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JUAN JOSÉ SAER
O VISÍVEL
JUAN JOSÉ SAER
TRADUÇÃO DE SUSANA GUERRA
APRESENTAÇÃO DE EDUARDO PELLEJERO
JUAN JOSÉ SAER: A LITERATURA COMO ANTROPOLOGIA ESPECULATIVA
O VISÍVEL1
EDUARDO PELLEJERO
JUAN JOSÉ SAER
TRADUÇÃO DE SUSANA GUERRA
A trinta quilómetros da central, uma semana, quinze dias depois do incêndio e da explosão do reator,
era proibido estar e até passar por lá quando mais não fosse rapidamente, mas pouco a pouco a
vigilância foi abrandando e um mês depois nós, os velhos, demo-nos conta — e o comentávamos
rindo — que aos jovens o que os tinha feito empreender a fuga não era tanto o medo como a esperança,
da qual nós, há já algum tempo, estamos resguardados. Assim, sem nos pormos de acordo, seguindo
cada um por sua conta o mesmo raciocínio, um por um, fomos voltando a instalar-nos nessas
povoações onde tínhamos nascido, essas povoações pelas quais tínhamos visto passar os czares, a
guerra civil, a revolução, as purgas, as invasões, a tirania, a morte, mas também os casamentos, os
partos, a infância, as festas, os comboios, as colheitas.
Mais tarde, os jovens também começaram a regressar, mas nós os velhos fomos os primeiros
e ainda que tal como antes (ainda que por lá, entre trinta e zero quilómetros do sarcófago que cobre
o reator, por muitíssimo tempo ou talvez nunca mais nada voltará a ser como antes) respirávamos o
mesmo ar e caminhávamos sobre a mesma terra, entre nós e eles existia uma diferença de peso: se a
eles lhes custava acreditar na realidade mortífera do invisível que a explosão havia desencadeado, a
nós essa realidade era-nos indiferente. Já nos sabíamos condenados muito antes da explosão, a curto
e a longo prazo. Assim, como havíamos evacuado a povoação contra nossa vontade, passados apenas
quinze dias regressámos. Depois de andar tantos anos a sobreviver, já estávamos habituados a sentir
como, do escuro, a ponta do invisível perfurava o tempo e as coisas.
Dizem que aos bombeiros que foram nas primeiras horas combater o incêndio, os poucos
minutos em que cruzaram pelo ar cheio até corromper do invisível bastaram para os desintegrar, e
aos que estiveram a cinquenta metros, poucas horas depois não lhes icava, nem por dentro nem por
Juan José Saer sempre será para mim aquele que nos recordou que a icção não constitui a recusa de
toda a ética da verdade, mas apenas a procura de uma menos rudimentar. A lucidez e o compromisso
com que encarou essa tarefa o colocam incontestavelmente entre os escritores mais importantes do
século XX. A sua leitura nos convida a um recomeço perpétuo, iel à opacidade do real, avesso à
atitude ingénua que pretende saber de antemão como está constituído o real e quais são as formas
eicazes da sua representação.
Não falo apenas das linhas programáticas de uma literatura de tese. A obra de Saer é, pelo
contrário, de uma sensualidade perturbadora, que o obsessivo trabalho sobre a linguagem enrarece
“até esvaziá-la da matéria perecedora, de qualquer traço individual, de todo o atributo humano”.
Escrever era um tateio no escuro para ele, uma imersão sem reservas nas turbulências da subjetividade,
que não pressupunha imagens de um objeto ou um im a alcançar. Como nos sonhos, a sua escrita
nos revela uma realidade familiar sob as formas de uma inquietante estranheza. Costumava dizer
que o ofício da narrativa devia ter lugar à intempérie, e a verdade é que os seus textos colocam
entre parêntese os artifícios que habitualmente utilizamos para dar um sentido à experiência e uma
perspectiva à história, desvelando “aquilo que as coisas são intimamente”.
O texto que apresentamos aqui — um dos últimos contos escritos por Saer — coloca em jogo,
com rigor e sobriedade insuperáveis, essa espécie de fenomenologia poética. O visível e o invisível se
entrelaçam na sua trama numa relexão arrepiante sobre a inumanidade do universo e a precariedade
da existência, deixando entrever, como dizia Nietzsche, que quiçá vivamos suspendidos pelos nossos
sonhos sobre o lombo de um tigre.
[N.T.] Juan José Saer. “Lo visible”. In: Juan José Saer. Cuentos Completos. Barcelona: El Aleph, 2012.
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fora, nenhum atributo humano. Mas a trinta quilómetros, a ação do invisível assemelha-se ao desígnio
habitual do exterior, que dá e retira, ediica e derruba, e com a mesma obstinação imperturbável
coalha as formas repetindo-as até à náusea com o único im de, um pouco mais tarde, desigurá-las
e desagregá-las, moendo-as tão ino que acabam sendo outra vez irreconhecíveis, misturadas ao pó
cinzento e anónimo do tempo abolido.
Quando apenas nós, os velhos, regressámos, foram dias verdadeiramente felizes. Conhecíamonos todos desde a infância; tínhamos trabalhado nas mesmas fábricas, nos mesmos campos,
combatido nas mesmas trincheiras, dançado e bebido nas mesmas festas, e muitos membros da nossa
geração, em tempo de guerra por exemplo, haviam partilhado até a mesma morte e ainda o mesmo
túmulo apressado e anónimo. E pela primeira vez desde a nossa infância, já não havia czares, não
havia partido, não havia destacamento militar, nem superiores, nem espiões, nem chefes, nem orações
sinceras, nem palavras de ordem paternais, nem comissários políticos, nem instrutores militares ou
civis, nem monges nem popes: tínhamos atravessado a linha para além da qual reinava, omnipresente
e mortal, o invisível, internando-nos numa área que ao que parecia nenhuma hierarquia nem nenhum
discurso eram válidos, e essa situação inédita nos conferia uma liberdade incomparável.
Tudo nos pertencia, casas, hortas, jardins, mercearias e tabernas. Como tínhamos conhecido
não poucas vezes a escassez e também a fome, não ignorávamos o valor da abundância, e pela primeira
vez soubemos o que era gozar desta. Bastava agachar-nos para recolher a salada, os tomates, os morangos
que nem sequer tínhamos plantado — os que o tinham feito estavam longe, na cidade, na casa de
algum parente, no hospital, no cemitério, talvez, agora. Tudo isso era secundário porque, para dizer a
verdade, e ainda que durante incontáveis gerações os seus antepassados tivessem vivido na região, eles
nunca mais regressariam. Nas tabernas, as garrafas de vodca, de vinho, e até de champanhe na casa
de alguma personagem importante, se alinhavam, oferecidas, esperando-nos. As vacas davam mais
leite do que podíamos tomar, as galinhas mais ovos do que requeria qualquer omelete, e os frangos, os
patos, os porcos e os cordeiros que sacriicávamos, antecipando-nos aos soldados que tinham ordem de
matá-los e de enterrá-los ou queimá-los, e que púnhamos a assar nos jardins (não há que esquecer que
estávamos na primavera), mais abundantes que em qualquer festa à qual, na nossa vida já demasiado
longa, tivéssemos assistido. De maneira que os cães e os gatos que se tinham dispersado pelo campo,
porque também a eles os soldados deviam matá-los onde quer que os encontrassem, regressaram com
a coniança restaurada, e se nos primeiros dias estavam ainda um pouco ariscos, quase em seguida se
apaziguaram. Assim nos encontrava, nesse período feliz, o im do dia; reunidos em redor de uma mesa
bem posta, brindando e conversando, cantando as mesmas canções que contavam velhas histórias
acontecidas há séculos na região, falando de vivos e de mortos, e todos esses animais que se tinham
aliado a nós, parecendo-se um pouco conosco no facto de que, por ignorá-la, eram tão indiferentes
à morte como tínhamos chegado a sê-lo nós mesmos, resignados de sabê-la tão inevitável e próxima.
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Não tínhamos sido na nossa juventude apenas operários, camponeses, soldados. Alguns, nos
nossos momentos livres, tocávamos violino, escrevíamos versos ou memórias, montávamos uma
ou outra obrinha de teatro. Eu, por exemplo, nos anos vinte, tinha ido um tempo à escola de belas
artes de Vitebsk, e ainda que o meu talento seja muito inferior à minha paixão pela pintura, desde
então, quando me dava a vontade, desenhava alguma coisa ou distribuía um pouco de tinta sobre
uma tela. O meu professor tinha nascido não muito longe da região, e tinha brincado em criança em
lugares parecidos com os meus. Era capaz de observar as linhas ideais e as correspondências secretas
do visível, até esvaziá-lo da matéria perecedora, a que hoje é atacada e corrompida pelo invisível, e
a pintar a sua forma inalterável e eterna. Quando procurava os contrastes, eram sempre os mais
despojados e subtis, negro sobre negro, cinzento sobre cinzento, branco sobre branco. Ao regressar às
formas e às iguras, depois da sua passagem pelo despojamento extremo, as suas personagens tinham
perdido qualquer traço individual e não poucos dos seus atributos humanos. Os que o repreendiam
por pintar essas formas incompletas — camponeses sem cara, sem braços, criaturas vagamente
familiares e ao mesmo tempo tão estranhas — ignoravam o elemento profético que as justiicava,
porque poucas décadas mais tarde nos mesmos jardins da sua infância, por causa da propagação
do invisível, começariam a proliferar seres sem cara, sem braços, formas caprichosas e vivas nas
quais uma espécie nova e diferente da nossa parecia estar a encarnar-se. Talvez através dessas formas
genéricas, humanas e inumanas ao mesmo tempo, tratava de imaginar também o que o nosso século
estava a fazer das criaturas que se agitavam nele e do lugar no qual haviam surgido e as tinha abrigado.
Quando os que mandavam queriam estender o trabalho, o meu professor reivindicava a preguiça, e
onde outros pretendiam impor a qualquer custo o conteúdo ediicante, ele explicava o esquema ideal
do universo, celebrando a lição inesgotável da forma e do seu cintilar colorido. Da sua proximidade
rigorosa e mágica icou-me o gosto exaltante do visível.
Nos meus momentos de ócio, então, aqueles que me deixaram as interrupções causadas
pelo trabalho, a guerra, o exílio, a minha vida familiar também, a minha mulher, os meus ilhos,
os meus amigos e inimigos, o estudo do visível, as fases diferentes de um mesmo objeto ou de um
mesmo lugar em diferentes horas do dia ou em diferentes estações do ano, foram a minha maneira de
procurar um sentido no mundo. Esse sentido é simplesmente a justaposição, na memória, dos estados
sucessivos de uma presença qualquer, interna ou exterior, à passagem dos minutos, das horas, dos
meses ou dos anos. Tomar consciência dessa sucessão é o que dá sentido ao mundo, não o sentido que
preferiria o nosso desejo, mas o das coisas como elas são. Nenhum objeto é constantemente idêntico
a si próprio. Um tomate, por exemplo, nunca é única e verdadeiramente vermelho. Se acreditamos
que é vermelho e única e verdadeiramente vermelho, esse preconceito impede-nos de entender os
seus estados sucessivos e por isso, ao cegar-nos para aquilo que as coisas são intimamente, cega-nos
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também para entender o sentido da nossa existência. O mesmo tomate muda muitíssimo com a
passagem dos dias desde que aparece na planta até que é arrancado e depositado num prato, mas não
mais do que muda nesse prato durante as horas do dia ou em uns poucos de segundos, cada vez que o
meu olhar se ixa nele e me permite tomar consciência da sua presença. Na minha memória continua
a mudar através de ininitas e imprevistas transformações. Tanto como no exterior, muda de forma,
de cor, de estado, e por último de sentido. Nos meus momentos livres, com os meus modestos meios
de expressão, dedicava-me a pintar a mesma coisa muitas vezes — um tomate, uma cadeira, um
jardim ou uma árvore, uma cara, uma colina, sempre os mesmos se possível, a mesma cadeira, a
mesma colina, a mesma cara (a minha) durante cinquenta anos. Saber que as coisas são e não são ao
mesmo tempo: é isso o que põe de manifesto o sentido do mundo. Uma coisa qualquer, mas também
a sua imagem pintada, ainda que pareçam ixas e em repouso, são apesar dessa irmeza aparente, o
teatro discreto onde se representa a cada instante uma cena vertiginosa.
A explosão, ativando o invisível, acabou com essa descrição benévola que, se no im de contas
terminava também por dissociar-nos, graças à lentidão com que nos derruía, nos permitia certa
ilusão de permanência. A explosão veio expulsar-nos da nossa pátria comum, que é o visível. Apenas
nós, os velhos, por causa do pouco tempo que nos restava, podíamos desaiar o invisível, já que os
seus estragos se confundiam com os termos habituais que foram combinados conosco. Quando se
ignora a esperança, a adversidade, por obra desse desdém forçado, ica de imediato abolida. Então
ao começarmos, um a um, a desabar, a evidência desse inal, inscrito há já muito tempo nos nossos
planos, não nos permitia esbanjar as poucas forças que nos icavam com o gasto supérluo da
prudência. O certo é que durante certo tempo, nesse território que todos haviam abandonado, pela
primeira vez na nossa longa vida o mundo esteve feito à medida exata dos nossos desejos. Foi um
período breve de prazer e de calma, durante o qual sem deveres, sermões ou ameaças, gozávamos
do mundo adverso e precário. É verdade que as coisas, durante essa primavera — a explosão tinha
sido em abril — eram, pelo seu tamanho, a sua cor ou a sua forma, um pouco diferentes do que
sempre haviam sido, como se por causa da explosão um novo mundo, colateral ao primeiro, mas
que acabaria suplantando-o por completo, tivesse começado a proliferar. Pouco tempo depois,
também nós formávamos parte dele, porque o invisível nos tinha alcançado, iniltrando-se no
nosso corpo, e quando o exército veio para evacuar-nos, os soldados, que contudo atuavam com
irmeza não isenta de compaixão, evitavam dentro do possível o nosso contato, e mesmo a nossa
proximidade, porque éramos cidadãos desse mundo novo que eles acreditavam circunscrito a um
raio determinado mas que na verdade, graças a essa explosão providencial, tinha começado uma
expansão talvez já ininita. Por outro lado, se fomos os pioneiros desse mundo desconhecido, as
multidões seguiram-nos, porque pouco tempo depois as leis que anatematizavam o espaço proibido
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abrandaram, e a circulação permanente entre esse espaço e o de fora foi-se tornando a cada dia
mais banal. Já não se sabe quem está dentro ou fora dessa germinação formigante.
Os militares e os homens de ciência tratavam-nos como objetos ou criaturas de essência e
uso desconhecido, isolando-nos em quartos vazios e brancos depois de queimar a nossa roupa e o
resto dos nossos pertences, e de fazer-nos tomar vários duches dos quais saía uma chuva enérgica
em cuja composição era evidente que entravam, para além da água, alguns aditivos que me teria
sido impossível identiicar. Mas por acaso a água que conhecemos é apenas água, sempre idêntica a
si mesma, sempre da mesma cor, da mesma temperatura, composta pelos mesmos elementos? Tudo
o que chamamos mundo, a sua totalidade ou cada um dos objetos que o compõem são, já o sabemos,
um e múltiplos ao mesmo tempo, como a luz, por exemplo que, presente até nos mais remotos conins
do universo, é brilhante ou transparente, invisível ou dourada, branca ou multicolorida.
Custa-me cada vez mais levantar-me da cama, mas creio que esse desânimo se deve menos
a uma suposta enfermidade que à obrigação que se me impôs de não sair jamais do meu quarto
branco, no qual apenas há uma cama metálica, uma cadeira metálica e uma mesinha metálica. Então
ico na cama deitado de costas, olhando o teto branco. Uma vez por semana trocam os lençóis, a
roupa branca, e levam para queimar. Creio que farão o mesmo comigo: muito em breve, esperamme íntimas, radicais, inconcebíveis transformações. Por agora, o visível, concentrando-se no teto
branco, permite-me entrever, nos diferentes estados do remoinho vivaz que ferve debaixo da
superfície impassível, da instabilidade essencial do universo, e das terríveis dores que me predizem
certos vislumbres de compaixão no olhar de alguma enfermeira, não são mais do que um instante
passageiro nas mudanças que se avizinham. Deixo a minha pátria viva e colorida por uma escuridão
talvez menos enganosa. É mais que provável que, privado de exaltação mas também de pena, visto de
algum impossível exterior, o mundo seja neutro e branco.
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