DE QUANTOS TEMPOS É FEITA UMA MULHER?
Ana Lorym Soares
Laís Fernanda Fernandes Dutra
... é justamente no interior de uma mesma cultura, em
uma mesma época, que é preciso considerar os
múltiplos tempos (KOYRÉ apud SALOMON).
As palavras de Alexandre Koyré recuperadas por Marlon Salomon, em epígrafe,
evidenciam algo que é fundamental para a breve reflexão desenvolvida neste ensaio:
a concepção de que temporalidades múltiplas e simultâneas estão presentes e
atuantes na nossa realidade contemporânea. Tal consideração traz como
consequência, o abandono do pensamento ocidental moderno acerca de “um tempo
único, linear e homogêneo, permitindo enxergar a multiplicidade temporal existente
nas diversas realidades” (SALOMON, 2018, p.18). Guiadas por essa premissa
enxergamos na escrita literária de Conceição Evaristo um suporte capaz de expressar
a multiplicidade temporal captada por uma subjetividade feminina em O cooper de
Cida. Este conto nos conduz, pela imaginação sensível da autora, à apreciação e
indagação de formas individuais – mas compartilhadas coletivamente – de percepção
temporal na contemporaneidade.
O texto O cooper de Cida faz parte de uma coletânea de contos reunidos no livro
Olhos D’água, publicado pela Editora Pallas, em 2014. A mineira radicada no Rio de
Janeiro, Conceição Evaristo, é uma escritora negra cuja produção literária se enraíza
no universo social e cultural afro-brasileiro. Por escolha, é do lugar de mulher negra
que ela imagina, se posiciona e escreve (PRATES, 2010, p.113). Um olhar atento
sobre a negritude encontra abrigo nas páginas de Evaristo. Questões como a
desigualdade social e as inúmeras violências que abarcam o cotidiano de pessoas
negras são postas em primeiro plano na literatura que ela produz. O livro Olhos D’água
é apresentado pela própria autora como uma composição de textos que abordam a
vida de personagens negras, especialmente mulheres.
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Em O cooper de Cida, porém, parece haver uma inflexão. Não se percebe nenhuma
referência específica às características étnico-raciais de Cida ou das demais
personagens. A condição de negritude parece ceder lugar à experiência temporal,
compartilhada por tantas outras Cidas no Brasil atual. Cidas negras ou brancas, todas
elas mulheres imersas em vivências temporais múltiplas que as constroem e
reconstroem ao mesmo tempo em que elas as experimentam consciente ou
inconscientemente.
Conceição Evaristo, com grande maestria, desenvolve em seu conto um espaço de
transição de sensações que dão conta da multiplicidade rítmica do tempo,
contribuindo assim para a construção de sentido no texto, por meio dos usos da
linguagem que manipula. Logo, é possível pensar que, em geral e, em Evaristo
especificamente,
A sensação, na arte, é algo como uma experimentação com nossas esperas,
hesitações, fadigas, surpresas, enfim, com nossos modos de apreender e de
sentir as forças do tempo. Só a arte tem esse poder de desestabilizar nossas
percepções e deixar sobrevir sensações não representáveis, inomináveis,
puramente rítmicas. A arte, afinal, vive da heterocronia, das suas interferências
nas durações pelas quais nossos hábitos de percepção tentam se acomodar
perante o confronto constante e imprevisível com as forças iminentes do futuro
(RODRIGUES, 2011, p. 121).
Uma vez que Cida era uma mulher que corria contra o tempo em todos os âmbitos de
sua vida, seja a corrida matinal rotineira, seja ao correr os olhos pelo jornal ou quando
corria de um cômodo a outro de sua casa, sempre com pressa (EVARISTO, 2014, p.
52). Na opção(?) pelo movimento célere, Cida resolveu mudar-se de uma cidade
interiorana, de “onde para viver não havia pressa”, para uma cidade grande, lugar
onde o ritmo urbano se assemelha à urgência que a personagem sentia em viver
(EVARISTO, 2014, p. 53-54).
A protagonista vivia breves amores e rápidos gozos. Quanto aos estudos, interessava
somente aqueles de curta duração. Entretanto, em determinada manhã, contrariando
sua rotina, viu-se caminhando lentamente pelo calçadão em frente ao mar carioca.
Durante sua caminhada observava o mar, as pessoas, sentia seu corpo, e os
estímulos do ambiente, sentia a areia em seus pés, sentia-se presente ali, naquele
instante. Ao caminhar, a mente da mulher veloz, passou a refletir sobre como vivera
até então – sempre acelerada, e sem sentir o mundo ao seu redor. Naquele momento,
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ela ousou se indagar sobre a realidade das pessoas com quem compartilhava a praia
em atividades matinais: pensou sobre suas possíveis condições de vida, sobre o ritmo
das suas existências, questionando-se com deslumbre o que permitia alguns deles se
deleitarem no mar em pleno gozo, como se o tempo que a controla não fosse senhor
deles também.
Imersa em pensamentos rebeldes, que ousavam inquirir a qualidade do tempo que
experimentava, por analogia, Cida “perde a hora”. Por estar imersa no movimento das
ondas do mar – mar tropical que outrora seduzira o historiador Fernand Braudel,
permitindo-o avançar em suas reflexões sobre o tempo histórico (BRAUDEL, 2014),
Cida, aquela mulher comum, igual a tantas outras, que jamais havia considerado tais
questões, vê-se parada, na praia, observando os ritmos das ondas do mar, sua
mecânica de movimento. Dali em diante, algo mudaria: Cida deixou o colega
esperando, decidiu não ir ao trabalho naquele dia.
As metáforas expressas no texto nos fazem perceber, como que “através dos olhos
de Cida”, ela experimenta o tempo, em seu cotidiano. Para ela, o tempo transita entre
a contradição de ser precioso – a ponto de não querer desperdiçá-lo por ser “curto e
raro” – e algoz – por fazê-la instável correr “sobre a corda bamba, invisível e opressora
do tempo” (EVARISTO, 2014, p. 52-53). Era pela chave da indecisão entre o
movimento dual e pendular de um tempo tirano e veloz, mas que deveria ser a
qualquer custo agarrado, que Cida inicialmente se percebia imersa na historicidade.
Como dito, a personagem percebe na manhã atípica, além do próprio tempo, o tempo
do outro. É pela analogia que suscita alteridade que Cida passou a enxergar-se como
apressada em relação aos outros e às outras coisas. Ao ser tomada pela sensação
de poder interrogar o tempo, a personagem de Conceição Evaristo permite aos leitores
vislumbrar os contornos daquilo que entendemos por heterocronias. Por meio do que
seriam sensações e experiências individuais de uma mulher que vive na cidade –
numa grande cidade brasileira, como é o caso do Rio de Janeiro atual – a autora nos
coloca diante da descoberta e da consciência da existência de múltiplos tempos pela
sua personagem.
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Por mais que Cida se refira a um tempo no singular, ela experimenta, mesmo que
inconscientemente, talvez, a multiplicidade que é implícita à dimensão temporal. Em
seu caso, pensar sobre múltiplos tempos não é simplesmente algo simbólico, é de fato
compreender que o tempo que tanto nos referimos no singular, na verdade deveria
ser assimilado no plural. Quando a personagem indaga sobre o tempo do outro, nota
que ambos vivenciam tempos diferentes. Esse fato, torna-se perceptível quando a
mãe de Cida, ao contrário da filha, preferia o ritmo lento da cidade pequena do interior,
de onde vinha, quando comparado ao vivenciado no Rio de Janeiro, onde, na opinião
da mãe, não era agradável a velocidade com a qual os carros se movimentavam.
É possível perceber que no conto em questão, há mecanismos de sincronização do
tempo adotados pela personagem. Ajustar-se ao horário do ônibus ou metrô, ao
trabalho, ao horário do banco. Era nesse influxo que Cida vivia mergulhada na
temporalidade opressora do aqui e agora neoliberal.
Nada de gastar o tempo curto e raro. É preciso correr, para chegar
antes, conseguir a vaga, o lugar ao sol, pegar a fila pequena no banco,
encontrar a lavanderia aberta, testemunhar a metade da missa
(EVARISTO, 2014, p. 42).
O historiador Rodrigo Turin compartilha conosco a sua concepção de temporalidade
neoliberal expressa no nosso presente. Ele a identifica como a construção da ideia e
da percepção ampla de sempre estar/sentir-se atrasado em relação às sincronizações
conduzidas pela própria razão neoliberal. Por mais que a personagem Cida já tenha
adotado uma rotina veloz de modo a estar sempre buscando superar a si mesma, a
adaptar-se às situações novas – o que segundo Turin nos remete à experiência
temporal do regime neoliberal –, a realidade acelerada a leva a desenvolver esse
constante adaptar-se, como um modelo ideal de mulher neoliberal, a “mulher
disruptiva”. Mulher essa que diante da instabilidade da vida do trabalho e do presente
hiper-acelerado, molda-se às intempéries passadias tão brevemente quanto o
ponteiro do relógio que guiava seu dia. Porém, como aponta Turin, tal experiência
temporal traz consigo a impossibilidade mesma de viver o futuro enquanto projeto,
enquanto horizonte de expectativas efetivas. O futuro neoliberal é vislumbrado apenas
de forma breve, quase instantânea. Nele, se apresenta de modo claro, o que na
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narrativa de Conceição Evaristo, ao falar de Cida, vemos a partir de metáforas: “Corria
contra ela própria, não perdendo e não ganhando nunca” (EVARISTO, 2014, p. 54).
A personagem Cida instiga-nos a pensar o horizonte de expectativa que ela
experimenta. Cida possuía um ritmo de “trabalho, trabalho, trabalho” e quanto aos
“Cursos, estudos somente aqueles que proporcionassem efeitos imediatos”.
Interessava mais aprender algo em 6 meses do que levar anos para tal. Sendo então
incapaz de projetar-se no futuro, de formular planos a longo prazo, prendendo-se ao
imediato, ao agora. Além de ser possível vislumbrar o seu espaço de experiência, a
partir do modo como ela se relaciona com o seu passado, pois a personagem ao
pensar “Como era mesmo a sua cidade natal? Não sabia bem. Lembrava-se,
entretanto, que as pessoas eram lentas” (EVARISTO, 2014, p. 52-53).
É notável a elaboração de ritmos temporais por Conceição Evaristo com a própria
escrita, ao usar a linguagem para expressar em palavras as sensações evidentes nas
experiências temporais da personagem: “Ela estava andando, parando, andando,
parando, parando” ou “Andavam, falavam e viviam de-vagar-zi-nho”. Os trechos que,
no conto servem para mostrar a movimentação urbana da personagem, ou para
enfatizar a lentidão que era vivenciara em sua cidade natal, nos permite entrar em
sincronia com as experiências da própria personagem – quem sabe, não suscitam em
nós a necessidade de interrogar nossos tempos também!
O tempo no qual Cida “corria sobre a corda bamba, invisível e opressora” é “uma
convenção que fixa as referências em que se exprime a vivência do ontem, do hoje e
do amanhã, sob as condições de entendimento de permanência e da mudança no
cotidiano”. Mesmo sendo tido por Cida, como precioso e necessário, esse tempo
acelerado acaba sendo interpretado também como um tempo medido como negativo,
instável, opressor ou injusto. No conto, Evaristo nos lembra isso ao dizer que a
personagem constata a necessidade de sempre estar em alerta diante da “corda
bamba do tempo, varal no qual estava estendida a vida, era frágil, podendo se romper
a qualquer hora” (EVARISTO, 2014, p. 54).
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Durante o percurso que fazia, no dia em que parou para interrogar o tempo, à medida
que Cida afastava-se do calçadão e dirigia-se à areia, fazia emergir a descontinuidade
temporal, devido a trajetória de estar presa à sua experiência de constante cooper
(corrida) e se permitir naquele dia desacelerar os passos. Essa dessincronização, em
resumo, está alinhada ao significado daquilo que entendemos por heterocronias
(SALOMON, 2018, p.15). Deste modo, compreende-se que a partir desse
acontecimento, marco na vida de Cida, que “A multiplicidade temporal está fundada
na própria pluralidade das experiências e de perspectivas a partir das quais os homens
elaboram reflexivamente o tempo”, expondo que o conceito de temporalidade está
atrelado ao sujeito, dado que o tempo é criação humana (SALOMON, 2018, p. 30).
É importante notar que, somente após desacelerar o ritmo temporal em que vivia, Cida
viu o mar que contornava o calçadão de seu cooper matinal. Mesmo caminhando pelo
calçadão em frente à praia todas as manhãs, é perceptível como experimentava essa
correria, quando alega sentir o peito e ver que era uma mulher e não uma máquina
programada para correr desenfreada. Durante a leitura do conto, temos a sensação
de que a corrida era uma fuga da rotina anestesiante: "Ela era uma desportista natural.
Corria o tempo todo querendo talvez vazar o minguado tempo do viver”.
As reflexões sobre o tempo surgem a partir da observação que Cida faz do movimento
das ondas, onde questionava como o mar conseguia realizar os mesmos atos, de
fazer e desfazer sempre. Insere-se aqui o tempo da natureza, e o questionamento
volta-se a ela, pois assim como o mar, ela também repetia os mesmos atos durante
semanas, meses, anos. Além do que à medida que caminha, vai percebendo que por
mais que ela esteja imersa em uma vida corrida, deixava de perceber-se nesse
processo.
É possível vislumbrar os tempos heterogêneos suscitados pelo texto de Evaristo a
partir do momento em que a personagem, ao observar o nadador, sente a curiosidade
de saber sobre o tempo dele. Nessa cena, a personagem, ao indagar “Como uma
pessoa em plena terça-feira, às seis e cinquenta e cinco da manhã, podia estar tão
tranquilamente brincando no mar? Deve ser extremamente rico, viver de juros”, logo,
surge um desejo de “saber do tempo dele, barganhar momentos, pedir um tempo
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emprestado talvez” (EVARISTO, 2014, p. 54). Afinal, por meio do exercício de
alteridade, diante da própria descrição de sempre estar habituada a deparar-se (sem
reparar) a várias pessoas caminhando pelas calçadas. O quão diferente não seria
alguém naquele horário estar mergulhando no mar, sem preocupações com o porvir?
E “viver de juros”, como é questionado, seria relacionado a investimentos ou apenas
uma parte do nicho metafórico construído a partir dessa relação com um tempo que
cobra as pessoas de formas específicas? Como a protagonista reflete,
Ou o tempo não se media com moeda, ou as horas, os dias, os anos não
seriam medidas justas de tempo. Ela estava com vinte e nove anos. Pouco?
Muito? Medir, comparar, aquilatar os anos em relação a que? Haveria um
tempo outro amortecido no coração do tempo? (EVARISTO, 2014, p. 55).
E teria o tempo todo esse poder sobre as pessoas, ou outras variáveis devem ser
consideradas? Após o momento de ruptura com sua rotina, Cida sente a necessidade
de retornar a seus antigos hábitos. Ao contrário do habitual, a personagem retorna à
sua casa andando lentamente e durante o trajeto observava a beleza que a rodeava
– diante de um viver sem respiro, desacelerar é positivo. Cida passa a sentir um desejo
de “se lançar no mar à procura de algo que ela não encontrava cá fora”, mas havia
lembrado que já era tarde, e que era necessário voltar à rotina.
Finalmente, ao chegar ao seu destino, diz ao colega que a aguardava que aquele dia
não iria ao trabalho, o amigo estranha sua atitude e ela pensa consigo “Tinha
comprometido, extrapolado o tempo. O que havia acontecido? Não, não tinha
acontecido nada. Não tinha sido assaltada. Apenas demorara mais, muito mais do que
o costume. Se distraíra, esquecera das horas” (EVARISTO, 2014, p. 55).
A narrativa se encerra com a personagem alegando que daria um tempo a si mesma,
mas dizendo tão baixo que soava como uma prece, como se, mais do que uma
decisão a dessincronização era um desejo, uma promessa.
REFERÊNCIAS
BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais: a longa duração. In: Escritos sobre a
história. Trad. Jaime Ginsburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. 3. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2014, p. 41-78.
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EVARISTO, Conceição. O cooper de Cida. In: EVARISTO, Conceição. Olhos D’Água.
Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016, p. 41-44.
PRATES, Cristina. Discurso étnico-literário: memórias poéticas em Conceição
Evaristo.
Dialnet,
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Disponível
em:
<https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6160253>. Acesso em: 22 out.
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RODRIGUES, Rodrigo Fonseca e. Sonoridades do Cinema: Tarkovsky e a
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2011.
Disponível
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SALOMON, Marlon. Heterocronias. In: ______. Heterocronias. Estudo sobre a
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TURIN, Rodrigo. Tempos precários, aceleração e semântica neoliberal. Zazie
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<https://static1.squarespace.com/static/565de1f1e4b00ddf86b0c66c/t/5d6bbdd368ab
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