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Trabalho No Brasil: Desafios e Perspectivas

2022, Cadernos do CEAS

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Como ser citado (modelo ABNT)

TRABALHO NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Work in Brasil: challenges and perspectives José Dari Krein Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, Brasil Marcelo Manzano Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, Brasil Marilane Teixeira Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, Brasil Informações do artigo Recebido em 10/05/2022 Aceito em 30/05/2022 doi>: https://doi.org/10.25247/2447-861X.2022.n256.p293-317 Resumo No presente artigo propõe-se a refletir sobre as incontornáveis transformações que, carreadas pela crise da Covid-19, se sobrepuseram ao mundo do trabalho em geral e em particular em países como o Brasil, marcados pela condição periférica e pela persistência do excedente estrutural de força de trabalho. O artigo começa com a apresentação das características estruturais do mercado de trabalho brasileiro e uma breve análise da dinâmica das ocupações no período mais recente. Em seguida, faz-se uma reflexão sobre as múltiplas dimensões da crise (civilizacional, política, econômica) para, então, delinear algumas diretrizes programáticas, não apenas para pensar em formas de superação da atual crise do trabalho no Brasil, mas, principalmente, para provocar uma discussão a respeito da redefinição do próprio sentido e configuração do trabalho na quadra atual da história e em um contexto político e econômico carregado de tensões e contradições como as que estiveram vigentes no Brasil na segunda década do século XXI. Palavras-Chave: Mundo do trabalho. Covid-19. Mercado de trabalho-Brasil - Excedente estrutural de força de trabalho. Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Como ser citado (modelo ABNT) KREIN, José Dari; MANZANO, Marcelo; TEIXEIRA, Marilane. Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades. Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. DOI: https://doi.org/10.25247/2447861X.2022.n256.p293-317 Abstract In this article we propose to reflect on the inevitable transformations that, driven by the Covid-19 crisis, overlapped the world of work in general and in countries like Brazil in particular, marked by the peripheral condition and by the persistence of the structural surplus of workforce. The article begins with a presentation of the structural characteristics of the Brazilian labor market and a brief analysis of the dynamics of occupations in the most recent period. Then, we reflect on the multiple dimensions of the crisis (civilizational, political, economic) and then outline some programmatic guidelines, not only to think about ways to overcome the current labor crisis in Brazil, but mainly to provoke a discussion at respect for the redefinition of the meaning and configuration of work in the current period of history and in a political and economic context full of tensions and contradictions as they were in force in Brazil in the second decade of the 21st century. Keywords: World of Labor. Covid-19. Labor Market-Brazil Structural surplus of labor force. Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022 | ISSN 2447-861X Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira INTRODUÇÃO A crise avassaladora que se instalou com a pandemia de Covid-19 no início de 2020 fez agravar tendências já em curso no Brasil, indicando a aceleração de processos de mudanças em várias dimensões da vida humana e da economia. Em relação ao mercado de trabalho brasileiro, deve-se ter em mente que foi atingido por essa inescapável onda de transformações sem que houvesse sido superado, em qualquer momento anterior de nossa história, o problema do excedente estrutural de força de trabalho, evidenciando aspectos históricos que condicionam parcela da sociedade a posições subalternas e precárias. Ou seja, somos abalroados por uma crise de profundas repercussões sobre o mundo do trabalho, partindo de um patamar civilizatório muito baixo, marcado pela precariedade das relações de emprego, pela informalidade como norma, pela grande dispersão salarial que deixa mais de dois terços da força de trabalho sujeita a remunerações baixas e insuficientes, pela inacessibilidade a direitos sociais e trabalhistas fundamentais. É incontornável considerar que estamos tratando de um país profundamente marcado pelo escravismo, pela condição de capitalismo tardio e periférico, com um mercado de trabalho débil e desorganizado (MACHADO SILVA, 1990) e que sujeita sua população a transitar de forma reiterada do emprego ao desemprego, do formal ao informal, das atividades precárias às ilegais. Nesse contexto, parte-se do pressuposto de que, sem um projeto de desenvolvimento que enfrente essa insuficiência estrutural de ocupações, será muito difícil, para não dizer impossível, mudar a realidade atual do trabalho no país e, por conseguinte, reverter a enorme desigualdade que nos caracteriza. Logo, o enfrentamento desse quadro coloca a necessidade de uma alteração política e de modelo de sociedade que leve à superação do atual regime de acumulação, crescentemente orientado para os interesses rentistas e do grande capital sem pátria. A anomia institucional em que nos encontramos exige, portanto, uma redefinição do papel do Estado e do lugar do trabalho em nossa sociedade. Isto posto, a análise aqui desenvolvida parte das seguintes hipóteses: (i) o reconhecimento de que ocorreram profundas transformações no mundo do trabalho, decorrentes das novas formas de produção e distribuição de bens e serviços, especialmente a partir da crise econômica dos anos 1970, quando se consolidou um novo padrão de acumulação baseado na dominância financeira e na globalização, impulsionadas pelas novas tecnologias de comunicação e informação e pela crescente participação de serviços ligados às famílias; (ii) que tais mudanças alteraram também as percepções e valores da sociedade, Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 294 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira com implicações para regulação do trabalho e para proteção social – isto é, a própria organização da vida em sociedade - decorreram também de determinações políticas impulsionadas pela hegemonia neoliberal. Mudanças que interromperam o processo de assalariamento advindo com a industrialização brasileira e reafirmaram os traços estruturais de desorganização do mercado de trabalho, expressos no excedente estrutural de força de trabalho e, consequentemente, no avanço da precariedade do trabalho e na exclusão de milhões de pessoas do acesso ao trabalho. O propósito do presente artigo é apresentar como os problemas estruturais do mercado de trabalho vêm se agravando nos últimos 40 anos - apesar do intervalo favorável entre 2004 e 2014 - bem como indicar alguns eixos que poderiam pautar uma nova agenda que contribua para a construção de novas bases para a transformação social. O texto está estruturado em quatro partes. Além desta introdução, na seção 1 abordamos os principais problemas estruturais do trabalho no Brasil, notadamente no que tange às últimas quatro décadas e à desfavorável dinâmica ocupacional que se observa como derivada deste já longo percurso de desenvolvimento débil e errático. Na seção seguinte, item 2, dedicamo-nos à reflexão dos principais marcos da crise sistêmica e civilizacional que se instalou no Brasil e no mundo a partir do colapso financeiro de 2008, com severas repercussões sobre o mundo do trabalho e sobre a própria legitimidade das políticas neoliberais. Por fim, na seção 3, esboçamos alguns eixos norteadores que podem contribuir para uma necessária agenda de transformação econômica e social. OS PROBLEMAS ESTRUTURAIS DO TRABALHO NO BRASIL O Brasil carrega uma herança histórica que se renova constantemente, qual seja, a existência de um excedente estrutural de força de trabalho (OLIVEIRA, 1998) e um penoso e incompleto processo de transição para o assalariamento, marcado pela exclusão de parcela significativa da população, especialmente das pessoas negras e das mulheres. No caso brasileiro, assim como no de diversos países latino-americanos, o processo de industrialização foi incapaz de promover o assalariamento com direitos para o conjunto dos trabalhadores, tal como ocorreu na Europa, por um curto e excepcional período da história do capitalismo (do pós-guerra até os anos 1970). Como chama atenção Baltar (2003), ao longo do século XX, os governos brasileiros direcionaram suas forças para viabilizar a industrialização, deixando em segundo plano a Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 295 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira tarefa civilizatória de organizar o trabalho e um sistema de proteção social - até porque, em grande medida, a informalidade era funcional à dinâmica de acumulação da estratégia de modernização conservadora (OLIVEIRA, 2003). Consequentemente, foram sendo produzidos crivos próprios de seleção no mercado de trabalho, legando às pessoas negras, às mulheres e aos com maiores dificuldades de acesso ao ensino formal as ocupações mais vulneráveis, precárias e mais mal remuneradas. É a herança escravocrata que assume novos significados e se traduz por meio da exclusão de segmentos sociais inteiros, transformados em força de trabalho descartável ou incorporados às condições de trabalho mais precárias e ocupando as piores posições de classe. Assim, com o forte crescimento econômico, o ápice desse processo ocorreu em 1980, quando 70% da população já vivia nas cidades e dois terços da força de trabalho alcançou o assalariamento, mas com alta taxa de informalidade e uma grande maioria inserida em atividades precárias, com salários baixos e desigualmente distribuída. Apesar de o Brasil ter logrado um sistema de direitos sociais bastante avançado nos anos 1930 e 1940 (expressos na CLT) (BOSI, 1992), não foi capaz de constituir um sistema de proteção para a maioria dos ocupados. Parte importante das lutas operárias antes de 1964 foi para reivindicar a efetivação dos direitos trabalhistas, especialmente nos anos 1950 (TEIXEIRA, 1999). Algumas hipóteses explicativas para a pequena efetivação dos direitos são: 1) o arcabouço legal era seletivo, pois valia para os trabalhadores da indústria e comércio, portanto, para os que se encontravam na base do desenvolvimento capitalista. As demais pessoas ocupadas não tiveram assegurados os mesmos direitos. Somente com o tempo, outras categorias de ocupações foram incluídas no sistema de direitos e proteções sociais. Por exemplo, os trabalhadores rurais, apesar das primeiras leis terem sido introduzidas nos anos 1960, a sua integração ao sistema de direitos e proteções sociais somente irá ocorrer na Constituição de 1988. Outro exemplo, as trabalhadoras domésticas, que tiveram parte dos seus direitos reconhecidos e equiparados aos demais somente em 2015. Em segundo lugar, o processo de industrialização, apesar do grande dinamismo econômico entre 1940 e 1980, veio acompanhado de um forte “excedente estrutural de força Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 296 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira de trabalho”1, permitindo ampla liberdade às empresas para manejarem a gestão da força de trabalho, com o pagamento de baixos salários e oferecendo péssimas condições de trabalho (KREIN, 2013). A outra face foi a criação de uma concorrência predatória pelos postos de trabalho com melhores salários (NOVAIS; MELLO, 1998). A ausência de emprego para todas as pessoas dispostas a trabalhar, fez com que muitas delas tivessem que se virar em atividades muito heterogêneas, de baixo rendimento, alta informalidade, atividades por conta própria como estratégia de sobrevivência. O terceiro vetor explicativo é que o forte crescimento capitalista no Brasil foi acompanhado por períodos de déficit democrático. Entre 1933 e 1980 (período da industrialização restritiva e pesada) houve longos períodos de regimes autoritários. Mesmo nos momentos democráticos (entre 1946 e 1964) prevaleceu a instabilidade política, o que representou um obstáculo à efetivação dos direitos pelas entidades de representação dos trabalhadores e pelas instituições públicas. No chamado período do milagre econômico, de forte crescimento do emprego, os sindicatos foram silenciados e os seus instrumentos de reivindicação foram suprimidos. Não é sem razão que a desigualdade entre os rendimentos do trabalho cresceu fortemente naquele momento (BALTAR, 2003). Apesar disso, os sindicatos emergem na cena social com força na passagem da década de 1970 para a de 1980, quando o país já se defronta com os impasses da crise da dívida externa. Por último, as instituições do poder público, apesar de sua relevância, não tiveram estrutura suficiente para garantir a efetividade dos direitos, no contexto econômico e político do período. Ao mesmo tempo, Cardoso e Lage (2005) "mostram que o crime da sonegação dos direitos foi sempre compensatório, pois as implicações para os infratores são muito baixas" (KREIN; MANZANO; LEMOS, 2020, p.4). Ademais, as amarras legais e a tutela estatal não permitiram o surgimento de um sindicalismo com força social para alterar o padrão prevalecente de relações de trabalho despóticas praticadas por grande parte dos empregadores. Ademais, é preciso reafirmar que a sociedade se estruturou conservando práticas racistas e sexistas que precisam ser confrontadas cotidianamente. 1 Esse excedente foi possibilitado pela intensa migração do pobre mundo rural para as cidades. Entre os anos 1950 e 1980, migraram em torno de 40 milhões de pessoas. Em 1940, dois terços da população estava no campo. Em 1980, dois terços estavam nas cidades (DEDECCA; BALTAR, 1997). A modernização do campo se intensifica a partir dos anos 1960 (NOVAIS; MELLO, 1998) Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 297 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira Soma-se a esses argumentos, a intensificação de presença das mulheres no mercado de trabalho nos anos de 1970, resultado tanto da necessidade econômica, quanto das transformações demográficas, culturais e sociais que vinham ocorrendo no país e no mundo. Desde então, o perfil da classe trabalhadora alterou-se bastante, com o nível de ocupação entre as mulheres passando de 26%, em 1980, para 44% em 2010 (TEIXEIRA, 2017). Concomitante, reduz-se o tamanho das famílias e ocorrem mudanças expressivas na sua composição e nos papéis tradicionais de homem provedor e de mulher dona de casa. Esse padrão de família tradicional vai perdendo posição relativa diante de novos arranjos familiares, especialmente os domicílios monoparentais, chefiados por mulheres com filhos, da mesma forma em que os ingressos das famílias passam a ser formados por mais de uma renda. Essas transformações, contudo, não foram acompanhadas de uma alteração na distribuição do tempo dedicado à reprodução social, evidenciando os próprios limites que o mercado de trabalho representa para alterar as condições em que o trabalho de reprodução é realizado. Sem o reconhecimento social desse trabalho, as mulheres seguem sendo as únicas responsáveis pelas múltiplas atividades associadas às tarefas de reprodução e, assim, naturalizar e justificar a sua presença em atividades informais e precárias, ao atribuir a elas a escolha por essa forma de inserção. A combinação de um contexto em que prevalece o excedente estrutural de força de trabalho, o déficit de democracia e as dificuldades institucionais fez com que o Brasil construísse um mercado de trabalho bastante desorganizado (SILVA, 1990, 2003), com alta informalidade, rendimentos do trabalho baixos e desiguais, elevada rotatividade e forte discriminação de raça e gênero. Temos um mercado de trabalho historicamente flexível, pois as liberdades para o empregador promover dispensas imotivadas estiveram sempre presentes, especialmente a partir da criação do FGTS em 1966. Como consequência, os rendimentos do trabalho sempre flutuaram de acordo com os ciclos econômicos (KREIN; MANZANO LEMOS, 2020). Desde então, com a grave crise da dívida externa que solapou o processo de industrialização brasileiro, despontam crescentemente no Brasil os limites do capitalismo periférico, um sistema intrinsecamente disfuncional e propenso a crises, incapaz de gerar empregos e bem-estar social para toda a sociedade. A partir de então, a despeito de alguns anos de melhora do emprego e dos salários, a heterogeneidade estrutural do mercado de Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 298 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira trabalho se manteve presente, agravada, mais recentemente, pelo retorno do desemprego elevado, pelo avanço do desassalariamento e da precarização. É de se esperar que, na ausência de emprego, as pessoas busquem outras formas de inserção social percorrendo variadas estratégias de sobrevivência para obter renda. Assim, foi possível perceber, por exemplo, a explosão do comércio de rua a partir da crise da dívida nos anos 1980 ou o forte crescimento do trabalho informal e por conta própria ao longo dos anos 1990. Entre 2004-2014, os indicadores do mercado de trabalho melhoraram, mas as ocupações geradas estavam concentradas em atividades de baixos salários, nas quais a juventude - e particularmente as mulheres negras - não encontraram ocupação condizente com a sua escolaridade. Além disso, os avanços neste período não estiveram assentados numa correspondente transformação da estrutura produtiva e por isso foram insuficientes para organizar o mercado de trabalho brasileiro. Nos últimos 6 anos, com o choque recessivo de 2015-2016 e a guinada neoliberal, essas tendências regressivas se aprofundaram de forma dramática. Como se pode observar na Tabela I, entre o primeiro trimestre de 2012 e o mesmo trimestre de 2020 cresceu a participação dos trabalhadores em situações de maior precariedade (conta-própria, empregados e trabalhadores domésticos sem carteira) enquanto declinou a participação dos empregados e trabalhadores domésticos com carteira assinada. Esse declínio entre os mais protegidos sinaliza para do desmonte dos direitos promovido pelas reformas trabalhistas, mas também indica a perda de densidade da estrutura produtiva, o aumento da desigualdade social e a incapacidade de retomar um novo ciclo de crescimento apenas pelas forças do mercado. Tabela 1 - Distribuição dos ocupados por posição na ocupação Brasil, 1ºT2012 e 1ºT2020 Fonte: IBGE/PNAD Contínua Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 299 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira Já quando se observa a dinâmica das quarenta principais ocupações no país (Tabela II) fica patente uma deterioração qualitativa, com ocupações de melhor prestígio e remuneração perdendo posição no ranking, enquanto ocupações sujeitas a maior precariedade, a menores rendimentos e de menor qualificação profissional avançaram. Entre as ocupações que mais cresceram, cabe destacar a dos “vendedores em domicílio” que galgou 28 posições entre 2012 e 2020, a de “trabalhadores de cuidados pessoais em domicílio” (avanço de 40 posições), ambas ocupações características de um mercado de trabalho desorganizado no qual avançam os trabalhos voltados a demandas das famílias e das pessoas, muitos dos quais já operando em modalidades “uberizadas”. Em relação aos “trabalhadores de cuidados” vale ressaltar que esses dados também refletem mudanças demográficas profundas na sociedade brasileira, que avança para um perfil de maior longevidade. A própria OIT estima que até 2030, 2,3 bilhões de pessoas irão necessitar de cuidados pessoais (OIT, 2018). Ao mesmo tempo, entre as ocupações que sofreram quedas mais expressivas no ranking, são simbólicas as perdas de ocupados como “dirigentes de administração e de serviços” (-11 posições), “operadores de máquinas de costura” (-22 posições), “gerentes de comércio atacadista e varejista” (-16 posições) e “dirigentes de vendas e comercialização” (12). Trata-se de um grupo importante de ocupações tradicionalmente vinculadas a estabelecimentos mais estruturados e que frequentemente correspondem a posições mais estáveis, mais bem remuneradas e menos sujeitas à informalidade. Como sugerem essas alterações nas posições no ranking das ocupações, o que se percebe é, na verdade, a culminância de um longo processo que se desenrola nos últimos 40 anos e que aponta para uma importante inflexão no mercado de trabalho brasileiro, em que as condições materiais para o assalariamento foram sendo erodidas. Os indicadores mostram o crescimento da informalidade, dos trabalhos por conta própria, da desocupação e da precariedade de trabalho2. A participação do setor industrial no total dos ocupados caiu de 27,8% para 12,9% e o setor terciário teve um salto de 39,3% para 62,7% no período (POCHMANN, 2019) 3, associados ao avanço da terceirização, dos serviços pessoais e de 2 Os dados são bastante conhecidos, por isso, deixamos de citá-los no presente artigo. A soma dos desempregados, sem rendimentos, subocupados e assalariados informais chegou a quase 50%, com forte crescimento entre 1980 e 2018. 3 Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 300 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira atendimento às famílias e ao crescimento da participação de ocupações de baixos salários. Em síntese, reafirmaram-se a precariedade estrutural do mercado de trabalho e suas discriminações históricas, especialmente em relação às mulheres e às pessoas negras. Tabela 2 - Ranking das 40 maiores ocupações Brasil, 1ºT2012 e 1ºT2020 Fonte: IBGE/PNAD Contínua Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 301 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira De modo sumário, podem-se identificar quatro razões principais que explicam esse processo de transformações estruturais que atingiram o desenvolvimento do país e que resultaram mais desfavoráveis aos trabalhadores e à ação coletiva das camadas populares: a) Desde a crise da dívida externa, no começo dos anos 1980, a economia brasileira adentrou em um severo e prolongado processo de regressão de sua estrutura produtiva. Sem o motor das holdings estatais, desmontadas pelo esforço de pagamentos aos credores externos, o modelo de desenvolvimento que vinha sendo trilhado desde os anos 1950 foi revertido, sem que houvesse, de fato, uma outra estratégia a ser colocada no lugar. Já nos anos noventa, com a rendição ao ideário neoliberal que emanava do Consenso de Washington, foi realizada uma inserção passiva do país à nova ordem internacional, o que contribuiu para avançar na desestruturação de elos estratégicos da cadeia produtiva, que haviam sido erigidas ao longo das décadas anteriores, dando início ao processo de desindustrialização precoce da matriz produtiva nacional e à proeminência das atividades econômicas primárias. Desde então, o Brasil perdeu posição em termos de desenvolvimento industrial e tecnológico, viu reduzir seu dinamismo produtivo e, mais grave do que isso, inviabilizou o desenvolvimento e a consolidação de uma base material suficiente para levar adiante o projeto de ampliação da soberania nacional que vinha sendo experimentado desde o pós-guerra e cuja continuidade e aprofundamento deveriam servir de lastro para o projeto de Estado Social que foi delineado pela Constituição Federal de 1988. Ou seja, essa opção pelo neoliberalismo estreitou muito as margens para pensar um desenvolvimento nacional. b) Junto com a regressão do parque industrial brasileiro e a progressiva perda de elos das cadeias de produção, a matriz produtiva brasileira perdeu o passo tecnológico, ficando cada vez mais defasada em relação às inovações técnicas e organizacionais que avançavam em especial nas economias centrais e asiáticas. Se, por um lado, perdemos participação em setores chaves e dinâmicos da economia contemporânea, por outro, o padrão de inserção passiva, baseado em ganhos de competitividade espúria, desestruturou setores dinâmicos e de maior complexidade ou intensivos em força de trabalho (por exemplo, nos setores de Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 302 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira alta tecnologia, metal mecânico, indústria têxtil, química fina, entre outros). Enquanto isso, para sobreviver àquele contexto adverso, fortemente agravado por um longo período de câmbio e juros fora do lugar, os setores empresariais buscaram formas novas de organizar as atividades intensivas em trabalho humano, lançando mão da terceirização, da contratação por hora trabalhada, da ampliação do poder unilateral para a realização de contratos e uso do trabalho. Claramente, dado o grau de exposição que resultou da liberalização da economia brasileira, observou-se uma crescente transferência do risco econômico (historicamente associado ao capital) da esfera empresarial para a do trabalhador e as novas tecnologias (IA, Internet das coisas, robótica etc.) acabaram sendo utilizadas como forma de acelerar e facilitar esse processo, dissolvendo os compromissos típicos das relações de assalariamento. Com a recente onda de inovações tecnológicas – geralmente denominadas de Revolução 4.0, aprofundou-se a subordinação do trabalho ao capital, pois se acentuou a dependência em relação às grandes estruturas, - a exemplo das plataformas digitais, que vão avançando para múltiplos setores (serviços de entrega, transporte individual, logística, produção de software, ensino, saúde, comércio, finanças, etc..), em que tende a prevalecer a ausência ou redução de direitos e proteções sociais. De acordo com Belluzzo (2020), trata-se de mudanças tecnológicas no trabalho que podem ser descritas como uma “procissão de desgraças”, uma vez que deixa um rastro de desemprego, insegurança e precariedade. Algumas poucas ocupações geradas são de qualidade superior, mas a grande maioria é precária, revelando uma tendência de polarização das ocupações e de maior heterogeneidade na composição das classes trabalhadoras c) As transformações do trabalho se processaram também por meio das políticas públicas e do debate ideológico sob-hegemonia do neoliberalismo e ganharam concretude com as reformas trabalhistas e dos sistemas de proteção, isto é, em última instância, um processo de profunda redefinição do Estado. Essas reformas tendem a caminhar juntas no sentido de sujeitar os trabalhadores à concorrência no mercado, deixando-os em situação de maior insegurança e vulnerabilidade. Em uma análise comparada, percebe-se que os conteúdos das reformas em diversos Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 303 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira países - a despeito da distinção de seus sistemas de proteção social e de direitos tendem a ser bastante similares. Elas introduzem contratos mais flexíveis, despadronizam o uso do tempo de trabalho, implantam o rendimento variável, fragilizam as instituições públicas e os sindicatos e diminuem ou derrogam as políticas de proteção social. A implantação dessa agenda retrata o movimento descrito por Streeck (2013) que é a libertação ou distanciamento da “justiça de mercado da justiça social”. Tende a prevalecer uma ação de Estado que fortalece a lógica da concorrência, inclusive desconsiderando as bases da democracia4. Na mesma perspectiva, Prado (2018) argumenta que uma agenda de retirada de direitos promove um esvaziamento da substância da democracia, pois esta pressupõe cidadania, ao passo que o neoliberalismo busca transformar o ser humano em mero agente econômico. Na mesma linha, Dardot e Laval (2016), afirmam que estamos diante de um movimento de “privatização das condutas”, materializado no fomento da capacidade dos sujeitos de criar as próprias condições de acesso ao trabalho e ao bem-estar (KREIN; COLOMBI, 2019, p. 8). Ou seja, sob o neoliberalismo, eliminaram-se os instrumentos para a repartição dos ganhos de produtividade em favor do trabalho e, ao mesmo tempo, foram introduzidas soluções individualizadas, exaltando as supostas virtudes do empreendedorismo, da meritocracia e da empregabilidade, ao mesmo tempo em que transfere para as famílias e, em alguns casos, para as comunidades a responsabilidade pela proteção social. Ou seja, observa-se a combinação de uma mentalidade financeirizada e individualista, em um contexto de escassez de ocupações, com políticas de estímulo a contratações flexíveis (intermitente, parcial, temporária etc.) e de organização do trabalho por demanda, em que o trabalhador pode, inclusive, ficar à disposição sem receber salário. Com isso, a identidade com o trabalho e o 4 Para o autor, no capitalismo do século XXI, a questão é até que ponto os Estados conseguirão impor os direitos de propriedade e as expectativas de lucro dos mercados resguardando alguma legitimidade democrática, já que sua capacidade de fazer mediações entre direitos sociais e requisitos de acumulação de capital está profundamente abalada. Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 304 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira próprio conceito de profissão vem se diluindo e são substituídos pelo instinto de sobrevivência que empurra para formas de empregos com elevado grau de competição, de desvalorização das relações de solidariedade (formal e informal) e de intensificação de formas mais precárias de contratação. Desse processo, resultam implicações profundas na vida das pessoas, pelo grau de insegurança e de incertezas que esse tipo de trabalho oferece em termos de futuro, além de ser um fator que contribui para as desigualdades. Ademais, a ausência de identidade com o trabalho dificulta a formação de vínculos entre os trabalhadores, o que é um problema para a ação coletiva. d) A compreensão da nossa estrutura ocupacional também tem relação direta com a brutal desigualdade social que caracteriza o país. Dada a escassez de oportunidades de trabalho de qualidade, uma parte substantiva das pessoas ocupadas presta serviços às classes privilegiadas, de média e alta renda. Não por acaso, somos o país com o maior contingente de trabalhadoras domésticas do mundo, um traço que revela a permanência da lógica da servidão e uma herança da escravidão. A dimensão do racismo associado às atividades mais precárias e mal remuneradas é ainda muito presente. Da mesma forma em que é essencial compreender as interações que se constituem entre os sistemas econômicos e de reprodução social na manutenção da discriminação e exclusão das mulheres do mundo produtivo em um sistema - uma vez que as políticas de ajuste estrutural de cunho neoliberal vêm reduzindo de forma continua as políticas públicas dos Estados - que necessita, cada vez mais, do enorme volume de trabalho gratuito realizado pelas mulheres no âmbito do trabalho doméstico e das comunidades que envolvem cuidados, afeto, bem estar e suporte emocional (TEIXEIRA, 2020). Portanto, o trabalho de reprodução não é algo estático, mas dinâmico, se transforma, se intensifica ou diminui conforme o ciclo de vida e as relações sociais. Dessa forma, as mulheres serão integradas ao mundo produtivo sem reduzir as suas responsabilidades domésticas, criando um conflito que se expressa nas intermitências laborais, na integração em setores ou ocupações mais precárias, na maior vulnerabilidade em períodos de crise. Gera-se, assim, um paradoxo porque, ao mesmo tempo em que o capital não pode prescindir da força de trabalho das mulheres, ele reforça a exclusão por meio de práticas Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 305 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira discriminatórias e excludentes, de ajustes fiscais e políticas de austeridade com o corte de gastos com saúde, educação, infraestrutura e necessidades básicas forçando as mulheres a buscar maneiras de compatibilizar a dinâmica produtiva e reprodutiva, reforçando ao mesmo tempo a divisão sexual do trabalho por meio de uma estrutura ocupacional segmentada. Conforme os dados do terceiro trimestre de 2020, as mulheres representavam 75% das atividades em educação, saúde humana, serviços sociais, outros serviços e serviços domésticos. MUDANÇAS ESTRUTURAIS, CRISE CIVILIZACIONAL E DELEGITIMIDADE DO NEO- LIBERALISMO Como visto acima, os problemas do trabalho no Brasil são históricos e estruturais e se agravaram com as profundas transformações recentes. Apesar do cenário não ser favorável, há sinais de desgaste e contestação pela ausência de melhores oportunidades de emprego e pelo aumento da precarização estrutural. Por um lado, o avanço da utilização das novas tecnologias e de novas formas de gestão do trabalho (“uberização”, teletrabalho, “agentes autônomos”, etc...) indica um aprofundamento da desestruturação dos direitos, da proteção social, em que se driblam as regras legais. Ou seja, parece ser o avanço de uma nova forma de subordinação do trabalho que reforça as características do atual regime de acumulação financeiro e amplia ainda mais a precarização estrutural do trabalho. No caso brasileiro, há o risco concreto dessas mudanças virem acompanhadas de uma nova onda de desregulação trabalhista, caso sejam aprovadas novas propostas de flexibilização dos contratos de trabalho que ampliem um padrão de regulação equivalente à informalidade, incentivando o pagamento por hora trabalhada. Adicionalmente, corre-se o risco do sucateamento e fragilização das instituições públicas responsáveis por garantir a efetividade dos direitos. Neste sentido, as novas tecnologias possibilitam o avanço da marca sem fábrica, da empresa com pouquíssimos empregados, do varejo sem loja e do patrão que procura esconder o rosto. É cada vez menos perceptível a fronteira entre trabalho remunerado e não remunerado, bem como é vertiginoso o avanço do vínculo individual por meio de uma plataforma digital, a substituição do trabalho vivo pelo da inteligência artificial e pela robótica. Por outro lado, fica cada vez mais evidente a impotência da política econômica de recorte neoliberal para dinamizar a produção e o emprego. Novas rodadas de austeridade Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 306 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira fiscal, privatizações, reformas liberalizantes que visam redefinir o papel do Estado (ex: administrativa, tributária, comercial, cambial, previdenciária, trabalhista, saúde e educação) poderão resultar, já no curto prazo, em um agravamento da situação do emprego no país: estima-se que o desemprego deva se manter em patamares elevados, que a precariedade se torne explosiva e parte significativa dos postos de trabalho seja definitivamente extinta, ampliando o número de pessoas fora da força de trabalho por desalento ou se envolvendo em atividades muito precárias como estratégia de sobrevivência. Porém, há também sinais de uma crise de legitimidade do neoliberalismo. Entre outras, é possível citar as mudanças de posturas dos governos nacionais, inclusive de matizes mais conservadoras, com disposição de intervir na economia e construir mecanismos de proteção aos trabalhadores e às empresas. Essas iniciativas mostram que, aonde o Estado atuou, os efeitos da crise estão sendo mitigados. Atualmente, parece que, em muitos países, o discurso da desconstrução de direitos perdeu força e despontam os casos de aumento da proteção social, de introdução de políticas de renda mínima permanentes, e até proposta para derrogar aspectos flexibilizadores de reformas trabalhistas, a exemplo da Espanha. Isso não significa necessariamente movimentos contraditórios com o atual regime de acumulação, mas sugerem uma fragilização das teses até então hegemônicas e a constatação de que as forças do mercado são incapazes de construir saídas para as grandes crises. Para o nobel de economia Joseph Stiglitz (CARTA MAIOR, 2020), a maneira mais eficaz de enfrentar o poder de mercado é aprimorar os sistemas de regulação e ampliar o investimento público em educação, infraestrutura e tecnologia, ao mesmo tempo em que é necessária mais ação coletiva. Além das questões do trabalho, há outros elementos que estão provocando crescente mal-estar social: a degradação ambiental, a pobreza e as desigualdades sociais, a crise dos cuidados, as recorrentes discriminações e opressões de gênero e raça, o autoritarismo, a tirania da meritocracia (SANDEL. 2020). Situações que estão gerando tensões e temores políticos. Trata-se de uma visão expandida da luta social e que pode representar respostas à crise do capitalismo. Em síntese, mesmo que não se enxergue, atualmente, uma clara alternativa política, há uma crescente crise de legitimidade do neoliberalismo, o que abre espaço para apresentação de uma agenda diferente de organização da vida social e particularmente para o lugar do trabalho na sociedade. Neste sentido, a pandemia, a despeito de suas mazelas, oferece uma oportunidade para abrir esse debate. O seu desfecho Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 307 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira depende da correlação de forças que se estabeleça na sociedade, considerando que as instituições herdadas do século XX e moldadas pela perspectiva de generalização do fordismo e das relações salariais necessitam ser repensadas para enfrentar essa nova e complexa realidade social, para a qual o mercado é claramente incapaz. DESAFIOS PARA CONSTRUIR DE UMA NOVA AGENDA DO TRABALHO O primeiro desafio é analítico e pressupõe considerar que as transformações em curso significam uma nova reconfiguração das classes trabalhadoras, mesmo tendo clareza que o capitalismo busca sempre ressignificar suas formas tradicionais de exploração do trabalho sob o argumento de que a flexibilização é condição para gerar emprego, que as empresas precisam se adaptar a uma economia globalizada, que as pessoas preferem o trabalho autônomo e a saída seria o autoemprego, o empreendedorismo, etc. Um segundo desafio, de caráter transversal e que deve estar presente em uma nova agenda do trabalho, é articular os direitos trabalhistas com o combate a todas as formas históricas de exclusão e discriminação pela condição de gênero e/ou de raça. Essas formas de opressão estão ancoradas na estrutura da sociedade capitalista, de modo que não podem ser negligenciadas ou tratadas como lutas identitárias, uma vez que estão profundamente entrelaçadas com a luta social e pelos direitos. Assim, repensar as formas de inserção no mercado de trabalho, em que todas as pessoas possam ser incluídas igualmente, independentemente de sua orientação sexual, origem e raça, faixa etária ou que apresentam alguma deficiência. Ou seja, que a inclusão não seja vista com exceção, mas como parte de uma sociedade mais inclusiva em todas as suas dimensões. Um terceiro desafio, a defesa dos direitos e da proteção é essencial para não permitir um rebaixamento ainda maior das condições de vida e enfraquecer ainda mais as instituições públicas na área do trabalho. Ao mesmo tempo em que se deve encarar a nova realidade e ser capaz de formular alternativas de políticas de proteção social a todas as pessoas, que precisam ser de caráter mais universal, como direito de cidadania e independente de sua condição de formalização. Até determinado período do desenvolvimento capitalista, as conquistas pelas categorias mais organizadas extravasavam para outros segmentos de trabalhadores e isso permitia construir um sistema de direitos e proteção vinculados fortemente à inserção Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 308 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira laboral. A atual fragmentação da classe trabalhadora, contudo, nos faz refletir sobre a necessidade de que os direitos e proteções sociais necessitam ser tratadas como políticas universais, independente do vínculo. Ou seja, a negociação coletiva continua importante, mas é hoje insuficiente para avançar nos direitos e nas proteções sociais da atual classe trabalhadora, reconfigurada, heterogênea e dispersa geograficamente. Isso implica a necessidade de pensar em uma organização dos trabalhadores também mais horizontal e classista. Aproximar a ação sindical das comunidades e dos territórios, articular a luta por direitos sociais ao acesso às políticas públicas como saúde, educação moradia, mobilidade. Um quarto desafio é fortalecer as instituições públicas responsáveis pela regulação pública do trabalho, que estão sendo desconstruídas para ampliar a liberdade de o capital determinar as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho. É um campo em disputa, em que se faz necessário reforçar o seu papel como instrumento de proteção social e de afirmação de direitos. Um quinto desafio, que é central na perspectiva do presente texto, é apresentar uma saída para o problema estrutural de falta de trabalho. Dadas as inovações tecnológicas poupadoras de trabalho, o simples crescimento econômico – apesar de ser uma condição necessária – não é suficiente para gerar postos de trabalhos decentes a toda força de trabalho disponível. É crucial garantir trabalho a todas as pessoas e que estes trabalhos sejam reconhecidos como relevantes socialmente para o coletivo da comunidade e não fiquem restritos ao circuito de acumulação capitalista. Ou seja, mais do que nas etapas anteriores do capitalismo, caberá ao poder público garantir o direito ao trabalho e à renda por meio de criação de oportunidades de trabalho para atender às necessidades da vida em sociedade e que estejam articuladas com um novo padrão de consumo e produção que respeitem a sustentabilidade ambiental e se orientem para o bem viver. Em outras palavras, o Estado, como empregador de última instância, ao estimular com recursos públicos o desenvolvimento de iniciativas de cuidados, de preservação ambiental, de projetos culturais e de melhora dos padrões de vida no campo e na cidade, permitirá que as pessoas possam realizar atividades compatíveis com a sua vocação e sua formação profissional, bem como dará lugar a formas de atividade em circuitos sociais não mercantilizados, com a criação de serviços coletivos e, no limite, novos padrões de sociabilidade. A viabilização destas proposições exige repensar como se constitui o fundo público para financiar este programa de trabalho para todas as pessoas. Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 309 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira Outra dimensão a se apresentar para a questão da falta de trabalho é de se reconectar com um projeto de desenvolvimento econômico e social. O ciclo expansivo que marcou o Brasil nos anos 2000 foi fundamental para a geração de empregos e a redução das desigualdades. No entanto, não foi suficiente para recolocar o país na rota do desenvolvimento. Em 2016 os setores industriais de alta intensidade tecnológica representavam menos de 6,0% do PIB e o peso da indústria de transformação caiu para menos de 12%. O baixo dinamismo associado à crescente participação de setores menos dinâmicos tem produzido efeitos preocupantes sobre o tipo de emprego e ocupação que são gerados. Recuperar o potencial de inovação e de inserção em áreas estratégicas da indústria é, portanto, essencial para alterar nosso padrão de crescimento e reverter a tendência que tem sido sustentada nas últimas décadas pela posição de grande exportador de produtos primários. Sem incentivos públicos e com baixa capacidade de inovação, o país reproduz uma estrutura produtiva fragmentada, dispersa geograficamente e desconectada do ponto de vista das cadeias produtivas, o que leva tanto ao aumento do desemprego de longa duração quanto à crescente redundância de uma força de trabalho que, mesmo escolarizada, não encontra ocupação condizente. Um sexto desafio em particular é o de alcançar os jovens da periferia e aglutiná-los em torno de um projeto de sociedade que, ao mesmo tempo, se apresente como uma oportunidade para enfrentar o desemprego, a informalidade e a subocupação. O acesso à maior escolaridade não resultou em melhores formas de inserção. A qualificação profissional e a elevação da escolaridade são muito importantes como direito democrático e como condição de cidadania, mas hoje a exclusão dos jovens não pode mais ser explicada como consequência de um suposto déficit educacional. No Brasil, 38% das jovens negras com ensino superior trabalham em atividades que exigem no máximo o ensino fundamental e 40% dos jovens que estão saindo das universidades brasileiras não encontram uma ocupação compatível com a sua formação. Um sétimo desafio é incorporar, no curto prazo, a defesa da renda básica universal, articulada com a proposta de criação de ocupações que atendam às necessidades coletivas que contribuam para o bem-estar coletivo da sociedade, com redução da jornada e respeito aos direitos e à proteção social. A renda básica articulada com a proposta de redesenhar as relações de trabalho e o uso do tempo do trabalho e de gerar postos de trabalho que assegurem dignidade e contribuam para resolver os problemas sociais e ambientais. Ou seja, Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 310 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira a prioridade é começar a resolver o problema do excedente de força de trabalho, tendo a renda básica apenas como um pequeno passo inicial e não uma solução definitiva. Por último, é um desafio central recolocar a centralidade da redução da jornada de trabalho como forma de gerar e distribuir empregos para a sociedade. Os avanços tecnológicos permitem tecnicamente reduzir a jornada de trabalho e, como sempre ocorreu na história do capitalismo, a questão é política e ideológica. A defesa da redução da jornada poderia estar associada ao debate mais geral sobre a distribuição do tempo entre o trabalho e não-trabalho e na própria distribuição das responsabilidades familiares por todos os seus membros. É inegável a relevância do debate sobre a jornada de trabalho para a organização da vida social uma vez que a distribuição do tempo é um dos problemas centrais de todas as sociedades. Os tempos são recorrentemente transformados pelas mudanças econômicas, sociais e culturais, mas tais mudanças não se processam unicamente na esfera produtiva com o controle da extensão, distribuição e intensidade da jornada relativa ao trabalho remunerado, mas na forma como o trabalho reprodutivo está organizado e como mulheres e homens distribuem o seu tempo entre essas duas dimensões de forma articulada entre si. Apesar da grande capacidade do capitalismo em transformar as condições de trabalho, ele não foi capaz de eliminar a necessidade de um tempo necessário para a reprodução social de mulheres e homens. Portanto, qualquer que seja a perspectiva em que analise a jornada de trabalho não se pode desprezar o impacto sobre a distribuição do tempo para ambos os sexos. Em última instância, a reversão da atual tendência de precarização estrutural do trabalho e a construção de nova utopia do trabalho é definida na disputa política, na correlação de forças. O desafio é construir uma agenda que seja capaz de colocar em movimento todas as forças sociais que lutam pela transformação social. Se começamos o presente texto afirmando que a pandemia tendeu a reforçar tendências em curso, o atual contexto também coloca novas possibilidades de lutas sociais e redefinição de rumos no trabalho e na sociedade, o que irá depender da capacidade de construir uma nova agenda que responda a essa realidade em mutação. Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 311 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira CONSIDERAÇÕES FINAIS Os problemas estruturais e históricos do mercado de trabalho brasileiro são reafirmados e agravados com as transformações ocorridas no capitalismo contemporâneo. O Brasil, diferentemente de outros países centrais, não conseguiu incorporar no sistema de direitos e proteção formal a maioria dos ocupados, apesar de avanços expressivos do assalariamento formal entre 1940 e 1980, no bojo do forte crescimento econômico. O balanço de 40 anos (1980 a 2020) é que o processo de desorganização do mercado de trabalho prevaleceu, pois há um número maior de pessoas, em termos proporcionais sem direitos e vivendo sem proteção social, o assalariamento caiu e tendeu a prevalecer ocupações mais precárias para a maioria das pessoas. É o fenômeno, chamado por Kalleberger (2011), de “polarização das ocupações”, em que uma pequena parte tem trabalhos mais qualificados e de maior renda, enquanto outra, majoritária, exerce atividades precárias e de baixos salários, que são aceitas pela necessidade de sobrevivência. Ou seja, apesar de uma melhora substantiva dos indicadores do mercado de trabalho entre 2004 e 2014 (queda do desemprego, avanço do assalariamento com proteção social, elevação da renda especialmente dos que estavam na base da pirâmide social) e políticas públicas de enfrentamento à pobreza e à desigualdade social, a crise de 2015 e 2016, adicionada às reformas trabalhistas e do sistema de proteção social, indicam um grande retrocesso econômico, social e político, rompendo com uma perspectiva, ainda que fraca, que avançava na construção de uma sociedade mais integrada, com instituições públicas comprometidas com a construção da igualdade e com os direitos sociais. Consideramos que ocorreram, atualmente, mudanças substantivas na forma de produzir bens e serviços, que alteraram profundamente o mundo do trabalho. Contudo, os novos modos de vida e de sociabilidade que emergem são antes resultado de uma construção política do que dos imperativos tecnológicos e circunstanciais do capitalismo contemporâneo. O desafio atual é muito superior e exigirá uma ação pública que vai para muito além de garantir a volta do crescimento econômico, de revogação de reformas liberalizantes, trata-se de um esforço político e social similar ao que a humanidade enfrentou para resolver o problema do emprego, após o colapso da ordem liberal, das inovações da 2ª Revolução Industrial e das crises econômicas, sociais e políticas do começo do século XX. Para Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 312 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira deixar mais claro o tamanho do desafio, naquele momento histórico, o excedente estrutural de força de trabalho foi enfrentado a partir, entre outras, de quatro grandes iniciativas políticas: 1) redução da jornada de trabalho de quase 3000 horas em média no final do século XIX para 1500 e 1700 horas na maioria dos países europeus (GIBB, 2017), resultante da luta do movimento trabalhista; 2) retirada da força de trabalho de crianças e adolescentes, que passaram a ter o direito à educação formal, também fruto de lutas sociais e políticas e a própria retirada das mulheres da força de trabalho por meio de políticas de estímulo a sua permanência na família; 3) a incorporação dos assalariados no padrão de consumo, fundamentalmente, por meio da elevação progressiva dos rendimentos dos trabalhos em que parte dos ganhos de produtividade elevou o poder de compra dos salários; 4) a criação de um amplo sistema de políticas sociais (saúde, educação,...) acessível como direito de cidadania, que foi responsável pela criação de milhões de empregos, especialmente públicos. Assim, além do crescimento econômico - que foi um pressuposto e, ao mesmo tempo, foi retroalimentado por essa dinâmica - houve iniciativas políticas que proporcionaram incorporar milhões de trabalhadores (as) em ocupações e, ao mesmo tempo, garantir um amplo sistema de proteção social. Essa perspectiva se altera com o avanço do neoliberalismo. Para Federici (2019), no processo de globalização e liberalização da economia mundial, as mulheres compensaram a deterioração das condições econômicas, por meio dos cortes orçamentários, assumindo o provimento das famílias; um segundo aspecto diz respeito ao processo de mudanças no mercado de trabalho com as novas formas de trabalho informal, do trabalho em domicílio, estratégia amplamente utilizada pelos setores empresariais fixando as mulheres ao trabalho doméstico sob a ilusão de reconciliar a obtenção de uma renda com o cuidado de sua família; o terceiro aspecto trata da permanência das hierarquias de gênero e a violência contra as mulheres. Recentemente, no período sob-hegemonia do neoliberalismo as respostas políticas foram em outra direção, com reformas que ampliaram a desproteção social e que objetivaram deixar os indivíduos em uma situação de maior vulnerabilidade para submetêlos à concorrência do mercado. Ou seja, não houve redução da jornada geral do trabalho. A redução, segundo dados da OIT, ocorreu pelo avanço de contratos mais precários, tais como o por tempo parcial. Como está ficando evidente, inclusive para os organismos multilaterais, não haverá emprego ou ocupação para todos os disponíveis a trabalhar, a nova solução que Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 313 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira aparece é a instituição de renda básica universal para os excluídos do mercado de trabalho. É um avanço, mas totalmente insuficiente para enfrentar os problemas estruturais do excedente de força de trabalho e também porque não oferece às pessoas uma perspectiva de vida e de realização humana. No caso brasileiro, até houve uma pequena redução do tempo médio das horas trabalhadas nos últimos 40 anos, mas totalmente insuficiente, dados os avanços tecnológicos e ganhos de produtividade. Assim como, também de forma tardia, houve o crescimento do emprego público no período em análise, mas totalmente insuficiente para fazer frente às necessidades da sociedade e de enfrentar o problema do desemprego, pois ainda temos uma proporção menor de funcionários públicos do que os países que construíram um amplo sistema de políticas sociais. Por outro lado, é ainda lenta, apesar de avanços importantes nos anos 2000, a retirada de crianças e adolescentes do mercado de trabalho. Por último, o processo de incorporação dos trabalhadores no consumo é débil, como mostram os indicadores de desigualdade e pobreza. Ao mesmo tempo, as experiências brasileiras recentes, especialmente de 2004 a 2014, mostraram que a incorporação no consumo tem ainda um efeito bastante importante na geração de postos de trabalho. Enfim, o Brasil não conseguiu alcançar uma organização mais robusta do seu mercado de trabalho ao longo de sua trajetória histórica. Apesar de avanços em alguns momentos, manteve-se o problema do excedente estrutural de força de trabalho e uma desestruturação do mercado de trabalho que, se explicada em primeiro lugar pelas opções políticas, e não deve ser entendida como resultante de determinismos tecnológicos ou de imperativos incontornáveis colocados a partir do centro do capitalismo. O presente artigo, em síntese - sem desconsiderar que ocorreram profundas mudanças na forma de produção de bens e serviços, com importantes inovações tecnológicas e organizacionais, com alteração no modo de vida e de valores das pessoas, das estruturas familiares e demográficas - procura apontar para a necessidade de repensar a agenda do trabalho, pois, apesar do processo de acumulação capitalista depender de um volume cada vez menor de trabalho, que continua ocupando centralidade na vida social do século XXI. Logo, sem enfrentar os problemas relacionados ao mundo do trabalho, dificilmente será possível construir uma sociedade menos desigual e civilizada, em que as pessoas possam viver a vida em todas as suas dimensões e que o trabalho socialmente relevante seja para Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 314 Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas | José Dari Krein, Marcelo Manzano e Marilane Teixeira atender às necessidades da coletividade, inclusive em harmonia para preservação ecológica do nosso planeta, e uma fonte de realização pessoal. REFERÊNCIAS ABÍLIO, L.C; MACHADO, R. Uberização traz ao debate a relação entre precarização do trabalho e tecnologia. IHU On-Line, n. 503, ano XVII, p.20-28, 2017. BALTAR, P. E. A. O mercado de trabalho no Brasil dos anos 90. Tese (Livre Docência em Economia) – Unicamp, Campinas, 2003. BARBOSA DE OLIVEIRA, C. A. Formação do mercado de trabalho no Brasil. In: OLIVEIRA, M. A. (Org.) 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E-mail: marmanzo@gmail.com Marilane Teixeira Pesquisadora do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho)/IE da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: mari@uol.com.br Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 293-317, maio/ago. 2022. 317