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MUNDO DO TRABALHO

ESPAÇO URBANO E DIREITO À CIDADE: EFEITO


ESPOLIADOR DO PROGRAMA “JOÃO PESSOA SUSTENTÁVEL”
NA COMUNIDADE PORTO DO CAPIM-JOÃO PESSOA-PB

URBAN SPACE AND THE RIGHT TO THE CITY: DESPOILER


EFFECT OF THE PROGRAMME “JOÃO PESSOA
SUSTENTÁVEL” IN THE COMMUNITY PORTO DO CAPIM-
JOÃO PESSOA-PB

ESPACIO URBANO Y DERECHO A LA CIUDAD: EFECTO


EXPOLIADOR DEL PROGRAMA "JOÃO PESSOA
SUSTENTÁVEL" EN EL COMUNIDAD PORTO DO CAPIM-JOÃO
PESSOA-PB

Diego Pessoa Irineu de França1


e-mail: diegopessoairineudefranca@gmail.com

RESUMO
As cidades contemporâneas estão sendo reconfiguradas pelos imperativos do capital
financeiro. O Programa João Pessoa Sustentável (PJPS), do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) revela uma dinâmica socioespacial formatada pelos agentes
hegemônicos. Este artigo analisa a apropriação desigual do espaço urbano de João Pessoa-
PB e as interfaces contraditórias entre os megaprojetos e o direito à cidade das populações
periféricas. Metodologicamente, pautou-se em dados secundários, na análise documental,
na pesquisa participante, na elaboração cartográfica e na pesquisa de campo, desenvolvida
pari passu aos desdobramentos dos megaprojetos nas comunidades. Inicialmente,
caracteriza-se a magnitude escalar do PJPS. Posteriormente, enfatiza-se a especificidade de
João Pessoa no escopo da Iniciativa Cidades Emergentes e Sustentáveis (ICES), do BID.
Por fim, analisa-se o caráter espoliador de um dos seus subprojetos: o Parque Ecológico
Sanhauá, a partir da ameaça à Comunidade Porto do Capim.
Palavras-Chave: Espaço urbano; espoliação; direito à cidade.

1Doutor em Geografia pela FCT-UNESP-Presidente Prudente - SP. Professor adjunto da Universidade


Federal de Campina Grande – UFCG.

Revista Pegada – vol. 25 n.1 289 Agosto 2024


MUNDO DO TRABALHO

ABSTRACT
Contemporary cities are being reconfigured by the imperatives of capital. João Pessoa
Sustentável Programme (JPSP), financed by the Inter-American Development Bank (IDB),
is an example of how the city social and spatial dynamic has been formatted by the
hegemonic agents. This article reviews the unequal appropriation of the urban space of
João Pessoa-PB, considering the contradictory interfaces between the
infrastructure megaprojects and the peripheral populations’ right to the city. In a
methodological way, it was centered on secondary data survey, in the documental analysis,
in the participative research, in the mapping creation, as well as in the field research, carried
out pari passu with the megaprojects developments in the affected communities. Initially,
the JPSP great magnitude is characterized, in the capitalist reproduction framework that
focuses on some Latin American cities. Later, is emphasized the specificity of João Pessoa
which is located on the scope of the Emergent and Sustainable Cities (ESCI) of BID.
After that, the despoiler character of one of its subprojects is considered: The Sanhauá
Ecologic Park, more specifically, starting from threat to Porto do Capim Communityl.
Key Words: Urban space; spoliation; right to the city.

RESUMEN
Las ciudades contemporáneas están siendo reconfiguradas por los imperativos del capital
financiero. El Programa João Pessoa Sustentável (PJPS), financiado por el Banco
Interamericano de Desarrollo (BID), es un ejemplo de cómo las dinámicas socioespaciales
de la ciudad han sido formateadas por agentes hegemónicos. Este artículo analiza la
apropiación desigual del espacio urbano de João Pessoa-PB, entendiendo las interfaces
contradictorias entre los megaproyectos de infraestructura y el derecho a la ciudad de las
poblaciones periféricas. Metodológicamente, se basó en datos secundarios, análisis
documental, investigación participante, elaboración cartográfica, así como la investigación
de campo desarrollada pari passu a las consecuencias de los megaproyectos en las
comunidades afectadas. Inicialmente, se caracteriza la magnitud escalar del PJPS.
Posteriormente, se enfatiza la especificidad de la ciudad de João Pessoa cuando está dentro
del alcance de la Iniciativa de Ciudades Emergentes y Sostenibles (CIEM) del BID.
Finalmente, analizamos el carácter despoliador de uno de sus subproyectos: el Parque
Ecológico Sanhauá, más específicamente, de la amenaza a la Comunidad del Puerto de
Capim.
Palavras Clave: Espacio urbano; despojo; derecho a la ciudad.

INTRODUÇÃO

As transformações na dinâmica e estrutura do capitalismo financeirizado têm


reconfigurado o conjunto das relações socioespaciais ao provocarem uma exacerbação do
valor de troca sobre os valores de uso, acarretando efeitos na configuração do tecido social,
em especial, na cidade contemporânea. Os terrenos urbanos e as localizações estratégicas
despontam cada vez mais como ativos imobiliários e financeiros que, ao garantirem a

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reprodução do rentismo parasitário por parte de uns poucos grupos proprietários,


reproduzem a escassez para a grande massa da população trabalhadora, empurrada para os
guetos e privada de usufruir do conjunto de direitos constitutivos do direito à cidade
(HARVEY, 2020).

Engels (2015) foi um dos pioneiros a vincular a questão da “produção da escassez”2


de moradia à contraditória lógica capitalista, pois observou que, nas grandes cidades,
determinadas áreas sofriam uma valorização artificial. Se, por um lado, isso provocaria
demasiado interesse e enriquecimento privado, por outro, tal processo expurgaria a maioria
dos trabalhadores e populações empobrecidas do centro às periferias. Em suas palavras:

A expansão das metrópoles modernas confere ao terreno situado


em certas áreas, especialmente nas mais centrais, um valor
artificial que com frequência aumenta de forma colossal; [...] isso
acontece sobretudo com moradias de trabalhadores localizadas no
centro, cujo aluguel, por mais superlotadas que estejam as casas,
jamais ou só muito lentamente teria como ultrapassar um certo
valor máximo. Elas são demolidas e, em seu lugar, constroem-se
lojas, depósitos de mercadorias, prédios públicos. Em Paris, o
bonapartismo por intermédio de Haussmann explorou
colossalmente essa tendência na prática da fraude e do
enriquecimento privado (ENGELS, 2015, p. 40).

Sob tal perspectiva, na medida que o espaço se converte em mercadoria,


impulsionado por obras arquitetônicas, infraestruturas e prédios, interesses particulares,
disfarçados pela roupagem da impessoalidade estatal (HIRSCH, 2010; MASCARO, 2013),
ganham cada vez mais força, em função da negação do direito ao centro urbano a maior
parte das pessoas. Assim, tal encarecimento proposital do solo urbano não só inviabiliza
moradias de trabalhadores(as), como estabelece novas dinâmicas espaciais ao produzir uma
escassez intencional de uso seletivo do espaço (SANTOS, 2012, 2014).

2 Este termo entre aspas se justifica para chamar atenção sobre a forma com que Engels encara a questão da
moradia, vinculada ao agravamento das condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora em grande
parte da Europa, bem como ao vincular os projetos urbanísticos arquitetônicos hegemônicos como
produtores da espoliação dos trabalhadores do centro, que se dá tanto pelo encarecimento especulativo
imobiliário quanto pela violência aberta e cínica do poder estatal tal com visto nas obras de Paris pelo
bonapartismo do Barão de Haussmann. Por esta razão conclui Engels (2015, p. 56): “Uma coisa é certa,
porém: já existem conjuntos habitacionais suficientes nas metrópoles para remediar de imediato, por meio de
sua utilização racional, toda a real ‘escassez de moradia’. Naturalmente, isso só poderá ser feito mediante a
expropriação dos atuais possuidores, ou então mediante a acomodação, nessas casas, de trabalhadores sem
teto ou trabalhadores aglomerados nas moradias atuais [...] ”.

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O presente trabalho tem como objetivo central problematizar esta lógica


hegemônica de produção e apropriação desigual do espaço urbano, tendo enquanto fio
condutor o conflito existente entre megaprojetos de infraestrutura turística versus o direito
“inviolável” à moradia e à cidade pelos(as) trabalhadores(as). Analisar-se-á os efeitos de um
inédito Programa de intervenções urbanas, financiado pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), na cidade de João Pessoa-PB.

Para efeito deste texto, compreendemos o direito à cidade numa perspectiva ampla,
tal como discutida por Lefebvre (2001) para quem:

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos:


o direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat
e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito
à apropriação (bem distinto do à propriedade) estão implicados no
direito à cidade (LEFEBVRE, 2001, p. 134).

É notório como as grandes obras arquitetônicas e urbanísticas têm reconfigurado as


dinâmicas das cidades contemporâneas. Como enfatizamos, os efeitos causados para os(as)
trabalhadores(as) que habitam as comunidades periféricas, decorrentes da implementação
dos megaprojetos contemplados no “Programa João Pessoa Sustentável” (PJPS) e suas
subdivisões em projetos menores: como o Parque Ecológico Sanhauá (PES), sinalizam um
massivo processo de periferização, decorrente da expulsão de populações pobres. A partir
de uma análise escalar, torna-se possível vislumbrar que tal empreendimento se insere no
contexto da acumulação financeirizada latino-americana, sobretudo pelo caráter espoliador de
direitos e a espoliação de comunidades inteiras.

Quando considerado em sua amplitude, o PJPS poderá afetar mais de treze (13)
comunidades, situadas em áreas de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), ocupações
urbanas consolidadas e comunidades ribeirinhas, totalizando mais dez mil famílias ou,
ainda, segundo os dados oficialmente reconhecidos, cerca quarenta mil pessoas
impactadas3. Uma das comunidades ribeirinhas sob ameaça consiste na histórica
Comunidade Porto do Capim4, situada no centro histórico de João Pessoa-PB, às margens

3 Ver mais detalhes no documento: PARAÍBA. Plano de Ação João Pessoa Sustentável. 2014.
4 Esta Comunidade recebe esta denominação em função de estar situada na área das ruinas do antigo Porto
do Varadouro, que depois de anos de florescimento econômico, entrou em decadência e foi transferido para a
cidade de Cabedelo-PB.

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do Rio Sanhauá. Assim como ocorre em várias cidades históricas brasileiras e latino-
americanas (RIBEIRO, 2018) – em que se combina exploração turística do Patrimônio
Histórico com a mercantilização de belezas naturais –, a capital paraibana também passa
por um intenso processo de valorização de algumas áreas centrais, adquirindo novos
conteúdos à medida que o passado histórico de formação da cidade5, expresso nas
rugosidades geograficizadas, se mesclam aos conflitos contemporâneos, articulando as
resistências de moradores(as), de trabalhadores(as), de pescadores e marisqueiras ao direito
de viver dignamente no centro da cidade (SANTOS, 2014, 2019).

Como temos presenciado, a partir de várias experiências recentes, em que o


processo especulativo de financeirização subordina a localização urbana à lógica mercantil e
rentista, existe um conjunto questionamentos dos sujeitos sociais marginalizados para que a
cidade seja um lous de vida digna e não meramente um espaço oportuno de acumular
capitais, tal como previsto nos mais recentes empreendimentos especulativos e turísticos
aqui analisados.

O interesse pela temática advém de duas dimensões que se complementam no


processo de produção de conhecimento e de seu consequente vínculo à transformação
social. A primeira delas, de ordem teórico-científica, tem a ver com a tentativa de, a partir
da ciência geográfica, contribuir com a interpretação dos conflitos espacializados à luz da
totalidade socioespacial, que permeia os megaprojetos no município de João Pessoa-PB e,
com isso, superar as visões fragmentadas que pensam as intervenções (Capital-Estata) no
espaço urbano de modo isolado. Tal compreensão – recorrente na grande parte das
pesquisas sobre a presente temática –, pode comprometer as formas de resistências, cada
vez mais atomizadas, bem como contribuir para a dominação que se implementa a partir
dos gabinetes tecnocráticos, os quais se valem das divisões (entre as comunidades e intra-
comunitárias), bem como das visões fragmentadas que viabilizam os projetos de
dominação. A segunda razão, tem relação com nossa práxis ao longo de vários anos de
engajamento orgânico junto ao Movimento de Moradores e Moradoras do Porto do
Capim, a partir do qual foi possível estabelecer ações/reflexões acerca dos direitos

5 Vale ressaltar que se trata da terceira cidade mais antiga do Brasil, fundada em 1585.

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fundamentais que têm como âncora fundante o direito à cidade pela classe-que-vive-do-
trabalho 6(ANTUNES, 2018).

Com efeito, nossa abordagem teórico-metodológica se situa numa perspectiva


contra-hegemônica ao processo de conversão da cidade em valor de troca. Por tal razão, as
análises, aqui contidas, buscam corroborar com o direito à cidade das populações
trabalhadoras, de modo que a propriedade fundiária urbana cumpra sua função social e que
as áreas centrais não sejam apenas privilégio de poucos (MARICATO, 2015).

Como se verá, a lógica do poder público estatal, permeada pela irracionalidade do


capital, não é bem a de garantir direitos a todos. Ao contrário, ideia hegemônica é produzir
uma cidade despida do conteúdo urbano e das relações sociais e simbólicas que lhe
atribuem vida, o que é revelado pelos espaços vazios e a projeção de obras de concreto
onde antes eram moradias e biomas como o manguezal, cuja simbiose étnico-social
continua indispensável.

Assim como mencionou Lefebvre (2001), a produção dos “vazios” nas cidades tem
um sentido de glorificar o poder estatal que, através do uso violento e repressor do seu
braço armado, possibilita a criação dos largos espaços de controle, a aberturas de ruas, a
demolição de aglomerados, expulsão dos subúrbios etc. A esse respeito, a análise de Engels
(2015) tornou-se clássica ao sintetizar muito bem “método Haussmann”, cuja intenção, na
turbulenta Paris de meados do século XIX, consistiu em varrer os(as) trabalhadores(as)
pobres dos centros urbanos e favorecer ao controle estatal.

O interessante é perceber como as estratégias se atualizam e passam a legitimar a


expulsão de populações de espaços artificialmente valorizados. Mutatis mutandis, tal lógica
tona-se um componente fundamental para a compreensão dos processos incidentes nas
cidades periféricas contemporâneas que, sob os eufemismos à “cidade criativa, cidades
sustentáveis, Smart Cities e cidades em movimento”, endossam consensos acerca dos projetos

6 Este Movimento surgiu em 2017, em decorrência de um conjunto heterogêneo de demandas da sociedade


civil, que tinha no direito imediato à saúde e à cidade sua principal bandeira de luta. Através desse
movimento, continua sendo possível encaminhar diversas demandas populares (como Unidades de Saúde da
Família, Exames, utilização de prédios públicos e históricos pelos(as) trabalhadores(as), castração de animais),
construídas horizontalmente a partir de processos de Educação Popular que envolvem cinema de rua, rodas
de conversas, teatro de rua, panfletagem, manifestações públicas, interlocução com outros movimentos e/ou
entidades (a exemplo do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas-MLB, da Comunidade Ecumênica
Ecológica Irmão Francisco de Assis - CEIFA, da Associação Arte Yoga e da Mahikari João Pessoa).

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hegemônicos os quais refratam o caráter expropriatório inerente aos projetos


arquitetônicos e urbanísticos.

Com isso, ofusca-se ao conjunto da opinião pública que essas intervenções


urbanísticas, transfiguradas por pomposos lemas ditos “sustentáveis” ou com argumentos
de “salvar pessoas que há muitos anos se encontram em situação de vulnerabilidade”,
guardam em si a lógica da “destruição criativa”, bem como cumprem a função de absorver as
crises de sobreacumulação que converte espaços em ativos, isto é, em moeda de troca de
investidores imobiliários e/ou financeiros (HARVEY, 2016). Em outros termos, a palavra
“criativa” é factual apenas para os capitais que encontram meios de se reproduzirem às
custas dos despossuídos, que por sua vez, por muito tempo esquecidos pelo poder público,
repentinamente são “relembrados” da pior maneira, porque os espaços de subúrbios por
eles(elas) ocupados ganham novas funções especulativas e atraem fortes interesses
privados.

Seja pela apropriação simbólico-material das belezas naturais provocada pelos


“Parques Ecológicos” – que restringe o acesso à natureza dentro da cidade a quem pode
pagar –, seja pelo fetiche de apropriar-se das belezas arquitetônicas nos antigos centros
históricos, o capital valoriza artificialmente estas áreas ao dotá-las de novas construções,
que provocam expulsões em massa dos mais pobres. Desse modo, o direito à cidade é
suplantado por relações ancoradas na propriedade privada, isto é, o conteúdo da
sociabilidade urbana, circunscrito pelos mais diversos usos espaciais da população
periférica, tende a ser substituído por uma lógica indiferente assentada no valor de troca.

Certamente existe uma diferença substantiva tanto na organização espacial quanto


na lógica capitalista que incidem sobre as cidades do século XIX e mesmo de boa parte do
século XX. Entretanto, uma coisa parece certa, tal como assinalou Engels (2015): a mesma
lógica capitalista que cria os subúrbios urbanos torna-se responsável pela sua destruição e
recriação em outras localidades do meio urbano.

Nesta perspectiva, os projetos de “requalificação urbana” atuam a partir desta


lógica na cidade contemporânea, já que os(as) trabalhadores cada vez mais necessitam
morar em localidades que não conseguem pagar, seja pelo encarecimento do espaço, seja
pela depreciação dos seus salários, seja até mesmo pela forte precarização que assola a

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grande massa de trabalhadores(as) nos grandes centros. Em suma, a lógica que cria os
subúrbios como único meio garantir aos mais pobres uma localização estratégica é a mesma
responsável por destroçá-los como indesejáveis nos novos espaços de interesse do capital
(HARVEY, 2020).

Essa tendência a espoliar os pobres do centro e expropriar comunidades se


materializa nos projetos que analisamos a seguir, o que desvela a atualização de processos
violentos de acumulação, os quais passam paulatinamente a converter a cidade à lógica do
lucro, à especulação imobiliária e ao rentismo financeiro, entrelaçando tais esferas à
totalidade social que se articula no espaço urbano.

O PROGRAMA JOÃO PESSOA SUSTENTÁVEL: ARTICULAÇÃO ESCALAR


NO CONTEXTO DA FINANCEIRIZAÇÃO DO CAPITAL

Visto sob uma perspectiva abrangente, Programa denominado João Pessoa


Sustentável está articulado a um processo de acumulação que, ao combinar a lógica do
capital financeiro à implementação de megaprojetos de infraestruturas, tem se caracterizado
por violência, expropriação, destruição de modos de vida, destruição da natureza e violação
dos direitos básicos que garantem à existência na cidade.

Na América Latina, esse modelo de reprodução do capital, que tem na violência sua
mola propulsora, longe de se constituir na exceção, tornou-se a regra geral. Assim, ainda à
época dos governos autoproclamados progressistas, a Iniciativa de Integração física da
América Latina (IIRSA), os complexos hidrelétricos na Amazônia, a aceleração das grandes
obras minerárias, a reconfiguração das cidades – combinadas a um processo
desregulamentador, privatista e mercantil – sinalizavam como os grandes projetos
articulariam o reordenamento espacial aos agentes da financeirização (bancos, fundos de
pensão etc.), responsáveis por financiar e formatar os modelos dos projetos nos termos do
capitalismo flexível e neoliberal.

Esse processo passa por uma acentuação da contra-racionalidade neoliberal,


quando percebemos um capitalismo cada vez mais voraz, que desrespeita a

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institucionalidade posta e passa a exigir uma retração gradativa dos direitos sociais
combinado à conversão acelerada de tudo em valor de troca (recursos naturais, cidades,
populações territórios, força de trabalho etc.). Com pitadas de protofascismo, o bolsonarismo
pandêmico (FRANÇA, 2020) exacerba tal tendência ao executar uma verdadeira agenda de
austeridade em nome da financeirização (CHESNAIS, 2013). Tal fenômeno só demonstra
que não existe um capital financeiro transcendente ou absolutamente apartado da realidade,
mas que, em algum momento, os capitais acumulados têm que se materializar, nem que isso
implique em destroçar instituições, territórios e vidas para subsidiar sua lógica de acumulação
infinita. A produção desigual da cidade torna-se um lócus primordial de absorção dos capitais
excedentes (HARVEY, 2020).

Segundo Smith (2012), um amplo processo de transformações globais tendeu a


converter a gentrificação, de um nicho restrito ao capital imobiliário (nos anos 1960-70), em
vanguarda da transformação urbana contemporânea, presidida por uma nova forma de
“urbanismo da fronteira urbana”. No contexto norte-americano, o autor citado lembra-nos que
a valorização espacial ganha novas conotações a partir da criação dos parques urbanos:

las ocho hectáreas del parque Tompkins se transformaron rapidamente en


el símbolo del nuevo urbanismo de la «frontera» urbana. Después de
haber sido largamente abandonado a la clase trabajadora en medio de la
expansión suburbana de post-guerra, cedido a los pobres y desempleados
como reserva de minorías raciales y étnicas, de un día para otro, este
terreno del centro de la ciudad volvía a ser valioso, perversamente rentable
(SMITH, 2012, p.38).

Mesmo quando se considera as diferenças substantivas dos processos históricos de


formação territorial latino-americano, qualitativamente distinto do contexto da América
anglo-saxã, é possível perceber inter-relações complementares entre os fenômenos
gentrificadores, sobretudo em relação a conversão dos terrenos centrais em áreas de
valorização capitalista, sobrepondo interesses econômicos globais às necessidades humanas
elementares das populações periféricas (TORRES-TOVAR, 2019; LÓPEZ-MORALES;
SHIN; LEES, 2016).

Desse modo, as formas de intervenção na cidade, em que a produção do seu


espaço, os redesenhos sistemáticos projetados pelo corpo tecnocrático cada vez mais se
subordinaram à financeirização, implicando num conjunto de novas segregações

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socioespaciais, que compreende o agravamento das más-condições de vida das populações


vulneráveis e a ampliação das violações dos direitos fundamentais no viver e conviver no
espaço urbano desigualmente constituído (HOLM, 2010).

Portanto, como para o capital financeiro é mister fugir de suas crises através da
produção de cidade, é lógico que tal produção espacial implica em mais espoliação das
moradias, expurgo dos trabalhadores das periferias, em falta de transparência na construção
e execução dos projetos, bem como na consequente violação de um amplo leque de
direitos que permeiam o direito à cidade. O PJPS é um exemplo claro dessa forma de
acumulação capitalista que está circunscrita à cidade contemporânea e que ganha, na
Paraíba, sua forma particular.

PROGRAMA JOÃO PESSOA SUSTENTÁVEL E A CIDADE COMO VALOR DE


TROCA

O lançamento do “Plano de Ação João Pessoa Sustentável”, em setembro de 2014,


constituiu o ponto de partida oficial da maior série integrada entre planos, estudos, projetos
e financiamentos que viria a redefinir o espaço urbano da cidade de João Pessoa-PB,
abrangendo desde projetos arquitetônicos-urbanísticos até a reestruturação dos aparatos
legais como o Plano Diretor de João Pessoa (PDJP). Tal Programa representa a forma mais
concreta de explicitar a vontade política hegemônica, que alia capital financeiro e poder
estatal para criar dotação orçamentária e as metodologias a serem empregadas à realização
de um conjunto de intervenções urbanas, de maneira ainda inédita, na cidade de João
Pessoa. (Mapa 1).

Mapa 1. Abrangência física do Programa João Pessoa Sustentável e Comunidades


afetadas

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Fonte: Autoria Própria.

O modelo está amparado na perspectiva da assim chamada Iniciativa Cidades


Emergentes e Sustentáveis (ICES), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
que se trata de um programa voltado às cidades consideradas de médio porte na América
Latina e Caribe, se valendo da tendência crescente das taxas de urbanização. A cidade de
Goiânia-GO tonou-se pioneira a receber um projeto-piloto dessa monta, em 20117. A
partir de 2013, João Pessoa-PB tornou-se a primeira cidade nordestina a aderir a ICES,
numa pré-seleção ao Programa que, entre tantos critérios, considerava alto crescimento
populacional, ter relativo crescimento do PIB, ter “sustentabilidade do endividamento e boa
capacidade de pagamento do serviço da dívida (juros e amortização)” (PARAÍBA, 2014).

Com a previsão orçamentária da ordem de U$ 200 milhões de dólares, sendo


metade deste valor em empréstimo junto ao BID e a outra em contrapartida do município
de João Pessoa, tal iniciativa tem contado com a atuação articulada de agentes nacionais e

7Os critérios consideram cidades que variam entre 100 a 200 mil habitantes. Outras cidades brasileiras como
Palmas-TO, Vitória-ES, Florianópoles-SC também aderiram ao Programa.

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estrangeiros como Caixa Econômica Federal, o próprio BID, a Fundação Joaquim Nabuco,
a Fundação Apolônio Salles e a Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP), bem como a
assessoria para estudos de pré-viabilidade de empresas internacionais como Korean Land &
Housing Corporation (LH) e da sueca Saab (PARAÍBA, 2014; BID, 2018).

O tema da desigualdade urbana assume um lugar de destaque na concepção dos


megaempreendimentos, que projetam uma cidade ideal, lastreada por uma ideologia
tecnocrática que, conforme Lefebvre (2001), torna-se uma prática hegemônica nos círculos
urbanísticos e que pretendem resolver complexos problemas a partir dos gabinetes
burocráticos. Diante disso, cabe questionar: a quem tal lógica atende, mesmo quando
diluída no subterfúgio do combate à pobreza? Esta indagação torna-se pertinente à medida
que percebemos que o estabelecimento de áreas prioritárias para dar início das intervenções
coincide com as áreas onde se estabeleceram populações empobrecidas e que, sob o drama
da precarização do trabalho, conseguiram construir suas casas e reproduzir-se socialmente
durante anos de quase absoluta indiferença do Estado.

Ora, o fato que se explicita é que tais projetos hegemônicos advém de pensamentos
exógenos e desconhecem o cotidiano de inventividade e adaptabilidade das comunidades
aos lugares, bem como buscam por camuflar as reais intenções estratégicas de
mercantilização da cidade sob a cortina do enfrentamento das “desigualdades urbanas”, da
“redução da pobreza”, do fomento ao “desenvolvimento sustentável”, das cidades
inteligentes ou Smart Cities8, entre outros aspectos previstos nos estudos prévios e projetos,
que estabelecem as áreas “prioritárias” para intervenção.

Não é muita coincidência que comunidades, por décadas esquecidas pelo poder
público, sejam percebidas como “prioritárias” nos chamados projetos de requalificação
urbana? Será que isso se dá pelo fato de tais comunidades se situarem em áreas dotadas de
belezas estéticas e naturais, onde o interesse imobiliário pela “natureza” torna-se crescente
diante do caos urbano atual? O fato destas comunidades estarem circunscritas em espaços
intermediários entre áreas bastante valorizadas e áreas de expansão da valorização dos
terrenos urbanos as tornam, obviamente, indesejáveis nestes locais onde impera a ideologia
higienista disfarçada de “requalificação” (JANOSCHKA, SEQUERA; SALINAS, 2014).

8 http://pdjp.com.br/planodiretor/

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Talvez os próprios documentos oficiais nos ajudem a entender, se conseguirmos perscrutar


nas entrelinhas do seu vasto leque de eufemismos:

A Prefeitura Municipal de João Pessoa busca diferentes caminhos para


enfrentar o desafio de diminuição da desigualdade urbana verificada na
cidade. Uma estratégia proposta consiste na atuação em áreas específicas
do território a partir de uma intervenção integrada do ponto de vista
urbanístico e social, buscando soluções inovadoras. Conforme citado
anteriormente, decidiu-se começar os trabalhos por dois complexos de
comunidades existentes na cidade: o Complexo Beira Rio e o Complexo
Linha Férrea. O primeiro compreende oito comunidades e,
aproximadamente, 3.614 famílias, enquanto o segundo soma cinco
comunidades e, aproximadamente, 6.440 famílias. No total temos uma
população de, aproximadamente, 40 mil pessoas (4 integrantes por
família) carentes de infraestrutura adequada rodeada por bairros de classes
médias e altas” (PARAÍBA, 2014, p. 87).

O que salta aos olhos, mesmo para um leitor não especializado, é que a única
solução inovadora perseguida é a eficiência de mercado para racionalizar o uso da terra
urbana de modo a favorecer a apropriação, compra, venda e especulação imobiliária,
mesmo que tal processo repercuta na espoliação massiva das populações empobrecidas.
Por esta razão, percebemos que a racionalidade hegemônica busca caracterizar os níveis de
“competitividade” de seus projetos, atribuindo verdadeiros (pré)conceitos à determinadas
áreas da cidade, o que impulsiona violentos processos segregação, materiais e subjetivos,
que, ao incidirem negativamente sobre as periferias, legitimam a expulsão sistemática nas
áreas recém valorizadas (JANOSCHKA, 2016).

É exemplo disso a aplicação ao complexo Linha Férrea e Complexo Beira Rio do


modelo “SWOT”, sigla em inglês que se refere respectivamente aos fatores: Strengths
(Forças), Weaknesses (Fraquezas), Opportunities (Oportunidades) e Threats (Ameaças).
Desse modo, não é fortuito passarem a designar os subúrbios como “áreas violentas” e de
parca “governabilidade”, exatamente para justificarem os processos de intervenção
gentrificadores e as consequentes “necessidades” de espoliação dos mais pobres dos centros
(MARCO; SANTOS; MOLLER, 2020).

Como veremos, o caminho indicado para a resolução dos problemas, pelos


gabinetes tecnocráticos, consiste em criar consensos legitimadores do deslocamento
massivo de moradias, inicialmente para locais circunvizinhos – para ganhar a adesão

Revista Pegada – vol. 25 n.1 301 Agosto 2024


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ingênua dos sujeitos atingidos –, posteriormente para áreas distantes dos novos centros de
valorização espacial da cidade. Na verdade, o pensamento hegemônico busca, mais que
resolver os graves problemas que atingem os sujeitos das periferias, a relocalização destas
populações para onde não possam “atrapalhar” especuladores e rentistas interessados no
negócio da cidade. Assim, o valor de troca atribuído ao espaço amplia-se vertiginosamente, a
despeito das sociabilidades e temporalidades da vida cotidiana, constituintes do conteúdo
urbano, que permeiam várias comunidades afetadas (SANTOS, 2019).

As empresas contratadas pelo poder público para projetar os modelos


arquitetônicos e urbanísticos globais, bem como para redefinir instrumentos legais de
gestão urbana, acabam por ditar verticalmente o que deve ou não ser compatível para a
cidade. Desse modo, são pouco flexíveis a mudanças nas propostas preconcebidas nos
gabinetes tecnocráticos, como sinaliza o financiamento do PDJP que, por razões óbvias,
tenderá a assumir uma feição similar aos interesses estratégicos do capital financeiro9.

Além disso, o PJPS, aqui analisado, vem sendo construído e estudado, desde 2013,
por empresas estrangeiras, fundações e think tanks de instituições financeiras. Entretanto,
apenas agosto de 2019, em audiência pública articulada pelo Movimento de Luta nos
Bairros, Vilas e Favelas (MLB-PB), na Câmara municipal de vereadores, é que as
Comunidades são comunicadas publicamente sobre a envergadura dos projetos e dos seus
custos econômicos e sociais. Uma rápida olhada na cronologia dos documentos elaborados
pelo BID, pela PMJP e/ou por assessoria contratada, revela não apenas a abrangência e
complexidade em questão, mas também a estratégia de sua construção no longo prazo;
vale-se dizer: à revelia da maior parte da população afetada. (Figura 1).

Figura 1. Sequência de ações do Programa João Pessoa Sustentável

9 Para mais detalhes consultar: PARAÍBA (2020) Licitação 91.002/2020. Neste contrato está previsto o valor
de 2.8037,01 para a contratação de Consultoria para a Revisão do Plano Diretor de João Pessoa. Para mais
detalhes deste processo: http://pdjp.com.br/planodiretor/ . Vale ressaltar o objeto desta licitação conforme
consta no portal da transparência da Prefeitura de João Pessoa: “Contratação de consultoria para o
desenvolvimento dos serviços necessários à revisão do Plano Diretor Municipal de João Pessoa (PDMJP) e
legislação correlata, conforme orientações do Estatuto da Cidade – Lei Federal nº 10.257/01,
compreendendo a realização de levantamento de dados, elaboração do diagnóstico técnico e comunitário,
definição de diretrizes e propostas, elaboração do Plano de Ação e Investimentos e a institucionalização do
plano, além da organização, divulgação e execução de Reuniões Técnicas, Reuniões Comunitárias, Oficinas,
Audiências, Conferência e Capacitação”.

Revista Pegada – vol. 25 n.1 302 Agosto 2024


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Fonte: Elaboração própria a partir da ferramenta digital Miro. 2022.

Com efeito, tais sujeitos esquecidos pelo poder público também descobrem que o
terreno onde habitam ganhou repentinamente interesses imobiliários, turísticos e
especulativos. Contudo, isso ocorre apenas quando a ameaça de expropriação pelos
megaprojetos bate à porta. Vejamos como tal processo se deu num caso específico: o
Parque Ecológico Sanhauá.

O PARQUE ECOLÓGICO SANHAUÁ E A IMINENTE ESPOLIAÇÃO NA


COMUNIDADE PORTO DO CAPIM

Este projeto consiste numa das subdivisões das grandes obras previstas no PJPS.
Tratam-se de contratos que ameaçam reconfigurar as sociabilidades, as condições de
trabalho e locacionais nas comunidades afetadas. De maneira hierarquizada, induzem as
pessoas e as comunidades a participarem de espaços deliberativos sem que necessariamente
as mesmas tenham plena consciência crítica e política tanto dos direitos que estão na
iminência de serem violados quanto a envergadura escalar dos projetos, planos,
diagnósticos e dos exorbitantes volumes de recursos.

Para começar, é mister apresentar alguns indicadores acerca dos montantes de


recursos públicos envolvidos para o financiamento desses projetos, seja para realização dos
estudos preliminares (mapeamentos, cadastros, diagnósticos, relatórios técnicos,
anteprojetos de urbanização etc.), seja para custeio das obras após os processos licitatórios.
As informações, a seguir, foram disponibilizadas pela Caixa Econômica Federal, no dia 15

Revista Pegada – vol. 25 n.1 303 Agosto 2024


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de março de 2017, em informativo direcionado ao Grupo de Trabalho (GT) das


intervenções no Porto do Capim, no qual traça-se um panorama da situação dos contratos
firmados entre a PMJP e a Caixa. Ao todo, existiam, à época, oito contratos, que somados
ultrapassam a ordem dos duzentos milhões de reais, destinados a financiar processos de
regularização fundiária, de urbanização de assentamentos precários, a apoiar estudos e
projetos de urbanização e requalificação, construção de habitação, mobilidade urbana,
implementação de Parque Ecológico Sanhauá, entre outros. (TABELA 1).

Tabela 1. Situação dos contratos e projetos junto à Caixa - em 2017


Contratos Fonte Program Finalidade Situação Remo R$
a ção
PAC PAC Pró- Urbanização e 50% rec. Não 24.142481,8
Sanhauá moradia regularização aplicados. 9
de Ass.
Precários.
PAC PAC 2 Intervenç Planos e 34% Não 1.170.000,0
Sanhauá 2 ão em projetos de concluídas 0
favelas Urbanização de
de Ass. levantame
Precários. * ntos,
diagnóstic
o
concepçõe
s
urbanística
s e estudos
preliminare
s**
Arena OGU- PAC Cid. Requalificação Projetos 350 16.185.000,
Eventos PAC históricas urbanística do aceitos família 00
PC antigo Cais do pela Caixa, s P.
Porto e Arena em julho XV
de Eventos e de 2014, Nov. e
cultura aguardand Porto
o licitação. do
Com Capim
aprovações
do IPHAN
e órgão
ambiental

Revista Pegada – vol. 25 n.1 304 Agosto 2024


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(Sic).
Vias de OGU- PAC Cid. Requalificação Acatada Não 4.947.12,31
acesso PC PAC históricas das vias de pela caixa;
acesso ao recursos
Antigo Porto empenhad
do capim os, mas
obra ainda
não
licitada.
Parque OGG PAC Cid. Revitalização, Proposta 50 15.120000,0
Ecológico U- históricas construção de acatada família 0
Sanhauá PAC parque pela Caixa. seo
Infraestruturas Não assent
turísticas licitada e ament
não o sem
iniciada. nome
BRT – PAC PAC- Apoio a Não - 88.350.772,
JPA Mobilida projetos licitada e 38
de urbana não
iniciada
BRT – PAC PAC- Apoio a Não - 60.000.000,
JPA - Pró- projetos licitada e 00
corredores transport não
e iniciada
Vila FAR e MCMV Requalificação Não 4.584.992,5
Sanhauá FGTS de imóveis 8
antigos
Fonte: Caixa Econômica Federal (2017). Material impresso. * Estudos cadastrais, urbanísticos,
fundiário e Legal, estudos de concepção urbanística, projetos básicos de urbanismo. ** Nas
comunidades do Porto do Capim, Alto do Mateus e Comunidade do “S”, no baixo Roger.

Ao observarmos em perspectiva histórica, as experiências dos conflitos urbanos e


dos desdobramentos circunscritos, no centro da cidade de João Pessoa, sinalizam que as
obras que poderiam melhorar a qualidade de vida das populações situadas em áreas de
subúrbios não avançaram, a exemplo de habitações sociais e das obras de mobilidade. Ao
contrário do que aconteceu com outros projetos que incidem diretamente sobre a vida dos
sujeitos ao remover boa parte das comunidades, sobretudo com o Parque Ecológico
Sanhauá e demais projetos, que atingem diretamente o Porto do Capim, de onde se
estimava o reassentamento de quatrocentas (400) famílias (ver Tabela 1). Tais indicativos,

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apenas reforçam a tese de uma atualização das práticas excludentes de “higienização”


contidas numa espécie de versão atualizada do “método Haussmann”. (Mapa 2).

Mapa 2. Parque Ecológico Sanhauá e complexidade no entorno do Porto do Capim

Fonte: elaboração própria (2021).

O mapa 2 sugere uma complexidade de situações de apropriação dos terrenos e


prédios na Comunidade Porto do Capim. Desse modo, a regularização dos imóveis e dos
terrenos ainda são muito imprecisas, se sobrepondo situações em que algumas áreas são de
domínio da União, porém, por estarem ocupadas por população ribeirinha consolidada (há
mais 70 anos) não permite serem cedidas tão facilmente à PMJP para a construção do
Parque Ecológico10.

10 Ver Decisão Judicial Processo-Ação Civil Pública: 0809683-26.2019.4.05.8200 de 21/02/2020. Neste


documento, vê-se que decisões de embargos temporários sobre a obra “Parque Ecológico Sanhauá” se valem
do argumento acerca da dubiedade da cessão ou regularização da área de patrimônio imobiliário da União ao
poder público municipal e não adentram no mérito de reconhecer ou não a tradicionalidade, ou até mesmo o
direito de posse da comunidade ribeirinha atingida. Este pode ser um sinalizador de um entendimento

Revista Pegada – vol. 25 n.1 306 Agosto 2024


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Outra situação gritante são os vários prédios históricos tomados por empresários e
madeireiras privadas, que se valem das comunidades circundantes como redutos de força
de trabalho barata, usufruem das vantagens locacionais de estarem no centro e também
gozam do uso (nem sempre legal) de grandes prédios públicos para fins privados. Essa
situação fundiária e dominial é impossível de ser aprofundada neste artigo. Entretanto, tal
questão pode ser melhor compreendida a partir de um Relatório Técnico da
Superintendência do Patrimônio da União na Paraíba (SPU), que consiste no mais
completo documento público acerca da condição dos imóveis da União e da propriedade
na área do “Projeto de Requalificação Urbana do Porto do Capim”. Vale indicar que o
referido relatório identificou vários imóveis sob o regime de “ocupação” que, ao contrário
da condição de “aforamento”, sugere uma inadimplência da taxa anual de particulares para
com a União (BRASIL, 2016).

Ao que tudo indica, os grandes empresários que, além de usufruírem das vantagens
anteriormente mencionadas, e nem sempre cumprirem com suas obrigações legais, mesmo
assim, não estão vulneráveis à interrupção de suas atividades pelos megaprojetos. De outro
lado, uma população ribeirinha periférica de trabalhadores(as), cujo direito de posse
consolidado está previsto na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001) e em Convenções internacionais (como a 169 da Organização Internacional
do Trabalho-OIT), se vê forçada a abdicar de suas casas e, principalmente, de uma
localização na cidade que lhe permite acessar um conjunto de direitos (emprego, transporte,
lazer) necessários à reprodução social.

É interessante atentarmos pelo menos para dois pontos essenciais, que servem
como aprendizado para os movimentos sociais atuante e para as próprias comunidades que
poderão ser afetadas por projetos desta envergadura e característica espoliadora. O
primeiro deles, consiste que as promessas de criar obras que melhorariam a vida nas
comunidades (habitações, infraestrutura básica, transporte etc.) são paulatinamente
secundarizadas e/ou abandonadas ao longo do percurso de negociação com o poder
público estatal (municipal), sobretudo após firmarem os trâmites licitatórios. O segundo,
refere-se ao fato que o discurso autoproclamado pelo Estado de “salvar pessoas em

jurídico que legitime inexoravelmente a remoção da comunidade, já que prioriza o direito do poder público
em realizar o projeto e não reconhece o direito de posse dos ribeirinhos.

Revista Pegada – vol. 25 n.1 307 Agosto 2024


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situação de risco e assentá-las em locais próximos”, torna-se o ponto de partida para


legitimar ou criar consensos para o deslocamento de massas de trabalhadores(as)
empobrecidos(as), das áreas centrais para áreas periféricas, à margem da dinâmica dos
centros urbanos.

Entretanto, para que o poder público consiga criar a legitimidade de que necessita
em tais consensos, torna-se necessário promover um amplo debate que articule, por sua vez,
não apenas um conjunto de instituições públicas e privadas, mas também os próprios
afetados pelos megaprojetos. Em termos gramscianos, a forma da dominação, seja pelo uso
da força, seja pela via do consenso não altera o resultado, pois por uma forma ou por outra
(ou por ambas pari passu) pode-se endossar processos de controle e expropriações
“violentos” (GRAMSCI, 2016).

O fato de as “remoções involuntárias” – para usar um termo dos documentos do


BID –, incidirem sobre comunidades tradicionais consolidadas (que gozam de vários
direitos), não dá alternativa ao poder público – tão familiarizado com o uso da força –
senão a criação e o controle de espaços de consenso e de diálogo para canalizá-los ao
atendimento dos interesses preestabelecidos. Como se deu, então, esta forma de dominação
pelo consenso, no caso do Porto do Capim e do Parque Ecológico em questão?

Ao que tudo indica, uma análise detalhada sobre os documentos desenvolvidos pela
experiência do Programa de Requalificação Urbana, Ambiental e Patrimonial do Porto do
Capim - PROEXT/UFPB11, entre 2015 e 2016, revela esta contraditoriedade de uma
“dominação consensuada”. Inicialmente, pensado como forma participativa para criação de
alternativas aos projetos hegemônicos, observa-se, posteriormente: por sua abrangência,
pelos produtos gerados e por seu respaldo acadêmico-científico, que tal Programa acabou
ratificando os processos licitatórios dos megaprojetos, cujas prerrogativas preliminares para
implementação são, justamente: audiências, consultas públicas, estudos prévios, pré-
projetos etc. Ou seja, todo o processo que ocorreu ao longo do referido PROEXT/UFPB,
contemplou uma teia de ações que estão detalhadas nos estudos de Scocuglia (2019); Silva
(2020); Gonçalves (2014); Catarino et al, 2015; Assad (2017), cujos dados serviram, em

11Tratou-se de um Programa de Extensão multidisciplinar, envolvendo cerca de 15 bolsistas e pesquisadores


de várias instituições como a UFPB e a UFBA. Ao longo dos anos em questão produziu um conjunto de
oficinas participativas, atividades de mapeamentos, relatórios técnicos, construção de pré-projetos etc. Logo
tornou-se mediador no conflito entre as Prefeitura Mun. de João Pessoa e a Comunidade Porto do Capim.

Revista Pegada – vol. 25 n.1 308 Agosto 2024


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última instância, para legitimar ideologicamente o consenso da dominação do capital, na


expropriação do direito à cidade.

De posse dos vários documentos, mapeamentos, relatórios e outros materiais12, o


poder público esvaziaria e limitaria o conteúdo da participação social, que se restringiria a
legitimar propostas previamente concebidas, bem como daria a cartada final diante de tudo
que havia sido consensuado até então, rompendo unilateralmente as negociações. Eis o
paradoxo: o PROEXT/UFPB que foi criado como alternativa e até hoje advoga o status de
resistência, logo tornar-se-ia instrumentalizado pelo jogo do poder, servindo como
catalisador de mobilização da comunidade para que a mesma participasse de mesas de
negociações assimétricas, que tornam as remoções involuntárias dos(as) moradores(as) da
comunidade como um fato inexorável.

Consciente ou não, o PROEXT/UFPB operacionalizou uma espécie de hegemonia


às avessas, nos termos de Oliveira (2018), mediando a condução dos oprimidos por mesas
de negociações aparentemente isonômicas e democráticas, mas realmente assimétricas e
desiguais. Além de produzir consensos sobre remoções, advogando o paradigma “público
participativo” – tão funcional ao BID – tornou-se um elo entre as propostas oficiais e as
demandas comunitárias, mobilizando-a a produzir soluções para sua própria remoção
(ainda que parcial). Portanto, a experiência mostrou um PROEXT que tornou efetiva a
estratégia dominante, a qual se apropriou do trabalho de diversos pesquisadores(as)
vinculados às instituições e órgãos públicos para criar consensos, conhecer, fragmentar e
dominar as comunidades. Não é mera coincidência que a Comunidade Porto do Capim
seja uma das mais conhecidas do Brasil, sobre a qual tanto o poder público quanto o capital
dispõem de informações detalhadas, que vão desde levantamentos socioeconômicos e
mapeamentos, até descrições etnográficas e históricas dos sujeitos e desta porção da cidade.

Se tal conhecimento pode suscitar resistências13, também pode significar uma


armadilha, como se tem visto através do uso desse vasto leque de informações pelo poder

12Ver Procedimento administrativo no MPF-PB, nº: 1.24.000001.117.2015-16.


13 Neste caso, o Parecer Técnico Antropológico nº 03/2015, em tese, atribui um conjunto de prioridades a
esta comunidade tradicional, dentre elas o direito de consulta prévia, livre e esclarecida sobre qualquer tipo de
intervenção de projetos de infraestrutura. No entanto, um uso restrito do conceito pode gerar fragmentações
internas, na medida que algumas áreas não estão em contato direto com o rio, bem como alguns moradores
possuem um direito de posse mais recente previstos em outras legislações. Daí pode gerar dúvidas e conflitos
acerca do critério para definir quem faz parte ou não da dita Comunidade Tradicional Ribeirinha.

Revista Pegada – vol. 25 n.1 309 Agosto 2024


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público para fragmentar, aprofundar as tensões internas e atuar nas fragilidades


contraditórias das comunidades. Lamentavelmente, essa instrumentalização de boa parte do
conhecimento acadêmico e subsunção dos recursos públicos aos parâmetros e requintes do
status quo, curvou parte dos projetos de pesquisa e extensão à agenda dos contratos e dos
licenciamentos dos projetos14.

Tal ilusão assentada na participação durou pouco tempo: até 19 março de 2019,
quando a PMJP rasgou o véu e rompeu unilateralmente com todos os pactos firmados até
então junto às instituições públicas e os mediadores. O marco disso foi a notificação
administrativa emitida pelo poder público municipal que estabelecia 48 horas aos
moradores para abandonar suas casas, desconsiderando qualquer tipo de negociação
anterior. No entanto, a estratégia de consenso institucional, que reforça a dominação pela
via participativa, continua sendo implementada em outras áreas periféricas, em processos
semelhantes. Nesse caso do Porto do Capim, ao que parece, a participação tão reivindicada
por algumas entidades sociais tornou-a ainda mais vulnerável, funcionando como uma
espécie de manto de Medeia que envolveu a própria comunidade e, usando de suas
próprias forças, a enfraqueceu. O desfecho espoliador tem sido trágico. Como se observa
nas fragmentações internas, bem como as outras formas de criminalização das periferias,
que reforçam as expulsões das famílias mais vulneráveis. (Figura 2).

14 Como sugere o trecho do documento Mapas dos Desejos produzido pelo PROEXT: “Esse apoio consiste
na dedicação à causa, da inteira equipe do Proext - Requalificação Urbana, Ambiental e Patrimonial do Porto
do Capim, também denominado de Abrace o Porto, que atualmente conta com mais de 65 pessoas,
diretamente ou indiretamente envolvidas no projeto. Cabe ressaltar que o Proext possui uma sede própria na
comunidade e que também dispõe de recursos federais, provindos do Ministério da Educação, para prover a
bolsa de extensão a 15 alunos de graduação, e também para realizar a aquisição dos equipamentos necessários
ao desenvolvimento do projeto. Consideramos portanto tratar-se de uma oportunidade única para que a
universidade pública possa desempenhar o seu papel social, colocando os saberes por ela gerados à disposição
de uma causa real, contribuindo assim para a construção de uma cidade mais justa e igualitária [...] Cientes da
urgência que a PMJP tem para concretizar a liberação das verbas, tanto do PAC cidades históricas como
aqueles recursos provindos do programa MCMV, estando também ao par de todas as fases que precisam ser
cumpridas para o envio do projeto para a etapa de licitação pública, nos colocamos à inteira disposição do
MPF e da PMJP para dar continuidade às oficinas e colaborar, desta forma, à elaboração de um projeto, para
a inteira área, de fato participativo” (MAPA DOS DESEJOS - PROEXT, p.23).

Revista Pegada – vol. 25 n.1 310 Agosto 2024


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Figura 2. Vista panorâmica da área da Vila Nassau. Primeiras casas demolidas pelo
Parque Ecológico Sanhauá

Casa demolida

Demolição de
Casas no Galpão

Entulho da
demolição das
casas

Fonte: Pesquisa de campo. Auxílio técnico: Dr. COSTA, Ivanildo (2021).

Em última análise, a estratégia de dominação pelo consenso não é nova. Ela não só
está sendo usada na Comunidade Porto do Capim, como também tem sido
operacionalizada pelo BID nas comunidades do chamado Complexo Beira rio e,
possivelmente, em várias comunidades periféricas na América Latina. Ao analisar história
dos projetos que envolvem as chamadas “remoções involuntárias” de populações, e
preocupado com sua reputação diante do alarmante número de afetados por seus
megaprojetos (que ultrapassam 650 mil pessoas)15, o próprio BID nos dá pistas de como o
controle dos processos participativos, ao invés do uso da força direta, torna-se mais efetivo

15 Segundo a Operação 710, desde 1970, pelo menos 120 projetos do BID implicaram ou deverão implicar
reassentamento involuntário. Desses, 54 projetos foram concluídos, 56 estão em execução e 10 estão em
tramitação. Entretanto, como se tem informações apenas para 75 desses projetos, prescindindo de
informações para 45 projetos restantes, o número total de pessoas afetadas pode ser muito maior. Vale citar
literalmente o que traz o documento mencionado: “Quatro projetos de desenvolvimento urbano no Chile que
afetaram um grande número de pessoas e tiveram impacto social significativo não foram incluídos na análise
por causa das dúvidas se deveriam ser classificados como involuntários. Em todos eles, o reassentamento foi
o resultado da melhoria das condições de vida em assentamentos marginais onde existiam riscos potenciais de
enchentes ou desabamentos” (p. 15).

Revista Pegada – vol. 25 n.1 311 Agosto 2024


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para remoção de populações consolidadas como é o caso da Comunidade Porto do Capim.


Vejamos:

Uma abordagem participativa assegura maior aceitação e um plano de


reassentamento mais realista e sensível. O processo de informar e
consultar comunidade, tanto a deslocada como a anfitriã, ajuda a habilitá-
las e as estimula a manifestar as suas reivindicações e prioridades por
canais institucionais em vez de forma que possam exacerbar conflitos
potenciais. Organizações comunitárias fortes facilitam o processo de
reassentamento. Elas também estimulam a comunidade a assumir a
responsabilidade de impedir a usurpação por meio de oportunistas, a
contribuir para a construção, operação e manutenção da infraestrutura e a
assumir um papel ativo na supervisão do avanço das atividades de
reassentamento. O documento sobre o Oitavo Aumento do Banco
incorpora esse princípio ao afirmar que […] é possível reforçar o trabalho
do Banco mediante acesso a informação e consulta com os setores da
população e ONGs locais que possam contribuir para assegurar que os
projetos do Banco sejam bem elaborados” (AB-1704, parágrafo 2.95)
(BID, 1998, p.24).

A implementação do Parque Ecológico Sanhauá é um exemplo desta estratégia


supracitada. Conforme observamos a partir de algumas reuniões e/ou audiências públicas,
realizadas pelo conjunto de atores que compõem a tecnocracia responsável por viabilizar tal
obra, a preocupação frenética nos espaços deliberativos, recaia, quase sempre, sobre
cumprimento inexorável dos prazos dos contratos, em nome de uma suposta eficiência da
gestão e do uso dos recursos disponíveis. Mesmo quando se observa que tal intransigência
contratual significa espoliar um número elevado de famílias de suas casas e das localidades.

Desse modo, as populações de baixa renda e escolaridade praticamente


desconhecem o que está por trás das “boas intenções tecnocráticas”, tampouco das
articulações dos projetos em sua totalidade. Contando com a cooptação de pessoas
próximas, lideranças comunitárias e, até mesmo com conivência de instituições públicas, os
megaprojetos do tipo em questão, não só provocam uma série de fragmentações internas
nas comunidades periféricas, como também controlam os espaços deliberativos; de modo a
conduzir as decisões, neles tomadas, para desfechos inexoráveis. Diante da suposta
“inevitabilidade” das remoções, os gabinetes tecnocráticos projetam uma cidade ideal –
mesmo sob a aparência participativa – à revelia dos atingidos. As decisões estabelecidas
verticalmente priorizam a discussão de um destino “menos ruim” ou de um lugar menos

Revista Pegada – vol. 25 n.1 312 Agosto 2024


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distante para o reassentamento das comunidades atingidas. Como para a lógica do capital o
centro urbano revalorizado é inegociável, resta aos trabalhadores(as) a luta pelo direito à
cidade que se dá no campo da luta de classes geograficizada no espaço urbano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Programa João Pessoa Sustentável que se insere no contexto da ICES do BID,


mesmo que se proponha a “acabar” com a desigualdade, expulsa as famílias de localidades
estratégicas e acaba recriando as desigualdades em outros lugares. A expulsão dos sujeitos
empobrecidos de onde não são desejáveis, longe de significar redução da vulnerabilidade
social, consiste em dotar certos espaços de valorização artificial ao sabor do rentismo
imobiliário/financeiro. Desse modo, taxar as comunidades afetadas como “áreas de risco”
cumpre a função de legitimar o discurso hegemônico da realocação/espoliação irreversível,
que sobrevaloriza a dimensão mercantil do espaço urbano pari passu a degradação do
sentido de “urbanidade” ao reduzir as pessoas à condição de “consumidores de espaço”
(LEFEBVRE, 2001).

É interessante destacar o aspecto paradoxal da participação das Comunidades nos


meios decisórios, os quais são participativos apenas na forma, mas carecem de
transparência no conteúdo. Por trás de uma proclamada isonomia, os gabinetes
tecnocráticos para os quais as populações e os movimentos são conduzidos, não são tão
democráticos como à primeira vista. Em vez de contribuírem ativamente com a formatação
dos projetos, as Comunidades são convidadas a pensar suas próprias realocações de onde
vivem há gerações. Isso pode ser visto nos próprios espaços deliberativos e consultivos de
construção dos megaprojetos de requalificação urbana. Por um lado, menciona-se a
inexistência de projetos acabados; por outro; já são apresentados pelo poder estatal
(municipal) mapas de parques, modelos de conjuntos habitacionais, alternativas de
remoção, etc. Basta, então, que as pessoas escolham a alternativa menos ruim, já que a saída
parece ser um dado inexorável para a racionalidade tecnocrática.

Na verdade, no âmbito estatal e de seus “espaços de diálogo restritivos”, as Comunidades


afetadas são chamadas a “legitimar” suas próprias derrocadas, marcadas pela perda de suas
casas e de seus espaços de vida. Torna-se clarividente que o Estado e o Capital (como

Revista Pegada – vol. 25 n.1 313 Agosto 2024


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indissociáveis) necessitam desta aparente legitimidade, construída a partir de um falso


debate democrático e horizontal. O mais dramático é que os oprimidos são “convidados” a
planejar sua própria espoliação. Uma espécie de hegemonia às avessas se instaura
(OLIVEIRA, 2018). Para levar a cabo os projetos o corpo tecnocrático, o Estado e do
Capital se vestem de entusiastas cordiais com a intenção de gerar consensos nas
Comunidades afetadas e, com isso, vender projetos de valorização do espaço como se
fossem para o benefício comum. O resultado é devastador, sobretudo para
trabalhadores(as) empobrecidos(as) que são deslocados(as) para áreas longínquas da cidade.

As comunidades e movimentos sociais nem sempre percebem, em tempo hábil, que


sua participação e grande parte dos estudos realizados sobre as comunidades periféricas
servem para fomentar a clássica máxima geográfica de conhecer para dominar, utilizando as
próprias informações contidas nos relatórios técnicos, produzidos até de forma
“participativa” ao longo de anos. Por uma espécie de cartografia das subjetividades, a lógica
hegemônica visa identificar os megaprojetos como desejos comunitários, produzir os
mosaicos de soluções de conflitos e usar os próprios conhecimentos comunitários,
tradicionalmente constituídos, contra elas mesmas.

A surpresa é que os(as) “indesejados(as)” quase sempre resistem e ressurgem, aqui e


alhures, muitas vezes na vizinhança dos grandes projetos urbanísticos e arquitetônicos, pois
a questão urbana está longe de ser resolvida desvinculada das lutas de classes sob a lógica
capitalista, que a partir dos imperativos do mais-valor determina a reprodução das
desigualdades socioespaciais e, por conseguinte, a privação de direitos fundamentais para
maioria dos(as) trabalhadores(as).

REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços da era


digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

ASSAD, P. “Povo de Ilha” dinâmica territorial, identidade e tradição de


conhecimento na comunidade Porto do Capim-PB. Dissertação (Mestrado em
Antropologia). Universidade Federal da Paraíba -UFPB, João Pessoa, 2017.

Revista Pegada – vol. 25 n.1 314 Agosto 2024


MUNDO DO TRABALHO

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento.


Programa de Desenvolvimento Urbano Integrado e Sustentável do município de João
Pessoa. Plano Diretor de Reassentamento e de Relocalização – PDRR. Versão 2 abril
de 2017.

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento.


Programa de Desenvolvimento Urbano Integrado e Sustentável do município de João
Pessoa. Plano Diretor de Reassentamento e de Relocalização – PDRR. Versão Final –
Maio 2017.

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. PROGRAMA DE


DESENVOLVIMENTO URBANO INTEGRADO E SUSTENTÁVEL DO
MUNICÍPIO DE JOÃO PESSOA. Programa João Pessoa Sustentável (Operação de
Crédito 4444/OC BR-L1421) REGULAMENTO OPERACIONAL DO PROGRAMA
Novembro/2018.

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Submetido em: setembro de 2022


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