10 de março de 2014
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10 de março de 2014
– Gostaria de saber algo de mais exato sobre a Inquisição. Se os velhos tempos voltassem, a
Igreja restauraria a Inquisição? (Desconfiado – Petrópolis-RJ).
A inquisição não foi criada de uma só vez nem procedeu sempre do mesmo modo no decorrer
dos séculos. Por isto distinguem-se:
1) a Inquisição Medieval, voltada contra as heresias cátara e valdense nos séculos XII/XIII e
contra um falso misticismo do séc. XIV;
2) a Inquisição Espanhola, instituída em 1478 por iniciativa dos reis Fernando e Isabel; visando
principalmente os judeus e os muçulmanos, tornou-se poderoso instrumento do absolutismo
dos monarcas espanhóis até o séc. XIX, a ponto de quase não poder ser considerada instituição
eclesiástica (não raro a Inquisição espanhola procedeu independentemente de Roma,
resistindo à intervenção da Santa Sé, porque o rei da Espanha a esta se opunha);
3) a Inquisição Romana (também dita “o Santo Ofício”), instituída em 1542 pelo Papa Paulo III,
em vista do surto do Protestantismo.
Apesar das modalidades de que se revestiu, a Inquisição Medieval e a Romana foi movida por
alguns princípios e uma mentalidade característicos; é justamente a estes princípios que o
historiador deve voltar a sua atenção, a fim de poder formular um juízo sobre a famosa
instituição. Conscientes disto, examinaremos as origens da Inquisição, seus procedimentos
mais famigerados, para finalmente chegarmos a uma apreciação objetiva do acontecimento
histórico.
1. Origens da Inquisição
No antigo Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos delituosos; só procedia ao
julgamento depois que lhe fosse apresentada a denúncia. Até a Alta Idade Média, o mesmo se
deu na Igreja: a autoridade eclesiástica não procedia contra os delitos se estes não lhe fossem
previamente deferidos. No decorrer dos tempos, porém, esta praxe mostrou-se insuficiente.
Além disto, no séc. XI apareceu na Europa nova forma de delito religioso, isto é, uma heresia
fanática e revolucionária, como não houvera até então: o Catarismo (do grego “katharós”,
“puro”) ou o movimento dos Albigenses (de “Albi”, cidade da França meridional, onde os
hereges tinham seu foco principal).
Considerando a matéria por si má, os cátaros rejeitavam não somente a face visível da Igreja,
mas também instituições básicas da vida civil o matrimônio, a autoridade governamental, o
serviço militar e enalteciam o suicídio. Destarte, constituíam grave ameaça não somente para
a fé cristã, mas também para a vida pública.
Em bandos fanáticos, às vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocaram tumultos,
ataques às igrejas etc., por todo o decorrer do séc. XI até 1150 aproximadamente, na França,
na Alemanha, nos Países-Baixos… O povo, com a sua espontaneidade, e a autoridade civil se
encarregaram de os reprimir com violência: não raro o poder régio da França, por iniciativa
própria e a contragosto dos bispos, condenou à morte pregadores albigenses, visto que
solapavam os fundamentos da ordem constituída. Foi o que se deu, por exemplo, em Orléans
(1017), onde o rei Roberto, informado de um surto de heresia na cidade, compareceu
pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os mandou lançar ao fogo; a causa da
civilização e da ordem pública se identificava com a da fé! Entrementes a autoridade
eclesiástica limitava-se a impor penas espirituais (excomunhão, interdito etc.) aos albigenses,
pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência
física; Santo Agostinho (+430) e antigos bispos, São Bernardo (+1153), São Norberto (+1134) e
outros mestres medievais eram contrários ao uso da força (“Sejam os hereges conquistados
não pelas armas, mas pelos argumentos”, admoestava São Bernardo, In Cant. Serm. 64).
Não são casos isolados os seguintes: em 1144, na cidade de Lião, o povo quis punir
violentamente um grupo de inovadores que aí se introduzira; o clero, porém, os salvou,
desejando a sua conversão, e não a sua morte. Em 1077, um herege professou seus erros
diante do bispo de Cambraia; a multidão de populares lançou-se então sobre ele, sem esperar
o julgamento; encerraram-no numa cabana, à qual atearam o fogo!
– “Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de inocentes (…)
A mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a dureza”.
Informado desta admoestação pontifícia, o rei Luís VII de França, irmão do referido arcebispo,
enviou ao Papa um documento em que o descontentamento e o respeito se traduziam
simultaneamente:
– “Que vossa prudência dê atenção toda particular a essa peste (=a heresia) e a suprima antes
que possa crescer. Suplico-vos, para bem da fé cristã: concedei todos os poderes neste campo
ao arcebispo (de Reims); ele destruirá os que assim se insurgem contra Deus; sua Justa
severidade será louvada por todos aqueles que nesta terra são animados de verdadeira
piedade. Se procederdes de outro modo, as queixas não se acalmarão facilmente e
desencadeareis contra a Igreja Romana as violentas recriminações da opinião pública”
(Martène, Amplíssima Collectio 2, pp.683-684).
As consequências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: o concilio regional
de Tours, em 1163, tomando medidas repressivas à heresia, mandava inquirir (procurar) os
seus agrupamentos secretos. Por fim, a assembleia de Verona (Itália), à qual compareceram o
Papa Lúcio III, o Imperador Frederico Barbarroxa, numerosos bispos, prelados e príncipes,
baixou em 1184 um decreto de grande importância: o poder eclesiástico e o civil, que até
então haviam agido independentemente um do outro (aquele impondo penas espirituais, este
recorrendo à força física), deveriam combinar seus esforços em vista de mais eficientes
resultados: os hereges seriam doravante não somente punidos, mas também procurados
(inquiridos); cada bispo inspecionaria, por si ou por pessoas de confiança, uma ou duas vezes
por ano, as paróquias suspeitas; os condes, barões e as demais autoridades civis os deveriam
ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito lançado sobre as suas terras; os
hereges depreendidos ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço secular, que lhes
imporia a sanção devida.
Assim era instituída a chamada “Inquisição episcopal”, a qual, como mostram os precedentes,
atendia a necessidades reais e a clamores exigentes tanto dos monarcas e magistrados civis
como do povo cristão; independentemente da autoridade da Igreja, já estava sendo praticada a
repressão física das heresias.
No decorrer do tempo, porém, percebeu-se que a Inquisição episcopal ainda era insuficiente
para deter os inovadores; alguns bispos, principalmente no sul da França, eram tolerantes;
além disto, tinham seu raio de ação limitado às respectivas dioceses, o que lhes vedava uma
campanha eficiente. À vista disto, os Papas, já em fins do séc. XII, começaram a nomear legados
especiais, munidos de plenos poderes para proceder contra a heresia onde quer que fosse.
Destarte, surgiu a “Inquisição Pontifícia” ou “Legatina”, que a princípio ainda funcionava ao
lado da episcopal; aos poucos, porém, a tornou desnecessária. A Inquisição papal recebeu seu
caráter definitivo e sua organização básica em 1233, quando o Papa Gregório IX confiou aos
dominicanos a missão de Inquisidores; haveria doravante, para cada nação ou distrito
inquisitorial, um Inquisidor-Mor, que trabalharia com a assistência de numerosos oficiais
subalternos (consultores, jurados, notários…), em geral independentemente do bispo em cuja
diocese estivesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial foram sendo
sucessivamente ditadas por bulas pontifícias e decisões de Concílios.
Entrementes, a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente (!), contra os
sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico II, um dos mais
perigosos adversários que o Papado teve no séc. XIII: em 1220, este monarca exigiu de todos os
oficiais do seu governo, que prometessem expulsar de suas terras os hereges reconhecidos
pela Igreja; declarou a heresia crime de lesa-majestade, sujeito à pena de morte e mandou dar
busca aos hereges. Em 1224, publicou decreto mais severo do que qualquer das leis editadas
pelos reis ou Papas anteriores: as autoridades civis da Lombardia deveriam não somente enviar
ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo bispo, mas ainda cortar a língua aos
sectários a quem, por razões particulares, se houvesse conservado a vida. É possível que
Frederico II visasse interesses próprios na campanha contra a heresia; os bens confiscados
redundariam em proveito da coroa.
Não menos típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra; tendo entrado em luta contra o
arcebispo Tomas Becket, primaz da Cantuária, e o Papa Alexandre III, foi excomungado. Não
obstante mostrou-se um dos mais ardorosos repressores da heresia no seu reino: em 1185, por
exemplo, alguns hereges da Flândria, tendo-se refugiado na Inglaterra, o monarca mandou
prendê-los, marcá-los com ferro vermelho na testa e expô-los, assim desfigurados, ao povo;
além disso, proibia aos seus súditos lhes dessem asilo ou lhes prestassem o mínimo serviço.
Estes dois episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder violento
contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado pela suprema autoridade da Igreja, foi
não raro desencadeado independente desta, por poderes que estavam em conflito com a
própria Igreja. A Inquisição, em toda a sua história, se ressentiu dessa usurpação de direitos ou
da demasiada ingerência das autoridades civis em questões que dependem primariamente do
foro eclesiástico.
Em conclusão, o histórico das origens da Inquisição leva-nos a ver que esta não foi concebida
como órgão de intransigência odiosa, mas, sim, qual medida defensiva do bem comum,
religioso e civil. Consciente disto, o historiador distingue entre a intenção dos homens da Igreja
que instituíram a Inquisição, e a conduta daqueles que a executaram, conduta que passamos a
analisar.
– “O Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação
das almas e pela extirpação das heresias. Em meio às dificuldades permanecerá calmo, nunca
cederá à cólera nem à indignação (…) Nos casos duvidosos, seja circunspecto, não dê fácil
crédito ao que parece provável e muitas vezes não é verdade; também não rejeite
obstinadamente a opinião contrária, pois o que parece improvável frequentemente acaba por
ser comprovado como verdade (…) O amor da verdade e a piedade, que devem residir no
coração de um juiz, brilhem nos seus olhos, a fim de que suas decisões jamais possam parecer
ditadas pela cupidez e a crueldade” (Prática 6, Ed. Douis, p. 232-233).
Já que mais de uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da Inquisição, não se
poderia crer que o apregoado ideal do Juiz Inquisidor, ao mesmo tempo equitativo e bom, se
realizou com mais frequência do que comumente se pensa? Não se deve esquecer, porém –
como abaixo mais explicitamente se dirá -, que as categorias pelas quais se afirmava a justiça
na Idade Média, não eram exatamente as da época moderna… Além disto, levar-se-á em conta
que o papel do juiz, sempre difícil, era particularmente árduo nos casos da Inquisição: o povo e
as autoridades civis estavam profundamente interessados no desfecho dos processos; pelo
que, não raro exerciam pressão para obter a sentença mais favorável a caprichos ou a
interesses temporais; às vezes, a população obcecada aguardava ansiosamente o dia em que o
“veredictum” do juiz entregaria ao braço secular os hereges comprovados. Em tais
circunstâncias não era fácil aos juízes manter a serenidade desejável.
A tortura estava em uso entre os gregos e romanos pré-cristãos que quisessem obrigar um
escravo a confessar seu delito. Certos povos germânicos também a praticavam. Em 866,
porém, dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a condenou formalmente.
Não obstante, a tortura foi de novo adotada pelos tribunais civis da Idade Média nos inícios do
séc. XIII, dado o renascimento de Direito Romano. Nos processos inquisitoriais, o Papa
Inocêncio IV acabou por introduzi-la em 1252, com a cláusula: “Não haja mutilação de
membro nem perigo de morte” para o réu. O Pontífice, permitindo tal praxe, dizia conformar-se
aos costumes vigentes em seu tempo (Bullarum Amplíssima Collectio 2,326).
– “Conforme a lei civil, os réus de lesa-majestade são punidos com a pena capital e seus bens
são confiscados (…) Com muito mais razão, portanto, aqueles que, desertando a fé, ofendem a
Jesus, o Filho do Senhor Deus, devem ser separados da comunhão cristã e despojados de seus
bens, pois muito mais grave é ofender a Majestade Divina do que lesar a majestade humana”
(Epist. 2,1).
Como se vê, o Sumo Pontífice com essas palavras desejava apenas justificar a excomunhão e a
confiscação de bens dos hereges; estabelecia, porém, uma comparação que daria ocasião a
nova praxe… O Imperador Frederico II soube deduzir-lhe as últimas consequências: tendo
lembrado, numa constituição de 1220, a frase final de Inocêncio III, o monarca, em 1224,
decretava francamente para a Lombardia a pena de morte contra os hereges e, já que o Direito
antigo assinalava o fogo em tais casos, o Imperador os condenava a ser queimados vivos. Em
1230, o dominicano Guala, tendo subido à cátedra episcopal de Bréscia (Itália), fez aplicação da
lei imperial na sua diocese. Por fim, o Papa Gregório IX, que tinha intercâmbio frequente com
Guala, adotou o modo de ver deste bispo: transcreveu em 1230 ou 1231 a constituição
imperial de 1224 para o Registro das Cartas Pontifícias e, em breve, editou uma lei pela qual
mandava que os hereges reconhecidos pela Inquisição fossem abandonados ao poder civil,
para receber o devido castigo, castigo que, segundo a legislação de Frederico II, seria a morte
pelo fogo.
Os teólogos e canonistas da época se empenharam por justificar a nova praxe; eis como o fazia
São Tomás de Aquino:
– É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar a moeda, que é
um meio de prover à vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores
são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os
hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não somente ser excomungados, mas
também em toda justiça ser condenados à morte (Suma Teológica II/II,11.3d).
A argumentação do Santo Doutor procede do princípio (sem dúvida, autêntico em si, mas
pouco significativo para o mundo moderno) de que a vida da alma mais vale do que a do
corpo; se, pois, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do próximo, comete maior mal do
que quem assalta a vida corporal; o bem comum então exige a remoção do grave perigo (veja-
se também Suma Teológica II/II 11,4c).
Contudo, as execuções capitais não foram tão numerosas quanto se poderia crer. Infelizmente,
faltam-nos estatísticas completas sobre o assunto; consta, porém, que o tribunal de Pamiers,
de 1308 a 1324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, das quais apenas cinco mandavam
entregar o réu ao poder civil (o que equivalia à morte); o Inquisidor Bernardo de Gui, em
Tolosa, de 1303 a 1323, proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a
proporção é de 1/15; no segundo caso, de 1/22.
Não se poderia negar, porém, que houve injustiças e abusos da autoridade por parte dos juízes
inquisitoriais. Tais males se devem à conduta de pessoas que, em virtude da fraqueza humana,
não foram sempre fiéis cumpridoras da sua missão. Os Inquisidores trabalhavam a distâncias
mais ou menos consideráveis de Roma, numa época em que, dada a precariedade de correios e
comunicações, não podiam ser assiduamente controlados pela suprema autoridade da Igreja.
Esta, porém, não deixava de os censurar devidamente, quando recebia notícia de algum
desmando verificado em tal ou tal região.
Famoso, por exemplo, é o caso de Roberto o Bugro, Inquisidor-Mor da França do séc. XIII. O
Papa Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto, porém, tendo aderido
outrora à heresia, mostrava-se excessivamente violento na repressão da mesma. Informado
dos desmandos praticados pelo Inquisidor, o Papa o destituiu de suas funções e mandou
encarcerar. Inocêncio IV, o mesmo Pontífice que permitiu a tortura nos processos da Inquisição,
e Alexandre IV, respectivamente em 1246 e 1256, mandaram os Padres Provinciais e Gerais dos
Dominicanos e Franciscanos depor os Inquisidores de sua Ordem que se tornassem notórios
por sua crueldade.
O Papa Bonifácio VIII (1294-1303), famoso pela tenacidade e intransigência de suas atitudes,
foi um dos que mais reprimiram os excessos dos Inquisidores, mandando examinar, ou
simplesmente anulando, sentenças proferidos por estes.
O Concilio regional de Narbona (França), em 1243, promulgou 29 artigos que visavam impedir
abusos do poder. Entre outras normas, prescrevia aos Inquisidores só proferissem sentença
condenatória nos casos em que, com segurança, tivessem apurado alguma falta, “pois mais
vale deixar um culpado impune do que condenar um inocente” (cânon 23).
Dirigindo-se ao Imperador Frederico II, pioneiro dos métodos inquisitoriais, o Papa Gregório IX,
aos 15 de julho de 1233, lhe lembrava que “a arma manejada pelo Imperador não devia servir
para satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande escândalo das populações, com
detrimento da verdade e da dignidade imperial” (Ep. Saec. 13,538,5500).
Conclusão
Não é necessário ao católico justificar tudo que, em nome desta, foi feito. É preciso, porém,
que se entendam as intenções e a mentalidade que moveram a autoridade eclesiástica a
instituir a Inquisição. Estas intenções, dentro do quadro de pensamento da Idade Média, eram
legítimas; diríamos até: deviam parecer aos medievais inspiradas por santo zelo. Podem-se
reduzir a quatro os fatores que influíram decisivamente no surto e no andamento da
Inquisição:
2) As categorias de justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das nossas: havia muito
mais espontaneidade (que às vezes equivalia a rudez) na defesa dos direitos. Pode-se dizer que
os medievais, no caso, seguiam mais o rigor da lógica do que a ternura do sentimento; o
raciocínio abstrato e rígido neles prevalecia por vezes sobre o senso psicológico (nos tempos
atuais verifica-se quase o contrário: muito se apela para a psicologia e o sentimento, pouco se
segue a lógica; os homens modernos não acreditam muito em princípios perenes; tendem a
tudo julgar segundo critérios relativos e relativistas, critérios de moda e de preferência
subjetiva).
4) Não se negará a fraqueza humana de Inquisidores e de oficiais seus colaboradores. Não seria
lícito, porém, dizer que a suprema autoridade da Igreja tenha pactuado com esses atos de
fraqueza; ao contrário, tem-se o testemunho de numerosos protestos enviados pelos Papas e
Concílios a tais ou tais oficiais, contra tais leis e tais atitudes inquisitoriais. As declarações
oficiais da Igreja concernentes à Inquisição se enquadram bem dentro das categorias da justiça
medieval; a injustiça se verificou na execução concreta das leis.
Diz-se, de resto, que cada época da História apresenta ao observador um enigma próprio: na
Antiguidade remota, o que surpreende são os desumanos procedimentos de guerra. No
Império Romano, é a mentalidade dos cidadãos, que não concebiam o mundo sem o seu
Império (“oikouméne” = “orbe habitado” = “Imperium”), nem concebiam o Império sem a
escravatura. Na época Contemporânea, é o relativismo ou ceticismo público; é a utilização dos
requintes da técnica para “lavar o cérebro”, desfazer a personalidade, fomentar o ódio e a
paixão. Não seria então possível que os medievais, com boa fé na consciência, tenham
recorrido a medidas repressivas do mal que o homem moderno, com razão, julga demasiado
violentas?
Quanto à Inquisição Romana, instituída no séc. XVI, era herdeira das leis e da mentalidade da
Inquisição medieval. No tocante à Inquisição espanhola, sabe-se que agiu mais por influência
dos monarcas de Espanha do que sob a responsabilidade da suprema autoridade da Igreja.