Em pouco tempo, em cerca de um ano, a autora coreana Keum Suk Gendry-Kim passou de uma autora com nenhuma obra publicada em Portugal para uma autora com quatro livros editados por duas editoras portuguesas diferentes que, no seu todo, lançaram Erva, A Árvore Despida e A Espera, para além do livro a que este artigo se dedica. E será lançada ainda, brevemente, uma nova obra da autora, intitulada O meu amigo Kim Jong-Un, que nos há de chegar no próximo mês de Maio, pelas mãos da editora Iguana.
Hoje trago-vos aquele que foi o primeiro livro por cá editado, que dá pelo nome de Alexandra Kim, Filha da Sibéria, e que a editora Levoir publicou na sétima Coleção de Novelas Gráficas, lançada em parceira com o jornal Público.
Este é um trabalho de cunho biográfico que nos mergulha na vida de Alexandra Kim, uma figura histórica pouco conhecida, mas de grande relevância. A obra retrata a trajetória de Kim como a primeira coreana a aderir ao movimento bolchevique, destacando o seu papel na luta pelos direitos dos trabalhadores, no início do século XX. A narrativa é baseada no romance biográfico de Jung Cheol-Hoon.
A história arranca com a infância de Alexandra passada na China, onde o seu pai trabalhava como intérprete na construção dos Caminhos-de-Ferro do Leste da China. Talvez por isso, desde cedo Alexandra Kim se viu sensibilizada para as condições precárias dos trabalhadores. Daí a ter-se envolvido na luta pela emancipação dos trabalhadores russos face à repressão do regime czarista, quando, após a morte do seu pai, regressou à Rússia, foi um mero passo expectável. Para além das barreiras linguísticas, foi a situação dos trabalhadores - e o seu sofrimento - aquilo que motivou o empenho de Alexandra Kim, numa altura em que o direito do trabalho era praticamente inexistente na Rússia. Durante a Primeira Guerra Mundial, Kim passou a trabalhar como intérprete nas fábricas dos Urais, aproximando-se ainda mais do Partido Comunista de Lenine.
Keum Suk Gendry-Kim volta a dar-nos uma história carregada de humanismo para que possamos compreender o passado precário do proletariado russo - e não só - que teve que enfrentar múltiplas adversidades, demonstrando resiliência e coragem. A vida atribulada de Alexandra Kim, que se desenrolou por vários territórios, é particularmente rica devido ao seu percurso pessoal se ter cruzado com momentos importantes da história da luta das classes.
A narrativa de Gendry-Kim é marcada por uma abordagem sensível e respeitosa das experiências retratadas, evitando o sensacionalismo desenfreado e, em sentido oposto, optando por representar a violência e o sofrimento de forma subtil, utilizando sombras e cenários escuros para transmitir o impacto emocional dos eventos. Essa escolha estilística permite que o leitor se conecte profundamente com a história sem ser confrontado com imagens demasiado explícitas. Com efeito, Alexandra Kim, Filha da Sibéria não consegue ser tão impactante e chocante como o livro Erva, por exemplo, mas, mesmo assim, a obra consegue ser informativa e relevante.
O traço delicado e expressivo da autora, que se mantém fiel ao seu estilo, contrasta, pois, com a dureza dos eventos retratados, criando uma narrativa visualmente impactante. A escolha do preto e branco reforça a atmosfera sombria da época, enquanto os detalhes nas expressões faciais e nos cenários transportam o leitor para o contexto histórico da narrativa. Devo dizer que neste livro a autora me pareceu especialmente inspirada nos desenhos, apresentando ilustrações mais aprimoradas e de traço mais limpo do que noutras ilustrações contidas em livros já por cá publicados.
A meio do livro, é verdade que a narrativa se torna mais densa e fragmentada, o que pode dificultar o acompanhamento do percurso da protagonista. Esta mudança coincide com o aprofundamento do contexto político da Revolução Russa e das movimentações comunistas internacionais, o que exige do leitor uma maior familiaridade com os acontecimentos históricos e com as suas figuras-chave. Os saltos temporais e geográficos sucedem-se com mais rapidez, e a inclusão de personagens secundárias menos desenvolvidas também pode contribuir para um certo desencontro na leitura, exigindo maior atenção para não se perder o fio condutor da vida de Alexandra Kim.
A edição da Levoir é em capa dura baça, com bom papel baço no miolo e boa encadernação e impressão. Esta edição conta com um prefácio da autoria de Rui Cartaxo e, no final, com três páginas com informações biográficas sobre Alexandra Kim.
Em suma, pode dizer-se que Alexandra Kim, Filha da Sibéria é uma leitura interessante e especialmente relevante para quem se interessa por histórias de resistência e luta por justiça social. A obra destaca a importância de uma figura histórica de que se fala pouco, trazendo à luz o seu contributo para os movimentos sociais e políticos que ocorreram no início do século XX e mostrando como as fronteiras nacionais podem (e devem) ser facilmente transpostas quando se trata de combater a opressão e promover a igualdade.
NOTA FINAL (1/10):
8.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Alexandra Kim,Filha da Sibéria
Autora: Keum Suk Gendry-Kim
Editora: Levoir
Páginas: 236, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Outubro de 2023