O Futuro em Aberto
Maria Manuel Vieira (organizadora)
O FUTURO EM ABERTO
LISBOA, 2015
© Maria Manuel Vieira (organizadora), 2015
Maria Manuel Vieira (organizadora)
O Futuro em Aberto
Primeira edição: dezembro de 2015
Tiragem: 300 exemplares
ISBN: 978-989-8536-48-8
Depósito legal:
Composição em carateres Palatino, corpo 10
Conceção gráfica e composição: Lina Cardoso
Capa: Lina Cardoso
Desenho da capa: Mafalda A. Beirante
Revisão de texto: Manuel Coelho
Impressão e acabamentos: Realbase
Este livro foi objeto de avaliação científica
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa,
de acordo com a legislação em vigor, por Editora Mundos Sociais
Editora Mundos Sociais, CIES, ISCTE-IUL, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa
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Site: http://mundossociais.com
Índice
Índice de figuras e quadros....................................................................................
Notas sobre os autores ............................................................................................
vii
ix
Apresentação .............................................................................................................
Maria Manuel Vieira
1
Parte I | Enquadramento institucional
1
2
Itinerários formativos. Possibilidades e limites no ensino
secundário ........................................................................................................
Ana Bela Andrade e Ana Maria Ribeiro
17
Da orientação profissional à orientação vocacional. Diferentes
conceções no ensino secundário português ..............................................
Alexandra Raimundo
41
Parte II | Nos bastidores da orientação
3
4
5
Jovens e escolhas vocacionais. O futuro em aberto nos magazines
informativos portugueses (2000-2007)........................................................
Cristina Ponte
63
A arte de fazer a medida. O julgamento dos professores
em contextos de avaliação escolar ..............................................................
José Resende e Pedro Caetano
95
O que os orientadores fazem com os alunos? O trabalho
de preparação das competências para uma carreira de escolhas .......... 129
Bruno Dionísio
v
vi
6
O FUTURO EM ABERTO
Pais desorientados? O apoio à escolha vocacional dos filhos
em contextos de incerteza ............................................................................ 155
Maria Manuel Vieira
Parte III | As escolhas como “prova” — apoios e riscos
7
Percursos plurais e modalidades de sucesso. Tempos institucionais
e tempos biográficos ...................................................................................... 177
Maria Manuel Vieira, Lia Pappámikail e Cátia Nunes
8
A autonomia sob influência. Processos e suportes para a escolha....... 199
Benedita Portugal e Melo, Maria Manuel Vieira, Lia Pappámikail e Cátia Nunes
9
À procura de rumo. Incertezas e riscos ..................................................... 227
Lia Pappámikail, Maria Manuel Vieira e Cátia Nunes
Índice de figuras e quadros
Figuras
7.1
7.2
7.3
7.4
7.5
7.6
7.7
7.8
8.1
8.2
8.3
8.4
8.5
9.1
9.2
9.3
Tipologia de percursos escolares ..................................................................
Modelo tipológico de percursos escolares — 10.º e 12.º anos (%)...........
Tipos de percurso (10.º e 12.º anos), por sexo (%)......................................
Tipo de percurso, por tipo de curso (10.º ano) (%) ...................................
Tipo de percurso, por tipo de curso (12.ºano) (%) .....................................
Tipos de percurso por escolaridade mais elevada dos pais (%)..............
Fatores, valores e contextos determinantes das escolhas, por tipo
de percurso (médias) ......................................................................................
Fatores, valores e contextos determinantes das escolhas, por tipo
de curso (médias) ............................................................................................
Mundo escolar como fonte de informação, por tipos de percurso
(professores e psicólogos/orientadores escolares) .....................................
Família como fonte de informação, por tipos de percurso
(pai, mãe, irmãos e outros familiares)..........................................................
Amigos como fonte de informação, por tipos de percurso .....................
Internet como fonte de informação, por tipos de percurso......................
Média tradicionais como fonte de informação, por tipos de percurso
(televisão, jornais e revistas) .........................................................................
Graus de certeza em relação ao futuro, por tipo de percurso (médias).
Graus de certeza em relação ao futuro, por ano de curso (médias) ......
Graus de certeza em relação ao futuro, por tipo de curso (médias) ......
181
183
185
185
186
187
188
191
217
218
219
220
220
233
239
239
Quadros
3.1
3.2
7.1
Peças e sua distribuição (2000-2008) ............................................................ 71
Títulos e focos das peças em contraste (2000-2008) ................................... 81
Preditores de mudança escolar e vocacional (regressão logística) ......... 192
vii
viii
8.1
8.2
9.1
O FUTURO EM ABERTO
Fontes de informação utilizadas pelos alunos para escolha do curso ... 202
Grau de importância atribuída pelos alunos às fontes de informação
utilizadas (%) ................................................................................................... 204
Preditores de graus de certeza em relação ao futuro; regressão linear
múltipla (método Enter block by block) ......................................................... 235
Notas sobre os autores
Alexandra Raimundo é psicóloga e bolseira de doutoramento em Sociologia.
Ana Bela Andrade é socióloga e docente do ensino secundário.
Ana Maria Ribeiro é socióloga e docente do ensino secundário.
Benedita Portugal e Melo é doutorada em Sociologia, docente no Instituto de
Educação da Universidade de Lisboa e investigadora na Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação do mesmo Instituto
(UIDEF-ULisboa).
Bruno Dionísio é doutorado em Sociologia, docente no Instituto Politécnico de
Portalegre e investigador no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da
Universidade Nova de Lisboa (CICS-Nova).
Cátia Nunes é psicóloga social e técnica superior no Instituto Nacional de
Estatística.
Cristina Ponte é doutorada em Ciências da Comunicação, docente na Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigadora no CICS-Nova.
José Manuel Resende é doutorado em Sociologia, docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigador no
CICS-Nova.
Lia Pappámikail é doutorada em Sociologia, docente no Instituto Politécnico de
Santarém e investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa (ICS-ULisboa).
Maria Manuel Vieira é doutorada em Sociologia, investigadora no ICS-ULisboa e
coordenadora do Observatório Permanente da Juventude (OPJ).
Pedro Caetano é doutorado em Sociologia, docente do ensino secundário e investigador no CICS-Nova.
ix
Apresentação
Maria Manuel Vieira
O livro que agora se apresenta divulga o conjunto dos resultados de um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia desenvolvido no Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa entre fevereiro de 2008 e dezembro de
2010.1 Embora alguns produtos preliminares desta pesquisa tenham já sido objeto
de divulgação pública em encontros científicos ou em revistas da especialidade, reúne-se agora nesta publicação o roteiro integral de questões que nele foram trabalhadas.2 Pretende-se assim colocar ao serviço de um público mais vasto, que não o
meramente académico, os resultados de uma pesquisa realizada com recursos
públicos, cumprindo um dos desígnios maiores da atividade científica — a responsabilidade social de tornar acessível ao grande público os seus produtos,
proporcionando-lhe os instrumentos para uma ação informada. Mas, com esta publicação, ambiciona-se também potenciar o debate alargado sobre o sistema de ensino na contemporaneidade e os processos de individuação que ele promove — por
via de uma escolha vocacional (obrigatória) onde se projeta (desejavelmente) um
futuro.
O projeto “O futuro em aberto: incertezas e riscos nas escolhas escolares” nasce de uma perplexidade e ancora-se na dinâmica de um coletivo.
Comecemos pela perplexidade, ou seja, pela questão de partida. Num estudo
anterior em que participámos3 visando caracterizar e explicar a construção de percursos escolares e de inserção de jovens no mercado de trabalho, fomos confrontadas com um dado particularmente surpreendente e estruturante das respostas
então obtidas na pesquisa empírica. O inquérito por questionário — uma das
1
2
3
Projeto justamente intitulado “O futuro em aberto: incertezas e riscos nas escolhas escolares”
(projeto FCT n.º PTDC/ CED/ 67590/2006), coordenado por Maria Manuel Vieira.
Os autores agradecem a cuidadosa revisão crítica elaborada pelo(a) referee da editora Mundos
Sociais à versão manuscrita da obra e os contributos dados para a melhoria do texto agora apresentado.
O projeto “Percursos de inserção no mercado de trabalho, família e escola: novos cenários e outras dinâmicas” (projeto PICS/SOC/50013/2003), financiado pela FCT, em protocolo com o Departamento de Estudos, Estatísticas e Planeamento do Ministério da Segurança Social e do
Trabalho, e que decorreu no ICS sob coordenação de Ana Nunes de Almeida.
1
2
O FUTURO EM ABERTO
técnicas utilizadas nesse estudo — incidindo sobre um conjunto de jovens, rapazes
e raparigas, estudantes do 3.º ciclo do ensino básico e do ensino secundário de escolas públicas do país, devolvia-nos uma constante, na resposta à pergunta “Se sim
[pretendes continuar a estudar após o 12.º ano] que curso pretendes seguir depois
do secundário?”: era ela a significativa proporção de “indecisos” entre os inquiridos do ensino secundário.
Este veio a revelar-se para nós um paradoxo interessante: jovens que realizam
uma escolha à entrada do secundário (prosseguir estudos numa dada via e num
dado curso), mas que não sabem o que fazer com ela. A indeterminação e a incerteza parecem, pois, estar particularmente presentes entre alguns dos jovens do ensino secundário.
Ora, esta incerteza de caminhos — pelo menos para uma parte dos alunos —
não deixa, por sua vez, de interpelar a questão do sucesso escolar: se não se sabe o
que escolher, tal significa então que fica em aberto, por parte do aluno, a possibilidade de exploração de alternativas através de tentativa e erro (ou seja, eventualmente também através da experiência do atraso escolar), até à clarificação de um
projeto vocacional e à descoberta de um lugar no sistema educativo. No contexto
de uma escolaridade longa obrigatória, e onde cabem múltiplas possibilidades vocacionais, este é um processo que se afigura complexo.
Com efeito, em agosto de 2009 é publicada legislação que determina a obrigatoriedade de permanência no sistema de ensino até aos 18 anos de idade, ou seja, a
idade padrão de conclusão do ensino secundário. Objetivo debatido há algum tempo no contexto português, em linha com os padrões de escolaridade atingidos nos
restantes países europeus, este facto traduz mais do que uma mera ambição política ou meta de desenvolvimento, exprimindo antes uma tendência geral que vem
afetando profundamente os regimes de individuação nas sociedades contemporâneas desde há umas décadas (Martuccelli, 2006, 2010). Com efeito, a obrigação de
frequentar a escola por cada vez mais tempo transformou a escolarização numa
parte substancial das biografias.
As biografias (Beck, 1992), os seus tempos e transições (Pais e Ferreira, 2010)
têm acrescidamente como referentes os espaços institucionalizados em que decorre o curso de vida nas sociedades contemporâneas — como a entrada e a saída
de cada um dos ciclos do sistema escolar, justamente. Neste caso, pode-se dizer
que a individuação dos adolescentes tem como cenário, em grande medida, a escola (Singly, 2006) e exprime-se (também mas não só) através de diversas opções
escolares (Breviglieri, 2007). Esta transformação nos regimes de individuação é
especialmente visível em Portugal, onde os padrões de escolaridade se têm revelado cronicamente débeis, por comparação com os apresentados pela generalidade dos países europeus (Martins, 2012). Hoje, por contraste, a maioria dos
adolescentes completa os nove anos do ensino básico e prossegue os seus estudos
no ensino secundário (73,6% dos jovens entre os 15 e os 17 anos encontravam-se
matriculados neste nível de ensino, em 2013), o que representa um enorme salto
geracional em termos de experiência escolar e uma mudança profunda nas possibilidades de futuro ao seu alcance, agora frequentemente definidas em termos
“escolares”.
APRESENTAÇÃO
3
Apesar de a frequência do ensino secundário ser uma experiência que cada
vez mais jovens vivenciam, o que inevitavelmente contribui para a sua normalização, não existe propriamente uma continuidade linear entre o ensino básico e o secundário, em virtude de este ciclo educativo funcionar de acordo com uma lógica
muito diversa daquela que regula o ciclo que o precede (mais uniforme, generalista, quase universal). O ensino secundário assenta, com efeito, numa especialização
dos saberes, o que se traduz num espetro mais ou menos largo de opções vocacionais, e numa orientação mais precisa dos percursos, ora para o prosseguimento de
estudos, de componente científico-humanística, ora para uma mais rápida inserção no mercado de trabalho, de componente tecnológico-profissional.
Isto significa que no final do ensino básico percursos feitos num currículo geral e multidisciplinar desembocam num “delta” de opções que obrigam o aluno a
definir um rumo vocacional, se for sua intenção chegar ao “mar” (do ensino superior ou do mercado de trabalho, onde se chega por outras vias, é preciso não esquecer). Para esta discussão importa chamar a atenção para o facto de à entrada do
secundário, isto é, numa fase ainda precoce do seu ciclo de vida, os estudantes, no
caso de desejarem prosseguir os seus estudos, serem “convidados” a formular uma
escolha, idealmente autónoma e livre de qualquer constrangimento institucional.
É justamente o protagonismo atribuído ao aluno no processo de definição do
seu percurso na transição para o secundário que, aliás, confere alguma singularidade ao sistema de ensino português, pois são vários os contextos europeus em que
a liberdade de escolha é fortemente sancionada por constrangimentos institucionais.4
As temporalidades institucionais que regulam as trajetórias escolares em
Portugal impõem, portanto, calendários de escolha aos alunos. Estes são compelidos a tomar decisões quanto ao seu percurso vocacional e a ser responsáveis pelas
suas consequências, independentemente da sua vontade e sentimentos de certeza e
segurança. É nesta medida que é legítimo afirmar que as temporalidades institucionais, com os calendários, ritmos e cadências que os caracterizam, moldam, até certo ponto, as biografias e os futuros possíveis.
Com efeito, são precisamente argumentos como este que levam autores como
Martuccelli (2006) ou Breviglieri (2007) a sublinhar que a individuação se desenrola numa sucessão de provas cujo resultado decorre das escolhas feitas e das
decisões tomadas (num espaço de liberdade amplificado). As provas, tal como
Martuccelli as define,
são um conjunto diversificado de desafios históricos, socialmente produzidos e desigualmente distribuídos, com que os indivíduos estão constrangidos a lidar ao longo
do seu percurso de vida. Elas são o resultado de constrangimentos estruturais e institucionais, embora diversas de acordo com as trajetórias e as posições sociais. (Martuccelli, 2006: 10)
4
Consultar, a este propósito, http://eacea.ec.europa.eu/education/eurydice/index_en.php (consultado a 30/08/2015).
4
O FUTURO EM ABERTO
Isto significa que as provas “promovem uma conceção de indivíduo como um ator que
tem de lidar com os problemas colocados pela vida social” (Martuccelli, 2006: 12).
De facto, apesar de em todas as sociedades os indivíduos serem forçados a lidar com um número considerável de provas, nas sociedades contemporâneas as
próprias provas tornaram-se parte da perceção que um indivíduo tem de si próprio
(Martuccelli, 2006, 2010), como tão bem demonstra a crescente centralidade da escola enquanto pivô narrativo das biografias juvenis. E este tipo de fenómenos não
deixa de se dever ao caráter crescentemente institucionalizado do curso de vida —
os padrões biográficos são moldados pelas instituições (educação, trabalho, sistemas de proteção social) que confrontam os indivíduos com formas públicas de
aferição (de competências, performances, virtudes) com vista à obtenção de reconhecimento social (Heinz e Kruger, 2001).
Ao constituir-se elemento central de uma prova biográfica no quadro de um
processo de individuação em marcha, o projeto que os jovens têm de construir está
longe de ser uma tarefa simples, pois tem de ser desenhado num dado tempo e
num espaço, amplificado e desdobrado em inúmeras opções oferecidas aos alunos
pelo sistema (Maroy, 2002). Mais, a análise do percurso do próprio sistema de ensino português revela a enorme volatilidade, instabilidade e opacidade da oferta escolar,5 agravadas pelo facto de as ofertas estarem longe de ser universais, mas
serem desigualmente distribuídas pelo território nacional. Só por esta razão, questionando o ideário da escolha vocacional livre e autónoma dos alunos, se conclui
que as escolhas são, na verdade, fortemente constrangidas, à partida: quanto mais
reduzido o número de escolas e de alunos num dado território, menos cursos são
oferecidos — há um número mínimo de alunos para se poder abrir uma opção/turma — tendo estes que optar pela oferta dominante… ou frequentar uma escola
mais longínqua, suportando os custos associados.
Ainda assim, e apesar das complexidades e constrangimentos, continuamos
a estar perante um momento crítico de escolha e decisão para o aluno, o que reveste
esta passagem do básico para o secundário de uma enorme importância, quer para
os percursos escolares quer para as trajetórias de vida como um todo. E isto pode
ser tão ou mais problemático quanto o adolescente, que é “forçado” a escolher, está
mergulhado num duplo processo de crescimento e amadurecimento (Breviglieri,
2007). Exibirá, em muitos casos, uma identidade ainda muito provisória (hesitante
ou dubitativa são outros dos termos a que Breviglieri eficazmente recorre para dar
conta das vulnerabilidades adolescentes) quando tem de enquadrar a sua escolha
num projeto de vida que dê forma e sentido àquilo que vai estudar, isto é, um projeto que vá de alguma forma ao encontro da obrigação (normativa) de buscar a mais
plena realização de si (Taylor, 2009).
Com efeito, os processos de individuação estão hoje mais do que nunca
ancorados ao exercício da autonomia. À medida que os valores do individualismo
se intensificam nas sociedades ocidentais contemporâneas, ao ponto de se poder
falar de um singularismo societal (Martuccelli, 2006, 2010), a autonomia, definida
5
Como o capítulo 1 deste livro o comprova.
APRESENTAÇÃO
5
primariamente como autorregulação, torna-se não só um ideal a cumprir — e uma
norma educativa (Dubet, 2002; Singly, 2000, 2004) — mas também um processo que
os indivíduos são convidados a experienciar (Bauman, 2001, 2007; Pappámikail,
2009). Na paisagem ética da modernidade, a crescente amplitude dos espaços de liberdade de ação e circulação dos indivíduos e a multiplicidade de esferas sociais de
existência nas quais têm de interagir justificam, efetivamente, a importância de
provar, através do seu exercício, as competências necessárias à autodeterminação,
isto é, as capacidades que permitem aos indivíduos responder eficazmente às
questões essenciais: Quem sou eu? Quem quero ser?
Mas, como habilmente demonstra Honneth (2009 [1992]), o exercício da autonomia articula-se profundamente com as dinâmicas de reconhecimento, pelo que
estes processos acarretam algumas ambiguidades, nomeadamente aquelas que
gravitam em torno de um incontornável paradoxo: de que forma as temporalidades institucionais (inscritas nas normas que regulam o sistema de ensino, por
exemplo) se articulam com os tempos de construção de si, do desenvolvimento de
competências, virtudes, identidades, isto é, como se ligam as temporalidades institucionais com as mais propriamente biográficas?
As temporalidades institucionais, na sua concretização ideal, assentam num
percurso linear, sem falhas, hesitações ou intermitências (retenções, reprovações,
abandonos, portanto). As estruturas dos sistemas de educação modernos plasmam, ainda hoje, um uso do tempo enquanto dimensão socializadora, característico duma modernidade organizada, vigente, grosso modo, até à década de 70 do
século passado. Nesta o mecanismo de “diferimento de recompensas” constituía a
base do “processo moderno de socialização” escolar (Leccardi, 2005: 35): ciclos sequenciais relacionados com idades-padrão, trajetórias pré-determinadas e supostamente irreversíveis (Charbonneau, 2006) (e.g., opções não questionadas pelos
alunos), etapas que se atingem superando outras previstas na estrutura curricular
do curso, quando, e se, cumpridos determinados critérios. Este mecanismo, ao assumir uma conceção linear de tempo, conduziu ao adiamento da conversão do saber escolar em conhecimentos profissionais. Ao mesmo tempo, o sucesso escolar
permanece medido e aferido de acordo com este modelo. Isto significa que, de uma
perspetiva institucional, qualquer desvio desta norma — sequencial, linear e cumulativa — de trajetória escolar dos alunos é entendida como insucesso.
Ora, devendo a escolha escolar implicar o sujeito num projeto de vida entreveem-se algumas dificuldades, pois a busca de si, a construção de uma identidade
e a definição de um projeto mais ou menos provisório de futuro em que o jovem se
reveja e através do qual considere vir a realizar-se podem ocorrer a outros ritmos,
não necessariamente compatíveis com o calendário institucional imposto pelo sistema. Na verdade, não se deve incorrer no erro de isolar o aluno das outras esferas
da sua existência onde também se constrói e onde a experiência é regulada por outras injunções normativas tão ou mais prementes do que a estritamente escolar, que
é claramente orientada para o futuro, para a eficácia e para uma dada visão de sucesso. Os jovens em geral, e os adolescentes em particular, estão profundamente
envolvidos num processo de afirmação da sua própria condição juvenil, que implica simultaneamente uma ancoragem ao presente, habitualmente acompanhada
6
O FUTURO EM ABERTO
pela adoção de éticas de vida orientadas para a autenticidade, para a experimentação e para a celebração (do e no presente) de um hedonismo convivial, que emerge
como traço geracional (Pais, 1998; Ferreira, 2009). Com efeito, do ponto de vista
relacional, a centragem nos grupos de pares transforma a integração nas redes amicais numa missão em que muitos jovens se empenham, não raras vezes em detrimento do investimento no trabalho escolar (Jarvin, 2004; Pasquier, 2005; Pasquier,
Buzzi e Cavalli, 2008). Uma dupla ancoragem (ao presente e ao futuro), não raras
vezes associada à dúvida e à hesitação, que pode ser difícil de gerir.
Assim, manter o futuro em aberto, suspender o tempo (Charbonneau, 2006)
das escolhas definitivas, mesmo correndo o risco de possíveis reorientações
vocacionais que impliquem retrocessos no percurso, pode constituir o desígnio
de muitos. Para os bons alunos, a ambição é permanecer na escola com bons desempenhos para manter ampliadas as margens de escolha (Dubet e Martuccelli,
1996), remetendo para mais tarde (para o ensino superior) um compromisso definitivo com uma opção vocacional. Depois, para todos aqueles (com melhores
ou piores desempenhos) que ainda buscam a sua “verdadeira” vocação, a não linearidade das trajetórias escolares, ao invés de ser interpretada como insucesso, pode antes significar a condição necessária para uma construção mais
bem-sucedida da sua autonomia individual. Afinal, quem tem melhor sucesso?
O indivíduo capaz de “ser verdadeiro consigo mesmo” (Taylor, 2009: 30), de
procurar a sua autorrealização e perseguir os seus objetivos, não obstante um
percurso escolar sinuoso? Ou o sujeito com um percurso linear e aparentemente
bem-sucedido, mas que não se sente realizado nas suas escolhas (eventualmente mais “eficazes”, mas produtoras de angústias biográficas)?
Nesta perspetiva, a própria noção de sucesso parece, pois, poder ter várias interpretações possíveis, paradoxais, contraditórias, incompatíveis até. E passíveis,
portanto, de gerar tensões, mais ou menos acentuadas, na forma como se constroem percursos de vida, na escola, e através dela.
Em suma, mobilizando algumas das propostas teóricas da individuação
(Beck, 1992; Beck e Beck-Gernsheim, 2001; Giddens, 1994; Martuccelli, 2006, 2010),
a investigação aqui apresentada pretende examinar os processos — e a complexa
teia de protagonistas — que envolvem um conjunto de escolhas escolares e vocacionais que o sistema de ensino obriga os alunos a fazer, num dado momento do
seu percurso académico (no final do ensino básico e, posteriormente, no término
do ensino secundário), e que representam um verdadeiro desafio biográfico com
inequívocas consequências escolares e institucionais, com o qual os jovens-adolescentes têm de lidar. Não obstante, esse desafio está longe de ser enfrentado de forma singular, mas ancora-se em suportes (desde logo, a família, mas também a
instituição escolar, o grupo de pares, e outras plataformas de comunicação) que podem revelar-se decisivos, como fontes de informação, de aconselhamento, de orientação, no enfrentamento bem-sucedido desta prova escolar. Nesse sentido, este
estudo não deixa de reconhecer efeitos potencialmente desiguais que os constrangimentos sociais exercem sobre as biografias dos jovens — o que será equacionado,
a uma escala mais fina, em vários dos capítulos desta obra. Contudo, importa clarificar que esta pesquisa não tem como foco primordial as desigualdades escolares
APRESENTAÇÃO
7
— sobre as quais, aliás, a sociologia portuguesa tem sido particularmente fecunda6
— mas sim as competências dos atores — apesar das desigualdades que sobre eles impendem. Esta constitui, a nosso ver, uma abordagem pouco explorada no panorama da análise sociológica de fenómenos educativos, e representará porventura o
contributo mais inovador desta obra.
O desenho metodológico deste estudo teve em conta a pluralidade de questões e perspetivas equacionadas, pelo que envolveu uma estratégia metodológica
mista (Brannen, 1992), ancorada em uma combinação de procedimentos de recolha
de informação de tipo extensivo e intensivo — e que se revelou uma mais-valia do
estudo.
Neste caso, optou-se por uma metodologia duplamente cruzada, assente em
dois domínios analíticos estruturantes. Por um lado, foram mobilizadas diversas
escalas de observação e ensaiada a sua articulação — o “trânsito de escalas”, nas
palavras de Brandão (2007). Por outro lado, foram inquiridos diferentes atores
envolvidos no processo de escolha vocacional, ainda que nele diferentemente
posicionados.
De começo, considerou-se relevante mapear os contextos institucionais que
enquadram o processo de escolha escolar — o sistema de ensino e os itinerários formativos oferecidos, bem como o dispositivo de orientação vocacional concebido
para auxiliar os alunos na tomada de decisão quanto à via escolar a seguir. Nesse
sentido, e num sobrevoo à escala macro, procedeu-se à análise documental de um
corpus previamente recolhido de legislação referente às ofertas de percursos escolares disponíveis no ensino secundário e aos serviços de psicologia e orientação nas
escolas.
Por sua vez, outra dimensão incontornável da pesquisa consistiu em aceder ao
trabalho realizado por alguns dos suportes estruturadores do processo de orientação e escolha dos jovens alunos — os professores, os orientadores, os encarregados
de educação e os média. Neste caso, as escalas e as abordagens foram diferenciadas,
pretendendo-se ensaiar e explorar técnicas distintas julgadas mais adequadas aos
objetivos decorrentes da mobilização de cada um dos suportes. Assim, recorreu-se à
técnica documental para inventariar e analisar as temáticas agendadas pelos média
no que concerne às escolhas profissionais dos jovens. Mais próxima de uma escala
micro propiciadora de uma densidade analítica acrescida, a observação direta de reuniões de conselhos de turma afigurou-se aproximação privilegiada — e possível,
no contexto do projeto — ao trabalho de julgamento e, por isso também, de orientação dos alunos protagonizada pelos professores nas escolas; por seu turno, a entrevista aprofundada — e a sua posterior análise categorial temática — foi a técnica
utilizada para conhecer, com algum grau de aprofundamento, o trabalho de orientação e de apoio realizado quer por orientadores escolares, quer pelas famílias.
Não obstante, tendo em conta o objeto deste estudo — o processo de construção de um percurso escolar e de uma orientação vocacional enquanto “prova”
6
Veja-se, sem qualquer pretensão de exaustividade, alguns dos trabalhos recentes sobre o tema:
Diogo e Diogo (2013), Lopes (2012), Martins (2012), Seabra (2010), Sebastião (2009), Torres e Palhares (2014).
8
O FUTURO EM ABERTO
biográfica — o seu eixo analítico central ancora-se, previsivelmente, nas trajetórias
percorridas e na subjetividade dos jovens-alunos. Assim, foram desenvolvidas
duas estratégias metodológicas complementares. Num primeiro momento, foi lançado um inquérito por questionário a alunos de seis escolas secundárias públicas,
com o objetivo de reconstituir percursos escolares, apurar perfis sociais e académicos, identificar apoios e suportes mobilizados. Num segundo momento, procedeu-se a entrevistas individuais semidiretivas a alunos provenientes de três das
seis escolas do estudo, para captar a subjetividade dos atores acerca dos processos
que protagonizam.
A estrutura deste livro segue de perto tal desenho de pesquisa.
A primeira parte da obra — “Enquadramento instituciomal” — é dedicada à
análise dos contextos institucionais que enquadram o processo de escolha escolar.
Assim, para se entender os fundamentos da arquitetura geral do sistema de
ensino não superior português, o sentido das suas transformações recentes e os
constrangimentos institucionais da oferta escolar ao nível do ensino secundário,
Ana Bela Andrade e Ana Maria Ribeiro, no capítulo 1 — “Itinerários formativos:
possibilidades e limites no ensino secundário” —, procedem a uma extensiva recolha e análise documental do quadro legislativo produzido ao longo dos últimos 40
anos, e em particular da última década, e analisam as justificações enunciadas pelo
legislador para a introdução de alterações na oferta escolar. Uma das tendências
observadas nos últimos anos prende-se com o elevado ritmo de produção legislativa e a consequente rápida obsolescência das regras do jogo escolar, o que suscita
uma opacidade acrescida do sistema e torna mais complexa a tarefa de navegação
no seu interior.
Ainda com base na análise documental, foi elaborada a recolha e análise de
um corpus de legislação educativa produzida a partir da década de 1970 sobre o
tema da orientação vocacional escolar e profissional. Pretende-se apurar, neste
caso, o enquadramento estatal que foi sendo dado ao conceito de orientação vocacional escolar e profissional, os modelos de práticas de orientação concebidos, bem
como as justificações avançadas para a criação nas escolas de ensino não superior
de serviços de psicologia e orientação (os SPO) e os desafios que no presente se colocam a estes. Tal é o objetivo do segundo capítulo deste livro, da autoria de Alexandra Raimundo: “Da orientação profissional à orientação vocacional: diferentes
conceções no ensino secundário português”.
A segunda parte da obra reúne um conjunto de contributos fundamentais
para aceder a alguns dos bastidores das escolhas realizadas pelos estudantes no
sistema de ensino. Na verdade, para além do enquadramento legal que define o
quadro das ofertas escolares e delimita perímetros de (im)possibilidades de opção,
o processo de produção de escolhas vocacionais envolve ainda direta ou indiretamente outros protagonistas que agem como elementos de informação e/ou de
seleção cruciais no desenrolar daquele processo. Os média, os professores e os profissionais da orientação constituem alguns destes protagonistas.
O terceiro capítulo desta obra analisa justamente o papel dos média no processo de escolha. Para apurar de que modo os média, em particular as revistas de
informação especializada, se podem constituir quer como fontes adicionais de
APRESENTAÇÃO
9
informação, orientação e aconselhamento para as escolhas vocacionais e profissionais que os jovens alunos são obrigados a fazer, quer, simultaneamente, como produtores e difusores de determinados modelos de referência juvenis, Cristina Ponte
colige e analisa um corpus de notícias constituído por peças jornalísticas com referência a jovens (15-35 anos), publicadas entre janeiro de 2000 e abril de 2008 em três
revistas de grande informação semanal dirigidas a públicos com perfis sociais distintos.7 As conclusões desta análise salientam: a escassez de peças sobre o tema,
ainda que se vislumbre algum ligeiro aumento nos anos mais recentes, associado
ao contexto de crise económica; a sua tematização preferencial em momentos mortos da agenda mediática; e um tipo de discurso dirigido sobretudo aos pais, como
contributo para um exercício de parentalidade mais informada.
A construção de um projeto de vida e, por isso, de um futuro (provisório),
passa hoje obrigatoriamente pela escola. As escolhas vocacionais e profissionais representam uma etapa da construção desse projeto, que se fabrica quotidianamente
no espaço escolar. Os professores são atores imprescindíveis no referido processo,
pois cabe-lhes a missão de julgar os alunos, emitindo um veredicto sobre o seu mérito escolar e, nessa medida, gerando um efeito de triagem na orientação escolar e
profissional a seguir.
A análise das formas e critérios de julgamento professoral a partir quer das atas
de reuniões para recurso de classificações acordadas, quer a partir da observação de
12 reuniões de conselho de turma para a atribuição de notas realizada numa das escolas públicas onde decorreu o trabalho empírico deste projeto constitui o cerne do
capítulo da autoria de José Resende e Pedro Caetano — “A arte de fazer a medida: o
julgamento dos professores em contextos de avaliação escolar”. Dele se conclui que
o processo de qualificação dos alunos, longe de ser um mero trabalho individual, revela-se (também) um trabalho de aproximações sucessivas realizado pelos professores num contexto de interação coletiva e sob um pano de fundo comparativo. E o seu
desfecho pode estar sujeito a recurso, por parte dos seres avaliados que se sentem injustiçados. Nesse sentido, para além do eventual questionamento da clássica operação de classificação dos alunos opondo os “alunos problema” aos “alunos sem
problemas”, o processo de qualificação destes, realizado pelos docentes, confronta-se hoje com incertezas acrescidas, uma vez que o contexto de escolarização massificada traz para a escola um maior número de casos de alunos com comportamentos
mais “híbridos”, potencialmente geradores de maior dificuldade em suscitar acordo
entre os docentes quanto à sua ordenação porque dificilmente encaixáveis nos modos tradicionais de categorização escolar.
Na escola portuguesa estão também hoje sediados outros atores dedicados ao
“trabalho sobre o outro” e, em particular, ao trabalho de orientação vocacional. São
eles os profissionais dos serviços de psicologia e orientação (SPO), em cujo leque
diversificado de funções se inscreve o aconselhamento e a orientação dos alunos no
final do ensino básico e, depois, ao longo do ensino secundário. O quinto capítulo
7
Uma primeira versão deste capítulo foi publicada em formato de artigo em revista especializada
(cf. Ponte, 2012).
10
O FUTURO EM ABERTO
desta coletânea — “O que os orientadores fazem com os alunos? O trabalho de preparação das competências para uma carreira de escolhas” — dedica-se a este tema.
O seu autor, Bruno Dionísio, interroga justamente o trabalho destes profissionais a
partir da análise de quatro entrevistas aprofundadas realizadas a técnicos de serviços de psicologia e orientação adstritos a algumas das escolas de proveniência dos
alunos inquiridos. Um dos maiores desafios deste trabalho parece ser, justamente,
manter o futuro dos orientados em aberto, ou seja, manter plurais as suas possibilidades de escolha. Com isso, as práticas de orientação poderão representar, para os
alunos, a introdução de novos ingredientes de incerteza no que antes pareciam ser
certezas.
A família é, sem dúvida, sede de outros bastidores da escolha escolar. Lugar
de interlocução mais ou menos intenso e quotidiano, o espaço doméstico constitui-se para a generalidade dos jovens adolescentes como âncora imprescindível
para amortecer as angústias da escolha. Em contexto de naturalização da trajetória
escolar como dimensão incontornável das biografias contemporâneas, os pais assumem uma nova faceta educativa: a de ser pais de alunos. Tal significa alimentar a
comunicação com a escola, exercer a monitorização das aprendizagens dos filhos e
orientá-los no seu percurso pelo sistema de ensino. Recorrendo à análise aprofundada de oito entrevistas realizadas a pais de alunos, Maria Manuel Vieira examina
no capítulo sexto — “Pais desorientados? O apoio à escolha vocacional dos filhos
em contextos de incerteza” — como se desenvolve a tarefa parental de apoio à escolha vocacional dos filhos, no contexto de maior democraticidade que hoje pauta as
relações intergeracionais e de acrescida incerteza relativamente aos cenários de futuro (profissional) e às transições da escola para o mundo do trabalho que afetam
particularmente os jovens na contemporaneidade.8
Estes domínios contextualizam mais ou menos significativamente o processo
de construção de projetos de futuro, mas estão longe de esgotar a compreensão dos
mecanismos de escolha e dos caminhos (mais ou menos turbulentos) de decisão
vocacional que os sustentam e que consubstanciam a “prova” escolar (Martuccelli,
2006). Tal constitui o objetivo central da terceira parte desta obra.
Para reconstituir as dinâmicas de escolha escolar e vocacional e apurar as
suas justificações, desta vez na perspetiva dos próprios protagonistas, a equipa de
investigação lançou em abril de 2008 um inquérito por questionário ao universo de
alunos a frequentar as turmas do 10.º e do 12.º ano do ensino secundário de seis escolas públicas socialmente contrastantes situadas em contextos territoriais distintos.9 Ao todo, foram inquiridos 1793 jovens, convidados a reconstituir as suas
trajetórias escolares passadas e presentes, as fontes de informação mobilizadas,
bem como o grau de importância das mesmas para a escolha à entrada no 10.º ano, e
ainda a identificação de fatores de incerteza nesse processo de escolha e uma projeção provisória relativamente ao seu futuro académico e profissional. A partir da
construção de uma base de dados (introdução da informação no programa SPSS,
8
Uma primeira versão deste capítulo foi publicada em formato de capítulo em e-book (cf. Vieira,
2013).
APRESENTAÇÃO
11
codificação de variáveis) e do tratamento estatístico desta informação, foram realizadas posteriormente entrevistas individuais aprofundadas — entre abril e junho
de 2009 — a 24 alunos (12 rapazes e 12 raparigas) de três das seis escolas da amostra
(oito entrevistas por escola), para aprofundar os processos em causa. A seleção do
grupo a entrevistar procurou assegurar a diversidade social dos entrevistados e
respetivas experiências escolares — associadas, também elas, aos constrangimentos da oferta escolar disponível a nível local. Da análise cruzada destes procedimentos metodológicos resultaram os três últimos capítulos do livro.
O capítulo sétimo — “Percursos plurais e modalidades de sucesso: tempos
institucionais e tempos biográficos” — visa identificar a pluralidade de percursos
escolares protagonizados pelos alunos inquiridos e, a propósito, interrogar a noção
(unidimensional) de sucesso escolar, confrontando-a com as temporalidades contrastantes que a consideração da individuação adolescente faz emergir: a temporalidade institucional, imposta pelo sistema escolar, e a temporalidade biográfica,
ancorada aos tempos de construção de si. Por outras palavras, este capítulo pretende questionar, a partir do ponto de vista dos estudantes, a perspetiva institucional
de definição do sucesso escolar. Como resultado, mais do que apenas os dois tipos
de percursos habitualmente considerados segundo a lógica linear da temporalidade escolar institucional — as carreiras focadas e as carreiras atrasadas — Lia Pappámikail, Maria Manuel Vieira e Cátia Nunes identificam um conjunto mais plural de
perfis de percursos escolares observáveis, que se encontram potencialmente associados à lógica mais sinuosa, ondulante, feita de exploração, reversibilidades e até
de ausência de rumo, da temporalidade biográfica (itinerários exploratórios e itinerários erráticos).10 Se os protagonistas de cada um destes quatro percursos escolares não se organizam ao acaso, evidenciando o peso que os constrangimentos
sociais exercem sobre a escolaridade, os dados sublinham também a margem de
capacitação de que, apesar de tudo, os jovens alunos dispõem para ultrapassar alguns dos determinismos que sobre eles impendem. A avaliação subjetiva que os
9
10
A escola A está localizada na cidade sede de um concelho rural alentejano, recruta alunos de diversas origens sociais, embora maioritariamente oriundos das classes média-baixa ou baixa, e
oferece um número limitado de cursos científico-humanísticos (CCH) e cursos tecnológicos ou
profissionais (CTP). A escola B situa-se num bairro residencial do centro da capital e a sua oferta
restringe-se aos CCH, visando o prosseguimento de estudos. A maioria dos seus alunos provém
de famílias de classes médias e altas. A escola C está instalada numa antiga escola industrial inserida num antigo bairro operário da capital, serve um público maioritariamente desfavorecido
e oferece apenas cursos tecnológicos e profissionais (CTP). A escola D inscreve-se no coração de
um bairro residencial “dormitório” de classe média e média baixa da periferia de Lisboa, embora nos últimos anos tenha vindo a recrutar também alunos oriundos de bairros de realojamento
social recentemente construídos nas imediações. A sua oferta abrange CCH e CTP. A escola E
constitui a única oferta de ensino secundário público num concelho em expansão residencial na
periferia norte da cidade de Lisboa, abarca alunos de várias proveniências sociais e apresenta
uma oferta alargada de cursos, tanto CCH como CTP. Por último, a escola F situa-se na cidade
sede de um concelho algarvio e, à imagem da escola E, por ser a única oferta de ensino secundário público da região, dispõe de uma gama diversificada de CCH e CTP e recruta alunos de variadas origens sociais.
Uma versão muito próxima deste capítulo foi publicada na revista Sociologia, Problemas e Práticas
(Vieira, Pappámikail e Nunes, 2012).
12
O FUTURO EM ABERTO
protagonistas fazem dos seus próprios percursos — passados e presentes — e da
sua projeção no futuro, termina este capítulo.
O capítulo seguinte — “A autonomia sob influência: processos e suportes
para a escolha” — dedica-se a explorar o processo de construção das escolhas vocacionais, desta vez colocando o foco nos recursos e atores mobilizados pelos jovens
alunos como apoio a esse processo. Com efeito, as escolhas que os alunos são obrigados a fazer no sistema de ensino não raras vezes lhes causam angústias, socorrendo-se os jovens de vários suportes — as redes familiar, amical e escolar — como
fonte de informação, aconselhamento e orientação. Assim, apesar da renúncia da
influência se evidenciar como argumento e como valor partilhado pelos alunos,
certo é que as suas opções se realizam no contexto de inter-relações sociais mais
vastas que aportam um suporte (informativo, mas também afetivo) crucial à ação.
Neste capítulo as autoras Benedita Portugal e Melo, Maria Manuel Vieira, Lia
Pappámikail e Cátia Nunes procuram em primeiro lugar identificar as fontes de informação utilizadas pelos alunos; aprofundar, depois, a relevância que cada uma
dessas fontes assume como suporte desse processo; e, por último, analisar eventuais declinações de mobilização desses apoios, tendo em conta os vários perfis de
percursos apurados no capítulo anterior.
O capítulo nono completa esta viagem à perspetiva dos jovens adolescentes.
Alcança-se, aqui, o núcleo central do questionamento que este projeto se propôs realizar, condensado no seu título: o debate sobre os conceitos de risco e de incerteza
associados às consequências das escolhas que os alunos são convidados a realizar
no sistema de ensino enquanto manifestação da sua projeção no futuro. Maria Manuel Vieira, Lia Pappámikail e Cátia Nunes examinam aqui o modo como os alunos
justificam as suas trajetórias escolares e opções vocacionais e como as articulam
com um dado futuro (ambicionado).11 Identificam-se dúvidas e (in)certezas quanto à possibilidade de prosseguir os estudos e atingir os objetivos desejados, e exploram-se as soluções avançadas pelos adolescentes como forma de lidar com tais
incertezas. Ainda que se verifiquem variações na forma como os alunos se projetam no futuro, expressão do peso diferencial dos constrangimentos sociais sobre as
trajetórias biográficas, a conclusão mais expressiva deste périplo é que, no que toca
a construção de projetos de futuro, a generalidade dos jovens alunos manifesta disposição para arriscar, apesar dos riscos — ainda que dentro de certos limites — por
forma a poder manter-se fiel a si próprio (aos seus gostos e sonhos).
As palavras finais de agradecimento dirigem-se aos fazedores desta obra.
Este projeto agregou um conjunto de investigadores — a maioria sociólogos — de
várias instituições,12 especialistas em domínios diversificados do saber e colaboradores ativos de um coletivo científico integrado numa linha de pesquisa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O seu encontro num fórum de
11
12
Este capítulo retoma e amplia alguns dos argumentos expostos na The Sociological Review
(Vieira, Pappámikail e Resende, 2013).
Graças a uma bolsa de investigação atribuída pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, a
equipa de projeto pôde contar ainda com o empenhado contributo da socióloga Alexandra Isabel Francisco Duarte na primeira fase empírica do estudo.
APRESENTAÇÃO
13
debate regular — um seminário mensal de discussão científica animado no ICS — e
a sua participação duradoura e empenhada propiciaram o amadurecimento de laços de confiança, promoveram um profícuo cruzamento de olhares e cimentaram
as questões que estão na origem deste projeto. A estimulante aventura de descoberta científica de que ora se dá conta não seria possível sem estes ingredientes.
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