9555-Texto do Artigo-41565-42493-10-20240920
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RESUMO
As cidades contemporâneas estão sendo reconfiguradas pelos imperativos do capital
financeiro. O Programa João Pessoa Sustentável (PJPS), do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) revela uma dinâmica socioespacial formatada pelos agentes
hegemônicos. Este artigo analisa a apropriação desigual do espaço urbano de João Pessoa-
PB e as interfaces contraditórias entre os megaprojetos e o direito à cidade das populações
periféricas. Metodologicamente, pautou-se em dados secundários, na análise documental,
na pesquisa participante, na elaboração cartográfica e na pesquisa de campo, desenvolvida
pari passu aos desdobramentos dos megaprojetos nas comunidades. Inicialmente,
caracteriza-se a magnitude escalar do PJPS. Posteriormente, enfatiza-se a especificidade de
João Pessoa no escopo da Iniciativa Cidades Emergentes e Sustentáveis (ICES), do BID.
Por fim, analisa-se o caráter espoliador de um dos seus subprojetos: o Parque Ecológico
Sanhauá, a partir da ameaça à Comunidade Porto do Capim.
Palavras-Chave: Espaço urbano; espoliação; direito à cidade.
ABSTRACT
Contemporary cities are being reconfigured by the imperatives of capital. João Pessoa
Sustentável Programme (JPSP), financed by the Inter-American Development Bank (IDB),
is an example of how the city social and spatial dynamic has been formatted by the
hegemonic agents. This article reviews the unequal appropriation of the urban space of
João Pessoa-PB, considering the contradictory interfaces between the
infrastructure megaprojects and the peripheral populations’ right to the city. In a
methodological way, it was centered on secondary data survey, in the documental analysis,
in the participative research, in the mapping creation, as well as in the field research, carried
out pari passu with the megaprojects developments in the affected communities. Initially,
the JPSP great magnitude is characterized, in the capitalist reproduction framework that
focuses on some Latin American cities. Later, is emphasized the specificity of João Pessoa
which is located on the scope of the Emergent and Sustainable Cities (ESCI) of BID.
After that, the despoiler character of one of its subprojects is considered: The Sanhauá
Ecologic Park, more specifically, starting from threat to Porto do Capim Communityl.
Key Words: Urban space; spoliation; right to the city.
RESUMEN
Las ciudades contemporáneas están siendo reconfiguradas por los imperativos del capital
financiero. El Programa João Pessoa Sustentável (PJPS), financiado por el Banco
Interamericano de Desarrollo (BID), es un ejemplo de cómo las dinámicas socioespaciales
de la ciudad han sido formateadas por agentes hegemónicos. Este artículo analiza la
apropiación desigual del espacio urbano de João Pessoa-PB, entendiendo las interfaces
contradictorias entre los megaproyectos de infraestructura y el derecho a la ciudad de las
poblaciones periféricas. Metodológicamente, se basó en datos secundarios, análisis
documental, investigación participante, elaboración cartográfica, así como la investigación
de campo desarrollada pari passu a las consecuencias de los megaproyectos en las
comunidades afectadas. Inicialmente, se caracteriza la magnitud escalar del PJPS.
Posteriormente, se enfatiza la especificidad de la ciudad de João Pessoa cuando está dentro
del alcance de la Iniciativa de Ciudades Emergentes y Sostenibles (CIEM) del BID.
Finalmente, analizamos el carácter despoliador de uno de sus subproyectos: el Parque
Ecológico Sanhauá, más específicamente, de la amenaza a la Comunidad del Puerto de
Capim.
Palavras Clave: Espacio urbano; despojo; derecho a la ciudad.
INTRODUÇÃO
2 Este termo entre aspas se justifica para chamar atenção sobre a forma com que Engels encara a questão da
moradia, vinculada ao agravamento das condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora em grande
parte da Europa, bem como ao vincular os projetos urbanísticos arquitetônicos hegemônicos como
produtores da espoliação dos trabalhadores do centro, que se dá tanto pelo encarecimento especulativo
imobiliário quanto pela violência aberta e cínica do poder estatal tal com visto nas obras de Paris pelo
bonapartismo do Barão de Haussmann. Por esta razão conclui Engels (2015, p. 56): “Uma coisa é certa,
porém: já existem conjuntos habitacionais suficientes nas metrópoles para remediar de imediato, por meio de
sua utilização racional, toda a real ‘escassez de moradia’. Naturalmente, isso só poderá ser feito mediante a
expropriação dos atuais possuidores, ou então mediante a acomodação, nessas casas, de trabalhadores sem
teto ou trabalhadores aglomerados nas moradias atuais [...] ”.
Para efeito deste texto, compreendemos o direito à cidade numa perspectiva ampla,
tal como discutida por Lefebvre (2001) para quem:
Quando considerado em sua amplitude, o PJPS poderá afetar mais de treze (13)
comunidades, situadas em áreas de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), ocupações
urbanas consolidadas e comunidades ribeirinhas, totalizando mais dez mil famílias ou,
ainda, segundo os dados oficialmente reconhecidos, cerca quarenta mil pessoas
impactadas3. Uma das comunidades ribeirinhas sob ameaça consiste na histórica
Comunidade Porto do Capim4, situada no centro histórico de João Pessoa-PB, às margens
3 Ver mais detalhes no documento: PARAÍBA. Plano de Ação João Pessoa Sustentável. 2014.
4 Esta Comunidade recebe esta denominação em função de estar situada na área das ruinas do antigo Porto
do Varadouro, que depois de anos de florescimento econômico, entrou em decadência e foi transferido para a
cidade de Cabedelo-PB.
do Rio Sanhauá. Assim como ocorre em várias cidades históricas brasileiras e latino-
americanas (RIBEIRO, 2018) – em que se combina exploração turística do Patrimônio
Histórico com a mercantilização de belezas naturais –, a capital paraibana também passa
por um intenso processo de valorização de algumas áreas centrais, adquirindo novos
conteúdos à medida que o passado histórico de formação da cidade5, expresso nas
rugosidades geograficizadas, se mesclam aos conflitos contemporâneos, articulando as
resistências de moradores(as), de trabalhadores(as), de pescadores e marisqueiras ao direito
de viver dignamente no centro da cidade (SANTOS, 2014, 2019).
5 Vale ressaltar que se trata da terceira cidade mais antiga do Brasil, fundada em 1585.
fundamentais que têm como âncora fundante o direito à cidade pela classe-que-vive-do-
trabalho 6(ANTUNES, 2018).
Assim como mencionou Lefebvre (2001), a produção dos “vazios” nas cidades tem
um sentido de glorificar o poder estatal que, através do uso violento e repressor do seu
braço armado, possibilita a criação dos largos espaços de controle, a aberturas de ruas, a
demolição de aglomerados, expulsão dos subúrbios etc. A esse respeito, a análise de Engels
(2015) tornou-se clássica ao sintetizar muito bem “método Haussmann”, cuja intenção, na
turbulenta Paris de meados do século XIX, consistiu em varrer os(as) trabalhadores(as)
pobres dos centros urbanos e favorecer ao controle estatal.
grande massa de trabalhadores(as) nos grandes centros. Em suma, a lógica que cria os
subúrbios como único meio garantir aos mais pobres uma localização estratégica é a mesma
responsável por destroçá-los como indesejáveis nos novos espaços de interesse do capital
(HARVEY, 2020).
Na América Latina, esse modelo de reprodução do capital, que tem na violência sua
mola propulsora, longe de se constituir na exceção, tornou-se a regra geral. Assim, ainda à
época dos governos autoproclamados progressistas, a Iniciativa de Integração física da
América Latina (IIRSA), os complexos hidrelétricos na Amazônia, a aceleração das grandes
obras minerárias, a reconfiguração das cidades – combinadas a um processo
desregulamentador, privatista e mercantil – sinalizavam como os grandes projetos
articulariam o reordenamento espacial aos agentes da financeirização (bancos, fundos de
pensão etc.), responsáveis por financiar e formatar os modelos dos projetos nos termos do
capitalismo flexível e neoliberal.
institucionalidade posta e passa a exigir uma retração gradativa dos direitos sociais
combinado à conversão acelerada de tudo em valor de troca (recursos naturais, cidades,
populações territórios, força de trabalho etc.). Com pitadas de protofascismo, o bolsonarismo
pandêmico (FRANÇA, 2020) exacerba tal tendência ao executar uma verdadeira agenda de
austeridade em nome da financeirização (CHESNAIS, 2013). Tal fenômeno só demonstra
que não existe um capital financeiro transcendente ou absolutamente apartado da realidade,
mas que, em algum momento, os capitais acumulados têm que se materializar, nem que isso
implique em destroçar instituições, territórios e vidas para subsidiar sua lógica de acumulação
infinita. A produção desigual da cidade torna-se um lócus primordial de absorção dos capitais
excedentes (HARVEY, 2020).
Portanto, como para o capital financeiro é mister fugir de suas crises através da
produção de cidade, é lógico que tal produção espacial implica em mais espoliação das
moradias, expurgo dos trabalhadores das periferias, em falta de transparência na construção
e execução dos projetos, bem como na consequente violação de um amplo leque de
direitos que permeiam o direito à cidade. O PJPS é um exemplo claro dessa forma de
acumulação capitalista que está circunscrita à cidade contemporânea e que ganha, na
Paraíba, sua forma particular.
7Os critérios consideram cidades que variam entre 100 a 200 mil habitantes. Outras cidades brasileiras como
Palmas-TO, Vitória-ES, Florianópoles-SC também aderiram ao Programa.
estrangeiros como Caixa Econômica Federal, o próprio BID, a Fundação Joaquim Nabuco,
a Fundação Apolônio Salles e a Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP), bem como a
assessoria para estudos de pré-viabilidade de empresas internacionais como Korean Land &
Housing Corporation (LH) e da sueca Saab (PARAÍBA, 2014; BID, 2018).
Ora, o fato que se explicita é que tais projetos hegemônicos advém de pensamentos
exógenos e desconhecem o cotidiano de inventividade e adaptabilidade das comunidades
aos lugares, bem como buscam por camuflar as reais intenções estratégicas de
mercantilização da cidade sob a cortina do enfrentamento das “desigualdades urbanas”, da
“redução da pobreza”, do fomento ao “desenvolvimento sustentável”, das cidades
inteligentes ou Smart Cities8, entre outros aspectos previstos nos estudos prévios e projetos,
que estabelecem as áreas “prioritárias” para intervenção.
Não é muita coincidência que comunidades, por décadas esquecidas pelo poder
público, sejam percebidas como “prioritárias” nos chamados projetos de requalificação
urbana? Será que isso se dá pelo fato de tais comunidades se situarem em áreas dotadas de
belezas estéticas e naturais, onde o interesse imobiliário pela “natureza” torna-se crescente
diante do caos urbano atual? O fato destas comunidades estarem circunscritas em espaços
intermediários entre áreas bastante valorizadas e áreas de expansão da valorização dos
terrenos urbanos as tornam, obviamente, indesejáveis nestes locais onde impera a ideologia
higienista disfarçada de “requalificação” (JANOSCHKA, SEQUERA; SALINAS, 2014).
8 http://pdjp.com.br/planodiretor/
O que salta aos olhos, mesmo para um leitor não especializado, é que a única
solução inovadora perseguida é a eficiência de mercado para racionalizar o uso da terra
urbana de modo a favorecer a apropriação, compra, venda e especulação imobiliária,
mesmo que tal processo repercuta na espoliação massiva das populações empobrecidas.
Por esta razão, percebemos que a racionalidade hegemônica busca caracterizar os níveis de
“competitividade” de seus projetos, atribuindo verdadeiros (pré)conceitos à determinadas
áreas da cidade, o que impulsiona violentos processos segregação, materiais e subjetivos,
que, ao incidirem negativamente sobre as periferias, legitimam a expulsão sistemática nas
áreas recém valorizadas (JANOSCHKA, 2016).
ingênua dos sujeitos atingidos –, posteriormente para áreas distantes dos novos centros de
valorização espacial da cidade. Na verdade, o pensamento hegemônico busca, mais que
resolver os graves problemas que atingem os sujeitos das periferias, a relocalização destas
populações para onde não possam “atrapalhar” especuladores e rentistas interessados no
negócio da cidade. Assim, o valor de troca atribuído ao espaço amplia-se vertiginosamente, a
despeito das sociabilidades e temporalidades da vida cotidiana, constituintes do conteúdo
urbano, que permeiam várias comunidades afetadas (SANTOS, 2019).
Além disso, o PJPS, aqui analisado, vem sendo construído e estudado, desde 2013,
por empresas estrangeiras, fundações e think tanks de instituições financeiras. Entretanto,
apenas agosto de 2019, em audiência pública articulada pelo Movimento de Luta nos
Bairros, Vilas e Favelas (MLB-PB), na Câmara municipal de vereadores, é que as
Comunidades são comunicadas publicamente sobre a envergadura dos projetos e dos seus
custos econômicos e sociais. Uma rápida olhada na cronologia dos documentos elaborados
pelo BID, pela PMJP e/ou por assessoria contratada, revela não apenas a abrangência e
complexidade em questão, mas também a estratégia de sua construção no longo prazo;
vale-se dizer: à revelia da maior parte da população afetada. (Figura 1).
9 Para mais detalhes consultar: PARAÍBA (2020) Licitação 91.002/2020. Neste contrato está previsto o valor
de 2.8037,01 para a contratação de Consultoria para a Revisão do Plano Diretor de João Pessoa. Para mais
detalhes deste processo: http://pdjp.com.br/planodiretor/ . Vale ressaltar o objeto desta licitação conforme
consta no portal da transparência da Prefeitura de João Pessoa: “Contratação de consultoria para o
desenvolvimento dos serviços necessários à revisão do Plano Diretor Municipal de João Pessoa (PDMJP) e
legislação correlata, conforme orientações do Estatuto da Cidade – Lei Federal nº 10.257/01,
compreendendo a realização de levantamento de dados, elaboração do diagnóstico técnico e comunitário,
definição de diretrizes e propostas, elaboração do Plano de Ação e Investimentos e a institucionalização do
plano, além da organização, divulgação e execução de Reuniões Técnicas, Reuniões Comunitárias, Oficinas,
Audiências, Conferência e Capacitação”.
Com efeito, tais sujeitos esquecidos pelo poder público também descobrem que o
terreno onde habitam ganhou repentinamente interesses imobiliários, turísticos e
especulativos. Contudo, isso ocorre apenas quando a ameaça de expropriação pelos
megaprojetos bate à porta. Vejamos como tal processo se deu num caso específico: o
Parque Ecológico Sanhauá.
Este projeto consiste numa das subdivisões das grandes obras previstas no PJPS.
Tratam-se de contratos que ameaçam reconfigurar as sociabilidades, as condições de
trabalho e locacionais nas comunidades afetadas. De maneira hierarquizada, induzem as
pessoas e as comunidades a participarem de espaços deliberativos sem que necessariamente
as mesmas tenham plena consciência crítica e política tanto dos direitos que estão na
iminência de serem violados quanto a envergadura escalar dos projetos, planos,
diagnósticos e dos exorbitantes volumes de recursos.
(Sic).
Vias de OGU- PAC Cid. Requalificação Acatada Não 4.947.12,31
acesso PC PAC históricas das vias de pela caixa;
acesso ao recursos
Antigo Porto empenhad
do capim os, mas
obra ainda
não
licitada.
Parque OGG PAC Cid. Revitalização, Proposta 50 15.120000,0
Ecológico U- históricas construção de acatada família 0
Sanhauá PAC parque pela Caixa. seo
Infraestruturas Não assent
turísticas licitada e ament
não o sem
iniciada. nome
BRT – PAC PAC- Apoio a Não - 88.350.772,
JPA Mobilida projetos licitada e 38
de urbana não
iniciada
BRT – PAC PAC- Apoio a Não - 60.000.000,
JPA - Pró- projetos licitada e 00
corredores transport não
e iniciada
Vila FAR e MCMV Requalificação Não 4.584.992,5
Sanhauá FGTS de imóveis 8
antigos
Fonte: Caixa Econômica Federal (2017). Material impresso. * Estudos cadastrais, urbanísticos,
fundiário e Legal, estudos de concepção urbanística, projetos básicos de urbanismo. ** Nas
comunidades do Porto do Capim, Alto do Mateus e Comunidade do “S”, no baixo Roger.
Outra situação gritante são os vários prédios históricos tomados por empresários e
madeireiras privadas, que se valem das comunidades circundantes como redutos de força
de trabalho barata, usufruem das vantagens locacionais de estarem no centro e também
gozam do uso (nem sempre legal) de grandes prédios públicos para fins privados. Essa
situação fundiária e dominial é impossível de ser aprofundada neste artigo. Entretanto, tal
questão pode ser melhor compreendida a partir de um Relatório Técnico da
Superintendência do Patrimônio da União na Paraíba (SPU), que consiste no mais
completo documento público acerca da condição dos imóveis da União e da propriedade
na área do “Projeto de Requalificação Urbana do Porto do Capim”. Vale indicar que o
referido relatório identificou vários imóveis sob o regime de “ocupação” que, ao contrário
da condição de “aforamento”, sugere uma inadimplência da taxa anual de particulares para
com a União (BRASIL, 2016).
Ao que tudo indica, os grandes empresários que, além de usufruírem das vantagens
anteriormente mencionadas, e nem sempre cumprirem com suas obrigações legais, mesmo
assim, não estão vulneráveis à interrupção de suas atividades pelos megaprojetos. De outro
lado, uma população ribeirinha periférica de trabalhadores(as), cujo direito de posse
consolidado está previsto na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001) e em Convenções internacionais (como a 169 da Organização Internacional
do Trabalho-OIT), se vê forçada a abdicar de suas casas e, principalmente, de uma
localização na cidade que lhe permite acessar um conjunto de direitos (emprego, transporte,
lazer) necessários à reprodução social.
É interessante atentarmos pelo menos para dois pontos essenciais, que servem
como aprendizado para os movimentos sociais atuante e para as próprias comunidades que
poderão ser afetadas por projetos desta envergadura e característica espoliadora. O
primeiro deles, consiste que as promessas de criar obras que melhorariam a vida nas
comunidades (habitações, infraestrutura básica, transporte etc.) são paulatinamente
secundarizadas e/ou abandonadas ao longo do percurso de negociação com o poder
público estatal (municipal), sobretudo após firmarem os trâmites licitatórios. O segundo,
refere-se ao fato que o discurso autoproclamado pelo Estado de “salvar pessoas em
jurídico que legitime inexoravelmente a remoção da comunidade, já que prioriza o direito do poder público
em realizar o projeto e não reconhece o direito de posse dos ribeirinhos.
Entretanto, para que o poder público consiga criar a legitimidade de que necessita
em tais consensos, torna-se necessário promover um amplo debate que articule, por sua vez,
não apenas um conjunto de instituições públicas e privadas, mas também os próprios
afetados pelos megaprojetos. Em termos gramscianos, a forma da dominação, seja pelo uso
da força, seja pela via do consenso não altera o resultado, pois por uma forma ou por outra
(ou por ambas pari passu) pode-se endossar processos de controle e expropriações
“violentos” (GRAMSCI, 2016).
Ao que tudo indica, uma análise detalhada sobre os documentos desenvolvidos pela
experiência do Programa de Requalificação Urbana, Ambiental e Patrimonial do Porto do
Capim - PROEXT/UFPB11, entre 2015 e 2016, revela esta contraditoriedade de uma
“dominação consensuada”. Inicialmente, pensado como forma participativa para criação de
alternativas aos projetos hegemônicos, observa-se, posteriormente: por sua abrangência,
pelos produtos gerados e por seu respaldo acadêmico-científico, que tal Programa acabou
ratificando os processos licitatórios dos megaprojetos, cujas prerrogativas preliminares para
implementação são, justamente: audiências, consultas públicas, estudos prévios, pré-
projetos etc. Ou seja, todo o processo que ocorreu ao longo do referido PROEXT/UFPB,
contemplou uma teia de ações que estão detalhadas nos estudos de Scocuglia (2019); Silva
(2020); Gonçalves (2014); Catarino et al, 2015; Assad (2017), cujos dados serviram, em
Tal ilusão assentada na participação durou pouco tempo: até 19 março de 2019,
quando a PMJP rasgou o véu e rompeu unilateralmente com todos os pactos firmados até
então junto às instituições públicas e os mediadores. O marco disso foi a notificação
administrativa emitida pelo poder público municipal que estabelecia 48 horas aos
moradores para abandonar suas casas, desconsiderando qualquer tipo de negociação
anterior. No entanto, a estratégia de consenso institucional, que reforça a dominação pela
via participativa, continua sendo implementada em outras áreas periféricas, em processos
semelhantes. Nesse caso do Porto do Capim, ao que parece, a participação tão reivindicada
por algumas entidades sociais tornou-a ainda mais vulnerável, funcionando como uma
espécie de manto de Medeia que envolveu a própria comunidade e, usando de suas
próprias forças, a enfraqueceu. O desfecho espoliador tem sido trágico. Como se observa
nas fragmentações internas, bem como as outras formas de criminalização das periferias,
que reforçam as expulsões das famílias mais vulneráveis. (Figura 2).
14 Como sugere o trecho do documento Mapas dos Desejos produzido pelo PROEXT: “Esse apoio consiste
na dedicação à causa, da inteira equipe do Proext - Requalificação Urbana, Ambiental e Patrimonial do Porto
do Capim, também denominado de Abrace o Porto, que atualmente conta com mais de 65 pessoas,
diretamente ou indiretamente envolvidas no projeto. Cabe ressaltar que o Proext possui uma sede própria na
comunidade e que também dispõe de recursos federais, provindos do Ministério da Educação, para prover a
bolsa de extensão a 15 alunos de graduação, e também para realizar a aquisição dos equipamentos necessários
ao desenvolvimento do projeto. Consideramos portanto tratar-se de uma oportunidade única para que a
universidade pública possa desempenhar o seu papel social, colocando os saberes por ela gerados à disposição
de uma causa real, contribuindo assim para a construção de uma cidade mais justa e igualitária [...] Cientes da
urgência que a PMJP tem para concretizar a liberação das verbas, tanto do PAC cidades históricas como
aqueles recursos provindos do programa MCMV, estando também ao par de todas as fases que precisam ser
cumpridas para o envio do projeto para a etapa de licitação pública, nos colocamos à inteira disposição do
MPF e da PMJP para dar continuidade às oficinas e colaborar, desta forma, à elaboração de um projeto, para
a inteira área, de fato participativo” (MAPA DOS DESEJOS - PROEXT, p.23).
Figura 2. Vista panorâmica da área da Vila Nassau. Primeiras casas demolidas pelo
Parque Ecológico Sanhauá
Casa demolida
Demolição de
Casas no Galpão
Entulho da
demolição das
casas
Em última análise, a estratégia de dominação pelo consenso não é nova. Ela não só
está sendo usada na Comunidade Porto do Capim, como também tem sido
operacionalizada pelo BID nas comunidades do chamado Complexo Beira rio e,
possivelmente, em várias comunidades periféricas na América Latina. Ao analisar história
dos projetos que envolvem as chamadas “remoções involuntárias” de populações, e
preocupado com sua reputação diante do alarmante número de afetados por seus
megaprojetos (que ultrapassam 650 mil pessoas)15, o próprio BID nos dá pistas de como o
controle dos processos participativos, ao invés do uso da força direta, torna-se mais efetivo
15 Segundo a Operação 710, desde 1970, pelo menos 120 projetos do BID implicaram ou deverão implicar
reassentamento involuntário. Desses, 54 projetos foram concluídos, 56 estão em execução e 10 estão em
tramitação. Entretanto, como se tem informações apenas para 75 desses projetos, prescindindo de
informações para 45 projetos restantes, o número total de pessoas afetadas pode ser muito maior. Vale citar
literalmente o que traz o documento mencionado: “Quatro projetos de desenvolvimento urbano no Chile que
afetaram um grande número de pessoas e tiveram impacto social significativo não foram incluídos na análise
por causa das dúvidas se deveriam ser classificados como involuntários. Em todos eles, o reassentamento foi
o resultado da melhoria das condições de vida em assentamentos marginais onde existiam riscos potenciais de
enchentes ou desabamentos” (p. 15).
distante para o reassentamento das comunidades atingidas. Como para a lógica do capital o
centro urbano revalorizado é inegociável, resta aos trabalhadores(as) a luta pelo direito à
cidade que se dá no campo da luta de classes geograficizada no espaço urbano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
MARICATO, E. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
OLIVEIRA, F. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018.
SANTOS, M. Por uma Geografia Nova: da crítica da Geografia a uma Geografia Crítica.
São Paulo EDUSP, 2012.