Academia.eduAcademia.edu

DESENHOS DO SILÊNCIO

Texto do catálogo da Exposição sobre Ofélia Marques, em 2002, na Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea.

DESENHOS DO SILÊNCIO1 Emília Ferreira Figura sobre a qual não incidem luzes nem estudos de fôlego, Ofélia Marques permanece quase desconhecida do grande público. Membro da chamada segunda geração do modernismo português, a artista, nascida em Lisboa, a 14 de Novembro de 1902 e registada como Ofélia Gonçalves Pereira da Cruz, foi educada no seio de uma família de posses e ambições comprovadas pelo investimento na sua instrução2, mas que não alimentava qualquer tipo de sonho artístico. Depois dos anos no Liceu Maria Pia, Ofélia seguiu Filologia Românica, na Faculdade de Letras de Lisboa. A sua chegada às artes deu-se por um mesmo acaso que a levou a conhecer aquele que viria a ser seu marido, o desenhador Bernardo Marques, ao tempo também estudante de letras. O auto-didactismo de ambos teve, contudo, resultados diversos. A obra de ilustração de Bernardo, solar e cinematográfica, capaz de recriar uma Lisboa à medida dos seus sonhos urbanos, foi inúmeras vezes capa de magazine, além de amplo recheio de páginas, tornando-o um dos autores privilegiados do registo do seu tempo. A de Ofélia, em tudo mais comedida e menos assumida, teve análises bastante diversas. Do seu casamento sem filhos e da sua natureza discreta nasceria a imagem de uma mulher triste, que amigos, historiografia e crítica confirmariam na análise do seu desenho sensível, gracioso, lírico e decorativo, povoado por meninas inocentes de olhares doces, melancólicos q.b. Também as caricaturas que, pelos anos 30, realizou dos seus amigos, imaginando-os num final de infância que não havia testemunhado, acentuaram semelhante visão, reiterando à obra um sentido de ingenuidades e canduras, apenas temperado por um olhar atento, e por vezes irónico, sobre o caricaturado. À falta de divulgação de outros aspectos da sua criação plástica, a obra conhecida de Ofélia foi assim vista de forma redutora. Não minimizando o seu desgosto por não ter sido mãe, não podemos contudo esquecer ter sido precisamente nos anos 20 – década 1 Texto do catálogo da Exposição Ofélia Marques. Quarenta caricaturas | vinte e um desenhos. Colecção do Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, realizada na Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, 30 Novembro 2002 – 2 Fevereiro 2003, ISBN – 972-8392-98-2. em que ela, como os demais modernistas da sua geração, começou a trabalhar em ilustração –, que a infância emergiu como tema de interesse social; mediático, como hoje se diria. Semelhante estatuto ficou patente nas capas e páginas dos magazines de então, bem como na explosão de vasta panóplia de publicações infantis. Porém, se nada de mais se concluiu dos desenhos de crianças produzidos por artistas homens, os de Ofélia, por ser mulher, logo foram vistos como uma natural apetência. Cabe, todavia, perguntar se não teriam sido esses os modelos realizáveis, o gosto da época, as encomendas. Recuando historicamente, lembremos as ideias redutoras que durante anos se repetiram sobre as pintoras impressionistas. Embora aceitando-lhes o talento, ele foi frequente e paternalmente reduzido a uma escala da aptidão artística possível, dada a sua condição de mulheres. Berthe Morisot ou Mary Cassatt, por exemplo, cedo viram reconhecido o seu merecimento artístico, mas logo a historiografia tradicional viu falhas no facto de elas insistirem em modelos familiares, na presença contínua das crianças, sobretudo marcante na obra da americana, que nunca foi mãe. Esqueceu-se sempre essa mesma historiografia de notar que a essas pintoras dos finais de Oitocentos, o mundo aberto e permitido não era o mesmo que então se oferecia a Degas, Renoir, Manet ou Monet. Mesmo quando elas pintavam teatros, o que mostravam eram os camarotes (não os camarins) e o que daí se via. Ou seja, expunham o registo do que lhes era acessível de um ponto de vista socialmente respeitável. Se a Degas era fácil o acesso aos bastidores, à vida mais íntima e profunda do teatro, a elas semelhantes universos estavam vedados. Foi precisa uma revolução historiográfica, iniciada com o movimento feminista e a decorrente abertura dos seus intervenientes, para se atentar nas qualidades plásticas dessas pintoras, para se tomar em conta o que pictoricamente foi ou não inovado por elas, para se perceber o desenho seguríssimo (que já Degas, contrariado, havia reconhecido em ambas) estruturador do seu pensamento e da criação artística. E para abandonar a observação caseira e malévola dos temas como prova de limitações artísticas. A historiografia portuguesa não escapou a estes preconceitos. E sem comparar nomes e contextos, também entre nós as críticas se prenderam durante muito tempo com avaliações paternalistas das obras das artistas, sobretudo dessas dos anos 20 e 30, casadas ou não, e sempre vistas como as companheiras dos grandes nomes de 2 Sobre a instrução feminina, ao tempo, veja-se Irene Flunser Pimentel, no seu ensaio dedicado à História das Organizações Femininas do Estado Novo. Lisboa: Temas & Debates, 2001, p.73-92. referência do momento. Talvez com a excepção de Maria Keil, o mesmo destino de sombra marcou a produção de Ofélia como as de Estrela Faria, Sara Afonso, Mily Possoz. A representação das suas obras em colecções de museus mostra o reconhecimento institucional, mas não deu ainda frutos de investigação por direito próprio. Regressando a Ofélia, as sombras que imperam ainda sobre o seu trabalho tornamse notórias a cada passo da investigação, vincando os esquecimentos do tempo. No caso das caricaturas, sendo fácil estabelecer biografias para os amigos artistas ou literatos, o passar dos anos apagou as demais figuras. Sabe-se que fizeram parte do grupo, pessoas elegantes, frequentadoras assíduas da sua casa na Calçada dos Caetanos, amigos das tertúlias, companheiros do café. Mas quem eram? O quadro de incertezas adensa-se no caso das mulheres, mesmo as casadas com artistas, em inegável afirmação do seu estatuto privado. Porém, como que ironicamente, é também no espaço privado que a inquietação se opera na obra de Ofélia, como veremos. Sem significativa actividade na pintura – tendo ainda assim sido galardoada com o Prémio Sousa-Cardoso, em 1940, com um retrato de Luísa d’Eça Leal – foi o desenho que mais a ocupou, mantendo uma colaboração algo irregular nos magazines. Nos anos 20 e 30, a expansão desta imprensa denota uma Lisboa que mais se sonhava urbana e moderna do que realmente o era. Parte integrante e importante da mitificação cosmopolita da capital, as figuras femininas apanhadas em pose, que povoavam capas e páginas destas publicações, desenhadas por Bernardo Marques, ou reflectidas por António Soares, imprimiam presença dinâmica e cinematográfica no Chiado. Fora dele, a cidade que se espraiava pelas demais colinas, bem retratada por Carlos Botelho, mantinha um cunho demasiado atávico para que tais figuras tivessem correspondência à realidade. Com efeito, de acordo com os testemunhos da época, mesmo para as mulheres a quem era permitida a entrada nos cafés, como iguais, esse gesto de abertura funcionava como uma excepção à regra. À parte as imagens decorativas que elas próprias representavam enquanto modelos passando modelos, as outras, de carne e osso, iam sentindo que a revolução não era nem tão rápida, nem tão desejada. Aliás, como se pode também perceber por Irene Flunser Pimentel, a par das ilusões de uma emancipação das mulheres na irreal vida citadina da Lisboa dos anos 20, logo na década seguinte, com o maior e mais claro estabelecimento das regras e projectos do Estado Novo, muitas organizações femininas defenderam posições tradicionais (então tidas como moderadas), advogando o regresso ao lar, o abandono de posturas liberais, por perigosas e desviadoras da moral e dos bons costumes e dos interesses da nação 3. Para o grande público, o trabalho de Ofélia não continha sobressaltos. Como quase todos (se não mesmo todos) os modernistas, Ofélia viu as suas ilustrações pontuar páginas de revistas como a “Atlântico”, “Panorama”, “Ver e Crer”, “Revista de Portugal”, ou “Civilização”, onde, em 1928, ilustrou a rubrica “O Reino dos Miúdos”, em estórias contadas por Rosa Silvestre (pseudónimo de Maria Lamas). Nessas suas peças, como também nas BD’s que criava (publicadas no ABCzinho, 19264), obedecia a uma representação algo ingénua das crianças e do seu mundo, retratado entre brincadeiras, instantes de intimidade e poses contemplativas. Apesar de profissional, a colaboração de Ofélia passou muito menos vezes por capas e páginas de revistas do que os consagrados nomes da ilustração. A sistemática publicitação do seu trabalho parece nunca ter estado nos seus planos, apesar das várias participações em exposições colectivas. Estreando-se em 1926, no II Salão de Outono, realizado no espaço dos modernistas, o salão Bobone, participou depois em várias outras5. Porém, jamais expôs individualmente. O seu suicídio, a 17 de Dezembro de 1952, pouco mais de um mês após completar os 50 anos, veio pôr um ponto final numa história que, nos últimos anos de vida, sobretudo depois do fim do seu casamento, se acentuou em silêncio e ensimesmamento. Em 1967, no número de Natal, a revista Eva dedicava-lhe cinco páginas, reproduzindo algumas das suas caricaturas de amigos. O pretexto era divulgar esse conjunto inédito de desenhos e lembrar a artista, numa singela homenagem na qual se aproveitava para sugerir a “organização duma exposição geral da sua obra”, para que ela não se perdesse no esquecimento e a artista não morresse “duas vezes”6. Foi um repto sem consequências. No somatório de todos esses apagamentos, parte importante da sua obra permaneceu durante décadas envolta em silêncio. Foi preciso que António 3 Cf. Irene Flunser Pimentel, op. cit., p. 123 e segs. Cf. A Banda Desenhada Portuguesa: 1914-1945. Catálogo da Exposição no CAMJAP, FCG. Lisboa: CAM, 1997, p. 46, 101, 107 e 158. 5 O reconhecimento dos pares parece não lhe ter faltado. Exemplo disso, a Galeria UP (1933-1938) assina contratos “com os principais modernistas (Barradas, Manta, Botelho, Eloy, Macedo, Bernardo e Ofélia Marques, Rui Gameiro), promove, em 1936, a exposição Artistas Modernos Independentes (...)”. In História da Arte Portuguesa, Direcção de Paulo Pereira, III volume, p. 389. Ao longo dos anos 40, essa participação mantém-se. Ofélia participa na I Exposição Geral de Artes Plásticas, organizada pelo MUD em 1946, na SNBA. “Com cento e noventa e três participantes, ela reunia novos e velhos artistas, entre estes prestigiados naturalistas como Falcão Trigoso, Conceição Silva e António Saúde, e também modernistas, de Abel Manta, Carlos Botelho a Maria Keil, Ofélia Marques ou Júlio.” Idem, p. 397. 4 Rodrigues a trouxesse a público, em exposição organizada, em 1988, na Galeria de Colares, para que novas premissas fossem colocadas. Pela primeira vez, a ingenuidade, candura e doçura de traço foram questionadas, no confronto com desenhos inéditos, onde surgia uma Ofélia menos cândida, mais assertiva e polémica. Como se pode ler no texto do comissário: Não é cómodo confrontarmo-nos com inesperado esboroamento de uma imagem dada e tida por definitiva. Tínhamos Ofélia por uma assaz discreta menina-prendada, em delicados, líricos e graciosos desenhos bordados de meninas. Esta exposição não nos mostra tais afagos decorativos, pelo contrário, remete-os para um outro sentido, maior e irredutível aos lavores femininos, quando revela uma Ofélia – dir-se-ia outra –, autora do conturbado álbum de uma Menina morta.7 No mesmo texto, António Rodrigues punha em dúvida as observações comuns sobre o seu desenho, descobrindo-lhe, dentro das especificidades e mesmidades do traço dos anos 20 e 30, uma expressão própria, interrogando-se, então, sobre o lugar que tal obra deve ocupar. Desenhadora com autonomia imagética e expressiva, como no seu melhor assim se mostra, a obra-de-câmara de Ofélia suscita dois interligados níveis de aproximação. Na conjuntura do modernismo português dos anos 30, que lugar pode ocupar Ofélia? Que distingue a obra de Ofélia?8 Ruía, portanto, neste passo, a tradicional e amputada visão sobre a obra desta artista e a proverbial fragilidade do seu desenho. Ao tempo dessa exposição, Helena de Freitas notava, em artigo no Expresso, que tal redescoberta da identidade de Ofélia oferecia, simultaneamente, a possibilidade de olhar para o seu desenho e reconhecer-lhe plasticidade suficiente para se adequar aos fins propostos: «mal feito» ou «inacabado», ele assim foi propositadamente, do mesmo modo que lírico e fresco para ilustrar alguns livros infantis, e ainda, quando o desejou, «à la manière de Marques», seu marido, como se pode ver, num desenho assim mesmo intitulado, plagiando-lhe com alguma secreta intencionalidade, o estilo, a elegância e a própria assinatura.9 Com efeito, para além da adequação da imagem à personalidade do “retratado”, como rapidamente se constata face às caricaturas, também nos demais desenhos é fácil perceber as intenções narrativas de Ofélia na sua criação de atmosferas. 6 In “Álbum inédito de uma grande pintora portuguesa: Ofélia Marques e os seus amigos quando jovens”, Eva, nº 1149, Natal de 1967. 7 In Rodrigues, António, Ofélia – Ritos de Câmara, in Ofélia Marques: Álbum de uma menina morta. Colares: Galeria de Colares, 1988. 8 Idem. No primeiro caso, vejam-se, por exemplo, Bernardo Marques, António Dacosta ou Carlos Queiroz (este, com a poesia denotada pela lira e pelo pégaso de brincar), representados em citação de principezinhos, o alheamento de José Gomes Ferreira, apanhado no momento criativo do primeiro esboço do poema, a paixão pela matemática já presente nas contas da ardósia de Bento de Jesus Caraça, a frontalidade de Fernanda de Castro ou Sarah Affonso, ou a notória meninice de Maria Keil, “apanhada” com a sua pasta de desenhos. A pasta explica artistas plásticos e poetas, críticos e escritores, como Manuel Mendes, Adolfo Casais Monteiro ou José Bacelar, tal como a ardósia afirma o temporão gosto do desenho, como no seu próprio auto-retrato, a pá e o balde de praia se afirmam como materiais de escultura para o escultor Fragoso, ou como a boina atavia de pintor um Abel Manta miúdo, de semblante sério e determinado. Outras vezes, porém, nada há na representação que indicie a profissão. Vejam-se as caricaturas da pintora Estrela Faria, representada alimentando galinhas, ou os do escritor e político António Ferro, jogando iô-iô (noutra caricatura, Ofélia mostra-o fazendo malabarismos com bolas), enquanto o Dr. Lereno, figura mundana sobre a qual hoje pouco se sabe, brinca com um pião. Se alguns destes desenhos parecem abandonados antes do termo (caso das caricaturas de Almada e de Fred Kradolfer10, reduzidas ao traço a grafite, mas apanhando bem o essencial das duas personalidades, ao ponto de a primeira mimar exactamente os olhos hiperbólicos de Almada), outros há que se adornam de cor e pormenores que deixam inequívocas marcas do carácter do representado. Figuras elegantes em casual mas obrigatório trajo de marujo, como Francisco Horta e Costa ou Maria Manuel Homem Cristo; meninas de luvas, leques, caprichosos chapéus, peles de raposa ou cãezinhos de colo, mostrando vários modelos de presenças graciosas e vampes, como Merícia de Lemos, Luísa d’Eça Leal, Selma Rocha, Nené Horta e Costa ou Reyna Anahory; o dandy do Chiado, de pose elástica e bengala decorativa, como Olavo d’Eça Leal, Eduardo Anahory, ou até mesmo Fernando de Barros. Destas crianças reinventadas, personagens de um teatro cultural e social do seu tempo, passamos para as outras, figuras de magazine ou ilustração, inocentes ou traquinas. Também aí vemos que o trabalho de Ofélia oferece algo mais do que candura. Dos retratos frontais, invariavelmente de olhar perdido, ensimesmado, aos de convívio, 9 In Freitas, Maria Helena de, Ofélia Marques: os espaços da inquietação. Lisboa, Expresso, 19/3/88. Este desenho tem a particularidade de ser o único “ao baixo”. 10 passando pela fila de crianças em passeio de orfanato, até aos momentos de intimidade de uma menina que, sozinha frente ao espelho, divide o cabelo em tranças, todos os registos evocam a afirmação de um mundo próprio, pensativo e nostálgico. Mas também erótico, sensual e vivo, perturbador. Alheias às publicações, embora mantendo a sua paleta característica formada na linguagem cromática desses trabalhos, essas outras meninas de Ofélia são surpreendidas em momentos de intimidade erótica, em poses inequívocas. Hábil em criar atmosferas mais ou menos carregadas, experimentando a notação de um momento distendido, o traço serve a caracterização dos ambientes. Lânguido e ondulante, como naquele onde se representam três jovens e um gato [Nº de Inv. DP. 921], em ambiente de calor e suspiros, onde meninas em camisa de noite, de corpos emoldurados pelos cabelos soltos, gestos vagarosos e abandonados, ostentam rostos cândidos, pés pequenos e decorativos; ou mais assertivamente erótico, como no outro em que duas mulheres acabam de se amar [Nº de Inv. DP. 652]. Em toda a composição, as linhas afirmam uma certa dureza, na marcação de ângulos, no jogo compositivo, na tensão da atmosfera, oscilando entre o silêncio pesado de uma e a leveza e desprendimento dandy da outra. A divisão da imagem ao eixo separa os universos das amantes, isoladas em silêncios distantes. Estas peças, mais polémicas, surgem agora como pretexto para interrogações sobre a vida íntima de Ofélia. Porém, mais do que ir novamente em busca de razões privadas para explicações plásticas, talvez convenha, também neste campo, atentar no tempo em que foram produzidas e pensar que circunstâncias sociais e privadas (do tempo, mais do que da pintora) aqui se cruzariam. Regressando ao silêncio, ele ressurge nos seus auto-retratos, instaurando-se como voz mais íntima. E, sendo esta forma de representação aquela em que o autor mais se pensa e reflecte, a quantidade dos seus auto-retratos – já apontada como invulgar na arte portuguesa – surge, enfim, como a sua grande afirmação artística, modo íntimo e assertivo de se fazer ouvir. Curiosamente, não o fez de paleta e pincéis, frente a telas, marcando postura de artista. Mas, antes, de menina, jovem, senhora, até em distorção surrealizante. Mantendo em geral uma afirmação silenciosa, notória também no traço breve e sobretudo no olhar distante, representando-se também em pose de recolhimento, tais trabalhos coexistem com outros de absoluta frontalidade. Um deles, presente nesta exposição [Nº de Inv. DP-648] mostra uma dessas Ofélias frontais, porém, aqui em pose de desafio. Encontrando-se em casa, na sua intimidade, olha-nos de braços cruzados. Atrás de si, uma janela aberta, não consegue, contudo, revelar o exterior. No interior, o nosso olhar é atraído pelo pormenor de um desenho pendurado na parede. Aí se representam duas mulheres nuas passeando num bosque. A sua muda comunicação liga-se à expressão de Ofélia, também ela em silêncio. Entre ela e a janela, flores de pétalas generosas abrem-se numa jarra. Também o último botão do seu casaco está aberto. Em pleno silêncio, quase se ouve a sua voz. Uma voz cujas contradições íntimas apenas nos cabe perseguir para tentar obter um maior entendimento plástico desta pintora e do seu tempo. Modestamente, e no momento em que se celebra o primeiro centenário do seu nascimento e em que se cumprem também 50 anos da sua morte, esperamos que esta exposição levante algumas pistas para essa tarefa maior. Para que Ofélia – como se escreveu na revista “Eva” – não morra duas vezes.