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Gilberto Freyre & a Educação

O livro trata das ideias do sociólogo Gilberto Freyre em relação ao tema da educação. O sociólogo Amurabi Oliveira faz um mapeamento da relação de Freyre com o tema ao longo de sua vasta obra escrita. O livro trata da formação intelectual de Freyre, o ambiente educacional familiar no qual foi criado e sua relação com as instituições de ensino pelas quais passou no Brasil e nos Estados Unidos. Aborda também a crítica de Freyre em relação ao excesso de “especialismos” e sua defesa de uma abordagem mais transdisciplinar, que inclui a valorização de um ensino mais empírico e menos “livresco”. Também presente no texto está o debate em torno da relação entre raça e educação, destacando principalmente como a educação pode ser um fator de ascensão social.

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Ulysses Pernambucano – Derby Recife–PE | CEP 52010-100 | Telefone (81) 3073.6767 Editora Massangana | Telefone (81) 3073.6321 PRESIDENTE DA REPÚBLICA Luiz Inácio Lula da Silva MINISTRO DA EDUCAÇÃO Camilo Santana PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO Márcia Angela da Silva Aguiar DIRETOR DE MEMÓRIA, EDUCAÇÃO, CULTURA E ARTE Túlio Augusto Velho Barreto de Araújo EDITORA MASSANGANA: COORDENADORA Elizabeth Mattos CHEFE DO SETOR DE EDITORAÇÃO Antonio Laurentino EDIÇÃO Marcelo Abreu (colaborador) PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Hiago Henrique (colaborador) REVISÃO Tikinet Edição Ltda. FOTO DA CAPA Visita de grupo de alunos ao antropólogo e escritor Gilberto Freyre no Solar Santo Antônio de Apipucos, sua residência. Acervo da Fundação Joaquim Nabuco, sem data. Foi feito o depósito legal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Fundação Joaquim Nabuco – Biblioteca) O148G Oliveira, Amurabi Gilberto Freyre & a educação / Amurabi Oliveira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2023. 152 p. ISBN: 978-65-5737-029-2 1. Freyre, Gilberto de, 1900-1987. 2. Educação. I. Título CDU: 92(Freyre, Gilberto):37 SUMÁRIO PREFÁCIO | 7 INTRODUÇÃO | 11 1. A EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO INTELECTUAL DE GILBERTO FREYRE | 17 O capital cultural herdado | 17 Os estudos no Colégio Americano Batista | 20 O início da vida acadêmica nos Estados Unidos | 24 “O encontro com Franz Boas”: a formação na Universidade de Colúmbia | 27 2. GILBERTO FREYRE NO CAMPO EDUCACIONAL: PROFESSOR E DIRETOR | 35 Um cientista sem cátedra? | 35 O contexto de criação da cátedra de sociologia na Escola Normal de Pernambuco | 37 Gilberto Freyre, professor de sociologia | 40 Anísio Teixeira e a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) | 47 O Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife | 52 Diretor do CRPE do Recife | 59 3. O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE GILBERTO FREYRE | 67 A educação no pensamento indisciplinado de Gilberto | 67 Contra o excesso de especialismos | 69 Empiria e ensino: a negação do ensino “livresco” | 72 O regional e o nacional | 80 Região e educação | 87 A criança no pensamento de Freyre | 92 4. RAÇA E EDUCAÇÃO | 107 Raça, educação e democracia étnica | 107 Educação e ascensão social de negros e mulatos | 114 Como Freyre pode contribuir para o ensino de história e cultura afro-brasileiras nas escolas? | 123 CONSIDERAÇÕES FINAIS | 135 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS | 139 SOBRE O AUTOR | 151 PREFÁCIO Roberto Motta1 Fiquei muito honrado com o convite que recebi de Amurabi Oliveira para redigir o prefácio deste livro. Muito honrado, muito gratificado, por dois motivos que se completam. Amurabi é meu grande amigo. Tenho nele grande confiança e muitas vezes o trato como uma espécie de conselheiro e orientador intelectual. Quantos conselhos úteis ele me tem proporcionado, quando, por exemplo, eu resolvo pleitear uma bolsa do CNPq. Amurabi possui o dom da “prudência”, no sentido aristotélico do termo, conotando o juízo sobre o que é mais oportuno e viável numa dada situação. Eu inclusive chego a pensar que esse dom da prudência, da recta ratio agibilium (que era como os escolásticos latinos traduziam a prudência de Aristóteles), do que se deve fazer em situações concretas, conduzirá meu amigo a cargos importantes dentro do sistema educacional brasileiro e não só neste. Arremato dizendo que “este rapaz vai longe”. E isto não só dentro do Brasil. Amurabi já é personalidade internacional. Tem contatos na América Latina, na Espanha, na Polônia, na América do Norte e noutros lugares. Sou perfeitamente capaz de antevê-lo, por exemplo, ocupando um alto cargo na Unesco. Ou, como já referi, no CNPq, ou ainda, quem sabe, nas Nações Unidas. De tudo isto meu amigo é muito capaz. Comecei o prefácio com uma argumentação ad hominem, com o justo elogio de algumas das qualidades pessoais de meu colega, 1 Doutor em Antropologia pela Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, e professor tular da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador sênior do CNPq. 7 conselheiro e grande amigo. E vou continuar argumentando ad hominem, porém agora me concentrando mais em Gilberto Freyre, que é, como ele próprio, Gilberto, haveria de dizer, o “indivíduo-assunto” do livro que agora prefacio. E enuncio aqui uma de minhas teses preferidas. A recepção de Gilberto Freyre pela intelectualidade brasileira ainda não se completou. Continua a ser um processo cheio de mitologias (muitas vezes criadas pelo próprio Gilberto) e de contramitologias. Nesse debate, entre mitos mais próximos da realidade do que o próprio Gilberto Freyre admitiria, e uma atitude, digamos assim, criticamente negacionista desses mitos, o autor deste prefácio viria a intervir de maneira irrefutável, como logo em seguida explicarei. Gilberto, desde a primeira edição de Casa-grande & senzala, reivindicava a orientação, talvez até mais, a inspiração, de Franz Boas. Porém, este prefaciador, que é mestre e doutor em antropologia pela Universidade de Colúmbia, na cidade de Nova Iorque, conseguiu, com toda facilidade, descobrir que, lá mesmo em Colúmbia, Gilberto foi – durante um ano e não mais do que um ano – aluno, não do Departamento de Antropologia, mas do de História. Ele nunca, jamais foi orientando de Franz Boas. O que eu gostaria de denominar de “boasificação” de Gilberto data de bastante depois de seus estudos em Columbia. Há hipóteses complicadas para a explicação desse processo, mas este não é o momento nem o lugar para a exposição dessas hipóteses. O leitor talvez se interesse em saber que foi criado um verdadeiro escândalo no Recife quando publiquei dados irrefutáveis negando a “orientação”, em Columbia, de Gilberto por Franz Boas. Não neguei, porém, a inspiração, a influência boasiana que, sem dúvida, terá chegado a Gilberto Freyre indiretamente. Acho também que podemos tranquilamente aceitar o seguinte pressuposto: desde a publicação, em 1933, da primeira edição de 8 Casa-grande & senzala, praticamente nada escrito sobre o Brasil, no próprio Brasil ou no estrangeiro, especialmente sobre relações de raça e de culturas, deixa de conter um diálogo implícito ou explícito, com as ideias de Gilberto. O livro de Amurabi Oliveira, que estamos aqui querendo prefaciar, inclui-se, muito honrosamente, dentro dessa tendência. Trata-se, para repetir, de Gilberto Freyre & a Educação. O nome é o anúncio – nomen omen, como diziam os antigos. Eu diria que a publicação desse livro possui caráter iniciático. Amurabi se qualifica como membro – membro ilustre – do selecionado grupo dos gilbertólogos, que são também, ipso facto, brasilianistas, constituindo, podemos dizer, a nata, a elite, dos praticantes dessa disciplina. Tratando de Gilberto Freyre, Amurabi o faz através do seu próprio viés, que é largamente aquele, como já vimos, de um educador. Não quero entrar nos detalhes mais técnicos, de caráter pedagógico. Meu amigo e prefaciado realizou trabalho marcadamente erudito e, ao pinçar, no vastíssimo currículo de Gilberto, os trechos de caráter mais educacionais, abrange inclusive a educação do próprio Gilberto. Não me consta que antes do livro de Amurabi, tais assuntos tivessem sido tratados de modo tão técnico, erudito e original. Ao meu muito admirado e estimado Amurabi, aos leitores que venham a lucrar com a leitura do seu texto, meus parabéns. Ficamos todos enriquecidos com este trabalho. 9 INTRODUÇÃO Gilberto Freyre (1900-1987) é um dos nomes mais reconhecidos do campo das ciências sociais brasileiras, possuindo obras traduzidas para diversos idiomas. Sua recepção tem sido normalmente calorosa no exterior, especialmente na França, nos Estados Unidos e na América Latina (Pallares-Burke; Burke, 2009), ainda que tenha se complexificado nos últimos anos devido a inúmeras revisões críticas elaboradas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros (Lehmann, 2008). Sua obra mais conhecida, Casa-grande & senzala (2005 [1933]) tem sido constantemente revisitada como um importante paradigma interpretativo da sociedade brasileira. Analisada a partir de diferentes ciências humanas e sociais, tornou-se lugar-comum, replicando a expressão cunhada por Antônio Cândido (1918-2017), dizer que essa é uma das obras que inventou o Brasil.1 Como nos aponta Lima (2013), a recepção de Casa-grande & senzala e do trabalho de Freyre em geral passou ao menos por três períodos distintos: o primeiro iria da publicação até a metade dos anos de 1960, quando haveria mais avaliações positivas do que negativas sobre o livro, ainda que houvesse ataques por parte dos conservadores no que diz respeito ao uso da linguagem coloquial, à crítica aos jesuítas e à apologia da cultura afro-brasileira; o segundo iria da metade dos anos de 1960 até a década de 1980, período em que o trabalho é combatido por sua suposta falta de cientificidade e pela interpretação assumida sobre a sociedade brasileira (porém, muitas críticas eram realizadas sem que o trabalho fosse lido); e, por fim, o terceiro momento inicia-se ¹ Cândido refere-se às obras Casa-grande & senzala de Freyre, Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Formação do Brasil contemporâneo (1942) de Caio Prado Junior (1907-1990) como os livros que inventaram o Brasil. 11 nos anos de 1990 e acelera-se com as comemorações do centenário de seu nascimento nos anos 2000, quando surgem novos trabalhos que visam a aprofundar a análise de sua obra. Apesar dessa ampliação de trabalhos que pensaram a obra de Freyre a partir de novos e originais ângulos, poucos deles se dedicaram à relação entre o pensador pernambucano e o campo educacional, apesar de ter tido uma inserção significativa nesse debate. Como bem aponta Freitas (2005b), a maior parte do tempo observado por Freyre é anterior à era dos grupos escolares e ginásios, e, em alguns casos, é anterior mesmo às aulas régias e cadeiras isoladas. Isso não significa, contudo, que haja uma ausência de referências em sua obra à educação, compreendida num sentido mais amplo do tempo, mais antropológico, por assim dizer. Como bem destaca Lima (2010, p. 12):                   ! "   #$    !%     &# # '(! Assim sendo, seria no mínimo impreciso afirmar que a reflexão educativa está ausente no trabalho de Freyre. O trabalho de Meucci (2015a, 2015b) chama a atenção para a inserção de Freyre no campo educacional, tanto através da docência2 quanto da direção do Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife, constituindo uma contribuição bastante original nesse campo. Todavia, suas pesquisas enfatizam o papel que Freyre teve na institucionalização da sociologia ² Meucci (2015a) analisou principalmente a atuação de Freyre como professor de sociologia na Escola Normal de Pernambuco e na Universidade do Distrito Federal (UDF), entre as décadas de 1920 e 1930. 12 brasileira, não explorando as contribuições desse autor de forma mais específica para o pensamento educacional. Todavia, para mim – diante de uma ampla revisão dos trabalhos que foram publicados nos últimos anos sobre a obra de Freyre – permanecia a impressão de que não havia sido realizado ainda um esforço na busca por um mapeamento das ideias educacionais no pensamento de Gilberto Freyre; afinal, no conjunto de sua vasta obra havia inúmeras referências aos processos educativos, bem como aos escolares. O desafio, obviamente, encontra-se no mapeamento dentro de sua produção tão extensa de tais questões, uma vez que Freyre engajou-se na elaboração de um trabalho profundamente transdisciplinar, que numa mesma obra abordava diferentes elementos para a composição de suas análises. Se pensarmos os cânones das ciências sociais brasileiras, encontraremos de forma mais robusta um bom número de trabalhos dedicados à questão educacional na obra de Florestan Fernandes (1920-1995), que, apesar de não ter feito da educação o centro de sua agenda de pesquisa, publicou numerosos trabalhos sobre o tema. Freyre, por outro lado, seguindo o estilo próprio de escrita e de produção do conhecimento, dissolveu o debate ao longo de sua vasta obra, tendo escrito apenas alguns trabalhos pontuais mais diretamente ligados ao tema (Oliveira, 2014). Em meio a suas obras, que incluem livros, artigos em revistas e jornais, prefácios, entrevistas etc., podemos encontrar o desenho de um pensamento educacional que se articula aos temas que perseguiram sua trajetória, como a relação entre região, nação, raça, patriarcado etc. Este foi o percurso adotado nesse trabalho, mapeando a questão educacional no pensamento do autor, assim como em sua atuação institucional, principalmente junto à Escola Normal de Pernambuco e ao Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife. 13 Não é objetivo do presente trabalho realizar um longo apanhado das principais ideias de Freyre, o que já foi realizado por obras bastante emblemáticas, tais como Araújo (1994), Bastos (2006), Larreta e Giucci (2007), Pallares-Burke e Burke (2009), Motta e Fernandes (2013), Cardão e Castelo (2015), dentre outras. Sem perder do horizonte o diálogo com os aspectos mais gerais de seu pensamento, circunscrevo-me aqui na análise de como a questão educacional aparece em sua obra. Em parte, o que apresento neste livro é fruto de uma série de reflexões que venho realizando sobre o pensamento de Gilberto Freyre. Essas reflexões têm tomado forma em publicações especializadas, em periódicos no campo das ciências sociais e da educação, compreendendo que os trabalhos de Freyre sobre a educação são do interesse tanto de educadores quanto de cientistas sociais. A partir delas tenho enfatizado a relevância de Freyre como um pensador das ciências sociais que possui uma contribuição valiosa para a educação, reivindicando assim seu lugar como pensador educacional. A meu ver, a relevância de revisitar o pensamento de Gilberto Freyre a partir desse ângulo (seu diálogo com a educação) deve-se ao fato de que sua proposta pedagógica a partir de uma forte articulação entre o mundo social e os conhecimentos teóricos continua atual. Acredito que ela é necessária para pensarmos numa escola que consiga dialogar com os jovens que nela se encontram. A impressão que tenho é que a proposta de Freyre para a educação não está superada. Muito pelo contrário: parece-me que a sociedade brasileira ainda está em um período pré-freyreano, com escolas que tendencialmente apartam o mundo social dos alunos dos conhecimentos que são aprendidos entre seus muros. Para atingir os objetivos aos quais me proponho aqui, organizei o livro a partir de quatro capítulos: a) no primeiro, enfatizo a formação intelectual de Freyre, seu ambiente educacional familiar e 14 sua relação com as instituições de ensino pelas quais ele passou no Brasil e nos Estados Unidos; b) passo, então, a apresentar sua atuação institucional no campo educacional, com destaque para o período em que esteve à frente da cátedra de sociologia na Escola Normal de Pernambuco, portanto, atuando na formação de professores, assim como sua inserção como diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife; c) no terceiro capítulo apresento o pensamento educacional de Freyre, no qual destaco os pontos ligados a sua oposição ao excesso de especialismos, defendendo uma posição mais transdisciplinar, a valorização de um ensino mais empírico e “menos livresco”, e, por fim, a relação entre região e educação; d) no quarto e último capítulo desenvolvo o debate em torno da relação entre raça e educação, destacando principalmente como a educação poderia ser um fator de ascensão social. Nesse percurso, pretendo apresentar a relação de Freyre com o campo educacional, destacando suas ideias pedagógicas e sua contribuição para o debate. A meu ver, essa síntese dialoga diretamente com o campo das ciências sociais da educação no Brasil e, principalmente, com o âmbito da formação de professores. Em que pese ser recorrente o diálogo com os clássicos das ciências sociais nos cursos de formação docente, muito raramente estabelecemos um diálogo mais robusto com os clássicos brasileiros das ciências sociais nestes espaços. Compreendo assim que esse trabalho tanto contribui para a consolidação de uma agenda de pesquisa que se desenvolve na interface entre as ciências sociais e a educação quanto com o campo da formação docente, expandindo o debate. 15 1. A EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO INTELECTUAL DE GILBERTO FREYRE O capital cultural herdado Como é sabido por muitos, Gilberto Freyre nasceu em um lar profundamente estimulante intelectualmente. Seu pai, Alfredo Alves da Silva Freyre Júnior (1875-1961), atuou principalmente como educador; sua mãe, Francisca Teixeira de Mello (1878-1943), fora dona de casa dotada de uma educação esmerada. É bastante conhecida a influência do pai sobre a vida intelectual de Gilberto, que: )    ' *''  #+   !,# - #.  /  0  -!12 34'5667'!89:! Alfredo Freyre possuía uma biblioteca particular com livros pessoais que herdou de seu pai, Alfredo Alves da Silva Freyre, o que aponta para o capital cultural familiar que possuía capital tanto incorporado quanto objetivado (Bourdieu, 1998). Assim como outros homens de seu tempo, ele atuou em distintos campos, foi advogado, professor e vice-diretor do Colégio Americano Batista do Recife, instituição fundada em 1906 com seu apoio, inicialmente denominada Collegio Americano Girealth. Atuou ainda como membro do Conselho Superior de Ensino, Promotor Público, Delegado de Polícia, Juiz Municipal, Suplente na Judicatura Federal, diretor da Escola 17 Normal de Pernambuco, além de professor de Direito e de Economia Política na Faculdade de Direito do Recife. Veio de seu pai a afinidade com os autores de língua inglesa, marca em termos de formação intelectual bastante idiossincrática no cenário intelectual de Recife no começo do século XX. Em grande medida, pode-se afirmar que essa influência foi decisiva para as demais escolhas acadêmicas que Gilberto Freyre acabou por realizar em sua formação (Pallares-Burke, 2005). Não sem melhor relevância, Coelho (2017) destaca que Alfredo Freyre fora um importante idealizador e construtor de ideias no campo político-pedagógico, participando ativamente dos embates existentes em Pernambuco em seu tempo, defendendo principalmente a ideia de uma educação laica. O próprio Gilberto Freyre destaca esse papel de renovador intelectual que seu pai havia assumido no campo educacional. Em suas palavras, Alfredo Freyre havia lutado principalmente:   (  !#        !   ' (* !  #   (;    !        !    ! * #   #('           !     #   <!&#=  #   <'&'      !  !#     ;     &  18  !>&'< '  (! ?  ! 1).'89@A'!9 86:! Como veremos mais adiante, a ideia de renovar o campo educacional e de um ensino que não fosse “livresco” serão marcos significativos na forma como Freyre compreenderá sua própria inserção no campo educativo. Todavia, seria um equívoco ignorar o papel também relevante que sua mãe teve em sua formação. Suas leituras eram mais francófilas, o que também influenciaria Freyre mais tarde. Ela era mais próxima da literatura e das artes que seu marido, fato relevante principalmente no processo de autorrepresentação do próprio Gilberto Freyre, que se via antes de mais nada como um escritor (Freyre, 1968b). O que podemos perceber com esses breves indicativos é que Freyre cresceu num ambiente intelectualmente privilegiado e estimulante. Ainda que sua família não pudesse ser classificada exatamente como abastada economicamente, em termos de capital cultural ele era um herdeiro no sentido que Bourdieu e Passeron (2014) atribuíram ao termo. Quero ressaltar, com isso, que compreender a envergadura que o legado de Freyre tem para as ciências sociais brasileiras só é possível ao situarmos as condições para sua produção, o que inclui o trabalho de inculcação de capital cultural realizado por sua família. Freyre foi um menino que demorou para aprender a ler e a escrever, descobrindo primeiro o gosto pelo desenho e pela pintura. Sua infância foi, sobretudo, urbana, ao contrário do pai, que passou parte dos primeiros anos de vida no engenho e parte na cidade, porém costumava passar os verões no engenho São Severino dos Ramos, que pertencia ao ramo materno da família. Sua nostalgia desses tempos era tanta que cogitou escrever um livro que se intitularia Em busca do menino perdido, numa clara analogia ao trabalho de Proust, Em busca do tempo perdido, publicado entre 1913 e 1927. Apesar de nunca ter 19 escrito um livro específico sobre esse tema, seria impreciso dizer que Freyre o esqueceu, considerando a expressiva presença dessa temática em toda sua obra, incluindo aí alguns artigos mais específicos sobre “o mundo dos meninos” (Oliveira, 2015a). Suas memórias de infância revelam dados interessantes sobre seu processo de formação. Normalmente ele tende a destacar as dimensões mais sensoriais de suas lembranças, o que parece se ligar ao próprio modo como ele veio a desenvolver sua escrita. O leitor que se debruça sobre Casa-grande & senzala, por exemplo, percebe claramente como o autor é capaz de guiar a narrativa do texto por meio de sensações que visam reconstituir certa atmosfera. Os estudos no Colégio Americano Batista Como já indicado, Alfredo Freyre fora professor e vice-diretor do Colégio Americano Batista e, pela própria afinidade com os métodos de ensino encontrados naquela instituição, matriculou seus filhos nessa instituição para realizarem seus estudos. Gilberto obtém uma bolsa de estudos na instituição e, devido a tanto, ele também era responsável por atuar no “reforço escolar” de alunos mais atrasados, principalmente em latim, matéria na qual ele se destacava. Ao que tudo indica, essa não era uma atividade pela qual nutria muito entusiasmo, soando profundamente tediosa (Larreta; Giucci, 2007). A posteriori, ele chega a relacionar essa sua experiência no colégio com sua falta de interesse em atividades pedagógicas: >           '    < '  -   ! B(<( (!B'   20    #     C   '    #   #D  #  ! E  F  -' '*  '  ''     <   '   'C   ; '      ?+'  -  1).'897G'!H@A:! De fato, Freyre era conhecido por sua aversão à cátedra, sendo poucas suas experiências como professor, como poderemos aprofundar mais adiante. Todavia, é interessante pensar como suas experiências educacionais ainda na juventude podem ter impactado sua relação com o espaço acadêmico e escolar na idade adulta. Como bem destaca Lima (2010, p. 16-17): %     # '  * !) ' #  #'    %I '   (J  <'  !? /  0 #       !%  '('<  #(C   <     #       D !K       $' %I 'L K !!! 21 Sem embargo, certamente podemos afirmar que o Colégio Batista distava dos métodos de ensino mais tradicionais encontrados em outras instituições escolares recifenses de seu tempo. Por ocasião da morte de Alfredo Freyre, Gilberto Freyre escreveu no Diario de Pernambuco um artigo intitulado “meu pai”, no qual apontava sua afinidade com o ensino “anglo-protestante”. Nesse breve artigo o autor realiza alguns apontamentos sobre os métodos de ensino existentes naquela instituição:  C   %#  ).C       &--  <  ' ' D   'F $'F'F   3           C  #'<C  '       3+           1).'89@8'!A:! Pode-se inferir que, ao descrever os métodos presentes no Colégio Batista, Gilberto Freyre acaba por ressaltar aqueles que foram constitutivos de sua formação educacional, e, possivelmente, os que foram mais marcantes para sua história pessoal. De fato, Freyre veio a se destacar em seus anos nessa instituição; não à toa, foi o orador de sua turma. Um ano antes havia estreado como conferencista em João Pessoa, tendo proferido um trabalho intitulado “Spencer e o problema da educação no Brasil”, aos 16 anos. Em 30 de novembro de 1917, fora noticiada no Diario de Pernambuco a entrega dos diplomas do curso de ciências e letras da instituição, transcrevendo-se parte do discurso proferido como 22 orador pelo “talentoso jovem Gilberto Mello Freyre”. Além de fazer referência às memórias que guarda de seus anos da escola – mais da metade de sua vida naquele momento, como ele mesmo ressalta – ele também alude aos jovens estudantes que estavam indo para a guerra naquele momento. Finaliza sua fala com uma crítica contundente ao uso ilustrativo do conhecimento. Em suas palavras: M  ,  >N B     O N N .N !% ('      '< P  #  ! #    $QK  '  '  '  # <   < !P<Q  !K'      !R!!!S K < #- # # !R!!!S J<; #'    ';'# F !) '  ' '' &' # '       &! %  &-   T           ; ' '  F $ T!R!!!S M    #- '     '  (     1  ' 8987'!5:! 23 Por essa fala do jovem Gilberto Freyre, então com 17 anos, podemos observar uma posição profundamente influenciada pelos métodos de ensino americanos, principalmente no que diz respeito à possibilidade de pensar uma formação prática, na qual o conhecimento teórico seja aplicado a problemas reais que se colocarão para a nação. Há de se considerar, para além da própria influência familiar e da instituição escolar que integravam o ambiente de Freyre, o clima intelectual e político de seu tempo. O advento da República, no final do século XIX, lançava um enorme desafio em termos de elaboração de um projeto de nação, cujos alicerces, aparentemente, deveriam ser procurados em outras bases que não o conhecimento ilustrado que fundamentou o Império. No caso do nordeste, e de Recife em particular, este cenário era agravado considerando a mudança em termos de eixo geopolítico que o advento da República Velha trouxe, que passou a centralizar a força política do Brasil nas oligarquias do eixo São Paulo – Minas Gerais. Ao que parece, portanto, Freyre encontrou nos métodos de ensino americanos aos quais teve acesso no Colégio Americano de Recife um caminho para as questões de seu tempo. Por meio de uma aplicação prática do conhecimento, parecia possível forjar verdadeiramente um projeto de nação, considerando os novos desafios que estavam sendo postos com o advento recente da República, em nível nacional e das guerras, em nível internacional. O início da vida acadêmica nos Estados Unidos Para um jovem pertencente às elites culturais de seu tempo, o caminho mais autoevidente para a continuação de seus estudos parecia ser a ida para Europa, a fim de estudar nas instituições mais tradicionais, localizadas em países como França, Inglaterra, Portugal etc., que 24 eram alguns dos destinos mais recorrentes para sujeitos com perfis semelhantes ao de Freyre. Entretanto, deve-se considerar que o fim dos estudos de Freyre na educação secundária coincidiu com o período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Desse modo, mostrava-se inviável uma viagem para essa região do mundo naquele momento. Nesse contexto, os Estados Unidos passariam a se mostrar a melhor opção para a continuidade dos estudos de Freyre no exterior. Ainda que as pretensões de Freyre fossem grandes, aparentemente sua entrada no campo acadêmico americano não ocorreu por meio de um grande centro, mas sim pela Universidade de Baylor, localizada na cidade de Waco, Texas. Esta universidade fora fundada em 1845 e tinha uma orientação batista, assim como a escola na qual Freyre havia estudado. O fato é que essa instituição já tinha certa tradição em receber alunos brasileiros, egressos do Colégio Americano Batista de Recife. O próprio irmão mais velho de Gilberto havia ido estudar nessa instituição. Segundo Pallares-Burke (2005, p. 55): %4  N' U E!I!'   ).'V  . 'U ' ;   WC '     #(  I < %    ?#    J V  C( .     ?#' <   I < %  *$ ! Apesar de ele não ter se encantado tão fortemente num primeiro momento com a cidade, é sabido que, paulatinamente, foi se envolvendo com as diversas atividades que eram desenvolvidas no campus. Nesse período, tanto a amizade com o ex-diplomata brasileiro radicado nos Estados Unidos Manoel de Oliveira Lima 25 (1867-1928) quanto com o seu professor Andrew Joseph “A. J.” Armstrong (1873-1954) foram fundamentais para a elaboração de suas referências pessoais e profissionais no exterior. Apesar de se tratar de uma universidade “provinciana”, se comparada aos grandes centros de estudos existentes naquele país, as primeiras impressões de Freyre sobre a vida acadêmica parecem ser bastante otimistas. Em carta endereçada a Manuel de Oliveira Lima, datada de 4 de maio de 1919, ele faz os seguintes comentários: % .         '         '   !"         V <* FF   '#   !,     < ! J  'X 1).'897G'!8@7 8@G:! É nesse clima intelectual e pedagógico que Freyre inicia sua aproximação mais incisiva com as ciências sociais. Sua formação no âmbito das ciências jurídicas e sociais ainda nessa universidade possibilitou-lhe uma primeira aproximação com o debate contemporâneo com a sociologia, bem como com a ciência política. Segundo levantamento de Pallares-Burke (2005), Gilberto Freyre matriculou-se em 22 disciplinas: nove do departamento de língua e literatura inglesa, cinco de sociologia, duas de história, duas de zoologia, uma de geologia, uma de economia, uma de psicologia, uma de bíblia e ética cristã. Em sociologia ele cursou as seguintes disciplinas: princípios de sociologia, sociologia das cidades, sociologia rural, sociologia da família, origens sociais. Não devemos ignorar ainda a localização geográfica desta universidade para a formação de Freyre, uma vez que é recorrente em 26 seu trabalho a contínua comparação entre o Brasil e o sul dos Estados Unidos, no que diz respeito às relações raciais. No Texas, a lei antimiscigenação vigorou de 1837 até 12 de junho de 1967, de modo que essa realidade causava em Freyre uma profunda estranheza. Em seus posteriores escritos, a comparação com o sul dos Estados Unidos se dava sempre considerando a existência do latifúndio, da monocultura e da escravidão como bases das sociedades desenvolvidas lá e no Nordeste brasileiro; todavia, a indagação freyreana girava em torno do fato de como seria possível que duas formações societárias tão símiles gerassem sociedades tão distintas em termos de relações raciais, ao menos em sua leitura. Sendo assim, devemos considerar não apenas a influência em termos de formação acadêmica no sentido estrito que sua vivência teve sobre Freyre, mas também o impacto sobre suas ideias que teve a vivência nos Estados Unidos, especialmente no sul desse país. “O encontro com Franz Boas”: a formação na Universidade de Colúmbia Devido às pretensões acadêmicas de Freyre, não é de se surpreender que tenha prosseguido com seus estudos em uma instituição maior e mais prestigiosa. Agora já familiarizado com o campo acadêmico americano, com maior desenvoltura com a língua inclusive, Freyre passou a planejar seus próximos passos, o que acabou levando-o à Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. Em seu diário de juventude, ele faz inúmeras menções a seu fascínio com a nova morada, com a vida cultural e intelectual do lugar (Freyre, 2006b). Efetivamente, pode-se perceber que tanto a nova cidade quanto a nova universidade haviam impressionado Freyre de forma decisiva. 27 Contrariamente ao que se difunde em alguns trabalhos, Freyre não realizou mestrado em antropologia nesta instituição, tampouco foi orientado por Franz Boas (1858-1942). Seus estudos foram realizados em História Social, e seu orientador foi Carlton Hayes (18821964). De fato, em seus próprios relatos, é a figura de Boas que ganha proeminência, sendo bastante conhecida a passagem, no prefácio da primeira edição de Casa-grande & senzala, na qual afirma que “O professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até hoje maior impressão. Conheci-o nos meus primeiros dias em Colúmbia” (Freyre 2005 [1933], p. 31). Em outra obra, escrita 30 anos depois de Casa-grande & senzala, ele retoma a posição: I     -       -  ! B        4   C  &   #  B E     V  I   '  '    '   '$             <           1).89@G'!GH:! Neste mesmo trabalho, Freyre faz ainda referência ao último encontro que teria tido com Boas, em 1939, na Universidade de Colúmbia, no qual este teria não apenas aprovado o modo, entre o ecológico1 e o antropológico, como tratara do Brasil em Casagrande & senzala, como se teria mostrado interessado na verificação da hipótese levantada pelo discípulo – assim Freyre se autointitula – sobre a adoção de métodos árabes pelos portugueses no processo ¹ “Ecológico” assume no trabalho de Freyre o sen do de meio, não supondo um determinismo geográfico, mas influências diversas que incidiriam sobre a raça, incluindo aí também o meio social e cultural. Para Araújo (1994), o trabalho de Freyre em grande medida se vincularia a uma perspec va neolamarckiana, ainda que não se possa afirmar, em absoluto, que tenha sido um evolucionista. 28 de colonização do Brasil, referindo-se assim à adoção da família poligâmica e mestiça. No entanto, Motta (2008) chega a questionar em que medida essa narrativa sobre o peso de Boas em sua trajetória acadêmica representa a realidade, tendo havido outras influências mais decisivas em sua formação. Em suas palavras: J  (    '  < '        4   !J'      #( '            !J<       $           - 1).'89G6'!Y:! "   ' 1    4 ).'89A5'!8@:      $' < -! (  )     - VI +' <8956  < ! J ;  ; -        #      ' '4   IB     '  *  Z$) # )      <   <  [ [ 1B '566G!!568 565:! Motta e Fernandes (2013) levantam como hipótese que Freyre, pelo menos desde a publicação de Casa-grande & senzala, teria optado por destacar o legado de Boas em detrimento de seu relacionamento com Hayes. Para estes intérpretes, a filiação que Freyre passou a reivindicar ligava-se a questões subjetivas e objetivas do 29 autor, que se refeririam tanto à possibilidade de se destacar academicamente – ao se aproximar da sociologia e da antropologia, que eram ciências novas e que possuíam poucos catedráticos no Brasil – quanto à influência real que Boas exerceu sobre sua obra. No nível empírico, podemos observar ao menos duas lacunas que chamam a atenção para uma leitura mais cuidadosa sobre a influência de Boas no trabalho de Freyre: a) seu trabalho de mestrado, intitulado Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century (Vida social no Brasil em meados do século XIX) não contém uma única referência ao trabalho de Boas, sendo mais ostensivamente citados os trabalhos de Hayes e de Franklin Giddings (1855-1931); todavia, ao menos desde a primeira edição em língua portuguesa desse trabalho, em 1964, há inúmeras referências a Boas nos prefácios elaborados por Freyre (Freyre, 2008); b) quando professor de antropologia cultural na Universidade do Distrito Federal, em 1935, não encontramos em suas aulas referências ao trabalho de Boas; entretanto, quando essas aulas são revisadas para publicação, algumas décadas depois, são inseridas referências ao trabalho de Boas, o que me parece estar diretamente ligado ao processo de legitimação do autor como antropólogo (Oliveira, 2019a). Obviamente que isso não é o mesmo que afirmar que não houve influência intelectual de Boas na formação de Freyre. Primeiramente, deve-se chamar a atenção que, apesar de ter realizado seu mestrado em História Social, Freyre realizou cursos em diversos departamentos; segundo seu histórico escolar, fez seis cursos de História, dois de Lei Pública, dois de Sociologia, dois de Antropologia, um de Inglês e um de Belas-Artes, ainda que nessas três últimas matérias ele aparentemente não tenha sido aprovado (Pallares-Burke, 2005). No caso dos dois cursos de Antropologia, realizados nas sessões de inverno e primavera de 1921 e 1922, ambos haviam sido ministrados por Boas. Ademais, Boas era, naquele 30 momento, um dos mais proeminentes intelectuais no campo das ciências humanas em sua universidade, tendo impactado o ambiente acadêmico à sua volta (Zumwalt, 2019). Possivelmente, o peso de suas discussões ultrapassaram as barreiras departamentais. Para Pallares-Burke (2005, p. 74-75) os dois cursos de Boas que Freyre frequentou: R!!!S#    ).          C-!    #    (-  -    J V  F< !"    C '    '  -     '<  '    ! Nos arquivos da Fundação Gilberto Freyre estão guardadas ainda anotações de aulas, e mesmo exercícios, nos quais há referências ao debate sobre hibridização de raças. Apesar de não haver indicação sobre a qual disciplina pertenceriam essas anotações, pode-se inferir que integravam a discussão do campo da antropologia naquele momento, que de fato era uma das áreas discutidas por Boas, que já havia publicado em 1911 o livro The mind of primitive man (A mente do homem primitivo), no qual ele realiza uma dura crítica ao racismo nos Estados Unidos (Boas, 2017 [1911]). Compreendo, portanto, que há sim certa influência de Boas na formação intelectual de Freyre; porém ela não ocorreu nos termos que ele reafirmou tão continuamente ao longo de sua trajetória acadêmica. O próprio Freyre reconhecia que as influências sobre seu trabalho eram bastante plurais. Em entrevista concedida em 1943, ao 31 ser indagado se sua sociologia seria apenas uma cópia ou adaptação da sociologia norte-americana, Freyre respondeu o seguinte: E# '    <    -   '    " ' * !J '   * ';  #     -   'RB*SU' R\S).'R4 S>"]'   * !J       -      -!  %   '#  #    $ VI  !) ' '  'C '  $ ' #        !%<   '   '?= '   #   #   '  ' #    & '      & %<''  ' 1).'5686R89AHS'!A6:! Observa-se ainda, pelos escritos posteriores de Freyre, que a formação americana o impressionou não apenas teoricamente, mas também pedagogicamente, considerando os métodos de ensino utilizados para tanto. Na publicação O estudo das Ciências Sociais nas universidades americanas (1934), ele realiza os seguintes apontamentos: B  $  ;   !,        ' 32 '  ;N ^   3  .     -   ( 3  -3    3' '  .<        '   C     + ; ! J'  #(' ' + ' '           ' ' ;3 *$   '    $   J V '      -  # '   #   (   1).'89HA'!Y7:! Fica-nos evidente, portanto, que a influência da formação acadêmica recebida nos Estados Unidos marcou decididamente a forma como ele percebia também o ensino, a relação entre teoria e empiria e a relevância de tal articulação para um ensino efetivo. Como veremos mais adiante, esta foi uma das marcas de sua prática docente. Notadamente houve outras influências intelectuais na formação de Freyre, incluindo o período que ele passou na Europa (Pallares-Burke, 2005); entretanto, interessa-me nesse ponto destacar o papel decisivo que as instituições educacionais pelas quais ele passou tiveram em sua formação. Quero afirmar com isso que a compreensão mais ampla da obra de um autor, no meu entender, perpassa também a compreensão de uma dimensão biográfica escolar, que nos possibilite entender as relações entre as experiências do autor nos sistemas de ensino e as percepções que ele irá construir acerca destes. Nos próximos capítulos retomaremos alguns elementos elucidados aqui para melhor compreensão das questões que buscamos explorar. 33 2. GILBERTO FREYRE NO CAMPO EDUCACIONAL: PROFESSOR E DIRETOR Um cientista sem cátedra? Gilberto Freyre construiu uma carreira bastante prestigiosa, sendo de longe um dos mais célebres intelectuais brasileiros do século XX; porém, sua carreira foi realizada de forma pouco tradicional. Como ele mesmo se autodefinia, ele era um “Cientista sem cátedra universitária – sempre recusado – mas sempre em contato com universidades do seu país e do estrangeiro. Pensador desligado de ideologias sistemáticas ou fechadas, mas sempre em atividade pensante, analítica, crítica.” (Freyre, 1968b, p. 22). Sobre essa questão, Bastos (2006, p. 202) chega a elaborar a seguinte hipótese: “[...] provável que Gilberto Freyre se tenha recusado a ingressar na Universidade devido ao fato que nela não havia espaço para seu ecletismo. As controvérsias metodológicas e teóricas próprias dos ambientes universitários seriam incômodas para ele.” De fato, são poucas suas experiências como professor, sendo mais destacadas sua atuação como catedrático de sociologia na Escola Normal de Pernambuco, seu curso de Introdução ao Estudo de Sociologia Regional na Faculdade de Direito de Recife, sua atuação como professor visitante em Stanford nos Estados Unidos, além de ter assumido as cátedras de Antropologia Cultural, Sociologia e Pesquisas e Inquéritos Sociais (Meucci, 2015a). Chama a atenção que todas essas experiências docentes ocorreram entre o final da década de 1920 e meados da década seguinte – portanto, apenas por um curto período de sua carreira é que houve uma dedicação mais intensa à docência. 35 Houve ainda cursos curtos que ele ministrou, como o de sociologia da arte junto à Escola de Belas Artes da Universidade do Recife em 1957. Apesar de haver poucos registros desse curso, encontram-se disponíveis na Fundação Gilberto Freyre (FGF) as fichas de inscrição de alguns dos alunos que participaram, chamando a atenção as perguntas presentes nela, como quais obras de sociologia o aluno já conhece, que jornais e revista costuma ler, quais rádios e programas que ouve, recreações de sua preferência, arte ou artes de sua preferência, cor ou cores de sua preferência, língua ou línguas que lê e países que já conhece1, estando entre os alunos desse curso o escritor Ariano Suassuna (1927-2014). Entretanto, ser um cientista sem cátedra não o impediu de ter um intenso interesse pelas questões educacionais, principalmente quando articuladas ao debate mais amplo que tangenciava o desenvolvimento regional, bem como a questão racial. Em verdade, ao que parece, a aversão de Gilberto Freyre à cátedra parece relacionar-se à sua aversão ao mais convencional. Ele era um “franco atirador”, que se recusava a se prender aos cânones disciplinares, o que naquele momento estava inevitavelmente vinculado à atividade da cátedra. Ele se identificava, sobretudo, como um escritor, ainda que pudesse se afirmar como antropólogo-sociólogo, sociólogo-historiador, mas sempre com hífen (Freyre, 1968). É importante frisar que os momentos nos quais ele assumiu cátedras foram sempre a partir da movimentação promovida por sua rede de contatos pessoais, intelectuais e políticos. Gilberto Freyre tinha uma considerável proximidade com figuras que foram centrais nas reformas educacionais promovidas na primeira metade do século XX, como Antônio Carneiro Leão (1887-1966) e Anísio Teixeira (1900-1971). Tal proximidade o implicou em diversos projetos que foram capitaneados por esses agentes, e sobre os quais ele veio a ¹ Documentos acessados na Fundação Gilberto Freyre em janeiro de 2016. 36 escrever em outros momentos, o que demonstra o impacto que tais experiências tiveram sobre sua trajetória. Esses reformadores educacionais, que estavam próximos a Gilberto Freyre, também possuíam vínculos com a chamada Escola Nova2, situando-se no cerne do debate que estava posto no Brasil entre as décadas de 1920 e 1940 (Cury, 1988). É possível afirmar, portanto, que Freyre também fora impactado por tais ideias, principalmente no que diz respeito às práticas pedagógicas que veio a desenvolver em suas experiências docentes. O contexto de criação da cátedra de sociologia na Escola Normal de Pernambuco Como dito anteriormente, Gilberto Freyre tinha uma forte aproximação com figuras políticas de seu tempo, destacando-se dentre elas Estácio Coimbra (1872-1937), que fora vice-presidente do país durante o governo de Artur Bernardes (1875-1955) e governador de Pernambuco entre 1926 e 19303. Em 1927, Gilberto Freyre assumiu o cargo de chefe de gabinete de Estácio Coimbra, cujo governo foi marcado por intensas reformas, principalmente no campo educacional, sendo Carneiro Leão um dos protagonistas desse processo, tendo sido Secretário do Interior, Justiça e Educação. Ao observarmos o contexto daquele período, podemos perceber que o desenvolvimento de reformas no campo educacional foi recorrente entre as décadas de 1920 e 1940, iniciando-se prin² Escola Nova foi um movimento de renovação de ensino que ganhou força nas primeiras décadas do século XX, no Brasil. Dentre seus principais expoentes brasileiros estavam Fernando de Azevedo (1894-1974 ), Lourenço Filho (1897-1970), Anísio Teixeira, Cecília Meirelles (1901-1964), dentre outros. Ganhou especial visibilidade no campo educacional brasileiro com a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932. ³ Também havia sido governador de Pernambuco entre 6 de setembro e 13 de dezembro de 1911, quando, na qualidade de presidente da Assembleia Legisla va de Pernambuco assumiu o governo do estado enquanto se processam novas eleições, uma vez que o governador Herculano Bandeira (1850-1916) havia renunciado e o vice-governador recusou-se a sucedê-lo. 37 cipalmente por meio de reformas locais, uma vez que o Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública fora criado apenas em 1930, durante o governo de Getúlio Vargas (1882-1954). Antônio de Sampaio Dória (1883-1964) realiza a primeira dessas reformas regionais em São Paulo, seguido de Lourenço Filho em 1922-1923 no Ceará, Anísio Teixeira em 1924 na Bahia, Lisímaco Costa (18831941) em 1927-1928 no Paraná, Francisco Campos (1891-1968) em Minas Gerais, também entre 1927 e 1928, e Fernando de Azevedo, entre 1927 e 1930, no Distrito Federal. A Reforma Carneiro Leão foi instituída pelo ato número 1.239, de 27/12/1928, tendo sido inspirada pelo ideário da Escola Nova, assim como muitas outras das reformas mencionadas acima. Nesta direção, ela seguia a tônica mais geral em busca de uma modernização da educação, orientada principalmente pela centralidade que a ciência passaria a ocupar em todos os níveis de ensino, incluindo-se aí a sociologia. Como bem destaca Araújo (2009, p. 123-124): %   '4 ).   # '          '  C  F D  *< '     ' '  F  '      #   '*! K '  89GY'   4 ).    >    '(    '      '  J K     ?#'C  # ! ? &  + '. ' 38   #'  !E      '  ' '     ( ' F  ' '   '<'  * ' '  C '  < ! )   <*&    J '  -;      # '   +  !?# 4 ). <  #   '     !  "#  $% &   '    (   ) ' $J;'      # '  &'   '     '  ' #  '    ' ? '>   B4! Apesar dos avanços que a reforma apontava, ela não ocorreu sem resistência. Como bem destaca o trabalho de Meucci (2015a), a reforma sofreu principalmente três ordens distintas de resistências: a) uma primeira referente à composição do novo quadro docente da Escola Normal, o que era denunciado pelos opositores políticos de Estácio Coimbra; b) outra oriunda dos conservadores católicos, que se opunham à introdução de disciplinas como anatomia e fisiologia humana; c) por fim, havia uma oposição das elites locais em relação à nomeação de “educadores paulistas” nas direções de unidades de ensino e na direção técnica. Um dos pontos principais sobre os quais a Reforma Carneiro Leão incidia era, justamente, a formação de professores. Para Nagle 39 (1976), a tônica das reformas educacionais nesse período apontava para a necessidade de “um novo professor” para “um novo modelo de sociedade”, e para tanto seria fundamental elaborar currículos mais científicos nos cursos de formação de professores, o que justificaria o ingresso de novas disciplinas, tais como a sociologia, que ficou a encargo de Gilberto Freyre na Escola Normal de Pernambuco. Interessante perceber que outros membros de sua família também participaram ativamente dessas reformas: seu pai foi diretor da Escola Normal de Pernambuco entre 1920 e 1929, e seu primo, Ulysses Pernambucano (1892-1943), foi diretor do Ginásio Pernambucano entre 1920 e 1930. Gilberto Freyre foi nomeado para a cátedra de sociologia em 4 de fevereiro de 1929, na qual atuou até outubro de 1930, quando foi exonerado no contexto; Estácio Coimbra seguiu para a Europa, e ele o acompanhou. Gilberto Freyre, professor de sociologia Como citado anteriormente, a disciplina de sociologia foi introduzida no contexto das reformas educacionais, numa compreensão de que ela representaria uma modernização dos currículos do sistema de ensino. Isso foi posto em curso tanto na Reforma Rocha Vaz (1925) quanto na Reforma Francisco Campos (1931)4. Entretanto, majoritariamente os professores que assumiram tais cátedras eram autodidatas nesse campo de conhecimento (Meucci 2011). Esse autodidatismo que se deu no contexto de criação das cátedras de sociologia nas instituições escolares entre as décadas de 1920 e 1940 é alvo de críticas de alguns intelectuais, como Guerreiro Ramos (1954), segundo o qual ⁴ Reforma Rocha Vaz (Decreto n. 16.782-A, de 13/01/1925), tornou a sociologia obrigatória nos anos finais dos cursos preparatórios, ao passo que a Reforma Francisco Campos (Decreto n. 19.890, de 18 de abril de 1931), manteve sua obrigatoriedade para os cursos complementares, que nham um caráter preparatório para o ensino superior. Entretanto, a efe vidade dessas reformas eram limitadas, considerando a autonomia dos estados, de tal modo que ela só afetava diretamente o currículo do Colégio Pedro II; porém, essa escola e seu currículo também serviam de modelo para outras escolas no país. 40 uma política educacional desastrosa e imprevidente possibilitou um verdadeiro “surto de catedráticos da referida disciplina” no Brasil, que, não estando preparados para tal feito, tiveram que improvisar. Ainda segundo Guerreiro Ramos, os professores brasileiros de sociologia, em grande parte, têm exercido a cátedra por acaso. Em meio a este cenário, Gilberto Freyre constituía uma exceção à regra, dada sua formação anterior nos Estados Unidos, que o possibilitou realizar cursos de sociologia, tendo contato com o debate acadêmico que se desenvolvia naquela e em outras partes do mundo. Apesar de reconhecer o pioneirismo de Delgado de Carvalho (18841980), que foi catedrático de sociologia ainda em 1925 no Colégio Pedro II5, ele enfatiza que foi o primeiro no Brasil a ensinar sociologia de forma associada à pesquisa empírica. Segundo ele: […]    ( >    ;   #   >          1J K  J   :C( F   (        ' V  1).'566H'!888 885:! De fato, seu programa de disciplina mostrava-se bastante arrojado e afinado com a formação acadêmica recebida nos Estados Unidos, buscando articular teoria e prática (Oliveira, 2014). No programa da disciplina, publicado em 1930, ele apresentava a seguinte proposta: , >    (    -  #  '' ⁵ Recorrentemente cita-se a experiência de Delgado de Carvalho no Colégio Pedro II como a primeira no ensino de sociologia no Brasil; entretanto, observa-se que já no final do século XIX outras ins tuições escolares haviam introduzido cursos de sociologia em seus currículos, ainda que eventualmente associado ao direito e à economia (Oliveira, 2013). 41 <  <     #  ' -* '   !    + '(    '<   .00! >      ?#-*'  + ' $ '   ''#('!'*    (*     1).'89H6'_!:! Neste programa constavam ainda os principais tópicos a serem abordados por Freyre no desenvolvimento dessa disciplina. É válido ressaltar que este era um programa de sociologia voltado para a formação de professores; logo, os tópicos selecionados tinham por finalidade contribuir para uma formação moderna de professores que atuariam na educação básica. Segundo o programa oficial, a disciplina abarcaria 17 tópicos, quais sejam: 8 ,#  !%$ > # '    ?       ! 5 ,      -18:-  1( :!15: "< 1D :!,<    -  18:E !15:J(  .!%      <  ! H ,  ,#%  ? & %  I   ! A %# &   #  ! Y ,    % '   '  '  '   '  '# 14: 42 @ )  -  T1 N:  ! 7 %#)    I  TJ  ' '  'WB<' ? ' ?  W' %<  ! G ,J "  J # &   -      ! 9            - ?  ?  ! 86 B  ? &   "%    % WC-  ! 88  B<  WC -  ,  \  ,  W, ` ! 85 II J#    '# ' #    ! 8H ,    -  4,?#! 8A  >          J  ! 8Y ,    ! 8@ >    >    ! 87 \-   %      1).'89H6'_:! Apesar da pluralidade de temas abordados, podemos perceber algumas marcas interessantes nessa proposta, que demarcam tanto continuidades com relação à formação que Freyre recebeu anteriormente como com relação a questões que ele veio a aprofundar posteriormente, ao longo de sua trajetória como intelectual. 43 Relacionando ao que já foi dito anteriormente sobre sua formação nos Estados Unidos, parece ganhar grande relevância a articulação entre teoria e métodos de pesquisa para seu ensino. Suas alunas, que eram futuras professoras, deveriam aprender tanto o método “descritivo” quanto “estatístico” (survey social). Considerando a proposta da disciplina, bem como a ênfase que ele dá posteriormente à forma como a conduziu, parece ser condição sine qua non para Freyre que na formação docente haja um esforço para a formação também em pesquisa: o professor deveria conhecer a realidade por meio do conhecimento científico para, então, poder ensiná-la. Os tópicos relacionados à família e à sociologia da criança, discussão pioneira nesse campo no Brasil (Oliveira 2015a), parecem dialogar intensamente com conhecimentos-chave para os profissionais da educação. Não à toa, o tópico de sociologia da criança era lecionado de forma articulada com o de sociologia escolar. Voltamos ao pressuposto freyreano, portanto, de que é necessário aos docentes conhecerem cientificamente a realidade na qual atuarão, e isso incluiria a família e a criança que deveriam ser conhecidos a partir desses recursos. Há uma rápida referência que o autor faz em seu “diário íntimo” acerca dos resultados oriundos das pesquisas desenvolvidas por suas alunas, articulando o conhecimento teórico sobre o universo das crianças com as pesquisas empíricas conduzidas na Escola Normal: J      ?# $ !P ?#'  *          C + '(     !,    C   !>C     -!\    #  ?#'     ' 44 .  !,    !\(             -!J( ( !%(' -     -        '   '(  <    (!%>   ''(         (   ?#'  ! ,?# -.  '   ( &   I K1).'566@'5H@:! Observa-se, assim, que o conhecimento empírico associado à pesquisa empírica poderia levar à ação social. No modelo pedagógico defendido por Freyre, o professor poderia ser um elemento de transformação social, o que será reforçado por ele em outras ocasiões, como veremos mais adiante. Outro ponto que também merece destaque é a relevância que ele dá à questão regional, que será melhor explorada nos próximos capítulos. Como é sabido, Freyre organizou no Recife, em 1925, o primeiro Congresso Regionalista, que deu origem posteriormente ao Manifesto regionalista de 19266 (Freyre, 1955) e, ao menos desde este marco, a relação entre região e nação perdura como um dos pontos centrais na obra freyreana. ⁶ Há inúmeras polêmicas envolvendo a publicação do Manifesto regionalista em 1952, pois o hiato que se estabeleceu entre o congresso ocorrido no Recife e sua publicação implicou, segundo alguns de seus crí cos, especialmente Joaquim Inojosa (1901-1987), na alteração substancial de conteúdo, não podendo, dessa forma, o trabalho de 1952 ser tomado como uma expressão fidedigna das ideias defendidas em 1926. Neste livro não me voltarei à problema zação dessas possíveis modificações, pois me interessa como o Manifesto representa um marco para seu debate sobre a relação entre o regional e o nacional. 45 Como bem nos indica Sorá (1998, p. 4): R!!!S   <     ) '      '        # - - '-         # 3  '        -        ! K '   K  >! Percebam que, quando trata da questão da sociologia rural, ele busca articular em seu plano de ensino tanto a questão nacional (Brasil) quanto regional (Pernambuco), compreendendo que ambas as questões eram centrais para os professores em formação. Nação e região não são pensados por Freyre como um par de opostos que não dialogam; tendo a pensar que eles podem ser compreendidos dentro da ideia de equilíbrio de antagonismos desenvolvida pelo autor (Freyre, 2005). De modo geral, podemos afirmar que Freyre estava empenhado em contribuir com a mudança de tônica mais geral elaborada pelas elites brasileiras a partir do final da década de 1930, que passaram a positivar o povo brasileiro (Carvalho, 1977), o que, no caso de Freyre, passava, necessariamente, pela valorização da região, bem como do elemento lusitano, associado em período anterior às razões do atraso nacional (Oliveira, 2019b). Por fim, não sem menor relevância, destaca-se o tópico voltado para a questão da miscigenação, cuja discussão assumirá um papel centro em seu livro mais conhecido publicado em 1933: Casa-grande & senzala. Ao que parece, a questão da miscigenação tinha para Freyre o mesmo status em termos de relevância para a formação de 46 professores que outros temas, tais como urbanismo, crimes etc. Será explorada com maior profundidade nos próximos capítulos a relação entre raça e educação no pensamento de Freyre. O que é relevante destacar é que, mesmo antes de se tornar conhecido nacionalmente pela discussão que inaugura no Brasil, ele já trazia esse ponto para o cerne da formação docente. Anísio Teixeira e a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) Como é sabido, Anísio Teixeira foi um importante renovador educacional brasileiro e esteve à frente de inúmeros projetos pioneiros, como o da UDF, dos quais Freyre foi um entusiasta. Também é bastante conhecida sua atuação no escolanovismo no Brasil, tendo sido um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932. Anísio Teixeira formou-se na Faculdade de Direito na Universidade do Rio de Janeiro, posteriormente retornando para a Bahia, onde, a convite do governador Góes Calmon (1874-1932), tornou-se Inspetor Geral de Ensino (o que seria equivalente hoje ao cargo de Secretário de Educação) no ano de 1924. Foi ainda na década de 1920 que ele começou a estreitar suas relações intelectuais com os Estados Unidos, realizando sua primeira viagem para aquele país em 1927, onde assistiu aulas na Universidade de Colúmbia e visitou instituições de ensino. No ano seguinte, retornou aos Estados Unidos a fim de obter o diploma de Master of Arts pela Universidade de Colúmbia, entrando em contato com a obra de John Dewey (18591952) e William Heard Kilpatrick (1871-1965). A formação intelectual de Teixeira nos Estados Unidos pode ser percebida também como um ponto de convergência entre ele e Freyre, uma vez que ambos circularam por espaços acadêmicos semelhantes. Segundo Cavaliere (2010, p. 251-252): 47 %-     '% "*   ''     '     '' C'      C     #  (+    !E          ' ;F      '   #$ ; ! E % "*  QP  JV%'C( *  #     12º8!GA@_895Y: Z$  C( '       !J '   ' <  1K'897A: #    +   '8956'   * ' > E-8956'   #' 2  ) '8955' +,' % "*'895Y' - " ' ) I 895@! J#       ?+ F(  #   *    !,      '   '            !%# '<     ' '    56'<       #   ! 48 Podemos perceber, assim, que Teixeira integrava essa geração de agentes envolvidos diretamente nas reformadas sociais e educacionais que foram levadas a cabo no período de transição da República Velha para a Nova República. Em 1931 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ocupou o cargo de Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal. Ainda em 1935, fundou a Universidade do Distrito Federal, projeto intelectual inovador do qual Gilberto Freyre foi integrante, assim como outros proeminentes intelectuais de seu tempo como Mário de Andrade (1893-1945), Cecília Meireles (1901-1964) e Sergio Buarque de Holanda, dentre outros. No bojo das transformações políticas da década de 1930, especialmente no contexto das disputas entre católicos e liberais durante o Estado Novo7, o projeto da UDF é encerrado em 1939, sendo incorporado à Universidade do Brasil. Após um período no qual ele retornou para a Bahia, Teixeira regressou em 1951 para o Rio de Janeiro, para assumir a Secretaria-Geral da Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). No ano seguinte, substituindo Murilo Braga (1912-1952), assumiu o cargo de diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), no qual permaneceu até 1964 (Nunes, 2000). Foi no período em que esteve à frente do INEP que Teixeira concebeu o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), considerado um marco na formulação da sociologia da educação como uma policy science no Brasil (Silva, 2002). Desde sua posse como diretor do INEP, Teixeira afirmou a centralidade da pesquisa em sua gestão e de sua relevância para o progresso no campo educacional. Segundo Ferreira (2008, p. 283): ⁷ Gustavo Capanema (1900-1985), que foi Ministro da Educação entre 1934 e 1945, teve uma forte atuação nesse processo, considerando-se ainda que havia se oposto à fundação da UDF desde o princípio do projeto. 49 K      ' <       $     F;   +(   ;  C     !,  -   WKJ#     C    & $         '  #         !>    *     &       -  ;F   F '     #  # (   ! Interessante perceber que o CBPE iniciou suas atividades em 1955 no Rio de Janeiro, e em 1956 os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais começaram a organizar-se em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Porto Alegre. Essa articulação entre o nacional e o regional certamente apresentava uma forte afinidade com o pensamento de Freyre. Não à toa, Freyre compreendia a ação desenvolvida pelo INEP e pelo CBPE como fundamentais para o desenvolvimento nacional e regional, ao conseguir agregar um conjunto de significativos de intelectuais em torno desse projeto de “ciência aplicada”. Freyre também reconhecia a relevância da autonomia intelectual que havia na estrutura do INEP. Tomando de empréstimo uma expressão cunhada por José Lins do Rego (1901-1957), Freyre busca distinguir os intelectuais dos intelectuários: estes seriam intelectuais 50 burocratizados, subservientes ao Estado, afastados da postura crítica e autônoma dos intelectuais. Segundo Freyre (1962, p. 152-153): E    # %  "*            C W K  J - '  '              #    -    *   ( !>  '   #  '     -    )  % %?' *  #  ( ; ;!,  -  # % "*    W '< B !E L EN.'  # % "*        '      ' F  EN.' \>'I'  <   $$! %< '      # % "*         W  K J -      ' F '  C   '    & ! 51 Em outro trabalho Freyre afirma, acerca de Anísio Teixeira: “É ele uma das mais completas personalidades de renovador da educação correlacionada com a cultura em geral – cultura no largo sentido sociológico que a América já conheceu”. (Freyre, 1981, p. 184-185). Seria possível perceber que a adesão de Freyre ao CRPE do Recife foi possível não apenas devido a suas relações pessoais com Teixeira, mas também pela afinidade que ele tinha com essa proposta institucional, apesar de sua aversão a cargos e posições institucionalizadas? Tanto sua atuação na UDF quanto junto ao INPE aparentemente só ocorreram mediante a garantia de sua autonomia intelectual, algo que ele prezava profundamente. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife Afora a atividade estritamente de professor que atuou diretamente na formação de professores8, Freyre também inseriu-se no campo educacional por meio do Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) do Recife. A fundação deste Centro, em 19579, ocorreu em um momento substancialmente distinto daquele no qual Freyre havia assumido a cátedra de sociologia na Escola Normal. Em 1957 Freyre já era um pesquisador consagrado, havia lecionado no Brasil e no exterior, publicado obras emblemáticas como Casa-grande & senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936), Nordeste (1937), dentre outras; também havia sido eleito deputado federal na constituinte de 1946, tendo criado nesse período o Ins⁸ Na Universidade do Distrito Federal, Freyre também atuou na formação de professores, uma vez que o curso de ciências sociais, ao qual ele esteve vinculado, tanto oferecia a habilitação de bacharel quanto de professor. Para uma melhor análise da atuação de Freyre nesse espaço, vide os trabalhos de Meucci (2015a) e Oliveira (2019a). ⁹ Inicialmente, o centro passou a funcionar nas instalações do Ins tuto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. A par r de 1958 passou a contar com instalações próprias, que, com o encerramento de suas a vidades, em 1975, foram incorporadas ao Ins tuto, incluindo aí móveis, biblioteca e funcionários (Freston, 1989). 52 tituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (1949)10. Como bem destaca Peregrino (1987, p. 206): R!!!S   WKJ'% "*' # &C   4  ).'  $      I ''   '   $  $'    # +!E   *   #  I?J'''     -  4 ).      # %  "*    I ! 4 ).   % "*'     I?J ?#! %  (   # '*  ' '    ; '<  !4 ). #  I T  & 'C;  # !J'4 ).'   '  ! K  + !%< $    !K     E  '  &'  #        J V '  *   BJI!)      '  ' '  Z     !J'' ¹⁰ Posteriormente a ins tuição passou a ser denominada Fundação Joaquim Nabuco. 53 C * ' # #$ VI ' /               # ( ! Desse modo, evidencia-se que Freyre não almejava nem parecia compreender ter o perfil exato para administrar burocraticamente o Centro; todavia, parece que ele compartilhava dos pressupostos do projeto. Como ele mesmo indicou alguns anos depois: I  '( '    I ?  J  ?#'     # % "*'  ' # ' #   &'      1).'89@Y'!A:! A ênfase no fato de que ele “apenas organizava” o centro parece reafirmar seu distanciamento com um perfil mais burocrático. Como bem nos elucida Silva (2002), a criação do Centro Brasileiro e Pesquisas Educacionais, em 1955, e posteriormente de centros regionais em Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo, foi fruto de um projeto arrojado desenvolvido por Anísio Teixeira quando estava à frente do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP). Este órgão visava o desenvolvimento de pesquisas no campo das ciências sociais aplicadas à educação, o que possibilitaria a formulação de políticas públicas educacionais. O Centro contou em seus quadros com antropólogos renomados, como Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro (1922-1997), que se dedicaram de formas distintas às atividades desenvolvidas no CBPE e em suas unidades regionais. Entretanto, as atividades desta instituição foram interrompidas na primeira metade dos anos de 1970, sem que seus 54 objetivos fossem plenamente alcançados. Porém, como bem destaca Ferreira (2008), apesar da curta duração, o centro e suas unidades regionais revelaram questões importantes sobre a educação brasileira, como a necessidade de adaptação dos sistemas estaduais de ensino às condições locais, incentivando a descentralização administrativa e a multiplicidade de procedimentos. Ao que tudo indica, a ideia de pensar a ciência social como base para uma ação social, articulando-se com a questão regional, parece ter convencido Freyre a integrar esse projeto, resguardando-se as condições de trabalho que ele buscou garantir junto a Anísio Teixeira. Para Meucci (2015b) também ligavam Freyre e Teixeira a contraposição aos ideais de Capanema, que defendia uma centralização das políticas educacionais. Tanto o discurso de Teixeira quanto o de Freyre na inauguração do Centro destacam a insistência do primeiro em convidar o segundo, e as reticências que o sociólogo-antropólogo pernambucano teve em aceitar o cargo. Durante a instalação do Centro, Teixeira destaca o caráter de independência e liberdade que marcariam o pensamento de Freyre e que também estariam presentes na administração do centro. Indica ainda que o centro estaria inaugurando uma nova relação entre o cientista social e o educador – negando, todavia, que se tratasse de sociólogos ou antropólogos educacionais, mas sim de sociólogos e antropólogos que, partindo de suas especialidades, se dedicam a problemas originários das práticas educacionais: %   *         ('  '  ( '          !% C  ' (  (  ( 55  '        <  '    #  &'     * '#      ! "# '   ' < #   ' '   (''   '   *$  *    ' <Z*(      ( ' (F  # ! I  C '   '         ;  *            !,<      (  ' <' <  ; ' '<       $! , ' # '     (  ( F <  ; '      <  ' ;'  (      $ '   &'                '  ;   '  - (# <    1"*'89Y7'!9 86:! 56 Apesar da analogia com a medicina, Teixeira afirma ainda que não seria possível chegar ao mesmo rigor científico, tendo em vista que o problema educacional é muito mais complexo e possui um número maior de variáveis. Freyre também proferiu um discurso nessa ocasião, destacando muito fortemente a questão regional e sua relevância para o campo educacional. Aponta que, apesar de ter recusado inúmeros convites no Brasil e no exterior, aceitou o desafio de dirigir o Centro a pedido de seu “amigo de mocidade”, pois ainda que houvesse “sacrifício para o indivíduo”, deveria-se considerar também a “responsabilidade social para com sua época e sua gente” (Freyre, 1957, p. 28). Ele tece críticas ao modelo educacional que destaca a unidade nacional sem considerar a pluralidade regional existente no país. Aponta ainda para a singular escolha de seu nome para a direção do centro: K      # - $  '           #    '  ( '    '  #        '  '<<    !K  '        F<    -      1).'89Y7'!57:! Como podemos perceber, é por meio da chave da região que Freyre reafirma continuamente sua inserção nessa nova instituição, indicando certa confluência entre as pesquisas sociais e as pesquisas educacionais. Para Xavier (1999, p. 82): 57 %        <        ''  ).'   C      ! Este tom otimista é mantido por Freyre cinco anos depois de iniciadas as atividades do centro, como podemos perceber no artigo “‘Intelligentsia’ e desenvolvimento nacional no Brasil” (1962) publicado na revista Educação & Ciências Sociais11, no qual aponta para a relevância do desenvolvimento de uma “intelligentsia” preocupada com a renovação nacional desde a educação. Nas palavras do autor: E  *       '     ' '  !'   (   '   '  '  & < #'   '-   '      !E  '  F          <'    '    C'  (     '     <  '    &  -  '     # '            * 1).'89@5'!8@6 8@8:! Percebe-se, portanto, que o olhar sociológico para a dimensão regional seria o fio condutor principal do debate fomentado por ¹¹ Publicação do CBPE editada entre 1956 e 1962. 58 Freyre enquanto diretor do CRPE de Recife. Esta característica fica evidente também no título da publicação que passa a ser editada pelo centro: Cadernos Região e Educação12. Assim como os demais centros, o CRPE do Recife tinha uma Divisão de Estudos Educacionais e uma Divisão de Estudos Sociais13, contando ainda com uma Direção Geral, que esteve ocupada por Freyre durante todo seu funcionamento, e uma Secretaria Executiva. Diretor do CRPE do Recife Considerando as principais atividades desenvolvidas pelo Centro, é interessante notar que elas se articulavam fortemente com a questão regional, como o curso “Problemas de política e administração escolar do Nordeste brasileiro”, que contou com uma série de conferências que recorrentemente dialogavam com a ideia de região. Segundo nota publicada no Diario de Pernambuco em 10 de abril de 1958: J ((   % J  K   + 5Y '<    (      W    ( J ? '      !I    J   '  (   56 #$'  (   J '       ' -   '< #  ))  ;     !I #$( !I #$( ¹² Segundo Peregrino (1987) essa publicação chegou até o número 27. ¹³ Freyre também assumiu a Divisão de Estudos Sociais por duas vezes de forma concomitante à Direção Geral. 59  (      # &'#  '    '!)<  #$(   <  #  ( J  J   ( J ?  + 5Y  1  '89YG'!G:! Poderiam se inscrever no curso: a) técnicos de educação e funcionários de Departamentos e Secretarias de Educação; b) alunos de Faculdades de Filosofia; c) pessoas interessadas em planos e programas de educação. Fora este curso, que possuiu uma duração mais estendida, também foram oferecidos cursos de inglês para professoras primárias, e de Iniciação a Pesquisas Sociais e Educacionais (INEP, 1961), este último conduzido pelo sociólogo Levy Cruz14. O curso de Cruz, especialmente, nos remete mais uma vez à relevância que Freyre dava à formação em pesquisa para os professores, compreendendo-a como central, especialmente no caso dos professores primários. O leque de pesquisas desenvolvidas pelo centro também aponta na mesma direção, como podemos observar num levantamento realizado pelo INEP em 1961, que indica as seguintes pesquisas realizadas neste centro: “Ideologia dos poetas populares do Nordeste”; “Interpretação da literatura infanto-juvenil no Nordeste”; “Construção de programa de ensino primário adaptado às necessidades de cultura e integração social da escola ao meio”; “Levantamento do sistema ¹⁴ Levy Cruz é um sociólogo pernambucano, graduado em Agronomia pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, entre os anos de 1944 a 1947, tendo durante seu curso de graduação estagiado com René Ribeiro (1914-1990). Após terminar a sua graduação, ainda sob influência de René Ribeiro, realizou mestrado em ciências sociais na Escola Livre de Sociologia e Polí ca de São Paulo, tendo frequentado os Seminários de Métodos e Técnicas de Pesquisa ministrados por Donald Pierson (1900-1995), que veio a ser seu orientador. Iniciou o doutorado na Universidade de Chicago, sob a orientação de Philip Hauser (1909-1994), porém não chegou a concluir. Ele acabou tendo um papel fundamental na ins tucionalização da sociologia em Pernambuco durante a criação do Programa Integrado de Economia e Sociologia, na década de 1960. 60 educacional cearense”; “O ensino da filosofia no ensino secundário”; “Estruturas tencionais da censura familial: Castigo e recompensa entre crianças em idade escolar”; “Ajustamento emocional dos professores primários no interior de Pernambuco”; “O ensino médio no Recife”; “Levantamento dos estabelecimentos de ensino superior em Pernambuco”; “Levantamento da situação de prédios de escolas primárias em Pernambuco”; “Mobilidade espacial e estrutura social em pequenas comunidades do Nordeste brasileiro”; “Mudanças em um grupo de jangadeiros em Pernambuco”; “Métodos de seleção para candidatos ao ensino superior”; “A educação da mulher no Nordeste”; “Levantamento do sistema educacional de Pernambuco”; “Meios informais de educação”; “Áreas homogêneas do Nordeste”; “O problema do menor abandonado na cidade do Recife e suas relações com a delinquência”15 (INEP, 1961). Interessante perceber que tanto Xavier (1999) quanto Silva (2002) indicam ter havido uma predominância de pesquisa desenvolvidas pelo CBPE e pelos centros regionais sem conexão com o campo educacional, configurando-se o centro de Recife uma exceção nesse contexto. Pode-se inferir, assim, que este foi um dos centros que mais se aproximou do ideário inicial presente na criação desse projeto institucional. Ainda em 1958 começam as atividades do Clube dos Professores, nos quais havia palestras e debates promovidos para professores da educação primária. Segundo notícia publicada naquele ano, “O diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife sociólogo-antropólogo Gilberto Freyre, atendendo a sugestões de algumas professoras que vêm frequentando o curso. Será discutida a possibilidade de fundar ali um clube de professores que funcionaria no próprio Centro”. (Diario de Pernambuco, 1958b, p. 8), sendo o curso o de “Problemas de política e administração escolar do Nordeste ¹⁵ Estão incluídas aqui tanto pesquisas concluídas como algumas que foram interrompidas. 61 brasileiro”. Seu funcionamento iniciou ainda em outubro daquele ano, tendo ficado o Clube ficou subordinado à Divisão de Estudos e Pesquisas Educacionais do CRPE do Recife. Esse conjunto de ações do centro16 parece convergir com a perspectiva que Freyre encarava a educação, que deveria servir não apenas para a promoção do desenvolvimento, como também para a correção e equilíbrio do desenvolvimento (Freyre, 1968a). A relação entre pluralidade e unidade, como já destacado, era fundamental para Freyre, e a ênfase na questão da região demonstrava uma preocupação no desenvolvimento de uma agenda de pesquisas que possibilitasse um maior conhecimento das demandas educacionais locais. Ainda no ímpeto de articular tais questões, um dos mais incisivos investimentos do CRPE de Recife foi a construção da escola experimental. Como destaca Xavier (1999, p. 83-84)17: %<    J J*J  ( ' -    <              ;  ! R!!!S% *   - #              ( !%' (         I ! Seguindo essa tônica, foi incorporada ao CRPE do Recife quando, em 1962, inicia-se a construção da escola experimental no terreno anexo ao Centro, que foi inaugurada no ano seguinte. Tais ¹⁶ Fugiria do foco e do escopo deste trabalho, mas é relevante apontar que houve o desenvolvimento de intensas a vidades nesse período no Centro, o que incluiu inscrição para bolsas de estudo no Brasil e no exterior, distribuição de materiais didá cos financiados pelo INEP, apoio à realização da III Reunião Brasileira de Antropologia que ocorreu em Recife em 1958 etc. ¹⁷ Interessante notar que Xavier indica a existência de escolas experimentais apenas nos centros do Rio de Janeiro e da Bahia, aparentemente desconhecendo as a vidades da escola em Recife. 62 escolas estavam ligadas a uma nova divisão criada em 1960, a Divisão de Aperfeiçoamento do Magistério (DAM), que também seria responsável pela realização de cursos de aperfeiçoamento de professores para as escolas experimentais. Meucci (2015b) aponta que no período entre 1962 e 1963 ocorreu um crescimento das tensões entre o centro regional e o CBPE, havendo ofícios que apontavam para as dificuldades de dirigir o Centro, assim como pedidos de recursos, atrasos nos relatórios de prestação de contas, indicação de dificuldade de manter os pesquisadores com baixos salários etc. Em todo o caso, a partir desse outros relatos, como os de Peregrino (1987), é possível presumir que esta resistência foi apenas inicial. Silva et al (2016, p. 61) trazem o depoimento da educadora M.N.S.L. – que, ao regressar dos Estados Unidos, desenvolveu atividades no CRPE – do Recife, segundo a qual: % (C  J J* WKJ       !R%  S;  C<   ) L K !J   '  #$     ?#!,I ?    4 ).  *  #     '  !J   #J      ' Z$ % "*!  WKJ     '  I ( ?  L '   I  '    I B4'>  '  Z$% "*!JC(     I ? '  (   '   63   &!W     J V    (*$<   ;-! Neste sentido, é possível inferir que a escola experimental ocupou uma posição privilegiada na relação entre teoria e prática do centro. Seria esse o espaço, por excelência, de aplicação dos resultados das pesquisas desenvolvidas pelo centro. Seria nesse locus que os educadores poderiam se valer dos conhecimentos produzidos pelos cientistas sociais, e aplicá-los, testando-os em sua efetividade para lidar com os “problemas sociais”. Tais elementos na visão de Freyre seriam fundamentais para a formação de professores, afinal, como ele bem reconhece, a formação docente no Brasil vinha sendo realizada historicamente de forma improvisada (Freyre, 2003). Apesar dos escassos registros sobre as atividades da escola, uma reportagem do Diario de Pernambuco datada de 3 de dezembro de 1967 nos dá algumas pistas sobre as atividades desenvolvidas nessa instituição: K +    %  ;J J*  I ? J   ?#'  - -       (;'  #   & C  F*$  !,I ?  J <    -  4 ).'  J !)   '    # "'   ( GF858HH6F89H6 '  '  '89Y  1@85 :'  64  % C$! K   ( ' <'- F   HYª  '     1  '89@Y'!9:! Faz referência ainda a reportagem que havia reuniões semanais das professoras com a direção da escola para fins de orientação pedagógica, e que o currículo se organizava por meio das unidades de trabalho e de projetos. As unidades de trabalho seriam estudos realizados a partir de determinado temas, ao passo que os projetos seriam para a criação de órgãos de orientação educacional, como o Correios, Banco do Estudante, Casa de Bonecas, Cirquinho, dentre outros. Destaca ainda algumas das pesquisas realizadas pelos estudantes, como “A vida dos peixes” (1ª classe), “O estudo do bairro” (2ª classe), “A cidade do Recife” (3ª classe), “Indústrias de Pernambuco” (4ª classe) e “Viagem através do mundo” (5ª classe). Sobre os métodos de estudo é indicado que:                <#   '   ' '#( '  'C  D !> < C ; #    !%-  ' ; '-   # '         !P   F     ''   C ,K  '    Yª'      !,K   1  '89@Y'!9:! 65 Pode-se perceber que os ideários da prática pedagógica de Freyre estavam presentes na organização escolar desta instituição, considerando a centralidade das pesquisas empíricas no processo educativo, bem como a relação entre o conhecimento teórico e a realidade local. É importante retomar que, em sua avaliação acerca da situação dos professores no Brasil, Freyre realizou incisivas críticas a um ensino mais “abstrato”. Apesar de elogiar a existência de “homens notáveis”, entre os professores que atuavam de forma “improvisada” no período que se estende até a Primeira República, ele também aponta que: " '<   #  (  # * -   !K #     * Z(    -  $ *1).'566H'!9H:! Como é possível perceber pelos elementos apontados anteriormente, a escola experimental fugia desse padrão, buscando implementar uma forma de ensino afinada com as concepções pedagógicas de Freyre. Apesar dessa passagem ser relativamente pouco conhecida na biografia de Freyre, é interessante perceber que é através de sua atuação no CRPE que podemos perceber de forma mais evidente suas concepções pedagógicas, e como que ele percebia que deveria ser organizado e orientado esse tipo de atividade. Como é sabido, as atividades do CRPE e dos centros regionais foram encerradas em 1975, no contexto do recrudescimento do regime militar brasileiro. Também a esse momento, Anísio Teixeira já havia morrido; e tendo sido ele o grande idealizador do Centro é de se supor que parte da força do projeto inicial tenha se esvaído com a perda dessa liderança do campo educacional. 66 3. O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE GILBERTO FREYRE A educação no pensamento indisciplinado de Gilberto Como já indicado, parte significativa da análise que Freyre realiza sobre o Brasil volta-se, justamente, para um período anterior à criação dos colégios no Brasil (Freitas, 2005b). Entretanto, é importante considerar que em algumas de suas obras, notadamente Ordem e progresso, Freyre teve uma preocupação especial com o período de transição dos estabelecimentos de ensino no Brasil no início do século XX (Lima, 2010). Nesse contexto, o Colégio Pedro II, assim como o Ginásio Pernambucano, ganha destaque em suas análises, principalmente a partir dos depoimentos coletados. Na metodologia de pesquisa que Freyre utilizou nesta obra destacam-se as “autobiografias”, que foram compostas a partir de perguntas, algumas delas ligadas diretamente à realidade educacional, tais como: aJ   < # 1<  '  # ' ' ' 'C  '  '  ' (' ;'('#!:! a  ''C    #  ! a,#   ; Q # '   Q aP 'C '  # '  R!!!S     1( ' ; !:Q12'5686'!8H:! 67 O esforço de tentar delimitar como a questão educacional aparece na obra de Gilberto Freyre ou, de forma mais incisiva, tentar captar o pensamento pedagógico deste autor, é um desafio considerável, principalmente tendo em vista a forma como ele expõe suas ideias e conceitos. Como bem nos indica Motta (2009, p. 149): 4 ).'  <      !,' * ; '      '   -'  '  <' ' #'    ; &  ;' '-*   '<  ! De fato, como o próprio autor expôs continuamente, a intuição seria uma das bases de seu trabalho científico (Freyre, 1968b), causando a impressão no leitor por diversas vezes que seus conceitos são demasiadamente nebulosos. Ora, isso se aprofunda no caso da questão educacional, tendo em vista que ele não dedicou uma obra específica a esse tema, como o fez em relação à comida, à moda etc. De modo geral, assim como outros temas por ele abordados ao longo de sua trajetória, encontraremos esse debate dissolvido no hercúleo exercício interpretativo que ele busca realizar da sociedade brasileira, e de forma mais pontual em alguns trabalhos mais curtos. É importante considerar aqui que as contribuições de Freyre ao campo da educação, longe de se realizarem a partir de um determinado cânone disciplinar, refletem o estilo de “livre-atirador”. Portanto, encontraremos principalmente contribuições a partir da antropologia, sociologia, história. Algumas pistas já foram dadas sobre essa questão destacando-se sua atuação no campo educacional; entretanto, considerando que ele era sobretudo um “escritor” 68 (Freyre, 1968b), há de se realizar um olhar mais cuidadoso para seus escritos e sobre a forma como ele aborda a questão educacional da perspectiva das ciências sociais em seu sentido amplo. Nesse capítulo serão abordados alguns dos tópicos que poderiam ser considerados centrais no pensamento pedagógico do autor, e que se mostram como atuais e relevantes para os educadores em formação. Contra o excesso de especialismos Como bem analisa Meucci (2011, 2015a), ao passo que a grande maioria dos manuais de sociologia produzidos no Brasil entre as décadas de 1920 e 1940 estava preocupada principalmente com a delimitação disciplinar da sociologia, demonstrando sua especificidade ante as demais ciências, Freyre preocupou-se em afirmar a interdependência das ciências, a inter-relação que havia entre a sociologia e antropologia, a história, a psicologia e demais campos do conhecimento, o que se alinha à sua própria autorrepresentação. Como o próprio Freyre se percebia, ele era menos um especialista do que um generalista, colocando-se em oposição ao que ele denominou de “Ph. Deísmo” (Freyre, 1980), chegando mesmo a escrever um artigo sobre isto. Acerca dessa questão, Freyre faz a seguinte avaliação: J  *  -    !E!  '     &$'  $'  C*       ( !>   (<         *  '   !R…SV  69      'F *  !E!       * !B'   ' (  '  ' '< '     ;  ' '  '  (  ' $  <#( '    'D  # '!P  < ' I'E' ''%'$   #     (      # !J    !E!     $   (* #  ('      '(&*$  1).'89G6'!H67:! Devemos aí chamar a atenção para ao menos dois pontos: o primeiro é o fato de que, apesar de Freyre ter tido um amplo reconhecimento intelectual, tendo recebido inúmeros títulos de doutor honoris causa1, ele realizou apenas estudos em nível de mestrado na Universidade de Colúmbia, não tendo completado o ciclo de estudos doutorais. Sendo assim, pode-se inferir que a crítica ao “Ph. D. ísmo” é, também, uma defesa das outras possibilidades de trajetórias acadêmicas e universitárias; e o segundo ponto é que, mesmo tecendo críticas ao “especialismo”, isso não significa que ele não defendesse a existência ¹ Foram inúmeros tulos recebidos por universidades brasileiras e estrangeiras, dentre elas as universidades de Colúmbia, Oxford, Sorbonne, dentre tantas. 70 dos campos disciplinares especializados, porém, ele apontava para o não isolamento dos conhecimentos e sua interdependência. Esse processo de interdependência entre as diversas áreas do conhecimento reflete-se em sua atuação, anteriormente citada, na UDF, na qual assumiu tanto a cátedra de Sociologia quanto a de Antropologia. Essa interligação aparece ainda nas inúmeras oportunidades que Freyre teve para expressar como ele se autorrepresentava. Na obra Como e porque sou e não sou sociólogo (1968b), Freyre apresenta sua ambivalência entre a sociologia, a antropologia, a história e a literatura, colocando-se sempre “com hífen”, como fazia questão de ressaltar. Ainda neste trabalho, ele realiza a seguinte ponderação: R…S$     -   - < ;          '   * '   '     D ' '     ; 1).'89@G'!5@:! Podemos interpretar, a partir de tais questões que, para Freyre, a construção do conhecimento acadêmico passava, necessariamente, pela construção de diálogos entre as distintas áreas de conhecimento, sem com isso recusar a existência de cânones disciplinares. Inegavelmente, Freyre esteve envolvido no processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil: como ele mesmo afirma, foi o primeiro a conduzir uma cátedra de Sociologia associada com a pesquisa, e o primeiro a ministrar uma cátedra de Antropologia Cultural no contexto brasileiro (Freyre, 1968b, 2003; Oliveira, 2019a). O que pode soar como uma aparente contradição, em verdade, revela a complexidade do pensamento freyreano, ao indicar que a delimitação disciplinar não equivale ao que ele denomina de 71 “especialismo”. Este tipo de consideração, que eventualmente toma sua experiência acadêmica nos Estados Unidos como referência, parecia possuir uma especial relevância no contexto brasileiro, no qual a vida universitária ainda estava em processo de consolidação. Mais que isso, pode-se ainda levantar a hipótese de que a posição que Freyre assume tem lastro em sua própria autorrepresentação como intelectual, assumindo sua trajetória como um “modelo”. Para compreender o desenvolvimento de seu argumento, é necessário ainda considerar que, quando ele publicou Casa-grande & senzala, na década de 1930, sua posição como sociólogo e antropólogo era incontestável, legitimada também institucionalmente por meio das cátedras que assumiu pontualmente, tanto na Escola Normal de Pernambuco quanto na Universidade do Distrito Federal. Todavia, com o surgimento das primeiras graduações em Ciências Sociais, a partir da década de 1930, passa a existir uma geração de “cientistas sociais profissionais” que, nas décadas seguintes, contestou o que eventualmente foi denominado de “ensaísmo” das gerações anteriores (Fernandes, 1980). A posição de Freyre demarca, deste modo, um distanciamento dessa nova geração, ao mesmo tempo em que aponta para uma busca de legitimação de sua posição na academia, numa dualidade estabelecida entre o “generalismo” e o “especialismo”, tomando partido da primeira posição no âmbito da vida universitária. Empiria e ensino: a negação do ensino “livresco” Como já pontuado anteriormente, houve uma forte influência do ensino americano em sua formação, o que inclui sua experiência no Colégio Americano Batista, além da formação em nível superior nos Estados Unidos. Na conferência realizada em 24 de maio de 1934, na Faculdade de Direito de Recife (Freyre, 1934), fica evidente como um dos aspectos que em sua avaliação eram mais positivos do 72 ensino nos Estados Unidos era, justamente, a forma como o ensino naquele país não era “livresco”, mas ao mesmo tempo mantinha a relevância do livro para seu ensino. Ainda em sua experiência de graduação em Waco, Freyre chegou a visitar uma escola de ensino médio (High School) na cidade, sobre a qual escreveu um artigo publicado no Diario de Pernambuco em 1919. Inicia suas observações destacando como que o “evangelismo” conseguiu significativos avanços na América do Norte no ensino superior em relação a outras regiões. Aponta ainda que o ensino de humanidades possuía pouco espaço na formação dos jovens, sendo o ensino no Brasil nos ginásios oficiais e particulares mais avançados nesse ponto. Todavia, o que mais lhe chamou a atenção aparentemente era o destaque que havia para as atividades práticas. %  # ' # ' '      #  !%     ('  !\( #  ' '  !,$;  '  '#      - ' -    !, ;  (( !R…SE      ' #   !> #' <         #  (   + (( !M( 2 '   )^'   '    - 1).4 '566Y'!5H5:! 73 Seu encanto com o que encontrou no ensino nos Estados Unidos aponta que o que Freyre buscava romper, e isso, que fica evidente em sua experiência docente (como analisada no capítulo anterior), era com a ideia de um ensino abstrato, afastado da realidade empírica do aluno. E, em sua avaliação, era esse tipo de ensino que predominava no Brasil, de caráter “meramente retórico”, mesmo no ensino de ciências experimentais como a física e a química, de tal modo que “Os museus ou laboratórios, raros e deficientes, quase não corrigiam os excessos de ensino abstrato” (Freyre, 2003, p. 93). Em parte, esse problema originar-se-ia na ausência de preparação pedagógica dos docentes, o que era a regra até as primeiras décadas do século XX2. Ainda segundo o autor: E #   #   #)  ; >   ? L '  ' '(  #  #   (!%< 189HA:'  <  '  '       #   -  ! , # (      '< ''  '     ;   <    !%#  (<#( $ -    #  (     W< 18G55 8GG9: ?+18GG9 89H6:'   '   #  ² Segundo Freyre nos períodos pré e pós-republicano teria havido no Brasil o que ele denominou de “messianismo” da pedagogia (Lima, 2010). 74 (   ' '  '  (+   ('       -!%      (  * ( *&   (1).'566H'!95 9H:! Ele reconhece, no entanto, a existência de uma mudança em curso, na qual as “modernas Escolas de Filosofia no Brasil” viriam desenvolvendo “métodos objetivos” e, em alguns casos, “experimentais” para a formação de professores secundários. Sobre esse feito ele cita como exemplos a Faculdade de Filosofia de São Paulo e as Faculdades de Filosofia, Economia e Direito e Ciências da Universidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal), no período em que esteve sob o comando de Anísio Teixeira (Freyre, 2003). Estas questões também são explicitadas quando Freyre publica em 1945 o livro intitulado Sociologia: introdução ao estudo dos seus princípios, tendo em vista que ele se baseou em larga escala nas preparações e anotações realizadas para os cursos que ministrou. Quase ao final do livro, já em seus apêndices, há algumas “sugestões para exercícios”, no qual o autor coloca as seguintes questões: , '  (  '     ' #  '    ;'    * <#  &'  ' '      ! , # #(#  *   !> '  * '   (   # '        ! 75 *  '   ; '<  #-  ; &' # '  ( '  # -     ! R!!!S %'  # (  '  #   '( ' (   >   1).' 5669'!A99 Y66:! Como pudemos observar anteriormente, de fato Freyre realizou um investimento considerável no campo da formação docente, destacando continuamente a necessidade de articular formação, pesquisa e ensino. Os professores deveriam ser dotados de capacidade de descoberta, de modo a ultrapassarem o que está posto nos livros escolares. Mais que isso, ainda que ele pudesse defender enfaticamente a necessidade de incorporação de novos métodos de ensino, recorrentemente produzidos em outros centros de conhecimento, tais métodos só fariam sentido quando adequados à realidade do aluno, e esta deveria ser conhecida cientificamente por meio da pesquisa. Ainda acerca desse ponto, Freyre tece duras críticas ao que ele denomina de “mau ‘nacionalismo’ pedagógico”, que não perceberia a necessidade de incorporarmos conhecimento técnico oriundo de outros países no que tange ao ensino (Freyre, 2003). Ainda que Freyre tenha atuado como docente exclusivamente no campo das ciências humanas, a necessidade de conhecer a realidade social dos estudantes seria uma máxima que se aplicaria também aos professores de outras áreas do conhecimento, como das ciências naturais. A investigação social seria, portanto, formativa pedagogicamente. Nesta direção são elucidativas algumas das questões que ele pontua para as professoras rurais: 76 E        #  < ;     ; #               *$     *     !E  - T     < '    #   #  ' ' < ' #$  'CF   '+  '( < <  C *  !E'<'                 ; &         3   < -     !J   <(    #  F # !"   $ 1).' 89Y7'!G 9:! Percebam que ele não realiza distinção em termos de áreas específicas do conhecimento nas quais tais professoras atuam; antes, a contribuição da sociologia seria principalmente no conhecimento do meio no qual a prática pedagógica se realiza, o que seria fundamental para lidar com os “problemas educacionais”. Como ele mesmo indica, nesta mesma fala, a sociologia seria uma ciência preocupada em analisar, descrever, explicar, interpretar situações; quando muito, em diagnosticar e prever desenvolvimentos nessas situações. Ou seja, 77 ela estaria mais preocupada em dizer como as coisas são, ainda que Freyre assuma também possuir preocupações em indicar como as coisas deveriam ser em determinados contextos. Ainda com relação à passagem supracitada, é interessante perceber que, apesar da necessidade dos professores conhecerem a realidade empírica, “o meio ecológico”, como ele diria, o espaço escolar deve ensinar também os conhecimentos “universais”. Tomando o caso do ensino rural, como ele mesmo indica, este “[...] deve corresponder a exigências de conhecimentos gerais maiores que os exigidos por meio urbano”, ou seja, abarca o conhecimento urbano e o ultrapassa. O importante desse ponto é que para Freyre seria necessário romper com o ensino meramente “retórico”, ou seja, deveria-se articular o debate teórico em sala de aula com empiria, que seria acessada por meio da pesquisa. Para tanto, as ciências sociais teriam um papel fundamental. Nas palavras do autor: E   %   ' &   * %         '       #    !K #            '#   '   ' - 1).'897H'!8HG:! Em contraposição a essa postura dos “pedagogos de gabinete”, Freyre propõe uma reforma do ensino assentada sobre “[...] o conhecimento vivo [...] e com o máximo de aproveitamento dos nossos valores tradicionais e populares. Inclusive a poesia do povo, sua música, sua arte, seu folclore.” (ibidem, p. 140). Aponta como um exemplo exitoso a reforma empreendida na Dinamarca, onde escolas camponesas associam o ensino da agricultura, e criação de vacas e aves, com o ensino de história, de poesia e de religião. 78 Freyre, nesse sentido, realiza uma crítica contundente a uma concepção de pedagogia apartada das ciências sociais. No prefácio que produz para o livro Planejar e agir, de Carneiro Leão (1942), esta questão fica especialmente explícita:   (    D  & 3&   # -3  #    - %<   '  '  ->   J  V !E   >! I 2           <   - !J    -     3    - <'       1).'897G'!HYY HY@:! Podemos perceber, assim, que é na articulação entre a pedagogia e as ciências sociais – a sociologia em particular – que garantiríamos uma pedagogia que dialoga com a realidade local. A preocupação de Freyre em não haver simples transposição de ideias pedagógicas de um contexto para outro relaciona-se com sua concepção mais ampla de produção do conhecimento. Pensar uma sociologia regional não implica na negação dos parâmetros de cientificidades nacionais e internacionais, os quais Freyre continuamente reivindica para sua obra, mas numa articulação entre esses diferentes níveis. A pedagogia, pensada como um conhecimento teórico-prático, deveria se orientar sociologicamente, no sentido de se propor a conhecer e refletir sobre a realidade na qual se insere. Ainda nessa direção é importante considerar, portanto, que o professor deveria ter uma formação sólida em pesquisa social. Assim, poderíamos considerar que, quando Freyre 79 se refere às necessidades formativas do cientista social no campo da pesquisa, em grande medida ele está se referindo também a uma demanda formativa do professor. Retomemos então a aula inaugural de Freyre no 3º curso de iniciação à pesquisa social, promovido pelo então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais:     <  ;  '   <   -    - '   -'   '   '$  FI$>  '        '     '<  (  '   # ' '          ' F  F  (  1).'89@9'!8H 8A:! Compreendo, assim, que a formação docente, na concepção de Freyre, inclui também uma sólida formação em pesquisa. Em sua análise sobre a situação dos professores no Brasil, Freyre (2003) chama a atenção para a necessidade de termos professores “sistematicamente bem preparados e não improvisados” (Freyre, 2003, p. 100). Em parte o desprestígio da profissão nos últimos anos também decorreria da ausência de uma formação mais solidificada. O regional e o nacional Antes de entrarmos propriamente no debate de Freyre sobre a relação entre região e educação, seria interessante realizar algumas ponderações. Freyre, como também toda sua geração, estava profundamente envolvido com o debate sobre os rumos da nação. 80 A passagem do século XIX para o XX se dá no bojo de transformações sociais relevantes para a definição do que seria o Brasil, e, por consequência, a nação brasileira, destacando-se aí a abolição da escravidão em 1888 e o advento da República no ano seguinte. Como bem nos elucida Élide Rugai Bastos (2006), referindo-se aos ensaios produzidos nos anos de 1920: J  '    (  '        !J    '   F ;'<Q,*       #  '   &   ! J   '    *      '((      !,     ( #  (       !2 -  ( 4 ). 1  '566@'!@8:! Esta preocupação de Freyre com a questão do Brasil manifesta-se fortemente ao menos desde seu famoso prefácio à primeira edição de Casa-grande & senzala, publicado em 1933, no qual ele indica o seguinte: I  '  D  ' < [W['      ?+     #  ! J      3   81 &!J   '       1).'566Y'!H8:! É amplamente conhecido o fato de que a miscigenação, compreendida a partir da interpenetração de raças e cultura e do equilíbrio de antagonismos, será a chave explicativa de que Freyre se utilizará para interpretar o Brasil. Soma-se a isso a ideia de sociedade patriarcal que o autor elabora, também explicitada neste mesmo prefácio: %#    * '     # '         T '*$   #'#     !J      F  -  *-  $   $  ( ; 1).'566Y'!HA:! O Brasil seria, portanto, uma sociedade essencialmente patriarcal. Ora, essa é uma chave relevante no arsenal interpretativo do autor, mas que também, em certa medida, o tornou passível de inúmeras críticas, principalmente de universalizar algo que seria próprio do Nordeste para o resto do Brasil. Nesta direção, Freyre buscou responder a seus críticos, especialmente através de inúmeras notas de rodapé e prefácios a seus trabalhos. Ainda em Casa-grande & senzala ele indica, em nota inserida nas edições seguintes: K    ' - ( ('Z$              '  ? L  # ' K '<(T' >' < ? 4 >' I '<B  82 4  !I   Z$;*         *     '   & -    !)     ( (  < ('   ; * '    F(   (; <   K   K  (   1).'566Y'!8AY:! Apesar de não nomear seus opositores, ele destaca os autores e as obras que convergiriam com suas ideias, como Tales de Azevedo (1904-1995), no livro Gaúchos – notas de antropologia social (1943); Dante Laytano (1908-2000), no texto “O português dos Açores na consolidação moral do domínio lusitano no extremo Sul do Brasil” (1940/1941); Athos Damasceno Ferreira (1902-1975), em Imagens sentimentais da cidade (1940); e Ernani Correia (1900-1982), no artigo “A arquitetura do Rio Grande do Sul” (1944), reafirmando, assim, a relevância das ideias que apresenta. Não me parece ser mero acaso o fato de que, dos quatro autores citados, três sejam gaúchos. Era como se Freyre buscasse explicitar que, mesmo entre os pensadores do extremo Sul do Brasil, havia clareza sobre a ideia de que ali também se desenvolveu uma sociedade patriarcal. O diálogo com alguns destes autores, Freyre manteve de forma mais intensa – como no caso de Laytano, que é indicado na “nota metodológica” de Ordem e progresso, lançado em 1957, como um de seus colaboradores na coleta de material para a produção deste trabalho, notadamente no Rio Grande do Sul (Freyre, 2004). A preocupação constante de Freyre em afirmar o caráter nacional de sua interpretação do Brasil pode ser melhor compreendida em meio ao próprio debate intelectual que estava instaurado naquele 83 momento. A afirmação do modelo freyreano como válido para a compreensão do Brasil insere-se, portanto, em meio a estes embates. Esta questão era cara não apenas aos intelectuais do Nordeste – região que fora o polo de desenvolvimento mais importante do país e que vinha perdendo espaço gradativamente –, como também para os intelectuais do extremo Sul do Brasil, pois, como nos elucida Nedel (2007) ao debater a recepção de Freyre no Rio Grande do Sul, sua obra foi incorporada e utilizada recursivamente, de modo que se possibilitasse que a formação regional “desviante” fosse incorporada aos quadros de uma cultura brasileira elaborada segundo a linha de representação plural. A afirmação de Freyre (2006a) em torno da validade nacional de seus argumentos mostra-se ainda mais enfática no prefácio da segunda edição de Sobrados e mucambos, que fora publicada em 1948. O autor inicia o prefácio indicando, justamente, que a sociedade patriarcal no Brasil não teve um começo linear, mas sim inícios diversos e contraditórios no tempo e no espaço: R!!!S   D  *   * > '     '   '    + #       # '  (;' (;  T  -   '' *  '' #<'>  '    'B4'  + '  '     ' K      -#    1).'566@'!AA:! Como bem nos elucida Bastos (2005), esta distinção entre forma e substância Freyre retira diretamente de Simmel, ainda que assuma, neste caso, um papel mais metafórico. Neste sentido, para demarcar uma distinção em relação ao que o sociólogo alemão elabora, é 84 relevante rememorar que para Simmel (2006) forma e conteúdo, na experiência concreta, são elementos inseparáveis. Um dos autores que explicitamente criticou Freyre neste ponto foi Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), que, como sabemos, publicou Raízes do Brasil no mesmo ano em que Freyre publicou Sobrados e mucambos, contando com um prefácio elaborado por Freyre que foi retirado a partir da segunda edição, o que, de certo modo, indica as divergências interpretativas dos dois autores. Segundo Holanda: R!!!S<; '   #   D   + '4  ).    ' (         '   1\ '8979'!867:! A argumentação de Freyre utiliza-se recursivamente de exemplos provindos do Rio Grande do Sul, além do diálogo com autores deste estado, que representaria de forma mais enfática o Brasil Meridional. Tal movimento reforçaria o pensamento de que suas ideias se aplicam de uma ponta a outra do país. Como ele nos indica: K    +  D  T   #    $  ' ? 4 >'    1).' 566@'!@H:! Também ao longo de sua trilogia – que compõe a introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil3 –, nota-se que as referências aos estados do Sul, não apenas o Rio Grande do Sul, tornam-se ³ Pensada inicialmente como uma coleção que seria formada por quatro livros, esta trilogia é composta pelas seguintes obras: Casa-grande & senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e progresso (1957). Haveria um quarto livro in tulado Jazigos e covas-rasas, que nunca chegou a ser escrito. 85 cada vez mais recorrentes, buscando demonstrar como esta região do Brasil pode também ser compreendida a partir do modelo analítico por ele desenvolvido, em que pese certas particularidades por ele percebidas, que serão exploradas mais adiante neste trabalho. Quero destacar com isso que nação e região não são pensados como um par de opostos que não dialogam. Tendo a pensar que eles podem ser compreendidos dentro da ideia de equilíbrio de antagonismos desenvolvida pelo autor (Freyre, 2005). Porém, este antagonismo não implica na ausência de pontos que os costure; para tanto, a ideia de patriarcado é fundamental, uma vez que articula ao mesmo tempo a diversidade regional e a unidade nacional. Nesta direção, apresentar o Brasil Meridional como parte da nação brasileira é um passo fundamental para esse desdobramento no pensamento de Freyre. Se compreendermos que a nação pode ser interpretada como uma invenção (Anderson, 2005), acredito que o patriarcado também deve ser lido nestes termos. É o patriarcado enquanto categoria analítica (mas também como experiência vivida) que anima a nação brasileira na leitura de Freyre: o Brasil se torna Brasil por meio da unidade que o patriarcado propicia, ao mesmo tempo em que, não sendo uma entidade estanque, incorpora a diversidade regional. Podemos ainda voltar às teses acerca da plasticidade do português, explicitamente defendidas por Freyre ao menos desde Casa-grande & senzala, compreendendo que o tipo de patriarcado desenvolvido no Brasil – esse patriarcado católico e lusitano – difere de outras formas de patriarcado, sendo também plástico, e, por isso mesmo, capaz de incorporar a diversidade e a unidade. Deve-se considerar ainda que, se a nação tende a produzir um Estado próprio (Weber, 2002), é importante salientar que, segundo Freyre, o Estado representou no Brasil, em sua gênese, uma continuidade da universidade familiar, unidade familiar patriarcal por excelência (Freyre, 2005). 86 Região e educação Como já exposto, para Freyre era condição fundamental para uma prática pedagógica efetiva o conhecimento da realidade empírica na qual o ensino se realiza. Essa ideia de conhecer o “meio” remete à categoria de região, como já fora apontado anteriormente, e se articula também com o nacional, uma vez que não são polos excludentes em sua obra. Para compreendermos melhor como Freyre articula a relação entre região e educação, voltemos ao discurso que ele proferiu na inauguração do CRPE do Recife: >  '  ' C &    #  (  -  !I   '       ''   ' #  '     '<' ;  '     '-   '!E       '  '     # '  ' C(' ' #  '  F !W  * ! K          $     &  C      '  C   !>   (      (     T 87       # #           T 1).'89Y7'!55 5H:! Como podemos perceber, a educação teria, para Freyre, um papel profundamente relevante no processo de integração regional. Apesar da relevância que ele dá à dimensão regional, como podemos observar, isso não implica uma despreocupação por parte do autor com a dimensão nacional. Muito pelo contrário: para Freyre, o desafio seria justamente redimensionar o nacional, rompendo com uma compreensão homogênea e monolítica. Como bem pondera Bastos (2006), a geração à qual Freyre pertenceu estava profundamente preocupada em compreender “que país é esse?”, e isso será realizado por Freyre através da afirmação de que a unidade nacional se concretiza na diversidade regional e, devido a tanto, seria necessário pensar uma educação “interregionalmente orientada”. Para Freyre, a solução de nossos problemas nacionais, incluindo aí os problemas educacionais, perpassa a articulação entre o regional e o nacional. Essa posição é reforçada no prefácio que ele elabora para o livro Seis anos de verificação do rendimento escolar em Pernambuco (1956) da professora Isnar de Moura (1909-2014), em que Freyre pontua: K <$       (      & '  'C   #  F   !V  <<     '    ' C    '      C   $!E   88    #  +  <  ' $ (  L EN.  <!        # ' < '<( '    ( !E # ( 1).'897G'!H@7:! Como já indicado, para a resolução desses problemas a saída apontada por Freyre perpassa uma concepção de pedagogia que fosse orientada pelas ciências sociais, demonstrando assim sua forte afinidade com as ideias de Anísio Teixeira, que concebeu importantes projetos científicos educacionais dos quais Freyre foi um importante colaborador, como no caso da UDF e do CBPE. Considerando tais aspectos, não é de se surpreender que Freyre tenha se oposto a ideias que privilegiassem a concentração de instituições de ensino apenas em determinadas regiões4. Para Freyre, as instituições de ensino deveriam atender às especificidades regionais, sem com isso perder uma perspectiva cosmopolita. Ao falar sobre sua experiência na Universidade de Colônia, na Alemanha, Freyre rememora que o reitor se dirigiu em francês ao sociólogo brasileiro, o que indicaria seu espírito europeu que, apesar de ter sido ameaçado pelo nacionalismo do nazismo, não fora destruído. Ainda segundo Freyre (1961, p. 43): K        '       $' C   ! ⁴ Quando Freyre atuou como deputado federal (1946-1951), deu um parecer sobre o processo de federalização das universidades, no qual indicava que deveriam ser federalizadas as universidades de peso regional ou transestadual. 89 Ainda na obra Sugestões de um novo contacto com universidades europeias (1961), Freyre apresenta um especial entusiasmo com a ideia da criação de uma universidade europeia, cuja ideia se desenhava no final da década de 1950. Pode-se inferir que ele veria nessa experiência um possível modelo para pensarmos também uma universidade dos trópicos, que ultrapassasse as barreiras nacionais. Ao que tudo indica, ele almejava romper com um modelo mais provinciano de universidade, sem que com isso a província fosse esquecida. Com relação a esta questão, da relação entre universidade e região, Freyre é mais propositivo ao diagnosticar primeiramente que não seria viável que em cada unidade federativa houvesse um grande centro universitário disposto a abarcar de forma aprofundada as diversas áreas do conhecimento, devido à ausência de “recursos intelectuais” e financeiros. Nesta direção, ele realiza os seguintes comentários: E'- *   #     ( !E' <'  '        J # # F ( #      T      !     ' ;*        #              ( '   #          '     #  (!B #  #  '    ' 90  & 3 &       T     ' #                ' #! J      K  >      '  J ' &   C  !>     ('  '( '  & <   !   '    *  1).'89@G'!8AA 8AY:! A longa citação justifica-se por indicar alguns dos eixos centrais de análise de Freyre sobre a questão universitária, apresentando um modelo que ele compreende como inter-regional. Ainda segundo o sociólogo: ,  '# (( '  -  <      ;   <    '!    ' '       '< < 1W'!8A@:! Com isso podemos perceber que Freyre possuía claramente um projeto de estruturação da vida acadêmico-universitária brasileira, diverso do modelo que veio a ser implantado com a reforma 91 universitária de 1968. Para ele, o processo de federalização das universidades deveria visar a criação de centros de educação e cultura regionais, o que, segundo o autor, não teria encontrado apoio no Congresso devido ao “estadualismo eleitorista”. Freyre apresenta, portanto, um projeto de nação no qual a estruturação universitária a partir da região é condição sine qua non, articulando-se a partir desse duplo entre nação e região. A criança no pensamento de Freyre Apesar do debate sobre infância não se desdobrar automaticamente num debate sobre educação, como demonstrado anteriormente, Freyre, quando lecionou na Escola Normal de Pernambuco, organizou seu programa de tal forma que os tópicos relacionados à sociologia da criança e à sociologia escolar estavam conectados. Esta seção é pensada especialmente para os leitores do campo da educação que atuam e pesquisam no âmbito da educação com crianças, uma vez que o processo de reflexão sobre o ambiente educacional desses sujeitos demanda também um aprofundamento da análise sobre a própria concepção de criança e de infância. Assim sendo, refirmo aqui a contribuição relevante de Freyre para uma história, sociologia e antropologia da criança e da infância, que se desdobra também em uma contribuição para o próprio debate educacional. Como bem aponta Burke (2002), Freyre foi um dos pioneiros no estudo do campo da história da infância, ainda que não tenha concluído seu projeto original de escrever um livro inteiro dedicado ao tema. Apesar de ser uma obra pouco comentada, Vida social no Brasil nos meados do século XIX (2008), que fora sua dissertação de mestrado, publicada originalmente na Hispanic American Historical Review em 1922, é um trabalho, no meu entender, fundamental para 92 compreendermos o processo de amadurecimento de algumas questões presentes no pensamento de Freyre acerca da questão da infância. Ainda que o foco não recaia sobre os meninos nesse trabalho – e poderíamos mesmo afirmar que a realidade destes é apenas tocada muito rapidamente – encontramos nele uma das ideias mais persistentes em sua análise sobre a realidade das crianças no Brasil: o envelhecimento precoce. Para Freyre, a meninice no Brasil era extremamente breve, e nesse seu trabalho ele aponta ainda para o olhar tristonho dos meninos e meninas. O autor pontua que aos oito ou nove anos a menina de “família patriarcal opulenta” era enviada para o internato, onde permanecia até os treze ou quatorze anos, havendo ainda a possibilidade de ser educada em casa. Ainda segundo ele: % !,  #D  !%     ' C(    !,-  <-;      ' 1).'566G'!9@:! O fim da infância parece ser decretado com o casamento e com a constituição de uma nova família, quando as bonecas eram trocadas por filhos. No caso dos meninos, esse precoce fim da infância se dava de forma não menos temporã, pois: , '<'  #         !%   !"<  - < <- ;F     !R!!!SB     #'' 93  '    < ' ;   ! J ;F   < '- '  $  #!?*    !B !    !J     C(  !,  1).'566G'!9G:! Mais uma vez o marcador social para o fim da infância passa a ser a presença dos brinquedos, ou melhor, sua progressiva ausência, que se dava de forma concomitante com a transformação do menino numa “caricatura de homem”, ao menos em termos estéticos. Um recurso que Freyre continuou a utilizar exaustivamente em seus trabalhos posteriores aparece aqui nessa análise: os relatos de estrangeiros. Tais relatos chamam atenção para o estranhamento do olhar do outro, o que nos possibilita desnaturalizar o modo como compreendemos nossa própria realidade. Nesse caso, os relatos do Reverendo Fletcher e do médico francês Dr. Rendu indicam um processo de alteridade e de estranhamento ante crianças que não saltam, não rodam arco de barril e não jogam pedra como os meninos na Europa e na América. Recorre ainda às fotografias do período, indicando que nelas surgem “[...] criaturas de olhos doces, de ar tristonho, de aparência seráfica, de cabelos amaciados pela muita brilhantina.” (Freyre, 2008, p. 99). Como já indicado, quando ainda estava nos Estados Unidos, durante seus estudos de pós-graduação, ele chega a confidenciar em seu diário, no ano de 1921, o desejo de estudar o menino brasileiro: ,C-     <   F  -  '  94  '   '     < C!L(     ,2      ' C'  C!>     '    ' !,-#    < C!,  !,   ; #      !E  !E;    '( '  '    # ;   ! M !J -   - -  ' -'  -   (       !M     !B<  <   #        ! "   '-    < C<      ;      '-  3  ' -      !M  !E* #    C - ' <' '3 *   '   ' '  $'  ' '  3   '  3      '  '   1).'566@'!865 86H:! Esta possibilidade representou um dentre tantos outros temas que atraiam Freyre intelectualmente nesses seus anos de formação. Burke (2002) chama atenção para o fato de Freyre não estar sozinho 95 no seu interesse pela história da infância: havia um conjunto de autores no começo do século XX discutindo essa questão, e Freyre muito possivelmente estava em contato com algumas destas discussões. Ainda segundo Burke (2002, p. 794-795): J         ').        '  '    '  '  '     -       !J    #D   *  ,   4  !%   #D  < #    -  U!W!" ' "   !, C  #D  ).   JV%   '   '  -VI +'          +     '   '  < !)  # (    -  -'  -'  -! Mas o interesse de Freyre pelo universo do “menino brasileiro” não se restringiu ao período em que esteve nos Estados Unidos, pois entre 1918 e 1926 ele escreveu alguns artigos no Diario de Pernambuco que tocavam essa temática – especialmente após seu regresso dos Estados Unidos – a maior parte publicada na coletânea Retalhos de jornais velhos (1964). Algumas ideias esboçadas nesses artigos lançam um olhar interessante para a compreensão que Freyre tinha sobre a infância. No artigo “O menino e o homem”, publicado em 96 1924, o autor lança a ideia de se o menino imita o homem, os homens adultos imitam ainda mais o menino, sendo uma caricatura deste. Apesar do pouco espaço que havia no jornal para uma discussão mais aprofundada, encontramos aí uma questão de suma importância: o reconhecimento da agência infantil, negando a leitura de que a criança seja simplesmente um adulto em formação. Em outros artigos, como “O muleque brasileiro tem exercido uma função social” (1924), “Livros para meninos” (1924) e “Mundo de meninos” (1925) surgem algumas preocupações mais práticas com relação ao universo infantil; há em Freyre claramente a ideia de que este ainda é desconhecido pelos adultos, ou seja, por mais que ele valorize suas memórias de infância, reconhece que é um falso dado considerar que conhecemos a realidade da criança por termos sido uma. Em carta endereçada a Manuel Bandeira (1886-1968)5, Freyre confessa que almejava escrever sobre a intimidade e a vida da criança no Brasil. Porém, como é bem sabido, esse projeto não vai adiante, e visando compreender o porquê disso, Pallares-Burke (2005) lança a seguinte hipótese: %-#D             ).#   !%        ' * '  * !V    # CF  -     !M    C  -  'C     '  '   '    C-1 ^'566Y'!A67:! ⁵ Carta de Gilberto Freyre a Manuel Bandeira [s.d.]. Arquivo da Fundação Gilberto Freyre. 97 Nesse ponto, a autora ainda aponta para a influência da obra The child in the house, de Walter Pater (1839-1894), sobre Freyre, que instrumentaliza o pensamento do sociólogo e antropólogo brasileiro com a noção de casa, que poderia melhor acomodar essa nova interpretação do Brasil que estava sendo forjada, o que se torna ainda mais evidente com a publicação de Casa-grande & senzala no final de 1933. Compreendo que o projeto original de Freyre não fora totalmente abandonado; pelo contrário, levanto como hipótese que ele foi levado a cabo, porém, não como uma obra única, mas como algo que deveria percorrer seus trabalhos, com uma atenção especial àqueles que comporiam sua “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”. Também argumento aqui que uma das grandes contribuições de Freyre para o campo dos estudos da criança se deu através da subversão em termos explicativos da relação criança e sociedade, pois o autor não buscou compreender a criança simplesmente como um reflexo da realidade social da qual fazia parte, mas antes compreender a sociedade a partir da criança – ou melhor, do menino. Essa possibilidade de explicar a sociedade a partir da criança se faz possível, em grande medida, em razão da articulação entre as dimensões micro e macrossociológicas presentes no pensamento de Freyre, já que para o autor a personalidade tem um componente coletivo, de tal modo que o agente individual expressa não só suas características singulares, mas também a cultura, os costumes, os valores e a história da sociedade em que viveu (Morais; Ratton Jr., 2005). Algumas das premissas básicas que percorrem sua interpretação do Brasil também se imbricam na leitura sobre o mundo dos meninos, pois a interpenetração cultural que teria ocorrido no Brasil seria perceptível, dentre outros âmbitos, na sociabilidade infantil, e mais claramente ainda no que diz respeito aos brinquedos e brincadeiras. Como o autor aponta: 98 %       F3       '  #!B       ;<   ' (     + &    D !J   #     ;    '  '' *' !J <     <  F   C            '(    ' ' # '<     1).'566Y'!56A 56Y:! É válido ter em consideração que é indicado em seu diário, também no ano de 1921, o desejo de se dedicar à “sociologia do brinquedo” que seria um aspecto da sociologia “da criança ou do menino” (Freyre, 2006b). Sendo assim, ao que me parece, brinquedo e brincadeiras não seriam coisas que se distanciariam da análise do menino, ainda que analiticamente pudessem ser compreendidas de forma separada. É na análise das brincadeiras que Freyre também se volta para um dos aspectos que ele considera mais centrais na sociedade brasileira: o sadismo. Longe de pensar as crianças como influenciadas pelos adultos numa cultura sádica, o autor parece apontar para a direção oposta, ao perceber essa característica como algo presente na agência da criança, que ele vai denominar de “crueldade infantil”, transparecida em brincadeiras como “lascar-se o pião”, “comer-se o papagaio”, “jogo do beliscão”; em todo o caso, as “condições sociais” 99 não são perdidas de vista, já que o “menino sadista”, tal como havia no Brasil Colônia e Imperial, só era possível em face do regime escravocrata. Descrevendo em maiores detalhes essas práticas, referindo-se mais especificamente à relação entre o menino da casa-grande, filho do senhor de engenho, e o menino nascido na senzala, ele aponta que este servia como um “leva-pancadas”. ># &#  <     'C F   T3  ' C   #    -  3-     C( '       !R!!!SK '' ;     '      '   'C'  ! B  !%  C'     -'   <    $ ' '        < ; ' !V <3  ' ! M        &# # (   $  !>    * # ''    ' ;*     &  R!!!S>       ;'    '    &3  100  '           #D    1).'566Y'!A89 A56:! Tendo em vista que o passado nunca está totalmente superado, pois o tempo para Freyre é “tríbio”, marcado pelo entrelaçamento entre passado, presente e futuro, ele não hesita em relacionar essas práticas com a sociedade em curso, ao indicar que “Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata.” (Freyre, 2005, p. 454). Nessa passagem, é possível ainda perceber que, a partir da análise privilegiada do mundo infantil, pode-se também problematizar em que medida Freyre fora defensor de uma democracia racial no Brasil. Embora não seja o foco desse texto debater essa questão, não há como me furtar completamente dessa discussão, tendo em vista a centralidade que possui no trabalho do autor. O que se pode notar é que, apesar de haver uma compreensão em Freyre de que a miscigenação acaba por amalgamar as relações raciais, isso não teria implicado ausência de conflito ou em relações harmoniosas, ainda que, ao lançar o olhar comparativo, o autor afirme que aqui ocorrera uma escravidão mais amena, o que não se sustenta ante uma análise mais rigorosa. O relevante, nesse ponto, para nossa discussão, é que ao mesmo tempo em que as crianças brancas e negras podiam passar por um sistema de coeducação, ou mesmo dividir o leite materno da ama, isso não implicava inexistência de relações violentas, o que demonstra a complexidade do dilema racial brasileiro, que poderia ser examinado também a partir da realidade dos meninos. Todavia, para se compreender o menino não bastava pensar na oposição entre menino da casa-grande e menino da senzala, apesar 101 de haver clareza quanto ao fato de que o antagonismo mais relevante no processo de constituição da sociedade brasileira era aquele existente entre senhor e escravo, que já se desenhara na mais tenra idade. Um dos antagonismos existentes também era o que se dava entre o homem e o menino, embora se deva rememorar que uma das características de nossa sociedade, na perspectiva freyreana, era justamente o equilíbrio de antagonismos. Esta ideia de equilíbrio de antagonismos é de suma relevância para compreendermos a dimensão da agência infantil na obra de Freyre, pois este equilíbrio também pressupõe um processo de interdependência entre os termos envolvidos, de tal modo que a sociedade brasileira não seria a sociedade dos homens ou dos adultos exclusivamente, mas, sim, dos adultos e das crianças. O mesmo pode se dizer da cultura aqui produzida, de forma que a criança não surge em seu trabalho como uma reprodutora de cultura, mas como um agente produtor de cultura, o que só é possível tendo em vista este complexo processo de interdependência marcado pelo equilíbrio de antagonismos. Em Sobrados e mucambos podemos encontrar mais claramente uma discussão sobre esses antagonismos envolvendo o menino e o homem, que se explicita no capítulo intitulado “O pai e o filho”. É relevante destacar que este livro teve sua primeira edição publicada em 1936; já a segunda, de 1951, passou a contar com um novo prefácio, inúmeras novas notas de rodapé, além de quatro novos capítulo: VIII – Raça, classe e região; IX – O Oriente e o Ocidente; X – Escravo, animal e máquina; XII – Em torno de uma sistemática da miscigenação no Brasil patriarcal e semi-patriarcal. Percebe-se, desse modo, que o antagonismo entre o pai e o filho estava posto desde a concepção original do projeto do livro, o que no meu entender se vincula à análise do autor acerca da história do menino brasileiro, que, como já afirmei, compreendo não como uma obra que não chegou a ser realizada, mas sim que se concretizou de forma dissolvida em seus trabalhos. Remotam a esse trabalho os argumentos que vem 102 esboçando, ao menos desde sua dissertação de mestrado, em torno da brevidade da meninice no Brasil, indicando que: M    '    '<!P     C !J          '  ; ! K   $       (     #   ' '   '      ! " <    # '   '    '    '* '  '  !>        !E# (  1).'566@'!877:! Considerando os elementos já explanados sobre a relação entre o regional e o nacional no trabalho de Freyre, poderíamos afirmar que sua análise sobre o menino na sociedade patriarcal pode ser tomada como uma análise ampla sobre o menino na sociedade brasileira. Esta inferioridade indicada era marcada pelos castigos físicos, pela posição que ocupava no sistema patriarcal. Ainda que o menino branco seja retratado como um sádico que espanca os meninos negros, mesmo que com esse, por vezes, vivencie um sistema de coeducação (Freyre, 2011), ele é, segundo o autor, alvo contínuo da violência física: J  ' ' T' -'  ''   '  '  '   < '  # 4(!I             'C       '    103 C<   !,   '   '   1).'566@'!879:! O sadismo, juntamente com um crescente entristecer e empalidecer dos meninos, parece ser o fio condutor de Freyre. Sem embargo, chamo aqui atenção para um ponto que passa quase despercebido em seu trabalho: ao realizar a análise da passagem do Brasil Colônia ao Brasil República, o autor aponta para uma progressiva amenização dos castigos físicos, tanto no âmbito familiar como no dos colégios, o que acompanhava as mudanças de valores. É possível compreender, assim, que sua análise sobre a infância no Brasil traz uma perspectiva dinâmica, que encara as mudanças sobre o que é ser criança, nesse caso, a diminuição da violência física. Podemos realizar, nesse ponto, um paralelo entre o que é colocado por Freyre e a análise de Elias (1998) acerca das mudanças nas relações entre pais e filhos, que, segundo o sociólogo alemão, seriam marcadas por uma crescente renúncia da utilização da violência física: J'+<#    3'    F     $#    ! < C' *  -  !V*     ; ' C'#  'C  #         $# &#!W  Z         #'<<      '   #    1J'899G'!AAH:! 104 Em Freyre, essas mudanças aparecem acompanhadas por outras igualmente significativas para compreensão da infância, como o incremento das leituras para os meninos, com especial destaque para a obra de Julio Verne (1828-1905), o que é analisado pelo autor tomando como base os depoimentos de brasileiros nascidos entre 1850 e 1900 – portanto, referindo-se já ao Brasil republicano (Freyre, 2004). Esta questão deve ser analisada também tendo em vista o processo de ampliação do mercado editorial no século XIX, e a produção de uma literatura para o grande público, incluindo aí mulheres e crianças (Leão, 2012). Em Ordem e progresso são indicados, entre as leituras de infância e juventude daqueles que cederam seus depoimentos, principalmente livros de autores estrangeiros, em detrimento da literatura nacional que, quando é apontada, refere-se a livros que não são pensados especificamente para meninos. É a isso que Freyre se referia em seu artigo de 1924, “Livros para meninos”. Certamente Freyre não percebia que os castigos físicos haviam sido eliminados, tampouco que havia uma ampla oferta de literatura infantil. Pelo contrário, como já vimos, ele entendia que faltavam livros para o menino brasileiro; entretanto, podemos perceber que a sociedade brasileira estava em transformação, o que trazia consigo novos valores. Volto a destacar aqui a subversão do olhar freyreano que se volta para a criança com o intuito de compreender a sociedade; as mudanças em seus valores indicam mudanças macrossociológicas que poderiam ser observadas e que ainda estariam em curso. Nos depoimentos coletados, ganha espaço igualmente a discussão sobre os brinquedos e brincadeiras recorrentes tanto entre aqueles que tiveram sua infância no espaço urbano quanto no interior, nas mais diversas regiões do País. Ao que parece, para Freyre, ser criança se relaciona com a centralidade que o brinquedo e a brincadeira 105 possuem para o menino; a infância se desvanece na medida em que os brinquedos são deixados de lado e, ainda que possam ser guardados como uma recordação nostálgica, já não possuem o lugar que outrora ocuparam. Pode-se ainda relacionar o fim da infância com a descoberta sexual, embora estes não constituam polos estanques, já que ambos são processuais; há mesmo a indicação de práticas sexuais que seriam próprias da iniciação dos meninos, como os orifícios em tronco de bananeira ou em animais, de galinha à vaca (Freyre, 2004). Compreendo assim que, na análise de Freyre, a criança representa uma janela privilegiada para entender uma sociedade, desde que se apreendam os movimentos complexos que estão em jogo no mundo infantil, uma vez que este está em constante transformação. Do mesmo modo, ela também deve ser tomada como protagonista nas reflexões sobre o universo educacional, uma vez que ela se encontra no centro do sistema de ensino. 106 4. RAÇA E EDUCAÇÃO Raça, educação e democracia étnica Adentrar no debate sobre a questão racial no pensamento freyreano é sempre um exercício arriscado, tendo em vista toda a polêmica que envolve a recepção de suas ideias, ao menos desde a publicação de Casa-grande & senzala em 1933, que obteve como respostas as mais diversas reações (Freyre, 1968). Para uma compreensão mais completa acerca do trabalho de Freyre e de sua recepção é necessário destacar o contexto intelectual daquele momento, no qual a questão racial se coloca como um dos eixos centrais para o desvelamento do enigma chamado Brasil. De acordo com Bastos (2006), o ensaísmo dos anos de 1920 possuía duas temáticas centrais: a questão da cultura e a busca da identidade nacional. Ainda segundo Bastos, os autores desse período procuravam “inventar a cultura” para legitimar a “invenção” da identidade nacional, e teria sido Freyre aquele que realizou um salto nos estudos sociais ao conseguir articular esses dois elementos. Mas as questões postas por Freyre, além de inovadoras em inúmeros aspectos – o que inclui a dimensão metodológica de sua pesquisa (Burke, 1997) –, também se opunham a ideias que vinham sendo amplamente defendidas nos meios intelectuais brasileiros, compreendidas como arianistas. De forma contrária a estas ideias, o antropólogo e sociólogo pernambucano propunha uma interpretação do Brasil como país miscigenado no plano biológico e cultural. Para Cardoso (2013), Freyre criou um mito sobre o Brasil no qual 107 gostamos de nos ver; porém, acredito que há pontos presentes na interpretação do autor de Casa-grande & senzala que vão para além de uma dimensão mitológica. Sua oposição às ideias arianistas a partir do conceito de miscigenação, articulada com a hipótese de que houve aqui uma escravidão mais amena em alguns aspectos que em outras partes do mundo, marcada por uma certa “doçura” na relação entre portugueses – que seria um povo também miscigenado, situado entre a Europa e África em termos culturais e étnicos – e os negros transformados em escravos, gerou uma enxurrada de críticas ao que se convencionou denominar de “mito da democracia racial”, do qual seria elaborador e defensor. Mas como nos indica Lehmann (2008), o que Freyre propôs inúmeras vezes foi que o Brasil poderia estar a caminho de uma “democracia étnica ou racial”. Há de se reconhecer ainda a centralidade que a ideia de “meio” assume na obra de Freyre, como bem apontam Larreta e Giucci (2007): essa categoria é uma chave central no pensamento do autor, uma vez que é através dela que ele tenta desessencializar a ideia de raça. Considerando, portanto, a centralidade que a questão racial assume na obra de Freyre desde o princípio de seu trabalho, procurarei compreender como ele percebe a relação entre raça e educação – o que não é uma tarefa fácil, dado o caráter disperso com que esta questão aparece. Em todo o caso, essa relação não passou despercebida por Freyre – tanto que em entrevista concedida em 1979, ao ser indagado porque não existiria no Brasil uma burguesia negra como nos Estados Unidos, ele foi taxativo: J (   !> <    #       ' #  <!P      X 108 % ' *      # < #   1).' 5686R8979S'!878:! Em Casa-grande & senzala a educação aparece como um elemento continuamente presente na realidade do engenho, nessa unidade quase total que abarcava também as práticas pedagógicas; afinal, era ali também que se aprendiam “as primeiras letras”. Chamo a atenção para o fato de que se encontra aí um dos elementos chaves para compreendermos a relação entre raça e educação no Brasil, que é a “co-educação” entre negros e brancos, uma vez que a possibilidade de que crianças pertencentes a raças diferentes fossem educadas juntas era uma das singularidades que encontraríamos no Brasil, se comparado com outros países que vivenciaram a escravidão. Mais que isso, este seria um dos pilares para vislumbrarmos no Brasil a possibilidade de caminharmos para uma democracia étnica. No entanto, há de se considerar as tensões que estavam postas nos processos educacionais brasileiros, uma vez que, na interpretação de Freyre, os jesuítas não contribuíram para a formação de uma democracia étnica no Brasil, justamente por negarem o sistema de co-educação entre negros e brancos para o autor de Interpretação do Brasil1: R…] C        (  3  *     (      F   F $       < ! 1).'5668'!9A:! ¹ Esta obra refere-se a um conjunto de conferências realizadas por Freyre em 1944 em universidades norte-americanas, portanto, os textos foram pensados tendo em vista o público estrangeiro. Apenas em 1947 Interpretação do Brasil é traduzido e lançado no Brasil e quatro anos depois em Portugal. 109 E mais adiante ele ainda afirma que: R…]   C    *  Z$ ;      <  !J # <  '   ;# '  -   -  ;      ;  ! K   ' '   '      CZ$ # '  '       <I T 1W'!886 888:! Há nessas passagens questões bastante centrais para o que me proponho a analisar neste trabalho, tendo em vista que aparece nessa passagem a certeza de que houve no Brasil um “amalgamento das raças” e que a educação teria um papel relevante para tanto, uma vez que desde o princípio este seria um espaço bastante plural em termos étnicos, havendo nos primeiros séculos nesses colégios comandados por jesuítas caboclos, filhos de normandos, filhos de portugueses, mamelucos, meninos louros, sardentos, pardos, morenos, cor de canela etc.; todavia, “só os negros e moleques parecem ter sido barrados das primeiras escolas jesuíticas. Negros e moleques retintos” (Freyre, 2005, p. 501), porém sem restrições aos pardos. Em todo o caso, apesar da crítica aos jesuítas, devido ao fato de não terem aberto espaço para os negros em seus colégios, o autor reconhece também os aspectos positivos que decorreram de suas práticas pedagógicas, especialmente no que diz respeito à outra forma de co-educação praticada por estes, uma vez que aparentemente teria havido uma igualdade no processo de educação em seus colégios 110 entre os séculos XVI e XVII de índios e portugueses, europeus e mestiços, caboclos e meninos órfãos vindos de Lisboa. "(   <                  #     !"   (   <        &   3D  3 #    ' C     &  ! ,        '    '  '   '  '  !'   ' !% #    D #!"<          C1).'566Y'!55A:! Lamenta que posteriormente tenha havido um processo de segregação entre indígenas e brancos, o que deixa evidente a postura do autor contrária a qualquer forma de segregação com base em questões étnicas, que seriam, desse modo, empobrecedoras culturalmente. Mas ainda que a educação possa ser compreendida como um ponto nodal da produção dessa “democracia étnica”, que ele admite se tratar de um “tipo ainda imperfeito de democracia social” (Idem, p. 198), isso não ocorre sem sobressaltos e tensões, tendo em vista que: ,    ' '  C'    (     '   Z$'  F 3  111     T   '  '       (3       -! 1W'566Y'!A87:! Considerando tais aspectos compreendo que a educação, na perspectiva do autor, contribuiu para a construção de uma democracia étnica no Brasil não apenas por meio da co-educação entre negros e brancos, mas também pela interpretação de culturas, que, sendo uma das características distintivas do país, também se fazia presente nos processos de aprendizagem. Sendo assim, a onipresença africana na cultura brasileira estender-se-ia à escola e aos processos de aprendizagem de forma mais ampla. A educação brasileira estaria, desse modo, decididamente marcada pela interpenetração de culturas. Essa relevância do elemento africano para os processos educacionais só é possível ante a percepção de Freyre de que a cultura brasileira é formada não apenas por aqueles tidos como “cultos”, mas também por analfabetos, tanto brancos quanto negros2. Como ele nos indica: “Certos autores, dos que se ocupam superficialmente dos problemas de cultura, mostram especial tendência para exagerar a importância da alfabetização, como sinal de superioridade absoluta dos povos considerados civilizados sobre os rústicos.” (Freyre, 2011, p. 84), e segue completando o raciocínio: K '' '   )  ;'  '< ''C #( ''   '   '      !B       ² Isso não significa que Freyre compreendia que todos os negros africanos aqui transformados em escravos eram incultos. Pelo contrário, ele destaca especialmente os negros de origem maometana entre os quais a prá ca da leitura e da escrita seria recorrente, algo que se diferenciava inclusive dos próprios senhores de engenho, por vezes des tuídos dessa prá ca (Freyre, 2001, 2005, 2011). 112 #      #   # '  #    ('     1W'!GY:! Mais que isso, quando Freyre se refere aos colégios, especialmente os jesuítas, ele faz referência sempre à sua severidade no trato com os alunos. Fala de um abuso criminoso da fraqueza infantil, e nesse ponto encontraremos mais uma conexão com a questão racial no país, tendo em vista que: \    +     3   !?Z*  $           !,       !E   ' W$    '      '         #C&!%     3 #    '  <    F 3 '  C     !W #  -'    ; '    # #    1).'566Y'!Y67 Y6G:! Sendo assim, a escola seria ao mesmo tempo um espaço de “amalgamento” das relações raciais, contribuindo para a construção de uma democracia étnica, mas também refletiria as tensões de uma sociedade escravista e profundamente sádica. Penso que a ideia de “equilíbrio de antagonismos” que permeia toda a obra de Freyre é fundamental para compreendermos sua interpretação sobre 113 o universo escolar, pois de fato o professor e o aluno, nestes termos, formariam polos antagônicos, mas também complementares, tal como o senhor e o escravo, o pai e o filho. Sem embargo, a instrução formal só teria passado a ganhar um lugar de destaque na complexa sociedade que se constituiu nos trópicos a partir de seu processo de urbanização mais intenso; afinal, o latifúndio era anteriormente a base da economia canavieira. Nesse ponto chamo a atenção especialmente para o capítulo intitulado “Ascensão do bacharel e do mulato” presente em Sobrados e mucambos, obra publicada em 1936, que será discutida mais em profundidade na seção seguinte. Não compreendo que se possa solapar os argumentos elaborados pelo autor de forma simples, reduzindo-o ao defensor do “mito da democracia racial”, pois penso que ficou claro no caminho percorrido até aqui que seu trabalho – em que é evidente o reconhecimento das desigualdades entre negros e brancos – não se assenta nessa perspectiva. Freyre percebeu que poderíamos caminhar para esse cenário, que estávamos mais próximo disso que outras nações. Portanto, a ideia de uma democracia étnica possui sempre um valor relativo e comparativo em sua obra, mas a educação seria uma condição sine qua non para tanto. Educação e ascensão social de negros e mulatos Para esta parte do trabalho, tomo como fio condutor a “trilogia”, ainda que também eu recorra a outros trabalhos, uma vez que a questão da educação e de sua relação com a ascensão social, especialmente de negros e mulatos3, encontra-se dispersa ao longo de ³ O termo aparece recorrentemente na obra de Freyre, assumindo a conotação de indivíduo originário da miscigenação entre negros e brancos. Em que pese o debate contemporâneo sobre a imprecisão e o sen do nega vo atribuído a tal termo, u liza-se aqui a categoria nos termos postos pelo autor, para tentarmos sermos mais fiel à forma como suas ideias foram expressas. 114 sua obra. Ainda que haja uma direção cronológica na explanação do autor, se seguirmos os três livros citados, eu não a seguirei rigorosamente, pois minha intenção reside em problematizar a questão e não em expô-la de forma linear. Até mesmo porque sobre o pensamento de Freyre pode-se dizer tudo, menos que ele é linear: apresenta-se mais espiralado, com círculos que nem sempre se fecham, e se ele usa da intuição para escrever, creio que essa acaba por ser uma importante ferramenta para interpretá-lo também. Um importante ponto que deve ser destacado desde já é a centralidade que a categoria “patriarcado” assume nesse conjunto de trabalhos para a interpretação do Brasil – o que será objeto de crítica por parte de intelectuais como Holanda, que, em Raízes do Brasil ([1936] 1995) problematiza a centralidade do patriarcado para a compreensão do país. Esse livro fora publicado no mesmo ano que Sobrados e mucambos, de forma que, na introdução da segunda edição (publicada em 1951, porém datada de 1949) há uma tentativa de responder às críticas recebidas, indicando que haveria uma confusão, na leitura de seus críticos, entre forma e conteúdo; pois ainda que houvesse alteração em termos de “conteúdo etnográfico”, a forma do patriarcado se manteria (Oliveira, 2019b). É importante lembrar que a segunda edição de Raízes do Brasil foi publicada em 1948 e dialoga, portanto, com a primeira de Sobrados e mucambos, porém houve ainda outros textos nos quais Holanda critica a argumentação freyreana, como “Sociedade patriarcal”, em que o autor indica que Freyre teria universalizado uma categoria que se referiria exclusivamente ao Nordeste (Holanda, 1979). Alguns críticos posteriormente falarão mesmo em universalização de uma realidade própria de Pernambuco (Pallares-Burke; Burke, 2009). O importante dessa questão é que a família patriarcal seria o núcleo central a partir do qual se irradiaria a sociedade brasileira, além de uma unidade autônoma na qual todo um mundo social 115 teria se desenvolvido, o que implica dizer que também os processos educacionais teriam se irradiado aí; afinal, tudo ocorria ali nos domínios da casa-grande, incluindo a aprendizagem das primeiras letras (Freyre, 2005). Sendo assim, em que pese as críticas ao processo de universalização da categoria “patriarcado” ou mesmo “família patriarcal” na obra de Freyre para a compreensão do Brasil, deve-se considerar a centralidade dela na compreensão do desenvolvimento dos processos educativos que ocorreram no Brasil, pois é no seio da família patriarcal que ocorreria a intensa interpenetração de etnias e culturas às quais o autor faz referência; e isso ocorreria também nos primeiros aprendizados escolares, como demonstrado na seção anterior. Ainda sobre a questão da “co-educação” que teria ocorrido na casa-grande, Freyre (2011, p. 108) afirmou que: “Era comum, entre os senhores de engenho, educar filhos mulatos, ou ilegítimos, dando-lhes mesma instrução que aos legítimos desde que mostrassem talento ou gosto pelas letras”, ao passo em que os jesuítas não teriam contribuído para a formação de uma democracia étnica no país ao impossibilitarem a existência dessa prática, voltando sua ação pedagógica para os brancos e índios apenas (Freyre, 2001). Obviamente que podemos (e devemos) problematizar essa perspectiva, uma vez que a proximidade física não necessariamente eliminaria o fosso social existente. Porém, dada a concepção “neolamarckiana” de raça que Freyre possuía (Araújo, 1994), pode-se inferir que a “inclusão” dos negros e mulatos nas práticas educativas que teriam sido realizadas no Brasil possuiriam um impacto direto sobre as características destes grupos. Em alguma medida podemos afirmar que a gênese da ascensão social de negros e mulatos por meio da educação, que Freyre observa a partir das mudanças sociais que teriam ocorrido no Brasil, poderia ser encontrada desde a formação da família patriarcal, ainda que as condições sociais para a sua realização plena só viria a ocorrer na República. 116 Tendo em vista essa posição, compreendo que o sistema de co-educação, ou ao menos sua possibilidade, é uma chave analítica profundamente relevante no pensamento de Freyre, pois ele ao mesmo tempo se faz possível devido à postura que os portugueses tinham com relação às questões raciais. Sua plasticidade se explicaria por meio do processo histórico de constituição de Portugal enquanto nação (Freyre, 2005), mas também esse sistema seria um promotor da democracia étnica. A afirmação categórica de que os jesuítas não contribuíram para a formação de uma democracia étnica no Brasil, ao negar a co-educação entre negros e brancos, significa, em primeiro lugar, que Freyre reconhece a desigual posição que esses sujeitos ocupavam na estrutura social, pois havia uma democracia que estava por se constituir e não simplesmente dada; e em segundo, que a educação poderia ser compreendida como uma importante ferramenta nesse processo. O equilíbrio de antagonismos existente na leitura do autor não poderia se manter exclusivamente em cima da miscigenação, apesar de seu papel central para tanto: seria necessário um conjunto de condições sociais para que ele se efetivasse. Compreendo, dessa forma, que o acesso à educação por parte não apenas dos brancos seria um dos fatores presente nesse conjunto. Antes de avançarmos na discussão, é interessante percebermos também como estava posto o debate sobre a relação entre raça e educação no momento em que a obra de Freyre passa a ganhar visibilidade. A elite intelectual brasileira discutia a capacidade de o negro se inserir ou não no sistema escolar formal, dadas suas supostas limitações cognitivas, segundo alguns pensadores do período (Freitas, 2005a). Freyre (2005) pontua que as características negativas atribuídas ao negro não eram inerentes à raça, mas sim reflexo da condição de escravo; portanto, eram produzidas socialmente, de 117 forma articulada com o meio. Na verdade, de acordo com Freyre, o negro seria superior ao branco em diversos aspectos físicos e morais. Ademais, em meio a uma realidade social na qual o analfabetismo era a regra e não a exceção, Freyre enfatizou a presença de escravos que sabiam ler e escrever, especialmente os escravos islamizados (Freyre, 2005), o que se opunha à figura do senhor da casa-grande – ignorantes em termos de instrução, porém senhores absolutos em termos de poder político e social. Estas ideias com relação à instrução dos negros no Brasil, amadurecem paulatinamente nos trabalhos do autor aqui examinados. Porém, esses processos aos quais ele faz referência estão ligados aos movimentos mais amplos de mudança da sociedade. Uma vez que a educação não era o centro no universo patriarcal, é com a passagem para o Império e posteriormente para a República que a educação passa a ser uma real possibilidade de ascensão social, na interpretação do autor, ainda que ele afirme que mesmo durante o “sistema de plantação” não havia “rígidas gradações sociais”, sendo possível aos sujeitos, ainda que de origem social humilde, a ascensão social. É interessante notar que é na obra Sobrados e mucambos que Freyre escreve um capítulo intitulado “Ascensão do bacharel e do mulato”, que estava presente desde a primeira edição do livro. Neste capítulo, Freyre aponta que os dois “personagens” emergem de forma visceralmente entrelaçadas, ou seja, a ascensão social do mulato se faz possível na medida em que outras formas de ascensão social ganham espaço na sociedade brasileira, e estas não dependeriam estritamente de outros fatores, como a posse de terras no regime colonial. Chama a atenção que no título desse capítulo Freyre refira-se ao mulato e não ao negro. Este havia sido objeto exclusivo de análise em dois dos cinco capítulos de Casa-grande & senzala, o que nos leva a uma problematização sobre o lugar especial que o mulato ocupa nessa nova sociedade que emergia. Compartilho da compreensão 118 de Degler (1976, p. 234) de que “a ‘saída de emergência’ do mulato serve como símbolo, na verdade como condensação, de uma gama de relações entre pretos e brancos e das atitudes de um para com o outro”; sendo assim, o destaque dado pelo autor indica, no final das contas, que seu olhar se volta para aquele que sintetiza o movimento mais amplo da sociedade brasileira, cuja marca primeira seria a miscigenação biológica e cultural. O mulato seria a síntese dos novos tempos, e se, no regime de plantação a possibilidade do acesso à instrução se dava a partir da concessão realizada pelo senhor de engenho – normalmente feita a seus filhos bastardos –, a partir do século XIX, com o avanço do espaço urbano, ainda que houvesse uma reacomodação das estruturas sociais, mesmo aqueles oriundos de famílias mais pobres teriam a possibilidade de ter acesso à instrução, o que por consequência possibilitaria a ascensão social. Neste contexto, a profissão de professor representou uma das possibilidades de angariamento de um maior prestígio social por parte de mulatos pobres (Freyre, 2003). Ainda segundo o autor: E +            # '        '  '    -       '          1).'566@'!786:! O mulato e o bacharel seriam dessa forma os protagonistas do país que se urbanizava. Para Freyre, os letrados (os bacharéis) foram figuras centrais nesse período, tanto que algumas das principais revoltas do período, como a Inconfidência Mineira4, teriam sido revoltas de bacharéis. ⁴ Movimento de caráter separa sta do Brasil em relação à coroa portuguesa organizado a par r de Minas Gerais no século XVIII. Apesar de ter havido outros movimentos com finalidades similares no período, esse é considerado um dos mais relevantes. 119 Esses novos agentes representavam a antinomia dos antigos senhores de engenho, especialmente os bacharéis, que, ao regressarem ao país com sua formação europeia – pois os primeiros cursos superiores surgem no Brasil apenas no começo do século XIX –, acentuavam “[...] nos pais e avós senhores de engenho, não só o desprestígio da idade patriarcal, por si só uma mística, como a sua interioridade de matutões atrasados” (Freyre, 2006a, p. 713). Pensando especificamente a relação entre a questão racial e a educação em Ordem e progresso, acredito que Freyre radicaliza ainda mais seu argumento, ao indicar que: R!!!S W<   $ #       #        !J   - #       ; F     F ' F 'F' - 'F    ! Esse processo de valorização do homem de origem modesta ou de condição étnica socialmente inferior, pelo título acadêmico, acentuou-se com o advento da República; e não apenas através das referidas academias ou escolas superiores, como por meio das academias ou escolas militares, e não tanto a da Marinha como a do Exército. Embora continuando, neste ponto, a obra do Império, e não propriamente inovando na matéria, a República avivou no Brasil as oportunidades de ascensão social, particularmente política, dos mestiços e dos plebeus (Freyre, 2004). Ao que parece, a mudança dos tempos implicou uma guinada do lugar da educação na sociedade brasileira, tornando-se cada vez mais central para a definição do lugar social dos agentes. Nesse ponto 120 é relevante acrescentar que, com o advento da República – período no qual, segundo o autor, os títulos acadêmicos passam a impactar mais no processo de ascensão social daqueles oriundos de “condição étnica socialmente inferior” – amplia-se paulatinamente o acesso ao sistema de ensino, tanto no que se refere à Educação Básica quanto ao Ensino Superior. Isso se torna ainda mais evidente com o fim da chamada “República Velha” na década de 1930, quando a educação passa a ocupar um lugar ainda mais central no debate político, como pode-se perceber com o advento do Ministério a Educação e Saúde Pública em novembro de 1930, a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932, e a criação da Universidade de São Paulo em 1934 e da Universidade do Distrito Federal em 1935; nesta última, Freyre chegou a atuar como professor. O que Freyre consegue captar é que havia mudanças em curso na sociedade brasileira, de tal modo que as novas configurações que o país assumia, notadamente com um crescente processo de industrialização e urbanização, lançavam novas demandas sobre a sociedade. Sendo assim, se na sociedade agrária patriarcal a escolarização formal possui um peso diminuto na atribuição do lugar que cada indivíduo ocupava na estrutura mais ampla da sociedade, na nascente sociedade urbano-industrial esta passava a ser um elemento determinante. Notoriamente, a possibilidade de negros e mulatos ascenderem socialmente por meio da escolarização formal só se faria possível nesses termos na medida em que houvesse, no Brasil, uma sociedade na qual a questão étnica não fosse uma barreira intransponível, o que era ainda mais evidente com o processo de miscigenação que, como o autor argumenta, teria amalgamado as relações raciais aqui existentes. É ainda relevante o declínio do papel na Igreja no universo educacional, especialmente dos Jesuítas, pois, como já vimos, de acordo com Freyre eles não teriam contribuído para a formulação 121 de uma democracia étnica no Brasil, abrindo-se espaço para uma série de outras instituições, com destaque para as escolas militares na passagem do século XIX para o XX, como bem enfatiza o autor em Ordem e progresso. Os jesuítas também são alvos de crítica por parte de Freyre no que se refere a seus métodos pedagógicos, tidos como retrógrados; o oposto do que esse autor defendia em matéria educacional, como já apontado nos capítulos anteriores. A ideia de pensarmos os diplomas escolares como “cartas de branquitude sociológica”, nos termos postos pelo autor (Freyre, 2006a), é bastante instigante e complexa. Ao relacionarmos essa questão com o debate contemporâneo sobre ações afirmativas no Brasil, que, como nos indica Sito (2014), envolve uma ampla gama de disputas e controvérsias, veremos que mesmo partindo de pressupostos substancialmente distintos chegamos a uma questão similar: a educação é capaz de alterar sensivelmente o lugar dos “não brancos” na sociedade. Se a educação é capaz de “outorgar branquitude” a negros e mulatos, e isso implicou em uma ascensão social destes, em última instância a ideia de que Freyre seria o defensor da “democracia racial” no Brasil é no mínimo questionável, ainda que se possa problematizar em que termos ele compreendeu as relações raciais entre negros e brancos, já que coloca que a miscigenação amenizou tais relações, criando um verdadeiro espaço de confraternização entre a casa-grande e a senzala, o que tem sido questionado e refutado intensamente. Em que pese a reacomodação das estruturas sociais ao longo do tempo, seria ante uma sociedade urbanizada que não apenas as oportunidades educacionais se ampliariam, como também seu lugar seria ressignificado, possibilitando que o acesso à instrução formal tivesse um impacto sobre a estratificação social. Porém, isso só seria possível, na interpretação do autor, dada a inexistência de barreiras 122 étnicas, ou ao menos a fragilidade destas, nos termos comparativos que ele se utiliza no decorrer de toda sua obra para pensar o Brasil. Como Freyre pode contribuir para o ensino de história e cultura afro-brasileiras nas escolas? Considerando os múltiplos embates ocorridos na arena pública em torno da questão racial no Brasil ao longo de sua história, bem como os usos que têm sido feitos da obra de Freyre nesse contexto, poderia soar contraditório, num primeiro momento, indicar sua contribuição para o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Todavia, é importante ressaltar que a obra de Freyre voltou-se, justamente, para a difusão do lugar das culturas africanas na formação da sociedade brasileira; ademais, suas inovadoras propostas em termos metodológicos podem efetivamente trazer contribuições significativas para a prática de professores e professoras preocupados em debater esses temas em sala de aula. O diálogo que busco realizar na última parte dessa obra é justamente com os professores e professoras da educação básica que se encontram frente ao desafio de trabalhar os temas de história e culturas afro-brasileiras em sala de aula. Compreendo que, para superarmos esse desafio, o diálogo com a obra de Freyre é fundamental, inclusive em termos críticos, problematizando como esse debate ocorreu ao longo do tempo. A introdução da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares da educação básica brasileira através da Lei nº 10.639/03 insere-se no lastro de dois fenômenos que ocorrem de forma concomitante no Brasil: por um lado, há a emergência dos chamados novos movimentos sociais, que colocam em pauta reivindicações referentes à identidade étnico-racial, religiosa, de gênero etc. (Gohn, 2010), destacando-se aí a concepção de raça forjada pelos Movimentos Sociais 123 Negros, que a compreendem enquanto uma construção social (Gomes, 2012); por outro, há a entrada cada vez mais forte, no Brasil, fomentada principalmente por organismos internacionais, da questão da diversidade, em suas múltiplas significações, nas políticas públicas, especialmente as educacionais (Rodrigues, Abramowicz, 2013). Para se chegar até a promulgação da Lei n.º 10.639/03, foi percorrido um longo trajeto, que envolveu diversos embates no campo educacional brasileiro. Tais embates se vinculam também à visibilidade da cultura afro-brasileira na esfera pública, bem como à interpretação de seu lugar na formação de uma “cultura nacional”. Um dos marcos dessa discussão no espaço público foi a promoção do Primeiro Congresso Afro-Brasileiro organizado por Freyre em Recife, em 1934. Segundo Motta (2017, p. 22): ,I  89HA';  $     '  ' 89HH'    K?  %? !K '!  '   $    # -  '           ! ,      ;      ' !     '   !I      WI  '   ' < ! Motta (2017) busca demonstrar, portanto, que o Congresso Afro-Brasileiro veio a reforçar algumas questões já postas no livro mais famoso de Freyre. A relevância de ambas as iniciativas intelectuais remete à negação das teorias arianistas e à afirmação do Brasil como um país formado também por africanos, compreendidos como 124 co-colonizadores. Ainda acerca desse primeiro congresso, Larreta e Giucci (2007, p. 526) afirmam que: R!!!S  #        C   '    F '    (!%+F  '  Z    Z     ;    ! Tal evento teve como uma de suas marcas a inovação na forma de abordar essa temática. Psiquiatras, historiadores, sociólogos, antropólogos, alunos de liceus, babalorixás, ex-escravos, negros analfabetos etc. compunham o corpo dos palestrantes do evento, formando uma reunião de interesses e perspectivas distintas no estudo sobre o negro, que constituíram uma transformação radical na abordagem do tema no Brasil, destacando-se a reflexão em torno do seu papel na constituição da nação. Por meio de uma multiplicidade de fontes, pouco usuais para o período, Freyre tenta reconstituir a formação do povo brasileiro evidenciando que não houve a transposição de uma cultura europeia para os trópicos, mas a constituição de uma nova, que ele denominou de luso-tropical, na qual o europeu parece, por vezes, um elemento secundário em relação ao africano (Bastos, 2006). Em uma das passagens mais conhecidas de Casa-grande & senzala, o autor nos elucida que: "   '   '   ' '      (C    -   '    '    !K  '  B  ? 4 >'B 125 4'  !%Z$ '  ' # ! K'*'       '+'  '#'     ' <*  '   Z $!E    !P !P   '-        !E    -     !E       <   !E     #  '   '    !E  #         1).' 566Y'!H@7:! Esse trecho sintetiza, de modo bastante evidente, a forma como Freyre via a presença africana na cultura brasileira; para ele não haveria como pensar o Brasil desvinculado de uma reflexão em torno do lugar do africano na constituição do ethos brasileiro. Notadamente, não podemos olvidar – como já indicamos anteriormente – a crítica necessária a seu trabalho, no que diz respeito a uma interpretação que percebia a miscigenação como chave para o amalgamento das relações raciais, apesar das inúmeras passagens em que descreve a violência presente na escravidão brasileira. Podemos dizer que Freyre privilegiou uma visão mais harmônica de sociedade. A questão da presença africana em nossa sociedade se reforça ao adentrarmos na interpretação do autor de que nossa herança cultural europeia é, em si mesma, também africana, pois os portugueses seriam, por excelência, um povo dividido entre dois mundos. Mais que isso: 126 E     F    %<      *        $'    !%  #       -        1).'5688'!899:! Esses aspectos estavam postos de forma mais evidente principalmente na sociedade patriarcal, sendo verificáveis por meio de vários hábitos culturais oriundos dos mouros, como o costume das mulheres de taparem os rostos, o gosto pelo azulejo, o cafuné etc. Porém, a passagem para o século XIX, principalmente com a vinda dos ingleses, teria demarcado um processo de “reuropeização” da sociedade brasileira, o que será visto de forma bastante negativa por Gilberto Freyre, dada sua compreensão sobre a relevância da presença de tais elementos na constituição do Brasil enquanto nação (Freyre, 2008). Se o Parecer CNE/CP n.º 003/2004 deixa bastante evidente a necessidade de não apenas se mudar o foco de interpretação do lugar dos africanos e sua cultura na formação da sociedade brasileira, bem como de ampliar os conhecimentos sobre o passado, o presente e as perspectivas de futuro de África, parece-me que realmente o conhecimento aprofundado da obra de Freyre é um elemento fundamental para esse processo. Segundo o parecer: , ./  '+  ''   &' (   '#   D *$'  &    #D     !M     &<    C       '-  127 #  '   '     # '   ' <'(1 '566A'!88:! Compreendo, assim, que a releitura crítica da obra de Freyre é um passo fundamental para se atingir esse objetivo. Freyre foi um dos primeiros autores a complexificar o olhar sobre os africanos escravizados e trazidos para o Brasil, apontando para a presença de africanos letrados (Freyre, 2005), característica rara nesse momento, mesmo entre a elite branca. Nesse sentido, seu trabalho nos leva a repensar a África, indo para além de perspectivas estereotipadas sobre seu passado e presente. Mais que isso, Freyre recusa a visão de uma história única e unilinear, pois como bem aponta Motta (1983, p. 225): R…S &- b <b'   - (       1      :'-< '  -  '   -  ' D &   '       b 4 ). * b b     \       01 b  D T' '; -;' <' ' #     &! Nunca é demais ressaltar que Freyre se propõe a pensar principalmente, mas não unicamente, o universo brasileiro; portanto, ele continuamente pensa em termos afro-brasileiros, dado que mesmo a presença africana também teria se abrasileirado. 128 ,       (   <    '    Fc#'  < [W['      ' F   #  +  - F'   K  >   ; 'c#'-#* '   K > 1).'566A'!795:! Este tratamento nos ajuda a compreender também que a cultura age em múltiplos sentidos, sendo apressada qualquer leitura que a reduza a uma única direção, e que, portanto, pensar a cultura afro-brasileira demanda uma reflexão profunda sobre o Brasil. Parece-me clara a convergência entre a Lei n.º 10.639/03 e o legado de Freyre, na medida em que: %      2!º86!@H9'    # $ &     !%2'       '  (    '    !P  56'H6'A6'Y6 QK <    C'<   (C  ! K <     '  !M ( !B  $   '    #  '    !%2!º86!@H9' ' < ;  129  #     ' < !><   14 '5685'!86A:! E, nesta mesma direção, Freyre preocupa-se com a formação nacional, com o lugar que os agentes sociais ocuparam nesse processo. Mais uma vez cabe aqui chamar a atenção para a análise sui generis do autor e o papel do equilíbrio de antagonismo, pois, se por diversas vezes ele não hesitou em indicar uma escravidão branda, ao menos em termos comparativos (Freyre, 2005), e mesmo que o Brasil constituísse a sociedade mais democrática das Américas (Freyre, 1973), também sem rodeios ele afirma incisivamente que foram instituídas aqui relações altamente sádicas entre os senhores e escravos, marcadas por uma crueldade notória. Quando entrevistado em 1935 e indagado se haveria no Brasil preconceito contra os negros e mulatos, o autor não hesita em afirmar que é “evidente”, ainda que houvesse no Brasil uma “doçura” na relação entre brancos e negros que não se encontraria em outros países5, mas que disso não poderia se concluir a ausência de preconceito de raça (Larreta; Giucci, 2007). A perspectiva eurocêntrica assumida pela escola brasileira, enquanto instituição social moderna, evidenciada pela Lei número 10.639/03, vincula-se diretamente ao processo denunciado por Freyre de valorização da cultura europeia em detrimento da africana enquanto elemento constitutivo do Brasil, que, segundo ele, teria tomado contornos mais evidentes durante o reinado de Dom Pedro II. Ainda segundo o autor: R!!!S  # *   # ! \    ⁵ Essa afirmação de Freyre é con nuamente cri cada não apenas por pesquisadores no campo das relações raciais como também por integrantes de movimentos sociais e a vistas negros, uma vez que há um vasto material historiográfico que aponta para o fato de que a escravidão no Brasil não foi mais amena que em outras localidades, sendo igualmente cruel. No entanto, é importante salientar que Freyre reconhecia as desigualdades existentes no Brasil, especialmente as desigualdades oriundas do que ele interpretava como preconceito de cor. 130 ('   -         ; 3     '  '   <  1).'566A'!H57 H5G:! Preocupa-se tal pensador em subverter a valorização cultural, positivando aquilo que historicamente fora menosprezado, o que o autor denominará de “[...] uma quase freudiana censura à influência do indígena ou do africano ou do mestiço na vida ou na cultura nacional” (Freyre, 2011, p. 170-171). Sua contribuição ultrapassa ainda o aspecto meramente teórico, tendo em vista a singularidade metodológica por meio da qual ele constrói seu legado, recorrendo a fontes de pesquisa até então pouco usuais, indo para além do âmbito relativamente estreito de documentos usados pela maioria de seus predecessores (Burke, 1997), o que converge com o que é proposto pelas “Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais” (2006). Em um dos seus mais inventivos trabalhos, intitulado Açúcar, publicado originalmente em 1939, o autor dedica uma pequena parte do livro – apenas a introdução – a uma análise da relação entre o açúcar e a construção da civilização nacional, chamando atenção tanto para os aspectos portugueses quanto africanos nesse cenário; o restante do livro se volta para receitas de doces, bolos e sorvetes. Sobre essa realidade, Freyre tece as seguintes considerações: >  *    '  ' ' < #'<'       &<*   ' ' '      #  '   ' 131   ' !>-  (  #(  **$ #     3   C1).'5667'!76:! Não se trata de reduzir a presença africana a uma contribuição pontual na cultura brasileira, mas de afirmar sua onipresença nesse cenário. Assim sendo, o professor pode se valer da multiplicidade de receitas que Freyre nos presenteia para pensar a cultura em movimento no espaço da sala de aula, trazendo uma atividade prática para a escola mediante a qual se possa pensar a cultura afro-brasileira; afinal, como bem elucida Lévi-Strauss (2010), a cozinha é uma linguagem e cada sociedade codifica suas mensagens por meio de signos particulares dentro dela; sendo assim, creio que nenhum pensador antes de Gilberto Freyre nos fez perceber a culinária como algo tão significativo para compreender o Brasil. Ainda segundo o autor, referindo-se ao caráter nacional da cultura brasileira: %  ' * '<     *  (    ' < '     (   ' '# *'   & '#' (    '  C '# <C(  * &'  !K  *     #  !J  <   <       '* ! ,   ' (      & 132  ; *& (    +'' ' ''<' #        1).'89GY'!86 88:! Como já aventado, essa incorporação do trabalho de Freyre em sala de aula deve ser realizada de forma crítica, percebendo seus limites, bem como os desdobramentos posteriores que houve nas discussões sobre cultura brasileira e sobre o lugar das populações negras nesse processo. Em sua fala para as professoras rurais, proferida em 15 de maio de 1956, na Escola de Especialização Murilo Braga, em Recife, Freyre ressalta a necessidade de haver um esforço conjunto por parte dos professores e de outros profissionais para a valorização, no espaço da sala de aula, dos conhecimentos tradicionais existentes em outros espaços educativos, indicando que: J T      <;       -   ' # '  ( '   ''<         !K   #    T     (  '  #   #    3  < 1).'89Y7'!86:! Essa ampliação dos diálogos para a construção da prática pedagógica, assim como a compreensão do professor como um agente social que vai para além do papel de reprodutor de um dado conhecimento, faz com que encontremos mais pontos de contatos entre Gilberto Freyre e as questões que vêm sendo pautadas a partir da Lei n.º 10.639/03. Outros tantos aspectos chamam a atenção na 133 obra de Gilberto Freyre, pois ele indica a presença africana também na língua, na religião, nos modos corporais, enfim, no ethos brasileiro como um todo. Ainda que se busque aqui ressaltar em que pontos Freyre pode contribuir para o debate em torno do ensino de história e cultura afro-brasileira, não quero dizer com isso que me furte de reconhecer os limites de seu trabalho; e, certamente, um dos pontos mais problemáticos refere-se a uma leitura que poderíamos classificar como idílica acerca das relações raciais brasileiras, especialmente na sua análise do período colonial, mas que, ao contrário do que uma crítica mais rasa poderia apontar, não nega, em absoluto, a existência de desigualdades étnicas no Brasil, como já demonstrado nas seções anteriores. Também se mostra frágil sua especulação sobre o futuro acerca de um progressivo desaparecimento do negro, enquanto tipo “puro”, em favor da constituição de uma população cada vez mais miscigenada, mais “morena” (Freyre, 2001), tendo em vista o processo crescente de politização da categoria raça, condição sine qua non para a implementação da Lei n.º 10.639/03, assim como das ações afirmativas no ensino superior. Porém, apesar dos limites claramente postos, não teríamos como pensar um Brasil plural, culturalmente, sem a elaboração realizada pelo intelectual de Apipucos. 134 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar do amplo reconhecimento da relevância do trabalho de Freyre em diversos campos disciplinares, parece-nos evidente que sua obra ainda tem sido pouco debatida em educação, especialmente quando nos referimos à educação escolar. Esse trabalho buscou, justamente, fomentar esse diálogo, fortalecendo os vínculos entre as ciências sociais e a educação. O trabalho multifacetado de Freyre por si só torna-o relevante e significativo para as mais diversas áreas de conhecimento, sendo uma leitura indispensável para uma formação sólida de professores que busque compreender o Brasil. Porém, para além disso, há de se reconhecer que Freyre também foi um dos principais pensadores sociais brasileiros a refletir sobre a questão educacional, trazendo elementos relevantes para a compreensão dessa realidade no Brasil. Como afirmado em diversas passagens desse livro, as leituras e debates com a obra de Freyre devem ser realizadas de forma crítica, situando a obra em seu tempo, mas também reconhecendo os avanços realizados nos debates realizados por outros autores contemporâneos e também que vieram posteriormente. Neste livro busquei sintetizar algumas das principais ideias pedagógicas de Gilberto Freyre, apontando ainda para sua relação mais ampla com o campo educacional. Destacou-se aqui como ele, ao longo de seu trabalho, não apenas debateu, por diversas vezes, questões relacionadas à educação, como também sua inserção como agente neste campo, tendo atuado na formação de professores na Escola Normal de Pernambuco, além de diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de 135 Pernambuco. Os profissionais da área de educação, em sua maioria, ainda pouco conhecem acerca dessas passagens da biografia de Freyre, que possuem uma enorme relevância não apenas para esse cientista social, como para a própria formação do campo educacional brasileiro. Ainda que não tenha publicado uma obra específica dedicada ao tema da educação, considero que essa questão não fugiu de suas análises, estando presente em seus mais diversos trabalhos, relacionando-se com temas mais amplos por ele debatidos. Sua formação intelectual nos Estados Unidos certamente o aproximou de um pensamento pedagógico que valorizava o ensino mais experimental e prático, algo que tentou aplicar nas oportunidades que teve para atuar como docente. No caso da Escola Normal de Pernambuco isso tinha um duplo significado, pois estava também formando professoras e, portanto, podemos inferir que também almejava que tal concepção de ensino fosse replicada, opondo-se a um ensino meramente “livresco”. Percebe-se ainda a influência da Escola Nova em suas ideias, o que podemos inferir inclusive considerando seu círculo de amizades intelectuais vinculadas ao campo educacional, com destaque para Anísio Teixeira. Freyre, no campo educacional – assim como em outros âmbitos de sua atuação intelectual –, foi um homem à frente de seu tempo. Sua percepção acerca dos pontos que mereceriam ser melhorados na formação docente, assim como sua crítica perspicaz a um ensino descontextualizado da realidade dos estudantes, demonstra sua atualidade. Ainda que não tenha sido objeto de análise aqui, é válido destacar que, no período em que foi deputado federal (1946-1951) ele atuou principalmente na comissão de Educação e Cultura e chegou a receber o convite para ser Ministro da Educação e Cultura durante o governo militar de Humberto Castelo Branco (1897-1964), o que foi recusado pelo cientista social. Essa atuação política no campo 136 educacional parece apontar para um reconhecimento mais amplo de que Freyre possuiria uma substantiva expertise nesse campo. Sua visão sobre o campo educacional certamente foi e é pouco ortodoxa, centrada em questões que não pareciam ter relevância em seu tempo, como a afirmação de que os cursos universitários também deveriam se ocupar em ensinar a seus estudantes pintura, escultura, música, marcenaria, cerâmica, carpintaria, construção, culinária, considerando a relevância que o “tempo-ócio” teria em suas formações (Freyre, 1973a). Em que pese toda a polêmica que sempre envolve a reavaliação do trabalho de Freyre, principalmente se considerarmos o conjunto de críticas que foram e continuam sendo realizadas a sua interpretação das relações raciais, eventualmente ligadas a uma determinada concepção ortogenética da história (Motta, 2000), vale a pena reafirmar duas coisas já ditas neste trabalho: a) ao situarmos Freyre dentro do debate de seu tempo, perceberemos como ele avançou na discussão das relações raciais, buscando desessencializar o debate, refutando principalmente as teorias arianistas fortemente difundidas entre a intelectual brasileira; b) todavia, deve-se reconhecer que sua interpretação que concebe a miscigenação como uma possibilidade de amalgamento das relações raciais, assim como as afirmações na direção de apontar para a existência de uma escravidão mais “amena” na América Portuguesa, são ideias que têm sido fortemente refutadas por um conjunto de pesquisas no campo das ciências sociais, principalmente a partir dos resultados de pesquisa encontrados no Projeto Unesco1. Nos cursos de Pensamento Social Brasileiro que leciono recorrentemente, costumo dizer que ideias que foram consideradas revolucionárias em um dado contexto podem se tornar reacionárias em outro, a depender da direção que o debate e os resultados das ¹ Para uma melhor análise sobre o Projeto UNESCO no Brasil vide Maio (1999) e Pereira e Sansone (2007). 137 pesquisas apontem, o que me parece ser o caso de Freyre com relação à questão racial no Brasil. Sem embargo, como também foi demonstrado nesse trabalho, Freyre reconhecia a existência de desigualdades sociais entre negros e brancos, e a educação parece ocupar um lugar importante no processo de superação de tais desigualdades, possibilitando que se encaminhe para uma “democracia étnica”. Volto a pensar, nesse ponto, que as ações afirmativas no ensino superior brasileiro convergem com essa perspectiva ao reconhecer a educação como a chave central para a superação de nossas desigualdades, que são tanto de classe quanto de raça (Souza, 2005). Obviamente isso não é o mesmo que dizer que as desigualdades sociais serão superadas unicamente através do acesso à educação. Porém, essa é uma condição sine qua non para tanto. A agenda de pesquisas envolvendo a relação entre Gilberto Freyre e o campo educacional continua em aberto, considerando a extensão de sua obra e a pluralidade de aspectos que foi explorada nela. Acredito que o mais importante nesse momento é reconhecer a contribuição de Freyre ao campo educacional, contribuição essa elaborada de forma interdisciplinar, a partir principalmente da antropologia, da história e da sociologia. 138 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas - reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. 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Lincoln: University of Nebraska Press, 2019. 150 SOBRE O AUTOR Amurabi Oliveira é licenciado e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), livre-docente em Cultura e Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com estágio pós-doutoral pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), na Espanha. Atualmente é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), além de pesquisador do CNPq. Recentemente, atuou como pesquisador Fulbright na San Diego University, além de ter atuado em outras instituições estrangeiras como professor visitante. É membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências e da Global Young Academy. Tem pesquisado e publicado principalmente sobre os seguintes temas: antropologia e sociologia da educação, ensino de ciências sociais, história das ciências sociais e religião. 151 Esta edição foi composta nas fontes Minion Pro, Fira Sans e Calibri projetada para a veiculação digital em versão E-book (PDF), pela Editora Massangana, em 2023.                                               !"      #$  %          !    &    ' (   )                     *       +       (  ,%                    -  . ,     . (  %       #$       +        )   / 0          1       *   /  0 2      (      %                                3               %          %     %   %                     3    4 %         -3 5   ' #  - 6     5     '#,%         ' 4 7   & 4      8  5   -3, *  '#5 -     das  ideias   do  sociólogo      Freyre   Este livro trata Gilberto     daeducação.  O      emrelação ao tema cientista social Amurabi  Oliveira faz    darelação  deFreyre   um mapeamento com o tema   ao longo      obra         de sua vasta escrita. O livro aborda a formação   de Freyre,   oambiente     familiar   noqual !  intelectual educacional  foi criado     com as"   e sua relação instituições de  ensino pelas quais e nos Estados$ Unidos. Apresenta ! passou  no#Brasil  sua   atuação institucional educacional, destaque     nocampo      com    ! período em que esteve& à frente para o % ! da cátedra ' de sociologia      na Escola Normal de Pernambuco e do Centro Regional    (   )    * +  de   Pesquisas Educacionais do Recife. Discute também a crítica )!      +, -  %  de Freyre ao excesso de “especialismos” e sua defesa de uma    .  /  0      abordagem mais transdisciplinar, que inclui a valorização      !      de um ensino mais empírico e menos “livresco”. Também   %   /  01 - presente no texto está o debate em torno da relação entre   . '             raça e educação, destacando principalmente como a educação  ser um fator  deascensão          pode social.