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DO ACESSO À JUSTIÇA SOB A PERSPECTIVA DO BEM COMUM

Comumente diz-se que o trabalho de pesquisa é um ato solitário. E de fato o é. Mas até aqui-e durante a empreitada-tive a honra de contar com o apoio imensurável de alguns que se fizeram muitos durante esta jornada que iniciou a partir do ingresso no Curso de Especialização, ocorrido em março de 2021. Agradeço, em primeiro lugar, ao Professor Doutor Alfredo de Jesus Dal Molin Flores, que com louvável disponibilidade e dedicação, me orientou durante o desenvolvimento deste trabalho, culminando na Monografia que ora apresento. À coordenação e equipe de apoio da Especialização em Direito do Estado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, minha gratidão pela presteza e agilidade no atendimento de todas as dúvidas e solicitações realizadas durante o período de curso. À minha família, em especial a minha mãe e meu pai, que garantem base sólida e segura. Obrigada pela compreensão por todas as ausências que foram necessárias durante o período de pesquisa. Agradeço, mãe amada, pela compreensão por todas as ocasiões em que não pude estar com vocês em função desta pesquisa. Dedico a vocês, meus pais, pessoas de luta, trabalhadores da terra, todas as minhas conquistas. A vida e perseverança que vocês transbordam são exemplo e estímulo para mim! E, principalmente, agradeço àquele que é meu companheiro de vida e de jornada, àquele que desde os primeiros passos na graduação em Direito serve de norte e exemplo para minha caminhada acadêmica. A meu esposo, meu amor, Ronaldo Queiroz de Morais, meu agradecimento pelo incentivo constante, pelo auxílio na revisão e correção deste trabalho, por estar sempre disponível para me ouvir, para discutir e para acrescentar à minha pesquisa. Obrigada por ser base firme e sempre presente. Obrigada por toda atenção, amor e tempo dedicado a nós! RESUMO A monografia em tela carrega a proposição de elaborar crítica aos pressupostos de concessão da gratuidade da justiça, a partir da análise das decisões judiciais que incluem/excluem indivíduos do acesso à justiça tendo como base a aferição cartesiana e abstrata da insuficiência de recursos, negligenciando, assim, a realidade socioeconômica concreta e a histórica desigualdade social brasileira. Grosso modo, o Poder Judiciário tem reproduzido as estruturas de desigualdade social, ou seja, o avanço igualitário posto na Constituição Cidadã de 1988, esbate nas "barras de ferro" das instituições tradicionais brasileiras de matriz escravocrata. É nesse contexto que se faz necessário imaginar criticamente novas paisagens para o acesso universal à justiça. Assim, a pesquisa, após avaliação de importante volume de decisões dos tribunais do Brasil Meridional, procurou esboçar um quadro teórico alicerçado no conceito de bem comum a fim de deslocar o olhar crítico para o estudo da longa duração das desigualdades que, independentemente das promessas modernas de emancipação, ainda lança seres humanos para a subcidadania.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO DO ESTADO Rutieli Witt Tresbach DO ACESSO À JUSTIÇA SOB A PERSPECTIVA DO BEM COMUM: esboço crítico das decisões do Judiciário do Brasil Meridional Porto Alegre 2022 Rutieli Witt Tresbach DO ACESSO À JUSTIÇA SOB A PERSPECTIVA DO BEM COMUM: esboço crítico das decisões do Judiciário do Brasil Meridional Monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial à obtenção do título de Especialista em Direito do Estado. Orientador: Prof. Dr. Alfredo de Jesus Dal Molin Flores. Porto Alegre 2022 O que nos move, com muita sensatez, não é a compreensão de que o mundo é privado de uma justiça completa — coisa que poucos de nós esperamos —, mas a de que a nossa volta existem injustiças claramente remediáveis que queremos eliminar. Amartya Sen AGRADECIMENTOS Comumente diz-se que o trabalho de pesquisa é um ato solitário. E de fato o é. Mas até aqui - e durante a empreitada - tive a honra de contar com o apoio imensurável de alguns que se fizeram muitos durante esta jornada que iniciou a partir do ingresso no Curso de Especialização, ocorrido em março de 2021. Agradeço, em primeiro lugar, ao Professor Doutor Alfredo de Jesus Dal Molin Flores, que com louvável disponibilidade e dedicação, me orientou durante o desenvolvimento deste trabalho, culminando na Monografia que ora apresento. À coordenação e equipe de apoio da Especialização em Direito do Estado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, minha gratidão pela presteza e agilidade no atendimento de todas as dúvidas e solicitações realizadas durante o período de curso. À minha família, em especial a minha mãe e meu pai, que garantem base sólida e segura. Obrigada pela compreensão por todas as ausências que foram necessárias durante o período de pesquisa. Agradeço, mãe amada, pela compreensão por todas as ocasiões em que não pude estar com vocês em função desta pesquisa. Dedico a vocês, meus pais, pessoas de luta, trabalhadores da terra, todas as minhas conquistas. A vida e perseverança que vocês transbordam são exemplo e estímulo para mim! E, principalmente, agradeço àquele que é meu companheiro de vida e de jornada, àquele que desde os primeiros passos na graduação em Direito serve de norte e exemplo para minha caminhada acadêmica. A meu esposo, meu amor, Ronaldo Queiroz de Morais, meu agradecimento pelo incentivo constante, pelo auxílio na revisão e correção deste trabalho, por estar sempre disponível para me ouvir, para discutir e para acrescentar à minha pesquisa. Obrigada por ser base firme e sempre presente. Obrigada por toda atenção, amor e tempo dedicado a nós! RESUMO A monografia em tela carrega a proposição de elaborar crítica aos pressupostos de concessão da gratuidade da justiça, a partir da análise das decisões judiciais que incluem/excluem indivíduos do acesso à justiça tendo como base a aferição cartesiana e abstrata da insuficiência de recursos, negligenciando, assim, a realidade socioeconômica concreta e a histórica desigualdade social brasileira. Grosso modo, o Poder Judiciário tem reproduzido as estruturas de desigualdade social, ou seja, o avanço igualitário posto na Constituição Cidadã de 1988, esbate nas “barras de ferro” das instituições tradicionais brasileiras de matriz escravocrata. É nesse contexto que se faz necessário imaginar criticamente novas paisagens para o acesso universal à justiça. Assim, a pesquisa, após avaliação de importante volume de decisões dos tribunais do Brasil Meridional, procurou esboçar um quadro teórico alicerçado no conceito de bem comum a fim de deslocar o olhar crítico para o estudo da longa duração das desigualdades que, independentemente das promessas modernas de emancipação, ainda lança seres humanos para a subcidadania. Palavras chave: Acesso à justiça. Desigualdade social. Bem comum. ABSTRACT The monograph on screen carries the proposition of elaborating a critique of the assumptions of granting free justice, from the analysis of judicial decisions that include/exclude individuals from access to justice based on the Cartesian and abstract assessment of the insufficiency of resources, neglecting, thus, the concrete socioeconomic reality and the historical Brazilian social inequality. Roughly speaking, the Judiciary has reproduced the structures of social inequality, that is, the egalitarian advance set out in the Citizen Constitution of 1988, erodes the “iron bars” of traditional Brazilian institutions with a slave matrix. It is in this context that it is necessary to critically imagine new landscapes for universal access to justice. Thus, the research, after evaluating an important volume of decisions from the courts of Southern Brazil, sought to outline a theoretical framework based on the concept of the common good in order to shift the critical gaze to the study of the long duration of inequalities that, regardless of modern promises of emancipation, still pushes human beings to the margins for sub-citizenship. Keywords: Access to justice. Social inequality. Very common. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................7 2 ACESSO À JUSTIÇA: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL.....10 2.1 A HISTÓRIA DOS LIMITES DA CIDADANIA BRASILEIRA..................................13 2.2 A REDEMOCRATIZAÇÃO E O ACESSO À JUSTIÇA..........................................18 2.3 A SUBCIDADANIA BRASILEIRA..........................................................................26 3 ESBOÇO CRÍTICO DOS CRITÉRIOS DE ACESSO GRATUITO À JUSTIÇA........30 3.1 OS PARAMETROS JURISDICIONAIS PARA O ACESSO GRATUITO À JUSTIÇA.....................................................................................................................32 3.2 DA INSUFICIÊNCIA DE RECURSOS NAS DECISÕES DOMINANTES DOS TRIBUNAIS DO BRASIL MERIDIONAL .....................................................................37 4 O ACESSO À JUSTIÇA SOB A PERSPECTIVA DO BEM COMUM.......................42 4.1 ESCAVANDO O BEM COMUM NA SUPERFÍCIE NEOLIBERAL.........................43 4.2 ACESSO À JUSTIÇA COMO BEM COMUM.........................................................48 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................53 REFERÊNCIAS..........................................................................................................56 7 1 INTRODUÇÃO Amartya Sen lança como quem semeia a terra, na obra A Ideia de Justiça, as seguintes palavras: “a identificação de injustiças corrigíveis não é só o que nos anima a pensar em justiça e injustiça, ela também é central, como argumento (...), para a teoria da justiça (SEN, 2011, p. 7). Trata-se de uma sentença moral e teórica, que norteia minha pesquisa monográfica. O esforço de pesquisa foi concentrado na investigação acerca da questão do acesso à justiça a partir de uma percepção profissional da presença de estrutural injustiça que flui nos tribunais do Brasil meridional, com importante exclusão de litigantes, das singularidades sociais com base em razão cartesiana, instrumental, fria de ética cidadã e, completamente alienada da realidade socioeconômica. Compreender a realidade do mundo exige o uso da razão, mas com outras bases teóricas, uma razão crítica que procure encontrar no final a dor da injustiça sobre os corpos excluídos de cidadania, do abstrato da teoria ao concreto da realidade. É o senso de injustiça que me move nesta breve pesquisa, mas sempre subordinada à razão crítica. Parto de uma leitura criteriosa do contexto socioeconômico brasileiro e do impacto das políticas neoliberais nos corpos na condição de subcidadania a partir de vereda histórico-social do Brasil. A desigualdade social no país tem lastros de longa duração, que desdobra em uma sociedade de instituições tradicionais e autoritárias, mesmo após o fim da última escuridão autoritária e a promulgação da Constituição Cidadã de 1988. A monografia “Do Acesso à Justiça Sob a Perspectiva do Bem Comum” dividese em três capítulos dos quais, o primeiro compõe trabalho histórico- social de breve contextualização acerca do acesso à justiça do povo brasileiro. Um país com base escravocrata de 300 anos, em que a história é tardia. Logo, a questão do acesso à justiça passou a ser relevante apenas há três décadas atrás com a Constituição Cidadã de 1988. A história da cidadania brasileira é a história da precarização da vida social da massa em benefício das elites brancas de ontem, de hoje e infelizmente, do amanhã se nada for alterado significativamente. O capítulo também elabora uma relação entre a redemocratização e os critérios de acesso à justiça a fim de compreender os argumentos dos juízes e tribunais para a inclusão/exclusão de acesso diante da Carta Magna que tem a cidadania como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Independentemente da profunda desigualdade social 8 que impera no território nacional parcela preponderante de julgadores se limitam a cobrir os ouvidos com cera como Odisseu sobre o impacto de suas próprias decisões, que jogam litigantes para à margem, na subcidadania, pois avaliam os casos pelo viés da renda individual, com base em salário mínimo nominal, ou seja, valor abstrato, apartado da própria legislação constitucional. No capítulo dois há trabalho empírico de investigação e leitura crítica de volume considerável de sentenças, bem como, da uniformização de jurisprudência dos tribunais do Brasil meridional sobre o tema acesso à justiça por insuficiência de recursos. O capítulo revela que há uma lógica de exclusão ao acesso à justiça, que está imbricada em uma historicidade de subcidadania de longa duração. É no território da longa temporalidade social que é possível compreendê-la a fim de explicar o conjunto de decisões judiciais que, amiúde, excluem litigantes do acesso à justiça gratuita. De fato, o ato de negação de gratuidade impõe a indivíduos a condição de subcidadania. Trata-se de fenômeno complexo, que resulta de um conjunto de fragilidades socias tecidas por meio de política de desigualdade social assegurada, paradoxalmente, por instituições de Estado que deveriam garantir cidadania por meio do acesso à justiça em tempos difíceis, de crises econômicas e de políticas neoliberais. Finalmente, o último capítulo, compõe uma leitura crítica da questão do acesso à justiça a partir da teorização do livre trânsito à justiça como bem comum. Para tal, recorri a autores de longo fôlego, cada qual ao seu modo, procuraram alcançar uma teoria da justiça. O marco teórico foi construído a partir da leitura dos filósofos Michael Hardt, Antonio Negri, Michael Sandel, também, dos juristas Mauro Cappelletti, Bryant Garth, Rubens Casara e outros, bem como pelos sociólogos Boaventura de Sousa Santos, Jessé Sousa dentre outros, além dos economistas Amartya Sen e Thomas Piketty. Todos autores que me auxiliaram a compreender as injustiças que constroem desigualdades sociais e a premência de pensar e construir uma nova ordem social possível, justa e igualitária. Foi a partir desses autores seminais que ergui meu aporte teórico, com base no conceito de bem comum. Isto é, uma percepção que desloca o eixo dos sujeitos como mônada econômico de cidadania abstrata que incluí/excluí litigantes dos tribunais por meio de lógica cartesiana e ideologia neoliberal para o eixo da realidade política comunitária da produção social, sustentada pelo comum como bem inalienável da cidadania concreta, assim como o ar, a água, a moradia, a saúde 9 e a educação - o acesso universal à justiça é um bem comum. É nesses termos que apresento minha pesquisa para leitura e avaliação. Por derradeiro, esta pesquisa buscará demonstrar, a partir de pesquisa bibliográfica com abordagem qualitativa, que a discrepância de entendimentos e aplicação de critérios estanques e mecanizados, criados e reproduzidos pelos órgãos jurisdicionais brasileiros têm o potencial de brecar o amplo acesso ao Poder Judiciário de parcela significativa de brasileiros, reproduzindo desigualdades estruturais e lançando indivíduos à condição de subcidadania. Com isso, buscar-se-á fomentar a pesquisa e o debate acerca de tema tão caro à população brasileira e a profissionais do direito, a fim de lapidar a concepção de acesso à justiça a partir de análise multidisciplinar entre direito, história, ciências sociais e economia, desvelando crenças e ideologias fortemente enraizadas na cultura de cerne escravocrata que constituiu a sociedade brasileira, e nela permanece. 10 2 ACESSO À JUSTIÇA: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL Durante os séculos XVIII e XIX, vigorava a tese de que o acesso à justiça constituía um direito natural do ser humano, anterior ao próprio Estado, como decorrência, não havia intervenção estatal para proteger esse direito. O Estado permanecia passivo com relação aos problemas oriundos das relações sociais. Nesse período, a justiça só era acessível àqueles que tivessem condições de suportar seus custos. Cappelletti e Garth (1988, p. 10), pontuam que “os estudiosos do direito, como o próprio sistema judiciário, encontravam-se afastados das preocupações reais da maioria da população”. Assim, o acesso à justiça era apenas formal, mas não efetivo. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9). Após a Segunda Guerra Mundial houve, efetivamente, uma explosão de cidadania e Direitos Humanos. O Estado passou a sensibilizar-se com o bem comum. Dessa forma, as reformas advindas do welfare state buscaram assegurar aos indivíduos novos direitos substantivos, sobretudo com a proclamação de novos direitos humanos. Nesse diapasão, o acesso à justiça alcançou posição significativa. No entanto, o belo texto da lei não completa a realização dos diretos à cidadania, consoante Cappelletti e Garth (1988, p. 12), a mera proclamação de direitos não tem utilidade alguma se não coexistir um sistema de justiça adequado para que tais direitos possam ser legitimamente reivindicados, o que faz do acesso à justiça o mais elementar direito humano. Nesse sentido: Uma tarefa básica dos processualistas modernos é expor o impacto substantivo dos vários mecanismos de processamento de litígios. Eles precisam, consequentemente, ampliar sua pesquisa para mais além dos tribunais e utilizar os métodos de análise da sociologia, da política, da psicologia e da economia, e ademais, aprender através de outras culturas. O “acesso” não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12-13). Ademais, a doutrina do Professor José Afonso da Silva, em sua acepção institucional, sublinha que o “acesso à justiça é uma expressão que significa o direito de buscar proteção judiciária, o que vale dizer: direito de recorrer ao Poder Judiciário em busca da solução de um conflito de interesses”, tal significação guarda lugar no art. 5º, inciso XXXV da Constituição, ao preconizar que “a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (SILVA, 2007, p. 150). 11 De fato, o acesso à justiça não se resume apenas à acepção institucional, uma vez que tal ideia representaria inconteste pobreza valorativa, como ensina Afonso da Silva: É que, na verdade, quem recorre ao Poder Judiciário confia em que ele é uma instituição que tem por objeto ministrar justiça como valor, instituição que, numa concepção moderna, não deve nem pode satisfazer-se com a pura solução das lides, de um ponto de vista puramente processual. Os fundamentos constitucionais da atividade jurisdicional querem mais, porque exigem que se vá a fundo na apreciação da lesão ou ameaça do direito para efetivar um julgamento justo do conflito. Só assim se realizará a justiça concreta que se coloca precisamente quando surgem conflitos de interesses. (SILVA, 2007, p. 150). Para Ricardo Luis Lorenzetti (1998), o acesso à justiça situa-se dentre os direitos fundamentais de 3ª geração, os quais passam pela necessária alteração do reconhecimento do sujeito de direito como um “sujeito isolado” para que seja visto como um “sujeito situado”. Nas palavras do autor “situar o sujeito importa estabelecer um modo de relação com os demais indivíduos e com os bens públicos”. (LORENZETTI, 1998, p. 83). Com efeito, o sujeito moderno é um ser social situado em contexto socioeconômico que ilustra o grau de acesso coletivo aos Direitos Humanos e à cidadania. Logo, a atividade jurisdicional do nosso tempo precisa enfrentar a resolução de qualquer caso concreto sob a perspectiva da dimensão coletiva que o litígio implica para toda a sociedade, fazendo com que o direito processual se engaje na luta pela configuração de uma qualidade de vida melhor a todos os integrantes do grupo social. Em regimes democráticos não há como pensar a cidadania descolada do direito, que se efetiva por meio do pleno acesso às instituições judiciárias, pois, como pontua Rubens Casara: “no imaginário democrático, o Poder Judiciário ocupa posição de destaque”. (CASARA, 2020, p. 125). De fato, o aparato judiciário é a última fortaleza das garantias da vida democrática, de forma que não há cidadania plena sem o livre acesso à justiça. Com efeito, elevada à condição de princípio fundamental da República Federativa do Brasil, a cidadania constitui-se como fundamento do estado Democrático de Direito, positivada no art. 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988. Em leitura histórico-social, destaca-se a lição de Boaventura de Sousa Santos, para quem “a cidadania não é monolítica; é constituída por diferentes tipos de direitos e instituições; é produto de histórias sociais diferenciadas protagonizadas por grupos 12 sociais diferentes”. (SANTOS, 2013, p. 234). Sendo assim, importa referir que o presente trabalho se valeu de estudos e pesquisas desenvolvidos nos campos das Ciências Sociais, Econômicas e da História, cujas fontes bibliográficas sobre o instituto da cidadania, seu desenvolvimento e dimensão, são complementares para elaborar uma cartografia da cidadania brasileira. Por isso, foi sine qua non uma leitura multidisciplinar e contextualizada no campo histórico-social da sociedade brasileira para melhor compreender e desenvolver o tema proposto na monografia. No campo jurídico brasileiro, uma adequada compreensão sobre o que é cidadania mostra-se de latente urgência, pois, como observa Regina Lúcia Teixeira Mendes da Fonseca, no Brasil, a bibliografia jurídica a respeito desse instituto é bastante omissa e rasa, sendo necessário buscar junto às Ciências Sociais e à História trabalhos mais aprofundados sobre cidadania, uma vez que no campo do direito “a literatura disponível não trata dos outros dois aspectos do instituto, o aspecto civil e o aspecto social, como acontece no direito comparado e não aborda a cidadania tal como se colocou no Brasil”. Os escritos jurídicos que tratam sobre o tema, via de regra, se resumem ao direito de votar e de ser votado, como se o estudo da cidadania “estivesse resumido a seu aspecto político, isto é, à possibilidade de participação na escolha dos governantes e na possibilidade de participação direta em algumas circunstâncias através de plebiscitos, referendos e outros institutos”. (FONSECA, 2009, p. 3334). Na mesma linha crítica temos as palavras do Professor José Afonso da Silva, que vincula o conceito de cidadania ao princípio democrático, pontuando que durante muito tempo o discurso jurídico concebeu o conceito de cidadão apenas como a fruição dos direitos políticos. Consoante o autor: Uma ideia essencial do conceito de cidadania consiste na sua vinculação com o princípio democrático. Por isso, pode-se afirmar que, sendo a democracia um conceito histórico que evolui e se enriquece com o envolver dos tempos, assim também a cidadania ganha novos contornos com a evolução democrática. É por essa razão que se pode dizer que a cidadania é o foco para onde converge a soberania popular. (SILVA, 2007, p. 138). A completa constitucionalização da cidadania brasileira é tardia. A carta magna que foi qualificada de “Constituição Cidadã” nasceu a após a longa noite de escuridão autoritária que subtraiu a pouca cidadania que vigorava no país. Em substância, a Constituição Federal de 1988 incorporou uma nova dimensão de cidadania, 13 construída sob a afluência de um gradual enriquecimento e desenvolvimento dos direitos fundamentais do Homem. Todavia, para que nossa Carta Cidadã possa, de fato, realizar a cidadania, incontroverso que a efetivação da vida democrática “depende de providências estatais no sentido da satisfação de todos os direitos fundamentais em igualdade de condições”, como adverte o Professor José Afonso da Silva: Cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento dos indivíduos como pessoas integradas na sociedade estatal (art. 5º, LXXVII). [...] A cidadania, assim considerada, consiste na consciência de pertinência à sociedade estatal como titular dos direitos fundamentais, da dignidade como pessoa humana, da integração participativa no processo do poder, com a igual consciência de que essa situação subjetiva envolve também deveres de respeito à dignidade do outro e de contribuir para o aperfeiçoamento de todos. (SILVA, 2007, p. 141-142). Conforme destaca TH Marshall e Tom Bottomore (2021, p. 42), “a cidadania é um status outorgado àqueles que são membros plenos de uma comunidade”, e pode ser dividia em três elementos, quais sejam: o civil, o político e o social. Ou seja, a cidadania está alicerçada em trinômio. A história da cidadania é a de ampliação dos direitos civis, políticos e sociais. A cidadania moderna é dinâmica e está em desenvolvimento contínuo. Ainda de acordo com os autores, “as sociedades em que a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam a imagem de uma cidadania ideal com a qual se pode medir a realização e para a qual se pode direcionar a aspiração”. A lógica do avanço do capital é contrária ao movimento de igualdade moderna que compõe a cidadania moderna. Logo, o estabelecimento da cidadania no capitalismo se dá em crescente conflito e contradição. A estratificação social com base na classe social compõe, essencialmente, um sistema de desigualdade, típico do capitalismo, que ganha força e ascensão a partir do século XX, colidindo, amiúde, com o princípio da cidadania. (MARSHALL; BOTTOMORE, 2021, p. 42-43). 2.1 A HISTÓRIA DOS LIMITES DA CIDADANIA BRASILEIRA No Brasil, a história da cidadania desde a independência foi a de aplicação de direitos para poucos. Foi a elite branca de proprietários de terra e de burocratas do topo do Estado que usufruiu dos direitos liberais postos na Constituição Imperial, para 14 os demais cidadania e democracia postaram-se como mera abstração política. De acordo com o historiador José Murilo de Carvalho, em sua obra de longo fôlego que engloba a história da cidadania brasileira, destaca que do Império (1822-1889) até a Primeira República (1889-1930), “do ponto de vista do progresso da cidadania, a única alteração importante que houve nesse período foi a abolição da escravidão, em 1888”, por meio da qual restou apenas formalmente conferido aos ex-escravos direitos civis, em que pese na prática esses direitos não atingiram o campo da efetividade. (CARVALHO, 2008, p. 17). Portanto, a história da precária cidadania brasileira está imbricada à questão da escravidão. As bases histórico-sociais da construção da cidadania no país devem ser compreendidas a partir da dinâmica das relações de poder raciais que impõe baixa cidadania aos afro-brasileiros. Realmente, impossível negligenciar que o desdobramento e desenvolvimento dos direitos e do próprio conceito de direito se faz na história, e, por conseguinte, a própria cidadania é um fenômeno histórico, que no Brasil, teve como principal fator negativo a longa duração do Sistema Escravocrata, paradoxalmente, assegurada pela Constituição Liberal de 1824. (CARVALHO, 2008, p. 19). Certamente, a escravidão e a grande propriedade não constituíam ambiente favorável para a formação de cidadania, visto que, além de corpos humanos escravizados serem tratados como mercadoria e equiparados a animais, a concentração de terras nas mãos de poucos gerava uma dependência que se estendeu após o fim da escravidão, fazendo dos ex-escravos pessoas legalmente livres, mas sem nenhuma condição para o exercício dos direitos civis, especialmente a educação, circunstâncias que refletiram severamente para o baixo desenvolvimento da cidadania brasileira. (CARVALHO, 2008, p. 21). A cidadania brasileira após a abolição da escravidão até 1930 passou por pouca alteração, nas palavras de José Murilo de Carvalho: Os brasileiros tornados cidadãos pela Constituição eram as mesmas pessoas que tinham vivido os três séculos de colonização nas condições que já foram descritas. Mais de 85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará da justiça, uma postura municipal. Entre os analfabetos incluíam-se muitos dos grandes proprietários rurais. Mais de 90% da população vivia em áreas rurais, sob o controle ou a influência dos grandes proprietários. Nas cidades, muitos votantes eram funcionários públicos controlados pelo governo. (CARVALHO, 2008, p. 32). 15 A cidadania nas primeiras décadas da república (1889-1930) pouco avançou na ampliação dos direitos. O modelo da federação americana foi aplicado no país, mas sem alteração da representação política. Os presidentes dos estados passaram a ser eleitos pela população por voto de cabresto, ou seja, por meio de coação física e mando pessoal. Além disso, o volume de eleitores é baixíssimo, pois dava acesso à cidadania apenas aos alfabetizados, menos que 5% da população teve acesso ao voto durante a República Oligárquica. A federação descentralizou o poder nacional, mas nada contribuiu para ampliação democrática. Ela apenas permitiu a formação de poderosas oligarquias estaduais, apoiadas em partidos únicos regionalizados. O contexto permitiu a continuidade do poder dos grandes proprietários de terra, o que permitiu o poder oligárquico até 1930. O quadro era dramático, em 1920 apenas 16,6% dos brasileiros moravam nas cidades de vinte mil habitantes ou mais, e a taxa de analfabetismo ocupava número estrondoso, cerca de 70% da população. Logo, o quadro ilustra que os direitos civis e políticos da nascente república eram, para a maioria dos brasileiros, uma ficção jurídica. (LUCA, 2003, p. 470). A Revolução de 1930 foi de ruptura modernizante. O Brasil adentrou uma era nacional de industrialização e de crescente urbanização, o que impactou em passos importantes na direção da cidadania. Foi criado o Ministério do Trabalho com a consolidação das Leis do Trabalho, uma forte legislação trabalhista de proteção aos trabalhadores. Trata-se de contexto de formação de uma classe proletária com direitos modernos. Contudo, a cidadania política foi subtraída por meio do autoritarismo do Estado Novo (1937-1945). Em síntese, foi período de ampliação da cidadania social e de encurtamento da cidadania política. Contudo, o acesso à justiça progrediu muito pouco. (CARVALHO, 2008, p. 87). Nas palavras de Tânia Regina de Luca: Com a instauração do Estado Novo e a imposição ao país de nova Carta Magna (1937), o caráter autoritário, centralizador e antidemocrático do regime tornou-se inequívoco. Suprimiram-se os direitos políticos e aboliu-se o poder Legislativo em todos os níveis, cabendo ao executivo o exercício das suas funções. Os partidos políticos foram dissolvidos, as greves proibidas, a censura aos meios de comunicação tornou-se rotina e estreitaram-se as possibilidades de contestação ao regime, que não hesitou em valer-se da intimidação e da tortura contra seus opositores, bastando lembrar que o número de presos políticos ultrapassou a casa dos dez mil. (LUCA, 2003, p. 480). Em 1945, com a derrota do fascismo na Europa, fortes ventos democráticos derrubaram o regime autoritário do Estado Novo. Então, o Brasil passou à uma nova 16 fase política. Houve início da efetiva democracia de massa no país. O voto passou a ser fruto da vontade livre do povo brasileiro, sem as coações dos donos do poder. Por certo, entre 1945 a 1964 a participação popular foi crescente e a classe proletária atuou como sujeito político pela primeira vez no território nacional. A ampliação do ensino básico produziu um volume considerável de eleitores no país. Objetivamente, foi a época do trabalhismo e de expansão das ideias revolucionárias. A luta de classes, tão comum nos países industrializados, naquele momento ocupava as ruas das principais cidades brasileiras. Foi contexto de forte pressão de classe, por direito à greve e por reformas de aprofundamento da cidadania. Trabalhadores do campo e das cidades pressionavam o Estado brasileiro, o que produziu forte medo e resistência das elites que logo puseram fim à frágil democracia do pós-guerra no país. Foi durante o governo de João Goulart (1961-1964) que o contexto político nacional ganhou fortemente às ruas das cidades, a mobilização dos trabalhadores urbanos e rurais tomou proporções gigantescas para os padrões do país. Assim, sindicados, ligas camponesas, setores da igreja progressista, estudantes, intelectuais, sargentos passaram a exigir do Estado ampla cidadania. Então, em 31 de março de 1964 um golpe civil-militar impôs um longo período autoritário subtraindo e congelando o desenvolvimento da cidadania brasileira. (CARVALHO, 2008, p. 87). Em substância, em tempos autoritários, o povo tem acesso à justiça, essencialmente, como réu. Assim, entre 1964 a 1985 a cidadania e o acesso à justiça nada avançou. A Constituição de 1967 e a de 1969 consolidaram o autoritarismo. As práticas de censura arbitrária e de violação dos direitos humanos foram constantes. No limite, a modernização conservadora aplicada pela força da caserna incrementou rapidamente a industrialização do país e no mesmo tom ampliou a violência do Estado contra as populações pobres. Consoante Tânia Regina de Luca: Os direitos sociais sofreram alterações significativas durante a ditadura militar. No que diz respeito aos salários, condições de vida, direitos de organização e manifestação, não há dúvidas quanto ao retrocesso. As centrais sindicais e as ligas camponesas foram proibidas, 87 dirigentes tiveram seus direitos políticos cassados entre 1964 e 1966, mais de quatrocentas entidades sofreram intervenção pouco depois do golpe. As prescrições da CLT, que previam estrito controle governamental sobre os sindicatos, foram aplicadas à risca, transformando-os em meros prestadores de serviços sociais e de lazer. O reajuste dos ganhos, por força da Lei 4725, de 1965, passou a ser determinada pelo governo, que subordinou a questão ao combate à inflação e a promoção do crescimento econômico. À política salarial não era, assim, posta a serviço do bem-estar social, mas manejada como instrumento monetário, subordinada ao crescimento global da economia. (LUCA, 2003, p. 480). 17 Entre os anos de 1974 a 1978 houve o desencadeamento da abertura política, ainda que lenta para ser segura aos autoritários, o que representou o retorno da participação de setores civis na vida pública brasileira. Naquele contexto de dissuasão do terror político, o Ato Institucional número 5 foi revogado e a sociedade civil teve a oportunidade de organizar-se de forma pluripartidária. Ademais, tivemos a volta de eleições diretas para governador de Estado. Nos anos 70, também, os trabalhadores aproveitaram o momento de liberalização política para retomarem os movimentos grevistas, desobedecendo a legislação autoritária antigreve. Sem dúvida, o contexto de abertura política trouxe novamente os temas democracia e cidadania para o centro dos debates e das lutas populares no país. A reativação do oxigênio que viabiliza respirar os direitos modernos, sem dúvida, criou as condições para a redemocratização brasileira que culminou com a “Constituição Cidadã” de 1988. Ao contrário das legislações anteriores de amparo à cidadania, que caíram do céu para a terra, a assembleia constituinte foi fruto de importante mobilização popular, que refletiu na construção da legislação mais democrática e cidadã da história brasileira. De fato, a Constituição Cidadã foi criada de baixo para cima. Com efeito, não podemos negligenciar a genealogia de sua criação, isto é, o texto constitucional, de maior potência progressista, resultou das lutas pela redemocratização do país no contexto de liberalização do Regime Militar autoritário. O texto de Tânia Regina de Luca nos é esclarecedor: No campo, onde a estrutura fundiária permanecia intocada, houve o ressurgimento da luta em prol da defesa do trabalhador rural. Data de 1975 a Comissão Pastoral da Terra, criada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para atuar nas questões agrárias, e de 1979 a formação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Igualmente significativo foi o surgimento de movimentos urbanos em prol da moradia, como o Movimento Contra os Loteamentos Clandestinos (1972), o Movimento dos Moradores de Favelas (1979) e o Movimento dos Mutuários do BNH (1984), que congregavam a população em torno da melhoria das suas condições de vida. A luta em prol da emenda constitucional que previa o restabelecimento de eleições diretas para a presidência da República (1984), por sua vez, foi acompanhada de intensa participação popular. Apesar da proposta haver sido derrotada no Congresso, o clamor das ruas foi fundamental para tornar irreversível a saída dos militares do poder, que se consubstanciou com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney (1985). (LUCA, 2003, p. 487). Símbolo da redemocratização brasileira, a Constituição de 1988 trouxe significativa ampliação do rol de direitos e de garantias de seu povo, que fora tão severamente penalizado pelo longo e doloroso período ditatorial que antecedeu à 18 promulgação. Nossa Carta Cidadã inovou em inúmeros aspectos, tanto na ampliação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, como também inovou por trazer em seu texto os chamados direitos de terceira geração, onde se inclui o direito ao meio ambientes, à qualidade de vida e os direitos do consumidor. De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2013, p. 25), “a redemocratização e o novo marco constitucional deram maior credibilidade ao uso da via judicial como alternativa para alcançar direitos”. Naturalmente, ao terem consciência de seus direitos e confiança nas instituições democráticas, as pessoas recorrem ao Judiciário visando proteger ou exigir a efetiva proteção desses direitos quando ameaçados ou atingidos. 2.2 A REDEMOCRATIZAÇÃO E O ACESSO À JUSTIÇA Em substância, a promulgação da Constituição em 1988 representou, simbolicamente, a abertura das portas institucionais para o livre trânsito democrático. Ao contrário das constituições anteriores, os direitos fundamentais de cidadania aparecem nos títulos iniciais a fim de destacar sua essência cidadã. Nessa Carta Magna, o acesso ao voto foi universalizado por meio da extensão facultativa aos maiores de 16 anos e aos analfabetos. Pela primeira vez a república brasileira reconhecia cidadania política aos pobres sem escolaridade. Parcela significativa da população brasileira. A democracia tomou outro significado, passou a ser participativa superando sua percepção formal como define o artigo 14. Ademais, os direitos civis foram amplamente assegurados no artigo 5º, com garantias de proteção contra qualquer arbitrariedade do Estado, além do direito ao abono de férias, licença paternidade, fixação do salário mínimo como base para pensões e aposentadorias e diversos avanços sociais que sublinham avanços inéditos na legislação do país. Quiçá, o maior progresso da Constituição Cidadã foi o reconhecimento da opressão racial brasileira sobre os afro-brasileiros. O racismo passou a ser classificado como crime inafiançável. (LUCA, 2003, p. 488). Em síntese, a Constituição Cidadã marcou, verdadeiramente, uma revolução simbólica na legislação brasileira. Foi, de fato, uma transformação profunda na história das constituições do país. Contudo, a tarefa de deslocamento da democracia do plano simbólico para o real, vivenciado ordinariamente, ainda permanece incompleta. Realmente, a passagem de regimes autoritários para democráticos, nas sociedades periféricas e semiperiféricas, como é o caso da brasileira, passam pelo 19 que Boaventura de Sousa Santos (2011, p. 26) designa como “curto-circuito histórico, ou seja, pela consagração no mesmo ato constitucional de direitos que nos países centrais foram conquistados num longo processo histórico (daí falar-se de várias gerações de direitos)” – a constitucionalização democrática, amiúde, transforma-se antes em expectativa futura do que realidade vivida frente à falta de ação concreta dos poderes públicos. Todavia, as democracias caracterizam-se pela autonomia dos poderes e pelo conflito político nas ruas e nos tribunais. Assim, a presença significativa de direitos na Carta Magna de 1988 abriu espaço para maior intervenção judicial a fim de tornar real a legislação democrática. Afinal, os tribunais representam a última instância dos conflitos que nascem nas ruas das cidades democráticas. Malgrado, a relevância do tratamento constitucional conferido à cidadania no Brasil, a prática forense que se desenha dia após dia, demonstra que, infelizmente, ainda está muito longe de conferir cidadania plena aos indivíduos que compõem a sociedade brasileira. Trata-se de corpo social dividido em classes extremamente desiguais, uma pequena parcela de indivíduos com pleno acesso à cidadania e uma massa de gente em estado de subcidadania – empobrecidos estruturalmente pela longa duração do sistema escravocrata – conforme assinala, por diversas vezes, Jessé Souza (2018). Por conseguinte, aqueles que necessitam bater às portas do Judiciário em busca de proteção ou restauração de seu direito, não escapam à regra excludente, desigual e segregadora que rege as relações sociais brasileiras. Diante do entrave institucional para a efetivação de um conjunto tão extenso de direitos, que foram repentinamente conquistados, surgem aqueles que defendem a relativização de determinados direitos, e até mesmo começam a estabelecer limites e critérios para a concessão de outros, como é o caso, por exemplo, da formulação dos “critérios objetivos” para concessão da gratuidade de justiça por insuficiência de recursos, que é discutido e estabelecido por julgadores e Tribunais brasileiros, sem debate político, sem a participação popular e sem qualquer estudo histórico-social sobre a realidade social brasileira. Em poucas palavras, a Constituição Cidadã, banhada de democracia, não está sendo suficiente para constitucionalizar a própria cidadania no interior das instituições do Brasil. Porquanto, a redemocratização do país precisa alcançar as instituições que carregam, em larga medida, resíduos autoritários estruturais que dificultam a realização da cidadania que prescreve a Constituição. Por conseguinte, é o que explica os limites institucionais de acesso à justiça gratuita, mesmo depois de décadas de Constituição Cidadã ainda hoje as instituições 20 de Estado, como um todo, demonstram demasiada lentidão para imprimir efetividade à norma constitucional que confere tão especial destaque à cidadania. Posto que os traços de formação social que constituem as profundas desigualdades da sociedade brasileira decorrem de matriz escravocrata, pautada desde sua origem até os dias de hoje por classes sociais estratificadas por meio da dicotomia: cidadania/subcidadania. De acordo com Jessé Souza (2018, p. 219): “o processo de modernização brasileiro iniciado em 1808, pautado por um surto urbanizador e comercial”, se consolida somente a partir de 1930, com a industrialização, que compõe acelerada modernização conservadora, porque conserva as estruturas de desigualdades, essencialmente, raciais no país. Para o autor, esse período instaura um novo arquétipo de institucionalização, que culmina na “formação de um padrão especificamente periférico de cidadania e subcidadania” (SOUZA, 2018, p. 221). Ou seja, a desigualdade no Brasil além socioeconômica é cultural, pois habita, naturalmente, o imaginário dominante das elites do setor privado e público. Nessa perspectiva, mostra-se relevante a proposta de Boaventura de Sousa Santos quando acentua a necessidade de uma revolução democrática da justiça, por meio da criação de uma outra cultura jurídica e judiciária, que construa novas subjetividades jurídicas e novos compromissos com a democracia, de acordo com o autor: É essencial termos a noção da exigência que está pela frente. Para satisfazer a procura suprimida são necessárias profundas transformações do sistema judiciário. Não basta mudar o direito substantivo e o direito processual, são necessárias muitas outras mudanças. Está em causa a criação de uma outra cultura jurídica e judiciária. Uma outra formação de magistrados. Outras faculdades de direito. A exigência é enorme e requer, por isso, uma vontade política muito forte. Não faz sentido assacar a culpa toda ao sistema judiciário no caso de as reformas ficarem aquém desta exigência. (SANTOS, 2011, p. 38). Ao tratar sobre os temas que orbitam a realidade contemporânea e a forma como os fatores culturais refletem em uma ausência de progressos efetivos em torno de uma justiça mais humanitária, as pesquisadoras Janaína Machado Sturza e Karinne Emanoela Goettems dos Santos, mencionam que “desejar observar com honestidade a efetividade do acesso à justiça, a partir de um modelo de jurisdição, requer necessariamente uma atenção especial à facticidade, ínsita a uma sociedade complexa, desigual e individualista”. (STURZA; SANTOS, 2020). No limite, a facticidade instrumentaliza um novo olhar e uma nova prática jurídica, respaldada nos 21 vínculos concretos dos indivíduos que demandam acesso à justiça com a realidade histórico-social. Afinal, o acesso à justiça de sujeitos sujeitados é condição sine qua non para a efetivação da vida social na democracia. De fato, como afirma Boaventura de Sousa Santos (2013, p. 205): “o tema do acesso à justiça é aquele que mais diretamente equaciona as relações entre o processo civil e a justiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade socioeconômica”. E é no campo da justiça civil que há maior procura real e potencial dos indivíduos a fim de assegurar direitos. Por isso, o Estado deve ofertar o acesso para sustentar cidadania a todos. A justiça é custosa, sem dúvida, e é por isso que deve se apoiar no Estado para garantir a igualdade no interior de sistema capitalista que, amiúde, produz e reproduz desigualdades de toda a ordem. Porque sem o acesso à justiça igualitária todas as belas leis de direitos do homem e do cidadão limitar-se-ão à mera abstração jurídica. De acordo com Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 11), dentre as Constituições modernas, tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária a fim de assegurar que todos os cidadãos possam fruir dos direitos sociais básicos, dentre eles o efetivo e amplo acesso à justiça, que se reveste de primordial importância entre os novos direitos individuais e sociais. Os autores pontuam que “o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12). Nesse contexto, o sistema de justiça brasileiro precisará se reinventar a partir de seu núcleo, será imperativo uma revolução democrática da justiça, posto que “com a revolução democrática da justiça a luta não será apenas pela celeridade (quantidade da justiça), mas também pela responsabilidade social (qualidade da justiça)”, como afirma Boaventura de Sousa Santos (2011, p. 43), tarefa que parece de difícil alcance diante das raízes escravocratas que constituíram nossa sociedade e que permanecem hígidas nas estruturas de Estado. No Brasil, desde a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, tem-se visto um movimento constante e crescente dentro dos órgãos jurisdicionais no sentido de estabelecer critérios e fórmulas numéricas para fins de parametrização do acesso gratuito à justiça. Assim, por regra, quando a parte postulante pede acesso à tutela do Estado-juiz com requerimento do benefício da gratuidade, dá-se início a um processo 22 mecânico e estanque de conferência de contracheques, declarações de imposto de renda, certidões imobiliárias e veiculares, dentre outros. Ao submeter-se ao crivo jurisdicional, incumbe à parte comprovar que não recebe mais do que o teto estabelecido por determinado tribunal, hipótese em que terá deferido o pedido de gratuidade, caso contrário, se porventura sua renda for superior a determinado valor – o chamado critério objetivo – terá de recolher custas e suportar todos os ônus do processo, inclusive eventual verba honorária de sucumbência, caso seja inexitoso seu pedido. Comumente alega-se que a formulação dos ditos “critérios objetivos” para fins de aferição da situação de hipossuficiência de recursos visa imprimir celeridade aos processos, bem como assegurar que somente os realmente necessitados tenham acesso à justiça de forma gratuita. Trata-se de construção doutrinária e jurisprudencial que tem ganhado força visceral nos últimos anos, sobretudo a partir dos movimentos antidemocráticos que culminaram em severas reformas na legislação brasileira, em especial nas esferas trabalhista e previdenciária. De igual forma, o tema da gratuidade da justiça tem ganhado relevo nas proposições e projetos de lei em curso no Congresso Nacional, em regra sob a ótica de um estado mínimo, comprometido em restringir ainda mais as possibilidades de acesso à justiça. Para além da famigerada alegação sobre os custos do aparato judiciário, os quais são obviamente altos, ou a ideia de que a gratuidade poderia incentivar as demandas promovidas pelos litigantes habituais, é preciso ter em mira que em um Estado Democrático de Direito os ônus devem ser suportados solidariamente, a partir de políticas públicas desenvolvidas pelo Estado, ao passo em que eventuais abusos no direito de litigar devem ser combatidos em específico, pelos meios legais que são acessíveis ao Estado-juiz. A propósito, na legislação brasileira há uma gama de meios legais disponíveis ao Judiciário para as situações nas quais se depara com eventuais abusos no direito de litigar. É incontroverso que às partes é vedado movimentar o aparato judicial do Estado para vindicar pretensões totalmente despropositadas, servindo-se do processo como forma de angariar benefícios manifestamente indevidos, atitude que atenta contra a dignidade da Justiça e à duração razoável do processo, consoante previsão contida no art. 5º, inc. LXXVIII, da Constituição. Não obstante o direito de ação seja constitucionalmente garantido a todos, na linha do que prescreve o art. 5º, incisos XXXV e LV, da Carta Constitucional de 1988, 23 o abuso desse direito não é salvaguardado pelo ordenamento jurídico, conforme estabelece o art. 187 do Código Civil, “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Dessa forma, para os casos em que se constata a utilização indevida do processo, com abuso do direito de litigar, nosso ordenamento jurídico se resguarda de mecanismos processuais aptos para reprimir este tipo de conduta, apenando o violador com as penalidades decorrentes da litigância de má-fé, cujas hipóteses são amplas e expressas nos artigos 79 a 81 do Código de Processo Civil. De acordo com o art. 79, do Diploma Processualista Civil, “responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como autor, réu ou interveniente”, por conseguinte, o art. 81 do referido Diploma estabelece que “de ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou”. Logo, a famigerada defesa de que a gratuidade da justiça serviria de incentivo aos excessos de determinados litigantes, cai por terra quando analisada a legislação e os meios disponíveis para coibir eventuais condutas despropositadas. Aliás, importa registrar que os tribunais brasileiros, assim como a doutrina majoritária, têm defendido e aplicado multas por litigância de má-fé inclusive nos casos em que a parte violadora litigue sob os auspícios da gratuidade da justiça. Assim, para os defensores de que o acesso à justiça deve ser pago, sob pretexto de que gratuidade poderia incentivar demandas excessivas ou desprovidas de fundamento, fica a contradição relativa às penalidades expressas na legislação, punições essas que a todos alcança, independentemente de estar em Juízo mediante pagamento ou gratuitamente. Esse contrassenso que se desdobra da questão atinente ao acesso à justiça, direito fundamental do indivíduo, em muito decorre do fato de que a democracia brasileira se apresenta como como uma fachada, posto que vivemos em “um Estado Pós-Democrático, que não tem qualquer compromisso com a concretização de direitos fundamentais” (CASARA, 2020, p. 37). É preciso ter cuidado para que não se perca de vez as bases principiológicas e garantias que tanto custaram à sociedade brasileira durante a luta pela formulação de uma Constituição Cidadã, avançada, humanizada e progressista. 24 O discurso sobre o alto custo da justiça, que justificaria a supressão ou restrição máxima do acesso gratuito ao Poder Judiciário, anda de mãos dadas com aqueles que defendem a extinção do Sistema Único de Saúde gratuito e universal, ou o pagamento de mensalidades em Universidades Públicas. Trata-se de discurso carregado de ideologia neoliberal que visa sufocar as garantias constitucionais e aniquilar qualquer possibilidade de desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente justa, solidária e democrática. Como bem observa Rubens Casara “no discurso neoliberal, o problema da liberdade se coloca e se resolve através do mercado, no reino da economia”. (CASARA, 2020, p. 40). Na mesma toada, Jessé Souza (2018, p. 264) alerta que os problemas da gestão eficaz dos recursos ou dos custos com os serviços do Estado é um problema comum a qualquer sociedade moderna, seja ela central ou periférica, por isso, é preciso cuidado para que não se dê uma ênfase deslocada, distorcida e exagerada acerca dos problemas práticos e políticos que assolam sociedades periféricas como a brasileira. (SOUZA, 2018, p. 264). Com efeito, diante de texto constitucional que apresenta a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, também o Poder Judiciário deve esforçar-se na busca pela efetivação dos princípios fundamentais de cidadania e de dignidade humana, a fim de garantir a concretização do direito fundamental de acesso à justiça proclamado na Carta Cidadã brasileira, e, assim, dar vida ao texto normativo. Nessa perspectiva, como bem pontuam Marschall e Bottomore (2021): Não obstante, em qualquer sistema de bem-estar social, deve haver problemas para que se chegue a um equilíbrio entre uma administração eficiente e a preocupação com o indivíduo como consumidor de serviços públicos, entre as restrições necessariamente impostas pelas políticas de bem-estar social e a liberdade do indivíduo. [...] Aqui, como alhures, certa mistura de esforço público e privado (este na forma de associações voluntárias, sendo elas próprias uma expressão da cidadania) pode ser valiosa, muito embora a fundação e a estrutura principal do sistema de bemestar social sejam constituídas essencialmente de serviços prestado pelo Estado. (MARSHALL; BOTTOMORE, 2021, p. 162). Na mesma linha, Karinne Emanoela Goettems dos Santos (2015), leciona que “a jurisdição civil, como espaço democrático de concretização do acesso à justiça em juízo, mostra-se como reflexo do exercício da cidadania, sendo o exercício da cidadania elemento fundante do Estado Democrático de Direito”. 25 Vale evocar a lição do Professor José Afonso da Silva quando afirma que para a efetivação da cidadania são necessárias providências do Estado, inclusive com a repartição de custos financeiros para a promoção dos direitos sociais. Veja-se: Essa cidadania é que requer providências estatais no sentido da satisfação de todos os direitos fundamentais em igualdade de condições. Se é certo que a promoção dos direitos sociais encontra, no plano das disponibilidades financeiras, notáveis limites, menos verdade não há de ser que, inclusive em épocas de recessão econômica, o princípio da igualdade continua sendo um imperativo constitucional, que obriga a repartir também os efeitos negativos de todo período de crise. (SILVA, 2007, p. 142). Assim, uma das formas para que o Estado Democrático de Direito consiga sair do campo meramente formal e comece a caminhar em direção a uma almejada efetividade, perpassa pelo fomento à cultura de absoluto respeito à Constituição, em especial, de devoção aos direitos e garantias fundamentais positivados em nossa Constituição, mas ainda pendentes de plena efetividade. Significa dizer que a Constituição e seus ditames devem sempre prevalecer sobre a “racionalização da atividade estatal”, além de integrar rol básico de conhecimento incutido nos saberes dos agentes de Estado no desempenho dos serviços públicos. (CASARA, 2020, p. 62). A todos que atuam junto às instituições judiciárias brasileiras e dependem da atuação do Estado-juiz, seja como defensores, advogados ou partes, é perceptível que para além dos conhecidos entraves relacionados à precarização material e estrutural das instituições de Estado, a dogmática processual continua a ser pautada pelo paradigma racionalista, porquanto, quando se trata do acesso gratuito à justiça, o que se vê é uma predileção exacerbada pela certeza e exatidão de fórmulas previamente estabelecidas, em detrimento, muitas vezes, da própria justiça. Embora seja consenso que o processo apresenta uma inexorável função social, muitas vezes esse cunho eminentemente social acaba relegado nos julgamentos em série que são praticados na atualidade, ou seja, ao caso concreto não é dado o real relevo como integrante de um contexto social, motivo pelo qual, muitas vezes transcendem reflexos negativos para toda a sociedade, os quais poderiam ser evitados, caso a atividade julgadora fosse exercida com a responsabilidade social exigida do julgador atual. Dessa forma, a garantia de concretização do direito fundamental de acesso à justiça exige dos órgãos jurisdicionais avaliações concretas e despidas de pré- 26 conceitos acerca da realidade histórico-social vivenciada pelas partes, isso porque, para agir com justiça e em sintonia com sua própria história, um sistema jurídico deve ser dinâmico, interpretativo, capaz de se atualizar e de superar paradigmas que se mostrem incondizentes com os ideais de justiça social. É necessário compromisso e responsabilidade com nossa própria história, sob pena de perpetuar-se a desigualdade estrutural que lança indivíduos na subcidadania. 2.3 A SUBCIDADANIA BRASILEIRA Efetivamente, os corpos empobrecidos que pululam por todos os cantos do país necessitam de tratamento no campo político. Pensar o Brasil a partir da pobreza imperante como ponto central é de imensa valia para os estudos jurídicos. A pobreza brasileira tem uma cartografia de classe e de raça obscenamente visível. Realmente, são os pobres que compõem, como trabalhadores assalariados ou de emprego precário, a massa que potencializa a produção da riqueza nacional, que se concentrada tradicionalmente na elite branca. São paradoxalmente força de trabalho necessária à acumulação e reprodução de capital global e excluídos do acesso às promessas modernas de cidadania plena. O pobre é imaginado pelo que lhe falta. Trata-se de corpo carente das necessidades humanas essenciais. Contudo, é preciso olhar o pobre no campo da política moderna. Torná-lo sujeito humanizado. De acordo com Negri e Hardt (2016, p. 11): “as estatísticas econômicas são capazes de captar a condição da pobreza em termos negativos, mas não as formas de vida, linguagem, movimentos ou capacidade de inovação por eles gerados”. Ou seja, há significativa dignidade humana e capacidade criativa no interior da vida social dos pobres que escapa completamente da imagem que as elites do capital e, também, da letrada, produzem e reproduzem do corpo imerso na subcidadania brasileira. O tratamento político aos corpos empobrecidos na longa duração do solo pátrio infere que o tema está complemente mergulhado nas estruturas econômicas e jurídicas. Afinal o capital e a lei são as forças primordiais do sistema capitalista. A ideia de que a lei funciona como uma estrutura transcendental é predominante na filosofia do direito moderno. Em essência, as estruturas jurídicas estão centradas na relação indivíduo/propriedade. Logo, o conceito de indivíduo não é definido pelo ser, mas pelo ter, ou seja, os sujeitos são proprietários de bens ou são sujeitados do amparo da lei. Também há as leis naturais da economia capitalista que funcionam como forma 27 impessoal de dominação de classe (HARDT; NEGRI, 2016, p. 21). Sem dúvida, são as leis econômicas que estruturam a vida social, tornando as hierarquias e a subordinação naturais e necessárias para o bom funcionamento da sociedade. A subcidadania, nesse contexto, aparece, opacamente, como parte da inabilidade de determinados indivíduos à vida competitiva do capital. Indubitavelmente, há relação entre capital e direito, o judiciário como parte do Estado moderno é máquina de produção e reprodução de poder dominante. Atrás do véu da neutralidade há uma estrutura paradoxal de poder que é ao mesmo tempo abstrata e concreta. São estruturas abstratas porque impõe-se relativamente indiferentes aos conflitos sociais e seus conteúdos, também são concretas porque a base estrutural da legislação que sustenta a acumulação de capital e a ampliação do poder da propriedade estão alicerçadas sobre a concretude da exploração do trabalho (HARDT; NEGRI, 2016, p. 37). A subcidadania é uma categoria abstrata no campo jurídico-político. O direito faz abstração do movimento real de emancipação dos indivíduos para a conquista da cidadania. Afinal, quando há na própria legislação que o salário tem uma base mínima na exploração do trabalho é o que basta para alicerçar a concretude do acesso à justiça gratuita. Em face disso, a base concreta para o julgamento acerca do acesso ao judiciário é, paradoxalmente, abstrata por demais, visto que a percepção da realidade socioeconômico dos indivíduos está distante da concretude das decisões dos burocratas da aplicação da lei. A fim de abrir o campo concreto da realidade socioeconômica brasileira convém consignar que, de acordo com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos (PNCBA), realizada mensalmente pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), por meio de levantamento contínuo dos preços de um conjunto de produtos alimentícios considerados essenciais, há como resultado para a competência fevereiro de 2022, um salário mínimo necessário de R$ 6.012,18, ao passo em que concretamente temos o valor nominal do salário mínimo corresponde a R$ 1.212,00. Ou seja, a base concreta que legalmente sustenta o salário mínimo, assegurado na Constituição Cidadã, infere uma abstração econômica. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o rendimento médio domiciliar per capita, em 2019, foi de R$ 1.406 para o total da população brasileira. As Regiões Sudeste (R$ 1.720) e Sul (R$ 1.701) apresentaram os rendimentos mais elevados, representando, aproximadamente, o dobro do rendimento domiciliar per capita das Regiões Norte (R$ 872) e Nordeste (R$ 884). 28 (IBGE, 2020, p. 57). Em 2019, 11,8% da população brasileira vivia com o valor de até 1/4 de salário mínimo per capita mensal e quase 30% com até 1/2 salário mínimo per capita. No Nordeste, quase metade da população tinha até esse último patamar de renda mensal. No outro extremo da distribuição, no Brasil, apenas 4,1% tinham rendimento per capita superior a 5 salários mínimos. (IBGE, 2020, p. 59). Importante consignar que a parcela da população que sobrevive com apenas a quarta parte de um salário mínimo, encontra-se na chamada linha da pobreza extrema, isto é, em 2020 o percentual de pessoas em situação de extrema pobreza correspondia a 11,8% da população brasileira. Ao mesmo tempo, 29,2% da população do país está na linha da pobreza, ou seja, percebem renda mensal de até meio salário mínimo. Nesse passo, de acordo com os indicadores sociais do ano de 2020, chegase ao seguinte resultado panorâmico para o Brasil: 41% da população brasileira encontra-se nas linhas da pobreza e da pobreza extrema. Cito Celi Scalon a fim de dimensionar o quadro da desigualdade brasileira: (...) É importante ressaltar que, num contexto de extrema desigualdade como o que temos no Brasil, até mesmo a cidadania, entendida aqui como participação, é desigualmente distribuída. Esta é uma conjuntura que coloca em xeque o conceito de “sociedade civil”, ou pelo menos o seu uso no singular. Cada vez mais os atores sociais são chamados à participação, porém as condições dessa participação são claramente definidas a partir das possibilidades e oportunidades de inserção na arena pública. E essas possibilidades e oportunidades não são, de fato, iguais. Devemos considerar que, quando os custos e as chances de participação são tão desiguais, em geral nos defrontamos com uma situação em que os incluídos aumentam suas vantagens relativas sobre os excluídos, se apropriando de forma mais efetiva dos benefícios gerados pela sociedade ou pelo Estado. Portanto, a dinâmica da relação entre Estado e sociedade, na qual se inscreve a prática das políticas públicas, é atravessada por desigualdades na distribuição de poder: seja ele político, econômico, social, intelectual ou simbólico. (SCALON, 2011, p. 51). Dessa forma, embora a cidadania seja valor elevado ao status de princípio fundamental pela Carta Cidadã de 1988, é relegada em detrimento de uma necessidade estridente de apego a determinadas fórmulas matemáticas préestabelecidas, estanques e invariáveis, que permanecem adstritas ao valor nominal da renda do indivíduo, o qual é analisado individualmente, como se nada e nem ninguém além dele fizesse parte de seu núcleo familiar. O resultado, em significativa parcela dos casos, é de injustiça e ampliação do estado de subcidadania. Apesar da grande pauperização e ínfima renda que predomina em nossa sociedade, fato estampado em centenas de estudos e pesquisas feitas pelos mais 29 renomados institutos de pesquisa brasileiros, parcela preponderante de julgadores e de órgãos judiciários se limitam a enfrentar o tema do acesso à justiça pelo viés da renda individual da parte que procura a tutela jurisdicional para garantir a proteção de seu direito ou o seu restabelecimento. Ou seja, há, por parte dos julgadores, o estabelecimento de critérios que abstraem o indivíduo concreto do amparo da lei que lhe confere à condição de cidadania. A desigualdade nas sociedades periféricas, como o caso brasileiro, é dramática. A importante história de Estado do Bem-estar social nos países centrais faz da questão fator de baixo impacto, mas na periferia do capitalismo tardio a vida precária é generalizada a fim de condenar à subcidadania parcela significativa da população do país. (SOUZA, 2018, p. 256). 30 3 ESBOÇO CRÍTICO DOS CRITÉRIOS DE ACESSO GRATUITO À JUSTIÇA O acesso à justiça como condição universal está imbricado ao contexto de lutas sociais modernas por emancipação incrementado no século XX e que passou por avanço importante após a Segunda Guerra Mundial. Com efeito, o contexto foi marcado por acontecimentos significativos que ampliaram a noção de Direitos Humanos e consubstanciaram projetos para o desenvolvimento de políticas a fim de assegurar o estabelecimento de sociedades mais igualitárias. É nesse momento que surge rapidamente o Estado do Bem-estar Social nos países avançados do capitalismo industrial e também a ideia de rompimento, por parte dos países periféricos, da condição de subdesenvolvimento. Foi uma era de desenvolvimento socioeconômico e de ampliação de direitos socias, o que sem dúvida impactou no aparato institucional e organizacional do direito, reverberando na demanda de acesso popular ou de massa ao judiciário. As lutas sociais conduzidas por diversos grupos em confrontação e litígios de toda ordem, trabalhadores, negros, mulheres, estudantes, intelectuais da pequena burguesia travaram combates por novos direitos sociais no campo da segurança social, habitação, educação, mobilidade urbana, meios ambiente e melhor qualidade de vida etc. Assim, a desigualdade social passou a ocupar novo significado no ordenamento da modernidade e a posição de centro das atenções e lutas políticas. A igualdade de direitos foi o que mobilizou a política progressista no pós-guerra, o que resultou, naturalmente, na eclosão da demanda ao acesso à justiça. Na década de 60 os tribunais apresentaram uma crise da administração da justiça, fruto da explosão de litígios de diversos grupos sociais, que demandavam por realização concreta da cidadania. De fato, o Estado do Bem-estar Social significou a expansão de direitos sociais e, também, a transformação da classe trabalhadora, sobretudo nos países centrais, em consumidores de massa (SANTOS, 2013, p. 202-203). Realmente, uma era de direitos, também, representou, como corolário, uma era de litígios. O contexto foi marcado por uma verdadeira explosão de litigiosidade que inflacionou a administração da justiça. Ademais, o excesso de demanda ao judiciário agravou-se nos anos 70 com a crise do capitalismo fruto das transformações tecnológicas derivadas da Terceira Revolução Industrial e da globalização que aumentou exponencialmente a concorrência internacional. A crise afetou diretamente o Estado do Bem-estar Social com a queda do poder fiscal e a consequente 31 impotência frente à necessidade de mais recursos para a área social. Logo adveio uma outra era do capitalismo, de forte recessão econômica e de progressão da política neoliberal. Diante desse quadro de dificuldades, de redução significativa de recursos financeiros do Estado e de decorrente esbatimento dos governos para cumprir compromissos socias, assistenciais e previdenciários, a administração da justiça incorpora a ética neoliberal a fim de justificar a nova lógica de acumulação de capital. Consoante Boaventura de Sousa Santos: Uma situação que dá pelo nome de crise financeira do Estado e que se foi manifestando nas mais diversas áreas da atividade estatal e que, por isso, se repercutiu também na incapacidade do Estado para expandir os serviços de administração da justiça de modo a criar uma oferta de justiça compatível com a procura entretanto verificada. Daqui resultou um fator adicional da crise da administração da justiça. (SANTOS, 2013, p. 204). Há uma lógica de exclusão ao acesso à justiça, que carrega importante historicidade. É imperativo compreendê-la para explicar o conjunto de decisões judiciais que excluem a justiça gratuita de percentual importante de indivíduos na busca de direitos. O ato de negação de gratuidade impõe indivíduos na condição de subcidadania. Trata-se de fenômeno complexo, isto é, um conjunto de fragilidades socias que tecidos conjuntamente revelam a fragilidade do Estado em assegurar cidadania ao acesso à justiça em tempos neoliberais. É possível assinalar três importantes fragilidades: a primeira, a dificuldade sociocultural no acesso ao capital jurídico, ou seja, capacidade de acessar a bons advogados, segunda fragilidade, a compreensão da importância da cultura de litigiar a fim de alcançar direitos sociais por meio do judiciário e, finalmente, a fragilidade socioeconômica que aparta a litigância pela impossibilidade de custear os valores do alto custo da administração judiciária. Dessas fragilidades, minha pesquisa monográfica focou no fluxo das decisões dominantes que no judiciário do Brasil meridional excluem litigantes por meio de interpretação cartesiana acerca das condições financeiras do sujeito para arcar com as custas judiciais. O indivíduo que solicita acesso à justiça gratuita é percebido, grosso modo, pela administração judiciária como uma mônada econômica, sujeito isolado completamente da vida socioafetiva e das responsabilidades econômicofamiliares. Além disso, a base de referência econômica é o salário mínimo do país na sua forma nominal, que quando comparado aos compromissos socioeconômicos postos na Constituição Cidadã representa uma mera abstração jurídica, visto que 32 muito distante do valor concreto para atender aos direitos sociais sublinhados no texto constitucional brasileiro de 1988. 3.1 OS PARAMETROS JURISDICIONAIS PARA O ACESSO GRATUITO À JUSTIÇA Segundo Cappelletti e Garth (1988, p. 8) o conceito de acesso à justiça tem como finalidade determinar a presença de sistema pelo qual os indivíduos podem reivindicar seus direitos e\ou resolver seus litígios sob à égide do Estado. Trata-se de sistema acessível a todos e que produz resultados que sejam individualmente e socialmente justos. Portanto, o conceito de acesso à justiça é pragmático, pois a premissa básica é a de acesso efetivo, isto é, com a garantia de julgamento que salvaguarde não somente o direito de entrada no tribunal, mas também o direito de julgamento que faça justiça. É nessa perspectiva que vamos avaliar os parâmetros jurisdicionais dos tribunais do Brasil Meridional para o acesso gratuito à justiça. A fim de tornar o presente estudo mais tangível e ilustrativo, faz-se necessário trazer à lume dados concretos sobre como as instituições judiciárias vêm decidindo o fenômeno de imponente complexidade referente ao acesso gratuito ao Poder Judiciário por insuficiência de recursos. Para tanto, foram analisadas volume importante de decisões judiciais, enunciados e conclusões oriundas do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que tem jurisdição nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Quanto ao corte temporal da pesquisa jurisprudencial, utilizou-se a vigência da Lei n. 13.105/2015, que estabelece o novo Código de Processo Civil. Assim, foram analisadas decisões proferidas a partir de março de 2016, quando entrou em vigor o novo Código de regramento ao acesso gratuito à justiça por insuficiência de recursos. Em substância, junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a corrente jurisprudencial majoritária estabelece um teto de cinco salários mínimos para que a parte possa estar em Juízo isento de ônus, ou seja, para que seja concedido o benefício da gratuidade da justiça. Por meio do enunciado n. 49, do Centro de Estudos da Corte de Justiça do Rio Grande do Sul, restou definido que “o benefício da gratuidade judiciária pode ser concedido, sem maiores perquirições, aos que tiverem renda mensal bruta comprovada de até (5) cinco salários mínimos nacionais”. (RIO GRANDE DO SUL, 2021). A justificativa do enunciado restou assim exposta: 33 Trata-se de releitura do Enunciado nº 02 da COORDENADORIA CÍVEL DOS JUÍZES DE PORTO ALEGRE, cuja redação original (que remonta o ano de 2002), foi modificada em 14.11.2011, passando a ter a dicção: “O benefício da gratuidade judiciária pode ser concedido, sem maiores perquirições, aos que tiverem renda mensal de até (5) cinco salários mínimos.” A ideia central assenta-se em preservar, dentro de uma abordagem dialética, o critério já consolidado (aferição da renda em salários-mínimos), mas com uma maior densificação do conteúdo do conceito jurídico indeterminado “renda mensal”, que passaria a ser “renda mensal bruta”. O espectro de incidência do Enunciado original (redação de 14/11/2011) atinge potenciais beneficiários com renda mensal (líquida ou bruta) de até R$ 4.400,00, considerando-se o valor do salário-mínimo nacional hodierno. Adotada a proposta de Enunciado supra, a abrangência da concessão sem maiores perquirições assumiria teto de R$ 3.231,48 líquidos, o que equivale a 3,44 salários-mínimos, o que parece, s.m.j., mais equânime aos parâmetros da justiça distributiva, assegurando a concessão do beneplácito àqueles que realmente dele necessitem. Outrossim, a proposta de Enunciado dialoga com a corrente jurisprudencial majoritária — hoje recepcionada pelo artigo 99, §§ 2º e 3º do CPC – quanto à natureza jurídica da declaração de insuficiência de recursos (presunção relativa), que admite controle jurisdicional ex officio, devendo a renda informada ser comprovada documentalmente pelo interessado. (RIO GRANDE DO SUL, 2021). Em linha semelhante, na busca pela parametrização do acesso gratuito à prestação jurisdicional, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região recentemente uniformizou o critério para concessão de assistência judiciária gratuita na 4ª Região. Por meio de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), instituto previsto no novo Código de Processo Civil, a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região definiu que “faz jus à gratuidade de justiça o litigante cujo rendimento mensal não ultrapasse o valor do maior benefício do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sendo suficiente, nessa hipótese, a presunção de veracidade da declaração de insuficiência de recursos”. (TRF4, 2022). O IRDR n. 5036075-37.2019.4.04.0000/PR, suscitado pelo Juízo substituto da 8ª Vara Federal de Curitiba, foi julgado na data de 30 de setembro de 2021 e teve seu Acórdão oficialmente publicado em 07 de janeiro de 2022, fixando a seguinte tese: A gratuidade da justiça deve ser concedida aos requerentes pessoas físicas cujos rendimentos mensais não ultrapassem o valor do maior benefício do Regime Geral de Previdência Social, sendo prescindível, nessa hipótese, qualquer comprovação adicional de insuficiência de recursos para bancar as despesas do processo, salvo se aos autos aportarem elementos que coloquem em dúvida a alegação de necessidade em face, por exemplo, de nível de vida aparentemente superior, patrimônio elevado ou condição familiar facilitada pela concorrência de rendas de terceiros. Acima desse patamar de rendimentos, a insuficiência não se presume, a concessão deve ser excepcional e dependerá, necessariamente, de prova, justificando-se apenas em face de circunstâncias muito pontuais relacionadas a especiais impedimentos financeiros permanentes do requerente, que não indiquem 34 incapacidade eletiva para as despesas processuais, devendo o magistrado dar preferência, ainda assim, ao parcelamento ou à concessão parcial apenas para determinado ato ou mediante redução percentual, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. (TRF4, 2022). A partir da leitura do IRDR em análise, constatou-se que houve voto divergente ainda mais restritivo ao acesso gratuito à Justiça Federal. O desembargador João Pedro Gebran Neto, embora vencido, defendeu em seu voto a aplicação das faixas da tabela progressiva do imposto de renda para fins de aferição da hipossuficiência de recursos, propondo a seguinte tese: A gratuidade da justiça deve ser concedida aos requerentes pessoas físicas cujos rendimentos mensais não ultrapassem o valor de isenção constante na tabela do imposto de renda, escalonando-se a concessão de modo que (a) faixa 1 do IR - gratuidade total de justiça; (b) faixa 2 do IR - 75% (setenta e cinco por cento) de isenção; (c) faixa 3 do IR - 50% (cinquenta por cento) de isenção; (d) faixa 4 do IR - 25% (vinte e cinco por cento) de isenção; (e) faixa 5 do IR - indeferimento de gratuidade da justiça, sendo prescindível, nessa hipótese, qualquer comprovação adicional de insuficiência de recursos para bancar as despesas do processo, ressalvada a possibilidade de elementos outros colocarem em dúvida a alegação de necessidade. Acima do patamar máximo constante na última faixa da tabela progressiva do imposto de renda, a insuficiência não se presume, cuja concessão deve ser excepcional e dependerá, necessariamente, de prova, justificando-se apenas em face de circunstâncias que demonstrem a incapacidade efetiva para as despesas processuais, sem olvidar a possibilidade [sic] de parcelamento ou à concessão parcial apenas para determinado ato ou mediante redução percentual. (TRF4, 2022). É de se notar, a partir da leitura do IRDR n. 5036075-37.2019.4.04.0000/PR, especialmente do voto divergente que restou vencido, que os órgãos jurisdicionais brasileiros são insensíveis diante da realidade socioeconômica brasileira, na medida em que buscam estabelecer barreiras severas ao acesso gratuito ao Poder Judiciário. A mera proposta de se utilizar a defasada e combatida tabela progressiva do imposto de renda, por si só, já demonstra o grau de abstração e de apatia que o Poder Judiciário mantém diante da trágica realidade social brasileira. Assim, os novos direitos sociais e econômicos conquistados e postos na Constituição Cidadã, amiúde, transformam-se em abstrações jurídicas sem qualquer conteúdo prático. Com efeito, os parâmetros para concessão de acesso gratuito à justiça estão sobre bases econômicas, por demais, abstratas. Conforme pondera Jessé Souza (2018, p. 266): “a mera inclusão no mercado, nos benefícios do Estado e a entrada com voz autônoma na esfera pública tornam os 35 setores antes marginais em incluídos privilegiados”. Em outras palavras, a partir de julgamentos proferidos pelos próprios Tribunais, o Judiciário brasileiro estabelece critérios que julga adequados para barrar a concessão da gratuidade de justiça aos indivíduos, em contraposição à realidade concreta de cada pessoa em seu nicho de classe, raça e gênero. O sujeito é sempre social. Existe no interior de um corpo social carregado de relações de poder, de afeto e de compromissos econômico-familiares. Objetivamente, esquecem que os direitos fundamentais, como é o caso de acesso à justiça, são resultado de lutas políticas no interior da sociedade brasileira, que nunca cessam seus combates e que há uma realidade social no qual cada indivíduo vivencia sua vida concreta. Portanto, a luta pelos direitos sociais e econômicos não cessa com a mera escritura da lei, pois o litígio desdobra-se nos tribunais. Nesse sentido, são oportunas as palavras de Rubens Casara: Não se pode esquecer que os direitos fundamentais, entendidos como os direitos de todos, não são dados da natureza (como defendem alguns metafísicos), mas uma construção a partir de lutas políticas. Por essa razão, por sua natureza provisória e dependente da democracia, os direitos fundamentais estão sempre ameaçados. A cada vez que um direito fundamental é violado ou relativizado, caminha-se um passo ao rumo do autoritarismo. O autoritarismo que se percebe no Estado Pós-Democrático é incompatível com o modelo do Estado Democrático de Direito. Com o desaparecimento dos limites ao exercício do poder, diante da relativização dos direitos fundamentais em nome da racionalidade neoliberal, não se está mais no marco do Estado Democrático de Direito. (CASARA, 2020, p. 65). No interior de sistema capitalista no qual a posse do capital é quem dá o tom das relações sociais, não há qualquer possibilidade de cidadania sem acesso às portas do Direito moderno, significa dizer que inexiste cidadania descolada do pleno acesso às instituições de justiça pelos indivíduos vazios de capital, que de alguma forma veem seu direito lesado. Assim, partir de uma realidade imaginada por uma determinada casta da sociedade – julgadores e Tribunais – que vivem equidistantes da realidade periférica brasileira, muitos indivíduos veem barrado seu direito ao acesso gratuito à justiça, pois, como será pormenorizado adiante, as decisões judiciais que negam o benefício da gratuidade da justiça, não consideram a realidade familiar do jurisdicionado, ou seja, abstraem de suas decisões o contexto familiar e o número de dependentes que formam o núcleo familiar do indivíduo que busca pela proteção judicial. Consoante Boaventura de Sousa Santos: 36 Estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fator econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. (SANTOS, 2013, p. 208). Afinal, quanto menor é a posição do indivíduo na estrutura de estratificação socioeconômica da sociedade moderna maior é a probabilidade de desconhecer seus próprios direitos e de possuir baixo capital cultural de informação quanto ao funcionamento da administração judiciária. Dessa forma, quando o corte socioeconômico do judiciário impõe-se sobre bases abstratas, não excluem da justiça gratuita, objetivamente, os indivíduos de renda autossuficiente, mas substancialmente, aqueles que estão a poucos centímetros da iminência de alcançar a plena cidadania, à medida que o corte em salário mínimo nominal, ou melhor, de valor abstrato e o tratamento do indivíduo como mônada econômico, isolado da realidade socialmente vivida, empurra os indivíduos para a massa da subcidadania nacional. Outrossim, no que pertine ao valor das custas processuais no Brasil, Boaventura de Sousa Santos adverte para o perfil especial que vivenciamos, uma vez que “no âmbito da justiça estadual, não só as custas variam muito de estado para estado, como não parece haver um critério racional que justifique essa disparidade”, dessa forma, “não é possível estabelecer comparação dos custos do acesso ao judiciário porque não existe padronização nos critérios de fixação das custas nos diferentes estados” (SANTOS, 2011, p. 55). Conforme observa a pesquisadora Karinne Emanoela Goettems dos Santos (2015, p. 658): “o paradigma racionalista não foi rompido, na medida em que remanesce a mecanização da prestação jurisdicional a partir de procedimentos que ignoram a análise da causa”, e pondera que “é notória a dificuldade da cultura jurídica brasileira quanto ao enfrentamento do caso concreto, assim como fica evidente a sua preferência pela abstração”. (SANTOS, p. 667). Nesse ponto, conforme os autores André Kabke Bainy, Lucas Gonçalves Conceição e Valdenir Cardoso Aragão (2014), a definição de critérios objetivos para a concessão do benefício da justiça gratuita, pelos próprios tribunais e magistrados, estaria “arraigada na exatidão do pensamento cartesiano, que não admite outras 37 respostas e consequências senão aquelas prévia e historicamente estabelecidas”. (BAINY; CONCEIÇÃO; ARAGÃO, 2014, p. 49). Do ponto de vista das Ciências Sociais, quando se pensa no que é o Direito, costuma-se percebê-lo como algo separado da sociedade e intimamente ligado ao Estado. Para referendar a questão cito Priscila Coutinho: Pensamos em papeis, processos, ritos, togas e burocracia, todos esses elementos traduzindo a autonomia da forma jurídica em relação ao mundo social. [...] Entendendo o Direito dessa forma, seus problemas são reduzidos a questões particulares aos seus mecanismos de regulação, tais como leis pouco rigorosas ou atrasadas, processo lento, ineficaz e suscetível à impunidade, e burocracia pouco modernizada. Essa é uma percepção reducionista porque não é capaz de tocar nos problemas estruturantes da Justiça do país. O Direito sem dúvida possui questões especificamente operacionais a serem resolvidas, mas os desafios fundamentais não estão ligados a isso. Ao contrário, eles vão além porque são próprios do tipo de sociedade que essa Justiça regula. (COUTINHO, 2020, p. 357-358). Todavia a questão do acesso à justiça e os entraves que se desenham e ganham força nas entranhas das instituições jurisdicionais brasileiras, têm seu cerne para muito além de questões meramente pragmáticas ou racionalistas. Há uma cultura ideológica neoliberal que produz e reproduz o direito no país e que se apoia na longa duração das desigualdades raciais e sociais do Brasil. Sem dúvida, a naturalização da desigualdade fortalece e sedimenta no judiciário a ética neoliberal totalmente insensível à realidade que faz da subcidadania uma condição dominante. 3.2 DA INSUFICIÊNCIA DE RECURSOS NAS DECISÕES DOMINANTES DOS TRIBUNAIS DO BRASIL MERIDIONAL Antes de mera quantificação, a insuficiência de recursos comporta um conceito. O sujeito insuficiente de recursos econômicos é um sujeito sujeitado por uma lógica econômica que excluí, ordinariamente, os corpos da cidadania. Portanto, há uma margem que aparta o corpo insuficiente de recursos econômicos dos demais corpos suficientes de recursos econômicos. Paradoxalmente, diante de uma administração judiciária que se identifica como cara, o valor no qual o judiciário lança as bases para inclusão/exclusão de acesso gratuito à justiça é completamente abstrato. Além de, objetivamente, transferir, abusivamente, o alto custo do valor da justiça àqueles que estão, de fato, necessitando da gratuidade para adentrarem nas prerrogativas da 38 cidadania plena, visto que a massa dos excluídos, trabalhadores de situação precária, sequer têm capital cultural para dirimir seus litígios por meio do judiciário. Em realidade, os parâmetros do judiciário são antes política de exclusão do máximo possível de brasileiros da cidadania do que justa inclusão à administração do judiciário das massas marginalizadas do país. O novo Código de Processo Civil, promulgado em 16 de março de 2015, trouxe em seu bojo robusta carga de constitucionalização e, conectado com os ditames constitucionais, renovou em seu art. 3º o direito fundamental de acesso à justiça assegurado pelo art. 5º, XXXV, da Constituição, ao dispor que “a lei não excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”. No que pertine ao acesso gratuito ao Poder Judiciário, estabeleceu em seu art. 98 como condição para acesso gratuito à tutela jurisdicional, que a parte postulante não disponha de recursos suficientes para custear os ônus do processo. Entretanto, apesar do notável avanço e carga constitucional que percorre o novo Diploma Processualista, há, por parte das instituições de justiça, certo grau de abnegação e, em muitos casos, de negação ao acesso gratuito ao sistema de justiça. Como já sinalado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul firmou tese no sentido de que somente fará jus ao benefício da gratuidade da justiça a parte que comprovar renda mensal bruta inferior ao patamar de cinco salários mínimos, nos termos do enunciado n. 49, do Centro de Estudos da Corte de Justiça. Referida parametrização, entretanto, encontra graves problemas e causa severa injustiça a grande parcela dos jurisdicionados. Exemplo disso pode ser extraído a partir do caso julgado no Agravo de Instrumento n. 5012595-67.2022.8.21.7000, datado de 14/07/2022. No caso em exame, o autor ajuizou ação de exoneração de alimentos em face da ex-esposa, tendo sido indeferido o pedido de gratuidade da justiça pelo Juízo de primeiro grau. Em sede de recurso junto ao Tribunal de Justiça, o agravante comprovou ter renda bruta mensal no valor de R$ 10.333,55, e renda líquida inferior a cinco salários mínimos, haja vista a existência de descontos em folha relativos a empréstimos consignados, imposto de renda, previdência e plano de saúde. Não bastassem todos os descontos incidentes sobre sua renda bruta, o postulante também comprovou a existência de elevados gastos mensais despendidos com seu filho diagnosticado com autismo, juntando laudo médico que comprova o estado de saúde do filho e dependente. 39 Entretanto, em completo deslocamento da realidade familiar do postulante, a Corte de Justiça negou provimento a seu recurso e manteve o indeferimento do benefício da gratuidade sob o argumento de que a renda bruta do postulante ultrapassa o parâmetro de cinco salários mínimos nacionais. O caso é apenas um, dentre centenas de decisões nestes exatos moldes. Completamente insensíveis ao contexto familiar dos jurisdicionados, juízes e Tribunais julgam a seu bel prazer, omitindo-se em fazer qualquer análise mais sensata e razoável acerca da realidade familiar de cada caso concreto. Ora, no exemplo em tela, ainda que o autor não tivesse comprovado todas as despesas compulsórias e extraordinárias que possui, a mera existência de um filho menor e sem renda própria já seria suficiente para dividir seus rendimentos por dois, a fim de chegar-se à renda familiar per capita, visto que a remuneração bruta do agravante não se destina apenas a si, mas por evidente é revertida em favor de todos os integrantes de seu grupo familiar. Ocorre que este caso é ainda mais preocupante e estarrecedor na medida em que o autor agravante logrou comprovar, por meio de laudo médico, que possui um filho diagnosticado com autismo, circunstância que evidentemente lhe gera gastos extraordinários. Todavia, os fatos concretos foram incapazes de trazer à razão instituições e julgadores alienados da realidade familiar e social que permeia cada caso sob julgamento. Efetivamente, para que os tribunais incorporem a lógica da cidadania inscrita no texto constitucional é necessária uma mudança fundamental no próprio conceito de justiça. As palavras de Cappelletti & Garth são seminais: No contexto de nossas cortes e procedimentos formais, a “justiça” tem significado essencialmente a aplicação das regras corretas de direito aos fatos verdadeiros do caso. Essa concepção de justiça era o padrão pelo qual os processos eram avaliados. A nova atitude em relação à justiça reflete o que o Professor Adolf Homburger chamou de “uma mudança radical na hierarquia de valores servida pelo processo civil”. A preocupação fundamental, cada vez mais, com a “justiça social”, isto é, com a busca de procedimentos que sejam conducentes à proteção dos direitos das pessoas comuns. Embora as implicações dessa mudança sejam dramáticas — por exemplo, com relação ao papel de quem julga — é bom enfatizar, desde logo, que os valores centrais do processo judiciário mais tradicional devem ser tidos, o “acesso à justiça” precisa englobar ambas as formas de processo. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 93). Em um segundo exemplo acerca da tentativa de impor barreiras ao acesso gratuito à Justiça, tem-se o caso deduzido no Agravo de Instrumento n. 5132617- 40 57.2022.8.21.7000, julgado pela 6ª Câmara Cível em 13/07/2022, no qual a parte agravante teve indeferido o benefício da gratuidade pelo Juízo singular, na fase de cumprimento de sentença, sob argumento de que na ação indenizatória que a parte ajuizara, seria liberado em seu favor alvará no valor superior a 60 mil reais, fato que, na convicção do julgador a quo, inviabilizaria eventual alegação de hipossuficiência. Ocorre que a parte postulante era empregada de um supermercado, na função de supervisora de operação de caixa, cuja renda mensal era inferior ao patamar de cinco salários mínimos. No caso em tela houve reforma da equivocada decisão de primeiro grau, mediante o argumento de que a postulante “apresentou documentos que comprovam a necessidade para concessão da AJG, não sendo justificativa suficiente o fato de que será agraciada de alvará judicial para o indeferimento do benefício”. No referido julgamento, citando Teresa Arruda Alvim Wambier, o Desembargador Relator Niwton Carpes da Silva, menciona que a gratuidade da justiça é um dos mecanismos de viabilização do acesso à justiça, razão pela qual não se pode exigir que, para ter acesso à justiça, o indivíduo tenha que comprometer significativamente a sua renda, ou tenha que se desfazer de seus bens, liquidando-os para angariar recursos e custear o processo. Por fim, ao reformar a decisão de primeiro grau, o Relator salienta que o raciocínio do julgador a quo foi inverso do desejado e previsto na lei, onde a presunção é a necessidade do benefício. Em linhas gerais, a partir da leitura de decisões proferidas pela Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, todas de relatoria do Desembargador Niwton Carpes da Silva, constata-se que esta é a única Câmara recursal Cível que demonstra disposição para enfrentar individualmente os casos em análise, inclusive considerando a renda líquida da parte postulante, ao invés da renda bruta, comumente utilizada pelas demais Câmaras. Como exemplo da utilização do conceito de renda líquida, vem o decidido no julgamento do Agravo de Instrumento n. 5116893-13.2022.8.21.7000, datado de 28/06/2022, que, a partir da análise dos documentos juntados pela agravante, verificou que esta auferia como renda líquida importância inferior a 05 salários mínimos, de forma que se enquadraria nas hipóteses de concessão do benefício, pois evidente que teria dificuldades de pagar as custas caso mantida a revogação. Com efeito, a análise do acesso à justiça a partir da renda do litigante é procedimento que exige acuidade da administração judiciária com a presença de uma equipe multidisciplinar com experiência em desigualdade social, pois condição de insuficiência compõe uma realidade universal na modernidade 41 capitalista, sobretudo, nos países periféricos como o Brasil. Nesse sentido, convém citar Boaventura de Sousa Santos: As populações mais pobres, por sua vez, veem amplificadas as consequências das desigualdades nos índices de desenvolvimento. Os países com menor desenvolvimento humano tendem a ter maior desigualdade e, por conseguinte, maiores perdas no desenvolvimento humano. A frequência da mortalidade infantil é maior nas famílias pobres em todas as regiões do mundo. Variáveis como a etnia, a localização, o gênero, entre outras, são, por seu turno, decisivas para o maior ou o menor acesso a oportunidades de desenvolvimento. As famílias rurais e as famílias com baixa escolaridade apresentam sistematicamente tendências negativas de desenvolvimento no que toca não só à educação, mas também à esperança de vida e aos níveis de rendimento. (SANTOS, 2011, p. 17). Em suma, a existência de sistema de acesso à justiça, diante do quadro de fluxo das decisões judiciais avaliadas, deve servir os indivíduos a partir do amparo dos direitos sociais e econômicos preconizados pela carta constitucional soprada pelos ventos da redemocratização do país. A Constituição Cidadã deve, por meio do judiciário, trabalhar ordinariamente a premissa maior da cidadania que cobre da cabeça aos pés o texto constitucional. Assim, urge acesso gratuito e/ou de baixo custo aos requerentes a partir de critérios de avaliação de renda condizente com a realidade socioeconômica vivenciada, também, deve ser uma justiça rápida e inclusiva à cultura popular e, fundamentalmente, uma administração judiciária que tenha sensibilidade nas decisões a fim de julgar com justiça social. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9394). 42 4 O ACESSO À JUSTIÇA SOB A PERSPECTIVA DO BEM COMUM Quando nos referimos ao acesso à justiça é pertinente iniciar pelo seu contrário, ou seja, a percepção de que há estrondosa injustiça ao acesso aos tribunais, sobretudo, nos países da periferia do capitalismo globalizante. No interior dos sistemas sociais, para a percepção da injustiça é necessária uma acuidade de sentidos maior, exatamente porque sobre ela há um imenso véu ideológico que naturaliza o olhar frente à obscenidade da desigualdade. Nessa perspectiva, é que orientamos nosso foco de pesquisa para tornar a realidade da exclusão menos opaca com o objetivo de problematizar o acesso à justiça sob a cartografia do bem comum. O conceito de bem comum, segui aqui de início, a construção filosófica de Michael Sandel que enfatiza, de margem oposta à linguagem econômica neoliberal, que a ideia de bem comum não é simplesmente uma soma de preferências e interesses da multidão de consumidores, visto que remete ao ideal de elevar e melhorar as condições de vida de todos no interior da sociedade. Para uma vida digna e próspera é necessário deliberar democraticamente os meios para construir, ordinariamente, uma sociedade justa e de virtudes cívicas. (SANDEL, 2021, p. 296). Contudo, as últimas quatro décadas de neoliberalismo e a intensa globalização do mercado resultaram em esbatimento dos laços de fraternidade e solidariedade e, objetivamente, na explosão das desigualdades de toda ordem. A premissa ideológica de percepção da democracia como multidão de consumidores resulta da adesão ao mundo em que a sentença “não olhe para cima” domina o imaginário social e corrobora a existência de modo de vida isolados de ethos hiperindividualista. Trata-se de visão social utilitarista que impede a sociedade de imaginar um futuro melhor para todos, que há um universo de novos mundos quando olhamos para a infinitude do céu. Como afirma Michael Sandel (2021, p. 325): “a democracia não pode ser indiferente ao caráter da vida em comum”. Com efeito, a democracia exige um espaço cívico para o encontro das diferenças sociais e identitárias. E é por meio do encontro comunitário que fomentamos sensibilidade para a bem-estar comum. Em substância, pensar o acesso à justiça sob a perspectiva do bem comum é, antes de tudo, deslocar o eixo da percepção cidadã da abstração econômica para a realidade política que incluí/excluí indivíduos dos tribunais por meio de lógica cartesiana e ideologia neoliberal. 43 Trata-se de elaboração de proposições no território de uma nova política judiciária, aqui sigo as veredas de Boaventura de Sousa Santos, que imagina uma nova administração da justiça como resultado de democratização do direito e da própria sociedade. O acesso à justiça sob a perspectiva do bem comum é a facticidade da realidade neoliberal, que atomiza os indivíduos em valores egoístas, subtraindo os valores fundamentais para o estabelecimento do acesso aos tribunais para todos. Em síntese, o esforço político exige a democratização da administração da justiça como dimensão fundamental da democratização da vida social, econômica e política, o que corresponde, efetivamente, participação ativa dos cidadãos na própria administração da justiça, por meio individual e/ou coletivo. Também, é preciso criar um Serviço Nacional de Justiça, com a efetiva participação da sociedade civil organizada, que deve eliminar todos os obstáculos socioeconômicos de acesso à justiça. (SANTOS, 2013, p. 218). As instituições têm papel importante no mundo moderno, de forma que o estabelecimento de política de acesso universal ao judiciário passa, objetivamente, pela democratização do Estado a fim de assegurar os direitos sociais e econômicos por meio do peso da ordem democrática. Para Amartya Sen (2011, p. 408): “A liberdade democrática pode certamente ser usada para promover a justiça social e favorecer uma política melhor e mais justa. O processo, entretanto, não é automático e exige um ativismo por parte dos cidadãos politicamente engajados”. Afinal, a pressão popular sobre as instituições burocráticas nas democracias são fundamentais para a democratização da sociedade como um todo. 4.1 ESCAVANDO O BEM COMUM NA SUPERFÍCIE NEOLIBERAL A potência de que a lei é igual para todos, a igualdade de todos diante da lei impõe-se no conjunto da ordem política liberal desde as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. As repúblicas modernas nasceram sobre a égide da igualdade universal perante a lei. A lei funciona como uma estrutura transcendental. Nessa república de igualdade jurídica a percepção socioeconômica também está amarrada na igualdade de posse de propriedade privada. Enfim, todos são iguais perante a lei e todos são iguais pela configuração de posse de propriedade. A propriedade atua como ideia reguladora do Estado constitucional. Trata-se de uma república de iguais e proprietários. A ideia de igualdade e propriedade é a forma constitutiva da ordem moral moderna. (HARDT; NEGRI, 2016, p.21). As instituições da modernidade são 44 representativas do paradigma que carrega no seu interior antes promessas de emancipação social do que efetiva república de iguais, pois sabemos que no mundo moderno a desigualdade e a injustiça é o que compõe, grosso modo, a paisagem da vida social. A república da propriedade surgiu como conceito dominante no contexto das revoluções liberais. O rumo tomado pelas três revoluções burguesas – a inglesa, a americana e a francesa – sublinha a consolidação da república dos proprietários. Com efeito, o estabelecimento da ordem constitucional e do Estado de direito baseado na propriedade serviu para bloquear, no interior do processo revolucionário, movimentos sociais e políticos sustentado no conceito de bem comum. Isto é, a multidão de pobres foi derrotada pelos cidadãos de posse, que conseguiram afirmar a república da propriedade. (HARDT; NEGRI, 2016, p. 24). É o que explica o sucesso do Estado moderno para com as garantias de direito à propriedade privada e o total emperramento no cumprimento dos direitos humanos e do meio ambiente. De fato, nossa república é antes de tudo de proprietários. A estrutura soberana do Estado atua diuturnamente para assegurar a propriedade como direito inalienável. Nesse sentido, convém aqui citar Michael Hardt e Antonio Negri: O poder constituinte não é tirado do direito público constituído, mas bloqueado (e expulso das práticas da cidadania) pelas relações de força sobre as quais se baseia a Constituição, sobretudo o direito de propriedade. Por trás de cada constituição formal, explicam os teóricos jurídicos, encontrase uma constituição “material”, sendo constituição material entendida como as relações de força que alicerçam, em determinada estrutura, a constituição escrita e definem as orientações e limites que devem ser observados pela legislação, a interpretação jurídica e as decisões executivas. (...) “A Constituição” escreve Charles Beard em sua clássica análise: “foi essencialmente um documento econômico baseado no conceito de que os direitos privados fundamentais de propriedade são anteriores ao governo e estão moralmente além do alcance das maiorias populares”. (HARDT; NEGRI, 2016, p. 24-25). Desse modo, é perceptível que as constituições modernas, centradas no direito de propriedade, carregam forte obstáculo para o desenvolvimento prático do poder emancipatório do qual a multidão aguarda a realização já na longa duração. Em essência, as revoluções liberais burguesas transformaram o Homo politicus em Homo proprietarius. O ponto nevrálgico que aparta a multidão do acesso à justiça na perspectiva do bem comum está na república da propriedade, ou seja, quando a política comunitária passa para segunda ordem em nome do poder econômico. O que 45 persiste, senão a desigualdade? As palavras de Michael Hardt e Antonio Negri (2016, p. 26) são esclarecedoras: “a igualdade torna-se cada vez mais formal, cada vez mais definida como uma estrutura legal que protege a riqueza e reforça o poder apropriativo (...)”. Sobretudo hoje, na república neoliberal que impõe a política da privatização total da vida social a fim de manter a tal saúde econômica, que na prática significa socializar danos e privatizar ganhos. Tem-se demonstrado impossível uma administração judiciária na modernidade, inclinadamente, voltada à justiça social. É por isso que o problema de acesso universal à justiça ainda compõe uma das muitas promessas da modernidade que aguarda sua realização. Há um modo de produção do bem comum, que emerge da multidão, ou melhor, do espírito comunitário. Os laços dos quais ergue-se a economia capitalista são das forças vivas dos indivíduos produzindo em comum. De fato, o trabalho, independentemente, do reino da hiperindividualidade é comum e de forte campo de solidariedade. No entanto, a acumulação da riqueza é, fundamentalmente no neoliberalismo, concentrada individualmente entre os senhores do capital. A república da propriedade é uma república dos proprietários do capital. Portanto, se a produção das mercadorias é comum, porque não há outra forma de existir no mundo social, qual é a razão para que a totalidade da vida social também não o seja? Em outras palavras, é necessário estender o bem comum do espaço de produção social ao governo da sociedade, ou melhor, trazer a política comunitária – bem comum – para o interior das instituições modernas, sobretudo adentrar às portas do judiciário, última fortaleza de expectativa de cumprimento das promessas modernas de emancipação e cidadania. Para tornar enfatizar a importância do comum como bem social convém citar Michael Hardt e Antonio Negri: Isto talvez possa ser mais facilmente entendido em termos do exemplo da comunicação como produção: só podemos nos comunicar com base em linguagens, símbolos, ideias e relações que compartilhamos, e por sua vez os resultados de nossa comunicação constituem novas imagens, símbolos, ideias e relações comuns. Hoje essa relação dual entre a produção e o comum – o comum é produzido e também é produtivo – é a chave para entender toda atividade social e econômica. (HARDT; NEGRI, 2014, p. 256257). Paradoxalmente, vivemos uma vida em comum enquanto forças vivas, malgrado estamos distantes do bem comum, de uma sociedade livre e democrática, pois a riqueza produzida socialmente concentra-se nas mãos de poucos. A tradição 46 moderna está alicerçada na esperança de um novo mundo, sustentado pela liberdade e igualdade universal, mas a realidade, hoje neoliberal, tem sido de crescente aumento da desigualdade que põe em risco a democracia política. Nas primeiras palavras da Declaração da Independência americana de 1776 já encontramos o direito igual de todos à busca da felicidade, o que pressupõe a promessa de uma sociedade de indivíduos autossuficientes. O homem feliz na modernidade, utilizando da imaginação política, deve ter acesso à justiça. No contexto revolucionário francês de 1789, o artigo primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão anuncia: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” e traz logo em seguida a seguinte explicação: “As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.” Ou seja, além da igualdade absoluta é possível encontrar a distinção social fundamentada na utilidade comum. É o que configura a tensão que há por trás das abordagens acerca dos direitos universais. (PIKETTY, 2014, p. 467). Em suma, se há o direito universal de busca da felicidade, as distinções sociais não podem produzir qualquer desigualdade que provoque infelicidade aos indivíduos. Assim, a lógica que consta nas promessas modernas está alicerçada no avanço de direitos, poderíamos aqui incluir o de acesso universal à justiça? Thomas Piketty nos auxilia na resposta: A segunda frase do primeiro artigo da Declaração dos Direitos de 1789 tem o mérito de fornecer uma resposta possível a essa pergunta, pois reverte de alguma maneira o ônus da prova: a igualdade é a norma, a desigualdade é apenas aceitável se for fundamentada sobre a “utilidade comum”. Falta ainda definir esse termo. Os redatores da época visavam, antes de tudo, a abolir as ordens e os privilégios do Antigo Regime, que apareciam como o exemplo máximo da desigualdade arbitrária, ou seja, sem contribuição para a “utilidade comum”. Contudo, podemos escolher aplicá-lo de maneira mais ampla. Uma interpretação razoável é que as desigualdades sociais só são aceitáveis se forem do interesse de todos e, especialmente, se forem do interesse dos grupos sociais menos privilegiados. É necessário então estender os direitos fundamentais e as vantagens materiais ao máximo de pessoas possível, sobretudo se for do interesse daqueles que têm menos direitos e que enfrentam oportunidades de vida mais restritas. (PIKETTY, 2014, p. 467). Em substância, o direito moderno é o terreno privilegiado para identificar e estabelecer o controle sobre o comum. O sentido do bem comum nasce de produção comunitária, há nessa produção ruptura, seminal, com o hiperindividualismo que transforma os indivíduos em mônada econômica. Visto que o comum tende a deslocar as divisões tradicionais entre indivíduo e sociedade, entre subjetivo e objetivo e, também, as divisões entre privado e público. Contudo, é pertinente subtrair do conceito de bem comum qualquer quebra de direitos de singularidade. (HARDT; 47 NEGRI, 2014, p. 263). O comum não pode abrir espaço para o autoritarismo de governos ou da opinião pública conservadora contra as liberdades individuais, isto é, direito das minorias de existência na liberdade e igualdade. O bem comum em tempos neoliberais corresponde à ampliação da democracia e a multidão deve resistir ao avanço da privatização do público em benefício da acumulação abstrata de capital. A privatização do público – como parte das políticas neoliberais – além da transferência das empresas estatais para o mando privado, desdobra para a sociedade a precarização de serviços e do trabalho. O bem comum é uma construção que somente encontra êxito no território da democracia. O direito avançou e avança na modernidade nos momentos de ampla participação política. A justiça demanda do debate público, da ajuda da argumentação pública que estabelece uma íntima conexão com a democracia. A compreensão conceitual da democracia é frequentemente posta no estreito campo de práticas de liberdade de associação política e ao sufrágio universal, todavia é o direito e a administração judiciária que viabilizam a vida democrática. (SEN, 2011, p. 380-381). Em breve aforismo: sem um judiciário de garantias de Estado de direito não há território para a realização do conceito de democracia participativa. Para Michael Hardt e Antonio Negri (2018, p. 8):” uma democracia da multidão só é imaginável e possível porque todos compartilhamos do comum e dele participamos”. Ou seja, o campo político democrático é o de compartilhamento, de espírito comunitário e é nessas condições que podemos produzir o debate público. O comum é a dádiva da natureza que compartilhamos como necessidade vital, o que na tradição política era considerado a herança da humanidade que deve ser compartilhada em comum a fim de garantir a existência humana. Também é comum, o que a sociedade produz para a existência da comunidade, ou melhor, a produção social, as forças vivas que cobrem a terra de riqueza. É comum o conhecimento, as imagens, os códigos, a informação, os afetos e outros frutos do trabalho social (HARDT; NEGRI, 2018, p. 8). Sem interação social não há possibilidade de produção, pois trabalho é interação. Malgrado, a era neoliberal, com seus aparelhos ideológicos, lança um enorme véu sobre a realização do comum, o que dificulta a percepção da importância da interação social para a produção social. Ademais impõe a privatização do comum e do público como panaceia para os males produzidos pelo próprio capital globalizado. Consoante Michael Hardt e Antonio Negri: 48 As políticas neoliberais de governo em todo o mundo têm buscado nas últimas décadas privatizar o comum, transformando os produtos culturais – por exemplo, a informação, as ideias e até as espécies de animais e plantas – em propriedade privada. Sustentamos, fazendo coro a muitos outros, que é necessário resistir a essas privatizações. (HARDT; NEGRI, 2016, p. 8). O ato de escavar o bem comum sob o manto da superfície neoliberal é imperativo para abrir caminho à desconstrução do direito formal que resulta em administração da justiça deslocada do conceito profundo de democracia como prática de justiça. Essencialmente, a promessa moderna de democracia é a república dos direitos sociais. O trabalho arqueológico é o de retirar camada por camada de terra com o objetivo de encontrar a substância – o bem comum – que revela a vida social que se encontrava soterrada. O discurso do bem comum é o que sustenta as instituições modernas. As instituições arregimentam narrativas procurando demonstrar que são emanadas pelo interesse público. Não obstante, vivemos ordinariamente numa sociedade capitalista que se inclina à abstração da realidade social que é comum. A abstração do real é essencial ao processo de reprodução do capital, a transformação das forças vivas em trabalho morto torna opaca a substância comum partilhada por todos na existência cotidiana. Logo, as instituições comportamse antes como aparelhos ideológicos do Estado do que agentes da realização dos direitos sociais e econômicos da sociedade. O discurso do bem comum, do interesse público produzido pelas instituições pairam no céu das esperanças modernas, ou seja, não brotam na terra concreta da democracia popular. 4.2 ACESSO À JUSTIÇA COMO BEM COMUM O acesso à justiça é um bem comum, pois a estrutura de administração da justiça compõe parte do Estado moderno e configura-se como instância pública para resolver litígios diversos. No entanto, a ideia de acesso à justiça como bem comum não corresponde a argumento tautológico. Exatamente, porque a ideia do comum, do comunitário, ou melhor, a ideia de democratização do judiciário ainda está distante da realidade contemporânea. A questão do acesso à justiça como bem comum é posta além da mera ocupação espacial do judiciário, visto que tem a ver com a capacitação das partes em função das posições estruturais que ocupam e com o incremento da acuidade do comum diante da obscena desigualdade que impõe à seres humanos a condição de subcidadania. De fato, o acesso à justiça como bem comum faz uma 49 ligação entre a condição socioeconômica e a posição à necessidade de assegurar direitos de cidadania ao litigante diante de grupos econômicos poderosos, ou seja, julga contabilizando o bem comum, o interesse de todos, principalmente os que demandam por cidadania. Para Boaventura de Sousa Santos (2013, p. 222), as proposições de reformas na administração da justiça, para serem significativas, devem procurar democratizar a si própria. Isto é, a reforma da organização judiciária deve contribuir com a democratização da justiça a partir de uma mudança que produza a democratização interna do próprio judiciário. Além disso, é fundamental transformar a própria subjetividade dos magistrados e funcionários da administração judiciária. Para tal é pertinente uma nova geração de juízes e magistrados com conhecimentos interdisciplinares na área das humanidades (saberes econômicos, sociológicos, políticos e outros), a fim de conhecer profundamente a realidade social e a própria administração da justiça. Cito aqui o autor: É necessário aceitar os riscos de uma magistratura culturalmente esclarecida. Por um lado, ela reivindicará o aumento de poderes decisórios, mas isso, como se viu, vai no sentido de muitas propostas e não apresenta perigos de maior se houver um adequado sistema de recursos. Por outro lado, ela tenderá a subordinar a coesão corporativa à lealdade a ideais sociais e políticos disponíveis na sociedade. Daqui resultará uma certa fratura ideológica que pode ter repercussões organizativas. Tal não deve ser visto como patológico, mas sim como fisiológico. Essas fraturas e os conflitos a que elas derem lugar serão à verdadeira alavanca do processo de democratização da justiça. (SANTOS, 2013, p. 222). Ademais, para o acesso à justiça como bem comum é necessário reelaborar o conceito de público e de privado. Convém superar a concepção dominante de inclinação liberal que entende o privado como interesse individual possessivo por propriedade, que congrega todas as posses individuais, tanto subjetivas como materiais. E compreende o público como negatividade, de controle do Estado ineficiente e que deve ser imediatamente privatizado. É imperativo imaginar uma nova percepção dos conceitos de público e privado, uma concepção de privacidade que expresse a singularidade das subjetividades sociais (descolada da ideia de propriedade privada) e uma concepção do público sustentada pela ideia do comum (diferente do Estatal). Trata-se de uma nova teoria jurídica, que assegure o avanço do bem comum sobre as injustiças contemporâneas. De acordo com Michael Hardt e Antonio Negri: 50 O exemplo que conhecemos de teoria jurídica contemporânea baseada na singularidade e na partilha é a escola da “teoria dos pós-sistemas”, que articula o sistema jurídico, em terminologia altamente técnica, como uma rede auto-organizada, transparente e democrática de subsistemas plurais, cada um dos quais organiza as normas de numerosos regimes privados (ou, na realidade, singulares). Temos aqui uma concepção molecular do direito e da produção de normas que é baseada, em nossos termos, numa interação constante, livre e aberta entre singularidades, que através de sua comunicação recíproca produz normas comuns. (HARDT; NEGRI, 2014, p. 265). A noção de direitos de singularidade é expressão ética produzida pelo comum, e é a comunicação social que resulta no comum. Trata-se de uma noção do direito baseada no comum, ou seja, uma concepção comunitária de direitos, que é voltado à comunidade. O conceito de comunidade difere da tradição, visto que não representa uma unidade moral, baseia-se na comunicação entre singularidades e se manifesta a partir de processos sociais colaborativos da produção. Diferentemente do hiperindividualismo contemporâneo, que dissolve o individual na massa de proprietários e consumidores, as singularidades não estão tolhidas de liberdade, estão amparadas livremente no comum. Isto significa que a decisão de determinar os direitos legais é tomada no processo de comunicação intersubjetiva na colaboração entre singularidades. (HARDT; NEGRI, 2014, p. 266). A ideia de comum se configura em bem comunitário, como construção política que possibilita a democratização das instituições modernas a fim de deslocar as promessas de igualdade e liberdade da modernidade do céu e plantá-las na terra fértil do bem comum para a garantia de frutos democráticos. No mesmo diapasão da Constituição Cidadã e conectado com os fundamentos e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o Novo Código de Processo Civil de 2015, traz em seu bojo a expressa previsão de que a aplicação do ordenamento jurídico deve atender aos fins sociais e às exigências do bem comum. Na exata dicção do art. 8º, do Diploma Processualista está contida a baliza que deve nortear a atuação judicial, segundo a qual “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. (BRASIL, 2015). Isto é, a ideia de aplicação do ordenamento jurídico a partir dos fins sociais e do bem comum está posta no Código Civil. No entanto, quando avaliamos o funcionamento 51 pragmático da administração judiciária brasileira há um enorme hiato que separa a burocracia judiciária e o próprio ordenamento legal, o qual impõe seguir. Em substância, a presença de artigo regulando os procedimentos judiciários pouco altera a paisagem autoritária dos tribunais. Em poucas palavras, o acesso à justiça sem a existência de uma reforma estrutural na administração da justiça voltada ao bem comum torna a boa lei no máximo em uma expectativa futura. A administração judiciária que pretenda ser efetivamente democrática, deve estar em consonância com a ideia de justiça social e o bem comum. O processo e as decisões que dela exsurgem devem se pautar pelos objetivos de justiça ao caso posto, em sintonia com o plano social que permeia a realidade dos sujeitos envolvidos no litígio, para que a função jurisdicional possa desenvolver-se em sintonia com a carga principiológica contida na Constituição Cidadã, porquanto, como afirma Cândido Dinamarco: “o processo é acima de tudo um instrumento político, de muita conotação ética, e o juiz precisa estar consciente disso” (DINAMARCO, 2009, p. 348). A consciência do juízo, quando imaginamos a aplicação do bem comum, deve conter como substância saberes humanistas e acuidade de sentido para com à realidade das singularidades sociais, amiúde, excluídas da cidadania brasileira. Em breve aforismo: temos a Constituição Cidadã, nos falta a cidadania com base no bem comum. De forma que para que se consiga alcançar uma solução capaz de satisfazer o espírito de justiça, o julgador precisa estar conectado à realidade social de seu tempo, bem como aos fatores históricos que permeiam sociedades periféricas como a brasileira, cuja formação e desenvolvimento advém de matriz escravocrata. Nessa perspectiva, cabe ao juiz, assim como a todo intérprete da lei, “postar-se como canal de comunicação entre a carga axiológica atual da sociedade em que vive e os textos, de modo que estes fiquem iluminados pelos valores reconhecidos e assim possa transparecer a realidade da norma” (DINAMARCO, 2009, p. 347-348). Em suma, aqui é importante deixar evidente que tal propósito não corresponde a qualquer insubordinação ideológica à administração da justiça, mas de hermenêutica jurídica do funcionamento do judiciário nacional diante da realidade obscena da presença de subcidadania no país, para tornar realidade as promessas revolucionárias escritas na ordem do direito da modernidade. Trata-se de democratização das instituições a fim de transformar o texto constitucional de 1988 em realidade política e social. Nesse sentido, é ético partir da premissa de que o acesso à justiça como bem comum parte da leitura de que as singularidades 52 contemporâneas cooperam e expressam seu controle sobre o comum, e é necessário identificar essa expressão em termos jurídicos, para de fato corrigir injustiças e transferir milhões de brasileiros para o status de cidadania plena. 53 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para apresentar minhas considerações finais torna-se pertinente refazer as veredas da escrita percorrida na monografia – Do Acesso à Justiça Sob a Perspectiva do Bem Comum – a fim de contextualizar a questão e problematizar o tema. Também, faz-se necessário fechar aqui as veredas abertas e abrir caminhos para o desenvolvimento de novos horizontes de pesquisa, pois o tema é importante e exige aprofundamento das questões e problemas apresentados. Na monografia há o esboço de questão do acesso à justiça a partir da normativa de quais indivíduos fazem jus à gratuidade e a partir dessa realidade elaboramos uma leitura histórico-social do contexto da exclusão e da subcidadania brasileira. A teorização e problematização da questão se constituiu por meio do conceito de comum como um bem comunitário e democrático, além do desenvolvimento do próprio conceito a partir de trabalho arqueológico para tornar visível, diante dos regimes neoliberais de agenciamento afetivo e político, a relevância do bem comum para o acesso universal à justiça. A contextualização histórico-social brasileira quanto ao acesso à justiça evidencia a presença de processo de construção de cidadania tardia. A cidadania apresentou seus primeiros passos consistentes no país recentemente, foi com a Carta Magna de 1988, a primeira constituição qualificada como “Constituição Cidadã”. Foi obra das lutas sociais e políticas travadas a partir da abertura do regime autoritário projetado e executado pelos militares desde 1964. A Constituição Federal de 1988 transformou a cidadania na premissa maior do texto constitucional. Entretanto, o Brasil ainda marca distância significativa da legislação avançada e progressista. As desigualdades imperam no território nacional e as instituições demonstram baixa acuidade de sentido para com os excluídos, além disso há nas estruturas burocráticas importante resíduo autoritário, que marca nossa longa tradição política de violência simbólica e física contra os pobres, negros, indígenas, homossexuais e todas as minorias. Enfim, no Brasil as singularidades socialmente excluídas são subtraídas das prerrogativas do bem comum, da cidadania e da democracia em seu conceito emancipatório. É na paisagem dominante de subcidadania, onde as singularidades são violentadas em seus direitos constitucionais, que se faz premente o acesso à justiça como bem comum. A pesquisa monográfica concentrou-se na leitura do fluxo das decisões dominantes que no judiciário do Brasil meridional excluem litigantes por meio de 54 compreensão cartesiana das condições financeiras do indivíduo para suportar o peso das custas judiciais. A questão posta na pesquisa vai além dos critérios do corte de acesso à justiça elaborado nos tribunais, que são postos sobre bases abstratas de salário mínimo nominal, distante do que prescreve a Carta Cidadã e, também, na própria abstração do sujeito, visto como corpo isolado das relações intersubjetivas, das singularidades sociais, dos afetos e responsabilidades familiares. O acesso à justiça para a massa dos excluídos já é uma ficção, porque é necessário cultura de direitos e de advogados experientes para litigar, e para àqueles que estão no limite da margem de cidadania os critérios são injustos, por ser abstraída a complexidade socioeconômica do litigante. Trata-se de ampliação do conceito de acesso à justiça como bem-estar comum, isto é, como bem público, de mesma importância que a água, o ar, a terra, a vida, a saúde, a educação, a moradia, a segurança alimentar e o trabalho. Bens públicos já sublinhados na Constituição Cidadã e que são Direitos Humanos. Para constituir acesso à justiça como bem comum exige-se a elaboração de uma reforma na administração da justiça a fim de ajustar as estruturas burocráticas do judiciário nacional para produzir sintonia entre a Constituição Cidadã e as práticas judiciais. Isto é, para alcançar uma justiça baseada no bem comum é sine qua non a democratização interna dos tribunais. E, assim, superar o princípio neoliberal, em que a cidadania é percebida como parte das relações de mercado. O acesso universal à justiça desdobra na compreensão de que ela representa um bem de todos e é de interesse geral que se assegure, por meio das instituições, a qualidade cidadã da administração da justiça aos litigantes. É imperativo acuidade ética dos juízes e magistrados para com a relevância de tecer decisões a partir do conceito de fins sociais e bem comum e de criar uma estrutura administrativa pró-democrática. Em suma, a pesquisa monográfica que aqui se encerra procurou desenvolver uma breve cartografia da questão do acesso à justiça na contemporaneidade na perspectiva do bem comum. Agora, é preciso seguir novas veredas, com novos horizontes de abordagem, como por exemplo, discutir o acesso à justiça num quadro de complexidade maior, aprofundando a questão da assistência judiciária e da percepção das relações assimétricas de poder entre litigantes, além do custo financeiro de acesso ao judiciário. Também, aprofundar o método quantificativo para descrever o quadro das desigualdades sociais e econômicas e contabilizar o fluxo de 55 exclusão dos litigantes brasileiros nas decisões dos tribunais brasileiros desde a promulgação da Constituição Cidadã. Da mesma forma, qualitativamente é importante problematizar e avaliar criticamente o contexto histórico-cultural da administração judiciária a partir do conceito de bem comum. É fundamental desenvolver pesquisa sobre as práticas de exclusão estabelecidas pelo aparelho jurídico brasileiro, sobretudo hoje, momento de rápida ofensiva neoliberal e autoritária, que resulta na subtração de direitos sociais e econômicos e impõe caráter negativo ao bem comum. Afinal, é necessário ao capital a presença de Estado mínimo para assegurar a espoliação sobre o comum, o comunitário e, assim, jogar, amiúde, milhões de brasileiros na condição de subcidadania. 56 REFERÊNCIAS BAINY, André Kabke; CONCEIÇÃO, Lucas Gonçalves; ARAGÃO, Valdenir Cardoso. Justiça gratuita, acesso à justiça e o (ainda) necessário debate em torno da ideologização do processo. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, v. 9, n. 1, p. 47-72, 2014. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 30 mar. 2022. BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. 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