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O poema onivoro. Introdução

2025, Texto poético. Revista do Grupo de Trabalho Teoria do Texto Poético

https://doi.org/10.25094/rtp.2025n44a1159

Uma das necessidades mais básicas dos seres humanos, a alimentação é também uma das nossas mais importantes fontes de prazer. Investigada por diversas áreas do conhecimento, ela é tão relevante que a passagem do cru ao cozido foi tratada por Lévi-Strauss como definidora da cultura e intimamente ligada à linguagem. Os estudos alimentares vivem hoje um tremendo boom, dedicando-se a pensar criticamente sobre o papel da alimentação em diferentes áreas científicas como a agricultura, a nutrição ou as próprias artes culinárias.

https://doi.org/10.25094/rtp.2025n44a1159 EDITORIAL O POEMA ONÍVORO Uma das necessidades mais básicas dos seres humanos, a alimentação é também uma das nossas mais importantes fontes de prazer. Investigada por diversas áreas do conhecimento, ela é tão relevante que a passagem do cru ao cozido foi tratada por Lévi-Strauss como definidora da cultura e intimamente ligada à linguagem. Os estudos alimentares vivem hoje um tremendo boom, dedicando-se a pensar criticamente sobre o papel da alimentação em diferentes áreas científicas como a agricultura, a nutrição ou as próprias artes culinárias (Cruz, 2022), mas também em disciplinas das Ciências Humanas como a história (Cascudo, 1983; Flandrin & Montanari, 1998; Algranti, 2020; Meneses, 2019, 2020), a antropologia (Appadurai, 1981), a sociologia (Goody, 1982; Bourdieu, 2002; Nestle, 2002) e até a filosofia (Curtin, 1992; Korsmeyer, 2002, 2011) e o jornalismo (Climent-Espino, 2021). Da mesma forma, abordagens recentes têm se concentrado em elucidar qual é o papel que a comida desempenha nas artes, seja no teatro (Tobin, 2002), no cinema (Padrón, 2011; Sedlmayer, 2023) e, claro, em obras literárias de diversos tipos (Climent-Espino, 2020). A poesia – de diversos períodos, línguas e tradições – também é atravessada por esse vasto campo de reflexão acerca do humano e de sua relação com os demais seres deste planeta, a partir de várias cosmologias, nas quais comer remete a um sistema de comunicação ancestral e a um conjunto de imagens e de protocolos de usos, situações e condutas (Barthes, 1961). No cardápio deste número, temos variados pratos de distintas tradições poéticas, períodos e línguas. Em “Comida y identidad racial: las minorías religiosas y la construcción de la diferencia a finales de la Edad Media”, a pesquisadora Ana María Gómez-Bravo, autora de vários estudos abrangentes sobre comida (Gómez-Bravo, 2017), fornece uma análise sobre como a comida tornou-se um marcador de diferença religiosa e sociopolítica. Segundo Gómez-Bravo, a poesia ajudou a difundir e popularizar um discurso discriminatório no qual a alimentação aparece como determinante biológico. A autora analisa em detalhe como os poemas apresentam as minorias religiosas como seres inerentemente inferiores, atribuindo à alimentação um papel importante na constituição de uma identidade racializada. Os judeus convertidos são identificados pelos alimentos 2 Editorial Texto Poético, ISSN: 1808-5385, v. 21, n. 44, p. 02-07, jan./abr. 2025 que consomem e especialmente pelas leis dietéticas kosher. Ao mesmo tempo, a nobreza justificava a sua superioridade biológica com base na natureza dos alimentos que costumava consumir. Desta forma, ao longo da Idade Média, as diferenças alimentares tornaram-se um elemento-chave de um processo de racialização das minorias apoiado na construção da diferença religiosa como diferença biológica. Uma das mais profícuas propostas de reflexão acerca da cultura brasileira, a Antropofagia oswaldiana incorpora o ato de comer como metáfora das relações entre arte e alteridade. Devorar e (de)cifrar se fundem na obra desse modernista que Glauco Mattoso, décadas depois, digere em seu “Manifesto coprofágico”, levando o indigesto para a mesa da poesia, como nos mostra o pesquisador e poeta Marcelo Diniz. Em seu artigo, Diniz empreende uma instigante e divertida discussão acerca das relações entre prazer e repugnância na poesia de Mattoso, confesso devorador do indigesto, cuja obra nos lembra continuamente, como destaca Diniz, da nossa finitude, da degradação do corpo humano, bem como das possibilidades de prazer que desafiam o bom senso e o bom gosto, na e para além da literatura. Além de Glauco Mattoso, a poesia contemporânea brasileira encontra-se presente em dois artigos deste Dossiê: na poesia inventiva de Angélica Freitas, em formato de ensaio, de autoria da pesquisadora Susana Souto, e na resenha do livro Cabeça de galinha no chão de cimento, de Ricardo Domeneck, através da leitura de Sabrina Sedlmayer. A primeira propõe investigar, após dezessete anos da publicação de rilke shake, a obra de estreia de Freitas em afinado diálogo com a Antropofagia oswaldiana. Mas não só com a vanguarda modernista brasileira, pois Susana Souto oferece-nos uma análise mais aguda e abrangente, demonstrando como o método da poeta consiste em uma espécie de “ringue polifônico”, atravessado por díspares referências, seja do pop (como a bebida milk shake) ou da tradição poética (Rilke). Escrever, ler, rememorar e comer são fios condutores da reflexão empreendida. A mesa, que serve de amparo para a criação de versos, é também evocada sensorialmente, em muitos poemas, como sinédoque de família, memória, educação. Justamente numa mesa, nos foi dito: “E, tomando o pão, e havendo dado graças, partiu-o, e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de mim.” (Lucas 22:19). Nessa trilha rememorativa e anacrônica, Sabrina Sedlmayer, um nome central nas pesquisas sobre literatura e comida, criadora do grupo de pesquisa SAL – Sobre Alimentos e Literaturas/UFMG, escreve sobre o premiado Cabeça de galinha no chão de cimento (2023), no qual Ricardo Domeneck evoca os quatro avós analfabetos, numa singular história da colonização, do escravismo, e se torna o herdeiro 3 Editorial Texto Poético, ISSN: 1808-5385, v. 21, n. 44, p. 02-07, jan./abr. 2025 e guardião da narrativa familiar (e dos afazeres domésticos), marcada pelo cotidiano em que a cozinha ocupa um lugar central, de fazeres compartilhados e memórias. Em “Food, Eating, and Digestion in the Vie Seinte Audree of Marie de France”, Jacob Abell oferece uma análise de banquetes, jejuns e digestão em La vie seinte Audree, um poema medieval francês atribuído a Marie de France. As escassas alusões ao alimento no texto recomendam uma prática de “moderação moderada”, que combina consumo diário, banquetes e jejuns como componentes essenciais da alimentação sagrada. Através de um foco particular nos tropos de hospitalidade, enguias e excreção, o poema também posiciona o sistema digestivo humano como um local de santificação espiritual. Na sequência vamos ao Chile, conduzidos por Rafael Climent-Espino, em “Versos de hojaldre, poemas de miel y harina: discursos gastropoéticos en Pablo Neruda”. O ensaísta espanhol, conheciado por seus sólidos trabalhos na área de food studies, principalmente nos Estados Unidos, onde leciona, se detém especialmente nas odes de Neruda. Num estudo vertical, reflete sobre os métodos que o poeta utiliza para veicular discursos ideologicamente comprometidos em relação aos problemas da fome e da conscientização de como a comida deve ser para todos. O seu texto, através de muitos exemplos, demonstra com erudição como há fortes indícios da sensorialidade dos alimentos na tradição lírica espanhola e latino-americana. Além do dossiê temático, o número abarca também a seção Vária, na qual estão presentes quatro artigos de temática livre. São eles “O céu que se suja de vida e de séculos: uma análise da poesia de Dirceu Villa”, de Gustavo Silveira Ribeiro; “A reflexão sobre poesia nas cartas inéditas de Murilo Mendes para Mário de Andrade (1933-1943)”, de Raphael Salomão Khéde; “A assinatura: aspectos otobiográficos na poesia de Marcos Siscar”, de Elaine Cristina Cintra; e “El heraldo gitano: romance San Gabriel de García Lorca”, de Solveig Josefina Villegas Zerlin. As memórias acionadas pelos cheiros, imagens, texturas, sons e gostos do que comemos movimentam um conjunto de associações entre escrever, ler, cozinhar, degustar, ruminar. Manuel Bandeira, em “Consoada”, transforma a “mesa posta” em emblema de aceitação e enfretamento da morte; “a indesejada das gentes” deve encontrar “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta / com cada coisa em seu lugar.”. Celebrando os prazeres gozosos da cama e da mesa, enfrentando a morte, reinventando o cotidiano, denunciando os horrores da fome, a poesia, ao longo de sua história, tem devorado os mais variados elementos da alimentação, os múltiplos sentidos da mesa, como atesta Carlos Drummond de Andrade: “Deixaste-nos mais famintos, / poesia, comida estranha”. 4 Editorial Texto Poético, ISSN: 1808-5385, v. 21, n. 44, p. 02-07, jan./abr. 2025 Este Dossiê é capaz de demonstrar, através de contribuições em modalidades textuais diversas, como uma gastropoesia, uma gastrocrítica, se avulta com vigor criativo e teórico, no Brasil e no exterior. E de como novas reconfigurações poéticas e literárias continuam confirmando o vínculo entre saber e sabor. Susana Souto Silva1* Rafael Climent-Espino2** Sabrina Sedlmayer3*** Referências ALGRANTI, Leila e MACÊDO, Sidiana de (Orgs.). História & Alimentação: Brasil Séculos XVI –XXI. Belém: Editora Paka-Tatu, 2020. APPADURAI, Arjun. Gastro-politics in Hindu South Asia. American Ethnologist 8, no. 3, 494-511, 1981.BARTHES, Roland. Pour une psycho-sociologie de l’alimentacion. In: Annales ESC, septembre/octobre, (5), pp. 977-986, 1961. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/ ahess_0395-2649_1961_num_16_5_420772. BOURDIEU, Pierre. Distinction. A Social Critique of the Judgement of Taste. Cambridge: Harvard University Press, 2002. CASCUDO, Câmara. História da Alimentação no Brasil (Volume I e II), São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1983. * Professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, Brasil. E-mail: ssoutos@gmail.com. Orcid: 0000-0001-7629-1383 ** Professor da Baylor University, Waco, Tx., Estados Unidos. E-mail: Rafael_Climent@baylor.edu Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2998-3245 *** Professora Titular da Faculdade de Letras da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Pesquisadora do CNPq. E-mail: sabrinasp@ufmg.br; sabrina. sedlmayer@gmail.com https://orcid.org/0000-ooo2-6606-116x 5 Editorial Texto Poético, ISSN: 1808-5385, v. 21, n. 44, p. 02-07, jan./abr. 2025 CLIMENT-ESPINO, Rafael and GÓMEZ-BRAVO, Ana María. Food, Texts and Cultures in Latin America and Spain. Nashville: Vanderbilt University Press, 2020. CLIMENT-ESPINO, Rafael. Análisis hemerográfico de la comida en el semanario cubano Bohemia durante el Periodo Especial en Tiempos de Paz (1990-1995). Caribbean Studies vol. 49, no. 1, 137-163, 2021. CRUZ, Eduardo da e SANTOS, Gilda. Annona ou Misto Curioso. Folheto semanal que ensina o método de cozinha e copa, com um artigo de recreação. Porto: Livraria Lello, 2022. CURTIN, Deane W. and Heldke, Lisa M. Cooking, Eating, Thinking. 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