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Supremo Tribunal Federal, Política e Democracia

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, POLÍTICA E DEMOCRACIA Carlos Alexandre de Azevedo Campos1 Judicial review of the constitutionality of legislation presents an exciting and perplexing encounter between legislator and judge, between statute and judgment. (CAPPELLETTI, Mauro. Judicial Review in the Contemporary World. Indianapolis: Bobbs-Merril. 1971) SUMÁRIO Introdução I – Conceitos 1. Dificuldade contramajoritária 2. Ativismo e autorrestrição judicial 3. Judicialização da política II – Propostas 1. A fórmula do “erro manifesto” 2. Virtudes passivas 3. Defesa de minorias e do processo democrático inclusivo 4. Minimalismo judicial e fluxo moral 5. A doutrina dos standards 6. Diálogos institucionais III – Decisões 1. Defesa dos direitos fundamentais 2. Processo político-eleitoral IV – Conclusão 1 Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ. Professor-Adjunto de Direito Financeiro e Tributário da UERJ. Assessor de ministro do STF. Advogado licenciado. Introdução Nos últimos anos do século XX e, com mais destaque, neste século XXI, houve alteração quantitativa e qualitativa do espaço ocupado pelo Supremo Tribunal Federal no cenário sociopolítico brasileiro. A Corte foi reinventada em diferentes aspectos: na abrangência dos temas julgados – temas de alta voltagem política e moralmente hipercontroversos ao lado de muitas questões não tão importantes assim; no tipo de argumentos de decisão – redução progressiva do positivismo formalista para a adoção de uma metodologia mais criativa e orientada a valores; no alcance das decisões – julgamentos que repercutem sobre todo o sistema político e por toda a sociedade; na própria afirmação da identidade institucional – os ministros passaram a defender como nunca, inclusive fora dos autos, o valor de suas funções e a relevância do Supremo.2 As grandes transformações institucionais, políticas, sociais e jurídico-culturais, que gradualmente se seguiram ao marco constitucional de 1988, tiveram, como um dos efeitos mais visíveis, a ascensão institucional do Poder Judiciário e, especialmente, do Supremo. O Tribunal elevou o padrão de interação com os Poderes Executivo e Legislativo: ele não é mais um simples coadjuvante, mas sim, participante ativo na formulação de políticas públicas e na condução do processo democrático brasileiro.3 Isso tem implicado importante alteração da dinâmica de nosso arranjo institucional, se comparado ao padrão histórico. Ainda temos um Poder Executivo – o federal – protagonista e centralizador; o Legislativo – nos três níveis federativos – sofrendo constantes crises funcionais e déficits de confiança popular. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, antes uma instituição distante dos grandes temas políticos e sociais e acostumada a se submeter a Executivos hipertrofiados, alcançou, de forma gradual, máxime por meio do controle de constitucionalidade das leis, patamar de relevância e autoridade político-normativa absolutamente inédito na história – a Corte tem sido capaz de exercer tanto o papel contramajoritário, promovendo algum equilíbrio entre as forças políticas em disputa, como a função de representar e avançar anseios sociais e políticos favorecidos pelas coalizões majoritárias, mas que, em função 2 ARGUELHES, Diego Werneck. O Supremo na política: a construção da supremacia judicial no Brasil. Revista de Direito Administrativo Vol. 250, Rio de Janeiro FGV, 2009, p. 5. 3 CASTRO, Marcos Faro de. O Supremo Tribunal Federal e a Judicialização da Política. Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol. 12 (n. 34), São Paulo, 1997, p. 149. 1 do caráter muito controvertido dos temas, esbarra em impasses intransponíveis (deadlocks) e omissões persistentes na arena legislativa. E a Corte tem resolvido muitos desses temas por meio de um conjunto variado de práticas interpretativas e decisórias que são todas, igualmente, expansivas de seu espaço institucional: além de suprir lacunas legislativas; ela expande os significados e o alcance de enunciados normativos constitucionais muito indeterminados; afirma direitos e interesses substantivos apenas vagamente definidos na Constituição de 1988; altera o sentido de leis e de outros atos normativos infraconstitucionais sob o pretexto de conformá-los à Constituição; amplifica os próprios poderes processuais e os efeitos de suas decisões; interfere na formulação e na aplicação de políticas públicas. O avanço das decisões do Supremo sobre os outros poderes, ao menos do ponto de vista descritivo, tornou-se realidade incontestável de nosso arranjo político-institucional. Embora realidade do ponto de vista descritivo, este avanço não é unanimidade sob a perspectiva normativa. A ascensão política de juízes e cortes sempre foi alvo de muitas críticas. A prática é acusada de afrontar o princípio democrático e o valor do autogoverno popular.4 Fala-se em mutação do “Estado legislativo parlamentar em um Estado Jurisdicional governado pelo Tribunal Constitucional” e que “esse Tribunal se torna, em sentido peculiar, o soberano da constituição” em clara violação ao princípio da separação de poderes.5 Outros destacam a carência de capacidade institucional do Judiciário, comparado aos Poderes Legislativo e Executivo, para avançar os comandos constitucionais na direção das transformações sociais.6 A legitimidade da atuação mais expansiva e agressiva do Poder Judiciário é, sem dúvida, tema da mais alta relevância e ocupa parcela muito significativa do espaço das reflexões da Teoria Constitucional e Política. O propósito deste texto é expor conceitos e argumentos desse debate normativo, buscando fixar premissas para que se possa questionar a legitimidade democrática do denominado “ativismo judicial” do Supremo Tribunal Federal.7 O texto é dividido, a seguir, em três partes. Na primeira, apresento 4 WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University Press, 1999. BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Stato, Costituzione, democrazia. Studi di teoria della costituzione e di diritto costituzionale. Milão: Giufrrè, p. 262. 6 VERMEULE, Adrian. Judging under Uncertainty. An Institutional Theory of Legal Interpretation. Cambridge: Harvard University Press, 2006. 7 Parte-se da premissa teórica de não ser o ativismo judicial aprioristicamente ilegítimo, devendo ser recusado o rótulo pejorativo como algo inerente à prática. 5 2 conceitos que compõem o vocabulário do debate. Na segunda, abordo algumas propostas que buscam equilibrar a atuação das cortes e o valor da democracia. Na terceira, examino importantes decisões do Supremo em dois eixos temáticos: processo político-eleitoral e proteção de direitos fundamentais. Por fim, conclusões. I – Conceitos 1. Dificuldade contramajoritária e autogoverno popular Fato incontestável é a expansão do controle judicial de constitucionalidade das leis como elemento dos sistemas constitucionais e democráticos contemporâneos. Do ponto de vista descritivo, democracia e cortes constitucionais têm caminhado juntas, vindo países de longa tradição democrática a reforçar, nos últimos anos, o Poder Judiciário ao incluir alguma forma ainda que fraca de controle de constitucionalidade, assim como aqueles recém-democratizados a implementar constituições rígidas dotadas de carta de direitos entrincheirados e cortes constitucionais de amplos poderes. Têm-se assistido a ubiquidade do controle judicial de constitucionalidade. Por outro lado, do ponto de vista normativo, esse “casamento” enfrenta, como faceta da relação entre constitucionalismo e democracia, crises de legitimidade. Sob o rótulo da apontada “dificuldade contramajoritária”, teóricos acusam a ilegitimidade democrática de juízes não eleitos pelo voto popular tornarem inválidas, nulas decisões tomadas por agentes políticos eleitos pelo povo sob o argumento de afronta à constituição. Tal acusação torna-se ainda mais séria tendo em vista que muitas dessas decisões de inconstitucionalidade tomam por base normas constitucionais abertas, portadoras de conteúdo moral – dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade –, que convidam interpretações distintas de acordo com os valores compartilhados por uma sociedade pluralista, o que recomendaria maior deferência às decisões formuladas pela maioria de representantes eleitos dessa sociedade heterogênea. Presentes desacordos profundos na sociedade sobre temas relevantes, alguns reveladores da própria identidade dessa sociedade, o argumento da “dificuldade contramajoritária” propõe sejam as decisões políticas deixadas exclusivamente ao povo por meio dos representantes eleitos, e não a juízes carentes do batismo democrático pelo voto e irresponsáveis perante os eleitores. Como consagrado por Alexander Bickel, que 3 não era totalmente oposto à atuação expansiva da Suprema Corte norte-americana, “a dificuldade fundamental é que a judicial review é uma força contramajoritária em nosso sistema. (...) Quando a Suprema Corte declara inconstitucional um ato legislativo ou a ação de um executivo eleito, ela cerceia a vontade dos representantes do povo real de aqui e de agora.”8 A dificuldade da judicial review é com o autogoverno popular. Contemporaneamente, o professor e filósofo Jeremy Waldron tem construído bem articulada e extremada proposta para discutir a legitimidade democrática da judicial review a partir do ideal de autogoverno popular. O autor utiliza-se do mesmo argumento de fundo das abordagens que defendem o papel das Cortes como a instituição ideal para proteger os direitos fundamentais, mas o faz para criticar essas abordagens e, assim, alcançar conclusão totalmente diversa: o autor critica a judicial review com base nos próprios direitos que ela pretende defender. Waldron defende o direito incondicional dos cidadãos de resolver as divergências sobre direitos e princípios entre eles mesmos ou entre seus representantes, de forma que a autoridade legítima para dizer dos direitos só pode ser aquela cujo procedimento privilegie a autonomia e a responsabilidade de cada pessoa.9 Dessa forma, a teoria política de Waldron é composta de uma teoria democrática da autoridade ligada à teoria da justiça por meio do direito de participação política como manifestação da autonomia e da responsabilidade individual. Definir quem decide ao lado de sobre o que decide. Segundo sustenta, “dada a inevitabilidade de desacordos, uma teoria da justiça e dos direitos precisa ser complementada por uma teoria da autoridade”.10 Trata-se de elaborar uma teoria sobre “como decisões fundamentais sobre direitos 8 BICKEL, Alexander M. The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics. New Haven: Yale University Press, 1978, p. 16-18 9 O autor critica até mesmo a instituição de Cartas de Direitos entrincheirados em Constituições. Jeremy Waldron, A Right-Based Critique of Constitutional Rights. Oxford Journal of Legal Studies 13 (1), 1993, p. 19-28, na discussão prévia sobre a reforma constitucional no Reino Unido e o propósito de incorporação ao sistema de uma Bill of Rigths, expressou sua discordância quanto ao que afirmou ser a defesa de uma “dedução necessária da posição de defesa de direitos na filosofia política, de um comprometimento com uma Carta de Direitos”. Waldron afirma que direitos morais não demandam necessariamente sua legalização, muito menos uma superproteção por meio de seu entrincheiramento constitucional. Para ele, o entrincheiramento dos direitos, ao excluir questões fundamentais de futuras deliberações, não combinaria bem com a áurea de respeito pela autonomia e responsabilidade do povo que é transmitida pela substância dos próprios direitos entrincheirados. No mesmo sentido: WALDRON, Jeremy. Precommitment and Disagreement. In: ALEXANDER, Larry. Constitutionalism. Philosophical Foundations. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 272-299. 10 WALDRON, Jeremy. A Right-Based Critique of Constitutional Rights. Oxford Journal of Legal Studies 13 (1), 1993, p. 32. 4 individuais devem ser tomadas”.11 Para ele, a decisão deve ser tomada por um procedimento que fortaleça a própria autonomia do indivíduo. Waldron reconhece que as pessoas que discordam sobre direitos, mas que são igualmente apoiadores da necessidade de uma teoria da autoridade em complemento a uma teoria da justiça, vão, inevitavelmente, discordar sobre o que essa teoria da autoridade requer, sobre “quem tem o poder de tomar decisões ou por quais processos as decisões devem ser tomadas”. Contudo, independente da escolha feita, devem se comprometer com a possibilidade de prevalecer solução injusta. Na verdade, este último aspecto seria inevitável, indiferente ao procedimento A ou B, pois inerente a qualquer procedimento que se imponha. O professor quer apontar que decisões tirânicas podem vir tanto do legislador como das Cortes e, dessa forma, que o resultado das decisões não pode ser um critério seguro de escolha da autoridade legítima para dizer dos direitos. Como a orientação dirigida a resultados não é conclusiva para definição da autoridade adequada, Waldron constrói sua teoria da autoridade tendo por único critério legítimo a ideia de que o processo adequado é aquele capaz de receber e levar igualmente a sério as informações de todos os que disputam o acordo de sentidos, produzindo conclusões que devem ser precedidas de debates governados pelo mútuo respeito dos diferentes pontos de vista de cada participante. Sua proposta é construída sobre a convicção de que a igual participação política e o autogoverno são, em si mesmos, condições importantes do desenvolvimento da personalidade humana. Para Waldron, o Legislativo é a única instituição onde essas condições deliberativas são respeitadas, haja vista a marca do autogoverno popular representativo, sendo reservado às Cortes um papel bastante secundário nos governos democráticos. Ele afirma que a judicial review é “inapropriada como um modo de tomada de decisões finais em uma sociedade livre e democrática”.12 A abordagem de Waldron, de tão restritiva da judicial review, mostra que posições extremistas devem ser descartadas para a realidade constitucional e empírica brasileira. Isso para ambos os lados – devem ser rechaçadas também propostas que colocam a 11 WALDRON, Jeremy. Disagreements on Justice and Rights. New York University Journal of Legislation and Public Policy 6 (1), 2002, p. 5. 12 WALDRON, Jeremy. The Core of the Case Against Judicial Review. Yale Law Journal 115 (6), 2006, p. 1.348 et seq.; Idem. Judicial Review and the Conditions of Democracy. The Journal of Political Philosophy 6 (4), 1998, pp. 335/355. 5 supremacia judicial como pedra de toque de nossa dinâmica política. Na realidade, a “dificuldade contramajoritária” dirige-se adequadamente contra teorias que supervalorizam o papel das cortes constitucionais13 a ponto de defender posturas de supremacia judicial. Por outro lado, desde o influente trabalho de Robert Dahl, categorizando a Suprema Corte norte-americana como parte essencial da aliança política de governo na maior parte do tempo,14 cientistas políticos e mesmo alguns constitucionalistas vêm negando a própria natureza contramajoritária das cortes constitucionais, inclusive apontando o alinhamento das decisões mais impactantes com a opinião pública.15 Na segunda parte deste texto, considerando o continuum de possibilidades entre supremacia legislativa e judicial, serão apresentadas propostas de atuação da judicial review que buscam conciliar constitucionalismo – limitação do poder político e defesa de direitos fundamentais – e democracia – soberania popular e autogoverno. 2. Ativismo e autorrestrição judicial Como se sabe, os Estados Unidos são o berço do tema e do termo “ativismo judicial”. Em 1803, a Suprema Corte julgou o caso Marbury v. Madison16 e, pela primeira vez, realizou aquilo que marcaria para sempre o seu lugar no sistema político 13 Construção sofisticada desse modelo é a de Ronald Dworkin. cf. ______. Taking Rights Seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1977; ______. Freedom’s Law. The Moral Reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996. 14 O alinhamento entre o Presidente Roosevelt e a Suprema Corte após a vitória na batalha pelo New Deal é um dos exemplos usados por Robert Dahl, Decision-Making in a Democracy: The Supreme Court as a National Policy-Maker. Journal of Public Law Vol. 6 (2), 1957, p. 279-295, para provar sua tese sobre a Corte como um ator político nacional. Para Dahl, “exceto por períodos curtos de transição quando a velha aliança está desintegrando e a nova está lutando para tomar o controle das instituições políticas, a Suprema Corte é inevitavelmente uma parte da aliança nacional dominante”, “uma parte essencial da liderança política”, exercendo a tarefa fundamental, com seu poder de interpretação constitucional, de conferir legitimidade “sobre padrões básicos de comportamento exigidos para a operação de uma democracia.” A questão é que esses períodos de transição não costumam ser tão curtos assim e a luta por sua superação é sempre muito dramática. No Brasil, sob a perspectiva empírica quanto ao número reduzido de declarações de inconstitucionalidade de leis federais, defendeu a mesma tese: POGREBINSCHI, Thamy. Judicialização ou Representação? Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Para uma crítica a este estudo, cf. CAMPOS, Carlos Alexandre de. As dificuldades em se quantificar o qualitativo. Judicialização ou Representação. Política, Direito e Democracia no Brasil. Resenha do livro de Thamy Pogrebinschi. Revista de Direito do Estado nº 22, Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 253-276. 15 FRIEDMAN, Barry. The Will of the People. How Public Opinion Has Influenced the Supreme Court and Shaped the Meaning of the Constitution. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2009. 16 5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803). 6 estadunidense e na história do constitucionalismo mundial – ela julgou inconstitucional uma lei federal e declarou sua nulidade. Para chegar a tanto, a Suprema Corte afirmou o extraordinário poder da judicial review em relação às leis federais sem que decorresse claramente do Texto Constitucional de 1787. Desde então, a discussão sobre o (excesso de) poder das cortes em declarar a inconstitucionalidade das leis tem sido, historicamente, a “obsessão central da teoria constitucional” norte-americana.17 A doutrina norte-americana reconhece ter o primeiro uso público do termo “ativismo judicial” sido feito pelo historiador estadunidense, Arthur Schlesinger Jr.,18 em artigo intitulado The Supreme Court: 1947, publicado na Revista Fortune, vol. XXXV, nº 1, no mês de Janeiro de 1947. Neste texto, além de apresentar o termo, Schlesinger entregou outra importante lição: quanto mais uma corte se apresenta como instituição vital ao país e à sociedade, mais ela e seus juízes deverão sujeitar-se ao julgamento crítico sobre suas motivações, relações internas e externas, enfim, tudo o que possa ser fator das decisões tomadas. Schlesinger defendeu a importância em saber as questões que dividem os juízes da Suprema Corte norte-americana e isso porque “suas decisões ajudam a moldar a nação por anos”.19 Esta é uma lição fundamental para o contemporâneo momento de relevância política e social do Supremo Tribunal Federal. O artigo de Schlesinger avaliou a Suprema Corte de 1947, formada quase inteiramente por juízes nomeados pelo então ex-presidente Roosevelt. O autor classificou os juízes da Corte em: (i) juízes ativistas com ênfase na defesa dos direitos das minorias e das classes mais pobres – Justices Black e Douglas; (ii) juízes ativistas com ênfase nos direitos de liberdade – Justices Murphy e Rutledge; (iii) juízes campeões da autorrestrição – Justices Frankfurter, Jackson e Burton; e (iv) juízes representantes do equilíbrio de forças (balance of powers) – Chief Justice Fred Vinson e o Justice Reed. Schlesinger apresentou o termo “ativismo judicial” exatamente como oposto à “autorrestrição judicial”. Para o autor, os juízes ativistas substituem a vontade do legislador pela própria porque acreditam que devem atuar ativamente na promoção das liberdades civis e dos direitos das minorias, dos destituídos e dos indefesos, “mesmo se, 17 FRIEDMAN, Barry. The Birth of an American Obsession: The History of the Countermajoritarian Difficulty. Part V. Yale Law Journal Vol. 112 (2), 2002, p. 155. 18 Existem anotações no sentido de que Schlesinger na verdade não teria criado o termo, mas o tomou de empréstimo de Thomas Reed Powell, seu colega de Harvard: GREEN, Craig. An Intellectual History of Judicial Activism. Emory Law Journal Vol. 58 (5), 2009, p. 1203, n. 19. 19 SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 73. 7 para tanto, chegassem próximo à correção judicial dos erros do legislador”. Ao contrário, os juízes “campeões da autorrestrição judicial” têm visão muito diferente a respeito das responsabilidades da Corte e da natureza da função judicial: a Suprema Corte não deve intervir no campo da política, e sim agir com “deferência à vontade do legislador”.20 O autor analisou as divergências intelectuais e as disputas de poder entre as diferentes personalidades judiciais da Corte e concluiu que a oposição entre os juízes ativistas e os defensores da autorrestrição judicial resultava, ao final, em “conflito fundamental sobre a própria função do judiciário em uma democracia”. Segundo o autor, não eram questões substanciais que dividiam os juízes da Corte Vinson, todos igualmente nomeados por presidentes Democratas (Roosevelt e Harry Truman). O que realmente dividia os seus membros, muito bem representado pelas ideias opostas de Black e Frankfurter, era o diferente entendimento que tinham sobre o papel constitucional da Suprema Corte. As divergências eram, enfim, uma disputa sobre o lugar da Suprema Corte no sistema de governo norte-americano, travada por meio de posições radicais, mas intelectualmente honestas. No interior dos grupos divididos por Schlesinger, poderia até haver alguma discordância entre os juízes sobre casos específicos, mas nunca sobre a questão essencial da “natureza da função judicial”. Mas, entre os dois grupos, o “grande debate” era mesmo sobre a extensão na qual a Suprema Corte estava permitida a intervir sobre o campo da política, como bem resumido pelo próprio Schlesinger: O grupo Black-Douglas acredita que a Suprema Corte pode cumprir um papel afirmativo em promover o bem-estar social; o grupo Frankfurter-Jackson advoga uma política de autorrestrição judicial. Um grupo é mais preocupado com o emprego do poder judicial em favor da própria concepção de bem social; o outro com expandir o campo de liberdade de conformação dos legisladores, mesmo se isso significar sustentar conclusões que eles particularmente condenam. Um grupo considera a Corte como instrumento para alcançar resultados sociais desejados; o segundo como instrumento para permitir que os outros poderes de governo alcancem os resultados que o povo deseja, sejam bons ou ruins. Em suma, a ala Black-Douglas parece estar mais preocupada em resolver casos particulares de acordo com as próprias pré-concepções sociais; a ala Frankfurter-Jackson com preservar o judiciário em seu espaço estabelecido, mas limitado no sistema Americano. 21 Essa oposição de ideias entre os grupos liderados por Black – os “campeões do ativismo judicial” – e por Frankfurter – os “campeões da autorrestrição judicial” –, tal 20 21 SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 75/77. SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 201. 8 como desenvolvida por Schlesinger, não deixou dúvidas quanto ao que o ativismo judicial representa: uma “declaração de poder”, enquanto a autorrestrição consistiria em “resistir à supremacia judicial (...) em nome da deferência à vontade do legislador”.22 Renúncia ao poder de revisar leis não faria parte da agenda dos juízes ativistas, principalmente se isso atentasse contra os direitos humanos e o que julgassem ser o “espírito da tradição democrática Americana”. Ao contrário, a autorrestrição requer tal renúncia, pois o próprio legislador deve corrigir seus erros. Juízes ativistas tomam decisões de caráter político e de criação positiva do direito, orientados por seu sentido de justiça social, sem fidelidade ao sentido literal do texto constitucional. No entanto, juízes “campeões da autorrestrição judicial” são humildes na interpretação da Constituição e deferentes às decisões dos demais poderes do governo ainda que contrárias às próprias convicções políticas ou morais. O historiador tomou partido, como regra geral, da autorrestrição judicial: “os maiores interesses da democracia nos Estados Unidos” “requerem que a Corte retraia ao invés de expandir seu poder”, devendo deixar a “instituições diretamente responsáveis ao controle popular” o poder de decisão. Contudo, advertiu que o ativismo se justificaria caso “ameaçadas as liberdades que garantem a própria participação política dos indivíduos”,23 ou seja, Schlesinger não negou o ativismo em absoluto, entretanto, não o aceitava como rotina institucional da democracia norte-americana. Importante destacar, contudo, que o debate sobre o ativismo judicial, já há algum tempo, não é mais uma exclusividade norte-americana. O avanço da justiça constitucional e do papel político de cortes constitucionais foi deflagrado com as constituições democráticas do Segundo Pós-guerra e, desde então, vem acompanhando a sequência de outras “ondas de democratização”, estabelecendo-se como uma tendência em várias e diferentes partes do mundo. Outro ponto que merece atenção é quanto à multidimensionalidade do ativismo judicial,24 assim como da autorrestrição judicial. Diferentemente do que muitos autores 22 SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 202-204. SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 208 e 212. 24 Na perspectiva deste trabalho, definimos o ativismo judicial como o exercício expansivo, não necessariamente ilegítimo, de poderes político-normativos por parte de juízes e cortes em face dos demais atores políticos, que: (a) deve ser identificado e avaliado segundo os desenhos institucionais estabelecidos pelas constituições e leis locais; (b) responde aos mais variados fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais presentes em contextos particulares e em momentos históricos distintos; (c) se manifesta 23 9 defendem, esses conceitos não se resumem a uma investigação metodológica. Observando a realidade decisória de diferentes cortes constitucionais quando expandem seu espaço institucional e a influência sobre os outros poderes de governo, faz-se possível configurar o ativismo judicial como uma estrutura adjudicatória multidimensional. Como mostram essas experiências decisórias, as decisões ativistas se apresentam por uma variedade de condutas judiciais distintas. As cortes expandem poderes político-normativos em face dos outros poderes por meio: de interpretações criativas e expansivas dos enunciados normativos constitucionais, notadamente dos princípios constitucionais; da correção das leis, alterando os significados para conformá-las às constituições; da ampliação, por conta própria, de seus instrumentos processuais e da eficácia de suas decisões; da falta de deferência às capacidades legal e cognitiva dos outros poderes; da interferência na formulação e na execução de políticas públicas em torno de direitos sociais e econômicos; e, em alguns casos, através da afirmação de supremacia judicial. Tal variedade decisória se faz presente na jurisprudência contemporânea do Supremo. Da mesma forma, o adversário histórico do ativismo judicial, a “autorrestrição judicial”, padecendo dos mesmos males de indefinição e polissemia do primeiro, também se manifesta por diferentes dimensões que giram em torno de dois elementos: a deferência em favor dos outros poderes e a prudência como mecanismo de preservação da própria autoridade judicial. A deferência é sempre um elemento de valor político, ao passo que a prudência pode ser uma estratégia de autopreservação institucional. Neste último caso, a Corte retrai seu espaço de atuação em favor dos outros poderes, mas tendo em vista sua própria relevância como instituição. De um lado, têm-se dimensões da autorrestrição judicial que têm como núcleo a postura de deferência aos outros poderes na atividade de revisão de atos e decisões prévias por estes tomadas. É dar-lhes o benefício da dúvida sobre a legitimidade e correção material de seus atos, ainda que os juízes sejam pessoalmente contrários a essas decisões. De outro, dimensões da autorrestrição judicial tendo por núcleo a retração de poder judicial como estratégia de preservar o prestígio institucional das cortes ou até mesmo para assegurar sua funcionalidade. Juízes evitam tomar decisões que produzam reações por meio de múltiplas dimensões de práticas decisórias. Cf. o desenvolvimento do tema em CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 10 políticas muito adversas, efeitos sistêmicos de desprestígio institucional ou aumento extraordinário de litigância a ponto de comprometer a capacidade e a qualidade dos serviços, a denominada jurisprudência defensiva. Há também a distinção de dimensões de autorrestrição judicial a partir da natureza da restrição utilizada. Segundo este critério, John Roche classificou as medidas em (a) procedimentais e (b) substantivas.25 Dentro da categoria de técnicas procedimentais, incluem-se o controle da agenda de casos, a rigidez e o formalismo nos requisitos de legitimidade de acesso às cortes, o uso parcimonioso dos instrumentos processuais de decisão, entre outros. As técnicas substantivas compreendem mais aderência ao sentido literal dos textos constitucionais, maior deferência às decisões prévias dos outros poderes, principalmente, as que exigem expertise diferenciada, mais valor à presunção de constitucionalidade das leis, evitar ampla teorização dos direitos constitucionais, não interferir em políticas públicas e sociais, respeito aos precedentes. 3. Judicialização da política Conceito diverso, mas relacionado de perto ao de ativismo judicial é o de judicialização da política e das grandes questões sociais de nosso tempo. A perspectiva de cortes ativistas, atuando como atores políticos, remete ao tema contemporâneo da judicialização da política e de como o ativismo judicial se desenvolve em meio a esse fenômeno.26 Nas democracias contemporâneas, verifica-se a progressiva transferência, por parte dos próprios poderes políticos e da sociedade, do momento decisório fundamental sobre grandes questões políticas e sociais – o espaço nobre do ativismo judicial – para a arena judicial em vez de essas decisões serem tomadas nas arenas políticas tradicionais – Executivo e Legislativo. Essa transferência de poder decisório 25 ROCHE, John P. A Structural Interpretation. In: FORTE, David F. (Ed.) The Supreme Court in American Politics. Judicial Activism v. Judicial Restraint. Lexington: D.C. Heath and Co., 1972, p. 911. 26 Sobre o conceito de judicialização da política, cf. VALLINDER, Torbjörn. When the Courts Go Marching In. In: TATE, C. Neal;______. (Ed.). The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 2005, p. 13; SWEET, Alec Stone. Governing with Judges. Constitutional Politics in Europe. New York: Oxford University Press, 2000, p. 194; VIANNA, Luiz Werneck, et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 11 corresponde a uma das facetas da judicialização da política; a outra refere-se à extensão dos argumentos e métodos de decisão judicial aos outros centros políticos de decisão.27 Isso significa que, mais do que uma escolha deliberada das cortes, elas são requeridas, pelos diversos atores políticos e sociais, a decidir sobre conflitos cruciais contemporâneos. Ou seja, a condição das cortes como atores políticos responde, em larga medida, a fatores externos, máxime a demanda de judicialização da política. Esse fenômeno cria uma estrutura de oportunidades para que as cortes avancem seu poder político-normativo, isto é, pratiquem ativismo judicial. É neste sentido que se pode dizer ter o ativismo judicial na judicialização da política a oportunidade adequada para desenvolvimento. Em suma, ativismo judicial e judicialização da política são coisas distintas, embora intensa e circularmente conectadas. Enquanto judicializar as grandes questões políticas e sociais é demandar soluções para essas questões dentro da arena judicial, o ativismo é a escolha comportamental do juiz ou Tribunal em aceitar essa demanda e ditar as respostas, certas ou erradas, para as questões levantadas.28 É por isso que a judicialização da política ganha mais espaço e se desenvolve com o ativismo judicial, do qual se abastece e se renova. Nesse sentido, Neal Tate fala em desenvolvimento da judicialização da política condicionado à atitude de os juízes decidirem participar do processo de tomada de decisões.29 Trata-se de conceitos fundamentais para o desenvolvimento do debate normativo sobre o controle judicial de constitucionalidade. II – Propostas Importantes pensadores do direito constitucional têm elaborado, desde o fim do século XIX, propostas teóricas que buscam limitar a adjudicação constitucional pelos Tribunais em favor da ideia de democracia e da estabilidade das relações institucionais. 27 Cf. VALLINDER, Torbjörn. When the Courts Go Marching In. In: TATE, C. Neal;___. (Ed.). The Global Expansion of Judicial Power. Op. cit., p. 13; SWEET, Alec Stone. Governing with Judges, Op. cit., p. 194. 28 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo judicial e Legitimidade Democrática. Revista de Direito do Estado Vol. 13, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 75. Ran Hirschl, Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitutionalism. Op. cit., p. 20, distingue a “disposição de atores políticos nacionais de transferir a autoridade político-decisória da esfera política às cortes” e a “disposição do judiciário de responder positivamente a demandas por ativismo”. 29 TATE, C. Neal. Why the Expansion of Judicial Power? In: ____; VALLINDER, Torbjörn (Org.) The Global Expansion of Judicial Power. Op. cit., p. 33. 12 Essas propostas têm procurado minimizar a participação das cortes nas decisões políticas e morais complexas, buscando promover a ideia de deferência judicial aos outros poderes e isso tanto por meio de mecanismos procedimentais como substantivos. Vejamos o conteúdo dessas propostas. 1. A fórmula do “erro manifesto” O marco da sistematização teórica da autorrestrição judicial pode ser considerado o ensaio escrito por James Bradley Thayer em 189330 e sua proposta de que uma lei só deva ser declarada inconstitucional pelas cortes na hipótese de a violação à constituição ser tão manifesta que não deixe espaço para dúvida razoável. Alexander Bickel batizou a proposta de Thayer de “regra do erro manifesto” (rule of the clear mistake),31 segundo a qual apenas um erro legislativo claro, manifesto, acima de qualquer dúvida pode justificar a declaração de inconstitucionalidade de uma lei. Caso não esteja presente erro dessa natureza, juízes e cortes devem abster-se de pronunciar a inconstitucionalidade, ainda que não concordem com isso. Thayer defendeu, portanto, limitações substantivas ao exercício da judicial review, deferência institucional aos outros poderes e isso por motivos de fundo democrático. Thayer não era inteiramente contra a judicial review, mas a favor do exercício particularmente moderado – a proposta thayeriana era de modéstia judicial, de dever de deferência às decisões do legislador. O dever de deferência judicial seria adequado porque as decisões legislativas são tomadas quase sempre dentro de ampla margem de escolha, decorrente da ambiguidade da Constituição norte-americana. Segundo Thayer, na medida em que há essa extensa liberdade de escolha legislativa, os juízes devem evitar interferir. Para ele, portanto, a ambiguidade da Constituição fala em favor do respeito à margem de conformação legislativa e não, como muitos defendem, em favor da liberdade do controle de constitucionalidade. 30 THAYER, James Bradley. The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitutional Law. Harvard Law Review Vol. 7 (3), 1893, p. 129-156.. 31 BICKEL, Alexander M. The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics. Op. cit., p. 35-46. 13 Disso decorre que, apenas uma violação manifesta e inequívoca da Constituição justificaria a intervenção da Corte com a declaração de invalidade da lei contestada.32 Segundo sua formulação clássica: a possibilidade de as Cortes declararem a invalidade das leis se daria “quando aqueles que têm o direito de fazer leis não cometeram um mero erro, mas cometeram um erro muito manifesto – tão manifesto que não está aberto à dúvida razoável”.33 Em havendo qualquer dúvida razoável sobre a constitucionalidade da lei, o juiz tem o dever de ser deferente à decisão prévia do legislador, exercer autocontenção e não declarar inconstitucional a lei questionada. A proposta thayeriana foi, sobretudo, rediscutir as práticas da democracia norteamericana. Ele acusou que o pensamento norte-americano em favor de uma forte judicial review estava distanciado as “questões de justiça e de direito” do espaço políticolegislativo e fomentando a irresponsabilidade geral dos legisladores. Essa situação deveria ser logo compreendida pelo povo, que deveria enxergar os graves riscos para a democracia em se reduzir o campo de ação do legislador e em não impor limites ao poder judicial. Sua abordagem propôs a conexão entre autocontenção judicial e o direito de todos ao autogoverno democrático. “Em nenhum sistema”, disse Thayer, “o poder das Cortes pode ter sucesso em salvar um povo da destruição; [a] proteção principal repousa em outro lugar”.34 Para o autor, a salvação estaria no Poder Legislativo. 2. Virtudes passivas O constitucionalista norte-americano, Alexander Bickel, em artigo de 196135 – incorporado no ano seguinte à sua obra seminal, The Least Dangerous Branch36 –, defendeu a estratégia adjudicatória por meio da qual a Suprema Corte, diante de caso envolvendo a aplicação de princípio constitucional ainda não maduro no seio da sociedade e entre os poderes políticos, deve não decidir o caso para adiar (delay) a 32 Como bem observado por Mark Tushnet, Alternatives Forms of Judicial Review. Michigan Law Review Vol. 101 (7), 2003, p. 2.799, na visão thayeriana “constitucionalidade é uma questão de grau: inconstitucional, mas não muito inconstitucional; um erro, mas não um erro claro”. 33 THAYER, James Bradley. The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitutional Law. Harvard Law Review Vol. 7 (3), 1893, p. 144. 34 THAYER, James Bradley. The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitutional Law. Harvard Law Review 7 (3), 1893, p. 155-156. 35 BICKEL, Alexander. The Passive Virtues. Harvard Law Review Vol. 75 (1), 1961, p. 40-79. 36 BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics. Op. cit., p. 111-198. 14 solução da questão moral ou politica de fundo até que o princípio adquira sentido majoritariamente aceito. Nessas situações, para Bickel, a Suprema Corte deve agir com prudência política – recusar-se a decidir no primeiro momento para minimizar conflitos com as outras instituições de governo e permitir uma discussão mais ampla, um colóquio contínuo,37 entre os poderes políticos, o público e as cortes em torno do princípio. Uma vez que essa discussão tenha amadurecido o princípio, a Corte finalmente deverá aplicálo livre e assertivamente nos casos futuros. Para cumprir tal estratégia, Bickel sugeriu a Corte exercer o que chamou de “virtudes passivas” (passive virtues) – uso de técnicas processuais que permitam evitar o julgamento de mérito do caso e das questões constitucionais envolvidas. Esses mecanismos processuais estratégicos são: ilegitimidade do autor para a propositura da demanda (standing), falta de maturidade do caso para julgamento (ripeness), inexistência de controvérsia atual e por isso a perda do objeto da ação (mootness), questão discutida eminentemente política, carecendo a Corte de competência para julgá-la (political questions doctrine) e ausência de relevância do caso para ser julgado pela Suprema Corte (denial of certiorari). Alexander Bickel propôs, dessa forma, o exercício de prudência pela Corte por meio de limitações procedimentais. Sua proposta foi de autorrestrição judicial prudencial (política). A abordagem de Bickel se diferencia da feita por Thayer em aspectos relevantes. É fora de dúvida que eles propuseram restrições de natureza técnica diversa – com a regra do erro manifesto (forte presunção de constitucionalidade das leis), Thayer impôs limites substantivos ao exercício interpretativo da Corte na judicial review (minimalismo substantivo); com a prática das virtudes passivas, Bickel quis dizer de limites procedimentais sobre o timing do exercício da judicial review (minimalismo procedimental). O primeiro preocupou-se diretamente com o conteúdo da decisão (como e o quê decidir), o segundo, com a conveniência e o momento (se e quando decidir). Eles também divergiram sobre o propósito da autorrestrição judicial – Thayer pretendeu uma Suprema Corte deferente ao legislador; Bickel, uma Suprema Corte prudente, que se 37 BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics. Op. cit., p. 240-244. 15 preocupa com o impacto de e as reações às suas decisões dentro do sistema político como um todo, mas não necessariamente deferente a um poder político em particular.38 Essas divergências entre os autores refletem o que eles pensavam sobre o papel da Suprema Corte no sistema democrático norte-americano. Ao contrário de Thayer, que defendeu um papel secundário para a Corte na interpretação da Constituição, Bickel acreditava que “preservar, proteger e defender” os princípios da Constituição são a própria “raison d’être da Suprema Corte”.39 Para ele, o insulamento político tornava a Corte melhor situada que o legislador para decidir sobre os princípios da ordem constitucional norte-americana. Daí que, estivesse determinado princípio maduro, Bickel acreditava que a Corte deveria agir livremente na implementação do mesmo sem ter que ser deferente a decisões pontuais tomadas por poderes políticos particulares. Ele rejeitou, com isso, o minimalismo substantivo de Thayer para a operação da judicial review pela Suprema Corte. No entanto, consciente de que a judicial review sofre de dificuldade contramajoritária e de que a autoridade da Suprema Corte é limitada diante da vontade popular, Bickel procurou, arguindo o uso de virtudes passivas, temperar a missão de concretizar os princípios constitucionais com a necessidade de preservar a viabilidade política da Corte. Sua solução foi propor cautela para a Suprema Corte na escolha do momento de decidir sobre esses princípios; cuidado na avaliação da conveniência de se e quando decidir. Prudência era a palavra-chave de Bickel para que a Suprema Corte pudesse cumprir papel relevante na interpretação da Constituição e, ao mesmo tempo, preservar a legitimidade de suas ações e seu prestígio institucional no sistema político estadunidense. A preocupação de Bickel com a legitimidade da Suprema Corte e a estratégia de preservá-la por meio das virtudes passivas conectam sua abordagem com importante segmento do pensamento constitucional contemporâneo: em propor que a Corte adie decisões fundamentais sobre princípios constitucionais para permitir um “colóquio contínuo” com os poderes políticos e com a sociedade em geral em torno desses 38 Nesse sentido, cf. POSNER, Richard. The Rise and Fall of Judicial Self-Restraint. California Law Review Vol. 100 (3), 2012, p. 532: “Bickel tinha uma ... opinião inferior sobre os legisladores … do que a de Thayer. (...) Para Bickel, então, como para os Federalistas, restrição era estritamente prudencial.” 39 BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics. Op. cit., p. 188. 16 princípios, Bickel lançou a base normativa para a “teoria dos diálogos constitucionais”. Como disse o autor, princípios são “desenvolvido[s] conversacionalmente, não são unilateralmente aperfeiçoado[s].”40 3. Defesa de minorias e do processo democrático inclusivo Em meio às transformações da Suprema Corte promovidas por Franklin Delano Roosevelt no período pós-batalha pelo New Deal, foi lançada a base hermenêutica de uma nova postura institucional que marcaria a Suprema Corte – a defesa de minorias e a intervenção no processo político-democrático. Trata-se da festejada nota de rodapé nº 4 de United States v. Carolene Products Co.,41 escrita por Harlan Fisk Stone em 1938. A ideia de Stone foi estabelecer padrões diferentes de controle de constitucionalidade, ou seja, um controle mais forte ou mais fraco a depender da matéria envolvida. Em sua “teorização jurisprudencial do New Deal”, Stone arguiu, por um lado, o abandono do controle judicial assertivo da legislação econômica regulatória e, por outro, controle mais agudo (strict scrutiny) de leis que ameaçassem os valores da democracia, restringissem as liberdades civis básicas ou veiculassem aparente preconceito contra “minorias discretas e insulares”.42 Nestes últimos casos, deveria haver alcance mais limitado para a presunção de constitucionalidade das leis, de forma que houvesse quase a suspeita de inconstitucionalidade. Essa foi, sem dúvida, a base doutrinária do ativismo judicial liberal43 da então futura Corte Warren – do avanço judicial de liberdades e direitos fundamentais, apenas vagamente definidos na Constituição, em favor de grupos minoritários e socialmente desfavorecidos. Essa foi a tese consagrada por John Hart Ely,44 para quem o controle judicial de constitucionalidade deve ser exercido de modo legitimamente invasivo para assegurar os direitos individuais indispensáveis para a participação popular no procedimento 40 BICKEL, Alexander M. The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics. Op. cit., p. 244. 41 304 U.S. 144, 155 (1938). 42 TUSHNET, Mark. The Supreme Court and the National Political Order. In: KAHN, Ronald; Kersch, Ken I. (Ed.) The Supreme Court & American Political Development. Lawrence: Kansas, 2006, p. 119. 43 É o que defende, dentre outros, Robert M. Cover, The Origins of Judicial Activism in the Protection of Minorities. Yale Law Journal Vol. 91 (7), 1982, p. 1.287-1.316. 44 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. 17 democrático de tomada de decisões e proteger minorias. Ely formulou uma justificação procedimental para o controle de constitucionalidade forte – assegurar a higidez do processo democrático de modo a evitar que as maiorias pudessem manipulá-lo a seu favor. Reconhecendo a dificuldade contramajoritária da Suprema Corte, o autor não defendeu que esta pura e simplesmente tomasse decisões substantivas em questões complexas cujas soluções não estivessem contidas claramente na Constituição, mas apenas quando isso fosse indispensável para a manutenção de um sistema político democrático e representativo, ou seja, a intervenção judicial seria imprescindível para assegurar direitos reveladores de precondições da democracia inclusiva e plural. A partir da ideia de proteção dos procedimentos democráticos, Ely buscou legitimar fossem judicializadas pela Suprema Corte muitos dos direitos substantivos da Bill of Rights como garantias procedimentais à participação livre e igualitária dos indivíduos na democracia norte-americana – liberdade de expressão, de reunião, de associação, o direito ao voto, a igual proteção das leis. Caberia ao Tribunal, nas palavras do autor, “aperfeiçoar o processo democrático”, no que ele denominou sua teoria da judicial review como uma de “reforço representativo”.45 A Suprema Corte deveria ter especial atenção a setores marginalizados e inferiorizados da sociedade, alijados do processo majoritário, assegurando sejam as escolhas democráticas tomadas sob bases igualitárias. A Suprema Corte não deveria ser uma guardiã dos valores substantivos e morais da sociedade, mas do processo democrático, o que implicaria tutelar esses valores se indispensáveis a assegurar a participação popular ampla nas decisões políticas fundamentais da nação. 4. Minimalismo judicial e fluxo moral Preocupado com o espaço de deliberação democrática, e também com a falibilidade judicial, Cass Sunstein defende modelo de modéstia judicial por meio do qual os juízes, notadamente da Suprema Corte, devem utilizar estratégias minimalistas de adjudicação diante de questões morais complexas – devem tomar decisões estreitas em vez de amplas, isto é, evitar dizer mais do que o necessário para justificar o resultado de um caso concreto; devem tomar decisões superficiais em vez de profundas, isto é, deixar, 45 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Op. cit., p. 181. 18 na maior medida possível, as questões teóricas ou filosóficas mais fundamentais sem decidir. Entre decisões minimalistas (estreitas e superficiais) e decisões maximalistas (amplas e profundas), o autor propõe, via de regra, o uso das primeiras. Obviamente, ele chamou sua proposta de minimalismo judicial.46 Decisões minimalistas, na medida em que são estreitas, resolvem um caso de cada vez, evitam “generalizações prematuras” e, por isso, são capazes de preservar a flexibilidade decisória e o espaço de deliberação democrática sobre as questões de fundo. Ademais, elas diminuem os riscos de erros judiciais. Decisões amplas potencializam a falibilidade judicial e generalizações prejudicam a percepção do julgador sobre as diferenças fáticas relevantes entre o caso presente e os casos futuros. Assim, em negar valor à amplitude e à generalidade decisória, o minimalismo judicial favorece a frequência dos acertos judiciais. Por sua vez, decisões minimalistas, na medida em que são superficiais em fundamentação teórica,47 caracterizam-se por expressar acordos incompletamente teorizados, o que faz com que as pessoas possam convergir sobre o resultado sem prejuízo de continuarem a discutir as teorias mais abstratas sobre as quais divergem. O vazio de conteúdo da fundamentação teórica incompleta seria preenchido, progressivamente, enquanto novos casos particulares fossem discutidos e decididos.48 Com isso, decisões da espécie têm a virtude de fomentar a deliberação democrática, além de evitar erros judiciais com sérios efeitos sistêmicos. A estratégia de Sunstein é a do “uso construtivo do silêncio”49 – evitar decidir questões de incerteza moral tanto para fomentar a deliberação democrática, deixando para os outros poderes a tarefa de tomar essas decisões, como para reduzir os ônus da decisão judicial, tornando os erros judiciais menos frequentes e menos prejudiciais. Essas características não permitem o enquadramento de sua abordagem em apenas uma 46 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999. 47 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Op. cit., p. 13: “Existe uma grande diferença entre uma recusa a dar um argumento ambicioso para um resultado e uma recusa a dar quaisquer razões em qualquer hipótese”. 48 SUNSTEIN, Cass R. Problems with Minimalism. Chicago Law School John M. Olim & Economics Working Paper nº 276 (2ª série), 2006, p. 12. 49 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Op. cit., p. 5: “Claro que é importante estudar o que juízes dizem; mas é igualmente importante examinar o que juízes não dizem, e porque eles não dizem”. 19 dimensão da autorrestrição judicial e isso porque ela requer tanto deferência à capacidade democrático-deliberativa dos outros poderes quanto prudência diante dos efeitos sistêmicos de erros judiciais que decisões maximalistas provocam. Em síntese, para o autor, quando (i) diante de questões de alta controvérsia moral, (ii) os valores em jogo ainda estiverem em fluxo na sociedade (fluxo moral), (iii) o processo democrático estiver focado sobre o tema controvertido, (iv) a Corte carecer de informações relevantes que poderiam assegurar que as decisões atingissem o seu alvo, (v) o debate envolvido não estiver maduro na própria instância judicial, havendo poucas decisões sobre o tema, e (vi) a Corte não estiver segura sobre sua decisão, as decisões minimalistas serão as mais adequadas. Nas hipóteses em que essas circunstâncias se mostrarem opostas, Sunstein aposta no maximalismo judicial. A abordagem minimalista de Sunstein se aproxima da desenvolvida por Alexander Bickel no propósito de fomentar a deliberação democrática sobre as questões morais controvertidas, embora Bickel apostasse muito mais na importância do papel da judicial review e da Suprema Corte. As decisões minimalistas permitem que a sociedade e os demais poderes mantenham um diálogo sobre valores e princípios que ainda estão em fluxo na sociedade e, assim, catalisam ao invés de impedirem os ideais de participação e responsividade. Segundo Sunstein, “uma Suprema Corte minimalista, preocupada tanto com os ideais democráticos como com seu espaço limitado na ordem institucional norteamericana, pode promover as mais altas aspirações da nação sem tomar o lugar dos processos democráticos”.50 5. A doutrina dos standards Importantes setores doutrinários e jurisprudenciais têm desenvolvido diferentes standards para a delimitação das oportunidades de postura judicial adequada entre autorrestrição judicial e ativismo judicial no âmbito do controle de constitucionalidade. Trata-se de formulações que recusam generalizações do tipo defendido, por exemplo, por James Bradley Thayer, que propôs a presunção de constitucionalidade quase absoluta das leis e a virtude soberana da autorrestrição judicial. Como dizem Cláudio Pereira de Souza 50 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Op. cit., p. xiv. 20 Neto e Daniel Sarmento, “a teoria constitucional contemporânea caminha em direção a uma posição com mais nuances” sobre esses parâmetros normativos de intervenção judicial e de declaração de inconstitucionalidade.51 Para estes autores, A tendência atual é a de se conceber a presunção de constitucionalidade de forma graduada e heterogênea, de acordo com diversas variáveis. Ela será mais intensa em alguns casos, demandando uma postura judicial mais deferente diante das escolhas feitas pelos outros poderes, e mais suave em outras hipóteses, em que se aceitará um escrutínio jurisdicional mais rigoroso sobre o ato normativo.52 Nos Estados Unidos, a Suprema Corte, ao longo do tempo, pautada na ideia de a legislação sobre certos interesses estatais merecer mais deferência judicial enquanto alguns direitos constitucionais requererem proteção judicial diferenciada, construiu “um complexo conjunto de regras sobre diferentes níveis de escrutínio judicial” para as diferentes hipóteses de restrição legal a direitos53 – em “um dos mais proeminentes desenvolvimentos doutrinários do século vinte”, a Corte “introdu[ziu] standards variados de controle de constitucionalidade em sua jurisprudência”.54 Essas construções metodológicas, cujas aplicações tornaram-se decisivas para os resultados dos julgamentos, distinguem, de um lado, litígios sobre regulação social e econômica e, de outro, litígios sobre discriminações e restrições às liberdades fundamentais, e prescrevem diferentes graus de intensidade de controle judicial sobre a constitucionalidade das leis tendo em vista quais desses bens ou propósitos estejam predominantemente envolvidos. A construção desses parâmetros foi realizada em três níveis distintos: (1) teste da racionalidade (rationality test/rational basis review) – atualmente, utilizado para o controle de constitucionalidade da legislação social e econômica; (2) teste intermediário (intermediate test) – no começo dos anos 70, utilizado para decidir sobre discriminações baseadas no gênero ou na idade, mais recentemente, em face de leis que discriminaram crianças nascidas fora do casamento e em alguns casos de regulação da liberdade de 51 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional. Teoria, História e Métodos de Trabalho. Belo Horizonte: Forum, 2012, p. 460. 52 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional. Teoria, História e Métodos de Trabalho. Op. cit., p. 460. 53 BALKIN, Jack M. Living Originalism. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 231-232. 54 BLOOM JR., Lackland H. Methods of Interpretation. How the Supreme Court Reads the Constitution. New York: Oxford University Press, 2009, p. 282-283: para o autor, especialmente, mas não apenas, na área da equal protection of the laws. 21 expressão comercial; (3) escrutínio estrito (strict scrutiny) – aplicado para a proteção de direitos e liberdades especialmente fundamentais. No Brasil, alguns autores nacionais, como os citados Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento, têm procurado orientar a atuação do Supremo Tribunal Federal, dando-a mais objetividade, pela fixação de parâmetros para “calibrar a presunção de constitucionalidade dos atos normativos, e também, por consequência, o grau de ativismo do Poder Judiciário no exercício da jurisdição constitucional”.55 Trata-se de delimitar as condições, segundo os autores, nem sempre convergentes em um caso concreto, em que o juiz deve reconhecer maior presunção de constitucionalidade das leis ou deve exercer controle mais rígido sobre a validade dos atos. Esses standards são os seguintes: (1) Grau de legitimidade democrática – “quanto mais democrática tenha sido a elaboração do ato normativo, mais autocontido deve ser o Poder Judiciário no exame de sua constitucionalidade”. Trata-se de prestigiar a “efetiva participação popular” e o maior grau de consenso político na elaboração do ato normativo. Com isso, os juízes devem ser mais autocontidos e deferentes à presunção de constitucionalidade de: “atos normativos aprovados por plebiscito ou referendo popular”; leis de iniciativa popular (como o caso da “Lei da Ficha Limpa”); de emendas constitucionais se comparadas às leis ordinárias; leis aprovadas por “quase a unanimidade” do Parlamento. (2) Condições de funcionamento da democracia – “o Poder Judiciário deve atuar de maneira mais ativa para proteger” “direitos e institutos que são diretamente relacionados com o funcionamento da democracia” (direitos políticos, a liberdade de expressão, o direito de acesso à informação e as prerrogativas políticas da oposição). Como defendem Souza Neto e Daniel Sarmento, nesses casos, “o ativismo não opera contra a democracia, mas em seu favor, assegurando os pressupostos mínimos necessários ao seu funcionamento”. (3) Proteção de minorias estigmatizadas – justifica-se “uma relativização da presunção de constitucionalidade de atos normativos que impactem negativamente os direitos de minorias estigmatizadas”, devendo o Poder Judiciário ser mais ativista na 55 Os parâmetros a seguir indicados constam em SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional. Teoria, História e Métodos de Trabalho. Op. cit., p. 460-463. 22 defesa dos direitos e interesses de grupos excluídos dos processos decisórios ou cujas pretensões não são alcançadas pela vontade majoritária (grupos sub-representados). (4) Fundamentalidade material dos direitos em jogo – “normas que restrinjam direitos básicos – mesmo aqueles que não são diretamente relacionados com a democracia – merecem um escrutínio mais rigoroso do Poder Judiciário, tendo a sua presunção de constitucionalidade relativizada.” Os autores referem-se às liberdades públicas e existenciais, os direitos sociais em seu âmbito de mínimo existencial, mas excluem as “vantagens corporativas, ainda que constitucionalizadas”, e os “direitos de natureza exclusivamente patrimonial.” (5) Comparação de capacidades institucionais – “é recomendável uma postura de autocontenção judicial diante da falta de expertise do Judiciário para tomar decisões em áreas que demandem profundos conhecimentos técnicos fora do Direito.” Isso é particularmente importante para a área de regulação econômica e de políticas públicas redistributivas. (6) Época de edição do ato normativo – “normas editadas antes do advento da Constituição não desfrutam de presunção de constitucionalidade equiparada àquelas feitas posteriormente”. O caso italiano do controle de constitucionalidade da legislação fascista é paradigmático. No Brasil, o controle da legislação editada durante o Regime Militar, contexto antidemocrático dos anos 60 e 70, também justifica o escrutínio mais rigoroso, como foi no julgamento da Lei de Imprensa. 6. Diálogos institucionais A preocupação com o monopólio pelas cortes da interpretação constitucional (supremacia judicial), em tempos recentes, tem feito surgir, tanto como uma afirmação descritiva como normativa, a ideia da interpretação constitucional como “um processo de elaboração compartilhada entre o judiciário e outros atores constitucionais”.56 Trata-se da proposta de diálogos institucionais, que tanto podem derivar dos desenhos institucionais 56 BATEUP, Christine. The Dialogic Promisse. Assessing the Normative Potential of Theories of Constitutional Dialogue. Brooklyn Law Review Vol. 71 (3), 2006, p. 1109. No Brasil, sobre o tema, cf. MENDES, Conrado Hübner. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011; BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais. A quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. 23 (constituição, lei) como da própria postura decisória da Corte. O Canadá é bom exemplo onde ocorre a primeira hipótese. Com a Canadian Charter of Rights and Freedom (“Charter”) de 1982, Carta de direitos entrincheirados, dotada de “status constitucional” e de forte proteção judicial, a agenda da Suprema Corte do Canadá “sofreu uma revisão radical”, passando a ostentar “um especial interesse em questões constitucionais e na interpretação de leis de ampla aplicabilidade”.57 Com a nova Carta, a Corte passou a exercer o controle de constitucionalidade com uma frequência impressionante. Como disse Ran Hirschl, “de uma perspectiva quantitativa, o impacto da Charter of Rights and Freedom sobre o ativismo judicial no Canadá tem sido não menos do que revolucionário”.58 Esta atuação judicial tem provocado críticas vindas de diferentes quadrantes ideológicos e orientações políticas, irritando tanto os conservadores da direita quanto os progressistas da esquerda. A Suprema Corte tem sido frequentemente acusada de exceder em seus poderes e funções. Segundo Alex Cameron, os críticos do ativismo judicial dizem que os “juízes estão ditando política” e que isso é “profunda e fundamentalmente antidemocrático”. A Suprema Corte estaria contradizendo “o entendimento legislativo original” da Charter e utilizando “a retórica do direito e dos direitos para abusar da autoridade sobre áreas significantes de políticas públicas”.59 Alguns autores, todavia, têm acusado o exagero dessas críticas e defendido teses que procuram minimizá-las. Para esses autores, os canadenses, diferentes dos norteamericanos, não devem temer o ativismo judicial ou a supremacia judicial haja vista a estrutura da Charter permitir que mesmo as decisões mais ativistas sejam revistas em meio a um diálogo democrático entre cortes e poderes políticos – mecanismos institucionais da Charter fazem com que a Suprema Corte não tenha a palavra final sobre a constitucionalidade das leis, sendo suas decisões, na realidade, uma etapa importante, mas não a única nem mesmo a definitiva, do processo de interpretação constitucional e 57 SONGER, Donald R. The Transformation of the Supreme Court of Canada. An Empirical Examination. Toronto: University of Toronto Press, 2008, p. 239. 58 HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy. The Origins and Consequences of the New Constitutionalism. Op. cit., p. 19. 59 CAMERON, Alex M. Power Without Law. The Supreme Court of Canada, the Marshall Decisions, and the Failure of Judicial Activism. Montreal: McGill-Queen’s, 2009, p. 27. 24 infraconstitucional que envolve reações e respostas pelos poderes Executivo e Legislativo e pela própria sociedade.60 Em trabalho pioneiro, Peter Hogg e Allison Bushell defenderam que “a ‘judicial review’ é parte de um ‘diálogo’ entre os juízes e os legisladores” que se desenvolve quando uma decisão judicial recebe revisão ou modificação legislativa. A presença deste diálogo, como efeito normativo, reduziria os questionamentos de ilegitimidade democrática da atuação judicial. Ainda que não desaparecessem as constrições sobre o processo democrático, este diálogo institucional promoveria “decisões democráticas”. Segundo esses autores, “as decisões da Corte quase sempre deixam espaço para uma resposta legislativa”, de modo que seria “um erro ver a Charter como tendo dado a juízes não eleitos um veto sobre a vontade democrática dos corpos legislativos competentes.”61 Os autores apontaram quatro características estruturais da Charter que facilitam o diálogo, mas apenas duas dessas interessam mais de perto para este estudo: a section 1, que faz referência à possibilidade de imposição de limites apenas razoáveis aos direitos garantidos pela Charter; a section 33, que permite a supressão legislativa da decisão – a denominada notwithstanding clause (“cláusula não obstante”). Esta proposta dialógica, assim como as anteriores, não negam a validade nem a utilidade em absoluto do controle judicial de constitucionalidade, apenas buscam estabelecer padrões teóricos e metodológicos no sentido de limitar a atuação das cortes constitucionais em favor da democracia e da participação popular na construção dos significados constitucionais. O grande vilão não é o controle em si, nem mesmo, de um modo geral, o ativismo judicial que pode vir a ser legítimo nas hipóteses de insistente omissão ou impasse político-legislativo, e sim a ideia de supremacia judicial, de tribunais como senhores absolutos das constituições. Esta é a perspectiva apriorística e irremediavelmente inconsistente com um governo democrático. 60 HOGG, Peter H.; BUSHELL, Allison A. The CharterDialogue Between Courts and Legislatures. Osgoode Hall Law Journal Vol. 35 (1), 1997, p. 81; ROACH, Kent. The Supreme Court on Trial. Judicial Activism or Democratic Dialogue. Toronto: Irwin Law, 2001, p. 175. 61 HOGG, Peter H.; BUSHELL, Allison A. The CharterDialogue Between Courts and Legislatures. Osgoode Hall Law Journal Vol. 35 (1), 1997, p. 79-80, 105. Dez anos depois do artigo seminal, os autores responderam as críticas que seguiram, cf. ____; ____; WRIGHT, Wade K. The CharterDialogue Revisited – or “Much a do about Methapors”. Osgoode Hall Law Journal Vol. 45 (1), 2007, p. 1-65. 25 III – Decisões As recentes decisões do Supremo que têm suscitado mais intensos debates em torno da legitimidade democrática de sua atuação concentram-se, considerada a matéria versada, em dois campos distintos e igualmente impactantes: o das grandes questões morais e sociais contemporâneas e o da dinâmica dos processos políticos e eleitorais. 1. Defesa dos direitos fundamentais O Supremo tem se ocupado das questões morais mais cruciais da atualidade, as “questões de direitos ‘divisoras de águas’”.62 Dois desses julgados levantaram acusações quanto à possível ilegitimidade das decisões sob a óptica democrática: a da união homoafetiva e a do aborto de fetos anencéfalos. Em 5 de maio de 2011, o Supremo, forte no conteúdo e na eficácia imediata dos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia, reconheceu a equiparação jurídica entre a união estável homoafetiva e a união estável heteroafetiva.63 Apesar de toda a complexidade moral e social da questão, devem ser reconhecidas a “progressiva abertura da sociedade” e a evolução institucional em favor dos direitos dos casais homoafetivos. Mesmo que ainda haja setores religiosos e associativos, condizentes com suas doutrinas particulares, opondo-se fortemente a essas uniões e ao reconhecimento de direitos correspondentes e até manifestações isoladas de violência gratuita, é de toda evidência que, em geral, o tema não é mais o tabu de outrora. No campo da homossexualidade, a intolerância e o escárnio têm, progressivamente, dado espaço à tolerância e ao respeito. Pode-se falar em aceitação social progressiva. Na realidade, a sociedade brasileira tem evoluído a consciência geral na direção da incorreção moral do preconceito de qualquer espécie e da tolerância ao pluralismo sociocultural. No plano institucional, mesmo antes do julgamento pelo Supremo, diversos setores públicos já haviam normatizado situações de equiparação de direitos entre uniões estáveis hetero e homossexuais. A Advocacia Geral da União e o Ministério da Previdência reconheceram benefícios previdenciários, como pensão por morte, aos 62 WALDRON, Jeremy. The Core of the Case Against Judicial Review. The Yale Law Journal Vol. 115 (6), 2006, p. 1.367. 63 STF – Pleno, ADI 4.277/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011, DJ 14/10/2011. 26 parceiros homossexuais; o STJ havia reconhecido esses mesmos direitos no âmbito da previdência privada;64 alguns Estados (como São Paulo) reconheceram esses direitos no âmbito da previdência pública; a Agência Nacional de Saúde (ANS) obrigou os planos de saúde a aceitarem, como dependentes, parceiros de casais homossexuais estáveis; a austera Receita Federal permitiu homossexuais de incluírem parceiros como dependentes econômicos na Declaração do Imposto de Renda. Portanto, a evolução nos planos social e institucional era evidente, faltando o plano político-parlamentar avançar neste sentido. Porém, em questões morais controversas, nosso sistema parlamentar simplesmente não tem conseguido evoluir. O vácuo de consenso político sobre tais temas não é tanto pela falta de iniciativa para deliberação, mas, sobretudo, pela falta de consenso. No caso da união homoafetiva, seja pela impossibilidade real de consenso legislativo, seja pelo receio dos parlamentares face aos custos políticos que estariam presentes qual fosse a decisão, ou mesmo em função da sub-representação política dos homossexuais, a verdade é que a questão não encontraria outra definição se não fosse pelas mãos do Supremo. Apenas a Corte reunia autoridade, disposição e independência política para conferir status de valor constitucional a esse particular avanço no “plano dos costumes”. O Supremo afastou o óbice da expressão literal do artigo 226, § 3º, da Constituição, que impõe o dever de proteção do Estado à “união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”, afirmando que tal regra não veda, expressamente, a equiparação entre as uniões estáveis hetero e homossexuais, e que nem o poderia assim fazer diante do todo axiológico representado pela Constituição. Esse conjunto axiológico – máxime a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a cláusula geral de liberdade e a proibição de preconceito por orientação sexual –, impõe uma “interpretação nãoreducionista do conceito de família como instituição que se forma por vias distintas do casamento civil”.65 Caberia ao Supremo evitar o conflito do artigo 226, § 3º, com essa Dentre outras, cf. STJ – 3ª T., REsp. 1.026.981/RJ, Rel.ª Nancy Andrighi, j. 04/02/2010, DJ 23/02/2010. O Supremo, para reconhecer a equiparação da união homoafetiva à união estável entre homens e mulheres, também deu interpretação conforme a constituição ao artigo 1.723 do Novo Código Civil, que só reconhece expressamente como entidade familiar a união estável entre homens e mulheres. Porém, a escolha de incluir este caso neste tópico, e não no seguinte que trata especificamente da interpretação conforme a constituição, se deu porque enxergo muito mais saliência ativista na construção interpretativa que afasta o óbice da literalidade do dispositivo constitucional (artigo 226, § 3º) do que na reconstrução dos significados normativos do dispositivo legal, que não passou de mero desdobramento da conclusão sobre a norma constitucional. 64 65 27 ordem axiológica e “manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência”. O ministro Joaquim Barbosa defendeu que o reconhecimento do direito almejado “encontra fundamento em todos os dispositivos constitucionais que estabelecem a proteção dos direitos fundamentais, no princípio da dignidade da pessoa humana, no princípio da igualdade e da não-discriminação”, que são autoaplicáveis e “incidem diretamente nas relações de natureza privada, irradiando sobre elas toda a força garantidora emanada do nosso sistema de proteção dos direitos fundamentais”. O direito ao reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas decorreu então da aplicação direta de princípios bastante abstratos e de forte caráter moral que compõem o sistema constitucional de direitos fundamentais. Em 12 de abril de 2012, o Supremo decidiu não ser o aborto de fetos anencéfalos crime, adicionando ao Código Penal mais uma hipótese de excludente de ilicitude do aborto como decorrência da aplicação direta dos princípios da dignidade da pessoa humana, do direito à saúde da mulher, de sua autodeterminação e de seus diretos sexuais e reprodutivos.66 O pedido formulado na ADPF 54/DF era de interpretação conforme a constituição aos artigos 124, 126 e 128, todos do Código Penal (crime de aborto), de modo a torná-los compatíveis com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e com os direitos fundamentais à liberdade e à saúde da gestante e, assim, afastar a ilicitude da “interrupção voluntária da gravidez de feto anencéfalo”. A decisão de procedência importaria, portanto, o reconhecimento de mais uma hipótese de não-punibilidade do aborto, além das textualmente estabelecidas no Código Penal. O “risco” de efeito aditivo de possível sentença de procedência fez surgir questionamentos sobre o próprio cabimento da ação, o que foi então discutido em sede de questão de ordem.67 Segundo o Procurador-Geral, o dispositivo penal interpretado gozava de univocidade de significado, de forma que, além de não caber interpretação conforme a constituição, que necessariamente envolve definir, entre sentidos possíveis, aquele mais compatível com o Texto Constitucional, ainda eventual sentença de procedência importaria em clara atividade legiferante penal pela Corte. Essas questões imporiam o não-conhecimento da ação naquele estágio de julgamento. A proposta de nãoSTF – Pleno, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 12/04/2012. STF – Pleno, ADPF-QO 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 31/08/2007; cf. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Op. cit., p. 381-382. 66 67 28 conhecimento da ação encontrou apoio de quatro ministros – Eros Grau, Cezar Peluso, Carlos Velloso e Ellen Gracie –, todos destacando o “instransponível óbice” do legislador negativo kelseniano. O voto mais contundente no sentido do não-conhecimento da ação foi da ministra Ellen Gracie. Ela acusou a pretensão autoral de ser um mecanismo artificioso de pedir à Corte uma “atuação legislativa”, ou seja, para o Supremo atuar como legislador positivo, preenchendo lacuna do Código Penal ao acrescentar ao tipo “aborto” mais uma hipótese de exclusão de ilicitude, “em usurpação à competência dos outros dois poderes.” Para a ministra, a questão envolve sério “problema de saúde pública[,] que atinge principalmente as mulheres das classes menos favorecidas”, o qual a sociedade deve enfrentar “por meio de seus legítimos representantes perante o Congresso Nacional, não, ao contrário, por via oblíqua e em foro impróprio”, que seria o caso da ADPF discutida. Resolver tema dessa magnitude na Corte “acarretaria uma ruptura de princípios basilares, como o da separação de poderes e a repartição estrita de competências”, além de ser “profundamente antidemocrático”. Aqueles que se opuseram ao conhecimento da ação o fizeram, portanto, apoiados na doutrina kelseniana do legislador negativo. Todavia, a maioria conheceu da ação e, quando do julgamento de mérito, Eros Grau, Carlos Velloso e Ellen Gracie não compunham mais a Corte. Cezar Peluso, então Presidente, julgou improcedente a ação, mas não por argumentos institucionais, e sim substanciais. Ricardo Lewandowski, que também votou pela improcedência, o fez forte em argumentos democráticos e institucionais. Para ele, não caberia ao Supremo “envergar as vestes de legislador positivo, criando normas legais, ex novo, mediante decisão pretoriana”. Aos membros do Tribunal, disse o ministro, “que carecem da unção legitimadora do voto popular”, não seria permitido “promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares fossem.” Lewandowski ainda destacou a complexidade ética e científica do tema em face da capacidade cognitiva do Supremo. Contudo, a maioria da Corte julgou procedente a ação: reconheceu que a obrigatoriedade de a mulher conduzir até o fim a gestação de feto anencéfalo viola o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à proteção da liberdade, da autonomia, da privacidade e da saúde da mulher e deu interpretação conforme a constituição aos citados artigos do Código Penal para excluir do alcance punitivo do 29 Estado a “antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo”. Alguns ministros, inclusive o relator, ministro Marco Aurélio, disseram que o fato é atípico, não havendo que se falar em crime de aborto nem em punição. Tendo em conta a perspectiva da doutrina da tipicidade material, esses ministros consideraram que no caso do feto anencéfalo, por inexistir qualquer chance de sobrevivência extrauterina, não se poderia falar em vida (do feto) como bem jurídico protegido pelo tipo penal do aborto. Por essa razão, diante da inexistência de bem jurídico penalmente tutelável, a conduta discutida – interrupção da gravidez de feto com anencefalia – não poderia ser enquadrada como crime contra a vida, especificamente como crime de aborto. Os ministros Luiz Fux e Gilmar Mendes, no entanto, falaram em lacuna do Código Penal. Fux disse de uma “lacuna normativa” que requer “recurso à equidade integrativa”, enquanto Gilmar Mendes, pensando nas limitações tecnológicas da época de confecção da Lei Penal, reconheceu “omissão legislativa não condizente com o espírito do Código Penal e incompatível com a Constituição”. Sem negar plausibilidade ao argumento da atipicidade material da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, é necessário avaliar essa decisão sob o ponto de vista das transformações operadas sobre a compreensão estabelecida por décadas da disciplina do aborto pelo Código Penal. Sem embargo, sob essa perspectiva consolidada, a decisão do Supremo inovou na ordem jurídica infraconstitucional em superar a lacuna da qual falaram Luiz Fux e Gilmar Mendes. Se a norma de decisão foi, de fato, resultado de interpretação conforme a constituição, de redução teleológica orientada a valores do tipo normativo ou de puro e simples reconhecimento da falta de subsunção por atipicidade material, é questão colocada sob a perspectiva do intérprete e do raciocínio hermenêutico desenvolvido, mas não é suficiente para encerrar a análise de ativismo da decisão. Essa análise requer se leve em conta as transformações promovidas pela decisão sobre a estrutura legal do tipo penal e de suas excludentes de ilicitude. Por essa perspectiva de análise, é possível identificar uma sentença aditiva de significados normativos que “criou” hipótese nova de nãopunibilidade da prática “conhecida” como aborto. Uma sentença aditiva de garantia. O caráter marcadamente moral e altamente polêmico dessas questões, impensáveis para a Corte e a sociedade de outrora, mostra que o Supremo vem desempenhando o papel descrito por Aharon Barak de encurtar a distância entre os valores da Constituição e as grandes transformações sociais em torno dos direitos fundamentais. 30 Diante do vácuo de consenso parlamentar sobre essas questões,68 é o Supremo que tem permitido a mudança de conteúdo dos valores constitucionais como reflexo das mudanças dos conceitos e crenças básicas da sociedade.69 Para Barak, “o direito de uma sociedade é um organismo vivo”, e o papel do juiz é “entender o propósito” desse “direito” e ajudálo a alcançar esse propósito.70 Para tanto, o Supremo tem expandido o conteúdo dos princípios constitucionais e fortalecido os direitos fundamentais, “encontrando-os”, inclusive, nas “entrelinhas do Texto Constitucional”, naquela que Laurence Tribe chamou de “Constituição Invisível”.71 Com decisões como as duas ora descritas, o Supremo Tribunal Federal vem desenvolvendo linha decisória que o aproxima da lendária Corte Warren na defesa de direitos de liberdade e de igualdade: a evolução dos sentidos das normas constitucionais na direção das grandes transformações sociais contemporâneas. Trata-se de relevantíssima tarefa, reconhecida pelo ministro Ayres Britto como o “avanço da Constituição de 1988 no plano dos costumes” e da qual o Supremo não pode se furtar. Como disse o ministro Joaquim Barbosa, há situações nas quais surge “descompasso entre o mundo dos fatos e o universo do Direito” e isso porque o último “não foi capaz de acompanhar as profundas e estruturais mudanças sociais” e é, “precisamente nessas situações, que se agiganta o papel das Cortes constitucionais”.72 A questão aqui é saber até que ponto se apresenta legítimo o Supremo substituirse ao legislador em avançar essas posições de direitos. Como diferenciar impasses e omissões legislativas de decisões efetivamente tomadas sob a forma de “não decidir”? Este é um grande desafio. De qualquer forma, a aceitação social progressiva do homessexualismo, assim como a evolução tecnológica na identificação de casos de impossibilidade de vida ultra-uterina representam transformações sociais e fáticas capazes de revelar tanto o atraso deliberativo no plano legislativo, quanto a necessidade de tomada de posições mais afirmativas por parte do Supremo. A interpretação 68 REIS, Jane. Retrospectiva 2008: Direito Constitucional, Revista de Direito do Estado Vol. 13, 2009, p. 16 69 BARAK, Aharon. Proportionality: Constitutional Rights and Their Limitations. New York: Cambridge University Press, 2012, p. 65. 70 BARAK, Aharon. The Judge in a Democracy. New Jersey: Princeton University Press, 2006, p. 3. Cf. BALKIN, Jack M. Constitutional Redemption. Political Faith in an unjust world. Cambridge: Harvard University Press, 2011. 71 TRIBE, Laurence. The Invisible Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2008. 72 As citações são extraídas de seus votos no “caso da união homoafetiva”. 31 constitucional não pode ficar adstrita ao texto constitucional, ela deve levar em conta o ambiente envolvente. 2. Processo político-eleitoral Entre as inúmeras decisões do Supremo em matéria de processo político-eleitoral, dois julgados merecem atenção especial sob o ângulo da legitimidade democrática: o da cláusula de barreira e o da fidelidade partidária. O Supremo julgou inconstitucionais os índices de desempenho eleitoral estabelecidos na Lei nº 9.096/95.73 De acordo com essa lei, os partidos políticos deveriam, em cada eleição para a Câmara dos Deputados, obter, no mínimo, 5% dos votos apurados, não computados os brancos e nulos, em pelo menos um terço dos Estados e ainda o mínimo de 2% do total de votos em cada Estado, para que pudessem ter direito ao pleno funcionamento parlamentar e consectários (participação no rateio do Fundo Partidário, tempo de propaganda partidária gratuita, formação de bancadas e de suas lideranças). Em unanimidade, o Supremo considerou essas condições excessivas e desproporcionais. A Corte concluiu não ter o legislador, mesmo dentro do campo discricionário de concretização do sistema político proporcional, autoridade para restringir em medida tão desproporcional o funcionamento parlamentar dos partidos políticos. Segundo o relator, ministro Marco Aurélio, essas “cláusulas de desempenho eleitoral” são exorbitantes e desarrazoadas, debilitam as agremiações minoritárias e, por isso, são inconstitucionais por violarem o modelo proporcional de nosso sistema político, o pluralismo políticopartidário e o próprio princípio democrático. No mesmo sentido, afirmou Gilmar Mendes terem as normas violado o princípio da “reserva legal proporcional, que limita a própria atividade do legislador na conformação e limitação do funcionamento parlamentar dos partidos políticos”, o princípio da “igualdade de chances”, com prejuízo para a “concorrência livre e equilibrada entre os partícipes da vida pública” e comprometimento da “essência do próprio processo democrático”, e o modelo pluripartidário da Constituição. Com essas 73 STF – Pleno, ADI 1.351/DF. Rel. Min. Marco Aurélio, j. 07/12/2006, DJ 29/06/2007. 32 restrições, a lei impugnada “condena as agremiações minoritárias a uma morte lenta e segura”. O Tribunal aplicou princípios muito abstratos e indefinidos como razões objetivas suficientes para declarar a nulidade de exercício concreto de ampla capacidade jurídica e epistêmica do legislador na definição de critérios de desempenho eleitoral que julgou adequados ao aperfeiçoamento do processo político brasileiro. Isonomia, proporcionalidade, razoabilidade, pluripartidarismo, democracia, embora amplamente abstratos e indefinidos, ganharam no discurso do Supremo concretude normativa rigorosa para tornar nulo o livre exercício de conformação normativa feita pelo legislador sobre como deve funcionar o nosso sistema político. Com efeito, a decisão buscou na proteção das minorias partidárias a fonte de legitimidade de tal prática metodológica e decisória. No importante e famoso caso da “fidelidade partidária”,74 o Supremo discutiu se o abandono, pelo eleito, da agremiação partidária pela qual se elegeu teria como consequência imediata a legitimação do partido de origem a reivindicar a respectiva vaga, o que implicaria, necessariamente, a perda do mandato. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em resposta à consulta sobre o tema, relatada pelo ministro Cesar Asfor Rocha,75 consagrou tese favorável aos partidos políticos que, com base na resposta, protocolaram junto ao Presidente da Câmara inúmeros pedidos de vacância em desfavor dos deputados “infiéis” e de posse imediata dos suplentes. Os pedidos foram indeferidos e os partidos foram ao Supremo em defesa das vagas. A questão se apresentou altamente problemática diante da ausência de disposição constitucional expressa no sentido pleiteado pelos partidos. Ao contrário, a Constituição, nos artigos 55 e 56, disciplinou as regras de perda de mandato parlamentar sem ao menos chegar perto da hipótese de infidelidade partidária. Na realidade, tal previsão estava presente no artigo 152, parágrafo único, da Constituição de 1967, com a redação dada pela EC nº 1/69,76 mas foi revogada pela EC nº 24/1985. Como lembrou o ministro STF – Pleno, MS 26.602/DF, Rel. Min. Eros Grau, j. 04/10/2006, DJ 17/10/2008; STF – Pleno, MS 26.603/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 04/10/2006, DJ 19/12/2008; STF – Pleno, MS 26.604/DF, Rel.ª Min.ª Cármen Lúcia, j. 04/10/2006, DJ 03/10/2008. 75 Consulta nº 1.398/2007 – Classe 5º; Res. 22.526, de 27/03/2007. 76 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Com a Emenda nº 1, de 1969. Tomo IV (Artigos 118-153, § 1º). 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 616: “A Emenda Constitucional n. 1, de 1969, acertadamente constitucionalizou a regra jurídica ou estatutária de ligação ao partido. (...) Quem deixa o partido sob cuja legenda foi eleito perde o mandato, porque a regra jurídica, a esse respeito, é regra jurídica constitucional.” 74 33 Ricardo Lewandowski ao votar, essa última emenda constitucional foi editada dentro do “clima de redemocratização que imperava no País” em 1985, e teria sido exatamente esse “espírito de redemocratização” a influência para o constituinte de 1988 não incluir a perda do mandato pela infidelidade partidária no rol de hipóteses do artigo 55 da Constituição. Contudo, apesar da falta de previsão constitucional clara e inequívoca, a maioria da Corte legitimou a regra constitucional da perda do mandato parlamentar em razão da prática de infidelidade partidária. Para a Corte, dentro do sistema de “representação proporcional para a eleição de deputados e vereadores, o eleitor exerce a liberdade de escolha apenas entre os candidatos registrados pelo partido político”, de modo que “o destinatário do voto é o partido político” o qual viabiliza a candidatura eleitoral. O candidato eleito, por sua vez, vincula-se ao programa e ao ideário do partido pelo qual foi eleito e abandoná-lo significa, em última análise, afastar-se da escolha feita pelo eleitor. A “fidelidade partidária [seria] corolário lógico-jurídico do sistema constitucional vigente, sem necessidade de sua expressão literal”. O Supremo construiu a decisão conjugando o sistema eleitoral proporcional (artigo 45, caput), o monopólio partidário das candidaturas aos cargos eletivos (artigo 14, § 3º, V) e a essencialidade dos partidos para a concretização do princípio democrático e da representação política do povo (artigo 1º, parágrafo único). Dessa “mistura”, os ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes concluíram, respectivamente, por indisputável “caráter intrinsecamente partidário do sistema político brasileiro” e pela vivência de “uma democracia de partido”. Essas conclusões ratificaram a premissa lançada pelo ministro Asfor Rocha, na consulta respondida pelo TSE no sentido de, segundo a Constituição de 1988, “a democracia representativa, no Brasil, muito se aproxima[r] da partidocracia de que falava (...) Maurice Duverger.”77 Como concluiu o ministro Gilmar Mendes, a regra da perda do mandato pela infidelidade partidária seria extraída da “inteireza da Constituição”, dispensada qualquer enunciação constitucional expressa. O exame dos votos vencedores revela não ter sido a decisão pautada em qualquer dispositivo constitucional mais específico, e sim resultado 77 Com efeito, para o clássico autor francês, DUVERGER, Maurice. Instituciones Politicas y Derecho Constitucional. Tradução de Jesús Ferrero. Barcelona: Ariel, 1962, p. 115, “na prática, os eleitores exercem suas escolhas senão no interior dos limites traçados pelos partidos; escolhem entre os candidatos, porém, não escolhem aos candidatos.” 34 do “raciocínio estrutural” sobre a Constituição e o tipo de governo representativo por ela estabelecido. Os votos vencidos dos ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski revelaram as dificuldades do raciocínio vencedor. Na linha do que defendia, no passado, o ministro Moreira Alves,78 Ricardo Lewandowski negou proeminência à abordagem sistemática da Carta para privilegiar a taxatividade do rol de hipóteses estabelecida nos artigos 55 e 56 e a não inclusão da infidelidade partidária nesse dispositivo. O ministro Joaquim Barbosa, igualmente, condenou a opinião da maioria como sendo uma construção sistemática pautada em “princípios supostamente implícitos na nossa Constituição.” Para ele, tal construção é inadmissível na medida em que o constituinte de 1988 teria disciplinado “conscientemente a matéria” e teria feito “a opção deliberada de abandonar o regime de fidelidade partidária que existia no sistema constitucional anterior.” Segundo Barbosa, diante do caráter taxativo dos artigos 55 e 56 e do fato de aqueles não contemplarem a infidelidade partidária como causa de perda do mandato, a maioria da Corte não poderia construir outra regra, em sentido contrário, a partir de princípios cuja concreção sequer conduz seguramente ao resultado normativo alcançado. Ambas as decisões revelaram preocupação do Supremo com a higidez do processo eleitoral, tanto em relação à necessária natureza inclusiva desse processo, como quanto ao seu aperfeiçoamento ético. A questão posta é, mais uma vez, saber se o Tribunal ultrapassou limites: no caso da cláusula de barreira, se a ausência de deferência aos cálculos empíricos do legislador foi adequada; no caso da fidelidade partidária, se a correção ética da conduta implementada justificaria o papel quase de reformador da Constituição assumido pelo Tribunal. O debate é sobre os limites decisórios do Supremo sob o ângulo de sua legitimidade democrática. Em ambos os casos, a falta de deferência ao legislador e o grau de desconsideração ao texto constitucional posto indicam ter o Tribunal ultrapassado os limites de sua atuação democrática. IV – Conclusão A presente coletânea visa homenagear o Professor Jorge Miranda, um dos mais ativos e brilhantes constitucionalistas da atualidade. O homenageado sempre teve 78 STF – Pleno, MS 20.927/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 11/10/1989, DJ 15/04/1994. 35 preocupação maior com os temas que compõem este artigo: interpretação constitucional, jurisdição constitucional, direitos fundamentais, sistemas políticos, democracia e Estado de direito. Tem oferecido, ao longo de uma carreira acadêmica brilhante, lições sobre esses eixos temáticos que inspiraram diferentes gerações de juristas em Portugal e fora das fronteiras lusitanas, destacadamente, no Brasil. Para Jorge Miranda, Se a democracia postula maioria – com as múltiplas interpretações e reelaborações filosóficas e teoréticas que tem sido alvo – não menos, naturalmente, ela postula o respeito das minorias e, através ou para além dele, o respeito dos direitos fundamentais. Critério de decisão, a regra da maioria não se reconduz a simples convenção, instrumento técnico ou presunção puramente negativa de que ninguém conta mais do que outrem; reconduz à afirmação positiva da igual dignidade de todos os cidadãos, e reconduz-se ao reconhecimento de que a vontade soberana se forma no contraditório e na alternância. Assim sendo, a fiscalização, mesmo quando de carácter objetivista, em último termo visa a salvaguarda dos valores de igualdade e liberdade. [...] Ela só é contramaioritária ao inviabilizar ou infringir esta ou aquela pretensão de maioria, não consistente no contexto global do sistema”79. Entre democracia e constitucionalismo, entre vontade da maioria e proteção de minorias, o Supremo tem tido momentos de falta de deferência absoluta ao legislador quando declara inconstitucional lei sem que o vício seja claro, muito menos manifesto (“caso da cláusula de barreira”), e de criação de regra constitucional por conta própria, em sentido oposto ao que se pode extrair mais diretamente do próprio texto constitucional, pautado em princípios muito vagos e fluídos (“caso da infidelidade partidária”). De outro lado, tem também estado atento às transformações sociais e fáticas marcantes de nosso tempo. Por meio de interpretações modernizantes,80 tem percebido e levado em conta o fenômeno da aceitação social progressiva de posições jurídicas (“caso da união homoafetiva”), bem como as evoluções tecnológicas (“caso do aborto de fetos anencefálicos”) quando do reconhecimento de direitos fundamentais ignorados pelo legislador. 79 MIRANDA, Jorge. Justiça Constitucional e Democracia. In: FELLET, André Luiz Fernandes; NOVELINO, Marcelo (Org.) Constitucionalismo e Democracia. Novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: JusPodium, 2012, p. 120-121. 80 David Strauss, The Modernizing Mission of Judicial Review, The University of Chicago Law Review Vol. 76, 2009, p. 859-907, defende uma “abordagem modernizante” da interpretação constitucional, voltado a reconciliar a judicial review e a democracia, segundo a qual o intérprete constitucional, quebrando as barreiras da inércia legislativa, antecipa tendências na opinião pública e, por outro lado, recua se descobrir que avaliou mal essas tendências, de forma que sempre estará remetido a como evoluem o processo democrático e o sentimento popular. 36 Nos primeiros dois casos, sem deferência à autoridade constitucional e epistêmica do legislador, ausente marco constitucional claro para tanto, o Supremo avançou indevidamente sobre o sistema político e democrático em que inserido. Nos dois outros casos, envolvidos dilemas morais altamente complexos, o Tribunal não enxergou a inércia legislativa como uma efetiva posição pelo não reconhecimento desses direitos, e sim como uma postura de “não decidir” a matéria, em um jogo de transferência de custos políticos e diferimentos decisórios. Este é um ponto fundamental: a atuação mais ou menos legítima do Tribunal depende de como estão se comportando os outros poderes sobre as matérias discutidas. Sem embargo, compartilhamentos de autoridade constitucional, transferência de custos políticos, blind spots e déficits de representatividade parlamentar compõem a gramática do processo de reconhecimento das condições políticas de atuação do Tribunal. É comum que o ativismo judicial de cortes seja politicamente construído. Muito do prestígio contemporâneo das cortes constitucionais ou supremas encontra raízes nas próprias decisões políticas, formais e informais, comissivas e omissivas, de empoderamento dos órgãos judiciais como “árbitros neutros” e dotados de expertise própria para tomada de decisões cruciais, mesmo eventualmente impopulares.81 Descritivo e prescritivos dialogam no ponto. É chegado o momento, portanto, de evoluírem-se os discursos descritivos e críticos da atuação do Supremo e de nosso sistema de controle de constitucionalidade vis à vis a dinâmica de nossas instituições políticas. Em ambos os discursos, as duas arenas não podem ser avaliadas isoladamente, como se Direito e Política fossem realidades tão distantes que não se comunicam. Cortes constitucionais ou supremas, assim como seus comportamentos decisórios não podem ser explicados ou avaliados em isolamento, com distanciamento dos contextos políticos, históricos, ideológicos e institucionais condicionantes. O pensamento juriscêntrico apenas favorece a supremacia judicial, não cabendo, ao jurista, simpatia apriorística a nenhum dos lados do debate. 81 GRABER, Mark A. A New Introduction to American Constitutionalism. New York: Oxford University Press, 2013, p. 138: “Talvez, cidadãos deveriam estar preocupados com agentes eleitos que ‘corram da luz do dia’, escondendo seus objetivos políticos e comprometimentos constitucionais ao apoiar a judicial review e outras práticas que ‘atraem menos atenção’ que legislação. ‘Legisladores’ que, ‘dissimuladamente, transferem responsabilidade por escolhas divisórias a atores menos responsáveis’, cientistas políticos apontam, ‘levantam preocupações substanciais sobre a transparência e responsividade do processo legislativo”. 37