitamente, se lançou nos meus

braços e desatou a chorar. O meu pequenino. Gostava tanto do seu avô…

Com a Sofía foi ainda mais difícil. A Sofía quis ficar sozinha. A Sofía fechou-se

no quarto, e, quando entrei, preocupada com a hora do jantar, sem conseguir

dar-lhe mais espaço por mais que no-lo pedisse, vi que tinha adormecido.

Estava abraçada a um urso de peluche que o teu pai lhe oferecera no Natal

anterior, algo que nos fez rir a todos, uma vez que ela já era crescida para

peluches, ideia com a qual o Aurelio, evidentemente, não concordava. Costu­-

mava dizer que o seu filósofo preferido era o Peter Pan.

Fiz o jantar, embora mal lhe tenhamos tocado, com a televisão desligada e

imersos num silêncio melancólico. Incumbi-me de fazer algumas chamadas para

tratar de tudo o era necessário. O funeral seria no dia seguinte, à tarde.

Nessa noite, na cama, abraçámo-nos.

— Não me largues agora… — sussurraste.

— Nunca, Gabriel. E tu não me largues a mim.

— Isso é impossível — disseste contra o meu cabelo. — Trago-te dentro de


mim. Quando vi, hoje… quando vi como levavam o meu pai… só conseguia

pensar em ti. Precisava de te abraçar. Precisava de chegar a casa porque me

sentia só e pensava… que ia cair.

— Não, eu vou estar sempre aqui para te segurar.

— Senti a tua falta…

— E eu a tua, Gabriel.

Quando acordámos, ainda estávamos abraçados.

Não dissemos nada enquanto nos levantávamos. Preparei o pequeno-almoço,

mas deixei que os miúdos dormissem até mais tarde, já que não iriam à escola.

Tomámos o pequeno-almoço juntos e insisti para que comesses uma torrada,

porque não tinhas comido nada desde o dia anterior, ao almoço. Acedeste a

contragosto. Um pouco mais tarde, as pessoas da seguradora tocaram à

campainha e convidámo-las a entrar para a sala para conversarmos. Pedi-te que

me deixasses tratar da papelada, mas não deixaste. Suponho que também

precisavas de te manter ocupado. Então, ambos tratámos das coisas e depois,

com os miúdos ainda cabisbaixos e sem dizer palavra, arranjámo-nos e fomos

para o funeral.

Foi rápido. Vieram alguns vizinhos e amigos do teu pai. E também o

Martínez, que estava destroçado com a notícia e que não te largou. Enterraram-

no junto à tua mãe, porque era o que ele sempre desejara. Enquanto nos

despedíamos, o céu pálido daquele dia deu lugar ao entardecer e encheu-se de

riscas alaranjadas. A única coisa em que eu conseguia pensar era no quanto

sentiria a falta dos almoços de domingo, na busca pelas minhas bolachas de

canela, nos jogos de dominó, nos seus maravilhosos chapéus e de ver como se

iluminava aquele rosto envelhecido quando os seus netos o abraçavam.

Regressámos a casa acompanhados apenas pelo ronco do motor do carro.

Jantámos um copo de leite e alguns biscoitos. O silêncio era denso e penetrante.

Tive a sensação de que aquele dia durara uma semana. É curioso perceber como

a perceção do tempo muda, e como essa perceção é diferente em bons e em

maus momentos. Parece fantasia. Ainda estava a pensar nisso quando nos

metemos na cama.

Deixei a luz da mesa de cabeceira acesa e olhei para ti.

Estávamos ambos sentados com as costas encostadas à cabeceira da cama, por

baixo da nossa parede cheia de constelações. A tua voz rouca e quebrada encheu

o espaço.
— Eu amava-o tanto…

— Eu sei, Gabriel.

— Não estava à espera disto.

Queria abraçar-te até que toda a dor desaparecesse. Porém, como sabia que

isso não aconteceria, levantei-me, remexi na gaveta da cómoda e estendi-te o

marcador que tinhas usado para as últimas estrelas. Sorriste. Foi um sorriso

triste, que não te chegou aos olhos, mas pegaste-lhe e puseste-te de pé em cima

da cama. Esticaste o braço. Deixaste ali aquela memória. E, depois, uniste os

pontos soltos que havia e completaste outra constelação. Inclinei-me para

apanhar o livro que tinhas na tua mesa de cabeceira enquanto te voltavas a

deitar na cama. Abri-o na página que tinhas marcado e tomei fôlego antes de te

olhar de soslaio.

— Posso ler para ti? — perguntei num murmúrio.

Assentiste, olhando-me tão intensamente…

Comecei a ler suavemente, sem levantar muito a voz. Era um romance de

Dickens que costumavas reler com frequência. Não sei quanto tempo estive a

ler, mas sei que as palavras pareciam encadear-se umas nas outras, apaziguando-

nos como se fossem um bálsamo natural. Reparei que descontraías ao meu lado,

com os olhos tristes e a respiração mais ritmada.

Até que a porta se abriu e a Sofía e o Pablo entraram e se deitaram na nossa

cama, como quando eram pequenos. Ela aconchegou-se ao teu peito e tu, ao

sentires o seu abraço, soltaste o ar que estavas a conter. O Pablo deixou-se ficar

um pouco mais afastado, talvez por sempre ter tido mais dificuldade em abrir-

se e em deixar fluir as emoções.

— Já deviam estar a dormir — disse-lhes.

— Não consigo, não paro de pensar no avô.

— Eu também não… — acrescentou o Pablo, assentindo.

Arranjámos-lhes espaço entre nós para que se deitassem debaixo dos

cobertores. E, ali, naquela noite, relembrámos alguns dos momentos que

havíamos passado com o Aurelio. Tu desataste a rir-te quando o Pablo contou

aquela vez em que o Aurelio se engasgou com limonada que lhe saiu pelo nariz,

a meio do almoço. Ou quando a Sofía se lembrou de que ele não gostava nada

dos Take That, aquele grupo que ela adorava: o Aurelio costumava dizer que

pareciam uns «totós» e que esperava que, no futuro, ela arranjasse um

namorado melhor.
E, apesar da tristeza, foi doce.

Despedimo-nos entre sorrisos.

Despedimo-nos juntos.
32

Não foi uma década fácil para nós, Gabriel. Na realidade, diria que foi a pior. O

teu pai deixou-nos e, não muito tempo depois, também os meus pais nos

deixaram. Morreram apenas com alguns meses de diferença. Decidi despedir-me

do emprego porque, sinceramente, não aguentava mais e precisava de tempo

para mim. Tu estavas um tanto apagado, mas, apesar de tudo, voltámos a

encontrar-nos a meio do caminho. Se houve alguma coisa boa daquela época, foi

isso.

De certo modo, nunca percebi porque nos afastámos. O que aconteceu

connosco? Continuávamos a ser nós próprios. Suponho que, por vezes, estamos

tão ocupados a olhar para o nosso umbigo que não paramos para pensar naquilo

que a pessoa que temos ao lado estará a pensar, por que fase estará a passar, o

que lhe estará a acontecer. Deixamo-nos levar pela maré e não somos capazes de

mudar de direção porque é mais cómodo seguir e seguir e seguir, sem olhar para

trás: o problema é que, quando nos viramos, já não conseguimos ver a margem

e estamos verdadeiramente perdidos.

Tu e eu encontrámo-nos. Voltámos a olhar um para o outro.

Voltámos a pensar em nós e a querer o bem do outro.

E enfrentámos juntos os problemas que surgiram. Como a transformação do

Pablo consoante ia crescendo e se ia tornando mais problemático, sobretudo

quando teve de repetir o último ano. A Sofía, pelo contrário, deixou de precisar

de nós. Foi duro, principalmente para ti que sempre estiveste disponível para

ela, estendendo-lhe a mão ainda antes de ela ta pedir. Por outro lado, foi

também uma nova aventura vê-la ir para a universidade e constatar como se

tornava cada vez mais independente. Em dois anos, apresentou-nos três rapazes.

Nenhum deles te pareceu suficientemente bom. Disseste que «não lhe

chegavam aos calcanhares».

— Estás a começar a comportar-te como um velho rezingão…

Ri-me enquanto tu resmungavas por entre dentes. E depois gritei quando me

agarraste e ambos caímos no sofá. Parecias divertido e mal-humorado, em

simultâneo.

— Ainda só fiz cinquenta anos. E os cinquenta são os novos quarenta.

— Acreditas mesmo nisso? — Soltei uma gargalhada.

— És cruel. És uma mulher cruel e muito má.


Ri-me novamente e, a seguir, ficámos a olhar-nos durante alguns segundos,

com a respiração ainda agitada, com o teu corpo junto ao meu no sofá.

Acariciei-te o cabelo. Estava salpicado de brancos, mas eu gostava, acentuavam

o ar intelectual e atraente que sempre tiveste. Apesar das rugas em volta, os

teus olhos ainda eram profundos e intensos. E os teus lábios… o sorriso que

esboçavam era a minha perdição. Segurei-te na nuca antes de te beijar

lentamente, um daqueles beijos que há muito não dávamos, saboreando-nos

propositadamente e desenhando o contorno da boca do outro.

— Ainda tenho energia para muitas coisas, sabes?

— Se queres que acredite, vais ter de me mostrar.

— Maldita sejas… — Despiste-me.

Raramente o fazíamos assim, de modo improvisado, mas, naquele dia, foi

divertido e excitante. Sussurrámos tontices ao ouvido um do outro. Unimo-nos

um pouco mais. Rimo-nos. Desenhámos uma nova estrela, porque sim.

Embora tivessem sido uns anos difíceis com o Pablo, creio que lidámos com

tudo o melhor que sabíamos. Não existe um manual que se possa seguir à risca

para sermos bons pais, e havia dias em que nos sentíamos sufocados, quando tu

te irritavas mais do que era preciso, ou eu me afligia por não conseguir entender

o que estava a acontecer para o ajudar; porém, após algumas semanas

complicadas, a calma voltava sempre a instalar-se.

O Pablo não tinha muito interesse nos estudos. Um dia, ouvi-te a gritar no

quarto dele, dizendo-lhe: «Não fazes ideia dos sacrifícios que a tua mãe fez para

que tu pudesses ter agora uma educação. Não fazes ideia de como era antes, em

que não se tinha acesso a nada disto. E tu deitas tudo fora.» Saíste e bateste com

a porta.

Estavam quase sempre zangados um com o outro, se não era por causa das

notas, era por causa das companhias ou porque ele nunca chegava a casa à hora

combinada e nós ficávamos acordados até às tantas, preocupados: tu, a fumar à

janela do quarto, enquanto eu lia em voz alta algum romance que

partilhávamos, para não pensar mais no assunto, até que ele aparecia e vocês

começavam mais uma discussão que acabava da mesma maneira que as

anteriores, com recriminações e portas a bater.

— Que vamos fazer com ele?

— Não sei… — respondi, porque, de facto, não fazia a mínima ideia.

Comigo, o Pablo ainda cedia, mas contigo era mais duro, como se te visse como
um rival. Parecia mentira que, anos antes, tu tivesses sido o seu herói, a pessoa

de quem ele andava sempre atrás.

— Isto não pode continuar assim, Valentina.

— Pois. — Apaguei a luz do candeeiro.

Naquele ano, apesar de eu não estar a trabalhar, sentia-me bem comigo. Um

dia, ao olhar-me ao espelho enquanto escovava o cabelo de manhã, apercebi-me

do quanto o meu rosto havia mudado: já não era uma miúda, embora tu às vezes

ainda me fizesses sentir que sim. Tinha rugas na testa e nos cantos da boca, a

cabeleira farta havia diminuído e o corpo perdera elegância. Porém, apesar de

todas essas diferenças externas, por dentro, sentia-me mais bela do que nunca:

era uma mulher segura, com ideias próprias, com capacidade de decisão. Não

havia sinal daquela rapariguinha que tu conheceras, que corava, envergonhada,

que não tinha coragem de enfrentar o pai ou que pensava duas vezes antes de

vestir aquilo que realmente queria. Havia resquícios, sim, a minha essência.

Mas amadurecera. E eu gostava da maneira como o fizera, como uma planta

débil que, lentamente, cresce em direção ao sol, estende as suas raízes e se

fortalece.

Chegara ao lugar onde sempre quisera estar.

Ainda assim, ansiava por encontrar algo que realmente me motivasse e me

entusiasmasse, mas não me queria precipitar. Por sorte, tinha uma lista de

coisas que queria fazer e tínhamos poupanças decorrentes de termos vendido a

casa de campo e, mais tarde, o apartamento do teu pai. Portanto, inscrevi-me

num curso de inglês só pelo prazer de o fazer (os teus filhos riam-se sempre do

meu sotaque) e também decidi tirar a carta de condução. Tu ajudaste-me a

praticar.

— Vira à direita…

— Está bem. Direita.

— Não fizeste pisca.

— Claro que fiz! Estás a ficar surdo.

— Valentina… — Reviraste os olhos.

— Está bem, tens razão, não fiz pisca, e ainda consegues ouvir bem. Mas tens

de ir ver isso da vista. Se continuares a adiar, vai ser pior.

Travei num sinal de stop, numa zona em que costumávamos praticar e tu

bufaste. Em redor, havia vários edifícios todos do mesmo tom cinzento-claro,

com letreiros que anunciavam produtos que vendiam ou que estavam em


saldos.

— Vejo perfeitamente bem.

— Isso não é verdade. Corriges os exames com o nariz colado à folha e mal

consegues ler os rótulos dos alimentos quando vamos ao supermercado.

— A letra é minúscula — queixaste-te.

— O que diz ali? — Apontei para um cartaz num armazém de móveis.

— Ahh… — Franziste o sobrolho. — Diz: «Temos molares…» Não, isso não

faz muito sentido. Está bem, vejo o que está por baixo: «sofás, cadeiras,

mesas…»

— Diz: «Temos móveis: sofás, cadeiras, mesas…»

— Acertei em metade.

— Precisas de óculos, Gabriel.

Algumas semanas mais tarde, depois de eu ter passado no exame de condução,

convenci-te, finalmente, a ir a um oculista. Os óculos ficavam-te muito bem,

não sei porque resististe tanto: além disso, nem tinhas de os usar

permanentemente.

— Ficas bonito. A sério.

— Se tu o dizes…

— Vem cá.

E beijei-te, a rir.
33

Em 1999, quando o Pablo celebrou o seu décimo oitavo aniver­sário, a situação

chegou ao limite e quebrou-se, mas, ironicamente, também começou a

reconstruir-se, a pouco e pouco. Um mês depois de atingir a maioridade, ele

disse-nos que se ia embora: ia pegar numa mochila e apanhar o primeiro

comboio que passasse. Queria correr o mundo sem estar preso, sem ter de

cumprir horários nem ter de dar explicações a ninguém. Eu desatei a chorar.

Tu zangaste-te como nunca antes.

Talvez não tenhamos lidado com a situação da melhor maneira.

Achávamos, simplesmente, que não seria bom para ele e queríamos protegê-lo

daquilo que, julgávamos nós, o poderia prejudicar. E, não, não gostámos da

ideia de ele pegar numa mochila e ir por aí com o pouco dinheiro que ganhara a

trabalhar num bar no bairro de Carmen nalguns fins de semana.

Mas a vida não era nossa. A decisão não era nossa.

Vocês passaram duas semanas sem se falarem. Os silêncios em casa eram

dolorosos. As recordações do passado também, sobretudo quando eu pensava

naquela década de 1980, tão doce, de dias soalheiros na praia e na casa de

campo: recordava com nostalgia as noites frescas pejadas de estrelas, e como

brincavas com os teus filhos e como gostavas de os ver a crescer, sem imaginar,

nem por um segundo, que, com o tempo, tu e o Pablo se afastariam e deixariam

de se entender.

Contudo, como disse, tudo isso foi também parte da reconstrução.

Naquele dia, o último que ele passou em casa, ajudei-o a preparar a bagagem.

Assegurei-me de que levava medicamentos, um cartão do seguro de saúde com

cobertura no estrangeiro e outras coisas práticas em que, obviamente, ele não

pensara porque vivia o dia a dia de forma alucinada. Antes de ir para a

faculdade, a Sofía passou pelo quarto dele e abraçou o irmão com força: disse-lhe

que ele tinha um parafuso a menos, chamou-lhe «puto» entre lágrimas e deu-

lhe uma chupeta colorida que trazia sempre no porta-chaves para que ele a

usasse como amuleto e para que se lembrasse dela. Eu tinha um nó insuportável

na garganta.

Esperámos por ti, Gabriel. Tinhas saído de casa quando começámos a preparar

a bagagem e disseste que voltarias daí a pouco, mas, quando o taxista tocou à

campainha à hora combinada, tu não estavas. O Pablo pedira-nos que não o


acompanhássemos à estação porque queria escolher o seu primeiro destino sem a

nossa interferência. Mas era suposto tu estares em casa. Tinhas de te despedir

dele. Como poderias não te despedir dele?… Mesmo não apoiando a sua decisão

e apesar de todas as discussões dos últimos anos, os desentendimentos, as

recriminações e as palavras ditas, que, no fundo, não sentiam.

Quando chegámos ao táxi, o Pablo olhou, inquieto, para os dois lados da rua.

Ficou um pouco nervoso. Estava à tua procura. Segurei-lhe nas faces como se

fosse uma criança.

— Vai correr tudo bem, meu amor.

— Eu sei — resmungou ele.

— E, se tiveres algum problema, qualquer imprevisto, sabes que é só ligares,

sim? E liga-nos, Pablo. Liga-nos sempre que possas.

— Está bem, mamã — suspirou.

— E quanto ao pai…

— Deixa estar — balbuciou, irritado.

— Ele ama-te muito. E sempre tentou fazer as coisas bem contigo, só que,

neste momento, está fechado em si mesmo e não consegue ver mais nada…

— Não faz mal — disse ele, sacudindo a cabeça.

O Pablo não era pessoa de se abrir facilmente nem de falar de sentimentos, e

não tinha a tua capacidade de pedir desculpa ou de reconsiderar quando se

enganava. Foi por isso que me zanguei contigo. Porque tu conhecias o nosso

filho e, naquele momento, a responsabilidade de evitar aquela situação era tua.

Gritei-te isso mesmo quando chegaste a casa, quinze minutos depois, abriste a

porta do quarto dele e ficaste na ombreira da porta.

— Como pudeste não te despedir dele, Gabriel?

Remexeste no cabelo. Parecias tão triste e perdido…

Fixei o olhar nas tuas mãos. Tinhas as unhas todas roídas.

— Valentina… — Foi um sussurro. — Tu não percebes.

— Pelos vistos, tu também não. Achas que não me custou ajudá-lo a fazer as

malas e deixá-lo ir sem saber onde vai dormir amanhã ou depois? Achas que foi

fácil?

— Não, mas…

— Não te despediste do teu filho e vais arrepender-te disto a vida inteira. Ele

estava à tua espera, Gabriel, estava à espera que aparecesses, não parava de olhar

à volta na rua antes de entrar no táxi, e tu falhaste com ele. Mas, pior ainda,
falhaste contigo também. Porque tu não és assim. — Acariciei-te a face. — Eu

sei que é difícil…

Tapaste a cara e suspiraste.

— Estraguei tudo…

— Um bocadinho.

— Não consegui…

— Eu sei, meu anjo.

— Ainda me posso despedir.

Olhei-te, admirada, enquanto pegavas no casado pendurado no cabide atrás da

porta da entrada. Agitaste as chaves na mão antes de te inclinares para me dares

um beijo rápido. E, sim, fizeste-o. Contaste-mo horas depois, à noite, enquanto

nos abraçávamos e partilhávamos os nossos medos. Foste até à Estação do Norte.

Estiveste prestes a saltar a barreira do controlo de segurança ao veres que ele

acabava de a atravessar para entrar naquele comboio que sairia cinco minutos

depois. Ele olhou para ti. Tu olhaste para ele. Ao que parece, não falaram, mas,

por uma vez, não precisaram de o fazer para comunicarem e saberem que estava

tudo bem, que estarias ali quando ele decidisse que chegara o momento de

regressar.
34

Comprei o meu primeiro computador. Enquanto dava voltas àquele traste e

descobríamos, juntos, como funcionava, até decidirmos contratar serviço de

Internet, não adivinharia que a chave para o meu futuro estava ali, por detrás

daquele ecrã e de um sistema formado por zeros e uns que eu não compreendia,

por mais que a Sofía mo explicasse com paciência.

Mas sim. De repente, percebi o que queria fazer.

Quando me decidi a explicar-te, tu sorriste.

E foi apenas disso que precisei para começar.


O século XXI - Uma nova era

35

É curioso o que acontece com isto da idade. É como se não estivéssemos

absolutamente cientes dela, não de um modo objetivo. Quando eu tinha

dezassete anos, achava que as pessoas de trinta anos eram «velhas». Quando fiz

os trinta, no entanto, continuava a sentir-me uma miúda, e as pessoas que me

pareciam mais «velhas» eram que já tinham cinquenta anos. Ao atingir esses

dígitos, não percebia como pude, alguma vez, ter pensado aquilo. Se ainda

éramos duas crianças! Não é assim? Ou, então, assim nos parece, quando

atravessamos essa linha e, olhando para trás, nos parece que a vida foram dois

dias.

Estávamos na cama. Tu lias um livro em voz alta.

Jurei que não voltaríamos a perder essa tradição.

— Valentina, não me estás a ouvir.

— Estava só a pensar com os meus botões. Repete a última frase.

— Diz-me lá em que estavas a pensar. — Tiraste os óculos.

— No tempo. Nos anos. O que nos aconteceu? Quero dizer, quando é que os

nossos filhos se tornaram adultos? Não me lembro, onde estávamos? Passou tão

depressa que tenho a impressão de ter perdido esse capítulo da minha vida.

Ainda há pouco eram dois bebés que eu podia apertar a toda a hora, e, agora, o

Pablo está em Viena e a Sofía anda por aí com esse rapaz… esse rapaz… como

se chama? Gonçalo, sim, esse.

— Ela já não namora com o Gonçalo. Agora é o Raúl.

— Está bem. Tanto faz, Raúl, pronto. Vês? Nem sequer lhes consigo seguir o

rasto porque andam muito depressa, e nós, não tarda, vamos começar a usar

bengala.

— Acho que ainda faltam uns aninhos para isso.

— Mas o tempo voa, Gabriel! Vai ser, outra vez, num abrir e fechar de olhos.

— É a lei da vida, meu amor. — Olhaste-me com ternura.

— E olha para mim. — Virei-me para ti. — Olha-me como deve ser.

— Estou a olhar. Que se passa?

— Eu estou diferente. Tenho rugas.


— Não tens nada. Estás linda.

— Sabes que isso não é verdade. Engordei e as calças que uso habitualmente

já quase não me servem. Mas não é só isso, sinto que estou a ficar para trás.

— Diz a empresária com mais olho para o negócio da família.

Escapou-se-me um sorriso porque aquilo era verdade e eu não podia evitar

sentir-me orgulhosa. Após meses a usar o computador, tive a ideia de lançar

uma revista digital, que não tivesse de ser impressa nem de se vender nas

bancas, e que estivesse ao alcance de todas as pessoas de forma gratuita. Os

conhecimentos que adquirira anteriormente foram uma grande ajuda, uma vez

que, nos últimos anos, me habituara a contactar as marcas e sabia que grande

parte do lucro provinha dos anunciantes. Os meios de comunicação online

estavam em alta e a Sofía tinha acabado o curso de Jornalismo, portanto,

embarcámos juntas naquele projeto. Foi bonito, não só por tê-lo feito com ela,

mas também porque tu nos ajudaste, assim como outros colegas dela da

faculdade, que, mais tarde, acabariam por ser uma peça fundamental. Naquela

altura, ainda tínhamos um longo caminho pela frente, mas sentia-me satisfeita e

acreditava que, com tempo e dedicação, funcionaria melhor e estabilizaria.

— E a propósito, quem é esse tal Raúl?

— Acho que é o das tatuagens. O louro.

— O informático que ajuda na revista? Aquele que tem um piercing na

sobrancelha? — Assentiste distraidamente antes de voltares a pôr os óculos e a

pegar no livro. — E pode saber-se porque é que tu, que ficas doido sempre que

aparece um novo namorado, estás agora tão sereno?

— Este não me parece muito mal — disseste.

— Quando tocou à campainha, pensei nos ia assaltar.

— Pois, isso também me passou pela cabeça. — Desataste a rir-te antes de

sossegares. — Mas, no outro dia, enquanto vocês estavam a trabalhar, reparei na

maneira com ele olhava para ela.

— E como é que ele olhava para ela? — insisti, confusa.

— Como eu olhei para ti na primeira vez em que te vi.

— Isso não vale, Gabriel! Maldito sejas.

Sorri e neguei com a cabeça, divertida.

— Estou a falar a sério, prefiro-o a ele do que a todos os outros com quem ela

tem saído. Eram, sei lá, pouco interessantes, não achas? Nem sequer

conseguiam acompanhá-la quando ela se punha a divagar sobre as suas coisas, já


sabes como é a Sofía.

Tinhas razão. Talvez tenha sido sorte, ou o facto de sempre teres tido uma

espécie de ligação inexplicável com a tua filha, uma linguagem só vossa. A

verdade é que, pouco a pouco, o Raúl passou a fazer parte da família: estava

presente nos aniversários, ia muitas vezes contigo tirar fotografias à lagoa e cada

vez se dedicou mais ao projeto da revista, a ponto de fazer parte dele como se

fosse algo de nós os três.

Os anos que se seguiram foram tranquilos, mas também produtivos. Vivemo-

los imersos numa espécie de rotina agradável, não daquelas que pesam. Pelo

contrário, das que nos preenchem. Despedimo-nos da peseta e demos as boas-

vindas ao euro, conseguimos uma afluência de visitantes diária e fiel na revista

digital, e a publicidade transformou o projeto num negócio que a Sofía

começou a dirigir. O Raúl, por outro lado, continuou a dar uma ajuda, mas

arranjou outro emprego e foi-se afastando, como se uma parte dele quisesse

separar a parte profissional da pessoal, sobretudo quando ele e a Sofía decidiram

ir viver juntos.

A casa ficou vazia, Gabriel. Cheia de silêncio.

A princípio, entristeci, não vou negá-lo.

Contudo, algumas semanas depois, consoante ia assimilando a situação,

apercebi-me de que, após mais de vinte anos de convívio com os nossos filhos,

voltávamos a estar a sós. Isso significava que podia tomar banho com a porta da

casa de banho aberta sem recear que o Raúl, ou outro amigo qualquer da Sofía,

pudesse aparecer ali de surpresa. Podíamos sempre jantar o que nos apetecesse

sem considerar uma terceira opinião. E a televisão, que maravilha, acabaram-se

aqueles programas de pessoas que lá iam cantar, que deixavam a tua filha louca.

— Tenho uma ideia, porque não passas a trabalhar no quarto da Sofía? É

maior, e podíamos fazer o estúdio lá — propuseste. — Melhor ainda, e se

fizéssemos uma biblioteca no do Pablo? Umas quantas estantes, dois cadeirões,

uma mesa pequena…

Neguei com a cabeça, com um nó na garganta.

— No do Pablo, ainda não.

— Há muito tempo que ele não a vem a casa.

Tinhas razão. Ele tinha andado a saltitar pelo mundo durante alguns anos, e

enviava-nos postais de países diferentes. Sempre que nos ligava, contava-nos

uma história trepidante daquelas que achamos que só acontecem nos filmes:
tinha histórias para dar e vender. No entanto, acabou por fazer uma paragem

em Londres, quando decidiu que iria trabalhar algum tempo num bar para

juntar dinheiro, antes de se ir embora novamente. Essa pausa pelo caminho

acabou por se prolongar tanto que fomos nós que nos decidimos a ir visitá-lo.

Era a primeira vez que andávamos de avião. Tu parecias uma criança

entusiasmada. Eu estive prestes a sofrer um enfarte. Ainda assim, valeu a pena.

Ficámos num hotel, porque o Pablo vivia num quarto arrendado que eu me pus

logo a limpar quando ele no-lo mostrou (porque o obriguei, claro) e que era

mais pequeno do que a toca de um rato. Mas foram seis dias extraordinários, em

que percorremos a cidade com o nosso filho: estivemos no Soho, em Covent

Garden, em Piccadilly e na sua zona preferida, Camden Town. Ele,

entusiasmado, mostrava-nos isto e aquilo e levava-nos aos melhores sítios que

conhecia. Ficámos exaustos. À noite, nem conseguíamos falar.

— Então, se calhar, devíamos perguntar-lhe.

— Ou podemos esperar mais um pouco e pronto.

— Vá lá, Valentina. Não me digas que não queres ter uma biblioteca só para

nós. Podíamos ficar lá a ler, à tarde. Compramos uma carpete enorme… —

aproximaste-te de mim com um sorriso maroto —, e fazemos amor nela.

Admite que seria perfeito.

Ri-me enquanto tu tentavas apalpar-me.

— Fazemos isso no quarto da Sofía, pode ser? Eu ponho uma mesa para o

computador e o resto do espaço fica todo para as estantes. Não olhes assim para

mim, talvez o Pablo queira voltar, um dia. Ela tem uma casa, mas ele não, é

diferente. E, então, quando é que vamos às compras?

Escolhemos cada móvel com carinho. Aproveitámos as tardes para passear por

centros comerciais, lanchar em pastelarias e trocar ideias para chegarmos a

acordo. Pintámos as paredes de um tom laranja suave, que quase parecia creme

quando havia mais luz. Tal como querias, comprámos uma carpete grossa com

pelo e acabámos por optar por dois cadeirões confortáveis, o teu, específico para

as dores de costas de que sofrias cada vez mais. Pusemos uma estante enorme

que ocupou um lado inteiro do quarto e, depois, fomo-la enchendo com aqueles

livros que tínhamos guardado em caixas na arrecadação, por falta de espaço.

Encontrámos tesouros, como aquele exemplar em que, um dia, escreveste num

bilhetinho «Casa comigo, Valentina», ou aquele outro de Jack London que me

ofereceste precisamente antes de me beijares pela primeira vez, ao luar.


Tinhas razão: passar ali as tardes a trabalhar ou a partilhar leituras contigo

enquanto o céu escurecia em cada dia foi perfeito. Simbolizou a estrela que

pintaste na parede, depois de a Sofía se ter ido embora. E, assim, completámos

aquela constelação.
36

O médico, que tinha um bigode farto e chamativo, franziu o sobrolho enquanto

revia os resultados e, em seguida, tossiu para aclarar a garganta antes de

levantar o olhar para nós.

Sustive a respiração, preocupada.

— Faz algum tipo de desporto?

— Não — respondeste.

— E fuma… — recordou ele.

— Sim. Há algum problema?

— Gabriel, vou ser sincero consigo. — O médico cruzou as mãos em cima da

mesa, inspirou fundo e olhou-te nos olhos. — Tem cinquenta e nove anos, mas

os valores obtidos na espiro­


metria pulmonar correspondem aos de um homem

idoso, embora o Gabriel também já não seja um jovem. Tem de deixar de fumar

e começar a adotar outros hábitos de vida. Não sei se está a compreender a

gravidade da situação. Resumindo, poderia dizer-se que os seus pulmões estão

envelhecidos.

— Sim, consigo perceber o que isso significa — respondeste, decidido, mas,

pela primeira vez, parecias um tanto preocupado. Naturalmente que te dizia,

vezes sem conta, tanto ou mais do que a Sofía, que deixasses de fumar, mas

nunca nos deste ouvidos.

— Se precisar de ajuda, posso receitar-lhe umas pastilhas.

— Pastilhas? — perguntaste, inclinando a cabeça.

Quando saímos dali, fizemo-lo em silêncio. Eu não sabia o que dizer. Estava

assustada, Gabriel. Andava há meses a insistir contigo para que fôssemos ao

médico, mas tu e os hospitais não se davam nada bem e era uma coisa que

evitavas sempre. De qualquer modo, tossias todas as noites, com força,

persistentemente. E cansavas-te depressa, quando, muitos anos antes, eras forte

como uma árvore robusta. Eu tinha medo de que alguma coisa má te

acontecesse e que não lhe desses importância.

— Vem cá. — No momento em que te apercebeste de que eu estava a tremer,

zangada contigo por teres sido tão irresponsável, e comigo, por não ter

conseguido que fizesses aqueles exames mais cedo, puxaste-me pela mão no

meio de uma rua pedonal cheia de gente. — Não chores, Valentina. Vou fazer

isso, está bem? Vou deixar de fumar.


— Prometes? — sussurrei.

— Prometo, meu amor.


37

Cumpriste a tua palavra. Foi mais uma estrela. Tive de aguentar o teu mau

humor durante alguns meses e de te ouvir a mascar pastilhas de menta a toda a

hora, mas deixaste de fumar e começaste a caminhar mais vezes, e a usar menos

o carro para ir e voltar do trabalho.

O Pablo não voltou. Rapidamente descobrimos porquê.

Tinha conhecido uma rapariga em Londres chamada Amber e estava tão

apaixonado que quase não o reconheci quando o visitámos novamente e nos

saudou com os olhos brilhantes, o cabelo mais curto e um sorriso rasgado.

Deste-lhe umas palmadinhas nas costas e trocaram um olhar repleto de respeito,

de amor e admiração. Alguns minutos depois, apresentou-nos a sua namorada,

que estava à nossa espera à saída do aeroporto. Era muito bonita. Gostámos logo

dela, e, depois daqueles dias com eles, fomo-nos embora de Londres com a

certeza de que o Pablo estava bem. E que ficaria bem.

Assim como a Sofía que, meses depois, nos anunciou que estava grávida. Ela e

o Raúl nunca casaram, mas tiveram uma bebé linda a quem chamaram Eva.

Não sei se nos tornámos mais sensíveis com a idade, ou se estávamos a

atravessar uma fase particularmente emocional, mas comovíamo-nos com

qualquer tontice. Na primeira vez em que ela te chamou «avô», estavas prestes

a começar a chorar.

A diferença entre ter filhos e netos é que, aos filhos, temos de os educar e

impor-lhes regras; por outro lado, com a Eva limitávamo-nos a aproveitar o

tempo que passávamos com ela e a quebrar as regras, às escondidas, que os pais

lhe impunham. Reconheço que lhe dei uma ou outra bolacha daquelas com

pepitas de chocolate e talvez lhe tenha comprado mais brinquedos do que

aquilo que ela precisava, mas, em minha defesa, ela tinha um sorriso tão bonito

que era muito difícil recusar-lhe alguma coisa quando fazia beicinho — pelo

menos, era o que tu dizias quando te derretias.

E a vida prosseguiu. Os dias passaram. Os meses. Os anos.

Criámos uma nova rotina. Eu trabalhava de manhã, enquanto tu estavas na

escola, embora delegasse cada vez mais coisas à Sofía para poder passar as tardes

contigo, sobretudo quando a Eva entrou para a creche. Então, quando o sol se

punha, íamos caminhar, com a esperança de que os teus pulmões se mostrassem

agradecidos, dávamos uma volta de mãos dadas pelo bairro, parávamos para
beber um descafeinado ou, se fosse sábado, para comer umas batatas fritas com

molho picante ou uns calamares numa das esplanadas que tão bem

conhecíamos. Líamos juntos e tomámos o gosto por assistir a séries e ir cada vez

mais ao cinema. De vez em quando, fazíamos uma escapadinha e tu

aproveitavas para tirar fotografias e para fingir, durante alguns dias, que ainda

éramos jovens, inventando uma maluquice qualquer.

Mas já não éramos, Gabriel. Só na nossa cabeça.

Começámos a senti-lo pouco a pouco. É engraçado perceber como a mente se

adapta. Segundo a minha perceção, eu continuava a ter cerca de quarenta anos,

mas o espelho dizia-me que já passara os sessenta. As rugas, esses trilhos

repletos de recordações, sulcavam-me a pele. Todos os meses pintava o cabelo

para esconder os brancos. Já não me lembrava do que significava a palavra

«cintura», porque o meu corpo era completamente reto. Apareceram-me varizes

nas pernas e comecei a massajá-las e a beber chá de cavalinha, mas em vão.

Deixei de ter a força que tinha nos braços e, embora contrariada, aceitei o

carrinho de compras que a Sofía me ofereceu porque, no fundo, ela tinha razão e

era prático.

Foi gradual, mas, ao mesmo tempo, foi rápido.

Pequenas mudanças e pormenores que se instalaram na nossa vida e que

começaram a fazer parte da rotina, como se sempre ali tivessem estado. Os teus

comprimidos para o colesterol, por exemplo. Parecia-me absolutamente normal

perguntar-te, todas as manhãs, se os tinhas tomado. E também os do coração. E

isso parecia algo tão grave. Foi o que pensei quando o médico tos receitou.

«Este é o comprimido para o coração.» Foi estranho pensar que o teu coração

precisasse de ajuda, tendo em conta a quantidade de vezes que eu adormecera a

ouvi-lo, com a cabeça apoiada no teu peito, e o amor que aí se tinha formado,

quarenta e cinco anos antes.

Quarenta e cinco anos, Gabriel.

Quarenta e cinco anos desde que te vi naquela rua, enquanto levava um pão

debaixo do braço. Desde aquela vez em que me seguiste até ao Mercado Central

e me convenceste a sair contigo. Desde que fomos à geladaria e ouvimos

«Cuéntame» e «Chica ye ye» sem imaginarmos que, mais tarde, se tornariam

cancões quase pré-históricas.

Quarenta e cinco anos. Toda uma vida juntos.


38

O dia em que te reformaste foi emocionante. Alguns alunos juntaram dinheiro

e ofereceram-te uma edição antiga de Um Conto de Natal, um livro de que

gostavas muito. Os teus colegas prepararam um lanche improvisado na escola e

penduraram balões no audi­


tório. Já trabalhavas ali há tanto tempo que

conhecias melhor cada canto daquele edifício do que da tua própria casa. Ou

melhor, de certo modo, também foi a tua casa, aquela para a qual ias todos os

dias e da qual regressavas com um sorriso de satisfação.

Compareceram também alguns antigos alunos que se quiseram despedir de ti

uma última vez, alguns acompanhados até pelos próprios filhos, outros

contavam-te como tinha sido a sua vida depois de se formarem. A Sofía e o Raúl

também foram, com a Eva, orgulhosos por testemunharem o momento. Nesse

dia, fui eu quem se escondeu por detrás da máquina fotográfica, que

habitualmente tu levavas, e tentei captar cada instante, cada sorriso nostálgico

que esboçavas, cada olhar carinhoso.

Completaste uma etapa. E, pouco depois, eu fiz o mesmo.

— Que vamos fazer agora? — perguntei.

— Não sei. Podemos fazer o que quisermos.

Era uma manhã de quarta-feira e, após algumas semanas meio confusas com as

mudanças, decidimos sentar-nos e tomar o pequeno-almoço na sala a conversar

tranquilamente sobre o assunto. Olhámo-nos de soslaio e sorrimos. Era como

voltar atrás no tempo, àquela época em que não tínhamos responsabilidades,

nem um emprego para onde ir todos os dias. Mas também fazia com que nos

sentíssemos ligeiramente perdidos entre tantas novidades. Que faríamos com

tanto tempo livre?

— Podíamos voltar a comprar uma casa no campo?

— Tem toda a lógica, sim — respondeste com ironia.

— Não olhes assim para mim, agora eu teria tempo de sobra para dedicar às

plantas. Teríamos o melhor jardim do bairro. Até podias fazer umas sessões de

fotografia lá.

Mexeste o café e ergueste uma sobrancelha, divertido.

— Desde quando é que te interessas por jardinagem?

— Nunca é tarde para novos passatempos. Talvez até pudesse fazer mel

artesanal, será que é muito difícil cuidar de abelhas?… — Suspirei. — Esquece.


Estou a ficar maluca.

— Não me parece que voltar atrás seja um bom plano.

— Está bem. Então, um apartamento na praia.

— E que fazemos no inverno?

— Não sei, Gabriel. Que fazem as pessoas quando se reformam?

— Jogam petanca. Ou inscrevem-se nalgum curso de croché.

— Só a deixar de troçar é que não se aprende com a idade, está provado.

Riste-te e, depois, inspiraste fundo e olhaste-me, pensativo. Naquelas

semanas, tinhas roído as unhas, talvez por te sentires inseguro naquela nova

etapa.

— Podíamos viajar.

— Para onde?

— Não sei, por aí. Pelo mundo inteiro. O Pablo já esteve num monte de

sítios, pedíamos-lhe que nos recomendasse algum. E cada dia seria uma

aventura.

Hesitei, mas reconheço que a ideia era tentadora.

Só tínhamos ido ao estrangeiro para visitar o nosso filho, o que cada vez

acontecia com mais frequência. Contudo, nunca tínhamos viajado sozinhos pelo

mero prazer de viajar. A nossa geração vivera com um conceito diferente da

palavra «férias», uma coisa que consistia mais em ir à terra no verão ou em

arrendar um apartamento. Considerar aquela hipótese pareceu-me interessante.

— Admito que não me parece nada mal.

— É melhor do que tornarmo-nos apicultores.

— Ligeiramente. Mas tenho medo.

Inclinaste-te e seguraste-me nas mãos, aconchegando-as entre as tuas. Fixei o

olhar no teu rosto. Como mudámos com os anos, Gabriel; porém, eu continuava

a achar-te atraente, com a pele enrugada e os olhos mais opacos. De certo modo,

a tua imagem representava uma vida inteira diante de mim, cheia de momentos

doces, amargos e temperados. Todos me pareciam igualmente necessários para

sermos quem éramos naquele momento.

— Sei que, ultimamente, andas preocupada comigo e com as tolices que os

médicos dizem. Não digo que estejam errados, mas eu estou a cuidar de mim,

está bem? Pelo menos, estou a tentar. E, sejamos objetivos, meu amor, havemos

de morrer de alguma coisa.

— Não digas isso, Gabriel, nem te atrevas…


— Mas não vai ser agora. Não somos assim tão velhos. O que quero dizer com

isto é que temos de aproveitar os anos que nos restam. Viver, Valentina.

Devíamos gastar uma boa parte das nossas poupanças a fazer o que nos apetecer.

Queres comprar uma joia? Pois compra. Queres nadar com tubarões? Força!

Jantar num daqueles restaurantes finos com cinco garfos? Muito bem!

Porque não?

— Enlouqueceste? — Desatei a rir.

— Não, estou a falar muito a sério, querida. Este é o momento. O Pablo está

longe e está bem, é feliz. A Sofía tem trinta e sete anos, é uma mulher adulta e

sei que achas que ela ainda precisa de nós a toda a hora, que tens de lhe dar

conselhos sobre cada passo que dá na empresa, e sei que, às vezes, ainda nos

pede ajuda com a Eva, mas dá-lhe espaço, deixa que seja ela a vir ter connosco.

Eles têm de viver as suas vidas. E nós devíamos seguir em frente.

— Eu sei… E parece-me bem, a sério que sim…

— Também sei que tens medo de que algo de mal aconteça, mas sabes? Podia

acontecer o mesmo a duas ruas daqui ou no outro lado do mundo. Não sabemos

quando nem como, a única certeza que temos é que agora estamos eu e tu, tal

como começámos, só nós os dois.

— Tens razão. — Limpaste-me as lágrimas.

— Fecha os olhos. — Fi-lo. — Pensa num sítio.

— Paris — sussurrei no momento em que as imagens que vira no cinema

durante anos surgiram na minha cabeça: as ruas empedradas, a Catedral de

Notre-Dame, os telhados cinzentos dos edifícios, o céu cinzento sobre a Torre

Eiffel…

— Já temos um primeiro destino. Paris.

Um par de semanas depois, fizemos as malas. Lembro-me dos nervos que senti

antes de entrar no avião. Vê lá, que disparate. Tínhamos visitado o Pablo várias

vezes ao longo dos últimos anos, mas, naquela ocasião, era diferente. Não estaria

ninguém à nossa espera no aeroporto para nos levar num tour pela cidade. E eu

sentia-me como uma miúda prestes a fazer uma travessura. Quando apertámos

os cintos de segurança do avião e te disse isso ao ouvido, desataste a rir.

Olhaste-me. Eu estava do lado da janela.

— Para mim, às vezes, continuas a sê-lo.

— Continuo a ser o quê? — Franzi o sobrolho.

— Uma miúda. A mais bonita do mundo.


— Fala baixo. Se alguém te ouve, vai pensar que és maluco e chamam a

segurança.

— Podem pensar o que quiserem. — Levantaste uma mão e pousaste-a na

minha face. Nesse momento, anunciaram que o avião descolaria em breve e,

como sempre, entrelacei os meus dedos nos teus, porque tinha mais medo de

voar do que daquela ideia louca de nadar com tubarões. — Tem calma. Respira

fundo — sussurraste-me ao ouvido.

E, depois, voámos em direção àqueles dias que foram nossos.

Percorremos Paris. Perdemo-nos nas suas ruas, jantámos num restaurante

caro, sendo que nunca nos havíamos dado àquele luxo, e tomei um banho de

espuma na banheira do hotel enquanto tu me lias um romance sentado na

cadeira que havia em frente.

Ao sair do banho, pedi-te que me passasses a toalha. Em vez de ma dares,

afastaste-a no momento em que eu estava prestes a tocar-lhe com os dedos.

Olhei para ti, irritada.

— O que queres?

— Sai antes de pegares na toalha.

— Não quero. Assim, não.

— Agora tens vergonha de que olhe para ti? Vá lá, há muito tempo que não

me deixas olhar para ti, parece que te escondes de propósito. — Olhaste para

mim com impaciência. — A sério, Valentina? Conheço melhor o teu corpo do

que o meu, não me faças rir. Vá lá, anda.

Saí da banheira ainda insegura. Ajudaste-me, segurando-me no braço e,

quando estaquei, nua, diante de ti, tapaste-me com a toalha e secaste-me

vagarosamente, com ternura, a sorrir. Não sei o que esperava daquele momento,

mas foi íntimo e… diferente. Sabes? Pensamos que, a partir de certa altura da

vida, já não há nada de novo, mas não é verdade. Nunca tínhamos vivido nada

como aquele instante, por exemplo. Nunca me tinha sentido envergonhada

diante de ti, e o sentimento dissipou-se à medida que as tuas mãos deslizavam

pelo meu corpo despido, enrugado e flácido. Aquela que eu era, na altura. E

deu-me vontade de chorar, não de tristeza, mas de amor, porque me fizeste

recordar o quanto te amava e, principalmente, porque te amava. Tal como

pensei, num dia muito longínquo, eras o melhor homem que eu alguma vez

conhecera. O mais generoso. O mais corajoso.

Quando eu já estava seca, vestiste-me o roupão e, em seguida, passámos a


noite inteira na cama a conversar sobre as nossas coisas, os planos que tínhamos

e as cidades que visitaríamos, sobre o presente que compraríamos para a Eva

pelo seu aniversário e os livros que queríamos ler a seguir. Comi todos os

bombons que havia no minibar sem pensar no preço ou se engordariam, e tu

roubaste-me um beijo com sabor a chocolate com laranja antes de me dares as

boas-noites e de me abraçares naquele quarto de Paris.


39

Começámos pela Europa. Percebi, então, por que razão as pessoas gostam tanto

de viajar. É fácil. Não se trata apenas de conhecer outros lugares, trata-se,

também, de nos conhecermos a nós próprios. Porque a novidade de estar num

sítio diferente obriga-nos também a viver nesse momento presente, a aguçar

todos os sentidos, a «estar», é tão simples quanto isso. Quando atravessamos

uma rua nova ou visitamos um monumento que ansiámos conhecer, não nos

perdemos no nosso próprio mundo nem em recordações, não pensamos nos

problemas, nem seguimos com aquele peso das preocupações que costumamos

carregar no dia a dia, quando vamos, qual autómatos, do trabalho para casa, de

casa para o ginásio, do ginásio para o supermercado.

É diferente. É intenso. E torna-se viciante.

Amesterdão, Edimburgo, Dublin, Bruges, Praga, Lisboa e Copenhaga. Acho

que, à medida que percorríamos aquelas cidades, começaste a compreender

melhor o teu filho. Assim mo disseste num dia em que passeávamos por

Veneza, à noite, de mãos dadas. Disseste-lhe isso mesmo quando, no dia

seguinte, lhe ligaste, e comentaste comigo que esse pormenor o emocionou

tanto que, como sempre acontecia no que tocava a sentimentos, o Pablo não

soube como te responder e mudou de assunto, contando-te que a Amber

arranjara outro emprego em que lhe pagavam bem melhor do que no anterior.

Achaste engraçado. É o que acontece quando conhecemos as pessoas e sabemos

o que podemos e o que não podemos esperar delas. De certo modo, os defeitos

perdem força e as pequenas manias de cada pessoa transformam-se naquilo que

a diferencia das outras, o que fazia com que o Pablo fosse único, por exemplo,

com os seus defeitos e as suas virtudes, com as suas luzes e as suas sombras.

Quando explicámos à Sofía que queríamos alargar horizontes e percorrer o

mundo, ela começou a ficar nervosa. Creio que foi esse o momento em que me

apercebi de que a minha pequenina, a nossa filha, já era mãe em todos os

sentidos. Aquela preocupação por tudo e por nada, aquele impulso de querer

abarcar mais e mais, a maturidade das suas ideias e a tensão que se lhe instalava

nos ombros eram coisas que eu própria vivera na pele, anos antes.

Soubeste captar os sinais e foste conversar um pouco com o Raúl na cozinha

para nos deixares a sós. Apoiei uma mão na sua perna e olhei-a antes de tomar

fôlego.
— Tenta descontrair, Sofía. Escuta o que te digo.

— Eu estou bem, só me preocupo convosco.

— Sim, eu sei. E também sei como te sentes porque já passei por isso, e,

muitos anos depois, apercebi-me de que talvez pudesse ter feito as coisas de

outro modo. Sabes o que o teu avô me estava sempre a dizer? Vais rir-te. Dizia:

«Sempre com pressa, Valentina.» E tinha toda a razão do mundo. Eu devia ter

abrandado mais cedo.

— Tu, com pressa? — Ela pestanejou, admirada.

— Houve uma época em que sim, Sofía.

— É que eu sinto que… — Levou uma mão ao peito e vi como ela se

esforçava por conter as lágrimas. — Sinto que tenho sempre alguma coisa para

fazer. Sempre, mamã. Desde que me levanto até que me deito. E gostava de

passar mais tempo com a Eva. Mas também não posso pedir mais ao Raúl,

porque ele está na mesma situação…

— Talvez devas delegar parte do teu trabalho a alguém.

— Sim, mas as pessoas não são muito profissionais… iam fazer tudo mal…

— Então, procura alguém que faça melhor.

— Talvez. — Respirou fundo, ainda com a angústia a pairar­-lhe nos olhos cor

de caramelo. Deu um estalido com a língua. — E, depois, são vocês.

— Que temos nós? O papá e eu não temos problemas.

— Tenho a sensação de que devia estar mais perto; sempre que vos vamos

visitar, fazemos tudo com pressa e a correr, há muito, muito tempo que não

partilhamos um momento tranquilo. E não gosto que andem sempre de um

lado para o outro porque, se acontece alguma coisa e eu não puder lá estar…

acho que não me conseguirei perdoar.

Abracei-a e fiz-lhe festas nas costas com todo o meu carinho.

— Algum dia irá acontecer, e não será responsabilidade tua.

— Não digas isso, mamã. Não digas, está bem?

— É assim que as coisas são. Nós estamos a viver uma época fascinante

juntos, a viajar e a desfrutar dos prazeres da vida após muitos anos de trabalho.

E tu deves organizar as tuas prioridades antes que seja tarde. As crianças

crescem muito depressa, Sofía, ainda ontem eras uma bebé minúscula nos meus

braços e o teu pai chorava ao pegar-te ao colo, a olhar para ti embasbacado. A

vida são dois dias. Digamos que todos temos uma corda presa ao corpo cheia de

responsabilidades e pressões que põem sobre nós, é mesmo assim, mas assegura-
te de que o nó não está demasiado apertado. O trabalho é uma parte importante

da vida, fundamental, mas não deixes que te tire tudo o resto.

— Estou a fazer tudo mal, mamã.

— Não digas isso. És maravilhosamente imperfeita, como devem ser todas as

mulheres. Trabalhas muito, sempre foste muitíssimo inteligente, tens objetivos

elevados e uma família adorável. Cuida de tudo isso. Não serve de nada ter um

vinho de reserva se não o bebermos.

A Sofía assentiu e depois apoiou a cabeça no meu ombro, como quando era

pequenina e conversávamos acerca do nosso dia, no trabalho e na escola: eu

falava-lhe do conteúdo de algumas cartas que as leitoras me enviavam e ela

partilhava episódios sobre as suas amigas. Portanto, ali, enquanto saboreávamos

um chocolate quente, contei-lhe o último percurso literário que tínhamos feito,

de Crime e Castigo e d’Os Irmãos Karamázov, em São Petersburgo. Gostávamos de

ler os romances antes e durante a estadia em alguns lugares. A Divina Comédia,

em Florença, ou A Metamorfose, em Praga.

Quando nos despedimos, ela parecia mais apaziguada.

— Falaste com ela? — perguntaste no elevador.

— Sim. E, antes que ralhes comigo, aviso já que lhe dei alguns conselhos.

Mas não como sócia, nem como chefe, tinha de o fazer como mãe, percebes?

Hesitaste um segundo, antes de assentires.

— Agora, sim. Agora, percebo.


40

— Acho que as pessoas são como edifícios.

— Eu acho que isso é mais uma das tuas teorias doidas.

— Talvez. Mas está certa. Pensa lá, Valentina. Começamos por ser apenas um

pedaço de solo e, lentamente, vamos levantando paredes.

— E, depois, vem o teto — disse eu, entrando no teu jogo só porque me

divertia ouvir as coisas que às vezes te passavam pela cabeça, aquelas pequenas

loucuras.

— Exatamente. Vem o teto e uma ou outra planta, consoante os anos passam.

— Os arranha-céus são pessoas centenárias — assinalei.

— Concentra-te na teoria, Valentina. Somos edifícios, por isso, precisamos de

cimento sólido antes de podermos crescer. E, por vezes, há um pilar que está no

lugar errado desde o princípio, por exemplo, e faz com que tudo balance. Ou

que apareça humidade.

— Detesto humidade.

— Mas também há aqueles edifícios que têm uma fachada extraordinária e

que, por dentro, estão sujos e quase a cair. Ou o contrário, edifícios que, por

fora, não parecem nada de especial, mas que por dentro até têm um pátio

interior ou terraços de onde se pode ver o pôr do sol.

— E nós, somos o quê, Gabriel?

— Tu és um sótão, claro.

— E porquê?

— Porque sempre estiveste mais acima, embora não te desses conta. E,

quanto a mim, não sei, não me importaria de ser uma casa térrea desde que

fosse sólida, percebes? Daquelas que se construíam antigamente, com as paredes

grossas para conservar o calor no inverno, e o frio no verão. Não dessas que se

fazem agora que mais parecem feitas de papel, como se fossem desabar a

qualquer momento.

— Sim, Gabriel. Tu serias uma dessas casas.

— Fico aliviado por sabê-lo — respondeste.

— Terias uma fachada de pedra.

— Acho que nos estamos a desviar da conversa.

— Tu é que começaste — repliquei, a rir.

— E tu não tens tempo para me acompanhar.


Os nossos olhares envolveram-se. Sorrimos um para o outro.
41

— Não percebo o que está a acontecer. Estás a deixar-me nervosa. — Olhei para

a Sofía, desviei rapidamente o olhar para a Amber e, finalmente, olhei para a

Eva. — Diz-me tu, minha querida.

— Não posso, avó! É segredo! — Levou os dedos aos lábios.

Revirei os olhos enquanto elas se riam, entusiasmadas.

— Anda, mamã, veste o vestido, senão vamos atrasar-nos.

Sacudi a cabeça, desconfortável, porque, evidentemente, a Sofía sabia que eu

detestava surpresas. Creio que acabei por obedecer só porque a Amber ali estava

— tinha vindo com o Pablo visitar-nos, sem sequer avisarem — e era uma

rapariga demasiado doce para que eu fizesse uma cena. De modo que vesti o

vestido azul-marinho de corte direito que eles me tinham oferecido juntamente

com uns brincos.

Depois, receosa, cruzei os braços.

— Pronto. Estás contente? — disse.

— Sim, muito. — A Sofía sorriu.

— Agora, tens de te virar, avó.

Mais uma vez, fiz o que me pediam. Taparam-me os olhos com um pano e

senti a pequena mão da Eva a segurar na minha para me guiar pelo elevador e

me ajudar a entrar no carro. Perguntei se aquilo era mesmo necessário, ao que

todas responderam que sim, claro. Obviamente que eu tinha as minhas dúvidas.

Além disso, não estavas ali, apesar de eu achar que estarias com o Pablo ou com

o Raúl. Durante o trajeto de carro, senti-me um pouco enjoada, mas, tendo em

conta o entusiasmo da tua neta, evitei protestar ou tentar tirar a venda.

Não sei quanto tempo durou o trajeto, mas, quando saí do carro, adivinhei

que estávamos na praia porque a brisa marinha era inconfundível, mesmo com a

minha perda de olfato. A Amber segurou-me no braço enquanto avançávamos e

estive quase a tropeçar duas vezes antes de chegarmos ao final do percurso e de

me tirarem a venda.

Tu estavas ali, com a barba feita e a usar camisa.

— Também te sequestraram? — perguntaste.

— Sem a opção de pedir uma recompensa, sim. — Olhei para o Pablo, que se

ria a bom rir ao teu lado. — O que estamos aqui a fazer? — Quando

subitamente me apercebi, sustive a respiração. — Não me digas que nos


esquecemos…

— Do nosso aniversário — continuaste tu.

Não era o primeiro ano em que isso nos acontecia. Nunca fomos um desses

casais que celebram as datas especiais, nós éramos mais do dia a dia.

— Este é especial, mamã e papá. Cinquenta anos.

Olhei, incrédula, para a Sofía. Em seguida, ergui o olhar para ti, que sorriste

vagarosamente.

Cinquenta. Meio século ao teu lado. As pernas tremeram-me quando a Sofía

começou a explicar que aquilo era como celebrar umas bodas de ouro

improvisadas e sem nenhuma certidão oficial, claro. A Amber apressou-se a dar-

me o ramo de flores que tinha na mão e eu beijei-a na face antes de me colocar à

tua frente, a alguns metros de distância. O Raúl encarregou-se da música, num

daqueles aparelhos de reprodução de música que se podiam levar para qualquer

lado, e começou imediatamente a ouvir-se «Forever and ever», de Demis

Roussos. Enquanto caminhava até ti, comecei a chorar e a rir, tudo ao mesmo

tempo, como se estivesse louca. Talvez estivesse, de facto, pois não era capaz de

afastar os meus olhos dos teus. A Eva estava ao teu lado e, ao posicionarmo-nos

frente a frente, ocupou-se da cerimónia e leu uma carta sobre nós os dois e sobre

o amor, que ela escrevera sozinha. De facto, notava-se, já que não fazia muito

sentido, mas que importância tinha isso? Eu só conseguia olhar para ti, sorrir e

chorar. E foi perfeito. Aquele dia inteiro. Tudo.

Mais tarde, almoçámos no restaurante que havia em frente à praia, no passeio

marítimo. As gaivotas sobrevoavam o céu azul do meio-dia. Tu estavas

esfuziante, pleno de felicidade, enquanto olhavas para os teus filhos e presidias

àquela paelha de marisco gigante que nos serviram. Quando estávamos a

terminar e os outros comiam a sobremesa, deste-me a mão debaixo da mesa.

E esse gesto bastou para que me sentisse em casa. Tu eras o meu lar. Sempre

foste, Gabriel. Sentia-me afortunada por te ter conhecido.

Nessa noite, quando entrámos no quarto, olhei para ti, satisfeita, enquanto

desenhavas outra estrela. Sentei-me na cama, já com o pijama vestido, e levantei

o olhar para aquelas constelações maravilhosas que representavam cada passo,

cada queda e cada vez que nos havíamos voltado a levantar. Era a obra da nossa

vida. Pontos e linhas ligados uns aos outros, uma pequena galáxia que só nós

compreendíamos.

Aproximaste-te de mim e deste-me um abraço caloroso.


— Porque estás a chorar, Valentina?

— Tivemos uma boa vida.

— A melhor. Sabes porque sei isso?

— Porquê? — Olhei-te, trémula.

— Porque, se voltasse atrás, não mudaria nada. Olho para as nossas

constelações agora e voltaria a viver uma por uma, todas estas estrelas, tanto as

más quanto as boas.

— Passou demasiado depressa, Gabriel.

— Eu sei. Tens razão. A vida deveria durar o dobro do tempo.

— Ao teu lado, o triplo.

— O quádruplo.

Rimo-nos já metidos na cama. Nessa noite, a noite em que comemorávamos

cinquenta anos juntos, procurei o calor do teu corpo debaixo dos cobertores e

aconcheguei-me junto a ti. O teu peito continuava a parecer-me sólido por

baixo da minha face flácida e enrugada, as tuas mãos continuavam a encaixar

nas minhas quando entrelaçávamos os nossos dedos, e o pulsar do teu coração

continuava a ser a melodia mais maravilhosa que eu alguma vez ouvira…

Os teus lábios roçaram em mim ao sussurrarem:

— Minha linda e doce Valentina…

— Nunca me deixes, Gabriel.

— Nunca — disseste junto ao meu cabelo.


Um amanhecer de inverno

Aconteceu numa qualquer manhã de inverno. Não sei se era terça, se era quinta

ou segunda-feira. Mas sei que, quando me virei na cama e te vi deitado ao meu

lado, senti um aperto no peito. Porque tu levantavas-te cedo, Gabriel, antes do

nascer do sol. E, naquele dia, a luz estendia-se até chegar à colcha e as partículas

de pó pairavam, lânguidas, por baixo da janela fechada. Não se ouvia nada;

porém, há silêncios ensurdecedores, silêncios piores do que um grito

angustiante. E, naquele instante, percebi. Simplesmente, percebi. Senti-o no

peito, na garganta, na barriga, na alma. Fiquei sem ar. Chamei-te, mas não

respondeste. Abanei-te, mas não te mexeste. Gritei-te que não me fizesses

aquilo, mas, nessa vez, não me tranquilizaste, não me limpaste as lágrimas nem

me asseguraste de que tudo ficaria bem. Nessa vez, deixaste-me sozinha. Nessa

vez, deixámos de ser «tu e eu», e, quando me apercebi disso, só me consegui

agarrar com força ao teu corpo frio antes de sussurrar o teu nome: apenas um

gemido sufocado seguido de um soluço desfeito pela dor paralisante.


O rapaz que desenhava constelações

Sempre achei surpreendente o facto de a morte parecer ser tão natural e

inevitável quando acontece aos outros e está longe de nós. Ouvem-se coisas

como «é a lei da vida», «calha-nos a todos», ou «pelo menos, partiu sem

sofrer». Nada disto serve quando a pessoa que partiu é a que amamos com todas

as nossas forças. De nada serve quando quem partiu foste tu, Gabriel. Não me

parece que seja a lei da vida, e não me sinto aliviada pela falta de sofrimento

porque não consigo deixar de pensar que devias estar aqui. Devias. Os meus

dedos tinham de estar entre os teus, e tu dar-me-ias um apertão para me aliviar

a dor, para me puxares e tirares daqui, convencendo­-me a escapulir-me ao teu

funeral. E, então, começaríamos a correr. Como quando conseguíamos fazê-lo

sem ficarmos sem fôlego, quando te rias com um cigarro pendurado nos lábios e

te achavas o rei do mundo, o do sorriso mais bonito, o que colecionava vinis e

que dançava comigo na sala, em casa, com quem partilhei os bons e os maus

momentos, o que me deu asas a mim e aos meus filhos, o que pedia «desculpa»

ainda antes de saber porque o fazia, o que me ensinou a ler, a crescer e a viver,

o que me olhava como se eu fosse a rapariga mais especial e única…

Gabriel, é difícil encontrar alguém como tu neste mundo, uma pessoa que nos

acrescenta sempre algo, uma pessoa que traz luz e afasta as sombras, uma pessoa

que dá sem esperar receber nada em troca. Por isso, só consigo pensar que não é

justo. Não devia ter sido assim. Eu não devia estar aqui, sem ti ao meu lado.

Não consigo ouvir nada. Também não consigo abrir os olhos, que estão

inchados. Nunca tinha sentido uma tristeza tão profunda, uma dor tão feroz,

como se me tivessem arrancado uma parte do corpo pela raiz e a ferida estivesse

com pus.

Partiste, Gabriel. Foste-te embora sem te despedires.

E eu não estava preparada. Na verdade, jamais o estaria. Esta pressão no peito

que me aflige e me entorpece as mãos parece crescer quando tudo chega ao fim

e as pessoas se afastam até que os pêsames se transformam num murmúrio.

O Pablo, que apanhou o primeiro avião, abraça-me com força e soluça. Mal

consigo consolá-lo. Mal consigo levantar os braços para lhe envolver as costas

porque estou destroçada, e agora compreendo que os pedaços que faltam

levaste-os tu contigo e já nada voltará a ser como dantes. Diferente, talvez, sim.

Mas não como dantes. Quando tomo consciência disto, quando escuto a tua voz
como que a sussurrar-me ao ouvido, sinto-me ligeiramente mais forte e consigo

olhar o teu filho nos olhos e limpar-lhe as lágrimas com os polegares, como tu

fizeste comigo vezes sem conta, embora as mãos me tremam tanto que não me

permitam fazê-lo como deve ser.

Depois, vou ter com a Sofía. Tento tranquilizá-la. Tento pensar que seria o

que tu quererias, porque ela era a menina dos teus olhos, a tua pequenina. Sei

que detestarias vê-la assim. Partir-te-ia o coração. Choramos juntas até que o

funeral acaba e o céu escurece. Ela insiste uma e outra vez que eu vá dormir a

sua casa esta noite, e eu digo-lhe que não. Talvez lhe seja difícil compreender,

mas, nesta noite, preciso de estar na nossa cama porque é o lugar em que, neste

momento, posso estar mais perto de ti, porque, tal como previra, quando me

deito e apoio a cabeça na almofada, apercebo-me de que esta ainda tem o teu

cheiro e deixo escapar um soluço aflitivo ao fitar a tua mesa de cabeceira, o livro

que deixaste a meio e os óculos junto a um colar de macarrão que a Eva te

ofereceu, há algumas semanas.

Penso em ti. Tento recordar todos os momentos mágicos que vivemos juntos.

A nossa primeira noite naquele apartamento, em que fizemos amor. As partes

menos boas do caminho. O bebé que perdemos. A viagem ao parque de

campismo nesse verão. A Sofía. A escapadela a Madrid. O meu primeiro

emprego. O Pablo. A doce década de 1980. Nós os dois a afastarmo-nos. E nós

os dois a aproximarmo­
-nos. Os problemas que fomos superando. As viagens.

Os risos. Os olhares. A cumplicidade. A confiança. A intimidade. O amor,

Gabriel: o amor.

As recordações emaranham-se na minha cabeça e agitam-se com força. Sei o

que tenho de fazer, sei-o perfeitamente, mas demoro uma eternidade a inclinar-

me para abrir a gaveta da cómoda. Depois, endireito-me ligeiramente,

agarrando-me à cabeceira, e atrevo-me, enfim, a contemplar a nossa parede, a

das constelações, a da vida que vivemos juntos. Deste-me muitas coisas que se

tornaram só minhas, mas não aquelas estrelas. As estrelas eram nossas. E, hoje,

já não são. Acaba aqui o trajeto. Acaba aqui o «tu e eu», Gabriel. Sabíamos que

um dos dois suportaria o peso de completar a última constelação, mas jamais

imaginei que seria tão difícil, porque uma coisa é pensar nisso e outra é vivê-lo,

tentar enquadrar a parede desfocada pela vista turva devido às lágrimas, unir os

pontos e compreender que grande parte de todas aquelas memórias se tornarão

poeira quando eu me juntar a ti.


Ao acordar, horas mais tarde, o sol de inverno acaricia-me.

Só quero passar o dia na cama a contemplar a luz que entra pela janela. Ou a

vida que me resta, não sei. Contudo, levantar-me não parece ser opção. Até que

penso em ti. Nas tuas palavras. Na maneira como sempre puxaste por mim, me

encorajaste a ser mais e melhor, e percebo que ficar ali com o nariz enfiado na

tua almofada não te deixaria orgulhoso de mim. Nem me sinto plena­mente

consciente ao pôr-me de pé, devagar. Estou um pouco nauseada, mas consigo

avançar, ir até à cozinha e preparar um café. Uso a cafeteira grande e só depois,

quando sirvo a minha chávena, penso que a partir de agora terei de usar a

pequena.

Depois, com o café na mão, entro naquele quarto que ambos transformámos

em escritório. Continua tudo igual, e isso parece-me fascinante e aterrador, ao

mesmo tempo. Como é possível que nada tenha mudado de sítio e, ainda assim,

me pareça ser outro lugar? Penso nisso enquanto contemplo a tua biblioteca

antes de ligar o computador. Em seguida, sento-me à sua frente, reprimindo um

soluço que me atravessa e se apodera de mim durante alguns minutos.

Deslizo suavemente os dedos pelo teclado.

Penso em ti. Quando sereno, abro um novo documento, que será só meu e no

qual preciso de verter esta confusão de dor, amor, raiva, ternura e uma enorme

réstia de sentimentos presos neste corpo que já não é capaz de os conter.

Não hesito ao escolher um título e sorrio, melancólica, ao pensar que talvez

para as outras pessoas fosses um homem de setenta anos com o cabelo grisalho e

as faces repletas de rugas, mas, para mim, sempre foste o rapaz que desenhava

constelações.

E, então, começo a teclar. Faço-o lentamente.

«Lembro-me da primeira vez em que te vi como se fosse hoje.

»Tive a sensação de que um fio invisível me obrigava a manter os olhos fixos

em ti. Inquieta, caminhei mais depressa enquanto abraçava o saco de croché

onde levava um cacete ainda quente.»

Releio, devagar, o que escrevi, saboreando o momento.

E sorrio ao sentir-te, novamente, perto de mim.

Abraço todas as nossas memórias.

Porque este será o meu «até já».


AGRADECIMENTOS

Este projeto estava, há muito tempo, à espera do seu momento, mas, um dia, as

personagens começaram a sussurrar-me a sua história com mais insistência e já

não consegui parar até o terminar. E tudo isso graças aos meus avós. Também

aos meus pais. E à minha sogra. Todos me ajudaram a documentar-me,

oferecendo-me as suas próprias memórias para que as combinasse com as

minhas: a oficina de estofos, a porta número dezasseis no terceiro andar, os

gelados de menta, os livros, os dias de praia, os vinis, os caramelos de nata e os

verões no campo. Foi reconfortante entrelaçar esta história mais íntima e plena

de nostalgia. Obrigada por me ensinarem tanto.

A Valentina e o Gabriel surgiram num momento em que precisava de escrever

e estava um pouco desligada do mundo. Portanto, dediquei-me a eles como se

nada mais existisse, e as palavras fluíram, uma a seguir à outra, enquanto

partilhava essa etapa com a Dani, e com a Neïra, a Saray e a Abril. Agradeço-

vos infinitamente por «estarem». Assim como a todas as pessoas com quem

vivo o meu dia a dia, colegas e amigos, vocês sabem quem são.

Agora que este romance vai ver a luz do dia em livrarias, quero agradecer

especialmente o carinho e o apoio que os leitores sempre lhe dedicaram. O

passa­
-palavra conseguiu mantê-lo vivo até ao dia de hoje, que está prestes a

vestir-se de gala para embarcar numa nova aventura. Foi possível graças ao

Pablo, que o leu com todo o seu carinho, e às minhas editoras, que me

brindaram com esta oportunidade com que eu nunca sonhara.

Ao Leo, porque espero que, num dia longínquo, possas ler esta história que

contém tantas memórias de família. E ao J, sempre. Pensei muito na frase a

dedicar-te, aqui, mas sabia que seria uma do Gabriel. E a verdade é que, como

ele dizia: «as más recordações também fazem parte de quem nós somos», tu

sabe-lo bem. Sabes que possuem a sua beleza.

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