Resenha da obra “Raízes do Brasil” do Sérgio Buarque de Holanda; 6º
edição, editora Jose Olympio, com atualizações até 1971; Leitura finalizada
em 07 de Julho de 2023
A obra Raízes do Brasil, escrita por Sérgio Buarque de Holanda e publicada pela
primeira vez em 1936, é inescapável a qualquer um que se dê ao desafio de entender a
formação do país. Seu autor é filho de elites paulistas mas que em sua infância
mudaram-se para o Rio de Janeiro, onde cresceu, formando-se em Direito e Ciências
Sociais, época que teve contato com o movimento modernista. Atuou como jornalista e
professor universitário, tendo vasta produção acadêmica, a qual foi inaugurada por seu
magnum opus. Sérgio Buarque de Holanda iniciou a produção do livro enquanto morava na
Alemanha da República de Weimar e foi muito influenciado pela sociologia alemã weberiana
e pelo contexto que vivia de grande ebulição social.
A obra passou por diversas reedições, mas sempre manteve seu foco na formação
da identidade e sociabilidade do brasileiro, partindo da colonização como marco
fundamental para interpretar o Brasil e indo até a era Vargas. Sua estrutura se divide em
sete capítulos em que o autor abordou e construiu vários conceitos que nos orientam no
entendimento da sociedade brasileira. O autor usa amplamente os “tipos ideais” de Weber
para desenvolver seus argumentos, por exemplo, o Campo e a Cidade, Trabalhador e
Aventureiro e assim por diante. A partir da comparação desses tipos, Sérgio irá desvendar a
brasilidade, passando por diversos aspectos da nossa formação histórica, política,
econômica e social.
O livro se inicia com uma descrição das sociedades ibéricas, em que a partir de
diversas fontes o autor percebe a grande diferença que havia entre essas e as sociedade
europeias ocidentais. Muito devido à dominação árabe e também ao espaço fronteiriço com
o norte da África e o próprio espaço atlântico. Se formou em Portugal particularmente, uma
sociedade avessa às rígidas hierarquias medievais europeias pautadas pela
consanguinidade, em que o destaque social se liga mais ao mérito pessoal de cada um que
propriamente de sua origem nobre. Disso também deriva o culto ao ócio, muito presente
nas sociedades greco-romanas e herdadas em grande medida pelo português, em que a
“ética do trabalho” descrita por Max Weber, teve pouquíssima penetração e a idéia de
trabalho como punição pelo Pecado Original se manteve mais presente.
Seguindo adiante, o segundo capítulo trata dos Aventureiros e Trabalhadores, tipos
ideais weberianos que o autor localiza como frutos da socialidade ibérica, em particular, a
portuguesa. O tipo Trabalhador é tido como mais apegado ao trabalho monótono e
contínuo, recompensado sempre de forma previsível e herdeiro da lógica dos pré-históricos
coletores de frutos. Já o tipo Aventureiro herda o espírito dos caçadores pré-históricos, em
que o trabalho monótono é mal visto e menosprezado, enquanto se põe em alta conta o
talento individual e a conquista de recompensas através do mérito, do espírito explorador e
da sagacidade. É a partir desse segundo tipo ideal que se forma a sociedade colonial
brasileira, com portugueses de espírito aventureiro que se lançam na empreitada americana
em busca de riquezas e glórias, mas sem que para isso seja necessário o trabalho
enfadonho, como fica claro no seguinte trecho: “O português vinha buscar riqueza, mas não
a que era fruto de trabalho, mas a que era fruto de ousadia.” Para tal, os colonizadores irão
recorrer à escravidão. Contudo, tal lógica resulta numa baixa produtividade do trabalho, pois
não há preocupação alguma na melhoria técnica, mas somente uma dedicação exclusiva na
exploração de recursos naturais, que uma vez esgotados em determinada região, irão em
busca de novas matas virgens para explorar. Isso também se faz valer na organização do
trabalho colonial como um todo, que jamais contou com organizações coletivas sólidas ,
como guildas e escritórios.
Sérgio Buarque então aborda um tema polêmico quando visto com olhar crítico
contemporâneo, quando trata a questão racial ibérica e brasileira a partir de uma ótica
positiva. Justifica tal argumento a partir da grande mestiçagem que ocorreu no Brasil e
atribui isso ao espaço ibérico que era fronteiriço à África e que por isso tinha um contato
com povos não-brancos mais frequente. Dessa forma, o autor argumenta que o racismo a
qual é vítima os negros no país é muito mais devido a associação desses aos “trabalhos
precários e degradantes” a quais esses eram submetidos no periodo da escravidão. Tais
trabalhadores eram mal vistos, seguindo a lógica da Antiguidade Clássica e do catolicismo,
em que valoroso é o cidadão ocioso e o Trabalho é a punição pelo Pecado Original. Em
comparação, o autor aborda a empreitada colonizadora dos holandeses e atribui seu
fracasso ao seu espírito protestante calvinista e na sua inabilidade de promover a
mestiçagem com os povos locais.
O terceiro capítulo irá tratar das profundas heranças rurais na nossa sociedade, o
que é fruto das relações econômicas de todo o período colonial, que se baseia
grandemente na experiência latifundiária da Casa Grande, onde o senhor de terras é o
“pather familia” de toda a propriedade, administrando e gerindo recursos e pessoas ao seu
bem entender. Isso inclui não só a própria família do dono da propriedade, mas também
funcionários, cativos e agregados. Esse sistema porém sofre duro golpe com a paulatina
abolição da escravidão e por fim com a Proclamação da República, visto que o sistema
tradicional de latifúndios começa a se fragmentar em pequenas propriedades e as cidades
passam a ter maior importância no cenário nacional. Porém, essa influência será
transportada às nascentes cidades, que passam a ser controladas pelas elites regionais
tradicionais e que irão atuar na administração pública da recém proclamada República
como se essas fossem uma extensão de suas propriedades. As cidades então tornam-se
“apêndices do campo”, sem produção industrial apreciável e com forte controle político das
elites rurais. Não se forma uma elite burguesa urbana, que normalmente é associada ao
capital comercial e industrial. Assim, o personalismo e a confusão entre o público e privado
se instalam então na gênese das cidades do país e os postos de poder serão sempre
ocupados pelos “amigos do Rei”. O autor também irá atribuir o culto aos títulos e diplomas a
esse contexto, visto que os cargos de maior importância serão ocupados por bacharéis que
estudaram fora do país e ao voltar irão exercer poder político e administrativo nas cidades,
por mais que muitas vezes tais formações não guardem relação com as suas ocupações.
O capítulo quatro tratará das grandes diferenças entre os processos coloniais
espanhóis e portugueses na América do Sul e de seus reflexos no desenvolvimento das
sociedades coloniais e das suas cidades. Para explicar o caso espanhol, o autor pensa a
própria história da formação do reino de Castella, que surge a partir da guerra e
consequente submissão de outros reinados a um poder centralizado. Nas colônias, isso se
reflete com uma preocupação na formação de cidades bem estruturadas e defendidas que
serviam como pólos de colonização, centralizando os poderes espanhóis e passando a
administrar vastos territórios. Nessas cidades se viu a formação de escolas, universidades,
indústrias e jornais, facilitando no posterior desenvolvimento do espírito nacional dessas
localidades. Já o caso português muito se difere, visto que esses se unificaram já no século
XIII e de forma menos beligerante que os espanhóis. Aqui também, nunca houve grande
preocupação na ocupação e controle sistemático do território. A única preocupação dos
aventureiros colonizadores lusos era somente a de escoar a riqueza que aqui era
encontrada (o que se altera em alguma medida a partir da descoberta do Ouro em Minas
Gerais). Assim, formaram-se cidades somente próximas ao mar e sempre de forma
desorganizada e sem grande planejamento. Assim, formou-se um país em que a maior
parte da população se concentra na área costeira e que até hoje sofre em alguma medida
por sua falta de integração entre interior e litoral.
O mais famoso e enigmático capítulo do livro é o quinto, o Homem Cordial, em que
se explana sobre a formação social dos indivíduos do Brasil. Para dar luz a sua visão, o
autor inicia seu argumento primeiro pensando a diferença entre o Estado e a Família,
combatendo a ideia de que o Estado é a natural extensão da Família, mas que pelo
contrário, é o seu contrário, uma vez que idealmente as relações de Estado são impessoais
e pautadas pela Lei, em especial a partir do desenvolvimento do capitalismo. Porém,
pensando o caso brasileiro e retomando argumentos previamente apresentados na obra,
Sérgio Buarque correlaciona a formação das cidades a partir de uma lógica personalista e
patrimonialista com a própria formação social dos brasileiros, vez que confundem as esferas
pública e privada. Dessa forma, desenvolve-se o Homem Cordial típico, que é definido da
seguinte forma numa passagem: “o desconhecimento de qualquer forma de convívio que
não seja ditado por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira
que raros estrangeiros conseguiram desvendar.”(pg 109) Isso se faz sentir inclusive na vida
religiosa brasileira, em que de diversas maneiras trata os santos católicos como alguém
afim. O mais simbólico disso é a prática de mergulhar Santo Antônio num copo d’água para
lhe pedir por casamentos, vez que Santo Antônio é um mártir que foi morto afogado. O
autor entende que essa prática é como uma forma de coagir o santo a agir como lhe é
exigido.
O autor segue construindo o que entende por identidade brasileira no capítulo
seguinte, o sexto, em que abordará o surgimento das classes intelectuais do Brasil a partir
da Cordialidade previamente descrita. Seguindo ainda a lógica lusa, o trabalho ordinário
será mal visto e as classes intelectuais, em especial os bacharéis em Direito, serão os mais
valorizados profissionais na formação nacional. Pois a partir das suas “palavras rígidas,
monótonas, lapidares e inflexíveis” lhe concederão autoridade e frente às classes
populares, se ligando também aos conceitos previamente construídos no capítulo três.
Porém, com a formação da República, esse “bacharelismo” será agregado pelos positivistas
que primeiro formaram a República e as Forças Armadas, e que por sua vez construíram a
imagem oficial do que é o Brasil. Nosso hino, bandeira e instituições carregam até hoje
essas marcas do positivismo brasileiro, inclusive o movimento romancista, que em grande
medida compôs a identidade nacional. Mas cabe frisar que em grande medida tudo isso foi
um movimento de elite, tendo pouca ou nenhuma relação às classes populares, daí a
formação do que o autor define como “republicanismo envergonhada”, visto que apesar das
leis oficiais, o próprio funcionamento do Estado Brasileiro passa muito longe do que se
espera de uma república pautada pelo positivismo.
O sétimo e último capítulo é o mais extenso e propositivo do livro. Intitulado Nossa
Revolução, o autor inicia os argumentos tratando sobre a Abolição da Escravidão em 1888,
a utilizando como marco inicial do que entendo como “uma revolução brasileira de longa
duração” (grifo meu). O fim da escravidão iniciou a transição do campo para a cidade,
espaço entendido como Moderno, e que apesar das heranças rurais que permanecem nas
cidades, tornaram o espaço do Campo meros abastecedores dos núcleos urbanos e que as
próprias elites rurais já não mais viviam necessariamente em suas fazendas. Agora
ocupantes de cargos públicos, os grandes latifundiários passaram a administração de suas
terras a profissionais dedicados somente a isso. Paralelamente a esse contexto, temos a
expansão da infraestrutura brasileira de transporte e comunicação, que encurtará as
distâncias entre espaço rural e urbano e do interior com as capitais litorâneas. O
desenvolvimento disso fez surgir uma pequena mas importante elite urbana, que fragiliza
em alguma medida o poder político, econômico e social das antigas elites rurais. Porém, a
gestão desse Estado, permanecerá numa lógica cordial de não separação entre o público e
o privado, que também se faz notar na dificuldade em obediência a leis e códigos legais de
maneira gera e que somente reformas estruturais profundas conseguem alterar
determinados comportamentos. O maior exemplo disso foi a própria abolição do tráfico
negreiro, que necessitou de duas leis e forte intervenção armada para dar fim a tal prática.
Essa realidade não é exclusiva do Brasil, sendo presente - mas com particularidades locais
- em outros países latinos. Esse estado de coisas compõe uma rejeição natural ao
liberalismo de tipo europeu, pautado por sólidas instituições e demarcação clara entre a
esfera pública e a privada; também entendendo que o Fascimo é a manifestação de
características caudilhas em países europeus, como o personalismo, o patrimonialismo, etc.
Seguindo para a conclusão e trecho propositivo do capítulo, Sérgio Buarque defende
que tal condição só será superada pelo Brasil e outros países latinos, com a derrota da
mentalidade liberal-positivista que aqui se instala nas elites econômicas e políticas. que
claro, fazem e farão dura oposição a esse projeto político. Porém, os “caudilhos positivos”
podem nos dar auxílio nessa luta e que figuras como Perón na Argentina e Vargas no Brasil
são representantes do gênero. A luta no caso brasileiro será ainda mais acirrada, vista
nossa formação histórica, em que as elites são profundamente conservadoras, reacionárias
e que passam longe de serem afeitas a mudanças que lhe tomem privilégios. Movimentos
como os Integralistas (contemporâneos à época da escrita do livro) são sintoma claro dessa
característica. Finalizando o livro o autor faz uma defesa de uma Revolução Brasileira que
transforme o Estado em tal medida que dê conta de servir verdadeiramente às massas e
que seja verdadeiramente democrático.
Bem, finalizada a leitura da obra, fui ler outras resenhas e consumir material
relacionado ao livro e ao autor. O fato é que é um livro inescapável para entrar no debate
sobre o Brasil, sendo um verdadeiro clássico do pensamento social brasileiro. Seus
argumentos ajudam a compreender a sociedade brasileira e suas nuances. Creio que os
trechos mais importantes para isso sejam os capítulos Três, Quatro e Cinco, onde o autor
se debruça em maior medida para nossa formação social. Porém, cabe destacar que a obra
está ultrapassada em alguma medida. A visão idílica da colonização, do processo de
miscigenação e o debate sobre o patriarcalismo talvez sejam os elementos que mais depõe
contra a obra. Porém, ciente do contexto em que foi escrito, Raízes do Brasil segue como
um cânone da sociologia brasileira, conversando com nossa realidade e vivência. Enfim,
livrão brabo!