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A Maneira Trágica de Eugénio de Castro

2021

A obra novecentista de Eugénio de Castro relaciona-se de modo ambíguo com o género dramático, em interessante afinidade e sintonia com o trágico de dimensão interior preceituado e praticado pelos melhores autores da mêlée simbolista de língua francesa. Privilegiando o trabalho com a matéria verbal, num jogo de fronteiras entre modos literários e de expressão, com ímpar recusa de ditames extra-artísticos, a maneira trágica de Castro lança estimulantes desafios e promessas ao teatro simbolista que emerge e se desdobra no campo literário português pelo século XX fora. Interessa-me neste artigo indagar essa configuração trágica sui speciei quer no poema dramático de Belkiss, quer na ficção lírica de Oaristos cujas heroínas espelham o inconformismo estético e ético fundamental do Poeta. Porque nem o individualismo artístico nem o ecletismo chegam para ultrapassar o enigma mais profundo da existência.

A MANEIRA TRÁGICA DE EUGÉNIO DE CASTRO A persona/gem feminina entre Belkiss e Oaristos Maria de Jesus CABRAL ABSTRACT • The Tragic Way of Eugénio de Castro: The Female Character between Belkiss and Oaristos. Eugénio de Castro’s nineteenth-century work is ambiguously related to the dramatic genre, in interesting affinity and in tune with the interior dimension’s tragic, theorized and practiced by the best authors of the French-speaking symbolist mêlée. Privileging the work with the verbal material, crossing boundaries between literary and expression modes, with a unique refusal of extra-artistic dictates, Castro’s tragic way launches stimulating challenges and promises to the symbolist theater that emerges and unfolds in the Portuguese literary field throughout the 20th century. I am interested in this article to delve into this sui speciei tragic configuration, both in the Belkiss’s dramatic poem by and in the lyric fiction of Oaristos, whose heroines reflect the fundamental aesthetic and ethical nonconformity of the Poet. Because neither artistic individualism nor eclecticism are enough to overcome the deepest enigma of existence. KEYWORDS • Eugénio de Castro; Belkiss; Oaristos; tragic, feminine persona/ge. Os Oaristos são as primícias dessa nova maneira do Poeta. Eugénio de Castro, “Prefácio”, Oaristos, 1890. Paralelamente à vertente lírica da sua produção poética, geralmente mais conhecida, Eugénio de Castro desenvolveu, na sua fase “novista”, vários textos de feição dramática: Belkiss (1894), Sagramor (1895), Tirésias (1895), Salomé (1896), O Rei Galaor (1897), A Nereide de Harlém (1897). Se a simples enumeração contrasta com o pouco re/conhecimento destas obras, é ainda digno de nota o interesse do poeta português pelo género dramático se desenvolver a par (e a partir) do impulso simbolista franco-belga, conduzido sobremaneira por Mallarmé e por Maeterlinck, na mesma época, no sentido da viragem moderna do drama para a vida interior (Szondi 1983). Ainda que a dramaturgia portuguesa permaneça pelo menos até ao primeiro quartel do século XX “enfeudada aos esquemas naturalistas” como bem observa Luís Francisco Rebello (1979: 82), é inegável, no horizonte de um “teatro-arte” de armadura interior, na expressão de Mário Sá-Carneiro1, 1 No seu artigo “O teatro-arte (apontamentos para uma crónica)” de 1913, escreve: “A obra-prima teatral completa lança mesmo duas arquiteturas: uma exterior, mera armadura; outra interior. A arquitetura exterior é um arcaboiço material – a carpintaria. […] A arquitetura interior, que é a alma […], consiste no ambiente que a grande obra dramática […] cria em torno de si: […] sua máxima beleza não reside nem nas suas pa- A cura di Matteo REI e Bruno ANSELMI MATANGRANO 88 Maria de Jesus CABRAL o papel dos valores poéticos simbolistas como o mistério, o sonho, a palavra alusiva e a dimensão mística e ontológica. Sem repetir aqui as afinidades que os poemas dramáticos de Castro tecem com o teatro interior de Maurice Maeterlinck2, e com autores como António Patrício e Fernando Pessoa, aspectos que evidenciei noutros estudos (Cabral 2010; Cabral 2013) importa ainda assim lembrar a sua singularidade. A novidade estética de Eugénio de Castro é teatral e antecede, sob vários aspectos, o teatro interior ou teatro da alma que só se verá valorizado (mas não forçosamente reconhecido) já no século XX, designadamente com O Marinheiro de Pessoa, peça escrita em 1913 e publicada em 1915 no primeiro número da revista Orpheu3. Recusando o academismo e convenções extra-artísticas – sejam elas de índole social, psicológica, ou até moral – a vertente dramática da sua obra prossegue a demarcação poética aclamada em tom cosmopolita no prefácio-programa de Oaristos (Castro 1927, I:19-24). Mais especificamente em relação à questão do trágico, pode dizer-se que a sua poética novecentista absorve toda ela o substrato “trágico, severo” e de “revelação profunda” como assinalou Manuel da Silva Gaio (in Castro 1927, II: 89) do pessimismo schopenhauriano em que a vontade se renega a si mesma. Diz-nos o filosófico do Mundo como representação e como vontade que “sofrer é a própria essência da vida; que por consequência o sofrimento não se infiltra em nós vindo de fora, nas trazemos connosco a inesgotável fonte de que ele sai” (Schopenhauer s/d: 414). Nesse sentido, em termos estéticos, considera que “apenas a significação interior que tem valor na arte” (ibid :303). Para além de inspirar uma nova forma poética – é revelador que Belkiss assuma na edição de 19094 o subtítulo Poema dramático em prosa – o elemento trágico encontra alguma expressão em Oaristos, como veremos um pouco mais à frente, o que sucede também em Interlúnio (Cabral, 2015). No “Preâmbulo da Segunda Edição”, o poeta reconhece em tom retrospectivo (o texto é escrito em 1911) o seu “conceito de vida fundamentalmente pessimista” e o “áspero niilismo” da sua obra “novista” toda ela marcada pela postulação nietzscheana da liberdade. Mas é certamente em Belkiss que encontramos a melhor expressão das ambições – e contradições – de Castro em relação ao género dramático, à semelhança, de resto, dos seus amigos da esfera simbolista franco-belga. Tendo provavelmente em memória a Hérodiade de Mallarmé, mas também as princesas maeterlinckianas, Eugénio de Castro cria em Belkiss uma personagem onde lavras, nem na sua ação (arquitetura exterior), mas em qualquer outra coisa que se não vê: uma grande sombra que se sente e se não vê.” (sublinhados do autor). 2 Poeta, filosofo e dramaturgo simbolista belga que contribui decisivamente para uma transformação do teatro europeu. A Intrusa (1890), Os Cegos (1890) e Interior (1894), são exemplos paradigmáticos da sua concepção filosófico-dramatúrgica explicitada no ensaio homónimo “Le tragique quotidien” (1896): um teatro de não-heróis, de seres feridos pelo simples facto de viver. Lembremos uma passagem elucidativa: “Il y a un tragique quotidien qui est bien plus réel, bien plus profond et bien plus conforme à notre être véritable que le tragique des grandes aventures. Il est facile de le sentir, mais il n’est pas aisé de le montrer, parce que ce tragique essentiel n’est pas simplement matériel ou psychologique. Il ne s’agit plus de la lutte déterminée d’un être contre un être, de la lutte d’un désir contre un autre désir ou de l’éternel combat de la passion et du devoir. Il s’agirait plutôt de faire voir ce qu’il y a d’étonnant dans le fait seul de vivre”. (Maeterlinck 1999, I:487). 3 Sustentatado, nas palavras de Pessoa, na “revelação das almas”. Maeterlinck constitui uma importante matriz para esta peça de Pessoa conforme demonstrado por Teresa Rita Lopes (Lopes 1985). 4 Este acrescento é desde logo revelador de uma estética em clara transposição das habituais fronteiras genológicas poema/ drama e da distinção entre poesia e prosa, bem ao gosto simbolista. CrOCEVIA · Interlúnio: Eugénio de Castro e a literatura portuguesa do fim-de-século A maneira trágica de Eugénio de Castro 89 convergem por uma “aliança agónica”, na expressão de Paula Morão (2000), quer a rainha de Sabá da tradição judaico-cristã5, quer a Bilqis de matriz islâmica. Mas logo se afasta desse referencial mitológico para erguer uma heroína trágica “toda vestida de medo”, confinada no tédio e “chicoteada pela ânsia do irreal e do misterioso”, evoluindo numa trajectória existencial “de absurdo e anormalidades” em que se vê enredada e donde não conseguirá libertar-se senão pela morte final. A matriz simbolista de Belkiss manifesta-se na sua organização em XV partes de extensão irregular e modos híbridos, numa composição que lembra os quadros simbolistas e um profícuo diálogo artístico entre teatro e pintura. Contrariando, ainda, o dispositivo textual convencional do texto dramático, estruturado em actos, cenas e diálogos, Belkiss polariza-se entre momentos de diálogo – não raro amortecido por pausas e silêncios –, de monólogo – veja-se como “Interlúnio” (V) se resume, na única fala de Belkiss a acompanhar a sua vivência interior –, e de descrição narrativizada, de factura mais clássica – como é o caso da totalidade da parte XII (“A Chegada”). É interessante observar ainda como a certa altura a representação assume a perspectiva do sonho de Belkiss, o leitor assistindo ao episódio tenebroso da floresta sombria através da psique da rainha, antes do brusco acordar desta por Zophesamin (“Per Umbram”). Para além do traje refinado, é decadentista a atitude meditativa e evasiva da protagonista, a sua abertura à noite, ao sonho e ao mistério. O que fascina Belkiss em Salomão, que não conhece, é a ideia de sobre-humano que projetou nele e que alimenta a sua ânsia de além, as suas aspirações ao “novo” levadas à histeria mais excêntrica, às alucinações mais atrozes, aos impulsos erotizantes que não consegue refrear, não obstante os conselhos do velho Zophesamin, seu preceptor. Sem conflito ou enredo específico, a atmosfera do “drama” é insistentemente difusa: Belkiss aparece muitas vezes comparada a um espectro ou a uma sonâmbula refém das suas ambivalências. O seu discurso, em prosa de extensão e sintaxe variáveis é reticente, fragmentado, sugestivo do entediamento anímico que tolda a sua existência. Belkiss aparece assim presa numa cerrada interrogação, entre o narcisismo estéril e solitário – leia-se os passos “Morrerei virgem!… (…) Florirei para regalo dos meus olhos…”; “viúva e virgem, gelada e resignada” (Castro 2019: 57 e 64) que evidencia um intertexto claro com a Herodíade de Mallarmé – e a aspiração sensual, ou a ânsia de superar os limites – “Estas paredes não são minhas amigas… Quero desejar alguma coisa e não sei o que hei-de desejar… (…) Não posso viver aqui” (ibid: 58). Mais do que a relação entre corpo e espírito, resolvida na assunção da vontade sensual, afirma-se aqui a atitude idealista da heroína decadentista – qual dândi feminino – que não pode satisfazer-se dentro dos limites impostos pela racionalidade. O predomínio de espaços misteriosos, fragmentações e dissociações da realidade – o “Lago da demência” (XI), a noite escura, a floresta de infinitos caminhos, águas ameaçadoras e seres infernais quais “fragmentos de embarcações” (ibid: 115) acentuam o sentimento de perda e de vulnerabilidade: BELKISS O terror… o mistério (…) Tudo o que me rodeia é baço, mudo, sem significação (…) Estou cercada de cousas mortas e tão mortas que chego a duvidar se realmente vivo (ibid: 63). À semelhança da tragédia de raiz clássica, o fatalismo é uma linha de força permanente. Mas não há mais lugar para os topoi da luta clarividente do herói, que cumpre um desígnio contra forças 5 Segundo a Bíblia, esta surgiu do deserto liderando uma caravana de tesouros até à corte do Rei Salomão em Jerusalém. A cura di Matteo REI e Bruno ANSELMI MATANGRANO 90 Maria de Jesus CABRAL adversas divinas ou terrenas. Apesar de todos os obstáculos e provações, heróis como Édipo, Fedra, ou Antígona restauram uma certa ordem, cumprem um itinerário com sentido. E a catástrofe (a daimonia) é assumida pelo herói. Lembremos a mítica Antígona que enfrenta Creonte, preferindo morrer a deixar o seu irmão sem sepultura. O conflito passional sustenta uma busca individual de felicidade, ainda que o desafio (a hybris) faça pender o destino para a catástrofe. O que confere coesão a Belkiss é não tanto a ação – mola da fábula de concepção aristotélica – quanto o deslocamento para a interioridade da protagonista, a primazia do invisível e do misterioso, com recurso a elementos de forte conotação simbólica. Em Belkiss, a floresta reveste o papel ambivalente de um espaço que simultaneamente atrai e aterroriza. É para lá, de facto, que a rainha é atraída, apesar das advertências inquietas de Zophesamin. Não compreendendo a atitude daquela, este pergunta-lhe: “Que força te impele para aquela floresta donde todos fogem?” (62) ao que Belkiss replica, significativamente: “o terror… o mistério… (…) enfado-me como um marinheiro que deixasse o mar e se fizesse tecelão” (63). Cria-se assim um ambiente alucinatório com laivos de fantástico, como certa imagem do interior da floresta descrita como um emaranhado de flora e fauna de mórbida estesia: ZOPHESAMIN Não faças tal … Há sítios onde o sol nunca entrou… E os lagos!… Não imaginas, Belkiss, como são aquelas águas… fazem medo aquelas águas doentes… São esverdeadas, límpidas e não se lhe vê o fundo… Foi lá que morreu teu irmão… (…) BELKISS Há feras na floresta? ZOPHESAMIN Muitas das mais temíveis… Pelo que ouvi, crescem lá umas árvores carregadas de serpentes, as víboras são aos milhares, e dizem que, pelas sombras, andam ranchos de catoblepas, que matam com o olhar, e de mantichoras, animais medonhos e ferozes, que têm três fios de dentes… (ibid: 62-63). A floresta aparece ainda associada às mais cruéis barbáries, como a incineração de corpos de crianças (“ao pé daquele bosque de Acácias / queimaram vinte crianças”; 47), tornando-se símbolo de morte e de uma natureza perversa, que atrai o ser humano como um íman para cruelmente o aniquilar. É desse cenário alucinatório que um pouco mais à frente sai, à desfilada, uma personagem, a “Doida”, que, julgando-se perseguida por um grupo de “reis furiosos”, “como se viesse perseguida por uma alcateia de lobos (…) toda nua, cheia de sangue (…) se lança, perdida de medo aos pés de Belkiss” (70), e acaba por desaparecer deixando Belkiss presa pelos cabelos e encontrada na madrugada seguinte num sono profundo. Percebe-se, um pouco mais à frente, numa cena de especial suspense dramático, que a narração procedera, afinal, do sonho da personagem: “Ah, como és mau, Zophesamin! Para que me acordaste? Estava a sonhar… e o meu sonho era tão lindo!…” (77), justificando uma aproximação do tecido dramatúrgico de Belkiss com a concepção de teatro mental (e por essa mesma razão, irrepresentável) de Mallarmé, aberto a virtuais encenações de leitura por parte do leitor (Cabral 2012). A prevalência da interioridade, do sonho, o primado conferido à intuição e ao mistério criam afinidades com a conceção mallarmeana de teatro como efeito e não como ‘ilusão”, desvinculado do referente e assente na analogia.6 6 Cuja extensão mais radical se encontra no fenómeno heteronímico pessoano, dramatização sui speciei da personalidade poética. CrOCEVIA · Interlúnio: Eugénio de Castro e a literatura portuguesa do fim-de-século A maneira trágica de Eugénio de Castro 91 O trágico de Belkiss nasce do pressentimento inquieto que algo de novo transcende a insuficiência duma existência à qual “aconteceu (…) o que acontece aos anéis, que perdem o lavor com o uso, e às palavras que, por muito repetidas, ficam transformadas em esqueletos de ideias… ”(Castro 2019: 63). A sua sede de palavras novas, de “cousas novas” (Ibid) denota idiossincrasias do seu próprio autor! A presença da morte deixa-se pressentir com especial densidade nas derradeiras “cenas”, desnudando mais do que a perda de Belkiss, a fragilidade da existência, num encadeamento de dor, doença e loucura. A nuvem – que sombreia o palácio como um vulto ao longo da peça, com especial densidade a partir do capítulo – “A nuvem” – torna-se negra e frigidíssima, os lírios aparecem decapitados; agudizam-se os ruídos misteriosos e os presságios mórbidos na boca de Zophesamin. No final do capítulo X, num processo de desdobramento fantasmagórico de um trovão7, irrompe o espectro da rainha Isimkhib, mãe de Belkiss, qual configuração singular da personagem sublime8 que no teatro de Maeterlinck era aludida apenas por meio de ténues sinais. Todos estes elementos convergem para a imagem das açucenas ensanguentadas, sinal de que a morte adentrou o palácio. A voz de Belkiss – que preludiara o drama – extenua-se paulatinamente no fim do Epílogo (XV). E é afinal o silêncio e o não-dito que emergem e ganham os diálogos finais, qual mergulho na expressão sugestiva do sofrimento e passagem trágica para o pequeno David, cujo apelo angustiante em direcção a Zophesamin permanece sem resposta. Belkiss apresenta-se assim numa perturbante concomitância entre a sua sintonização com a busca de um novo paradigma do drama simbolista, que tinha o seu epicentro em Paris, e a revitalização do campo literário português. Escrita numa prosa poética situada numa zona de fronteira entre poesia, drama e narrativa, apropriando-se de vários elementos da tragédia, Belkiss redimensiona, à sua maneira, o género dramático a partir do desvio do conflito para a vida interior da personagem, conforme preceituado e praticado pelos melhores autores simbolistas. De facto, constitui a primeira tentativa, em língua portuguesa, de afastamento radical do modelo teatral realista do século XIX, e a sua singularidade abre caminhos profícuos para a dramaturgia moderna. O inconformismo de Belkiss acaba por se revelar a sua verdadeira força enquanto personagem, ou melhor, constitui o seu laço mais forte à busca do novo do próprio Eugénio de Castro, entendido do ponto de vista temático-formal, mas também das próprias mentalidades, como aponta o insurgente prefácio-programa de Oaristos. Idêntica propensão para a subjectividade da vontade, para o mistério e para a defesa duma axiologia artística, expressa em estilo ora exuberante e frívolo, ora sóbrio e matizado de tragicidade, transparece na ficção lírica de Oaristos. A comunhão amorosa, sugerida no título e na epígrafe de Verlaine, é frustrada desde os alexandrinos liminares, num quadro de deformação funebremente requintado do mundo circundante (“vesperal”, “o incenso dos espaços”, “Como as bandas que vão a tocar nos enterros” (Castro 1927, I :29). Mais do que a ressonância verlainiana, desfilam traços impiedosos do amor e da mulher – sedutora e terrífica –, sinédoque da femme sans merci que fascinou, em maior ou menor grau, Mallarmé, Oscar Wilde ou Flaubert (Robillard 1993). 7 Numa imagística sobrenatural de reminiscências shakespearianas. Como o explica no “Prefácio” ao seu Teatro (1901), o trágico quotidiano pressupõe a presença de um “Troisième personnage, énigmatique, invisible, mais partout présent, qu’on pourrait appeler le personnage sublime, qui, peut-être, n’est que l’idée inconscient mais forte et convaincue que le poète se fait de l’univers et qui donne à œuvre une portée plus grande, je ne sais quoi qui continue d’y vivre après la mort du reste et permet d’y revenir sans jamais épuiser sa beauté …”. (Maeterlinck 1999, I: 502). 8 A cura di Matteo REI e Bruno ANSELMI MATANGRANO 92 Maria de Jesus CABRAL A excentricidade de motivos, ambientes e figuras conjugando cor local e exótico, feérico e horrendo, espiritual e esotérico, estabelece, por antecipação, um interessante jogo de relações intertextuais com Belkiss, trazendo a paradoxal busca do intangível à estranheza vocabular, rítmica e tipográfica: XI Um sonho. Na messe, que enlourece, estremece a quermesse… O sol, o celestial girassol, esmorece… E as cantilenas de serenos sons amenos Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos… As estrelas em seus halos Brilham com brilhos sinistros… Cornamusas e crotalos, Cítolas, cítaras, sistros, Soam suaves, sonolentos, Sonolentos e suaves, Em suaves, Suaves, lentos lamentos De acentos Graves, Suaves… Flor! enquanto na messe estremece a quermesse E o sol, o celestial girassol esmorece, Deixemos estes sons tão serenos e amenos, Fujamos, Flor! à flor destes floridos fenos… Soam vesperais as vésperas… Uns com brilhos de alabastros, Outros louros como nêsperas, No céu pardo ardem os astros… Como aqui se está bem! Além freme a quermesse… – Não sentes um gemer dolente que esmorece? São os amantes delirantes que em amenos Beijos se beijam, Flor! à flor dos frescos fenos… As estrelas em seus halos Brilham com brilhos sinistros… Cornamusas e crotalos, Cítólas, cítaras, sistros, Soam suaves, sonolentos, Sonolentos e suaves, Em suaves, Suaves, lentos lamentos De acentos Graves, Suaves… (Castro 1968: 58-59) CrOCEVIA · Interlúnio: Eugénio de Castro e a literatura portuguesa do fim-de-século 93 A maneira trágica de Eugénio de Castro A distanciação e o recolhimento, a propensão onírica, a acuidade sensível e nervosa são os traços mais incisivos da persona feminina, expressão de um sensualismo diferido e de um desejo convertido em excesso estilístico. A atracção por essa “Criatura esfingial” compraz-se em longos e sumptuosos arranjos imagísticos e léxico-gramaticais, sinestésicos e meta-poéticos: A sua boca é um sorvete de morangos. Seu magro busto oval brilha, como um santelmo, Sob o seu penteado, esse ebânico elmo Pesado e nocturnal, com reflexos azuis. Seu gesto excede em graça as larvas dos paúis, Que em curvos voos vão voando à flor dos pântanos. Tem as unhas de opala; o seu riso quebranta-nos; Vibrante de coral, seus cílios são de seda; Seu capitoso olhar é um vinho que embebeda; Seus negros olhos são duas amoras negras! Original, detesta as convenções e as regras; Ama o luxo, o requinte e a excentricidade, Faz tudo o que lhe apraz, impõe sua vontade, Diz o que sente, sem lisonja, sem disfarce. Cousa que muito poucos têm, sabe domar-se: Como é medrosa, a fim de ver se perde o medo, Às quietas horas do Mistério e do Segredo, Percorre longos, funerários corredores, Onde pairam, chorando as suas fundas dores, Fantasmas glaciais, errantes e protervos! Nervosa, com o fim de subjugar seus nervos, Corta as unhas em bico, à guisa de punhais: – Chega mesmo a morder pedaços de veludo! (…) Seus raros gestos são cheios de bizarria, Finos, excepcionais, sem par. (Castro 1968: 34-35, meu sublinhado) Marcado pela distância, que antes de ser a dos corpos é a de uma inibitória mentalidade, assim é o amor permitido pela mulher: “um amor absconso, espiritual, silente”, “sem a ideia de posse”, traduzido em enfâse adjectiva e exclamativa: “Ama-me, sim, porém sem a ideia da posse, “Com um amor absconso, espiritual, silente, “Ama-me simplesmente e religiosamente, “Como se eu fosse, amigo, uma noviça morta! “Do meu peito não te abro a inviolada porta, “Ah! Deixa-me sonhar, ah! Deixa-me dormir! (Castro 1968, p. 70) A cura di Matteo REI e Bruno ANSELMI MATANGRANO 94 Maria de Jesus CABRAL Essa criatura “gloriosa e triste” impõe-se como emblema da paixão irrealizada, cingida à negatividade de uma indiferença que “Não é orgulho, nem desdém, nem é desprezo”, mas deriva duma condição trágica postulada em “exicial sentença”: Não venço nunca a tua Indiferença… Da minha sorte e exicial sentença Traçou-a Deus no alto azul com astros! (Castro 1968: 57) A frustração entre a contínua atração e a correlata repulsa projecta o desejo do poeta num paradoxal apelo: “Tua frieza aumenta o meu desejo”. Entretanto, avultam outros traços insólitos na figura feminina e na atração ambivalente que a sua beleza exerce sobre o sujeito poeta. O ardor sensual, embate com a frieza feminina e um “corpo virginal, etereal, minúsculo”, inspirando perturbadoras analogias: Paris ao fim da tarde. Horas em Notre-Dame (…) Seu corpo virginal, etereal, minúsculo, Repousa imóvel, como os mármores das campas; Suas esguias mãos, duas finas estampas, Dormem longas, subtis, em seus magros joelhos; Suas unhas, em bico, explendem como espelhos; Seu lábio rubro tem uma expressão estranha; Sua roupa rescende a chipre e a pel’ d’Espanha… Beijo-lhe as mãos: tem febre. (Castro 1968: 47-48, grifos do autor) O desejo de atingir a mulher é tão veemente que se tematiza e sincretiza na imagem religiosa, passa por sensualismo sacrílego e mórbido (de influxo decadentista) e conduz, irremediavelmente, à perdição: AVE! Trigueira desdenhosa e triste, Cheia de graça e de frescor sem par, Bendito seja o berço em que dormiste E os peitos que te deram de mamar! Como uma chama cerula entre brasas, Como uma túlipa entre malmequeres, Como uma torre entre pequenas casas, Bendita sejas tu entre as mulheres! Corpo virgem, tu que és o meu orgulho, Tu que hei-de violar um dia entre Beijos tão claros como um sol de Julho, Bendito seja o fruto do teu ventre! Doce Refúgio, doce Inspiradora, Ó meu trigueiro e místico ciclamen Unge-me com teu negro Olhar, Agora E na hora da minha morte. Ámen (Castro 1968: 63, grifos do autor) CrOCEVIA · Interlúnio: Eugénio de Castro e a literatura portuguesa do fim-de-século 95 A maneira trágica de Eugénio de Castro A desenvoltura discursiva de Oaristos e do seu imaginário participa do esteticismo decadentista pela presença de elementos decorativos de natureza insólita, tal como a “ornamentação requintada e supina” que permite ver “através de esmeraldas”, de um verde “aquoso” e “cerebrino”, numa imagem do próprio desencontro existencial do poeta maldito e incompatibilizado com a sociedade, qual flor de pântano! Em quadros à beira do fantástico – “Tulipa bicolor do mais bizarro aspeto!” o amor torna-se busca atormentada por cores doentias como as do verde absintial, símbolo da agonia e as do roxo tão eroticamente voluptuoso quanto associável à morte como na “muse vénale”, de Baudelaire. De igual modo, o motivo do andrógino subsume uma ambígua sexualidade em beleza ao mesmo tempo física e incorpórea, entrelaçando o elemento material/natural e o espiritual/numinoso: Quebrantado, tolhido em seu torpor constante, Seu corpo insexual de efebo e de bacante Tem a graça dum caule e a esbeltez das abelhas; Recurvadas, em til, as suas sobrancelhas Cintilam de surmeh, e os seus olhos de lince, Gelados como o olhar dum sábio que destrince Um problema cruel, são retintas amoras Distraída, folheia um livro de Horas, Florido de ogivais, áureas iluminuras, Onde há Santos sorrindo em místicas posturas E, Serafins tocando o címbalo e o ascior. (Castro 1968: 38) Este sensualismo dialéctico de corpo-espírito, desejo e segredo não exclui uma nova indexação do tédio inquieto e da consciência da morte, qual sombra que encobre a existência do nascer ao pôr do sol. A veia criativa reverte então do esteticismo puro para uma vontade de transcendência que releva também da grafia das palavras: Saúde e Ouro e Luxo! A Primavera Interminável! Viagens! Dias lentos! Inércia e Ouro! O nome aos quatro ventos! Noites mornas de amor! Tal a Quimera! A Sombra! A falta de Ouro que exaspera E da mulher os falsos juramentos! Correr mapas! Bocejos sonolentos! Assim a Vida corre e nos lacera! Sonhamos sempre um sonho vago e dúbio! Com o Azar vivemos em conúbio, E apesar disso, a ALMA continua A sonhar a Ventura! – Sonho vão! Tal um menino, com a rósea mão, Quer agarrar a levantina LUA! (Castro 1968: 63) Se a sensação de insatisfação é permanente no plano da vida e do amor, a criação poética assume-se como energia criadora, um verdadeiro acto, no sentido poético e no sentido filosófico, A cura di Matteo REI e Bruno ANSELMI MATANGRANO 96 Maria de Jesus CABRAL capaz de converter o real de o dotar de dimensão estética e reflexiva. Talvez resida aqui o valor acrescido do texto castriano: levar o leitor a pensar. Do teatro à lírica e ambos tomando de empréstimo modalidades da narrativa, em diálogo fecundo e criativo com vários quadrantes estético literários da esfera simbolista e desta comungando o inconformismo, o individualismo artístico e o primado do novo na forma e na expressão, a obra de Eugénio de Castro consubstancia-se nessa “ética do esteticismo” tão justa e continuamente apontada por José Carlos Seabra Pereira (1990; 2003) nas suas leituras de Castro. A dimensão insólita no imaginário, na forma e no propósito provocatório, que é sem dúvida o seu maior legado à vindoura literatura modernista, é indissociável da estilização da persona feminina. A fulgurante soberania da figura amada em Oaristos – ora vibrante, ora mística, sempre intranquila – e a complexa inquietação de Belkiss – agudizada nos “cruéis desassossegos” de Sagramor, no ano seguinte – espelham a versatilidade do próprio poeta, inigualado em ousadia artística e em ímpeto cosmopolita. “Apóstolo da Beleza”, como se autodefine numa carta a Mallarmé9, Castro abriu à literatura finissecular caminhos meta/poéticos novos, qual gesto resgatador face a um contexto de crise histórica, ideológica e identitária, que é a do Ultimato britânico de 1890, e dos intentos emancipadores contra a Monarquia10. Paradoxalmente, depois de consolidar nestas obras e nas seguintes da sua fase novecentista a euforia de dizer coisas novas por processos novos, a sua obra evolui, a partir de 1900, no sentido de um neoclassicismo redentor, de modo singular na vertente da poesia dramática coligida em Depois da Ceifa (1901, mas com prefácio redigido em 1897) valendo-lhe um epíteto academista não propiciador da fortuna duradoura de outros simbolistas como Camilo Pessanha ou António Nobre. “Toda a revolução é uma grande alegria que anuncia uma grande tristeza”, lembra-nos Lídia Jorge, no seu romance Os Memoráveis (2014). A história não acaba aqui… REFERÊNCIAS Cabral, Maria de Jesus (2016), Lua farol dos cismadores: Reler Interlúnio de Eugénio de Castro, in Revista Colóquio/Letras, n.º 188, Janeiro 2015, 96-105. Cabral, Maria de Jesus (2013), Da (des)ilusão teatral no palco simbolista. De Mallarmé e Maeterlinck a Castro e António Patrício, in Ana Clara Santos (Org.), Palco da ilusão: Ilusão teatral no teatro europeu, Paris, Éditions Le Manuscrit, 187-231. Cabral, Maria de Jesus (2012), Théâtre(s) sous un crâne. Mallarmé et Pessoa (d’Igitur au Faust Tragédie subjective), in Carnets, revue électronique d’Études Françaises, 1ère série, 4, 2012, |https://doi.org/10.4000/carnets.6975 Cabral, Maria de Jesus (2010), Uma grande sombra que sente e se não vê: Belkiss nos trilhos da Literatura dramática simbolista, in Máthesis, Revista da Faculdade de Letras da Universidade Católica Portuguesa, nº 19, 2010, 77-95. 9 O espólio epistolográfico de Eugénio de Castro é elucidativo da profícua rede de relações literárias e de amizade que desenvolveu com a vanguarda poética europeia e nomes como Stéphane Mallarmé, Maurice Maeterlinck ou Vittorio Pica. Sobre as relações com este nome farol do simbolismo e seu tradutor e crítico em língua italiana, remetemos para a recente tradução italiana de Belkiss por Matteo Rei acompanhada de precioso aparato crítico, entre o qual várias cartas do poeta português ao seu congénere italiano (Castro 2016). 10 Actuantes por exemplo na música A Portuguesa composta por Alfredo Keil no mesmo ano de 1890 com o objectivo de protesto face a humilhação do Ultimato, e que viria a tornar-se hino nacional em 1911, depois da queda da República. Ver José Mattoso (dir.) (1994: 331 e segts.). CrOCEVIA · Interlúnio: Eugénio de Castro e a literatura portuguesa do fim-de-século A maneira trágica de Eugénio de Castro 97 Castro, Eugénio (2019), Belkiss, Rainha de Sabá, de Axum e do Himiar, organização, estabelecimento de texto e notas de Maria de Jesus Cabral e Bruno Anselmi Matangrano, apresentação Bruno Anselmi Matangrano; introdução e posfácio Maria de Jesus Cabral, Rio de Janeiro, Editora Vermelho Marinho, “O Melhor de Cada Tempo”. Castro, Eugénio (2016), Belkiss, Rainha de Sabá, de Axum e do Himiar, Edizione critica, traduzione e note a cura di Matteo Rei, Alessandria (AL) – Italia, Ediizioni dell’Orso, “Biblioteca Mediterranea”. Castro, Eugénio (1927), Obras poéticas: Vol. I: Oaristos – Horas – Silva, Lisboa, Lúmen. Castro, Eugénio (1927), Obras poéticas: Vol. II: Interlúnio – Belkiss – Tirésias, Lisboa, Lúmen. Castro, Eugénio de (1968), Obras Poéticas. Vol. 1 – Oaristos, Horas, Silva, Lisboa, Parceria A. M. 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She has recently coedited Belkiss, Rainha de Sabá, de Axum e do Himiar (poema dramático), organização, estabelecimento de texto e notas de Maria de Jesus Cabral e Bruno Anselmi Matangrano (2019), Le Toucher, prospections médicales, artistiques et littéraires (2019) and Lire les Villes (2020). E-MAIL • mjcabral@campus.ul.pt A cura di Matteo REI e Bruno ANSELMI MATANGRANO