Texto 1. A emergência do biopoder
Texto 1. A emergência do biopoder
Texto 1. A emergência do biopoder
A emergência do biopoder 1
Ana Monteiro2
Foucault define esse movimento temporal no qual o poder político acaba por assumir
- -se do
momento em que os processos da vida são levados em consideração pelos procedimentos
de
passam a ser incorporados à esfera das técnicas políticas de forma tão avassaladora que já
não podemos pensar a vida humana em separado das práticas políticas que pretendem
definir seus modos de viver, pensar, agir e sentir.
Anteriormente, na formação histórica clássica, o homem e a vida não existem como
problema. Tendo suas forças agenciadas a forças de infinitude a vida é dádiva divina e sua
existência naturalizada se configura através de representações infinitas de Deus. O
problema político girando em torno do direito natural faz do sangue e da morte as figuras
que orientam e sustentam
só exerce seu direito sobre a vida, exercendo o direito de matar ou contendo -o; só marca
(Foucault, 1985: 128). Só
aos representantes divinos cabe decidir pela continuidade natural da vida: matar ou deixar
viver? Foucault relaciona essa figura jurídica, representada pelo soberano, a um tipo
histórico de sociedade, na qual o poder se confunde com o direito de apropriação e confisco
que esses, como representantes divinos, detinham naturalmente sobre os demais, os
súditos. Em suma, o poder, nessa configuração diagramática, era direito de apreensão de
im (Ibidem, idem).
Nessas sociedades, havia uma associação imediata entre medo e covardia.
Considerado um vício dos covardes, era vergonhoso entre os membros da nobreza. Estes
últimos, os guerreiros, possuíam a virtude da coragem como dád iva divina. A igreja,
ocupando um importante papel político e cultural, aliava -se à aristocracia na difusão da
idéia endereçada a reforçar a obediência dos servos aos nobres: era preciso se conformar
com a pobreza, pois era um desígnio de Deus. Havia a cre nça de que a organização social
teria se formado a partir do desejo de Deus: uns rezavam (a igreja), outros combatiam (os
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Este artigo é parte integrante da Dissertação de Mestrado em Psicologia da autora. Universidade
Federal Fluminense, UFF, 2002. Título: Clínica, biopoder e a experiência do pânico no
contemporâneo. Orientador: Cecília Maria Bouças Coimbra.
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ABREU, Ana Maria do Rego Monteiro.
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nobres) e outros trabalhavam (os servos). Uma ordem assim estabelecida, onde o valor
maior era baseado na propriedade da terra condição de uns poucos privilegiados (os
nobres) aos trabalhadores, temerosos na luta pela sobrevivência, estava já destinado o
mesmo tempo. Aos nobres, ao contrário, cabia o p razer de desfrutar a vida e manter a
Nessa ordem social, o poder do soberano se exercendo em nome da divindade faz a lei de
acordo com o que lhe convém. Obedecendo apenas ao julgamento divino tudo que existe
as coisas, as palavras e os viventes fazem parte de um grande coletivo divino que a tudo
engloba: uma única identidade já sabida (Deus) que se desdobra em explicações e
representações infinitas.
r
A partir do séc XVII, o homem toma o lugar de Deus e a razão o lugar da fé. As
forças do homem que antes se agenciavam com as forças do infinito entram em
relacionamento com forças de finitude: a vida, o trabalho e a linguagem. Estas introduzem
a morte no homem. Uma grande ênfase é dada à consciência racional a fim de produzir as
verdades consideradas científicas. Desenvolvem-se as ciências da vida (biologia), as
ciências do trabalho e da produção (economia política) e as ciências da linguagem
(lingüística). Entramos no século das luzes, onde os temas discutidos, passando a girar em
torno das idéias de liberdade e do progresso, colocam a vida como algo a ser construído
pela mão do homem. Rejeita-se a idéia do poder divino ligado aos reis. Prega-se a
burguesia em franca ascensão, buscando consolidar uma nova ordem social com base no
poder do capital.
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entanto, nos mostra que Foucault introduz um novíssimo elemento, ao afirmar que não se
trata de uma simples tomada de consci ência da finitude dentro de causas historicamente
determináveis. A idéia de uma tomada de consciência implica na concepção de uma
essência que se mantém, ou seja, uma filosofia do sujeito. Para Foucault não se trata do
momento em que o homem toma consciência de sua finitude, mas do engendramento
mesmo da forma-homem em ruptura com a forma com a qual o homem se reconhecia, a
forma-Deus. Trata-se, portanto, de um afrontamento com as forças do de-Fora, onde nada
está historicamente determinado, mas, ao contrár
se inventa.
finitude enquanto forças do de-Fora: é fora de si que ela tem de haver -se com a
finitude. Em seguida, e só em seguida, num segundo tempo, faz da finitude a sua
1987: 171)
são o Trabalho, são a Linguagem: tripla raiz da finitude que v ai fazer nascer a biologia, a
exercer o poder. O poder que antes se exercia pelo confisco e supressão da vida
transforma-se em um poder destinado a produzir forças mais do que barrá-las ou destruí-
las. Encarregado da gestão calculista da vida, esse poder passa a operar tanto na via das
ordenações disciplinares dos corpos como na via do controle da vida em seu conjunto.
Trata-se de um longo processo em que o homem ocidental aprende pouco a pouco o que é
ser uma espécie viva num mundo vivo: ter um corpo e construir as próprias condições de
existência a partir de forças que podem se modificar.
-se no político;
o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos
em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo do
controle do saber e de intervenção do poder. Este não estará mais somente às
voltas com sujeitos de direito sobre os quais seu último acesso é a morte, porém
com seres vivos, e o império que poderá exercer sobre eles deverá situar -se no
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nível da própria vida; é o fato do poder encarregar -se da vida, mais do que a
ameaça de morte, que lhe dá acesso ao corp
É nesta via que Foucault faz referência à modernidade. Se antes, o poder soberano
das mais maciças transformações do direito político que, na v erdade, vem a complementar
o velho direito de soberania com outro direito, ou melhor, um poder exatamente inverso:
recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. (...)
explosão, portanto, de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos
A partir da década de 70, Foucault se dedica a pensar a vida em sua relação com o
poder. Em 1974, durante as conferências intituladas A Verdade e as Formas Jurídicas,
realizadas na PUC/RJ, através da análise das transformações das práticas pe nais na
passagem do século XVIII para o século XIX, nos mostra o surgimento de novos
procedimentos de poder e saber que caracterizam um novo modo de organização social,
Nestas conferências, Foucault chama atenção para dois aspectos que vão definir o
diagrama disciplinar. O primeiro diz respeito à invenção da prisão como espaço penal, não
previsto pelos teóricos da reforma judiciária, mas que se generaliza como forma
institucionalizada de correção disciplinar no início do século XIX. O outro aspecto destacado
por Foucault refere-se à mudança nos objetivos das penalidades. Em que pese outras
transformações, em relação aos atos considerados criminosos, o aspecto destacado por
Foucault se faz n
penal, será profundamente modificado. Da guilhotina às prisões, um longo processo de
penalidade toma como objeto a perda da liberdade individual, isto é, a perda de um bem ou
u
punitivos testemunham um deslocamento do objeto do poder, um poder que se exerce
positivamente e primeiramente sobre a vida em sua gestão incorpórea.
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Vamos ver surgir, assim, uma forma de poder que não visa mais à extração e
supressão da vida, mas, ao contrário, incita à produção da vida de acordo com um padrão
de normalidade. Segundo Foucault (1988), é neste momento, quando o corpo humano
torna-
s primeiros efeitos desse modo de exercer o poder. (Foucault,
1988: 183). Surge a forma-homem tal qual a conhecemos, ou seja, o modo indivíduo de
subjetivação.
idem).
que programou, definiu e descreveu da maneira mais precisa as formas de poder em que
vivemos e que apresentou um maravilhoso e célebre modelo desta socieda de da ortopedia
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generalizada: o famoso Panopticum
(Ibidem, idem). Olhar que tudo olha e não é visível, eis a vigilância disciplinar descrita por
Foucault. Olhares hierarquizados fa cilitados não só pela arquitetura das instituições, mas
também por uma arquitetura de olhares escalonados em chefes, subchefes, mestres,
contramestres e monitores em cada instituição.
scrita por
Foucault em Vigiar e Punir (1977): o panoptismo - um olho que ninguém vê, mas que tudo
vê, produzindo efeitos de poder pela função do olhar.
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Panopticon era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma torre no
centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior como para o exterior.
Em cada uma dessas pequenas celas, havia segundo o objetivo da instituição, uma criança
aprendendo a escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando
sua loucura, etc. Na torre central havia um vigilante. Como cada cela dava ao mesmo tempo para o
interior e o exterior, o olhar d o vigilante podia atravessar toda a cela; não havia nela nenhum ponto
de sombra e, por conseguinte, tudo o que fazia o indivíduo estava exposto ao olhar de um vigilante
que observava através de venezianas, de postigos semi -cerrados de modo a poder ver tudo sem que
ningémao contrário pudesse vê-lo. Para Bentham esta pequena e maravilhosa astúcia arquitetônica
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Enquanto nas sociedades de soberania o poder tinha por função destacar, separar,
excluir, na sociedade disciplinar o poder é exercido por me io da operação de combinação,
composição, detalhamento com vistas a produção de indivíduos enredados ao poder que os
constitui. Não se trata mais, essencialmente, de punir, mas de produzir a vida regrada,
normatizada, higienizada, moralizada, onde as verdades produzidas emergem como códigos
morais prescritivos. A produção da verdade sobre o corpo e a mente do homem emerge
como prática disciplinar. Surgindo na aurora da industrialização da sociedade ocidental, a
psiquiatria deveria realizar uma atividade de higiene do espaço social, higiene das paixões
desenfreadas, a fim de instituir a perspectiva de uma moral regulada. Enquanto higiene
moral, a medicina mental surge estreitamente vinculada com a nova medicina,
caracterizada como medicina do espaço social. O objetivo é a higiene das coisas, dos
espaços sociais, dos corpos, que se iniciou procurando solucionar o problema das
epidemias, prosseguindo em sua constituição pela reflexão a respeito da higiene pública, a
fim de manter e gerir a saúde nas cidades.
Uma vez que o saber e as práticas médicas estão fundados numa divisão essencial
entre o normal e o anormal, o estudo deste saber e destas práticas se tornou uma das
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pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no
biológico, no somático, no corporal, que antes de tudo, investiu a sociedade
capitalista. O corpo é uma realidade bio -política. A medicina uma estratégia bio -
(Foucault, 1988: 82). Num primeiro momento, não é ao corpo que trabalha, ao corpo do
proletário que se dirige a administração estatal da saúde, mas para o próprio corpo dos
indivíduos enquanto constituem globalmente o E
estatal, a força do Estado em seus conflitos, econômicos, certamente, mas igualmente
políticos, com seus vizinhos. É essa força estatal que a medicina deve aperfeiçoar e
idem)
da circulação dos indivíduos, mas das coisas ou dos elementos, essencialmente a água e o
(Ibidem, idem). Considerados grandes fatores patogênicos coloca -se a necessidade de
arejamento das cidades. Para tanto, solicita- 'Academia de Ciências', de
médicos, de químicos etc., para opinar sobre os melhores métodos de arejamento d as
.(Ibidem, idem). Uma série de avenidas são abertas no espaço urbano,
justificando-se, dessa maneira, a destruição violenta de inúmeras casas populares no
centro de Paris que, segundo análise científica, impediam a circulação do ar. O mesmo
procedimento deu-
começa a Revolução Francesa, a cidade de Paris já tinha sido esquadrinhada por uma
polícia médica urbana que tinha estabelecido o fio diretor do que uma verdadeira
organização
noção de salubridade.
É uma medicina da vigilância, controle e observação dos detalhes: dos pequenos, das
pequenas comunidades, dos bairros, das cidades, dos corpos. É dela que surge parte
significativa da medicina científica do século XIX: a medicina como té cnica de poder. Tendo
como alvo a população, seus procedimentos deslocam -se da arte da cura, para a gestão e
produção da saúde, ou seja, tomam como objeto privilegiado a produção do que
consideram ser uma vida saudável. Começa a se formar um saber médico -administrativo
acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua condição de vida, de sua
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então, não existe ainda a figura do pobre, da plebe, do povo como elemento perigoso para
a saúde. A população pobre fazia parte da paisagem urbana e exceto por se constituírem
eventualmente como força política de revolta, eram muito úteis e imprescindíveis para a
realização de uma série de serviços na vida urbana. No entanto, a partir da epidemia de
cólera de 1832, que começou em Paris e se propagou por toda a Europa, cristaliza -se em
torno da população proletária uma série de medos políticos e sanitários. Esta passa a ser
considerada potencialmente perigosa não por sua força de revolta, mas por serem
considerados portadores de agentes infecciosos.
prática de poder que investindo sobre alvos diversos Estado, cidade e trabalhadores -
paulatinamente se produz, ao mesmo tempo em que produz novas configurações sociais.
Segundo Foucault, é dessa maneira que ao final do séc XIX, esta medicina estava
instrumentalizada para regular a própria força de trabalho, possibilitadora de novos
desenvolvimentos industriais. Trata-se da constituição de um saber prescritivo que tendo
por objetivo a produção e inserção moral das individualidades no espaço, esteve sempre
articulado às demais instituições disciplinares, tendo na produção da família nuclear a sua
maior conexão.
Surge assim a família no papel de articulação dos objetivos gerais relativos à boa
saúde do corpo social com o desejo ou a necessidade de cuidados dos indivíduos. Segundo
recíproco de pais e filhos) com um controle coletivo da higiene e uma técnica científica da
cura, assegurada pela demanda dos indivíduos e das famílias, por um corpo profissional de
médicos qualificados e como
O certo é que no final do século XVIII, na Europa, a população surgia como um
problema político, econômico, demográfico e sanitário, sendo necessário o controle sobre
ela, sobre seu sexo, sua saúde, sua doen ça, sua alimentação, sua moradia. Os fenômenos
próprios à vida dos seres humanos entram no campo das técnicas políticas. Surgem uma
série de dispositivos que passam a investir sobre os processos vitais dos viventes, a fim de
controlá-los, modificá-los e produzi-los como matéria prima de toda produção. Se antes as
preocupações com a vida giravam em torno da gestão da morte, com o desenvolvimento
econômico, social e político, observado a partir deste período, o foco da preocupação passa
a ser a organização dos viventes.
-riqueza,
população mão-de-obra ou capacidade de trabalho, população em equilíbrio entre
seu crescimento próprio e as fontes de que dispõe. Os governos percebem que não
1999: 101). Nestas, o autor destaca o anúncio de Foucault, já no inicio da década de 70,
do investimento prioritário das práticas governamentais mais especificame nte com a saúde,
isto é, com a produção de uma vida saudável.