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SurDefMul_Claudia_Cap.5_25 05 2022

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Surdocegueira e Deficiência Múltipla: contextos e

práticas educacionais

Claudia Cristina de Oliveira Pereira

5. Escolarização de pessoas com deficiência múltipla no contexto da


Educação Inclusiva: desafios e possibilidades

A compreensão acerca do modelo social de deficiência nos auxilia a entender


que as barreiras que dificultam ou impedem o acesso das pessoas com deficiência é
uma construção cultural, pois a sociedade sempre se organizou a partir de uma ideia
padrão de sujeito, desconsiderando a diversidade existente entre a população.

Essa mentalidade homogeneizadora permeia as diferentes áreas da


sociedade e quando nos voltamos para o processo de escolarização das pessoas com
deficiência numa perspectiva da Educação Inclusiva, ainda esbarramos na
necessidade de repensar as formas pelas quais todas as crianças são ensinadas nos
espaços educativos. A rapidez no acesso às informações, bem como nas
possibilidades de se conectar com o mundo, favorecem diferentes meios de
aprendizagem, mais dinâmicos e não convencionais, principalmente pela exposição
excessiva a multiplicidade de formatos audiovisuais disponíveis na atualidade.

No entanto, mesmo com a variedade dos meios de produção e divulgação


dos conhecimentos, o sistema educacional brasileiro permanece ancorado em
práticas tradicionais que tem como principais recursos de ensino a velha dupla:
caderno e lousa. Como pensar em práticas verdadeiramente inclusivas, que
considerem a multiplicidade de sujeitos no ambiente escolar, oferecendo recursos
que possam atender diferentes características, necessidades e preferências? (CAST,
2018).

Apesar dos quase 30 anos do início do movimento de inclusão no Brasil,


observamos que a escola ainda não está adequada para ensinar a demanda de
estudantes existente – especialmente quando nos referimos àqueles estudantes cujo
modo de interação e participação com o ambiente ocorre por outros caminhos.

Neste capítulo abordaremos estudos de caso de estudantes com deficiência


múltipla matriculados na rede regular de ensino, apresentando os desafios
enfrentados e as possibilidades encontradas para promover o seu processo de
escolarização.

5.1. Deficiência múltipla na escola: e agora?

Lidar com a inclusão de estudantes com deficiência nas classes regulares não
tem sido tarefa fácil para professores e gestores, mesmo com os avanços na área da
Educação Inclusiva. A formação docente deficitária e as condições precárias das
escolas delineiam um cenário pouco favorável para o acesso e a permanência desses
estudantes. E quando as necessidades e especificidades desses sujeitos exigem um
maior nível de apoio, os desafios aumentam.

Pletsch (2015); Pereira, Oliveira e Costa (2021) relatam sobre a escassez de


pesquisas e registros acerca do processo de escolarização das pessoas com
deficiência múltipla. Conforme já abordado, podemos inferir que esse fato ocorra
por diferentes motivos:

 acesso tardio, e ainda restrito, desse grupo de pessoas ao sistema


educacional, que acabam optando pelas instituições especializadas, devido
aos serviços auxiliares oferecidos;
 despreparo das escolas brasileiras para atender as necessidades dos
educandos com deficiência múltipla, causado pela falta de recursos materiais
e humanos (professores, funcionários, auxiliares, rede de apoio etc);
 formação continuada insuficiente, também decorrente da falta de pesquisas
na área que contribuam para a divulgação de informações, colaborando para
a ampliação de conhecimentos sobre as condições de desenvolvimento e
aprendizagem desses educandos.

Diante desse cenário ainda pouco explorado, trazemos a nossa contribuição


compartilhando dois estudos de caso (Quadros 4 e 5) sobre a escolarização de
educandos com deficiência múltipla na rede regular de ensino, no intuito de
demonstrar que tipo de ações tem sido promovidas para favorecer o acesso, a
permanência e a aprendizagem desse público no sistema educacional, quais são os
desafios e as possibilidades encontradas pelos profissionais da área da educação que
atuam diretamente com esses sujeitos no cotidiano escolar.
5.1.1 Estudo de Caso 1: Deficiência Intelectual e Autismo

Quadro 4 – Caracterização da Estudante Natália

Identificação: Natália1, sexo feminino, 15 anos.


Diagnóstico: CID F.79 (Retardo mental não especificado) / F.84.0 (Autismo)
Histórico: Primeira filha de pais jovens, ambos dependentes químicos,
residentes em região periférica. Nasceu prematura, com sinais de
abstinência (decorrente do abuso de substâncias químicas pela
genitora durante a gestação), permanecendo 15 dias na
incubadora. Com um ano e meio foi entregue pela genitora a avó
paterna, que assumiu os cuidados provendo o acesso ao
tratamento de saúde básico (pediatra, neurologista e terapias no
Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSI). Aos cinco anos foi
levada pelo genitor para morar em outro estado, onde ficou sob os
cuidados da madrasta. Durante os oito anos de convivência com o
pai e a madrasta, ingressou tardiamente na escola – aos 12 anos,
sendo matriculada no 1º ano do ensino fundamental numa escola
de período integral. Com o término do relacionamento, o genitor
retornou para o estado de origem apenas para deixar a filha aos
cuidados da avó paterna e foi embora. A educanda foi matriculada
no 2º ano numa escola municipal, aos 13 anos. Devido à
defasagem idade/série, foi reclassificada para o 4º ano e passou a
ser acompanhada pelo Atendimento Educacional Especializado.
Especificidades:  Linguagem verbal bastante prejudicada, com emissão de
sons pouco compreensíveis e palavras isoladas;
 Não possui controle das necessidades fisiológicas, (faz uso
de fralda);
 Apresenta hipersensibilidade auditiva, com recorrente
automutilação nos ouvidos (feridas abertas) pela
constante introdução dos dedos para tampar os ouvidos
(que acaba por cutucar as feridas já existentes, num
processo de difícil cicatrização);
 Demonstra interesse por blocos de papel, cartas de jogos
(ex: baralho) e bolinha de sabão.
Fonte: autoria própria.

A educanda, ao ingressar no 2º ano numa escola municipal no estado de São


Paulo, apresentava interesse excessivo por armários e gavetas, onde buscava
localizar blocos de folhas para segurar nas mãos. A avó enviava na mochila maços de
folhetos de loteria e de mercado, pois esse é um costume que lhe trazia segurança.
Pela dificuldade de comunicação e expressão, costumava manifestar-se por meio do
choro, gritos, autoagressões (ex: puxões no próprio cabelo quando queria que
retirasse o elástico do seu penteado) e por condução da mão da pessoa mais
1 Nome fictício.
próxima ao objeto que desejava pegar. A princípio, iniciou a frequência às aulas com
um período de adaptação, permanecendo por 3 horas/aula na escola. Familiarizou-
se rapidamente com os professores e funcionários, mas demorou para estabelecer
vínculo afetivo.

Com o decreto nº 64.881, de 22 de março de 2020 (SÃO PAULO, 2020), que


estabeleceu a quarentena para o estado de São Paulo em decorrência da pandemia
da COVID-19, os atendimentos passaram a ocorrer por meio virtual, com o contato
semanal com a avó por aplicativo de mensagem e o envio de sugestões de atividades
práticas para serem realizadas com o apoio da família (ex: vídeos e instruções por
áudio). Devido às dificuldades da família em lidar com as condições da educanda,
nenhuma das atividades propostas neste período foi realizada.

Com o retorno gradual às aulas presenciais no ano de 2021, e a necessidade


dos protocolos de higiene e biossegurança, a educanda retornou para a escola
apenas no final do primeiro semestre. No período em que permaneceu afastada,
foram enviados materiais e atividades para serem trabalhadas em casa. Em parceria
com a professora da classe regular, a professora do AEE planejou e organizou uma
caixa com jogos e materiais simples para serem realizados pela família com a
educanda.

Figura 28 – Fotos das atividades adaptadas

Bingo de números (1 a 10) Bingo de letras


Fonte: Arquivo pessoal. Fonte: Arquivo pessoal.
Pescaria (coordenação motora) Pareamento de cores
Fonte: Arquivo pessoal. Fonte: Arquivo pessoal.

Junto com a atividade ou jogo, foi enviado um cartão explicativo com


orientações para a família sobre como realizar a estimulação em casa. Nesse sentido,
o AEE no contexto da pandemia teve um duplo desafio: propor atividades de acordo
com as necessidades dos educandos e ainda que pudessem ser realizadas pelas
famílias de forma simples e prática, pois a maioria das famílias possui pouca
escolarização e enfrentou sérias dificuldades para estimular os educandos pela falta
de compreensão sobre o funcionamento dos jogos e atividades (apesar das
instruções enviadas de forma impressa e por áudio, pelo aplicativo de troca de
mensagens WhatsApp. Por isso, foi fundamental selecionar, a princípio, atividades
autoinstrutivas e funcionais – ainda que não totalmente articuladas com o currículo
do ano escolar em curso.

Com o regresso das aulas presenciais, foi necessário recomeçar o trabalho de


adaptação à rotina escolar. Para demarcar a passagem do tempo e simbolizar as
atividades do dia, foi elaborado para a estudante um sistema de calendário com
fotos e símbolos de comunicação alternativa.

Figura 29 – Foto do calendário em formato de relógio

Fonte: Arquivo pessoal.


Figura 30 – Foto do calendário de mesa

Modelo de calendário feito em suporte


de papelão, com fotos das situações e
objetos da rotina escolar.

Fonte: Arquivo pessoal.

Pedagogicamente, a professora da sala regular enfrentou dificuldades para


encontrar atividades que despertassem o interesse para o conteúdo curricular, pois
a educanda costumava passar o período inteiro andando pela classe, vasculhando o
armário em busca de papéis para empilhar e segurar nas mãos.

Figura 31 – Foto de bloco de folhas encadernado

Tentativa de reprodução dos


blocos de papel com conteúdo
da aula de Ciências (em cada
folha foi colada uma figura de
animal, com o objetivo de que
despertasse o interesse da
educanda).

Fonte: Arquivo pessoal.

No trabalho Colaborativo, realizado entre a classe regular e o AEE, foram


testados diferentes recursos e estratégias na tentativa de encontrar alternativas
para a participação da educanda. Tal modelo de serviço foi adotado,:
Entendendo que a educação dos indivíduos PAEE não pode recair apenas
sobre a responsabilidade de um profissional, ou somente o professor do
ensino comum, e considerando que não é possível um único profissional
dar conta de saber todas as metodologias para atendimento das
especificidades de cada estudante, verifica-se que o trabalho em parceria
pode ser um caminho muito valioso para favorecimento das
especificidades de cada estudante. (CAPELLINI; ZERBATO, 2019, p. 34).

No entanto, devido à significativa defasagem de aprendizagem decorrente da


falta de estímulos na idade adequada, ao ingresso tardio no processo de
escolarização, ao pouco tempo que frequenta essa escola, e ao período do ensino
remoto, algumas as propostas planejadas por meio do trabalho colaborativo ainda
não alcançaram os objetivos desejados.

Figura 32 – Foto de atividades estruturadas

Material estruturado, plastificado, com aderência feita com ímã e arruela


(para diminuir a possível hipersensibilidade no caso do uso velcro).
Fonte: Arquivo pessoal.
De acordo com Vilaronga (2021), esses são os principais desafios para a implementação
do ensino colaborativo:

 O professor da sala comum pode precisar de mais suporte que o disponível;


 Pode achar que a mudança é incompatível com as necessidades de outros
estudantes;
 Pode achar improvável que a mudança produza o efeito desejado dentro de um
ano letivo – no outro ano ele terá outro professor;
 Ele pode não entender a proposta do Ensino Colaborativo e achar que esse
modelo está sendo imposto arbitrariamente.

Por isso, a autora ressalta que o ensino colaborativo precisa se pautar num sistema claro
de parceria entre profissionais da educação, que se envolvem para pensar nos desafios
do ensino para estudantes PAEE. (VILARONGA, 2021).

A educanda possui dificuldade de concentração e seu campo de interesse é


restrito a poucos recursos tais como maços de folhas (como citado) e cartas de jogos
(ex: baralho), que apenas segura nas mãos sem dar outra funcionalidade para os
objetos. Não explora as imagens ou utiliza as cartas para brincar, apenas permanece
segurando o montante nas mãos. Outro objeto de interesse é bolinha de sabão, que
ela traz de casa e costuma ficar soprando pelos corredores da escola – e até mesmo
dentro da classe. Foram realizadas algumas tentativas de retirar esse objeto da sua
rotina escolar, visto que não tem finalidade pedagógica e atrapalha os colegas na
classe, mas devido a sua dependência do objeto (como referência de segurança e
conforto), a educanda ainda faz seu uso na escola.

Com a virada de ano, a educanda passou a cursar o ensino fundamental II, no


sexto ano. A mudança de período (da manhã para a tarde), da dinâmica de aulas
(com troca de professores a cada 45 minutos) e a agitação de seus pares
adolescentes não causaram dificuldades para sua adaptação. Pelo contrário, a
educanda aceitou bem a rotina movimentada. Consegue permanecer o período
inteiro na escola, embora dentro da sala de aula dificilmente consiga se sentar em
sua cadeira para desenvolver alguma atividade. Gosta de andar pelas carteiras,
assopra suas bolinhas de sabão e começou a esboçar tentativas de aproximação com
colegas, por meio do contato físico (ex: chega perto de algum colega e, às vezes,
encosta seu ombro no braço do outro, onde permanece por alguns minutos ouvindo
o que o colega lhe fala).

Nos atendimentos do AEE no contraturno, a educanda mantém o


comportamento de vasculhar os armários da sala, observando os materiais sem se
interessar por manipular e explorar nenhum. Quando escolhe algo, pega, observa,
mas logo se desinteressa, largando o objeto em qualquer lugar. Das tentativas
realizadas, a educanda conseguiu permanecer concentrada por um tempo mais
amplo quando brincou com massa de modelar – desde que a professora
permanecesse ao seu lado, dirigindo a atividade e estimulando as ações.

Figura 33 – Foto da atividade com massa de modelar

Atividade com massa de modelar.


Fonte: Arquivo pessoal.

Para o aspecto da comunicação, vem sendo testado nos atendimentos do


AEE o uso do aplicativo de comunicação alternativa Matraquinha, que já vem
instalado no tablet oferecido pela prefeitura da cidade aos educados dessa rede
municipal.

SAIBA MAIS!

O app Matraquinha foi desenvolvido para auxiliar crianças e adolescentes com autismo a
expressarem suas vontades, necessidades e sentimentos. Encontre mais informações no
site https://www.matraquinha.com.br/.
Como é possível notar, o principal desafio no processo de escolarização da
educanda está em despertar o seu interesse para as atividades pertinentes à sala de
aula, tendo como objetivos do AEE:

Figura 34 – Foto de cartões com objetos


concretos

* Estimular a expressão e intenção


comunicativa, por meio da comunicação
aumentativa e alternativa, com a
utilização de objetos de referência e
cartões com figuras e pranchas
Cartões de comunicação alternativa com
temáticas (Vide mais detalhes sobre
objetos concretos. Fonte: Arquivo pessoal. esses recursos nos capítulos 3 e 4);

Figura 35 – Foto da estudante usando tablet

* Promover atividades que estimulem o


desenvolvimento da concentração,
atenção, discriminação visual e auditiva,
oferecendo alternativas para o
desenvolvimento de processos mentais
por meio de recursos lúdicos,
interativos e artísticos.
Estudante utilizando o App ABC Autismo.
Fonte: Arquivo pessoal.

Ainda que os objetivos planejados para o período relatado não tenham sido
totalmente alcançados, o importante é manter o olhar ativo sobre o
desenvolvimento e adaptação da estudante no ambiente escolar. A convivência e a
rotina de estudos, aos poucos, oferecerão indícios sobre a forma como ela percebe e
busca comunicar-se com o meio – e são eles que nos auxiliarão na escolha dos
recursos e estratégias mais adequados para estimular sua aprendizagem.
5.1.2 Estudo de Caso 2: Deficiência Física, Intelectual e Visual

Quadro 5 – Caracterização do Estudante Paulo

Identificação: Paulo2, sexo masculino, 9 anos.


Diagnóstico: CID G.80 (Paralisia Cerebral)
CID F.79 (Retardo mental não especificado)
CID H.54.2 (Visão subnormal em ambos os olhos)
Histórico: Terceiro filho, pais casados. Nasceu a termo, “saudável”, numa
cesárea de alto risco onde a mãe foi submetida a uma Cirurgia de
Alta Frequência (CAF) para retirada do colo do útero. Aos cinco
meses de vida teve uma encefalite provocada pelo vírus do Herpes
(contraída pelo contato com o irmão infectado). Permaneceu
internado por três meses, com quadro convulsivo frequente e de
difícil controle. Até o um ano de vida, fez uso de 12 tipos diferentes
de medicamentos para controle das crises convulsivas. Nos primeiros
quatro anos de vida, frequentou atendimentos terapêuticos em
hospitais de referência nas áreas da deficiência física e visual.
Ingressou no sistema educacional com um ano, recebendo na creche
estimulação essencial. Com quatro anos começou a frequentar a
Educação Infantil, onde também passou a ser atendido pelo
Atendimento Educacional Especializado.
Especificidades:  Apresenta prejuízo motor no lado esquerdo do corpo, com
pouca funcionalidade da mão e encurtamento da perna;
 Locomove-se com movimentos descoordenados e em
desequilíbrio;
 Linguagem verbal adequada para a idade;
 Estrabismo no olho esquerdo;
 Demonstra interesse por objetos e recursos sonoros;
 Gosta de cantar diferentes tipos de músicas (de hino de
louvor a batidas de funk).
Fonte: autoria própria.

O estudante começou a frequentar o Atendimento Educacional Especializado


(AEE) quando ainda estava na Educação Infantil, encaminhado para o serviço por
conta de sua dificuldade visual. Seu ingresso no AEE foi bastante conturbado, pois
apresentava resistência para permanecer na Sala de Recursos Multifuncionais (SRM)
e, também, para utilizar o transporte gratuito de forma independente. Demonstrava
dificuldade para lidar com frustrações, manifestando baixa tolerância por meio de
choro, gritos e agressão física ao familiar que o acompanhava até o atendimento.
Demorava um tempo até conseguir se acalmar para participar das atividades
propostas. Apresentava boa compreensão das situações vivenciadas, comunicando-
se verbalmente com linguagem adequada para sua idade.
2
Nome fictício.
Pedagogicamente, apresenta significativa defasagem na aquisição de
conceitos básicos relativos a leitura e a escrita, mas realiza contagem simples (1 a
10) com apoio de músicas ou brincadeiras. Nomeia cores, mas não consegue
identificá-las devido ao comprometimento visual. Possui o sentido auditivo muito
aguçado e tem preferência por objetos sonoros e atividades que envolvam músicas
(tende a ficar perto da fonte de som, ignorando o estímulo visual – considerando sua
visão residual e fixando-se apenas na audição).

Figura 36 – Foto do estudante utilizando tablet

Exemplo de atividade desenvolvida no AEE, utilizando o app Piano Tiles e fazendo a


representação do jogo no caderno. Fonte: Arquivo pessoal.

Quando ingressou no 1º ano do ensino fundamental, adaptou-se bem a


rotina da nova escola, embora apresentasse muito sono no horário da entrada –
chegando até a dormir algumas vezes sobre a carteira. A professora da classe regular
recorreu a recursos concretos e ampliados para estimular a aprendizagem do
estudante, como letras e números móveis de plástico, além de atividades ampliadas.

Com a chegada da pandemia e o estabelecimento da quarentena, o contato


com a família passou a ser por aplicativo de mensagem, mas, infelizmente, nem
sempre havia o retorno. Em parceria com a professora da sala regular, a professora
do AEE organizou as atividades adaptadas para que pudesse realizar em casa com a
família, mas o estudante não acessou a plataforma virtual e a família também não
correspondeu as tentativas de contato feita por mensagens num aplicativo.
Figura 37 – Foto dos recursos de baixo custo

Recursos adaptados com materiais de baixo custo (papelão, fita adesiva colorida, papel
colorido, barbante, peças de encaixe de plástico). Fonte: Arquivo pessoal.

No início do ano de 2021, com a volta das aulas presenciais, o estudante


retornou para a escola, frequentando de acordo com o rodízio de sua turma, no
entanto, apresentava dificuldade para fazer o uso correto da máscara sobre o rosto,
necessitando de constante orientação e estímulo.

O trabalho colaborativo estabelecido entre a classe regular e o AEE foi


importante para oferecer os recursos adaptados necessários para suas
especificidades. Devido a sua dificuldade de coordenação motora, foi valorizado o
trabalho com recursos móveis para a escrita, em painéis com base de cor
contrastante para estimular sua acuidade visual.

Figura 38 – Fotos do estudante manuseando letras ampliadas

Letra ampliada feita com papel cartão e E.V.A. Letra de plástico ampliada (10cm)
Fonte: Arquivo pessoal. Fonte: Arquivo pessoal.

A adaptação também favorece aos estudantes que não possuem deficiência,


pois quando o recurso é pensado para contemplar a diversidade existente na sala de
aula, todos podem ser beneficiados. Tal premissa se baseia nos princípios do
Desenho Universal para Aprendizagem (DUA), que visam não somente a
acessibilidade física da sala de aula, mas amplia o enfoque para todos os aspectos da
aprendizagem, favorecendo ao grupo de estudantes.

Objetivamente, o DUA “[...] considera a variabilidade/diversidade dos


estudantes ao sugerir flexibilidade de objetivos, métodos, materiais e avaliações,
permitindo aos educadores satisfazer carências diversas.” (SEBÁSTIAN-HEREDERO,
2020, p. 735).

Um exemplo de adaptação para toda a classe foi o “Jacaré da matemática”,


um recurso para aprendizagem das operações básicas. Para o estudante com
deficiência múltipla, a adaptação foi feita em tamanho ampliado, utilizando papel
cartão colorido, E.V.A. e tampinhas de garrafa plástica. Para os demais estudantes,
foi feita uma versão utilizando papel sulfite colorido e os dentes foram
confeccionados em E.V.A.

Figura 39 – Fotos do recurso Jacaré da matemática

Recurso adaptado em tamanho ampliado. Recurso feito em tamanho convencional, com


Fonte: Arquivo pessoal. folha de sulfite. Fonte: Arquivo pessoal.

Assim, considerando a previsão da eliminação das barreiras para a plena


participação do estudante PAEE (BRASIL, 2008), a parceria estabelecida entre a
professora da classe regular e do AEE no trabalho colaborativo tem possibilitado que
alguns conteúdos curriculares sejam adequados de forma a favorecer o acesso de
todos os estudantes.

Dentro do conteúdo curricular para o 2º ano do ensino fundamental, estava


previsto o gênero textual “conto”, com o estudo da história “Chapeuzinho
Vermelho”. Como mencionado, o estudante apresenta boa comunicação oral, mas
tem dificuldades com a representação e registro dos conceitos. Devido às suas
especificidades, além da história ter sido trabalhada oralmente com toda a classe, foi
adaptado um recurso material para favorecer a percepção e compreensão do
estudante.

O material, produzido em folhas de papel cartão encadernado em espiral,


trazia os principais personagens em tamanho ampliado, com destaques na letra
inicial (feita em E.V.A) e texturas. Também possuía atividades interativas como a
localização do lobo no meio da floresta (posicionado atrás de uma árvore em forma
de aba para ser levantada pelo estudante), o lobo dentro da casinha da vovó (feita
com portinhas para abrir), e a vovó dentro da barriga do lobo (também feito com
abas). Um recurso simples, de baixo custo, mas que despertou a curiosidade do
estudante e contribuiu para que se familiarizasse com a sequência do conto. Esse
material também foi compartilhado para que os colegas da sala comum pudessem
explorar e participar de forma mais lúdica.

Figura 40 – Fotos do material ampliado do conto “Chapeuzinho Vermelho”

Fonte: Arquivo pessoal.

Com os desdobramentos do uso desse material, que gerou empolgação e


interesse na classe, surgiu a ideia de fazer a dramatização do conto com a
participação dos estudantes. A motivação decorreu do grande interesse de Paulo
pelo personagem “lobo”. Todos ficaram animados e a professora da turma
providenciou as fantasias (feitas de forma artesanal por sua irmã costureira). No dia
combinado, os estudantes vestiram os figurinos e se apresentaram de classe em
classe por toda a escola, encenando a história. Paulo participou representando o
lobo, repetindo algumas frases conhecidas da história com o apoio da professora da
classe regular como, por exemplo, “É pra te enxergar melhor!”. A contação foi
mediada pela professora do AEE, que buscava estimular a classe visitada a participar,
com comentários sobre os acontecimentos da história.
Figura 41 – Foto do figurino do conto “Chapeuzinho Vermelho”

Paulo, o lobo.
Fonte: Arquivo pessoal.

Essa experiência prática de aprendizagem de um conteúdo curricular


contribuiu não apenas para a compreensão do estudante PAEE sobre o assunto, mas
para todos da classe, que puderam vivenciar a história e explorar seus detalhes de
maneira lúdica e divertida.

Sabemos que no cotidiano escolar, com suas demandas e desafios, nem


sempre é possível ao professor regente promover situações envolventes e
diferenciadas. No entanto, em alguns momentos, é possível articular o conteúdo
curricular com propostas mais dinâmicas e atrativas para todos.

***

Com os exemplos abordados neste capítulo, buscamos apresentar algumas


alternativas encontradas no processo de escolarização dos estudantes com
deficiência múltipla dentro da classe regular. Reiteramos que a parceria entre os
professores e o suporte oferecido pelo AEE são estratégias que favorecem o trabalho
colaborativo, pois o compartilhamento de experiências e expectativas, bem como o
planejamento em conjunto contribuem para que a prática ocorra de forma mais
reflexiva e intencional.

A escolarização de estudantes com deficiência múltipla no sistema regular de


ensino ainda é um grande desafio para todos, pois carecemos de informações e
recursos que nos possibilitem atuar de forma mais consciente e direcionada. No
entanto, apesar das dificuldades, acreditamos que é possível buscar novos caminhos,
sempre respeitando e considerando a individualidade e especificidades de cada
sujeito.

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