Artículo Científico Original
DESCOLONIZANDO
O ENSINO DE DIREITOS HUMANOS?
César Augusto Baldi
Baldi
DESCOLONIZANDO
O ENSINO DE DIREITOS
HUMANOS?
DECOLONIZING
THE HUMAN RIGHTS
EDUCATION
César Augusto Baldi
Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde
1989,é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).
RESUMO
ABSTRACT
É possível pensar os direitos humanos em
chave descolonial? A trajetória de seu
reconhecimento é universal, universalizável ou oculta outras trajetórias de lutas? Neste sentido, pensam-se seis pontos
para repensar a questão: a) as distintas
modernidades europeias, incluindo o período ibérico; b) o processo revolucionário, para além das revoltas burguesas, incluindo outras insurreições antissistêmicas;
c)a influência da diáspora africana e da
escravidão para repensar o sofrimento
humano ocultado; d) a segunda onda de
descolonização dos países, em especial
africanos e asiáticos, que põe na agenda
internacional a luta pela independência
e a reconfiguração de outras tradições
não europeias; e) a utilização de novas
técnicas, como literatura, cinema e artes
visuais, abrindo campo para experimentação de visões alargadas de direitos humanos; f) a antropologia dos sentidos, de
tal forma que os cinco sentidos sejam utilizados para dar novos sentidos à temática
de direitos humanos.
Is it possible to think about human rights
in a decolonial key? The trajectory of
its recognition is universal, universable
or it hides another trajectories of fights?
Based on that – another six points are
thought to reissue the question: a) The
different European modernities, including
the Iberian period; b) The revolutionary
process beyond bourgeois revolts, including other insurrections against the system;
c) The influence of the African diaspora
and slavery to rethink the hidden human
suffering; d) The second wave of decolonization – the asian and african coutries,
that put the struggle for independence
and the reconfiguration of another non
european tradition e) The use of new
techniques such as literature, film and visual arts, opening the field for extended
experimentation with human rights visions;
f) Anthropology of senses, so that the five
senses can be used to provide directions
to a new topic of human rights
Palavras-chave: Descolonização – Modernidades – Eurocentrismo – Diáspora
Africana – Antropologia dos Sentidos.
Keywords: Decolonization – Modernities
– Eurocentrism – African Diáspora –
Anthropology of Senses.
Hendu 4(1):8-18 (2014) |
9
INTRODUÇÃO
Segundo a nova Constituição boliviana,
a educação, “função suprema e primeira
responsabilidade financeira do Estado”,
é unitária, pública, universal, democrática, participativa, comunitária, descolonizadora e de qualidade (art. 78, I), e, em
todo o sistema educativo, “intracultural,
intercultural e plurilíngue”(art. 78, II), no
sentido de que “a interculturalidade é o
instrumento para a coesão e convivência
harmônica e equilibrada entre todos os
povos e nações”(art. 98).
A Constituição brasileira assume o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, no campo educativo (art. 206, III),
e a proteção de direitos culturais, acesso
a fontes da cultura da cultura nacional e
proteção das “manifestações dos grupos
participantes do processo civilizatório nacional”, no campo da cultura (art. 215,
caput e §1º). Mas até que ponto, efetivamente, outros saberes- afro-ameríndios,
de populações tradicionais, etc- não continuam a ser silenciados, oprimidos, ocultados e tidos como inexistentes? É possível
afirmar que ao apregoado pluralismo de
ideias corresponde uma justiça cognitiva?
Talvez fosse interessante fazer um exercício similar, analisando como os direitos
humanos são tematizados e ensinados nos
cursos regulares. Naquela versão que se
tornou hegemônica, a preocupação é geracional: direitos civis e políticos; sociais,
econômicos e culturais; terceira geração; e
quiçá uma quarta (democracia) ou quinta.
Contextualizando...
Mas esta trajetória é universal, universalizável ou simplesmente oculta trajetórias de lutas por direitos humanos contra o próprio projeto de modernização?
Recorde-se, que a Revolução Francesa,
tida como um momento da consolidação
10
| Hendu 4(1):8-18 (2014)
da liberdade, igualdade e fraternidade,
não reconheceu direito às mulheres tampouco questionou a escravidão da população negra.
Deve-se considerar, ainda, que, à época
da Declaração, apenas 48 votaram a
favor, nenhum contra e 8 se abstiveram
(África do Sul, Arábia Saudita, URSS,
Bielorrússia, Tchecoslováquia, Polônia,
Ucrânia, Iugoslávia). Hoje em dia, com o
Sudão do Sul, são 193 países no sistema
ONU. A maior parte dos países- e isso,
no geral, não se salienta- eram justamente colônias de vários dos países europeus
que assinaram a Declaração. Tanto que
a Declaração deveria ter sido assinada
junto com as duas convenções (os denominados pactos de direitos civis e políticos, ao lado de econômicos, sociais e
culturais), bem como da relativa ao genocídio. Somente o primeiro pacto foi assinado e- no geral, também se esqueceque, apesar do sistema ONU afirmar o
direito à autodeterminação dos povos, o
art. II.2 da Declaração fala em território “sob tutela, sem governo próprio” ou
“sujeito a outra limitação de soberania”.
Porque, de fato, a declaração descolonial será aquela assinada em 1960, que
inicia o processo de libertação dos povos
africanos e asiáticos do domínio europeu
( praticamente, somente a Tailândia não
foi colônia formal em algum período histórico “moderno”).
Mas não se pode esquecer que o exercício de autodeterminação invisibilizou, também, os colonizados internos, os indígenas
de todos os países, condição que foi parcialmente reconhecida pela Convenção
169 da OIT e, finalmente, em 2007, com
a Declaração das Nações Unidas sobre
os direitos dos povos indígenas. E mesma
esta declaração é trabalhada pelo signo
colonial: a) primeiro, ao não se recordar
tratar-se de um documento discutido durante mais de 30 anos não somente pelos
Baldi
países, mas, fundamentalmente, pelos próprios povos indígenas, o que lhe acarreta
um patamar de legitimidade jurídico muito
superior a vários outros instrumentos internacionais; b) segundo, porque se trata de
documento de tipo novo, como destacado
por Bartolomé Clavero (CLAVERO, 2008),
mais que uma declaração tradicional e
pouco menos que uma convenção, ao prever nos arts. 38 e 42 mecanismos de supervisão parcial de seus artigos e pela imperatividade, em sua formulação, dos direitos enunciados. A manutenção da visão
colonial na leitura de um texto descolonial
é um ponto a ser ressaltado. E vai ser onde
será declarada, de forma evidente, o “direito à cultura”.
Como recorda Clavero (CLAVERO, 2009),
é necessário que a declaração de 2007
afirme, com todas as letras, que os indígenas também tem direitos humanos.
Um paradoxo que pode-se verificar, por
exemplo, tanto na Convenção de Belém
do Pará quanto da Lei Maria da Penha,
ao afirmar que as mulheres tem direitos humanos iguais a todas as pessoas.
O que mostra, portanto, não somente um
viés colonial, mas também eurocentrado,
heteronormativo, sexista, masculino do
texto. Aliás, em termos de linguagem, a
Constituição do Equador, de 2009, será
a primeira a citar todos os seus artigos
em linguagem não sexista- “os homens e
as mulheres”, “os equatorianos e equatorianas”, o “presidente ou presidenta”, etc.
A Declaração de 1948 é, nesse sentido,
um signo colonial europeu e aplicado
parcialmente ao mundo então existente.
Trabalhos mais recentes, como a monumental coletânea de José Manuel Barreto
(Human Rights from Third World perspective. Cambridge, 2013) tem levantado
outras informações sobre o processo de
discussão do documento então aprovado,
mostrando as tensões internas e também
a contribuição de países latino-america-
nos e do Líbano na construção do consenso então realizado. Neste sentido, o “rotundo sim” se converte em “parcial não”.
Estas outras matrizes discursivas foram
invisibilizadas com a predominância da
presença de Maritain e Eleonor Roosevelt
no processo (vide, no livro citado, as contribuições de Glenn Mitoma e de Susan
Waltz). E se a Declaração em seus “consideranda” destaca os atos bárbaros do
nazismo, ela o faz, no mesmo instante,
ocultando duas questões vinculadas aos
alegados campeões de direitos humanos,
os Estados Unidos: a) manutenção do sistema de segregação racial, que impediria a vigência, na prática e de forma
cruel, da igualdade de todas as pessoas
“independentemente de raça e cor” (art.
II.1); b) a extrema violência que foi, no
final da Segunda Guerra, o bombardeio de Hiroxima e Nagasaki, no Japão.
Esta ocultação é tão impressionante que,
muitas vezes, como me recordou Walter
Mignolo, passa despercebida.
Proponham-se, pois, alguns outros temas
e revoltas para questionar, descolonizar,
pluralizar e ressaltar a necessidade da
interculturalidade.
1. Distintas modernidades europeias.
O privilégio epistemológico outorgado ao
Iluminismo concentrou as atenções na segunda modernidade (Inglaterra, França
e Holanda), em detrimento do período
do Renascimento e de toda a primeira
modernidade (Itália, Portugal e Espanha).
Daí porque a discussão sobre os “direitos
do homem” seja salientada, mas a polêmica sobre “quem conta como humano” seja
esquecida: a disputa entre Sepúlveda e
Bartolomé de las Casas sobre os direitos
dos índios é um bom exemplo.
Mas a própria produção latino-americana foi ignorada, como mostra o resgate de Guaman Poma de Ayala. Este
Hendu 4(1):8-18 (2014) |
11
descendente inca escreveu um tratado
sobre o bom governo, em que critica a
monarquia; desenvolve novo sistema de
governo (mescla de seus conhecimentos
sobre a sociedade espanhola e a inca),
antecipando a “divisão de poderes” e
produz uma rica iconografia profundamente questionadora da ordem colonial
(MIGNOLO, 2008, 304-307). Do que se
trata, portanto, é também do reconhecimento da existência de uma “diferença
imperial”(MIGNOLO, 2003, 440-443),
que ficou evidente, recentemente, com
a utilização por França e Alemanha da
expressão PIGS (“porcos”, literalmente), para referir-se às crises econômicas
de Portugal, Itália, Grécia e Espanha
(“Spain”), ou seja, o Sul do Norte.
2. Revoluções burguesas e insurreições
anti sistêmicas.
Se naquele momento, os indígenas foram
considerados como portadores de alma
(“privilégio” que os negros escravizados não tiveram reconhecidos nem pela
Igreja Católica, nem pelos movimentos
revolucionários burgueses), o fato é que
a narrativa dos direitos humanos salientou somente as revoluções burguesas (em
especial a francesa e a estadunidense).
Concomitante à denominada “era das revoluções” (1789-1848), eclodiam, na hoje
denominada América, duas insurreições
“silenciadas”. Por um lado, a Revolução
Haitiana (1804), que se torna a primeira
nação negra, de escravos iletrados, a se
tornar independente e abolir a escravidão e estabelecer, dentre outros, direitos iguais para filhos nascidos fora do
matrimônio, a possibilidade de divórcio.
Por outro lado, o movimento de Tupac
Katari (1780-1781) e Bartolina Sisa, na
Bolívia, contra o domínio espanhol. Um
ideário de luta que, se valendo da palavra aimara “pachakuti” (o “mundo ao
revés”) indica, de forma mais interessan-
12
| Hendu 4(1):8-18 (2014)
te, o sentido original da própria palavra
“revolução” (a volta que os astros celestes
dão para completar seu ciclo) (TICONA
ALEJO, 2011). Não são, portanto, as lutas
de independência protagonizadas por
“criollos” e celebradas pelos inúmeros
“bicentenários”, mas movimentos de oprimidos negros e indígenas contra os fundamentos do sistema colonial e sua superação. E sem os quais, no caso do último, a
Revolução de 1952, as guerras do gás e
da água (2003), a discussão sobre direitos da natureza, o protagonismo indígena e também a discussão realizada por
Fausto Reinaga (1906-1994) (TICONA
ALEJO, 2013), intelectual aimara, ficam
dificilmente inteligíveis.
3. Diáspora africana e a escravidão.
No século XVII, diversas narrativas de negros libertos questionando a escravidão,
a “vida de nenhum significado”, a necessidade do reconhecimento da dignidade
de todos independentemente de raça e
origem geográfica estiveram disponíveis
para estudo. Por que elas são esquecidas,
como se a escravidão fosse um mero acidente de percurso na modernidade e não
a face perversa da “colonialidade do poder”? Por que os livros tratam da história
da França sem considerar a inter-relação
com as colônias, mas a história destas é lembrada como dependente da metrópole?
Como imaginar que um sistema que, no
Brasil, durou mais de 400 anos (e o país
não é independente nem há 200), é um
acontecimento de pouca importância e
não um “crime contra a humanidade”
(Declaração de Durban) e- mais que istoconstitutivo do sistema moderno? A colonialidade é a outra face da modernidade, e isto não se quer reconhecer.
Ottobah Cugoano (1757-1791), nascido
em Gana e educado na Inglaterra, vai
não somente apresentar propostas para
Baldi
terminar com a escravidão, mas também
para compensar as nações africanas pelos danos ocorridos e para legalizar o
trabalho. Para ele, os seres humanos são
iguais e livres “perante outros seres humanos e não perante o Estado” (CUGOANO,
1999). No mesmo sentido, o relato de
Olaudah Equiano (1745-1797).
E que dizer de Sojourner Truth (17971883), que vai criticar não somente a desigualdade racial, mas também aquela
com relação às mulheres, no momento em
que a cultura dos EUA colocava as mulheres brancas em pedestal, mas ignorava
as mulheres negras?
Em um discurso de 1852, ela afirma
(TRUTH, 2014):
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir
em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que
estejam. Ninguém jamais me ajudou a
subir em carruagens, ou a saltar sobre
poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma
mulher? Olhem para mim? Olhem para
meus braços! Eu arei e plantei, e juntei
a colheita nos celeiros, e homem algum
poderia estar à minha frente. E não
sou uma mulher?
E depois mais ainda: “Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não
pode ter os mesmos direitos que o homem
porque Cristo não era mulher! De onde
o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo
veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com isso”. Que
se tem nesse caso? Primeiro, a oralidade
de um relato frente à “racionalidade da
escritura” de vários textos clássicos do
feminismo branco, uma oratória aprendida nos púlpitos das igrejas. Segundo,
uma mulher negra iletrada que, sem ter
uma obra escrita, se conecta com as lutas de mulheres negras e contra o racismo. Terceiro, um texto criado a partir de
um olhar “desde a colonialidade”: ela
desconstrói a categoria (hegemônica)
de mulher para reivindicar sua própria
identidade enquanto mulher e negra.
A intersecção raça e gênero que é usada
para construir as mulheres negras como
‘não mulheres” é usada, aqui, contra
hegemonicamente como categoria inclusiva, invertendo o discurso. Um discurso
não somente abolicionista, mas também
de defesa dos direitos das mulheres.
4. Segundo processo de descolonização.
No momento em que se passaram cinquenta anos da Declaração de descolonização da ONU (1960), a importância
das lutas de asiáticos e africanos no processo de instauração de direitos humanos
após a Segunda Guerra Mundial merece
ser reavaliada. Não somente os líderes
do processo (Nyerere, Samora Machel
e outros). Também as contribuições de
Fanon, Glissant e Césaire, dentro de uma
perspectiva negra, e todas as contribuições que tem sido feitas no âmbito asiático (de que os “estudos subalternos” da
Índia são apenas uma parcela) e, porque
não salientar, aquelas que não têm matriz marcadamente secular, como o “feminismo islâmico” ou mesmo o movimento de
“feminismo indígena”.
Não é demais lembrar que o secularismo,
nas colônias, serviu aos propósitos coloniais
de submissão da mulher. Joan Scott mostra
isso, de forma muito interessante, num texto em que ela faz um jogo de palavras“sexularism”, no auge das discussões sobre
o véu na França (SCOTT, 2009). O que fazem estas feministas? Querem trabalhar,
dentro de um referencial islamicamente
centrado, novas versões inclusivas de diHendu 4(1):8-18 (2014) |
13
reitos das mulheres (BALDI, 2011). Amina
Wadud e Asma Barlas, a partir de leituras
do Corão, Kecia Ali revisitando a jurisprudência dos distintos países, Sadiyya Shaikh
recuperando a conexão entre espiritualidade e sexualidade nos escritos de Ibn
Arabi são algumas destas representantes.
A ONG Baobah, na Nigéria, e a Sisters in
Islam, na Malásia, da mesma forma que
Musawah (“igualdade”, em árabe) conseguiram importantes vitórias legislativas
e de lutas a favor das mulheres, utilizando um referencial islâmico. A aprovação
da Moudawana, o código de família do
Marrocos, foi uma aliança entre feministas
seculares e islâmicas, e toda a fundamentação das diretrizes de igualdade entre homens e mulheres está expressa- na
apresentação- em termos de jurisprudência islâmica ou do Corão. O fato é que,
muitas vezes, a injustiça cognitiva também
aqui se faz presente. Escolhem-se determinadas interlocuções com pessoas que
estejam dentro deste olhar colonial, imperialista, sexista que vai olhar africanos e
asiáticos, ou mesmo russos, como “bárbaros”, não “civilizados”. Diversas lutas têm
sido invisibilizadas desta forma. Por isso, o
último livro de Lila Abu-Lughod tem o significativo título- “Do Muslim Women Need
Saving?” (Harvard University Press, 2013).
Samuel Moyn (MOYN, 20010) tem salientado bastante a ilusão teleológica de fazer uma leitura da história da frente para
trás, como se o consenso sobre direitos humanos hoje existente confirmasse um caminho linear. E, neste ponto, a escolha dos
precursores é crucial. Recentemente, Saba
Mahmood (MAHMOOD & DANCHIN,
2014) organizou um número temático da
“South Atlantic Quarterly” e mostra, por
exemplo, que existem distintas genealogias para a liberdade de religião e que
hoje elas estão em disputa, seja nas discussões do “laicismo” na França, seja nos
movimentos fundamentalistas religiosos,
seja na jurisprudência da Corte Europeia
14
| Hendu 4(1):8-18 (2014)
de Direitos Humanos. Quando se discutem
direitos humanos, a questão do secularismo e- mais que isso, sua própria descolonização- é por demais importante, para
não ser questionada. Este pós-colonialismo, contudo, é de matiz distinto daquele
resultado do primeiro processo descolonial (independências das Américas) e devem ser observadas suas diferenças.
5. Utilização de outras técnicas
Tem sido comum a utilização de literatura,
cinema e artes visuais para a discussão
dos direitos humanos, o que é salutar, na
medida em que a racionalidade estético expressiva, durante muito tempo, ficou
colonizada pela racionalidade jurídica e
científica. É necessário, contudo, que não
somente o meio utilizado seja alterado:
do que se trata é de mudar os termos do
próprio debate. Não diz respeito somente aos conteúdos, mas à própria enunciação. Antígona, por exemplo, vem sendo
usada, nos cursos jurídicos, para estabelecer uma oposição entre jusnaturalismo e
positivismo, uma discussão europeia que
fora salientada por Hegel, no século XVIII.
Que tal utilizar a “trilogia tebana”, como
fez Judith Butler (BUTLER, 2001), para
discutir o “parentesco aberrante” (afinal,
Antígona é filha de Édipo e de Jocasta,
sua avó), a heteronormatividade, o sexismo e o patriarcado? O que seria destas
questões se, ao invés de um “complexo
de Édipo”, o debate fosse reconfigurado
a partir de um “complexo de Antígona”
(STEINER, George Steiner)?
6. A antropologia dos sentidos e os
sentidos dos direitos humanos.
É preciso que os sentidos (visão, olfato, paladar, tato e audição), sejam sentidos (enquanto “sentire”), de forma a darem novos
sentidos (enquanto direções) para enten-
Baldi
dimento de direitos humanos. E isso vale
para repensar conhecimentos a partir de
outras comunidades de “intérpretes”.
Uma alternativa, contudo, não vem sendo
explorada. Afinal, a “descolonização”
dos sentidos altera o entendimento e a
formulação de nossas lutas contemporâneas? E que dizer, por exemplo, de um feminismo indígena, assentado numa epistemologia aimará, que, conforme salienta
Silvia Rivera, está centrada no “escutar”
a “Pachamama” (mãe terra) e não mais
na “visão”?
Talal Asad (ASAD, s.d) tem salientado ser
necessário realizar “etnografias do corpo
humano”, pesquisas sobre suas atitudes
“em relação à dor, danos físicos, decomposição, morte, bem como integridade física,
crescimento e prazer”, e também “condições que isolam pessoas e coisas entre si ou
que as conectam fortemente com outros”.
Desta forma, portanto, seria necessário
perguntar que atitudes particulares e
sensibilidades dependem de determinados sentidos e como “novas percepções
sensoriais tomam corpo e tornam irrelevantes velhos modos de se relacionar com
o mundo (experiências mais antigas) e velhas formas políticas.” Uma análise que,
segundo ele, envolve um campo teórico
de interpretação para “ajudar a identificar os sentidos e suas expressões”, sendo
certo que os “sentidos, em si mesmos, não
necessariamente requerem significados”,
ou seja, “sem ter que interpretar nada.”
Dentro da tradição religiosa islâmica,
Talal Asad destaca, por exemplo, que
os sentidos da audição e da visão, e,
pois, ler e recitar estão intimamente entrelaçados. Assim, o Corão (que significa
“recitação”/”leitura”) é profundamente
“enraizado em complexas continuidades- inteiramente separados das maiores
escolas de interpretação que providenciaram seus significados”, de modo que
o “texto antigo, escrita na forma textual
do sétimo século, tem sido tratado como
uma forma de marcação melódica/musical, um lembrete para a tradução oral
que depende da memorização através
da reiteração”. Com isso:
Signo e som caminham juntos, mas não
de algum modo fixo e direto. Somente
porque as tradições orais foram contínuas que eles são hábeis de providenciar um quadro imanente para o texto
escrito, e, assim, para sua recepção
erudita através dos séculos. Um esforço, pois, é sempre requerido para
abstrair o texto corânico como um
objeto de interpretação intelectual de
suas relações entre sons carregados e
a atenção do corpo, com seu crescente
armazenamento de memorizações.
Alain Corbin, por sua vez, também vem
analisando as mudanças de percepção
do mundo apropriadas pelos diversos
sentidos, sem estarem, inicialmente, vinculadas com interpretações. Salienta que
as condições de contágio de doenças e
as práticas de higiene individual nos séculos XVIII e XIX na sociedade francesa,
se, por um lado, indicam o olfato como
“superior” quando se “trata de medir a
renovação do ar e, portanto, de prever
os danos do apinhamento”, por outro,
acarretam o aumento da preocupação
com a luminosidade, o “primado inconteste do visual”. Destaca uma “mutação
sensorial nas elites e a maré discursiva
que ela suscita”, para afirmar que “o
fato histórico essencial não é uma realidade que quase não mudara, mas, antes, uma percepção nova, uma nova intolerância de uma realidade tradicional.”
(CORBIN, 1987, p. 198-201).
Ele nota que, no final do século XVIII, os
perfumes baseados em animais, tais como
almíscar, zibeta e âmbar, eram usados
Hendu 4(1):8-18 (2014) |
15
pelas mulheres, não para mascarar seus
odores próprios, mas para enfatizá-los, e
passam, no século XIX, em função das novas considerações sobre higiene pessoal,
a serem desacreditados em favor de “disfarçar com habilidade cada vez maior os
odores corporais tornados inoportunos”,
negando o “papel sexual do olfato”, cabendo, a partir de então, “às delicadas
exalações da perspiração, e não mais aos
odores das secreções, pressagiar a ligação íntima”. Uma forma, pois, de disfarçar
os odores do corpo, ao mesmo tempo que
evoca discretas intimidades do feminino.
Daí a substituição por “óleos essenciais” e
“águas de cheiro”, retirados de flores primaverais ( são as águas de rosas, de violeta, do tomilho, da lavanda e do alecrim).
(CORBIN, 1987, p. 99-101).
Ao mesmo tempo, são os lugares íntimos,
“de monólogo interior”, que garantem
a “disponibilidade olfativa do quarto e
da sala de jantar”, permitindo a “emergência de uma estética do olfato”e, pois,
uma “arte dos aromas destinados a ornar
os lugares da intimidade acompanha os
tímidos progressos da perfumaria”, e o
“quarto individual, que se trata de desodorizar, simboliza esse processo” como
“local por excelência da intimidade olfativa” (CORBIN, 1987, p. 217).
Daí a observação de Talal Asad de que
“atitudes e sensibilidades são deliberadamente cultivados pelas instituições e
movimentos sociais”, mas, os sentidos são
“centrais para a vida pública em que as
pessoas participam, para os modos que
ela promove, se submete, resiste ou permanece indiferente às forças da vida
política.”(ASAD, s.d)
Considerações finais: a questão da
justiça cognitiva.
Para Boaventura Santos, o colonialismo foi
também uma “dominação epistemológi-
16
| Hendu 4(1):8-18 (2014)
ca, uma relação extremamente desigual
entre saberes que conduziu à supressão
de muitas formas de saber próprias dos
povos e nações colonizados, relegando
muitos outros saberes para um espaço de
subalternidade.” (SANTOS & MENESES,
2010, p. 11).
O sociólogo indiano Shiv Visvanathan vai
desenvolver a ideia de justiça cognitiva,
ou seja, “o direito de diferentes formas
de conhecimento coexistirem sem serem
marginalizadas pelas formas de conhecimento oficiais, patrocinadas pelo Estado”,
buscando, assim, “uma viva ecologia de
saberes, como expressa, por exemplo,
no debate entre sistemas indígenas e
a nova medicina, na Índia, em 1923.”
(VISVANATHAN, s.d).
A questão envolve, pois, “o reconhecimento de conhecimentos outros que não a ciência, vistos não dentro das lentes da ciência ou dos testes de prova científica” mas
como “modos de vida que têm sua própria validade cognitiva”, o que demanda um espaço de “indiferença cognitiva
em relação à ciência.” (VISVANATHAN,
2009). Afinal, a narrativa do progresso
é irônica, pois “uma sociedade que vê represas como templos da moderna Índia
está agora de frente ao fato de que há
mais refugiados dos projetos de desenvolvimento que de todas as guerras que
foram travadas. (VISVANATHAN, 2008).
Segundo ele (VISNATHAN, 2009):
a democracia como uma teoria da
diferença tem que reconhecer não a
validade universal da ciência, mas
a plural disponibilidade de conhecimentos e que nenhuma foma de conhecimento possa ser museologizada e
que a memória e inovação caminhem
intrinsecamente juntas. A ideia de alternativas em ciência dá margem a
ciências alternativas, a universalismos
em competição. Tanto a crítica alterna-
Baldi
tiva, quanto a ludita, são agora vistas
não como fundamentalismos, mas como
outras formas de construir conhecimento. Existe um radical ponto de partida na política do conhecimento que
nós devemos reconhecer. Voz, protesto, resistência, participação e direitos
de não esgotar o quadro teórico da
democracia. Para isso, necessitamos de
uma democracia dos conhecimentos.
Desta forma, o conceito de justiça cognitiva reconhece o direito de “diferentes formas de conhecimento coexistirem”, mas
salienta que tal pluralidade necessita ir
além da “tolerância ou liberalismo para
um ativo reconhecimento da necessidade
da diversidade”, uma ecologia de saberes “onde cada conhecimento tem seu lugar, sua afirmação como cosmologia, seu
sentido como forma de vida”, conectando-se com o ciclo de vida, com o estilo de
vida, com a subsistência. (VISVANATHAN,
2009). A pluralidade é, sob este ponto
de vista, a garantia de que “soluções alternativas e caminhos alternativos para
resolver problemas estão sempre disponíveis dentro de uma cultura.” E a ideia
de “justiça cognitiva” é inseparável da
“imaginação democrática”, onde
conversação, reciprocidade, tradução
criam conhecimento não como um expert, quase uma soma zero do mundo,
mas como uma colaboração de memórias, legados, heranças, uma heurística
variada de resolver problemas, onde
um cidadão tenha tanto poder quanto
conhecimento em suas próprias mãos.
O exercício de imaginação epistemológica e democrática é também de imaginação cartográfica, para ver em “cada escala de representação não só o que ela
mostra, mas também o que ela oculta”
e para “lidar com mapas cognitivos que
operam simultaneamente com diferentes
escalas”, em especial detectar articulações locais e globais (SANTOS, s. d).
Mas também um processo de reinventar
a imaginação jurídica, abrindo novas
perspectivas de entendimento, para acolher pluralismo de concepções, diálogos
interculturais e novos exercícios de resolução das questões.
Syed Farid Alatas (ALATAS, 2010) e sua
colega Vineeta Sinha (SINHA, 2003) vêm
desenvolvendo, na National University
of Singapore, há muitos anos, um estudo
diferente de Sociologia: ao invés de somente analisar os “clássicos” Durkheim,
Weber e Marx (homens brancos europeus), os alunos são instigados a trabalhar as contribuições de Ibn Khaldun
(Tunísia), José Rizal (Filipinas), Benoy
Kumar Sarkar (Índia) e Harriet Martineau
(Inglaterra), dentre outr@s. Uma forma de mostrar, segundo eles, que havia
“também mulheres brancas europeias,
além de homens e mulheres não europeus
e não brancos que, no século XIX, teorizaram sobre a natureza das sociedades
modernas emergentes”. Que tal começar
um movimento similar no estudo dos dos
direitos humanos? Talvez, aqui, se consiga vencer o “racismo epistêmico” e “mudar a geografia da razão”(GORDON,
s.d). Ou, como diria Walter Benjamin (7ª
tese sobre a história), “arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela” e escrever uma “história a
contrapelo”(BENJAMIN, s.d)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALATAS, S. F. 2010. A definição e os tipos de discursos alternativos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 46: 225-245.
ASAD, T. Thinking about religions belief and politics.
Disponível em http://iah.unc.edu/images/events/
EventDocuments/asadreligionpolitics, acessado
em 08/06/2014.
Hendu 4(1):8-18 (2014) |
17
BALDI, C. A. 2011. Secularismo, Islã e o “muçulmano”: reflexões sobre colonialidade e biopolítica. Meritum, Disponível em http://www.fumec.br/
revistas/index.php/meritum/article/view/1077,
acessado em 08/06/2014.
MOYN, S. 2010. The last utopia. Harvard, Harvard College.
BENJAMIN, W. Teses sobre la historia y outros fragmentos. Disponível em http://www.bolivare.unam.
mx/traducciones/Sobre%20el%20concepto%20
de%20historia.pdf, acessado em 10/06/2014.
SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências
e uma sociologia das emergências. Disponível em
http://rccs.revues.org/1285#text, acessado em
14/06/2014.
BUTLER, J. 2001. El grito de Antígona. Disponível
em
http://media.espora.org/mgoblin_media/
media_entries/511/Butler_Judith_-_El_Grito_
De_Antigona.pdf, acessado em 10/06/2014.
SCOTT, J. W. 2009. Sexularism. Disponível em http://cadmus.eui.eu/bitstream/handle/1814/11553/RSCAS_DL_2009_01.
pdf?sequence=1, acessado em 15/06/2014.
CLAVERO, B. 2009. No distinction shall be made.
Disponível em http://red.pucp.edu.pe/wp-content/uploads/biblioteca/091108.pdf, acessado
em 10/06/2014.
SINHA, V. 2003. Decentring Social Sciences in
Practice Through Individual Acts and Choices. Current Sociology, january. 51: 7-26.
CLAVERO, B. 2010. Instrumentos internacionales
sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas: Declaración de Naciones Unidas y Convenio de la
Organización Internacional del Trabajo. Disponível
em
http://clavero.derechosindigenas.org/wp-content/uploads/2008/06/prologo-articulo-instrumentos.pdf , acessado em 08/06/2014.
CORBIN, A. 1987. Saberes e odores. São Paulo,
Companhia das Letras.
CUGOANO, Q. O. 1999. Thoughts and sentiments
on the evil of slavery and other writings. New York,
Penguin.
GORDON, L. African-American Philosophy, Race,
and the Geography of Reason. Disponível em http://
lewisrgordon.com/selected-articles/africana-philosophy/lewis2.pdf, acessado em 09/06/2014.
MAHMOOD, S.; DANCHIN, P. 2014. Politics of
Religious Freedom: Contested Genealogies. South
Atlantic Quarterly.
MIGNOLO, W. 2003.The Darker Side of the Renaissance: Literacy, Territoriality, and Colonization.
2ª ed., University of Michigan Press. Disponível em:
http://people.duke.edu/~wmignolo/InteractiveCV/Publications/darker2nded.pdf, acessado em
14/06/2014.
MIGNOLO, W. 2008. A desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado da identidade em política. Cadernos de Letras da UFF. Disponível em http://www.uff.br/cadernosdeletrasuff/34/traducao.pdf, acessado em 14/06/2014.
18
| Hendu 4(1):8-18 (2014)
SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. 2010. Epistemologias do Sul. São Paulo, Cortez.
STEINER, G.. 2009. Antígonas; la travesía de un
mito universal por la historia de Occidente. Barcelona, Gedisa.
ALEJO, E. T. 2011. Bolivia en el inicio del pachakuti.
Madrid, Akal.
ALEJO, E. T. El indianismo de Fausto Reinaga:
orígenes, desarrollo y experiencia em Qullasuyu-Bolivia. Quito, Universidad Andina Simón Bolivar.
Tesis doctoral. Disponível em http://repositorio.
uasb.edu.ec/bitstream/10644/3758/1/TD040-DECLA-Ticona-El%20indianismo.pdf, acessado
em 15/07/2014.
TRUTH, S. 2014. E não sou uma mulher? Disponível
em http://www.geledes.org.br/atlantico-negro/
afroamericanos/sojourner-truth/22661-e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth, acessado em
18/07/2014.
VISVANATHAN, S. A celebration of difference:
science and democracy in India. Disponível em
https://www.sciy.org/a-celebration-of-difference-science-and-democracy-in-india-by-shiv-visvanathan/, acessado em 20/06/2014.
VISVANATHAN, S. 2009. The search for cognitive
justice. Disponível em http://www.india-seminar.
com/2009/597/597_shiv_visvanathan.htm,
acessado em 15/06/2014
VISVANATHAN, S. 2008. Beyond the social contract: science, knowledge and the democratic
imagination in India. Disponível em http://enterqdesigns.com/TeamBHUMN432/docs/35766845.
pdf, acessado em 18/07/2014.