ARTIGOS
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FIÓDOR DOSTOIÉVSKI
E O CRISTIANISMO*
DOI 10.18224/frag.v28i3.6433
ONEIDE PERIUS**
Resumo: o nosso artigo se propõe mostrar como o cristianismo desempenha um papel fundamental na obra de Dostoiévski. Reunindo inúmeros elementos da cultura russa, o mestre
da literatura nos apresenta uma concepção muito própria do significado do ser cristão. Além
disso, como pretendemos destacar, esta concepção vai sendo construída na exata oposição do
discurso dominante na teologia europeia do século XIX.
Palavras-chave: Cristianismo. Dostoiévski. Tteologia liberal. Experiência de Deus.
Existem segundos – apenas uns cinco ou seis simultâneos – em que
você sente de chofre a presença de uma harmonia eterna plenamente atingida.
Isso não é da terra; não estou dizendo que seja do céu, mas que o homem não
consegue suportá-lo em sua forma terrestre. Precisa mudar fisicamente ou
morrer.
(Fiódor Dostoiévski)
O
ato de escrever sobre a obra de Fiódor Dostoiévski está, em muitas ocasiões, cercado
de interrogações e, especialmente, de cautela. Mais ainda no caso de alguém que
se propõe a escrever sobre o mestre da literatura não tendo nenhuma proximidade
especial com a cultura russa e, menos ainda, com sua língua. Este original ausente, para quem
não lê russo, provoca uma sensação estranha de estar escrevendo sobre uma história da qual
faltam algumas partes. Ainda assim, vemos a significação universal amplamente difundida e a
força determinante da obra em questão ultrapassar constantemente barreiras de idiomas e mesmo fronteiras culturais. Isto explica o fato de se experimentar, na medida em que se frequenta o
*
Recebido em: 22.05.2018. Aprovado em: 22.10.2018.
** Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor de Filosofia na Universidade Federal do Tocantins. E-mail:
oneidepe@yahoo.com.br.
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mundo próprio desta obra, certa familiaridade, mesmo com as dificuldades apontadas. Fazemos
questão de destacar este aspecto no início deste estudo, pois este jogo entre proximidade e distanciamento constitui intimamente nossa experiência de leitura de Dostoiévski. Porém, como
nos ensinam os mestres hermeneutas, o sentido de um texto não está simplesmente presente
no texto e nem sequer está presente na perspectiva do leitor. O sentido não é algo pronto a ser
desvelado e descoberto. O sentido, ao invés disso, se constitui num encontro, habita um espaço
entre o leitor e a obra. Não está, portanto, em lugar algum. Isto quer dizer, fundamentalmente,
que não há sentido original que deva ser restaurado. A lógica do sentido remete a lógica dos
encontros entre leitores e obras e à produtividade fundamental destes encontros.1
O objetivo deste estudo, porém, é mostrar a importância constitutiva do cristianismo
na obra do mestre da literatura russa e, além disso, a peculiaridade de como este cristianismo é
entendido. Nossa hipótese de fundo é a de que compreender a especificidade e a importância
do cristianismo na obra de Dostoiévski tem um duplo significado. Em primeiro lugar, pode-se
tematizar, a partir dessa questão, a tensão entre as ideias que circulavam na Europa ao longo do
século XIX e a posição do autor russo em relação a elas. A Europa, de alguma forma, sempre
foi um tema e um problema presente em sua literatura. A peculiaridade da compreensão do
cristianismo que vai tomando forma em sua obra é, neste sentido, um capítulo muito especial
que nos ajudará a entender essa tensão. A teologia liberal, que se constituiu com muita força
na Europa do século XIX, será abordada em oposição à significação própria que o cristianismo
assume no autor de Crime e Castigo. O outro significado a que nos referíamos é o interesse histórico e teológico deste debate. Dostoiévski faz emergir, no coração da cultura russa e utilizando
magistralmente os elementos deste universo, uma forma muito instigante de cristianismo. Ao se
distanciar das tendências europeias em curso no século XIX, o autor torna possível uma interessante discussão sobre a questão do significado e da essência do cristianismo.
ASPECTOS DA OBRA DE DOSTOIÉVSKI
Estamos em condições, assim, de penetrar na obra propriamente dita. Em uma
das inúmeras partes impressionantes do livro Os Irmãos Karamázovi – por vezes pequenos
trechos capazes de nos arrancar da cadência tranquila da leitura ao nos oferecer um turbilhão
de associações e nos permitir acesso a uma profundidade inaudita – Dostoiévski faz o stáriets
Zósima, um monge idolatrado pelo povo humilde da Rússia como uma espécie de santo,
contar sua história de vida no próprio leito de morte. Neste momento, um dos personagens
que adquirem súbita centralidade no livro é o falecido irmão do stáriets por quem este tinha
uma especial afeição. Mesma afeição, aliás, que Zósima sentia pelo caçula dos irmãos Karamázovi: Alieksiéi Fiódorovitch Karamázov, ou simplesmente, Aliócha. Inclusive, é importante
assinalar, que este sentimento é tão profundo e vivo que leva o monge Zósima ver em Aliócha
a imagem do irmão morto. Como nos conta a história, esse irmão havia falecido quando o
monge ainda era muito jovem. Desse modo, a história do irmão morto em plena juventude
e a dramaticidade da confissão no leito de morte, de um homem que viveu com intensidade
sua relação com Deus e com Cristo, nos leva subitamente para o centro da compreensão do
que é o cristianismo e quais os seus sentidos para o grande mestre da literatura russa. Autorizamo-nos, dessa forma, a reproduzir aqui um breve trecho dessa história para situar o tema
que pretendemos desenvolver. Trata-se do registro de algumas falas e eventos ocorridos nos
últimos dias de vida do jovem irmão do Stáriets:
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Aos criados que entravam, dizia a cada instante: ‘Meus queridos, por que me servis, serei eu digno de
ser servido? Se Deus me concedesse a graça de deixar-me vivo, eu mesmo vos serviria, porque todos
devem servir uns aos outros’. Nossa mãe, escutando-o, abanava a cabeça: ‘Meu querido, é a doença
que te faz falar assim.’ – ‘Mãe adorada, deve haver amos e servidores, mas quero servir os meus como
êles me servem. Dir-te-ei ainda, mamãe, que cada um de nós é culpado diante de todos por tudo e
eu mais do que os outros.’ Nossa mãe nesse instante sorria através de suas lágrimas: ‘Como podes
ser mais que todos culpado diante de todos? Há assassinos, bandidos, que pecados cometeste para te
acusar mais que todos?’ – ‘Querida mãe, felicidade minha (tinha dessas frases cariciosas, inesperadas), sabes que, na verdade, cada qual é culpado diante de todos por todos e por tudo. Não sei como
te explicar isto, mas sinto que é assim e isto me atormenta. Como podíamos viver, irritar-nos, sem
nada saber, então?’ Cada dia despertava mais enternecido, mais jovial, fremente de amor. O doutor
Eisenschmiedt, um velho alemão, visita-o: ‘Como é, doutor, viverei ainda um dia?’, brincava êle por
vêzes. – ‘Viverás mais que um dia, meses e anos!’, replicava o doutor. – ‘Que são meses e anos?!’
exclamava êle. – ‘Para contar os dias, basta um dia ao homem para conhecer tôda a felicidade. Meus
bem-amados, de que serve discutirmos, vangloriar-nos, guardar rancor um contra o outro? Vamos
antes passear, recrear-nos no jardim, beijar-nos-emos, abençoaremos a vida’. – ‘Seu filho não está
destinado a viver’, dizia o doutor à nossa mãe, quando esta o acompanhava até o patamar. – ‘A doença o faz perder a razão’ (DOSTOIÉVSKI, 1964, p. 727, 728).
A história deste irmão, para dizê-lo com brevidade, é bastante interessante. Muito
jovem ainda, conhecera um filósofo de ideias liberais e esta proximidade fizera com que
Márkel – este era o seu nome – passasse a renegar completamente a fé cristã e passasse
mesmo a ridicularizar e zombar dos rituais religiosos da família. Sua mãe havia ficado
destroçada com essa postura do filho. No entanto, subitamente, o filho cai doente e, para
piorar as coisas, obtém um prognóstico nada otimista de um médico. A mãe, no desespero
da situação, pede ao filho que aproveite a Semana Santa e vá comungar. Inicialmente, Márkel parece fazê-lo pela mãe, mas aí se produz uma grande conversão. Em pouco tempo, o
rapaz se transforma completamente e começa ver tudo com outros olhos. Neste cenário se
inscreve o trecho acima citado.
Sabe-se que o século XIX assistiu a um enorme desenvolvimento, na Alemanha
especialmente, da chamada teologia liberal. Esta corrente teológica – para dizê-lo sinteticamente – prometia uma reconciliação entre os valores cristãos e o mundo moderno sob a égide
do liberalismo burguês. Em suma, a imagem do cristão que emerge neste cenário é o de um
indivíduo perfeitamente assimilado e integrado nesta estrutura da sociedade burguesa e que,
portanto, justifica os valores fundamentais desta sociedade recorrendo à autoridade da tradição cristã. Na figura de Jesus, inclusive, o caráter sobrenatural dava lugar a um mestre moral
e a um espírito elevado. Ou seja, via-se o mestre como uma espécie de encarnação perfeita da
sabedoria. Dessa forma, Cristo deixa de ser um elemento estranho e impossível de compatibilizar com a visão de mundo da ciência moderna. O desenvolvimento desta teologia liberal,
assim, faz atuar um certo anacronismo na sua compreensão da figura de Cristo. Trata-se de
um Cristo bastante bem adaptado aos modos de vida e valores das sociedades modernas. Parece mesmo que esta época cria uma imagem de Cristo que possa chamar de “sua”.
A teologia liberal domina não só a Alemanha no século XIX, mas também, a maior
parte da Europa. É claro que não podemos aqui cair na tentação de apresentar o desenvolvimento desta forma de entender a teologia como se fosse uma rua de mão única. Há, obviamente, durante todo este período, inúmeras vozes que destoam desta perspectiva dominante.
Uma destas vozes, bastante conhecida, é a de Soren Kierkegaard que não cessa de denunciar
a hipocrisia da Igreja dinamarquesa e a contradição fundamental entre os valores desta socieFRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 413-421, jul./set. 2018.
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dade e o verdadeiro Evangelho de Cristo.2 Na Rússia, por sua vez, de um modo muito
próprio e singular, Dostoiévski nos apresenta, com uma força indiscutível, a referida
contradição. O trecho acima citado nos parece trazer muitos elementos que permitem esta
análise. Evidentemente, este nosso breve estudo não pretende ser, nem de longe, uma abordagem exaustiva e completa da questão. Isto exigiria uma leitura mais sistemática e ampla da
obra completa do autor russo. Trata-se, antes disso, de destacar alguns elementos.
O que imediatamente salta à vista no texto citado é a resposta final do “doutor
alemão” depois de ouvir o jovem falar de amor e de perdão: “A doença o faz perder a razão.”
Há aí um interessante jogo de imagens e palavras. Num mundo dominado pela cobiça, pelo
egoísmo e pela violência – pois este é o mundo tal como o veem os humilhados e ofendidos
– falar de amor e de perdão é sintoma de uma doença mortal. É, no mínimo, uma loucura
incurável, talvez uma ingenuidade inconsequente. Não há, sob este aspecto, nenhuma possibilidade de reconciliar o Evangelho do amor e o curso do mundo tal como se apresenta.
No mundo ainda feudal da Rússia do século XIX, um mundo de castas, de privilégios e de pobreza, não há lugar para a mensagem cristã, não há lugar para Cristo. Os únicos
cristãos que aparecem neste universo são indivíduos não integrados, verdadeiros párias sociais. – “Seu filho não está destinado a viver.”, assim sentencia o doutor. Neste momento, o
médico alemão parece encarnar um sábio metafísico que percebe como as palavras do jovem
cristão – que anteriormente havia sido seduzido pelo ateísmo liberal – estão fora de lugar e
não podem ser outra coisa senão sintomas de loucura e de doença. De certa maneira, o cristianismo constitui uma espécie de escândalo, de elemento inexplicável neste contexto.
Assim, lançando um rápido olhar para outros momentos da obra de Dostoiévski,
percebemos o papel primordial que estes párias sociais desempenham na constituição do
significado que o cristianismo assume em seus textos. Monges que vivem isolados, pobres e
humilhados, prostitutas e criminosos, entre outros, são freneticamente assaltados pela devoção e por uma espécie de transe místico que os conecta com uma força poderosíssima da qual
já não conseguem escapar. Um perfeito exemplo disso é a famosa – talvez uma das mais belas
cenas descritas na literatura universal – passagem do livro Crime e Castigo que narra a leitura
de um trecho do Novo Testamento, traduzido para o russo, num improvável encontro entre
o criminoso Raskólnikov e a prostituta Sônia. A força e o vigor da narrativa se impõem de
modo arrebatador neste trecho. Vejamos:
- Lê! - exclamou num átimo, de modo persistente e irritante. Sônia continuava vacilando. Seu
coração batia forte. Por algum motivo não se atrevia a ler para ele. Ele olhava quase atormentado
para aquela ‘louca infeliz’. - Para que lhe serve isso? O senhor não acredita, não é? ... - sussurrou- lhe
baixinho e como se ofegasse. - Lê! Eu quero! - insistiu ele. - Já que lias para Lisavieta! Sônia abriu o
livro e encontrou a passagem. Suas mãos tremiam, faltava-lhe a voz. Duas vezes começou, e nada
de conseguir pronunciar as primeiras sílabas. ‘Estava enfermo Lázaro, de Betânia...‘ - finalmente
pronunciou ela, com esforço, mas de súbito, a partir da terceira palavra, a voz começou a vibrar
e partiu-se como uma corda excessivamente esticada. Ela perdeu o fôlego, o peito confrangeu-se.
Em parte Raskólnikov compreendia por que Sônia não se decidia a ler para ele, e quanto mais o
entendia mais parecia grosseiro e irascível na sua insistência. Ele compreendia bem demais como
era difícil para ela, nesse momento, revelar e evidenciar todo o seu íntimo. Compreendeu que, em
realidade, esses sentimentos pareciam constituir o segredo verdadeiro dela e, talvez, já antigo, talvez
originado em plena adolescência, ainda no seio da família, ao lado de um pai infeliz e uma madrasta
enlouquecida pelo sofrimento, entre crianças famintas, gritos e exprobações revoltantes. Mas, ao
mesmo tempo, agora ele sabia, e sabia de certo, que ela, ainda que sentisse melancolia e temesse
alguma coisa terrível ao começar a ler, todavia, por outro lado, sentia pessoalmente uma angustiante
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vontade de ler, a despeito de toda a melancolia e de todos os temores, e fazê-lo precisamente para
ele, para que ele ouvisse, e precisamente agora – ‘acontecesse o que acontecesse depois! ‘... Isto ele
leu nos olhos dela, compreendeu pela emoção exaltada que ela revelava... Ela se dominou, controlou
o espasmo na garganta, a voz que embargara no início do capítulo e continuou a ler o capítulo 11
do Evangelho segundo João. E assim o leu até o versículo 19 (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.336-7).
Vê-se, pois, com clareza, que estes personagens afetados por Deus e repletos de uma
profunda religiosidade nada têm que os eleve a condição de exemplos morais ou modelos de
comportamento ético. Pelo contrário, é o paradoxo de sua situação e o súbito arrebatamento
que, por mais inconciliáveis que pareçam, convivem lado a lado. Se a modernidade ocidental
pretendia conduzir o ser humano a uma situação em que este pudesse dominar-se a si mesmo
utilizando para isso a excelência moral do mestre Jesus Cristo, o que Dostoiévski traz a tona
quando fala de cristianismo é um elemento místico completamente incontrolável e mesmo
inexplicável do ponto de vista da consciência. Desse modo, para melhor compreender a especificidade e a presença do elemento religioso e cristão na obra do mestre da literatura russa,
faz-se necessário um excurso para mostrar brevemente a constituição e o desenvolvimento da
teologia liberal na Europa ocidental. Isso se faz necessário, especialmente, para percebermos a
exata distância que Dostoiévski mantém em relação a ela.
Alguém poderia perguntar: por que a teologia liberal? E nossa resposta apontaria
para o fato de esta corrente teológica ser talvez o mais significativo esforço de pensar teologicamente o caminho que leva o ser humano até Deus. Tanto do ponto de vista individual,
onde se mostra um esforço de aperfeiçoamento moral dos seres humanos, como também do
ponto de vista histórico e cultural, onde se mostra o percurso das sociedades que se desenvolvem cada vez mais de acordo com os parâmetros da tradição cristã. Esta corrente, desse
modo, sintetiza com muita clareza esta dialética ascendente que leva o ser humano até Deus.
Como veremos, é em exata oposição a esta perspectiva que podemos compreender o elemento
religioso na obra de Dostoiévski.
TEOLOGIA LIBERAL
Podemos ler no Lexicon – Dicionário teológico enciclopédico (MANCUSO; PACOMIO, 2003, p. 740) a seguinte definição do que seria teologia liberal:
A teologia liberal é sobretudo um momento ou uma fase da história da teologia protestante que corresponde mais ou menos ao período que abarca o séc. XIX estendendo-se ao séc. XX, caracterizada
por uma escolha consciente em favor da cultura moderna, pelos ideais de pensamento, políticos e
éticos, típicos deste período. Trata-se portanto de uma tentativa de convergência da fé cristã com a
nova cosmovisão que nasce do Iluminismo e que determinará o cenário social e cultural da chamada
‘modernidade’.
Certamente, o movimento de autocertificação da modernidade passa, necessariamente, por uma integração da tradição e de seus elementos nesta nova perspectiva de
pensamento. Ainda que haja, na época moderna, uma evidente oposição a tudo o que
representa a tradição e seus valores, tendo em vista a pretensão de estabelecer uma profunda ruptura para com tudo o que vinha do passado, é inegável a centralidade e força da
tradição cristã na constituição do mundo moderno. Integrar esta herança, dando-lhe uma
nova significação, passa a ser uma importante estratégia para blindar e legitimar a época
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moderna, evitando e neutralizando, assim, as forças que poderiam desintegrá-la. A teologia
liberal nasce, dessa forma, no interior desta nova visão de mundo e tem de ser explicada,
portanto, a partir dela.
De modo mais preciso, poderíamos dizer que a teologia liberal pôde nascer a partir
de dois grandes eventos históricos que, de alguma forma, com sua força e significação, ajudam
a moldar o mundo moderno. Estes eventos são a Reforma Protestante e a Revolução Francesa.
As palavras de Rosino Gibellini (1998, p.19) são, neste sentido, bastante exatas:
A teologia liberal (liberale Theologie) nasce do encontro do liberalismo – como autoconsciência
da burguesia europeia do século XIX – com a teologia protestante. Tem seus antecedentes
históricos na filosofia da religião de Hegel e na teologia de Schleiermacher. Não é uma escola
bem difinida, mas um movimento polimorfo, no qual se podem distinguir diferentes linhas de
pensamento. É chamada de teologia liberal a interpretação racionalista do Novo Testamento. [...]
Suas características eram: a) assunção religiosa do método histórico-crítico e de seus resultados; b)
relativização da tradição dogmática da Igreja, e particularmente da cristologia; c) a leitura predominantemente ética do cristianismo. Em sintonia com o otimismo liberal, ela visava harmonizar o mais
possível a religião cristã e a consciência cultural da época.
Obviamente, não é nosso objetivo neste estudo aprofundar a perspectiva teológica ora
em foco, mas explorá-la como caso paradigmático de um movimento de releitura da tradição cristã
a partir da recém-nascida racionalidade moderna. Neste momento histórico profundamente otimista, onde a razão e suas tecnologias colocam em marcha a construção de um mundo novo, não
parece ser mais tão necessária a força sobrenatural e misteriosa do Deus cristão. Ao invés disso, é
o próprio ser humano que com seus esforços pretende construir um mundo que ele acredita ser a
realização terrena da promessa divina de um paraíso. Desse modo, toda interpretação estará guiada
para relativizar nos textos bíblicos e na tradição a dimensão mística e sobrenatural. Em síntese, os
representantes desta corrente se acreditam capazes de extrair do Evangelho de modo absolutamente racional os valores cristãos que auxiliarão a edificar o mundo moderno.
Como é sabido, não demorou muito para que dentro da própria tradição teológica ocidental, tanto protestante quanto católica, surgissem movimentos profundamente
críticos em relação à perspectiva teológica supracitada. Um excelente exemplo disso é
o livro de Karl Barth, Carta aos Romanos. Publicado em 1919, este livro é para muitos
o texto inaugural da teologia do século XX. Inaugura a teologia do século XX pois faz
uma dura crítica à teologia liberal dominante desde o século XIX. A teologia liberal, já o
apontamos, via Cristo como um ideal supremo da humanidade. Partia, portanto, de uma
interpretação humanista do Evangelho como se sua mensagem central fosse um conteúdo
moral que se pudesse alcançar através da razão. O texto de Karl Barth, contrariamente
a isso, irá partir da ideia de que não há caminho que leva o ser humano até Deus. O caminho é sempre inverso: Deus se revela ao ser humano. Não são os seres humanos que,
com a força de sua razão, se apropriam de Deus. Dá-se algo bem diverso: Deus, ainda
que permaneça totalmente Outro em relação ao ser humano, se revela a este de muitas
formas. Como o aponta o próprio Barth (2002, p.54) em seu texto, aquilo que Kierkegaard chama de “infinita diferença qualitativa” entre tempo e eternidade, entre Deus e o ser
humano, torna impossível um caminho, através de um aperfeiçoamento moral ou através
de um movimento da história, que leve até Deus. Neste sentido, é também bastante importante para nosso estudo, a declaração do autor da Carta aos Romanos feita no Prólogo
à segunda edição, escrito em setembro de 1921: trata-se, segundo ele, de “dar uma maior
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atenção ao que se pode aprender de Kierkegaard e Dostoievski para compreender o Novo
Testamento” (BARTH, 2002, p. 54).
O CRISTIANISMO DE DOSTOIÉVSKI
A partir das ideias apresentadas e dos textos citados, julgamos-nos agora capazes
de penetrar melhor no núcleo da significação do cristianismo na obra do escritor russo. De
imediato, é importante destacar – e cada um que frequenta seus os textos pode atestá-lo – que
a presença de Deus na obra de Dostoiévski não resulta daquela onipotência atribuída ao Ser
supremo e que é capaz de construir ou destruir Impérios. Não é nesta dimensão que se mostra o elemento próprio do cristianismo. Ao invés disso, o mestre russo parece levar a sério o
paradoxo de uma onipotência que se revela na absoluta impotência: a morte do próprio Filho
de Deus na cruz. Na mais profunda humilhação e no instante do mais absoluto sofrimento a
onipotência e onipresença de Deus faz a vida vencer a morte.
A perspectiva de um ser humano que com seus próprios esforços consiga alcançar
a Deus e contemplá-lo face a face não seria outra coisa, aos olhos de Dostoiévski, do que um
Evangelho romantizado. De acordo com Pondé (2013, p. 49, 50):
O grande desvio que houve na compreensão do cristianismo, do ponto de vista da tradição ortodoxa grega e russa, deu-se com o pensamento e a obra de São Tomás de Aquino (1225-1274), que
transformou o cristianismo numa abstração vazia, num discurso puramente racional. A Idade Média
vai definir a mística como cognitio Dei experimentalis, a cognição experimental de Deus. Só que na
mística ortodoxa isso é tomado ao pé da letra: para um ortodoxo só existe teologia a partir da mística. Não há, por exemplo, como no Ocidente, uma teologia mais racional, que não seja mística.
Portanto, o conhecimento de Deus só pode ser místico. Se não se possui conhecimento místico, não
se conhece Deus.
Assim, a experiência de Deus é absolutamente constitutiva e primeira em relação a
qualquer outra experiência. O que está em questão não é elevar-se, a partir de seus próprios
méritos, até Deus. É a experiência de Deus que provoca um renascimento, onde valores como
a liberdade, a responsabilidade e o amor, adquirem realidade. Diferenciar bem e mal passa a
ser possível a partir dessa experiência. A experiência de Deus faz transbordar uma luz mística
desde a qual o mundo aparece completamente transformado. A lei natural e a lei da razão
perdem, então, o seu sentido, tendo em vista que são elementos que sustentam um mundo
onde Cristo não pode se fazer presente. O mundo dos que perseguem, racionalmente, a glória
e o poder; o mundo onde são edificados Impérios; este mundo nada tem de cristão.
A experiência de Deus nos retira deste mundo de violência e ganância e faz ver e acessar
uma nova realidade, onde impera uma única lei: a lei do amor. Esta experiência de Deus é, portanto, acessível a todos, mas especialmente aos humildes de coração, aos pobres e humilhados, aos
párias. Outros, protegidos pelo escudo do orgulho e da autossuficiência, jamais serão tocados
por Ele. Mesmo a um criminoso como Raskólnikov esta experiência não está distante, visto
que a lei de Deus habita nele, o que se percebe claramente na tortura que o seu pecado lhe
inflige. A condenação que realmente importa, neste caso, não é a da justiça dos homens. Desta,
Raskólnikov poderia se livrar facilmente. O tormento é interior e o que faz com que perceba sua
ação como pecado é, no fundo, sua proximidade com Deus. A experiência de Deus, assim, revela
um mundo verdadeiro que é possível habitar: um mundo onde o amor e o perdão sejam as leis.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nietzsche (2016, §39) – filósofo que, aliás, diz ter sido Dostoiévski o único
psicólogo do qual aprendera algo – disse, em certa ocasião, que o único cristão morreu
na cruz. Dizia isto motivado pelo que entendia ser um abandono dos ensinamentos de
Cristo na sociedade ocidental que, ainda assim, se dizia cristã. Certamente, este não é
um dos únicos exemplos de uma leitura crítica dos rumos do cristianismo. É necessário
esclarecer, neste contexto, que Nietzsche o fazia movido pela ânsia de livrar o ocidente
da verdade cristã. Dostoiévski, como vimos, também se posiciona de maneira muito
particular sobre a essência desta mensagem e sobre o significado da experiência de Deus.
O autor russo associa-se, no entanto, à vasta tradição do profetismo cristão que ousa
confrontar verdades estabelecidas e modos de vida naturalizados. A força explosiva do
cristianismo e da experiência de Deus é aquela que faz nascer o novo ser humano num
mundo ainda, em regra, velho. De qualquer forma, este ser humano transformado, vendo
o velho mundo com novos olhos, percebe nele as fissuras que podem desintegrá-lo com
vista a sua transformação.
O universo no qual se constitui sua obra – a Rússia do século XIX – nada tinha de
moderno. Continuava-se vivendo à margem das ideias modernas que circulavam na Europa.
Além disso, ao colocar os humilhados e ofendidos no centro de seus romances, o sentido do
cristianismo que emerge neste contexto é bastante diverso daquele que os ideais modernos
estavam moldando. Estes personagens do mestre da literatura russa não têm, absolutamente,
a força de se elevar moralmente até chegar à verdadeira experiência de Deus. Esta experiência
ocorre, ao invés disso, no mais profundo elemento da degradação humana. Dostoiévski parece se manter fiel ao princípio de que mesmo no submundo do pecado pode sobreviver na
alma humana a inocência capaz de fazer enxergar a Deus. A soberba dos senhores do mundo,
por sua vez, cegos pelo orgulho, pelas riquezas e pelas glórias, dificilmente permitirá que percebam Sua presença.
O que pretendemos ter apontado com o nosso estudo, dessa maneira, é uma concepção de cristianismo que ao ganhar força na obra de Dostoiévski, se coloca totalmente
à margem das concepções europeias tradicionais no século XIX. E nossa insistência nesse
aspecto não se deve somente ao caráter deslocado e marginal desta concepção. Deve-se, especialmente, ao fato de apontar para uma realidade soterrada por uma tradição religiosa que se
mostra muito mais, ao longo dos séculos, através da força e do poder: a vida dos humilhados e
ofendidos que na sua inocência preservam uma proximidade verdadeira com o Deus de Jesus
Cristo.
FYODOR DOSTOYEVSKY AND CHRISTIANISM
Abstract: our article proposes to show how Christianity plays a fundamental role in Dostoevsky’s
work. Gathering innumerable elements of Russian culture, the master of literature presents us with
a very own conception of the meaning of Christian being. Moreover, as we wish to emphasize, this
conception is being constructed in the exact opposition of the dominant discourse in nineteenthcentury European theology.
Keywords: Christianism. Dostoyevsky. Liberal Theology. Experience of God.
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Notas
1 Essa é a maneira como, de acordo com nossa interpretação, Hans-Georg Gadamer pensa a o problema
hermenêutico do sentido de um texto. Para isso remetemos ao grande tratado de hermenêutica filosófica do
autor (GADAMER, 1999).
2 Ao ser convidado para escrever para a Revista O Instante (Øieblikket), Kierkeggard expõe, logo no primeiro
artigo (publicado em 24 de maio de 1855) a contradição da qual falamos: “...atuar em prol do cristianismo
se converte, como já foi dito, em fazer que os homens tomem o nome de cristãos e, ainda assim, contribuam
para que tudo siga de igual modo, e é isto o que eu chamo de: se possível impossibilitar o cristianismo, com
o que de novo (eu repito) se faz culpada a multidão dos homens de um delito, do qual de outro modo ela
estaria livre, a título de adorar a Deus, fazê-lo de bobo. É isto que eu, apesar de só ter encontrado até agora
pouca gratidão por amar os homens, me empenho em evitar de qualquer modo” (KIERKEGGARD, 2013,
p. 164).
Referências
BARTH, Karl. Carta a los Romanos. Tradução de Abelardo Martinez De La Pera. Madrid:
Biblioteca de Autores Cristianos, 2002.
DOSTOIÉVSKI, F. M. Crime e Castigo. Tradução de Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo: Editora 34, 2009.
DOSTOIÉVSKI, F. M. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004.
DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. In: DOSTOIÉVSKI, F. M. Obra Completa
em quatro volumes. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora,
1964.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer e Ênio Paulo Giachini. 3.ed. Petrópolis: Vozes,
1999.
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