APAV - Manual Odio Nunca Mais PDF
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expressamente citada a fonte.
Esta publicação foi desenvolvida com o apoio financeiro do Programa Direitos, Igualdade e Cidadania da
União Europeia. A publicação reflete os pontos de vista dos autores, não podendo a Comissão Europeia ser
responsabilizada por qualquer utilização que possa ser feita da informação contida na mesma. 978-972-8852-91-7
Ficha técnica
Promotor:
Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) | Portugal
Parceiros:
Procuradoria-Geral da República (PGR) | Portugal
Polícia Judiciária (PJ) | Portugal
Brottsoffermyndigheten (CVCSA) | Suécia
Weisser Ring (WR) | Áustria
Solidarci | Itália
Faith Matters (FM) | Reino Unido
Victim Support Malta (VSM) | Malta
Parceiros Associados:
Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) | Portugal
Confederación Española de Policía (CEP) | Espanha
Victim Support Europe (VSE) | Bélgica
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Índice
Apresentação 5
PARTE I — COMPREENDER 7
1. Crimes de ódio: à procura de uma definição 9
2. Conceitos associados 13
2.1. Incidentes de ódio 13
2.2. Discurso de ódio 13
2.3. Violência discriminatória 14
3. Das atitudes aos crimes de ódio 15
4. Qual o impacto para as vítimas? 17
4.1. Impacto nas vítimas diretas 18
4.2. Impacto na comunidade de pertença 20
4.3. Necessidades das vítimas 21
4.4. Aspetos relevantes à recuperação das vítimas 22
5. Crimes de ódio contra grupos selecionados 25
5.1. Comunidade LGBTQ+ 26
5.2. Minorias étnicas, culturais e religiosas 32
5.3. Vítimas com deficiência 37
5.4. Migrantes, requerentes de asilo e refugiadas/os 38
5.5. Outros grupos minoritários e vulneráveis 41
6. Enquadramento legal 43
6.1. Os crimes de ódio no direito internacional 43
6.2. Os crimes de ódio à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 45
6.3. Os crimes de ódio no Direito da União Europeia 46
6.3.1. As vítimas de crimes de ódio e a Diretiva 2012/29/EU 50
6.4. Os crimes de ódio na Europa 52
6.4.1. Áustria 52
6.4.2. Itália 53
6.4.3. Malta 54
6.4.4. Reino Unido 54
6.4.5. Suécia 56
6.5. O enquadramento jurídico dos crimes de ódio em Portugal – considerações gerais 58
6.5.1. Crimes de ódio no direito penal português 60
6.5.2. Crimes de ódio no direito processual penal português 71
6.5.3. Estatuto das Vítimas 76
6.5.4. Direito contraordenacional 78
6.6. Autonomização dos crimes de ódio: o melhor caminho? 82
PARTE II — PROCEDER 85
1. Contactar e interagir com vítimas de crimes de ódio 87
1.1. Aspetos fundamentais 87
1.2. Comportamento não-verbal 89
1.3. Boas práticas no contacto e interação com vítimas LGBTQ+ 90
1.4. Boas práticas no contacto e interação com vítimas com deficiência 92
1.4.1. Deficiência visual 92
1.4.2. Deficiência motora 93
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Índice
Bibliografia 161
4
Apresentação
A violência motivada pelo preconceito ou ódio afeta anualmente uma parte significativa
da população da União Europeia, tendo repercussões não só sobre as suas vítimas diretas
e respetivas comunidades mas também sobre toda a sociedade. São principalmente
comunidades e grupos mais vulneráveis que são diretamente afetados por este fenómeno
que assume particular prioridade na agenda europeia.
De acordo com a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA, 2016), o
facto de a maioria das vítimas de incidentes ou violência discriminatória não denunciarem
os episódios sofridos junto das autoridades competentes, proporciona a invisibilidade do
fenómeno. Vários são os fatores e razões apontados na literatura para o baixo número de
denúncias efetuadas pelas vítimas de incidentes ou violência discriminatória, sobretudo
junto das entidades oficiais. Entre outros fatores, quer as vítimas como os profissionais
que as apoiam apontam frequentemente: a falta de informação ou compreensão por
parte da vítima acerca do que são incidentes ou violência discriminatória; da parte das
5
Apresentação
vítimas, a falta de informação acerca dos seus direitos e dos serviços de apoio disponíveis;
desconhecimento de onde ir e/ou como proceder à denúncia do episódio de violência/
discriminação; falta de conhecimento das vítimas sobre legislação ou sobre o processo
penal; barreiras linguísticas; desconfiança face ao sistema de apoio (policia, etc.); falta de
formas alternativas de proceder anonimamente à denúncia; desvalorização da gravidade
do incidente/ato violento; especificamente para vítimas migrantes ou requerentes de asilo,
problemas com a autorização de residência (ex: FRA, 2016; FRA, 2013).
O projeto “Ódio Nunca Mais – formação e sensibilização no combate aos crimes de ódio
e discurso de ódio” (Project Hate No More – training and awareness raising to combat
hate crime and hate speech) foi assim desenvolvido com o intuito de criar ferramentas
multidisciplinares úteis à sensibilização e formação no combate aos crimes de ódio e
discurso de ódio, numa perspetiva centrada nas suas vítimas.
Este projeto foi coordenado pela APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) em
parceria com a Polícia Judiciária, Procuradoria-Geral da República e Comissão para
a Cidadania e Igualdade de Género (Portugal), e com a parceira internacional da Faith
Matters (Reino Unido), Solidarcy (Itália), Victim Support Malta (Malta), Swedish Crime
Victim Compensation and Support Authority (Suécia), Victim Support Austria (Áustria),
Spanish Confederation of Police (Espanha) e do Victim Support Europe. O projeto, co-
financiado pela Comissão Europeia (JUST/2015/RRAC/AG/9036), procurou sensibilizar, a
sociedade civil no geral e as potenciais vítimas em particular, para este tipo de crimes.
Este manual não pretende ser exaustivo, muito pelo contrário, o que apresenta são apenas
algumas orientações, cuja operacionalização dependerá da realidade de cada Estado Membro.
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PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio: à procura de uma definição PARTE 1 — COMPREENDER
‘Crime de ódio’ sugere imediatamente que o termo se refere a um crime motivado pelo ódio
numa manifestação de intolerância com grande impacto não apenas para a vítima direta
mas também para o grupo com o qual a vítima se identifica. Não existe uma definição única
e universal de crime de ódio, tendo a sua conceptualização académica evoluído e sendo as
definições legais adotadas variáveis e limitadas. Ainda assim, certas condutas, motivadas
por preconceito ou ódio, configuram um crime à luz do ordenamento jurídico onde
ocorreram. À luz de tais definições legais, o que diferencia, desde logo, os crimes de ódio de
outros tipos de crime é, assim, a motivação (OSCE/ODIHR, 2009).
Todavia, os crimes não precisam ser motivados pelo ódio para serem classificados como um
crime de ódio (Gerstenfeld, 2013). De facto, o autor do crime pode agir, por exemplo, por
ressentimento, ciúme ou desejo de aprovação social pelos pares, e não necessariamente
por ‘ódio’. O autor deste tipo de crime poderá não ter sentimentos acerca da vítima, mas
ter sentimentos ou pensamentos hostis acerca do grupo ao qual esta pertença ou sentir
hostilidade para todos aqueles que pertençam a grupos sociais diferentes daquele(s) a que
o autor pertença ou sinta pertencer (OSCE/ODHIR, 2009).
Os crimes de ódio têm vindo a ser definidos no sentido de assumir que o que
fundamentalmente os caracteriza é a pertença (real ou percepcionada) da vítima a
um determinado grupo social, e não a presença de ódio por parte do perpetrador. É
também importante considerar-se não apenas aspetos individuais da vítima selecionada,
mas também aspetos relacionados com as dinâmicas sociais e políticas, históricas ou
contemporâneas, dinâmicas de poder dentro da sociedade que atribuem privilégios,
direitos e prestígio de acordo com grupos biológicos ou sociais, sendo os crimes de ódio
expressões contra quem não pertença a tais grupos (Sheffield, 1995).
De acordo com Perry (2001, p10), este tipo de delitos “envolve atos de violência e
intimidação, geralmente direcionados a grupos já estigmatizados e marginalizados. Como
tal, é um mecanismo de poder e opressão, destinado a reafirmar as precárias hierarquias que
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PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio: à procura de uma definição
1
caracterizam uma determinada ordem social. Ele tenta recriar simultaneamente a hegemonia
ameaçada (real ou imaginada) do grupo do agressor e a identidade subordinada ‘apropriada’
do grupo da vítima”. Por outras palavras, o autor de um crime de ódio seleciona a vítima
com base na sua pertença real ou percebida a um grupo social particular (religioso, ‘racial’,
étnico, LBGTQ+, etc.). Perry considera o crime de ódio um problema social dinâmico em
que uma agressão ocorre dentro de um contexto social e cultural específico e inserido em
estruturas sociais de poder, o que condiciona o impacto que este tem para as suas vítimas
e para as comunidades. Perry foca o grupo e não o indivíduo, considerando que o ataque
é dirigido ao grupo como um todo e a vítima individual não assume um papel central pois
apenas é a representação de algo. Desta forma, este tipo de crimes deixa passar a mensagem
de que o indivíduo não é/foi vítima de um crime aleatório, mas que foram características que
lhe são inerentes ou fundamentais e identitárias - que normalmente não podem ser mudadas
- que determinaram o ato de violência por representar na perceção do autor do crime uma
ameaça à sua qualidade de vida (isto é, estabilidade económica e/ou segurança física).
Para que se configure enquanto crime de ódio, a ofensa deverá então corresponder:
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Crimes de ódio: à procura de uma definição PARTE 1 — COMPREENDER
Os crimes de ódio são, portanto, definidos como ‘crimes de identidade’, uma vez que visam
um aspeto da identidade do alvo, seja ele imutável (etnia, deficiência, orientação sexual,
género, etc.) ou fundamental (religião, hábitos culturais, etc.) (OSCE, ODIHR, 2009).
Muitas vezes a vítima é, desta forma, instrumentalizada pelo/a autor/a de forma a passar
uma “mensagem” ao seu grupo de pertença/comunidade de que não são pessoas bem-vindas
e nem estão seguras. Assim, os crimes de ódio têm um impacto coletivo em determinados
grupos sociais e podem mesmo criar uma sensação de insegurança social generalizada.
Quando o ato criminoso incide na destruição de património, este é escolhido por se associar
a um grupo de vítimas (e.g. centros comunitários, campos de refugiados, lojas, habitações
familiares, etc.). Isto é, um crime de ódio é suscetível de afetar não apenas bens jurídicos
individuais (e.g. saúde, integridade física e psíquica, a honra, a liberdade e a própria vida),
como também bens jurídicos coletivos pertencentes à comunidade na qual a vítima se insere.
Importa ainda ressalvar que não é a pertença efetiva a um determinado grupo social que
determina necessariamente que a vítima seja escolhida como alvo de um crime de ódio. A
perceção do/a autor/a com base em estereótipos pode levar a atribuição de significado a
determinados símbolos ou características como sendo pertencente a um grupo que rejeita (por
exemplo, homens da comunidade Sikh vitimados por serem percebidos como muçulmanos
ou pessoas que se expressam não conforme o género que lhes é socialmente atribuído, por
exemplo na sua forma de vestir, e são percebidas como pessoas trans embora não sendo) ou
pode o/a autor/a cometer atos violentos contra pessoas que são associadas a determinados
grupos sociais (mesmo que a estes não pertençam) por defender os direitos destas
comunidades ou estarem de alguma forma associadas a uma determinada comunidade.
Finalmente, o debate académico em torno dos crimes de ódio tem vindo a dar atenção à
rigidez imposta pela categorização de grupos passíveis de estar sujeitos a este tipo de
crime, a qual é redutora face à realidade. Esta circunstância foi particularmente evidente
no caso de Sophie Lancaster, jovem inglesa brutalmente assassinada em 2007 pela sua
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PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio: à procura de uma definição
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Conceitos associados PARTE 1 — COMPREENDER
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PARTE 1 — COMPREENDER
Conceitos associados
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Por “violência discriminatória” deverá entender-se, então, todo o “incidente violento que
a vítima, uma testemunha ou qualquer outra pessoa perceciona como sendo motivado por
preconceitos, intolerância, implicância ou ódio e que pode, ou não, constituir uma infração
penal ao abrigo do código penal vigente” (EFUS, 2017, p.20).
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Das atitudes aos crimes de ódio PARTE 1 — COMPREENDER
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PARTE 1 — COMPREENDER
Das atitudes aos crimes de ódio
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Desta decomposição das componentes de uma atitude e das variáveis que poderão
influenciar a relação entre a atitude e o comportamento manifesto, podemos concluir a
importância de:
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Qual o impacto para as vítimas? PARTE 1 — COMPREENDER
Importa compreender que os crimes de ódio são realidades complexas e cujas definições legais
envolvem uma certa simplificação quando consideramos o impacto que têm sobre as suas
vítimas, muitas vezes não englobando atos de violência considerados de “menor intensidade”
mas que, no contexto em que ocorrem, contribuem para a vitimação (Kees, 2016).
A agressão motivada pelo ódio é vista como uma forma de agressão com características
qualitativamente distintas das restantes formas de agressão: por um lado para o perpetrador
serve funções instrumentais por meio da ofensa; por outro lado, assume também uma função
simbólica. Muitas vezes existe uma mensagem simbólica de ódio que, por meio de uma ofensa
a uma vítima, é comunicada a uma comunidade, vizinhança ou grupo. Por outras palavras,
na hora de se considerar o impacto que este tipo de crime tem numa vítima, importa atentar
o tipo de ofensa, o impacto que a motivação por detrás do crime teve na auto-imagem da
vítima (que foi atacada por “aquilo que é” e que não consegue modificar ou por uma parte
fundamental da sua identidade social) e ainda o impacto que este ato teve na comunidade a
que a vítima pertence e que partilha das mesmas características.
Por outro lado, para além da vitimização primária resultante diretamente do ato criminoso,
a vítima poderá sofrer vitimização secundária (ou dupla vitimização) na relação que esta
estabelece no contacto com o sistema judicial-penal, (forças policiais, sistema judicial,
etc.), sistema de saúde, meios de comunicação social, entre outros (Herek & Berril, 1992). O
risco de vitimação secundária existe não só pelos problemas com que o próprio sistema se
debate (por exemplo, a frequente repetição de declarações perante diferentes autoridades)
mas também do facto de os profissionais envolvidos poderem partilhar também de alguns
dos estereótipos ou mesmo preconceitos prevalecentes na sociedade face a determinados
grupos sociais e esse facto afetar, mesmo que de forma inconsciente, o comportamento
da/o profissional relativamente à vítima. Situações deste cariz têm o potencial de alimentar
na vítima (e mesmo na sua comunidade) sentimentos de falta de esperança e/ou de
desconfiança face às instituições.
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PARTE 1 — COMPREENDER
Qual o impacto para as vítimas?
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Qual o impacto para as vítimas? PARTE 1 — COMPREENDER
Estas vítimas, por se verem atacadas nos seus direitos mais fundamentais, estão mais
predispostas a sofrer distúrbios e mal-estar psicológicos do que, inclusive, as vítimas de outros
crimes violentos (APA, 1998; Herek, Gillis, & Cogan, 1999; McDevitt Balbonic, Garcia, & Gui, 2001).
Ao nível socio-emocional, regista-se no imediato após a situação de violência uma maior propensão
para sentir problemas ao nível laboral ou escolar e, inclusive, mais conflitos inter-pessoais,
nomeadamente com familiares e amigos. Sentimentos de falta de confiança, de incapacidade de
concentração, de menor proximidade a pessoas que lhes eram próximas, desconfiança face a novas
pessoas que possam conhecer e redução da rede social são apenas alguns exemplos dos efeitos
imediatos potenciais de uma situação de crime de ódio ou violência discriminatória (Kees, 2016).
Destaca-se ainda a tendência para o processo de recuperação ser mais longo para estas
vítimas quando comparado com vítimas de ofensas da mesma natureza mas não motivadas
pelo ódio ou preconceito (Gillis & Cogan, 1999).
Outro aspeto importante a referir é a relação entre as reações emocionais das vítimas e os
comportamentos reativos que desenvolvem. Paterson et al. (2018) conclui que o aumento
dos níveis de ansiedade tende a gerar comportamentos de evitamento, como evitar
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PARTE 1 — COMPREENDER
Qual o impacto para as vítimas?
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determinados locais, por exemplo; e uma reação emotiva de raiva tende a levar as vítimas
a aumentarem o seu sentimento de pertença a uma comunidade e coesão com esta. Estas
reações podem ser sentidas por uma mesma vítima em diferentes momentos.
Um ponto importante a destacar é que, de facto, um incidente deste tipo pode conduzir ao
limitar da mobilidade espacial da vítima (Dzelme, 2008), evitando locais que temem ser mais
perigosos para evitar novos episódios de violência. Isto poderá significar certos pontos
específicos, certas ruas, uma cidade ou mesmo todo um país, podendo ser altamente limitativo.
Vítimas de crimes de ódio baseados na cor da pele ou origem étnica poderão sofrer um
impacto particularmente complexo. As implicações que este tipo de crime pode assumir
para a sua auto-imagem, perceção da comunidade e sentimentos de segurança podem ser
particularmente complicados, dada a compreensão de que a ofensa só poderia acontecer
devido a um aspeto identitário seu visível e identificável. Dado que frequentemente estas
vítimas integram grupos altamente estigmatizados e associados por grande parte da
população em geral a preconceitos negativos, o seu sentimento de impotência poderá
aumentar (Craig-Henderson & Sloan, 2003).
Importa compreender ainda que o impacto que este tipo de crime tem para as suas vítimas
diretas inclui não apenas o seu funcionamento psicológico e equilíbrio emocional. Os custos
de qualquer tipo de vitimização, independentemente da sua motivação, poderá abranger
ainda (Doerner & Lab, 2012):
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Qual o impacto para as vítimas? PARTE 1 — COMPREENDER
proteção e segurança junto da comunidade de pertença das vítimas deste tipo de crimes
(Boeckmann & Turpin- Petrosino, 2002). A perpetração de atos discriminatórios contra
membros de um grupo pode influenciar negativamente o bem estar e a auto-estima
dos seus restantes membros (McCoy & Major, 2003), podendo estas vítimas indiretas
manifestar também algumas das mesmas consequências socio-emocionais e psicológicas
sofridas pelas vítimas diretas e também comportamentos como o evitamento.
Paterson et al. (2018) apresentam o seguinte diagrama ilustrando como os crimes de ódio
podem afetar outras pessoas da comunidade que não as vítimas diretas.
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PARTE 1 — COMPREENDER
Qual o impacto para as vítimas?
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Qual o impacto para as vítimas? PARTE 1 — COMPREENDER
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Crimes de ódio contra grupos selecionados PARTE 1 — COMPREENDER
Algumas características aparecem com maior frequência (tais como etnia, “raça”,
orientação sexual, identidade de género, sexo, género, idade, deficiência), enquanto outras
(tais como filiação e ideologia política) aparecem com menor frequência.
De facto, as minorias são mais propensas a vulnerabilidade jurídico-social (por não estarem
protegidas por políticas públicas, por exemplo); lutam numa base diária contra um discurso
hegemónico do grupo maioritário que possui mais poder (Sodrê, 2005).
Os grupos a que seguidamente se fará referência foram selecionados por serem categorias
estabelecidas na maior parte dos ordenamentos jurídicos e grupos sobre os quais se regista
altos níveis de discriminação e incidência de crimes de ódio no contexto da União Europeia.
Importa ter presente ao longo de todo o manual, e em todo o trabalho que se desenvolva
com vítimas de crime, particularmente de crimes de ódio, que estas categorizações não são
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PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio contra grupos selecionados
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Com efeito, tendo surgido dentro do movimento feminista introduzido por autoras
como Kimberlé Crenshaw, o conceito de interseccionalidade utilizado em diferentes
áreas, nomeadamente da sociologia, é crucial para o entendimento desta questão. A
interseccionalidade consiste numa ferramenta de análise que visa identificar como
sistemas de poder impactam sobre grupos marginalizados, considerando que as várias
formas de estratificação social não existem independentes entre si mas antes interligadas.
De uma forma sucinta e adaptada ao contexto dos crimes de ódio, e sem entrar na
complexidade dos debates tidos sobre o tema na academia, interseccionalidade pode ser
entendida como a forma complexa através da qual diferentes formas de discriminação
(racismo, sexismo, classismo, entre tantas outras) se sobrepõem e formam mutuamente,
particularmente nas experiências de grupos e/ou indivíduos marginalizados. Quer isto dizer,
de uma forma algo simplificada, que a experiência de uma mulher negra lésbica será distinta da
de uma mulher branca ou de um homem negro porque confluem as suas identidades enquanto
mulher e enquanto pessoa negra, bem como o preconceito social face a um e a outro aspeto.
Esta realidade pode também implicar a particular vulnerabilidade de alguns grupos dentro
de grupos sociais já tendencialmente vulneráveis, como seja o facto de as mulheres migrantes
muçulmanas serem particularmente afetadas pela violência discriminatória face à sua origem
étnica; ou pessoas negras trans que estão também mais sujeitas a crimes de ódio que outras
pessoas trans ou outras pessoas negras; ou requerentes de asilo LGBTQ+ que tendem a sofrer
mais episódios de violência discriminatória, quer pela sua situação de requerente de asilo, quer
pela sua identidade LGBTQ+, podendo por esse facto ser o/a agressor/a também um/a requerente
de asilo. É fulcral ter em atenção a estas multiplicidades de identidades e experiências quando se
contacta e apoia estas vítimas, para compreender a verdadeira dimensão do impacto que o crime
teve e poderá ter em si, bem como as suas necessidades específicas; mas também para a própria
identificação das motivações de ódio ou preconceito do ofensor.
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Crimes de ódio contra grupos selecionados PARTE 1 — COMPREENDER
género começadas por essa letra (Transgénero, Transexual, Travesti), mas, principalmente
em inglês, também é recorrente o recurso ao asterisco (LGBT*) funcionando este como um
sinal que indica que o T tem um significado múltiplo. Neste manual adotamos a sigla LGBTQ+
que agrega e quer representar todos e todas aqueles e aquelas que se assumem enquanto
Lésbica, Gay, Bissexual, Transexual, Queer e outros que cabem na comunidade LGBT através
do sinal “+”, nomeadamente Transgénero, Intersexo, Assexual, Pansexual, etc.
Cisgénero
Pessoa que se identifica com o sexo que lhe é designado à nascença.
Coming out
Processo de revelação da identidade da pessoa como lésbica, gay, bisexual, trans ou intersexo.
Expressão de género
Forma como as pessoas manifestam a sua identidade de género, por exemplo pela roupa que
vestem, pelo seu discurso e maneirismos. A expressão de género de uma pessoa pode ou não
corresponder à(s) sua(s) identidade(s) de género ou ao género que lhe foi designado à nascença.
Género
Construção social que atribui expectativas culturais e sociais sobre as pessoas de acordo
com o sexo que lhes é designado à nascença.
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PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio contra grupos selecionados
5
Identidade de género
Experiência de género sentida de forma profunda e individual por cada pessoa, a qual pode
corresponder ou não ao sexo que lhe foi designado à nascença, incluindo o seu sentimento
face ao seu próprio corpo (o que pode envolver, se consentido livremente, modificações à
aparência ou função corporal através de processos médicos, cirúrgicos ou outros) e outras
expressões do género, incluindo indumentária, discurso e maneirismos. Para algumas
pessoas a sua identidade de género não se insere no binarismo de género (feminino/
masculino) e normas relacionadas.
Intersexo
Pessoas que nasceram com níveis cromossómicos ou hormonais ou características genitais
que não correspondem ao conceito social das categorias ‘feminino’ ou ‘masculino’ para
efeitos da anatomia sexual ou reprodutiva. Este termo substitui a palavra ‘hermafrodita’,
que foi amplamente utilizado por profissionais de saúde durante os séculos XVIII e XIX.
A intersexualidade pode assumir várias formas e pode cobrir um vasto conjunto de
condições, pelo que os ativistas intersexo preferem utilizar a expressão características
sexuais.
Orientação sexual
Capacidade individual de se sentir profundamente atraída/a emocional, afetiva e/
ou sexualmente por, e de ter relações íntimas e sexuais com, pessoas de outro sexo
(heterossexual), do mesmo sexo (homossexual, lésbica, gay) ou de ambos os sexos
(bissexual).
Outing
Quando a identidade da pessoa como lésbica, gay, bisexual, trans ou intersexo é revelada
sem o seu consentimento.
Queer
Antigamente utilizado na língua inglesa como termo derrogatório para se referir a
pessoas LGBTQ+, este termo tem sido apropriado por pessoas que se identificam além
das categorias de género tradicionais e normas sociais heteronormativas. Dependendo do
contexto pode contudo ainda ter conotação ofensiva.
Sexo
Classificação de uma pessoa como masculina ou feminina, atribuída à nascença e registada
na certidão de nascimento, normalmente baseada na aparência anatómica externa e numa
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Crimes de ódio contra grupos selecionados PARTE 1 — COMPREENDER
visão binária do sexo que exclui pessoas intersexo. Na realidade, contudo, o sexo de uma
pessoa é a combinação de características corporais, incluindo: cromossomas, hormonas,
órgãos reprodutivos internos e externos, e características sexuais secundárias.
Trans
Pessoas cuja identidade de género difere do sexo atribuído à nascença e a pessoas que
queiram retratar a sua identidade de género de forma diferente da do sexo que lhes
foi atribuído à nascença. Inclui pessoas que sentem que têm, preferem ou escolhem
apresentar-se de forma diferente das expectativas dos papéis de género associados ao
sexo que lhes foi designado à nascença (nomeadamente, através da forma de vestir, de
se expressar, de cosméticos ou de alterações corporais). Inclui, nomeadamente, pessoas
que não se identificam com o rótulo “feminino” ou “masculino”, transexuais, travestis ou
cross-dressers. Um homem transgénero é uma pessoa que foi identificada como ‘feminina’
à nascença mas cuja identidade de género é ‘masculina’ ou dentro do espetro masculino
de identidade de género. Uma mulher transgénero é uma pessoa que foi designada
‘masculina’ à nascença mas cuja identidade de género é feminina ou se encontra algures
no espetro feminino de identidade de género. São utilizados rótulos análogos aos da
orientação sexual para pessoas transgénero uma vez que têm por base a sua orientação
sexual ao invés do sexo que lhes foi designado à nascença. As pessoas trans podem
portanto ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais. Sendo um termo que pretende
abranger várias identidades, pode incluir pessoas que se identificam como transsexuais,
transgénero, travestis/cross-dresser, andrógino, poligénero, queer, entre outras que não se
inserem dentro das expectativas culturais e sociais de identidade de género.
Transsexual
Experiência de não congruência entre a identidade de género e o sexo atribuído à nascença
que resulta uma profunda necessidade de o corrigir, de forma permanente, através da
modificação da aparência física com a submissão a tratamentos e procedimentos de
reatribuição sexual. Expressão antigamente utilizada, e com conotações médicas, mas
ainda utilizada por algumas pessoas que pretendem submeter-se ou estão submetidas a
tratamento de reatribuição sexual.
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PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio contra grupos selecionados
5
O conceito de homofobia é muitas vezes utilizado como sinónimo para lesbofobia e bifobia.
Estas atitudes (com expressão comportamental ou não) podem incluir a crença de que as
pessoas LGB apresentam comportamentos desviantes (não normativos), não saudáveis,
prejudiciais para a sociedade e que, por todos estes motivos, devem ocultar sua identidade,
ser ridicularizados ou que merecem a censura social.
Por seu lado, a bifobia tem por base a crença de que as pessoas bissexuais estão
simplesmente “confusas” sobre a sua sexualidade, podendo ainda ser percecionadas como
sendo gananciosas, fraudulentas ou promiscuas. A bifobia poderá ser perpetrada por tanto
por pessoas heterossexuais como por pessoas lésbicas e gays.
b. Transfobia: Esta é uma atitude baseada no preconceito contra pessoas trans. É uma
intolerância à diversidade de género e inclui a crença de que sexo e género devem
ser tomados como sinónimos, isto é, que existem somente dois géneros (tal como a
existência de dois sexos) definidos à nascença. A transfobia também pode ser vista
como resultado de uma imposição de regras sociais sobre como as pessoas devem
expressar o seu género.
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Crimes de ódio contra grupos selecionados PARTE 1 — COMPREENDER
Apesar da grande diversidade entre si, há problemas e dificuldades específicas que são
comuns a todas as pessoas trans já que decorrem da incongruência entre a identidade de
género e o sexo atribuído à nascença.
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PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio contra grupos selecionados
5
As pessoas trans poderão revelar ou não o seu histórico de género ou estatuto trans.
Estudos apontam para a importância do coming out para pessoas LGB em termos de
auto-aceitação e empoderamento, mas não é tão claro que para as pessoas trans tenha
esses mesmos benefícios. Situações de outing são também comuns quanto a pessoas
trans, por exemplo em momentos de produção de documentação quando os documentos
que possuem ainda contêm nomes ou referências de género que não correspondem à sua
identidade de género (Office for Victims of Crime, 2014).
Poderá ser importante compreender estes aspetos ao lidar com pessoas LGBTQ+ vítimas
de crimes de ódio. Desde logo porque o crime de ódio pode gerar uma desestabilização do
próprio desenvolvimento da identidade da vítima e inclusive fazê-la voltar a tentar esconder
aspetos da sua identidade ou até mesmo revoltar-se com a própria comunidade LGBT.
Importa desde logo clarificar alguns conceitos essenciais para melhor compreender esta temática.
Etnia
O termo etnia não tem uma definição única e consensual, sendo contudo comumente
considerado como descrevendo a cultura partilhada (práticas, valores e crenças) de
um determinado grupo. Pode por isso abranger a partilha de um idioma, uma religião,
tradições, entre outros pontos em comum. Schermerhorn (1978) define etnia como uma
coletividade dentro de uma sociedade mais alargada que partilha (real ou putativamente)
determinados aspetos, como antepassados, passado histórico e enfoque cultural em um ou
mais elementos simbólicos.
32
Crimes de ódio contra grupos selecionados PARTE 1 — COMPREENDER
Raça
O termo ‘raça’ é uma construção social que carece de base científica, controverso a diversos níveis
(biológicos, antropológicos, sociológicos, etc.), podendo causar problemas de interpretação no plano
jurídico. Na análise de Bowling e Phillips (2002), o conceito ‘racismo’ encontra ecos no Iluminismo
europeu, sendo então a ‘raça’ vista como uma maneira de distinguir a superioridade cultural dos
europeus caucasianos face aos não caucasianos com origem não europeia. Esta visão enraizou-se
mais tarde durante a expansão do comércio transatlântico de escravos (Bhavani et al., 2006).
As comunidades Roma, minorias étnicas em vários países europeus, estão sujeitas a elevados
níveis de estigmatização de políticas restritivas e ressentimento público um pouco por toda a
Europa. O preconceito contra estas comunidades está enraizado em estereótipos culturais que
os retratam como membros perigosos da comunidade que vivem um estilo de vida alternativo
para grande parte da população (por exemplo, regendo-se por normas próprias). Esta crença
e sentimento resultou num fenómeno de marginalização secular em muitas esferas da vida
pública, incluindo no acesso a serviços públicos, cuidados de saúde, educação e emprego, no
policiamento opressivo e discriminatório um pouco por toda a Europa (ODIHR, 2010).
33
PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio contra grupos selecionados
5
Embora estas comunidades constituam a mais pequena minoria da Europa, vários dados
oficias e não oficiais demonstram consistentemente os seus membros estão sujeitos a
níveis desproporcionalmente altos de crimes de ódio, preconceito e outras formas de
discriminação (James, 2014).
De acordo com o EU-MIDIS II (FRA, 2017), em média, 41% das pessoas Roma nos nove
Estados-Membros do inquérito sentiram-se discriminados devido à sua origem cigana pelo
menos uma vez nos cinco anos anteriores ao preenchimento do questionário e em pelo
menos um domínio da sua vida quotidiana referido no inquérito (por exemplo, na procura
de emprego, no acesso à habitação, no acesso a cuidados de saúde ou na educação). 26%
referiu que o último incidente de discriminação com base na sua origem cigana tinha
decorrido nos 12 meses anteriores ao inquérito.
Já a atenção dada aos crimes de ódio contra grupos religiosos foi durante muito tempo
anulada por um enfoque quase exclusivo nos crimes de ódio motivados pelo preconceito
racial ou étnico. Esta indistinção conduzia à possível invisibilização de motivações de
preconceito religioso, levando a não identificar certas condutas como crime de ódio ou
violência discriminatória, e ao homogeneizar realidades muitas vezes diversas, como
seja, por exemplo, as diferentes experiências de discriminação vividas por pessoas de
origem sul-asiática consoante professem a religião islâmica, Hindu ou Sikh (Chakraborti &
Garland, 2015).
34
Crimes de ódio contra grupos selecionados PARTE 1 — COMPREENDER
O projeto Tell MAMA (desenvolvido pela organização Faith Matters em 2012) define o
preconceito anti-muçulmano como “um receio, medo, aversão e ódio de Muçulmanos, e
também podem incluir a prática de discriminação contra os muçulmanos, excluindo-os da
vida económica, social e pública da nação “.
35
PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio contra grupos selecionados
5
Apesar da particular incidência sobre estas nos últimos anos no espaço da UE, além
das comunidades muçulmanas outras comunidades religiosas ou espirituais também
são vítimas de crimes de ódio e violência discriminatória. Por exemplo, nos últimos anos
assistiu-se a um aumento no número de incidentes anti-semitas em vários países europeus.
Apesar de as comunidades judaicas estarem instaladas desde há séculos em muitas das
sociedades ocidentais, e de apresentarem “traços” físicos, crenças e práticas religiosas
menos marcadas do que outros grupos minoritários (Hunt, 2005), o anti-semitismo
continua a ser um problema significativo. As explicações para o crime de ódio anti-semita
baseiam-se frequentemente em ideologias e atividades de grupos organizados de extrema-
direita. Motivados pela sua crença na superioridade da raça “branca” (ariana) sobre todos
os “outros”, muitos grupos de extrema-direita promovem a violência contra comunidades
judaicas com base na ameaça percebida que essas comunidades representam para a
“pureza” da raça branca (Perry, 2003).
Num inquérito europeu levado a cabo pela FRA (FRA, 2012), dos 5.900 respondentes
judeus, 26% tinham sofrido um incidente ou incidentes envolvendo insulto verbal ou
assédio por serem judeus, e 4% tinham mesmo sido alvo de violência física ou ameaças de
violência nos 12 meses que antecederam o preenchimento do questionário. 64% das vítimas
de violência física ou ameaças não tinham denunciado o crime de que tinham sido alvo.
36
Crimes de ódio contra grupos selecionados PARTE 1 — COMPREENDER
• Deficiência auditiva: incapacidade parcial ou total da audição que pode ter sido
adquirida à nascença ou causada mais tarde por alguma doença.
• Deficiência visual: disfunção congénita ou adquirida relacionada com a perda ou redução da
capacidade visual, com carácter definitivo, não sendo possível ser melhorada ou corrigida.
• Deficiência motora: disfunção congénita ou adquirida, que pode ter um carácter definitivo
ou evolutivo, que afeta a motricidade dos indivíduos (mobilidade, coordenação e fala).
• Deficiência intelectual: caracterizada por um significativo quociente intelectual
abaixo da média e por limitações no desempenho de atividades que envolvem a
comunicação, cuidados próprios, convívio social e atividades escolares.
Vários são os preconceitos existentes em diversas sociedades quanto à saúde das pessoas com
deficiência, os quais as colocam muitas vezes em posição de desvantagem, sujeitas a múltiplas
formas de discriminação e, por vezes, crimes de ódio ou violência discriminatória. Alguns destes
estereótipos prendem-se com a ideia de que as pessoas com deficiência são dependentes,
com baixo ou nenhum nível de educação, sem empregabilidade e improdutivas, e que por isso
necessitam estar institucionalizadas e dependem de apoios sociais (OSCE, 2015).
Quando falamos de crimes de ódio contra pessoas com deficiência, poderemos estar a falar
de crimes perpetrados com base nalguns destes preconceitos, podendo as vítimas ser alvo
deste tipo de violência pelo facto de agressor a considerar vulnerável devido a sintomas da sua
deficiência ou estado de saúde. O preconceito manifesta-se tanto nas expressões de hostilidade
como no motivo de selecção das vítimas, por exemplo, a escolha da vítima com deficiência por ser
“um alvo fácil” é considerado preconceito e, como tal, constituirá um crime de ódio (OSCE, 2015).
37
PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio contra grupos selecionados
5
As pessoas com deficiência poderão ser vítimas de crimes de ódio que reúnam, entre
outros, alguns dos seguintes elementos: violência física contra objectos de suporte como,
por exemplo, bengalas; humilhação e tratamento degradante relacionado com a natureza
da deficiência da vítima; falsas acusações de “pedofilia”, delação ou estragar a diversão de
outros; violência excessiva; entre muitos outros (OSCE, 2015).
Migrante - “No plano internacional não existe uma definição universalmente aceite de
migrante. O termo migrante compreende, geralmente, todos os casos em que a decisão de
migrar é livremente tomada pelo indivíduo em questão, por razões de “conveniência pessoal”
e sem a intervenção de fatores externos que o forcem a tal. Em consequência, este termo
aplica-se, às pessoas e membros da família que se deslocam para outro país ou região a fim
de melhorar as suas condições materiais, sociais e possibilidades e as das suas famílias”.
Requerente de asilo - “Pessoa que pretende ser admitida num país como refugiado e
que aguarda uma decisão relativamente ao seu requerimento para obter o estatuto de
refugiado segundo os instrumentos, internacionais e nacionais, competentes. Em caso
de indeferimento, tem que abandonar o país e poderá ser expulsa, tal como qualquer
estrangeiro em situação irregular, exceto se for autorizado a permanecer por razões
humanitárias ou outros fundamentos relacionados”.
Refugiada/o - “Pessoa que ‘receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça,
religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se
encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio,
38
Crimes de ódio contra grupos selecionados PARTE 1 — COMPREENDER
não queira pedir a proteção daquele país’(Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados,
art.º 1.º - A, n.º 2, de 1951, com as alterações introduzidas pelo Protocolo de 1967)”. Mas
uma pessoa também pode ser refugiada ainda que não o seja “quando abandona o seu
país de origem, mas que se torna refugiada (isto é, passa a ter um fundado receio de
perseguição) posteriormente. O medo do refugiado a posteriori pode dever-se a um golpe
de Estado no seu país de origem ou à introdução ou à intensificação da repressão ou das
perseguições políticas após a sua partida. Um pedido nesta categoria pode também basear-
se em atividades políticas de boa fé, empreendidas no país de residência ou de refugio”.
Pode ainda falar-se em pessoas refugiadas de facto sendo estas pessoas “a quem não é
reconhecido o estatuto de refugiado tal como é definido na Convenção da ONU relativa ao
Estatuto dos Refugiados, de 1951, e no Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, de
1967, e que não pode ou (por razões tidas como válidas) não quer regressar ao país da sua
nacionalidade ou, se não tiver nacionalidade, ao país da sua residência habitual”.
Estrangeiro indocumentado - “Estrangeiro que entra ou permanece num país sem ter os
documentos necessários, nomeadamente, entre outros: (a) alguém que não tem os documentos
legalmente exigidos para entrar num país, mas consegue entrar clandestinamente, (b)
alguém que entra com documento falsos, (c) alguém que depois de entrar com os documentos
legalmente exigidos, permaneceu para além do período de permanência autorizado ou violou
as condições de entrada e permaneceu sem autorização”. O termo a ser utilizado deverá
ser sempre o de migrante indocumentado ou pessoa migrante indocumentada e não as
designações pejorativas e estigmatizantes como migrante ilegal.
Esta distinção é não só importante para compreender as realidades possíveis por trás de
cada termo e o tipo de preconceito que pode ser sofrido por cada grupo, como também as
diferenças de estatuto legal num determinado país, que se apresenta relevante desde logo à
hora de denunciar o crime.
Neste manual, para tudo o que não for específico de um destes grupos, utilizar-se-á o termo
abrangente migrante para englobar tanto refugiados como requerentes de asilo como
migrantes documentados ou indocumentados.
39
PARTE 1 — COMPREENDER
Crimes de ódio contra grupos selecionados
5
a este tipo de incidentes é fraca e insuficiente (FRA, 2016). Os migrantes estão por isso
particularmente sujeitos a violência de motivação racista ou de discriminação étnica.
Contudo, também a própria circunstância de não ter a nacionalidade do país onde se
encontra (ou aparentar não ter na ótica do agressor) ou de se encontrar no território
nacional indocumentada/o, ou através da concessão do estatuto de refugiado ou de
aguardar a decisão de um processo de pedido de asilo pode motivar crimes de ódio pode
estar subjacente à motivação do autor do crime. Outro fator também frequentemente
associado e que pode estar subjacente à motivação para o cometimento do crime é a
afiliação religiosa. Tem-se assistido em alguns países europeus a um discurso político
que presume o professar da religião islâmica por parte dos requerentes de asilo são
muçulmanos, sendo este discurso inflamatório baseado em preconceitos relativamente às
comunidades muçulmanas e à própria religião (FRA, 2016).
Segundo a FRA (2016), algumas das ofensas mais frequentes contra migrantes, requerentes
de asilo e refugiados são, entre outras, as seguintes: abuso verbal, assédio ou ameaças
incluindo nos bairros onde os migrantes residem, ataques a centros de receção e centros de
acolhimento para requerentes de asilo (incluindo incendiar estes centros). Este relatório da
FRA aponta ainda para desenvolvimentos preocupantes como seja o aumento de ataques
contra crianças refugiadas na Alemanha.
Um pouco por toda a União Europeia este tipo de violência e o discurso de cariz xenófobo
são graves e persistentes, sendo cometidos tanto por particulares como por autoridades
estatais e até grupos de vigilantes, e muitas vezes cometido também contra defensores dos
direitos dos migrantes (FRA, 2016).
40
Crimes de ódio contra grupos selecionados PARTE 1 — COMPREENDER
Como referido anteriormente, considerando que alguns grupos são mais propensos à
vitimação motivada pelo ódio e perconceito, deverá considerar-se tanto a história de
vitimação de que estes grupos sempre foram alvo, como também dados estatísticos oficiais
contemporâneos, num exercício constante de reflexão sobre o termo “crime de ódio”.
41
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
43
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
44
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
Esta Convenção foi, na altura da sua adoção pela Assembleia Geral das Nações Unidas,
recebida com grande entusiasmo e altas expectativas por parte da comunidade
internacional e, de facto, o artigo mencionado, bem como outros artigos do seu texto,
estabelecem obrigações que vão para além das imposições meramente promocionais dos
instrumentos internacionais anteriores (Schwelb, 1966).
A CEDH contém um catálogo original de direitos e liberdades que foi alargado por
sucessivos protocolos6. Para além dos direitos que prevê, a CEDH elenca também
proibições, como a proibição da escravatura e do trabalho forçado e, especialmente
relevante para o tópico em apreço, a proibição de discriminação.
45
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
46
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
Desde então, vários instrumentos foram adotados de forma a alargar os poderes dos
Estados-Membros no combate à discriminação com base noutros e mais variados fatores.
Este processo culminou, em 2000, com a adoção de duas importantes Diretivas: a Diretiva
2000/43/CE do Conselho de 29 de junho que aplica o princípio da igualdade de tratamento
entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica12 e a Diretiva 2000/78/CE do
12 Segundo o seu artigo 1.º, a
Conselho de 27 de novembro que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento Diretiva 2000/43/CE do Conselho de 29
no emprego e na atividade profissional.13 de Junho de 2000 que aplica o princípio
da igualdade de tratamento entre as
pessoas, sem distinção de origem racial
A primeira Diretiva proíbe discriminação no acesso ao emprego, ao trabalho independente ou étnica estabelece: “(…) um quadro
jurídico para o combate à discriminação
ou à atividade profissional; no acesso a formação profissional; nas condições de emprego e baseada em motivos de origem racial
de trabalho; na filiação ou envolvimento numa organização de trabalhadores ou patronal; ou étnica, com vista a pôr em prática
nos Estados-Membros o princípio da
na proteção social, incluindo a segurança social e os cuidados de saúde; na atribuição de igualdade de tratamento”.
benefícios sociais; no acesso à educação; e no acesso e fornecimento de bens e prestação
13 Segundo o seu artigo 1.º,
de serviços, incluindo a habitação.14 Esta Diretiva é aquela que estabelece um mais alargado a Diretiva 2000/78CE de 27 de novembro
conjunto de setores nos quais a lei comunitária proíbe discriminação (ERA, s/d). de 2000 estabelece: “(…) um quadro
geral para lutar contra a discriminação
em razão da religião ou das convicções,
Apesar de proteger contra a discriminação um grupo bastante mais alargado de pessoas de uma deficiência, da idade ou da
orientação sexual, no que se refere ao
– por proteger igualmente grupos identificados pela sua religião, orientação sexual, emprego e à atividade profissional, com
deficiência ou idade – a segunda diretiva apenas se aplica no contexto do emprego, vista a pôr em prática nos Estados-
Membros o princípio da igualdade de
ocupação e áreas relacionadas, como a formação profissional e a participação em tratamento”.
organizações de trabalhadores (ERA, s/d).
14 Artigo 3.º da Diretiva
2000/43/CE do Conselho de 29 de
O Tratado de Lisboa, que entrou em vigor a 1 de dezembro de 2009, alterou significativamente Junho de 2000 que aplica o princípio
da igualdade de tratamento entre as
o enquadramento constitucional da UE. Atualmente, e de acordo com a restruturação levada a pessoas, sem distinção de origem racial
cabo pelo Tratado de Lisboa, são três os documentos que regulam os poderes e deveres da ou étnica.
UE: o Tratado da União Europeia (TUE), o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia 15 O artigo 2.º do Tratado da
(TFUE) e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. União Europeia estabelece o seguinte: “A
União funda-se nos valores do respeito
pela dignidade humana, da liberdade,
O Tratado da União Europeia, que regula os objetivos da UE, estabelece a não-discriminação da democracia, da igualdade, do Estado
de direito e do respeito pelos direitos do
como um dos valores comuns dos Estados-Membros em que assenta a própria União.15 Por Homem, incluindo os direitos das pessoas
sua vez, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que regula as competências pertencentes a minorias. Estes valores
são comuns aos Estados-Membros, uma
da UE, estabelece os poderes necessários para o combate da discriminação por parte das sociedade caracterizada pelo pluralismo,
instituições europeias: “(…) o Conselho, deliberando por unanimidade, de acordo com um a não discriminação, a tolerância, a
justiça, a solidariedade e a igualdade
processo legislativo especial, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode tomar as entre homens e mulheres”.
medidas necessárias para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica,
16 Artigo 19º do Tratado
religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual”.16 sobre o Funcionamento da União
Europeia.
47
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que, apesar de ter sido adotada
em dezembro de 2000 apenas ganhou força vinculativa junto dos Estados-Membros com
a aprovação do Tratado de Lisboa, proíbe, através do artigo 21.º, a discriminação “(…)
em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características
genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma
minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual”.
A Carta reúne de forma sumária e completa direitos que se encontravam, até então,
difundidos em instrumentos jurídicos nacionais, da UE, das Nações Unidas e da
Organização Internacional do Trabalho (Belchior da Silva, 2016). No entanto, o seu âmbito
não deixa de ser limitado: o artigo 51.º da Carta determina que as suas disposições se
aplicam às instituições, órgãos e organismos da União Europeia e aos Estados-Membros
“apenas quando apliquem o direito da União”.
48
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
Da leitura deste artigo resulta que, sobre os Estados-Membros, impende uma obrigação
de criminalizar estas condutas. No entanto, o número 2 do artigo 1.º indica que os
Estados-Membros “(…) podem optar por punir apenas os atos que forem praticados de
modo suscetível de perturbar a ordem pública ou que forem ameaçadores, ofensivos ou
insultuosos”, conferindo-se, assim, certa liberdade aos Estados-Membros para fazer a
punição criminal do ato depender de perturbação ou ameaça, não se abarcando situações
que fiquem aquém daquele critério. Por outro lado, o próprio nº 1 do mesmo artigo
estabelece que os atos listados devem ser punidos, no ordenamento jurídico dos Estado-
Membros, como “infrações penais”, o que não passa necessariamente pela criminalização
dos crimes de ódio, podendo estes ser remetidos, como acontece em sede de várias leis
nacionais, para o direito contraordenacional.
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PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
50
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
Assim sendo, para além de lhes ser garantida, pela Diretiva, a atribuição de medidas de
proteção gerais, às vítimas de crime de ódio ser aplicadas uma série de medidas especiais
de proteção, sendo de realçar que as próprias vítimas podem não aceitar a aplicação destas
medidas uma vez que o artigo 22.º, nº. 6 estabelece que os Estados-Membros, em geral, e as
autoridades competentes para levar a cabo a avaliação individual da vítima, em particular,
têm o dever de respeitar a vontade da vítima.
Em sede de medidas especiais de proteção, a Diretiva prevê dois tipos de medidas: medidas
a ser aplicadas durante as investigações criminais e medidas a ser aplicadas durante as
audiências em tribunal. As primeiras têm como objetivos garantir um ambiente mais
favorável e que cause o menor grau de ansiedade possível à vítima no seu contacto com as
autoridades de investigação criminal. Por sua vez, o segundo tipo de medidas procura, por
um lado, minimizar o dano psicológico causado na vitima aquando do seu confronto com o
agressor e prevenir eventuais ofensas físicas e psicológicas, e, por outro lado, salvaguardar
a privacidade da vítima (Human Rights Monitoring Institute, 2013)
Aplicadas durante Realização de inquirições em instalações concebidas ou adaptadas para o efeito 23.º, n.º 2, a)
investigações criminais
Realização de inquirições por profissionais qualificados para o efeito ou com a sua assistência 23.º, n.º 2, b)
Em certas circunstâncias, realização de inquirições de vítimas de violência sexual, violência baseada no género ou violência 23.º, n.º 2, d)
em relações de intimidade por uma pessoa do mesmo sexo que a vítima
Aplicadas durante Evitar o contacto visual entre as vítimas e os autores do crime, mediante o recurso a meios adequados, como tecnologias de 23.º, n.º 3, a)
audiências em tribunal comunicação
Permitir que a vítima seja ouvida na sala de audiências sem nela estar presente 23.º, n.º 3, b)
Evitar inquirições desnecessárias sobre a vida privada da vítima não relacionadas com o crime 23.º, n.º 3, c)
51
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
A Diretiva estabelece que as vítimas devem ter acesso a serviços de apoio de acordo com
as suas necessidades individuais e, neste sentido, a Comissão Europeia considera que
as vítimas de crimes de ódio, em função da sua vulnerabilidade pessoal e maior risco de
vitimação secundária e repetida, intimidação e retaliação, requerem apoio especializado
(Comissão Europeia, 2013).
Concluindo, a Diretiva das Vítimas que estabelece níveis mínimos de direitos para todas
as vítimas de crime na UE, considera expressamente a particular vulnerabilidade das
vítimas de crimes de ódio e o maior risco de vitimação secundária e repetida, intimidação
e retaliação a que estas estão sujeitas, prevendo a aplicação de medidas de proteção
especiais e o acesso a serviços de apoio especializado. Esta camada extra de proteção é
relevante por criar, sob os Estados-Membros, a obrigação de considerar devidamente as
vítimas de crimes de ódio e é particularmente importante naqueles Estados-Membros
em que a lei penal e as políticas públicas ainda não acomodam devidamente as suas
necessidades de proteção acrescidas.
52
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
Na Áustria encontram-se, quer a nível constitucional quer a nível penal, várias disposições
destinadas a combater o ódio e a discriminação, sendo que algumas delas foram aprovadas
após a ratificação, em 1972, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial e para cumprir as obrigações impostas pela mesma.
O relatório da Comissão Europeia acima mencionado realça que o legislador Austríaco não
adotou disposições penais relativas à apologia, negação ou banalização grosseira públicas
de crimes de genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra e que, quanto à
apologia, negação ou banalização grosseira públicas dos crimes definidos no artigo 6.º do
Estatuto do Tribunal Militar Internacional, faz referência ao regime nacional-socialistas ou
à Alemanha nazi para designar os autores desses crimes.
6.4.2. Itália
Em Itália, no ano de 2016, registaram-se 803 crimes de ódio, 338 deles motivados por
racismo e xenofobia, 204 motivados por discriminação contra pessoas com deficiências e
38 motivados por discriminação quanto à orientação sexual e identidade de género.19
Em 1993, o legislador italiano aprovou o principal ato legislativo quanto de combate ao ódio,
Ato nº 205/1993, conhecido como Mancino Act e alterado pelo Ato nº 85/2006. O artigo 3.º
deste ato considera a o ódio como uma circunstância agravante no cometimento de outros
crimes, decretando o aumento da medida da pena do crime em causa para até metade.
O incitamento à violência e ao ódio são, como no caso da Áustria, criminalizados quer pelo 19 OSCE/ODIHR, Hate
Crime Reporting (disponível em http://
Mancino Act quer pelo artigo 415.º do código penal italiano. hatecrime.osce.org/austria, consultado a
20 de Março de 2018
53
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
6.4.3. Malta
Até recentemente, não existia no ordenamento jurídico maltês qualquer norma relativa
à comissão de crimes motivados por ódio ou discriminação. Em 2013, o código penal foi
alterado e passou a considerar, no seu artigo 83B, o ódio como uma circunstância agravante
da moldura penal de todas as ofensas penais.
Malta confere uma considerável proteção legal quanto aos crimes de ódio, discriminação e
discurso de ódio (Muskat, 2016). O incitamento à violência e ao ódio encontra-se tipificado como
crime no artigo 82A do código penal maltês.20 Neste aspeto, a Comissão Europeia considera que o
20 O Artigo 82A(1) do Código ordenamento jurídico maltês está em conformidade com a Decisão-Quadro de 2008 quanto à
Penal estabelece o seguinte: “Quem usar
qualquer palavra ou comportamento
discrição das eventuais vítimas deste crime, fazendo a correta e expressa menção quer a um
ameaçador, abusivo ou ofensivo, ou grupo de pessoas quer a um membro de tal grupo, no entanto, omite a ascendência e a origem
exibir qualquer material escrito ou
impresso que seja ameaçador, abusivo
nacional dos motivos em que se baseia a incitação à violência ou ódio (Comissão Europeia, 2014).
ou ofensivo, ou de qualquer outra forma
se comportar de tal maneira, com a
intenção de provocar violência ou ódio
A Comissão realça, ainda, que Malta criminaliza a apologia, negação ou banalização
racial contra outra pessoa ou grupo em grosseira públicas de crimes de genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra,
termos de género, identidade de género,
orientação sexual, raça, cor, idioma,
fazendo até expressa referência aos correspondentes artigos do Estatuto do Tribunal
origem étnica, religião ou crença ou Penal Internacional. Por outro lado, e quanto à apologia, negação ou banalização dos crimes
opinião política ou de outra, de forma a
que essa essa violência ou ódio racial
definidos no artigo 6.º do Estatuto do Tribunal Militar Internacional, não se encontra, tal
conduzam com probabilidade, tendo como no caso italiano, qualquer criminalização penal no ordenamento jurídico de Malta.
em conta todas as circunstâncias, a
distúrbios, será punido com pena de
prisão por um período de seis a dezoito
meses.”
6.4.4. Reino Unido
21 OSCE/ODIHR, Hate
Crime Reporting (disponível em http://
hatecrime.osce.org/united-kingdom,
Segundo os dados reportados ao ODIHR, 80.763 casos de crimes de ódio foram registados
consultado a 20 de Março de 2018) pelas autoridades policiais, sendo que 20.321 dos mesmos foram julgados no Reino Unido.21
54
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
O legislador tem, aqui, ao longo de várias décadas seguido uma abordagem bastante
fragmentada que resultou num enquadramento legal de crimes de ódio tão extenso como
complexo (WALTERS et al., 2017).
Atualmente, vigora no Reino Unido uma definição de crime de ódio que foi estabelecida, em
2007, por agências do sistema de justiça criminal.22 No entendimento destas autoridades,
crimes de ódio são “ofensas criminais percecionadas, pela vítima ou qualquer outra pessoa,
como tendo sido motivadas por hostilidade ou preconceito contra alguém com base numa sua
característica pessoal.” (Home Office, Office for National Statistics and Ministry of Justice, 2013)
Em 1998, foi promulgado o Crime and Disorder Act 1998 que substanciou a agravação
de certas ofensas penais quando motivadas por racismo. Segundo as secções 29 a 32,
estas ofensas são: ofensas à integridade física, dano, ofensas à ordem pública e assédio e
perseguição. Em 2001, o Crime and Disorder Act foi alterado pelo Anti-terrorism, Crime and
Security Act 2001 que somou àquela agravação os motivos relacionados com discriminação
em relação à religião e crença religiosa da vítima.
Pouco tempo depois, o Criminal Justice Act 2005 foi aprovado determinado que a
motivação de qualquer ofensa relacionada com a presumida orientação sexual ou
deficiência da vítima deve ser considerada pelos tribunais aquando da determinação da
pena, tendo sido alterado em 2012 para passar a incluir a motivação pela discriminação ou
ódio em relação a transgéneros. Conclui-se do exposto que enquanto o Crime and Disorder
Act determina a agravação de apenas algumas ofensas motivadas somente pelo ódio quanto
22 Police Service, Crown
à raça e à religião da vítima, o Criminal Justice Act cobre todas ofensas criminais mas diz Prosecution Service (CPS), National
respeito unicamente à valoração em sede de determinação concreta da medida da pena. Offender Management Service e outros.
23 A secção 1 do Malicious
No que diz respeito à incitação ao ódio, também este regime penal é fragmentado, existindo Communications Act 1988 considera
uma infração o envio de cartas e outro
diversos diplomas jurídicos, a sublinhar o Public Disorder Act 1986, alterado pelo Racial tipo de comunicações semelhantes
and Religious Hatred Act 2006 – aditando a criminalização do incitamento ao ódio racial com a intenção de causar sofrimento e
ansiedade.
e religioso -, o Malicious Communications Act 198823, o Football (Offences) Act 199124 e o
Communications Act 2003.25 24 A secção 3 do Football
(Offences) Act 1991 estabelece que
cantos indecentes e racistas proferidos
Tal como sucede na Áustria, também no Reino Unido não se encontra qualquer tipificação durante jogos de futebol constituem uma
infração.
penal da apologia, negação ou banalização grosseira públicas de crimes de genocídio, crimes
contra a Humanidade e crimes de guerra e, conforme acontece em Itália e Malta, também não 25 A secção 127 do
Communications Act 2003 considera
está criminalizada a apologia, negação ou banalização grosseira públicas dos crimes definidos como infração o uso inapropriado de
no artigo 6.º do Estatuto do Tribunal Militar Internacional (Comissão Europeia, 2014). redes de telecomunicações públicas.
55
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
6.4.5. Suécia
Em 2016, na Suécia, 4.862 casos de crimes de ódio foram reportados dos quais 257 foram
julgados, segundo o ODIHR.26 A maioria destes crimes foram motivados por racismo e
xenofobia (3.439).
A secção 2 do capítulo 29 do código penal sueco27 prevê, à semelhança do que acontece nos
ordenamentos jurídicos dos Estados acima analisados, a agravação de todas as ofensas
criminais motivadas por ódio e discriminação relativamente à raça, cor, origem étnica
ou nacional, religião, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou outras
circunstâncias semelhantes.
A Comissão Europeia indica que na Suécia a apologia, negação ou banalização quer dos
crimes de genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra, quer dos crimes
definidos no artigo 6.º do Estatuto do Tribunal Militar Internacional, não se encontram
criminalizadas (Comissão Europeia, 2014).
26 OCSE/ODIHR, Hate
Crime Reporting (disponível em http://
Este é, sumariamente, o quadro legal dos crimes de ódio nos países participantes no
hatecrime.osce.org/sweden, consultado
a 21 de março de 2018) presente projeto. A seguinte tabela, também ela não exaustiva, permite a sistematização do
atrás exposto, reunindo informações sobre as leis mencionadas e outras, não dispensando,
27 A secção 2, parágrafo 7
do capítulo 29 do código penal da Suécia no entanto, a consulta dos respetivos diplomas legais para informação mais detalhada.
estabelece o seguinte: “Na valoração
penal, as seguintes circunstâncias
agravantes devem ser especialmente
consideradas para além do que é
aplicável para cada tipo de crime (…)
se o motivo para o crime foi agredir uma
pessoa, grupo étnico ou algum outro
grupo similar de pessoas em razão da
raça, cor, origem nacional ou étnica,
crenças religiosas, orientação sexual,
identidade ou expressão de género ou
outras circunstâncias semelhantes.”
56
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
País Definição jurídica Autonomia do Crime de ódio como Incitamento ao ódio, Regime jurídico das
de crime de ódio crime de ódio circunstância agravante discriminação e violência contra-ordenações
Áustria Não Não Sim – §33 (1) fig. 5 StGB – Sim – §283 StGB –
circunstâncias especialmente incitamento ao ódio e a
agravantes violência
Itália Não Não Sim – Artigo 3.º, Ato n.º Sim – Artigo 415.º, Código Sim – Artigo 43.º, Ato n.º 3000/1970
205/1993, Mancino Act, Penal – criminaliza o relativo ao emprego
alterado pelo Ato n.º 85/2006 incitamento ao ódio entre
classes sociais (contexto Decreto-Lei n.º 286/1998 sobre
histórico – pós período Imigração, conhecido por Turco-
fascista) Napolitano Act
Malta Não Sim – Artigo 83B, Código Penal Sim – Artigos 82.ºA,
parágrafo 1, 8.2ºB e 82.ºC,
Código Penal
Portugal Não Não Sim – Artigo 132.º, n.º2, al. f) – Sim – Artigo 240.º, Código Sim – Lei n.º 39/2009, de 30 de
homicídio Penal – Discriminação e Julho - enquadramento jurídico
incitamento ao ódio e à para o combate da violência,
Artigo 145.º, n.º 2 - ofensa à violência racismo, xenofobia e intolerância
integridade física qualificada nos espetáculos desportivos, com as
últimas alterações introduzidas pela Lei
Por força da remissão operada n.º 52/2013, de 25 de Julho
pelo artigo 155.º, n.º 1, al. e):
artigo 153.º - ameaça; artigo Lei nº 93/2017, de 23 de agosto, relativa
154.º - coação; artigo 154.º-A ao regime jurídico da prevenção, da
– perseguição; artigo 154.º-B proibição e do combate à discriminação
- casamento forçado; artigo
154.º-C -atos preparatórios,
todos do Código Penal
Suécia Desde dia 1 de janeiro de 2015, existe Não Sim – Capítulo 29, secção 2, Sim – Capítulo 16, secção De acordo com a coluna 1, um certo
uma definição comum de crime de ódio, §7, Código Penal 8, Código Penal número de contra-ordenações
aprovada pela polícia e procuradores podem ser consideradas como
(relatório de uma comissão crimes de ódio.
governamental, 2015-01-23).
Um crime de ódio é considerado uma
57
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
Reino Não existe uma definição legal de crime Não Sim – Crime and Disorder Sim – Public Order Act
Unido de ódio mas as autoridades judiciais, Act 1998, alterado pelo Anti- 1986, alterado pelo Racial
juntamente com o Crown Prosecution terrorism, Crime and Security and Religious Hatred Act
Service, concordaram uma definição Act 2001 2006
meramente indicativa. Segundo esta,
“crime de ódio” consiste em qualquer Malicious Communications
infração percebida pela vítima ou por Act 1988
qualquer outra pessoa, motivada por
hostilidade ou preconceito baseado na Communications Act 1993
raça de uma pessoa ou raça percecionada;
religião real ou percecionada; orientação
sexual real ou percecionada como tal pelo
agressor; deficiência real ou percecionada
e qualquer crime motivado por hostilidade
ou preconceito contra uma pessoa
transgénero ou percebida pelo agressor
enquanto tal.
58
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
perfilhou uma noção na qual prescindiu da referência ao ódio, optando por colocar em
evidência a ideia de pertença do alvo do crime a determinado grupo29. A referida ideia de
pertença, a qual, por facilidade de expressão, denominaremos de “preconceito”, reveste-
se de profunda utilidade ao permitir um espectro de análise mais amplo na necessária
transposição que se procurará operar entre o fenómeno social e a sua dimensão jurídica.
Uma pesquisa orientada pela consagração no tipo legal de crime da expressão “ódio” seria
necessariamente mais limitativa dos resultados do que uma em que se opte por procurar
quais os tipos de crime que atribuíram relevância penal ao preconceito.
A título ilustrativo, o crime de genocídio, atualmente consagrado no artigo 8.º da Lei n.º
31/2004, de 22 de julho30, consiste na seguinte previsão:
59
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica”). Assim, o ódio que não tenha
na base um dos preconceitos referidos no tipo de crime será de considerar irrelevante para
efeitos de preenchimento da conduta jurídico-penalmente punida.
O referido autor coloca em evidência a ideia de que o direito penal exige, para que uma
conduta ditada pelo ódio seja punível, que esta se traduza em atos de execução de um dado
tipo de crime – decorrendo tal exigência do artigo 22.º do Código Penal –, da ausência de
um crime autónomo de ódio e da circunstância do ódio consistir num sentimento que, em
primeira linha, é vivenciado internamente, podendo nunca alcançar uma tal exteriorização
que se deva considerar penalmente relevante.
60
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
Em virtude da centralidade que ocupa do quadro jurídico-penal português em matéria 33 O artigo 189.º do Código
Penal português de 1982 disponha
de discriminação, principiaremos o nosso estudo pela análise do crime de discriminação o seguinte: “1 - Quem, com intenção
plasmado no artigo 240.º do Código Penal. Este tipo de crime visa tutelar o bem jurídico de destruir, no todo ou em parte, uma
comunidade ou um grupo nacional,
igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. Sendo certo que étnico, racial, religioso ou social, praticar
dúvidas não se levantam a propósito da igualdade enquanto bem jurídico protegido pelo tipo alguns dos actos seguintes:
a) Homicídio de membros da
incriminador, a unanimidade não se mantém quanto à questão de saber se este é o único bem comunidade ou do grupo;
jurídico protegido ou se outros podem aqui ser vislumbrados. Maria João Antunes (Antunes, b) Ofensa grave à integridade física ou
psíquica de membros da comunidade
1999) defende que o tipo incriminador visa apenas tutelar o bem jurídico igualdade32, ao passo ou do grupo;
que Paulo Pinto de Albuquerque advoga estarmos em presença de um tipo de crime que tutela c) Sujeição da comunidade ou do
grupo a condições da existência ou a
ainda bem jurídicos como a integridade física, a honra e a liberdade (Pinto de Albuquerque, tratamentos desumanos, susceptíveis
2015). André Lamas Leite começa por referir que o tipo incriminador tutela a igualdade, de virem a provocar a destruição da
comunidade ou do grupo;
acabando por afirmar que está em causa a defesa do livre desenvolvimento da personalidade d) Transferência violenta de crianças
humana (Lamas Leite, 2012). A tomada de posição relativamente a esta divergência terá para outra comunidade ou outro grupo;
será punido com prisão de 10 a 25 anos.
consequências em matéria de interpretação do preceito e no sentido admissível de futuras 2 - Será punido com prisão de 1 a 5 anos
alterações do mesmo. Não cumprindo tomar posição, deve apenas notar-se que os autores quem, em reunião pública, por escrito
destinado a divulgação ou através de
que defendam que o bem jurídico protegido é, exclusivamente, a igualdade poderão enfrentar qualquer meio de comunicação social:
dificuldades de coerência sistemática uma vez que o mesmo sistema jurídico tutelaria o a) Difamar ou injuriar uma pessoa ou
um grupo de pessoas ou expuser as
bem jurídico igualdade em sede de ilícito penal e de mera ordenação social sem que se mesmas a desprezo público por causa
possa estabelecer uma clara diferença de grau entre o que é deixado à tutela penal e à tutela da sua raça, da sua cor ou da sua
origem étnica;
contraordenacional. Ao associar a igualdade a outros bem jurídicos torna-se mais claro onde se b) Provocar actos de violência contra
traça a linha daquilo que deve ser tutelado por cada ramo do direito sancionatório. pessoa ou grupos de pessoas de outra
raça, de outra cor ou de outra origem
étnica.
O crime de discriminação, numa versão em que estava ainda associado ao crime de 3 - Será punido com prisão de 2 a 8
anos quem:
genocídio, surgia consagrado no Código Penal português de 1982, no seu artigo 189.º33, dando a) Fundar ou constituir organizações
cumprimento às obrigações de criminalização assumidas pelo Estado Português aquando da ou desenvolver actividades de
propaganda organizada que incitem à
acessão à Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação discriminação, ao ódio ou à violência
Racial.34 Como assinala Francisca Van-Dunem, com a reforma do Código Penal operada pelo raciais ou que os encoragem;
b) Participe nas organizações ou nas
Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, o crime de discriminação foi autonomizado face ao crime actividades referidas na alínea anterior
de genocídio, passando a constar do atual artigo 240.º (Van-Dunem, 2001). A mesma autora ou preste assistência a quaisquer
actividades racistas, incluindo o seu
salienta ainda que, através do n.º 2 do referido artigo, passou a ser exigido um dolo específico financiamento.”
traduzido na expressão “com a intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual,
34 A adesão de Portugal
ou de a encorajar” (Van-Dunem, 2001). Este ponto relativo ao dolo específico, o qual era uma à Convenção Internacional Sobre a
exigência transversal a todas as alíneas do n.º 2 do artigo 240.º, foi-se mantendo inalterado Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial foi aprovada pela
até à aprovação da Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, através da qual o referido dolo específico Lei n.º 7/1982, de 29 de abril. Para um
foi convertido na nova alínea d). Esta alteração teve um duplo efeito da maior relevância: num estudo mais aprofundado das obrigações
do Estado Português que resultaram
primeiro plano, alargou a ação típica punível pelo crime e, num segundo plano, tornou menos da adesão a esta Convenção vide supra
exigente o preenchimento do crime ao subtrair-lhe um elemento subjetivo específico. ponto 9.1 deste manual.
61
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
Para lá da referida alteração de fundo, o artigo 240.º do Código Penal – o qual na sua versão
inicial apenas fazia menção ao ódio motivado pela raça – foi sendo alvo de sucessivas
alterações pelas Leis n.º 65/98, de 2 de setembro – foi acrescentada a referência à religião
–, 59/2007, de 4 de setembro – foram adicionadas as referências à cor, origem étnica
ou nacional e ao sexo ou à orientação sexual –, e 19/2013, de 21 de fevereiro – passou a
mencionar a identidade de género –, no sentido de alargar os preconceitos tipicamente
relevantes no que concerne ao ódio referido no preceito. Também a última alteração
introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, além de ter operado a transformação
anteriormente exposta relativamente ao dolo específico, voltou a proceder a novo
alargamento dos preconceitos determinantes de ódio, acrescentando a “deficiência física
ou psíquica”. Tal alteração veio criar um desfasamento entre os motivos determinantes
do ódio nesta norma e aqueles que constam do artigo 132.º, n.º 2, da al. f) do Código Penal.
Como aprofundaremos em seguida, este desfasamento é particularmente relevante no que
respeita à remissão levada a cabo pelo artigo 155.º, n.º 1, al. e) do Código Penal para a al. f)
do n.º 2 do artigo 132.º do mesmo diploma.
Quanto ao tipo de ilícito objetivo, em particular ao n.º 1 do artigo 240.º, este comporta,
três modalidades de ação relativamente às organizações35 que incitem à discriminação, ao
ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem
étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género
ou deficiência física ou psíquica, ou que a encorajem: a sua fundação, constituição ou a
participação. Relativamente a atividades que prossigam os mesmos fins que os enunciados
para as organizações, estas compreendem duas modalidades de ação: o desenvolvimento
ou participação. No que concerne ao tipo de ilícito objetivo constante do n.º 2 do artigo
240.º, este começa por exigir que a conduta seja tomada publicamente, através de um meio
destinado à divulgação. Assim se exclui do âmbito desta norma qualquer conduta que,
mesmo preenchendo uma das alíneas do n.º 2 do artigo 240.º do Código Penal, ocorra numa
interação entre agressor e vítima que não seja em público ou que, tendo lugar em público,
não seja apta à divulgação.
35 Sobre o conceito de
“organização”, afirma André Lamas
Leite: “note-se que o legislador exige Perante a exigência do elemento objetivo do ilícito típico contida na expressão “publicamente,
uma certa estabilidade e algum grau
de funcionamento dessa associação
por qualquer meio destinado a divulgação”, devemos questionar-nos se não terá o legislador
de pessoas e meios, pois só assim ido longe demais ao prescindir do dolo específico – “a intenção de incitar à discriminação
estaremos em face de uma organização
(...).”,“Direito Penal e discriminação
racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar” –, fazendo-o transitar para o elemento objetivo
religiosa – subsídios para uma visão constante da al. d) do n.º 2 do artigo 240.º, permitindo que o tipo de crime se preencha
humanista” in O Direito, Ano 144.º (2012),
Fascículo IV, Coimbra: Almedina, 2013,
hoje com condutas que podem consubstanciar verdadeira negligência. Para uma exata
pág. 892. compreensão do exposto, atentemos num exemplo recentemente noticiado na imprensa:
62
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
um grupo de pessoas de etnia cigana teriam causado distúrbios num hospital do norte
do país. Ficcionando que o diretor do hospital em causa vinha dar uma entrevista em que
reconhecia que o problema tinha ocorrido e que os seus causadores tinham sido um conjunto
de pessoas de etnia cigana mas, referindo também, que o mesmo estava já sanado e que
não tinha tido particular relevância. Imaginemos agora que um grupo de pessoas do norte
do país, motivadas pela entrevista, agrediam um grupo de ciganos. O diretor do hospital
teria preenchido a conduta prevista e punida pelo artigo 240.º, n.º 2, al. a) do Código Penal
sem, no entanto, ter tido a intenção discriminatória36. Pode, como se faz notar no exemplo,
ter tido a intenção exatamente oposta. O caminho para a introdução de razoabilidade na
interpretação do tipo de crime pode passar por aderir à ideia defendida por André Lamas
Leite relativamente ao n.º 1 do artigo 240.º do Código Penal. Nas palavras do autor:
“Apesar de o nosso artigo 240.º não fazer referência a um critério de “adequação social”,
resulta de uma hermenêutica teleologicamente fundada e orientada para a proteção do
36 André Lamas Leite
bem jurídico identificado que os materiais físicos de propaganda só serão adequados a discordaria da conclusão alcançada
discriminar quando não visem “fins educativos, artísticos ou científicos, de investigação no corpo do texto, defendendo que não
estaria preenchido o tipo de ilícito do
ou ensino, de descrição de eventos históricos ou fins semelhantes.” artigo 240.º, n.º 2, al. a) do Código Penal,
uma vez que interpreta a expressão
“incitar”, constante da al. a) do n.º 1
Devemos recordar que o n.º 1 do artigo 240.º, ao longo da sua evolução histórica, do artigo 240.º, no mesmo sentido da
nunca consagrou nas suas várias redações a exigência de um dolo específico (intenção figura da instigação (artigo 26.º do
Código Penal), procedendo depois a uma
discriminatória), abrindo a porta à punição de condutas que o legislador não pretenderia equiparação entre “incitar” e “provocar” –
punir à partida. O autor citado, por via da adequação social da conduta, procura limitar a qual não deve ser sufragada – tal como
resulta do “Direito Penal e discriminação
esses resultados. Necessidade que encontramos renovada no n.º 2 do mesmo preceito. religiosa – subsídios para uma visão
humanista” in O Direito, Ano 144.º (2012),
Fascículo IV, Coimbra: Almedina, 2013,
Ainda no n.º 2 do artigo 240.º, por força da redação que lhe foi conferida pela Lei n.º pág. 902. A instigação e a ideia de
94/2017, de 23 de agosto, ficou plasmado “nomeadamente através da apologia, negação incitamento partilham um elevado grau
de intencionalidade. Assim não acontece
ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade”. com a expressão “provocar”, a qual
O trecho citado foi incluído pelo legislador imediatamente a seguir à menção ao “meio significa “dar causa a”, numa lógica de
nexo de causalidade sem que comporte
destinado a divulgação”. Tal formulação legislativa permitira pensar que o primeiro a carga valorativa de intencionalidade.
segmento citado viria concretizar o segundo. Contudo, tal conclusão levaria a confundir A escolha de uma palavra sem tal
referência à intencionalidade é
o meio de difusão com o conteúdo difundido. Na realidade, esta expressão, até à entrada consentânea com um artigo que
em vigor da Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, surgia associado aos crimes de difamação autonomizava a intencionalidade através
de um dolo específico.
e injúria constantes da al. b) do n.º 2 do artigo 240.º. Esta expressão, introduzida pela
Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, visou abranger os fenómenos do negacionismo e do 37 Em sentido idêntico,
Francisca Van-Dunem, “A discriminação
revisionismo histórico37. A última alteração legislativa – Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto – em função da raça na lei penal” in
veio transformar este fenómeno numa forma de realização das condutas típicas plasmados Estudos em Homenagem a Cunha
Rodrigues, Volume II, Coimbra: Coimbra
nas alíneas do n.º 2 do artigo 240.º. Esta técnica legislativa não deixará de suscitar Editora, 2001, pág. 948.
63
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
dúvidas umas vez que procede à exemplificação das formas de ação antes de definir a
ação tipicamente relevante. Ademais, se o negacionismo pode, com relativa facilidade, em
particular no que diz respeito aos grupos afetados pelos crimes que são objeto de negação,
ser configurado como uma forma de provocar violência – al. a) do n.º 2 –, de difamar ou
injuriar – al. b) do n.º 2 – e de incitar à violência e ao ódio – al. d) do n.º 2 –, já não será tão
claro que, através da defesa do negacionismo, pelo menos de forma imediata, se ameace
uma pessoa ou um grupo – al. c) do n.º 2.
Finda a análise do artigo 240.º do Código Penal, cumpre agora debruçarmo-nos sobre o
artigo 132.º, n.º 2, al. f), do Código Penal, o qual consagra o homicídio qualificado em virtude
de a morte ter sido produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade, assim sucedendo quando a mesma haja sido determinada, nomeadamente,
“por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela
orientação sexual ou pela identidade de género da vítima”. Empreendida a análise dos dois
normativos citados, teremos visitado os dois tipos de crime centrais em matéria de crimes
de ódio. Isto não vale por dizer que se encontrará esgotado o objeto do nosso estudo mas tão
só dá nota do papel central, por um lado, do artigo 240.º enquanto criminalização autónoma
e, por outro lado, do artigo 132.º, n.º 2, al. f) ao assumir a função de verdadeiro paradigma
no que concerne à consagração de uma circunstância qualificadora que será reproduzido
noutros tipos de ilícito criminal ao longo do Código Penal. Em relação ao artigo 132.º, n.º 2, al.
f), a referida centralidade não está isenta de problemas que trataremos adiante.
64
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
profunda remodelação por efeito da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro. Desde logo,
mercê da introdução de uma nova alínea no n.º 2 do artigo 132.º, a anterior al. e) passou
a constar da al. f), não tendo as mais recentes reformas aditado novas alíneas ao n.º 2 do
artigo citado. Quanto ao preconceitos geradores de ódio, aos anteriormente tipificados,
foram acrescentados aqueles que são fundados “pela cor, origem étnica ou nacional,
pelo sexo ou pela orientação sexual da vítima”. Mais recentemente, a Lei n.º 19/2013, de
21 de fevereiro, procurando dar resposta aos preconceitos que se vão manifestando na
sociedade, consagrou a menção à “identidade de género da vítima”. Percorrido o caminho
de evolução histórica do preceito fica evidente que o mesmo tem sido marcado por uma
constante preocupação do legislador no sentido de alargar o leque de preconceitos
geradores de ódio penalmente relevante. Contudo, ao analisar a al. f) do n.º 2, do artigo
132.º do Código Penal, não podemos deixar de salientar também que, no que respeita à
enunciação dos preconceitos suscetíveis de gerar ódio, a mesma se encontra desfasada
face ao artigo 240.º do mesmo diploma. Tal circunstância não é, como de seguida se
compreenderá, particularmente gravosa em sede dos artigos 132.º ou 145.º do Código
Penal. Contudo, assume especial relevância ao analisar o artigo 155.º, o qual procede à
agravação de um conjunto vasto de crimes. Em virtude do quadro que deixamos traçado,
remetemos a reflexão a empreender a propósito do problema identificado para as linhas
que dedicaremos ao estudo do artigo 155.º do Código Penal.
Deixámos mencionado supra que a al. f) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal assume,
por via das remissões que para esta estão consagradas nos artigos 145.º e 155.º, um papel
de destaque em matéria de crimes de ódio e que esse mesmo papel potencia um efeito
de contágio de um conjunto de problemas que a respeito daquela podem ser suscitados.
Antes de iniciar uma análise mais aprofundada, devemos referir que as considerações que
tecermos a propósito o artigo 132.º serão em tudo idênticas às que são suscitadas pelo
artigo 145.º, furtando-nos a incorrer em irrelevante repetição39. Assim não acontecerá a
propósito do artigo 155.º do Código Penal, o qual exige referência autónoma uma vez que
consagra uma técnica legislativa diferente da utilizada nos outros dois preceitos referidos.
A similitude existente entre os artigos 132.º e 145.º, ambos do Código Penal, decorre da 39 Em sentido idêntico, Paulo
Pinto de Albuquerque procede à anotação
circunstância do legislador ter lançado mão da técnica dos exemplos-padrão. Esta técnica, do artigo 145.º através da constante
consagrada no n.º 2 dos artigos 132.º e 145.º consiste em, para efeitos de preenchimento remissão para a anotação ao artigo 132.º,
ambos do Código Penal, Comentário
dos conceitos indeterminados de “especial censurabilidade ou perversidade” mencionados do Código Penal – à luz da Constituição
no n.º 1 dos artigos citados, recorrer a um conjunto de circunstâncias – vertidas nas alíneas da República e da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem, 3.ª Edição
do n.º 2 do artigo 132.º – que surgem como particularmente aptas a preencher aqueles atualizada, Lisboa: Universidade Católica
conceitos. Contudo, como decorre das expressão “entre outras” plasmada no n.º 2 dos Portuguesa, 2015, págs. 564 e 565.
65
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
artigos 132.º e 145.º, nem aquelas circunstâncias são as únicas que permitem preencher
os conceitos indeterminados a que aludimos, nem a sua verificação – esse deve ser o
sentido retirado através da interpretação da expressão “é suscetível de revelar” constante
do n.º 2 dos artigos 132.º e 145.º – implica o automático preenchimento dos mesmos.
Reconduzindo estes ensinamentos ao âmbito do nosso estudo, tal significa que, do ponto
de vista teórico, será configurável um caso em que a motivação de ódio está verificada mas
não está preenchido o tipo de crime de homicídio qualificado mas também que, uma vez
que o elenco das circunstâncias aptas a revelar especial censurabilidade ou perversidade
não é taxativo, e retomando aqui o desfasamento identificado face aos preconceitos
consagrados no artigo 240.º mas sem paralelo no artigo 132.º – referimo-nos, em concreto,
ao trecho “deficiência física ou psíquica” –, um homicídio motivado por ódio gerado por um
preconceito contra pessoas portadoras de deficiência física ou psíquica pode ser punido
como homicídio qualificado desde que a conduta em concreto revele especial perversidade
ou censurabilidade. Não buscando aqui discorrer sobre os méritos e deméritos da técnica
legislativa em apreço, não se poderá deixar de referir que esta tem, em matéria de crimes de
ódio, vantagens de desvantagens evidentes.
Merece ainda, no âmbito dos artigos 132.º e 145.º do Código Penal, menção uma divergência
na doutrina a que apenas aludimos por força das suas relevantes consequências práticas.
Tem sido profundamente controvertido, em discussão empreendia, por regra, a propósito
40 Para um panorama geral do artigo 132.º, se o mesmo consagra um tipo de culpa, um tipo de ilícito ou, numa posição
sobre o estado da discussão vide Paulo
Pinto de Albuquerque, Comentário do
intermédia, se algumas circunstâncias se referem à culpa e outras à ilicitude40. Reeditar tal
Código Penal – à luz da Constituição discussão seria matéria para uma monografia, razão pela qual nos limitaremos apenas a
da República e da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem, 3.ª Edição
retirar as consequências teóricas da aplicação das duas posições extremas41 uma vez que
atualizada, Lisboa: Universidade Católica estas são da maior importância prática em matéria de crimes de ódio.
Portuguesa, 2015, págs. 509 e 510 e
ainda Figueiredo Dias/Nuno Brandão,
Comentário conimbricense ao Código Retomando o supra exposto, as duas teses relativas aos artigos 132.º e 145.º defendem,
Penal, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra:
Coimbra Editora, 2012, págs. 48 a 54.
por um lado, que estamos perante um tipo de culpa e, por outro lado, que se trata de um
tipo de ilícito. As consequências destas duas posições são ditadas pelos artigos 28.º e
41 Não se revestiria
de particular interesse percorrer o
29.º do Código Penal. De acordo com este último, havendo comparticipação – contributos
mesmo caminho em relação à posição para a realização do crime são prestados por mais do que um agente –, cada um dos
intermédia que referimos no corpo
do texto porque se alcançariam as
comparticipantes responde de acordo com a sua culpa individual. Quanto à ilicitude, nos
mesmas conclusões mas em âmbitos de termos do artigo 28.º, esta pode ser comunicada entre os comparticipantes. Ilustrando
aplicação – cada uma das alíneas – mais
restrito. Dito de outra forma, optamos
com um exemplo no âmbito do nosso estudo: A decide matar B uma vez que este é um
por confrontar as duas teses que tratam transsexual, pessoas que A entende serem aberrações e que devem ser eliminadas. Para
o problema em bloco uma vez que os
resultados são similares apenas variando
a execução do seu plano criminoso A conta com o auxílio de C que lhe fornece a arma a
a escala. utilizar na consumação do crime. Consumado o homicídio, este enquadrar-se-ia na al. f)
66
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
do n.º 2 do artigo 132.º e, por essa via, preencheria o conceito de “especial censurabilidade
ou perversidade”. Dúvidas não se levantam de que A, enquanto autor imediato – primeira
parte do artigo 26.º do Código Penal –, responderia pelo crime de homicídio qualificado.
Quanto a B, cúmplice nos termos do artigo 27.º, n.º 1, do Código Penal, se perfilharmos o
entendimento segundo o qual o artigo 132.º do Código Penal consagrada um tipo de culpa,
uma vez que, como referimos, cada um dos comparticipantes responde pela sua culpa, este
apenas poderia responder enquanto cúmplice de um crime de homicídio simples (artigo
131.º do Código Penal). De outro modo, ao adotarmos a tese segundo a qual o artigo 132.º
do Código Penal constitui um tipo de ilícito, e uma vez que a ilicitude pode ser estendida ao
comparticipante, B responderia como cúmplice de um homicídio qualificado.
O artigo 155.º do Código Penal, por força da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º
83/2015, de 5 de agosto – a qual veio dar cumprimento às obrigações assumidas pelos
Estado Português face à Convenção de Istambul –, passou a consagrar, na al. e) do seu n.º 1,
o ódio motivado pelo preconceito enquanto circunstância agravante dos crimes tipificados
nos artigos 153.º, 154.º, 154.º-A, 155.º-B e 155.º-C, todos do Código Penal, lançando mão de
uma técnica legislativa distinta da utilizada nos artigos 132.º e 145.º do Código Penal.
O legislador, no artigo 155.º, n.º 1, al. e) do Código Penal, procedeu a uma remissão para a
circunstância plasmada na al. f) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal mas não para a
técnica dos exemplos-padrão. Assim, fechou a porta à possibilidade de atribuir relevância
a outros preconceitos enquanto fatores geradores de ódio que não aqueles que decorrem
expressamente da alínea citada. Compreende-se assim o que anteriormente deixámos
escrito em vários pontos sobre a relevância do desfasamento da al. f) do n.º 2 do artigo
132.º face ao artigo 240.º. O referido desfasamento acaba por perder relevância nos artigos
132.º e 145.º do Código Penal uma vez que a técnica dos exemplos-padrão não se funda num
elenco taxativo de circunstâncias que permitem preencher os conceitos indeterminados
de “especial censurabilidade ou perversidade” mas em sede do artigo 155.º, n.º 1, al. e), do
Código Penal tal válvula de escape não terá aplicação.
67
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
Assim, em relação aos crimes dos artigos 153.º a 154.º-C, conclui-se, por um lado, que o ódio
motivado por “deficiência física ou psíquica” – previsto no artigo 240.º do Código Penal –
não poderá assumir o papel de circunstância agravante e, por outro lado, que preenchida al.
f) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, a pena é automaticamente agravada.
Debruçando-nos agora sobre crime de devassa por meio de informática previsto no artigo
193.º do Código Penal, o qual, pese embora não se refira ao ódio ou à discriminação, visa tutelar
a autodeterminação informacional relativamente a um conjunto de matérias que podem
ser objeto de preconceito. André Lamas Leite refere-se a estas matérias como “de natureza
sensível (...) porquanto dizem respeito a aspetos da vida privada dos cidadãos que os mesmos,
como regra, não desejam revelar, na medida em que os enquadram em certos grupos de
pertença, o que pode trazer consequências desvantajosas no quotidiano” (Lamas Leite, 2012).
Para que melhor se compreenda o interesse do estudo deste crime no contexto dos
crimes de ódio, pense-se num grupo racista que cria uma base de dados sobre a raça de
um determinado grupo de pessoas. Uma conduta deste tipo preencheria o tipo de crime
descrito no artigo 193.º do Código Penal. Assim, pese embora não seja, por força dos
elementos do tipo de crime, um crime de ódio, revela com estes estreita conexão.
Antes de principiar o estudo relativo à evolução histórica do preceito, não podemos deixar
de dar nota de uma divergência doutrinária e jurisprudencial relativamente à circunstância
deste preceito ter sido objeto de revogação tácita através da aprovação da Lei n.º 67/98,
de 26 de outubro. Em favor desta posição, perfilam-se Damião da Cunha e o Acórdão do
Tribunal da Relação de Évora de 05/11/2013 (Processo n.º 679/05.7TAEVR.E2) (Cunha,
2012). Em sentido inverso, defendendo que o preceito apreço ainda se mantém em vigor,
está Paulo Pinto de Albuquerque Pinto de Albuquerque 2015).
À imagem do que referimos a respeito dos artigos 132.º, n.º 2, al. f), e 240.º do Código Penal,
também o artigo 193º foi objeto de alterações legislativas no sentido de alargar o âmbito
68
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
das informações relevantes para o preenchimento do tipo de crime, embora com frequência
assinalavelmente inferior. Na versão inicial do artigo – então 181.º do Código Penal –,
conferida pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, este apenas fazia referência,
no seu n.º 1, a “dados de carácter pessoal” e, no seu n.º 2, procedia à concretização daquele
conceito, referindo que o mesmo se poderia consubstanciar em “convicções políticas,
religiosas, filosóficas, bem como outras atinentes à privacidade”. Com a reforma do Código
Penal de 1995 – operada através da aprovação do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março – o
crime de devassa por meio de informática passou a estar consagrado no artigo 193.º, tendo
sido aditadas a referência a informações relativas à “filiação partidária ou sindical, à vida
privada, ou a origem étnica”.
Carece ainda especial referência o tipo objetivo do citado artigo 193.º do Código Penal.
A conduta típica traduz-se em criar, manter ou utilizar ficheiro automatizado de dados
individualmente identificáveis relativos às informações que deixamos elencadas a propósito
da evolução histórica do preceito. A dificuldade que se antecipa será a interpretação dos
conceitos de “ficheiro automatizado” e “dados individualmente identificáveis”. O primeiro
surgia definido na al. d) do artigo 2.º da Lei n.º 10/91 – revogada lei de proteção de dados
pessoais – como “o conjunto estruturado de informações objeto de tratamento automatizado,
centralizado ou repartido por vários locais”. A lei atualmente em vigor em matéria de
proteção de dados pessoais – Lei n.º 67/98, de 26 de outubro – consagra na al. c) do seu
artigo 3.º a definição de “ficheiro de dados pessoais” – “qualquer conjunto estruturado
de dados pessoais, acessível segundo critérios determinados, quer seja centralizado,
descentralizado ou repartido de modo funcional ou geográfico” –, a qual deve também
servir de referência ao intérprete na aplicação do artigo 193.º do Código Penal. No que
concerne ao conceito “dados individualmente identificáveis”, este é equivalente ao conceito
de “pessoa singular identificada ou identificável” definido na al. a) do n.º 3 da Lei n.º 67/98,
de 26 de outubro, enquanto “a pessoa que possa ser identificada direta ou indiretamente,
designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos
específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social”.
Devemos ainda dar destaque, sem que os tipos de crime refiram expressamente um
sentimento de ódio ou intenção discriminatória, a um conjunto de crimes que, por surgirem
especificamente conexionados com a matéria religiosa, facilmente poderão abranger
condutas motivadas por intenções discriminatórias de cariz religioso. A saber, o crime
de furto qualificado (al. c) do n.º 1 do artigo 204.º), crime de dano (al. e) do n.º 1 do artigo
213.º), ultraje por motivo de crença religiosa (artigo 251.º) e ainda o crime de impedimento,
perturbação ou ultraje a ato de culto (artigo 252.º).
69
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
Antes de fechar o capítulo relativo à busca por tipos de crime previstos na parte especial do
Código Penal que se possam enquadrar no âmbito dos crimes de ódio, devemos ainda dar nota
de uma interessante reflexão delineada por Francisca Van-Dunem. A propósito da discriminação
fundada na raça e na possibilidade de esta vir a consubstanciar o crime de difamação
(artigo 180.º do Código Penal) ou de injúria (artigo 181.º do Código Penal) afirma a autora: “a
integração das vulgarmente designadas ofensas raciais na tipologia geral dos crimes contra a
honra já poderá, em algumas circunstâncias, mostrar-se menos linear”(Van-Dunem, 2001).
Podemos começar por traçar uma distinção clara entre dois grupos de casos: aqueles em
que o cometimento do crime de injúria ou de difamação é motivado por um preconceito
mas em que o conteúdo da ofensa não está relacionado com o preconceito e aqueles em
que, além do preconceito surgir como motivação, surge ainda manifestado no conteúdo que
é imputado. Para que se compreenda claramente os grupos de casos a que nos referimos,
pensemos em dois exemplos: primeiro, o caso em que A, sabendo ou julgando que B é
homossexual, e motivado por essa razão, difunde numa comunidade que B faz do furto modo
de vida; segundo, o caso em que A, sabendo ou julgando que B é homossexual, difunde numa
comunidade que B é homossexual. Torna-se assim claro que, no primeiro grupo de casos, o
preconceito está na motivação do crime mas não no conteúdo que é imputado. Nestes casos,
essa motivação, não fazendo parte da conduta descrita como crime, deve ter sempre reflexo
na determinação da medida da pena – artigo 71.º do Código Penal, o qual abordaremos de
seguida. No segundo grupo de casos, seria um conteúdo decorrente do próprio preconceito
a servir objeto de imputação. Aqui se levanta um problema que se traduz na facto dos crimes
de injúria e difamação exigirem que os conteúdos que são dirigidos sejam “ofensivos da sua
honra ou consideração” e, certos conteúdos que são resultado do preconceito, não podem
ser considerados atentatórios da honra e do preconceito sob pena do sistema jurídico-penal
valorar como ofensivo algo que não pode assim ser considerado desvalioso numa sociedade
civilizada. Retomando o exemplo, difundir que alguém é homossexual ou chamar a uma pessoa
“africano”, para efeitos dos artigos 180.º e 181.º do Código Penal42, não pode ser considerado
“ofensivos da sua honra ou consideração”, sob pena de institucionalizar o preconceito.
Francisca Van-Dunem, sem avançar uma resposta taxativa, vem indicar um caminho de
solução ao referir que “determinadas expressões que pretendem caracterizar os indivíduos
em função da sua raça, ou etnia, adquirem uma conotação social de desvalor tão notória que,
42 As condutas descritas
podem preencher outros tipos de crime
se proferidas num contexto determinado, são objetivamente injuriosas” (Van-Dunem, 2001).
como devassa da vida privada (artigo
192.º do Código Penal) ou crime de
perseguição (artigo 154.º-A do Código
Por fim, ódio fundado no preconceito pode ainda ser valorado, nos termos do artigo
Penal). 71.º, n.º 2, al. c), do Código Penal, no momento em que o julgador procede à operação
70
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
de determinação da medida da pena. Sendo certo que tal possibilidade não apresenta
nenhuma especialidade legislativa relativa aos crimes de ódio, não se deve perder de vista
que se trata de um mecanismo transversal a toda a aplicação do direito penal, estando por
isso apto a fazer refletir nas penas uma especial preocupação com o fenómeno tratado. Na
realidade, independentemente da consagração legal expressa, de forma mais ou menos
óbvia, a larga maioria dos crimes pode envolver motivações raciais43 – no limite, no que
concerne à seleção da vítima do crime.
71
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
No que respeita à natureza dos crimes, por via de regra, esta não surge como uma matéria
suscetível de alimentar divergências doutrinárias ou jurisprudenciais. A arrumação tende
a ser clara no Código Penal: nos casos em que o legislador exige acusação particular,
estamos perante um crime de natureza particular; nos crimes em que o legislador exige a
apresentação de queixa, estamos perante um crime semipúblico; por fim, nos casos em que
o legislador foi omisso, estamos perante um crime público. Esta tripartição seria uma mera
questão teórica não fossem as implicações e ónus que lhe correspondem no processo penal.
Sendo esta uma matéria tipicamente isenta de dificuldades, assim não acontece a propósito
do artigo 155.º, o qual, tal como tivemos oportunidade de abordar desenvolvidamente
supra, por força da al. e) do seu n.º 1, assume relevância em matéria de crimes de ódio. O
referido artigo procede à agravação das penas dos crimes previstos nos artigos 153.º a
154.º-C do Código Penal. Quanto aos crimes dos artigos 154.º-B e 154.º-C a questão não se
colocará uma vez que estes são crimes públicos. Contudo, relativamente aos crimes dos
44 Neste sentido, vide, a
título de exemplo, o Acórdão do Tribunal artigos 153.º, 154.º e 154.º-A, uma vez que estes constituem – ou podem constituir – crimes
da Relação de Coimbra de 10/07/2013
semipúblicos, a dúvida reside em saber se, uma vez agravados por efeito do artigo 155.º,
(Processo n.º 187/11.7GBLSA.C1), o
Acórdão do Tribunal da Relação de assumem a natureza de crimes públicos. Assim entende Paulo Pinto de Albuquerque
Guimarães de 09/05/2011 (Processo
em anotação ao artigo 155.º do Código do Processo Penal (Pinto de Albuquerque, 2015).
n.º 127/08.0GEGMR.G1) e, por fim, o
Acórdão do Tribunal da Relação de Em idêntico sentido se posiciona a jurisprudência maioritária44. Contudo, a respeito
Coimbra de 10/12/2013 (Processo n.º
183/09.4GTFVIS.C1), todos disponíveis
do crime previsto no artigo 153.º do Código Penal, veio o Tribunal da Relação do Porto,
para consulta em www.dgsi.pt. em Acórdão de 13/11/2013 (Processo n.º 335/11.7GCSTS.P1)45, sustentar que estaríamos
45 Disponível para consulta
perante um crime semipúblico. A consequência da falta de queixa num crime em que se
em www.dgsi.pt. venha a entender que a mesma é necessária, por força de uma tomada de posição quanto
72
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
à divergência a que nos referimos, será a falta de legitimidade do Ministério Público para a
ação penal (artigo 49.º do Código de Processo Penal) e, a ter lugar nas fases de julgamento
ou de recurso, consequente absolvição do arguido.
No que tange à constituição de assistente, esta encontra o seu regime geral no artigo 68.º
do Código de Processo Penal, prevendo o n.º 1 do citado artigo a possibilidade de existirem
regimes especiais. Neste sentido, através do artigo único da Lei n.º 20/96, de 6 de julho,
o legislador veio consagrar a possibilidade de, sem necessidade de pagamento de taxa
de justiça, as “associações de comunidades de imigrantes, antirracistas ou defensoras dos
direitos humanos” se constituírem assistentes no processo penal relativamente a “crimes
cuja motivação resulte de atitude discriminatória em razão de raça ou de nacionalidade”.
O legislador recorreu, nesta matéria, a uma técnica legislativa em tudo idêntica àquele a
que lança mão nos artigos 132.º, n.º 2, al. f) e 240.º do Código Penal, determinando quais
os preconceitos relevantes para efeitos de discriminação. De facto, se tivesse optado por
remeter para os motivos de discriminação constantes dos referidos artigos do Código Penal
poderia furtar-se à necessidade de sucessivas alterações legislativas.
73
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
Código Penal na redação que lhe havia sido conferida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de
março, a qual apenas fazia referência à raça. Assim, somos levados a concluir que, a falta de
atualização da Lei n.º 20/96, de 6 de julho, face aos artigos 132.º, n.º 2, al. f), e 240.º, ambos
do Código Penal, mais do que a manifestação de uma tomada de posição do legislador,
coloca em evidência o esquecimento a que tal preceito foi deixado mercê, porventura, da
sua pouca aplicação prática ou da sua inserção sistemática periférica.
André Lamas Leite, sufragando a posição do Tribunal da Relação de Lisboa, afirma que
“de facto, sucede amiudadas vezes que crimes públicos existem em que, para além de uma
dimensão de tipo coletivo, com a mesma importância – ou próxima – se desenha um interesse
digno de tutela penal do específico ofendido que, assim, deve ser admitido na veste processual de
assistente do Ministério Público. E isto não por “magnificência” do Estado, mas pela titularidade
de um direito próprio, porquanto, aquando do desenho típico, terá sido intenção legislativa
reverter (também) para o concreto ofendido uma parte da titularidade do interesse afetado
pelo facto do crime (...) o artigo 240.º configura exatamente um desses casos, visto que, pela sua
própria natureza, é um interesse também pessoal, atinente a aspetos basilares da personalidade
humana e do seu livre desenvolvimento que se protegem, ademais do princípio da igualdade
de que o Estado é guardião” (Lamas Leite, 2012). Neste sentido, será de entender que o artigo
240.º do Código Penal admite a constituição como assistente pela vítima do crime.
No que concerne às medidas de coação e à sua relação com os crimes de ódio, estes,
independentemente do tipo de crime ao qual nos estamos a referir em concreto e que fomos
identificando supra no ponto 9.6.2, pela sua natureza, apresentam uma especial aptidão
47 Disponível para consulta
em www.dgsi.pt. para preencher o requisito consagrado na al. c) do artigo 204.º do Código de Processo
Penal: “perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime (...) de que (...) perturbe
48 Disponível para consulta
em www.dgsi.pt. gravemente a ordem e a tranquilidade públicas”.
74
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
Antes de prosseguir com a exposição cumpre referir como este segmento tem sido
interpretado. Fernando Gama Lobo refere que “antecipa-se aqui uma atitude emocional de
perturbação popular, suscetível de gerar um efeito negativo no meio evolvente, como sejam a
revolta ou intimidação, o que pode atentar contra a paz social” (Gama Lobo, 2015). Maia Costa,
por seu turno, exige a “verificação de circunstâncias particulares que em concreto tornem
previsível a alteração da ordem ou tranquilidade públicas, não bastando a convicção de que
um certo de crimes podem em abstrato causar emoção ou perturbação pública”49.
Por imperativo de honestidade intelectual referimos aqui posição diversa da assumida, deixando
aberta a reflexão sobre a mesma com auxílio de um exemplo retirado da nossa jurisprudência. Paulo
Pinto de Albuquerque, em anotação à al. c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal refere que “a
ordem ou tranquilidade “pública” não é a de um grupo social a que pertence o arguido ou o ofendido,
mas a ordem ou tranquilidade da sociedade em geral” (Pinto de Albuquerque, 2011). Num célebre caso
ocorrido em 1995, o qual viria a ser decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão
de 12/11/1997 (Processo n.º 97P1203)50, um grupo de indivíduos associados a movimentos de extrema-
direita, no Bairro Alto e demais zonas envolventes, agrediram múltiplas pessoas por questões 49 Vide comentário de
Maia Costa in Código de Processo Penal
raciais, vindo a causar a morte de uma das vítimas dessas agressões. Todas as vítimas dessa noite de Comentado (AA.VV.), Coimbra: Almedina,
violência partilhavam características raciais e, nesse sentido, formavam um determinado grupo. 2014, pág. 880.
Contudo, será perfeitamente defensável que um incidente deste tipo será apto a colocar em 50 Disponível para consulta
causa a tranquilidade pública e, por essa via, a sustentar a aplicação de medidas de coação. em www.dgsi.pt.
75
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
Por fim, cumpre fazer breve referência à Lei do Cibercrime – Lei n.º 109/2009, de 15
de Setembro –, a qual no seu artigo 19.º vem proceder a um relevante alargamento do
catálogo da lei que regula a matéria das ações encobertas – Lei n.º 101/2001, de 25 de
Agosto. Esta lei tem o seu âmbito de aplicação delimitado ao conjunto de crimes de
catálogo consagrados no seu artigo 2.º. O artigo 19.º, n.º 1, al. b), da Lei do Cibercrime
admite a realização de ações encobertas relativamente a crimes de “discriminação racial,
religiosa ou sexual” quando estes hajam sido praticados por meio de sistema informático.
Não se deixará de notar que a discriminação surge limitada aos fatores racial, religioso
e sexual, não correspondendo à abrangência do artigo 240.º do Código Penal. Esta
discrepância entre as normas citadas assume relevância determinante no processo penal.
Com efeito, o artigo 19.º, n.º 1, al. b) da Lei do Cibercrime permite que se lance mão de
um meio de investigação restritivo de direitos dos suspeitos/arguidos. Neste sentido,
constitui uma norma de direto processual material que, por ser restritiva de direitos,
não é passível de analogia, aplicando-se o princípio da legalidade criminal (artigo 29.º da
Constituição da República Portuguesa)51.
Quanto a esta lei, importa realçar desde logo que, ao contrário da Diretiva, a mesma não faz
qualquer menção expressa às vítimas de crimes de ódio. Além do mais, a transposição dos
pontos mais relevantes, e acima mencionados, da Diretiva no que toca às vítimas de crime
de ódio merece algumas considerações.
No que diz respeito às necessidades especiais de proteção, a referida lei não consagra o
51 Neste sentido, vide Maria
João Antunes, Direito Processual Penal,
conceito de avaliação individual das vítimas no mesmo sentido que a Diretiva. No sentido
Coimbra: Almedina, 2016, pág. 24. preconizado pela Diretiva, esta avaliação individual tem como objetivo determinar se
76
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
Conforme o exposto, conclui-se que nos casos em que, em sede de atribuição de direitos,
a Diretiva das Vítimas faz expressa menção às vítimas de crime, a transposição feita pela
Lei nº 130/2015 não faz um espelho dessa especial consideração. Talvez tenha perdido
aqui o legislador português uma oportunidade para conferir às vítimas de crime de ódio -
que estão, pelas características dos crimes contra elas cometidos e pelas motivações dos
mesmo, mais suscetíveis e vulneráveis a situações de vitimação secundária e repetida,
intimidação e retaliação como já foi referido - a proteção especial de que carecem.
77
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
78
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
de longos anos de relações laborais marcadas por esse traço, foi reconhecida relevância à
discriminação em função do sexo em momento anterior ao que se viria a verificar no âmbito
do direito penal no qual apenas com a aprovação da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro,
os artigos 132.º e 240.º do Código Penal passaram a atribuir relevância ao sexo enquanto
preconceito relevante para gerar ódio ou discriminação.
Encerrando a análise da Lei 93/2017, de 23 de agosto, merece ainda destaque o seu artigo
56 Com particular interesse
12.º, o qual constitui novidade face às revogadas Leis n.os 134/99, de 28 de agosto, e 18/2004, nesta matéria, cfr. os artigos 39.º, 39.º-A
de 11 de maio. O referido artigo, no seu n.º 1, em solução legislativa próxima da consagrada e 39.º-B da Lei n.º 39/2009, de 30 de
julho.
no artigo único da Lei n.º 20/96, de 6 de julho, quanto à possibilidade de associações
que tenham por finalidade o combate ao racismo ou a defesa dos direitos humanos se 57 Vide artigos 27.º, n.º 2, e
77.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 27/2007, de 30
constituírem assistentes no processo penal, vem abrir a porta, em moldes em tudo de julho.
79
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
Esta inovação poderá ter constituído uma reação legislativa face a uma corrente
jurisprudencial que tem como exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de
03/05/2011 (Processo n.º 3056/10.4TBBCL.G1)58 do qual transcrevemos o sumário:
Esta alteração legislativa veio atribuir legitimidade para que as referidas associações se
possam constituir assistentes no processo de contraordenação, não podendo hoje um juiz
tomar uma decisão nos mesmos exatos termos daquela que ficou transcrita supra. Contudo, o
legislador deixou escapar uma dimensão da maior relevância. As contraordenações previstas
na Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto, são aplicadas, por força do seu artigo 26.º, através do
regime geral do ilícito de mera ordenação social – Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro
–, o qual não prevê a figura do assistente e, por inerência, não pode atribui poderes a um
sujeito processual que não reconhece. Isto dito, fica claro que a inovação contida no artigo
12.º da Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto, é uma mão cheia de um nada processual. As referidas
associações poderão constituir-se assistentes com a certeza de que não disporão de poderes
de conformação processual, ficando assim reduzidas à posição de mero observador.
80
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
O citado autor alude a um problema que supra, a propósito do bem jurídico protegido
pelo artigo 240.º do Código Penal, tivemos oportunidade de referir. Em causa estava a
dificuldade que os autores que defendem que o artigo 240.º do Código Penal visa apenas
tutelar a igualdade consagrada no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa
terão em reconhecer coerência a um ordenamento jurídico que oferece um tratamento dual
– em sede de ilícito penal e contraordenacional – à matéria da discriminação.
Para encontrar alguma coerência sistemática teremos de defender uma de três soluções:
a primeira, criminalizar qualquer ato de discriminação; a segunda, deixar todos os atos
de discriminação para o âmbito do ilícito de mera ordenação social; e, por fim, a terceira,
passa por tratar a discriminação em sede de direito contraordenacional, apenas lhe
reconhecendo relevância penal quando agrida ou coloque em perigo – o que parece ter sido
a solução adotada pelo artigo 240.º do Código Penal – bens jurídico-penalmente relevantes.
Esta era também uma solução avançada a nível europeu ao fazer constar do artigo 1.º, n.º 2,
da Decisão-Quadro 2008/913/JAI do Conselho que os Estados-Membros “(…) podem optar
por punir apenas os atos que forem praticados de modo suscetível de perturbar a ordem
pública ou que forem ameaçadores, ofensivos ou insultuosos”. Lembremos a lição de Paulo
Pinto de Albuquerque que, a propósito do bem jurídico protegido pelo artigo 240.º, refere
“os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a igualdade entre todos os cidadãos, a
integridade física, a honra e a liberdade de outra pessoa”(Pinto de Albuquerque, 2015).
De acordo com o critério apresentado para diferenciar a discriminação que deva ser tratada
no âmbito do direito penal e do direito contraordenacional, propomos como reflexão final, no
plano de iure condendo, a questão de saber se o crime de recusa de médico previsto no artigo
284.º do Código Penal não consubstanciará um dos exemplos em que a realização da conduta
prevista no tipo motivada por intenção discriminatória traduz uma tal censurabilidade ou
intensidade da ilicitude que devesse levar à agravação da pena ou qualificação do crime.
No exemplo que trazemos à reflexão, à conduta já é atribuída relevância penal por força do
artigo 284.º do Código Penal. Assim, dúvidas não se levantariam quanto ao cumprimento
59 Paulo Pinto de
da exigência que referimos anteriormente segundo a qual, para ser atribuída relevância Albuquerque, em anotação ao artigo
penal à tutela do bem jurídico igualdade, esta teria de surgir associada a outro bem jurídico 284.º do Código Penal, afirma “os bens
jurídicos protegidos pela incriminação
penalmente relevante59. Depondo em favor da especial censurabilidade da conduta do médico são a vida e a integridade física de outra
que pratica atos discriminatórios surgem o artigo 4.º, n.º 5, do Código da Deontológico da pessoa.”, Comentário do Código Penal – à
luz da Constituição da República e da
Ordem dos Médicos – aprovado pelo Regulamento n.º 707/2016, de 21 de julho – e artigo 135.º, Convenção Europeia dos Direitos do
n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Médicos – aprovado pela Lei n.º 117/2015, de 31 de agosto, os Homem, 3.ª Edição atualizada, Lisboa:
Universidade Católica Portuguesa, 2015,
quais proíbem a discriminação no âmbito do exercício profissional da medicina. pág. 1012.
81
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
Deve sublinhar-se, igualmente, que aqueles que defendem a autonomização dos crimes de
ódio e a atribuição de sentenças mais pesadas aos seus autores, afirmam que este é um passo
necessário para responder ao mais gravoso impacto que os crimes de ódio têm nas vítimas do
que os restantes crimes, acrescentando que para além de afetarem mais significativamente
as vítimas, estes crimes afetam também o grupo ao qual a vítima pertence.
A autonomização dos crimes de ódio na lei penal permite, por outro lado, uma mais adequada
recolha de dados para posterior análise estatística. Uma correta recolha de dados permite
dar visibilidade à verdadeira dimensão dos crimes de ódio em cada país, o que possibilita
uma correta distribuição de recursos no âmbito do treino de profissionais e investigações de
crimes de ódio, assim como na prevenção de e sensibilização para este fenómeno.
82
Enquadramento legal PARTE 1 — COMPREENDER
Apesar destas aparentes vantagens, não podem deixar de ser realçadas algumas
desvantagens ou dificuldades que podem resultar da autonomização dos crimes de ódio.
Em primeiro lugar, deve referir-se a dificuldade em provar a intenção do agente. Uma das
maiores dificuldades das autoridades de investigação criminal e dos tribunais tem sido, no
âmbito de casos de crimes de ódio, inferir e provar, através do comportamento do/a autor/a
do crime, algo que está reservado apenas ao íntimo de quem praticou um ato contrário à lei.
Para além da dificuldade acima descrita, a autonomização dos crimes de ódio apresenta
uma outra desvantagem que pode, simultaneamente, ser vista como um argumento
favorável à simples consideração do ódio motivador do crime como circunstância
agravante do mesmo. A autonomização dos crimes de ódio implica a verificação do
ódio como fundamento do ato e exige a prova desta motivação cuja falta levará ao não
preenchimento dos requisitos legalmente exigidos para condenação – resultando na não
acusação do/a arguido/a ou na sua absolvição. Por outro lado, caso o ódio seja encarado
como circunstância agravante, na eventualidade de não se conseguir provar a intenção
discriminatória ou o ódio do agente, este poderá ser punido apenas pelo crime principal,
não se recorrendo à agravação da pena concretamente aplicável. Assim, não se colocará em
risco a acusação e eventual condenação do arguido.
Para além das vantagens que podem ser a contrario inferidas do exposto no parágrafo
anterior, o facto de o ódio motivador de um crime ser considerado como uma “mera”
circunstância agravante apresenta algumas vantagens, destacando-se o facto de
as circunstâncias agravantes poderem ser aplicadas à maioria dos crimes previstos
e punidos pela lei penal, neutralizando-se o perigo potencialmente causado pela
autonomização da criminalização dos crimes de ódio que passa por serem deixados de
fora condutas importantes por ser impossível autonomizar todas os tipos criminais que os
comportamentos motivados por ódio podem constituir.
83
PARTE 1 — COMPREENDER
Enquadramento legal
6
crime caso decida acusá-lo/a pela prática de um crime para o qual não se prevê agravação
determinada pelo ódio. Por fim, a inexistência de mecanismos de registo da possível
motivação baseada no preconceito contra a vítima e a insuficiente investigação desta
motivação podem conduzir os tribunais a não fazer uso dos seus poderes de ponderação do
motivo aquando da determinação concreta da pena.
Conclui-se, assim, a lista de vantagens e desvantagens das possíveis opções que o legislador
penal pode tomar em matérias de crimes de ódio. Como foi referido anteriormente,
não é esta a circunstância adequada para a tomada de posição por parte dos autores,
pretendendo-se apenas chamar à atenção do leitor acerca dos contornos da problemática
que tem vindo a criar e alimentar muitos debates académicos e práticos no âmbito dos
crimes de ódio.
84
PARTE 2 — PROCEDER
Contactar e interagir com vítimas PARTE 2 — PROCEDER
de crimes de ódio 1
Para além da vitimação primária resultante diretamente do ato criminoso, uma vítima
de crime de ódio poderá sofrer vitimação secundária (ou dupla vitimação) na relação que
estabelece com o sistema jurídico-penal (forças policiais, sistema judicial, etc.), sistema
de saúde, meios de comunicação social, entre outros (Herek & Berril, 1992). Neste sentido,
importa que os técnicos e profissionais que apoiam este tipo de vítima minimizem a
possibilidade de ocorrência de vitimação secundária, estabelecendo um contacto com a
vítima que seja adequado às suas reais necessidades numa ótica de compreensibilidade das
características que a definem e que poderão ter sido o motivo da ofensa.
87
PARTE 2 — PROCEDER
Contactar e interagir com vítimas
1 de crimes de ódio
Não emitir juízos de valor: Os profissionais deverão sempre aceitar as vítimas tal qual
estas são, sem emitir juízos de valor sobre qualquer das suas características, dos seus
comportamentos ou da sua experiência, respeitando a sua dignidade.
CONHECIMENTO COMPETÊNCIA
CONSCIÊNCIA
88
Contactar e interagir com vítimas PARTE 2 — PROCEDER
de crimes de ódio 1
Para se ser um bom ouvinte, deve ter-se em atenção certos comportamentos verbais e
não-verbais. É importante minimizar elementos de distração e interrupções, demonstrar
abertura e não emitir juízos de valor, incentivar a vítima a expressar-se livremente, dar
sinais claros (verbais e não-verbais) de que se está a prestar atenção ao que a vítima diz,
fazer perguntas claras e abertas focadas no que é importante para a vítima. A escuta
ativa e empática implica, quando lidamos com vítimas de crimes de ódio e violência
discriminatória, alguma humildade por parte da/o profissional, para estar consciente das
suas próprias limitações e necessidades e circunstâncias específicas da vítima, o que exige
atenção a aspetos de comunicação verbal e não-verbal, e informar-se previamente sobre
questões que possam ser relevantes na interação com vítimas que pertençam a certos
grupos sociais com cujos códigos não esteja tão familiarizada/o (Chahal, 2016).
89
PARTE 2 — PROCEDER
Contactar e interagir com vítimas
1 de crimes de ódio
exemplo, sem cruzar os braços ou sem virar as costas à vítima); estabelecer contacto
visual apropriado, demonstrando interesse e atenção à sua experiência, tendo contudo
sensibilidade para não o forçar sempre que a vítima demonstre desconforto ou evitamento
do mesmo; postura corporal e expressão facial naturais e relaxadas mas atentas à vitima,
não aparentando estar distraída/o.
Finalmente, como com qualquer vítima de qualquer tipo de crime, utilizar acenos e sorrisos
ajudam a demonstrar que a/o profissional empatiza com a vítima, ajudando a validar as suas
emoções e sentimentos. Deve, contudo, evitar-se generalizações, falsas esperanças, clichés e
expressões estereotipadas (tais como “eu sei como se sente” ou “compreendo a sua posição”).
É então recomendado (adaptado de CIG, 2016) que, ao contactar e interagir com vítimas
LGBTQ+, se tenha em atenção que, entre outros aspetos:
90
Contactar e interagir com vítimas PARTE 2 — PROCEDER
de crimes de ódio 1
Para efeitos de procedimentos legais (por exemplo, encaminhamento para casa de abrigo),
é a identidade legal que deverá prevalecer, muito embora a vítima possa ser referida com o
género oposto caso seja esta a sua vontade, e sê-lo-á necessariamente no contacto que com
ela se estabeleça diretamente.
91
PARTE 2 — PROCEDER
Contactar e interagir com vítimas
1 de crimes de ódio
1.4. Boas práticas de como contactar e interagir com vítimas com deficiência
Muito embora a aquisição de conhecimentos sobre as especificidades e cuidados no
contacto com vítimas com deficiência intelectual seja essencial para a prática diária
de técnicos de apoio à vítima, forças policiais ou outras entidades que apoiem vítimas
de crime, devido à complexidade do fenómeno e à multiplicidade de fenótipos que a
deficiência intelectual poderá adotar (variando da dependência total à dependência
mínima de terceiros), este tema não será abordado no presente manual. Contudo, como
indicação genérica e básica, será desde logo importante compreender que se deve agir com
naturalidade ao dirigir-se a uma pessoa com deficiência cognitiva ou intelectual, tratá-la
com respeito e consideração e de acordo com a sua idade, não a infantilizando (SNPD, 2015).
Para melhor compreender como interagir com estas vítimas, sugere-se, a título de exemplo,
a consulta dos seguintes recursos em língua inglesa, os quais abordam boas práticas no
contacto e interação com vítimas de deficiência intelectual:
No caso de pessoas com deficiência visual, é importante ter em atenção que as pessoas
necessitam de tocar nos objetos e nas pessoas de forma a identificar o que as rodeia e
necessitam de uma descrição específica do ambiente ao seu redor de forma a conseguirem
deslocar-se de forma mais segura, conhecendo o caminho e evitando os obstáculos
92
Contactar e interagir com vítimas PARTE 2 — PROCEDER
de crimes de ódio 1
(Domingues & Carvalho, 2014). Por exemplo, para ajudar a sentar-se uma pessoa com
deficiência visual que manifeste precisar de ajuda para se deslocar, a/o técnica/o de apoio à
vítima, deverá guiá-la até à cadeira, colocar a sua mão sobre a mesma, informar se esta tem
braço ou não e deixar que a pessoa se sente sozinha.
Também é importante ter em atenção a iluminação, porque certos contrastes especiais permitem
às pessoas com deficiência visual um maior grau de autonomia (Domingues & Carvalho, 2014).
Ao explicar direções a uma pessoa com deficiência visual deverá indicar-se as distâncias em metros.
Ao responder a uma pessoa com deficiência visual (total ou com visão muito reduzida),
deverá evitar-se usar gestos, acenar com a cabeça ou apontar. Sempre que necessitar de
se afastar do local, o interlocutor deverá avisar a pessoa com deficiência visual pois esta
poderá não se aperceber da sua saída.
Os cães guia têm a responsabilidade de guiar o seu dono, por isso não devem ser distraídos,
acariciados ou alimentados sem o consentimento do mesmo.
Também é necessário acautelar outros tipos de apoio como auxílio no transporte de bagagem,
assistência para a pessoa se transferir da cadeira de rodas para outro sítio, apoio para ultrapassar
diversos obstáculos e respeito pelo ritmo das pessoas (Domingues & Carvalho, 2014).
Antes de tentar ajudar, é importante perguntar à pessoa se precisa de ajuda e como deve
fazê-lo. Também se deve ter atenção ao facto de que uma cadeira de rodas, bem como
93
PARTE 2 — PROCEDER
Contactar e interagir com vítimas
1 de crimes de ódio
bengalas e muletas, quando utilizadas, funcionam como uma extensão do corpo da pessoa e
por isso é necessário respeitar esse espaço e não as movimentar sem a sua autorização.
Pode tornar-se incomodo e cansativo para uma pessoa em cadeiras de rodas olhar muito
tempo para cima por isso deve-se colocar-se ao mesmo nível que esta, por exemplo,
sentando-se.
Quando iniciar um diálogo com alguém, lembre-se de virar a cadeira de frente para que a
pessoa também possa participar no diálogo.
Entre outros, deverá ter os seguintes cuidados ao deslocar uma pessoa em cadeira de rodas:
• Ter cuidado com os pés e braços da pessoa sobretudo em locais estreitos ou de difícil acesso;
• Para subir degraus, deve inclinar a cadeira de rodas para trás de modo a levantar as
rodas da frente e apoiá-las sobre a elevação;
• Para descer um degrau, é mais seguro fazê-lo de trás;
• Para subir ou descer mais que um degrau em sequência, é importante procurar a
existência de rampas, caso essas não existam, é melhor pedir a ajuda de mais uma
pessoa para realizar a tarefa.
Caso a pessoa que se move com recurso a bengalas ou muletas caia, deve oferecer ajuda mas
não executá-la de imediato sem saber como deve fazê-lo, por isso deverá questionar-se a
pessoa primeiro sobre a necessidade de ajuda e de como o fazer da forma mais apropriada.
Pessoas com paralisia cerebral podem ter dificuldades de locomoção, dificuldades para andar,
falar, ou fazer movimentos involuntários com os braços ou as pernas. A paralisia cerebral
não equivale a uma deficiência cognitiva ou intelectual, uma pessoa com paralisia cerebral
tem uma lesão da qual advêm necessidades específicas, na maior parte das vezes tendo
dificuldades ao nível da fala. Como tal, é importante respeitar os seus ritmos e, quando não
compreender imediatamente o que está a dizer, pedir gentilmente que repita (SNPD, 2015).
94
Contactar e interagir com vítimas PARTE 2 — PROCEDER
de crimes de ódio 1
Deverá evitar colocar-se de costas para a luz ( janela, por exemplo), pois dificultará a leitura do rosto.
Fale de forma pausada, pronuncie bem as palavras e mantenha o contacto visual com a
pessoa ao falar-lhe.
Seja expressiva/o ao falar, já que as pessoas com deficiência auditiva não podem ouvir as
mudanças subtis de tom de voz que indicam emoções, pelo que expressões faciais, gestos e
outras formas de linguagem não-verbal são de grande importância.
Nem todas as pessoas são capazes de ler os lábios, visto que só cerca de 15-25% do que dizemos
é de facto visível nos movimentos labiais. Muitas pessoas com deficiência auditiva fazem-se
acompanhar de um intérprete. Nesse caso, dirija-se à pessoa e não ao seu intérprete.
Uma outra forma de ajudar pessoas com deficiência auditiva é ter conhecimento básico de
Língua Gestual Portuguesa, quando a vítima domine esta língua, ou do Código de Sinais
Internacionais, ou então, caso não o possua, procurar arranjar um meio alternativo de
informação e comunicação (Domingues & Carvalho, 2014).
95
PARTE 2 — PROCEDER
Contactar e interagir com vítimas
1 de crimes de ódio
Alguns aspetos que importa reter para promover o contacto e interação adequados com
estas vítimas são:
96
Contactar e interagir com vítimas PARTE 2 — PROCEDER
de crimes de ódio 1
A identidade cultural de alguém, que é aprendida, é formada por aspetos como a etnia, o
género, a idade, as crenças, os valores que aceita. A comunicação intercultural consiste
nas diferentes formas de comunicação verbal e não-verbal entre pessoas com diferentes
origens culturais (Hybels, 2009).
A cultura pode afetar a forma como comunicamos, os tempos ou formas de explicação (mais
ou menos diretos), gestos que consideramos educados ou não, símbolos ou gestos a que
atribuímos significado (por exemplo, olhar diretamente nos olhos de alguém é considerado
sinal de respeito em algumas culturas e noutras visto como intimidador ou até agressivo), e
o nosso próprio comportamento.
É então indispensável compreender que o contacto está a ser realizado com indivíduos
aculturados a determinadas normas sociais. Por outro lado, muito embora acostumadas
com determinadas normas sociais, categorizar uma vítima a um grupo cultural, ignorando
as suas diferenças individuais, poderá ser igualmente prejudicial.
97
PARTE 2 — PROCEDER
Contactar e interagir com vítimas
1 de crimes de ódio
Ao contactar com pessoas com diferentes referentes culturais, importa desde logo ter
a capacidade de assumir as limitações do próprio conhecimento que se tenha à partida
e procurar informação. Mas é também importante não partir de ideias pré-concebidas
que se possa ter ou incorrer em generalizações. Aconselha-se desde logo contactar quem
possa efetivamente explicar alguns códigos de base cultural para obter um conhecimento
genérico das especificidades culturais das comunidades minoritárias mais representativas
do país onde ocorreu o crime.
98
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
O facto de os crimes de ódio terem um impacto tão significativo nas suas vítimas é um dos
motivos para a necessidade de estabelecer procedimentos específicos para o seu apoio.
Uma resposta por parte de um/a técnico/a de apoio à vítima que possa ser desadequada
ou incorrecta, conduzirá a um processo de apoio ineficaz e, na pior das hipóteses, a uma
situação de vitimação secundária, que se reveste de particular gravidade em vítimas já à
partida em situação tão vulnerável.
A organização alemã RAA Sachsen, em parceria com outros parceiros europeus, sugere no
seu Guia Prático sobre Apoio à Vítima de Crime de Ódio na Europa (2016) um conjunto de
princípios básicos no contacto com este tipo de vítimas que deverão fundamentar toda a
intervenção das/os técnicas/os de apoio à vítima:
99
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
2 apoio à vítima – Considerações gerais
verifiquem a sua própria capacidade e conhecimento para lidar com o grupo social
em questão e que construam no atendimento às vítimas um espaço seguro e aberto à
compreensão de dimensões que lhe poderão ser menos familiares. Estar consciente
dos próprios preconceitos relativamente à comunidade a que a vítima pertence (ou
cuja perceção de pertença motivou o crime sofrido) ou aos seus valores culturais,
bem como da sua própria posição social em relação à vítima, e como isso pode afetar
as suas atitudes, é essencial para poder construir uma relação de trabalho baseada
na confiança e no respeito.
Esta dimensão é relevante para melhor compreender como a experiência da vítima pode ser
condicionada por diversos fatores, influenciando inclusivamente os possíveis impactos da
vitimação. A/O técnica/o que apoia uma vítima de crime de ódio deverá compreender, por
exemplo, que:
100
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Esta abordagem centrada na vítima tem como objetivo permitir que a intervenção dos serviços
de apoio com vítimas de crimes de ódio se desenvolva no sentido de (Kees et al., 2016):
101
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
2 apoio à vítima – Considerações gerais
102
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Por outro lado, face à dificuldade de definir o que pode constituir legalmente um crime de
ódio ou, de acordo com a legislação em vigor, que apenas determinados atos constituem
‘crime de ódio’ e que correspondem geralmente às ofensas consideradas mais graves ou mais
extremas, é necessário que a/o técnica/o de apoio à vítima compreenda que podem existir
circunstâncias em que a vítima, não tendo sido escolhida como alvo de um ato premeditado
motivado por preconceito, foi, ainda assim, vítima de atos considerados de menor importância
(no entendimento da lei), mas que não deixam constituir violência discriminatória (Kees et
al., 2016). A este propósito, importa sublinhar que independentemente do enquadramento
legal específico de cada país, é fundamental que se entendam atos de violência de natureza
diversa como possíveis crimes de ódio: violência contra as pessoas – violência física (ofensas
à integridade física, violência sexual, perseguição, homicídio, etc.); violência verbal (ameaças,
afirmações discriminatórias, graffitis ou mensagens, ataques em redes sociais); insultos que
possam não ser verbais (ex.: gestos ofensivos ou utilização de símbolos); violência contra a
propriedade (destruição e/ou roubo de propriedade da vítima e/ou de símbolos sagrados
ou representativos de uma identidade ou grupo, incêndio, etc.) ou qualquer outra forma de
violência que ocorra por motivos discriminatórios.
(Nota: uma lista de indicadores para correta identificação do motivo discriminatório encontra-se no
capítulo Diretrizes para forças policiais: Questionamento e recolha da informação, deste manual).
103
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
2 apoio à vítima – Considerações gerais
Sugerem-se algumas questões que podem facilitar a recolha estruturada de informação relevante
num primeiro atendimento a uma vítima de crime de ódio (Adaptado de OSCE/ODIHR, 2009):
QUEM? VÍTIMA
Dados de identificação da vítima e informações de contacto (pode incluir morada, número de telefone e/ou email da vítima ou de uma
instituição ou pessoa que possa mediar este contacto) – Respeitar a vontade da vítima caso esta deseje permanecer anónima.
PERPETRADOR/A
Qualquer dado de identificação do/a autor/a do crime (nome, morada, local de trabalho, etc.); qualquer sinal distintivo que permita a
identificação do(s) autor(es); informação sobre se foi a primeira vez que foi vítima de um crime desta natureza e, se não, se foi(foram)
o(s) mesmo(s) autor(es) que perpetraram os atos anteriores.
TESTEMUNHAS
Dados de identificação e de contacto de eventuais testemunhas
COMO? Descrição do que aconteceu e do que foi dito (é particularmente importante pedir à vítima que se recorde de insultos ou palavras que
possam ter sido proferidas e da sequência dos acontecimentos); identificar a existência de violência física, uso de armas e/ou destruição
de propriedade
PORQUÊ? Identificar a presença de motivos discriminatórios, seja na perceção da vítima ou em detalhes que esta relate
INTERAÇÃO COM Informação sobre entidades com quem a vítima possa ter tido contacto (autoridades, serviços de saúde, serviços de apoio) e uma
OUTRAS ENTIDADES? pequena descrição deste contacto
A avaliação inicial de risco (e até certo ponto, de impacto) deverá permitir perceber, em
que medida a segurança da vítima poderá estar comprometida, nas seguintes dimensões
(Dunbar, 2001):
104
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Este tipo de avaliação, que poderá ser mais ou menos formal, é essencial para que se
aumente o sentimento de segurança da vítima ao mesmo tempo que se diminui o número de
situações de risco.
• Avaliar a perceção da vítima sobre o motivo pelo qual foi alvo: A vítima considera que
o crime apenas lhe poderia ter acontecido a si ou à sua família? A vítima considera
que o crime poderia ter acontecido a alguém parecida/o ou com características
semelhantes a si, na sua comunidade? Quais são as razões para o considerar?;
• O local onde crime ocorreu: casa, local de trabalho, escola, transporte, online ou num
local específico da comunidade;
• Relação do crime com a atividade profissional da vítima: O incidente está relacionado
com o trabalho que a vítima? Em caso afirmativo – A vítima considera que o crime
afetou a sua capacidade de desenvolver o seu trabalho?;
• Consequências diretas: Que tipo de consequências é que a vítima considera que o incidente
teve sobre si e sobre terceiros (outras vítimas ou vítimas indiretas) - a nível físico; a nível
emocional; a nível material; a nível económico; os outros níveis específicos de cada situação?
• Existência de outros incidentes: A vítima tem conhecimento de outras situações da
mesma natureza que tenham acontecido na mesma zona, na mesma altura e/ou com
vítimas semelhantes?;
• Relação com outros incidentes ou eventos: A vítima considera que o incidente
aconteceu em consequência ou com alguma relação com outros incidentes ou eventos
que tenham acontecido na mesma altura?;
• Utilização de armas e/ou objetos;
• Símbolos específicos: A vítima conseguiu identificar símbolos que possam estar 60 Disponível em: http://
nottscountypb.org/wp-content/
relacionados com ideologias e/ou grupos organizados?; uploads/2016/08/7a.-Risk-Assessment-
• Perceção da gravidade do crime: Qual o grau de gravidade que a vítima atribui ao incidente?; March-2016-28-July-2016.pdf.
105
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
2 apoio à vítima – Considerações gerais
• Relação da vítima com a/o autor/a do crime: A vítima conhece a(s)/o(s) autora(s)/e(s)
do crime? Em caso afirmativo: Como conhece?/ De onde?/Sabe se são pessoas que
vivam na sua área de residência?;
• Outros crimes cometidos pela(s)/o(s) mesma(s)/o(s) autora(s)/e(s): A vítima ou
alguém que a vítima conheça já foi alvo de outros comportamentos violentos por
parte da(s) mesma(s) pessoa(s)? Caso conheça outras vítimas: esta(s) outra(s)
pessoa(s) são da sua rede social (família e/ou amigos) e/ou são alguém que partilhe
de algumas características da vítima (ex.: forma de vestir, etnia, deficiência, etc.)
• Perceção da vítima relativamente à possibilidade de ocorrência de crimes
semelhantes: Em que medida é que a vítima considera que a(s)/a(s) mesma(s)/o(s)
agressora(s)/e(s) ou pessoas com esta(s)/e(s) relacionadas poderão voltar a escolhê-
la ou a outra(s) pessoas como alvo? (poderá ser usada uma escala)
106
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Na altura em que o crime ou ato de violência ocorre, o impacto mais evidente será no bem-
estar físico da vítima, caso tenham existidos agressões físicas que resultem em lesões, mas
também no seu equilíbrio psicológico, sobretudo se o crime for especialmente violento
e resulte em reações físicas e psicológicas intensas relacionadas com stress traumático.
(Craig-Henderson & Sloan, 2003). Por outro lado, os crimes de ódio podem ter consequências
diretas ou indiretas noutras dimensões da vida da vítima: comportamentos, rotinas e
atividades do dia-a-dia; vida social e familiar; condição económica; trabalho e/ou escola.
Assim, sugerem-se alguns aspetos que deverão ser avaliados pela/o técnico/a de apoio à vítima, com vista
a compreender o impacto do crime de ódio na vítima e que permitirão identificar as suas necessidades mais
imediatas (adaptado do questionário de avaliação de risco utilizado pela Nottinghamshire’s Police):
107
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
2 apoio à vítima – Considerações gerais
De forma mais imediata e após a avaliação das questões enumeradas anteriormente, pode
ser necessário (Chahal, 2017):
A/o técnico/a de apoio à vítima deverá auxiliar a vítima a formular um plano de segurança
pessoal que lhe permita lidar melhor com a insegurança provocada pela experiência de vida.
Este plano englobará estratégias de prevenção da violência/revitimação (sabendo como
a prever, estabelecendo comportamentos, premeditar qual a melhor reação a ter, etc.) e
de sobrevivência à violência (como se defender no momento em que está a ser agredida,
para onde fugir, o que deverá trazer sempre consigo, etc.). Nesta matéria os familiares e/ou
amigos poderão propiciar uma colaboração importante pois poderão estar junto da vítima
durante todo o dia, pernoitando com ela e acompanhando-a à rua. A insegurança da vítima
poderá ser real, isto é, pode existir perigo real de ser novamente agredida pelo/a mesmo/a
agressor/a ou pode tratar-se de uma reação psicológica, natural depois do acontecimento
traumático vivido. Em ambas as situações será importante haver um acompanhamento
próximo da vítima (Craig-Henderson & Sloan, 2003).
108
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
• Caso exista a perceção de risco para outros membros da comunidade a/o técnica/o
de apoio à vítima deve ponderar a possibilidade de alertar as autoridades para
necessidade de maior policiamento em determinadas áreas ou relativamente a
grupos específicos (por exemplo adotar medidas de segurança em relação ao grupo
de pertença da vítima ou aos habitantes de um determinado bairro);
• O serviço de apoio à vítima deve estabelecer laços de proximidade e confiança com
outras entidades de relevo na comunidade (serviços de apoio, organizações de
defesa de direitos, associações culturais e/ou religiosas, associações comunitárias
entre outras) e líderes comunitários, com objetivo de:
109
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Uma intervenção imediata com uma vítima de um evento traumático (onde se poderá
inserir um crime de ódio) poderá levar à redução dos sintomas de stress agudo num espaço
de 30 dias após o evento. Pelo contrário, a inexistência de uma ação imediata objetivada à
redução dos sintomas agudos que surjam em consequência do evento traumático poderão
evoluir para um quadro psicopatológico como a Perturbação de Stress Pós Traumático e,
posteriormente, ao risco acrescido de comorbilidade com outras perturbações psicológicas
e psiquiátricas (Moreno et al., 2003).
• Reações psicológicas, tais como choro, pânico, confusão, angústia, vergonha, baixa
111
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
3 apoio à vítima – Apoio psicológico
Estes dois traços definem a negatividade da situação de crise. A intervenção na crise deve, no
entanto, centrar-se na oportunidade de mudança que a situação de crise também comporta.
112
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
113
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
3 apoio à vítima – Apoio psicológico
114
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
115
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
3 apoio à vítima – Apoio psicológico
Tal como é patente no esquema seguinte (adaptado de Esbec, 2000), uma vítima de crime
tente a apresentar diversas reações emocionais e cognitivas que tendem a evoluir com o
tempo, tendo em consideração o momento em que ocorreu o evento (traumático ou não),
a existência ou não de apoio especializado e/ou de redes de suporte social, e ainda de
disposições e perceções individuais:
116
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
- PSICOLÓGICA
- BIOLÓGICA
DANO PSICOLÓGICO
- Perturbações psiquiátricas
- Diminuição da auto-estima
- Sentimentos negativos
- Aumento de sentimento de
vulnerabilidade
- Disfunções sexuais
- Hostelidade de agressividade
- ...
Aquelas que são tidas como reações emocionais e cognitivas “normativas” para quem é
vítima de um crime (por exemplo, a confusão, a perplexidade, a descrença ou a inação – 1 a 3
meses após a ocorrência do evento), poderão perpetuar-se e agudizar-se com a passagem
do tempo, evoluindo, por exemplo, para sentimentos mais intensos de raiva, dor, impotência,
profundo abatimento ou mesmo experiências mais ou menos frequentes de revisitação
mental do evento (flashbacks). Um acontecimento pode transformar-se em trauma em
situações em que a vítima demonstre incapacidade para controlar a situação, atribuindo-
lhe uma elevada valência negativa. Neste momento, e alimentado por inexistência
117
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
3 apoio à vítima – Apoio psicológico
Tão importante quanto a recolha de informação sobre a história de vitimação, a recolha de dados
sobre o funcionamento psicológico da vítima assegura o sucesso das estratégias de apoio a esta.
São reconhecidos os elevados níveis de mal-estar psicológico experienciado por vítimas de crimes
de ódio comparativamente a vítimas de outros crimes violentos (Herek, Gillis, & Cogan, 1999;
McDevitt, Balboni, Garcia, & Gu, 2001). A avaliação do mal-estar psicológico deverá basear-se
entrevistas integrais ou partes destas que possam ser administradas; e/ou questionários de
autorrelato com boas características psicométricas e validados para o seu país de origem (ou para
populações provenientes de países com grande representatividade no seu país), ao nível de:
• Depressão
• Perturbações de ansiedade
• Perturbação de Stress Pós Traumático
118
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
A/o técnica/o que presta apoio psicológico deve ter sempre presente que o facto de os
crimes de ódio serem dirigidos a características identitárias da vítima leva a um conjunto de
consequências em termos de impacto psicológico e emoções, que não são as mesmas que
vítimas de outro tipo de crimes experienciam (Craig-Henderson & Sloan, 2003):
Assim, de entre prolemas mais específicos, o técnico deverá estar preparado para intervir
no sentido de:
119
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
3 apoio à vítima – Apoio psicológico
Será ainda necessário compreender que é frequente que as vítimas de crimes de ódio
experienciem sentimentos de frustração e desapontamento, sobretudo no que está
relacionado com o sistema de justiça e procedimentos criminas, que muitas vezes
não correspondem às suas expectativas ou que são em si mesmos discriminatório e
revitimizadores. Assim, pode ser necessário que o técnico empatize com estes sentimentos
e que em certa medida os apoie, mantendo um limite claro no sentido de não deixar que
estes cresçam demasiado e se tornem negativos para o processo de recuperação da vítima,
impedindo a procura de estratégias construtivas.
120
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
• Construir uma relação de confiança: É natural que as vítimas tenham alguma dificuldade
inicial e não se sintam confortáveis para relatar os detalhes da sua experiência. É
importante demonstrar empatia, compreensão e paciência. É ainda importante ter alguma
familiaridade com a realidade da vítima (cultural, sexual, étnica, religiosa) e não demonstrar
nenhum tipo de estranheza que a vítima possa interpretar como preconceituosa ou
discriminatória. O técnico deve fazer a vítima sentir-se segura na sua companhia.
• Psicoeducação: Disponibilizar materiais informativos (sobre a incidência dos crimes
de ódio, tipos de incidentes mais comuns, perfis dos perpetradores, psicologia do
preconceito e da discriminação, impacto e reações das vítimas) e ajudar a vítima a
compreendê-los e a refletir sobre a sua experiência
• Reflexão sobre as implicações legais e opções: é importante que as vítimas sejam
informadas sobre a forma como os crimes de ódio e a violência discriminatória são
enquadrados legalmente e que tipo de opções têm. Embora não caiba ao técnico que
presta apoio psicológico dar apoio jurídico, poderá ainda assim ajudar a vítima a
explorar as suas opções.
• Estabelecimento de redes de suporte: As vítimas de crime de ódio podem
experienciar sentimentos de isolamento e alienação, sobretudo se sentirem
“diferentes” ou “distintos” da sua família e amigos. A/o técnica/o de psicologia pode
ajudar a que a vítima se volte a sentir integrada socialmente. O encaminhamento
para grupos de apoio pode ser adequado em algumas situações, uma vez que a vítima
tem a possibilidade de partilhar a sua experiência com pessoas que sofreram algo
semelhante, o que ajuda a naturalizar os seus sentimentos. Poderá ainda fazer sentido
encaminhar a vítima para entidades/associações com um papel na luta contra os
crimes de ódio. Esta forma de recuperação promove o empoderamento da vítima, que
toma um papel ativo na prevenção dos crimes de ódio e proteção da comunidade.
• Revisitar o crime/incidente de ódio: É importante que a vítima consiga revisitar
a memória do incidente. Este processo pode ser particularmente doloroso, mas é
uma parte essencial do processo de recuperação pós-vitimação. A/o profissional
pode ajudar a vítima incentivando-a a relatar o incidente ou mesmo a ouvir histórias
de experiências semelhantes por outras pessoas, em grupos de partilha. Estes
processos devem acontecer sempre com a livre participação da vítima, com extrema
precaução por parte da/o técnica/o, que deve assegurar a vítima que se a experiência
se tornar muito dolorosa, deverá parar.
121
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
3 apoio à vítima – Apoio psicológico
122
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
A/o técnica/o de apoio à vítima ter informação sobre as entidades mais adequadas para
prestar apoio psicológico e/ou psiquiátrico especializado e apoiar a vítima no contacto a
agendamento de um atendimento. Caso exista algum protocolo de referenciação com a
entidade de apoio especializado, a/o técnica/o de apoio à deverá informar a vítima, solicitando
a sua autorização para a referenciação e partilha de informação com outros profissionais.
123
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Quando enquadrado nos ‘crimes de ódio’ ou ‘violência motivada pelo ódio’, o motivo adquire
uma conotação emocional de difícil prova e que, por vezes, dificulta todo o processo judicial.
Acresce que o autor do crime pode agir por ressentimento, ciúme ou desejo de aprovação
social pelos pares, e não necessariamente por ‘ódio’. Deste modo, é essencial que o Técnico
de Apoio à Vítima detenha conhecimento sobre o enquadramento jurídico nacional e
demais instrumentos legais comunitários e internacionais que consubstanciam o regime
jurídico aplicável, incluindo legislação complementar e avulsa. Não de menor importância,
e considerando que determinados crimes poderão constituir um crime de ódio ou atos de
violência discriminatória, de elevado impacto psicológico e social, não previsto na lei, é a
sensibilidade do TAV para a identificação do motivo de ódio, com base no preconceito e/ou de
cariz discriminatório que decorre da perceção da própria vítima, fruto de características ou
circunstâncias em que o crime ocorreu ou por algo que o(a) próprio(a) autor(a) do crime ou
ato de violência transmitiu (palavras que proferiu, roupa ou símbolos que trazia consigo, etc.).
É ainda essencial que o TAV tenha presente as várias etapas do processo-crime e em que
medida poderá informar e apoiar a pessoa vítima de crime de ódio em cada uma das fases
do processo e sobre os direitos que lhe assistem enquanto vítima de crime.
125
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
4 apoio à vítima – Apoio jurídico
Transposta para os ordenamentos jurídicos nacionais, a Diretiva das Vítimas vem recentrar
a vítima e as suas necessidades individuais de apoio e proteção no seu percurso pelo sistema
de justiça penal, enfatizando o dever dos Estados em proteger as vítimas de crime, seus
familiares e amigos de vitimação secundária ou repetida, de intimidação ou retaliação. A
Diretiva vem ainda reforçar o papel essencial das organizações de apoio à vítima, quer no seu
papel complementar, ou em substituição do próprio Estado, na garantia de acesso a serviços
de apoio, qualificados, gratuitos e confidenciais, quer enquanto catalisadores de um exercício
efetivo e informado dos direitos por parte das vítimas de crime.
Pese embora alguns dos direitos consagrados na Diretiva sejam de especial relevo para
as vítimas de crimes de ódio e de violência discriminatória, é importante que haja um
conhecimento completo dos vários direitos que este instrumento abriga.
126
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
— que tipos de apoio pode obter e quem os pode prestar, designadamente assistência
médica, acompanhamento psicológico, apoio especializado e, sempre que se
justifique, acolhimento;
— como e onde pode apresentar queixa ou denunciar um crime;
— como e em que circunstâncias pode requerer medidas de proteção;
— de que forma pode obter aconselhamento jurídico ou apoio judiciário;
— como e em que circunstância poderá requerer indemnização por parte do/a autor/a
do crime;
— caso se trate de um crime violento ou de um crime de violência doméstica, como e em
que circunstâncias pode requerer um indemnização do Estado;
— caso a vítima não domine a língua dos procedimentos ou seja portadora de
deficiência, como pode beneficiar de serviços de interpretação e de tradução;
— caso não resida no Estado-Membro em que o crime ocorreu, que procedimentos
existem para que possa exercer os seus direitos nesse país;
— caso as autoridades não respeitem os direitos da vítima, onde poderá esta dirigir-se
para apresentar uma reclamação;
— quais os contatos que deve utilizar para obter ou acrescentar informação sobre o processo;
— quais os serviços de mediação disponíveis;
— como e em que circunstâncias pode requerer reembolso das despesas que resultem
da sua participação no processo.
No que concerne o processo-crime, a vítima tem direito a receber informação caso haja
lugar a arquivamento ou seja proferida decisão de não acusação do/a arguido/a. Caso seja
deduzida acusação, a vítima tem direito a receber informação sobre o teor da mesma bem
como sobre o dia, hora e local do julgamento.
Caso a vítima seja parte civil ou se tenha constituído assistente no processo, tem direito
a ser informada sobre o estado do processo ou sentença, salvo em casos que tal possa
perturbar o bom desenvolvimento do mesmo ou em que o segredo de justiça o impeça. Na
127
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
4 apoio à vítima – Apoio jurídico
eventualidade de a vítima não desejar obter informações sobre o estado do processo, tem
direito a solicitar não ser informada, à exceção de quando o seu papel no processo (seja
parte civil ou assistente) exija a sua notificação para que possa prosseguir com a defesa dos
seus direitos e interesses.
128
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
129
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
4 apoio à vítima – Apoio jurídico
é arquivado. No cado de haver lugar à prática de vários crimes, pode o/a arguido/a vir a ser
indiciado apenas relativamente a algum/alguns do(s) crime(s), sendo o processo arquivado
para o(s) restante(s). Nesta circunstância e caso a vítima discorde da decisão, tem direito a
apresentar um requerimento ao/à juiz/juíza de instrução, solicitando a abertura de instrução.
Em Portugal, o prazo para o requerimento é de 20 dias contados a partir da notificação de
decisão por parte do Ministério Público e é necessário que a vítima se constitua assistente para
o fazer. Pode ainda a vítima requerer a reapreciação de prova ou continuação da investigação,
podendo, neste caso, apresentar nova(s) prova(s). Neste último caso, em Portugal, a vítima
dispõe de 20 dias a contar da data de abertura de instrução já não possa ser requerida para
solicitar aquela intervenção, não necessitando, para tal, de se constituir assistente.
130
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Assim, a vítima tem direito a consulta jurídica e aconselhamento sobre o seu papel em sede
de processo-penal. Caso a vítima seja constituída assistente ou seja parte civil, ou quando
pretenda ser acompanhado/a por advogado e não disponha de meios financeiros para tal,
tem direito a apoio judiciário, que pode consistir em:
131
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
4 apoio à vítima – Apoio jurídico
No caso de Portugal, a indemnização dever ser pedida no âmbito do processo-crime. Para tal,
terá a vítima que informar o Ministério Público, em fase de inquérito, que pretende apresentar
pedido de indemnização e pode fazê-lo, por exemplo, quando vai prestar declarações.
132
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Nos casos de crimes sexuais, não tem que se verificar a incapacidade permanente ou temporária
absoluta de pelo menos 30 dias. Esta exceção justifica-se pelo facto de, muito embora aquele
tipo de crimes não causar, em regra, uma incapacidade para o trabalho de pelo menos 30 dias, se
justificar ainda assim a atribuição de uma indemnização, devido à gravidade do crime.
O pedido de indemnização pode ser apresentado até um ano a partir da data do crime ou, se houver
processo criminal, até um ano após a decisão final deste. A vítima que à data do crime fosse menor
pode apresentar o pedido até um ano depois de atingida a maioridade ou de ser emancipada.
O pedido está isento do pagamento de quaisquer custas ou encargos para a vítima, podendo
inclusivamente os documentos e certidões necessárias para este pedido ser obtidos gratuitamente.
O pedido é enviado para a Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes. Deve ser apresentado
em formulário próprio, disponível, por exemplo, nas instalações daquela comissão, nos
Gabinetes de Apoio à Vítima da APAV e na internet. Deve juntar-se ao requerimento uma
133
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
4 apoio à vítima – Apoio jurídico
O montante das prestações mensais não pode ser superior ao salário mínimo nacional. É
atribuído durante três meses, podendo ser prolongado por mais três e, em situações de
especial carência, por mais seis meses, no máximo excecional de 12 meses.
Sempre que as autoridades considerem que existe uma ameaça séria de atos de vingança
ou fortes indícios de que a segurança e a privacidade da vítima podem ser grave e
intencionalmente perturbadas, deve ser assegurado a esta, bem como à sua família ou
outras pessoas próximas, um nível adequado de proteção.
Caso a vítima, por razões de segurança ou privacidade, não pretenda indicar no processo
a morada da sua residência, tem o direito de optar por dar outro endereço no qual possa
receber notificações, como por exemplo o do seu local de trabalho ou o do Gabinete de
Apoio à Vítima da APAV no qual está a ser acompanhada.
A proteção e segurança das vítimas pode ser acautelada através da aplicação ao arguido de
uma ou mais medidas de coação. Medida de coação é uma restrição à liberdade do arguido,
que pode ser aplicada no decurso do processo-crime caso se verifique perigo de fuga,
perigo para a obtenção e conservação da prova do crime, perigo para a ordem pública e/ou
perigo de continuação da atividade criminosa.
134
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Caso considere que a aplicação de uma medida de coação é a forma adequada de garantir
a sua proteção, deve a vítima de crime expor a situação e solicitar a aplicação daquela. A
autoridade a quem esta exposição deve ser feita varia consoante a fase do processo em que
se esteja: ao Ministério Público durante a fase de inquérito, ao juiz de instrução durante a
fase de instrução ou ao juiz de julgamento durante a fase de julgamento.
Sempre que o juiz o considere necessário a vítima deve ser ouvida em caso de revogação ou
substituição das medidas de coação.
Sempre que a vida da vítima ou de outra testemunha, a sua integridade física ou psíquica, a
sua liberdade ou bens patrimoniais seus de valor consideravelmente elevado sejam postos
em perigo por causa do seu contributo para a investigação e prova do crime, aquelas podem
requerer a aplicação de meios de proteção.
— ocultação: pode o tribunal decidir, com base em circunstâncias que indiciem elevado
risco de intimidação da testemunha, que a prestação de declarações que deva ter lugar
em ato processual público decorra com ocultação da imagem, cumulativamente ou não
com distorção da voz, de modo a evitar-se o reconhecimento da testemunha.
— teleconferência: relativamente aos crimes mais graves, e sempre que fortes razões
de proteção o justifiquem, é admissível a utilização da teleconferência, isto é, a
testemunha não vai prestar o seu depoimento na sala de audiências mas sim a partir
135
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
4 apoio à vítima – Apoio jurídico
Privacidade
A vítima e seus familiares têm direito à privacidade durante o processo-crime.
O facto de o processo ser público não significa que também o sejam os dados relativos à
vida privada da vítima que não constituam meios de prova.
Para além disso, a comunicação social não pode, antes da sentença, divulgar peças
processuais ou documentos do processo, a não ser que para tal tenha autorização por
parte da autoridade judiciária. Também não pode transmitir imagens ou som de um ato
processual, designadamente o julgamento, a não ser que o juiz o permita e que não haja
oposição por parte de algum dos intervenientes.
Em processos por crimes sexuais ou por tráfico de pessoas, o público não pode assistir aos atos
processuais. Nestes processos, bem como nos por crimes contra a honra ou contra a reserva da
vida privada, os meios de comunicação social não podem publicar a identidade das vítimas.
136
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Pese bem embora muitos tribunais não estejam ainda preparados nem detenham
condições para assegurar plenamente este direito, sempre que a vítima tiver fundadas
razões para querer evitar o contacto com o arguido, deve exigir que, dentro do possível, lhe
seja disponibilizada uma porta alternativa para entrada e saída, bem como um espaço de
espera diferente do utilizado pelo arguido e familiares.
Esta vulnerabilidade deve ser avaliada caso a caso, mas deve ser dada particular atenção a vítimas
que sofreram um dano considerável devido à severidade e gravidade do crime, como sejam as
vítimas de crimes motivados por discriminação baseada em características pessoais desta, como
é o caso das vítimas de crimes de ódio e violência discriminatória e as vítimas cujo relacionamento
e dependência face ao autor do crime as torne particularmente vulneráveis. Consequentemente,
carecem de especial cuidado as vítimas de terrorismo, de crime organizado, de tráfico de pessoas,
de violência de género, de violência no âmbito de relações de intimidade, de violência sexual e
de crimes de ódio. Independentemente do tipo de crime sofrido, as crianças, as pessoas idosas
e as pessoas debilitadas por doença ou portadoras de deficiência devem ser particularmente
consideradas aquando da avaliação da especial vulnerabilidade.
Quando num determinado ato processual deva participar vítima especialmente vulnerável,
137
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
4 apoio à vítima – Apoio jurídico
Todas estas medidas podem também ser aplicadas a testemunhas que, de acordo com os
critérios atrás referidos, possam ser consideradas particularmente vulneráveis.
138
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Direitos de quem é vítima num país da União Europeia que não o da sua residência sofrer
um crime num país estrangeiro coloca a vítima numa situação de especial vulnerabilidade,
devido ao desconhecimento dos procedimentos judiciais e dos recursos de apoio disponíveis, às
dificuldades de compreensão de outra língua e à normalmente curta permanência no país em que
o crime foi cometido, o que dificulta a sua participação e acompanhamento do processo.
Quem sofre um crime num país que não é o da sua residência deve beneficiar das
medidas adequadas ao afastamento das dificuldades que surjam em razão deste facto,
especialmente no que se refere ao andamento do processo penal, designadamente
através da prestação de todas as informações necessárias por parte das autoridades e da
nomeação de intérprete que garanta a total compreensão das diligências em que participe.
É assegurado à pessoa residente num país da União Europeia que tenha sofrido um crime
noutro país da União Europeia a possibilidade de apresentar denúncia junto das autoridades
do seu país de residência, sempre que não o tenha feito no país onde foi cometido o crime,
caso em que as autoridades do país de residência da vítima devem transmiti-la prontamente
às autoridades competentes do território onde foi cometido o crime.
Na União Europeia, a vítima de um crime ocorrido num país que não o da sua residência
beneficia da possibilidade de prestar declarações imediatamente após ter sido cometido o
crime. Em Portugal, a vítima que resida noutro país pode prestar declarações para memória
futura, isto é, declarações que possam ser utilizadas como prova no julgamento, evitando-
se assim que a vítima tenha que voltar a Portugal.
Contudo, caso seja necessário voltar a ouvir a vítima e esta já não se encontre no país
em que ocorreu o crime, tal deverá ser feito através de conferência telefónica ou de
videoconferência a partir do país de residência da vítima.
A vítima de um crime violento praticado num Estado Membro da União Europeia que
tenha a sua residência habitual noutro Estado Membro poderá apresentar o seu pedido
de indemnização perante a autoridade do seu Estado de residência com competência
para apreciar e decidir sobre este tipo de pedidos. Esta autoridade deverá transmitir o
pedido à autoridade do Estado em que ocorreu o crime com competência nesta matéria.
Em Portugal, a autoridade com competência quer para receber pedidos de pessoas que
residem noutros países e que foram vítimas de crime em Portugal, quer para encaminhar
pedidos de residentes em Portugal que foram vítimas de crime noutros países da União
Europeia é a Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes.
139
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Vários são os propósitos que podem ser apontados ao trabalho social, nomeadamente:
O apoio social, no contexto do apoio a vítimas de crime em geral e das vítimas de crime de ódio
em particular, tem como objetivo a defesa e promoção dos direitos humanos e de expressão
social. Visa a promoção do bem-estar de indivíduos, grupos e comunidades afetados pela
violência/crime, identificando e dinamizando os recursos que satisfaçam as necessidades
individuais e coletivas precipitadas pelo crime/violência sofrida. Em relação a esta matéria,
veja-se informação sobre o impacto nas vítimas diretas e indiretas, na parte I deste Manual.
141
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
5 apoio à vítima – Apoio social
Para o sucesso da intervenção junto da vítima de crime de ódio, o/a técnico/a de apoio à
vítima necessita de conhecer e dominar o enquadramento teórico-conceptual dos problemas
sociais precipitados pela discriminação, violência discriminatória e crimes de ódio. Além
disso, deverá possuir conhecimento e domínio adequados das especificidades e dinâmicas
associadas aos crimes de ódio e ao seu impacto junto das suas vítimas diretas e indiretas.
O conhecimento e compreensão da problemática em análise permitirá ao/à técnico/a
expor/diagnosticar corretamente o(s) problema(s), fundamentando a sua intervenção e a
necessidade de articulação entre os diversos serviços intervenientes no processo de apoio.
Se, em algum momento, o/a técnico/a perceber que não é a pessoa mais indicada para
apoiar a vítima de crime de ódio, devido a dificuldades de comunicação (línguas diferentes),
incompreensão das dinâmicas associadas aos crimes de ódio, quaisquer dúvidas ou
preconceitos relativamente à etnia ou identidade de género, por exemplo, deverá respeitar
os direitos fundamentais da vítima, não evidenciar qualquer atitude de incompreensão ou
desrespeito, encaminhando a situação para um/a colega.
É igualmente importante que o/a técnico/a esclareça a vítima, desde o início do processo
de apoio, sobre o seu papel, clarificando as suas funções e limitações. Este esclarecimento
deve ser efetuado no início do processo, para não ser interpretado posteriormente como
uma recusa de ajuda.
O diagnóstico social deve constituir uma das primeiras fases de apoio, sendo um elemento
142
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
O Modelo de Intervenção na Crise (Payne, 2002) consiste numa atuação imediata, com
etapas específicas que o/a técnico/a deve percorrer, designadamente:
143
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
5 apoio à vítima – Apoio social
aspetos psicológicos e sociais da pessoa, nos seus aspetos fortes e fracos, recursos e
problemas. O apoio social visa, com base neste modelo de intervenção, auxiliar a pessoa
na aquisição das competências/condições necessárias à sua reorganização, atenuando
fatores de vulnerabilidade e promovendo fatores de proteção.
O Método de Casos pode resumir-se em quatro etapas básicas (García & Romero, 2012),
nomeadamente:
Desde o início do processo de apoio à vítima de crime deve recolher-se informação que
permita a elaboração de um diagnóstico da situação relacional, social e institucional da
vítima. Só através deste estudo, será possível evoluir, de forma sustentada, para as etapas
seguintes da intervenção, envolvendo a vítima de crime e as redes primária e secundária
de suporte no processo de apoio e intervenção. Pretende-se, através deste envolvimento,
a promoção do acesso de serviços e bens que permitam a autonomização da vítima,
satisfazendo as necessidades sociais desencadeadas pela vitimação.
1. Identificar o crime/violência
É importante que, num primeiro momento, o/a técnico/a de apoio à vítima procure
obter informações com vista à identificação da vítima de crime de ódio, recolhendo
144
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Nesta primeira etapa, poderá ainda ser importante obter informações relativamente
ao crime, como o(s) nome(s) do(s) autor(es) do crime, local onde ocorreu, formas de
violência utilizadas e perceção da vítima relativamente à motivação do/a autor/a para
a violência perpetrada contra si (e.g., acreditar que foi vítima de violência devido à sua
orientação sexual, identidade de género, etnia, cor, religião, nacionalidade, condição
física, entre outros).
Esta avaliação deve ser efetuada a partir de uma perspetiva centrada nos interesses
da vítima e tendo em consideração que as necessidades variam de pessoa para pessoa,
de acordo com o contexto em que se encontra, características culturais e/ou de
personalidade, bem como das problemáticas específicas associadas ao seu caso. Desta
forma, é importante que o/a técnico/a respeite os valores, crenças e perceções da vítima,
evitando quaisquer observações discriminatórias ou que traduzam preconceitos.
145
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
5 apoio à vítima – Apoio social
No primeiro contacto com a vítima de crime, é fundamental que o/a técnico/a seja
capaz de identificar as necessidades mais prementes, de modo a adequar as respostas
a implementar. As necessidades urgentes incluem: segurança, necessidades básicas
(alimentação, roupa, medicação), cuidados médicos e/ou psicológicos, acolhimento e apoio
jurídico. As necessidades a médio e/ou longo prazo podem incluir: apoio financeiro, apoio
para a educação, apoio na (re)integração, treino de competências e inserção profissional.
ACOLHIMENTO O acolhimento pode ser imprevisível ou planeado e é normalmente um pedido recorrente. O/A técnico/a de apoio à vítima tem três funções:
valorizar o ato de pedir ajuda, prestando apoio emocional necessário à vítima em crise; elaborar o diagnóstico da situação (identificar a
rede de primária de apoio – amigos/as, familiares e outras pessoas de confiança - ou a necessidade de se ativarem redes secundárias de
apoio); e avaliar o grau de risco daquela situação. A necessidade de acolhimento não implica necessariamente o encaminhamento para
acolhimento institucional: a rede primária de suporte, sempre que reúna as necessárias condições de segurança, pode representar um
recurso fundamental perante a necessidade de acolhimento, devendo sempre ser analisada com a vítima de crime a sua operacionalização.
O/a técnico deverá conhecer, no seu país, as entidades a quem possa recorrer com vista à resposta às necessidades de acolhimento da
vítima de crime de ódio, o que poderá implicar o contacto/encaminhamento para linhas de emergência social, estruturas/respostas de
acolhimento, organizações-não governamentais, serviços da segurança social, entre outras respostas/recursos disponíveis.
ALIMENTAÇÃO A vítima de crime de ódio pode, perante o crime sofrido, ver-se desprovida de bens básicos, encontrando-se numa situação de fragilidade
e vulnerabilidade, surgindo necessidades ao nível alimentar. Compete ao/à técnico/a efetuar o levantamento das diversas instituições
existentes na sua área de intervenção, objetivos, procedimentos e normas de funcionamento, de forma a efetuar um encaminhamento
adequado da vítima, acompanhando-a de forma próxima neste contacto com outras instituições/entidades.
Para o efeito, o/a técnico deverá conhecer, no seu país, as entidades a quem possa recorrer com vista à resposta às necessidades
da vítima de crime de ódio ao nível da alimentação, o que poderá implicar o contacto/encaminhamento para organizações-não
governamentais, serviços da segurança social, entre outras respostas/recursos disponíveis.
SAÚDE A violência/crime pode levar ao surgimento de necessidades ao nível da saúde (física e mental) que o/a técnico/a deverá procurar
solucionar. Face à natureza dos problemas/necessidades identificados, o/a técnico/a deve ser capaz de identificar, no seu país, as
entidades e respostas mais adequadas, o que pode implicar o contacto/encaminhamento para linhas de saúde/emergência, serviços de
saúde assegurados pelo Estado, por organizações não-governamentais ou outras respostas ao nível da saúde.
SITUAÇÃO PROFISSIONAL Face a potenciais efeitos do crime/violência na situação profissional da vítima de crime de ódio, poderá ser necessário encontrar uma nova
forma de garantir a sua subsistência. A (re)integração profissional torna-se primordial, de forma a permitir um maior nível de autonomia.
O/A técnico/a deve avaliar as habilitações académicas da vítima, a sua experiência profissional, as suas preferências relativamente aos
sectores do mercado de trabalho e eventuais necessidades formativas. Deve proceder ao encaminhamento da vítima junto de entidades
competentes, como centros de emprego e formação profissional, que possam auxiliar e promover a reintegração profissional.
SITUAÇÃO ESCOLAR/FORMATIVA A violência/crime sofrido pode também colocar em causa a formação/situação escolar da vítima direta ou de crianças que tenha a seu
cargo (se tal se aplicar ao caso em concreto). É importante a articulação com os atuais contextos de formação ou escolares, com vista à
implementação de ações que permitam a resolução das necessidades de formação das vítimas diretas e indiretas, como a transferência
de escola/contexto de formação, de forma sigilosa, de modo a garantir a segurança das vítimas diretas e indiretas.
146
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
3. Encaminhar e cooperar
147
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
5 apoio à vítima – Apoio social
As etapas anteriores, pese embora importantes para uma adequada atuação nas
necessidades das vítimas de crime, não devem entendidas como uma sequência rígida
ou imutável de fases de intervenção. Podem existir situações de emergência social, que
requerem uma intervenção rápida e eficaz, nas quais o/a técnico/a atua de imediato na
execução/implementação de uma determinada ação/intervenção, sem realização de estudo
ou diagnóstico da situação. É este o caso quando, por exemplo, o/a técnico/a de apoio à
vítima atua junto de uma vítima de crime em situação de crise.
148
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
Por seu turno, nas situações que não configuram emergência social, não obstante a
experiência de vitimação, a sua severidade e as consequências resultantes, o êxito da
intervenção está dependente do correto estudo e diagnóstico do problema, que deve ser
elaborado com base na informação recolhida no(s) primeiro(s) contato(s) e que deve ser
reajustado ou atualizado ao longo do processo de apoio.
A referenciação pode ser um procedimento importante para o apoio à vítima de crime, uma
vez que poderá promover o acesso da vítima de crime a um apoio mais especializado ou
específico, perante uma necessidade previamente identificada.
149
PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
5 apoio à vítima – Apoio social
• Nome da vítima;
• Contacto da vítima e horário preferencial para contacto;
• Uma breve descrição da situação (tipo de crime, relação com o/a autor/a do crime,
local onde este ocorreu, que diligências já fez e consequências da vitimização);
• As observações e os apoios prestados pela entidade (ex.: aconselhamento
psicológico, aconselhamento jurídico e observações sobre os apoios prestados).
150
Apoio especializado por técnicos de PARTE 2 — PROCEDER
As organizações ou serviços de apoio à vítima poderão, no âmbito das suas ações de apoio
a vítimas de crime em geral e a vítimas de crimes de ódio em particular, realizar ações de
intervenção no terreno, nos contextos de vida nos quais as vítimas se encontram inseridas.
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PARTE 2 — PROCEDER
Apoio especializado por técnicos de
5 apoio à vítima – Apoio social
Algumas das formas de intervenção no terreno que poderão ser utilizadas são as visitas
domiciliárias e as visitas em outros contextos nos quais a vítima de movimenta (como, por
exemplo, o seu contexto educativo/formativo ou o contexto profissional).
152
Focar a investigação criminal nas vítimas – PARTE 2 — PROCEDER
Como vimos no capítulo 6 da Parte I deste manual, os crimes de ódio têm um impacto mais
acentuado nas suas vítimas do que crimes cometidos sem um motivo discriminatório. É
essencial que as autoridades policiais e judiciais estejam preparadas para lidar com as
vítimas destes crimes ao longo de todo o processo penal. No entanto e apesar de alguns
esforços já desenvolvidos em vários países, no que toca a este tipo de crimes, encontram-se
lacunas desde o início – e especialmente nesta fase - do processo.
Neste contexto, regista-se uma quase global ausência de regulamentação vinculativa que
obrigue as autoridades policiais ou judiciais a registar sistematicamente o motivo baseado
no preconceito (FRA, 2017). Isto significa que mesmo que o crime seja denunciado às
autoridades pela vítima ou por terceiros, este pode não ser tratado como um crime de ódio
ao longo de todo o processo penal por não ter sido feito o seu apropriado registo.
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PARTE 2 — PROCEDER
Focar a investigação criminal nas vítimas –
6 princípios e recomendações sobre a recolha e
registo de dados de crimes de ódio
Perceção da vítima/testemunha
• A vítima ou testemunha tem a perceção de que o crime foi motivado por preconceito;
• A vítima estava envolvida em atividades de promoção dos direitos do seu grupo de
pertença aquando da comissão do crime.
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Focar a investigação criminal nas vítimas – PARTE 2 — PROCEDER
Grupos organizados
Deve notar-se que nem todos os crimes de ódio são cometidos por grupos organizados, embora
frequentemente membros ou associados de tais grupos estejam envolvidos na prática de crimes de ódio.
• Foram deixados no local do crime objetos ou artigos que sugerem que o crime foi cometido
por membros de um grupo organizado;
• Existem provas (posters, folhetos, graffitis, etc.) de que o grupo organizado suspeito de ter
cometido o crime está ativo naquela área;
• O/a suspeito/a teve comportamentos normalmente associados a grupos organizados, por
exemplo, saudações típicas de um determinado grupo;
• O/a suspeito/a tinha vestuário, tatuagens ou outras insígnias normalmente associadas
com um grupo extremista ou de ódio;
• O habitual local de reunião do grupo organizado contém objetos e artigos de propaganda
extremista;
• O incidente ocorreu durante ou pouco depois de um comício, manifestação ou reunião de
um grupo organizado;
• O grupo em causa fez, recentemente e publicamente, ameaças destinadas a um grupo de
pessoas em particular.
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PARTE 2 — PROCEDER
Focar a investigação criminal nas vítimas –
6 princípios e recomendações sobre a recolha e
registo de dados de crimes de ódio
Padrões ou frequência
• Verificaram-se incidentes semelhantes, na mesma área, contra o mesmo grupo;
• Houve uma escalada recente no número e gravidade de incidentes contra o grupo em causa;
• Ocorreu recentemente um incidente que possa ter despoletado uma resposta retaliatória
contra determinado grupo;
• A vítima ou outros membros do seu grupo de pertença receberam ameaças ou foram alvo
de outras formas de intimidação.
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Focar a investigação criminal nas vítimas – PARTE 2 — PROCEDER
Uma boa recolha de informação que ambicione detetar a presença de uma motivação
preconceituosa no ato de violência perpetrado, poderá socorrer-se de várias fontes (ACPOS, 2010):
• Declaração da vítima;
• Declarações de testemunhas;
• Informações de familiares, amigos ou vizinhos da vítima;
• Entrevista do acusado.
No entanto, deve realçar-se que os(as) agentes policiais poderão identificar um crime de
ódio mesmo quando a própria vítima, ou outros, não o percecionam como tal. Além das
vítimas que não estão cientes de que elas mesmas foram alvo de um crime de ódio (por
desconhecimento do fenómeno, por exemplo), existem, ainda, outras que podem omitir o
motivo discriminatório que esteve na origem do crime, por não estarem dispostas a revelar
as motivações (reais ou percecionadas) por detrás do ato criminal de que foram alvo devido à
sua identidade, por exemplo, a sua orientação sexual ou associação a um grupo identificável.
Quando presentes, estes dois elementos poderão promover o bom relacionamento entre a vítima e o
seu interlocutor, encorajando aquela a comunicar de forma efetiva e a prestar a informação necessária.
Remetemos para o capítulo 1 da Parte I deste manual para mais informações e boas práticas
no contacto com vítimas de crimes de ódio.
157
PARTE 2 — PROCEDER
Focar a investigação criminal nas vítimas –
6 princípios e recomendações sobre a recolha e
registo de dados de crimes de ódio
Reconhecendo que os vários Estados têm mecanismos diferentes de registo de crimes de ódio,
o Subgrupo considerou como requisitos mínimos destes mecanismos os seguintes critérios:
Outros três princípios orientadores para uma correta recolha de informação sobre crimes
de ódio e consequente registo do mesmo a nível nacional proposto pelo Subgrupo são
a disseminação de uma cultura de direitos humanos no seio das autoridades policiais e
judiciais, o desenvolvimento ou adaptação dos mecanismos de registo de crimes de ódio de
forma a que estes respondam às necessidades e capacidades nacionais e, por último, ativar
ferramentas de cooperação ativa com a sociedade civil.
Reforçar uma cultura de direitos humanos significa, segundo o Subgrupo, que todos os
membros dos órgãos de polícia criminal, independentemente da sua posição hierárquica,
devem compreender a importância de registar crimes de ódio adequadamente, não
devendo este registo ser considerado como um mero encargo adicional. Neste contexto,
considera o Subgrupo, o treino de profissionais que integre a linguagem dos direitos
humanos e que se foque nos preconceitos, conscientes ou inconscientes, dos agentes
policiais é essencial.
158
Focar a investigação criminal nas vítimas – PARTE 2 — PROCEDER
sugere que as autoridades policiais e judiciais de cada Estado, por estarem melhor
posicionadas para identificar lacunas e inconsistências nos mecanismos com que
trabalham diariamente, deverão proceder a uma avaliação da eficácia dos mesmos e,
consequentemente, proceder às alterações necessárias para que o registo de crimes de
ódio seja feito corretamente, permitindo, desde o início do processo de investigação, uma
adequada abordagem.
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