O Rapaz Que Desenhava Constelac - ALICE KELLEN - 240616 - 064920
O Rapaz Que Desenhava Constelac - ALICE KELLEN - 240616 - 064920
O Rapaz Que Desenhava Constelac - ALICE KELLEN - 240616 - 064920
a
1. edição, Lisboa, novembro, 2022
o
Depósito legal n. 504 961/22
EDITORIAL PRESENÇA
Queluz de Baixo
2730-132 Barcarena
info@presenca.pt
www.presenca.pt
CANÇÕES REFERIDAS NA OBRA
«Cuéntame» — Fórmula V
prólogo sobre o significado desta história para mim, não fazia a menor ideia do
que dizer. Fiquei em branco. Portanto, disse que ia pensar e optei por reler o
romance antes de tomar uma decisão. Quando cheguei ao fim, abri um novo
O Rapaz Que Desenhava Constelações continua a ser o meu romance mais pessoal
e também aquele que mais alegrias me tem proporcionado. Não só pela emoção
ao receber mensagens cheias de magia durante estes anos — netas que o leem às
suas avós e mães e filhas, partilhando um mesmo livro —, mas também porque
nunca esperei nada desta história, que, afinal, tornaram vossa. E isso tem uma
mais difíceis da minha vida; agora, tudo isso ficou para trás e tornou-me mais
seguro.
Embora os meus avós nada tivessem que ver com a razão da minha tristeza,
pensei muito neles. Talvez por sempre o ter feito, na realidade. Tive a sorte de
passar longas temporadas junto deles quando era pequena. Com ele, que
brincava comigo como um miúdo (por talvez ainda o ser um pouco), que me
pegava no carro para ir comprar o meu gelado de menta preferido. E com ela,
que ainda está ao meu lado e cujos braços sempre foram um consolo e uma fonte
de carinho para mim, aqueles que agora envolvem o seu bisneto sempre que a
revelassem a verdade, qualquer pessoa diria que o tempo parou quando a ouço a
Os meus avós viveram toda a sua vida no edifício que é retratado nesta
terceiro andar, na porta número dezasseis. Até que, quando ele morreu, ela
passávamos dias de sol com sabor a verão em Cullera. Mas ela nunca deixou de
limpar casas. E ele trabalhou durante muitos anos numa oficina de estofos. Por
isso, agarrei na história deles e perguntei-me como poderia ter sido se ela tivesse
tido asas e ele, mais possibilidades. Eis, então, que eles apareceram: Gabriel e
Valentina, quem sabe demasiado perfeitos um para o outro, mas, quando nos
idealizar? Estas poderiam ter sido as vidas dos meus avós. Ou dos meus pais.
seres humanos têm vidas parecidas e que todos ansiamos por coisas similares,
apesar das diferenças que nos distinguem. Curioso, não é? Tanta procura
Será, talvez, por isso que gostamos tanto de livros: por permanecerem
onde levava um cacete ainda quente. Depois de passar por ti, respirei fundo,
mas o meu pulso continuava acelerado. Não percebi o que despertou aquilo.
Evidentemente, tu, é claro. Mas disse a mim própria que tinha de haver outra
caminhando ao meu lado. Vi-te atirar o cigarro para o chão antes de meteres as
mãos nos bolsos. — Vives longe daqui? — Mais silêncio. — O gato comeu-te a
língua?
apercebi, estava embasbacada a olhar para ti. E, por isso, fui contra aquela
senhora mal-humorada.
menina! Estes jovens de hoje em dia nem sabem andar pelo passeio.
eram escuros como uma noite sem estrelas, mas intensos, abrasadores.
melhor.
— Chamo-me Gabriel.
— Mas…
e tu ficaste a olhá-lo, como todos nós fazíamos sempre que víamos um carro
que conheço e tu ficas aqui à minha espera. Quando eu voltar, dizes-me como te
chamas.
Estava tão desconcertada que a voz não me saiu, mas assenti e ali fiquei até te
perder de vista. Provavelmente, não sabias que eu não estava habituada a falar
com homens como tu, porque, apesar de aparentares ter pouco mais de vinte
anos, tinhas uns traços duros e marcados, e uma segurança que me custava
encarar.
Mas esperei por ti. Não sei durante quanto tempo, talvez cinco ou dez
atrasasse. Pensei que aquele pequeno risco valeria a pena. Parecia um disparate,
mas, durante vários meses, foste o contratempo mais inesperado da minha vida.
Tinha uma rotina tão bem definida que raramente me deparava com
imprevistos.
Levantava-me cedo, antes do nascer do sol. Comia pão com marmelada caseira
A seguir, ia para a casa dos Gómez e levava o filho deles à escola. Por sorte, o
Marcos era um menino encantador e com uma personalidade serena, nada que
ver com a sua mãe. Durante o resto da manhã, limpava aquela casa enorme,
Marcos. Duas vezes por semana, frequentava aulas para adultos, ao final da
voltaste a sorrir-me antes de levantares o saco de papel com o cacete. Com a tua
sentia os dedos como que entorpecidos, e não era do frio. Negaste com a cabeça
— Mas… devia…
— Muito obrigada.
Como não sabia que mais dizer ou fazer, dei meia-volta, como uma tonta, e
fundo, dando um passo para mim, e eu senti que o ar em redor ficava carregado
— Valentina.
— Gosto. Valentina…
Nos teus lábios, soou de maneira diferente. Como guizos a abanar. Ou mel a
derramar. Jamais houve alguém que pronunciasse o meu nome como tu o fazias,
que me batia o coração. Enquanto servia o guisado de carne com ervilhas do dia
nos pratos e cortava o cacete em fatias, recordei os teus olhos negros, cada gesto
Estava tão absorta que quase tropecei ao entrar na sala, mas, no último
Gómez. Fiz uma segunda viagem para servir a senhora e levar o jarro com o
sumo de laranja e o pão. Depois, sentei-me na mesa que havia na cozinha e comi
Pensei que me ia despedir. Pensei que me diria que não voltasse no dia seguinte
altura em que não nos sobrava nem uma peseta, e o meu pai era um homem
Ali estavas tu, de novo, apoiado na mesma parede daquele edifício onde te vira
pela primeira vez, no dia anterior. Desta vez, estavas sozinho e também tinhas
abaixo.
impressão minha, que queria ver-te assim, porque lembro-me de pensar que
nunca conhecera um homem tão atraente como tu, com aquele ar rebelde. Não
garganta. Incapaz de aguentar o teu olhar, fixei-o no saco de lona que trazia no
braço. — Nem sequer te conheço. Não sei nada sobre ti. E não posso permitir-
me distra… distra…
— Distrações — ajudaste-me.
Ri-me, porque a situação era tão surreal que começou a parecer-me engraçada.
improvisados. Talvez fosse a determinação que encontrei nos teus olhos, ou, no
areia quente da praia na pele, se eras daqueles que cantavam em voz alta ou se,
explicar.
— Vivi e cresci numa aldeia até termos vindo embora, há uns anos. Quando
era pequena, não fui muito à escola, era muito longe e, além disso, tinha de
ajudar com os animais e nas tarefas diárias. Mas, quando nos mudámos para a
cidade, convenci o meu pai a deixar-me ter aulas à noite, depois do trabalho.
Sorri com timidez antes de afastar o olhar e de o fixar numa banca de fruta.
que havia naquela banca, ao lado das maçãs, tinham um aspeto magnífico.
pormenorizada para tudo, certo? Daquelas que nunca se atiram para o vazio sem
pensar. Está bem. Então, digo-te que quero sair contigo porque gosto de ti. E
antes que digas que não te conheço, vou adiantar-me e deixar-te claro que essa
Se ainda tens dúvidas sobre o que me fez reparar em ti no outro dia, quando te
vi na rua, bem, não sei, e isso é o melhor de tudo, a parte do icebergue que se
esconde debaixo de água, aquilo que não se consegue ver nem que esteja
debaixo do teu nariz. Não te consigo dar uma resposta que ainda não tenho, só
sei que adoro o teu olhar desconfiado, como pareces mastigar cada palavra antes
comigo…
A tua voz foi como um bálsamo e, por um segundo, permiti-me fantasiar com
a ideia de passar algumas horas ao teu lado sem estar naquele mercado cheio de
que me lembro melhor daquele dia: o desenho de uma meia-lua no teu rosto.
Falei de ti à minha mãe, mas não disse nada ao meu pai nem aos meus irmãos.
convenceu-me a enrolar as pestanas e a pôr blush nas faces. Apesar de, noutras
via pelo vestido que escolhi, o melhor que tinha, de cintura estreita, tecido
— Assim espero. Disse ao teu pai que ias sair com as tuas amigas, por isso,
Tinha combinado contigo na rua onde nos encontráramos pela primeira vez. Ao
virar a esquina, vi que já lá estavas, à minha espera. Pela primeira vez, também
parecias estar nervoso, e fiquei aliviada ao perceber que não era a única a sentir-
cidade.
— Não temos muito tempo, se tens de estar em casa daqui a uma hora e
meia, mas pensei que podíamos ir comer um gelado a um sítio que conheço. Ou
— Não, claro que não. Perguntei por curiosidade. — Sorri para ti.
Embrenhámo-nos por ruas mais estreitas. Nalgumas zonas, como naquela por
portas abertas para que as crianças pudessem reunir-se do lado de fora e assistir
dizer, Gabriel? Creio que, naquele instante, quando levantei o olhar e nos
apaixonaria por ti. Ou talvez tivesse sido antes, quando te vi pela primeira vez.
Ou dia após dia, consoante me ias demonstrando, com atos e certezas, que eras o
melhor homem que eu alguma vez conhecera.
as mãos debaixo da mesa, ainda nervosa. Não conseguia deixar de olhar para ti.
Mais tarde, cheguei a pensar que tinha havido ali feitiço. Que, naquele dia,
quando passei por ti naquela rua, alguém nos tinha lançado um fio invisível que
provares um pouco.
— É delicioso — sussurrei.
— É a melhor geladaria.
divertido. — Estava só… a olhar para a tua camisola. É como uma que o Paul
McCartney às vezes usa. — Tão negra como os teus olhos e de gola alta, já que,
— Porque também gosto de livros. E, para ser sincero, porque sei que o meu
especial.
— Sinto muito.
— Já foi há muito tempo. A questão é que o meu pai sofreu, mas, ainda
assim, continua a ser a pessoa mais incrível que conheço. E todos os dias me
Mas ele quer que eu faça mais, percebes? Por isso, vou acabar os estudos.
Prometi-lhe que o faria. Vou um pouco mais devagar do que os outros porque
O facto de falares tanto era algo que me fascinava em ti. Tinhas sempre algo a
dizer, havia sempre mais uma palavra a passear-se pela tua cabeça. Eu tentava
espaços vazios daquilo que ainda não sabemos podem encher-se de fantasias
e o deixou re
cuperar. Portanto, desde então, o Martínez sente-se em dívida para
com ele; embora, no fundo, se tenham tornado tão amigos que são como
seguro de ti mesmo que eras irresistível. Acho que não estavas ciente disso.
Com o passar do tempo, compreendi que não estamos cientes do poder atrativo
da juventude, apenas nos damos conta disso muitos anos depois, quando, ao
— Não, não é isso… — Houve qualquer coisa na tua expressão que me disse
— É egoísta, mas por vezes, entendo-o. Quer que eu trabalhe até me casar,
— Talvez por seres parte da revolução. Sabes o que isso significa, Valentina?
uma maneira de estar, de vestir, uma mudança social. Já alguma vez usaste
riste-te. — E já alguma vez foste a uma festa? — Voltei a negar, ainda sem
saber que abririas as frinchas do meu mundo para deixar a luz do sol entrar.
1
«Grises», no original (em português, «cinzentos»), era a denominação coloquial da polícia
Todos os dias, tentavas escapar-te da oficina à hora do almoço de modo que isso
coisas porque pensava que eram pouco interessantes em comparação com o que
tu dizias: aquela revolução sobre a qual adoravas fantasiar, aquela maneira que
esperança fascinava-me.
uma rapariga tão simples encaixaria na tua vida? Que poderia eu oferecer-te?
que me dizias. E não entendia o brilho que encontrava nos teus olhos quando
— Valentina, Valentina…
Seguraste-me pelo cotovelo e sustive a respiração. Rezei para que tivesses pena
de mim, porque sabia que nada conseguiria fazer ante aquele teu sorriso.
enigma. Que viste naquele momento, Gabriel? Que te fez insistir e não
desistir?
— E qual é o problema?
— Poderia dar-te a entender coisas que não sou.
me pelo cotovelo e não sei em que momento deste um passo para mim, mas,
adulações. Depois de alguns meses de diversão, acabavam sempre por lhes partir
o coração e casavam com alguma jovem do seu meio, daquelas que por vezes
— Não sabes, por isso, tu é que escolhes: podes arriscar ou viver a vida inteira
na dúvida do que poderia ter acontecido. Está nas tuas mãos. Só depende de ti.
Tomei fôlego. Tinhas razão, como sempre. Não havia bola de cristal alguma
pena dar um passo em frente e abandonar as grades através das quais via a
Enquanto caminhávamos até ali, contaste-me que a casa onde decorria a festa
era de um conhecido de uns amigos teus, mas, ao que parecia, a piada daquilo
era precisamente isso, podermo-nos reunir num sítio para dançar, comer e
dos restantes, e a olhar um para o outro por cima do copo. Quando tocou
música.
Deste-mo.
caligrafia cursiva e bonita era tua. Por instantes, invejei-te, porque a minha
— Claro. Trá-lo-ei sempre comigo, cada vez que te vir. E não só este. —
Deixaste o cigarro nos lábios e tiraste-me o livro das mãos. — Leremos mais.
Todos os que quiseres. Bastará umas poucas páginas por dia, quando nos
encontrarmos a caminho do mercado.
Engoli em seco, com as mãos no colo. Levantei o rosto para ti e ficaste calado,
mas os teus olhos desceram até pousarem nos meus lábios. Deitaste fora o
cigarro.
Desatei a rir-me, embora o coração me batesse tão depressa que pensei que tu
o escutarias. Mas depois, sob os nervos, franzi o sobrolho e fiquei séria. Não
compreendia como podias estar tão seguro. Também não compreendia porque
me afetavas tanto. Aquilo que sabia era que não sentiria o mesmo se o rapaz que
me pedisse para sair tivesse sido o meu vizinho da frente, aquele que o meu pai
sabia falar dos coelhos que conseguia caçar em cada fim de semana que ia ao
campo.
o teu nome deslizou pela minha pele como se tentasse permanecer gravado em
cada linha e em cada sinal, mas não o proferi em voz alta porque, naquele
sabia o que fazer com as mãos, não me conseguia mexer, mas sentia-me como
Cumpriste a tua palavra. Tentávamos ver-nos todos os dias, se não fosse quando
cada vez mais, e rapidamente começámos a avançar nas páginas daquele livro
para assistir a alguma sessão dupla de cinema, para dar as mãos e roubar beijos
hábito de nos sentarmos a ler ao ar livre; tu eras paciente e sabias ensinar muito
linha com a ponta do dedo, e, quando eu tinha dificuldade com alguma palavra,
Adorava o teu sorriso travesso e aqueles olhos que me faziam lembrar uma
noite cerrada e sem estrelas, o timbre profundo da tua voz e acariciar-te o cabelo
com os dedos quando passava a mão pela tua nuca: tinha-lo um pouco mais
quisesses gritar ao mundo que eras diferente. E, sim, se eras. Não eras nada
parecido com os meus irmãos, e muito menos com o meu pai. E a tua cabeça
teu lado.
nele, e ficou radiante por saber que estávamos a namorar. Ao contrário do meu,
que não se mostrou satisfeito quando lhe contámos, apesar de ter acabado por
aceitar a ideia com o tempo, e graças à insistência da minha mãe, que gostou
imediatamente de ti.
do teu pai, arranjou-te emprego a tempo parcial num colégio privado como
nos teus braços no meio da rua, uma vez que, entretanto, já deixara de ser tão
cautelosa e tímida.
costumavas roer as unhas, pelo que as tinhas rentes e nada bonitas, mas até
desse pormenor ridículo eu gostava. Tal como da tua maneira de me dar a mão,
sempre com aquela firmeza que me transmitia serenidade. Como naquele dia,
quando caminhávamos com um passo firme pela rua Jesús. Detiveste-te diante
no edifício. Tinha um pátio interior que dava para um jardim algo selvagem
entre dois edifícios adjacentes, e as escadas pelas quais subíamos eram estreitas e
Ele sacou de umas chaves, abriu a porta número dezasseis do terceiro andar e
grande pé-direito com bonitas sancas. Falou sem parar dos aspetos positivos do
Quando nos deixou a sós para que pudéssemos dar uma vista de olhos por nossa
pegaste-me na mão. Nunca te tinha visto tão nervoso, nem mesmo no dia em
que estive prestes a recusar voltar a sair contigo por recear que quisesses apenas
divertir-te.
— Preferes uma coisa diferente? Por mim, pode ser. Basta dizeres
-me
ser vendido rapidamente. Está numa zona boa e dá para duas ruas, a sala de
aquilo era uma loucura. Apesar disso, naquela noite sonhei que estávamos
naquele sítio, só que já não era tão luminoso; agora, albergava móveis em cada
abrir as janelas, portas que chiavam e o odor a café que tudo impregnava pela
Estávamos ambos imersos numa história fascinante, até que virei a página do
livro e li em voz alta o bilhetinho que encontrei, escrito por ti: «Casa comigo,
Valentina.» Não era uma pergunta. E isso fez-me sorrir antes de deixar o
romance cair ao chão e de te abraçar com força. Nenhum dos dois disse palavra.
escutar o piar dos pardais e o som dos ramos que se moviam com o vento. Foi
Casámos alguns meses depois. Há muitas coisas desse dia de que já não me
lembro: não sei o que comemos depois da curta cerimónia, nem se estava sol ou
Eu sentia
-me exultante e apaixonada. Tu parecias estar prestes a roer as unhas
ali mesmo. Quando me puseste a aliança, com as nossas iniciais gravadas por
Parece impossível que, após tantos anos, continue a saborear esta frase e a
sorrir pelo gosto doce que me fica nos lábios, como quando como uma colher de
caramelo quente.
Admito que estava um pouco assustada. Quem não estaria, quando se tratava
de uma coisa de que ninguém falava? A minha mãe não me dera conselho
ideias que nos haviam incutido eram ridículas. Com o tempo, fui conhecendo
noite, quando chegámos àquela casa vazia que, para mim, era mais a minha casa
do que aquela que acabava de deixar, ainda nada sabia sobre o prazer. Onde
rosto e deste-me um beijo suave nos lábios, e depois outro, e mais outro. E cada
agitava quando o vento soprava, e uma cama de casal coberta por uma colcha
bordada à mão pela minha mãe e que fora o seu presente de casamento. Era
cair ao chão e eu percebi que alguma coisa se agitava dentro de mim. Seria,
provavelmente, o meu coração, que reagiu ao ver-te assim, sem nada que te
tuas emoções, aquelas que encontrei nos teus olhos: a adoração, o afeto, a
pediste que me virasse, antes de desapertares sem pressa todos e cada um dos
minhas ancas antes de voarem, livres, e subirem até ao meu peito. Sustive a
respiração. Aquilo nada tinha que ver com as carícias que havíamos trocado até
— Porque tinhas o mundo aos teus pés, mas ainda não o sabias. E eu queria
meu discreto vestido de noiva, aos pés da cama. Beijaste-me por todo o corpo e
as tuas mãos deixavam um rasto de calor onde me tocavam. Sentir o peso do teu
peito junto ao meu fez com que o nosso mundo, aquele pequeno quarto,
encaixámos pela primeira vez, entendi, simplesmente, que éramos duas estrelas
perdidas num imenso firmamento que tinham tido a sorte de se encontrar por
acaso.
fresco!
— Por isso mesmo. É a nossa parede. Nossa, Valentina. Podemos fazer com
ela o que quisermos. E isso das estrelas deu-me uma ideia. Devíamos recordar
cada momento.
— Mas isto é diferente. Uma estrela por cada instante importante. Uma
Sorri com o olhar cravado naquele ponto solitário: o dia do nosso casamento, a
Os primeiros meses ao teu lado foram como viver numa nuvem cómoda e
esponjosa. É assim que recordo a nossa viagem de lua de mel, naquele verão, no
passámos seis dias a passear pela ilha, perdendo-nos entre enseadas e recantos
parecias querer imortalizar cada instante, ainda que não conseguisses retratar a
brisa marinha e a sensação de liberdade que nos envolvia, como se, pelo facto de
branco que poderiam fazer qualquer coisa. Foi lá que comprei o meu primeiro
biquíni, numa época em que a sociedade conservadora ainda o rejeitava; não era
daqueles com a parte de baixo alta, pelo contrário, era bastante diminuto.
ignorando os olhares dos que, quem sabe, pensavam que estávamos loucos.
delirante e intensa, na qual tudo ganha cores vibrantes e uma pessoa julga
poder alimentar-se somente de paixão. Um dia, disse-te que, por vezes, sentia a
tua falta mesmo quando estávamos juntos, e tu desataste a rir-te, mas era
verdade. Que sensação, aquela, Gabriel. Felizmente, não dura para sempre, e o
não conseguias puxar por mim, porque havia coisas que eu tinha de aprender a
fazer sozinha.
Tal como era habitual naquela altura, quando casámos, deixei de trabalhar.
tentei seguir os conselhos da minha mãe. «Uma boa esposa tem as refeições
prontas quando o marido chega a casa.» «Deves arranjar-te todos os dias. Ouve
o que eu digo, ou ele acabará por procurar outra, mais bonita do que tu. Os
homens são assim.» «Dá-lhe um filho quanto antes, Valentina. É importante.»
Não lhe guardo rancor, tenho pena dela. A minha mãe sabia apenas aquilo
que lhe fora ensinado, um mundo inteiro condensado num berlinde que podia
segurar entre os dedos. Crescera no campo e tinha uma visão limitada, na qual
tudo se resumia a conseguir sobreviver dia após dia, sem aborrecer o seu pai, e,
De modo que tentei. Não tanto porque ela mo dissesse, mas porque era o que
manter a casa impecável. A rotina das jovens esposas resumia-se a ver quem
que entraras na minha vida, como se pequenos raios de luz fossem passando por
tresloucado e visceral, não compreendi, na altura, que tinha valor para muito
mais, não me apercebi de que as regras existiam para serem quebradas. Ficar em
casa enquanto tu ias trabalhar não foi o motivo, mas o que estava a acontecer
apertava mais quando me vinha o período. Março, abril, maio, junho, julho,
novembro…
Nunca falámos abertamente do assunto. Era uma chuva suave e constante que
caía sobre nós e se infiltrava em cada silêncio partilhado, mas tentávamos evitá-
la. Fingíamos que não havia problema algum. Tu tinhas conseguido que te
dessem mais horas e cada vez davas mais aulas. Eu começava a sentir-me presa
Não sei em que momento deixámos de ser as duas pessoas mais felizes e
problema como aquele, algo que, no fundo, nos preocupava a ambos. Falávamos
sobre tudo, Gabriel, tu sabes. Falávamos dos nossos sonhos, de ideias loucas que
te passavam pela cabeça, de como imaginávamos o futuro, do que aconteceria se
Falávamos daquela casa de campo que ambicionávamos ter para passar os verões
Contudo, por vezes, algo estalava no momento mais inesperado, e naquele dia
me contra ti assim que te deste conta de que eu estava com frio. Sorri ante esse
gesto. Estavas sempre atento a mim, eras esse tipo de homem que não ligava
tapavas-me quando eu adormecia no sofá a ler, sabias qual era a minha marca
Por isso, naquele dia, houve algo que mudou. Avançávamos pelo mercado
minhas pernas e eu agarrei-o antes que caísse para trás, com o impacto.
Olhei-o.
só conseguia pensar que aquele bebé poderia ser o nosso, Gabriel. E quis, com
todas as minhas forças, segurá-lo nos meus braços e levantá-lo para ti, para que
o levasses aos ombros enquanto passeávamos por aquele lugar repleto de luzes e
pessoas que passavam à nossa volta, sem saberem que, naquele instante, sem
tanto que foi como abrir subitamente uma represa e deixar fluir a água.
de canalizar as coisas: gota a gota, até que enchia por dentro e não as conseguia
Pegaste-me na mão e afastámo-nos dali até chegarmos a uma rua sem saída,
apenas em respirar…
Não escolhi uns filhos que não conheço, que talvez nunca venha a conhecer,
resto é prescindível.
Sabes aquilo de que me lembro melhor desse dia? Não é do mercado de Natal,
Aquilo de que me lembro melhor é que a tua dor era tão grande quanto a
minha, mas não podíamos cair os dois ao mesmo tempo, éramos uma equipa,
também estavam em carne viva. Demonstraste-me que a força tem muito que
ver com o amor. Naquela noite, precisava tanto de ti que a tua própria angústia
desculpa por tê-lo evitado, mas, não sabia… não sabia como abordar o assunto,
e, à medida que os meses iam passando, tornou-se mais difícil. Mas somos nós.
Olha para nós. Prometemos que não teríamos segredos, que partilharíamos
Assenti com a cabeça e mordi o lábio quando as lágrimas brotaram uma vez
mais. Tinha aberto aquela porta fechada à chave e não havia maneira de a
conseguir fechar. E também não o queria fazer. Antes, era um lugar escuro e
ideia lógica que se seguia ao casamento, como quando lês uma lista de compras
e sabes de cor o que se segue. Nem sequer fiquei triste ao ver que não chegava.
Não senti nada. Mas, depois, houve alguma coisa que mudou, não sei quando
nem porquê, mas aconteceu, e comecei a sentir um buraco imenso e vazio que
não consigo tapar com nada e que não devia existir porque não é lógico sentir
saudade de uma coisa que nunca se teve. Mas eu quero. Quero as suas faces
mais a cada mês que passa. E dói-me também por ti. Porque reparo na maneira
como olhas para os filhos das outras pessoas na rua. Não consegues esconder
— Valentina, querida…
Mas eu não conseguia parar. Nem mesmo ante a súplica na tua voz.
— Sempre que me levanto de manhã, só vejo diante de mim outro dia vazio,
pelo menos até tu chegares a casa. Nessa altura, fico um pouco melhor… Nessa
ao meu lado, mas, durante o resto do tempo, não sei quem sou, e, aqui, só há
silêncio e vazio…
Talvez confuso por ser a primeira vez em que não tinhas antecipado os meus
— As coisas são como são, Valentina. Não podemos mudar isso, mas podemos
mudar-nos a nós próprios. E não quero que a tua vida gire em torno de tudo
isto, não quero que te voltes a sentir assim nunca mais. — Limpaste-me as
Então, tive uma ideia que me pareceu maravilhosa, apenas porque sabia que
respirares fundo. — Sabes que não te posso proibir, mas não suporto pensar que
Quem sabe se, por um breve instante, não te passou pela cabeça que as coisas
agradar ao marido. Mas era suposto nós sermos diferentes. Era o que tu dizias
sempre. Prometeras-me que não haveria limites nem regras que nos cortassem
Estávamos casados há apenas dois anos e estávamos a viver uma das piores
crises por que passaríamos. Porque eu estava perdida. E porque tu ainda não o
sabias e não me tinhas ido buscar. Portanto, não nos encontrávamos. Estávamos
encontrávamos, Gabriel. Quão nocivo pode ser, por vezes, o silêncio num
casamento. E, naquele dia, quebrámo-lo, mas agora era preciso apanhar todas
aquelas palavras que não disséramos antes e compreendê-las.
mãos geladas, por teres estado a fumar à janela da sala: eu não te vira, mas sabia,
Demorei a responder, porque não queria que pensasses que aquilo tinha algo
depois que tudo iluminava. O problema era que não podias preencher todos os
meus vazios, não teria sido justo nem para ti nem para mim. Tinha de começar
mais. Mas, quando fico só, sinto que me falta alguma coisa, percebes? É como
um buraco que cada vez se torna mais profundo, como se crescesse sem parar, e
eu não consigo preenchê-lo nem tapá-lo nem fingir que não o sinto aqui. —
Peguei na tua mão e levei-a ao meu peito. Percebi que deixavas escapar o ar que
Nenhum dos dois falou durante um longo minuto, mas ouvi um ligeiro
— Não. Tens razão, imagino o que seja passar o dia entre estas paredes, mas
penso que poderias fazer outra coisa, algo de que gostes. Dá-me um mês, pode
ser? Dá-me esse tempo para ver se me lembro de alguma coisa, e, se não, tu
— E quanto ao bebé…
vezes.
9
Era uma terça-feira qualquer, mas chegaste a casa de bom humor. Sei-o porque,
Natal anterior e escolhias um disco de vinil do pequeno repertório que era cada
vez maior. «Mi gran noche», de Raphael, inundou a sala e eu sorri, porque
estrangeiras, daquelas que se ouviam menos na rádio, embora Nino Bravo fosse
me sentasse no sofá estofado que tu mesmo fizeras para nós na oficina do teu
pai. — Acho que vais adorar isto. Vi-o no outro dia, pendurado na parede dos
anúncios da universidade, já falei com o Martínez e ele disse que é uma boa
oportunidade.
entusiasmado. Enquanto esperavas pela minha reação, sorrias com os olhos. Li-
o olhar.
conhecer, apenas sabia ler como uma criança. E agora queres que faça isto?... —
o que dizer.
— Confio em ti, Valentina. E sabia que ias gostar. Adoras o mundo das letras,
das palavras, e é uma área com bastante procura. Poderias trabalhar como
outros sítios. Não era isso que querias, meu amor? Diz-me aquilo de que
precisas, porque juro que vou ficar louco se te continuar a ver tão apática a cada
dia que passa. Sabes que eu também sofro com isso, não sabes? — sussurraste
agitadamente. — É importante que saibas isso. Que isto tudo também me dói a
Tu, o rapaz valente e idealista que tinha sempre um sorriso para mim, estavas
«prestes a ir-te abaixo». Houve alguma coisa nessa frase que se me cravou na
alma. Ou talvez fosse por aquilo que encontrei nos teus olhos, uma incerteza
— Parece-me bem. É claro que sabes que o meu pai vai tentar matar-te, não
sabes? Consentir que a sua filha estude para nada menos do que arranjar um
emprego…
quiero, vida mía. Te quiero noche y día, no he querido nunca así. Te quiero con ternura,
con miedo, con locura, solo vivo para ti… Yo te seré siempre fiel, pues para mí quiero en
flor ese clavel de tu piel e de tu amor. Mi voz igual que un niño, te pide con cariño, ven a
mí, abrázame…»
pescoço e a tua respiração a fazer-me cócegas na face. Nesse dia, quando fomos
para a cama, apercebi-me de que ainda sentia medo, Gabriel. Temia não estar ao
nível dos restantes alunos do curso, de ficar para trás e de não conseguir superar
aquele desafio que tinha diante de mim. Porém, depois de te dar um beijo de
ombreira da porta. Era domingo. Talvez devesse ter posto o vestido mais
recatado que habitualmente usava quando ia visitar os meus pais, mas, naquele
dia, não me apeteceu. Vesti um modelo azul-céu que comprara pouco tempo
antes, num dia em que foras comigo à modista: ficava uns centímetros acima do
joelho, de corte direito e gola redonda. Arregalavas muito os olhos sempre que
dia, quando nos encontrámos na rua. Além disso, fazia-me sentir segura e
Quebrava as regras do meu pai. Que ridículo pareceria isto anos mais tarde,
quando as mulheres podiam vestir o que lhes desse na gana sempre que abriam
o roupeiro.
mesa. Tentei não reagir ao seu olhar inquisitivo. Os meus irmãos, um deles
tenso ao meu lado. Eles não sabiam, mas tu cada vez estavas mais embrenhado
o Martínez te pedia que lhe desses uma ajuda com os seus alunos.
estava delicioso; ela, como sempre, corou porque não estava habituada a receber
elogios de ninguém. O meu irmão continuou a falar. Eu sabia que a tua opinião
estava tão distante da deles que, sempre que almoçávamos com os meus pais,
tinhas de fazer um esforço por te manteres quieto na cadeira, e eles talvez nem
Uma vez, contaste-me, ainda com rancor, acerca das reguadas que te davam nas
pontas dos dedos, com uma régua de madeira, quando eras apenas uma criança,
ou das vezes em que vos sentavam de joelhos debaixo do quadro, com os braços
estendidos em cruz durante toda a tarde. A ti, que tiveras um pai à frente do
seu tempo e que jamais te levantou a mão e que te educou com palavras e
carinho.
E, então, veio o pior, talvez por estar distraída e de aquilo me ter apanhado
última pergunta que eu queria ouvir naquele momento. Não foi com maldade,
estivemos a falar sobre isso, porque seria bom não terem os mesmos nomes que
os nossos, agora que vamos ser família — acrescentou, após limpar a boca ao
Julgo ter reparado na tua mão sobre a minha coxa, por baixo da mesa. Não
assunto. Estava cansada de ouvir o meu pai perguntar «quando pensava dar-lhe
minha mãe mostrava os sapatinhos que tinha feito, o cachecol colorido e o gorro
— Podem usar os nomes que quiserem, nós ainda não sabemos se vamos ter
O silêncio foi denso e pegajoso. Todos sustiveram a respiração até que o meu
pai apontou para ti com o talher antes de bater na mesa com tanta força que
abanou a louça.
— A questão não é se eu consigo ou não, mas sim se ela quer que eu o faça.
pé, afastando a cadeira para trás enquanto tu tentavas manter a calma. — Olha
para ela, vestida como uma pega e incapaz de ter filhos, de que lhe serve ter-se
casado contigo?
meus irmãos não conseguiram impedir-te de agarrares o meu pai pelo pescoço.
Teresa gritou, aflita. A minha mãe levou uma mão ao peito. Então, as tuas
— Com certeza que não — disseste em voz baixa, mas penso que ele não te
ouviu, entre o lamento da minha mãe e aquilo que ele continuava a gritar, até
Apertavas-me a mão com tanta força, enquanto caminhavas com o olhar turvo
pela rua abaixo, que tive de te pedir que me soltasses quando me começaste a
olhos.
mim. Não fizeste nada errado, a culpa não foi tua. Muito… muito já tu
aguentaste. Hei de arranjar maneira de falar com a minha mãe, está bem? Sei
Naquele dia, houve algumas portas que se fecharam. O meu pai cumpriu a
sua palavra e não houve mais almoços de domingo, mas, de certa forma, isso foi
outra vez porque não permitiria que tu pedisses desculpa ao meu pai. Não
queria que o fizesses. Não me parecia justo para ti, e muito menos para mim.
ridículas.
a ser muito melhores. Mais bonitos e interessantes. Íamos visitar o teu pai,
lembras-te? O Aurelio comprava-me sempre aquelas bolachas com canela de
que eu tanto gostava e guardava-as numa caixa de latão que escondia no armário
como se fosse importante. Gostava do teu pai como nunca fui capaz de gostar
do meu, embora, hoje em dia, não me arrependa disso. Porque o amor é livre e
Comprámos por uma pechincha uma máquina de escrever que iam deixar de
usar no colégio onde trabalhavas; não era muito prática porque era muito
pesada, mas eu estava tão contente que não me importei e não cedi quando me
tentaste convencer a gastar as nossas poupanças numa outra, mais recente e mais
bonita. Estava entusiasmada. Tanto que, na noite antes de começar o curso, mal
Sentia-me como no dia de Natal, antes de abrir os presentes, mas também como
quando nos pedem para fazer uma apresentação de Física Quântica diante de
beijo na testa. — Vai correr tudo bem, vais ver. Tenho a certeza de que as outras
pessoas também se sentem assim. Vá, entra. Estarei aqui à tua espera quando
Tomei fôlego e entrei na sala. Quase todos os alunos que lá estavam tinham a
máquina de escrever sobre a mesa, assim como o manual que usaríamos durante
todo o curso. Reparei que eram quase todas raparigas jovens, de lábios pintados
e roupa da moda. Fiquei feliz por ter escolhido aquele vestido menos clássico,
naquele dia, e acabei por me sentar na terceira fila, ao lado de uma jovem de
— Sou a Clara. — Passou o olhar pela minha mão e fixou-se na aliança que eu
Retribuí-lhe o sorriso.
sala, não imaginava que ela se tornaria uma das minhas melhores amigas. Ela e
também outras raparigas daquele curso. Depressa descobri que eu era a única
rapariga casada, pois todas as outras eram mulheres solteiras cujos pais lhes
haviam permitido estudar, mas, ali no meio, sentia-me como uma delas.
ideias parecidas. «Somos uma nova geração», costumava dizer a Clara, uma
aquele manual que muitas de nós havíamos sido obrigadas a ler enquanto
começar a voar sem paraquedas e sem esperar que alguém nos desse permissão
para o fazermos.
12
aparecido, quando costumavas chegar sempre a meio da tarde, nos dias em que
não me ias buscar depois das aulas. Quando ouvi o som das chaves na porta, fui
a correr abri-la.
— Os cinzentos — sussurraste.
Na madrugada do dia 23 de abril de 1971, foi levada a cabo uma das maiores
estrutura foi detida, incluindo mais de trinta estudantes. Os que não foram
então. Eu sentia orgulho em ti, por lutares pelos teus ideais, por teres coragem
para fazer aquilo que valia a pena, mas nessa noite, quando te vi com o rosto
nariz e do lábio. Fui buscar uma caixa em que guardávamos gaze, aspirinas e
nos entendermos. Sabia que tinhas feito o que consideravas certo. E também
sabia que isso poderia ter consequências. Tu estavas ciente de quão nervosa eu
— Gabriel…
— Já sabias disto.
deserto.
— É que acho que estou grávida. Só estou uma semana atrasada, mas costumo
ser muito regular. Não te queria contar até ter a certeza, para não criar
Abraçaste-me com tanta força que me agarrei ao teu pescoço para não cair.
coração batia tão depressa que eu mal escutava o que dizias, mas sei que eram
Continuei a assistir às aulas. Passava o dia com enjoos e com sono, mas,
subitamente, aquele curso deixou de ser uma opção para passar a ser um
objetivo que eu queria alcançar. Talvez por ter percebido que gostava mais de
descobrir-me e a sentir que fazia parte daquele grupo de raparigas que não
tinham medo de dizer o que pensavam e que saíam aos domingos à tarde para se
divertirem.
incentivavas-me a sair com elas, mas eu estava tão cansada que só me apetecia ir
coisa nesses momentos, nos passeios que dávamos juntos, que me desenhava um
sorriso tonto no rosto. Era então que sentia, enquanto avançávamos por aquela
cidade que nos acolhia, que éramos «companheiros de vida», a caminhar numa
mesma direção.
coisa doce.
o mal-estar agravara-se. Doía-me a barriga. Por isso, decidi que beberia o copo
de leite e, a seguir, talvez lesse na poltrona antes de fechar os olhos por alguns
Solucei com tanta força que deves ter-me ouvido na cozinha. O som poderia
ter sido o de um animal ferido, algo que saiu do mais profundo do meu ser.
Bateste à porta, mas não fui capaz de responder. Estava paralisada e destroçada.
Voltaste a bater, com mais força.
sangrava cada vez mais e mais. E só conseguia pensar: porquê? Tentei afastar-te
médico. Queria gritar, mas a voz não me saía. Estava a desfazer-me em mil
pedaços diante de ti e tu nada podias fazer para o evitar. Não teria sido preciso
que, meia hora depois, o médico nos explicasse que havíamos perdido o bebé.
aqueles eram os nossos primeiros anos, aqueles em que merecíamos ser felizes.
conseguirmos ter algo que outros nem sequer desejavam e conseguiam. Creio
pensamento constante de que aquilo «era injusto», «era injusto», «era injusto».
Ir às aulas e sair com a Clara e as meninas foi um estímulo, uma vez que
percebi que a minha vida não girava em torno de uma só coisa. Assim, as horas
caminho de casa, sentava-me naquele jardim onde me havias ensinado a ler com
fluidez, anos antes, e perdia-me numa qualquer história. À medida que passava
das árvores, os nomes de alguns pares de namorados gravados nos troncos, o céu
que, em algum momento, me dei conta de que estava em paz comigo mesma.
Mas nem sempre percorremos todos os caminhos de mãos dadas, pois não,
Gabriel?
Por vezes, um de nós soltava-se sem querer e ficava para trás, por mais que
tentasse correr para alcançar o outro. Não é fácil que duas pessoas caminhem
que, de vez em quando, devemos olhar para trás para nos assegurarmos de que
mas não encontraste coragem para me pedir ajuda porque temias arrastar-me
entrar. Tinhas posto música. Eu deveria chegar ao final do dia, mas mudei de
ideias à última hora e decidi que me apetecia mais passar um pouco de tempo
contigo do que com as minhas amigas. E ali estavas tu, sentado no chão da sala,
alguma coisa presa no peito, e não sei porquê, não consigo compreender,
Valentina. Sei que devia estar inteiro para ti e ser mais forte. Mas, desta vez, não
estou a conseguir. Mata-me pensar que o teu pai pudesse ter razão e que um dia
te apercebas de que a tua vida não mudou por teres casado comigo, porque eu
amo-te mais do que tudo. Loucamente, por necessidade, porque te sinto aqui.
disse na primeira noite que passámos nesta casa? Que me apaixonei por ti
porque tinhas o mundo a teus pés, mas que ainda não o sabias.
mundo que ainda não sabias que te pertencia, mas tenho medo de que falte um
grande parte da tua dor se desvanecia, porque a única coisa de que precisavas era
de falar comigo, deixar as palavras voar sem que te preocupasses, por uma vez,
em ser aquele que tem de manter a calma. — Tu vais ser sempre o meu melhor
acaso. Sabes porquê? Porque tinhas razão: eu não o sabia, Gabriel. Tinha uma
venda nos olhos e nunca a tinha tentado tirar. Agora, parece um disparate, mas
eu nem sonhava que podia fazê-lo. A única coisa que me ensinaram, antes de vir
Sorriste. E achei que tinhas o sorriso mais bonito do mundo: era em meia-lua,
me ver. Não tinha jeito nenhum. Ainda bem que nos mudámos. Na primeira
vez em que a minha avó me pediu que matasse uma galinha, pensei que seria
fácil, mas… garanto-te que não foi. São mais resistentes do que parece. Deixei a
Soltaste uma gargalhada rouca e formaram-se duas covinhas nas tuas faces
cigarro.
carinhosa.
juntos, naquele quarto. O daquela vez em que passámos a tarde a dançar na sala
e bebemos demasiado vinho e nos rimos até que a barriga nos doesse. O do meu
E, então, traçaste mais uma estrela. A da perda. A de «aquilo que podia ter
sido e não foi», aquela que marcou o fim de alguma coisa porque, a seguir,
Agridoce. Única.
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dizia sempre que não havia nada mais prazeroso do que abrir os olhos ainda na
cama e ficar mais um pouco no meio dos cobertores a observar a primeira luz
porque, quando acordava e via o teu lugar na cama vazio, do lado direito,
Vesti o robe e, quando entrei na cozinha, sorri ao ver que tinhas ido à padaria
fui até à sala. Estavas sentado na poltrona com o corpo inclinado para a frente e
— O que se passa?
— O Franco morreu.
E, então, uma nova palavra passou a fazer parte da vida que conhecíamos.
amanhecer, tão clara, tão suave. Lembro-me dos nossos corpos entrelaçados por
baixo dos lençóis, naquele colchão cheio de molas soltas sobre o qual demos
rédea solta à paixão. Lembro-me do teu sorriso, Gabriel, sempre o teu sorriso.
Cheio, pleno, honesto. Lembro-me das tuas mãos na minha pele coberta pela
pratos, mas estávamos tão felizes que isso não teve importância nenhuma para
livro que estávamos a ler na altura, quão mágico era escutar-te e imaginar
histórias, viver dentro daquelas páginas ao teu lado. Lembro-me de que não
precisávamos de mais nada para nos sentirmos satisfeitos porque, naqueles dias
Porque essa era uma das teorias que eu tinha em relação a ti.
dos anos. Por vezes, andávamos em maré de azar, e, noutras ocasiões, a vida
trocava-nos as voltas de tal maneira que mal sabíamos o que fazíamos ali,
vivendo-a juntos e de mãos dadas. Até que acontecia. Talvez fosse algum
aquela que veio depois da que estava tingida de dor, embora a quiséssemos
conservar porque, como era habitual, tinhas razão: «As más recordações
certas para descrever o que senti naquele momento, quando a segurei nos braços
pela primeira vez e te vi a chorar, Gabriel. Não paravas de olhar para a tua filha.
Deste-lhe o teu coração sem hesitar no momento em que lhe pegaste, com os
olhos ainda brilhantes, embalando-a junto ao teu peito, e nunca mais lho
A cinzenta década de 1970, como alguns a recordam, começou por ser um céu
nublado que, mais tarde, o sol banhou com a sua luz. Costumavas dizer que foi
se quer cuspir; porém, consoante se vai comendo, pensa-se que talvez não esteja
assim tão má, incluindo a casca, as sementes azedas e o caroço fibroso. Porque
foi o princípio da mudança. Após alguns anos difíceis naquela época agitada,
tempo.
primeira oferta de trabalho que recusei por recear dar à luz no primeiro dia,
mas, ainda assim, foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida
recordar que era tão pequeno que mal lá conseguíamos meter a bagagem toda
vidros abertos. Naquela época, achávamos que não podíamos desejar mais nada,
Virou a nossa vida de pernas para o ar. Estávamos apaixonados por ela. Por
aquelas pernas roliças com as quais deu os primeiros passos pouco antes de fazer
um ano, aquele que celebrámos em casa do teu pai, num domingo em que a
minha mãe se conseguiu escapulir para se juntar a nós. E pelos seus olhos, que
eram iguais aos teus, negros e profundos, repletos de verdade. A Sofía sempre
foi parecida contigo em tudo. No carácter. No sorriso. No seu jeito sonhador e
tudo até não aguentar mais e, depois, deixar sair tudo de repente.
Era maravilhoso ver como ela te olhava com adoração. E confiava cegamente em
ti quando a atiravas ao ar e lhe pedias que fizesse alguma coisa: «Vá, esconde-te
na despensa e conta até cem», ou «Diz ao avô que tem cara de beringela». Sabes
quão difícil é encontrar um amor tão puro e inocente? Ganhava-lo a pulso, disso
não tinha dúvidas. Adoravas ser pai e estavas sempre disponível para ela: não só
nos momentos bons, mas também nos mais complicados, como naquela noite
sempre a sério o que ela dizia, até quando era tão pequenina que o resto dos
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Que efervescente foi a década de 1980. Tão nossa, tão louca e imprevisível.
Vivemo-la expectantes. Mal havia tempo para assimilar uma coisa, que logo
perguntavam por aqueles tempos, costumavas dizer que foram como as Peta
primeiros videojogos, nos quais acabaste por ficar viciado com o tempo, para
ou, mais tarde, o Un, Dos, Tres; e também séries como Falcon Crest e Dallas.
Cola Light. Foi a revolução sexual e musical com os Radio Futura, Alaska y los
A década de 1980 foi especial não só por ter marcado um antes e um depois,
mas também por ter sido a época mais doce da nossa vida. Depois de passarmos
a década anterior com altos e baixos e a comer maçãs ácidas umas atrás das
que nos deparámos, ao abrirmos o forno, foi uma época inesquecível. Criámos
A Sofía sorriu e correu pela areia até à beira-mar, rindo-se de cada vez que a
espuma das ondas lhe molhava os pés. Olhaste-me sob a luz do sol daquela
manhã de verão e inclinaste-te para me dares um beijo breve nos lábios antes de
sorriso nos lábios. Ela chapinhava na água. Tu rias-te ao olhar para ela. Ela
puxou-te pela mão para que a seguisses e acabaram os dois sentados à beira-mar
construir um castelo de areia com um fosso em redor para que a água circulasse
para o bem e para o mal. Éramos aqueles que cresceram em caminhos separados
e também os que se encontraram, dez anos antes, e que decidiram partilhar uma
tudo o que alcançámos, apesar dos passos que dávamos em cada dia como se não
nos fosse possível parar, ainda tínhamos sonhos e ambições, metas e planos que
Mas, nesse dia, não. Nesse dia, enquanto vos olhava, senti que tudo era
perfeito, que não precisava de mais nada. Uma vez, disseste-me que acreditavas
que a vida era feita de instantes, fotografias que ficavam presas à nossa
guardamos na alma.
começamos a rodar desde o dia em que chegamos ao mundo até que alguém
grita «corta».
Creio que é por essa razão que ainda me lembro daquele momento: nós os três
entrou para o banco de trás do carro, por isso, percorremos o trajeto sem falar, a
fôssemos dois adolescentes tontos. Porquê? Não sei. Creio que esses instantes
quotidiano, aqueles dias tão difíceis de prever que nunca se sai de casa com a
aquele bigode que tinhas deixado crescer porque estava na moda, e a maneira
penso que é triste que um dia o sabor doce desse instante vá desaparecer, mas
quando chegámos a casa, embora parecesse só mais um dia, nem foi preciso
dizer nada antes de irmos diretamente para o quarto desenhar outra estrela por
cima da cabeceira da cama, uma estrela que encetou uma nova constelação.
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levava um livro dos que líamos juntas, ou, se ela se entretivesse com alguma
brincadeira, eu comprava uma revista no quiosque que havia nessa rua. Bebia
um café e pedia um sumo para ela até tu saíres do trabalho e passares a buscar-
nos. A Sofía costumava apoiar as mãos no vidro quando te via a chegar a pé, e tu
juntos.
enquanto dava uma vista de olhos à revista que tinha nas mãos. Nada. Não
entrar em contacto com a revista, podes escrever uma carta para este apartado.
se dos teus lábios. — Consigo entender que não a publiquem, mas deviam dar-
de tempo em que já nos sentimos ignoradas. Não é justo. Ou, pelo menos, que
avisem, em letra pequena, que, sim, podes escrever, mas ninguém te irá
responder.
— Valentina…
Mordeste a língua para não dizeres em voz alta que «indignação» era
Sofía corria de um lado para o outro na sala. Depois, metera-a num sobrescrito,
Na sua essência, as ideias eram boas, mas o resultado final, não tanto. Era uma
das publicações mais lidas por mulheres na época, mas nós evoluíamos depressa,
Já para não dizer que aquelas secções em que nos convidavam a participar não
faziam muito sentido se, ao que parecia, a nossa voz não era ouvida por quem
dirigia a revista.
balcão, enquanto sacavas da carteira do bolso das calças de ganga, aquele estilo
de calças que havia chegado para ficar e que se tornara o teu preferido.
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A relação com a minha família continuava tensa, mas voltámos a falar-nos. Não
os via com tanta frequência como antes, e tu evitavas estar com o meu pai. Eu
percebia-te. Percebia que vocês eram duas pessoas tão diferentes que tinhas
medo de voltar a chocar de frente com ele, que ele dissesse alguma coisa que te
simplesmente por termos nascido naquele ninho e não conhecermos mais nada,
depois de terem casado, que a Sofía podia conhecer os seus primos, que tu
guardavas o que pensavas porque respeitavas a minha decisão, até quando não
concordavas com tudo, ou que, por vezes, eu te visse a roer as unhas quando
estavas nervoso.
Por nunca te impores. Por não me dares ordens nem tentares convencer-me de
coisas que, em determinadas ocasiões, vias de maneira mais clara, de fora. Por
seres generoso nos teus conselhos. Por cederes. Por me amares com os meus
Apesar dos progressos com a minha família, passávamos muito mais tempo
com o teu pai. Era inevitável. O Aurelio era o homem mais doce que tive o
impulsiva, que herdaste da tua mãe. Lembro-me de cada momento ao seu lado
com uma nostalgia secreta. Ele comprava-me sempre aquelas bolachas de que
eu tanto gostava; anos depois, descobri que tinha de ir a pé até uma padaria do
bairro de Carmen para conseguir aquele saquinho que eu devorava num abrir e
Então, quando lhe contavas como correra a semana no trabalho ou lhe falavas do
manual escolar no qual te haviam pedido para participar, o Aurelio deixava sair
Tu rias-te ao ver que ela tentava subir para as costas dele para que ele a levasse
como um cavalinho, como tu costumavas fazer com ela. A Sofía gostava de dar
ordens e era de ideias fixas, e o Aurelio permitia que ela o tratasse como queria.
Aurelio era incapaz de fingir, não sei como te passou pela cabeça que eu não iria
descobrir.
ao lado dele e de lhe passares um braço pelos ombros. O teu pai assentiu,
exageradamente. Olhei-vos. Eram como duas gotas de água, embora ele tivesse
fazer trinta e quatro anos e emanasses vitalidade. Mas o vosso nariz era igual. E
O teu pai também acabou por se rir baixinho, e eu levantei uma sobrancelha,
incrédula, porque não estava a perceber o que estava a acontecer e, ah, não havia
ninguém que detestasse mais surpresas do que eu. E tu sabia-lo, claro que
revolvi a casa inteira. A sério. Inteira. Procurei em cima dos armários, debaixo
da cama e até na oficina de estofos do teu pai, quando o fui visitar. Tinha de
saber o que me tinhas comprado porque o facto de não saber estava a matar-me.
Não o cheguei a encontrar. No fim, percebi que andava sempre contigo, na tua
carteira. Eram dois bilhetes para um espetáculo de teatro que eu queria muito
ver e que sabia que tu detestarias, mas que, a mim, me fez chorar de emoção.
Foi a primeira vez que deixámos a Sofía com o teu pai para sairmos sozinhos,
uma coisa que, naquela altura, nem todas as pessoas viam com bons olhos —
pelo menos, foi o que me disse a vizinha da frente, por entre dentes, alguns dias
mais tarde. Sinceramente, eu não ligava muito. Lembro-me daquela noite com
carinho, apesar de a sopa que pediste estar fria e insossa, e de ter começado a
chover torrencialmente.
A questão é que, nesse dia, estavas tão estranho quanto o teu pai, e, quando
até que caímos na carpete da sala. Fizeste-me cócegas, o meu ponto fraco, e eu
— E a culpa é tua…
pescoço com as mãos e, durante aquele momento, desde que começaste a tirar-
me a camisa de dormir até que acabámos a gemer em uníssono, pele com pele,
olhar-me de relance com aquele brilho travesso, ainda deitado de barriga para
que me pareceu interessante. Por isso, fiquei a pensar nisso. Alguns dias depois,
fui almoçar com o Martínez e, não sei como, o tema veio à baila… e, de
repente, ele disse que era uma ideia brilhante e que poderia fazer umas quantas
— É para um emprego. Foi tudo pensado e falado ali, no momento. Não sei,
quando ele perguntou, disse-lhe que sim, que era fantástico. Mas, agora que me
estás a olhar dessa maneira, penso que talvez me tenha enganado. Sabes uma
dias que passámos juntos, quando eu corava só por olhares para mim e
— Ainda não está nada definido, mas sabes que o Martínez tem muitos
ficar à frente da empresa e quer renová-la um pouco, por isso, quando ele lhe
disse que era amigo de uma leitora indignada pela forma como algumas coisas
na revista funcionavam, achou piada e disse estar disposto a ter uma reunião
— Mas eu não sou ninguém! Como é que vou ter uma reunião com o
diretor?…
sentas-te com ele e sê tu mesma. Diz-lhe o que pensas. Às vezes, uma coisa
viciada precisa apenas de uma visão diferente. Se quiseres ir, vamos daqui a
quatro dias.
preocupes com nada, já falei com o meu pai e ele fica com a Sofía. Sugeri-lhe
que viesse aqui para casa para ser mais cómodo, se não te importares…
Fechei os olhos para tentar assimilar toda aquela informação. Voltei a sentir
aquele formigueiro na barriga, tal como sentira no primeiro dia do curso que
impaciente. Eu não disse nada, mas deslizei uma mão pelo teu peito ainda
despido, percorri a barriga e subi até chegar à linha do teu maxilar, e olhámo-
nos com aquela intensidade dos grandes momentos que ambos saboreávamos
— Quando eu era pequeno, passava as tardes na oficina, ela fica bem. E nós
também, apesar de nos separarmos dela durante alguns dias. Vamos fazer isto,
Valentina.
rumar para a outra cidade, não só por eu estar desejosa de passar um fim de
semana contigo a sós, sem interferências, mas também por ter de aproveitar
aquela oportunidade.
algo. E aquele era o meu. Sabia-o. A Sofía estava a crescer a olhos vistos e eu
queria avançar e fazer alguma coisa diferente. Visitei o sótão da minha alma e
encontrei uma caixinha coberta de poeira onde guardava todos aqueles sonhos e
ouvíamos música, eu lia em voz alta o último livro que escolhêramos juntos. Tu
Puerta de Alcalá.
nos. Só tu e eu, Valentina. Como nos velhos tempos. Lembras-te daqueles dias
na praia?
Houve alguma coisa que mudou no teu olhar enquanto deslizavas os olhos
pelo meu corpo, ali sentados na cama ainda coberta pela colcha salmão. Sei que
achavas que, ultimamente, não fazíamos amor com tanta frequência. Por vezes,
quando o fim do dia chegava e nos deitávamos, estávamos tão exaustos que
desejo louco e intenso do início sossegou, tal como o amor efervescente dera
vestimos o pijama, cada um no seu lado da cama, apagámos a luz dos candeeiros
que inicialmente ofuscam tudo: quão maravilhoso era sentir que estremecias
causa dos nervos. Pouco depois, enquanto seguíamos pela rua dos escritórios e
tu me apertavas a mão para me dares ânimo, apercebi-me de que aquilo era uma
loucura. Eu estava ali porque um amigo nos fizera um favor, e tinha a impressão
de que o filho do diretor, um tal de Samuel Jiménez, nem sequer se iria lembrar
de que naquele dia tinha uma reunião comigo. Porque, afinal, quem era eu?
Somente uma dona de casa que, anos antes, fez um curso de Estenografia e
— Vá lá, sobe. Eu fico aqui à tua espera. Não tenhas pressa, vou beber um
café naquele bar ali em frente. E fica sossegada, meu amor. Basta que digas o
que pensas.
atravessaste a rua sem olhar para trás enquanto acendias um cigarro. Suspirei
sorriu e disse que estavam à minha espera, coisa que me surpreendeu e aliviou,
em igual medida. O interior do edifício estava decorado com tons claros, que
indicações e subi até ao último andar, onde se situavam os gabinetes. Uma vez
lá, tomei fôlego, bati à porta e esperei, com um nó na garganta.
O homem que abriu a porta devia ter mais ou menos a minha idade. Não era
desastre, com papéis e pastas por todo o lado. Afastou a cadeira para trás e
bem, pelo que o Martínez me contou ao telefone, escreveu uma carta para a
disso, que tipo de fidelidade esperam conseguir ignorando quem vos põe o pão
na mesa?
agora que ficarei a dirigir a revista, faço tenções de lhe dar uma cara nova. Nos
no futuro…
Quando saí daquele gabinete, vinha a pairar numa nuvem. Desci as escadas só
para poder dar uma vista de olhos ao piso da redação, e, quando abri a porta que
dava para a rua, tu estavas à minha espera com a vista cravada no céu cinzento.
sem parar de tudo o que acontecera no gabinete e dos planos que tinha. Tu
estava eufórica. Disse-te que, como referira o Samuel quando nos despedimos,
se a proposta corresse bem, talvez tivesse de vir a Madrid para me reunir com
cuidaria da Sofía e que, se alguma vez ele não pudesse, tu pedirias que te
Mais tarde, ligámos para casa, quando regressámos ao hotel para mudar de
roupa antes de irmos jantar. O Aurelio garantiu-me que estava tudo controlado,
que a Sofía comera os espinafres que ele preparara (uma coisa surpreendente,
uma vez que ela resistia sempre muito a comer legumes) e que já estava de
pijama, prestes a ir para a cama.
com dois ordenados, e, além disso, tínhamos de festejar aquele dia e permitir-
nos um luxo. E fazia sentido. Sempre seguira o ditado «Se tens três pesetas,
gasta uma e guarda duas», e, embora tivesses mais a tendência para fazer o
— Mas é o que penso sempre. Penso na maneira como fechas os olhos e sorris
quando dás uma trinca em alguma coisa de que gostas muito. É excitante.
— Excitante?
— Provocador…
Estavas a olhar para mim daquela maneira que me fazia suster a respiração,
fazia baixar o olhar. Mas, agora, já não. Por isso, não afastei os olhos dos teus,
enquanto te inclinavas sobre a mesa sem tirares os olhos de mim, faminto, como
com a expectativa, porque havia algo ardente e perigoso nos teus olhos escuros.
E eu queria-o.
então, percebi que não estávamos a ir pelo mesmo caminho por onde
chegáramos.
— Não penses que a ideia não me tenta, mas tenho um plano melhor. Vamos
divertir-nos. Talvez possamos beber um pouco, como se tivéssemos vinte anos.
Ri-me e decidi deixar-me levar, porque, contigo, isso era fácil. Acabámos no
bairro de Malasaña a beber cerveja num bar chamado La Vía Láctea, onde se
dançávamos, o teu corpo estava cada vez mais perto do meu, até que me deixei
cair no teu colo, numa poltrona grená. Deste um gole na bebida que tinhas
pensei que não podias ser mais perfeita? Pois bem, enganei-me. Como é aquela
momento, pelas pessoas que estavam à nossa volta com roupas que, pouco
porque parecias mais novo do que nunca, a fitar-me com os olhos brilhantes,
repletos de desejo. Quando dei um gole na tua bebida, tossi. Era um licor forte.
Acho que acabei por pedir qualquer coisa com sabor a lima, e que era muito
da música sem parar de rir. As tuas mãos estavam em todo o lado, como se não
fosses capaz de não me tocar. Começou a tocar «La chica de ayer», e cantaste-a
atenção. Porém, ali estavas tu. Sempre tu. Aqueles olhos insondáveis, as
Para ser sincera, não me lembro bem de como chegámos ao hotel. A pé, sim,
mas esqueci-me de quanto tempo demorámos e que ruas percorremos. Só me
Isso deu-nos mais uma razão para rir enquanto corríamos, ignorando as
cornijas dos edifícios que nos poderiam proteger. Pensei que não
chegou, descobri que estava grávida. E, olhando para trás, reconheço que foi um
momento estranho. Inoportuno, quem sabe? Talvez fosse essa a palavra mais
adequada. Ambos queríamos ter mais filhos, mas, mais uma vez, aconteceu sem
descolar. Já havia sacrificado essa parte da minha vida uma vez, porque não
meses, e, naquele preciso momento, estava tão concentrada no projeto que tinha
— Estou a ser egoísta. Devia estar a dar pulos de alegria. E estou. Estou
entusiasmada, a sério que estou, mas não quero renunciar a tudo o resto…
— Ouve, desta vez vai ser diferente, está bem? Trabalhas a partir de casa e
podes continuar a fazê-lo. Eu posso trocar o meu horário à tarde para ir buscar a
conforme o Pablo crescia dentro de mim. De facto, foi uma gravidez tranquila e
criei uma ligação com ele. E foi uma ligação maravilhosa, única e repleta de
amor. Talvez pelo facto de, pela primeira vez em muitos anos, passar as manhãs
as cartas que íamos buscar e levar aos correios e a satisfação que eu sentia por
estar a fazer uma coisa útil, que me preenchia, trocando correspondência com
fossem muito menos. Sempre acreditei que nós, mulheres, somos muito mais
restaurante cuja especialidade era peixe. Ele queria discutir comigo algumas das
propostas que eu havia selecionado da «caixa de sugestões». Aquilo que o
Samuel tinha de positivo era que, ao contrário do seu pai, estava disposto a
ouvir. Não olhava para as pessoas com um ar altivo e não se ria se alguém
dissesse uma patetice, tendo em conta a sua experiência. Pelo contrário, levava
que ele se preocupava com a revista e com os conteúdos que publicavam. Estava
convencida de que o problema não eram os temas, mas sim o facto de o público-
alvo se ter começado a interessar por outros assuntos. Algum tempo depois,
— Nem consigo dar conta das cartas todas das leitoras. São demasiadas. Não
— Claro. A notícia de que temos em conta a opinião das leitoras, entre outras
me quero precipitar, mas creio que estamos no bom caminho. Tudo se resume a
dar aos clientes o que eles querem, não é assim? E, olha para ti, quem sabe disso
melhor do que tu, Valentina? És exatamente o tipo de mulher que nos lê. Que
idade tens?
— Trinta e um.
— Precisamente.
— Tenho uma grande amiga que estudou comigo e que adorou a ideia de
E foi assim que a Clara passou a fazer parte daquele projeto. Trabalhávamos
juntas muitas vezes. Ela ia lá a casa, preparávamos alguma coisa para o almoço e
teus. Com aquela cabeça cheia de cabelo e o riso que se lhe escapava sempre que
a irmã fazia caretas. A quem começaste a chamar «camarada» antes que ele
soubesse sequer o significado da palavra, e a quem mudaste mais fraldas do que
eu, que estava cheia de trabalho, apesar da ajuda da Clara, mas que, ainda assim,
não queria parar porque precisava de provar a mim própria que conseguiria
fazê-lo. O Pablo foi uma pequena estrela imprevista que chegou num momento
em que talvez não o esperássemos, mas que encheu a casa desde o primeiro dia
agitar-se como uma lagosta (foi o que disseste, fazendo-me rir). E, depois,
apenas um minuto depois, terminámos juntos mais uma constelação, essa cheia
Alguns anos depois, já no final dessa década, comprámos uma pequena casa
ao almoço, não paravam de dizer que o sabor daqueles tomates era inigualável.
com a cabeça.
Em 1989, o Pablo tinha oito anos. Menos quatro do que a irmã, e andava
atrás de ti para todo o lado. Era a tua sombra. Olhava-te com admiração e
tentava imitar tudo o que dizias e fazias. Algum tempo depois, isso mudaria e
teriam os vossos altos e baixos. Acho que é mesmo assim, a vida, nem sempre é
idílica, nem sempre é como desejaríamos. Porém, aqueles verões foram vossos.
soubesses que eu não achava piada nenhuma a isso porque tinha medo de que
teimoso e orgulhoso desde pequeno. Nisso, não saía a ti, que não te acanhavas
Com ela foi diferente, Gabriel. Nem melhor, nem pior, simplesmente
diferente. Há coisas que não podemos forçar, coisas que acontecem e pronto. E
foi assim desde o princípio, quando a seguraste nos braços no quarto do hospital
magoava, às vezes sentia inveja, até que aceitei que o facto de não partilharmos
as mesmas coisas com os nossos filhos não era uma coisa má, porque cada
relação é um mundo que se vai tecendo ao longo dos anos com tantos fios que é
Ver como cresciam, como sujavam as mãos na lama e brincavam juntos, antes
nos depois, debaixo dos lençóis, tentando não fazer barulho. Caminhar junto
Cada vez me dediquei mais ao trabalho, porque gostava muito do que fazia:
pela primeira vez, sentia-me completa de uma forma que não conseguia
interessar-te por fotografia e por aviões, que te fascinavam. Lias muito. Lias
tanto que, a certa altura, deixámos de o fazer juntos. Cortámos esse laço que nos
uniu desde o princípio e que sabíamos que tinha importância, embora não o
acontecem num instante concreto, mas sim de uma forma paulatina e silenciosa:
passa despercebida.
fim, sopraste quarenta velas num domingo, acompanhado pelos nossos amigos e
pela família: o teu pai, o Martínez com a mulher e os filhos, a Clara com o
ti. Eu não lhe queria dar importância, mas, um dia, ao cair da noite, comentei o
facto contigo, quando nos estávamos a deitar, e tu pegaste num livro da mesa de
cabeceira.
iluminava o teu rosto, revelando as primeiras rugas à volta dos teus olhos e os
brancos que haviam surgido e que nunca quiseste esconder. — Talvez. Mas foi
há muito tempo.
tinha namorada, e depois ela contou-me. Não tem importância. Foi engraçado.
e eu libertei-me dos teus braços porque não percebia o que tinha tanta graça e
como o perfeito idiota que eras. — Sabes que te estás a comportar como uma
meu pescoço. Sussurraste o meu nome. Sussurraste que, se alguma vez voltasse a
duvidar, que olhasse para as constelações que tinhas desenhado na nossa parede,
todas as estrelas que nos tinham marcado, unido e fortalecido: as que tínhamos
terminado e as que ainda estavam abertas e presentes. Nós os dois. Sempre nós
os dois.
Aquela complicada década de 1990
24
— Porque é que tenho de ser sempre eu a impor as regras? Não olhes para mim
assim, Gabriel. Ela só tem catorze anos, e estamos no inverno, anoitece cedo,
primeira vez que tínhamos aquela discussão. Com a Sofía, cedias facilmente,
dizias que «confiavas plenamente nela», e não é que eu não confiasse, mas ela
ainda era uma criança. Eu não confiava era nos outros: em desconhecidos que
lhe pudessem fazer alguma coisa, ou nas más companhias que ela pudesse
arranjar. Eu tinha medo, Gabriel. Comecei a ter medo à medida que ela crescia
e deixou de precisar tanto de nós. Chorei baba e ranho no dia em que teve a
menstruação pela primeira vez, e também quando nos anunciou que iria à
viagem de fim de curso da escola. Agora que já passou mais tempo, admito que
talvez me tenha enganado, mas, naquele momento, não soube fazer as coisas de
— Sim, mas também seria bom que, na próxima vez, fosses tu a dizer-lhe que
não. Sou sempre eu, Gabriel, tenho de estar sempre a impor limites e a ser a má
da fita.
— A fazer o quê?
Passaste por mim sem me tocares, pegaste no maço de tabaco e saíste de casa.
como aquele, quando nos zangávamos, mas no dia a dia. Porque, anos antes,
aproveitavas qualquer desculpa para me tocar, fosse ela qual fosse. Podíamos até
essência, esses gestos não eram meramente uma ligação que mantínhamos
Não estávamos a atravessar uma fase boa, nem juntos nem individualmente.
Eu tinha sempre muito trabalho para fazer, e, de certo modo, nunca acabava:
não tinha um horário, como tu, que saías às cinco da tarde todos os dias, e, além
disso, eras daqueles que aproveitavam as horas livres do apoio escolar para
corrigir testes e não os trazeres para casa. Eu, pelo contrário, parava quando
decidia que devia parar, e, ultimamente, não sabia bem onde estabelecer o
limite, porque queria fazer mais, e cada hora extra, cada hora que deixava de
mesmo ao meu lado e eu mal lhes prestava atenção porque estava embrenhada
Sempre que pensava que nos estávamos a afastar, dizia a mim própria que
«éramos nós os dois», todas as letras. «Nós os dois». Ia ficar tudo bem.
Estávamos bem.
25
com a cabeça antes de soltar o fumo. — Às vezes, tenho a sensação de que vivo
sozinha, sabes? Quando nos conhecemos, não era assim. Ele não chegava a casa a
proibido.
uma espécie de túnica larga castanha, embora normalmente usasse saias curtas e
vistosas.
naquele instante, irritou-me. Talvez pelo facto de vivermos na mesma casa, mas
aquele calor do lar que antes se colava às paredes, parecia estar agora a arrefecer
lentamente. Talvez por eu saber que tinhas defeitos, como toda a gente, que eras
humano, que te enganavas. Talvez pela mágoa que sentia pelo facto de alguma
coisa entre nós ter mudado, embora eu nem soubesse expressá-lo de outra
maneira que não a irritação. Talvez por terem passado meses desde a última vez
que fizéramos amor e eu não percebesse porquê. Agora, sei que tu também não.
Por vezes, estamos tão concentrados no dia a dia, a seguir em frente, que não
outro. Duas pessoas perdidas numa floresta têm uma maior probabilidade de
afastar cada vez mais? E porque é que nada fazíamos para nos tentarmos
que nos tiravam do sério: era assim tão difícil lavar o lavatório depois de fazeres
puxão aos lençóis quando te viravas na cama e eu acabava por morrer de frio
todas as noites? E essa tua mania de comentar o Twin Peaks enquanto estávamos
quanto ao Gabriel, acho que percebeste mal. Terá as suas coisas, como todos
nós, mas não te deixa abandonada todos os dias para ir sabe-se lá onde. Ou com
quem.
Ela tinha razão. Claro que tinha. De repente, todas as minhas queixas me
— Lamento muito. Não fazia ideia de que estavam tão mal… — Senti um
— Espero que sim. Não vou negar que tenho medo. A minha mãe perdeu a
cabeça quando lhe contei, há uns dias, mas não quero passar o resto da minha
Estendi uma mão sobre a mesa para a pousar em cima da dela, que tremia.
Agora, pode parecer coisa pouca, mas, no início da década de 1990, o divórcio
não era assim tão comum como começou a ser algum tempo depois, apesar de
ser legal desde 1981. Anos antes, Adolfo Suárez enfrentara a Igreja Católica
para promover a Lei do Divórcio, e não foi simples por causa da recusa dos mais
casamentos desfeitos.»
Desde então, eu tentara abordar o assunto com a minha mãe umas quantas
vezes, mas ela não me queria ouvir. Embora fosse uma decisão dela, eu não
conseguia deixar de sentir pena. Era uma boa mulher e teve uma vida
decidisse dar o passo e deixasse o meu pai, poderia ficar em nossa casa durante o
tempo que quisesse para se recompor; contudo, há corações tão magoados que já
não sabem como bater a um ritmo diferente daquele que um dia lhes foi
imposto.
Quando os meus pais ficaram mais velhos, regressaram à aldeia onde eu nasci
e, portanto, perdi ainda mais o contacto com eles. Ia visitá-los de longe a longe,
sobretudo para que ela pudesse estar com os netos. E falávamos por telefone ao
domingo, mas não tínhamos muito para dizer, além de perguntar como
a Sofía e o Pablo para passar a tarde com eles e levá-los a comer churros com
passei pelo Mercado Central, fui subitamente assaltada pela memória daquele
abraço antes de dar um beijo à Sofía e de lhe afastar o cabelo da cara, enquanto o
Pablo me contava que tinha marcado três golos, durante o recreio, tendo obtido
a melhor classificação.
êxito. Estavam sempre a discutir. Essa era mais uma coisa que me deixava
doida, naquela altura. Tinha a impressão de que nunca estava «tudo bem»:
quando não éramos nós, eram eles, juntos ou separadamente, era frequente que
a Sofía se insurgisse, ou era o Pablo que fazia uma das suas birras. A diferença
de quatro anos entre eles parecia notar-se mais do que nunca, como se vivessem
em planetas diferentes e não fossem capazes de comunicar.
escondê-la na sala. Era uma tradição que, para os outros, não fazia sentido, mas
vinte anos antes, quando ele me recebeu como se fosse sua filha. E eu adorava.
Estava cheio de razão. Eu queria fazer tanta coisa que, por vezes, não chegava
para tudo. Queria trabalhar mais, queria ser uma mãe perfeita, queria passar
mais tempo com as minhas amigas para tomar café ou ir passear à tarde, queria
queria… queria saber o que estava a falhar entre nós, para que tudo voltasse a
outrora, para o teu colo para ler algumas linhas contigo, como fazíamos antes.
Mas não fui capaz. Era como se houvesse uma parede entre nós que antes não
existia, e que me impedia de chegar a ti. A culpa não era tua. E talvez também
não fosse minha. Creio que foi aquela fase, o pouco tempo que restava para nós
no meio da rotina, pequenos rancores e irritações por coisas tão disparatadas que
já nem me lembro. O peso dos meses ancorados àquele tédio enevoado que
tínhamo-la deixado ficar a dormir em casa de uma das suas melhores amigas.
fui sacudida por uma memória distante. Virei-me na cama, fiquei de barriga
Ficámos ali, os dois com o olhar cravado no teto. Ouvia a tua respiração, sempre
tão pausada, tão serena. A memória que momentos antes abrira caminho na
tínhamos completado havia muito tempo. Por isso, fiquei admirada que
— Queres contar-me?
Parece que já foi há uma eternidade, quando jantámos naquele sítio e depois
voltámos para o hotel a rir. Parece… — A voz falhou-me. — Parece que foi
noutra vida.
— Valentina, amor…
pele, perto de mim, mais perto do que havíamos estado em muito tempo,
embora fosse apenas uma coisa física. Isso consolou-me. Um penso frágil sobre
apercebermos. Eu era mais egoísta, mais voltada para mim. Tu eras uma janela
aberta, disposta a receber luz, mas, nesse dia, compreendi que há muito que
Estava obstruído.
— Quero voltar àquela noite e que voltemos a ser aquelas pessoas. Não
percebo. Não sei o que nos aconteceu durante estes últimos anos, mas começo a
achar…
Era suposto dizeres alguma coisa, Gabriel. Era naquele momento que
«vamos ultrapassar isto juntos», «isto é só uma fase, Valentina». Mas não houve
cobrir a minha boca com desespero e raiva. Como se não encontrasses o que
procuravas, embora te fundisses em mim com força, uma e outra vez. Estávamos
Houve uma série de alterações na revista, por isso, durante alguns meses, tive
de ir a Madrid com mais frequência para comparecer a reuniões e ficar a par dos
assuntos. Deixei de ser a responsável por responder às cartas das leitoras e passei
Passar mais tempo fora de casa não nos ajudou a que nos encontrássemos.
Certo dia, disseste que devíamos pôr a casa de campo à venda, porque raramente
parecia bem.
Um dia, enquanto eu fazia a cama, levantei o olhar para a nossa parede repleta
desde a última vez em que desenharas uma nova estrela, como se a nossa
mãos antes de eu sair do quarto, como se fosse possível fugir de mim mesma e
da realidade.
29
acontece. Fica tudo escuro, há alguma coisa que se quebra lá em cima e a chuva
cai com força, como se estivesse em contenção há demasiado tempo. Porque essa
reprimidos. O problema é que, embora não os deixemos sair, eles continuam lá.
chegar aos órgãos vitais: ao coração, aos rins, ao fígado… e, aí, já não há nada a
fazer.
que dizia que tinha ido com algumas amigas ao salão de jogos, a duas ruas da
nossa casa. Suspirei e deixei a mala meio desfeita porque estava exausta e
Noutro dia qualquer, talvez não o tivesse feito, mas, naquele momento, senti
que, anos antes, se tornara um amigo. Disse-me que não era a tua vez de ficar a
dar apoio e que tinhas saído quando acabaste as aulas. Eu estava inquieta.
Naquele momento, o mundo parou. Foi assim que senti, como se o mundo
oposto. Norte e sul. Este e oeste. Muito, muito distantes. A uma distância tão
garganta. Não sei como te apercebeste de que eu não me estava a sentir bem,
Angústia? Não estava preparada para saber. Não estava, embora precisasse de o
fazer. Tinha tanto medo que fiquei sem ar, como se os meus pulmões se
— Valentina…
Levantei-me sem conseguir olhar para ti nem mais um segundo e fui para o
quarto. Não foi uma boa ideia. Foi ali que me despiste pela primeira vez, e que
conversas sussurradas ao cair da noite e de uma intimidade que, pensava eu, era
indestrutível.
Nunca tinha sentido uma dor tão esmagadora e tão profundamente dentro de
mim, enredada nos meus ossos. Jamais havia imaginado que seríamos esse tipo
rua seguiam o seu curso e os pássaros pousavam nos cabos que atravessavam os
postes telefónicos e o céu azul troçava da minha dor. Estremeci ao sentir os teus
tudo. Mas não aguento mais e precisava de falar com alguém… precisava de
sentir que alguém me ouvia, e, quando perguntaste onde tinha estado, pensei
que, se te dissesse, iria piorar ainda mais as coisas. E juro-te que não o
desabafar. Partilhar com alguém isto que nos está a acontecer, isto que…
sentimentos do outro.
— Sobre o quê, pode saber-se? Sobre a maneira como passas o tempo com
outra enquanto eu chego do trabalho, depois de estar dois dias fora? Já, ao
mesmo tempo. Tínhamos deixado que toda a raiva contida saísse. E tínhamos
Se existisse uma máquina fotográfica para captar a alma dos seres humanos
para lá da pele e dos ossos e dos músculos, poder-se-ia ter visto os nossos
precisamente ali.
manhã para estar um pouco a sós com a Sofía. Fomos às compras na rua Colón e,
após uma bela caminhada, fomos a uma das nossas pastelarias preferidas do
centro. Pedíamos sempre o mesmo: dois batidos de morango enormes, que eram
mero facto de que imaginar-me a assinar os papéis e imaginar a nossa casa sem
como falar daquele assunto com a nossa filha. Já não a podia tratar como uma
criança. Mas ela também ainda não era adulta. — Não há… não há um motivo
O mais engraçado era que eu também não percebia, mas não lho disse porque
pareceria ridículo. Qual era o problema? Que era aquilo que tanto nos irritava
no outro? Em que momento deixámos de ser uma equipa e nos tornámos rivais?
Percebi que não se tratava de algo que tu ou eu tivéssemos feito, mas sim
daquilo que não tínhamos feito. Foi como uma espécie de revelação. Não nos
quando ele te acompanhava numa das tuas viagens de trabalho — disse ela em
voz baixa, quase num sussurro, sem saber que essas palavras se me cravavam na
ouvir.
qualquer, ter-te-ia dito que não, apenas por ser mais prático estar sozinha;
colher para provar o molho, os nossos dedos roçaram-se e nenhum dos dois se
Não é fácil deixar uma coisa exposta à intempérie durante anos e, depois,
nos. Por isso, naquele momento, tínhamos de nos esforçar e trabalhar para nos
reconstruirmos.
mesa da sala, porque ele tinha tido negativa a um par de disciplinas naquele
o rosto contraído de dor e uma mão apoiada na porta que acabavas de fechar. E
Fiquei sem ar. Abracei-te. Abraçámo-nos com tanta força que, durante
juntamente.
Mas, depois… depois deixei de prestar atenção à minha dor, em tudo o que o
Aurelio era para mim, porque só conseguia pensar em ti. Quem me dera ser
capaz de aliviar o teu sofrimento. Partia-me o coração saber aquilo por que
sempre, engolindo a dor. Naquele momento, enquanto olhava para os teus olhos
amor da minha vida. Continuavas a ser o melhor homem que eu alguma vez
pessoa, além dos nossos filhos, por quem eu seria capaz de fazer qualquer coisa.
Sabes aquela ideia tão visceral que nos faz pensar: «quem me dera trocar
crítico por ti. Se aquilo não era amor, que outra coisa seria?
dei-lhe um beijo na testa, antes de caminhar junto dele até à sala. Não fazia
ideia de como lhe contar, mas precisava de ser eu a gerir a situação e de te tirar
devagar, com ternura. Embora já tivesse doze anos, julgo que lhe foi difícil
entender. A princípio, ficou em silêncio a olhar para mim, sem reagir durante
tanto tempo que fiquei inquieta, até que, subitamente, se lançou nos meus
Com a Sofía foi ainda mais difícil. A Sofía quis ficar sozinha. A Sofía fechou-se
dar-lhe mais espaço por mais que no-lo pedisse, vi que tinha adormecido.
Estava abraçada a um urso de peluche que o teu pai lhe oferecera no Natal
anterior, algo que nos fez rir a todos, uma vez que ela já era crescida para
Fiz o jantar, embora mal lhe tenhamos tocado, com a televisão desligada e
— E eu a tua, Gabriel.
mas deixei que os miúdos dormissem até mais tarde, já que não iriam à escola.
porque não tinhas comido nada desde o dia anterior, ao almoço. Acedeste a
para o funeral.
Martínez, que estava destroçado com a notícia e que não te largou. Enterraram-
no junto à tua mãe, porque era o que ele sempre desejara. Enquanto nos
canela, nos jogos de dominó, nos seus maravilhosos chapéus e de ver como se
Tive a sensação de que aquele dia durara uma semana. É curioso perceber como
maus momentos. Parece fantasia. Ainda estava a pensar nisso quando nos
metemos na cama.
baixo da nossa parede cheia de constelações. A tua voz rouca e quebrada encheu
o espaço.
— Eu amava-o tanto…
— Eu sei, Gabriel.
Queria abraçar-te até que toda a dor desaparecesse. Porém, como sabia que
marcador que tinhas usado para as últimas estrelas. Sorriste. Foi um sorriso
triste, que não te chegou aos olhos, mas pegaste-lhe e puseste-te de pé em cima
deitar na cama. Abri-o na página que tinhas marcado e tomei fôlego antes de te
olhar de soslaio.
Dickens que costumavas reler com frequência. Não sei quanto tempo estive a
ler, mas sei que as palavras pareciam encadear-se umas nas outras, apaziguando-
nos como se fossem um bálsamo natural. Reparei que descontraías ao meu lado,
cama, como quando eram pequenos. Ela aconchegou-se ao teu peito e tu, ao
sentires o seu abraço, soltaste o ar que estavas a conter. O Pablo deixou-se ficar
um pouco mais afastado, talvez por sempre ter tido mais dificuldade em abrir-
aquela vez em que o Aurelio se engasgou com limonada que lhe saiu pelo nariz,
a meio do almoço. Ou quando a Sofía se lembrou de que ele não gostava nada
dos Take That, aquele grupo que ela adorava: o Aurelio costumava dizer que
namorado melhor.
E, apesar da tristeza, foi doce.
Despedimo-nos juntos.
32
Não foi uma década fácil para nós, Gabriel. Na realidade, diria que foi a pior. O
teu pai deixou-nos e, não muito tempo depois, também os meus pais nos
encontrar-nos a meio do caminho. Se houve alguma coisa boa daquela época, foi
isso.
connosco? Continuávamos a ser nós próprios. Suponho que, por vezes, estamos
tão ocupados a olhar para o nosso umbigo que não paramos para pensar naquilo
que a pessoa que temos ao lado estará a pensar, por que fase estará a passar, o
que lhe estará a acontecer. Deixamo-nos levar pela maré e não somos capazes de
mudar de direção porque é mais cómodo seguir e seguir e seguir, sem olhar para
trás: o problema é que, quando nos viramos, já não conseguimos ver a margem
quando teve de repetir o último ano. A Sofía, pelo contrário, deixou de precisar
de nós. Foi duro, principalmente para ti que sempre estiveste disponível para
ela, estendendo-lhe a mão ainda antes de ela ta pedir. Por outro lado, foi
tornava cada vez mais independente. Em dois anos, apresentou-nos três rapazes.
simultâneo.
com a respiração ainda agitada, com o teu corpo junto ao meu no sofá.
teus olhos ainda eram profundos e intensos. E os teus lábios… o sorriso que
Embora tivessem sido uns anos difíceis com o Pablo, creio que lidámos com
tudo o melhor que sabíamos. Não existe um manual que se possa seguir à risca
para sermos bons pais, e havia dias em que nos sentíamos sufocados, quando tu
te irritavas mais do que era preciso, ou eu me afligia por não conseguir entender
O Pablo não tinha muito interesse nos estudos. Um dia, ouvi-te a gritar no
quarto dele, dizendo-lhe: «Não fazes ideia dos sacrifícios que a tua mãe fez para
que tu pudesses ter agora uma educação. Não fazes ideia de como era antes, em
que não se tinha acesso a nada disto. E tu deitas tudo fora.» Saíste e bateste com
a porta.
Estavam quase sempre zangados um com o outro, se não era por causa das
notas, era por causa das companhias ou porque ele nunca chegava a casa à hora
partilhávamos, para não pensar mais no assunto, até que ele aparecia e vocês
Comigo, o Pablo ainda cedia, mas contigo era mais duro, como se te visse como
um rival. Parecia mentira que, anos antes, tu tivesses sido o seu herói, a pessoa
do quanto o meu rosto havia mudado: já não era uma miúda, embora tu às vezes
ainda me fizesses sentir que sim. Tinha rugas na testa e nos cantos da boca, a
todas essas diferenças externas, por dentro, sentia-me mais bela do que nunca:
era uma mulher segura, com ideias próprias, com capacidade de decisão. Não
que não tinha coragem de enfrentar o pai ou que pensava duas vezes antes de
vestir aquilo que realmente queria. Havia resquícios, sim, a minha essência.
fortalece.
entusiasmasse, mas não me queria precipitar. Por sorte, tinha uma lista de
num curso de inglês só pelo prazer de o fazer (os teus filhos riam-se sempre do
praticar.
— Vira à direita…
— Está bem, tens razão, não fiz pisca, e ainda consegues ouvir bem. Mas tens
— Isso não é verdade. Corriges os exames com o nariz colado à folha e mal
faz muito sentido. Está bem, vejo o que está por baixo: «sofás, cadeiras,
mesas…»
— Acertei em metade.
não sei porque resististe tanto: além disso, nem tinhas de os usar
permanentemente.
— Se tu o dizes…
— Vem cá.
E beijei-te, a rir.
33
comboio que passasse. Queria correr o mundo sem estar preso, sem ter de
Achávamos, simplesmente, que não seria bom para ele e queríamos protegê-lo
ideia de ele pegar numa mochila e ir por aí com o pouco dinheiro que ganhara a
brincavas com os teus filhos e como gostavas de os ver a crescer, sem imaginar,
de se entender.
Naquele dia, o último que ele passou em casa, ajudei-o a preparar a bagagem.
faculdade, a Sofía passou pelo quarto dele e abraçou o irmão com força: disse-lhe
que ele tinha um parafuso a menos, chamou-lhe «puto» entre lágrimas e deu-
lhe uma chupeta colorida que trazia sempre no porta-chaves para que ele a
na garganta.
Esperámos por ti, Gabriel. Tinhas saído de casa quando começámos a preparar
a bagagem e disseste que voltarias daí a pouco, mas, quando o taxista tocou à
dele. Como poderias não te despedir dele?… Mesmo não apoiando a sua decisão
Quando chegámos ao táxi, o Pablo olhou, inquieto, para os dois lados da rua.
Ficou um pouco nervoso. Estava à tua procura. Segurei-lhe nas faces como se
— E quanto ao pai…
— Ele ama-te muito. E sempre tentou fazer as coisas bem contigo, só que,
neste momento, está fechado em si mesmo e não consegue ver mais nada…
enganava. Foi por isso que me zanguei contigo. Porque tu conhecias o nosso
Gritei-te isso mesmo quando chegaste a casa, quinze minutos depois, abriste a
— Pelos vistos, tu também não. Achas que não me custou ajudá-lo a fazer as
malas e deixá-lo ir sem saber onde vai dormir amanhã ou depois? Achas que foi
fácil?
— Não, mas…
— Não te despediste do teu filho e vais arrepender-te disto a vida inteira. Ele
estava à tua espera, Gabriel, estava à espera que aparecesses, não parava de olhar
à volta na rua antes de entrar no táxi, e tu falhaste com ele. Mas, pior ainda,
falhaste contigo também. Porque tu não és assim. — Acariciei-te a face. — Eu
— Estraguei tudo…
— Um bocadinho.
— Não consegui…
acabava de a atravessar para entrar naquele comboio que sairia cinco minutos
depois. Ele olhou para ti. Tu olhaste para ele. Ao que parece, não falaram, mas,
por uma vez, não precisaram de o fazer para comunicarem e saberem que estava
tudo bem, que estarias ali quando ele decidisse que chegara o momento de
regressar.
34
Internet, não adivinharia que a chave para o meu futuro estava ali, por detrás
daquele ecrã e de um sistema formado por zeros e uns que eu não compreendia,
35
dezassete anos, achava que as pessoas de trinta anos eram «velhas». Quando fiz
pareciam mais «velhas» eram que já tinham cinquenta anos. Ao atingir esses
dígitos, não percebia como pude, alguma vez, ter pensado aquilo. Se ainda
éramos duas crianças! Não é assim? Ou, então, assim nos parece, quando
atravessamos essa linha e, olhando para trás, nos parece que a vida foram dois
dias.
— No tempo. Nos anos. O que nos aconteceu? Quero dizer, quando é que os
nossos filhos se tornaram adultos? Não me lembro, onde estávamos? Passou tão
depressa que tenho a impressão de ter perdido esse capítulo da minha vida.
Ainda há pouco eram dois bebés que eu podia apertar a toda a hora, e, agora, o
Pablo está em Viena e a Sofía anda por aí com esse rapaz… esse rapaz… como
— Está bem. Tanto faz, Raúl, pronto. Vês? Nem sequer lhes consigo seguir o
rasto porque andam muito depressa, e nós, não tarda, vamos começar a usar
bengala.
— Mas o tempo voa, Gabriel! Vai ser, outra vez, num abrir e fechar de olhos.
— E olha para mim. — Virei-me para ti. — Olha-me como deve ser.
— Sabes que isso não é verdade. Engordei e as calças que uso habitualmente
já quase não me servem. Mas não é só isso, sinto que estou a ficar para trás.
uma revista digital, que não tivesse de ser impressa nem de se vender nas
conhecimentos que adquirira anteriormente foram uma grande ajuda, uma vez
que, nos últimos anos, me habituara a contactar as marcas e sabia que grande
embarcámos juntas naquele projeto. Foi bonito, não só por tê-lo feito com ela,
mas também porque tu nos ajudaste, assim como outros colegas dela da
faculdade, que, mais tarde, acabariam por ser uma peça fundamental. Naquela
altura, ainda tínhamos um longo caminho pela frente, mas sentia-me satisfeita e
pegar no livro. — E pode saber-se porque é que tu, que ficas doido sempre que
— Estou a falar a sério, prefiro-o a ele do que a todos os outros com quem ela
tem saído. Eram, sei lá, pouco interessantes, não achas? Nem sequer
Tinhas razão. Talvez tenha sido sorte, ou o facto de sempre teres tido uma
verdade é que, pouco a pouco, o Raúl passou a fazer parte da família: estava
presente nos aniversários, ia muitas vezes contigo tirar fotografias à lagoa e cada
vez se dedicou mais ao projeto da revista, a ponto de fazer parte dele como se
los imersos numa espécie de rotina agradável, não daquelas que pesam. Pelo
começou a dirigir. O Raúl, por outro lado, continuou a dar uma ajuda, mas
arranjou outro emprego e foi-se afastando, como se uma parte dele quisesse
ir viver juntos.
apercebi-me de que, após mais de vinte anos de convívio com os nossos filhos,
voltávamos a estar a sós. Isso significava que podia tomar banho com a porta da
casa de banho aberta sem recear que o Raúl, ou outro amigo qualquer da Sofía,
pudesse aparecer ali de surpresa. Podíamos sempre jantar o que nos apetecesse
aqueles programas de pessoas que lá iam cantar, que deixavam a tua filha louca.
Tinhas razão. Ele tinha andado a saltitar pelo mundo durante alguns anos, e
uma história trepidante daquelas que achamos que só acontecem nos filmes:
tinha histórias para dar e vender. No entanto, acabou por fazer uma paragem
em Londres, quando decidiu que iria trabalhar algum tempo num bar para
acabou por se prolongar tanto que fomos nós que nos decidimos a ir visitá-lo.
Ficámos num hotel, porque o Pablo vivia num quarto arrendado que eu me pus
logo a limpar quando ele no-lo mostrou (porque o obriguei, claro) e que era
mais pequeno do que a toca de um rato. Mas foram seis dias extraordinários, em
— Vá lá, Valentina. Não me digas que não queres ter uma biblioteca só para
— Fazemos isso no quarto da Sofía, pode ser? Eu ponho uma mesa para o
computador e o resto do espaço fica todo para as estantes. Não olhes assim para
mim, talvez o Pablo queira voltar, um dia. Ela tem uma casa, mas ele não, é
Escolhemos cada móvel com carinho. Aproveitámos as tardes para passear por
acordo. Pintámos as paredes de um tom laranja suave, que quase parecia creme
quando havia mais luz. Tal como querias, comprámos uma carpete grossa com
pelo e acabámos por optar por dois cadeirões confortáveis, o teu, específico para
as dores de costas de que sofrias cada vez mais. Pusemos uma estante enorme
que ocupou um lado inteiro do quarto e, depois, fomo-la enchendo com aqueles
enquanto o céu escurecia em cada dia foi perfeito. Simbolizou a estrela que
aquela constelação.
36
— Não — respondeste.
mesa, inspirou fundo e olhou-te nos olhos. — Tem cinquenta e nove anos, mas
idoso, embora o Gabriel também já não seja um jovem. Tem de deixar de fumar
envelhecidos.
vezes sem conta, tanto ou mais do que a Sofía, que deixasses de fumar, mas
Quando saímos dali, fizemo-lo em silêncio. Eu não sabia o que dizer. Estava
médico, mas tu e os hospitais não se davam nada bem e era uma coisa que
zangada contigo por teres sido tão irresponsável, e comigo, por não ter
conseguido que fizesses aqueles exames mais cedo, puxaste-me pela mão no
meio de uma rua pedonal cheia de gente. — Não chores, Valentina. Vou fazer
Cumpriste a tua palavra. Foi mais uma estrela. Tive de aguentar o teu mau
hora, mas deixaste de fumar e começaste a caminhar mais vezes, e a usar menos
que estava à nossa espera à saída do aeroporto. Era muito bonita. Gostámos logo
dela, e, depois daqueles dias com eles, fomo-nos embora de Londres com a
Assim como a Sofía que, meses depois, nos anunciou que estava grávida. Ela e
o Raúl nunca casaram, mas tiveram uma bebé linda a quem chamaram Eva.
qualquer tontice. Na primeira vez em que ela te chamou «avô», estavas prestes
a começar a chorar.
A diferença entre ter filhos e netos é que, aos filhos, temos de os educar e
tempo que passávamos com ela e a quebrar as regras, às escondidas, que os pais
lhe impunham. Reconheço que lhe dei uma ou outra bolacha daquelas com
aquilo que ela precisava, mas, em minha defesa, ela tinha um sorriso tão bonito
que era muito difícil recusar-lhe alguma coisa quando fazia beicinho — pelo
escola, embora delegasse cada vez mais coisas à Sofía para poder passar as tardes
contigo, sobretudo quando a Eva entrou para a creche. Então, quando o sol se
agradecidos, dávamos uma volta de mãos dadas pelo bairro, parávamos para
beber um descafeinado ou, se fosse sábado, para comer umas batatas fritas com
molho picante ou uns calamares numa das esplanadas que tão bem
conhecíamos. Líamos juntos e tomámos o gosto por assistir a séries e ir cada vez
aproveitavas para tirar fotografias e para fingir, durante alguns dias, que ainda
Deixei de ter a força que tinha nos braços e, embora contrariada, aceitei o
carrinho de compras que a Sofía me ofereceu porque, no fundo, ela tinha razão e
era prático.
começaram a fazer parte da rotina, como se sempre ali tivessem estado. Os teus
isso parecia algo tão grave. Foi o que pensei quando o médico tos receitou.
«Este é o comprimido para o coração.» Foi estranho pensar que o teu coração
ouvi-lo, com a cabeça apoiada no teu peito, e o amor que aí se tinha formado,
Quarenta e cinco anos desde que te vi naquela rua, enquanto levava um pão
debaixo do braço. Desde aquela vez em que me seguiste até ao Mercado Central
conhecias melhor cada canto daquele edifício do que da tua própria casa. Ou
melhor, de certo modo, também foi a tua casa, aquela para a qual ias todos os
uma última vez, alguns acompanhados até pelos próprios filhos, outros
contavam-te como tinha sido a sua vida depois de se formarem. A Sofía e o Raúl
Era uma manhã de quarta-feira e, após algumas semanas meio confusas com as
nem um emprego para onde ir todos os dias. Mas também fazia com que nos
— Não olhes assim para mim, agora eu teria tempo de sobra para dedicar às
plantas. Teríamos o melhor jardim do bairro. Até podias fazer umas sessões de
fotografia lá.
— Nunca é tarde para novos passatempos. Talvez até pudesse fazer mel
semanas, tinhas roído as unhas, talvez por te sentires inseguro naquela nova
etapa.
— Podíamos viajar.
— Para onde?
— Não sei, por aí. Pelo mundo inteiro. O Pablo já esteve num monte de
sítios, pedíamos-lhe que nos recomendasse algum. E cada dia seria uma
aventura.
Só tínhamos ido ao estrangeiro para visitar o nosso filho, o que cada vez
acontecia com mais frequência. Contudo, nunca tínhamos viajado sozinhos pelo
olhar no teu rosto. Como mudámos com os anos, Gabriel; porém, eu continuava
a achar-te atraente, com a pele enrugada e os olhos mais opacos. De certo modo,
a tua imagem representava uma vida inteira diante de mim, cheia de momentos
médicos dizem. Não digo que estejam errados, mas eu estou a cuidar de mim,
está bem? Pelo menos, estou a tentar. E, sejamos objetivos, meu amor, havemos
isto é que temos de aproveitar os anos que nos restam. Viver, Valentina.
Devíamos gastar uma boa parte das nossas poupanças a fazer o que nos apetecer.
Queres comprar uma joia? Pois compra. Queres nadar com tubarões? Força!
Jantar num daqueles restaurantes finos com cinco garfos? Muito bem!
Porque não?
— Não, estou a falar muito a sério, querida. Este é o momento. O Pablo está
longe e está bem, é feliz. A Sofía tem trinta e sete anos, é uma mulher adulta e
sei que achas que ela ainda precisa de nós a toda a hora, que tens de lhe dar
conselhos sobre cada passo que dá na empresa, e sei que, às vezes, ainda nos
pede ajuda com a Eva, mas dá-lhe espaço, deixa que seja ela a vir ter connosco.
— Também sei que tens medo de que algo de mal aconteça, mas sabes? Podia
acontecer o mesmo a duas ruas daqui ou no outro lado do mundo. Não sabemos
quando nem como, a única certeza que temos é que agora estamos eu e tu, tal
Eiffel…
Um par de semanas depois, fizemos as malas. Lembro-me dos nervos que senti
antes de entrar no avião. Vê lá, que disparate. Tínhamos visitado o Pablo várias
vezes ao longo dos últimos anos, mas, naquela ocasião, era diferente. Não estaria
ninguém à nossa espera no aeroporto para nos levar num tour pela cidade. E eu
sentia-me como uma miúda prestes a fazer uma travessura. Quando apertámos
segurança.
como sempre, entrelacei os meus dedos nos teus, porque tinha mais medo de
voar do que daquela ideia louca de nadar com tubarões. — Tem calma. Respira
caro, sendo que nunca nos havíamos dado àquele luxo, e tomei um banho de
— O que queres?
— Agora tens vergonha de que olhe para ti? Vá lá, há muito tempo que não
me deixas olhar para ti, parece que te escondes de propósito. — Olhaste para
vagarosamente, com ternura, a sorrir. Não sei o que esperava daquele momento,
mas foi íntimo e… diferente. Sabes? Pensamos que, a partir de certa altura da
vida, já não há nada de novo, mas não é verdade. Nunca tínhamos vivido nada
pelo meu corpo despido, enrugado e flácido. Aquela que eu era, na altura. E
pensei, num dia muito longínquo, eras o melhor homem que eu alguma vez
pelo seu aniversário e os livros que queríamos ler a seguir. Comi todos os
Começámos pela Europa. Percebi, então, por que razão as pessoas gostam tanto
uma rua nova ou visitamos um monumento que ansiámos conhecer, não nos
problemas, nem seguimos com aquele peso das preocupações que costumamos
carregar no dia a dia, quando vamos, qual autómatos, do trabalho para casa, de
melhor o teu filho. Assim mo disseste num dia em que passeávamos por
tanto que, como sempre acontecia no que tocava a sentimentos, o Pablo não
arranjara outro emprego em que lhe pagavam bem melhor do que no anterior.
o que podemos e o que não podemos esperar delas. De certo modo, os defeitos
a diferencia das outras, o que fazia com que o Pablo fosse único, por exemplo,
com os seus defeitos e as suas virtudes, com as suas luzes e as suas sombras.
mundo, ela começou a ficar nervosa. Creio que foi esse o momento em que me
sentidos. Aquela preocupação por tudo e por nada, aquele impulso de querer
abarcar mais e mais, a maturidade das suas ideias e a tensão que se lhe instalava
nos ombros eram coisas que eu própria vivera na pele, anos antes.
para nos deixares a sós. Apoiei uma mão na sua perna e olhei-a antes de tomar
fôlego.
— Tenta descontrair, Sofía. Escuta o que te digo.
— Sim, eu sei. E também sei como te sentes porque já passei por isso, e,
muitos anos depois, apercebi-me de que talvez pudesse ter feito as coisas de
outro modo. Sabes o que o teu avô me estava sempre a dizer? Vais rir-te. Dizia:
«Sempre com pressa, Valentina.» E tinha toda a razão do mundo. Eu devia ter
esforçava por conter as lágrimas. — Sinto que tenho sempre alguma coisa para
fazer. Sempre, mamã. Desde que me levanto até que me deito. E gostava de
passar mais tempo com a Eva. Mas também não posso pedir mais ao Raúl,
— Sim, mas as pessoas não são muito profissionais… iam fazer tudo mal…
— Talvez. — Respirou fundo, ainda com a angústia a pairar-lhe nos olhos cor
— Tenho a sensação de que devia estar mais perto; sempre que vos vamos
visitar, fazemos tudo com pressa e a correr, há muito, muito tempo que não
lado para o outro porque, se acontece alguma coisa e eu não puder lá estar…
— É assim que as coisas são. Nós estamos a viver uma época fascinante
juntos, a viajar e a desfrutar dos prazeres da vida após muitos anos de trabalho.
crescem muito depressa, Sofía, ainda ontem eras uma bebé minúscula nos meus
vida são dois dias. Digamos que todos temos uma corda presa ao corpo cheia de
responsabilidades e pressões que põem sobre nós, é mesmo assim, mas assegura-
te de que o nó não está demasiado apertado. O trabalho é uma parte importante
elevados e uma família adorável. Cuida de tudo isso. Não serve de nada ter um
A Sofía assentiu e depois apoiou a cabeça no meu ombro, como quando era
— Sim. E, antes que ralhes comigo, aviso já que lhe dei alguns conselhos.
Mas não como sócia, nem como chefe, tinha de o fazer como mãe, percebes?
— Talvez. Mas está certa. Pensa lá, Valentina. Começamos por ser apenas um
divertia ouvir as coisas que às vezes te passavam pela cabeça, aquelas pequenas
loucuras.
cimento sólido antes de podermos crescer. E, por vezes, há um pilar que está no
lugar errado desde o princípio, por exemplo, e faz com que tudo balance. Ou
— Detesto humidade.
que, por dentro, estão sujos e quase a cair. Ou o contrário, edifícios que, por
fora, não parecem nada de especial, mas que por dentro até têm um pátio
— Tu és um sótão, claro.
— E porquê?
quanto a mim, não sei, não me importaria de ser uma casa térrea desde que
grossas para conservar o calor no inverno, e o frio no verão. Não dessas que se
fazem agora que mais parecem feitas de papel, como se fossem desabar a
qualquer momento.
— Não percebo o que está a acontecer. Estás a deixar-me nervosa. — Olhei para
detestava surpresas. Creio que acabei por obedecer só porque a Amber ali estava
— tinha vindo com o Pablo visitar-nos, sem sequer avisarem — e era uma
rapariga demasiado doce para que eu fizesse uma cena. De modo que vesti o
Mais uma vez, fiz o que me pediam. Taparam-me os olhos com um pano e
senti a pequena mão da Eva a segurar na minha para me guiar pelo elevador e
todas responderam que sim, claro. Obviamente que eu tinha as minhas dúvidas.
Além disso, não estavas ali, apesar de eu achar que estarias com o Pablo ou com
Não sei quanto tempo durou o trajeto, mas, quando saí do carro, adivinhei
que estávamos na praia porque a brisa marinha era inconfundível, mesmo com a
me tirarem a venda.
— Sem a opção de pedir uma recompensa, sim. — Olhei para o Pablo, que se
ria a bom rir ao teu lado. — O que estamos aqui a fazer? — Quando
Não era o primeiro ano em que isso nos acontecia. Nunca fomos um desses
casais que celebram as datas especiais, nós éramos mais do dia a dia.
Olhei, incrédula, para a Sofía. Em seguida, ergui o olhar para ti, que sorriste
vagarosamente.
começou a explicar que aquilo era como celebrar umas bodas de ouro
Roussos. Enquanto caminhava até ti, comecei a chorar e a rir, tudo ao mesmo
tempo, como se estivesse louca. Talvez estivesse, de facto, pois não era capaz de
afastar os meus olhos dos teus. A Eva estava ao teu lado e, ao posicionarmo-nos
frente a frente, ocupou-se da cerimónia e leu uma carta sobre nós os dois e sobre
o amor, que ela escrevera sozinha. De facto, notava-se, já que não fazia muito
sentido, mas que importância tinha isso? Eu só conseguia olhar para ti, sorrir e
E esse gesto bastou para que me sentisse em casa. Tu eras o meu lar. Sempre
Nessa noite, quando entrámos no quarto, olhei para ti, satisfeita, enquanto
cada queda e cada vez que nos havíamos voltado a levantar. Era a obra da nossa
vida. Pontos e linhas ligados uns aos outros, uma pequena galáxia que só nós
compreendíamos.
constelações agora e voltaria a viver uma por uma, todas estas estrelas, tanto as
— O quádruplo.
cinquenta anos juntos, procurei o calor do teu corpo debaixo dos cobertores e
Aconteceu numa qualquer manhã de inverno. Não sei se era terça, se era quinta
nascer do sol. E, naquele dia, a luz estendia-se até chegar à colcha e as partículas
peito, na garganta, na barriga, na alma. Fiquei sem ar. Chamei-te, mas não
aquilo, mas, nessa vez, não me tranquilizaste, não me limpaste as lágrimas nem
me asseguraste de que tudo ficaria bem. Nessa vez, deixaste-me sozinha. Nessa
agarrar com força ao teu corpo frio antes de sussurrar o teu nome: apenas um
inevitável quando acontece aos outros e está longe de nós. Ouvem-se coisas
sofrer». Nada disto serve quando a pessoa que partiu é a que amamos com todas
as nossas forças. De nada serve quando quem partiu foste tu, Gabriel. Não me
parece que seja a lei da vida, e não me sinto aliviada pela falta de sofrimento
porque não consigo deixar de pensar que devias estar aqui. Devias. Os meus
sem ficarmos sem fôlego, quando te rias com um cigarro pendurado nos lábios e
que dançava comigo na sala, em casa, com quem partilhei os bons e os maus
momentos, o que me deu asas a mim e aos meus filhos, o que pedia «desculpa»
ainda antes de saber porque o fazia, o que me ensinou a ler, a crescer e a viver,
Gabriel, é difícil encontrar alguém como tu neste mundo, uma pessoa que nos
acrescenta sempre algo, uma pessoa que traz luz e afasta as sombras, uma pessoa
que dá sem esperar receber nada em troca. Por isso, só consigo pensar que não é
justo. Não devia ter sido assim. Eu não devia estar aqui, sem ti ao meu lado.
Não consigo ouvir nada. Também não consigo abrir os olhos, que estão
inchados. Nunca tinha sentido uma tristeza tão profunda, uma dor tão feroz,
como se me tivessem arrancado uma parte do corpo pela raiz e a ferida estivesse
com pus.
que me aflige e me entorpece as mãos parece crescer quando tudo chega ao fim
O Pablo, que apanhou o primeiro avião, abraça-me com força e soluça. Mal
consigo consolá-lo. Mal consigo levantar os braços para lhe envolver as costas
levaste-os tu contigo e já nada voltará a ser como dantes. Diferente, talvez, sim.
Mas não como dantes. Quando tomo consciência disto, quando escuto a tua voz
como que a sussurrar-me ao ouvido, sinto-me ligeiramente mais forte e consigo
olhar o teu filho nos olhos e limpar-lhe as lágrimas com os polegares, como tu
fizeste comigo vezes sem conta, embora as mãos me tremam tanto que não me
Depois, vou ter com a Sofía. Tento tranquilizá-la. Tento pensar que seria o
que tu quererias, porque ela era a menina dos teus olhos, a tua pequenina. Sei
que detestarias vê-la assim. Partir-te-ia o coração. Choramos juntas até que o
funeral acaba e o céu escurece. Ela insiste uma e outra vez que eu vá dormir a
sua casa esta noite, e eu digo-lhe que não. Talvez lhe seja difícil compreender,
mas, nesta noite, preciso de estar na nossa cama porque é o lugar em que, neste
momento, posso estar mais perto de ti, porque, tal como previra, quando me
deito e apoio a cabeça na almofada, apercebo-me de que esta ainda tem o teu
cheiro e deixo escapar um soluço aflitivo ao fitar a tua mesa de cabeceira, o livro
Penso em ti. Tento recordar todos os momentos mágicos que vivemos juntos.
os dois a aproximarmo
-nos. Os problemas que fomos superando. As viagens.
Gabriel: o amor.
que tenho de fazer, sei-o perfeitamente, mas demoro uma eternidade a inclinar-
das constelações, a da vida que vivemos juntos. Deste-me muitas coisas que se
tornaram só minhas, mas não aquelas estrelas. As estrelas eram nossas. E, hoje,
já não são. Acaba aqui o trajeto. Acaba aqui o «tu e eu», Gabriel. Sabíamos que
imaginei que seria tão difícil, porque uma coisa é pensar nisso e outra é vivê-lo,
tentar enquadrar a parede desfocada pela vista turva devido às lágrimas, unir os
Só quero passar o dia na cama a contemplar a luz que entra pela janela. Ou a
vida que me resta, não sei. Contudo, levantar-me não parece ser opção. Até que
penso em ti. Nas tuas palavras. Na maneira como sempre puxaste por mim, me
encorajaste a ser mais e melhor, e percebo que ficar ali com o nariz enfiado na
quando sirvo a minha chávena, penso que a partir de agora terei de usar a
pequena.
Depois, com o café na mão, entro naquele quarto que ambos transformámos
mesmo tempo. Como é possível que nada tenha mudado de sítio e, ainda assim,
me pareça ser outro lugar? Penso nisso enquanto contemplo a tua biblioteca
Penso em ti. Quando sereno, abro um novo documento, que será só meu e no
qual preciso de verter esta confusão de dor, amor, raiva, ternura e uma enorme
para as outras pessoas fosses um homem de setenta anos com o cabelo grisalho e
as faces repletas de rugas, mas, para mim, sempre foste o rapaz que desenhava
constelações.
Este projeto estava, há muito tempo, à espera do seu momento, mas, um dia, as
não consegui parar até o terminar. E tudo isso graças aos meus avós. Também
verões no campo. Foi reconfortante entrelaçar esta história mais íntima e plena
partilhava essa etapa com a Dani, e com a Neïra, a Saray e a Abril. Agradeço-
vos infinitamente por «estarem». Assim como a todas as pessoas com quem
vivo o meu dia a dia, colegas e amigos, vocês sabem quem são.
Agora que este romance vai ver a luz do dia em livrarias, quero agradecer
passa
-palavra conseguiu mantê-lo vivo até ao dia de hoje, que está prestes a
vestir-se de gala para embarcar numa nova aventura. Foi possível graças ao
Pablo, que o leu com todo o seu carinho, e às minhas editoras, que me
Ao Leo, porque espero que, num dia longínquo, possas ler esta história que
dedicar-te, aqui, mas sabia que seria uma do Gabriel. E a verdade é que, como
ele dizia: «as más recordações também fazem parte de quem nós somos», tu