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SANDRA FLÁVIA CORREIA BATISTA ambiente

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rfnib JVKIS ET DEJVSE

Nos vime anos «ta Faculdade de Direito


da Universidade Católica Portuguesa - Porto

coontaaçâo MANUEL AFONSO \ftZ


J. A. AZEREDO LOPES

Edição UN1VERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA (PORTO)

Coorf. Gráfica MANUELA COSTA

Depósito Usa) 128704/98

ISBN 972-8069-21-9

Dota de salda 20 . Novembro . 1998

Tiragem 1500 exemplares

Execução gráfica Secçio de Anes Gráficas das Oficinas


de Trabalho Protegido da APPACDM Distrital de Braga
Tal. (053) 67 63 93 - Fax (053) 67 97 58
4710 BRAGA

Distribuidora Coimbra Editora, Lda.


Rua do Amado - Apartado 101
3002 Coimbra Codex
801(2

JÚRIS ET
DE JURE

Nos vinte anos da Faculdade de Direito


da Universidade Católica Portuguesa - Porto

Coordenação

MANUEL AFONSO VAZ


J. A. AZEREDO LOPES
822 Raquel Carvalho

Ac. n.° 160/92, de 5 de Maio, publicado no D.R., II.' Série, de 19 de Agosto de 1992

(Fundamentação de actos administrativos);

Ac. n." 176/92, de 7 de Maio, publicado no D.R., I I . ' Série, de 18 de Setembro de 1992
(Direito à informação);
Ac. n." 177/92, de 7 de Maio, publicado no 22." Vol. dos Acórdãos do Tribunal Cons-
titucional (Direito à informação);
Ac. n.° 594/93, de 16 de Junho, publicado no D.R. I.* Se'rie, de 29 de Setembro çje
1993 (Direito à informação);
Ac. n.° 226/94, de 8 de Março, publicado no D.R., I I . ' Série, de 13 de Julho de 1994
(Recorribilidade de actos confirmativos); ,
Ac. n.° 249/94, de 22 de Março, publicado no D.R., I I . ' Série, de 27 de Agosto de
(Duplo grau de jurisdição na suspensão de eficácia de acto administrativo);

Ac. n.° 303/94, de 24 de Março, publicado no D.R., II." Se'rie, de 27 de Agosto de 1994
(Suspensão de eficácia de actos negativos);
Ac. n." 9/95, de 11 de Janeiro, publicado no D.R., II.* Série, de J4 de Março de 199S

(Constitucionalidade do artigo 25." LPTA);

Ac. n.° 80/95, de 21 de Fevereiro, publicado no D.R., I I . ' Série, de 14 de Junho de


1995 (Confidencialidade de actas de concurso);
Ac. n." 527/96, de 28 de Março, publicado no D.R., I.* Série, de 14 de Maio de 1996

(Direito à informação).

Ac. n.° 603/95, de 7 de Novembro, publicado no D.R., II.* Série, de 14 de Março de


1996 (Inconstitucionalidade do artigo 25." LPTA);
Ac n.° 115/96, de 6 de Fevereiro, publicado no D.R., II.* Série, de 6 de Maio de 1996
(Inconstitucionalidade do artigo 25.° LPTA);
Ac. n." 564/97, de 22 de Janeiro, publicado no D.R., I I . ' Série, de 19 de Março de 1998
(inconstitucionalidade do artigo 25.° da LPTA).
O AMBIENTE: UMA QUESTÃO JURÍDICA
OU UMA PREOCUPAÇÃO DA HUMANOADE

S A N D R A FLÁVIA C O R R E I A BATISTA *

1. Introdução

Um dos rituais da espécie humana é o de procurar em cada meta


temporal um ponto de refexão em que o balanço se impõe e exige uma
súmula do que foi feito, e um projecto para os tempos vindouros. Esta-
mos às portas de um novo milénio e com a sua chegada muitos se dedi-
cam à percepção dos novos desafios que a humanidade enfrentará com
o início dos anos 2000. E um desses desafios é, certamente, o ambiente.
De facto, se algo entrou na consciência jurídica e da opinião pública
mundial recentemente, foi a questão do ambiente, do desenvolvimento
sustentável e da situação não só, nem principalmente do nosso futuro
individual, mas do modus vivendi que será legado às gerações futu-
ras na medida em que herdarão ou não um ambiente saudável.

* Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa


- Porto.

JUEIS ET DSJttZ
Mn 1 0 i t m it Fatuidade 4c Direito d l UCF - Porto
Parto. 1 M 8
824 Sandra Flávia Correio Batista

Ê impossível escamotear a actualidade e a prioridade desta ques-


tão ou fugir a uma pesquisa séria e consciente de esquemas conceptuais
e legais de enquadramento do ambiente. O desenvolvimento da ciêqçfc
e o progresso das técnicas refletem-se numa sociedade em crescimento
a um ritmo cada vez mais acelerado e mais ecologicamente compro-
metido, pelo crescimento industrial, pela. macrocefalia urbana, pelo alto
grau de tecnicização dirigido à produção de massas, pela consagração
desabrida de uma sociedade que se auto-intitula «de consumo».'
As constantes agressões ao ambiente e seu impacto óbvio na saúde
e nos ecossistemas decompõem-se em várias vertentes: alterações climá-
ticas globais; destruição progressiva da camada de ozono; convivência
quotidiana com o smog; poluição atmosférica, principalmente urbana; •
radioactividade; deficiente gestão dos resíduos (nomeadamente indus-
triais ou urbanos, sendo a opinião pública particularmente sensível aos
resíduos radioactivos ou, noutra escala, aos resíduos hospitalares); des- /
perdício e consequente escassez de recursos naturais (como se pode ver
pelo empacotamento lem massa a que não correspondem efectivos esfor-
ços de reciclagem); degradação das paisagens, erosão dos solos e suã
improdutividade por sucessivos incêndios que fazem desaparecer man-
chas florestais apreciáveis e servem interesses económicos e comerciais
muitas vezes duvidosos, como as explorações agrícolas e pecuárias,
o fornecimento de matéria prima à industria do papel, ou o uso da
madeira como combustível de populações locais. Paralelamente, há um?
escassa implementação das energias renováveis e não se concretizam
outros pontos de inflecção indispensáveis, o que nos poderá levar, se nad?
fôr feito, a atingir um trágico ponto de não retorno. ^

2. Breves a p o n t a m e n t o s sobre o ambiente na h i s t ó r i a 4a


humanidade

Apesar da candência do tema não nos devemos iludir com a apa-


rente modernidade (ou até mero modismo) do tema. Esta é uraa pro-
blemática que vem de longe e que, com as atinências próprias de cada
época, sempre preocupou a humanidade, sendo fácil atestar a perenir
dade da questão.
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 825

Basta lembrarmos as preocupações higiénicas que se podem extrair


da lei mosaica, apostada na pureza e educação moral do povo hebreu
e que acautelava preocupações sanitárias concretas como o evitar de
certas carnes, nomeadamente pela proibição de ingerir carne de porco
como modo de evitar maleitas como a cistercose (comummente ape-
lidada de «lombrigas») ou a hidatose entre outras, ou a proibição de
ingerir carne de animais encontrados m o r t o s o u também a preven-
ção da desinteria e de febres tifóides pela imposição de enterrar os
excrementos2.
Um momento histórico de grandes implicações ambientais foi a
revolução industrial. Com a industrialização surgiu o trabalho orga-
nizado e uma exigência brutal de mão de obra plenamente disponível
e eficiente. Ocorreram migrações em massa para as cidades, em busca
de trabalho e de melhores remunerações, o que gerou altas taxas de
concentração e de ocupação em urbes que se tornaram autênticos ninhos
de promiscuidade, pobreza e sujidade, com consequências calamitosas
a nível da saúde humana e da convivência social. O ambiente fabril tor-
nava-se cada vez mais poluido, o abastecimento de água era feito por
cisternas, poços ou mecanismos públicos precários e rudimentares e a
água consumida era insufuciente, de má qualidade, poluída e con-
taminada por todo o tipo de bactérias. Não existiam esgotos e muito
menos qualquer sistema organizado de recolha do lixo. As casas eram

1
« 0 porco que tem o pé córneo e até o casco bifurcado, mas que não rumina,
será impuro para vós. Não comereis carne de nenhum deles nem tocareis nas seus
cadáveres: são impuros para vós.» [...] «Se morrer um dos animais que vos é lícito
comer, quem tocar no seu cadáver ficará impura até à tarde. Aquele que comer essa
carne morta, lavará as suas roupas e ficará Impuro até à tarde; e aquele que a trans-
portar lavará as suas roupas e ficará impuro até à. tarde.» [ . . . 1 «Esta é a doutorina
relativa aos quadrúpedes, às aves, a todos os seres vivos que se movem nas águas e a
todos aqueles que rastejam sobre a terra, a fim de que destlnga o que é impuro do
que é puro, o animal que se pode comer daquele que se não deve comer.» In BÍBLIA
SAGRADA, Livro do Levítico U , 7-8, 39-40 e 46-47.
1
«Reservarás u m sítio fora do acampamento, para as tuas necessidades; terás
também, no teu acampamento, u m a pá, e, quando para ali fores, cavarás a terra com
esse instrumento, cobrindo as tuas dejecções.» in BÍBLIA SAGRADA, Livro do
Deuteronómio 23, 13-14.
826 Sandra Flávia Correio Batista

improvisadas pelos próprios moradores, de m á qualidade, mal arejadas


e construídas com os piores matérias; eram sobre-ocupadas e inseridas
em ambientes poluídos, não tendo condições de salubridade. 0 tra-
balho era feito n u m ambiente tóxico, insalubre, perigoso para a saúde.
Os factores de risco acumulavam-se e, de início, nada foi feito para
os combater; a saúde publica além de não funcionar como u m eficiente
serviço público, dispunha de meios escassos para garantir o saneamento
e a higiene. Foi neste período de forte industrialização que surgiu o
«movimento sanitário» que se apoiou em progressos técnicos e cientí-
ficos de múltiplas vertentes para revolucionar a compreensão dos pro-
blemas da saúde das população. Este movimento teve início na Ingaterra
(e foi progressivamente absorvido por outros países com iguais preo-
cupações) por reformadores sanitários como Smith que procederam ao
estudo e melhoramento d u condições higiénicas e do saneamento do
meio ambiente, como reacção à degradação operada pela industriali-
zação. Os estudos efectuados eram apoiados por dados estatísticos das
populações deslocadas, por meio de censos periódicos e inquéritos sociais
que permitiam o relacionamento das taxas de morbilidade e mortali-
dade com as condições de vida e com as reais causas de doença. Deu-
-se início à utilização de novos meios de protecção contra a doença,
nomeadamente pela modificação das condições ambientais deslavará?
veis, o que contou com a ajuda de áreas científicas como a Física ou a
Química. E, se de início as preocupações sanitárias dedicaram-se em
exclusivo às condições de trabalho nas oficinas e fábricas, posteriormente
foram elaborados relatórios relativos à correcção dos problemas de saúde
pública do meio industrial como um todo (é o caso do relatório de
Chadwick Tbe sanitary condition of tbe laboring population of tbe
Great Britain datado de 1842), numa luta global que envolveu vários
quadrantes, desde a Igreja aos técnicos sanitários.

3. A l g u n s t ó p i c o s d a h i s t ó r i a d a q u e s t ã o a m b i e n t a l em
Portugal

Uma breve incursão no universo histórico-ambiental português per-,


mite-nos constatar que as doenças profissionais ligadas à expansão,
industrial foram uma das grandes fontes de patologias até finais do
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 827

século XIX. Instrumentos oficiais de regulamentação e de investigação


ligados a aspectos concretos da higiene industrial podem, aliás, ser
encontrados desde tempos relativamente recuados. Em 1707 o Regimento
do Provedor-mor de Saúde remetia para fora da cidade de Lisboa o enxa-
guar de couros e «outras coisas de maus cheiros», de modo a não pre-
judicar a saúde dos populares; era uma medida de prevenção da poluição
atmosférica que colocava em realce uma indústria, a de curtumes, que
ainda hoje e significativamente, continua a ser altamente poluente.
O «Ensaio» datado de 1843 e resultante de uma ordem do Conselho de
Estado criado em 1837, aborda a topografia médica de Lisboa à época,
definindo-a como dedicada ao comércio e à indústria, sendo que os esta-
belecimentos fabris contribuíam para a impureza do ar, já de si pouco
salubre por acção conjugada de ruas estreitas, dos fumos das habita-
ções, da deficiente rede de esgotos, da pouca limpeza dos pavimentos e
dos hábitos pouco higiénicos dos próprios habitantes. Sucessivamente
foram surgindo regulamentos dedicados a actividades insalubres, incó-
modas e perigosas, com preocupações ambientais evidentes e que de
modo algum se podem considerar como emitidos avant la lettre.
A classe médica é por tradição sensível à problemática ambiental
sendo pacífico para a mesma que as origens da doenças são ambien-
tais, genética ou acidentais, e que, mesmo nestas últimas intervêm, por
vezes, factores ambientais. A medicina do trabalho como especialidade
médica surgiu apenas no nosso século, nomeadamente com a função
de vigiar as condições do ambiente como o aquecimento, a ventilação,
a iluminação, as próprias instalações e a sua estrutura sanitária. No
campo específico da saúde pública, â. qual cabe intervir na classicamente
apelidada questão da «salubridade», o ambiente e a necessidade de o
tutelar é um dado adquirido, como se pode retirar por exemplo do
Decreto-Lei 413/ 71, de 27 de Setembro, dedicado à reorganização dos
serviços do Ministério da Saúde e Assistência e que apontava para a inte-
gração da política ambiental nas demais políticas. Neste decreto foram
consagradas atribuições ambientais a cargo da actividade médica, no
pressuposto de que a política da saúde se tem que integrar no contexto
mais vasto da política social globalmente considerada, pela importân-
cia fundamental dos serviços de prevenção da doença e promoção da
saúde para o desenvolvimento social e económico da Nação. Assim ao
longo dos diferentes graus hierárquicos do Ministério eram repartidas
828 Sandra Flávia Correio Batista

as tarefas de promoção do saneamento do meio e das condições de


higiene do meio ambiente; de prevenção e luta contra a poluição do
ar, do solo, das águas e contra os ruídos; de garantia da higiene das
embalagens de produtos alimentares ou outros produtos com aqueles
relacionados; de estabelecimento de normas de higiene, salubridade e
segurança dos locais de trabalho e fiscalização da sua observância
de intervenção no licenciamento de indústrias insalubres, incómodas,
perigosas ou tóxicas; finalmente, de actividades de apoio à educação
sanitária.

4. A I m p o r t â n c i a do e n q u a d r a m e n t o j u r í d i c o do a m b i e n t e

a) Instituições internacionais

Dizer que o ambiente é um tema apenas dos dias de hoje é uma


afirmação que peca, pelo menos, por falta de perspectiva. Em diferen-
tes épocas foram conceptualizados e activados planos cuidados e deta-
lhados de actuação em aspectos ambientalmente relevantes. No entanto,
também não podem restar dúvidas de que o direito a uma vida sã é um
bem jurídico actualmente merecedor da mais digna tutela jurídica e
realização concreta, nomeadamente pela consciencialização crescente
da temática ambiental e pelo aprofundamento de tentativas de o abar-
car e proteger.
O tema ambiental é hoje um tema técnico, político e de necessário
enquadramento ideológico. É um tema urgente que exige uma revolur
ção de consciências (que, felizmente, já se iniciou), que estime os efeitos
nefastos da actuação humana inconsciente ou conscientemente agres-
siva que quotidianamente ameaça o nosso meio ambiente, numa degra-
dação progressiva e a um ritmo cada vez mais acelerado. Há pois que
começar por científica e objectivamente se refectir sobre a questão
ambiental para, num segundo momento, se procurarem as melhores
vias de implementação de melhorias, sejam técnico-jurídicas, educar
cionais ou ideológicas, que garantam o nosso futuro comum. E estas
melhorias se por u m lado se definem por macro-decisões a nível mun-
dial, passam também pela atitude íntima de cada indivíduo e pelo seu
micro-contributo concreto para a tutela ambiental.
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 829

As Nações Unidas, organização internacional de vocação universa-


lista, no seu tratado constitutivo, a Carta das Nações Unidas, embora
não fixe expressamente objectivos ambientais a desenvolver, enuncia
logo no preâmbulo a preocupação dos povos em promover «o progresso
social e melhores condições de vida dentro de u m conceito mais amplo
de liberdade», o que é sintomaticamente reafirmado no preâmbulo da
Declaração Universal dos Direitos do Homem. É certamente esse o objec-
tivo plasmado no texto da Carta quando concede à Assembleia Geral a
competência para promover estudos e fazer recomendações com vista
ao fomento da cooperação social e da saúde (art. 13 " n.° 1 al. b);
quando aponta, no âmbito da cooperação económica e social interna-
cional, a solução dos problemas internacionais de saúde e conexos, com
£ o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar necessárias às rela-
\ ções pacíficas e amistosas entre as Nações (art. 55.° al. b); ou, final-
mente, quando inclui nas funções e poderes do Conselho Económico e
Social a elaboração ou início de estudos e relatórios a respeito da saúde
e assuntos internacionais conexos, a emissão de recomendações à Assem-
bleia Geral, aos membros das Nações Unidas e às organizações espe-
cializadas interessadas, a preparação de projectos de convenções e serem
submetidos à Assembleia Geral ou a convocação de conferências inter-
nacionais sobre esses mesmos assuntos (art. 62.° n.° l, 3 e 4).
As Nações Unidas sempre partiram da constatação que assegurar a
I paz, no sentido mais amplo do termo, transcende em muito o mero evi-
tar de conflitos ou o solucionar daqueles que se vão desencadeando, e
que as actividades em prol da paz internacional se desdobram num vasto
campo que inclui, nomeadamente o meio ambiente e o desenvolvimento
sustentável. Assim têm vindo a tornar-se guardiãs da questão ambiental
ao seu nível abrangente, fazendo da mesma u m dos seus grandes
empreendimentos, enquadrando-o na esfera de questões relevantes para
a vizinhança global aspirante de democracia, paz e prosperidade. O pro-
gresso tecnológico, enquanto transforma a natureza e prolonga a espe-
rança de vida a nível mundial, traz também novos e acrescidos riscos
para a estabilidade global como os danos ecológicos, o crescimento
demográfico, o buraco da camada de ozono, a seca ou a propagação
de doenças e, estas ameaças directa ou indirectamente ligadas a um
padrão de desenvolvimento de costas voltadas para o ambiente, podem
ser tão ou mais faiais que a acção militar de um exército inimigo bem
830 Sandra Flávia Correio Batista

apetrechado e ideologicamente compacto. As Nações Unidas englobara


pois necessariamente nas suas tarefas as preocupações ecológicas, para
também assim se consolidar a paz e se construir a estabilidade mim-,
dial e a segurança colectiva. E basta ver um pequeno aspecto concreto,
o esforço de desminagem que se impõe a nível global, para se clarifi-
car como a paz e segurança internacionais são um tema de intricadas
relações: os espaços minados não só são uma ameaça permanente à vida
humana, como impedem a prática da agricultura e assim o desenvol-
vimento económico e o culminar do flagelo da fome, como são ainda
uma ameaça constante ao meio ambiente; a tudo isto cabe às Nações
Unidas prover, pela implementação de programas globais diferenciados.
O sistema institucional das Nações Unidas desmultiplica-se em
plúrimas vertentes ambientais. O Programa das Nações Unidas para
o Ambiente (PNUA) tem como objectivo principal encorajar as agên-
cias especializadas das Nações Unidas a lançar programas relativos ao
ambiente e a coordenar os respectivos trabalhos; preparou a Conven-
ção das Nações Unidas para o Ambiente e o Desenvolvimento (CNUAD)
e desenvolve um papel de secretariado junto da Convenção de Viena
sobre a Protecção da Camada de Ozono. Entre as agências das Nações
Unidas com preocupações ambientais contam-se a Organização Mun-
dial de Saúde ( O M S ) a Organização para a Alimentação e a Agricul-,
tura (FAO), que no intuito primeiro de melhorar a produção alimentar
e a vida das populações rurais desenvolve uma actividade ambiental
trifacetada (recursos naturais, gestão de ambientes específicos e polui-
ção, principalmente por pesticidas), a Organização Metereológica Mun-
dial (OMM), dedicada ao estudo das variações climáticas, a Organização
Marítima Mundial (OM1) que estuda a poluição marinha, ou a 0rgani2a-
ção das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
que, em conjunto com outras agências, administra o programa MAB
(O Homem e a Biosfera). E pode-se ainda realçar a Comissão Econó-

3
Quanto ao tabor das agências especializadas das Nações Unidas em torno do
ambiente h á que reaçar o papel da OMS pela ligação que tradicionalmente se esta-
belece entre o ambiente, a promoção da saúde e a prevenção da doença, ligação que
só recentemente se tem vindo a esbater por u m a certa autonomização e promoção
funcional da temática ambiental.
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 12

mica das Nações Unidas para a Europa, composta por praticamente


todos os países europeus e ainda o Canadá, os Estados Unidos e Israel,
e que trabalha em torno de u m a cooperação de índole regional em
matéria ambiental, de racionalização do uso dos recursos naturais e do
desenvolvimento sustentável, tendo um papel activo na negociação,
adopção e supervisão da aplicação de acordos internacionais, coorde-
nando ainda investigações sobre poluição.
A atenção mundial em relação aos problemas ambientais suscitou-
-se com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente
que teve lugar em Estocolmo em 1972. No entanto a temática ambiental
era já da preocupação da Organização Mundial de Saúde desde o seu
surgimento, tendo esta procedido a um exame alargado da mesma na
24.* Assembleia Mundial da Saúde realizada em 1971 As conclusões
desse exame levaram à constatação da necessidade de melhorar as con-
dições fundamentais de higiene do meio e do saneamento à escala mun-
dial, de estabelecer critérios e códigos de boa prática a aplicar a factores
ambientais nocivos à saúde por meio de acordos internacionais, de esti-
mular a vigilância sanitária epidemiológica que permitisse u m a com-
pleta base de dados dos efeitos nefastos desses factores ambientais na
saúde humana e de encorajar, suportar e coordenar todo o tipo de pes-
quisas e este nível, nomeadamente pela formação de pessoal espe-
cializado. E se este foi o primeiro passo de abertura às preocupações
ambientais generalizadas, a Conferência das Nações Unidas sobre o
Ambiente e o Desenvolvimento5 (CNUAD), realizada no Rio de Janeiro
em Junho de 1992 (e, por isso, também chamada de Rio 92 ou Cimeira
da Terra) foi ura novo marco que reuniu os países na adopção de uma
Declaração de Princípios e de um documento conhecido como Agenda
21, u m esquema básico em prol do desenvolvimento sustentável, que
aposta no crescimento económico com respeito dos recursos naturais,
e que teve como resultado próximo a assinatura de convenções relati-
vas às alterações climáticas e à biodiversidade.

* Resolução WHA 24. 47 - Actas da Organização Mundial de Saúde, 1971,


n." 193.
5
V CONF. 151/ 26 (5 volumes) 1992, Organização das Nações Unidas.
832 Sandra Flávia Correio Batista

A Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento compõe-se


de 27 princípios e começa por reafirmar a Conferência de Estocolmo
de 1972 e propõe-se dar-lhe seguimento, reconhecendo a «natureza inte-
gral e interdependente da Tterra, nossa casa». Entre os princípios expres-
sos na Declaração são de apontar o realce dado ao ser humano, a busca
de um desenvolvimento sustentável e harmónico com a natureza, a
tutela equitativa das necessidades das gerações actuais e futuras face
ao desenvolvimento e ao ambiente, a integração da política ambiental
no processo global de desenvolvimento, a erradicação da pobreza e dos
desníveis de desenvolvimento dos países como condição prévia ao desen-
volvimento sustentável, a regulamentação eficaz a nível estadual de
padrões aceitáveis de produção, de consumo e de políticas demográficas,
a pesquisa científica em prol do ambiente, a participação dos cidadãos,
a responsabilização civil dos poluidores e a intemalização dos custos
ambientais no poluidor, sem restringir no entanto, a actividade econó-
mica, a cooperação célere e de boa fé entre os Estados em casos de desas-
tres naturais ou actividades transfronteiriças que possam apresentar desT
valor ambiental e a paz como valor inseparável da protecção ambiental
A Agenda 21, por sua vez, desdobra-se em dezenas de programas espe-
cíficos pelos quais estes princípios deverão ser realizados, nomeadamente,
com apeio à dinâmica das instituições internacionais, da cooperação
internacional para o desenvolvimento sustentável, das organizações não
governamentais, das iniciativas das autoridades locais, dos instnimen-r
tos e mecanismos jurídicos internacionais, da integração do meio
ambiente na adopção de decisões que o transcendam, dos mecanismos
de financiamento e muitos outros programas dinamizadores, •
As próprias Nações Unidas são uma instituição internacional cujas
sinergias devem ser rentabilizadas em prol do ambiente. A resolução
44/228 da Assembleia Geral concede mandato à CNUAD para elaborar
estratégias que invertam os efeitos da degradação do meio ambiente
(a par com os esforços nacionais), devendo ser feito uso do sistema ins-
titucional das Nações Unidas na sua capacidade multisectorial e nas
esferas de competência respectivas dos seus órgãos, programas e agên-
cias especializadas, cuja actuação deve ser optimizada em relação a
novas exigências de actuação que surjam. Todo o sistema das Nações
Unidas se deve revitalizar face à questão ambiental com transparência,
universalidade, eficácia e ponderação custo/benefício. Deve, nomeada-
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 833

mente, ser prestado um serviço de assessoria aos governos na concreti-


zação dos programas da Conferência, numa partilha de tarefas que evite
a duplicação de esforços. A Assembleia Geral como centro inter-
governamental de alto nível deve fazer um exame dos progressos que
surjam, apoiada nomeadamente pela competência específica do Con-
selho Económico e Social em sede ambiental. Ao secretário geral caberá
um papel coordenador firme, podendo nomeadamente fazer recomen-
dações à Assembleia Geral. O Programa das Nações Unidas para o
Ambiente (PNUA) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) devem ter um papel fulcral, dentro das respectivas esferas de
acção, vigiando o meio ambiente, fomentando a necessária investigação
científica, sensibilizando a opinião pública e dando assistência a situa-
ções de emergência, para o que será indispensável o apoio do Banco
Mundial. Há finalmente que garantir que as execuções governamentais
dos programas sejam concretizadas de modo coerente e integrado. Tam-
bém às Organizações Não Governamentais deve ser atribuído um papel
específico nessas concretizações internas, dando a Conferência relevo a
comunidades científicas, ao sector privado, a grupos de mulheres e a
agrupamentos de jovens.
Mas há que transpor as fronteiras internas delineadas pela Confe-
rência e prever a realização de acordos internacionais em matéria
ambiental que a concretizem ou até complementem. Quanto aos ins-
trumentos e mecanismos jurídicos internacionais há que ter em conta
aspectos fundamentais da elaboração de tratados de carácter universal,
multilateral e bilateral. Há que reforçar o papel do direito internacio-
nal do ambiente, que passa nomeadamente pela sua codificação, com
o auxílio qualificado da Comissão de Direito Internacional. Há que ter
em conta u m a efectiva participação e contribuição dos diferentes acto-
res internacionais na elaboração de acordos internacionais de modo a
que se levem em conta as circunstâncias concretas de cada região e,
em concreto, dos países em vias de desenvolvimento. Os esforços inter-
nacionais de criação jurídica devem passar por u m a prévia assistência
técnica aos países mais fracos de molde a que possam melhorar a capa-
cidade jurídica em matéria ambiental. Além da questão da criação jurí-
dica há também que refletir sobre a sua aplicação concreta e, mais uma
vez, sobre as dificuldades que serão sentidas por parte de alguns Esta-
dos, mais uma vez os mais frágeis e em vias de desenvolvimento, o que
834 Sandra Flávia Correio Batista

poderá aconselhar à revisão dos acordos internacionais de molde a


torná-los exequíveis. Há que definir prioridades claras de legiferação e
efectividade no plano mundial, regional e subregional dando sempre
preferência a processos que espelhem o consenso internacional em vez
de medidas unilaterais. Qualquer esforço de juridificação tem que pas-
sar necessariamente pelo respeito de princípios como a não discrimi-
nação, a transparência das medidas comerciais que possam intervir com
o ambiente, a notificação cuidada das normas nacionais que se forem
adoptando e a necessidade de ter em conta a situação especial dos paí-
ses em vias de desenvolvimento, É necessário garantir a aplicação efi-
caz e célere dos mecanismos jurídicos criados e melhorar a eficácia das
instituições e procedimentos que os administrem. É também fulcral evi-
tar conflitos reais ou potenciais entre acordos ambientais e comerciais
que se devem, aliás, reforçar mutuamente. Há que prevenir as contro-
vérsias internacionais fazendo apelo ao sistema das Nações Unidas e,
em especial, ao Tribunal Internacional de Justiça quando a gravidade
da situação o exigir, devendo à partida qualquer acordo elaborado em
matéria ambiental incluir cláusulas atributivas de competência ao
mesmo. Devem ser definidos com rigor os direitos e deveres de cada
Estado em matéria ambiental e, nomeadamente, ser criado um corpo
de peritos jurídicos que periodicamente analisem a aplicação gradual
ou específica dos acordos nos países em vias de desenvolvimento. Deve-
-se tutelar em concreto o perigo que os conflitos armados trazem para
o meio ambiente e evitar a destruição massiva em situações de guerra,
com o apoio salutar do Comité Internacional da Cruz Vermelha, no
âmbito das suas competências e tarefas. Não se pode esquecer, final-
mente, a urgência de acordos que tutelem a energia nuclear e a sua
utilização sem riscos e ecologicamente racional.
Uma das áreas em que a cooperação internacional para o desen-
volvimento sustentável é fulcral é a economia (especificamente a pro-
dução, o comércio e o financiamento), com u m a chamada de atenção
especial para os países em vias de desenvolvimento. Só um comércio
plenamente liberalizado permite uma utilização eficiente dos recursos
e assim a sua não exaustão, poupança e libertação para outras produ-
ções que, por sua vez, incrementem o crescimento económico, podendo
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 16

o comércio crescer sem ser à custa do depauperamento ambiental. Esta


colaboração pode ser referida em diferentes tópicos:

- produção e comercialização - há que criar uma economia mun-


dial mais justa, aberta, não discriminatória, segura e eficiente
em que a colaboração e a solidariedade internacionais sejam efec-
tivas e potenciem as políticas internas de desenvolvimento; há que
optimizar a distribuição, o acesso de todos os países aos merca-
dos de exportação e acabar com distorções que impeçam impor-
tações, e proteccionismos que imponham exportações ineficientes;
há que criar um equilíbrio entre a produção para o mercado
interno e externo de acordo com a mais racional afectação de
recursos; há que conduzir o comércio em prol da melhoria das
condições económicas e sociais das populações, a par com um
desenvolvimento que se mostre sustentável; há que pôr em realce
a produção, distribuição, dinamização e diversificação dos mer-
cados de produtos básicos; há que estruturar uma melhor admi-
nistração dos recursos naturais; há que fazer incluir no preço dos
produtos acabados os seus custos sociais e ambientais; há que
estabelecer acordos internacionais de produtores e consumido-
res que definam as tendências de mercado e criem grupos de
estudo, em especial acordos sobre o cacau, o café, o açúcar e as
madeiras tropicais; há que criar uma economia mais produtiva
e competitiva; finalmente, as medidas ambientais tomadas têm
que respeitar as obrigações internacionais dos Estados, não
podendo de modo algum funcionar como restrições injustificadas
à actividade comercial, ou como novas distorções e proteccionis-
mos encapotados;
— financiamento — há que impedir o alastramento do individa-
mento externo e as restrições ao financiamento dos países que
dele precisara sob pena de se verificar um entorpecimento da eco-
nomia pela menor importação (até de matérias primas) e con-
sumo e consequente diminuição da produção, nunca se conse-
guindo o íake o # d a economia e a fuga à pobreza endémica; a
comunidade internacional deve apoiar os países em vias de desen-
volvimento por donativos ou pela concessão de empréstimos em
condições de favor; há que libertar os países em vias de desen-
836 Sandra Flávia Correio Batista

volvimento do peso da dívida externa, nomeadamente do serviço


da dívida que os faça incorrer em transferências líquidas de recur-
sos financeiros para o estrangeiro, permitindo-se a renegociação
da dívida a níveis de pagamentos aceitáveis, sendo fornecidos
apoios adicionais a reformas económicas estruturais e não se
permitindo o desinvestimento em sectores como a saúde, a edu-
cação ou a protecção ambiental; o clima internacional deve criar
uma estabilidade monetária e cambial que crie segurança, pre-
visibilidade e um crescimento não inflacionário;
— administração pública — a administração pública tem que ser
transparente e eficaz, integrando as questões ambientais nas polí-
ticas globais de molde a adequar a sua actuação às condições
concretas dos países e com a participação democrática de todos
os interessados, acabando com qualquer suspeita de corrupção;
devem ser eliminados os obstáculos ao progresso gerados por
excessos burocráticos desnecessários como formalidades e certos
tipos de controlos que fazem de qualquer iniciativa empresarial
um processo moroso, complexo e desmotivante.

Mas, as Nações Unidas não são a única organização internacio-


nal em que o ambiente merece um realce específico, Também o espaço
europeu que nos engloba não fugiu à questão. Basta ter em conta a Con-
venção de Lugano de 1993 sobre a responsabilidade civil por activida-
des que causem danos ao ambiente ou o Livro Verde do Ambiente do
mesmo ano, também sobre a reparação de danos causados ao ambiente.
Para lá das questões de responsabilidade é de realçar o reforço da polí-
tica ambiental com o Tratado de Maastricht, em que a sustentabilidade
passou a ser um dos objectivos da União Europeia. Em 1994, a Agên-
cia Europeia do Ambiente iniciou a sua instalação em Copenhaga, com
o propósito de restar informações à União e aos Estados membros para
implementação de políticas ambientais mais eficazes, servindo como
prova no terreno da absorção da política ambiental como objectivo da
União, e do aprofundamento de uma tentativa séria de cooperação
ambiental europeia. Mas, já em 1973 fôra lançado o Programa de Acção
para o Ambiente pelo qual a, agora, União passou a assinar conven-
ções e se tornou membro de diferentes organizações de cariz ambien-
tal, como se de um Estado se tratasse.
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 837

Ainda em termos institucionais podem-se apontar outras figuras


com relevo na área do ambiente. A Organização de Cooperação e Desen-
volvimento Económico (OCDE) é dotada de uma Comissão do Ambiente
apoiada por uma Direcção do Ambiente, tendo como estratégia a inte-
gração das decisões dos domínios económico e ambiental. Também o
Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras (GATT) dispõe de uma Comis-
são do Ambiente. A Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA) esta-
beleceu normas-padrão ambientais para os produtos transaccionados,
com base nas legislações Internas dos Estados membros, e que, em geral
eram bastante rigorosas, estando agora, com a abrangência do Espaço
Económico Europeu aos países membros da organização, sujeitas ainda
a normativos ambientais da legislação comunitária. Finalmente, o Con-
selho da Europa além das reuniões ministeriais que realiza sobre assun-
tos específicos (e que incluem também o ambiente), dispõe desde 1962
de uma Comissão Europeia para a Conservação da Natureza e dos Recur-
sos Naturais que se ocupa nomeadamente da conservação da natureza,
do património arqultectural, do planeamento urbano e regional e do
controlo da poluição.
É interessante, como nota final, referir a posição de instituições
financeiras internacionais quanto ao ambiente. O Banco Mundial criou
em 1985 a Divisão do Ambiente e a Global Environment Facility apos-
tada em analisar por exemplo a destruição da camada de ozono e a
degradação dos recursos hídricos. O Banco Europeu de Investimento
financia projectos de incidência ambiental, como o tratamento de águas
residuais. Os estatutos do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desen-
volvimento obrigam-no a impôr regras ecológicas rigorosas aos projectos
a financiar.

p) O direito interno português

Independentemente da quantidade e da indesmentível qualidade dos


instrumentos jurídicos e políticos internacionais (universalistas ou regio-
nais) de base ambiental, também a nível interno se exige uma qual-
quer actuação. Os governos dos diferentes Estados não se podem demitir
na função vital da tutela do nosso habitat comum, e é hoje indispen-
838 Sandra Flávia Correio Batista

sável a criação de plú rimas garantias jurídicas de protecção do ambiente,


que sejam suficientemente claras e próximas dos cidadãos para que estes
possam confiar e sentir-se tutelados nas concretas esferas das suas vidas
quotidianas. Impõem-se pois medidas concretas, seja pela criação de
instituições adequadas (o que pode passar pela reformulação do qua-
dro institucional existente), seja pela implementação de múltiplos e
novos instrumentos jurídicos que clarifiquem as responsabilidades
assacáveis a danos ambientais, a nível colectivo e individual, nas áreas
civil, administrativa, penal e constitucional.
Claro que a regulamentação interna não torna desnecessária uma
regulamentação internacional integrada. É hoje pacífico que as sobe-
ranias se limitam pela actuação do direito internacional, e este tem
vindo a tomar nas suas mãos a preservação do património comum da
humanidade, nomeadamente pela constatação da incapacidade dos Esta-
dos se oporem à degradação do melo ambiente6.
A tutela nacional do ambiente é, no nosso ordenamento jurídico,
assumida logo na Constituição que concede protecção jurídica expressa
aos valores ambientais. E sendo a Constituição a unidade de sentido da
nossa ordem jurídica e o ponto de partida de qualquer raciocínio jurí-
dico-posítivo, não só como matriz do direito feito, mas também como
enquadramento necessário do direito a fazer, não se pode deixar de mos-
trar o realce constitucional concreto que o ambiente merece. O ambiente
é consagrado como u m direito fundamental do cidadão e um dever jurí-
dico constitucionalmente imposto ao nosso legislador.
O art. 66.° 7 é explícito ao consagrar como direito fundamental de
cari2 social o direito de todos ao ambiente e à qualidade de vida e impõe
diferentes incumbências ao Estado em ordem a assegurar o direito ao
ambiente no quadro de um desenvolvimento sustentável. É logo no
art. 9." ais. d) e e) que se prescreve que a efectivação dos direitos ambien-
tais é uma tarefa fundamental do Estado cabendo-lhe também a defesa
da natureza e do ambiente, a preservação dos recursos naturais e asse-

' A foimação do direito internacional do ambiente iniciou-se com a Declara-


ção de Estocolmo de 1972, aprovada n a Conferência das Nações Unidas sobre o
Ambiente da mesma data (e já referida).
7
Os artigos de seguida enunciados referem-se à Constituição da República
Portuguesa.
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 839

gurar o correcto ordenamento do terrritórlo. Além disso, e ao longo de


diferentes artigos, são enunciadas tutelas específicas do ambiente: o
art. 59 ° consagra a direito dos trabalhadores a prestarem o seu traba-
lho em condições de higiene, segurança e saúde, e impõe ao Estado que
assegure tais condições, nomeadamente face a trabalhadores que desem-
penhem actividades em condições insalubres, tóxicas ou perigosas; o
art. 60.® concede aos consumidores o direito à qualidade dos bens ou
serviços consumidos e à protecção da saúde; o próprio direito à protec-
ção da saúde é realizado, nos termos do art. 64°, nomeadamente pela
criação de condições ambientais, pela melhoria sistemática das condi-
ções de vida e de trabalho e pelo desenvolvimento da educação sanitá-
ria do povo e de práticas de vida saudável; finalmente o art. 81.°
ais. a), h), 1) e m) enuncia como incumbências prioritárias do Estado
no âmbito económico e social a promoção da qualidade de vida das pes-
soas, no quadro de uma estratégia de desenvolvimento sustentável, a
garantia e defesa dos interesses e direitos dos consumidores, a adoptção
de uma política nacional de energia, com preservação dos recursos natu-
rais e do equilíbrio ecológico e a adopção de uma política nacional da
água, com aproveitamento, planeamento e gestão racional dos recur-
sos hídricos. E, como a própria Constituição consagra no art. 52.° (maxime
52.° n.° 3 al. a), não é só ao Estado que incumbem tarefas concretas
de protecção do ambiente, como também a sociedade civil pode e deve
ter u m papel concreto e, no caso, constitucionalmente enquadrado, no
intuito aliás da plena realização de uma democracia que se quer par-
ticipativa (art. 2.', in fine) e em que as decisões sejam caracterizadas
pela transparência dos processos. As organizações não governamentais
(nomeadamente científicas, ambientalistas e de consumidores) são,
como é aliás sua função, uma voz crítica e um foco de mobilização das
comunidades, que muito podem fazer no campo político como
enformadoras das decisões governamentais.
Ainda no campo constitucional é certamente relevante constatar que
o legislador parece querer impôr a protecção de diferentes bens ambien-
tais ou diferentes facetas de uma realidade ambiental abrangente: depa-
ramo-nos pois com conceitos como «direitos ambientais» (art. 9 C
al. d), «natureza», «ambiente» e «recursos naturais» (art. 9 ° al. e),
«ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado» (art. 66."
n.° 1) ou «equilíbrio ecológico» (art. 81.° al. 1), por exemplo. Será
840 Sandra Flávia Correio Batista

que temos enquanto indivíduos direito a um ambiente de vida humano,


sadio e ecologicamente equilibrado (numa perspectiva antropocêntrica),
mas a imcumbência de protecção da natureza e do ambiente é já algo
que não passa pela subjectividade de todos e de cada u m de nós mas
apenas por u m a tarefa que ao Estado se coloca, cora o intuito de con-
servação e preservação do habitat ecológico em si mesmo e como valor
autónomo? Se foi ou não este o intuito do legislador ao adiantar dife-
rentes conceitos, este é certamente u m a questão que valerá a pena
aprofundar.
Ainda com apelo à Constituição, o art. 165.® n.° 1 al. g) remete para
a reserva relativa da Assembleia da República a competência para legis-
lar sobre as bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio
ecológico e do património cultural; ora a Lei de Bases do Ambiente8,
decretada ao abrigo daquele artigo, vem também, tal como o Tfexto Fun-
damental a mencionar diferentes bens a tutelar ou, então, as diferen-
tes vertentes do bem «ambiente», determinando e dando concretização
legal ao direito que constitucionalmente é enunciado, para que, sem
dúvidas se possa limitar o que é, ou não, ambiente para o nosso orde-
namento jurídico. Numa leitura superficial do texto da Lei de Bases
deparamo-nos com conceitos como «qualidade de vida», «recursos natu-
rais» ou «ambiente propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desen-
volvimento social e cultural das comunidades»; além disso há u m
entrecruzar de objectivos e preocupações como o desenvolvimento auto-
-sustentado, o crescimento económico e social, o ordenamento do ter-
ritório, a cooperação internacional com vista à gestão dos recursos
naturais, a descentralização da produção, a racionalização do consumo
e a defesa do consumidor, a saúde, a ocupação dos tempos livres, as con-
dições de trabalho, as regras dos anúncios luminosos, a vegetação das
margens dos cursos de água, o ensombramento dos espaços públicos ou
privados, a protecção da saúde pública, a importação de espécies ani-
mais exóticas, a elucidação e sensibilização da opinião pública ou limi-
tes de tolerância da presença de elementos poluentes. Ou seja, e em
conclusão, ficam concretamente determinadas quais as preocupações
ambientais do legislador português e que constituem uma paleta

* Lei 11/87, de 7 de Abril.


O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 841

multifacetada que em nada se confunde com declarações de Intenções


vazias ou meros «modismos ambientais».
É ainda a Lei de Bases do Ambiente que no seu art. 37.° remete para
o Governo a competência para conduzir uma política global nos domí-
nios do ambiente, da qualidade de vida e do ordenamento do território
e a coordenação das políticas do ordenamento regional do território e
desenvolvimento económica e progresso social e a adopção das medi-
das adequadas à aplicação dos instrumentos previstos na mesma lei;
remete ainda para o Governo, a administração regional e a adminis-
tração local a articulação entre si das medidas a implementar qu se
mostrem necessárias à prossecução da própria lei. Ou seja, o objectivo
de protecção ambientai fica largamente a cargo da administração e do
direito administrativo o que aliás é perfeitamente legítimo e adequado,
quando se parte do paradigma do Estado intervencionista, activamente
dedicado à actividade económica e que englobe nas suas preocupações
o ambiente.
0 ambiente pressupõe u m a regulamentação coerente, sistemática
e integrada; além disso é u m tema eminentemente ligado à evolução e
ao devir tecnológico, pela rapidez com que se alteram os critérios de
avaliação da salubridade ambiental, se dá relevo a novos agentes poluen-
tes e se implementam novas técnicas antlpoluentes, sendo-lhe inerente
u m a grande dose de mutabilidade. Ora só o legislador administrativo
tem a mobilidade e plasticidade exigidas a um tema de tal índole. Cabe
pois ao administrador, por intermédio de prescrições administrativas,
fiscalizar o estado do ambiente e enquadrar as actividades que conten-
dam com o mesmo e assim, regulamentar, autorizar, limitar e proibir
actividades poluentes, criando normas de índole essencialmente técnica
a aplicar aos agentes poluentes; definir valores que funcionem como
limites de tolerância às emissões poluentes; concretizar u m a adequada
distribuição e organização dos recursos ambientais.
Por outro lado a administração actuará de molde a equilibrar a luta
contra a poluição com o progresso económico. A limitação dos danos
ao ambiente, pela proibição das actividades que os causem ou pela puni-
ção dos danos efectivos, não pode paralizar a economia e, nomeada-
mente, o progresso económico, ou reduzir a sociedade contemporânea
a uma letergia pseudo-salutar e escrava de fundamentalismos ambien-
tais. Há necessariamente que adequar as exigências ambientais ao pro-
842 Sandra Flávia Correio Batista

gresso económico da sociedade até porque os valores ambientais são


indissociáveis do progresso tecnológico acelerado. Não se deve nunca
cair na tentação de criar leis ambientais menos rígidas como meio de
reforço da competitividade em desfavor da protecção do ambiente; esse
é um logro que deve ser evitado a todo o custo sendo certamente mais
adequado aplicar instrumentos económicos que desencorajem ofensas
ao ambiente e recompensem serviços ambientais positivos prestados à
sociedade (como incentivos financeiros e fiscais). E isto sem esquecer
que dar ao ambiente preponderância clara face à economia pode ser,
inclusivamente, economicamente vantajoso, como se pode constatar com
o êxito da agricultura biológica ou orgânica, quando adequadamente
publicitada nos consumidores e dotada de eficazes canais de distribui-
ção, ou com a exploração económica do turismo sustentável em áreas
protegidas.
Uma baliza que sempre se deve impor à administração na sua tarefa
(ou batalha) ambiental será a comunicação e a coordenação multifa-
cetadas. Deve-se respeitar a coordenação vertical que a legislação impo-
nha na distribuição de tarefas entre os diferentes graus hierárquicos
decisórios (administração local, regional ou centalizada; legislação
comunitária; enquadramento das imposições constitucionais). Deve-se,
por outro lado, permitir e reforçar uma alargada cooperação horizon-
tal entre as diversas áreas políticas, com o reforço da integração da
dimensão ambiental nas outras dimensões políticas, evitando situações
de antagonismo e conflituosidade; outra dimensão da cooperação hori-
zontal também a promover é a cooperação entre os poderes públicos e
os cidadãos, com uma melhor informação e participação a conceder
nomeadamente a organizações ambientalistas e a associações de con-
sumidores.
A. abordagem administrativa das tarefas ambientais impõe, mais
uma vez, a sensibilidade da classe médica a esta questão. No campo de
intervenções da autoridade sanitária, funcionalmente adstrita à tutela
da saúde pública já «Há muito se ultrapassou o conceito médico-sani-
tário e ambientalista, enformado pelo padrão da patologia por longo
tempo dominante, a das doenças infecto-contagiosas.», tornando neces-
sária a participação do Ministério da Saúde em áreas específicas como
«0 limiar do desenvolvimento, com o cotejo de problemas de saúde ine-
rente, o binómio saúde/ ambiente, presente na multiplicidade de abor-
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 843

dagens ambientais, ecológicas e ergonómicas...» ou «A progressiva


exigência de qualidade nos equipamentos colectivos e nos desempenhos
e procedimentos relativos a direitos fundamentais dos cidadãos...
[como] . . . a qualidade de vida e dos locais de trabalho.. .* 9 . Um marco
da legislação médica em termos de atribuições administrativas foi o já
referido Decreto-Lei n.° 413/ 71 de 27 de Setembro. Este normativo, dedi-
cado à reorganização dos serviços do Ministério da Saúde e Assistência,
apesar de já não estar em vigor, apresenta nos seus princípios orienta-
dores linhas estruturantes que até hoje se mantêm em toda a legisla-
ção subsequente relativa ao sistema de saúde português.

5. Conclusão

De tudo o que foi dito e do muito que ficou por dizer, conclui-se
que preocupações ambientais sempre existiram e que o desafio hoje
enfrentado pela humanidade se não é inovador tem, no entanto, que
enfrentar ameaças que são próprias da nossa época. A resposta a este
desafio tem que confiar na normatividade e coercibilidade jurídicas mas
tem que contar, anjtes de tudo, com a adesão íntima de todos nós à pre-
servação do meio que nos é imprescindível à vida. E esta adesão íntima
não cabe ao direito assegurar mas, antes de tudo, às virtualidades da
educação. E tanto o direito como os esforços da educação têm que se
conjugar não apenas em prol do bem estar actual da humanidade, antes
pelo contrário, têm que se projectar n u m a acção de longo alcance que
inclua as gerações vindouras. O ambiente é u m bem que pertence à
humanidade como ente intemporal que permanece para lá das vidas
c o n c r e t a s d o s seus c o m p o n e n t e s e as g e r a ç õ e s v i n d o u r a s t ê m tanto
direito (a herdar) a uma vida saudável, como aquela que hoje nos cabe
construir para nós e, simultameamente, legar para o futuro.
É imperioso criar mecanismos legais que reforcem as preocupações
ambientais e ponham em prática o ideal pró-ambiental, na consagra-

' Preâmbulo do Decreto-Lei n.° 336/ 93 de 29 de Setembro, que clarifica, sis-


tematiza e unifica as disposições respeitantes à organização, nomeação e atribuições
da autoridade de saúde.
844 Sandra Flávia Correio Batista

ção de u m a linha de atitude que se mostre favorável à implementação


de uma adequada política ambiental. No campo ambiental a via jurí-
dica depara-se com problemas específicos e de difícil resolução: a res-
ponsabilidade é individual, colectiva ou de ambos os tipos? E, se assim
fôr onde acaba u m a e começa a outra? Como se enquadram os com-
portamentos nos esquemas tradicionais do raciocínio jurídico, de mol-
de a estarem a coberto de uma qualquer responsabilização (nomeada-
mente a nível da causalidade e da imputação?).
O que é indubitável é que os desiquilíbrios ambientais actuais
impõem uma qualquer intervenção legislativa que tutele as agressões
sofridas peia cada vez mais depauperada realidade ambiental. E essas
intervenções tanto têm cabimento a nível estadual como internacional,
devendo ser regulamentados tanto aspectos técnicos parcelares, como
objectivos de longo alcance e, nomeadamente, a conciliação entre a
economia e o ambiente, ou os interesses particulares de cada pais em
confronto com os parâmetros internacionais.
A educação é, sem dúvida, a palavra chave, já que só esta pode cons-
truir nações e formar os seus cidadãos com os contributos do passado
histórico e em vista das responsabilidades futuras que se impõem na
construção de uma vizinhança global, um sonho colectivo e não utó-
pico de coexistência mundial. Dm qualquer processo de reformismo
ambiental (pois é disso que se trata) será necessariamente beneficiado
através da elucidação franca das consciências individuais já que pou-
cas alterações serão bem sucedidas a não ser que cada um dos mem-
bros da comunidade esteja consciente a título individual das implicações
de um processo pró-ambiental. A educação ambiental tem que ser de
índole a abranger a multidisciplinaridade e a auto-promover-se na
mobilização de indivíduos, grupos e organizações, levando-os a ocupar
um papel activo, o seu papel activo, na implementação de políticas que
respeitem os direitos dos homens e sejam económica e socialmente res-
ponsáveis face às gerações vindouras.
Impõe-se nomeadamente a solidariedade entre gerações e o direito
das gerações vindouras herdarem um ambiente saudável, como a pró-
pria Agenda 21 impõe, ou o art. 66.°, n. a 2, al. d), CRP consagra, já que
a humanidade 6 composta por uma pluralidade de membros cujos direi-
tos são comuns e intergeracionais. A humanidade é uma colectividade
que transcende a individualidade de cada um e transcende também as
O Ambiente: Uma Questão Jurídica ou Uma Preocupação da Humanidade 845

fronteiras espacio-temporais, é um todo orgânico, sujeito à titularidade


de direitos colectivos.
Há, finalmente, que ter consciência da urgência em actuar respon-
savelmente agora, de modo a assegurar a paz e o desenvolvimento sus-
tentável de geração para geração. E só o uso inteligente dos nossos
esforços e recursos pode levar à eliminação dos problemas que actual-
mente ameaçam a nossa vida.

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«FACTURAS FALSAS»:
CRIME DE FRAUDE FISCAL OU DE BURLA?

A M É R I C O A. TAIPA D E CARVALHO *

JOSÉ M. DAMIÃO DA CUNHA **

CONSULTA

A) Os factos indiciados e a sua qualificação jurídica


segundo o despacho de aplicação da medida de coacção de
prisão preventiva:

I. Os factos:

1. «O arguido..., na qualidade de gerente da sociedade...,


simulou transacções comerciais com terceiros, utilizando facturas
sem correspondente em efectivas trocas e recebimento de merca-
dorias».

* Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa - Porto.


Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa.
** Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa - Porto.
Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra; M agis ter luris Universltãt Tríer.

JDMlí ST DBJUttE
Noa M u u da Fualdade de Direito d* UCf - Parto
ferp, 1W8
850 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

2. «Essas facturas, utilizadas no período compreendido entre


Setembro de 1990 e Julho de 1993, pelo modo como foram utili-
zadas, permitiram a dedução de cerca de 61 mil contos (sessenta
e um milhões de escudos) correspondente ao IVA que a referida
sociedade não suportou».

H. As qualificações jurídico-penais:

A prática destes factos indicia que o arguido terá cometido, em abs-


tracto, três crimes: a) crime de burla agravada (C. Penal 1982, art. 314.°,
al. cj) \ b) crime de falsificação de documento ( C . Penal 1 9 8 2 , art. 2 2 8 . ° ,
n.° 1, ais. b) e c))\ c) crime de fraude fiscal (Dec.-Lei n.° 20-A/90, de
15 de Janeiro, art. 23.", n." 1, al. b) e n.° 2) - disposições penais vigentes
no momento da prática dos factos. No momento do despacho, que decre-
tou a prisão preventiva, estavam já em vigor as actuais e seguintes dis-
posições penais: art. 218.°, n.° 2, al. a) do C. Penal 1982-95 (burla qua-
lificada); art. 256.°, n.° 1, ais. b) e c) do C. Penal 1982-95 (falsificação
de documento); e art. 23.° do Dec.-Lei n.° 20-A/90, na redacção do Dec.-
-Lei n.° 394/93, de 24 de Novembro (fraude fiscal).

B) A adesão do arguido ao chamado «Plano Mateus»


(processo de regularização das dividas fiscais, previsto no
Dec.-Lei n.° 124/96, de 10 de Agosto) e a suspensão do pro-
cesso penal fiscal, estabelecida pela Lei n.° 51 -A/96, de 9
de Setembro.

I. O facto d a adesão:

Ficou, e está devidamente provada a adesão do arguido ao processo


de regularização das dívidas fiscais («Plano Mateus»), bem como a acei-
tação ou autorização desta adesão por parte da competente autoridade
da Administração Fiscal.
Segundo o art. l.° da Lei n.° 51-A/96, de 9 de Setembro (lei cujo
título ê «Altera o Dec.-Lei n. ° 20-A/90, de 15 de Janeiro - Regime
Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras»), o regime jurídico
de suspensão do processo penal fiscal contra os arguidos que adiram
ao estabelecido processo de regularização das dívidas fiscais (art. 2.°,
•FacturasFalsas'-.Crime de Fraude Fiscal ou de Burla? 851

n.° 2), e de extinção da responsabilidade penal dos infractores fiscais


que venham a pagar as respectivas dívidas fiscais de acordo com o
esquema prestacional estabelecido por esta lei (art. 3 o ), aplica-se aos
crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de crédi-
tos fiscais.

n. Os fundamentos da exclusão do arguido do benefício


p o l í t i c o - c r i m i a a l d a s u s p e n s ã o d o p r o c e d i m e n t o crimi-
nal, seguudo o despacho q u e decretou a aplicação d a
p r i s ã o preventiva:

Apesar de o arguido ter aderido ao «Plano Mateus», tal facto não


o torna beneficiário do regime previsto no art, 2.° da Lei n.° 51-A/96,
que prevê a suspensão do processo penal fiscal sempre que o agente
tenha obtido da Administração fiscal, nos termos legais (isto é, nos ter-
mos do Dec.-Lei n.° 124/96, de 10 de Agosto), autorização para efec-
tuar o pagamento das dívidas fiscais no regime prestacional estabelecido,
u m a vez que, segundo o Despacho:
1.° — 0 arguido está indiciado pelo crime geral de burla, crime este
que não é abrangido pela Lei em causa, pois que esta (Lei n.° 51-A/96,
art. l. D ) só é aplicável às infracções penais fiscais, nomeadamente ao
crime de fraude fiscal previsto no Dec.-Lei n.° 20-A/90 (RJIFNA), art. 23.°.
2." — E, segundo o mesmo despacho, mesmo que os factos, de que
o arguido é indiciado, não devam ser qualificados como crime de burla,
mas sim como crime de fraude fiscal, sempre, de qualquer forma, o
regime favorável da suspensão do processo (previsto na Lei n." 51 -A/96,
art. 2.°) não podia ser aplicado ao arguido, pelo facto de este, na sua
actuação, ter preenchido as circunstâncias previstas nas ais. e) e f) do
art. 23 ° do RJIFNA (Dec.-Lei n.° 20-A/90, após a redacção do Dec.-Lei
n." 394/93, art. 23.°: al. e) - «o agente falsificar ou viciar, ocultar,
destruir, inutilizar ou recusar, exibir ou apresentar livros e quais-
quer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei
fiscal»; ú.f) - «O agente usar os livros ou quaisquer outros ele-
mentos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou
viciados por terceiros»), circunstâncias estas que, segundo o art. 5.°
da mesma Lei n.° 51.°-A/96, excluem a aplicação do benefício da sus-
pensão do processo, previsto no art. 2.° desta mesma lei.
852 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

C) As questões:

As questões suscitadas pelo presente Despacho, que decretou a


medida de coacção de prisão preventiva, são as seguintes:
1." - A u t i l i z a ç ã o de facturas falsas - simulando compras e
que terão permitido a dedução de cerca de 6l mil contos correspondentes
ao IVA que a sociedade... não terá suportado - constitui crime de
b u r l a (C. Penal 1982, art. 314.°, al. c)\ C. Penal 1982-95, art. 218 °,
n.° 2, al. a j ) o u crime de fraude fiscal (RJIFNA, art. 23.°, n.M 1
e 2, al. cjf
2.' — Se a utilização das facturas falsas constituir a figura especial
do crime de fraude fiscal (excluindo-se a figura geral do crime de burla),
levantar-se-á a seguinte questão: a u t i l i z a ç ã o das facturas falsas
pelo arguido configura as circunstâncias «manipulação inde-
vida de livros ou documentos fiscalmente relevantes»
(redacção originária do Dec.-Lei n.° 20-A/90, art. 23-°, n.° 2, al. d),
n.° 3 e n.° 4), ou « falsificação ou viciação, ocultação, destrui-
ção, inutilização ou recusa de entrega, exibição ou apresentação
de livros e quaisquer outros elementos probatórios exigidos pela lei
fiscal» ou « uso de littros ou quaisquer outros elementos refe-
ridos no número (ou alínea?) anterior, sabendo-os falsifi-
cados ou viciados por terceiros» (redacção do art. 23.°, n.° 3,
al. e) e a l . f ) , dada pelo Dec.-Lei n.° 394/93)?
É que, da resposta negativa a esta questão, isto é, da conclusão de
que o comportamento do arguido não preenche qualquer uma destas
circunstâncias, resultarão, necessariamente, as duas seguintes conse-
quências: por força do art. 2.°, n.° 2 da Lei n.° 51-A/96, o processo penal
terá que ser suspenso; mesmo abstraindo da lei penal vigente ao
momento da prática dos factos (Dec.-Lei n.° 20-A/90, art. 23 °, n.° 1 e
n.° 2), a pena aplicável nunca poderá ter um limite máximo superior
a três anos de prisão (Dec.-Lei n.° 394/93, de 24 de Novembro, art. 23.°,
n.° 4 - 1." parte), razão pela qual nunca poderia ser aplicada a prisão
preventiva.
3.* - O p r e e n c h i m e n t o de facturas, que não correspondem a
efectivas compras de mercadorias, mas sim a negócios simulados, con-
f i g u r a crime de falsificação de documentos (C. Penal 1982,
art. 228°, n ° 1, al. b) e al. c)\ C. Penal 1982-95, art. 256.°, n.° 1 al. b)
•FacturasFalsas'-.Crime de Fraude Fiscal ou de Burla? 853

e al. cj) o u uma m e r a s i m u l a ç ã o (figura jurídico-penalmente irre-


levante, a partir da entrada em vigor do Código Penal de 1982)?
4." — Há, ainda, a questão (não urgente, bic et nunc) seguinte:
q u a l das leis p e n a i s fiscais sucessivas (Dec.-Lei n.° 20-A/90,
art. 23 °, n.° 2 al. a) - lei do tempus delicti - e o mesmo Dec.-Lei e
art. 23.°, n.° 4-1* parte, após alteração pelo Dec.-Lei n.° 394/93) é apli-
cável a o arguido?
5.° — Finalmente, tem de se p e r g u n t a r se o processo penal,
em que é arguido..., deve ser suspenso por força da adesão ao Plano
de regularização das dividas fiscais, tal como o prevê e estabelece a Lei
n.° 51-A/96, de 9 de Setembro, art. 2.°, n.° 2.

P A R E C E R

A UTILIZAÇÃO DE FACTURAS FALSAS COMO MBIO DE REDUÇÃO DE IMPOSTOS A


LIQUIDAR OU COMO MEIO DE OBTENÇÃO DE REEMBOLSOS CONSTITUI O ( R I M E DE
FRAUDE FISCAL, PREVISTO B PUNIDO PELO DEC.-LEI N . ° 20-A/90, ART. 23.°,
N." 1, 2 al. e), 4, APÓS A REDACÇÃO DO DEC.-LEI N . ° 394/93.

1. É conhecida a discussão sobre se a utilização de facturas fal-


sas em prejuízo do Fisco deve ser tratada, jurídico-penalmente, como
crime de b u r l a (C. Penal 1982, arts. 313 ° ou 314.°, ou pelo C. Penal
1982-95, arts. 217.° ou 218.°) ou como c r i m e de f r a u d e fiscal
(RJIFNA, art. 23.°).

2. A divergência de posições tem sido manifesta, nomeada-


mente na Jurisprudência do Supremo "IYibunal de Justiça.

a) A favor da p o s s i b i l i d a d e da qualificação jurídico-penal


da conduta vulgarmente designada por «facturas falsas» c o m o c r i m e
de b u r l a , foram defendidas as seguintes teses:

a a ) Tese do c o n c u r s o efectivo entre o crime de burla e o crime


de fraude fiscal (assim, A C Ó R D Ã O S D O S T J , D E 4 E 1 1 D E O U T U B R O D E 1 9 9 5 ,
854 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

segundo refere J. M . N O G U E I R A DA C O S T A , «Facturas falsas», Revista do


Ministério Público, 199^, p. 117). A fundamentação desta posição parte,
essencialmente, das duas considerações seguintes: por u m lado, os bens
jurídicos tutelados pelos respectivos tipos legais de crime seriam dife-
rentes, pois que o crime de burla protegeria o património, ao passo que
o crime de fraude fiscal tutelaria a «verdade fiscal», isto é, a verdade e
a fiabilidade nas declarações fiscais; por outro lado, o art. 13." do RJIFNA
(«se o mesmo facto constituir simultaneamente crime previsto neste
Regime Jurídico e crime comum, as penas previstas para ambos
os crimes são cumuláveis, desde que tenham sido violados inte-
resse jurídicos distintos») abonaria esta tese e constituiria o seu fun-
damento legal. Assim, o agente deveria, de acordo com as regras gerais
do concurso, ser punido pelos dois crimes, e, consequentemente, serem-
-Ihe aplicadas, em cúmulo jurídico, as sanções penais correspondentes.
- Como a p r e c i a ç ã o crítica, deve djzer-se que esta tese só será
defensável para a hipótese em que a conduta fraudulenta em causa
visasse directamente u m duplo prejuízo patrimonial (e um correspon-
dente enriquecimento): o prejuízo de u m terceiro e o prejuízo do Fisco.
Mas esta exigência da dupla e diferente natureza dos interesses ou
bens jurídicos e da dupla vítima não se verifica na generalidade dos
casos das denominadas «facturas falsas» e, de forma alguma, não se
verifica no presente caso concreto.
Embora partindo de uma análise do tipo de crime de fraude fiscal
(a fraude fiscal, tipicamente como um crime de falsidade, e mate-
rialmente como um crime contra o património fiscal - « 0 crime
de Fraude fiscal» in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1996,
p. 87) não inteiramente coincidente com a nossa (a fraude fiscal, típica
e material-teleologicamente, como um crime de perigo contra o patri-
mónio fiscal), parecem-nos plenamente aplicáveis, a esta tese do con-
curso efectivo entre o crime de fraude fiscal do RJIFNA, art. 23.°, e o
crime geral de burla do Código Penal, art. 2 1 7 . ° , as críticas de F I G U E I -
R E D O D I A S / C O S T A A N D R A D E (no trabalho citado, pp. 1 0 6 - 7 ) de que u m a tal

tese constitui uma violação do princípio ne bis in idem, e conduz,


quando se tenha em conta a figura contígua (à fraude fiscal - art. 23.°)
do abuso de confiança fiscal (art. 2 4 d o RJIFNA), a resultados prático-
-punitivos absurdos e violadores dos princípios da igualdade e da pro-
porcionalidade.
•Facturas Falsas'-.Crime de Fraude Fiscal ou de Burla? 855

bb) Tese da relação de alter natividade entre o crime de burla


e o de fraude fiscal (assim, ACÓRDÃO DO STJ, DE 1 5 DE D E Z E M B R O DE 1993,
in Scientia luridica, 1994, p. l 4 l ) . Isto é, uma determinada conduta,
como as denominadas «facturas falsas», só pode ser qualificada ou
como crime de burla ou como crime de fraude fiscal. Entre estes dois
tipos legais de crime haveria uma relação de exclusão mútua.
O fundamento e critério invocado para a distinção entre o crime
de burla e o crime de fraude fiscal seria a distinção entre enriqueci-
mento e não diminuição do patrimônio. Assim, l€-se no n.° II do Sumá-
rio do já referido Acórdão, de 15-12-93: «Constitui elemento essencial
do crime de burla o enriquecimento do agente como um enrique-
cimento do património à custa do lesado e provocado por meio
de manobras artificiosas; na infracção fiscal não bá enriqueci-
mento do agente pois o património não foi acrescido com o não
pagamento dos impostos».
- Parece manifestamente evidente que esta tese p a r t e de u m
p r e s s u p o s t o inaceitável, tanto na perspectiva social e económica
como na jurídlco-penal. Digamos que ela recorre a u m mero e exan-
gue formalismo conceitualista.
Com efeito, o enriquecimento patrimonial tanto se verifica quando
se aumenta o activo (isto é, quando, por meios fraudulentos, se obtém
reembolsos indevidos), como quando se reduz o passivo (isto é, quando
se paga, por meio de artifícios enganosos, menos imposto do que o
devido).
Assim, têm razão F I G U E I R E D O D I A S / COSTA ANDRADE, quando escrevem:
«Nada, por isso, menos fundado do que um tratamento jurfdico-
-penal diferenciado assente, por exemplo, na distinção conceituai
entre um enriquecimento (por recebimento de uma soma indevida)
e uma não diminuição do património (por não desembolso ou
desembolso em montante inferior ao legalmente devido). Em ter-
mos jurfdico-materiais, trata-se rigorosamente da mesma coisa,
a reclamar, por isso, o mesmo tratamento jurídico-penal. Nestes
termos, nada juridÍcamentÊJO£íiOS correcto e mais injusto do que
considerar que, diferan aae sucede nos demais casos,
o reembolso deternwfêi, só por sif&tun ição do agente a título
de burla 0 reeembmo indevido é ufQjorma de enriquecimento
do agente e dtprek&o do Estado intfmtmente igual às demais».
856 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

E, Jogo a seguir, observam, embora por outras palavras, que a inclusão


expressa dos «reembolsos» 110 tipo legal de crime de fraude fiscal, ope-
rada em 1993, não foi mais do que uma lei materialmente interpreta-
tiva, dizendo: «Foi o que, de resto, a nova redacção do n." 1 do
art. 23• 0 do RJIFNA, introduzida pelo Decreto-Lei n. 0 394/93, de
24 de Novembro, veio definitivamente clarificar, ao elevar o reem-
bolso indevido à conta de conduta típica de Fraude fiscah (Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, 1996, p. 108 s.)

cc) Tese da r e l a ç ã o de c o n j u n ç ã o entre o crime de burla e o


crime de fraude fiscal. Donde que uma conduta, que preenchesse simul-
taneamente os pressupostos da factualidade típica de ambos os crimes,
deveria ser punida pelo crime de burla. Esta tese baseia-se na conside-
ração de que o tipo legal geral de burla protege interesses jurídicos mais
amplos do que os protegidos pelo tipo legal de fraude fiscal, embora pro-
teja também os interesses patrimoniais fiscais que constituem a razão
de ser deste tipo de crime de fraude fiscal (cf. J. M. N O G U E I R A DA C O S T A ,
«Facturas Falsas» in Revista do Ministério Públicoy 1996, p. 107 ss.)
- Esta tese é de rejeitar, desde logo porque desconsidera, quer
o processo histórico político-criminal de criação de um corpo legisla-
tivo especial e autónomo como o é o «Regime Jurídico das Infracções
Fiscais Não Aduaneiras», quer a especificidade fiscal dos interesses pro-
tegidos pelo tipo legal de fraude fiscal, relativamente aos bens jurídi-
cos patrimoniais comuns tutelados, histórica e actualmente, pelo
clássico crime de burla.
De rejeitar é, ainda, o critério que acaba por se tornar relevante,
na prática, e que conduziria a qualificar as «facturas falsas» como criiiii:
de burla, se o resultado/prejuízo se verificasse, mas já como crime de
fraude fiscal, se tal resultado/dano se não se verificasse.
Contra esta consunção do crime de fraude fiscal pelo crime de burla,
deve esclarecer-se que a proibição jurídico-penal visa sempre, em última
análise, a evitação da lesão de um determinado bem jurídico.
0 legislador pode, contudo, estabelecer uma tutela antecipada
desse bem jurídico, construindo um tipo legal de crime formal e de
perigo. Tal é o caso do crime de fraude fiscal previsto no art. 23-° do
RJIFNA.
•FacturasFalsas'-.Crime de Fraude Fiscal ou de Burla? 37

A ocorrência, ou não, do resultado/dano não aIlera a qualificação


jurídico-criminal da conduta. A ilicitude criminal desta permanece sem-
pre a mesma, independentemente da verificação ou não do resultado/
dano, muitas vezes aleatória. Assim, e a título de exemplo, a conduta
de omissão de auxílio, p. e p. no art. 200.° do C. Penal, não deixa de
constituir um crime de omissão de auxílio, passando a ser qualificado
como crime de homicídio, pela circunstância de o resultado/dano da
morte da pessoa necessitada de auxílio se ter verificado, em consequência
da omissão da acção de socorro, que o omitente podia ter praticado e
que, se praticada, teria evitado a morte.
Assim, e em conclusão, embora a evitação do resultado/dano fis-
cal do Estado seja a ratio da proibição da fraude fiscal (em que se inclui
a «celebração de negócio simulado»), não é, jurídico-penalmente,
admissível que a eventual ocorrência do prejuízo fiscal altere a natu-
reza do tipo-de-ilícito cometido. Ou seja: a relação de especialidade entre
o crime de fraude fiscal e o crime de burla (mais amplamente: a espe-
cificidade do regime dos crimes fiscais face ao dos crimes comuns
contra os interesses patrimoniais gerais — entre, p. ex., os crimes
de fraude fiscal e de abuso de confiança fiscal face aos crimes de
burla e de abuso de confiança) em nada é afectada pelo facto de o
prejuízo patrimonial fiscal se ter efectivamente verificado.
Isto não significa a negação da relevância jur/dico-penal do «des-
valor de resultado» - efectivo prejuízo patrimonial do Estado -, mas
significa que este relevará apenas em termos de medida da pena, res-
peitado que seja o limite máximo da pena legalmente estabelecida para
o respectivo crime formal e de perigo. Aplica-se, portanto, aos crimes
formais e de perigo do direito penal fiscal (como aos de qualquer outro
ramo do direito penal especial) a mesma metodologia jurídico-penal
que se aplica aos crimes formais e de perigo do direito penal geral.

b) A favor d a q u a l i f i c a ç ã o jurídico-penal da conduta vul-


garmente designada por «facturas falsas» c o m o c r i m e de fraude
fiscal foram defendidas as seguintes teses:

aa) Tese da i m p o s s i b i l i d a d e de o Estado p o d e r ser vítima


do c r i m e de b u r l a e, portanto, da inevitável qualificação da conduta
fraudulenta, ein prejuízo do erário público, como fraude fiscal (assim,
38 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

A C Ó R D Ã O DO S T J ,OF, 3 R>I-J O U T U B R O DF. 1 9 9 6 , in Scientia luridica, 1996.

pp 355-365 - registe-se que houve vários votos de vencido de Conse-


lheiros que, embora concordando com a decisão da qualificação do
«crime de facturas falsas» como fraude fiscal, discordaram da tese da
impossibilidade de o Estado ser sujeito passivo do crime de burla; tam-
bém F E R N A N D A P M . I W R U I P E R E I R A , « O crime de burla no Código Penal de
1982-95», in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, 1994, p. 330).
0 principal argumento invocado reconduz-se à ideia de que, sendo
elemento nuclear do crime de burla o engano ou a indução em erro
do sujeito passivo, só a pessoa humana pode ser objecto de um tal crime,
pois só ela pode ser ardilosamente influenciada na sua liberdade de deci-
são. O Estado, enquanto construção jurídica, nunca pode ser enganado.
- Pensamos que a m a tal f u n d a m e n t a ç ã o é m a n i f e s t a m e n t e
de recusar. Com efeito, o Estado (como qualquer pessoa colectiva,
pública ou privada) tem os seus representantes, os seus funcionários,
que são pessoas individuais, que, como tal, podem ser induzidas em erro.
E as decisões tomadas por estas pessoas, enquanto representantes do
Estada, são decisões do próprio Estado.
Além disto, bastaria pensar no seguinte: se, hoje, já é admitida a
responsabilidade penal das pessoas colectivas enquanto tais (admissi-
bilidade esta que, em nosso entender, é questionável quer quanto à sua
legitimidade quer, sobretudo, quanto â sua necessidade prática, uma vez
que há o direito de contra-ordenações...), então, a fortiori, não se vé
razão para afirmar a insusceptibilidade de o Estado poder ser vitima do
crime de burla ou outros análogos (assim, também, p. ex„ M A R 10 M O N T I ; ,
«0 chamado «crime de facturas falsas», in Scientia luridica, 1996,
p. 374 s.)

bb) Tese da relação de especialidade entre o direito p e n a i


fiscal e o d i r e i t o p e n a l c o m u m ( F I G U E I R E D O D I A S / C O S T A A N D R A D E ,
«0 crime de fraude fiscal», in Revista Portuguesa de Ciência Crimi-
nal. 1996, p. 71 ss.)
Segundo esta tese, entre o crime de fraude fiscal e o crime de bur-
la, mais do que um simples problema de concurso de normas (art. 23."
do RJIFNA a art 217 ° do Código Penal), está sim em causa a questão
«Facturas t-iilioS' - Crime dt Frau fie Fiscal ou de Hurln- 859

tnais radical, hislórico-polilicocrírninalmeale e jurídico-positivamente,


da profunda autonomia n especificidade dos regimes jurídicos das infrac-
ções fiscais face aos crimes de direito comum, isto é, os crimes fiscais
têm uma matriz e uma identidade ético-socia! e jurídico-penai própria.
Donde que « nunca seria punível como crime de Burla nos (ermos
do Código Penal o ilícito que apetias atingisse o património do
Fisco», devendo apenas aplicar-se as sanções penais fiscais.
Segundo estes Autores, o crime de fraude fiscal é, sob o ponto de
vista da estrutura típica, um crime de falsidade, e, sob o aspecto
teleológico-material, um crime contra o património fiscal. Isto é, por
outras palavras, o tipo de crime de fraude fiscal consagra uma «tutela
avançada» do património público fiscal, devendo o resultado/dano do
efectivo prejuízo fiscal do Estado relevar, mas só em termos de deter-
minação concreta da pena.
— Salvo alguns aspectos quanto à consideração deste crime de fraude
fiscal como típico-estruturalmente de falsidade, esta posição é, no nosso
entender, não apenas defensável, como mesmo metodológico-juridica-
mente imposta.

A NOSSA POSIÇÃO

1. A história da génese, formação e consolidação do edifício do


direito penal fiscal está relacionada e dependente da progressiva
consciencialização ético-social da necessidade do cumprimento dos deve-
res fiscais para com o Estado. Mas este processo de consciencialização
- suporte da censurabilidade juridico-penal do correlativo incumpri-
mento de tais deveres — é relativamente recente (tal como o Estadode-
-Direito Social, matriz deste processo de consciencialização) e ainda não
se pode considerar suficientemente sedimentado na consciência jurídieo-
-individual e j urídico-colectiva dos membros da comunidade política.
Aliás, o mesmo se passa com outros importantes ramos do direito penal
secundário ou administrativo, como no caso do direito penal do
ambiente.
Serve esta consideração para salientar que é, político-criininaí-
mente, razoável, e, jurídico-penaimente, a d e q u a d o q u e as sanções
860 Américo Â. Taipa dt Carvalho / José M. Damião da C.unba

penais a a p l i c a r aos delitos fiscais sejam substancialmente


m e n o s graves q u e as aplicáveis aos crimes «análogos» do
d i r e i t o penai c o m u m .

2. Apesar das várias deficiências téciiíco-lúgísiativas do art. 23 ° do


RJIFNA (deficiências que podem ter importantes consequências práti-
cas, e deficiências que não se verificavam na redacção primitiva de 1990,
mas que se verificam na redacção actual dada pelo Dec.-Lei n." 394/93,
e entre as quais se destacam: a qualificação da «vantagem patrimonial
ilegítima pretendida (ser) superior a 1.000 contos...» como uma forma
de «ocultação de factos ou valores» e, portanto, como uma modalidade
de conduta típica de fraude fiscal; e a inexistência de pena legal para
os casos de mera ocultação de factos ou valores cujo objectivo seja a
obtenção de uma vantagem patrimonial entre mais de 100 contos e 1000
contos!), entendemos que o crime de fraude fiscal, previsto no art. 23.°
do RJIFNA, é um crime, formal e de perigo, sendo o bem jurídico tute-
lado o património fiscal do Estado.
Precisamente, quando se diz que, diferentemente do que se passa
no crime de abuso de confiança fiscal (art. 24.°), na fraude fiscal há
uma «tutela avançada ou antecipada» do p a t r i m ó n i o fiscal, está-
-se, implicitamente, a afirmar que é este o bem j u r í d i c o directa-
m e n t e p r o t e g i d o por este tipo legal de crime. Este entendimento é
reforçado com o art. 26.°, pois que este artigo condiciona o arquiva-
mento do processo e a isenção ou redução da pena ao pagamento dos
impostos devidos ou restituição dos indevidamente recebidos. A referência
à «reposição da verdade sobre a situação fiscal» é algo de natural e
lógico, pois que é evidente que a reposição desta verdade é condição para
a reparação do prejuízo fiscal causado ou pretendido pelo agente, lendo,
pois, mera natureza instrumental em relação ao bem jurídico directa
e efectivamente protegido, que é o património fiscal público.

3. Entre o crime de fraude fiscal (RJIFNA, art. 23.°) e o crime de


burla (Código Penal, art. 217.°) há uma r e l a ç ã o de especialidade,
de modo que, sempre e unicamente, se aplicará a pena estabelecida pelo
referido art. 23". A autonomia e singularidade dos crimes fiscais e,
nomeadamente, do crime de fraude fiscal nunca permitirá que a uma
conduta fraudulenta (unicamente) contra os interesses fiscais do Estado
«Factura!- Falsas> Crime tic Fraude, físail ou de Buria? 861

possam ser aplicadas as penas previstas para a burla comum, mesmo


que, por hipótese, os pressupostos típicos do crime de fraude fiscal não
se verificassem e se verificassem os pressupostos típicos da burla.
Parece ir claramente neste sentido jurisprudência mais reconte
do nosso mais alto Tribunal. Assim, ié-se no S U M Á R I O D O A C Ú K I W I DO
S U P R E M O T R I B U N A L DF. J U S T I Ç A , DE 3 r>I; O U T U B R O DE 1 9 9 6 : « 1 . — A actuação

do arguido que seja enquadrável na previsão de fraude jiscai, ini-


cialmente contemplada pelo art. 23." do Dec.-Lei 20-A/90 de 13-01
e depois pelo Dec.-Lei 394/93, de 24-11, quer na sua redacção ori-
ginal quer na que lhe foi dada pelo Dec.-Lei 140/95, de 14-6, não
pode ser simultaneamente punível pela figura criminal da burla
dos artigos 313° e 314."do Código Penal 1982 ou pelos artigos
217." e 218." do de 1995- (CJ - Ac. STj - 1996, Tomo III, p. 152).
Por sua vez; lê-se no Sumário do A C Ó K D Ã O D O S U P R E M O TRIBUNAL LIÍ J U S -
(Processo N . ° 1 2 1 9 / 9 6 ) : « U V - o RJIFNA é
TIÇA, D E 1 D E O U T U B R O DE 1 9 9 7

um regime total, fechado, orientado para a tutela dos interesses


tributários do Estado. Ill - Há uma relação de especialidade entre
o direito penal comum e o direito penal fiscal, em que este, pela
sua especialidade, exclui aquele. ( . . . ) V - Estando apenas em
causa os interesses fiscais do Estado e sendo a conduta do arguido
subsumível ao disposto no art. 23." do RJIFNA, aprovado pelo
DL 20-À/90 de 15/01, tem-sepor excluído o direito penal comum
ê, logo. a burla».
E o A C Ó R D Ã O DO S U P K E M O TRIBUNAS, I H ; J U S T I Ç A , ni; 16 m; OtrniHRo DK i997,

apesar de ter rejeitado o recurso penal n.° 235/96, interposto para fixa-
ção de jurisprudência (rejeição fundamentada no facto de não se
verificarem, segundo o mesmo STJ, os pressupostos quer da iden-
tidade dos factos objecto do acórdão recorrido e do acórdão fun-
damento, quer da identidade das disposições legais aplicáveis), não
quis deixar de tomar posição sobre esta matéria da distinção entre fraude
fiscal e burla, considerando que existe entre estas duas figuras uma rela-
ção de especialidade e, como tal, a lei penal fiscal afasta a lei penal
comum. Com efeito, pondera o referido Acórdão: «Desde 1 de Janeiro
de 1994, mediante a inclusão expressa dos «reembolsos * na fraude
fiscal, (mesmo) quando ocorram todos os elementos constitutivos
do crime de burla, passou a existir, incontestavelmente, entre a
fraude fiscal e o crime de burla, um concurso aparente, predo-
862 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

minando a lei fiscal como lei especial sobre o Código Penal, Lei
geral ou comum,».

4. A verificação d o r e s u l t a d o / d a n o p r e j u í z o p a t r i m o n i a l
d o Estado-fisco em n a d a altera, c o m o j á o vimos, a n a t u r e z a
e qualificação jurídico-penal da conduta de fraude contra os
interesses t r i b u t á r i o s c o m o c r i m e d e f r a u d e fiscal. Assim,
mesmo que haja o reembolso, total ou parcial, das importâncias visa-
das com a utilização das «facturas falsas» {correspondentes a negócios
simulados), a qualificação jurídico-penal do comportamento do agente
não pode deixar de continuar a ser a de crhne de fraude fiscal.
A verificação do efectivo prejuízo patrimonial fiscal do Estado
apenas levará a que a pena concreta a aplicar fossa ser mais grave do
que se tal dano não se tivesse verificado. Mas esta agravação ter-se-á
de conter dentro do limite máximo da pena legal prevista no art. 23°
do RJIFNA.

Conclusão

Os factos i m p u t a d o s a o a r g u i d o . . . subsumem-se, por-


tanto, apenas ao crime de fraude fiscal, p . e p . pelo a r t . 23."
d o RJIFNA, jamais podendo ser qualificados como crime de burla,
p. e p. pelos arts. 217.° e 218.° do Código Penal.
Ora, mesmo abstraindo, para Já, do tempo em que foram pratica-
dos, vê-se que a pena estabelecida pelo art. 23;° do RJIFNA, após a redac-
ção do Dec.rLei n.° 394/93, tem o l i m i t e m á x i m o de 3 a n o s
de p r i s ã o .
Logo, por força do Código de Processo Penal, art. 202.°, n.° 1,
al. a), nunca p o d i a o j u i z decretar a p r i s ã o preventiva.

11

FRAUDE FISCAL AGRAVADA (Dec.-Lei n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro, art. 23.°,


n.°s 2 e 3; Dec.-Lei n.° 20-A/90, art. 23.°, n.° 4, 2.* parte, após alteração
pelo Dec.-Lei n." 394/93, de 24 de Novembro).
'fMuros Falsas Crime de Fraude Fiscal ou de Burla? 863

1. O despacho, que decretou a prisão preventiva, sugere que,


mesmo que a conduta do arguido só constituísse o crime de fraude fis-
cal, s e m p r e se verificaria a conditio sine qua non legal d a
p r i s ã o preventiva, « porquanto na sua actuação o arguido agia
de forma a preencher as circunstâncias previstas nas ais. e) e j)
do n." 3 do art. 23 " do RJIFNA», uma vez que «o arguido usava
documentos que sabia serem falsificados (as facturas em causa)».

2. C o n t r a esta a f i r m a ç ã o d o d e s p a c h o , h á q u e c o n t r a p o r
o seguinte:
independentemente de não se poder nunca deixar de atender às cir-
cunstâncias qualificativas vigentes ao tempo da prática do crime fun-
damental, mesmo face às circunstâncias previstas como qualificativas
da fraude fiscal pela alteração legislativa operada pelo Dec.-Lei n* 394/93,
a a c t u a ç ã o d o arguido, que consistiu em utilizar as facturas falsas,
isto é, facturas que não correspondiam a negócios realizados, mas sim
simulados (RJIFNA, art. 23 ", n.° 2, al. c), d e f o r m a a l g u m a p o d e
dizer-se q u e preencheu u m a sequer q u e seja das circunstân-
cias r e f e r i d a s nas ais. e) ef) do art. 23.°.
Quanto à circunstância referida na al. e) («o agente falsificar
ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir
ou apresentar livros e quaiquer outros documentos ou elementos
probatórios exigidos pela lei fiscal»), parece imediatamente evidente
que todas as acções aí referidas - falsificar, viciai; ocultar, etc. - têm
por objecto «livros e quaisquer outros documentos ou elementos pro-
batórios exigidos pela lei fiscal». Ora, não parece que as «factu-
ras falsas» façam parte dos livros ou documentos exigidos pela lei
fiscal... Nem parece que se possa falar de falsificação.
Relativamente à circunstância referida na al. f) («o agente usar
os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número (deve
querer referir-se à alínea) anterior sabendo-os falsificados ou vida-
dos por terceiros»), por maioria e tripla razão, ela não se verificou na
actuação do arguido: é que nem as «facturas falsas» são, como dis-
semos, documentos exigidas pela lei fiscal..., nem foram preen-
chidas por terceiros, nem tem sentido falar-se, relativamente a estas
facturas, em falsificação.
864 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

3. Diga-se, finalmente, que há uma i n c o m p a t i b i l i d a d e l ó g i c a


entre as duas circunstâncias referidas nas ais. e) tf). & que não pode,
relativamente a um mesmo documento, a mesma pessoa falsificá-lo e
usá-lo sabendo-o falsificado por um terceiro.

Conclusão

Para haver uma qualificação-agravação da fraude fiscal (agra-


vação que elevaria a pena de prisão até 3 anos para pena de prisão de
1 a 5 anos) era necessário, segundo o art. 23.°, n.° 4 - 2." parte, que se
verificasse «a acumulação de mais de uma das circunstâncias refe-
ridas nas alíneas c) a f)» do n.° 3 do art. 23.°.
Ora, no caso concreto, nem uma se verificou.
Logo, n ã o p o d e ser i m p u t a d o ao a r g u i d o o crime de fraude
fiscal agravada. D o n d e a i m p o s s i b i l i d a d e j u r í d i c a da p r i s ã o
preventiva com fundamento na fraude fiscal agrayada (inexistente),
E, mesmo que o arguido tivesse cometido o crime de falsificação
de documento (C. Penal, art. 256.°, n,° 1, ais. b) eçj) — que não come-
teu como este é cominado com uma pena legal cujo limite máximo
é de 3 anos de prisão, a conclusão f i n a l e decisiva, em r e l a ç ã o à
p r i s ã o preventiva, é a de que esta é ilegal.

III

O PREENCHIMENTO DE FACTURAS COM NEGÓCIOS JURÍDICOS (COMPRAS)


FICTÍCIOS CONSTITUI SIMUTAÇXO (HtflFNA, ART. 2 5 . ° , n . ° 2, al. c))
E NÃO o CRIME DB FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS ( C . PENAL, ART. 2 5 6 . ° )

1. S e g u n d o o Despacho, que ordenou a prisão preventiva, o


agente estará, ainda, fortemente indiciado da prática de uni crime d e
falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.", n.° 1, ais. b) e c)
(«. 0 1: «Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa
ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício
ilegítimo: al. b) Fizer constar falsamente de documento facto juri-
dicamente relevante; ou, al. c): usar documento a que se referem
as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa; é
punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa»).
•FacturasFalsas'-.Crime de Fraude Fiscal ou de Burla? 865

Nos termos do Despacho, «o arguido (...) simulou transacções


comerciais com terceiros, utilizando facturas sem correspondente
em efectivas trocas e recebimento de mercadorias».

2. Mas este e n t e n d i m e n t o ou q u a l i f i c a ç ã o jurídico-pcnal


constante do D e s p a c h o é inequivocamente de recusar.
Com efeito, a s i t u a ç ã o , em que as facturas falsas constituem o
documento (registador) da simulação de contratos de compra e venda
(as transacções) não realizados, é, b o j e , i n d i s c u t i d a e unanime-
m e n t e reconhecida c o m o n ã o s u b s u m í v e l a o c r i m e de falsi-
ficação de documentos (C. Penai 1982, art 228.°; G. Penai 1982-95,
art. 256.°).
Vejamos, sinteticamente, os argumentos contra a qualificação
j u r í d i c a d a p r á t i c a das c h a m a d a s « f a c t u r a s como
c r i m e de falsificação de documento:

a) 0 crime de falsificação de documento pressupõe ou uma falsi-


dade material ou uma falsidade ideológica.
A falsidade material está, evidentemente, fora de questão, pois
que ela implica a pré-existência de um documento que constitui o
objecto sobre o qual incide a falsificação.
Ora, no caso das facturas falsas e, portanto, no caso concreto, não
existe qualquer documento que venha a ser alterado pelos fictícios con-
traentes, com intuitos de defraudação. Estes, digamos, por um acordo
{pactum simulationis), criam, ex novo, um documento, isto é, preen-
chem, com um facto falso (um negócio simulado), uma factura.
Mas também não existe falsidade ideológica ou intelectual.
É que esta implica uma desconformidade entre a vontade declarada
e a vontade documentada. Ora, nas facturas falsas, esta desconfor-
midade não se verifica, pois o que se verifica é precisamente o seu con-
trário, ou seja: no preenchimento de facturas falsas há uma concor-
dância entre a vontade declarada (o que se quer declarar) e a vontade
documentada (a que se quer que fique registado ou retratado na fac-
tura, precisamente o negócio jurídico simulado - KjlFNA, art. 23.",
n.° 2 al. c))
Diferentemente 4o que se passa na falsificação de documento, o que
caracteriza a simulação é a desconformidade entre a vontade real e a
866 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

vontade declarada (isto é, a desconformidade entre a realidade da von-


tade e a declaração da vontade). Daqui, o dizer-se, com razão, que,
enquanto na falsificação de documento há um vício externo, já, na
simulação, há um vício interno.
Conclusão; A situação ou prática das facturas falsas cons-
titui, portanto, uma s i m u l a ç ã o , e n ã o u m a falsificação de
documento.
Ora, como é sabido, a simulação (patrimonial) deixou de consti-
tuir crime, desde a entrada em vigor do Código Penal de 1982. Esta des-
criminalização não significa que a simulação não possa ter qualquer
relevância jurídico-penai, mas sim que ela não configura um'crime
autónomo. Que ela pode ter relevância jurídico-penal, tal é evidente,
como desde logo se pode ver pelaal. c) do n.° 2 do art. 23.* do RJIFNA,
quando a qualifica como uma modalidade típica do crime de fraude
!
fiscal. • i"-':.-'-^- •-i ,
É este, aliás e desde há muito, o entendimento pacífico, tanto da
doutrina como da jurisprudência, nomeadamente do Supremo
Tribunal de Justiça.
CAVALEIRO DE F E R R E I R A , fá em 1970, escrevia: «A simulação é incom-
patível com a falsidade, não apenas com a falsidade material, mas
com a falsidade ideológica em documentos•» (Scientia Jurídica,
p. 294), e, um pouco mais à frente, o mesmo Autor precisava: «o con-
trato simulado não dá origem a documento falso» (p. 300).
H E L E N A M O N I Z , referindo-se precisamente ao caso das facturas fal-

sas, escreve: «a facturação falsa foi realizada com o intuito de obter


um enriquecimento ilegítimo, pelo que poderá considerar-se como
um meio para a prática de um crime de burla. Porém, dado estar-
mos perante uma infracção fiscal que é punida como tai, e uma
vez que apenas interesses do Estado são lesados, concluímos, de
harmonia com o referido, que os agen tes apenas pelo tipo legal de
crime de simulação fiscal (um verdadeiro crime patrimonial)
podem ser punidos. Deste modo, consideramos que os factos em
análise integram o tipo legal de Crime previsto no art. 23", n.° 1,
al. b) (referia-se à redacção primitiva do Dec.-Lei n.° 20-A/90, que
actualmente corresponde à al. c) do n." 2) do RJIFNA, dado que
os seus autores, com aquela simulação, conseguiram obier uma
vantagem patrimonial indevida* (Scientia Jurídica, 1994, p. 158).
•FacturasFalsas'-.Crime de Fraude Fiscal ou de Burla? 867

F I G U E I R E D O D I A S / C O S T A A N D R A D E consideram O seguinte: «Tudo em

principio se conjuga no sentido de qualificar a prática das cha-


madas facturas falsas como um caso manifesto de simulação. (.,,)
Para baver simulação torna-se, portanto, necessário que as par-
tes declarem uma coisa e queiram efectivamente outra. Ora,
em geral, não é manifestamente outro o sentido e alcance das
chamadas facturas falsas. Na verdade, e por acordo com os forne-
cedores ou com terceiros, os agentes económicos simulam a cele-
bração de contratos que não têm qualquer correspondência na
realidade (...). Não pode, naturalmente, questionar-se a relevân-
cia jurídico-penal dessa conduta, enquanto modalidade da acção
(pica do crime de Fraude fiscal. Só que esta conclusão - sc., qua-
lificação das factos como simulação e, por vias disso, a subsunção
na factualidade típica do crime de Fraude fiscal - preclude ec ipso
qualquer pretensão de imputar aos seus agentes o crime de Falsi-
ficação de documentos (art. 256." do Código Penal)». «Isto preci-
samente por força da incompatibilidade entre a simulação e a
falsificação de documentos, que corresponde, já o vimos, a uma
axioma consensual da experiência jurídico-penal portuguesa con-
temporânea. »
Também a jurisprudência, tanto durante a vigência do C. Penal
de 1886 (em que estava criminalizada a simulação patrimonial, no
art. 455.°) como na vigência do Código actual, distingue a simulação
e a falsificação de documentos, considerando-as como duas condutas
incompatíveis entre si.
Assim, no A T Ó R D T O D E 8 D E O U T U B R O D E 1 9 6 9 , decidiu o S T J que:
«a realização de uma escritura de confissão de divida, sem que
esta exista e com o propósito de prejudicar terceiro, integra o crime
de simulação e não de falsificação de documento•>• ÍBMJ, n.° 190,
p. 2 3 9 ) . E o A C Ó R D S Q D E 9 OK N O V E M B R O D E 1983 afirma: «o crime de simu-
lação, tal como era previsto no art. 455. • do Código penai de 1886,
foi eliminado do Código Penal de 1982, não sendo confundível
com o crime de falsificação previsto pela alínea b) do n." 1 do
artigo 228. 0deste novo diploma» {.BMJ, n ° 381, p. 312).

b) Vimos, pois, que as facturas falsas, como «celebração de negó-


cio simulado» (RJIFNA, art. 23-", n." 1, al.b), segundo o redacção
868 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

primitiva do Dec.-Lei n.° 20-A/90; art. 23.", n. 01 1 e 2, al. c),


segundo a alteração operada pelo Dec.-Lei n." 394/93), constituem
uma simulação. E também se demonstrou que esta simulação (patri-
monial), que foi descriminalizada enquanto tal, com a entrada em vigor
do C. Penal de 1982, foi assumida pelo legislador precisamente como
uma das modalidades da conduta típica de fraude fiscal.
Assim, além de, como vimos, não poder ser qualificada como crime
de falsificação de documento, também n ã o p o d e ser tratada sequer
como circunstância qualificativo-agruvante d a fraude fiscal.
Com efeito, depois de o legislador penal fiscal a ter assumido como
modalidade de execução típica do crime de fraude fiscal e, portanto, lhe
ler atribuído esta relevância jurídico-penal, o vtr, n u m segundo momento,
considerá-la como circunstância qualificativa da fraude fiscal, com a
consequência da agravação da pena deste crime, constituiria uma dupla
valoração Jurídico-penal da mesma circunstância.
Ora, uma tal dupla valoração (a$ facturas falsas como funda-
mentação da pena, enquanto modalidade típica 4a fraude fiscal,
e como agravação da pena estabelecida para este crime) é clara-
mente repudiada pelo direito penal.

3. Conclusão: a prática das facturas falsas (o seu preenchimento


e a sua utilização) é sim e apenas um meio de execução, ou seja uma
modalidade típica do crime de fraude fiscal. £la não configura nem o
crime de falsificação de documento, nem sequer uma circunstância
qualificativo-agravante do crime de fraude fiscal.

IV

A PENA APLICÁVEL AO C R I M E D I FRAUDE FISCAL C O M E T I D O ENTRE SETEM-

BRO DE 1 9 9 0 E J U L H O DE 1995 £ A PENA DE MULTA ATÉ 3 6 0 DIAS


(Dec.-Lei ir." 20-A/90, art. 23 °, n.° 2, al. a h Dec.-Lei n.° 20-A/90,
art. 23.D, n ° 4, 1/ parte, art. 11.°, n.° 2, 1* parte, após a alteração
do Dec.-Lei n." 394/93; CRP , art. 29 °, n." 4, 2." parte, e Código Penal,
art. 2.D, n.° 4)

1. Pensamos ter demonstrado que o arguido... apenas terá come-


tido o crime de fraude fiscal (simples).
•Facturas Falsas' -. Crime de Fraude Fiscal ou de Burla? 869

2. Sucede, porém, que a pena estabelecida pela lei vigente no


tempo da prática dos factos (entre Setembro de 1990 e Julho de 1993)
era exclusivamente a pena de multa entre 700 e 1000 dias, quando
a vantagem patrimonial pretendida fosse superior a 1000 contos (Dec.-
-Lei n.° 20-A/90, de 15-1, art. 23-°, n.° 2 al. a))
Hofe, após a alteração pelo Dec.-Lei n.° 394/93, de 24-11, a pena
aplicável ao crime de fraude fiscal (mesmo que a vantagem patrimo-
nial pretendida seja superior a 1000contos — cf. art. 2 3 . n , ° 3, al. a),
e 4) é a de prisão até 3 anos ou a de multa não inferior ao
valor da vantagem patrimonial pretendida, nem superior ao
dobro, sem que esta possa ultrapassar o limite máximo abstrac-
tamente estabelecido (art. 23.°, n.° 4, !.* parte),

$. Do confronto dos tipos legais previstos e das penas respectiva-


mente estabelecidas, resulta o seguinte:

a) Estabelecendo a lei do tempus delictf (Dec.-Lei n.° 20-A/90,


art. 23.°) exclusivamente a pena de multa, por força do princípio cons-
titucional (CRP, art. 29.", n.° 4, 1.' parte), assumido pelo C. Penal
(art. 2.°, n,° 1), da proibição da retroactividade da lei penal desfavorá-
vel, j a m a i s se p o d e r á a p l i c a r ao a r g u i d o . . . a p e n a de p r i s ã o
prevista no actual art. 23.°, n.° 4, 1." parte.

b) Há, de seguida, que comparar a gravidade das penas de multa


estabelecidas pela lei do tempus delicti e pela lei hoje vigente.
E, neste mothento, levanta-se, não somente a questão de qual das
penas de multa é mais favorável, mas também a questão prévia da cir-
cunstância agravante «vantagem patrimonial pretendida ser superior
a 1000 contos».

aa) Relativa mente à q u e s t ã o p r é v i a do tratamento jurídico-


-penal da circunstância «ser a vantagem patrimonial pretendida
superior a 1900 contos», vcrifica-se o seguinte: enquanto a lei
do tempus delicti (Dec.-Lei n.° 20-A/90, art. 23.°, n.° 2, al. a)) consi-
derava esta circunstância como qualificativa da fraude fiscal e, como
tal, determinava a agravação da pena legal prevista para o crime de
fraude fiscal (a agravação traduzia-se na elevação do limite
mínimo da pena da fraude fiscal, que passava a ser de 700 dias
870 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

de multa, permanecendo o limite máximo igual, ou seja multa


de 1000 dias), diferentemente a lei actualmente em vigor (art. 23.°,
n." 4, 2.' parte) não atribui à circunstância «ser a vantagem patri-
monial pretendida superior a 1000 contos» efeito qualificativo-agra-
vante da fraude fiscal.
Significa Isto que o legislador do Dec.-Lei n.° 394/93; retirou a efi-
cácia agravante da pena legal I circunstância referida.
Estamos, relativamente à eventual fraude fiscal cometida pelo
arguido, diante de umadesqualificação jurídieo-penal da conduta: d e
f r a u d e fiscal qualificada, face à lei d o tempus delicti, pas-
sou « c o n c r e t a fraude fiscal i m p u t a d a MO a r g u i d o a ser tra-
tada como £»)ude fiscal {simples), v
Ora, sempre que a lei posterior à prática do crime desqualifica este
crime, não pode deixar de se aplicar, retroactivamente, esta lei nova,
na medida em que é mais favorável ao arguido. Tal o impõe o princí-
pio constitucional da aplicação retroactiva da lei nova mais favorável
(CRP, art. 29.°, n.° 4, 2.» parte; C. Penal, art. 2.°, n,° 4).

Conclusão: a fraude fiscal (de valor superior a 1000 contos) só


pode ser punida, a partir de 1 de Janeiro de 1994 (data da entrada ém
vigor do Dec.-Lei n.° 394/93), como fraude fiscal (simples), apefcar de,
no momento em que foi praticada, ser quálificada péla lei então vigente
como fraude fiscal agravada

bb) Coloca-se, então e agora, o p r o b l e m a da p o n d e r a ç ã o das


penas de m u l t a estabelecidas, respectivamente, pelo art. 23-°, n.° 1,
do Dec.-Lei n * 20-A/90 e pelo art. 23.°, n.° 4, 1." parte, e art. 11°, n.° 2,
1.* parte, do mesmo Decreto-Lei após redacção do Dec.-Lei n.° 394/93.
Ora, enquanto a lei do tempus delicti estabelecia uma pena de
multa até 1000 dias, já a Jei actualmente em vigor estabelece uma
pena de «multa não inferior ao valor da vantagem patrimonial preten-
dida, nem superior ao dobro, sem que esta possa ultrapassar o limite
máximo abstractamente estabelecido».
Este «limite máximo abstractamente estabelecido» está previsto no
art. 11.°, n.° 2, do actual RJIFNA, e é de 360 dias (para as pessoas sin-
gulares). Logo, a lei posterior à prática da fraude fiscal e actualmente
em vigor é mais favorável que a lei do tempus delicti.
•FacturasFalsas'-. Crime de Fraude Fiscal ou de Burla? 871

C o n c l u s ã o : por força do princípio da aplicação retroactiva da lei


penal mais favorável, é a lei nova que tem de ser aplicada, não podendo
a pena aplicável ao arguido... ser superior a 360 dias de multa.

SUSPENSÃO D O FBOCJBDIMBNTO CRIMINAL (Lei n.° 51-A/96, de 9-12, art. 2.", n.° 2)

1. 0 arguido obteve da Administração Fiscal a «autorização para


efectuar o pagamento dos impostos e respectivos acréscimos legais em
regime prestacional» (Lei n.° 51-A/96, art." 2.°, n.° 1). Ora, indepen-
dentemente do facto de o processo penal já dever ter sido suspenso se a
Administração Fiscal tivesse cumprido o dever de comunicação ao Minis-
tério Público da autorização concedida ao agora arguido para o paga-
mento das dívidas fiscais (art. 4.° da referida Lei), por força do n.® 2
do art. 2." da Lei n.° 51-A/96, deve o processo penal fiscal ser ime-
d i a t a m e n t e suspenso.

2. Esta é a solução juridicamente imposta, uma vez que, como se


pensa ter demonstrado, o arguido... apenas poderá ter cometido o crime
de fraude fiscal (simples). E, deste modo, o regime da suspensão do pro-
cesso penal (e da extinção da responsabilidade penal - art. 3-°) previs-
to na Lei n.° 51-A/96 é aplicável ao presente processo penal (art. l.°),
uma vez que a exclusão deste regime favorável não se aplica à conduta
imputada ao arguido, pela razão de não se ter verificado «qualquer das
circunstâncias previstas nas ais. c) zf) do n.° 3 do art. 2 3 . d o RJIFNA,
na redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.° 394/93 (circunstâncias estas
correspondentes às circunstâncias previstas nas ais. b) a d) do n.° 2 do
art 23.°, na redacção primitiva do RJIFNA).

VI

CONCLUSÕES FINAIS

1.* - A prática das facturas falsas imputada ao arguido... consti-


tui somente crime de fraude fiscal (simples).
872 Américo A. Taipa de Carvalho / José M. Damião da Cu riba

2.* - A pena aplicável ao crime de fraude fiscal imputado ao arguido


é exclusivamente a pena de multa até 360 dias.
3." - Destas duas primeiras conclusões resulta a impossibilidade
jurídica de ao arguido ser aplicada a medida de coacção de prisão pre-
ventiva, visto que pressuposto formal e conditío sine qua non da apli-
cação desta medida é que ao crime seja aplicável pena de prisão de
limite máximo superior a três anos.
4." - No plano processual penal, deve o presente processo penal ser
imediatamente suspenso.

Tal ê o nosso parecer

Março de 1998.
DO DESCONTO DAS MEDIDAS
PROCESSUAIS PRIVATIVAS DA LIBERDADE
- ANÁLISE DE ALGUMAS QUESTÕES

MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA *

SUMAKKK 1. Introdução; 2. Área de incidência e razão polftico-criminal do insti-


tuto; 3. 0{s) critérios do desconto das medidas processuais privativas de
liberdade: 4. Implicações do funcionamento do instituto do desconto cm
processos futuros,

1. Introdução

Ê nosso intuito, no presente trabalho, fazer uma breve reflexão, le-


vantando algumas questões que se nos afiguram de eminente interesse
prático, sobre o instituto do «desconto» de medidas processuais priva-
tivas da liberdade face à Ordem jurídico-Penal Portuguesa (cf. art. 80.°

* Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa


- Porto. Mestre em Direito peia Universidade de Coimbra.

Jtiws st Oijtrjri
Nu 30 »aot á» hualAufeJe Mrtito 4* UC? • rort»
Perto, 1998
PT. 875-SW
874 Maria (ta Conceição Ferreira da Cunha

e 82." do CP)Trata-se, de facto, de ura tema pouco tratado, mas com


bastante relevância na vivência dos nossos Tribunais, devido, em espe-
cial, à enorme frequência (exagerada, segundo cremos)1 das privações
de liberdade que têm lugar antes do trânsito em julgado das sentenças
- prisões preventivas, detenções e obrigações de permanência em habi-
tação (cf. arts, 201 202.° e 254." do CPP).
É certo que Q instituto do desconto também abarca as situações de
substituição de penas, quàiido a primeira tenha sido, ao menos parcial-
mente, cumprida (cf; art. £1.°): casos derevisão de sentença (cf. art.
463.° do CPP), de corih&cimento superveniente do concurso (cf. aft. 78.°
do CP) ou de decisão que, sobre o mesmo objecto, tenha sido proferida
por TVibunal estrangeiro (cf. art. 82.° e 6.°-l do CP). Porém, no pri-
meiro caso, de que vamos cuidar, estamos perante o desconto de medi-
das processuais, aplicadas por necessidades cautelares, num momento
em que o agente se encontra a coberto da «presunção de inocência» 3
e, no segundo, do desconto de uma pena. Tanto bastará para que, ape-
sar do desconto se fundar sempre numa ideia de justiça, haja especifi-
cidades de regime. Por outro lado, a situação de desconto de medidas
processuais é muito mais frequente, assumindo o seu estudo maior rele-
vância prática. Por estas razões, decidimos cingir-nos, de momento, ao
tratamento da primeira situação.

1
Qualquer artigo que venha a ser referido sem Indicação da proveniência será
do Código Penal português; por outro lado, sempre que nos referirmos expressamente
a este Código, utilizaremos a sigla CP, assim como CPP para Código de Processo Penai
português.
1
Cf. neste sentido, Figueiredo Oias, Direito Penai Português, As Consequên-
cias Jurídicas do Crime, Áequltas, Ed. Notícias, 1993, p. 297 e, do mesmo autor, tam-
bém neste sentido; Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 2,' ed., Coimbra ed.,
1997, p. 313 ess.
' Há que sublinhar que as medidas processuais não são «penas antecipadas-
- neste sentido, salientando a situação de «presunção de inocência» em que o agente
se encontra, Figueiredo Dias. Direito Penal..., cii„ p. 297; também neste sentido Taipa
de Carvalho, Sucessão.cit., p. 313 e ss„ escolhendo, para uma das partes da sua
obra, o impressivo e esclarecedor (além de crítico) título «Do desvirtuamento da fun-
ção processual da prisão preventiva à neutralização do princípio constitucional da
presunção de inocência do arguido e, consequentemente, à violação «ope legis» ou
«ope ludicfe» do direito da Uberdade individual* (p. 313).
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade 875

Devemos confessar que esta reflexão nos foi sugerida pela leccio-
nação desta matéria na cadeira de Direito Penal para a qual nos servi-
mos, essencialmente, dos ensinamentos de Figueiredo Dias4, assim como
pela ulterior leitura de um artigo alemão', onde se comenta a proble-
mática suscitada pelos casos em que, tendo um agente cumprido pri-
são preventiva por tempo igual (ou até superior) à pena concreta em
que vem a ser condenado, o juiz entenderia ser aplicável a pena de sus-
pensão <fe execução da prisão; p, ex., tendo o agente cumprido 1 ano
de prisão preventiva, e «endo condenado em 1 ano de pena de prisão a
ser substituída porsuspensão de execução da pena, como resolver o pro-
blema do desconto?6 A resposta a esta questão estará dependente, antes
de mais, dos critérios de desconto aplicáveis, assim como da própria
«ratio» tias penas de substituição. Dever-se-á entender que na pena con-
creta a substituir h á que descontar o tempo de prisão preventiva sofrido
pelo agente? Sendo assim, não subsistiria qualquer pena de prisão, Ora,
face a esta solução, poder-se-á ainda questionar se faria algum sentido
aplicar uma pena de substituição 7 . A resposta, como veremos, não é
pacífica8, e tem ainda implicações importantes quanto a eventuais pro-
cessos futuros por que venha a responder este mesmo agente - poderá
este agente vir mais tarde a ser considerado reincidente ou delinquente
habitual tomando-se em consideração este caso? É evidente que o pro-

' Figueiredu Dias, Direito Penai..,, cit., pp. 297 e ss.


* Haberstroh, «Unschuldvermutung und Rechtsfolgenausspruch», NS>Z 1984,
p. 289 e ss. (em «pecíal, p. 293/4).
s
É evidente que este problema é também relevante face à Ordem Jurídica Por
tuguesa,referindo-se-lheFigueiredo Dias, embora a título incidental, in «Velhas e
Novas Questões sobre a Pena de Suspensão de Execução da Prisão», Revista de Legis-
lação e Jurisprudência, Julho de 1991, ano 124, n." 3804, p, tò.
7
Figueiredo Dias coloca esta questão, dando, como veremos, uma resposta
negativa - cf. Velhas e Novas,.., ed., p. 68; também neste sentido se parece incli-
nar a jurisprudência alemã. Em sentido não lotalmente coincidente, porém, mani-
festa-se a maioria da doutrina alemã - cf., nomeadamente,Slree in SchSnke-Schrtfder-
-Slree, Strajgesctzbucb Komtnentar (1985), § 56, n." m, 13, Horn, Systematiscber
Kommentar zum Strajgesatzbucb, l (1977), § 56 n." m. 7 e Haberstroh, NStZ,
p. 293/4.
* Cf. nota anterior e cf. infra ponto 4,
876 Maria (ta Conceição Ferreira da Cunha

blema se prende, assim, com o que deverá constituir conteúdo expresso


da sentença e com o tema do registo criminai.
Se estas foram as questões que suscitaram o nosso interesse por esta
temática, outras nos foram surgindo, à medida que analisávamos a pro-
blemática do desconto e concluíamos que, como sempre, as respostas
dependem dos princípios orientadores e, assim, das opções político-
-criminais. Tal lorna-se particularmente patente na definição dos cri-
térios do desconto - nomeadamente quando estamos perante penas de
multa, ou, como no exemplo citado, face a penasdesubstituição. Assim,
torna-se necessário analisar a «ratio» do instituto em análise, descor-
tinando as relações de tensão que porventura poderão existir, t que esta-
mos perante um instituto que, obedecendo â imperativos do mais
elementar sentido de justiça, contenderá por vezes com outros postula-
dos do Direito Penal, em especial, com o ideal da ressocialização. Assim,
a relação entre estes dois princípios será por vezes deconfíitoje assolu-
ções a defender tenderão a sobrevalorizar um ou outro aspecto. Cabe-
-nos a tarefa de encontrar um ponto de equilíbrio ou de, na iimpossi-
bilidade de o encontrar, fazer opções. Porém, também não deveremos
esquecer que, por vezes, por trás de u m aparente conflito, podem exis-
tir pontos de intersecção. Depois díe uma breve análise destes problemas,
é evidente que subsistem muitas dúvidas, mas, ainda assim, entende-
mos por bem estabelecer um diálogo com o leitor, na esperança de
encontrar alguma luz.

2. Área de Incidência e r a z ã o polítlco-criminal do i n s t i t u t o

O instituto do desconto tem por base a ideia, fundada em princí-


pios de justiça material 9 , de que, qualquer privação da liberdade (ou,
até, qualquer outro sacrifício)10 sofrida em razão do(s) facto (s) que inte-

' Também neste sentido Figueiredo Dias, Direito Penal..ctí., p. 297.


10
Tsl verificar-se-á nos casos de desconto de u m a pena não delenUva noutra
pena que a venha substituir. Porém, como fá referimos, estes casos não serão objecto
do nosso estudo no presente trabalho.
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade 877

gram ou deveriam integrar um mesmo processo penal J1 , deverá ser des-


contada (deduzida) na pena que, nesse processo, vier a ser cominada.
Este instituto é aplicável, assim, às situações de privação de Uber-
dade que ocorram antes do trânsito em julgado da sentença - prisão
preventiva, detenção, obrigação de permanência em habitação (cf. art.
80."-1 do CP)12 -, cujo tempo de duração deverá ser descontado na pena
de prisão em que o agente vier a ser condenado (cf. art. 80-1) e deverá
ser descontado, também, caso a pena cominada seja a de muita (art.
80.°-2)l3. Problemas poderão suscitar-se quando a pena cominada venha
a ser u m a pena de substituição, embora se possa sempre entender que
o desconto deverá ser feito na pena substituída H Mas o instituto do des-

" Assim, o que se deverá ler em conta, para efeitos de «desconto», é a unidade
processual, não a unidade substantiva; Figueiredo Dias dá-nos o seguinte exemplo:
se um agente for preso preventivamente por ter sido acusado pelos factos X,V e Z, o
desconto deverá sei feito mesmo que esse agente venha a ser condenado apenas pelo
facto Y (cf. Direito Penal .cit., p, 299, § 437). Note-se que também na Comissão
Revisora do ProfPG — Actas, PG I 165 - se defendeu esta (dela de unidade pri>ces-
sual; também neste sentido, Mala Gonçalves, 11.' ed., 1997, art. 80.anotaçSo 2. Já
no CP Italiano Impõe-se o desconto de toda a prisão preventiva sofrida antes da sen-
tença; assim, Romano (art. 137° n," m. 5 « ss.), entende ser aplicável o desconto a
prisões preventivas sofridas em virtude de um outro processo, (apud Figueiredo Dias,
Direito Pena!..., cit., p. 299, nota' 122).
13
Note-se que, na versão originária do CP, o art. 80." referia-se apenas à pri-
são preventiva; porém, Já então Figueiredo Dias entendia que «à prisão preventiva
devem equiparar-se, apesar do silêncio da lei, outras privações da liberdade de carácter
processual, como ê o caso da detenção e da obrigação de permanência na habita-
ção; a Justificação é, nestes casos, exactamente a mesma da prisão preventiva c a solu-
ção ( favorável ao agente, não havendo por isso obstáculos à integração da lacuna
por esta via», cf. Figueiredo Dias, Direito Penal..., cit., p. 299, § 437.
" Quanto aos critérios do desconto cf. infra ponto 3.
" Ta) como na versão original do CP, o art. 80." reícre-se a penas de prisão ou
de multa, não às penas de substituição; diferentemente, porém, o art. 81," (casos de
desconto de uma pena anterior) deixou de referi r-se à prisão e à multa, especifica-
mente,referindo-stàs penas em geral. No entanto, já face à anterior redacção do CP,
Figueiredo Dias entendia que, quer em relação ao art. 80.° quer em relação ao 8.1.'
(ou seja, quer para os casos de desconto de medidas processuais, quer para os casos
de desconto de uma pena anterior), se deveriam tomar em consideração não só as
penas principais como as de substituição, desde que se encontrasse um critério ade-
878 Maria (ia Conceição ferreira da Curtia

conto é ainda aplicável às situações em que uma sentença transitada


em j iilgado venha a ser substituída por uma outra, tendo o agente cum-
prido parte ou a totalidade da pena cominada na primeira sentença
(cf. art. 81.° do CP) l5 , situação de que, de momento, não curaremos.
Começámos por afirmar que o instituto do desconto se fundamenta
em princípios de justiça material. Efectivamente, como se poderia enten-
der, num Estado de Direito Material, que um agente fosse submetido,
pelos mesmos factos, a u m a duplicação de «sacrifícios»? E como se
poderia justificar, em termos de justiça relativa, que um agente cujo
processo tivesse um desenrolar mais lento (o que poderá suceder em vir-
tude de factores independentes da conduta do agente) e> por isso, sofresse
um tempo mais prolongado de, p. ex., prisão preventiva, ficasse preju-
dicado relativamente a um outro cujo processo fosse mais rapidamente
resolvido?
Porém, apesar da evidência com quesertósirnpSe o fundamento
deste instituto, ngo podemos esquecer o prejuízo que poderá implicar
para as finalidades do Direito Penal - prevenção, mormente prevenção
especial de ressocialização, mas também prevenção ggral positiva. Assim,
muitas das vezes haverá uma tensão entre ideais de justiça, què* como
vimos, reclamam a aplicação deste instituto sem abrir qualquer «excep-
ção, com o ideal da tutela dos bens jurídicos através da reposição da
confiança da comunidade, da tutela das expectativas e da consciencia-
lização dos valores jurídico-penais e, especialmente, com o ideal da
ressocialização do delinquente. De facto, se um agente já esteve preso
preventivamente durante, p. ex., 8 meses, e vem a ser condenado em
12 meses de pena de prisão, por aplicação do instituto do desconto teria
apenas de cumprir agora 4 meses de pena de prisão, Ora, é claro que o
ideal ressoeializador, a ser concretizado através de um acompanhamento
específico do agente durante o cumprimento da pena, sairá prejudicado.

quado para tal desconto (cf. Direito Penal.,., til, p. 300, § 439). Quanto aos crité-
rios do desconto, mormente no caso de aplicação de u m a pena de substituição,
cf. Infra ponlo 3-3. b).
15
Note-se que o instituto do desconto é aplicável, quer o agente tenha sofrido
medida processual ou pena em Portugal, quer no estrangeiro (cf. art 82."); o que
importa 4 tjue a tenha sofrido «pelo mesmo ou pelos mesmos factos* (art. 8 2 / ) .
Do Desconto dai- Medidas Processuais Privativas da liberdade 879

Tal prejuízo será ainda maior, como é evidente, no caso do agente ter
sido sujeito a privação da liberdade igual - ou até superior - ao tempo
de prisão em que vem a ser condenado, situação em que o agente não
terá que cumprir qualquer pena, não ficando sujeito, nem sequer por
u m tempo limitado, ao referido acompanhamento. O mesmo poderá
acontecer, com efeitos porventura mais nefastos sob o ponto de vista da
prevenção especial, e, até, da prevenção geral, no caso do Tribunal enten-
der que a pena mais adequada à situação seria uma pena não detentiva
- p. ex., uma pena de multa ou uma pena de sustituição16 (a qual
poderá ser de multa - art. 44.® — ou de outra natureza - suspensão de
execução da pena de prisão — cf arts. 50.® e ss. prestação de traba-
lho a favor da comunidade - cf. arts. 58." e ss.). É que, tendo o juiz
optado por medidas não detentivas por considerar que ratas realizam,
face ao caso concreto, de forma adequada, as finalidades da punição
(prevenção geral e especial), respeitando, assim, o critério de escolha
da pena (cf. art. 71.*), tal objectivo poderá ficar comprometido com o
funcionamento do desconto. Assim, um agente que tenha estado preso
preventivamente durante, p. ex., 12 meses, e venha a ser punido com
uma pena de multa de, p. ex., 100 dias-multa, não terá qualquer pena
a cumprir (cf, art. 80.°-2); ora, ao não sofrer qualquer sacrifício
pecuniário, o qual se considerou ser o mais ajustado à recuperação do
delinquente e ã própria prevenção geral daquele tipo de crimes,
compromentem-se, ao menos parcialmente, estas finalidades. Mais
impressivos ainda poderão ser os casos em que, tendo o agente estado
preso preventivamente, vem a ser condenado numa pena de substitui-
ção; p. ex., esteve preso preventivamente durante 1 ano e vem a ser con-
denado em 1 ano de pena de prisão a ser substituída por suspensão de
execução da pena de prisão ou por prestação de trabalho a favor da

14
Note-se que, se a pena de substituição for detentiva - prisão por dias livres
ou regime de semi-detenção (cf. arts. 45." e 46.") - os problemas subsistem, pois estas
penas, apesar de tanbém privarem o agente da sua liberdade, fa?.ern-no por forma
multo diversa da da pena de prisão tradicional e, também, de forma muito diversa
da p ris I o preventiva, u m a vez que evitam a «quebra» dos laços familiares, sociais e
profissionais do agtnie (cf. sobre estas penas de substituição. Figueiredo Dias, Direi/o
Penal..., cit., p. 355 e 336).
880 Maria (ta Conceição Ferreira da Cunha

comunidade; de facto, se entendermos que o desconto deverá ser feito


na pena a substituir, então, parece que não haveria qualquer pena a
cumprir :7 . Ora, quer o instituto da suspensão de execução da pena
de prisão (art. 50.° e ss.), quer o do trabalho a favor da comunidade
(art. 58." e ss.), obedecem a um espírito totalmente distinto do das san-
ções detentivas, o qual ficará totalmente comprometido. O agente, em
vez de ficar sujeito, p. ex., a determinados deveres ou regras de conduta,
eventualmente assentes num plano dereadaptação do delinquente a ser
executado com vigilância e apoio,: ou à prestação de determinado tra-
balho útil à comunidade. sanções que. no entendírnento do Tribunal,
seriam susceptíveis de criar no delinquente u m a atitude diferente
(de respeito) peranteosvalores da Ordem Jurfdico-Penal, assim como
de gerar a confiança da comunidade no Direito, sofreu o sacrifício de
uma privação da liberdade prolongada, sem acompanhamento, e sob
a incerteza de uma futura condenação... Podemos no entanto dizer que
o que torna estas questões mais controversas e o que conduz a soluções
menos desejáveis, é o uso demasiado frequente das medidas cautelares
privativas da liberdade, assim como o tempo demasiado prolongado da
sua duração, consequência das delongas processuais De todo o modo,
o problema existe.
Face a esta tensão entre princípios fundamentais do Direito Penal,
algumas Ordens Jurídicas optaram por abrir certas excepções ao fun-
cionamento do instituto do d e s c o n t o e n q u a n t o que outras, coroo é o
caso português 2", consagraram-no sem excepções, dando prevalência aos

17
Cf. quanto a esta questão infra 3-3 b), £ evidente que o problema se coloca
nos mesmos termos, embora de forma mitigada, no caso do agente ler estado preso
preventivamente por tempo inferior ao da pena concreta a substituir, assim, quanto
menor for a diferença entre o tempo da pena concreta de prisão e o tempo de prisão
preventiva, mais aguda se torna a questão.
11
Neste sentido cf. supra notas 2 e 3.
" Assim, o § 51 t do CP Alemão e o art. 69.° do Suíço, os quais permitem que,
em certos casos, o juiz negue total ou parcialmente o desconto; no entanto, a aber-
tura destas excepções é .feita em função do comportamento do agente depois do facto,
solução que não parece de sufragar (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal..., cit., p. 298,
§ 435).
M
tf. arts. 80.", 61.° e 82," do CP; também optando pela consagração deste ins-
tituto sem abrir excepções, o CP Austríaco ou o art, 52." do Projecto Schultz.
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade 881

imperativos de justiça material. Porém, não é apenas na consagração


ou não de excepções a este instituto que se joga a prevalência por um
dos princípios em conflito, mas, especialmente, no critério de desconto
peio qual se optar. Assim, parece que a opção por critérios baseados
numa ideia de compensação de sacrifícios, normalmente critérios mais
aritméticos (embora se possa optar por critérios equitativos baseados
nesta ideia compensatória) farão prevalecer ideais de justiça, enquanto
que critérios «equitativos»21, nos quais se tome em consideração não
só (ou até, não principalmente) os sacrifícios, mas as necessidades de
prevenção, farão prevalecer estas finalidades". Todavia, embora não
negando a existência de certa tensão ou conflito, parece-nos de subli-
nhar que, nalguns casos, não deixará de existir alguma convergência
entre-justiça e necessidades preventivas; pelo menos, parece-nos de assi-
nalar que a destruição de u m «mínimo de justiça», não contribuirá para
a concretização,dos ideiais preventivos, já que o sentimento de injus-
tiça não contém virtualidades ressocializadoras, nem, sequer, é gerador
de confiança da comunidade no Direito25.

No te-se que o Projecto de 1963, no seu art. 9 3 ' , consagrava como critério
fundamental o do desconto «equitativo», consideraudo-se, por isso, que instituía um
sistema que abria a possibilidade de nem sempre haver desconto (pelo menos des-
conto «total») - Cf. Figueiredo Dias, ibidem.
" Parece, no entanto, que mesmo face a critérios equitativos deste tipo, algo
dás finalidades preventivas sairá inevitavelmente prejudicado - de todo o modo, o
agente não vai cumprir a totalidade da pena determinada com o seu acompanha-
mento e finalidades específicos; por outro lado, porém, a justiça material também
nunca ficará plenamente realizada ainda que se siga o critério mais «compensató-
rio» possível; tal será assim, u m a vez que, para o agente, o cumprimento de uma
medida processual privativa da liberdade (mais ainda se se prolongar no tempo) é
sempre u m sacrifício que tem algo de «indevido», tendo em conta a «presunção de
inocência», e é, com certeza, ura sacrifício ainda superior ao do cumprimento de uma
pena, dada a incerteza da situação £ a possível convicção acerca da sua injustiça;
porém, encontrar u m critério baseado, exclusivamente, na compensação de sacrifí-
cios, e que concretize plenamente os ideais de justiça, também oito parece praticá-
vel, dada a inevitável subjectividade dos sacrifícios sofridos e a sofrer...
-s Cf. infra 3.3. b) e ainda Taipa de Carvalho, «Condicionaiidade Sóclo-
Culturai do Direito P e n a l . . . » , Análise Histórica. Sentido e Limite», Coimbra, 1985,
p. 100 e ss.
882 Maria (ia Conceição ferreira da Curtia

3. 0 ( s ) critérios d o desconto das medidas processuais pri-


vativas da liberdade

3.1. No caso de aplicação de uma pena de prisão

Relativamente ao desconto de medidas processuais, o art. 80.° dis-


tingue entre os casos em que venha a ser determinada pena de prisão,
daqueles em que venha a ser cominada pena de multa.
Quanto ao desconto na pena de prisão a,critério seguido é aritmé-
tico; a privação de liberdade sofrida peio arguido enquanto medida pro-
cessual deverá ser descontada por inteiro na pena de prisão -- parece
que não restam dúvidas de que ! dia de prisão preventiva (ou de deten-
ção ou de obrigação de permanência na habitação) implicará a dedu-
ção de 1 dia na pena de prisão cominada, Esta é, no nosso entendimento,
a solução mais correcta. Apesar de ficarem sempre algo comprotne ti -
dos ideais preventivos deduzir menos do que o estabelecido na lei,
poria em causa um limiar mínimo irrenunciável de justiça, já que a
privação da liberdade enquanto medida processual não implica menor
sacrifício do que a pena de prisão" - haveria, assim, uma duplicação
de sacrifícios violadora do próprio princípio da dignidade humana
(cf. art. 1.* da Constituição). Deduzir mais, em nome da compensação
de sacrifícios, partindo-se do princípio de que a privação da Uberdade
enquanto medida processual é mais dolorosa,í4'$eria bastante discutí-
vel, assim como muito difícil encontrar critério adequado (é sempre
difícil medir sacrifícios, dada a sua inerente subjectividade), além de
que comprometeria ainda mais as finalidades da punição." Não,se

24
Cf. supra ponto 2.
25
Qf. supra ponto 2, nota 22.
" Cf. Taipa de Carvalho pata quem, de facto, a privação da liberdade enquanto
medida processual será mais dolorosa do que a própria pena de prisão; no entanto,
este autor assinais este aspecto a propósito da dedução dessa privação da liberdade
na pena de mulia que venha a ser cominada, não. relativamente ao problema de que
ora tratamos (cf. Sucessão efe Leis Penais. ..,!.* ed„ p 13).
17 É verdade qut, quando é cominada u m a pena de multa, o legislador enten-
deu poder o juiz deduzir mais de um dia-multa por cada dia de privação da liber-
63
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade

devendo esquecer, assim, os dois vectores em conflito, e tendo, apesar


de tudo, ambos os sacrifícios bastante em comum - trata-se sempre da
privação da liberdade do agente - a solução parece-nos ajustada.38

3.2. No caso de aplicação de uma pena de multa

Quanto à pena de multa, convém sublinhar que houve uma alte-


ração de critério operada pela revisão de 1995; se na versão original do
CP, a prisão preventiva seria descontada «à razào de 1 dia de privação
da liberdade por 1 dia de multa» agora a lei veio determinar que
«a prisão preventiva, a detenção e a obrigação de permanência na ha-
bitação são descontadas à razão de 1 dia de privação da liberdade por,
pelo menos, 1 dia de multa» (cf. art. 80."-2 do CP, na versão actual).
Passou-se, assim, de um critério aritmético pré-determinado na lei, para
um critério que introduz algo de «equitativo», deixando, deste modo,
certa Uberdade de apreciação e decisão ao julgador. Por um lado, o juiz
não pode, por 1 dia de privação da liberdade, descontar menos de 1 dia
de multa (nesta parte ele está vinculado), mas poderá ou não descon-
tar mais do que 1 dia de multa, segundo o que entender ser mais «equi-
tativo» face ao caso concreto. Nesta «equitatividade» parece que se
deverá atender à «equivalência» ou «compensação» de «sacrifícios»,
mas, também, às necessidades de prevenção geral e especial. Cremos,
porém, que o sentido preponderante desta alteração foi o de atender à
«compensação de sacrifícios». Se 1 dia de privação da Uberdade nunca

dade sofrido (cf. infrg ponto 3.2); no entanto, no caso da dedução da privação da
liberdade n a pena de multa, tal será mais defensável, em rjome de u m a ideia de Jus-
tiça material, já que estão em causa dois tipos de sacrifícios muito distintos, enten-
dendo-se que, normalmente, a privação da liberdade é mais custosa ík> que o sacrifício
pecuniário; de resto, a ieí, (á a outros propósitos (pena prisão subsidiária — cf. art.
49."-J) partiu desse entendimento, estabelecendo um critério de «equivalência» que
poderá ser orientador da dedução nos casos de aplicação de pena de multa (sobre
estes aspectos cf. infra ponto 3.2.).
M
Esta era já a solução do art. 80.°-1 na sua versão original.
21
Cf. art. ÍO.°-2 do CP na sua versão original.
884 Maria (ia Conceição ferreira da Curtia

poderá «equivaler»30 a menos de 1 dia de multa, então, poderá ficar


algo prejudicada a ideia, baseada em ideais preventivos, de que o sacri-
fício mais adequado seria o pecuniário31; tal era já o que se passava
na versão original do CP, não tendo a revisão, quanto a este aspecto,
trazido qualquer inovação. No entanto, a possibilidade de 1 dia de pri-
vação da liberdade «equivaler» a mais de 1 dia de multa, parece basear-
-se numa Ideia de «compensação de sacrifícios», fundada em princí-
pios de justiça. De facto, embora seja difícil estabelecer critérios de
«compensação de sacrifícios», dada a inerente subjectividade do «sofri-
mento» ou «sacrifício», normalmente é sentida como mais dolorosa a
privação da liberdade relativamente ao sacrifício pecuniário. Parece ser
esta a razão que também está n a base do art. 49."-1 do Cí* o qíiai esti-
pula que a prisão subsidiária (imposta peio não pagamento voluntário
ou coercivo da multa) se determine pelos días-multa reduzidos a dois
terços. Ora, embora o actual art. 80.°-2 não venha estabelecer exacta-
mente o mesmo critério do art. 49 o-1 (o que implicaria que 1 dia de
privação de liberdade fosse deduzido à razão de 1 dia e meio de mul-
ta), deixa ao juiz a possibilidade de, face ao caso concreto, fazer «equi-
valer» 1 dia de privação da liberdade a mais de 1 dia de multa " Quanto
a nós, esta solução impõe-se por razões de justiça e de coerência do sis-
tema (relativamente ao citado art. 49 ò -l). É evidente que as situações
tratadas nos dois artigos em questão são distintas (cf. art. 8G.°~2 / art.
4 9 . M ) , mas também nos parece evidente que uma privação da liber-
dade enquanto medida processual não implicará menor sacrifício do
que uma pena de prisão, podendo até, geralmente, implicar sacrifício

M
«Equivaler» n ã o é aqui empregue n u m sentido jurídico, u m a vez que nunca
poderá haver perfeita equivalência jurídica entre u m a medida processual e u m a pena
(cf. supra neta 3).
51
Cf. supra ponto 2. É verdade que tal Ideia sempre ficaria prejudicada, com
qualquer tipo de desconto, mas esta imposição não vem em nada minimizar esse
efeito.
" É evidente que o juiz se pode servir do art. 49. como critério orientador,
mas poderá entender que a «proporção» a fazer deverá ser diferente, desde que n ã o
inverta a solução - ou seja, desde que 1 dia de privação da liberdade nunca seja dedu-
zido à razão de menos de 1 dia de multa.
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade 885

superior, dada a situação de incerteza era que o agente se encontra.53


... Assim, o iegislador optou por um critério que, combinando a impo-
sição de um limite, com a concessão de certa liberdade de apreciação,
parece fazê-lo em nome de uma ideia de justiça. Porém, o facto do legis-
lador não ter pura e simplesmente adoptado um critério aritmético como
o estabelecido no art. 49.°~ 1 confere maior flexibilidade ao julgador. Por
um lado, o juiz pode fazer «equivaler» 1 dia de privação de liberdade
a mais de dia e meio de multa, mas, por outro, deverá, no nosso enten-
dimento, permitir algum equilíbrio entre esta ideia de justiça e as neces-
sidades de prevenção - estas poderão sempre servir de limite àquela
compensação. Se a lei não permite que, com base em tais necessidades
preventivas, a ideia de justiça seja completamente posta em causai, per-
mitirá ainda que 1 dia de privação da liberdade seja deduzido à razão
de menos de 1 dia e meio de multa, se tal for imposto pelas referidas
necessidades ou, de todo o modo, que a privação da liberdade não seja
tão valorada quanto o seria de acordo com uma ideia exclusivamente
baseada na compensação de sacrifícios (a qual poderia implicar que a
razão fosse de 1 dia de privação da liberdade por 2 ou 3 nu mais dias
de multa).., Esta foi, assim, uma solução intermédia - entre a da ver-
são original do CP, que não permitia que se atendesse ao maior sacrifí-
cio implícito na privação da liberdade, e um possível critério aritmético
que utilizasse a proporção estipulada no art. 49.°-1; intermédia, ou talvez
meihor, muito mais flexível, pois também comporta a hipótese do juiz
ir além desse critério em nome, exactamente, dos princípios de justiça.
Ora, sendo assim, poderá questionar-se se não haverá excessiva flexibi-
lidade neste sistema; se esta flexibilidade, sendo consagrada ainda em
função da justiça material e, também, para permitir o referido equilí-
brio com as finalidades da punição, nao será susceptível de criar gri-

Cf., nesie sentido, Taipa de Carvalho.Sucessão de LMs Penais..., cif., 1 .* ed.,


p. 13 e, embora a outro propósito, Sucessão de leis Penais., cit., 2* ed., p. 313 e ss.
(cf. ainda supra notas 3, 22 e 26).
" O que poderia até comprometer os próprios ideais preventivos - cf. supra
ponto 2 e infra ponto 3 3- is) •
886 Maria (ia Conceição ferreira da Curtia

tantes injustiças relativas35 e se não permitirá, ainda, o total compro-


metimento daquelas finalidades36. Por isso, fica-nos a dúvida - não teria
sido preferível a adopção de um critério aritmético do tipo do que é con-
sagrado no art. 49.°-l?37 De todo o modo, sempre se poderá entender, o
que nos parece razoável, que o julgador deverá ter como critério
orientador (embora ®fão imperativo) o art. 49.°-l, não se devendo afastar
muito desse critério, quer num sentido quer no outro. É que, se o juiz
decide pdadêdução de apenas l dia de multa por cada dia de privação
da liberdade, coma a léi permite, embora o referido limiar mínimo de
justiça não fique prejudicado38 (estamos a partir desse princípio, já de
si algo discutível) a verdade é que também não se estará a concreti-
zai; em princípio, o «ideal de justiça»; por outro lado, ao permitir, sem
qualquer limite/ 8 que a dedução seja superior à imposta por aquela
razão, podem ficar completamente comprometidas as finalidades da
punição. Apesar destas dúvidas, a actual solução legal será preferível à

" É que, não só a comparação entre sacrifícios variará com a mundivisío de


cada juiz, como a análise do sacrifício concreto que determinada medida implica para
o agente A ou B é muito difícil de levar a cabo, dada a subjectividade do grau de sofri-
mento sentido e a sentir...
* Se o juiz optar pot; em norae da compensação de sacrifícios, ir muito além
do critério do art. 49 o-1, deduzindo, por ex., à razão de 3 ou mais dias de multa por
cada dia de privação da liberdade, •.
17
Tal parece ser a solução preconizada por taipa de Carvalho - cf. Sucessão
d« leis Penais..., cit., ].* «d., p. 13 — note-se, no entanto, que este autor se referia
ao problema face à versão original do CP. Pot outro lado, também Figueiredo Bias,
embora a outro propósito - a integração de lacunas (cf. infra nota 43, ponto 3.3 ) —
, refere-se à «suficiente determinação» do critério a adoptar.
M
Cf. supra ponto 2.
m
Hendo em conta o que foi dito supra e nas notas 22 e 26 sobre o maior custo
da privação da liberdade relativamente ao sacrifício pecuniário; no entanto, dever-
-se-á ter em conta que o sacrifício poderá ser valorado de forma diferente consoante
estejamos face, p. ex,, a u m a prisão preventiva ou a u m a obrigação de permanência
na habitação, permitindo, u m sistema mais flexível como o que foi instituído, que
se graduem as diferentes situações.
" De facto, u m a outra solução defensável teria sido a de apor quer u m limite
m í n i m o (eventualmente superior à dedução de 1 dia por 1 dia) quer um limite
máximo (de, p. ex., 2 dias por 1 dia).
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade 887

da versão original do art. 80®, ao permitir (embora não impondo) que


melhor se realizem as exigências de um princípio de justiça material,
permitindo ainda que não fiquem totalmente comprometidos os ideais
preventivos, podendo alcançar-se, assim, se o preceito for bem apli-
cado, algum equilíbrio.41 De facto, parece-nos que, especialmente neste
âmbito da dedução das medidas processuais privativas da liberdade, se
tornava mais importante permitir a melhor realização de uma ideia de
justiça, o que terá sido intenção da reforma. Tal torna-se ainda mais
claro se reflectirmos com seriedade no que significará para um agente
ver-se privado da sua Uberdade antes de uma condenação, muitas das
vezes por tempo prolongado, quando, afinal, se veio a verificar que,
embora culpado, é suficiente a aplicação de uma pena de multa para
a sua recuperação. Por outro lado, insistimos, as finalidades preventi-
vas poderão operar como um limite. Por fim, não se poderá esquecer
que ú problema do comprometimento destas finalidades deriva, em
grande medida, da duração excessiva das medidas processuais, a qual
se fica a dever (mormente nos casos de medidas privativas da liberdade)
ao deficiente funcionamento dos orgãos de controlo da criminalidade,
não ao delinquente".

3.3. No caso de medidas de segurança e de penas de subs-


tituição

O art. 80.° do CP omite qualquer referência à dedução das medi-


das processuais privativas da liberdade quando o juiz se decida pela apli-
cação de penas de substituição ou de medidas de segurança. Porém,
cremos que tal não significa ter sido intenção do legislador excluir, nes-
tes casos, o funcionamento do instituto do desconto. Nas palavras de
Figueiredo Dias, «uma tal restrição não parece porém, ao menos em
todos os casos pensáveis, político-criminal mente justificável», defen-
dendo ainda que o juiz poderá integrar tal lacuna, sempre que seja pos-

41
Assim, parece que se apostou em depositar maior confiança no julgador.
w
Cf. notas 2 e 3 « bibliografia aí citada.
88 8 Maria da Cvnceição Ferreira da Cunba

sfvel «encontrar um critério de desconto adequado ao sistema legal e


dotado de suficiente determinação».43

a) Face a medidas de segurança - breve apontamento

Em relação às inedidas de segurança pareee-nos, de facto, que se


trata de uma lacuna a colmatar peio juiz segundo critérios ajustados
ao sistema legal, À partida, seríamos tentados adefenderqueo critério
a seguir fosse o que é aplicável às penas de prísãô,sendo descontado,
assim, por cada d i á d e privação da liberdade enquantomedida proces-
sual, 1 diadc medida de segurança; tal critério teria por base a «com-
pensação desacrifícios». No entanto, é evidente que© problema do
desconto í muito mais complicado no âmbito das medidas de segurança,
tendo em; conta os pressupostos em que assenta (agente inimputável,
havendo feceio, em virtude da anoraaliapsíquíca de que padece e da
gravidade do facto praticado, de que volte a cometer futuros crimes
- cf. art. 91.®) e as finalidades que visa alcançar - o tratamento do delin-
quente para que cesse a sua perigosidade (cf. arts. 91-°-l e 92.M). Com
a referida dedução poderia acontecer que já não houvesse qualquer
medida de segurança a cumprir (ou, então, que o agente tivesse que
cumprir muito pouco tempo em medida de internamento)44, não tendo
o agente sido sujeito, enquanto esteve, p. ex., preso preventivamente,
a qualquer tipo de tratamento e, assim, não tendo cessado nem tendo
sido atenuada a sua perigosidade (o efeito de uma privação da liber-
dade sem acompanhamento até poderá ser o do agravamento dessa
perigosidade). É claro que também no caso de aplicação de uma pena
de prisão a dedução compromete, nalguma medida, a finalidade dessa
pena45. No entanto, no caso das medidas de segurança, a situação ainda

43
Direito Pena!..., cif,, p, 500, § 439, referi ndo-se, nâo apenas ao art. 80.",
de que ora curamos, mas também ao art. 81.?, ambos nas suas versões originárias.
Note-se que, quanto ao art. 80.*, a revisão não irou se, em relação a este aspecto, qual-
quer alteração.
* Note-se <]ue o internamento não pode exceder o limite máximo da pena cor-
respondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável {cf. art. 92 °-2}.
45
0 agente em, j». ex., prisão preventiva, também não teve o acompanhamento
necessário à sua ressoeialtzaçâo (cf. supra ponto 2).
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade 889

se nos afigura mais grave; para o agente inimputável parece que se tor-
nará de todo indispensável um acompanhamento específico, com um
tratamento adequado ao seu caso41*. Mas, não haver qualquer dedução
também contraria aquele limiar mínimo de justiça, assim como o prin-
cípio de que, mesmo as medidas de segurança, estão sujeitas a limites.
Se tivermos em conta <jue o juiz irá ponderar o que ainda será neces-
sário para o tratamento do agente, apenas com o limite da moldura
abstracta do crime cometido (cf. art. 92.°-2)<r e se tivermos ainda em
conta, não só os limites mais elevados, como é evidente, dos crimes màis
graves,:c<?mo as regras estabelecidas na lei para esses casos (cf, art.
9.1 e 92°-3), o critério apontado não será de todo desajustado.''8

h) No caso de aplicação de penas de substituição

J á relativamente às penas de substituição, embora a lei pudesse (tal-


vez devesse) referir-se-lhes expressamente, evitando, desse modo, espaço
para dúvidas, cremos que se poderá entender não estar em causa uma
verdadeira l a c u n a . É que, sendo as penas de substituição, como o pró-
prio nome indica, penas que vão ser aplicadas «em vez de» outras penas,
tendo estas, face ao sistema jurídico-penal da actualidade, de ser
previamente definidas - quer quanto ao tipo de pena quer quanto à sua

Estamos a pensar essencialmente em inimputáveis em razão de anomalia


psíquica (cf. ar!. 20."), embora a situação dos in imputáveis cm razio da idade
(cf. arl, 19.°), sendo distinta, coloque alguns problemas comuns.
47
Ora, em princípio, só em relação a urn crime pouco grave 6 que já não have-
ria medida dc segurança a aplicar, lendo em conta a dedução do tempo de prisão
preventiva...
44
Deisamoj aqui apenas esta breve reflexão em relação ao desconto quando
estão em causa medidas de segurança, confessando, desde já, não termos aprofundado
o tema, dada a sua especificidade- Be facto, trata-se de um tensa que mereceria refle-
xão mais aprofundada, a tjual implicaria um estudo mais atento da «ratio» e do sis-
tema das medidas de segurança, tarefa que, de momento, nSo nos foi possível levar
a cabo. Subsistem, assim, muitas dúvidas no «osso espírito, quanto à bondade da
«hipótese» de critério enunciado.
É claro que esta afirmação fá tem por pressuposto a interpretação que de
seguida vamos deíender no texto; assim, face a outra interpretação-solução, ela seria
infirmável.
70 Maria (ia Conceição ferreira da Curtia

medida concreta50 - , parece que fará sentido pensar-se que será na pena
concreta «a substituir» que deverá ser feito o desconto. Ora, esta pena
concreta « a substituir» terá de ser uma pena de prisão ou uma pena
de multa (no caso do art. 60." ou no do art. 48."), estando, quanto a
estas, definido na lei o critério do desconto a fazer51. Esta opinião poderá
não ser pacífica. Poder-se-ia entender que, depòis de determinada a pena
díe substituição (a sua espécie assim como o seu «quantum») é que se
deveria fazer o desconto; havendo, assim, de facto, uffiá lacúnâ na lei.
Tomemos o seguinte exemplo: determinado agente passa l ano preso
preventivamente e vero a ser condenado em 2 anos de pèna de prisão a
ser substituída por suspensãode execuçM da prisIto 5 ^ u m a solução pos-
sível (a qtfe começámos por defender) seria i dedescontar 1 ano de pri-
são preventiva nos 2 anos de pena de prisão; assim, o juiz teria de
determinar o tempo (e modo) de suspensão adequado à substituição de
1 ano de pena de prisão, determinando, p, ex., 2 anos de suspendo.
Outra solução, com resultados práticos porventura bastante distintos,
seria a de determinar o tempo de suspensão adequado à substituição
dos 2 wos de pena de prisão por hipótese, 3 anos de suspensão e,
depois, nesta pena, teríamos de deduzir 1 ano de prisão preventiva; ora,
face a esta solução, a lei não nos indica, de facto, qualquer critério,
tendo o juiz que colmatar a lacuna, adoptando um critério que lhe
pareça «equitativo» - tendo em conta que o agente esteve privado da
sua liberdade durante 1 ano, quanto tempo se deverá descontar nos 3
anos de suspensão de execução da prisão? Aqui, o critério poderia variar

w
Nottí-se quê tal n i o era assim na ver$&> original dó CP, pois o «regime de
prova* (hoje sem cxistSncià autónoma - o que existe é suspensSo de execução da
pena de prisio com regime de prova - cf. art. 53-®) nâo pressuponha a determina-
ção da pena concreta a substituir.
51
Cf. supra ponto 3 1. «3-2.
52
O que nos parece indiscutível é que, cora base na pena concreta - e n í o com
base nesta pena depois de feito o desconto — é que o juiz deverá decidir se é de apli-
car ou não determinada pena de substituição; caso contrário, haveria violação dos
pressupostos (desde logo dos pressupostos formais) da aplicação das penas de substi-
tuição, é que, p. ex., n o caso da pena de suspensão de execução da prisão, a pena
concreta de prisão não poderá ser superior a $ anos <cf. art. 50.*') - é desta pena de
prisão que se trata, é este o pressuposto do instituto, não desta pena deduzida da pri-
vação de liberdade como medida processual...
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade 891

segundo a sensibilidade de cada julgador. Desde logo, o critério pode-


ria ser mais aritmético (tendendo a estabelecer proporções e aplicando-
-se uniformenente aos vários casos)53 - neste caso os resultados pode-
riam aproximar-se dos obtidos na primeira solução - 5 < , ou menos
aritmético, menos uniforme; poderia atender mais a uma ideiade «com-
pensação de sacrifícios»,'5 ou atender também (ou até mais) aos ideais
preventivos — quanto tempo de suspensão seria ainda necessário para
a ressocialização do delinquente e a reposição das expectativas da comu-
nidade?
A situação torna-se mais melindrosa ainda se pensarmos no exem-
plo que constituiu o móbil deste trabalho: determinado agente passou
1 ano preso preventivamente e veio a ser condenado em 1 ano de pena
de prisão a ser substituída pela suspensão de execução da prisão.
Sufragando a primeira solução apontada, na pena concreta de 1 ano
de prisão haveria a descontar 1 ano de prisão preventiva; não subsis-
tindo qualquer pena de prisão, não haveria pena a substituir; parece
assim, que não faria sentido a aplicação da pena de suspensão de exe-
cução-da prisão (ou de umaoutra qualquer pena de substituição)

55
Note-se que, embora por vezes tenhamos contraposto critério aritmético a
critério equitativo [simplificando as questões), a verdade é que um critério aritmé-
tico poderá ser equitativo; ou melhor, para se estabelecer um critério aritmético o legis-
lador o u o Juiz taseia-se, em princípio (assim deverá ser), n u m a ideia de
«equitatividade». Tiivez fosse melhor, então, contrapor critério pré-determínado (uni-
forme) a critério que deixa u m a margem para decidir face a cada caso concreto.
" Mas também tudo depende das proporções usadas.
55
Embora seja difícil comparar sacrifícios tão distintos quanto a privação da
liberdade relativamente a um tempo <am que pesa u m a ameaça sobre o agente acom-
panhada da imposição de deveres e/ou regras de conduta e, eventualmente, de u m
plano de readaptação do delinquente (cf. arts. 51° e ss.)... É verdade que quando
se desconta a privação da liberdade n u m a pena de multa, também se comparam sacri-
fícios distintos; porém, face a tal situação, a lei dá-nos alguma orientação (cí. supra
ponto 3.2.). Assim, se partirmos do princípio de que a privação da liberdade é mais
dolorosa do que a suspensão da prisão (o que parece quase indiscutível, embora tal
também varie com os deveres e regras restabelecidas n a suspensão), o critério da com-
pensação de sacrifícios parece aproximar-se mais da primeira solução.,.
56
Neste sentido, Figueiredo Dias, Velbos e Novos. ., cit., p 68; também neste
sentido se inclina J Jurisprudência alemã; em sentido não totalmente coincidente,
cf. certa doutrina alemã referida supra nota 7 e infra ponto 4.
892 Maria (ia Conceição ferreira da Curtia

Defendendo a segunda solução, os resultados práticos poderiam ser


muito variados. À partida, o juiz poderia substituir 1 ano de pena de
prisão por, p. ex., 2 anos de pena suspensa; nesta pena, iria descontar 1
ano de prisão preventiva. Tanto poderia chegar à conclusão de que o
agente não deveria cumprir qualquer pena, como poderia entender que
ainda haveria u m «quantum» de pena suspensa a cumprir. Parece que
a ideia de «compensação de sacrifícios» conduziria mais facilmente à
conclusão de q u e n ã o haveria pena â cuioprir. partindo do princípio
de que a privação 4a liberdade, ademais enquanto medida processual,57
é mais doiorosa do que a pena de suspensão da prisão; mastajtan)-
béims poderia; vaíiar com o tipo dede veres eregras de condutaimpos-
tos. Por outro lado, ura critérioque privilegiasse mais as necessidades
preventivas, poderia levar o juiz a estabelecer ainda determinado
«quantum» de cumprimento de pena de suspensão da prisão. Porém,
se o juiz optasse por estabelecer ainda, p. ex», 6 meses de pena suspensa,
o que aconteceria caso o condenado, pelo seu comportamento, preen-
chesse os pressupostos que conduzem à revogação da suspensão (cf. art.
56.°)? Iria cumprir 1 ano de pena de prisão, 6 meses, 2 meses? Qual-
quer destas soluções violaria o princípio do desconto da prisão preven-
tiva na pena de prisão (cf. art. 80.°-1). A única resposta que não violaria
tal princípio seria - o agente não teria qualquer pena de prisão a cum-
prir. .. Então, tal significa que a pena de suspensão de execução da pri-
são, na prática, não teria qualquer efeito de ameaça, ameaça èsta que
é inerente à sua «ratio» (cf. art. 50."-1); ou seja, na prática, os deve-
res, as regras de conduta e o eventual plano de readaptação, não seriam
verdadeiramente vinculantes, mas facultativos.. Tratar-se-ia ainda de
verdadeira pena a cumprir?5® Este problema torna-se mais impressivo
neste caso. Porém, face ao exemplo citado anteriormente, o desconto
teria de ser feito, pelas mesmas razões, na pena de prisão, A única dife-
rença, então, seria a de que ainda subsistiria alguma pena de prisão a

" Cf. supra nota 55-


* Note-se que no caso de seguirmos a primeira solução apontada, n ã o ler pena
a cumprif n ã o significa que o agente n ã o tenha sido condenado (e, assim, censu-
rado); significa apenas que, pelo funcionamento do desconto, Já nào teria pena a
cumprir..
Do Desconto dai- Medidas Processuais Privativas da liberdade 893

cumprir (1 ano), mantendo-se, assim, a ameaça, pelo tempo que o juiz


houvesse determinado.
Tudo ponderado, teremos que concluir que nos parece mais correcta
a primeira solução apontada. Por um lado, ela garante a uniformidade
das decisõess?, baseando-se em critérios estabelecidos na lei60. Mas não
será esta a razão principal; é que esta parece ser também a solução que
está mais de acordo quer com a «ratio» do instituto do desconto, quer
com o sentido e função das penas de substituição. Este último aspecto
será porventura mais evidente. Se uma pena de substituição vai ser apli-
cada «em vez» da pena substituída, se esta é o pressuposto daquela e,
ademais, se a pena substituída poderá vir a ser aplicada, caso a pena
de substituição não esteja a atingir a sua finalidade (cf. art. 56." - revo-
gação da suspensão - e art. 59." - revogação da prestação de trabalho
a favor da comunidade), ou caso não seja cumprida (no caso da pena
de substituição ser uma pena de multa - cf. art. 44.°-2), tendo nestes
casos que se fazer o desconto na pena que se vai tornar efectiva, então
parece que se deverá fazer o desconto na pena a substituir e, caso não
subsista qualquer pena a substituir, a única conclusão lógica será a de
que o agente não terá pena a cumprir. A este propósito dlz-aos Figuei-
redo Dias: « . . . não tem sentido político-criminal suspender a execu-
ção de u m a pena de prisão que, por qualquer razão jurídica, não deve
ser cumprida.» 6 1 Note-se — não que o agente não tenha sido conde-
nado; ele foi condenado e o Tribunal entendeu que seria de aplicar uma
determinada pena de substituição 62 ; apenas se veio a verificar que tal
pena não poderia ser aplicada pelo facto de ele j á ter cumprido «sacri-
fício» equivalente ao da pena a substituir. Esta argumentação cruza-
sse, assim, com a da «ratio» do desconto; já sabemos que este instituto

ss
Ou u m a maior uniformidade já que, tniíando-se da substituição de uma pena
de muita, o critério legal permite alguma «discricionariedade», havendo, no entanto,
u m a orientação legal (cf. supra ponto 3.2.)
M
Ê a s o l u t o que, como vimos, permite u m a leitura da lei que cubra as várias
situações, sem necessidade de se recorrer à integração de lacunas (a não ser, é claro,
para o caso da dedução das medidas processuais privativas da liberdade nas medidas
de segurança — cf. ponto 3.3. a ) ) .
41
in Velhas e Novas..., cit., p. 68,
61
Este aspecto torna-se importante para futuro (cf. infra ponto 4).
894 Maria (ia Conceição ferreira da Curtia

se funda em imperativos de justiça, ligados à ideia de «compensação


de sacrifícios». É verdade que temos vindo a defender a necessidade de
se encontrar algum equilíbrio (o equilíbrio possível) entre esta ideia e
as finalidades da punição; será também verdade que esta solução pri-
vilegia os imperativos de justiça. Porém, sempre defendemos que essa
ideia de justiça (pelo menostim mínimo de justiça) 63 não poderá ser
posta em causa. Poroutro lado, também já manifestamos a nossa opi-
nião no sentido de inexistência deurn a tensão absoluta entre estes dois
vectores64, pois também uma soluçãâ justa contribuirá para os ideais
preventivos — quer para a ressocialização dá delin quente, quer para a
confiança da comunidade no Direito; ou, se quisermos, uma. solução
que desrespeite a ideiade justiça criará animosidade ou até revolta no
delinquente, contribuindo para que reincida no desrespeito dos valores
jurídico-penais, podendo suscitar também, na própria comunidade, Ins-
tabilidade e desconfiança. 6V "

" Cf. supra ponto 2.


M
Noie-se que, o próprio facto do agente ter como ameaça a execução da pena
substituída e de, caso eia venha a tomar-se efectiva, se ter de fazer o desconto, torna
ainda menos relevante alguma eventual tensão entre justiça e ideais preventivos.
De facto, no caso mais impressivo de não haver pena a cumprir; mesmo a segunda
solução mencionada, acabaria, na prática, por chegar a resultados práticos semelhan-
tes aos da solução por nós defendida.
" Nio que alguma tensão não exista; rets e i a n ã o deverá ser sobrevalorizada,
devendo sallentar-se também os pontos de intersecção dos dois princípios orientado-
res deste instituto.
u
Referímo-nos n o texto, em especial, à pena de suspensão de execução da pri-
são; más as soluções valem, «rnutatis mutandls», p a i a as outras penas de substitui-
ção - trabalho a favor da comunidade (arts. 48.® e 58.'), mulia (art. 44.°) e também
para a prisão por dias liveés e o regime de semi-detenção (cf. arts. 45.° e 46°). Quanto
à pena de multa como pena de substituição (e também quanto às penas de substi-
tuição de carácter detentívo), haverá a salientar que não será pelo facto da lei defi-
nir critérios para o desconto da pena de prisão e da pena de multa, que se deverá
fazer o desconto nestas penas de substituição, ao invés de se fazer o desconto n a pena
principal (pena substituída). Ê que, as razões que invocámos, valem igualmente para
este tipo de penas dê substituição, não fazendo sentido que o critério variasse con-
soante a pena de substituição escolhida. Poroutro lado, é evidente que, também nestes
casos, a opção por u m a ou outra solução n ã o seria indiferente, pois os critérios que
norteiam o j u i z n a escolha de u m a pena de substituição e determinação do seu
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade 895

4. Implicações d o f u n c i o n a m e n t o do i n s t i t u t o do desconto
em processos futuros

Retomemos o exemplo que serviu de móbil a este trabalho: um


agente, que cumpriu durante 1 ano prisão preventiva, vem a ser con-
denado em 1 ano de pena de prisão a ser substituída por suspensão de
execução da prisão; fazendo-se actuar o instituto do desconto, de acordo
com o critério (e a interpretação da lei) defendido67, este agente não
teria qualquer pena a cumprir. Supunhamos que o crime foi cometido
dolosamente e que este agente veio ainda a cometer, antes de decorri-
dos mais de 5 anos sobre a prática deste crime, outro ou outros crimes
dolosos, aos quais vem a ser aplicada prisão efectiva. Poderá este agente
vir a ser considerado reincidente (arts. 75." e ss.) ou delinquente
por tendência (arts. 83.° e ss.)? A nossa resposta só poderá ser negativa.
É que, não se poderá esquecer que a pena cominada pelo Tribunal não
foi de prisão efectiva, pressuposto quer do instituto da reincidência, quer
da aplicação de uma pena relativamente Indeterminada68, mas uma
pena de substituição; esta só não foi efectivamente aplicada, pelo facto
da pena principal (pena «a substituir») já não subsistir, por ser«com-
pensada» com o tempo de prisão preventiva já cumprido. SublLnhe-se,
por outro lado, que a prisão preventiva não é uma pena e que, assim,

«quantum» n ã o terão de coincidir, até porque a razão de ser de cada um dos insti-
tutos é distinta, com os critérios que a lei estabelece para o desconto (cf., no caso de
aplicação de u m a multa como pena de substituição, o art. 44.* versus art. 80.°-2).
17
Cf. supra poma 3 3 í>).
" Esta exigência tornou-se expressa com a revisão do CP (cf. actuais arts. 75-°,
8 3 . 8 4 . " e 86.°). J i antes da revisão era esse o entendimento da doutrina (cf. Figuei-
redo Dias, Direito ?mal. . ., cit., p. 264 e 265, relativamente & reincidência; relati-
vamente aos arts. 83/ B 84.°, cf. p. 565; quanto ao art. 86.", defendia este autor que,
de jure candendo, a solução também fosse essa - cf. p. 577, § 912; de facto, tal solu-
ção passou a ser a estipulada na lei depois da revisão). Com a revisão também se
tomou-se clara a impossibilidade de estarem em causa penas de substituição de natu-
reza detentlva (prisão por dias livres ou regime de semi-detenção), uma vez que se
passou a exigir que as penas de prisão, pressuposto da reincidência, sejam superiu-
res a 6 meses; ora, «tas penas de substituição só são aplicáveis a penas de prisão até
3 meses (cf. art. 75." e arts, 4 5 * e 46." e cf. Figueiredo Dias, Direito Penal.., cii.,
p. 565, § 889).
896 Maria (ia Conceição ferreira da Curtia

não podemos dizer que o agente tenha cumprido prisão efectiva. De todo
modo, actualmente, o que é relevante, para aplicação destes institutos,
é que não tenha havido condenação em prisão efectiva, não o seu cum-
primento, 69 e esta não existiu. Isto vale, como é evidente, para qual-
quer pena de substituição, incluindo as de natureza detentiva.70/71 A este
propósito caberá referir o que nos diz Figueiredo Dias: quanto à reinci-
dência, entende este autor que o desejo presente na lei foi o «de que a
condenação anterior assuma uma gravidade tal que implique a apli-
cação (directa) de u m a pena de p r i s ã o . . . » " . Também em relação à

w
Esta foi também uma alteração introduzida pela revisão de 1995 (cf. actuais
arts. 75°, 83°, 84.° e 86.°). Note-se que a solução anterior, no sentido de se exigir o
cumprimento, ao menos parcial, da pena, para efeitos de reincidência, era criticada
pela doutrina - se o fundamento da reincidência se relaciona com o desrespeito pela
solene advertência do Tribunal, então nada tem a ver com o cumprimento efectivo
da pena; tal já não seria assim se o fundamento se relacionasse também com o sofri-
mento da pena de prisão (cf. Figueiredo Dias, Direito Penai,.., cit., p. 267, § 376).
70
Cf. supra nota 66. Por outro lado, caso a pena determinada seja uma. pena
de prisão, haverá que ter em conta que, para efeitos futuros (eventual consideração
do agente como reincidente ou como delinquente por tendência), o que se deve ter
em conta é, mais uma vez, a pena cominada, não a pena cumprida (ou a cumprir),
resultante do desconto. Este aspecto poderá ser relevante para verificação — ou não
- dos pressupôs tos formais destes institutos, pois, quer no art. 75.°, quer no art, 83.°,
há a exigência, não só da condenação em prisão efectiva, como de um determinado
«quantum» de prisão - no art. 75.°, pena de prisão superior a 6 meses, no art. 83 °,
pena de prisão superior a 2 anos.
71
Já relativamente aos casos de conhecimento superveniente do concurso
(cf. a ri. 78.°), estando em causa, na sentença transitada em Julgado, uma pena de
substituição, ler-se-á, no entanto, de partir da pena substituída (pena principal
- embora depois de feito o eventual desconto) para se formar o concurso. Só em rela-
ção à pena do concurso fará sentido ver se deverá haver substituição (cf. neste sen-
tido Figueiredo Dias, Direito Penal..., cit., p. 295, § 430). Esta parece ser a solução
mais consentânea com a ideia da pena do concurso ser uma pena conjunta; o juiz
só poderá avaliar da adequação e suficiência da aplicação de uma pena de substitui-
ção considerando a totalidade dos factos e a personalidade do agente (cf. idem,
p. 291, § 420).
" Direito Penal..cit., p. 265, § 372; embora estas considerações sejam teci-
das a propósito da pena de multa com prisão alternativa - 46.°-1 na sua versão
original —, têm perfeito cabimento no presente contexto.
Do Descontodai-Medidas Processuais Privativas da liberdade 897

pena relativamente indeterminada afirma ser a aplicação de uma pena


de substituição «indício da convicção judicial de que, no caso, a pri-
são não se tomava necessária do ponto de vista da prevenção. Tanto
basta para que uma tal condenação não deva ser considerada índice
relevante para a aplicação de uma PRI» 75 .
Ora, cremos ter sido em torno deste problema que surgiram diver-
gências entre a jurisprudência e a doutrina alemãs. É que, para a pri-
meira, não haveria que suspender a execução de uma pena de prisão
que, pela actuação do instituto do desconto, já estivesse «cumprida»;
enquanto que a segunda, preocupada com as consequências de tal enten-
dimento em eventuais processos futuros, sustenta a necessidade de se
«suspender a pena» embora o agente não tivesse que ficar sujeito,
na prática, ao cumprimento de quaisquer deveres ou regras de con-
duta 75 . Ou seja, o que parece pretender tal doutrina é que, para futuro,
o agente não fique prejudicado pelo facto de, pelo funcionamento do
desconto, não cumprir a pena de substituição. Já Figueiredo Dias, face
ao nosso sistema jurídico, parece inclinar-se para a solução da juris-
prudência alemã — na medida em que entende já não fazer sentido a
aplicação de uma pena de substituição quando não subsista, pela apli-
cação do desconto, pena a substituir76; mas Figueiredo Dias também
acentua o facto de, a decisão pela suspensão da pena, não trazer, face
ao nosso sistema jurídico, «vantagem para o delinquente do ponto de
vista do registo criminal» 11 .
No entanto, para que seja possível, por um lado, não aplicar a pena
de suspensão de execução da prisão (ou outra pena de substituição) e,
por outro, não prejudicar o agente face a eventuais processos futuros,
parece-nos evidente que será necessário que na sentença fique expresso,

73
Cf. idem, p, 565, § 889.
" Cf. supra em nolas 7 e 8, a aJusão a alguma disconcordância enlre, por um
lado, Figueiredo Dias e a jurisprudência alemã e, por outro, certa doutrina alemã.
n
Esta seria, assim, u m posição algo intermédia entre as duas soluções
equacionadas supra ponto 3.3. Li), ou, talvez, mais aproximada da segunda solução
apontada, embora de forma algo mitigada.
76
Cf. ponto 33- b) nota 56.
" Cf. Velhas t Novas.cit., p. 68.

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