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Livro - Circuito da Existência

2021, Editora FI

https://doi.org/10.22350/9786559172603
Circuito da Existência Direção Editorial Lucas Fontella Margoni Comitê Científico Prof. Dr. Ivanhoé Albuquerque Leal Universidade Federal do Ceará (UFC) Prof. Dr. Cícero Antônio Cavalcante Barroso Universidade Federal do Ceará (UFC) Prof. Dr. Anna Karynne da Silva Melo Universidade de Fortaleza (Unifor) Circuito da Existência Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista Rodrigo Benevides Barbosa Gomes Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/ Arte de Capa: Three Skulls - Paul Cézanne O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) GOMES, Rodrigo Benevides Barbosa Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista [recurso eletrônico] / Rodrigo Benevides Barbosa Gomes -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021. 145 p. ISBN - 978-65-5917-260-3 DOI - 10.22350/9786559172603 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. Merleau-Ponty; 2. Fenomenologia; 3. Francisco Varela; 4. Enativismo; I. Título. CDD: 100 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia 100 Qui ne croirait à nous voir composer toutes choses d'esprit et de corps que ce mélange-là nous serait bien compréhensible. C'est néanmoins la chose qu'on comprend le moins; l'homme est à lui-même le plus prodigieux objet de la nature, car il ne peut concevoir ce que c'est que corps et encore moins ce que c'est qu'esprit, et moins qu'aucune chose comment un corps peut être uni avec un esprit. C'est là le comble de ses difficultés et cependant c'est son propre être. Blaise Pascal Sumário Introdução 11 I 13 Corporeidade A) Da Forma e do Reflexo...................................................................................................................... 13 B) Do Físico ao Simbólico ...................................................................................................................... 28 C) Percepção e Intelecção ..................................................................................................................... 48 II 54 Temporalidade e Espacialidade A) Percepção e Lebenswelt .................................................................................................................... 54 B) Intencionalidade e Espacialidade ................................................................................................. 74 C) Intencionalidade e Temporalidade ........................................................................................... 100 III 109 Enativismo A) Representação e Cognição ........................................................................................................... 114 B) Auto-organização e Emergência.................................................................................................120 C) Enação ................................................................................................................................................... 126 Conclusão 142 Referências 143 Introdução Visando a superação da dicotomia entre res cogitans e res extensa, Merleau-Ponty aponta a corporeidade como lócus da consciência. Ao apontar a motricidade como intencionalidade originária do organismo, ela se torna a categoria central para a compreensão da cognição humana e de suas patologias. A rejeição da descrição da intencionalidade como atitude proposicional leva Merleau-Ponty a argumentar que qualquer representação pressupõe uma intencionalidade antepredicativa fundada na corporeidade. Dessa forma, é na percepção primária da intencionalidade operante - entendida como a relação motriz pré-reflexiva de auto-regulação vital do organismo - que Merleau-Ponty consegue pensar um direcionamento para a elucidação da relação mente-corpo-ambiente, formulando uma intencionalidade primordial não-dualista, não-reducionista e não-representacional; uma intencionalidade pensada como uma corporeidade que, ao desvelar seu entorno de forma pré-reflexiva, consegue valorar incessantemente seu campo fenomenológico. Pensar a consciência como corporeidade, como veremos, encontra reverberação na ciência cognitiva, um campo interdisciplinar contemporâneo que inclui áreas como psicologia, linguística, inteligência artificial, neurociência e filosofia. A ciência cognitiva ainda possui paradigmas em disputa pela consolidação de uma abordagem homogênea, porém, em seus primórdios, o cognitivismo era o “núcleo da ciência cognitiva”.1 O modelo cognitivista ainda persiste como uma das hipóteses basilares, entretanto, com o advento do conexionismo e do enativismo, é possível afirmar que chegamos a um estágio pós-cognitivista. De qualquer maneira, a disputa 1 VARELA, THOMPSON & ROSCH. A Mente Corpórea: Ciência Cognitiva e Experiência Humana, 1991, p. 29. 12 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista persiste e nosso intuito aqui consiste em demonstrar de que modo a filosofia de Merleau-Ponty é relevante na elaboração do paradigma enativista. Para tanto, a obra é dividida em três capítulos: o capítulo I demonstra como Merleau-Ponty articula os pares comportamento-estímulo e natureza-cultura em A Estrutura do Comportamento (1942); o capítulo II examina as relações entre intencionalidade, espacialidade e temporalidade assim descritas na Fenomenologia da Percepção (1945); finalmente, o capítulo III demonstra a continuidade da obra de Merleau-Ponty no contexto da ciência cognitiva a partir de A Mente Corpórea: Ciência Cognitiva e Experiência Humana (1991) de Varela, Thompson & Rosch. I Corporeidade Merleau-Ponty argumenta que o comportamento não pode ser concebido como um reflexo simples de estímulos exteriores ao organismo. Explicá-lo a partir dos princípios da fenomenologia husserliana e da Gestalttheorie - conceituando-o como recorte perceptivo pré-reflexivo que estrutura e atribui valoração aos inputs que constituem o estímulo - é o objetivo d’A Estrutura do Comportamento1 (1942). A partir de uma crítica a concepções tanto de ordem empirista quanto intelectualista ou racionalista, Merleau-Ponty visa atingir uma aplicação ampliada da noção de Gestalt. Demonstraremos tal percurso a seguir. A) Da Forma e do Reflexo Ao explicar a causa de um comportamento, a perspectiva de um materialismo reducionista nos leva à decomposição da res extensa. Este fisiologismo atomista da teoria clássica do reflexo nos diz que o funcionamento nervoso mais simples nada mais é do que o acionamento de um número muito grande de circuitos autônomos [...] É a operação de um agente físico ou químico definido sobre um receptor localmente definido, que provoca, por um trajeto definido, uma resposta definida [...] Os caracteres do indivíduo orgânico - a propriedade que ele tem de estabelecer, por si mesmo, 1 Apesar de já apontar uma influência da psicanálise em seu pensamento, uma maior incorporação de Freud dar-seá apenas na Fenomenologia da Percepção, como veremos no capítulo subsequente. Por ora, o ponto crucial do presente capítulo é demonstrar que “A psicologia da forma praticou um gênero de reflexão do qual a fenomenologia de Husserl fornece a teoria” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 620). É na Gestalttheorie que Merleau-Ponty enxerga um conjunto de teses e experimentos de validade universal que podem servir como fundamentação para uma ciência da psicologia: “É isso [a regularidade das Gestalten captadas pela percepção de qualquer ser humano em estado cognitivo normal] que faz com que, como a Gestalttheorie o mostrou, para mim existam formas privilegiadas, que também o são para todos os outros homens, e que podem dar lugar a uma ciência psicológica e a leis rigorosas” (Ibid., p. 590). 14 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista as condições de seu equilíbrio e, portanto, de criar um meio para si - seriam apenas o resultado macroscópico de uma multiplicidade de ações elementares idênticas às dos sistemas físicos [...] Se considerarmos o comportamento objetivamente, isto é, instante por instante e no quadro dos estímulos reais que o desencadeiam, nunca teremos mais do que movimentos particulares respondendo a excitações particulares; qualquer outra linguagem seria “antropomórfica”.2 Em outras palavras, o estímulo que efetiva a resposta comportamental pode ser traçado a causas antecedentes que condicionam o organismo de forma invariável por conta da passividade corporal “que se limita a executar o que lhe é prescrito pelo lugar da excitação e pelos circuitos nervosos que nele têm sua origem”3. Logo, nessa perspectiva, uma explicação de cunho fenomenológico deve ser rejeitada a priori por conta daquilo que os teóricos da Gestalttheorie chamaram de hipótese de constância, a saber, a redução da explicação do comportamento não só às estruturas físicas como à linguagem das ciências naturais. Em suma, a intencionalidade4 valorativa do organismo em relação a seu Umwelt5 não 2 MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, p. 6, p. 160 e p. 240. 3 Ibid., p. 8. 4 A noção de intencionalidade em Merleau-Ponty será examinada em mais detalhes no capítulo seguinte. Por ora, basta indicarmos que Merleau-Ponty segue Husserl ao distinguir entre Intencionalidade de Ato, ou seja, “aquela de nossos juízos e de nossas tomadas de posição voluntárias” e Intencionalidade Operante, “aquela que forma a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 16). Quando usarmos o conceito de intencionalidade no presente capítulo, temos em mente a noção de Intencionalidade Operante, isto é, a relação não-representacional, pré-reflexiva e irredutível fisiologicamente do organismo com seu ambiente. 5 “Ambiente” ou “mundo circundante” em alemão. Palavra reformulada pelo biólogo Jakob Von Uexküll que a conceituou como aquilo que aponta a especificidade do campo perceptivo de cada organismo, ou seja, significa a acepção do aspecto fenomenológico intrínseco a cada espécie em termos de apreensão e valoração do ambiente. Foi adotada por Merleau-Ponty, Kurt Goldstein, Martin Heidegger e é também aceita aqui. Mais recentemente, Daniel Dennett, Giorgio Agamben e o etólogo Frans de Waal também tomaram para si o uso do conceito de Uexküll. De Waal resume-a: “A Metamorfose de Franz Kafka, publicada em 1915, foi uma estranha abertura de um século menos antropocêntrico. Tendo escolhido uma criatura repulsiva para efeito metafórico, o autor forçou-nos, desde a primeira página, a imaginarmos como é ser um inseto. Mais ou menos no mesmo período, Jakob Von Uexküll, um biólogo alemão, chamou atenção para o ponto de vista do animal, chamando-o de Umwelt. Para ilustrar este novo conceito (palavra alemã para ‘mundo circundante’), Uexküll nos levou a um passeio por diversos mundos. Cada organismo, diz ele, percebe o ambiente à sua própria maneira” (DE WAAL, 2016, p.7). Quanto ao uso desta noção em MerleauPonty, podemos exemplificar na seguinte passagem: “Está estabelecido, contra o behaviorismo, que não podemos identificar o ‘ambiente geográfico’ e o ‘ambiente de comportamento’. As relações eficazes em cada nível, na hierarquia das espécies, definem um a priori dessa espécie, uma maneira que lhe é própria de elaborar os estímulos, e assim o Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 15 possui lugar no esquema explicativo de uma hipótese que direciona uma elucidação apenas a partir da exterioridade de partes decompostas. Por outro lado, a Gestalttheorie argumenta que, com frequência, o efeito de um estímulo complexo não é “previsível a partir dos elementos que o compõem”6; a estrutura do comportamento é menos a resposta estritamente causal de determinados receptores ligados ao sistema nervoso central e mais o registro das “propriedades de forma [Gestalt] dos estímulos, os quais, portanto, muito mais que o lugar e a natureza do excitante, decidiriam quanto à reação”7, ou seja, “É a forma [Gestalt], muito mais que a natureza, o lugar ou mesmo a intensidade da excitação, que determina o reflexo resultante”8. Tal concepção - que vê na resposta comportamental do organismo uma dependência do caráter global de sua percepção fenomenológica - é descartada e tomada como aparência pelo fisiologismo clássico, ou seja, é apenas uma questão de tempo até conseguirmos entender o porquê das diferentes respostas a estímulos equivalentes, já que “o funcionamento do sistema nervoso poderia, num estado bastante avançado da ciência, ser reconstruído parte por parte, de fenômeno local em fenômeno local”9. Ao seguir tal lógica, o fisiologismo clássico introduz a noção de “combinação dos reflexos”10 como resposta aos comportamentos superiores, tomando “o excitante complexo como uma soma de excitantes simples”11. Dito de organismo tem uma realidade distinta, não substancial mas estrutural. A ciência não trata pois os organismos como os modos acabados de um mundo (Welt) único, como as partes abstratas de um todo que evidentemente os conteria. Lida com uma série de ‘ambientes’ e de ‘meios’ (Umwelt, Merkwelt, Gegenwelt), em que os estímulos intervêm segundo o que significam e valem para a atividade típica da espécie considerada [...] Os gestos do comportamento, as intenções que este traça no espaço ao redor do animal não visam ao mundo verdadeiro ou ao ser puro, mas ao ser-para-o-animal, ou seja, um certo meio característico da espécie”. (MERLEAU-PONTY, 2006, pp. 197 e 202). 6 MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, p. 10. 7 WEIZSACHER apud Ibid., p. 11. 8 Idem. 9 MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, p. 75. 10 Ibid., p. 16. 11 Ibid., p. 91. 16 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista outro modo, a teoria clássica do reflexo postula que aquilo não inteiramente explicado pelas leis do reflexo simples é nada mais que um reflexo-simples-combinado-ainda-não-explicado. Até lá, “a teoria clássica do funcionamento nervoso é levada, pela força das coisas, a anexar hipóteses auxiliares que estão quase em contradição com ela”12. Estas hipóteses auxiliares que visam corrigir o atomismo fisiológico serviram-se de noções como as de integração, coordenação, inibição e indução recíproca. Para Merleau-Ponty, “essas noções são equívocas”13. Por exemplo, sabe-se que há cinco vezes mais vias aferentes do que vias eferentes no organismo humano e, mesmo para um fisiologista clássico como Charles Scott Sherrington, isto nos leva a admitir que “o mesmo substrato nervoso pode servir para desencadear reações qualitativamente diferentes”14. Outro fisiólogo em harmonia com Sherrington é Ivan Pavlov. Assim como Sherrington, Pavlov descobriu em suas próprias pesquisas fatos que não corroboravam com a perspectiva atomista e, no entanto, o russo tentou mascará-los a partir da postulação das já citadas hipóteses auxiliares com o intuito de salvaguardar uma ontologia que simplesmente não condiz com a matéria entendida a partir da intencionalidade, algo análogo à posição defendida por Hendrick Lorentz e George Fitzgerald quando, ao defenderem a hipótese de que os aparelhos de medição da velocidade da luz no experimento Michelson-Morley estavam defeituosos, partiram da suposição inquestionável da existência do éter como substância necessária para a propagação da luz, ou seja, ambos agarraram-se tão fortemente a um determinado postulado que suas explicações invariavelmente partiam do mesmo, sem admitir a possibilidade de sua nãoexistência. É o caso de Pavlov que, ao perceber a discrepância entre teoria 12 Ibid., p. 19. 13 Ibid., p. 120. 14 Ibid., p. 19. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 17 e empiria, insistiu em “corrigir a todo momento uma lei por uma outra lei”15 a fim de manter a perspectiva atomista. Se a expressão reflexo condicionado tem um sentido, ela deve designar uma reação relativamente estável ligada a certos estímulos. A observação dos animais revela, ao contrário, que suas reações são variáveis, podem se dissociar ou mesmo se inverter. Mas Pavlov se deu, com as noções de inibição e de indução recíproca, princípios que permitem tapar todas as falhas da teoria, construir uma explicação que deixa intacta a noção de reflexo condicionado [...] Uma teoria que, sem apoio experimental, supõe forças de sentido contrário, escapa evidentemente ao desmentido da experiência, já que sempre pode fazer intervir numa dada situação um dos dois princípios, em vez do outro. Pela mesma razão, ela não é capaz de nenhuma justificativa experimental. Longe de se calcarem nos fatos, as categorias de Pavlov são impostas a eles [...] Os postulados atomistas que obrigam Pavlov a considerar o excitante complexo como uma soma de excitantes simples excluem da fisiologia nervosa a noção de coordenação receptora. Procura-se o modelo da ação nervosa no processo “elementar” que associa uma reação simples a um processo isolado.16 A perspectiva fenomenológica construída por Merleau-Ponty, por outro lado, sustenta que é na percepção global pré-reflexiva da corporeidade que se dá a construção do estímulo proveniente do Umwelt. Dessa forma, não há possibilidade de decomposição dos estímulos como meio de explanação do comportamento. A resposta comportamental do organismo está sempre além da soma das partes do estímulo. É portanto no organismo que devemos procurar o que faz de um estímulo complexo mais do que a soma de seus elementos. Da mesma maneira, o efeito inibidor de um contato cutâneo na coluna espinhal não pode ser entendido como uma simples adição algébrica das excitações que ele provoca e daquelas 15 Ibid., p. 81. 16 Ibid., pp. 88, 89 e 91. 18 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista que, por outro lado, provocavam a reptação. Considerando as observações mais frequentes, nada autoriza a tratar as reações que chamaremos de qualitativas como aparências - e as reações conformes à teoria do reflexo como as únicas reais.17 Notemos que, ao afirmar “as únicas reais”, Merleau-Ponty deixa claro a inegável existência de reflexos simples. O filósofo francês apenas busca evitar a postulação de uma res cogitans descolada da corporeidade ao argumentar por uma fenomenologia que não reduz o comportamento à teoria clássica do reflexo, pois, se um organismo “deixa de se definir pelo ato de significar, ele volta a cair na condição de coisa”18. Tal postura não significa negar a base orgânica da corporeidade e dos estímulos exteriores, nem que o processo de significação perceptiva da intencionalidade não seja proveniente da matéria que compõe a physis, mas sim que existe um caráter superveniente e ativo na instauração do Umwelt. Este aspecto de superveniência não significa um retorno rebuscado ao cartesianismo, tampouco uma negação da existência de reflexos puros, mas sim uma espécie de holismo moderado de cunho naturalista (isto é, não-dualista), posição que podemos igualmente perceber – apesar de grandes diferenças entre suas fenomenologias – em Jean-Paul Sartre quando o existencialista diz que a consciência é “um fato irredutível que nenhuma imagem física pode exprimir”19, indicando que a intencionalidade significa uma manifestação emergente de certa organização da matéria não-passível de decomposição fisicalista. Mais recentemente, John Searle também nos lembra que a consciência entendida como uma experiência qualitativa de primeira pessoa, isto é, como experiência fenomenológica de uma corporeidade em seu Umwelt, “não pode ser deduzida ou presumida a partir da mera estrutura 17 Ibid., p. 13, grifo nosso. 18 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção, 1999, p. 172. 19 SARTRE. Uma Ideia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: A Intencionalidade, 2005, p. 106. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 19 física dos neurônios, sem alguma descrição adicional das relações causais entre eles”20. Dito isso, ressaltemos que não se trata aqui de apenas atestar o caráter global e superveniente da consciência, levando-nos a uma argumentação que exija uma postura epistemológica que ultrapasse a simples averiguação das respostas localizáveis nos receptores nervosos do corpo para, com isso, decodificar a Gestalt realizada no organismo. Na verdade, trata-se de entender que o próprio organismo contribui para a constituição da Gestalt (algo que, evidentemente, ecoa a revolução copernicana proveniente da Crítica da Razão Pura).21 Portanto, o fenomenólogo francês aponta para uma mudança de perspectiva explicativa para não corrermos o risco de cair em absurdos: Já que todos os movimentos do organismo são sempre condicionados por influências externas, podemos, se quisermos, tratar o comportamento como um efeito do meio. Mas do mesmo modo, como todas os estímulos que o organismo recebe foram possíveis apenas por seus movimentos precedentes, que acabaram por expor o órgão receptor às influências externas, poderíamos dizer também que o comportamento é a causa primeira de todas os estímulos. Assim, a Gestalt do excitante é criada pelo próprio organismo, por sua maneira peculiar de se oferecer às ações do exterior.22 O que Merleau-Ponty argumenta na passagem anterior é simplesmente que “a mesma ação externa terá um efeito variável conforme o contexto das ações precedentes e seguintes”23, pois, “entre o organismo e 20 SEARLE. A Redescoberta da Mente, 2006, p. 162. 21 Como se sabe, a fenomenologia como método em filosofia é algo que precede Husserl, como Merleau-Ponty aponta em seu seminal prefácio da Fenomenologia ao afirmar que “seus discípulos [da tradição husserliana] a reencontram em todas as partes, em Hegel e em Kierkegaard, seguramente, mas também em Marx, em Nietzsche, em Freud.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 2). Porém, lembremos que, em última instância, a fenomenologia tem em Immanuel Kant o seu verdadeiro ponto de partida. Sem as descrições da Estética e da Analítica transcendental, não haveria fenomenologia husserliana. Sobre a relevância de Kant para a fenomenologia: Cf. CHEMERO & KAUFER, 2015. 22 MERLEAU-PONTY, A Estrutura do Comportamento, 2006, p. 14. 23 Ibid., p. 17. 20 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista seu meio as relações não são de causalidade linear, mas de causalidade circular”24. O comportamento efetivado pelo organismo não é rastreável apenas fisiologicamente, pois este modo de apreensão do funcionamento orgânico desvela apenas uma parte da resposta comportamental. Não há, pois, uma descrição realmente acurada do comportamento se adotarmos apenas a perspectiva de terceira pessoa25. A história do organismo e o sentido que ele oferece ao estímulo, configurando-o como uma Gestalt, é de outra ordem, uma ordem que não exclui a perspectiva fisiológica, apenas nos mostra a necessária postulação de uma relação causal superveniente. Dito de outro modo, Kurt Goldstein afirma: “O Umwelt se recorta no mundo segundo o ser do organismo”26. Jean Claude Ameisen ecoa o argumento aqui colocado: A resposta de uma célula às modificações de seu meio ambiente não é unívoca. Sua resposta depende, ao mesmo tempo, da natureza dos sinais exteriores, do 24 Idem, grifo nosso. Pensar a existência a partir de uma temporalidade-da-corporeidade, isto é, a partir das ações precedentes e daquelas projetadas no espaço-tempo existencial (que configura a história de auto-realização do organismo), é aquilo conceituado por Heidegger na noção de Dasein. Sua aplicação por Merleau-Ponty à patologia do membro-fantasma será tratada no capítulo seguinte ao demonstrarmos a necessidade de uma ontologia que aceite a circularidade causal de um tecido espaço-temporal próprio ao organismo e seu Umwelt. Além de Heidegger, a adoção de uma causalidade retroativa como noção explicativa da estrutura do comportamento é também devedora da tradição dialética, especialmente na figura de Hegel, como o próprio Merleau-Ponty deixa claro em diversas passagens da obra por ora analisada por nós e que trataremos mais à frente. Em outra obra, Sens et non-sens (1948), fica clara a influência e estima que Merleau-Ponty possui em relação a Hegel: “Todas as melhores ideias filosóficas do século passado - as filosofias de Marx e Nietzsche, fenomenologia, existencialismo alemão e a psicanálise - tiveram o seu início em Hegel; foi ele quem iniciou a tarefa de explorar o irracional e integrá-lo a uma razão expandida, tarefa esta que permanece sendo a do nosso século.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 63) 25 Merleau-Ponty, manifestamente, não defende o uso indiscriminado da perspectiva de primeira pessoa em sua fenomenologia. Diversos são os casos que somente uma perspectiva exterior pode elucidar-nos sobre alguma questão: “Será sustentável [uma perspectiva de primeira pessoa], por exemplo, no caso do nascimento do amor? É perfeitamente possível que eu não tenha extraído a significação das minhas condutas inconscientes e que um observador as revele para mim. Talvez cada fase do sentimento tenha sido consciente, mas não sob a forma de representações. Há, ao menos, algo informulado. Vamos distinguir, portanto, consciência e conhecimento [...] É preciso distinguir entre estar apaixonado e conhecer que se está apaixonado.” (MERLEAU-PONTY, 2016, p. 149). A título de exemplo, podemos igualmente lembrar da imperatividade da perspectiva de terceira pessoa no estudo conduzido por Daniel Dennett e Nicholas Humphrey, Speaking for our Selves: An assessment of multiple personality disorder (1989), que configura-se como um interessante exemplo de heterofenomenologia, como diria Dennett. 26 GOLDSTEIN apud MERLEAU-PONTY, 2006, p. 15. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 21 momento no qual ela os percebe e do estado no qual ela se encontra. Sua resposta depende, ao mesmo tempo, de seu presente e de sua história, dos sinais que ela recebeu no passado e da maneira como ela os interpretou.27 Percebe-se, portanto, que Merleau-Ponty visa ressaltar esse aspecto retroativo da gênese comportamental, revelando assim o caráter circular que há entre organismo e ambiente, ponto crucial ao paradigma enativista. o excitante - o que põe em movimento o aparelho e determina a natureza de suas respostas - não é uma soma de estímulos parciais, já que uma soma é indiferente à ordem de seus fatores, mas uma constelação, uma ordem, um conjunto, que dá seu sentido momentâneo a cada uma das excitações locais [...] a interação dos estímulos nos impede de considerar a atividade nervosa como uma soma de fenômenos “longitudinais”, indo dos receptores aos efetores [...] Teremos que nos perguntar se, por exemplo, podemos esperar do futuro a descoberta de um substrato fisiológico determinado para todas as estruturas de conduta que a psicologia descreve, por exemplo, para todos os complexos que a psicanálise conhece. Pensamos que não.28 Tal apelo à uma lógica holística em biologia e psicologia pode ser igualmente encontrado em Varela et al. (1991). Os autores, proponentes do enativismo do qual trataremos detalhadamente mais à frente, apontam indícios empíricos que iluminam a relação parte e todo no caso do genoma humano, o que reforça o argumento de Merleau-Ponty sobre a inutilidade 27 28 AMEISEN apud SAFATLE, 2015, p. 51. MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, p. 15, p. 16 e p. 120. Um caso da não-relação entre mudanças na instância exterior de terceira pessoa e a experiência fenomenológica propriamente dita é dado por Merleau-Ponty no caso do uso de mescalina: “Por exemplo, é possível que sob efeito de mescalina se possa observar uma modificação das cronaxias. De forma alguma este fato constituiria uma explicação das sinestesias pelo corpo objetivo se, como vamos mostrá-lo, a justaposição de várias qualidades sensíveis é incapaz de fazer-nos compreender a ambivalência perceptiva tal como ela é dada na experiência sinestésica. A mudança das cronaxias não poderia ser a causa das sinestesias, mas a expressão objetiva ou o signo de um acontecimento global e mais profundo cuja sede não está no corpo objetivo, e que diz respeito ao corpo fenomenal enquanto veículo do ser no mundo” (MERLEAUPONTY, 1999, p. 640). 22 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista da busca de uma causalidade linear na explicação de uma corporeidade perceptiva. A interdependência genética exprime o fato indubitável de que o genoma não constitui um conjunto linear de genes independentes (manifestando-se como traços), mas sim uma rede extremamente interligada de efeitos recíprocos mútuos mediados através de repressores e depressores, exons e introns, genes errantes e até mesmo proteínas estruturais. De que outra forma poderíamos sequer começar a explicar que existe, por exemplo, uma ligação genética entre ser canhoto e a síndrome celíaca (uma irritabilidade intestinal causada por uma reação à proteína do trigo e que resulta em diarreia)? Esta ligação envolve praticamente todos os circuitos metabólicos e operações dos órgãos do corpo.29 Partindo da contstatação dos limites do atomismo fisiológico, Merleau-Ponty oferece-nos, por sua vez, “um novo gênero de análise, fundado no sentido biológico dos comportamentos, que se impõe ao mesmo tempo à psicologia e à fisiologia”.30 Como dissemos, não é o caso de negarmos o substrato orgânico do reflexo comportamental, mas sim afirmar o caráter valorativo (proveniente da intencionalidade pré-reflexiva que, necessariamente, surge como corporeidade) que exerce influência na própria constituição do estímulo. Dessa forma, o comportamento torna-se mais que um simples desdobramento proveniente da sobreposição de estímulos físicos externos, já que o estímulo “não pode ser definido em si e independente do organismo; não é uma realidade física, é uma realidade fisiológica ou biológica”.31 29 30 31 VARELA et al. A Mente Corpórea, 1991, p. 245. MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, p. 26. Ibid., p. 42. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 23 Assumir que não há um estímulo ‘puro’, isto é, independente do corpo-que-percebe, é condição sine qua non para entender a fenomenologia de Merleau-Ponty e, consequentemente, o enativismo. Os entes não são, em si mesmos, padrões perceptivos captáveis pela corporeidade. Há, inegavelmente, um papel ativo do organismo na instanciação do Umwelt que, por sua vez, influencia o comportamento, ou seja, o próprio corpo torna-se uma variável para entendermos a resposta comportamental corporal. A investigação fenomenológica, desse modo, nos leva para além do fisiologismo reducionista, obrigando-nos a constatar uma circularidade causal superveniente: “O que aciona necessariamente uma certa resposta reflexa não é um agente físico-químico, é uma certa forma [Gestalt] de excitação, e o agente físico-químico é antes sua ocasião que sua causa”.32 Para que fique claro: a realidade fisiológica ou biológica é, evidentemente, uma realidade fundada física, mas o que está sendo ressaltado por Merleau-Ponty é a noção de que a matéria animada deve ser entendida a partir de um salto qualitativo que a põe em uma esfera de causalidade circular que pressupõe, em sua explicação, o caráter valorativo da percepção do organismo. Quando David Hume enumerou - no Tratado da Natureza Humana (1739) - suas oito regras para determinar a conexão entre causa e efeito, a regra de número quatro dizia que “A mesma causa sempre produz o mesmo efeito, e o mesmo efeito nunca surge a não ser da mesma causa.”33 A esfera biológica, no entanto, opera por uma lógica causal de outro tipo. Partindo daí, Merleau-Ponty esboça uma ontologia que divide a realidade em três ordens: física, vital e humana; o fio conector da obra, portanto, torna-se a busca pela maneira mais coerente de entender e conectar as três diferentes ordens sem negligenciar suas peculiaridades, a 32 Idem. 33 HUME apud COVENTRY (2007), p. 129. 24 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista saber, a aplicação diferenciada da noção de Gestalt em cada uma, como veremos à frente. Por ora, é pertinente deixar claro que a defesa de uma perspectiva holística baseada na Gestalttheorie para fundar uma ontologia possui seus limites, já que “se tudo dependesse realmente de tudo, tanto no organismo quanto na natureza, não haveria nem leis nem ciência”34, ou seja, “a teoria da Gestalt se mantém a uma igual distância tanto de uma filosofia da simples coordenação (Und-Verbindungen) quanto de uma concepção romântica da unidade absoluta da natureza”.35 Portanto, a argumentação apresentada até aqui nos leva a não tomar o reflexo simples como elemento central na compreensão da gênese comportamental; ao mesmo tempo, porém, não significa negá-lo como parte explicativa da resposta do organismo. O reflexo puro existe de fato, entretanto, podemos encontrá-lo apenas em determinados comportamentos, órgãos, regiões auto reguladoras ou a partir de estímulos e contextos bastante específicos e, muitas vezes, produzidos apenas em ambientes de laboratório. Com isso, a categoria do reflexo não deve ser abandonada, mas entendida e usada apenas a partir de sua especificidade limitada; seu escopo claramente não nos permite a elaboração de um quadro explicativo que consiga abarcar a complexidade em torno de comportamentos cognitivos superiores, mas isso não nos leva a seu descarte do quadro explanatório. o reflexo existe; ele representa um caso muito particular de conduta, observável em condições determinadas. Mas não é o objeto principal da fisiologia, não é através dele que podemos entender o resto. Não poderíamos considerar como uma realidade biológica toda reação obtida em laboratório interrogando um organismo doente ou em condições artificiais. O objeto da 34 MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, p. 63 Idem. De fato, esta “unidade absoluta” não faz parte do conceito de natureza em Merleau-Ponty durante a década de 1940, porém, quando Merleau-Ponty elabora sua ontologia nos Cursos do Collège de France e no manuscrito O Visível e o Invisível, sua noção de Carne - análoga à noção de Criatividade de Whitehead - ganha contornos similares às ontologias presentes no idealismo alemão alemães e no período pré-socrático. 35 Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 25 biologia é apreender o que faz de um ser vivo um ser vivo, quer dizer, não segundo o postulado realista comum ao mecanicismo e ao vitalismo - a superposição de reflexos elementares ou a intervenção de uma “força vital”, mas uma Gestalt indecomponível dos comportamentos.36 Novamente fica claro o tipo de gênero de análise defendido por Merleau-Ponty: para além da fisiologia clássica que procurava determinar o reflexo ou o reflexo-composto a partir da decomposição da causalidade de elementos exteriores constituintes do estímulo, a fenomenologia e a Gestalttheorie procuram perceber a gênese comportamental a partir do papel ativo do organismo na própria constituição do estímulo, estabelecendo assim uma causalidade de tipo circular que se obtém a partir da asserção de uma certa descontinuidade da matéria animada em relação à matéria inanimada; uma descontinuidade que faz surgir (dos mesmos elementos físico-químicos da ordem do em-si, mas organizados em outra forma, trazendo à tona o para-si) um modo superveniente de ser, um modo que suporta uma instância valorativa criadora de Umwelt, ocasionando assim o surgimento do aspecto fenomenológico intrínseco à matéria animada, ou seja, o organismo “opõe à análise físico-química não as dificuldades de fato de um objeto complexo, mas a dificuldade de princípio de um ser significativo”.37 Em suma, não é ao reflexo que devemos voltar a nossa atenção, mas à forma (Gestalt). Mas seria realmente necessário, para entender os fenômenos nervosos, introduzir uma nova categoria? A teoria da Gestalt justifica a noção de “forma” por uma crítica ao “espírito anatômico” em fisiologia [...] Não se trata de arriscar uma hipótese entre outras, mas de introduzir uma nova categoria, a categoria de “forma” que, tendo sua aplicação tanto no domínio inorgânico quanto no domínio orgânico, permitiria fazer aparecer no sistema nervoso, 36 Ibid., p. 67. 37 Id., 1999, pp. 89-95. 26 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista sem hipótese vitalista, as “funções transversais” de que Wertheimer falara e cuja existência é confirmada pela observação. Pois as “formas”, e em particular os sistemas físicos, se definem como processos totais cujas propriedades não são a soma das propriedades que as partes isoladas possuiriam [...] Pode-se dizer que existe forma sempre que as propriedades de um sistema se modificarem para cada mudança ocorrida em uma única de suas partes e se conservarem, ao contrário, quando todas elas se modificarem mas conservarem entre elas a mesma relação. Essas definições convém aos fenômenos nervosos, já que, como acabamos de ver, não podemos remeter cada parte da reação a uma condição parcial.38 Ao enfatizar a escolha da forma/estrutura (Gestalt) como categoria explicativa da tanto da matéria inanimada quanto da matéria viva, Merleau-Ponty defende um direcionamento epistemológico que privilegia como “noção diretora em psicologia e fisiologia a estrutura e não o átomo”.39 Dessa forma, com a noção de Gestalt, torna-se possível a integração entre as três ordens da realidade, a saber, a ordem física, a ordem biológica/vital e a ordem simbólica/humana. É aqui que a noção de Gestalt permitiria uma solução realmente nova. Aplicável igualmente aos três campos que acabam de ser definidos [físico, vital e humano], ela os integraria como três tipos de estrutura, superando as antinomias do materialismo e do espiritualismo; do materialismo e do vitalismo. A quantidade, a ordem, o valor ou o significado, que passam respectivamente por propriedades da matéria, da vida e do espírito, não seriam mais do que o caráter dominante na ordem considerada e se tornariam categorias universalmente aplicáveis.40 38 Id., 2006, pp. 69-70, grifo nosso. 39 Ibid., p. 85. 40 Ibid., p. 204. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 27 Entretanto, apesar de encontrar na noção de forma a resposta para a articulação entre matéria, vida e cultura, Merleau-Ponty afirma que os principais teóricos da Gestalttheorie (Koffka, Köhler, Wertheimer e Goldstein) falham em não levar a noção de Gestalt às últimas consequências, pois acabam sempre recaindo em um certo materialismo reducionista, problema este que seria, no fundo, o problema da ciência da psicologia enquanto tal, independentemente da corrente epistemológica adotada. a teoria da forma tem consciência das consequências que um pensamento puramente estrutural acarreta e procura ampliar-se numa filosofia da forma que substituiria a filosofia das substâncias. Mas nunca levou muito longe esse trabalho de análise filosófica. Isso porque a “forma” só pode ser plenamente entendida, e todas as implicações dessa noção evidenciadas, numa filosofia que se liberte dos postulados realistas que são os de toda psicologia. Enquanto procurarmos uma filosofia integral sem abandonar esses postulados, não faremos mais do que voltar ao materialismo ou ao espiritualismo que queríamos superar [...] Mas podemos realmente conservar, como quer a teoria da Gestalt, a originalidade das estruturas biológicas e psíquicas, fundando-as em estruturas físicas? Uma explicação física do comportamento supõe que formas físicas possam possuir todas as propriedades das relações biológicas e psíquicas às quais servem de substrato. Numa filosofia em que são proibidas as distinções materiais, isso significa que não existe nenhuma diferença entre as três ordens, e que a vida e o espírito são outros nomes para designar certas formas físicas [...] Pensamos que nem nessas conclusões materialistas, nem na interpretação espiritualista que indicamos inicialmente, a noção de Gestalt é levada até suas mais importantes consequências [...] É preciso na realidade entender a matéria, a vida e o espírito como três ordens dos significados.41 Dessa forma, o objetivo de Merleau-Ponty n’A Estrutura do Comportamento está delimitado: ir mais longe na utilização do conceito de Gestalt 41 Ibid., pp. 206-213. 28 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista que os próprios fundadores da teoria e, com isso, apresentar uma compreensão fenomenológica da gênese do comportamento ao demonstrar como a noção de forma pode ser utilizada para compreendermos as diversas manifestações da matéria. Dito isso, vejamos a seguir a aplicação que Merleau-Ponty faz da categoria Gestalt nas ordens física, biológica e simbólica. B) Do Físico ao Simbólico A intencionalidade “não é uma nova espécie de ser, mas uma nova forma [Gestalt] de unidade”.42 O estatuto ontológico da postura intencional não desprende-se do substrato da ordem física não-viva. A passagem do físico ao biológico e deste último ao simbólico constituem, como dito anteriormente, processos emergentes de superveniência. Matéria, intencionalidade e simbolismo linguístico-cultural são diferentes níveis de estruturas gradativamente integradas. Em outras palavras, há uma continuidade ontológica dentro de uma descontinuidade estrutural. A distinção entre matéria não-animada e matéria animada, ou seja, a matéria física da matéria biológica é demarcada por uma linha deveras mais clara que a distinção mais tênue, por outro lado, daquela que há em relação ao biológico e ao simbólico, pois a significação é anterior à língua. Dito de outro modo, a percepção valorativa do organismo já é linguagem; a língua falada é por ela pressuposta. Que diferença existe entre o simbolismo pronto ou natural do corpo e aquele da linguagem? Seria o surgimento de um sujeito pensante e de suas convenções? Existiriam dois simbolismos, um de indivisão e no qual símbolo e simbolizado estão cegamente ligados, porque sua relação de sentido é dada pela organização do corpo, e outro de linguagem, em que signo e significação 42 Ibid., p. 282. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 29 são sobrevoados por um espírito, e que nos faria sair da Natureza? Mas a própria convenção pressupõe uma comunicação consigo ou com outrem, pelo que só pode aparecer como variante ou desvio em relação a uma comunicação prévia. Sendo cada signo diferença em relação aos outros, e cada significação diferença em relação às outras, a vida da linguagem reproduz num outro nível as estruturas perceptivas. Fala-se para preencher as lacunas da percepção [...] Existe um Logos do mundo natural, estético, no qual se apoia o Logos da linguagem.43 A citação anterior é proveniente de uma obra do último período de Merleau-Ponty - A Natureza - e nos elucida em relação à indagação que o ocupa desde A Estrutura do Comportamento. Além disso, ela já adianta a tese - apenas esboçada na obra de 1942 - que Merleau-Ponty apresentaria em 1945 na Fenomenologia da Percepção: a intencionalidade corporal como lócus da percepção valorativa pré-reflexiva é o fundamento da língua e da esfera simbólica enquanto tal. Porém, antes de compreender a passagem da ordem vital à simbólica, comecemos com a análise da forma na esfera física. Merleau-Ponty nos lembra que “Köhler encontrou sem dificuldades exemplos de forma na física clássica”44: a distribuição das cargas elétricas em um condutor; correntes elétricas; o campo gravitacional de um astro, etc. Este último exemplo é claro na formulação de uma Gestalt física: um padrão (descrito como lei) que determina um comportamento se e somente se houver estabilidade na continuação de outros fatores (a velocidade média de rotação do planeta, a distância em relação aos demais corpos celestes, etc.), ou seja, um fato (campo gravitacional) que só pode ser entendido em termos de sua relação com o todo e que, supondo a mudança de alguma variável, a estrutura enquanto tal também é afetada. 43 Id., 2000, pp. 342-343. 44 Id., 2006, p. 214. 30 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista Merleau-Ponty pontua que a consideração de fatos como simples séries causais onde cada um conservaria sua característica independentemente das mudanças ocorridas em outras partes do todo é uma “extrapolação ilegítima [...] O que verificamos, enfim, nunca é uma lei, mas um sistema de leis complementares [...] a verdade da física não se encontra nas leis tomadas uma a uma, mas em sua combinação.”45 É difícil encontrar um fato que não esteja entrecruzado com outros e que não mudaria a partir de alterações nos demais elementos da totalidade na qual está inserido, entretanto, como frisamos, isso não significa a adoção de um holismo exacerbado, resultando em uma concepção romântica de algum Absoluto indecomponível: o próprio fato de ser possível estabelecer leis é prova de que todo efeito pode ter causas rastreáveis, excluindo-se aquilo irrelevante em determinado caso. Portanto, o que é exigido não é a idéia de um universo onde tudo depende de tudo, “mas não é tampouco a idéia de uma natureza na qual processos seriam cognoscíveis isoladamente, não é nem a fusão, nem a justaposição, é a estrutura”.46 Tal posição já está clara, porém, o ponto agora é que uma coisa é ter uma atitude epistemológica baseada em uma compreensão holística de um fato e, outra diferente, é atestar que há uma Gestalt na própria constituição deste fato. Por isso que “quando dizemos que existem formas [Gestalten] físicas, a proposição é equívoca”.47 É inegável a interconexão entre entes físicos e sua relação causal na instauração de um padrão de movimento (o que corrobora a doção de um holismo epistemológico e ontológico), porém, a descrição enquanto Gestalt é algo proveniente da intencionalidade, trata-se de um recurso formal: uma forma/estrutura enquanto totalidade que funda uma 45 Ibid., p. 216. 46 Ibid., p. 218. 47 Idem. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 31 causalidade retroativa é um aspecto presente apenas nas ordens ontológicas subsequentes (biológica e simbólica). Psicólogos como Köhler insistem que “podemos encontrar estruturas no seio de uma natureza considerada em-si”48, porém, Merleau-Ponty considera este um erro análogo ao do atomismo que pretende, por um caminho inverso, decompor as partes e refazer uma causalidade linear. Dessa forma, Merleau-Ponty chega a uma conclusão unívoca: “A forma não é um elemento do mundo”49, isto é, a causalidade circular se dá apenas a partir do irrompimento da vida e das diferentes manifestações de intencionalidade que decorrem do processo de evolução biológica. Um ponto crucial para Merleau-Ponty é compreender os limites de posturas epistemológicas úteis na explicação de uma ordem. Com isso, é mister objetar posições que exageram na interpretação uso de noções provenientes da biologia ou da psicologia no entendimento da pura res extensa pré-intencionalidade: “Que o sistema físico seja, hoje, imaginável apenas com o auxílio de modelos biológicos ou psicológicos, esse fato, tanto quanto a atração newtoniana, não revela no fenômeno físico as relações características da vida ou do espírito e não ratifica a quimera de uma física espiritualista”50, ou seja, qualquer especulação em que todas as partes imagináveis da estrutura do cosmos possuem algum tipo de princípio vitalista deve ser descartada. Dito de outro modo, o “Egito como estrutura econômica, social e política permanece um objeto de pensamento distinto dos múltiplos fatos que o constituíram e permitiram sua existência”, pois a Gestalt que engloba o fenômeno-Egito é “uma significação comum a um conjunto de fatos moleculares e que todos eles 48 Idem. 49 Ibid., p. 221, grifo nosso. 50 Ibid., p. 222. 32 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista exprimem e que nenhum contém em sua totalidade”.51 Mais detalhadamente, o holismo necessário para compreender a constituição social, econômica e política do Egito não permite a introdução de uma Gestalt na própria realidade física que constitui o substrato das esferas em questão. Em suma, deve-se entender a gênese da estrutura pela percepção: A forma é pois não uma realidade física, mas um objeto de percepção, sem o qual, aliás, a ciência física não teria sentido, já que é construída em função dele e para coordená-lo [...] Um círculo colorido que eu olho é inteiramente modificado em sua fisionomia por uma irregularidade que retira algo de seu aspecto circular, tornando-o um círculo imperfeito. É pois do universo das coisas percebidas que a teoria da Gestalt empresta sua noção de forma, e esta se encontra na física apenas na medida em que a física nos remete às coisas percebidas, como àquilo que a ciência tem por função exprimir e determinar. Longe de a “forma física” poder ser o fundamento real da estrutura do comportamento e em particular de sua estrutura perceptiva, ela própria é concebível apenas como um objeto de percepção [...] Disso não devemos concluir que formas já existem num universo físico e servem de fundamento ontológico para as estruturas perceptivas [...] a lei é um instrumento de conhecimento, e a estrutura, um objeto da consciência. Somente têm sentido para pensar o mundo percebido.52 Antes de adentrarmos nas esferas fisiológica e simbólica, nos parece válido introduzir a seguinte ponderação: se a matéria orgânica é um estágio posterior de desenvolvimento da matéria inanimada, a primeira conteria em si a chave do entendimento da última? É válido, como questiona Merleau-Ponty, usarmos as formas vivas para entendermos a realidade física? Isto nos remete à famigerada passagem de Karl Marx na qual afirma-se que a anatomia do macaco está contida na anatomia do 51 Ibid., p. 223. 52 Ibid., pp. 224-226. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 33 homem como meio de argumentar que a sociedade capitalista contém em si as formas dos modos de produção anteriores. Nessa esteira, pois, as estruturas posteriores possuiriam em si mesmas a anatomia que permitiria o entendimento de suas estruturas precedentes. A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão, desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação, etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da economia da antigüidade etc. Porém, não conforme o método dos economistas que fazem desaparecer todas as diferenças históricas e vêem a forma burguesa em todas as formas de sociedade.53 Na mesma linha, podemos lembrar a quarta das cinco vias de Tomás de Aquino. O argumento dos Graus de Perfeição, ao afirmar que pode-se compreender todas as particularizações do cálido ao atingirmos o entendimento do fogo (grau máximo de calidez), também apela para a compreensão de entes a partir da forma perfeita última que os suecede.54 Não há intuito aqui de aprofundarmos esta indagação. Porém, nos parece correto afirmar que o uso da compreensão da matéria viva no desvelamento da natureza da matéria física possui seus limites. A aceitação de uma circularidade causal que o organismo exige para a sua compreensão pode ser útil no quadro explicativo do mundo físico, porém, não 53 54 MARX. Manuscritos econômico-filosóficos, 1985, p. 120. Deus, na linha do argumento, então, seria o grau máximo de qualidades como o Bom, o Belo e o Justo etc. Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 2016. 34 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista em todas as escalas: a física newtoniana não se tornou obsoleta com a introdução da relatividade e da mecânica quântica. Quanto ao uso deste raciocínio especificamente nas esferas da economia e da história, como Marx fez, o mesmo parece ser válido: que certos aspectos são absorvidos por sistemas econômicos posteriores (moeda, trabalho assalariado, capital, propriedade privada, juros, etc.) e que sua compreensão é facilitada dentro da estrutura ulterior é algo indubitável, porém, a extrapolação da tese de que toda estrutura posterior sempre contém a chave da anatomia da estrutura anterior é, talvez, equívoca, o que exigiria um uso moderado das teses de Marx e Aquino. De qualquer forma, definida a realidade física, podemos agora passar para o uso que Merleau-Ponty faz da noção de Gestalt na descrição da esfera biológica. Primeiramente, Merleau-Ponty trata de demonstrar a especificidade da vida em contraposição à primeira lei de Newton, ou seja, claramente há uma passividade na matéria física que necessariamente a mantém em repouso ou em movimento dada a não-atuação de forças que mudem seu estado corrente. O organismo, por outro lado, impõe a si mesmo a força para ou manter-se em repouso ou colocar-se em movimento a partir de suas necessidades e discriminações do Umwelt. A característica fundamental da matéria orgânica, portanto, é nada mais que a capacidade de volição como normatização. Disso decorre que as estruturas inorgânicas se deixem exprimir por uma lei, ao passo que as estruturas orgânicas só podem ser compreendidas por uma norma, por um certo tipo de ação transitiva que caracteriza o indivíduo [...] Isso significa que ele próprio [o organismo] mede a ação das coisas sobre si mesmo e que ele próprio delimita seu meio por um processo circular que não têm análogo no mundo físico [...] Não é nenhuma espécie de vitalismo que estamos sustentando. Não queremos dizer que a análise do corpo vivo encontra um limite em forças vitais irredutíveis. Queremos apenas dizer que as Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 35 reações de um organismo são compreensíveis e previsíveis apenas se as pensarmos não como contrações musculares que se realizam num corpo, mas como atos que se dirigem a certo meio, presente ou virtual: o ato de apanhar uma presa, de caminhar para o objetivo, de correr para longe de um perigo [...] Uma análise molecular total dissolveria a estrutura das funções e do organismo na massa indivisa das reações físicas e químicas banais. A vida não é pois a soma dessas reações.55 Esta mesma definição de vida é dada por Georges Canguilhem que, por sinal, indica no prefácio de seu principal escrito - O Normal e o Patológico (1943) - a leitura da obra de Merleau-Ponty ao seus leitores. A vida, diz Canguilhem em harmonia com o Merleau-Ponty d’A Estrutura do Comportamento, é “atividade de oposição à inércia e à indiferença”.56 Canguilhem, como se sabe, é mais um exemplo do esforço intelectual de diversos pensadores da primeira metade do séc. XX (John Dewey, William James, Whitehead, o próprio Merleau-Ponty, dentre outros.) em criticar qualquer tentativa de redução da biologia à física, ao mesmo tempo que mantém-se a defesa de uma perspectiva naturalista não-dualista. Canguilhem, pois, nos serve como exemplo de formulações consoantes com as de Merleau-Ponty, já que ambos insistem em afirmar que a normatividade é justamente aquilo que deve ser usado como noção para descrever o fenômeno da vida, como Safatle (2015) deixa claro na seguinte passagem: É fato, dirá Canguilhem, que “a vida é atividade normativa”. Ela é atividade normativa, principalmente, porque todo organismo biológico age selecionando a partir de valores. É importante salientar tal aspecto para lembrar como a normatividade vital não é uma forma de condicionamento, de ação reflexa determinada completamente pelo meio, mas atividade valorativa, um tipo de julgamento que, em vez de apelar necessariamente à consciência, pode 55 MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, pp. 232-237, grifo nosso. 56 CANGUILHEM. Études d’histoire et philosophie des sciences, 1983, p. 208. 36 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista apelar aos afetos, às sensações e aos modos de afecções [...] Mover-se implica, para o organismo, tanto ter a percepção de deslocar-se quanto deixar-se ou não se mover. Não apenas saber-se saindo de um ponto a outro, mas valorar esse movimento, querer se deslocar, tomar para si a fonte do movimento. Caso não houvesse tal valoração vinda do organismo, caso não houvesse alguma forma elementar de implicação intencional produzida pelo julgamento, ou, ainda, caso não houvesse uma função implicativa expressa pelo organismo, teríamos um movimento completamente determinado pelo exterior e organismos seriam simplesmente estruturas condicionadas. No entanto, Canguillhem entende que o ato de julgar não é uma operação lógica de recognição da realidade, mas capacidade de valoração concernente a todo vivente.57 Em outras palavras, toda consciência pressupõe intencionalidade, mas nem toda intencionalidade pressupõe consciência. A postura normativa intencional prescinde da atividade consciente representacional e é isso o fator crucial para diferenciar o vivente do inanimado. A partir disso, fica claro o porquê de Canguilhem afirmar que “Viver é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir”.58 Isso não implica defender que haja consciência em qualquer nível que seja do reino animal ou vegetal, pois a valoração normativia do ambiente pelo organismo é produto de uma intencionalidade pré-reflexiva e é exatamente isso, por sua vez, que delimita a distinção entre esfera do vivente e a esfera humana propriamente dita: ambas as esferas dizem respeito ao ato de valoração do Umwelt, porém, a valoração orgânica não é um ato representacional consciente de recognição e normatização da realidade ou, como apontamos no início desta seção, o Logos estético-natural precede o Logos da linguagem, porém, ambos estão fundados na intencionalidade. Dessa forma, “a idéia de 57 SAFATLE. O Circuito dos Afetos, 2015, p. 422. 58 CANGUILHEM. O Normal e o Patológico, 2009, p. 52. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 37 significado permite conservar, sem a hipótese de uma força vital, a categoria de vida”.59 A vida, portanto, deve ser entendida como o processo contínuo de normatividade do organismo em relação a seu Umwelt: “A unidade dos sistemas físicos é uma unidade de correlação, a dos organismos, uma unidade de significado”60. Em outras palavras, as ações comportamentais de um organismo não podem ser definidas como respostas causais aos elementos de um hipotético meio objetivo, pois o ambiente do organismo é sempre um recorte perceptivo no qual as partes do contexto são constituídas por uma normatividade invariavelmente interior, assim definida por Merleau-Ponty: “é a simples constatação de uma atitude privilegiada, estatisticamente mais frequente, que dá ao comportamento uma unidade de um novo gênero”61, ou seja, uma esfera não passível de um enquadramento explicativo que nos faria compreender a vida somente pela análise cada vez mais regressiva dos elementos físicoquímicos que a compõem. A normatividade, portanto, é um desdobramento superveniente da matéria biológica, o que exige uma descrição holística compreensiva e não reducionista. Com isso, podemos partir agora para a ordem humana que, na passagem seguinte, Merleau-Ponty define como mental. Situação e reação associam-se internamente em razão de sua participação comum numa estrutura em que se exprime o modo de atividade peculiar do organismo. Assim, não podemos alinhá-los como a causa e o efeito: são dois momentos de um processo circular [...] Acima do campo físico - sistema de forças orientadas - no qual ele [o comportamento] se instala, seria preciso reconhecer o caráter original de um campo fisiológico, de um segundo “sistema de tensões e de correntes” que é o único a determinar, de uma 59 MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, p. 242. 60 Ibid., p. 243. 61 Ibid., p. 249. 38 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista maneira decisiva, o comportamento efetivo. Se, além disso, considerarmos o comportamento simbólico e seus caracteres próprios, poderemos introduzir um terceiro campo que chamaremos, por definição nominal, campo mental.62 A essa altura, já deve estar claro que Merleau-Ponty tenta definir a diferença entre as esferas física e biológica a partir de noções como causalidade circular, normatividade, processo circular, etc. Porém, é somente a partir da parte final de sua obra que essa circularidade é, finalmente, definida como dialética. Com isso, vejamos mais uma vez como MerleauPonty descreve a diferenciação entre ordem física e ordem vital a partir da noção de dialética para, então, compreendermos a importância de tal conceito no momento de compreensão da ordem humana. Descrevendo o indivíduo físico ou orgânico e aquilo que os cerca, fomos levados a admitir que suas relações não eram mecânicas, mas dialéticas. Uma ação mecânica, quer tomemos a palavra no sentido restrito, quer no sentido amplo, é aquela em que a causa e o efeito são decomponíveis em elementos reais que se correspondem um a um. Nas ações elementares, a dependência é de mão única, a causa é condição necessária e suficiente do efeito considerado na sua existência e na sua natureza e, mesmo quando se fala de ação recíproca entre dois termos, esta se deixa reduzir a uma série de determinações de mão única. Ao contrário, como vimos, os estímulos físicos só agem no organismo nele suscitando uma resposta global que varia qualitativamente quando eles variam quantitativamente; exercem, com relação a ele, mais o papel de ocasiões que de causas; a reação depende, mais que das propriedades materiais dos estímulos, de seu significado vital [...] os comportamentos têm um sentido e dependem do significado vital das situações, a ciência biológica se proíbe concebê-los como coisas em si que existiriam, partes extra partes, no sistema nervoso ou no corpo, vê neles dialéticas encarnadas que se irradiam num meio que lhes é imanente. Não se trata, como muitas vezes dissemos, de retornar a uma forma qualquer de vitalismo ou de animismo, mas simplesmente de 62 Ibid., pp. 203-204. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 39 reconhecer que o objeto da biologia é impensável sem as unidades de significado.63 Dialética aqui - como ficou claro na passagem acima - se refere ao sentido ontológico que encontramos em Hegel. A inspiração hegeliana, apesar de ser pouco comentada, é visivelmente assumida e apresenta um importantíssimo traço a ser destacado: é em Hegel que Merleau-Ponty encontra o conceito de trabalho que, a seu ver, ultrapassa a limitada noção de ação usada pelos psicólogos de seu tempo para definir a estrutura geral do comportamento. Se o fenômeno da vida é entendido a partir da noção de normatividade ou, segundo o próprio Merleau-Ponty, como uma espécie de transposição do interior no exterior, ou seja, uma manifestação exterior de uma normatividade interna, então a terceira esfera a ser tratada só pode ser definida pelo conceito hegeliano de trabalho, pois, neste campo estão inseridos objetos históricos que funcionam como propulsores de novas dialéticas comportamentais, algo que ultrapassa a ordem vital. Enquanto um sistema físico se equilibra considerando as forças que o rodeiam, e enquanto o organismo animal forja para si um meio estável que corresponde aos a priori monótonos da necessidade e do instinto, o trabalho humano inaugura uma terceira dialética, já que projeta entre o homem e os estímulos físicoquímicos “objetos de uso” - as roupas, a mesa, o jardim -, “objetos culturais” o livro, o instrumento de música, a linguagem - que constituem o meio próprio do homem e fazem emergir novos ciclos de comportamento. Assim como nos pareceu impossível reduzir os correlatos situação vital/reação instintiva aos correlatos estímulo/reflexo, será igualmente necessário, sem dúvida, reconhecer a originalidade dos correlatos situação percebida/trabalho.64 63 Ibid., pp. 250-251, grifo nosso. 64 Ibid., pp. 252-253, grifo nosso. 40 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista Portanto, a primeira maneira de estabelecer a diferenciação entre as esferas vital e humana está na incorporação da noção hegeliana de trabalho, definido não como ação puramente normativa que visa um equilíbrio do organismo com seu meio vital (aquilo que caracteriza o campo biológico), mas como ação que introduz objetos ou padrões dos quais eles próprios impelem novas estruturas de comportamento, reformulando assim o campo de intencionalidade humana, já que “são os objetos de uso criados pelo homem que compõem o campo da percepção incipiente”65, isto é, a circularidade da esfera humana atinge um outro patamar de causalidade porque os próprios efeitos/desdobramentos do trabalho humano servem como fatores causais nos comportamentos subsequentes. Há uma retroalimentação contínua na esfera humana que a põe em um grau qualitativamente superior ao monotonismo vital. Além disso, Merleau-Ponty também lembra que não só o ato de produção destes objetos e padrões constitui a esfera simbólica, como também a própria possibilidade de construção da noção de verdade, algo impensável na ordem meramente fisiológica, mas que não trateremos aqui. Ao chegarmos na ordem humana, Merleau-Ponty enfatiza a compreensão do trabalho e todos os seus desdobramentos como uma “dialética superior”66 que se dá apenas no animal homem de um modo que seu comportamento instaura uma esfera superior à valoração vital, pois “usar um objeto humano sempre significa mais ou menos esposar e incorporar o sentido do trabalho que o produziu”67, ou seja, a dialética superior do campo humano-simbólico se dá de uma tal maneira que cada indivíduo se vê influenciado em sua constituição perceptual da realidade pelo próprio contato com um mundo construído pelo trabalho humano. Com isso, o 65 Ibid., p. 260. 66 Ibid., p. 259. 67 Ibid., p. 265. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 41 Umwelt não é apenas aquilo delimitado pela pulsão vital de nosso organismo (que nunca cessa), mas pelo contexto histórico fundamentado no trabalho. Por exemplo, o ato de utilizar folhas, peles de animais ou, posteriormente, tecidos para proteger-se do frio ou do calor possui, em um primeiro momento da história, uma certa propriedade que nos direciona a uma relação pragmática com o mundo (proteger-se do frio; proteger-se do calor, proteger-se de insetos, etc.), mas, em outro momento, “o ato de se vestir torna-se o ato do ornamento, ou ainda o do pudor, e revela assim uma nova atitude para consigo mesmo e para com o outro. Somente os homens percebem que estão nus”.68 Dessa forma, Merleau-Ponty encontra a sua fórmula de definição do que é propriamente humano: não a capacidade de criar uma esfera cultural (algo observável em outros animais), mas sobretudo a “capacidade de superar as estruturas criadas para criar outras”69, ou seja, a característica humana primordial é o trabalho que fundamenta a incessante reformulação da esfera simbólica. Além da noção hegeliana, Merleau-Ponty introduz outro modo de caracterização da ordem simbólica. O francês destaca que a esfera propriamente humana deve ser entendida a partir de sua capacidade infindável de situar-se no ideal ou virtual, de apreender objetos nas mais variadas pluralidades, com a possibilidade de ressignificá-los de modo livre e, com isso, introduzir usos dos mais variados. Um macaco também pode situar-se no virtual ao usar um galho como instrumento de maior alcance para obter um alimento que está afastado, porém, não consegue pensá-lo para além da situação imediata, não consegue percebê-lo como material para, por exemplo, a fabricação de outros instrumentos. Esta capacidade superior de ação virtual é o que Merleau-Ponty chama - seguindo 68 Ibid., p. 271. 69 Ibid., p. 272. 42 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista Goldstein - de Atitude Categorial. Dessa forma, com as noções de Hegel e Goldstein, a dialética propriamente humana define-se: a esfera simbólica, inaugurada pelo trabalho, não seria o que é se a atitude categorial não tivesse também o poder de negá-la e superá-la. Esta capacidade de ação no virtual nos remete a outro filósofo influenciado pela noção hegeliana de trabalho: quando Marx afirma que o pior arquiteto ainda é superior à melhor das aranhas, o fato atestado é o de que a liberdade humana de situar-se virtualmente constitui um patamar elevado de existência. A aranha continua presa às determinações biológicas enquanto que as determinações biológicas do homem - paradoxalmente - o libertam, possibilitando-o instalar-se livremente no ideal. A mais hábil aranha tem que construir sua teia de determinada forma, enquanto que o pior arquiteto é livre para trazer variações à tona, mesmo que não consigam atingir um padrão funcional ou estético desejado. Com a definição da ordem humana em mente, podemos entender melhor a distinção que Merleau-Ponty introduz ao classificar os comportamentos em duas modalidades de conduta: Sincrética e Amovível. O aspecto sincrético diz respeito à limitação comportamental que responde somente às situações concretas, permanecendo preso ao quadro das condições naturais, fazendo com que situações inéditas para o organismo sejam tratadas a partir de alusões às situações naturais que lhes são prescritas biologicamente. Merleau-Ponty cita o seguinte experimento efetuado por Buytendijk (2006): ao colocarmos diante de um sapo uma minhoca isolada por um vidro transparente, o anfíbio tenta incessantemente capturar sua presa, sem condições de situar-se no virtual para idealizar um comportamento alternativo ou a simples desistência da tarefa impossível, pois o seu a priori biológico prescreve, diante de um alvo, a repetição contínua até a sua captura. Em outras palavras, o modo sincrético de ser do sapo lhe faz permanecer em uma ancoragem biológica que Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 43 limita seu leque comportamental. Esta mesma ancoragem, por outro lado, oferece opções comportamentais variadas em outras ocasiões: se, digamos, apresentarmos ao sapo uma formiga cujo gosto é ruim, esta experiência singular é o suficiente para instaurar uma inibição em relação a todas as outras formigas da mesma espécie. Desse modo, o caráter sincrético não significa a fixação absoluta de um comportamento, mas apenas o número limitado de reações que determinados organismos possuem. A modalidade amovível, por sua vez, é entendida como um avanço em relação à sintética, pois diz respeito a organismos que possuem um grau de independência maior, que já possuem uma noção mais integrada da relação entre meios e fins. A fim de ilustrar os organismos pertencentes a esta modalidade, Merleau-Ponty refere-se aos experimentos de Köhler com chimpanzés: Köhler observou que um chimpanzé, munido de uma caixa e um galho de árvore, consegue obter um cacho de bananas. Porém, o que interessa a Merleau-Ponty é destacar que este comportamento, apesar de claramente superior ao do sapo, permanece preso a uma vinculação imediata ao ambiente, ou seja, se um galho é entendido por um chimpanzé como um instrumento de obtenção de alimento e uma caixa como degrau para ajudá-lo na aproximação do galho, este comportamento, no entanto, mantém-se preso ao imediatismo e ao caráter objetivo da situação concreta do primata. Em outras palavras, o galho não é entendido pelo chimpanzé como instrumento para fins alternativos ou até mesmo para este mesmo fim de obter alimento em um momento do porvir. Com isso, fica mais uma vez evidente a peculiaridade da esfera simbólica humana: o homem possui um poder superior de situar-se no virtual por conta do grau de variação ilimitada do uso e valoração de objetos, situando-o em um plano cognitivo superior aos demais animais que, nos termos de MerleauPonty, permanecem presos às modalidades sintéticas e amovíveis. 44 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista Após a definição da esfera simbólica a partir das noções de Hegel e Goldstein, configurando-a como uma superação das modalidades comportamentais sincrética e amovível, Merleau-Ponty volta agora sua atenção a Freud. É a partir de uma breve consideração da obra do psicanalista que o fenomenólogo pretende “precisar as relações da dialética propriamente humana com a dialética vital”.70 Sua crítica a Freud nesta obra é apenas um brevíssimo esboço de tentativa de integração da noção de Gestalt às categorias psicanalíticas de complexo, recalque, repressão, sublimação, compensação, etc. Vale ressaltar que, apesar da postura confrontativa, Merleau-Ponty é devedor do pensamento freudiano, deixando isso ainda mais claro na Fenomenologia da Percepção e demais obras subsequentes. Contudo, apesar de sua filiação à psicanálise, Merleau-Ponty encontra dois problemas: primeiro, há uma certa forma de argumentação freudiana que “transforma as descobertas da psicanálise numa teoria metafísica da existência humana”71, pois há uso de uma linguagem não adequada aos fenômenos que ela mesma compilou; em segundo lugar, Freud nem sempre consegue elucidar aquilo que caracteriza a dialética humana propriamente dita, já que “A obra de Freud não é um quadro da existência humana, mas um quadro de anomalias, por mais frequentes que sejam”.72 Desse modo, Merleau-Ponty argumenta que os mecanismos freudianos de explicação nem sempre funcionam como a definição correta da esfera simbólica humana enquanto tal, pois, apesar de ser inegável que há casos de “homens cuja conduta é totalmente explicável pela história da libido, cujos atos só têm relação com o universo da biologia”73, o filósofo francês – sem 70 Ibid., p. 275. 71 Ibid., p. 276. 72 Ibid., p. 279. 73 Idem. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 45 postular um dualismo ontológico – defende a importância da esfera fenomenológica como preponderante em diversos casos individuais para a elucidação de condutas, ou seja, nem sempre devemos recorrer à infância de alguém ou a pulsões biológicas para apresentarmos uma compreensão do estado psiológico de um indivíduo. Essa é a grande diferença entre uma postura fenomenológica e uma postura psicanalítica na teorização do homem e na prática clínica. Não obstante, não há incompatibilidade em um uso combinado das duas tradições, como o próprio Merleau-Ponty demonstra. De qualquer modo, a partir de tais críticas, Merleau-Ponty indica que nem toda prática clínico-terapêutica deve se pautar exclusivamente em questões atreladas especificamente à sexualidade ou ao passado do paciente, pois o Dasein está para além da sexualidade ou da mera influência de epísódios pretéritos. Não muito tempo depois, em 1945 para sermos mais exatos, MerleauPonty - no ensaio A Dúvida de Cézanne - retoma brevemente os limites e o valor da psicanálise. Ao criticá-la de um modo análogo ao que encontramos em Karl Popper, Merleau-Ponty demonstra os impasses que surgem se quisermos classificar a psicanálise como uma ciência propriamente dita. Porém, diz o francês, ainda assim tais críticas não são o suficiente para a descartarmos a obra de Freud, pois sua contribuição magnânima para o entendimento da esfera simbólica - especialmente nos casos de patologias ligadas à sexualidade - é simplesmente inegável. Esta absorção de Freud, como dissemos, dar-se-á de forma mais aprofundada na Fenomenologia da Percepção e o trecho a seguir que encontramos no ensaio sobre Paul Cézanne é de suma importância para entendermos a relação crítica e, ao mesmo tempo, frutífera que Merleau-Ponty manteve ao longo de sua vida com a psicanálise. Ao comentar sobre as análises de Freud sobre a infância 46 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista e o eventual desenvolvimento da personalidade de um outro pintor, Leonardo da Vinci, Merleau-Ponty sintetiza sua posição geral sobre a obra freudiana. O que pode haver de arbitrário nas explicações de Freud não podem neste contexto tirar o crédito da intuição psicanalítica. É verdade que o leitor é interrompido mais de uma vez pela falta de evidência. Porque isso e não outra coisa? A questão parece se impor cada vez mais, já que Freud oferece constantemente várias interpretações, sendo cada sintoma “sobre-determinado”, de acordo com ele. Finalmente, é óbvio que uma doutrina da qual traz-se à tona a sexualidade em todo lugar não pode, pelas regras da lógica indutiva, estabelecer sua eficácia em lugar algum, já que, ao excluir todos os casos diferenciais de antemão, se priva de toda contra-evidência. É assim que se triunfa sobre a psicanálise, mas apenas no papel. Pois se as sugestões do analista nunca podem ser provadas, tampouco podem ser descartadas [...] Como podemos negar que a psicanálise nos ensinou a notar ecos, alusões e repetições de um momento da vida para outro concatenados de um modo que nem sonharíamos em duvidar se Freud tivesse atestado a correta teoria por trás disso? Ao contrário das ciências naturais, a psicanálise não foi feita para dar-nos as relações necessárias de causa e efeito, mas sim para apontar as relações de motivação que, em princípio, são possíveis.74 Findada a análise das três esferas, Merleau-Ponty retoma o ponto central de sua investigação: a questão, no fundo, não é entre materialismo e idealismo, mas sim entre atomismo e holismo. O que deve ser ultrapassado é a dicotomia simplista que visa iluminar a estrutura do 74 MERLEAU-PONTY. Sense and Non-Sense, 1964, p. 24, tradução nossa: “Whatever is arbitrary in Freud's explanations cannot in this context discredit psychoanalytical intuition. True, the reader is stopped more than once by the lack of evidence. Why this and not something else? The question seems all the more pressing since Freud often offers several interpretations, each symptom being "over-determined" according to him. Finally, it is obvious that a doctrine which brings in sexuality everywhere cannot, by the rules of inductive logic,\ establish its effectiveness anywhere, since, excluding al differential cases beforehand, it deprives itself of any counter-evidence. This is how one triumphs over psychoanalysis, but only on paper. For if the suggestions of the analyst can never be proven, neither can they be eliminated [...] How can we deny that psychoanalysis has taught us to notice echoes, allusions, repetitions from one moment of life to another-a concatenation we would not dream of doubting if Freud had stated the theory behind it correctly? Unlike the natural sciences, psychoanalysis was not meant to give us necessary relations of cause and effect but to point to motivational relationships which are in principle simply possible”. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 47 comportamento sem levar em conta que a forma do todo (relação organismo-ambiente) deve ser compreendida como um fator que exige a introdução de uma causalidade de ordem circular ou dialética. A negação do realismo materialista só parece possível em prol do realismo mentalista e vice-versa. Não se vê que, a partir do momento em que o comportamento é tomado “na sua unidade” e no seu sentido humano, não é mais com uma realidade material que estamos lidando e menos ainda, aliás, com uma realidade psíquica, mas com um conjunto significativo ou com uma estrutura [Gestalt] que não pertence nem ao mundo exterior, nem à vida interior. É o realismo em geral que seria necessário questionar [...] Auxiliados pela noção de estrutura ou de forma, percebemos assim que o mecanismo e o finalismo deviam ser, ambos, rejeitados, e que o “físico”, o “vital” e o “psíquico” não representavam três potências de ser, mas três dialéticas [...] não podíamos simplesmente justapor essas três ordens, e cada uma delas, não sendo uma nova substância, deveria ser concebida como uma retomada e uma nova estruturação da precedente.75 Com isso, a resposta de Merleau-Ponty à dicotomia entre res cogitans e res extensa constitui-se como a defesa de uma perspectiva holística que, por meio da noção de Gestalt, integra as três esferas comentadas e, dessa forma, consegue estabelecer uma perspectiva naturalista e dialética que, auxiliada pelas noções de trabalho e atitude categorial, explica a característica propriamente diferencial da esfera humana sem apelo a uma res cogitans, chegando assim à conclusão de que “A ‘estrutura’ [Gestalt] é a verdade filosófica do naturalismo e do realismo”76. Ao final da obra em questão, Merleau-Ponty aponta também uma outra categoria que devemos dar atenção se quisermos chegar enfim à compreensão da estrutura do comportamento, a saber, a percepção, 75 MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, pp. 284-286. 76 Ibid., p. 345. 48 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista deixando claro aquilo que irá ocupá-lo na Fenomenologia da Percepção. Dessa forma, para finalizarmos a exposição da obra inaugural de MerleauPonty, vejamos as indicações estabelecidas para o posterior estudo da percepção. C) Percepção e Intelecção A análise da percepção não causa espanto se lembrarmos que o intuito das obras iniciais de Merleau-Ponty consiste em harmonizar as teses provenientes da fenomenologia husserliana e da Gestalttheorie. Como se sabe, os principais teóricos da última sempre privilegiaram a percepção como o objeto de estudo por excelência.77 De modo análogo, Husserl, como se sabe, se concentra em uma fenomenologia do Lebenswelt em seu último período, aproximando-o assim deste esforço em busca de uma descrição da apreensão originária antepredicativa.78 Dessa forma, o estudo da percepção em A Estrutura do Comportamento trata de apontar, de forma incipiente, o aspecto primordial da percepção do organismo em sua relação com o ambiente, ou seja, deve-se entender que a percepção é uma atividade de ordem pré-reflexiva, já que a dinâmica organismo-ambiente situa-se além de “distinções substanciais entre o organismo, o pensamento e a extensão”, na verdade, ela funciona como um “comércio direto com os seres, as coisas e o seu próprio corpo”.79 A Estrutura do Comportamento já defende a ideia de percepção como algo para além das posições realistas e intelectualistas, isto é, a percepção não é uma ação das coisas sobre o corpo, nem do espírito sobre o mundo. Merleau-Ponty relembra e rejeita a posição de Epicuro: a percepção não 77 Cf. KOFFKA. Perception: an introduction to the Gestalt Theory (1922). 78 Cf. HUSSERL. A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental: Uma Introdução à Filosofia Fenomenológica (2012); RICOEUR. Na Escola da Fenomenologia (2009). 79 MERLEAU-PONTY. A Estrutura do Comportamento, 2006, p. 293. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 49 funciona via simulacros que adentram o organismo fazendo do percebido um tipo de arranjo da matéria equivalente ao objeto apreendido que, de algum modo, penetraria materialmente a corporeidade, causando assim a percepção. É errôneo pensá-la “como uma imitação ou um desdobramento das coisas sensíveis em nós, ou como a atualização na alma de alguma coisa que estava em potência num sensível exterior”.80 Para MerleauPonty, este tipo de epistemologia epicurista, que encontra reverberações em psicologias empiristas de seu tempo, constituem uma “mitologia explicativa”.81 O próprio Descartes, lembra Merleau-Ponty, já havia atacado este tipo de posição em sua Dióptrica ao rejeitar “a ação transitiva pela qual coisas sensíveis, idênticas aos objetos percebidos, imprimiriam sua imagem no corpo”.82 Dito de outro modo, o erro fundamental de uma perspectiva realista consiste no “desejo de converter numa ação causal essa relação original [...] a ótica e a teoria da luz excluíram a ideia de uma semelhança entre a coisa real e o percebido”.83 Merleau-Ponty, mais uma vez, defende a perspectiva de uma causalidade circular quando estamos a falar da intencionalidade proveniente da matéria orgânica. Não há uma equivalência entre objeto e percepção, pois o “vermelho como sensação e o vermelho como ‘quale’ devem ser distinguidos”.84 O que Merleau-Ponty aponta é a necessidade de entender a gênese da percepção não do modo “como se constrói uma casa, reunindo materiais emprestados dos sentidos e materiais emprestados da memória; não podemos explicá-la como um acontecimento da natureza”.85 Para que não haja dúvida: dizer que a percepção não é um ‘acontecimento da natureza’ é apenas um modo de 80 Ibid., p. 295. 81 Idem. 82 Idem. 83 Ibid., p. 299. 84 Ibid., p. 306. 85 Ibid., p. 307. 50 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista asseverar que ela extrapola explicações limitadas a uma causalidade de tipo linear e não que há uma instância ontológica distinta da corporeidade em ação. Mesmo a natureza inorgânica parece romper, ao nível quântico, este tipo de visão e por isso que em sua breve menção à mecânica quântica percebe-se como Merleau-Ponty a posiciona como um novo paradigma que nos permite introduzir uma posição dialética mesmo no entendimento de certas ocasiões da matéria inanimada: “sem dúvida a física quântica nos ensinou a introduzir em nossa imagem do mundo físico dados ‘a-causais’, com base nos quais não podemos afirmar por princípio uma causalidade do tipo clássico”.86 A partir da crítica precedente, Merleau-Ponty finalmente introduz sua definição de percepção: não uma organização dos dados sensíveis transpostos ao organismo por meio dos sentidos, mas o desvelamento do sentido que há no objeto-para-nós. Além disso, a própria investigação deste desvelar-se, conclui Merleau-Ponty, faz da filosofia - quando ocupada desta questão - uma fenomenologia. A única maneira, para uma coisa, de agir sobre um espírito, é oferecer-lhe um sentido, manifestar-se nele, constituir-se diante dele em suas articulações inteligíveis. A análise do ato de conhecer leva à ideia de um pensamento constituinte ou naturante que funda interiormente a estrutura característica dos objetos. Para marcar ao mesmo tempo a intimidade dos objetos com o sujeito e a presença, neles, de estruturas sólidas que os distinguem das aparências, nós os chamaremos de ‘fenômenos’ e a filosofia, na medida em que se atém a este tema, se torna uma fenomenologia, ou seja, um inventário da consciência como meio do universo.87 86 Ibid., p. 241. 87 Ibid., p. 308. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 51 Uma fenomenologia da percepção, pois, defende o seguinte: “É a própria coisa que alcanço na percepção, já que toda coisa na qual podemos pensar é um ‘significado de coisa’ e que chamamos justamente percepção o ato no qual esse significado se revela para mim”.88 Uma investigação que separa e categoriza os dados sensíveis de um objeto percebido não conseguiria encontrar nada “porque qualquer consciência de qualquer coisa [...] por exemplo, como ‘uma cor’ ou mesmo ‘este vermelho único’, pressupõe [...] a apreensão de um sentido que não está contido nela, não é uma de suas partes reais”.89 Não pode haver uma identificação entre objeto e percepção. Merleau-Ponty reproduz a clássica distinção de John Locke entre qualidades primárias e qualidades secundárias: “Não posso identificar pura e simplesmente o que percebo e a própria coisa. A cor vermelha do objeto que eu olho é e sempre permanecerá conhecida apenas por mim mesmo”.90 Merleau-Ponty aponta o erro em entender a percepção a partir de partes extensas, ou seja, como alguma coisa “que esteja confinada no interior da caixa craniana”.91 Tomemos o exemplo da alucinação: “ninguém pensa em explicar por suas condições fisiológicas o conteúdo de um delírio, mesmo se essa forma de consciência pressupõe in existendo alguma alteração no cérebro”92. Não é que uma alucinação não possua raízes em substratos fisiológicos (como a alteração do funcionamento cerebral pelo uso de mescalina ou de L.S.D.), nem mesmo que uma condição como a esquizofrenia não possua causas genéticas e que os surtos de tal condição não sejam proveniente e, ao mesmo tempo, produzam modificações no 88 Ibid., p. 309. 89 Ibid., p. 310. 90 Ibid., p. 326. 91 Ibid., p. 317. 92 Ibid., p. 318. 52 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista cérebro, mas sim que o “conteúdo do delírio”, ou seja, aquilo que de fato é o objeto da percepção, a noesis que tematiza o delírio, não pode ser pensada ou explicada a partir de uma perspectiva de terceira pessoa, pois a percepção não se trata de um registro passivo de inputs desassociados que trazem à tona um output determinado, mas sim uma dialética entre organismo e Umwelt em que conteúdos perceptivos (no caso, o conteúdo de um delírio) se dão a partir das especificidades da historicidade de um organismo: “O percebido não é um efeito do funcionamento cerebral, é seu significado […] o comportamento, longe de ser uma coisa que existe em si, é um conjunto significativo para uma consciência que o considera”.93 Dessa forma, devemos entender o percebido, isto é, as coisas que estão fora de nós, “exatamente no sentido em que as vejo, na minha história e fora dela, inseparáveis dessa dupla relação”.94 Isso nos leva mais uma vez à dialética das três esferas comentadas previamente: o fato de haver uma diferenciação entre as estruturas física, vital e humana não significa a ausência de uma integração; significa apenas que, conforme o grau de estruturação que estamos a lidar, uma nova dialética se impõe e, consequentemente, uma nova compreensão é exigida: “existe o corpo como massa de compostos químicos em interação, o corpo como dialética do ser vivo e de seu meio biológico” e, finalmente, “o corpo como dialética do sujeito social e de seu grupo”.95 Por fim, Merleau-Ponty conclui a obra argumentando que todos os problemas precedentes podem ser reduzidos ao problema da percepção. É mister entender que, ao contrário de Canguilhem (que se atém a uma filosofia da biologia), Merleau-Ponty concentra seus estudos em uma fenomenologia da percepção ou da corporeidade enquanto tal, logo, a 93 Ibid., pp. 323-335. 94 Ibid., p. 338. 95 Ibid., p. 335. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 53 articulação entre as esferas trabalhadas n’A Estrutura do Comportamento (1942) encontra no estudo da percepção corporal sua chave de compreensão, pois, em tese, seria no desvelamento pré-reflexivo da corporeidade humana que reside o entrelaçamento dialético da valoração orgânica e da representação simbólica superior (trabalho/atitude categorial). Portanto, devemos nos ater à forma de apreensão antepredicativa que caracteriza a percepção e notar que ela “ainda não é uma intelecção”96, ou seja, devemos direcionar nosso estudo àquilo que Husserl chamou de Lebenswelt e Heidegger de In-der-Welt-sein. É isso o que Merleau-Ponty faz na Fenomenologia da Percepção (1945), como veremos no capítulo seguinte. 96 Ibid., p. 345. II Temporalidade e Espacialidade Trataremos agora dos principais postulados da Fenomenologia da Percepção (1945), a saber, a retomada e aprofundamento da discussão sobre a noção de percepção iniciada ao final de sua obra anterior e, finalmente, as formulações acerca das relações entre intencionalidade, espacialidade e temporalidade, ou seja, veremos como Merleau-Ponty estabelece a motricidade como intencionalidade operante e de que forma esta esfera primordial da corporeidade estabelece uma dialética espaçotemporal própria a cada organismo. A) Percepção e Lebenswelt A percepção é o irrompimento espontâneo de Gestalten, ou seja, é a estruturação pré-reflexiva do campo fenomênico de um organismo, ou ainda, é a organização irrefletida de uma figura sobre um fundo. Não há, no ato perceptivo, uma espécie de computação de dados isolados ou entes puros que seriam, enfim, sintetizados, mas sim a apreensão direta de conjuntos significativos destacados de um fundo. Esta apreensão não é um arranjo proveniente de uma operação consciente, mas sim um sentido que vem à tona a partir das relações vitais do organismo. Dessa forma, a realidade nem é um amontoado disforme da matéria, tampouco uma organização ativa da consciência, mas uma dialética vital entre organismo e Umwelt. A percepção é uma relação prática da corporeidade com os conjuntos significativos que, por sua vez, são apreendidos como possibilidades de ação, intervenção ou interação do organismo em seu meio. Em poucas Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 55 palavras, a consciência deve ser descrita, antes de tudo, como uma corporeidade que responde às solicitações práticas do mundo que provém da percepção pré-reflexiva de Gestalten. No mesmo ano de publicação da Fenomenologia da Percepção (1945), Merleau-Ponty publica o ensaio O Filme e a Nova Psicologia em Les Temps Modernes. Nele, Merleau-Ponty - por meio de considerações sobre o cinema - nos apresenta algumas das principais contribuições da então nova psicologia (no caso, a psicologia da Gestalt) para o entendimento da cognição. Dessa forma, nosso intuito é o de, primeiramente, repassar o argumento desenvolvido no ensaio aludido e, então, voltarmos nossa atenção às formulações contidas na Fenomenologia da Percepção. Acompanhando o então recente desenvolvimento da Gestalttheorie, Merleau-Ponty nos lembra que a atitude analítica, ou seja, a atitude que separa, divide e categoriza as partes de um todo, é um tipo de atividade perceptiva posterior de nossa intencionalidade, o que definitivamente não traduz nossa relação perceptiva originária. Em outras palavras: “A percepção de formas [Gestalten], entendidas de forma geral como estrutura, agrupamento ou configuração deve ser considerada como o nosso meio espontâneo de ver”.1 Dois exemplos são colocados por Merleau-Ponty para entendermos nossa percepção como um “sistema de configurações”2: primeiro, o modo como nossos olhos percebem as cores e não funcionam como um puro paralelismo fisiológico; segundo, a percepção de notas dentro de uma melodia. Vejamos, primeiramente, o segundo caso. Duas são as principais contribuições da Gestalttheorie no entendimento do mecanismo da percepção: primeiro, a percepção funciona 1 MERLEAU-PONTY, Sense and Non-Sense (1964), p. 49: “The perception of forms, understood very broadly as structure, grouping, or configuration should be considered our spontaneous way of seeing”. 2 Ibid., p. 48: “Broadly speaking, we should think of it [A Percepção] not as a mosaic but as a system of configurations”. 56 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista teleologicamente ao agrupar, estruturar ou configurar os elementos de determinado contexto; segundo, essa configuração, ou estruturação perceptiva, funciona, necessariamente, como um processo de destacamento de uma figura sobre um fundo, ou seja, sempre há aquilo em destaque e aquilo como pano de fundo. Além disso, como dito, tal processo ocorre abaixo do fluxo de consciência. Os teóricos da Gestalt encontraram estruturas de experiência nas quais os princípios de organização são independentes de nossa apreensão explícita e controle consciente, porém, tais estruturas devem ser entendidas como se operassem guiadas por uma ideia, i.e., uma função ou objetivo em relação ao qual as partes na estrutura são atribuídas a sua função.3 O exemplo da percepção auditiva de uma melodia musical nos é claro em relação às duas contribuições comentadas: se estou a escutar uma música qualquer (figura), ela não confunde-se com os barulhos extras do ambiente (fundo), isto é, ao ouvir uma música, o barulho de uma conversa no cômodo ao lado ou de uma buzina de carro vindo da rua (fundo) não serão interpretados como parte da melodia (figura) ou, ao contrário, se foco minha atenção para conversar com uma pessoa durante um concerto, a música (fundo) não será interpretada como parte da conversa (figura). Além disso, agora limitando-nos ao exame das partes (notas) e do todo (melodia) de uma música qualquer, podemos afirmar também o seguinte: cada nota de uma música existe em relação à melodia em sua totalidade e, com isso, a mudança de uma ou algumas notas fazem do todo algo diferente. Porém, não é só isso: uma mesma nota, digamos, dó sustenido, pode ser percebida de um modo em uma melodia e de outro em uma DREYFUS apud MERLEAU-PONTY (1964), p. xvii: “Gestaltists found structures of experience whose organizing principles are independent of our explicit awareness and conscious control, yet which have to be understood as if controlled by an idea, i.e., a function or goal in respect to which the parts in the structure are assigned their role”. 3 Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 57 música estruturada diferentemente, ou seja, não só o todo (melodia) pode ser afetado pela mudança de uma parte (nota), como a parte também é afetada pelo todo: o input (dó sustenido) pode ser o mesmo, mas a Gestalt (melodia) modifica-o. Em suma, uma melodia não é uma soma justaposta de notas pois “tal percepção do todo é mais natural e mais primária que a percepção de elementos isolados”.4 Vejamos agora a percepção visual como segundo exemplo de confirmação da percepção como um processo primário de organização espontânea de Gestalten.5 A psicologia clássica, argumenta Merleau-Ponty, parte de uma espécie de atomismo epistemológico para estabelecer a explicação da formação do nosso campo visual. Este atomismo é nada mais que um tipo de materialismo reducionista que entende a visão como uma recepção passiva de estímulos que, ao perceber a composição de uma imagem, dependeria estritamente da posição espacial do estímulo, ou input, na retina. Tal definição não se sustenta. Merleau-Ponty esclarece o equívoco: A psicologia clássica considera o nosso campo visual como uma soma ou mosaico de sensações, cada qual rigorosamente dependente do estímulo local correspondente na retina. A nova psicologia revela, em primeiro lugar, que tal paralelismo entre sensações e fenômenos nervosos, condicionando-os, é inaceitável até nas mais simples e imediatas sensações. A nossa retina está longe de ser homogênea: certas partes, por exemplo, são cegas ao azul ou ao vermelho, no entanto, eu não vejo nenhuma área discolor quando olho uma superfície azul ou vermelha. Isso é porque, começando ao nível do simples ato de ver cores, a minha percepção não está limitada a registrar aquilo que o MERLEAU-PONTY, 1964, p. 49: “Such a perception of the whole is more natural and more primary than the perception of isolated elements”. 4 5 Na Fenomenologia da Percepção, como veremos mais adiante, Merleau-Ponty mais uma vez irá sintetizar a contribuição da psicologia da Gestalt: “Quando a Gestalttheorie nos diz que uma figura sobre um fundo é o dado sensível mais simples que podemos obter, isso não é um caráter contingente da percepção de fato [...] Trata-se da própria definição do fenômeno perceptivo, daquilo sem o que um fenômeno não pode ser chamado de percepção. O ‘algo’ perceptivo está sempre no meio de outra coisa, ele sempre faz parte de um ‘campo’ [...] Portanto, a pura impressão não apenas é inencontrável, mas imperceptível e portanto impensável como momento da percepção [...] Um dado perceptivo isolado é inconcebível” (MERLEAU-PONTY, 1999, pp.24-25, grifo nosso). 58 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista estímulo da retina prescreve, mas reorganiza estes estímulos de forma a restabelecer a homogeneidade do campo. De maneira geral, nós deveríamos pensá-la não como um mosaico mas como um sistema de configurações. Grupos, em vez de elementos justapostos, são principais e primários em nossa percepção.6 Há ainda um outro aspecto citado por Merleau-Ponty no intuito de demonstrar a superioridade da nova psicologia em relação ao atomismo clássico: entender a sinestesia como regra e não como exceção. MerleauPonty lembra que pessoas sob efeito de mescalina percebem constantemente com os sentidos entrecruzados, porém, este aspecto sinestésico não é exclusivo de consciências farmacologicamente alteradas. Pessoas cegas conseguem representar cores por sons, como quando “um homem cego afirmou que o vermelho é algo como o soar de um trompete”7 e mais: Mesmo sujeitos normais falam de cores quentes, frias, estridentes ou duras; de sons que são límpidos, afiados, brilhantes, duros ou de barulhos suaves e de fragrâncias penetráveis. Cézanne disse que pode-se ver o aspecto de veludo, a dureza, a suavidade e até mesmo o odor de objetos. Minha percepção é, portanto, não uma soma de dados visuais, táteis e sonoros: Eu percebo de uma forma totalizante com a totalidade do meu ser; Eu capturo uma estrutura [Gestalt] única da coisa, um modo único de ser, que relaciona-se com todos os meus sentidos simultaneamente.8 6 Ibid., p. 48: “Classical psychology considers our visual field to be a sum or mosaic of sensations, each of which is strictly dependent on the local retinal stimulus which corresponds to it. The new psychology reveals, first of all, that such a parallelism between sensations and the nervous phenomenon conditioning them is unacceptable, even for our simplest and most immediate sensations. Our retina is far from homogeneous: certain parts, for example, are blind to blue or red, yet I do not see any discolored areas when looking at a blue or red surface. This is because, starting at the level of simply seeing colors, my perception is not limited to registering what the retinal stimuli prescribe but reorganizes these stimuli so as to re-establish the field's homogeneity. Broadly speaking, we should think of it not as a mosaic but as a system of configurations. Groups rather than juxtaposed elements are principal and primary in our perception”. 7 Ibid., p. 49: “a blind man said that red ought to be something like a trumpet peal”. Ibid., p. 50: “Even normal subjects speak of hot, cold, shrill, or hard colors, of sounds that are clear, sharp, brilliant, rough, or mellow, of soft noises and of penetrating fragrances. Cezanne said that one could see the velvetiness, the hardness, the softness, and even the odor of objects. My perception is therefore not a sum of visual, tactile, and audible givens: I perceive in a total way with my whole being; I grasp a unique structure of the thing, a unique way of being, which speaks to al my senses at once”. 8 Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 59 Tomando a sinestesia como a percepção em seu estado normal, podemos entender a seguinte passagem da Fenomenologia da Percepção, quando Merleau-Ponty retoma e reafirma a relação entre sinestesia e compreensão do ato perceptivo. a visão dos sons ou a audição das cores existem como fenômenos. E eles não são nem mesmo fenômenos excepcionais. A percepção sinestésica é a regra [...] A hipótese de constância, que para cada estímulo atribui uma e apenas uma sensação, é tanto menos verificada quanto mais nos aproximamos da percepção natural. [...] O fenômeno das sinestesias é paradoxal. Procura-se explicá-lo sem tocar no conceito de sensação; será preciso, por exemplo, supor que as excitações ordinariamente circunscritas a uma região do cérebro - zona ótica ou zona auditiva - tornam-se capazes de intervir fora desses limites, e que assim à qualidade específica acha-se associada uma qualidade não-específica. Quer tenha ou não ao seu favor argumentos de fisiologia cerebral, essa explicação não dá conta da experiência sinestésica, que se torna assim uma nova ocasião de colocar em questão o conceito de sensação e o pensamento objetivo.9 Considerando agora o cinema como um objeto percebido, podemos concebê-lo aos moldes do que fora colocado anteriormente acerca dos princípios comentados em relação à música e à visão. Para Merleau-Ponty, é a Gestalttheorie que “nos leva diretamente às melhores observações dos esteticistas do cinema”, pois é com ela que podemos definir o filme não como “uma soma total de imagens mas como uma Gestalt temporal”.10 Para demonstrar a veracidade de sua afirmação, Merleau-Ponty nos lembra do famoso experimento de Vsevolod Pudovkin, cineasta russo que, com a ajuda do ator Ivan Mosjoukine, elaborou o seguinte teste de reação 9 Id., 1999, pp. 307-308. Id., 1964, p. 54: “the new psychology leads us straight to the best observations of the aestheticians of the cinema [...] a film is not a sum total of images but a temporal Gestalt”. 10 60 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista do público: Pudovkin filmou um close-up do rosto de Mosjoukine, orientando-o a fazer uma expressão impassível. Com essa cena em mãos, Pudovkin fez três montagens, sempre mostrando primeiramente uma determinada cena e depois a face indiferente de Mosjoukine. Na primeira, vemos uma tigela de sopa; na segunda, uma jovem mulher falecida deitada em seu caixão; finalmente, na terceira cena, Pudovkin colocou uma criança brincando com um urso de pelúcia. A reação e os comentários dos espectadores em relação ao que o rosto de Moujoskine expressava foi praticamente unânime: a primeira cena, disse o público, traz um homem pensativo ao olhar a sopa; a segunda possui um homem visivelmente em luto; a terceira, por sua vez, mostrou - aos olhos do público - um homem feliz ao observar a pureza de uma criança a brincar. Com isso, fica claro mais uma vez aquilo dito anteriormente sobre a percepção de uma nota musical dentro de diferentes melodias totais: apesar da imagem de Moujoskine ter sido a mesma em todas as três montagens, diferentes expressões foram percebidas pelo público devido ao fato - insistentemente defendido pela Gestalttheorie - que a parte deve sempre ser entendida em relação ao todo, ou seja, do mesmo modo que um dó sustenido varia dependendo das notas precedentes e subsequentes, uma mesma expressão pode ser tomada de diversas formas de acordo com as demais cenas que compõem a totalidade da cena, por isso que Merleau-Ponty, ao apresentar a experiência comentada, afirma que ela é extremamente pertinente ao nos mostrar a “unidade melódica dos filmes”11 (expressão claramente análoga ao modo que Uexküll definia os organismos). Em outras palavras, mais uma vez encontramos a primazia da percepção: eu não represento conscientemente o mundo no ato perceptivo, meu organismo agrupa e estrutura os elementos em uma totalidade para que, enfim, minha 11 Idem: “This is the moment to recall Pudovkin's famous experiment which clearly shows the melodic unity of films”. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 61 consciência possa emitir juízos. Com isso em mente, a definição anterior do filme como uma ‘Gestalt temporal’ ganha ainda mais força e relevância no entendimento do próprio ofício da feitura cinematográfica: o diretor é aquele responsável por montar as cenas que compõem a história de tal forma que cada enquadramento, cada escolha na ordem das cenas (além do tempo de duração de cada uma) servirá como um todo que irá influenciar aquilo percebido em cada um dos elementos, fazendo da percepção do público, até certa medida, algo controlável. Porém, como lembra MerleauPonty, o trabalho de direção é algo que não possui fórmulas explícitas, fazendo do filme um objeto que só pode ser pensado ao ser feito, como no engajamento ético-existencial de uma vida em que, para o sujeito, resta apenas fazer o caminho ao caminhar. Em suma, o diretor é aquele que consegue manipular a “linguagem cinematográfica como o homem manipula a sintaxe: sem pensar explicitamente sobre e sempre sem poder estar em uma posição capaz de formular as regras das quais ele obedece espontaneamente”.12 Outro ponto lembrado por Merleau-Ponty é a diferença entre cinema mudo e cinema falado. Ao considerarmos a junção de som e imagem, surge um outro tipo de totalidade estética, pois uma nova possibilidade se abre no que diz respeito, por exemplo, à apresentação e à caracterização de personagens ou também no uso da música como componente essencial para o estabelecimento do modo que uma cena será percebida. Quanto ao papel da música, Merleau-Ponty - pela primeira e única vez no ensaio em questão – arrisca estabelecer diretrizes estéticas: a música, argumenta, deve ser incorporada ao filme e não justaposta a ele. Ibid., p. 55: “[The director] handles cinematographic language as a man manipulates syntax: without explicitly thinking about it and without always being in a position to formulate the rules which he spontaneously obeys”. 12 62 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista A música não deve ser usada como um substituto improvisado para vazios sonoros ou como um comentário completamente exterior dos sentimentos ou das cenas como acontece tão frequentemente nos filmes: a tempestade de ira desencadeia a tempestade de instrumentos de sopro, ou então a música laboriosamente imita o som de passos ou de uma moeda caindo no chão. A música deve intervir para marcar uma mudança no estilo do filme: por exemplo, a passagem de uma cena de ação para o “interior” do personagem, para a rememoração de cenas anteriores ou para a descrição de uma paisagem. De maneira geral, deve acompanhar e ajudar a trazer a tona uma “ruptura no equilíbrio sensorial”, como Jaubert disse. Finalmente, não deve ser apenas um outro meio de expressão justaposto à experiência visual.13 Não é somente com a música que o cinema falado diferencia-se do cinema mudo. Primeiro, lembremos do óbvio: um filme conta uma história. Uma história, por sua vez, é algo, a princípio, transmissível via prosa. Desse modo, o filme pode, grosso modo, ser entendido como a representação imagético-sonora da prosa. Exemplos de adaptações cinematográficas de obras literárias (quase sempre não-fiéis, como se sabe) tomariam todo o espaço da presente dissertação e o fato de haver adaptações boas e ruins também não vêm ao caso. O que importa aqui são as semelhanças entre prosa e cinema: ambas são manifestações estéticas que, predominantemente pela forma, demonstram seu valor artístico, pois “ideias e fatos são apenas o material bruto da arte: a arte do romance reside na escolha do que se fala e do que não se fala, na escolha de perspectivas”.14 Do mesmo modo no filme: cada obra cinematográfica 13 Ibid., p. 56, grifo nosso: “Music should not be used as a stopgap for sonic holes or as a completely exterior commentary on the sentiments or the scenes as so often happens in movies: the storm of wrath unleashes the storm of brass, or the music laboriously imitates a footstep or the sound of a coin falling to the ground. It should intervene to mark a change in a film's style: for example, the passage from an action scene to the "inside" of the character, to the recollection of earlier scenes, or to the description of a landscape. Generally speaking, it should accompany and help bring about a "rupture in the sensory balance," as Jaubert said. Lastly, it must not be another means of expression juxtaposed to the visual expression”. 14 Ibid., p. 57: “Ideas and facts are just the raw materials of art: the art of the novel lies in the choice of what one says and what one does not say, in the choice of perspectives”. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 63 possui ideias e fatos, mas o que importa não são as meras representações dos conteúdos, mas a forma em que surgem. Nos parece correta a seguinte reinterpretação da fórmula kantiana apresentada por Merleau-Ponty: se no conhecimento a imaginação serve em auxílio do entendimento, na arte, por sua vez, o entendimento serve como auxílio da imaginação. Em outras palavras, os fatos e ideias presentes em um filme só existem como pontos de partida para a construção estética de uma Gestalt temporal, pois, como dito, uma produção cinematográfica possui uma significação assim como qualquer objeto no campo fenomênico da percepção: “nenhum dos dois [filme e objeto] existem como um entendimento isolado; ao contrário, ambos apelam ao nosso poder tácito de decifrar o mundo e os homens e de coexistir com eles”, ou seja, “um filme não é pensado mas percebido”.15 Por conta disso, Merleau-Ponty aponta a vantagem que existe no filme em relação à prosa: nem sempre o extenso relato de sentimentos ou situações é melhor ou tão fiel quanto a pura e simples observação do comportamento em uma cena. Nesse ponto podemos perceber que, apesar de toda a influência husserliana na obra de Merleau-Ponty, o fenomenólogo francês não vê problema em se deixar influenciar por certas diretrizes behavioristas que assume a perspectiva de terceira-pessoa como posição explicativa possível, algo também endossado, obviamente, pela Gestalttheorie. De qualquer maneira, é na passagem seguinte que podemos perceber a aproximação merleau-pontiana da perspectiva de terceira-pessoa da nova psicologia em relação ao cinema. É por isso que os filmes podem ser tão cativantes em sua apresentação do homem: eles não nos dão seus pensamentos, como os romances fizeram por Ibid., p. 58: “a movie has meaning in the same way that a thing does: neither of them speaks to an isolated understanding; rather, both appeal to our power tacitly to decipher the world or men and to coexist with them [...] A movie is not thought; it is perceived”. 15 64 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista tanto tempo, mas sua conduta, seu comportamento. Eles apresentam diretamente a nós esse modo especial de ser no mundo, de lidar com as coisas e com as outras pessoas, que podemos ver na linguagem simbólica do gesto ou do olhar e que claramente define cada pessoa que conhecemos. Se um filme quer nos mostrar alguém que está tonto, não deveria tentar retratar a paisagem interior da tontura, como Daquin em Premier de Cordée e Malraux em Sierra de Terruel tentaram. Nós obteremos uma sensação muito melhor da tontura se a observarmos de fora, se contemplamos aquele corpo desequilibrado contorcido em um precipício ou aquele passo instável tentando adaptar-se a sabese lá qual agitação do espaço. Para os filmes, assim como para a psicologia moderna, a tontura, o prazer, o luto, o amor e o ódio são modos de comportamento.16 A apresentação da argumentação encontrada em O Filme e a Nova Psicologia (1945) nos serviu como propedêutica para entendermos a primazia da percepção no processo cognitivo humano. Como ficou claro, a percepção em Merleau-Ponty não é um aspecto da consciência, tampouco constitui-se como a justaposição de inputs isolados, mas sim o processo global de relação pré-reflexiva da corporeidade em seu Umwelt na construção ininterrupta de Gestalten. Em poucas palavras, a percepção não constitui um aspecto da intencionalidade de ato, a percepção é um aspecto da intencionalidade operante (no sentido husserliano, como veremos adiante); ela é a dinâmica antepredicativa do campo fenomênico. Em suma: “Eu não penso o mundo no ato da percepção: o mundo organiza-se à minha frente”.17 16 Idem: “This is why the movies can be so gripping in their presentation of man: they do not give us his thoughts, as novels have done for so long, but his conduct or behavior. They directly present to us that special way of being in the world, of dealing with things and other people, which we can see in the sign language of gesture and gaze and which clearly defines each person we know. If a movie wants to show us someone who is dizzy, it should not attempt to portray the interior landscape of dizziness, as Daquin in Premier de cordée and Malraux in Sierra de Terruel wished to do. We will get a much better sense of dizziness if we see it from the outside, if we contemplate that unbalanced body contorted on a rock or that unsteady step trying to adapt itself to who knows what upheaval of space. For the movies as for modern psychology dizziness, pleasure, grief, love, and hate are ways of behaving”. 17 Ibid., p. 51: “I do not think the world in the act of perception: it organizes itself in front of me”. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 65 A Fenomenologia da Percepção parte do pressuposto apresentado anteriormente: “A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam”.18 Com a percepção definida como o fundamento pré-reflexivo da apreensão corporal do entorno, fica claro o porquê da fenomenologia husserliana ser tão importante para Merleau-Ponty, já que o francês a define como “a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é”19, ou seja, é o esforço de “reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico [...] nosso engajamento efetivo no mundo é justamente aquilo que é preciso compreender”.20 Ora, este ‘contato ingênuo’ é nada mais que a percepção pré-reflexiva de Gestalten ou, para usarmos a expressão de Husserl, o Lebenswelt. Mesmo Heidegger também parte deste aspecto pré-reflexivo e, segundo Merleau-Ponty, “todo Sein und Zeit [...] é apenas uma explicitação [...] do ‘Lebenswelt’ que Husserl, no final de sua vida, apresentava como o tema primeiro da fenomenologia”21, ou seja, “Heidegger quer refletir sobre o irrefletido”, pois o ser-no-mundo é justamente aquilo que “sempre é pressuposto pela reflexão e é anterior a operações predicativas”.22 Com isso, o valor da redução fenomenológica de Husserl fica claro, pois com ela apreende-se a “própria dependência em relação a uma vida irrefletida que é sua situação inicial, constante e final”23. Com esta ancoragem na vivência irrefletida, ou melhor, ao colocar o Lebenswelt como ponto de partida para a construção de uma filosofia, a fenomenologia - 18 Id., 1999, p. 6. 19 Ibid., p. 1. 20 Ibid., p. 11. 21 Ibid., p. 2. 22 Id., 1964, p. 134. 23 Id., 1999, p. 11. 66 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista argumenta Merleau-Ponty - torna-se, na prática, uma forma de existencialismo: “Longe de ser, como se acreditou, a fórmula de uma filosofia idealista, a redução fenomenológica é a fórmula de uma filosofia existencial”, e é por isso que “o ‘In-der-Welt-Sein’ [ser-no-mundo] de Heidegger só se manifesta sobre o fundo da redução fenomenológica”.24 O prefácio da Fenomenologia da Percepção é de suma importância para entendermos a filiação de Merleau-Ponty à tradição husserliana, pois, se “nosso engajamento efetivo no mundo é justamente aquilo que é preciso compreender”25, é na redução fenomenológica que Merleau-Ponty encontra o correlato filosófico daquilo demonstrado empiricamente pela Gestalttheorie. O Lebenswelt nos revela o “silêncio da consciência originária”, onde reside “o núcleo de significação primário em torno do qual se organizam os atos de denominação e de expressão”.26 Em outras palavras, a redução fenomenológica é a ambição de “igualar a reflexão à vida irrefletida da consciência”.27 Daí a importância de Husserl quanto à noção de intencionalidade, pois o próprio Merleau-Ponty nos lembra que “isso não é novo”28, Kant já havia demonstrado que toda consciência é consciência de alguma coisa em sua Refutação do Idealismo, sem falar da obra de Franz Brentano; porém, diz Merleau-Ponty, é com Husserl que há a distinção entre Intencionalidade de Ato, ou seja, “aquela de nossos juízos e de nossas tomadas de posição voluntárias” e Intencionalidade Operante, que constitui “aquela que forma a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida”.29 É por isso que Merleau-Ponty afirma: “a originalidade de Husserl está para além da noção de intencionalidade”, ela 24 Idem. 25 Idem. 26 Ibid., p. 12. 27 Ibid., p. 13. 28 Ibid., p. 15. 29 Ibid., p. 16. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 67 reside, na verdade, “na descoberta, sob a intencionalidade das representações, de uma intencionalidade mais profunda, que outros chamaram de existência”.30 É com essa ampliação da noção de intencionalidade que Husserl distingue-se de Kant e Brentano, pois, enquanto que a intencionalidade de ato diz respeito ao aspecto representacional da consciência (o que possibilita o conhecimento de tipo científico, por exemplo), é na intencionalidade operante que reside o caráter pré-reflexivo ou antepredicativo da percepção que funda o Lebenswelt, isto é, o mundo primário que, mesmo operando em um nível abaixo do da intencionalidade de ato, mantém-se, não obstante, como uma emanação vital de significação do organismo. Se em Sartre a preocupação é demonstrar que estamos condenados à liberdade, Merleau-Ponty joga com a fórmula sartreana e aponta o resultado fundamental de sua investigação fenomenológica da percepção: “estamos condenados ao sentido”.31 Inicialmente, na introdução Os Prejuízos Clássicos e o Retorno aos Fenômenos, Merleau-Ponty trata de retomar a crítica esboçada na obra anterior, a saber, demonstrar que as posições do realismo e do intelectualismo falham em providenciar uma correta noção do que é a percepção por tomarem o comportamento ora como consciência naturante, ora como receptor passivo de estímulos puros e desassociados. Com isso em mente, Merleau-Ponty faz uso da ilusão de Müller-Lyer como exemplo para introduzir sua crítica a partir da ponderação acerca de duas categorias cognitivas: atenção e juízo. Quando “a adjunção de linhas auxiliares torna desiguais duas figuras objetivamente iguais” devemos nos perguntar: “esses casos em que o fenômeno não adere ao estímulo devem ser mantidos no quadro da lei de constância e explicados por fatores adicionais 30 Ibid., p. 627. 31 Ibid., p. 18. 68 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista - atenção e juízo - ou então é preciso rejeitar a própria lei?”.32 Casos simples de ilusão de ótica nos forçam a colocar a seguinte questão: a nãoapreensão da equivalência no tamanho das linhas significa que o estímulo nunca é absorvido de forma correta ou que, simplesmente, por conta de déficits de atenção e juízo, não conseguimos perceber a igualdade entre as linhas? A ilusão de Müller-Lyer é, para Merleau-Ponty, mais um exemplo das conclusões já obtidas n’A Estrutura do Comportamento (1945), ou seja, “o ‘sensível’ não pode mais ser definido como o efeito imediato de um estímulo exterior”33, pois a dinâmica primária de nossa percepção não é a captação de dados isolados, mas de Gestalten ou conjuntos significativos. Seguindo a máxima de Husserl, Merleau-Ponty defende que, ao voltarmos às coisas mesmas, isto é, ao retornarmos aos fenômenos assim como aparecem à consciência, encontraremos nada mais que Gestalten perceptivas e nunca uma apreensão de partes sintetizadas que, posteriormente, a partir de um melhor uso da atenção e do juízo, poderiam ser novamente isoladas. A apreensão e constituição de Gestalten, portanto, é o que define o processo perceptivo. 32 Ibid., p. 29. 33 Idem. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 69 Entrevemos, no grau elementar da sensibilidade, uma colaboração dos estímulos parciais entre si e do sistema sensorial com o sistema motor que, em uma constelação fisiológica variável, mantém constante a sensação, o que portanto proíbe definir o processo nervoso como a simples transmissão de uma mensagem dada [...] o funcionamento normal deve ser compreendido como um processo de integração em que o texto do mundo exterior é não recopiado, mas constituído [...] as condições exteriores do campo sensorial não o determinam parte por parte, e só intervém tornando possível uma organização autóctone - é isso que mostra a Gestalttheorie [...] no organismo a estrutura depende de variáveis como o sentido biológico da situação, que não são mais variáveis físicas, de forma que o conjunto escapa aos instrumentos conhecidos da análise físico-matemática para abrir-se a um outro tipo de inteligibilidade.34 O erro fundamental de qualquer tentativa de decompor a percepção em inputs desassociados consiste em não entender que “o próprio do percebido é admitir sua ambiguidade [...] é deixar-se modelar por seu contexto”.35 É por conta disso que as linhas de Müller-Lyer surgem desiguais aos nossos olhos: apesar das linhas possuírem rigorosamente a mesma medida, a percepção que surge em nós provém da Gestalt que brota da dinâmica organismo-entorno. Na ilusão de Müller-Lyer, uma das linhas deixa de ser igual à outra sem tornarse “desigual”: ela se torna “outra”, o que significa dizer que uma linha objetiva isolada e a mesma linha considerada em uma figura deixam de ser, para a percepção, a “mesma”. Ela só é identificável nessas duas funções para uma percepção analítica que não é natural.36 34 Ibid., pp. 30-33. 35 Ibid., p. 33. 36 Idem. 70 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista Portanto, cada parte de uma Gestalt possui seu sentido apenas dentro do todo ao qual ela pertence e, dessa forma, podemos entender o porquê de Merleau-Ponty afirmar que a “função essencial” da percepção é justamente “a de fundar ou de inaugurar o conhecimento”37, já que o próprio conhecimento analítico posterior origina-se dos conjuntos significativos provenientes da percepção38, já que nela reside “ao mesmo tempo, a infraestrutura instintiva e as superestruturas que, pelo exercício da inteligência, se estabelecem sobre ela”39. A intencionalidade de ato analítica só pode decompor a partir da Gestalt proveniente da intencionalidade operante. Desse modo, é a percepção originária que faz algo contar ou não como uma parte ou um todo que, posteriormente, tornar-se-á objeto para apreciação representacional de ordem científica. Além da percepção não funcionar como associação, ela também não consiste em uma projeção de recordações, ou seja, ela nem associa dados isolados (pois não há a impressão pura de dados separados que aí então seriam unidos), nem provém da memória, pois, para usarmos o exemplo de Merleau-Ponty, se eu leio ‘almoço’ em um texto que, na verdade, está escrito ‘alvoroço’, isso não quer dizer que estou projetando a memória da palavra ‘almoço’ naquele determinado input que minha retina percebe, ao contrário, minha percepção de tal palavra foi perceptualmente real, assim como quando confundo algum objeto inanimado distante por uma figura humana ou creio que duas linhas iguais possuem medidas diferentes: “A ilusão nos engana justamente fazendo-se passar por uma percepção autêntica, em que a significação nasce no berço do sensível e não vem de 37 Ibid., p. 40. Por tal razão que Ricoeur (2009, p. 12) afirma: “A fenomenologia esbarra, com efeito, de frente com a convicção dos galineanos: a primeira verdade do mundo não é a da física matemática, mas justamente a da percepção. Ou melhor, a verdade da ciência se edifica como superestrutura em cima de um primeiro alicerce de presença e existência, o do mundo vivido perceptivamente”. 38 39 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 85. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 71 outro lugar”.40 Em outras palavras, “Perceber não é experimentar um sem-número de impressões que trariam consigo recordações capazes de completá-las, é ver jorrar de uma constelação de dados um sentido imanente [...] Perceber não é recordar-se”.41 Perceber também não é atingir um dado grau de atenção. A percepção não é uma atenção que põe luz onde antes havia escuridão, mas sim um ato operante pré-reflexivo originário que destaca uma figura de um fundo. Merleau-Ponty oferece o seguinte exemplo: “sabe-se há muito tempo que durante os primeiros nove meses da vida as crianças só distinguem globalmente entre o colorido e o acromático”.42 A noção clássica de atenção dizia que a criança devia, de fato, ver o verde ou o azul, faltava-lhe apenas uma atenção de grau elevado para distingui-los, pois “os psicólogos não tinham conseguido representar um mundo em que as cores fossem indeterminadas, uma cor que não fosse uma qualidade precisa”.43 Partindo-se, então, da possibilidade de uma percepção indistinta das cores (como no caso das crianças), pode-se pensar o mundo das cores isoladas como representações posteriores. Primeiramente distinguindo as cores ‘quentes’ das ‘frias’ e, finalmente, identificando cada uma a partir de uma palavra designada. Esta mudança de estrutura da consciência é o que Merleau-Ponty defende que seja a noção de atenção, pois “Prestar atenção não é apenas iluminar mais dados preexistentes, é realizar neles uma articulação nova considerando-os como figuras”.44 Em outras palavras, a atenção perceptiva é a reelaboração da unidade perceptiva prévia do objeto, trazendo à tona uma nova dimensão. Portanto, a atenção “não é nem uma associação de imagens, nem o retorno 40 Ibid., p. 45, grifo nosso. 41 Ibid., pp. 47-48. 42 Ibid., p. 58. 43 Idem. 44 Idem. 72 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista a si mesmo de um pensamento já senhor de seus objetos, mas a constituição ativa de um objeto novo”.45 A palavra ‘ativa’ na citação anterior é a parte crucial. A percepção não é ativa, não se trata de algo da esfera da intencionalidade de ato. A atenção, por sua vez, pressupõe atividade consciente, o que possibilita a diferenciação e designação subsequente de alguma fenômeno. Não só a noção de atenção merece revisão, como também a de juízo. Frequentemente introduzido como “aquilo que falta à sensação para tornar possível uma percepção”46, o juízo, diz Merleau-Ponty, é o modo que o intelectualismo afasta-se da compreensão da percepção, pois toma a última como uma espécie de interpretação posterior dos estímulos sensíveis captados pelo corpo, ou seja, a pensa como uma intencionalidade de ato e não operante. Ora, a postulação de uma interpretação posterior só dificulta o entendimento da percepção: “meu saber tem de esperar sua realização intuitiva. Aqui, novamente, se deveria concluir que julgar não é perceber”.47 A percepção é nada mais que a espontânea realização de Gestalten, enquanto que a atenção e o juízo são momentos posteriores da intencionalidade de ato e não da intencionalidade operante, ou seja, perceber não é o produto da atenção ou do juízo, é “apreender um sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo”.48 A forma [Gestalt] é uma configuração visual, sonora, ou mesmo anterior à distinção dos sentidos, em que o valor sensorial de cada elemento é determinado por sua função no conjunto e varia com ela [...] Essa mesma noção de forma permitirá descrever o modo de existência dos objetos primitivos da percepção. Estes são, como dizíamos, mais do que conhecidos como objetos 45 Ibid., p. 59. 46 Ibid., p. 60. 47 Ibid., p. 63. 48 Idem. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 73 verdadeiros, vividos como realidades. Certos estados da consciência adulta permitem entender essa distinção. O campo de futebol não é, para o jogador, um “objeto”, ou seja, a palavra ideal que pode dar lugar a uma multiplicidade indefinida de vistas perspectivas e permanecer equivalente sob essas transformações aparentes [...] O campo não lhe é dado, mas está presente para ele como o termo imanente de suas intenções práticas; ele e o jogador são um só corpo e o jogador sente, por exemplo, a direção do gol tão imediatamente quanto a vertical e a horizontal de seu próprio corpo. Não bastaria dizer que a consciência habita esse meio. Ela nada mais é, nesse momento, que a dialética do meio e da ação.49 Antes de qualquer predicação, há um nível pré-categorial ou uma “sintaxe perceptiva”50 que a percepção constitui e, com isso, fundamenta e possibilita as predicações posteriores do juízo e da atenção: “a percepção é justamente este ato que cria de um só golpe, com a constelação dos dados, o sentido que os une - que não apenas descobre o sentido que eles têm, mas ainda faz com que tenham um sentido”.51 A atenção e o juízo, entendidos como aspectos da vida consciente, não poderiam ser associados à percepção, pois ela é “uma forma de inconsciência”52, ou seja, é uma abertura não-tética ao mundo que, como demonstram os experimentos da Gestalttheorie, não possui a plena determinação dos objetos percebidos; é o Lebenswelt, a manutenção incessante de um fluxo de sentido fundado em uma percepção transparente à consciência. É o “tecido intencional”53 que a atitude analítica posterior visa desmembrar para melhor apreender e que constitui o que Merleau-Ponty chama de “campo fenomenal”: não 49 Id., 2006, pp. 262-263. 50 Id., 1999, p. 65. 51 Ibid., pp. 65-66. 52 Ibid., p. 68. 53 Ibid., p. 84. 74 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista um mundo interior ou um fato psíquico, mas um “sistema ‘Eu-Outro-ascoisas’ no estado nascente”54. A percepção, como vimos até agora, constitui nosso saber antepredicativo, porém, o objetivo da parte seguinte da obra de Merleau-Ponty O Corpo - é o de atrelar essa vivência do Lebenswelt ao esquema corporal, apontando a motricidade como intencionalidade operante. É disso que nos ocuparemos agora. B) Intencionalidade e Espacialidade Pensar o organismo tornando-o equivalente aos objetos físicos nos força a “traduzir o funcionamento do corpo na linguagem do em si e descobrir, sob o comportamento, a dependência linear entre o estímulo e o receptor”.55 Ao contrário, como já apontado no capítulo anterior, a dinâmica de um organismo compreende, na verdade, uma operação que traduz os estímulos em formas e, além disso, “essa forma que se desenha no sistema nervoso, esse desdobramento de uma estrutura, não posso representá-los como uma série de processos em terceira pessoa”56, ou seja, por mais que certas partes ou determinado hemisfério do cérebro tenham sido associados a determinadas funções (linguagem, motricidade, libido etc.), Merleau-Ponty afirma que a Gestalt que se desenha no ato pré-reflexivo da percepção é algo não-localizável57, contudo, isso não significa a 54 Ibid., p. 90. 55 Ibid., p. 111. 56 Ibid., p. 114. 57 Vale ressaltar que mesmo as pesquisas atuais não são de todo confiáveis, como apontam recentes estudos: Ver SALAS, Javier. Nova revisão invalida milhares de estudos sobre o cérebro. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/26/ciencia/1469532340_615895.html>, Acesso em: 23/06/17. Mesmo assim, estudos como este não anulam o fato de haver um consenso sobre funções espacialmente localizáveis, mesmo quando a dinâmica descrita pela Gestalttheorie ainda estiver operando: “Mostrávamos, com a teoria da Forma, que não se pode determinar uma camada de dados sensíveis que dependeriam imediatamente dos órgãos dos sentidos: o menor dado sensível só se apresenta integrado a uma configuração e já posto em forma. Isso não impede, dizíamos, que as palavras ‘ver’ e ‘ouvir’ tenham um sentido. Observávamos alhures que as regiões especializadas do cérebro, a ‘zona ótima’ por exemplo, nunca funcionam isoladamente. Isso não impede, dizíamos, que, segundo a região onde Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 75 postulação de uma instância ontológica descolada da corporeidade, apenas atesta limites na apreensão de caráter fisicalista. Em outras palavras, a exteroceptividade pressupõe uma Gestalt dos estímulos, pois a espacialidade de um organismo é sempre uma espacialidade situacional. Para elucidar e asseverar tal tese, Merleau-Ponty apresenta os impasses em torno do entendimento e tratamento de uma patologia bastante conhecida e mencionada no âmbito do debate mente-corpo desde Descartes: o membro fantasma. O primeiro estorvo apresentado por Merleau-Ponty é o fato de que a “anestesia pela cocaína não suprime o membro fantasma” e, além disso, “há membros fantasmas sem nenhuma amputação e após lesões cerebrais”58, ou seja, o entendimento puramente fisiológico da patologia do membro fantasma não é justificado, dado que o uso da cocaína não é o suficiente para a sua mitigação, no entanto, tampouco uma explicação puramente psicológica serviria como alternativa, já que a mesma patologia surge igualmente pelo efeito de lesões cerebrais atestadas em terceira-pessoa. Merleau-Ponty relembra um detalhe interessante na posição defendida pelo neurologista J. Lhermitte: “a ilusão dos amputados tem relação com a constituição psíquica do paciente: ela é mais frequente nos homens cultos”59, porém, ao mesmo tempo, não se pode esquecer que “nenhuma explicação psicológica pode ignorar que a secção dos condutos sensitivos que vão para o encéfalo suprime o membro fantasma”.60 Dito isso, a patologia do membro fantasma torna-se o “fenômeno central” para entendermos “as relações entre o ‘psíquico’ e o ‘fisiológico’”.61 estão situadas as lesões, o lado visual ou o lado auditivo predomine no quadro da doença” (MERLEAU-PONTY, 1999, pp. 220-221). 58 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 115. 59 Ibid., p. 622. 60 Ibid., p. 116. 61 Ibid., p. 126. 76 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista É preciso compreender então como os determinantes psíquicos e as condições fisiológicas engrenam-se uns aos outros: não se concebe como o membro fantasma, se depende de condições fisiológicas e se a este título é o efeito de uma causalidade em terceira pessoa, pode por outro lado depender da história pessoal do doente, de suas recordações, de suas emoções ou de suas vontades. Pois, para que as duas séries de condições possam em conjunto determinar o fenômeno, assim como dois componentes determinam um resultante, serlhes-ia necessário um mesmo ponto de aplicação ou um terreno comum, e não se vê qual poderia ser o terreno comum a “fatos fisiológicos” que estão no espaço e a “fatos psíquicos” que não estão em parte alguma.62 Em um primeiro momento, a elaboração de uma teoria mista do membro fantasma, ou seja, uma teoria que admita as causalidades das duas ordens (atuando de forma concomitante), parece ser a mais plausível, porém, para Merleau-Ponty, “ela é fundamentalmente obscura”, pois o “membro fantasma não é o simples efeito de uma causalidade objetiva nem uma cogitatio a mais”63, dessa forma, parece errônea a hipótese de uma soma ou sobreposição de ambas. Resta, então, a possibilidade de pensar esta patologia como um entrelaçamento entre fisiológico e psíquico, do em-si com o para-si, de uma forma que “os processos em terceira pessoa e os atos pessoais pudessem ser integrados em um meio que lhes fosse comum”.64 Tal junção seria possível? Cabe postular uma esfera do Ser onde o fisiológico e o psíquico estão unidos? Para Merleau-Ponty, sim. E a resposta encontra-se no aspecto pré-reflexivo do organismo que faz da corporeidade um ser-no-mundo. Quando se fala que “um animal existe, que ele tem um mundo ou que ele é para um mundo, não se quer dizer que ele tenha percepção ou consciência objetiva desse mundo”, ou seja, o 62 Ibid., p. 116. 63 Idem. 64 Ibid., p. 117. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 77 a priori de cada espécie condiciona cada organismo de tal modo que “a situação que desencadeia as operações instintivas não está inteiramente articulada e determinada, o sentido total não é possuído”.65 Retomando aquilo exaustivamente elucidado n’A Estrutura do Comportamento (1945), Merleau-Ponty nos relembra que só a “presença global da situação que dá um sentido aos estímulos parciais e que os faz contar, valer ou existir para o organismo”, pois, o “reflexo não resulta de estímulos objetivos, ele se volta para eles, investe-os de um sentido [...] que eles têm apenas enquanto situação”.66 Dessa forma, o reflexo (constituído a partir de uma valoração não-consciente do organismo) e a percepção (precisamente aquilo que opera em um nível não-tético que dá sentido ao estímulo) “são modalidades de uma visão pré-objetiva que é aquilo que chamamos de ser no mundo”.67 O ser-no-mundo, ou seja, a vivência pré-categorial do organismo no Lebenswelt, constitui-se como uma esfera que, para MerleauPonty, não pode ser tratada nem como uma soma de reflexos, tampouco como um ato de consciência: É por ser uma visão pré-objetiva que o ser no mundo pode distinguir-se de todo processo em terceira pessoa, de toda modalidade da res extensa, assim como de toda cogitatio, de todo conhecimento em primeira pessoa - e que ele poderá realizar a junção do “psíquico” e do “fisiológico” [...] Esse fenômeno [do membro fantasma], que as explicações fisiológicas e psicológicas igualmente desfiguram, é compreensível ao contrário na perspectiva do ser no mundo.68 Assumindo a noção heideggeriana de ser-no-mundo como a interseção das esferas fisiológica e psíquica, Merleau-Ponty encontra-se 65 Ibid., p. 118. 66 Idem. 67 Ibid., p. 119. 68 Idem. 78 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista agora munido para resolver o problema conceitual de onde e como situar a patologia do membro fantasma. Deve-se ter em mente que o amputado possui um “saber pré-consciente”69 do seu membro, ou seja, o membro ‘permanece’ em seu modo de ser-no-mundo, o doente continua a contar com ele sem pensar nele: “O braço fantasma não é uma representação do braço, mas a presença ambivalente de um braço”.70 O saber pré-consciente do membro amputado não constitui uma representação, já que não passa pelo plano da consciência, na verdade, “aquilo que em nós recusa a mutilação e a deficiência é um certo Eu engajado em um certo mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se para seu mundo a despeito de deficiências ou amputações”.71 Este ‘Eu engajado’, portanto, é o que define, em termos gerais, o aspecto não-representacional que mantém a representação de um membro mesmo após sua amputação.72 Em outras palavras, a patologia do membro fantasma pode ser entendida como um atraso, ou melhor, um descompasso na instauração de uma nova posição existencial pré-reflexiva que agora deve lidar com as limitações impostas pela falta de um determinado membro: a patologia do membro fantasma significa a insistência em “permanecer aberto a todas as ações das quais apenas o braço é capaz, é conservar o campo prático que se tinha antes da mutilação”.73 A manutenção de certos projetos como o de escrever ou de tocar piano 69 Ibid., p. 120. 70 Ibid., p. 121. 71 Idem. 72 Slavoj Zizek, em O Absoluto Frágil (2015, p. 76), faz do inconsciente freudiano um equivalente da dimensão préreflexiva do Dasein: “O ‘inconsciente’ não é a substância passiva de pulsões inertes que será usada pela atividade ‘sintética’ criativa do Eu consciente; ele, em sua dimensão mais radical, é antes o mais nobre Feito do meu ato de pôr a mim mesmo, ou (recorrendo a termos existencialistas posteriores) a escolha de meu ‘projeto’ fundamental, que, para permanecer operante, deve ser ‘reprimido’, mantido inconsciente, longe da luz do dia.” 73 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 122. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 79 persistem, mesmo que não passem pela consciência, daí a dificuldade clínico-terapêutica em revertar tal situação. De um modo análogo à mauvaise foi de Sartre, Merleau-Ponty define a ambiguidade da situação do amputado: “o doente sabe de sua perda justamente enquanto a ignora, e ele a ignora justamente enquanto a conhece”.74 A corporeidade habitual ainda permanece na corporeidade atual: continuo a perceber objetos enquantomanejáveis, dado que o saber habitual ainda reside em mim, embora já não possua a corporeidade necessária para efetivá-lo. Não é apenas em Heidegger que Merleau-Ponty se apoia em sua explanação do membro fantasma, mas também em Freud e sua concepção de recalque. Vejamos a descrição que Merleau-Ponty apresenta sobre o conceito freudiano. o recalque de que fala a psicanálise consiste em que o sujeito se empenha em uma certa via - relação amorosa, carreira, obra -, encontra uma barreira nessa via e, não tendo força nem para transpor o obstáculo nem para renunciar ao empreendimento, permanece bloqueado nessa tentativa e emprega indefinidamente suas forças em renová-la em espírito [...] o sujeito permanece sempre aberto ao mesmo futuro impossível, senão em seus pensamentos explícitos, pelo menos em seu ser efetivo [...] Continuamos a ser aquele que um dia se empenhou nesse amor de adolescente, ou aquele que um dia viveu nesse universo parental [...] o tempo impessoal continua a se escoar, mas o tempo pessoal está preso [...] Portanto, todo recalque é a passagem da existência em primeira pessoa a um tipo de escolástica dessa existência.75 Iluminando agora a patologia do membro fantasma pelo uso da noção freudiana, Merleau-Ponty mais uma vez explicita sua estratégia de 74 Idem. 75 Ibid., pp. 123-124. 80 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista inserir o fenômeno do membro amputado no nível pré-reflexivo da existência, isto é, algo nem inteiramente psíquico, nem inteiramente fisiológico. Assim como se fala de um recalque no sentido estrito quando, através do tempo, mantenho um dos mundos momentâneos pelos quais passei e faço dele a forma de toda a minha vida - da mesma maneira pode-se dizer que meu organismo, como adesão pré-pessoal à forma geral do mundo, como existência anônima e geral, desempenha, abaixo da minha vida pessoal, o papel de um complexo inato [...] O que nos permite tornar a ligar o “fisiológico” e o “psíquico” um ao outro é o fato de que, reintegrados à existência, eles não se distinguem mais como a ordem do em si e a ordem do para si, e de que são ambos orientados para um pólo intencional ou para um mundo.76 Quando Merleau-Ponty definiu o membro fantasma não como a representação de um braço ou perna, mas como presença ambivalente, seu intuito foi o de defender “a ambiguidade do ser no mundo” que “se traduz pela ambiguidade do corpo, e esta se compreende por aquela do tempo”77, ou seja, psíquico e fisiológico estão conectados de tal forma que tal patologia deve ser entendida a partir de uma redefinição não apenas da espacialidade como da temporalidade. Em outras palavras, a existência pré-reflexiva do Dasein deve ser compreendida levando em conta o espaço existencial78 do organismo e, como veremos mais à frente, sua temporalidade. A simples recordação do membro amputado não é o suficiente para que o paciente o sinta, pois, o “braço fantasma não é uma rememoração, 76 Ibid., pp. 125-129. 77 Ibid., p. 126. 78 “Não precisamos seguir Kant em sua dedução de um espaço único [...] A sensação, tal como a experiência a entrega em nós, não é mais uma matéria indiferente e um momento abstrato, mas uma de nossas superfícies de contato com o ser, uma estrutura de consciência, e, em lugar de um espaço único, condição universal de todas as qualidades, nós temos com cada uma delas uma maneira particular de ser no espaço e, de alguma maneira, de fazer espaço. Não é nem contraditório nem impossível que cada sentido constitua um pequeno mundo no interior do grande, e é até mesmo em razão de sua particularidade que ele é necessário ao todo e se abre a este” (MERLEAU-PONTY, 1999, pp. 296-299). Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 81 ele é um quase-presente”, ou seja, ele é “como a experiência recalcada, um antigo presente que não se decide a tornar-se passado”.79 Para além de uma explicação puramente fisiológica ou simplesmente psicológica, como também a de uma sobreposição de causalidades, Merleau-Ponty defende que na “perspectiva do ser no mundo, esse fato significa que as excitações vindas do coto mantém o membro amputado no circuito da existência”.80 Este ‘circuito da existência’ é precisamente a instauração pré-reflexiva de uma corporeidade habitual (o fundamento do paradigma enativista, como veremos no capítulo final); e o descompasso na atualização do esquema corporal é, argumenta Merleau-Ponty, o que origina a patologia. Portanto, é a própria relação e conexão entre em-si e para-si que deve ser revisitada. O homem concretamente considerado não é um psiquismo unido a um organismo, mas este vai-vém da existência que ora se deixa ser corporal e ora se dirige aos atos pessoais. Os motivos psicológicos e as ocasiões corporais podem-se entrelaçar porque não há um só movimento em um corpo vivo que seja um acaso absoluto em relação às intenções psíquicas, nem um só ato psíquico que não tenha encontrado pelo menos seu germe ou seu esboço geral nas disposições fisiológicas. Não se trata nunca do encontro incompreensível entre duas causalidades, nem de uma colisão entre a ordem das causas e a ordem dos fins [...] Entre o psíquico e o fisiológico pode haver relações de troca que quase sempre impedem de definir um distúrbio mental como psíquico ou somático81. Tendo apontado o ser-no-mundo como noção crucial para entender o circuito da existência, Merleau-Ponty assume ter ultrapassado a dicotomia entre res cogitans e res extensa. Dessa forma, as atenções agora voltam-se ao sistema autônomo, ou melhor, anônimo do corpo que, a seu 79 Ibid., p. 127. 80 Ibid., p. 128, grifo nosso. 81 Ibid., pp. 130-131. 82 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista ver, constitui o papel nuclear no estabelecimento da vivência pré-reflexiva do organismo em relação a seu Umwelt, a saber, a motricidade. Ela, diz Merleau-Ponty, “é, no interior do nosso ser no mundo global, uma corrente de existência relativamente autônoma”82, ou seja, trata-se agora de entendermos a motricidade como um tipo fundamental de intencionalidade, pois, para adiantarmos a conclusão, ao final do capítulo A Espacialidade do Corpo Próprio e a Motricidade, Merleau-Ponty afirma que a discussão precedente permitiu “compreender sem equívoco a motricidade enquanto intencionalidade original. Originariamente a consciência é não um ‘eu penso que’, mas um ‘eu posso’”, ou seja, “a experiência motora de nosso corpo não é um caso particular de conhecimento, ela nos fornece uma maneira de ter acesso ao mundo e aos objetos que deve ser reconhecida como original e talvez como originária”.83 Em poucas palavras, a motricidade deve ser entendida como a esfera originária onde é engendrado o sentido global do qual todas as representações posteriores estão fundamentadas. Em Merleau-Ponty, portanto, a motricidade tornase o núcleo primário de valoração do organismo. Vejamos. Se na análise precedente o membro fantasma serviu de patologia ideal para entendermos o ser-no-mundo como a interseção entre o fisiológico e o psicológico, Merleau-Ponty agora parte de “um exemplo de motricidade mórbida que evidencia as relações fundamentais entre o corpo e o espaço”.84 O exemplo utilizado por Merleau-Ponty é proveniente dos estudos de Kurt Goldstein e trata de um paciente (Schneider) que encontra-se em estado de cegueira psíquica, ou seja, um sujeito “incapaz, 82 Ibid., p. 128. 83 Ibid., pp. 192-195, grifo nosso. 84 Ibid., p. 149. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 83 fechados os olhos, de executar movimentos ‘abstratos’”85, quer dizer, alguém que não consegue efetivar movimentos que não sejam orientados para uma ação efetiva e “só consegue executar os movimentos abstratos se lhe permitem olhar o membro encarregado do movimento”.86 A cegueira também torna-o incapaz - quando o médico toca-o - de dizer qual parte parte de seu corpo está sendo encostada. O problema, entretanto, não é de ordem fisiológica, pois o paciente consegue executar os mesmos movimentos se eles forem atitudes habituais como a de pegar um fósforo no bolso, alcançar o pé para colocar uma meia ou ainda: “o mesmo paciente que é incapaz de mostrar com o dedo, sob comando, uma parte de seu corpo, leva vivamente a mão ao ponto onde um mosquito o pica”.87 Logo, percebe-se que há uma dissociação entre o ato virtual/abstrato de apontar e o ato motor em si: “Há portanto um privilégio dos movimentos concretos e dos movimentos de apreensão do qual devemos procurar a razão”.88 Ao acompanharmos a argumentação de Merleau-Ponty que ressalta esta distinção entre intencionalidade motriz e intencionalidade de ato, o objetivo do capítulo é evidenciado, a saber, entender a especificidade da motricidade como intencionalidade operante pré-categorial. Quando se pede ao paciente que ele aponte uma parte específica de seu corpo (o nariz, por exemplo), a tarefa só é realizada se o toque direto for permitido. Se for pedido que toquem o mesmo nariz com o auxílio de uma régua, “o movimento torna-se impossível”.89 Com isso, chega-se à conclusão: “É preciso admitir então que ‘pegar’ ou ‘tocar’ [...] é diferente de ‘mostrar’”.90 Com isso, a questão se impõe: por que tal dissociação existe? Se o paciente sabe 85 Idem. 86 Ibid., p. 150. 87 Idem. 88 Idem. 89 Idem. 90 Idem. 84 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista onde está o nariz na hora de pegá-lo, porque não saberia na hora de apontá-lo? Merleau-Ponty argumenta que esse fenômeno ocorre pelo fato do organismo se situar espacialmente em “vários sentidos. A psicologia clássica não dispõe de nenhum conceito para exprimir essas variedades da consciência de lugar porque para ela a consciência de lugar é sempre consciência posicional, representação”91, ou seja, a constituição de um termo identificável em todas as aparições, sem nenhuma ambiguidade (o exato oposto da definição de cognição no sentido enativista). Dessa forma, a ação habitual da corporeidade do paciente se dá sem maiores problemas somente em ações práticas e costumeiras e “não como meio de expressão de um pensamento espacial gratuito e livre”.92 Mesmo assim, a intencionalidade motriz encontra-se tão distante de seu funcionamento normal que mesmo as ações habituais que conseguem ser efetivadas perdem “o caráter melódico que apresenta na vida usual e torna-se visivelmente uma soma de movimentos parciais laboriosos postos lado a lado”.93 Desse modo, o doente nunca consegue reduzir o movimento simplesmente aos traços estritamente indispensáveis, como seria em casos não-patológicos em que o movimento se dá de forma transparente. É sempre necessário ao paciente ‘procurar e encontrar’, antes de tudo, as mãos ou pernas que irão fazer determinado movimento: a experiência fenomênica do corpo é agora colocada em movimento por representações, fazendo dela uma experiência de menor efetividade. Um bom jogador de futebol não precisa pensar durante a partida, do mesmo modo que não precisamos pensar ao subir uma escada. É isso que falta ao paciente. Como diz o filósofo, “Não é nunca nosso corpo objetivo que movemos, mas nosso corpo fenomenal”94, ou 91 Ibid., p. 151. 92 Idem. 93 Ibid., p. 152. 94 Ibid., p. 153. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 85 seja, a consciência de lugar não é consciência posicional, visto que a motricidade opera abaixo da intencionalidade de ato e é precisamente aí que reside a patologia. Ela é uma “certa presença do corpo e do objeto, que está dada no normal”95 e que está em déficit em Schneider, fazendo com que o ato de “situar-se no virtual”96 se dê de forma laboriosa: “Visivelmente, o doente só dispõe de seu corpo como de uma massa amorfa na qual apenas o movimento efetivo introduz divisões e articulações”.97 Cada movimento de Schneider se dá após o mesmo se movimentar quase que de forma aleatória, até reconhecer o membro e o movimento desejado. Portanto, há uma carência na significação motora e não na significação representacional. Se a ordem tem para ele uma significação intelectual, ela não tem significação motora, não é expressiva para ele quanto sujeito motor; ele pode encontrar no traçado de um movimento efetuado a ilustração da ordem dada, mas nunca pode desdobrar o pensamento de um movimento em movimento efetivo. O que lhe falta não é nem a motricidade nem o pensamento, e somos convidados a reconhecer, entre o movimento enquanto processo em terceira pessoa e o pensamento enquanto representação do movimento, uma antecipação ou uma apreensão do resultado assegurada pelo próprio corpo enquanto potência motora, um “projeto motor” (Bewegungsentwurf), uma “intencionalidade motora” sem os quais a ordem permanece letra morta. Ora o doente pensa a fórmula ideal do movimento, ora ele lança seu corpo em tentativas cegas; no normal, ao contrário, todo movimento é indissoluvelmente movimento e consciência de movimento, o que se pode também exprimir dizendo que no normal todo movimento tem um fundo, e que o movimento e seu fundo são “momentos de uma totalidade única”. O fundo do movimento não é uma representação associada ou ligada exteriormente ao próprio movimento, ele é imanente ao movimento, ele o anima e o mantém a cada momento [...] Através 95 Ibid., p. 156. 96 Ibid., p. 157. 97 Ibid., p. 158. 86 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista disso se esclarece a distinção entre movimento abstrato e movimento concreto: o fundo do movimento concreto é o mundo dado, o fundo do movimento abstrato, ao contrário, é construído.98 Situar-se no virtual, para o sujeito normal, é perceber um mundo para além de representações fixadas, é estabelecer “mil sinais que conduzem a ação”99, ou seja, é se ver livre em sua corporeidade, qualquer que seja o contexto. Os distúrbios motores de Schneider não são as únicas patologias de sua condição (que origina-se de um ferimento do osso occipital). A função visual também encontra-se comprometida. O reconhecimento de padrões foi debilitado, transformando os objetos em manchas não-identificáveis, quando usado apenas o sentido da visão. Com isso, o distúrbio se torna ainda mais indecifrável, dado que a deficiência no movimento abstrato é encontrada não apenas em casos de cegueira psíquica, como também “em muitas outras doenças”.100 Dessa forma, “nunca chegamos a uma interpretação exclusiva - deficiência do tocar virtual ou deficiência do mundo visual”.101 Goldstein afirma que a condição de Schneider possibilita-nos observar “a experiência tátil reduzida a si mesma”102, porém, como argumenta Merleau-Ponty, essa é uma tomada de posição errônea, pois não há, no organismo normal, uma experiência tátil descolada da experiência visual que, combinadas, possibilitam a existência normal de movimentos concretos e abstratos, mas sim “uma experiência integral em que é impossível dosar as diferentes contribuições sensoriais”103, ou seja, 98 Ibid., p. 159. 99 Ibid., p. 161. 100 Ibid., p. 163. 101 Ibid., p. 168. 102 Ibid., p. 169. 103 Idem. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 87 a atitude categorial provém somente do sujeito normal, fazendo do doente um organismo que não mais possui a capacidade de objetivar o mundo. Partindo daí, Merleau-Ponty oferece uma explanação alternativa: “A cegueira psíquica, as imperfeições do tocar e os distúrbios motores são três expressões de um distúrbio mais fundamental pelo qual eles se compreendem”.104 Mais uma vez a explicação não pode ser limitada a causas puramente fisiológicas, nem psicológicas, mas ao terreno comum do serno-mundo, o comportamento enquanto tal. É preciso ou renunciar à explicação fisiológica, ou admitir que ela é total - ou negar a consciência ou admitir que ela é total; não se pode referir certos movimentos à mecânica corporal e outros à consciência [...] Toda explicação fisiológica se generaliza em fisiologia mecanicista, toda tomada de consciência em psicologia intelectualista, e a fisiologia mecanicista ou a psicologia intelectualista nivelam o comportamento e apagam a distinção entre o movimento abstrato e o movimento concreto [...] A distinção entre o movimento abstrato e o movimento concreto não se confunde portanto com a distinção entre o corpo e a consciência, ela não pertence à mesma dimensão reflexiva, ela só tem lugar na dimensão do comportamento.105 O exame da patologia de Schneider nos leva ao irrefletido. O Lebenswelt, que sedimenta a existência do organismo e que funciona como estruturação antepredicativa do real, é mais uma vez a chave para o entendimento. Assim, “poderemos compreender ao mesmo tempo os distúrbios intelectuais, os distúrbios perceptivos e os distúrbios motores de Schn.”.106 Trata-se, então, de associar os distúrbios do paciente ao problema da “junção entre a sensibilidade e a significação”.107 O doente precisa 104 Ibid., p. 170. 105 Ibid., pp. 174-175. 106 Ibid., p. 183. 107 Idem. 88 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista olhar para o membro e fazer inúmeras tentativas até conseguir efetivar um movimento abstrato; consegue compreender, com a ajuda do médico, que todo quadrado pode ser dividido em dois triângulos, mas daí não infere que dois triângulos servem na construção de um quadrado; quando contam uma história e pedem para que a repitam, a narração nunca retoma o ritmo, a melodia e a nuance da original, consegue reproduzir apenas “uma série de fatos que devem ser notados um a um”.108 MerleauPonty diz que, para Schneider, “o mundo não lhe sugere mais nenhuma significação”109, prejudicando até mesmo sua libido, como veremos adiante, e apontando uma esfera intencional originária como lócus da patologia. Os objetos espacialmente percebidos e as características estilísticas no ato de contar uma história são mal efetivados. A significação não surge para o sujeito do modo que encontramos no normal. Porém, não é da significação analítica que estamos lidando aqui, “mas dessa significação primordial que se obtém pela coexistência”.110 Todos os efeitos do ferimento da região occipital, diz Merleau-Ponty, devem “ser recolocados no mesmo contexto existencial”.111 Dessa forma, diz o francês, devemos. entender a patologia não como um déficit na esfera do raciocínio, mas da valoração motriz. Em Schn. a concepção do número só está afetada enquanto ela supõe eminentemente o poder de desdobrar um passado para caminhar para um futuro. É essa base existencial da inteligência que está afetada, muito mais do que a própria inteligência, pois, como observaram, a inteligência geral de Schn. está intacta: embora lentas, suas respostas nunca são insignificantes, são respostas 108 Ibid., p. 186. 109 Ibid., p. 185. 110 Ibid., p. 186. 111 Ibid., p. 187. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 89 de um homem maduro, ponderado, que se interessa pelas experiências do médico. Abaixo da inteligência enquanto função anônima ou enquanto operação categorial, é preciso reconhecer um núcleo pessoal que é o ser do doente, sua potência de existir. É ali que reside a doença.112 A esfera temporal da existência foi arruinada devido aos limites cognitivos impostos pela lesão: “O futuro e o passado são para ele apenas prolongamentos ‘encolhidos’ do presente”.113 O arco intencional que envolve a existência do sujeito é onde reside a doença, para além de distinções fisiológicas ou psicológicas. a vida da consciência - vida cognoscente, vida do desejo ou vida perceptiva - é sustentada por um “arco intencional” que projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física, nossa situação ideológica, nossa situação moral, ou antes faz com que estejamos situados sob todos esses aspectos. É este arco intencional que faz a unidade entre os sentidos, a unidade entre os sentidos e a inteligência, a unidade entre sensibilidade e a motricidade. É ele que se “distende” na doença114. Merleau-Ponty, a partir da patologia de Schneider, alega ter encontrado “um novo modo de análise - a análise existencial - que ultrapassa as alternativas clássicas entre o empirismo e o intelectualismo, entre a explicação e a reflexão”.115 Com isso, os distúrbios não podem ser associados a uma deterioração da função geral de representação, já que a doença encontra-se ao nível do arco intencional fundamentado pela motricidade. A própria consciência tenta “manter suas superestruturas quando seu fundamento desmoronou: ela imita suas operações costumeiras, mas sem 112 Ibid., p. 188. 113 Ibid., p. 189. 114 Ibid., p. 190. 115 Idem. 90 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista poder obter sua realização intuitiva e sem poder mascarar o déficit particular que as priva de seu sentido pleno”116, como vimos nos casos das operações matemáticas, do movimento abstrato e do reconhecimento de padrões. A estrutura do comportamento não-patológico não precisa se apoiar na operação analítica da representação: agir em um contexto, ou melhor, ser-no-mundo, é saber que a corporeidade exerce os movimentos requisitados “sem nenhuma representação”.117 Em outras palavras, “a motricidade não é como uma serva da consciência, que transporta o corpo ao ponto do espaço que nós previamente nos representamos”118, ela é a própria fundamentação da intencionalidade enquanto tal. A imersão espaçotemporal da corporeidade se é exatamente a própria motricidade, é ela a intencionalidade primária não-representacional. Enquanto tenho um corpo e através dele ajo no mundo, para mim o espaço e o tempo não são uma soma de pontos justapostos, nem tampouco uma infinidade de relações das quais minha consciência operaria a síntese e em que ela implicaria meu corpo; não estou no espaço e no tempo, não penso o espaço e o tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca [...] Meu corpo tem seu mundo ou compreende seu mundo sem precisar passar por “representações”, sem subordinar-se a uma “função simbólica” ou “objetivante”.119 Portanto, a apraxia de Schneider reside, de fato, em uma motricidade comprometida: “a função que está destruída nos distúrbios apráxicos é sim uma função motora”.120 A noção da motricidade como esfera primária de valoração é extremamente devedora de Grünbaum, como fica claro na 116 Idem. 117 Ibid., p. 193. 118 Idem. 119 Ibid., p. 195. 120 Ibid., p. 196. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 91 citação seguinte lembrada por Merleau-Ponty: “Já a motricidade, considerada no estado puro, possui o poder elementar de dar um sentido (Sinngebung) [...] A motricidade é a esfera primária em que em primeiro lugar se engendra o sentido de todas as significações”.121 Portanto, a apraxia é o efeito da perda da capacidade de valoração do sistema motor, a primeira forma de intencionalidade. Ao contrário do intelectualismo que via no hábito o produto de uma síntese intelectual, Merleau-Ponty defende - apoiado em Grünbaum - que, na verdade, tal síntese pertence à esfera não-representacional da motricidade: “A aquisição do hábito é sim uma apreensão de uma significação, mas é a apreensão motora de uma significação motora”.122 Pode-se saber datilografar sem saber indicar onde estão, no teclado, as letras que compõem as palavras. Portanto, saber datilografar não é conhecer a localização de cada letra no teclado, nem mesmo ter adquirido, para cada uma, um reflexo condicionado que ela desencadearia quando se apresenta ao nosso olhar. Se o hábito não é nem um conhecimento nem um automatismo, o que é então? Trata-se de um saber que está nas mãos, que só se entrega ao esforço corporal e que não se pode traduzir por uma designação objetiva. O sujeito sabe onde estão as letras no teclado, assim como sabemos onde está um de nossos membros, por um saber de familiaridade que não nos oferece uma posição no espaço objetivo. O deslocamento dos seus dedos não é dado ao datilógrafo como um trajeto espacial que se possa descrever, mas apenas como certa modulação da motricidade [...] Frequentemente se coloca a questão como se a percepção de uma letra escrita no papel despertasse a representação da mesma letra que, por sua vez, despertaria a representação do movimento necessário para alcançá-la no teclado. Mas esta linguagem é mitológica [...] Quando a datilógrafa executa os movimentos necessários no teclado, esses movimentos são dirigidos por uma intenção, mas essa intenção não põe as teclas do teclado como localizações objetivas. É verdade, literalmente, que o 121 Grünbaum apud Ibid., p. 197. 122 Ibid., p. 198. 92 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista sujeito que aprende a datilografar integra o espaço do teclado ao seu espaço corporal.123 O caso da datilografia já deixa bastante claro o argumento de Merleau-Ponty, porém, um outro exemplo, dessa vez de um pianista sentado a um piano não-familiar, é ainda melhor para demonstrar “como o hábito não reside nem no pensamento nem no corpo objetivo, mas no corpo como mediador do mundo”.124 Quando um músico experiente depara-se com um piano que tenha uma quantidade maior ou menor de teclas que o instrumento usado cotidianamente, pode-se perceber que, em pouco tempo de prática, o músico já se vê em situação de familiaridade com o novo instrumento. Tal fato nos leva ao seguinte ponto: “Um tempo de aprendizado tão curto não permite supor que reflexos condicionados novos substituam aqui disposições já estabelecidas”.125 Deve-se adotar outro ponto de vista para entender o porquê do tempo ser tão curto para que um organismo consiga se adaptar tão facilmente a um novo esquema de integração corporal. Diremos então que o organista analisa o órgão, quer dizer, que ele se dá e conserva uma representação das teclas, dos pedais, dos teclados e de sua relação no espaço? Mas, durante o curto ensaio que precede o concerto, ele não se comporta como o fazemos quando queremos armar um plano. Ele senta-se no banco, aciona os pedais, dispara as teclas, avalia o instrumento com seu corpo, incorpora para si as direções e as dimensões, instala-se no órgão como nos instalamos em uma casa. O que ele aprende para cada tecla e para cada pedal não são posições no espaço objetivo, e não é à sua “memória” que ele os confia.126 123 Ibid., pp. 199-201. 124 Ibid., p. 201. 125 Idem. 126 Ibid., pp. 201-202. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 93 Mais uma vez chegamos ao ponto nuclear acerca da relação entre intencionalidade e espacialidade: a representação do espaço objetivo, apesar de fazer parte de nosso espectro cognitivo, não fundamenta a relação prática que ocorre na vivência fenomênica do organismo. Em outras palavras: “Não há aqui lugar para uma ‘recordação’ da localização das teclas e não é no espaço objetivo que o organismo toca”127, ou seja, é na esfera pré-reflexiva da motricidade que está o saber-espacial das teclas e da movimentação necessária à corporeidade para tocá-las. Quando MerleauPonty lembra “que o senso comum põe o lugar do pensamento na cabeça”128, significa que a atitude natural nos afasta da admissão desse saber corporal e esquece que o “corpo é nosso meio geral de ter um mundo”.129 A conclusão da discussão sobre a espacialidade revela, segundo Merleau-Ponty, a necessidade do reconhecimento de uma intencionalidade que não está limitada às representações conscientes, uma intencionalidade atrelada ao esquema corporal que possui sua raiz na motricidade: “O que descobrimos pelo estudo da motricidade é, em suma, um novo sentido da palavra ‘sentido’”.130 A valoração do contexto no qual o organismo encontra-se não é um processo exclusivo da intencionalidade de ato. O erro do intelectualismo foi asseverar que “toda significação era concebida como um ato de pensamento, como a operação de um Eu puro”131, no entanto, o estudo das patologias motoras de Schneider e os exemplos da datilografia e do pianista demonstram que “a experiência do corpo nos faz reconhecer uma imposição do sentido que não é a de uma consciência constituinte 127 Ibid., p. 202. 128 Idem. 129 Ibid., p. 203. 130 Idem. 131 Idem. 94 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista universal [...] Meu corpo é esse núcleo significativo que se comporta como uma função geral”.132 Antes de adentrarmos na questão final do presente capítulo, a saber, a relação entre intencionalidade e temporalidade, é pertinente passarmos sobre as considerações de Merleau-Ponty acerca de mais um dos sintomas provenientes da lesão occipital do paciente de Goldstein, a saber, a diminuição da libido.133 Para além dos distúrbios motores e visuais tratados anteriormente, Schneider também apresenta em seu quadro uma drástica diminuição da libido. Ele “nunca procura por si mesmo o ato sexual. Imagens obscenas, conversações sobre temas sexuais, a percepção de um corpo não fazem nascer nele nenhum desejo [...] quase não abraça e o beijo não tem para ele valor de estimulação sexual”.134 A única maneira de obter uma ereção é com a insistência da masturbação ou com o contato direto com outro corpo; e se, por algum motivo, o ato é interrompido, a excitação rapidamente desaparece. Além disso, se “o orgasmo ocorre primeiro na parceira e ela se afasta, o desejo esboçado se apaga”.135 Até mesmo as poluções “são raras e sempre sem sonhos”.136 O paciente encontra-se de 132 Ibid., pp. 203-204. 133 Há ainda uma interessante passagem no capítulo A Síntese do Corpo Próprio que não tomará espaço em nossa discussão além da presente nota. Trata-se de uma menção que Merleau-Ponty faz ao uso de bengalas por pessoas cegas e como isso demonstra que a síntese corporal do organismo se estende a objetos e/ou instrumentos, ou seja, temos aqui uma antecipação daquilo que foi elaborado mais tarde por Andy Clark e David Chalmers no artigo seminal The Extended Mind (1998). Em suma, a tese da cognição estendida de Clark e Chalmers defende um tipo de externalismo ativo que aceita a noção de que determinados objetos ou instrumentos podem ser considerados como partes integrais de nosso processo cognitivo. O exemplo de Merleau-Ponty resume e prenuncia a tese comentada: “todo hábito é ao mesmo tempo motor e perceptivo [...] Quando a bengala se torna um instrumento familiar, o mundo dos objetos táteis recua e não mais começa na epiderme da mão, mas na extremidade da bengala [...] a bengala não é mais um objeto que o cego perceberia, mas um instrumento com o qual ele percebe. A bengala é um apêndice do corpo, uma extensão da síntese corporal” (MERLEAU-PONTY, 1999, pp. 210-211). 134 Ibid., p. 214. 135 Idem. 136 Idem. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 95 tal modo que a “percepção perdeu sua estrutura erótica [...] O que desapareceu no doente foi o poder de projetar diante de si um mundo sexual, de colocar-se em situação erótica ou, uma vez esboçada a situação, de mantê-la ou dar-lhe uma sequência até a satisfação”.137 Novamente, Merleau-Ponty recorre à esfera do ser-no-mundo para, dessa vez, situar a sexualidade do organismo, tomando-a como outro exemplo de algo para além da dicotomia fisiológico-psíquico. A sexualidade não é um “ciclo autônomo”138, porém, também não é uma causalidade exclusivamente vinculada à ordem simbólica que, eventualmente, traria efeitos fisiológicos à tona. Merleau-Ponty atrela a sexualidade à intencionalidade corporal que constitui aquilo que ele chama de arco intencional. Ao tratarmos da sexualidade “nós lidamos não com um automatismo periférico, mas com uma intencionalidade que segue o movimento geral da existência e que inflete com ela”.139 Portanto, o primeiro passo para entendermos a patologia sexual de Schneider é pensar a sexualidade não como esfera autônoma da corporeidade, tampouco como desdobramento fisiológico submetido à causalidade simbólica. lembremo-nos, todos os distúrbios de Schn. resultam de um ferimento circunscrito à esfera occipital. Se no homem a sexualidade fosse um aparelho reflexo autônomo, se o objeto sexual viesse afetar algum órgão do prazer anatomicamente definido, o ferimento cerebral deveria ter como efeito liberar esses automatismos e traduzir-se em um comportamento sexual acentuado [...] É a própria estrutura da percepção ou da experiência erótica que está alterada em Schn. [...] Se os próprios estímulos táteis, que em outras ocasiões o doente utiliza muito bem, perderam sua significação sexual, foi porque, por assim dizer, eles deixaram de falar ao seu corpo, de situá-lo do ponto de vista da sexualidade ou, em outros termos, porque o doente deixou de endereçar ao 137 Ibid., p. 216. 138 Ibid., p. 218. 139 Ibid., p. 217. 96 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista seu ambiente essa questão muda e permanente que é a sexualidade normal. Schn. e a maior parte dos pacientes impotentes não “estão nem ali naquilo que fazem”. Mas a distração, as representações inoportunas não são causas, são efeitos, e, se o paciente percebe friamente a situação, é em primeiro lugar porque não a vive e porque não está envolvido nela. Adivinha-se aqui um modo de percepção distinto da percepção objetiva, um gênero de significação distinto da significação intelectual, uma intencionalidade que não é pura “consciência de algo”. A percepção erótica não é uma cogitatio que visa um cogitatum.140 Ao atrelar a sexualidade à intencionalidade operante, Merleau-Ponty a coloca como um dos modos de nosso arco intencional e, por conta disso, a diminuição da libido é apenas o aspecto mais notável de um verdadeiro desfalecimento do engajamento pré-reflexivo geral do organismo. Há uma “compreensão” erótica que não é da ordem do entendimento [...] Schn. não pode mais colocar-se em situação sexual, assim como em geral ele não está mais em situação afetiva ou ideológica. Para ele, os rostos não são nem simpáticos nem antipáticos, as pessoas só se qualificam a esse respeito se ele lida diretamente com elas e de acordo com a atitude que adotam em relação a ele, a atenção e a solicitude que lhe testemunham. O sol e a chuva não são nem alegres nem tristes, o humor só depende das funções orgânicas elementares, o mundo é afetivamente neutro. Schn. quase não amplia seu ambiente humano e, quando ele faz amizades novas, por vezes elas terminam mal: isso ocorre porque, percebe-se pela análise, elas nunca provém de um movimento espontâneo, mas de uma decisão abstrata. Ele gostaria de poder pensar sobre política e sobre religião, mas nem mesmo tenta, pois sabe que essas regiões não lhe são mais acessíveis.141 Ao tratar do distúrbio sexual de Schneider, Merleau-Ponty recorre mais uma vez à psicanálise; desta vez, porém, fica ainda mais clara a 140 Ibid., pp. 215-217. 141 Ibid., p. 217. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 97 adesão ao pensamento de Freud que, se em sua obra anterior era apenas um esboço, agora percebemos como concluída, tomando a psicanálise (além da fenomenologia husserliana, a ontologia de Heidegger e a Gestalttheorie) como mais um esforço teórico que visa, no fundo, a adoção de uma perspectiva não-reducionista que supere a noção clássica de causalidade. Tal adesão fica ainda mais evidente ao notarmos o uso da expressão ‘psicanálise existencial’, que pode ser encontrada primeiramente em O Ser e o Nada (1943). Não trateremos aqui sobre as ponderações sartreanas acerca de Freud, o que importa é apenas demonstrar que, assim como em Sartre, a fenomenologia existencialista de Merleau-Ponty é tão devedora da psicanálise quanto das fontes tradicionalmente citadas.142 Quando dizemos que a vida corporal ou carnal e o psiquismo estão em uma relação de expressão recíproca, ou que o acontecimento corporal tem sempre uma significação psíquica, essas fórmulas precisam ser explicadas. Válidas para excluir o pensamento causal, elas não significam que o corpo seja o invólucro transparente do Espírito. Retornar à existência como ao meio no qual se compreende a comunicação entre o corpo e o espírito não é retornar à Consciência ou ao Espírito; a psicanálise existencial não deve servir de pretexto a uma restauração do espiritualismo.143 Tal crítica ao ‘pensamento causal’ encontra na sexualidade mais uma expressão da vivência fenomênica irredutível do organismo como ser-nomundo. Merleau-Ponty defende a não-equivalência da vivência sexual ao órgão genital e a libido como não inteiramente dependente da esfera fisiológica: “O sexual não é o genital, a vida sexual não é um simples efeito de 142 Para um maior aprofundamento da influência da psicanálise em Merleau-Ponty, Cf. FILHO, Ronaldo Manzi. Quando os Corpos se Invadem - Merleau-Ponty às voltas com a psicanálise. Tese de Doutorado. USP. 2012. 143 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 221. 98 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista processos dos quais órgãos genitais são o lugar, a libido não é um instinto”.144 A libido, na verdade, representa toda uma estrutura geral de conduta do sujeito psicofísico, por isso que encontramos exemplos de anafrodisia que surgem das mais variadas razões: “Um discípulo dissidente de Freud [Wilhelm Stekel] mostra [...] que mais frequentemente ela [anafrodisia] traduz a recusa do orgasmo, da condição feminina ou da condição de ser sexuado”.145 Dessa forma, Merleau-Ponty encontra na psicanálise uma espécie de existencialismo não-reducionista da sexualidade humana, ou seja, um conjunto de teses e práticas clínicas que compreendem a esfera humana a partir de uma dialética que ultrapassa a dicotomia em-si e para-si. Aqui nós reencontramos as aquisições mais duráveis da psicanálise. Quaisquer que tenham sido as declarações de princípio em Freud, as investigações psicanalíticas resultam de fato não em explicar o homem pela infra-estrutura sexual, mas em reencontrar na sexualidade as relações e atitudes de consciência, e a significação da psicanálise não é tanto a de tornar biológica a psicologia quanto a de descobrir um movimento dialético em funções que se acreditavam “puramente corporais”, e reintegrar a sexualidade no ser humano [...] Mesmo em Freud seria um erro acreditar que a psicanálise exclui a descrição dos motivos psicológicos e se opõe ao método fenomenológico: ao contrário, ela (sem o saber) contribuiu para desenvolvê-lo ao afirmar, segundo a expressão de Freud, que todo ato humano “tem um sentido”, e ao procurar em todas as partes compreender o acontecimento, em lugar de relacioná-lo a condições mecânicas.146 Contudo, já que o existencialismo não pode recair em espiritualismo, não podemos compreender a sexualidade como algo para além da esfera 144 Ibid., p. 219. 145 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 218. 146 Idem. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 99 biológica. A libido pode não ser completamente descritível apenas como um instinto, já que ela pode aumentar ou diminuir a partir de acontecimentos da esfera simbólica da existência, porém, é inegável que ela está arraigada em um substrato orgânico que possui ciclos de aumento ou decréscimo de acordo com a maturação fisiológica do organismo que se estabeleceu com o processo natural de evolução darwinista. Portanto, melhor que tomá-la como um não-instinto, como algo distinto da organicidade, seria entendê-la menos como uma ‘força etérea’ e mais como um instinto que, com o desenvolvimento da esfera simbólica-cultural, não mais pode ser considerado como plenamente autônomo. Dito isso, dissociar a sexualidade da esfera autônoma não significa pensá-la como um aspecto completamente consciente. Tal posicionamento é melhor compreendido a partir de uma outra patologia (afonia) desenvolvida em uma paciente de Ludwig Binswanger. Não trataremos da análise que MerleauPonty faz da paciente, pois o que de fato interessa é apenas saber que nela podemos observar que o “sintoma, como a cura, não se elabora no plano da consciência objetiva ou tética, mas abaixo”147, ou seja, tanto a afonia da paciente de Binswanger, como a apraxia, a impotência e o membro fantasma do paciente de Goldstein, argumenta Merleau-Ponty, devem ser entendidos como um desvio do aspecto pré-reflexivo da valoração de seus respectivos organismos, e é nisso que qualquer tratamento deve focar. Em suma, “todas as ‘funções’ no homem, da sexualidade à motricidade e à inteligência, são rigorosamente solidárias”.148 Vejamos agora, enfim, a relação entre intencionalidade e temporalidade. 147 Ibid., p. 226. 148 Ibid., p. 235. 100 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista C) Intencionalidade e Temporalidade Merleau-Ponty afirma que “podemos dizer da temporalidade aquilo que acima dissemos, por exemplo, da sexualidade e da espacialidade: a existência não pode ter atributo exterior ou contingente”.149 O que MerleauPonty chama de ‘existência’, isto é, a relação pré-reflexiva do organismo em seu Umwelt, não possui relações ‘exteriores’ com a espacialidade ou com a temporalidade, pois, para a corporeidade, cada esfera constitui “dimensões de seu ser”.150 A espacialidade e a temporalidade não são elementos incorporados ao organismo, mas esferas existenciais que jorram da indistinção vital corpo-entorno. Desse modo, a análise do tempo – assim como a da espacialidade – se torna um meio para a própria compreensão da consciência: “Analisar o tempo não é tirar as consequências de uma concepção preestabelecida da subjetividade, é ter acesso, através do tempo, à sua estrutura concreta”.151 Portanto, o primeiro passo na análise da temporalidade como via de acesso ao para-si é estabelecer uma definição do tempo: “o tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de minha relação com as coisas”.152 A temporalidade, diz Merleau-Ponty, não é algo exterior a ser computado, mas a valoração pré-reflexiva proveniente do engajamento do organismo no mundo: “não há tempo natural, se se entende por isso um tempo das coisas sem subjetividade”.153 Assim como a espacialidade vivida do organismo deve ser compreendida como um espaço existencial ou situacional (como no caso da datilógrafa e do pianista), a temporalidade também pressupõe um ponto de vista, um determinado Umwelt, ou 149 Ibid., p. 550. 150 Idem. 151 Idem. 152 Ibid, p. 551. 153 Ibid, p. 607. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 101 melhor, uma ação ou finalidade específica de um dado instante: os momentos vivenciados por uma consciência como passado, presente ou futuro não devem ser tomados como registros de dados de um ‘lado de lá’, mas como a duração para cada organismo em sua relação com o mundo. Se separamos o mundo objetivo das perspectivas finitas que dão acesso a ele e o pomos em si, em todas as suas partes só podemos encontrar “agoras”. Mais ainda, esses agoras, não estando presentes a ninguém, não têm nenhum caráter temporal e não poderiam suceder-se. A definição do tempo que está implícita nas comparações do senso comum, e que se poderia formular como “uma sucessão de agoras”, não erra apenas por tratar o passado e o porvir como presentes: ela é inconsistente, já que destrói a própria noção do “agora” e a noção da sucessão.154 A temporalidade também não consiste em uma operação da consciência que têm o passado como produto de recordações ou o porvir como uma projeção a partir de tais recordações. Em Merleau-Ponty, qualquer tipo de explicação exclusivamente fisiológica da memória deve ser afastada, assim como qualquer tipo de associação entre esfera psíquica e consciência do passado. A refutação das “teorias fisiológicas” da memória, em Bergson, por exemplo, situa-se no terreno da explicação causal; ela consiste em mostrar que os traços cerebrais e os outros dispositivos corporais não são a causa adequada dos fenômenos de memória; que, por exemplo, no corpo não encontramos com o que dar conta da ordem na qual as recordações desaparecem em casos de afasia progressiva. A discussão assim conduzida certamente desacredita a ideia de uma conservação corporal do passado: o corpo não é um receptáculo de engramas, é um órgão de pantomima encarregado de assegurar a realização intuitiva das “intenções” da consciência [...] nenhuma conservação, 154 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 552. 102 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista nenhum “traço” fisiológico ou psíquico do passado pode fazer compreender a consciência do passado.155 Rejeitando a hipótese do registro de ‘agoras’ que, eventualmente, seriam interpretados como fatias de uma temporalidade uniforme, MerleauPonty considera a temporalidade como um desdobramento da consciência: “Não digamos mais que o tempo é um ‘dado da consciência’, digamos, mais precisamente, que a consciência desdobra ou constitui o tempo”.156 Quer dizer, não há um futuro ou um passado que não se origine de um para-si: “o passado não é passado, nem o futuro é futuro. Eles só existem quando uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva, ali introduzir o não-ser”.157 Porém, deve-se entender que, por desdobramento da consciência, Merleau-Ponty não quer dizer um ato consciente de representação da temporalidade. Basta lembrar que “eu não sou o autor do tempo, assim como não sou o autor dos batimentos de meu coração”158, ou seja, “eu não penso na tarde que vai chegar e em sua sequência, e todavia ela ‘está ali’, como o verso de uma casa da qual vejo a fachada, ou como o fundo sob a figura”.159 Em suma, a temporalidade está presente na constituição do Umwelt do mesmo modo pré-reflexivo que funciona o destacamento de uma figura sobre um fundo e, como apontamos no capítulo anterior, a intencionalidade, em Merleau-Ponty, é um aspecto não só da esfera representacional consciente, como também do elo não-representacional do organismo em seu meio, ou seja, como um serno-mundo. Dessa forma, conclui-se que “o tempo não é uma linha, mas 155 Ibid., p. 553. 156 Ibid., p. 555. 157 Ibid., p. 564. 158 Ibid., p. 572. 159 Ibid., p. 557. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 103 uma rede de intencionalidades”.160 Tais intencionalidades referidas são as noções husserlianas de protensão e retensão. Husserl chama de protensões e retenções às intencionalidades que me ancoram em uma circunvizinhança. Elas não partem de um Eu central, mas de alguma maneira de meu próprio campo perceptivo, que arrasta atrás de si seu horizonte de retenções e por suas protensões morde o porvir. Não passo por uma série de agoras dos quais eu conservaria a imagem e que, postos lado a lado, formariam uma linha. A cada momento que chega, o momento precedente sofre uma modificação: eu ainda o tenho em mãos, ele ainda está ali, e todavia ele já soçobra, ele desce para baixo da linha dos presentes.161 Cada retensão e protensão se dá de forma pré-reflexiva e esta explanação husserliana da origem da temporalidade remete à espacialidade existencial proveniente da motricidade, ou seja, devemos admitir uma “‘síntese passiva’ do tempo - uma expressão que evidentemente não é uma solução, mas um índice para designar um problema”.162 De fato, toda a discussão de Merleau-Ponty acerca da temporalidade parece menos uma solução e mais um esboço de conceitualização do problema. Não há uma robustez teórica como a que encontramos na discussão acerca da espacialidade. Além disso, como se sabe, tal visão do tempo será radicalmente refutada pelo próprio Merleau-Ponty na década seguinte. De qualquer forma, ao seguir Husserl na Fenomenologia, o francês encontra a fórmula da síntese da temporalidade atrelando-a à esfera pré-reflexiva. Em linguagem husserliana, abaixo da “intencionalidade de ato”, que é a consciência tética de um objeto e que, na memória intelectual por exemplo, converte o isto em ideia, precisamos reconhecer uma intencionalidade 160 Ibid., p. 558. 161 Ibid., p. 558. 162 Ibid.,p. 561. 104 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista “operante” (fungierende Intentionalität), que torna a primeira possível e que é aquilo que Heidegger chama de transcendência. 163 Merleau-Ponty parte de Heidegger para demonstrar que Bergson erra ao apontar a unidade do tempo por uma suposta continuidade ou sucessão. A temporalidade, na verdade, é como um “porvir-que-vai-parao-passado-vindo-para-o-presente”.164 Há uma acoplagem entre passado, presente e porvir, ou seja, “por definição o presente não está encerrado em si mesmo e se transcende em direção a um porvir e a um passado”, ou ainda, “eu não estou no instante atual, estou também na manhã deste dia ou na noite que virá, e meu presente, se se quiser, é este instante, mas é também este dia, este ano, minha vida inteira”.165 A temporalidade tornase, ao final da obra, a discussão chave para entendermos a consciência: deve haver uma consciência primordial que ultrapasse as representações e as fundamente. Tal consciência é a consciência-do-presente, a esfera da coincidência entre em-si e para-si. A consciência primária não é atemporal como o cogito cartesiano ou o Eu transcendental kantiano, mas o próprio fluxo da temporalidade do organismo enraizado no presente. Dizíamos acima que é preciso chegar a uma consciência que não tenha mais nenhuma outra atrás de si, que portanto apreenda seu próprio ser, e em que enfim ser e ser consciente sejam um e o mesmo. Esta consciência última não é um sujeito eterno que se aperceba em uma transparência absoluta, pois um tal sujeito seria definitivamente incapaz de decair no tempo e não teria portanto nada de comum com nossa experiência - ela é a consciência do presente [...] É aqui que a temporalidade ilumina a subjetividade. Nunca compreenderemos como um sujeito pensante ou constituinte pode pôr-se ou perceber-se a si mesmo no tempo. Se o Eu é o Eu transcendental de Kant, 163 Idem. 164 HEIDEGGER apud MERLEAU-PONTY, 1999, p. 563. 165 Ibid., p. 564. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 105 nunca compreenderemos como ele possa em algum caso confundir-se com seu rastro no sentido interno, nem como o eu empírico ainda seja um eu. Mas, se o sujeito é temporalidade, então a autoposição deixa de ser uma contradição, porque ela exprime exatamente a essência do tempo vivo. 166 Em outras palavras, não se faz necessário pensar uma intencionalidade separada de um fluxo temporal em-si, ou seja, uma intencionalidade descolada que organizaria os inputs de forma a constituir uma ‘linha do tempo’. Na verdade, a própria intencionalidade funda o fluxo temporal: “É pela temporalidade que, sem contradição, pode haver ipseidade, sentido e razão”.167 A temporalidade, assim como a motricidade e a sexualidade, constitui a esfera pré-reflexiva, chamada também por Merleau-Ponty de síntese passiva. O paradoxo de uma passividade que opera sínteses significa nada mais que a condição não-representacional de uma situação existencial que é intrínseca e inalienável a cada organismo. A volição e a pré-reflexividade imbricam-se dialeticamente, perpetuando o ciclo de valoração. É com a temporalidade, portanto, que Merleau-Ponty apresenta seu cogito tácito, isto é, não a intencionalidade atemporal, mas a percepção corporal engajada, existencialmente situada. Nós não somos, de uma maneira incompreensível, uma atividade junto a uma passividade, um automatismo dominado por uma vontade, uma percepção dominada por um juízo, mas inteiramente ativos e inteiramente passivos, porque somos o surgimento do tempo.168 A temporalidade é, enfim, a última esfera de análise de MerleauPonty. Com ela, Merleau-Ponty finda sua investigação e resume seu objetivo: “unir a perspectiva idealista, segundo a qual nada é senão como 166 Ibid., pp. 568-570, grifo nosso. 167 Ibid., p. 571. 168 Ibid., p. 573. 106 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista objeto para a consciência, e a perspectiva realista, segundo a qual as consciências estão inseridas no tecido do mundo objetivo e dos acontecimentos em si”.169 Tal união se deu na perspectiva da síntese passiva do cogito tácito que, em termos heideggerianos, define o noso modo de ser-no-mundo ou, seguindo Husserl, o Lebenswetl. Unir idealismo e realismo significa atestar a pré-reflexividade da corporeidade como intencionalidade valorativa do tecido espaço-temporal de um Umwelt. Sob a intencionalidade de ato ou tética, e como sua condição de possibilidade, encontrávamos uma intencionalidade operante, já trabalhando antes de qualquer tese ou qualquer juízo, um “Logos do mundo estético” [...] A distinção que tínhamos feito alhures entre estrutura e significação doravante se esclarece: o que faz a diferença entre a Gestalt do círculo e a significação do círculo é que a segunda é reconhecida por um entendimento que a engendra como lugar dos pontos equidistantes de um centro, a primeira por um sujeito familiar ao seu mundo, como fisionomia circular.170 A consciência é sempre ekstase no sentido heideggeriano, ou seja, é sempre um fluxo temporal que constitui “uma relação de transcendência ativa entre o sujeito e o mundo”.171 Portanto, partindo do “mundo enquanto berço das significações, sentido de todos os sentidos e solo de todos os pensamentos, nós descobríamos o meio de ultrapassar a alternativa entre realismo e idealismo, acaso e razão absoluta, não-sentido e sentido”.172 A percepção do mundo se abre pela temporalidade fundante da intencionalidade e a tarefa de compreender a consciência torna-se a tarefa de compreender a temporalidade. 169 Ibid., p. 574. 170 Ibid., p. 575. 171 Ibid., p. 576. 172 Idem. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 107 a análise do tempo não era apenas uma ocasião de repetir aquilo que tínhamos dito a propósito do mundo. Ela ilumina as análises precedentes porque faz o sujeito e o objeto aparecerem como dois momentos abstratos de uma estrutura única que é a presença [...] Apliquemos a ideia de subjetividade como temporalidade aos problemas pelos quais começamos. Nós nos perguntávamos, por exemplo, como compreender as relações entre a alma e o corpo, e era uma tentativa sem esperança ligar o para si a um certo objeto em si do qual ele deveria sofrer a operação causal. Mas se o para si, a revelação de si a si, não é senão o vazio no qual o tempo se faz, e se o mundo “em si” não é senão o horizonte de meu presente, então o problema redunda em saber como um ser que é porvir e passado também tem um presente - quer dizer, o problema se suprime, já que o porvir, o passado e o presente estão ligados no movimento de temporalização. É-me tão essencial ter um corpo quanto é essencial ao porvir ser porvir de um certo presente, de forma que a tematização científica e o pensamento objetivo não poderão encontrar uma só função corporal que seja rigorosamente independente das estruturas da existência, e reciprocamente um só ato “espiritual” que não repouse em uma infra-estrutura corporal [...] Não é apenas a noção do corpo que, através da noção do presente, é necessariamente ligada à noção do para si, mas a existência efetiva de meu corpo é indispensável à existência de minha consciência.173 Tal corpo, como já frisamos, é o que Merleau-Ponty chama de corpo próprio, quer dizer, é o organismo em sua vivência fenomenológica que, a rigor, não pode ser tomado como equivalente ao organismo entendido pela percepção analítica da ciência fisiológica. O corpo fenomênico é essa abertura temporal ao mundo, é a dialética perpétua entre valoração e captação de sentido. Tal dinâmica constitui o ponto-chave para entendermos a noção de enativismo, da qual trataremos no capítulo seguinte. Ao assumir a noção de corpo próprio, Merleau-Ponty permite o entendimento da relação entre cognição e fenômeno. 173 Ibid., pp.577-578. 108 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista É a ciência que nos habitua a considerar o corpo como uma reunião de partes, e também a experiência de sua desagregação na morte. Ora, o corpo decomposto, precisamente, não é mais um corpo [...] Em outros termos, como nós o mostramos alhures, o corpo objetivo não é a verdade do corpo fenomenal, quer dizer, a verdade do corpo tal como nós o vivemos, ele só é uma imagem empobrecida do corpo fenomenal, e o problema das relações entre a alma e o corpo não concerne ao corpo objetivo, que só tem uma existência conceitual, mas ao corpo fenomenal [...] Quando dizíamos acima que não existe mundo sem uma Existência que sustente sua estrutura, ter-se-ia podido nos opor que todavia o mundo precedeu o homem [...] Na realidade, é apenas a reflexão abstrata do intelectualismo que é incompatível com “fatos” mal compreendidos. Pois o que se quer dizer exatamente afirmando que o mundo existiu antes das consciências humanas? Quer-se dizer, por exemplo, que a terra saiu de uma nebulosa primitiva em que as condições da vida não estavam reunidas. Mas cada uma dessas palavras, assim como cada uma das equações da física, pressupõe nossa experiência pré-científica do mundo, e essa referência ao mundo vivido contribui para constituir sua significação válida. Nada me fará compreender o que poderia ser uma nebulosa que não seria vista por ninguém.174 Superada a dicotomia entre res cogitans e res extensa ao descrever a consciência como corporeidade, ou melhor, como intencionalidade operante fundada na motricidade de um corpo próprio, Merleau-Ponty fornece a chave teórica para o estabelecimento posterior de um paradigma no âmbito da ciência cognitiva. Como veremos no capítulo seguinte, a posição merleau-pontiana foi revisitada e ampliada por Varela, Thompson e Rosch (1991), introduzindo na discussão contemporânea a noção de enativismo. 174 Ibid., pp. 578-579. III Enativismo O capítulo precedente nos levou à conclusão de que “a percepção originária é uma experiência não-tética, pré-objetiva e pré-consciente”1, ou seja, abaixo da intencionalidade de ato reside uma intencionalidade operante que obriga-nos a reconhecer o papel crucial da corporeidade para o entendimento da consciência: “Existe um sentido autóctone do mundo que se constitui no comércio de nossa existência encarnada com ele, e que forma o solo de toda Sinngebung decisória”.2 Ao destacar o papel da corporeidade, Merleau-Ponty consegue distanciar-se de formulações restritas ao cérebro, tese comum tanto ao cientista cognitivo quanto ao leigo: “O senso comum põe o lugar do pensamento na cabeça”.3 A perspectiva assumida por Merleau-Ponty consiste justamente em admitir que identificar a consciência apenas como produto da atividade neuronal constitui um equívoco que se torna perceptível “porque rejeitamos o formalismo da consciência e fizemos do corpo o sujeito da percepção”.4 Em suma, a consciência deve ser entendida como uma corporeidade inserida de forma pré-reflexiva em um circuito existencial ou, em outras palavras, como uma consciência corporificada existencial engajada. Esta formulação foi sintetizada por Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch no conceito de enativismo e é dele que trataremos agora. 1 Ibid., p. 325. 2 Ibid., p. 591. 3 Ibid., p. 202. 4 Ibid., p. 303. 110 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista A obra A Mente Corpórea - Ciência Cognitiva e Experiência Humana de Varela, Thompson & Rosch (1991) deixa claro, logo na introdução, a inspiração das ideias contidas em suas páginas: Gostaríamos de considerar o trabalho desenvolvido ao longo deste livro como uma continuação moderna de um programa de investigação iniciado há mais de uma geração pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Por continuação não queremos dizer uma consideração erudita do pensamento de MerleauPonty no contexto da ciência cognitiva contemporânea. Pelo contrário, queremos apenas afirmar que os trabalhos de Merleau-Ponty inspiraram e guiaram o desenvolvimento desta obra.5 Além de sustentar um débito para com Merleau-Ponty, a obra consiste igualmente em um esforço de articulação entre a tradição budista madhyamika e os dados empíricos da ciência cognitiva acerca da tese sustentada por ambas - de que não há um self como centro organizador da experiência. Além disso, defende-se também que tal filosofia oriental já possui elementos daquilo que viria a ser o enativismo enquanto descrição da cognição humana. Desse modo, a proposta geral da obra se torna a de encontrar o “núcleo metodológico da interação entre a meditação de atenção/consciencialização [conjunção de duas práticas meditativas orientais: shamatha e vipashyana], a fenomenologia e a ciência cognitiva”.6 A articulação de tradições filosóficas orientais com o debate científico contemporâneo ocidental acerca da formulação de uma teoria da mente constitui uma tarefa louvável e extremamente frutífera, porém, nosso intuito aqui se limita à apresentação do enativismo como desdobramento da fenomenologia de inspiração merleau-pontiana, formulada como alternativa ao cognitivismo e ao conexionismo. Além disso, há uma crítica 5 VARELA et al., 1991, pp. 15-16. 6 Ibid., p. 54. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 111 substancial ao neodarwinismo proveniente da chamada síntese moderna, a saber, a junção entre as ideias darwinistas baseadas na zoologia, na botânica e na etologia com a genética de Gregor Mendel. Varela, Thompson e Rosch (1991) rejeitam a ênfase na adaptação como noção central da biologia evolucionária. Os autores defendem que a seleção natural, ao contrário do que sustenta o neodarwinismo, não deve ser tomada exclusivamente como variável do processo de evolução. Tal esforço de crítica ao paradigma neodarwinista, apesar de sua riqueza, também não será apresentado. A preocupação inicial de Varela et al. consiste em propor uma historiografia da ciência cognitiva divida em três estágios de sucessão de paradigmas: cognitivismo, emergentismo (ou conexionismo) e enativismo. O primeiro paradigma provém do trabalho de autores como Chomsky, Newell e Fodor; o segundo, por sua vez, possui Dennett e Hofstadter como principais representantes; por fim, o enativismo surge a partir do trabalho de nomes como Heidegger, Merleau-Ponty, Jean Piaget, Hubert Dreyfus, George Lakoff e os próprios autores. Vejamos rapidamente a definição de cada paradigma para, então, passarmos a uma discussão detalhada de cada um. O cognitivismo constitui o núcleo ou paradigma inicial da ciência cognitiva e pode ser entendido como o esforço de equiparar a cognição humana à computações sequenciais. o cognitivismo consiste na hipótese de que a cognição - incluindo a cognição humana - é a manipulação de símbolos nos moldes daquilo que é executado pelos computadores digitais. Por outras palavras, a cognição é uma representação mental: a mente é definida como operando em termos de manipulação de símbolos que representam características do mundo ou representam o mundo como sendo de um determinado modo. De acordo com esta 112 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista hipótese cognitivista, o estudo da cognição como representação mental fornece o domínio específico da ciência cognitiva, um domínio que é supostamente independente da neurobiologia, por um lado, e da sociologia e da antropologia, por outro.7 Por muito tempo o cognitivismo foi praticamente sinônimo de ciência cognitiva, porém, como apontam Varela et al. (1991), abordagens alternativas surgiram para contrapor sua hegemonia, sendo o emergentismo/conexionismo e o enativismo as principais delas. Basicamente, a crítica ao cognitivismo se resume a duas observações: a) o questionamento se o processamento de símbolos é, de fato, o meio adequado para definir a cognição e; b) a crítica à própria “noção de que a cognição é fundamentalmente representação”.8 A segunda observação consiste na característica fundamental da abordagem enativista; a primeira, por sua vez, provém do conexionismo que é assim definido: Esta designação é baseada na ideia de que muitas tarefas cognitivas (tais como a visão ou a memória) aparentam ser executadas de uma melhor forma por sistemas constituídos por muitos componentes simples, os quais, quando ligados por regras apropriadas, dão origem ao comportamento global correspondente à tarefa desejada. O processamento dos símbolos é porém localizado. As operações com símbolos podem ser especificadas usando apenas a forma física dos símbolos e não o seu significado [...] Os modelos conexionistas trocam geralmente o processamento simbólico localizado por operações distribuídas (operações que se estendem por uma rede completa de componentes) resultando deste modo na emergência de propriedades globais resilientes ao funcionamento deficiente localizado. Para os conexionistas, uma representação consiste na correspondência entre a emergência de um estado 7 Ibid., pp. 30-31. 8 Ibid., p. 32. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 113 global deste tipo e as propriedades do mundo; não se trata de uma função de símbolos particulares.9 O enativismo, por sua vez, pretende ultrapassar os dois paradigmas anteriores ao questionar a própria necessidade de assumir a representação como componente central ou primário da cognição. Propomos como nome o termo enação para salientar a convicção crescente de que a cognição não é a representação de um mundo preestabelecido elaborada por uma mente predefinida mas é antes a actuação de um mundo e de uma mente com base numa história da variedade de ações que um ser executa no mundo.10 Levando em conta a citação acima e aquilo abordado nos capítulos anteriores, é facilmente perceptível a influência de Merleau-Ponty na abordagem enativista, ainda mais quando lembramos afirmações afirmações do filósofo francês que dizem que “o pensamento objetivo ignora o sujeito da percepção. Isso ocorre porque ele se dá o mundo inteiramente pronto, como meio de todo acontecimento possível, e trata a percepção como um desses acontecimentos”.11 Em outras palavras, tanto Merleau-Ponty quanto o enativismo de Varela, Thompson & Rosch (1991) apontam que o mundo não é um conjunto de inputs posteriormente internalizados, pois, na verdade, a cognição funciona a partir de uma percepção baseada no a priori da espécie e na história comportamental variável de cada organismo. Em suma, “aquele que sente e o sensível não estão diante do outro como dois termos exteriores, e a sensação não é uma invasão do sensível naquele que sente”12, ou seja, a cognição é não a apreensão de um 9 Ibid., pp. 31-32. 10 Ibid., p. 32, grifo nosso. 11 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 279. 12 Ibid., p. 288. 114 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista mundo acabado, mas o processo enativista de constituição não-representacional de contextos. Até mesmo na Física podemos encontrar a admissão da impossibilidade de teorizarmos um cosmos inteiramente objetivo, para além de perspectivas situacionais. Como afirmam Stephen Hawking & Lonard Mlodinow, “o universo enquanto tal não possui uma história única, nem mesmo uma existência independente.”13 Com isso em mente, vejamos em detalhes o paradigma cognitivista. A) Representação e Cognição Em seu primeiro momento, a ciência cognitiva surge como cibernética, uma designação que “deixou de ser utilizada e atualmente muitos cientistas cognitivos nem sequer reconheceriam as relações de parentesco”.14 A cibernética foi de grande valia pragmática ao fomentar um saber interdisciplinar crucial “para a invenção dos computadores digitais”15, tornando-se assim a base conceitual da hipótese cognitivista. Tal base possui no artigo A Logical Calculus of Ideas Immanent in Nervous Activity (1943) de McCulloch & Pitts “um dos melhores exemplos deste modo de pensar (e das suas consequências tangíveis)”.16 Portanto, as raízes do cognitivismo podem assim ser definidas: Com este artigo foram dados dois passos fundamentais: primeiro, a proposta de que a lógica é a disciplina adequada para compreender o cérebro e a atividade mental e, segundo, a afirmação de que o cérebro é um aparelho que incorpora princípios lógicos nos seus componentes elementares, ou neurônios. Cada neurônio foi apresentado como um mecanismo de limiar [threshold device] com a possibilidade de estar num estado ativo ou inativo. 13 HAWKING & MLODINOW, 2010, p. 2. 14 VARELA et al., 1991, p. 66. 15 Ibid., p. 67. 16 Idem. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 115 Tais neurônios de natureza tão simples podiam então ser ligados uns aos outros, desempenhando as suas interligações o papel de operações lógicas, de modo a que todo o cérebro podia ser considerado como uma máquina dedutiva.17 Já nos na década de 1950, a cibernética como movimento ou, digamos, protociência cognitiva foi abandonada e “só a ideia da mente como cálculo lógico que permaneceu”.18 Em seu lugar, presenciou-se o surgimento da ciência cognitiva e a continuação e desdobramento da ideia de cognição como computação. Assim como 1943 foi claramente o ano em que nasceu a fase cibernética, 1956 foi o ano que viu nascer o cognitivismo. Durante este ano, em duas conferências realizadas em Cambridge e Dartmouth, novas vozes (tais como as de Herbert Simon, Noam Chomsky, Marvin Minsky e John McCarthy) formularam as ideias que viriam a se tornar as linhas mestras da ciência cognitiva moderna. A intuição central por detrás do cognitivismo é a de que a inteligência - inclusive a inteligência humana - assemelha-se de tal modo à computação nas suas características essenciais que a cognição pode realmente ser definida como processos computacionais baseados em representações simbólicas. 19 Quando o cognitivismo afirma que os dados apreendidos por um sistema (vivo ou artificial) tornam-se representações simbólicas, significa literalmente que as representações são “fisicamente realizadas sob a forma de um código simbólico no cérebro ou numa máquina”.20 Vale ressaltar que na hipótese cognitivista os símbolos são não apenas entidades físicas, como também semânticas. Apesar de um computador não ter acesso ao valor semântico de suas representações, as suas “operações são no entanto 17 Idem. 18 Ibid., p. 68. 19 Ibid., p. 69. 20 Ibid., p. 70. 116 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista semanticamente constrangidas, dado que cada distinção semântica relevante para o seu programa foi codificada pelos programadores na sintaxe da sua linguagem simbólica”.21 Dessa forma, o argumento do cognitivismo consiste em afirmar que a cognição e a intencionalidade são “física e mecanicamente possíveis”22, ou seja, a apreensão do ambiente se dá por computações de ordem física que possuem um caráter intrinsecamente semântico. O cognitivismo, porém, não defende que o aspecto semântico seja localizável. A despeito da representação simbólica ser um processo físico, não significa que se estivéssemos a dissecar um cérebro nós “encontraríamos pequenos símbolos a serem manipulados. Embora o nível simbólico seja fisicamente realizado, não é redutível ao nível físico”.23 Com isso, percebe-se que, apesar de diferenças incontornáveis, este aspecto de superveniência aceito pelo cognitivismo encontra-se em harmonia não só com o enativismo de Varela, Thompson & Rosch (1991), como também com as formulações de Merleau-Ponty em A Estrutura do Comportamento (1942) que demonstramos anteriormente, a saber, o uso da noção de Gestalt para defender a irredutibilidade do comportamento ao nível físico, ao mesmo tempo que é defendido um repúdio a qualquer noção dualista ou vitalista, ou seja, nesse ponto o cognitivismo e o enativismo estão em perfeita harmonia. Devido a esta irredutibilidade é muito possível que aquilo que corresponde a alguma expressão simbólica ao nível físico seja um padrão global e altamente distribuído de atividade cerebral [...] A concepção a níveis múltiplos da 21 Idem. 22 Idem. 23 Ibid., p.71. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 117 explicação científica é muito recente e é uma das maiores inovações da ciência cognitiva. 24 Dito isso, notemos que “a hipótese cognitivista implica um argumento muito forte sobre as relações entre sintaxe e semântica”.25 A sintaxe do código simbólico em um programa “reflete ou codifica sua semântica. No caso da linguagem humana, está muito longe de ser óbvio que todas as distinções semânticas relevantes numa explicação do comportamento possam ser refletidas sintaticamente”.26 Em outras palavras, o cognitivismo oferece uma explicação da mente onde todos os processos psicológicos existem por conta de regras, símbolos e representações. A questão, então, seria apenas a de descobrir ou, no caso de uma inteligência artificial, programar cada uma das regras para que um sistema tivesse os mesmos símbolos e representações que um humano adulto em plena capacidade cognitiva. Com isso, os primeiros cognitivistas chegavam mesmo a equiparar a vivência de um ser humano maduro inserido em determinado contexto sócio-cultural a regras computacionais: “O sistema social não era apenas um estímulo complexo; podia ser moldado na mente como representações de receitas e esquemas sociais”.27 As representações do processo cognitivo na hipótese cognitivista são sempre inconscientes e inacessíveis. Ao pensarmos na noção de inconsciente é inevitável mencionar Freud e o seu esquema de divisão do sujeito em id, ego e superego. De um certo modo, argumentam Varela, Thompson & Rosch (1991), “a psicanálise foi explicitamente cognitivista nos seus 24 Idem. 25 Idem. 26 Idem. O experimento do quarto chinês de Searle é, provavelmente, a crítica mais conhecida desta hipótese do cognitivismo. 27 Ibid., p.77. 118 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista começos”28, porém, o inconsciente freudiano é um conjunto de representações que “poderiam, pelo menos teoricamente, tornar-se ou terem sido conscientes”.29 O cognitivismo, por outro lado, apresenta uma compreensão “muito mais radical e alienante do processamento inconsciente”30: não só a cognição se dá por representações inconscientes, como tais representações nunca poderão ser acessadas pela intencionalidade de ato; por isso que, ao referir-se às variadas teorizações do cognitivismo, Daniel Dennett classifica-as como teorias do “nível subpessoal”31, ou seja, “se a cognição é fundamentalmente uma computação simbólica, segue-se imediatamente uma discrepância entre pessoal e subpessoal, uma vez que presumivelmente nenhum de nós está ciente de uma computação num meio simbólico interno quanto está a pensar”.32 Dessa forma, a consciência não compreende a totalidade daquilo que podemos chamar de mente (algo que Freud também já havia feito33), pois “para os cognitivistas, cognição e intencionalidade (representação) são o par inseparável, e não a cognição e a consciência”.34 Em suma, a cognição - à luz do cognitivismo - é um processo que, a princípio, não necessita de nenhuma consciência; com isso, quebra-se a noção do senso comum da mente como um self coerente e unificado, ou seja, de um ponto de vista que sou eu; na verdade, como se vê, o cognitivismo acaba por defender aquilo que comentamos no início do capítulo, a saber, a posição budista por excelência de que não há um self no processo cognitivo e o aspecto anônimo da intencionalidade operante descrita enquanto corpo próprio em 28 Ibid., p. 78. 29 Ibid., p. 79. 30 Idem. 31 Ibid., p. 80. 32 Idem. 33 Ibid., p. 81. 34 Ibid., p. 82. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 119 Merleau-Ponty. Com isso, tanto o cognitivismo quanto a filosofia budista alinham-se às formulações merleau-pontianas e autopoiéticas35 que defendem a percepção como um ato originariamente desprovido de consciência. Toda consciência pressupõe intencionalidade, mas nem toda intencionalidade pressupõe consciência. No entanto, vejamos agora o distanciamento entre a posição enativista e a cognitivista. O uso da fenomenologia para tecer uma crítica ao cognitivismo não começa com Varela. Para nós, o maior exemplo de crítica fenomenológica à teoria representacional da mente é a obra What Computers Can’t Do (1972) de Hubert Dreyfus. A bem da verdade, muito do argumento de de Varela, Thompson & Rosch (1991) é apenas um modo de revisitar a tese de Dreyfus. Com isso, não precisamos apresentar aqui o desenvolvimento específico da obra do americano, já que o enativismo é uma consequência direta dela. Porém, é em Dreyfus que podemos encontrar a melhor síntese do cognitivismo, resumida em quatro suposições. Vejamos. A pressuposição de que o homem funciona como um aparato de manipulação simbólica de regras gerais significa assumir 1. Uma suposição biológica de que em algum nível operacional o cérebro processa informação por operações biológicas equivalentes à um modelo binário de ligado/desligado. 2. Uma suposição psicológica de que a mente pode ser compreendida como um aparato que opera bits de informação seguindo regras formais. 3. Uma suposição epistemológica de que todo o conhecimento pode ser formalizado, isto é, que tudo aquilo que é compreensível pode ser traduzido em termos de relações lógicas. 4. Finalmente, já que toda informação que alimenta computadores digitais deve ser em bits, o modelo computacional da mente pressupõe que toda informação relevante sobre o mundo, tudo aquilo essencial para a produção de comportamento inteligente, deve, em princípio, ser decomponível em elementos generalizantes, destacados das contingências contextuais. 35 Cf. VARELA & WEBER. Life after Kant: Natural purposes and the autopoietic foundations of biological individuality (2002) e BARBARAS. Francisco Varela: A new idea of perception and life (2002). 120 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista Esta é a suposição ontológica de que aquilo que existe é um conjuntos de fatos, no qual cada um é logicamente independente de todos os demais.36 Os desdobramentos das quatro suposições traçadas por Dreyfus serão aprofundados mais à frente ao tratarmos do paradigma enativista. Por ora, apresentaremos uma “controversa abordagem à cognição na qual as qualidades auto-organizantes dos agregados biológicos desempenham um papel principal”37, a saber, o conexionismo. B) Auto-organização e Emergência Alternativas ao cognitivismo já existiam desde os primórdios da cibernética. Já nas Macy Conferences (1946-1953) encontramos uma “extensa discussão sobre o fato de nos cérebros reais parecer não existir qualquer tipo de regras, nenhum processador lógico central, nem a informação parece encontrar-se armazenada em endereços precisos”.38 Dessa forma, já na aurora da ciência cognitiva havia - de forma embrionária - ideias conexionistas que podem ser entendidas a partir da constatação de que “os cérebros podem funcionar à base de interligações em massa e de uma forma distribuída, de tal modo que as ligações reais entre conjuntos de neurônios se alteram em função da experiência”.39 Se o conexionismo aponta que há alteração de funções mediante o “the assumption that man functions like a general--purpose--symbol--manipulating-device amounts to 1. A biological assumption that on some level of operation the brain processes information in discrete operations by way of some biological equivalent of on/off switches. 2. A psychological assumption that the mind can be viewed as a device operating on bits of information according to formal rules. 3. An epistemological assumption that all knowledge can be formalized, that is, that whatever can be understood can be expressed in terms of logical relations. 4. Finally, since all information fed into digital computers must be in bits, the computer model of the mind presupposes that all relevant information about the world, everything essential to the production of intelligent behavior, must in principle be analyzable as a set of situation -free determinate elements. This is the ontological assumption that what there is, is a set of facts each logically independent of all the others” (DREYFUS, 1992, p.156). 36 37 Ibid., p. 118. 38 Ibid., p. 121. 39 Ibid., p. 121, grifo nosso. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 121 acúmulo de experiência, significa que a rigidez cognitivista já não corresponde ao funcionamento real observado no cérebro. Por exemplo, estudos sobre alterações dos neurônios no córtex visual de animais demonstram que “as respostas neuronais estereotipadas se tornaram altamente sensíveis ao contexto [...] Mesmo uma alteração de postura, embora preservando o mesmo idêntico estímulo sensorial, altera as respostas neuronais no córtex visual primário”40, ou seja, o comportamento global emergente das unidades simples (no caso, os neurônios) demonstraram uma organização diretamente ligada ao contexto em questão, incluindo algo tão básico como o posicionamento da corporeidade. O que deve ficar claro é que o paradigma conexionista defende uma “capacidade auto-organizativa que não existe no paradigma da manipulação de símbolos”41, isto é, no cognitivismo não há espaço para padrões neuronais que emergem a partir da variação de atividades auto-organizadoras globais. Para o cognitivista, há regras de apreensão cognitiva em nosso cérebro que não mudam de acordo com a situação. Para ilustrar tal limitação do cognitivismo, Varela, Thompson & Rosch (1991) nos lembram que no cognitivismo “o processamento da informação simbólica é baseado em regras sequenciais, aplicadas uma de cada vez”, o que acaba nos levando a uma “limitação dramática quando a tarefa em mãos requer grandes números de operações sequenciais (tais como a análise de imagem ou a previsão meteorológica”.42 Uma descrição simbólica estágio-a-estágio para um sistema com este tipo de constituição parece ir contra a direção natural. Além disso, tornou-se cada vez mais claro para os neurocientistas que precisamos estudar os neurônios como membros de vastos conjuntos que estão constantemente a desaparecer e a 40 Ibid., p. 131. 41 Ibid., p. 122. 42 Ibid., p. 122. 122 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista surgir através das suas interações cooperativas e em que cada neurônio tem respostas múltiplas e que se alteram de um modo dependente do contexto [...] O cérebro é portanto um sistema altamente cooperativo: as densas interligações entre os seus componentes implicam que quase tudo o que decorrer será uma função de tudo aquilo que os componentes se encontram a fazer.43 Enquanto que o cognitivismo estipula uma representação do mundo previamente elaborada, o conexionismo pensa a cognição a partir de padrões globais modificados pela história das ações executadas. Não há regras pré-programadas no cérebro, mas uma plasticidade que responde aos diferentes contextos situacionais: “se dois neurônios tendem a ser ativos em conjunto, a sua ligação é fortalecida; caso contrário, é diminuída. Consequentemente, a conexidade do sistema torna-se inseparável da sua história de transformação”44, ou seja, a conexidade da rede neuronal não é um sistema acabado, mas um processo de auto-organização que emerge a partir do histórico de ações que foram ou ainda serão realizadas. É óbvio que há aspectos condicionados nos organismos devido ao processo darwinista de evolução, mas este mesmo processo de seleção natural nos forneceu um modo de ser-no-mundo que é, em última instância, adaptável e, na medida do possível, remodelável. Podemos tomar a totalidade do cérebro e dividi-lo em subseções, em função dos tipos de células e áreas, tais como o tálamo, o hipocampo círculo cortical, etc. Estas subseções são constituídas por redes complexas de células, mas também se relacionam umas com as outras à maneira de uma rede. Como resultado, todo o sistema adquire uma coerência interna com padrões intrincados, mesmo que não nos seja possível dizer como é que isto ocorre. Por exemplo, se se mobilizar artificialmente o sistema reticular de um organismo, este alterar-se-á em termos de comportamento, digamos, de um estado de 43 Ibid., pp. 131-132. 44 Ibid., p. 124. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 123 vigília para um estado adormecido. No entanto, esta alteração não indica que o sistema reticular seja o controlador do estado de vigília. Este sistema será antes uma forma de arquitetura no cérebro que permite que certas coerências internas surjam. Mas quando estas coerências surgem, não se devem simplesmente a qualquer sistema particular. O sistema reticular é necessário mas não suficiente para certos estados coerentes. Tais como o estado de vigília e o estado adormecido.45 Em poucas palavras, a estratégia conexionista se resume a “construir um sistema cognitivo não a partir de símbolos e regras mas a partir de componentes simples que se ligariam dinamicamente uns aos outros”.46 Além disso, vale ressaltar que tal tese implica admitir que tais propriedades emergentes provenientes da auto-organização são encontradas não apenas em sistemas neuronais, já que o cérebro, do ponto de vista naturalista darwinista, não constitui um caso isolado de arranjo específico da matéria a ser compreendido pela leitura emergentista: “parece tornar-se difícil para qualquer agregado densamente ligado poder escapar às propriedades emergentes; deste modo, as teorias de tais propriedades constituem uma ligação natural para níveis de descrições diferentes em termos de fenômenos naturais e cognitivos”.47 Do ponto de vista enativista, o conexionismo leva uma considerável vantagem em relação ao cognitivismo. As explicações (ou reconstruções) de modelos cognitivistas para tarefas como “o reconhecimento rápido, a memória associativa e a generalização categórica”48 sempre resultam em “poucos resultados convincentes”.49 Percebe-se, portanto, que descrever a cognição humana como equivalente ao processamento de dados de um 45 Ibid., p. 132. 46 Ibid., p. 125. 47 Ibid., p. 129. 48 Idem. 49 Idem. 124 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista sistema artificial possui seus limites. O modelo conexionista, por outro lado, está mais próximo dos modelos biológicos, possibilitando uma aplicação - com poucas modificações - a vários domínios (como visão ou reconhecimento de fala), além de viabilizar uma melhor integração entre inteligência artificial e neurociência. O exemplo da visão é mais um que Varela, Thompson & Rosch (1991) usam para demonstrar os limites de uma visão cognitivista que pensa a percepção como um processamento de informação sequencial de inputs: “Olhar para os circuitos visuais como constituindo um processador sequencial parece inteiramente arbitrário [...] o comportamento de todo o sistema parece-se muito mais com uma conversa num cocktail party do que com uma cadeia de comando”.50 Dessa forma, a posição cognitivista de que toda unidade de um sistema cognitivo possuiria sua sintaxe pré-estabelecida não corresponde à vivência orgânica de fato, já que “um neurônio individual participa em muitos desses padrões globais e tem pouco significado quando tomado individualmente”51, ou seja, uma tarefa cognitiva (no caso, o reconhecimento visual de um objeto) é nada mais que a emergência de um estado global de conexões neuronais simples variáveis com o contexto. Em outras palavras, “na abordagem conexionista, o significado não está localizado em símbolos particulares; é uma função do estado global do sistema”.52 Em suma, a limitação imposta pelo modelo cognitivista é superada pelo conexionismo ao assumirmos que cada neurônio pode variar sua função de acordo com o arranjo situacional. O holismo da fenomenologia e da Gestalttheorie encontra no conexionismo um forte aliado. 50 Ibid., p. 134. 51 Idem. 52 Ibid., p. 139, grifo nosso. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 125 Em situações em que o universo de itens possíveis a ser representado é constrangido e de fácil definição (quando, por exemplo, um computador é programado, ou quando uma experiência é conduzida com base num conjunto de estímulos visuais predefinidos), a especificação de significado é clara. Cada item físico ou funcional discreto é feito para corresponder a um item externo (o seu significado referencial), uma operação de correspondência que o observador facilmente executa. Removam-se estes constrangimento e a forma dos símbolos é tudo o que resta, e o significado transforma-se num fantasma, como aconteceria no caso de termos que contemplar os padrões de bits num computador cujo manual de instruções se tivesse perdido.53 Para que fique claro: não se trata aqui de repudiar tudo que provém do paradigma cognitivista. Não se trata de negar que exista um nível representacional em certo aspecto da cognição e sim que “este argumento [cognitivista] limita injustificadamente o domínio da cognição a processos de nível muito elevado”54, ou seja, há um nível não-representacional de organização emergente que subjaz os processos representacionais, porém, esse nível não é apenas inconsciente, anônimo ou operante, como diria Merleau-Ponty, ele é fundamentalmente distinto de algo que possa ser descrito como representação. Quando algo é representado, no âmbito da cognição, significa que algo de objetivo foi introjetado (como quando a intencionalidade de ato, isto é, a percepção analítica compreende que as linhas da ilusão de Müller-Lyer são iguais), porém, o fundamento da relação organismo-Umwelt é precisamente algo não-representacional, algo indescritível em termos proposicionais ou, simplesmente, o contrário de um sistema fixo de regras. Qualquer descrição da cognição deve partir da distinção apresentada no capítulo anterior: há uma intencionalidade operante não-representacional que sustenta a intencionalidade de ato. E 53 Ibid., pp. 138-139. 54 Ibid., pp. 141-142. 126 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista mesmo que haja operações representacionais no âmbito anônimo do corpo próprio, o fundamento sempre é antepredicativo. Dessa forma, a posição de Varela, Thompson & Rosch (1991) consiste não exatamente em descartar o cognitivismo nem o conexionismo, mas sim apontar os limites explicativos para, com isso, construir uma junção fecunda que consiga delimitar os diferentes tipos de processos que ocorrem durante a cognição. Um modo inclusivo ou misto parece, então, uma estratégia natural a ser seguida. Uma ligação frutuosa entre um cognitivismo menos ortodoxo e a visão da emergência, onde as regularidades simbólicas emergem de processos paralelos distribuídos, é uma possibilidade concreta, especialmente na IA, com a sua orientação pragmática, voltada predominantemente para a engenharia. Este esforço complementar produzirá, sem dúvida, resultados visíveis e poderá muito bem vir a tornar-se a tendência dominante na ciência cognitiva dos anos vindouros.55 A conclusão acima serve como prelúdio para a apresentação do esforço enativista: não se trata de descartar o conhecimento acumulado desde os anos iniciais da cibernética, mas sim de desenvolver uma teoria que consiga englobar os diversos avanços dos paradigmas descritos até agora. Dito isso, resta agora evidenciar o papel crucial da dinâmica corporalizada de um organismo em seu ambiente. C) Enação A tarefa central que anima o projeto enativista é a de “questionar a ideia de que o mundo tem propriedades preestabelecidas que nós representamos”.56 O pressuposto cognitivista de que o mundo não irrompe da retroatividade entre organismo e ambiente, ou seja, de que o mundo já é 55 Ibid., pp. 142-143. 56 Ibid., p. 179. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 127 algo dado e que apenas seria representado internamente, é o ponto de partida central do tipo de prática em ciência cognitiva que o enativismo visa ultrapassar: “o desafio posto à ciência cognitiva é questionar uma das convicções mais arraigadas da nossa herança científica - de que o mundo é independente do sujeito conhecedor”.57 Em outras palavras, o enativismo pode ser entendido como a negação da representação de inputs puros ou pré-estabelecidos: “damos ênfase à própria noção de que aquilo que um ambiente é não pode ser separado daquilo que os organismos são e daquilo que fazem [...] a espécie produz e especifica o seu próprio domínio de problemas a serem resolvidos”.58 Dessa forma, as características de um ambiente não são padrões externos identificados e representados por um organismo, mas sim um domínio específico à cada espécie que, além disso, está atrelado ao histórico comportamental individual. O avanço do conexionismo frente ao cognitivismo significa uma melhoria na compreensão do funcionamento do processamento de informação que se dá na cognição, porém, ambas as posições ainda sofrem do pressuposto realista que pensa o mundo como um modelo ‘lá fora’ compreendido ‘aqui dentro’, isto é, o processamento de informação (seja ele pensado de forma cognitivista ou conexionista) continua a pressupor que o Umwelt do organismo já está no mundo de forma dada, de forma acabada. Em suma, tanto o cognitivismo quanto o conexionismo pecam em não apontar que, na verdade, a cognição é “a dialética do meio e da ação”.59 mesmo quando as próprias ideias de representação e processamento de informação se alteram consideravelmente, como acontece no estudo das redes conexionistas, auto-organização e propriedades emergente, persiste uma certa forma de assunção realista. No cognitivismo, o realismo é pelo menos explícito 57 Ibid., p. 199. 58 Ibid., p. 258. 59 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 262. 128 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista e defendido; no entanto, na abordagem da emergência, torna-se frequentemente tácito e inquestionado. Esta postura irrefletida é um dos maiores perigos que enfrenta o campo da ciência cognitiva; limita o leque de teorias e ideias e deste modo impede uma visão mais ampla e um futuro para o campo.60 Portanto, o estabelecimento de um paradigma enativista passa, necessariamente, pelo abandono do pressuposto realista que há nas posições conexionista e cognitivista. Tal empreitada requer, antes de tudo, uma revisão da noção de representação assumida por tais abordagens, pois quando ambas assumem que a representação é “um processo de recuperação ou de reconstrução de características do meio independentes e extrínsecas”61, percebe-se aí, então, o que falta a tais paradigmas: a assunção de que a cognição é não a leitura representacional de um ambiente, mas a própria criação de algo que pode ser chamado de ambiente. É verdade, conforme nota Richard Rorty, que não existe qualquer forma de levantar as questões céticas tradicionais da epistemologia em ciência cognitiva [...] Mas isso não implica, conforme Rorty parece pensar, que a atual concepção naturalizada de representação não tem nada a ver com a imagem tradicional da mente como um espelho da natureza. Pelo contrário, um aspecto crucial desta imagem permanece vivo na ciência cognitiva contemporânea - a ideia de um mundo ou ambiente natural com características extrínsecas e preestabelecidas que são recuperadas através de um processo de representação. Em certos aspectos, o cognitivismo é a afirmação mais forte feita até agora da visão representacional da mente referida pela primeira vez por Descartes e Locke. De fato, Jerry Fodor, um dos expoentes máximos do cognitivismo e um dos mais eloquentes, vai ao ponto de dizer que o único aspecto em que o cognitivismo é um avanço importante 60 VARELA et al., 1991,.p. 180. 61 Ibid., p. 183. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 129 sobre o representacionalismo dos séculos XVIII e XIX é o seu uso do computador como um modelo da mente.62 A superação de tal perspectiva significa assumir “a necessidade de compreender os sistemas cognitivos não com base nas suas relações de input e output mas através do fechamento operacional [operational closure]”.63 Um sistema fechado operacionalmente é, para Varela, nada mais que uma organização autopoiética que, por definição, não opera via representacional, isto é, em vez de representar um mundo, tais sistemas autopoiéticos fazem surgir um mundo. Em suma, “devemos questionar a ideia de que o mundo é preestabelecido e que a cognição é representação”64, ou seja, trata-se de assumir que não há uma fundamentação última por detrás do Ser que serve como aquilo que possibilita o emergir dos fenômenos. A vida enquanto tal, isto é, um sistema autopoiético (nos termos de Varela), já é intencionalidade desde o instante inicial. E este ‘instante’ da gênese do vivente já é caracterizado como o fazer-surgir de um Umwelt que, por definição, está fundado pelas condições de subsistência vital de um dado ser vivente. A vida já é cognição, ou melhor, vida e cognição são termos equivalentes. Viver é precisamente o irrompimento de um ponto de vista. todos os fenômenos são livres de qualquer fundamento absoluto e tal “ausência de fundamento” (sunyata) é o próprio tecido da co-originação dependente. Sob um ponto de vista fenomenológico poderíamos formular um ponto de vista de certo modo similar, dizendo que a ausência de fundamento é a própria condição para o mundo da experiência humana ricamente textual e interdependente.65 62 Ibid., p. 185. 63 Ibid., p. 187. 64 Idem. 65 Ibid., pp. 192-193. 130 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista Dessa forma, fica ainda mais claro e fácil definir aquilo ao qual o enativismo contrapõe-se. O contexto de um ambiente durante uma determinada atividade efetuada por um organismo é, na maior parte das vezes, algo que escapa a uma simples lista de elementos a serem representados e organizados a partir de um livro de regras a serem seguidas. Tomemos um exemplo no qual a inteligência artificial baseada no paradigma cognitivista mostrou-se inegavelmente efetiva: o jogo de xadrez. O ‘espaço’ e a ‘finalidade’ do xadrez são domínios onde a especificação dos estados possíveis constitui um universo finito. Existem as posições no tabuleiro, as regras de movimento para cada peça, o objetivo final do jogo etc. Por outro lado, se pensarmos em tarefas menos circunscritas ou, digamos, mais abertas e criativas, podemos notar que tal abordagem torna-se menos eficaz. Por exemplo, a atividade de tocar um instrumento durante uma improvisação de uma banda de jazz: a máquina deve ou não prestar atenção no ambiente no qual a banda está? Faz diferença o número, o gênero ou a etnia das pessoas que estão ouvindo? Faz diferença se há ou não um público? É necessário estar completamente atento à cada um dos outros instrumentos em cada fração de segundo? Quando cabe a introdução de notas dissonantes? Como se ajustar às diferenciações no bpm do baterista? A temperatura tem alguma relevância? E o horário do dia? Preciso conhecer todos os álbuns considerados como ‘clássicos’ do gênero para inserir referências que os ouvintes possivelmente perceberão? Como definir um álbum clássico de jazz? E por aí vai. O ‘espaço’ e a ‘finalidade’ de uma improvisação dentro de um determinado estilo musical impõe certas limitações a um paradigma representacional. O exemplo de MerleauPonty que usamos no capítulo anterior - o jogador em um campo durante uma partida - também indica certa dificuldade em determinar quais são ou não os dados relevantes de um contexto para determinada ação ser Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 131 levada a cabo. Será possível enumerar uma lista de regras que consiga contemplar o modo de jogar como um atacante ou um lateral-esquerdo no futebol? Qual é a sequência de proposições a serem internalizadas para que eu consiga jogar como um goleiro? Em outras palavras, o enativismo significa uma certa recuperação do conhecimento que tomamos como senso comum: “Torna-se difícil [em atividades como tocar uma música ou jogar futebol] reunir um tal conhecimento do senso comum num todo de conhecimento explícito e proposicional, talvez mesmo impossível”.66 Não é difícil perceber que “mesmo a mais simples ação cognitiva requer uma quantidade aparentemente infinita de conhecimento, que tomamos como assegurado (é tão óbvio que se torna invisível) mas tem que ser dado de bandeja ao computador”.67 Por tal motivo, a ciência cognitiva e a inteligência artificial eventualmente abandonaram a “esperança cognitivista inicial de encontrar um método geral de resolução de problemas”68 em favor de programas que funcionam em âmbitos mais restritos (como jogos de xadrez ou carros automatizados). Diante disso, “tanto no cognitivismo como no conexionismo, a ambiguidade incontrolável do senso comum do meio ambiente é deixada em larga escala na periferia do questionamento”.69 Portanto, se a ambiguidade do conhecimento de senso comum - ao que tudo indica - demonstra que no ambiente não há inputs predefinidos, parece irrealizável a tarefa de programá-lo em forma de representações que seriam um espelho da natureza, pura transposição interna de um mundo preestabelecido. De fato, se pretendermos recuperar o senso comum, então deveríamos inverter a atitude representacionista tratando o know-how dependente do 66 Ibid., p. 196. 67 Idem. 68 Idem. 69 Ibid., p.197. 132 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista contexto não como um artefato residual que pode ser progressivamente eliminado pela descoberta de regras mais sofisticadas mas, de fato, como a própria essência da cognição criativa.70 Tal cognição criativa, como ficou claro com a exposição da fenomenologia merleau-pontiana, deve ser descrita sempre a partir de um saber primariamente corporal e histórico. A percepção é, em suma, um processo contínuo de ajuste entre ação e Umwelt. Se somos forçados a admitir que a cognição não pode ser convenientemente compreendida sem o senso comum, e de que o senso comum não é outra coisa senão a nossa história corpórea e social, então a conclusão inevitável é que o sujeito conhecedor e o conhecido, a mente e o mundo, estão em relação um com o outro por meio de uma especificação mútua ou co-originação dependente.71 A ação ou comportamento de um organismo não significa uma resposta posterior à representação de dados preestabelecidos no mundo, mas sim a retroatividade que caracteriza a enação de qualquer sistema em dinâmica de fechamento operacional, isto é, qualquer organização autopoiética. Um sistema autopoiético significa uma determinada organização da matéria que possui o necessário à sua auto-reprodução e, com isso, constitui o grau mínimo de vida, isto é, de atividade cognitiva, ou melhor, enativa que possibilita o fazer-surgir de um ambiente fundado em suas necessidades de manutenção do ciclo autopoiético, ou seja, “uma interpretação no sentido que seleciona ou produz um domínio de significação a partir do pano de fundo do seu meio aleatório”.72 Em outras palavras, ação e percepção são duas faces da mesma moeda. 70 Idem, grifo dos autores. 71 Ibid., p. 199. 72 Ibid., p. 205, grifo nosso. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 133 Assim, e para reiterar um dos nossos principais pontos de vista, podemos afirmar que a rede neuronal não funciona como uma rua de sentido único da percepção para a ação. Percepção e ação, sensorium e motorium, encontramse interligadas na qualidade de padrões sucessivamente emergentes e mutuamente selecionadores.73 Com isso, encontramos nas formulações de Varela et al. (1991) um desdobramento da intencionalidade operante que Merleau-Ponty associou à motricidade do corpo próprio: “o mundo que percebemos, que normalmente tomamos como certo, é constituído por padrões complexos e delicados de atividade sensório-motora”.74 A afirmação precedente surge, na obra aqui analisada, após a descrição de um paciente de Oliver Sacks que ficou completamente daltônico após um acidente. O paciente, então, a partir da perda das cores, começou a desenvolver diversos outros sintomas: tornou-se notívago, certos alimentos tornaram-se repugnantes e “as relações sexuais tornaram-se impossíveis”.75 O paciente de Sacks, dessa forma, lembra o paciente de Goldstein que Merleau-Ponty analisa exaustivamente na Fenomenologia da Percepção, isto é, a perda de uma função (no caso, o reconhecimento de cores) torna-se o estopim que leva ao esmorecimento do arco intencional do doente. Em suma, quando um aspecto da imersão perceptiva de um organismo passa ao estado patológico, fica evidente a conexão global que caracteriza a intencionalidade pré-reflexiva da qual Merleau-Ponty defende em sua obra. A perspectiva enativista não é diferente: não basta afirmar que a cognição é um processo não-representacional que faz surgir um Umwelt para um organismo, devemos igualmente levar em conta que toda a dinâmica de ser-no-mundo 73 Ibid., p. 215. 74 Ibid., p. 216. 75 Ibid., p. 215. 134 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista é um processo global onde até a percepção patológica de cores pode afetar o apetite ou a libido. O nosso mundo colorido é produzido por processos complexos de acoplamento estrutural. Quando esses processos são alterados, algumas formas de comportamento deixam de ser possíveis. O comportamento de cada um altera-se à medida que aprende a adaptar-se a novas condições e situações. E à medida que as ações de cada um se alteram, também se altera o sentido do mundo. Se estas alterações forem suficientemente dramáticas - como no caso da perda de cor [do paciente de Sacks] - então dar-se-á a enação de um mundo percebido diferente.76 Ainda para continuarmos no caso da percepção de cores, Varela, Thompson & Rosch (1991) partem da distinção de Locke entre qualidades primárias e secundárias para reforçar a tese da enação, ou seja, a existência de um mundo que é sempre para-um-organismo e nunca um em-si apreendido em forma de representações. Finalmente, há um problema oculto mas muito mais profundo a respeito do ponto de vista objetivista da visão da cor: o objetivista limita-se a assumir que as reflectâncias da superfície deverão ser encontradas num certo mundo preestabelecido que é independente das nossas capacidades perceptuais e cognitivas. Mas como especificar o que representa uma superfície? Como poderemos especificar as suas arestas, os seus limites, a textura e a orientação, a não ser em relação a um sujeito perceptor para quem estas distinções são relevantes? [...] Em outras palavras, esses modelos [representacionais] tratam o sistema visual como se este tivesse sido simplesmente apresentado a um determinado tipo de objetos pré-especificados cujas reflexões terão depois de ser recuperadas [...] Assim, as cores e as superfícies caminham par a par: ambas dependem das nossas capacidades perceptuais corporalizadas.77 76 Ibid., p. 216. 77 Ibid., pp. 219-220. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 135 Portanto, a percepção das cores é um processo que envolve não somente o sistema visual, mas toda a corporeidade de um sistema autopoiético que traz à tona determinado Umwelt. Não faz sentido falar de cores apenas pelas propriedades físicas, tampouco apenas pela descrição da retina e de como ela apreende tais propriedades; na verdade, a percepção de cores é apenas mais um aspecto de todo um processo global de enação que faz existir superfícies, objetos, cores e texturas para um determinado organismo: “a cor fornece um paradigma de um domínio cognitivo que não é nem preestabelecido nem representado, mas antes experiencial e enativo”.78 No entanto, é importante que fique claro que “só pelo fato de a cor não ser preestabelecida, isto não significa que não possa exibir universais ou que não possa prestar-se a uma análise rigorosa pelos diversos ramos da ciência”79, quer dizer, não há um relativismo aqui onde cada organismo individual perceberias suas próprias cores sem a possibilidade de estabelecermos critérios objetivos para identificá-las. Em cada espécie há sempre um conjunto de determinações biológicas que tornam possível o estabelecimento de um mundo compartilhado e, no nosso caso, a atividade científica enquanto tal.80 Com isso, a perspectiva enativista dá continuidade à tarefa de Merleau-Ponty: superar os extremos das posições realista e idealista. A cor não é um dado preestabelecido que seria representado internamente, como também não é uma mera “reflexão de leis internas do sistema”81; a cognição é, na verdade, uma retroatividade na qual Umwelt e organismo “se especificam uns aos outros”.82 Tal 78 Ibid., p. 225. 79 Idem. 80 No caso das cores, Varela et al. utilizam especificamente as pesquisas de Brent Berlin e Paul Kay que, após um exame de mais de noventa línguas diferentes, chegaram à conclusão de que existem onze categorias básicas de cores, a saber: preto, branco, vermelho, verde, azul, amarelo, cinza, laranja, roxo, castanho e rosa. As demais gradações, portanto, se vinculam às onze cores enumeradas. 81 Ibid., p. 225. 82 Ibid., p. 226. 136 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista retroatividade está para além da mera representação, isto é, o Lebenswelt é a esfera não-representacional ou não-passível de descrição proposicional. Estes dois extremos assumem ambos a representação como sua noção central: no primeiro caso [realismo], a representação é utilizada para recuperar aquilo que é exterior; no segundo caso [idealismo], é utilizada para projetar tudo aquilo que é interior. A nossa intenção é ultrapassar esta lógica geográfica de interior versus exterior, estudando a cognição não como recuperação ou projeção mas como ação corporalizada. 83 Ao definir a cognição como ação corporalizada, Varela, Thompson & Rosch (1991) pretendem destacar dois pontos. Primeiro, a cognição surge a partir de uma base motriz biológica que se desdobra em esferas psicológicas e culturais; em segundo lugar, “que os processos sensórios e motores, percepção e ação, são fundamentalmente inseparáveis na cognição vivida”84, ou seja, há uma interdependência entre perceber e agir no mundo, isto é, o agir fundamenta o perceber do mesmo modo que o perceber fundamenta o agir. Além disso, os autores ainda apontam uma conexão evolucionária entre os dois pontos: “Na realidade, [a percepção e a ação] não se encontram ligados de um modo meramente contingente nos indivíduos; também evoluíram em conjunto”.85 Dessa forma, chega-se à síntese do que é o enativismo em dois princípios. Em poucas palavras, a abordagem da enação é constituída por dois pontos: 1) A percepção consiste numa ação guiada perceptualmente; e 2) As estruturas cognitivas emergem de padrões sensoriomotores recorrentes que permitem que a ação seja guiada perceptualmente.86 83 Idem. 84 Idem. 85 Idem. 86 Ibid., pp. 226 e 227. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 137 Com isso, o foco de investigação enativista enquanto paradigma da Ciência Cognitiva significa a busca pela compreensão da “estrutura sensoriomotora do sujeito perceptor (o modo como o sistema nervoso estabelece ligações entre superfícies sensórias e motoras)”87, pois é a partir da corporeidade do organismo que se pode determinar “o modo como o sujeito perceptor pode agir e ser moldado pelos acontecimentos do meio ambiente”.88 Percebe-se, então, a clara continuidade do pensamento de Merleau-Ponty na perspectiva enativista, novamente ressaltada na passagem seguinte. Deste modo, a preocupação global de uma abordagem enativista à percepção não é determinar o modo como um mundo independente do sujeito perceptor pode ser recuperado; é, pelo contrário, determinar os princípios comuns ou as ligações à base de leis entre os sistemas sensórios e motores que explicam o modo como a ação pode ser perceptualmente guiada num mundo dependente do sujeito perceptor. Esta abordagem à percepção encontrava-se de fato entre as descobertas centrais da análise conduzida por Merleau-Ponty no seu trabalho inicial. [...] Temos então que, numa tal abordagem, a percepção não se encontra simplesmente mergulhada e limitada pelo mundo que a rodeia; também contribui para a enação deste mundo envolvente. Assim, e conforme Merleau-Ponty observa, o organismo inicia e simultaneamente é moldado pelo ambiente. Merleau-Ponty reconheceu claramente, então, que devemos ver o organismo e o ambiente como mutuamente ligados numa especificação e seleção recíprocas.89 Para demonstrar esta reciprocidade entre elementos do ambiente e ação guiada perceptualmente (a definição enativista de cognição por excelência), Varela, Thompson & Rosch (1991) citam o clássico estudo de 87 Ibid., p. 227. 88 Idem. 89 Ibid., pp. 227-228. 138 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista Held e Hein90, no qual gatos criados em completa escuridão desde o nascimento serviram como objeto de estudo. A eventual exposição dos gatos à luz ocorre com dois grupos diferentes: “a um primeiro grupo de animais foi permitido mover-se normalmente, mas cada um deles tinha atrelado um simples carro com um cesto que continha um membro do segundo grupo de animais”.91 Ou seja, enquanto o primeiro grupo podia sentir livremente o ambiente, o segundo estava limitado pela situação de estar sendo movido e não movendo-se. Com isso, apesar de ambos os grupos compartilharem a ‘mesma’ experiência visual, o segundo grupo teve a apreensão sensório motora subtraída, trazendo evidências claras para a definição da percepção visual normal como uma ação guiada perceptualmente. Quando os animais foram libertados ao fim de algumas semanas deste tratamento, o primeiro grupo de gatinhos comportou-se normalmente, mas aqueles que tinham sido transportados nos cestos comportaram-se como se fossem cegos: esbarravam contra os objetos e caíam continuamente. Este belo estudo defende a visão da enação de que os objetos não são vistos por intermédio da extração visual de características mas antes pela orientação visual da ação.92 Não é só em Merleau-Ponty que podemos encontrar tal tipo de defesa da cognição como ação guiada perceptualmente. Varela et al. apontam o trabalho de Jean Piaget e sua epistemologia genética como mais um exemplo de descrição enativista. Porém, apesar de compartilhar com MerleauPonty a ênfase na motricidade como fundamento para a cognição, Piaget 90 HELD & HEIN. Adaptation of disarranged hand-eye coordination contingent upon re-afferent stimulation (1963). 91 Ibid., p.228. 92 Ibid., p.229. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 139 ainda encontra-se preso à ontologia implícita do cognitivismo e do conexionismo, fazendo do fenomenólogo o verdadeiro precursor. Dentro do sistema de Piaget, a criança recém-nascida não é objetivista nem idealista; limita-se a ter a sua própria atividade, e mesmo o mais simples ato de reconhecimento de um objeto só pode ser compreendido em termos da sua própria atividade [...] Este é um exemplo claro no qual as estruturas cognitivas são mostradas como emergindo de padrões recorrentes (na linguagem de Piaget, “reações circulares”) de atividade sensoriomotora. No entanto, Piaget, como teórico, nunca parece ter duvidado da existência de um mundo preestabelecido e de um sujeito conhecedor independente como uma meta lógica preestabelecida para o desenvolvimento cognitivo.93 Outro importante teórico que antecipa o enativismo é o psicólogo J. J. Gibson. No entanto, Varela, Thompson & Rosch (1991) defendem que, apesar de certa harmonia com os postulados enativistas, Gibson acaba por assumir, assim como Piaget, a mesma tese realista de que o mundo é um input pré-definido. Apesar de Gibson estar em harmonia quanto à definição da percepção como um processo não-representacional, sua formulação de percepção direta continua a pressupor uma realidade préestabelecida, segundo os autores. Ambas as abordagens [A enativista e a de Gibson] negam a visão representacionista da percepção a favor da ideia de que a percepção é ação perceptualmente guiada. No entanto, segundo a tese de Gibson, a ação perceptualmente guiada consiste em “detectar” ou “atender a” invariâncias na luz do ambiente que especificam diretamente a sua origem no ambiente. Para Gibson, estas invariâncias ópticas, bem como as propriedades do ambiente que especificam, não dependem de algum modo da atividade perceptualmente guiada do animal (embora os seguidores de Gibson as relativizem em função de um dado nicho animal). [...] Em poucas palavras, enquanto Gibson afirma que 93 Ibid., p.231. 140 | Circuito da Existência: Merleau-Ponty, Francisco Varela e o Paradigma Enativista o ambiente é independente, nós defendemos que é enativo (pelo histórico de acoplamento). Enquanto Gibson defende que a percepção é uma detecção direta, nós defendemos que se trata de uma enação sensoriomotora.94 Por fim, Varela et al. apontam um último autor que, a seu modo, defende uma perspectiva enativista como paradigma para a ciência cognitiva em um domínio mais pragmático. Trata-se da perspectiva da behavioral based robotics95 de Rodney Brooks, ex-diretor do laboratório de inteligência artificial do MIT. Assim como Varela, Thompson & Rosch (1991), Brooks defende que o maior equívoco do programa cognitivista foi definir o comportamento inteligente partindo da representação como unidade primária de sistemas cognitivos. Brooks, portanto, defende um programa de robótica onde não há a construção de modelos pré-definidos do mundo, ou seja, um robô deve ser apenas munido de sensores que possibilitariam a apreensão e o armazenamento de dados sobre objetos, superfícies etc. Dessa forma, para colocarmos nos termos de Varela, Thompson & Rosch (1991) é a partir da história de acoplamento do sistema artificial e do ambiente que o processo enativo de cognição pode ocorrer. O próprio Brooks admite que sua perspectiva constitui uma aproximação da realidade biológica de organismos, aproximando-se tanto do conexionismo como do enativismo, indicando que o enativismo enquanto ideia é algo que se desenvolve de modo independente, o que serve como auxílio em sua defesa. Por fim, vale ressaltar que, do mesmo modo que o conexionismo pode ser descrito como uma evolução do cognitivismo, Varela, Thompson & Rosch (1991) defendem que o programa enativista representa um novo estágio da Ciência Cognitiva que, longe de descartar o que foi conquistado 94 Ibid.,p.265. 95 Robótica baseada no comportamento. Cf. Rodney Brooks, Intelligence without Representation (1991). Rodrigo Benevides Barbosa Gomes | 141 anteriormente, apenas tenta auxiliar a compreensão da cognição humana levando adiante e, quando necessário, reformulando os postulados de toda uma tradição filosófica e científica. Como afirmam os próprios autores, Evidentemente que é sempre possível definir um domínio fixo no âmbito do qual um sistema conexionista possa funcionar, mas esta abordagem obscurece as soluções mais profundas sobre a corporalidade biológica da cognição que se encontram tão próximas do âmbito do programa enativista. Assim, do mesmo modo como o conexionismo se desenvolveu a partir do cognitivismo, inspirado num contato mais próximo com o cérebro, o programa do enativismo dá um passo à frente na mesma direção para abarcar a temporalidade da cognição enquanto história vivida, vista ao nível do indivíduo (ontogenia), da espécie (evolução), ou de padrões sociais (cultura).96 96 Ibid., p. 276. Conclusão As obras iniciais de Maurice Merleau-Ponty antecipam o paradigma enativista formulado por Francisco Varela, Evan Thompson & Eleanor Rosch. Espera-se ter ficado evidente não só a riqueza perene das teses de Merleau-Ponty, como também suas limitações. Sua concepção de temporalidade ainda se insere numa perspectiva idealista (algo a ser superado em sua ontologia da década de 1950) e suas formulações acerca do problema do membro fantasma, por exemplo, apesar de servirem como ricas descrições do entrelaçamento entre mente, corpo e mundo, não são suficientes para indicar a superação de tal patologia. No entanto, para além de qualquer crítica que sua obra seja suscetível, sua preocupação em relacionar teses filosóficas com os dados disponíveis das ciências constitui, diríamos, uma das características mais duradouras de sua obra e, não por acaso, o enativismo tem em Merleau-Ponty seu principal precursor. Como em toda e qualquer pesquisa, muitos tópicos foram sacrificados (a importância do estudo da linguagem para Merleau-Ponty ou a conexão que Varela et al. apontam entre cognição e evolução etc.) para que nosso objetivo principal fosse atingido, a saber, demonstrar que o processo cognitivo não é a representação interna de um mundo proposicionalmente apreensível, mas a dinâmica valorativa pré-reflexiva da história de acoplamento estrutural entre intencionalidade operante ou sistema autopoiético e ambiente via ações perceptualmente guiadas. Referências BARBARAS, R. Francisco Varela: A new idea of perception and life. 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