MARCO ANTONIO VILLARTA-NEDER
OS MOVIMENTOS DO SILÊNCIO:
ESPELHOS DE JORGE LUÍS BORGES
UNESP
MARCO ANTONIO VILLARTA-NEDER
OS MOVIMENTOS DO SILÊNCIO: ESPELHOS
DE JORGE LUÍS BORGES
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras – área de concentração
em Lingüística e Língua Portuguesa – da
Universidade Estadual Paulista para obtenção
do título de Doutor em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria Fernandes dos
Santos Nascimento
ARARAQUARA
2002
2
DEDICATÓRIA
À Neusa, muito mais do que esposa, minha iniciadora nos espelhos de Borges, e
que se faz presente como Outro que me dá a identidade necessária para viver intensamente.
A minha mãe, Olga, pelo que me ensinou
a buscar e pela oportunidade de poder
compartilhar leituras de Borges.
A Maria Helena Martins de Oliveira,
pelos rumos que me tornou possível
tomar nesse labirinto fascinante que é
estudar a linguagem.
3
Agradecimentos
A minha esposa, minha família e amigos pela compreensão, apoio e
pelo quanto me cederam um tempo meu que era deles.
À minha orientadora, Profa. Dra. Edna Maria Fernandes do Nascimento, pela
confiança no projeto e pela firmeza e solicitude com que tratou o difícil processo de
construção desta tese.
A Rosimar de Fátima Schinelo pelas valiosas discussões e pela
crença num trabalho, antes que ele tivesse tomado forma.
A André Luís de Campos pelas leituras, discussões e pela torcida
amiga diante das ansiedades que cercaram essa escritura.
A João Bôsco Cabral do Santos, pela trajetória de amizade e
trabalho conjunto que resultou em momentos importantes de discussão e de
apoio.
A
Ítalo
Oscar
Riccardi
León
pelo
interesse
amigo
e
pela
solidariedade.
Aos colegas da Pós, pela convivência, por todos os momentos
acadêmicos,
pela
troca
de
experiências
e,
principalmente,
pela
oportunidade de experimentarmos juntos outras escritas.
Aos professores e funcionários da Unesp-Ar pelo apoio e convivência que
viabilizaram etapas necessárias desta tese.
Aos que, de alguma forma, contribuíram para a confecção deste
trabalho.
4
René Magritte - “Reprodução Proibida
(Retrato de Edward James)”, 1973
Omitir sempre uma palavra, recorrer a
metáforas ineptas e a perífrases evidentes,
é, quiçá, o modo mais enfático de indicála.
Jorge Luís Borges - O Jardi m dos
Caminhos que se bifurcam
Hablar sobre el silencio constituye un
delito... Es atentar contra una realidad
misteriosa e indescriptible, es pisar un
terreno desconocido, es introducirse en un
reino escondido e desértico donde la
palabra es una intrusa.
Francesc
Torralba
Roselló
–
El
silencio: un reto educativo
5
RESUMO
Esta tese empreende uma reflexão sobre o silêncio em relação à produção dos
sentidos, tendo como corpus textos literários de Jorge Luís Borges, voltados para a
temática do espelho, metáfora utilizada neste trabalho para representar a trajetória
silenciosa do movimento dos sentidos.
O silêncio é aqui assumido em duas categorias: (1) ausência, que representa o
não dizer, e (2) excesso, que compreende a sobreposição que a palavra instaura
sobre
o
silêncio
ou
sobre
outras
palavras.
Essas
relações
dialéticas
e
complementares fazem do silêncio, mais que um apagamento das vozes do discurso,
um procedimento de instauração da heterogeneidade.
Sustentada na Análise do Discurso de linha francesa, discutiu-se o processo de
constituição dos sentidos como movimento, do qual participa(m), o(s) silêncio(s), a
palavra e a relação dialética entre eles, tendo como objetivos: (a) Identificar e discutir
a existência de indícios (internos e/ou externos ao texto) que remetam o leitor para o
silêncio; (b) discutir relações entre operações metaenunciativas, relações intertextuais
e o texto escrito; c) no universo de textos selecionados da produção borgeana,
apontar algumas especificidades do texto literário escrito enquanto configuração
específica de silêncio(s) como procedimentos de instauração de heterogeneidade
mostrada.
Discutiram-se ainda as relações entre silêncio, autoria e funções do autor e do
leitor, aspectos diretamente ligados às concepções e ao fazer estético da obra
borgeana. Quanto a esta última, buscou-se caracterizá-la como um jogo dialético
entre diversidades de silêncios, heterogêneos, e a relação destes com a palavra.
6
ABSTRACT
This thesis undertakes a reflection on the silence in relation to the production of
the senses, using as corpus literary texts of Jorge Luís Borges, related to the thematic
of the mirror, metaphor used in this work to represent the silent path of the movement
of the meanings.
The silence is assumed here in two categories: (1) absence, that represents the
non-saying, and (2) excess, which represents the superposition that the word
establishes on the silence or on other words. Those dialectic and complimentary
relationships with the silence, more than a deletion of the voices of the discourse, is a
procedure of establishment of the heterogeneity.
Sustained in the Discourse Analysis of French line, the process of constitution
of the meanings was discussed as movement, of which participate, silence(s), the
word and the dialectic relationship among them. The work’s objectives are the
following: (a) to identify and to discuss the existence of indications (internal and/or
external to the text) that send the reader for the silence; (b) to discuss relationships
among metaenunciative operations, intertextual relationships and the written text; c) in
the universe of selected texts of the borgean production, to point out some specificities
of the literary writing text while specific configuration of silence(s) as procedures of
establishment of shown heterogeneity.
They were still discussed the relationships among silence, authorship and the
author's and the reader’s functions, aspects directly linked to the conceptions and to
the aesthetic of the borgean work. Related to this last one, they were characterised as
7
a dialectic game between diversities of silences, heterogeneous, and the relationship
of these with the word.
8
ÍNDICE
RESUMO_____________________________________________________v
ABSTRACT________________________________________________ ___vi
RESUMO________________________________________________________ 6
ABSTRACT..................................................................................................................................................... 7
INTRODUÇÃO__________________________________________________10
CAPÍTULO 1____________________________________________________19
ANÁLISE DO DISCURSO E SILÊNCIO____________________________19
1.1– PRESSUPOSTOS TEÓRICO-EPISTEMOLÓGICOS..................................................................................................... 19
1.2– OUTROS OLHARES SOBRE O SILÊNCIO ............................................................................................................. 36
1.3– O ESPELHO COMO METÁFORA........................................................................................................................ 39
1.4– ESPELHO COMO PROCESSO DE REPRESENTAÇÃO.................................................................................................40
1.5– O ESPELHO DE LACAN................................................................................................................................. 45
1.6– DIVERSIDADES DE SILÊNCIOS NO MOVIMENTO DOS SENTIDOS...............................................................................52
1.7– SILÊNCIO COMO AUSÊNCIA X REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA...................................................................................55
1.8– SILÊNCIOS INDICIADOS..................................................................................................................................58
CAPÍTULO 2____________________________________________________62
LEITUR AS SOBRE BORGES_____________________________________62
2.1 – CRÍTICA FRANCESA..................................................................................................................................... 63
2.2 – OUTROS ASPECTOS CRÍTICOS ....................................................................................................................... 76
CAPÍTULO 3____________________________________________________87
AUTORIA, PAPEL DO LEITOR E EFEITO ESTÉTICO______________87
3.1 – AUTOR, LEITOR E TEXTO..............................................................................................................................91
3.1.1 – Obra Aberta....................................................................................................................................92
3.1.2 – Lector in Fabula...........................................................................................................................102
............................................................................................................................................................................
102
3.1.3 – Interpretação e Superinterpretação............................................................................................. 110
3.2 – AUTORIA, FUNÇÃO DO LEITOR E SILÊNCIO.....................................................................................................123
3.3 – AUTORIA E ESTÉTICA DO LEITOR EM BORGES............................................................................................... 140
CAPÍTULO 4___________________________________________________161
NO SILÊNCIO DO ESPELHO____________________________________161
4.1 – CORPUS.................................................................................................................................................. 161
4.2 – TEXTOS ANALISADOS................................................................................................................................ 163
4.2.1 – Sala vacía..................................................................................................................................... 163
9
4.2.2 – El espejo....................................................................................................................................... 175
4.2.3 – Animais dos Espelhos...................................................................................................................191
4.2.4 – El espejo de los enigmas.............................................................................................................. 212
CONSIDERAÇÕES FIN AIS______________________________________232
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________245
BIBLIOGR AFIA________________________________________________254
ÍNDICE REMISSIVO E ONOMÁSTICO____________________________262
ANEXOS______________________________________________________ 264
10
INTRODUÇÃO
Tudo, aliás, é a ponta de
um mistério. Inclusive,
os fatos. Ou a ausência
deles. Duvida ? Quando
nada acontece, há um
milagre que não estamos
vendo.
Guimarães
Espelho
Rosa
–
O
Esta tese é o resultado de uma trajetória que se iniciou em
lugares muito diferentes: primeiramente a pesquisa imaginava olhar
para o professor que se forma e se debate diante dos desafios
crescentes que a atividade educacional exige e no quanto lhe faltaria
saber sobre a constitutividade do silêncio em seu trabalho cotidiano
com a linguagem na sala de aula.
No entanto, a reflexão iniciada desta forma acabou por instigar
um contorno mais teórico, em nome de uma curiosidade acadêmica
que já não se satisfazia mais em se perguntar por que o professor
não se dá conta do(s) silêncio(s), mas passou a se questionar até que
ponto as próprias áreas tradicionalmente responsáveis pela produção
do conhecimento acadêmico sobre a linguagem, notadamente a
lingüística, assumiriam teórica e epistemologicamente a construção
de conhecimentos nessa direção.
Assim, o autor desta tese talvez constitua-se numa outra
espécie de sujeito, que não se contenta em se constituir através do
11
que diz. Em vez disso, sua tarefa é também constituir-se através do
que diz a respeito do dizer.
Inicialmente, como foi dito acima, partiu-se de um interesse em
perscrutar os silêncios que o discurso pedagógico, especificamente
no ensino de português como língua materna, faz a respeito de
pressupostos indispensáveis da leitura e da escrita, e de um silêncio
ainda mais amplo, já que também se cala sobre os efeitos discursivoargumentativos do silêncio. Em algum momento desta reflexão houve
um desejo de se esboçar um estudo mais teórico sobre as condições
de produção do silêncio.
Assim, o silêncio tornou-se objeto de análise, dado que ele
pode ser caracterizado (1) como ausência e, como tal, torna-se difícil
reconstituir o que não se disse; (2) como excesso e, também nesse
caso, existe uma dificuldade, já que se tem que buscar um dizer
virtual que teria sido sobreposto.
Para
indícios 1
resolver
de
essa
silêncios.
questão, buscou-se
a
A
constituiu-se
etapa
seguinte
identificação
de
pelo
levantamento de um corpus. Coube uma decisão metodológica de
trabalhar
exclusivamente
com
textos
escritos.
Tal
decisão
foi
motivada por dois fatores:
a)
uma suspeita de que a interlocução via escrita apresenta
níveis de silêncio não presentes na fala;
1
Usa-se aqui a palavra “indício” porque permite, neste momento inicial da discussão, abranger tanto
estratégias marcadas textualmente, quanto situações não marcadas no texto, mas que contextualmente possam
remeter o sujeito a outras enunciações.
12
b) uma maior operacionalidade, já que analisar a fala implicaria
necessariamente
lidar
com
várias
linguagens
de
forma
simultânea. Neste âmbito, os silêncios da fala poderiam não
ser silêncios propriamente, mas espaços de interpenetração
dessas
linguagens.
No
caso
de
uma
escrita
sem
concomitância com outras linguagens, estaríamos diante de
uma
situação
mais
direcionada,
pois
os
aspectos
extralingüísticos seriam limitados às características visuais
da diagramação e dos grafemas.
No decorrer deste processo foram inicialmente utilizados textos
literários, jornalísticos e científicos. Posteriormente, em função do
escopo deste trabalho, foram selecionados alguns textos literários e
definidos, a partir disso, os objetivos desta tese:
1)
Identificar e discutir a existência de indícios (internos e/ou
externos ao texto) que remetam o leitor para o silêncio;
2) Proceder a uma breve discussão a respeito das relações
entre operações metaenunciativas, relações intertextuais e o
texto escrito;
3) Dentro do universo de textos selecionados da produção
borgeana, apontar algumas especificidades do texto literário
escrito enquanto configuração específica de silêncio(s) como
procedimentos de instauração de heterogeneidade mostrada.
Inscrita dentro de uma trajetória de reflexão sob o prisma da
Análise do Discurso de linha francesa (AD daqui em diante), esta tese
13
pretende constituir-se como um fazer epistemológico que estabeleça
um diálogo entre concepções vigentes e alguns pressupostos sobre a
produção dos sentidos. Um dos aspectos que se pretende discutir
aqui é o quanto o processo de produção de sentidos sempre, de
alguma forma, está diante de uma delimitação entre a palavra e o
silêncio.
Paradoxalmente, dizer algo sobre o silêncio pode parecer uma
pretensão de transformá-lo integralmente em palavra. Revelá-lo,
desvendá-lo. Qual um véu de Ísis, seria atingir seus segredos. Não é
o caso. O silêncio, da posição que se assume nesta tese, não é
somente dinâmico no sentido de que se move; se ele é, por essa
característica, movediço, também o é no mesmo âmbito da areia que,
se acomodando, jamais adquire uma estabilidade e traga para suas
profundezas
qualquer
um
que
se
aventure
a
pisar
seu
solo
aparentemente seguro.
Dessa perspectiva, trabalhar com o silêncio é, antes de mais
nada,
assumir
que
tal
tarefa
consiste
intermitentemente
num
deslocamento. Atribuir sentidos a alguns silêncios pelo recobrir da
palavra é, inevitavelmente, puxar um cobertor bem menor do que o
próprio corpo: cria-se um jogo infinito entre outros espaços de
silêncio.
Para que tal atividade seja possível, pretende-se em relação à
AD, fio condutor do trabalho, estabelecer, em momentos bastante
14
pontuais do trabalho, algumas alteridades epistemológicas 2 . Ora se
fará necessária a presença de aspectos filosóficos, ora semióticos.
Um dos aspectos cruciais de trabalhar com esse fio incerto é a
constante recriação de metáforas.
Alguns aspectos de psicanálise são igualmente imprescindíveis.
Não
é
o
intuito
do
trabalho
proceder
especificamente filosófica ou psicanalítica.
São
a
uma
discussão
pertinentes,
no
entanto, considerações sobre os limites entre as áreas constitutivas
da AD 3 (especialmente a Lingüística e a Psicanálise) no que se refere
à problemática da produção dos sentidos. Dentro da trajetória da AD,
essa produção metamorfoseia-se em descontinuidades e opções
epistemológicas. Além disso, cumpre discutir a natureza do silêncio
enquanto fenômeno. Propor-se a analisar o silêncio é deter-se sobre
a intersubjetividade.
2
Umberto Eco em seu texto A poética da Obra aberta, em A Obra Aberta, ao discutir a possível filiação
desse tipo de concepção estética a uma epistemologia característica de um momento histórico determinado,
menciona, em forma de pergunta retórica, a noção, utilizada pela Física, de complementaridade, que ilustra
um pouco essa questão da alteridade epistemológica:
“Seria casual o fato de tais poéticas serem contemporâneas ao princípio físico da complementaridade,
segundo o qual não é possível indicar simultaneamente diversos comportamentos de uma partícula elementar,
e para descrever estes comportamentos diversos valem diversos modelos, que ‘são portanto justos quando
utilizados no lugar apropriado, mas se contradizem entre si e se chamam, por isso, reciprocamente
complementares ?” (p. 57)
3
Podemos exemplificar melhor essa afirmação com uma citação de Pêcheux & Fuchs (1975: 163-164):
“(...) começaremos por apresentar, numa primeira parte, o quadro epistemológico geral deste
empreendimento.
1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações,
compreendida aí a teoria das ideologias;
2. a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo
tempo;
3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.
Convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria
da subjetividade (de natureza psicanalítica).”
15
Se forem tomados alguns textos da AD que abordam o silêncio
através
da
palavra 4
podemos
perceber
que
eles
se
filiam
a
paradigmas 5 que privilegiam o movimento e o intervalo. Pensar a
produção dos sentidos desta perspectiva (o que, de alguma forma, é
mais ou menos explícito em cada autor da AD) implica discutir o
alcance e os limites desses conceitos.
É uma convicção expressa neste trabalho que tal relação seja
impossível sem a inclusão do silêncio . Para isso, faz-se fundamental
relembrar o conceito de Formação Discursiva (FD daqui em diante),
inicialmente como formulado por Pêcheux & Fuchs (1990: 166-167):
componente de uma formação ideológica que,
sozinha ou interligada a outras FDs “determinam o
que pode e o que deve ser dito (articulado sob a
forma de uma arenga, de um sermão, um panfleto,
uma exposição, um programa etc.) a partir de uma
posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa
relação de lugares no interior de um aparelho
ideológico, e inscrita numa relação de classes.
Diremos que toda formação discursiva deriva de
condições de produção específicas, identificáveis a
partir do que acabamos de designar.
Assim, pode-se entender que a própria AD, nos movimentos de
suas atividades interpretativas, move-se não somente entre esses
dizeres possíveis e autorizados pelas FDs, mas como conseqüência
4
5
Basicamente Orlandi, 1992; Authier-Revuz, 1994 e Machado,1997.
No sentido utilizado por Kuhn (1987)
16
disso, desloca-se pelos silêncios, espaços de exclusão e de recorte
que envia para o excesso o que lhe é exterior, exterior esse que
passa a ser ausência.
Em
alguns
momentos
desta
tese,
entende-se
que
será
necessário recobrir/desvendar alguns desses silêncios para que
possam ser analisados enquanto tais.
Para isso, será útil indiciar as penumbras e sombras do
discurso,
que,
se
comportando
como
um
jogo
de
espelhos,
recolocando pontos de partida e de chegada temporários para a luz
que se movimenta invisível e que se reflete na face dos espelhos,
mostra uma outra face que quer se conhecer.
A atitude interpretativa pretendida nesta tese é da mesma
natureza que a mentalidade que instaura na pintura, na filosofia,
numa área como a própria AD, essa necessidade de retomar o olhar
que vague pela profundidade, a altura e a largura desses sentidos
velozes
e
silenciosos
exaustividade,
mas
a
entre
de
sujeitos.
uma
Não
alteridade,
a
de
pretensão
uma
da
polifonia,
redistribuindo as configurações incessantes entre o silêncio e a
palavra.
O corpus, literário, trata tematicamente da intersubjetividade
através da metáfora do espelho, a partir de um autor tradicionalmente
conhecido por seus jogos: Jorge Luís Borges. Um desses jogos é
muitas vezes o estatuto da palavra como representação, o que é
conveniente para a análise aqui pretendida.
17
No Curso de Lingüística Geral, o texto publicado pelos alunos
de Saussure apresenta a defesa de que “(...) bem longe de dizer que
o objeto precede o ponto de vista (...) é o ponto de vista que cria o
objeto.” (1977:15). Pelo menos do ponto de vista deste trabalho,
existe um princípio semelhante.
Metodologicamente
esta
decisão
é
fundamental.
Qualquer
modelo teórico circunscreve, para determinar seu objeto, limites entre
o que lhe é interno em oposição a uma exterioridade, tida como um
excesso
incômodo 6 .
Mas
é
precisamente
essa
exterioridade
silenciada que permite tatear os vestígios dos desejos presentes na
interioridade. Por outra perspectiva, a interioridade pressupõe uma
falta, identificável como o que lhe é externo.
Discutir tais questões é obrigatório num trabalho que pretende
mover-se nos intervalos, refletir-se nos espelhos, buscar atrás da
representação
da
face
talvez
um
infinito
jogo
de
outras
representações. No percurso aqui pretendido, faz parte do método
considerar a natureza do fenômeno: a relação entre a palavra e o
silêncio é movimento, intervalo, diálogo.
Quanto à organização formal, tal trabalho pretende estruturar-se
da seguinte maneira: no capítulo primeiro, serão apresentados os
pressupostos conceituais da tese. O segundo capítulo procurará
debater brevemente algumas posições críticas sobre Borges.
6
Se considerarmos o sujeito epistemológico, essa seria uma extensão no domínio do saber científico, do
esquecimento número 1, proposto por Pêcheux & Fuchs, 1975.
18
No terceiro capítulo serão discutidas questões atinentes à
autoria, função do leitor e aspectos do efeito estético, procurando, em
primeiro lugar, situar aspectos dentro e fora do âmbito da AD
francesa; em segundo lugar, traçar uma linha das concepções de
autoria e estética em Borges e, finalmente, procurar relacionar autor ,
leitor e efeito estético a alguns aspectos relativos ao silêncio.
O Capítulo 4 compreenderá a análise do corpus, onde alguns
conceitos serão discutidos em relação aos índices decorrentes da
interpretação dos textos selecionados de Jorge Luís Borges e sua
relação com o silêncio. Enfim, nas Considerações finais, pretende-se
responder às questões básicas colocadas, bem como recuperar para
o
leitor
os
objetivos
da
tese.
Serão
finalmente
resgatados os
aspectos que evidenciam o processo de constituição dos sentidos
como movimento, do qual participa(m), o(s) silêncio(s), a palavra e a
relação dialética entre eles.
Constarão do Apêndice cópias dos textos utilizados no corpus,
assim como gráficos, tabelas, fotos, ilustrações e outras informações
relevantes.
19
CAPÍTULO 1
ANÁLISE DO DISCURSO E SILÊNCIO
El bastón, las monedas, el llavero
La dócil cerradura, las tardías
Notas que no leerán los pocos días
Que
me
quedan,
los
naipes
y
el
tablero,
Un libro y en sus páginas la ajada
Violeta, monumento de una tarde
Sin duda inolvidable y ya olvidada.
El rojo espejo occidental en que arde
Una ilusoria aurora. ¡ Cuántas cosas,
Limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
Nos sirven como tácitos esclavos,
Ciegas y extrañamente sigilosas !
Durarán más allá de nuestro olvido:
No sabrán nunca que nos hemos ido.
Jorge Luís Borges - Las Cosas
1.1– Pressupostos teórico-epistemológicos
Um pressuposto conceitual da discussão feita nesta tese é de
que não é possível se pensar a constituição da linguagem sem levar
em consideração o silêncio. Para que tal afirmação soe razoável, faz-
20
se necessário
que esta tese
assuma, como acarretamento 7 da
assertiva acima, que o silêncio produza sentidos. Prosseguir a partir
daqui exige, então, que se caracterize o silêncio.
Se se tomá-lo somente no sentido de “ausência”, tais assertivas
podem realmente parecer absurdas, uma vez que, numa acepção do
senso comum ,o que não existe ainda, o que não se tornou palavra,
não teria significado algum. Tal questão se resolve, do ponto de vista
deste trabalho, pela assunção de que o homem é um ser simbólico e
que, por causa desta característica constitutiva de sua natureza, não
escapa de buscar sentido em qualquer coisa que se apresente em
seu
horizonte
existencial 8 .
Orlandi
(1992:
31-32)
aborda
esse
aspecto, estabelecendo o silêncio como objeto possível de análise da
linguagem:
O homem está ‘condenado’ a significar. Com ou
sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à
‘interpretação’: tudo tem
de
fazer sentido
(qualquer
que
ele
seja).
O
homem
está
irremediavelmente constituído pela sua relação com
o simbólico.
Desse desejo primordial de atribuir significado a tudo decorre o
sentido do silêncio: diante da necessidade de interpretação o silêncio
transforma-se em sentidos virtuais, o que estabelece polissemia 9 .
7
Equivalente ao termo inglês entailment.
De outra forma, e dentro de outra epistemologia, Umberto Eco faz uma consideração importante sobre isso:
“(...) não existe análise de aspectos significantes que já não implique uma interpretação e por conseguinte um
preenchimento de sentido” Eco, Umberto. Lector in Fabula, XV.
9
O que está sendo discutido aqui é a relação entre o silêncio e a palavra. A interpretação tende a buscar no
silêncio uma tradução de um conjunto de palavras. Enquanto o dizer não se realiza, tal atividade interpretativa
8
21
Assim, o significante do silêncio 1 0 é sobreposto pelos significantes do
dizer, que circunscrevem a possibilidade de sentido, delimitando essa
polissemia do silêncio
11
(o limite são as categorias de mundo).
A objeção possível é a do vazio. Algumas vertentes filosóficas
(existencialismo, por exemplo) e a psicanálise postulam a existência
do vazio, de uma ausência total de sentido. O que se assume neste
trabalho é que o ser humano é incapaz de não exercer atos
interpretativos, mesmo em relação ao vazio. Considerando que a
produção dos sentidos é um movimento (e daí, também, o sentido do
silêncio e do vazio), não se admite que tal sentido esteja na coisaem-si, mas no intervalo dinâmico entre os elementos que participam
concebe uma virtualidade de sentidos (está-se querendo dizer “a” ou “b” ou outra coisa). Por essa polissemia
entende-se, nesta tese, essa virtualidade que abarca as possibilidades conhecidas de sentido, mas que também
abre oportunidade de se pensarem possibilidades ainda não criadas.
10
Ao utilizarmos o termo significante do silêncio, estamos concebendo um materialidade para ele. Dentro da
AD, Orlandi (1992) emprega-o quando diz que “(...) o silêncio é fundante. Quer dizer, o silêncio é a matéria
significante por excelência, um continuum significante.” (Orlandi, 1992: 31). Tal postura inscreve-se numa
tradição filosófica, a fenomenologia de Merleau-Ponty:
(...) se expulsarmos do espírito a idéia de um texto original, do qual a linguagem
seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a idéia de uma expressão
completa é um contra-senso, que toda linguagem é indireta e alusiva e, se
quisermos, silêncio. (MERLEAU-PONTY, 1989:92)
Em termos mais lingüísticos, podemos identificar como exemplo de significante so silêncio o caso do
morfema zero como marca de singular em português, como é observado na nota n. 13, à página 15.
11
Uma consideração importante a ser feita é que tal categoria tem implicações decisivas: ao dizermos que
tudo pode significar muitas coisas, ao mesmo tempo e inversamente estamos também dizendo que tudo pode
significar coisa alguma. Essa observação é importante, pois do ponto de vista da psicanálise, assume-se o
vazio de significação. Neste trabalho, um pouco diferentemente, não se nega a existência do vazio (alguém
pode considerar que algo não significa nada), mas pondera-se que mesmo este vazio, por intermédio do
desejo, significa através da relação que ocupa com o não-vazio nas relações discursivas. Postula-se, ainda,
uma materialidade simbólica e imaginária, social e histórica (entre outras) desse vazio.
22
da
interação.
Assim,
o
vazio
significa
não
porque
exista
necessariamente algo dentro dele, mas porque fundamentalmente na
relação entre ele, o sujeito e o outro, é-lhe inevitavelmente atribuído
um sentido, mesmo que negativo.
É perfeitamente possível que alguém, diante de uma situação,
não entenda nada. A questão que nos interessa é que essa ausência
de entendimento será passível de uma reconfiguração, não porque
haja necessariamente uma hierarquia de linguagens, mas, antes,
porque é da natureza do processo de circunscrição do silêncio pela
palavra (ou vice-versa) referir-se a si mesmo. Tal recursividade
consiste, neste caso, em interpretar o que significa “não entender
nada” num contexto determinado.
Cada
enunciação
enunciação
do
silêncio,
da
palavra
redistribuindo
reconfigura,
os
silêncios
portanto,
a
significados
anteriormente. O movimento seguinte consiste no silenciamento da
palavra, em vista das condições de funcionamento do discurso (as
FDs). É importante perceber que a sobreposição significante aqui se
inverte: agora, é o significante do silêncio que recobre o da palavra.
E essa palavra, por sua vez, corresponde a uma virtualidade do
silêncio 1 2 .
Disto decorre fundamentalmente a constitutividade do silêncio ,
na medida, em que não se admite, desta perspectiva, a existência
12
Não cabe pensar essa relação dinâmica em termos de anterioridade. Enquanto fenômeno, há um
interdependência: o silêncio não significa sem a palavra, nem a palavra sem o silêncio.
23
quer deste, quer da palavra sem uma relação fundamental de
reciprocidade.
E se essa constitutividade se dá desde o nível do significante,
isso implica que desde o âmbito fonético 1 3 há um encadeamento que
alterna formas e efeitos de dizer e de silenciar, ou, mais ainda, que
alterna gradações entre o dizer e o silenciar.
Existe na tradição dos estudos lingüísticos uma tendência
bastante forte, em alguns contextos hegemônica, que, mais próxima
de
uma
preocupação
formalista,
costuma
analisar
enunciados
(desconsiderando a enunciação), apagando de suas análises níveis
de silêncio que estejam no âmbito pragmático e discursivo. Como
exceção
poderiam
pragmática.
Mesmo
ser
consideradas
assim,
tais
algumas
vertentes,
muitas
vertentes
da
vezes,
são
estigmatizadas dentro da própria comunidade de lingüistas mais
formalistas que consideram qualquer modelo menos rígido e não
imediatamente sistematizável em termos de superfície textual como
de pouca validade acadêmico-científica
Assim, quando numa interlocução alguém produz uma “ausência
de enunciado”, ou seja, silencia, deixa de dizer, há um “vazio”
no
nível da unidade de análise que se costuma tomar e, geralmente por
esse motivo, não se dá conta que, na situação enunciativa onde se
instaurou a produção daquele silêncio, ele é constitutivo. Igual atitude
13
Um exemplo de silêncio que se inicia no nível fonético e é decisivo no nível morfológico em português
seria o caso do morfema zero marcador do singular.
24
ocorre diante da produção do silêncio pelo excesso do dizer, caso no
qual
normalmente
se
debruça
sobre
enunciados
isolados,
esquecendo-se que o conjunto deles significa por contrapor-se ao
pressuposto de que o enunciado deve dizer, parecer claro, informar.
O silêncio também é constitutivo pela inescapável “falha ao
nomear” presente no sujeito, mencionada por Authier-Revuz (1994), a
partir de um ponto de vista lacaniano. Essa palavra que falta (ou para ampliar a discussão – que sobra) institui um espaço heterogêneo
dentro do qual a semiose acontece seja pela intervenção de outros
códigos, seja pela significância do silêncio.
É nos aspectos ilocucional e performativo que esse silêncio vai
se manifestar de maneira funcional para os agentes presentes na
enunciação. E, no discurso, sobrepõem-se outros efeitos desse
silêncio: a interdição de enunciados que não se admitem dos filiados
a determinadas formações sociais, ideológicas e discursivas (e não
se admitem antes pela visão de mundo que congrega e homogeneiza
o grupo do que por regras explícitas de conduta). A noção de
Formações Discursivas como aquilo que se pode ou deve dizer 1 4
estabelece uma decorrência em relação ao silêncio . Por extensão,
elas determinam o que pode ou deve ser silenciado.
Assumindo-se uma perspectiva bakhtiniana de que a linguagem
é dialógica, é bom ressaltar que a produção do silêncio não deixa de
ser uma voz que, atravessando outros significantes,
14
alinhava o
Pêcheux & Fuchs, 1990;Courtine & Marandin, 1981.
25
caráter único, inefável de cada situação enunciativa. O que ocorre, no
entanto, é que essa escala de gradações entre a produção do
silêncio, e a produção do dizer
(dizer, não dizer, negar, sugerir,
insinuar... ) tem história, que coincide com a história das interações,
das situações enunciativas vividas e paulatinamente incorporadas ao
imaginário social.
No caso da escrita, esses apagamentos da interlocução tornamse mais contundentes. Já que para alguns modelos teóricos 1 5 o texto
escrito é, entre outras coisas, um produto intermediário da situação
enunciativa, tais teorias encontram mais facilidade em esquecer da
enunciação e considerar apenas os enunciados já escritos. Todavia,
se a escrita também é linguagem, e como linguagem é interlocução,
ela também apresenta essa constitutividade alternada entre o dizer e
o silêncio.
E, para exemplificar outros usos do silêncio que representam
delimitação de poder na interlocução, cabe citar algumas estratégias
discursivas por parte de falantes de uma língua do que Ducrot
(1977:144) chama de lei da exaustividade. Esse autor, para ilustrar a
lei da exaustividade relata o caso de um general que, tendo perdido
uma cidade inteira numa batalha, admite ter perdido apenas uma
aldeia. Ducrot comenta que se o destinatário desconhecer o fato e
15
Poderíamos citar os enfoques que supervalorizam a forma. Atualmente as teorias que atuam no âmbito da
Sintaxe Gerativo-Transformacional tendem a trabalhar quase que exclusivamente com enunciados reduzidos
ao limite da frase.
26
supuser que o locutor 1 6 respeitou a lei da exaustividade, acreditará na
extensão dos fatos admitidos. O que nos interessa aqui não é
propriamente esse "crédito de confiança" do destinatário, mas que a
atitude do locutor representou um silenciamento parcial de fatos que
eram
de seu conhecimento
mas não
de conhecimento de
seu
interlocutor.
Dessa forma,
o general só pode ter
dito menos do que teria
para dizer porque construiu a imagem de que o seu interlocutor
desconhecia a totalidade do fato que ele, general, iria enunciar
(imagem de que, ao ter perdido uma cidade inteira, perdeu, no
mínimo,
uma aldeia [que constitui uma das partes integrantes da
totalidade representada pela cidade], mas que perder uma aldeia
significaria perder algo menor que uma cidade inteira).
Em vista
disso, ao silenciar uma parte do que teria a dizer, beneficia-se da
desinformação do outro,
investindo-se do poder de excluir, pelo
próprio ato de omitir, possíveis reações ou julgamentos. Dessa
perspectiva ocorrem dois tipos diferentes (mas inter-relacionados) de
silêncio. O primeiro, que é o de dizer somente até certo ponto e o
segundo, representado pelo que o interlocutor deixará de pensar ( e
dizer) em função do desconhecimento do que não foi dito pelo
locutor. Isso só pode ser considerado possível na medida em que o
locutor avalie que seu ouvinte desconheça a extensão informativa a
16
Embora os termos locutor e destinatário não pertençam ao mesmo referencial epistemológico da AD
francesa, estão mantidos aqui porque são aqueles usados por Ducrot.
27
ser relatada. Se tal uso discursivo for pensado em uma situação
típica de escrita, considerando o alto grau de descontextualização e
graus variáveis de distanciamento espaço-temporal do leitor, tal
estratégia de silenciamento pode tornar-se um efeito de sentido ainda
mais poderoso.
A ausência e seus apagamentos presentes nesse tipo de
interlocução
podem
ser
abordados
heterogeneidade do discurso
do
ponto
de
vista
da
(Authier-Revuz, 1990). Assim, o
próprio fato das vozes que constituem o discurso não serem sempre
perceptíveis (na heterogeneidade mostrada, não marcada) ou nunca
serem perceptíveis (na heterogeneidade constitutiva) já implica um
tipo de silêncio. Nesse caso, a heterogeneidade mostrada seria um
reenvio à polissemia decorrente desse silêncio.
O
que
interessa
ainda
na
discussão
deste
trabalho
é
estabelecer que o silêncio é mais do que um apagamento das vozes
do discurso, constituindo-se como um procedimento de instauração
da heterogeneidade.
Pode-se dizer, nesse caso, que o olhar para o mundo que as
formações
sociais,
ideológicas
e
discursivas
estabelecem
pela
história das interações entre os sujeitos e os sentidos produzidos
como decorrentes dessas interações, estabelecem, ao mesmo tempo,
um ponto cego, alheio ao foco do olhar, e que se torna palco de uma
nova história de sentidos produzidos pelas contradições e pelos
conflitos do que não se sabe, do que não se vê. Claro que esses
28
conflitos só se tornam possíveis através do contato polêmico com o
Outro, para quem aquele espaço polissêmico do não visto pelo Eu é
visível.
A partir disso, haveria duas direções básicas do silêncio : uma
que coincide com o espaço do não-dito, por não ser conhecido, por
serem apagadas as condições de produção de seus sentidos, de sua
enunciação; outra, que coincide com uma reafirmação do já-dito, o
que assevera a presença do olhar onde ele já está, cerceando seu
desvio para o discurso obscuro do Outro, para onde – do ponto de
vista do Eu - ainda há somente silêncio.
No entanto, esse Outro apresenta momentos de erupção na
superfície do discurso, sob a forma da heterogeneidade mostrada.
São momentos em que se ressalta a enunciação e o caráter polifônico
do discurso. É possível acreditar-se que o mesmo possa ocorrer com
o silêncio, visto sua interligação com a heterogeneidade defendida
acima.
Dessa perspectiva, haveria, a partir das considerações de
Orlandi (1992), a possibilidade de se estabelecer uma dicotomia da
seguinte natureza: (1) um excesso do dizer, sob a forma de uma
necessidade de reafirmar um sentido pode ser interpretado como um
silenciamento de um espaço polissêmico que emerge e incomoda o
sujeito, obrigando-o a tentar evitar outros sentidos. E a existência de
marcas que indiquem um abandono da tentativa de estabelecer um
29
sentido apontaria (2) um silêncio (não-dizer) sobre esses sentidos
escorregadios e/ou inconvenientes.
Em situações típicas de escrita (interação à distância, mediada
pelo texto), existem os dois tipos básicos de silêncio . Um como uma
ausência, que incide de maneira mais acentuada sobre a enunciação.
Nesse sentido, a própria visualização de um texto escrito como
produto acabado
dá ao seu interlocutor a ilusão de que o sentido
encontra-se nos enunciados ali presentes.
Um segundo tipo de silêncio presente na escrita (como excesso )
poderia ser representado pelo fato de que os significantes registrados
no texto constituem uma sobreposição a outros significantes virtuais.
Assim, diz-se X para não se dizer Y.
No caso do primeiro tipo de silêncio mencionado acima, a
visualização dos enunciados registrados num suporte físico (papel,
tela de computador etc.) representa um tipo de apagamento das
condições de produção da escrita.
Um primeiro nível de apagamento seria o silêncio sobre a
história e a origem dos sentidos produzidos. Assim, em qualquer
interlocução, seja falada ou escrita, existiria uma forte tendência de
se
ignorarem
a
heterogeneidade
constitutiva
e
a
historicidade
daqueles sentidos que inscrevem o falante no interdiscurso. Essa
tendência levaria ao “efeito de verdade” a ser buscado no dizer,
abstraindo
das
condições
sociais,
históricas,
econômicas,
antropológicas de criação daquelas “verdades”.
30
O
segundo
nível
de
apagamento
(que
está
diretamente
relacionado à visualização), por sua vez, seria um aumento nesse
grau de abstração. Já não é o Outro que diz verdades que acredita
sobre o mundo; passa-se a um registro
dessas verdades, que é
considerado irreversível, chegando, em alguns casos (como o das
leis), à situação em que o texto apresenta o efeito ilusório da própria
verdade dizendo-se a si mesma, como se não houvesse um sujeito a
enunciá-lo (esfuma-se, então, a alteridade: o texto já não é uma
interação; ele é o próprio sentido independente de quem o produziu).
Ligada a essa opção metodológica pela escrita está uma
questão relevante para esta tese e que já foi apresentada: analisar o
silêncio na fala, enquanto ausência, seria investigar como a falta de
um dizer através das palavras se deixa (ou não) substituir por um
dizer inscrito em outros processos semióticos. Dessa forma, já que a
fala
se
analisar
encontra
seus
essencialmente
silêncios
seria
associada
considerar
a
a
outras
rede
de
semioses,
silêncios
estabelecidos entre as diversas semioses constitutivas da fala face-aface 1 7 . Não é a opção deste trabalho, uma vez que tal complexidade
ultrapassa o escopo e os objetivos da tese.
Essa é a
motivação
epistemológica para eleger o texto escrito como foco.
Quanto à decisão de fazer a análise a partir de um corpus
literário, isto decorre de alguns fatores. O primeiro deles é uma
17
Deve-se considerar que existem concomitâncias de linguagens na escrita e/ou na situações multimídia. Isso
está discutido na página 228.
31
tentativa de discussão de um gênero discursivo que apresenta, do
ponto de vista aqui pretendido, especificidades na configuração do
silêncio. O estético é uma instância na qual esse arranjo de/entre
silêncio(s) parece ser especialmente multiforme. Borges, com seus
jogos, leva ao extremo as potencialidades do texto estético. Dentre
as muitas faces e vozes de sua obra, o tema do espelho permitiu uma
continuidade em relação a outras reflexões desenvolvidas no decorrer
do doutorado.
Também é significativo o que pode representar o uso estético
da
escrita
enquanto
(de)negação
do
silêncio,
o
que
pode
ser
vislumbrado na análise de Authier-Revuz (1994: 254):
Se as línguas imaginárias ou o silêncio respondem
pela apresentação, fictícia de um lugar outro, à
ferida da linguagem é como resposta inversa que
pode ser compreendida a literatura, prática só de
linguagem, inscrita inteiramente no lugar mesmo do
desvio, nessas palavras que são falhas.
Antes de mais nada é útil relembrar que Authier-Revuz trabalha
aqui sob uma inspiração lacaniana com o conceito da falha ao
nomear. Para Lacan a nomeação não deixa de ser um desejo e todo
desejo estabelece com seu objeto uma relação de desajuste, seja por
falta ou por excesso. A satisfação jamais será na mesma medida
desse desejo: ou será menor ou maior. Portanto, à luz dessas
concepções, entende-se que essa falha atribuída à literatura deve ser
32
pensada como uma dupla falha: em primeiro lugar, como qualquer
manifestação de linguagem, incorrerá na impossibilidade de dizer
exatamente algo. Em segundo lugar, porque, alimentando, mesmo
que indireta e inconscientemente, a ilusão de, por ser um trabalho
estético
com
instaura-se
a palavra, poder
como
falha
ao
dizer melhor alguma coisa, ela
pretender
ser
uma
linguagem
mais
trabalhada, que, de algum modo, se não diz mais, diz melhor.
Obviamente, essa tentativa igualmente falha da literatura faria desta
última também um espaço de silêncio, um intervalo angustiante e
paradoxal e/ou uma recusa entre tomar partido pelo real ou pela
linguagem, já que ambos não apresentam nenhum paralelismo. 1 8
Cabe ainda uma última distinção. Até esse momento, não houve
nenhuma diferenciação entre silêncio e apagamento. Seria pertinente
colocar-se a questão: seriam categorias equivalentes ? Entende-se
que há, do ponto de vista epistemológico, pelo menos duas instâncias
a serem consideradas neste caso.
A primeira, de caráter metafísico, faz referência ao indizível, ao
que se é impossível nomear. Há uma sutil diferença entre esta
categoria
e
a
perspectiva
lacaniana
há
pouco
mencionada.
O
pressuposto dessa metafísica é de um real que não se deixa capturar
pela palavra. Já para Lacan, é o desejo mesmo que estabelece essa
falta ou sobra, não porque o real não esteja lá, na exterioridade da
18
Posições, citadas por Authier-Revuz, respectivamente de Oster e Barthes.
33
palavra, mas porque a expectativa do real não corresponderá nunca a
ele.
A segunda instância refere-se a um processo recíproco de
apagamentos, já que se por um lado o silêncio apaga as palavras, por
outro
as
palavras
apagam
silêncios.
Ao
se
fazerem
esses
apagamentos, seja em direção à palavra, seja em direção a silêncio,
criam-se, por outro lado, relações de sentido.
Assim,
as
palavras
não
só
apagam
silêncios
porque
se
sobrepõem a eles – e estabelecem, assim um silêncio por excesso -,
mas
também silenciam outras palavras pelo mesmo processo de
sobreposição. Igualmente o silêncio não somente apaga as palavras
porque as sobrepõe (excesso), mas porque cria uma virtualidade em
que outras palavras possíveis sobrepõem (excesso, ainda) as que
não foram ditas (ausência). Portanto, apagamento, deste ponto de
vista, mesmo provocado pela palavra, implica sempre a instauração
de um tipo de silêncio, o leva a considerá-lo como uma decorrência
do silêncio.
Estabelecidas essas distinções, pode-se retomar a questão de
que normalmente as análises lingüísticas desconsideram os âmbitos
pragmático e discursivo da linguagem, principalmente sob o ponto de
vista do silêncio. Da perspectiva do discurso, torna-se obrigatório
considerar-se a enunciação, as condições de produção e, a partir
disso, o texto 1 9 como unidade de análise.
19
Entendido aqui como manifestação concreta do discurso, enquanto materialidade lingüística, dentro da
enunciação.
34
Isso exige que se trabalhe não só com textos isoladamente, mas
com a relação entre eles; e não somente com um dado discurso , mas
com as relações que este último estabelece e mantém com suas
condições de produção. Isso equivale a considerar conceitos das
relações entre discursos e das relações entre textos.
Chega-se, assim, à noção de interdiscurso, que
(...) consiste em um processo de reconfiguração
incessante no qual uma formação discursiva é
conduzida
(...)
a
incorporar
elementos
preconstruídos produzidos no exterior dela própria;
a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitar
igualmente
a
lembrança
de
seus
próprios
elementos, a organizar sua repetição, mas também
a provocar eventualmente seu apagamento, o
esquecimento ou mesmo a denegação. (Courtine &
Marandin, 1981)
E, se assim, o interdiscurso manifesta a heterogeneidade e a
alteridade, isso significa, como entende Maingueneau, que o Outro é
constitutivo do interdiscurso como falta necessária para que o sentido
possa se produzir, como “part de sens qu’il a fallu que le discours
sacrifie pour constituer son identité ” (Maingueneau, 1984:31).
A
partir dessa relação entre interdiscurso e alteridade, esse autor
chega à noção de intertextualidade como aquela que “abrangeria os
tipos de relações intertextuais definidas como legítimas que uma FD
mantém com outras.”
E já que o texto é unidade de análise deste trabalho, essas
relações
intertextuais
tornam-se fundamentais
para os objetivos
35
dessa
discussão.
Depois
de
detalhadas,
cabe
um
retorno
a
estratégias inscritas no interdiscurso que se liguem ao silêncio (o
próprio conceito citado acima, ao mencionar os termos apagamento,
esquecimento e denegação vislumbra tal ligação).
Uma perspectiva teórica pertinente a essa discussão seria a das
operações metaenunciativas do discurso, estabelecidas por ReyDebove e também discutidas por Authier-Revuz. Tais operações
remetem ao ato de enunciação e, por extensão, como já foi discutido
anteriormente, aos silêncios nela inscritos. Além disso, o próprio
silêncio sobre a enunciação seria rompido, expondo indícios de
subjetividade, de heterogeneidade. A esse respeito, seria útil citar a
própria Authier-Revuz, quando trata da modalização autonímica:
Toda forma de modalização autonímica aparece
como uma ‘costura aparente’ sobre o tecido do
dizer, ressaltando em um mesmo movimento a falha
que expõe o dizer a uma de suas não-coincidências
enunciativas, e sua sutura, seu ‘conserto’ metaenunciativo; mas o próprio das formas que,
inscritas no campo da relação palavra-coisa, nos
retém aqui, é que é, especificamente a uma falta de
palavras que responde esta excrescência de
palavras que o ‘laço’ meta-enunciativo vem
enxertar em um ponto do fio do dizer para aí
nomear a falha, abrindo o dizer, pelo dito, sobre o
que ele não diz, fazendo ressoar em outras
palavras mais esta parte de silêncio que se
experimenta nas palavras. (Authier-Revuz, 1994:
256)
36
1.2 – Outros olhares sobre o silêncio
A trajetória de reconhecimento e análise do silêncio que vem
sendo empreendida neste trabalho
deixa antever, a cada passo, a
complexidade e abrangência do assunto, bem como as implicações
resultantes dessa abordagem inicial. Será efetuada, em seguida, uma
breve resenha dos trabalhos que alguns autores têm feito para
conceber diferentes categorias de silêncio.
Orlandi (1992) estabelece uma classificação (dentre as muitas
que esboça) básica para o silêncio : 1) o silêncio fundante e 2) a
política do silêncio (silenciamento). Para ela o primeiro tipo “indica
que todo processo de significação traz uma relação necessária ao
silêncio” e o segundo tipo indica
que ao dizer o sujeito está,
necessariamente, não dizendo outros sentidos, uma
vez que o
sentido é produzido de um lugar, de uma posição desse sujeito (1992:
55). A autora inicia a discussão com uma análise do primeiro tipo e
busca inter-relações e conseqüências a conceitos como discurso ,
interdiscurso, sujeito e história, para citar os mais evidentes. Depois,
parte para uma subcategorização do segundo tipo.
É
oportuno
citar
o
trecho
em
que
a
autora
procede
à
classificação:
37
Considero pelo menos duas grandes divisões nas
formas do silêncio: a) o silêncio fundador e b) a
política do silêncio. O fundador é aquele que torna
toda significação possível, e a política do silêncio
dispõe as cisões entre o dizer e o não-dizer. A
política do silêncio distingue por sua vez duas
subdivisões: a) constitutivo (todo dizer cala algum
sentido necessariamente) e b) local (a censura).
(Orlandi, 1992:105)
Orlandi ainda cita outros tipos de silêncio 2 0 : o das emoções, da
contemplação,
da
introspecção,
da
revolta,
da
resistência,
da
disciplina, do exercício do poder, da derrota da vontade, o silêncio
místico.
Authier-Revuz, (1994),num artigo intitulado “Falta do dizer,
dizer da falta: as palavras do silêncio” apresenta um enfoque
ligeiramente diferente sobre o silêncio. Partindo de um ponto de vista
lacaniano,
da
complementares
“falha
da
ao
relação
nomear”,
entre
a
explora
palavra
dois
e
o
aspectos
silêncio:
primeiramente, a palavra que falta quando o sujeito tenta dizer algo;
em segundo lugar, o dizer que se constrói, através de processos
metaenunciativos,
para
explicitar
essa
falha
que
angustia
esse
sujeito.
20
Outro autor, Dantas (1997) - que também se utiliza bastante das categorizações de Orlandi - faz também
uma coletânea de obras que tratam do silêncio. Quanto a tipologias sobre o silêncio, há uma estabelecida por
Le Breton (1997) e especialmente Rosalba-Torrelló (1996) que classifica o silêncio em: a) epidérmico, b)
interior, c) obstinado, d) da plenitude, e) ético, f) estético, g) imposto, h) massivo, i) compassivo, j) cruel, k)
criativo, l) místico, m) ascético, n) litúrgico, o) do recém-nascido, p) dos mortos. Tais tipologias, no entanto,
por seu caráter estritamente antropológico, não serão abordados nesta tese.
38
As posições epistemológicas de Orlandi e Authier-Revuz são
diferenciadas. Essa visão é corroborada por Machado (1997),
num
artigo denominado “Movimentos dos sentidos no silêncio”. Embora
Orlandi despenda parte considerável de seu livro “As Formas do
Silêncio” tratando da constitutividade do silêncio, acaba valorizando
mais o que ela chama de “política do silêncio” e, dentro desta,
a
censura.
A autora, no terceiro capítulo (o livro, na verdade, parece ser
uma coletânea de artigos), ocupa-se de um estudo sobre a censura e
no último capítulo, trata da relação entre cópia e silêncio . Igualmente,
Machado (1997), em seu artigo, após resenhar as posições de Orlandi
e Authier-Revuz, acaba optando pela política do silêncio ao analisar
textos jornalísticos a respeito da empresa de energia elétrica do Rio
Grande do Sul após sua privatização.
Nesta
tese,
a
opção
epistemológica
aproxima-se
mais
de
Authier-Revuz. A “palavra que falta” associa-se, neste trabalho, à
categoria
do
silêncio
enquanto
ausência,
e
os
processos
metaenunciativos são da mesma natureza do silêncio como excesso.
Pretende-se discutir como essas categorias se comportam nos textos
borgeanos.
39
1.3 – O espelho como metáfora
Para utilizar uma imagem da Física como metáfora-base dessa
discussão, entenda-se que a imagem projetada num espelho é a luz
refletida por um corpo na superfície desse espelho; luz que se
propaga entre o corpo e o espelho. Para que isso aconteça é
necessário que esse espaço a ser percorrido pela luz esteja livre de
obstáculos, ausente de formas que possam desviar a trajetória dos
raios de luz (impedindo-os de alcançarem a representação do corpo
na superfície especular ou alterando o foco dessa representação).
Do ponto de vista físico, é a diferença entre a velocidade da luz
e a velocidade da percepção do olho que faz com que nos seja
impossível perceber o deslocamento dessa imagem, preenchendo o
espaço que se considera vazio.
Dessa perspectiva, a forma de representação criada pelo olhar
é constitutivamente silenciadora desse espaço pleno de movimento,
de deslocamento.
Não cabe a este trabalho discutir se a linguagem verbal toma
essa característica do olhar como metáfora primordial 2 1 . O objetivo
aqui é apenas o de considerar que também no texto escrito 2 2 , em seu
nível da representação do signo lingüístico, ocorre um processo que
21
O que equivaleria discutir se essa condição física do olhar determina o olhar semiótico.
O texto escrito representa a soma de indícios desse deslocamento por esse espaço intermediário, espaço que
se torna silêncio.
22
40
abstrai desse espaço intermediário, mas que não o desconsidera na
constituição dos sentidos (efeitos de sentido se produzem por uma
remissão ao silêncio).
1.4 – Espelho como processo de representação
O que faz do espelho processo de representação é o constituirse como espaço do olhar do Outro para o Eu: é o desejo do desejo
do Outro 2 3 que rompe a fragmentação inicial do Eu, porque traz
desse Outro um olhar unificador, olhar que se interioriza no Eu e que
constrói o Eu pela semiose, atravessando, percorrendo, perpassando
um espaço que decorre das relações dinâmicas – e especulares –
entre Eu e Outro.
Esse espaço tem sido apontado em diversas teorias, não só
como existente, mas como fundante dos atos de linguagem. A Análise
do Discurso, especialmente, assume que os efeitos de sentido são
produzidos entre o Eu e o Outro.
Como não poderia deixar de ser, empreender uma discussão
desta natureza implica atravessar um emaranhado de questões
teóricas extremamente contundentes para a AD. Será feita uma
23
Este conceito lacaniano será aprofundado no Capítulo 4º.
41
alusão
a
elas
brevemente,
colocando-as
como
pressupostos
e
referenciais de apoio para o objetivo buscado.
Um primeiro pressuposto são os conceitos bakhtinianos de
dialogismo e polifonia. A concepção da linguagem como processo
dialógico é um dos instrumentos conceituais mais proveitosos na
utilização que a AD faz de sua obra 2 4 . Em linhas gerais, coloca como
característica constitutiva da linguagem uma relação dialética entre o
Eu e o Outro, algumas vezes marcada dentro do próprio discurso que
se enuncia. Embora se façam leituras diferenciadas da aplicação e
das imbricações desse conceito, será utilizada a de Fiorin (1997: 229230):
Segundo Bakhtin, a língua, em sua ‘totalidade concreta,
viva’, em seu uso real, tem a propriedade de ser
dialógica.
Essas
relações
dialógicas
não
se
circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a
face. Ao contrário, existe uma dialogização interna da
palavra, que é perpassada sempre pela palavra do
outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do
outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir
um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que
está presente no seu. Ademais, não se pode pensar o
dialogismo em termos de relações lógicas ou
semânticas, pois o que é diálogo no discurso são
posições de sujeitos sociais, são pontos de vista acerca
da realidade (...)
24
Na verdade, esta utilização dá-se preferencialmente via Authier-Revuz. O interesse mais direto por parte de
alguns autores da AD por Bakhtin é mais recente.
42
Assim, considerar que o discurso do Outro está presente no do
enunciador e que o dialógico “são pontos de vista acerca da
realidade” interessa diretamente a esta reflexão, na medida em que
justifica
a
noção
de
intersubjetividade,
permitindo,
também,
considerações sobre o que se poderia chamar de “olhar dialógico”: o
olhar do Eu, inevitavelmente perpassado pelo do Outro, será sempre
um espaço intermediário constitutivo para a produção dos sentidos. O
espelho seria uma figurativização dessa temática.
No entanto, não basta utilizar o conceito de dialogismo. Importa
discutir se esse processo está marcado ou não no texto, se esse
olhar plural, já em seu ponto inicial de deslocamento, deixa indícios
de seu viés. Quando as vozes do discurso se mostram, em sua
relação dialética, ocorre a noção de polifonia.
A
Análise
do
Discurso
opera
com
outros
conceitos
convergentes, como o de heterogeneidade (Authier-Revuz ). Para a
autora, o discurso não opera sobre a realidade das coisas, mas sobre
outros discursos, que são atravessados pelo discurso do outro e, por
isso, a fala seria fundamentalmente heterogênea. Fiorin (ibidem)
observa que tal conceito precisa teoricamente o de dialogismo. Ele
sintetiza assim a classificação de Authier-Revuz:
43
A heterogeneidade pode ser constitutiva ou mostrada. A
primeira é aquela que não se mostra no fio do discurso;
a segunda é a inscrição do outro na cadeia discursiva,
alterando sua aparente unicidade. Naquela, o discurso
não revela a alteridade na sua manifestação; nesta a
alteridade exibe-se ao longo do processo discursivo. A
heterogeneidade mostrada pode ser marcada, quando
se circunscreve explicitamente, por meio de marcas
lingüísticas, a presença do outro (por exemplo, discurso
direto, discurso indireto, negação, aspas, metadiscurso
do enunciador), e não marcada, quando o outro está
inscrito no discurso, mas sua presença não é
explicitamente demarcada (por exemplo, discurso
indireto livre, imitação). (idem, ibidem)
Nas palavras da própria Authier-Revuz, pode-se perceber a
distinção entre os tipos de heterogeneidade:
C’est aussi qui instaure, au lieu de seuils et de
frontiéres un continuum, un degradé menant des
formes les plus ostentatoires – dans leur modalité
implicite – aux formes incertaines de la présence de
l’autre, avec a l’horizon, un point de fuite ou
s’épuiserait la possibilité d’une saisie linguistique,
dans la reconnaissance – fascinée ou désabusée –
de la présence dilué, partout, de l’autre dans le
discours. (1982: 97)
(...) Un autre type d’héterogénéité peut s’inscrire,
montré, dans la ligne du discours: celui des autres
mots , sous , dans les mots . Il n’est pas question
d’entrer ici vraiment dans ce domaine multiforme oú
se rencontrement les données matérielles du signe
(avec l’homonymie, la paronymie, la polysémie...) et
les innombrables figures ou tropes qui permettent
d’en jouer (de la métaphore et de la métonymie,
aux équivoques, calembours, à peu prés, rébus,
etc...). (ibidem) – destaques da autora.
44
O conceito de interdiscurso, já citado anteriormente, torna-se
importante também em relação a esta discussão, especificamente.
Nas relações dialógicas entre os vários discursos constitui-se um
espaço entrelaçado de gradações de silêncios que constróem a
intersubjetividade.
O
conceito
de
interdiscurso,
de
Courtine
&
Marandin, já citado, relaciona-se diretamente a essa questão.
A alusão a apagamento e esquecimento pode permitir reflexões
sobre diferentes ocorrências de silêncios e a denegação abre uma
perspectiva de uma relação polêmica consideravelmente complexa
entre Eu e Outro, configurando algumas condições de alteridade.
Isso interessa particularmente ao objetivo desta análise;
como
entende
Authier-Revuz,
a
heterogeneidade
se,
marcada-não-
mostrada está a meio caminho entre a heterogeneidade constitutiva e
a marcada, pode-se vislumbrar um espaço de (des)continuidades que
organiza
(aos
olhos
do
sujeito)
essa
dispersão
(no
sentido
foucaultiano) de sentidos entre o Eu e o Outro. Da perspectiva deste
trabalho,
os
apagamentos,
esquecimentos
e
denegações
mencionadas por Courtine & Marandin instauram o(s) silêncio (s) (por
ausência ou por excesso – Villarta-Neder, 1998) que constróem a
intersubjetividade. Espera-se que um olhar analítico e dialógico para
o corpus propicie alguns indícios dessas relações.
45
1.5 – O espelho de Lacan
Como será visto no Capítulo 4, o conceito de Estádio do
Espelho de Lacan apresenta aspectos significativos para a análise do
corpus. A imagem vista no espelho é a perspectiva do Outro,
assumida pelo Eu. Reflexo, refração e inversão. Nos múltiplos e
heterogêneos
intervalos
silêncios
constrói-se
que
a
tiram
essa
percepção
idéia
de
básica,
uma
em
seus
subjetividade
pretensamente poderosa e exterior ao mundo. Como neste momento a
preocupação concentra-se exclusivamente na relação que a metáfora
de Lacan possa ter com a metáfora do espelho , utilizada nesta tese,
seria oportuno citar um trecho de uma análise do conto O Espelho, de
Guimarães Rosa:
(...) É o olhar enquanto portador do desejo
pulsional que é perseguido, para que possa se dar
a ultrapassagem do ilusório da imagem. É aí que se
situa o porém. Édipo via: mas é quando seu olhar
se constitui enquanto olhar que sabe – de seu
desejo – que seu destino selado, registrado, se
manifesta – torna-se cego. Esse é o momento que o
espelho impede que aconteça e, ardilosamente,
“imaja-se” ante o olho, aprisionando-o na visão. A
estranha inquietude do Monstro – o desejo – há que
silenciar para que a angústia de castração se torne
suportável, ao assumir o lugar deslocado (...)
(Nunes Filho, 1983:138)
46
Depara-se aqui, portanto, com um silêncio sobre o silêncio ,
atravessado pela questão da alteridade. O espelho, silenciador do Eu
na imagem que dele (Eu) tem o Outro, silencia-se como efeito e
silencia o que o Eu jamais poderia dizer (também silêncio). A
relevância teórica do conceito lacaniano, entre muitas outras razões,
reside
em
pensar
o
silêncio
dentro
da
relação
intrínseca
da
alteridade.
Partindo-se do pressuposto de que o desejo é a falta, num de
seus sentidos possíveis (o de ausência) o silêncio equivale ao
desejo. Assim, haveria uma primeira razão para afirmar que o silêncio
é constitutivo: como desejo que se projeta para um fazer no mundo, o
silêncio, enquanto pulsão, solicita a palavra que interprete, o ruído
articulado que rompa uma polissemia, indeterminada, que impede a
satisfação. Dessa forma, a falta necessita do que a preencha, a dor e
o terror precisam cessar (prazer).
Nesse impulso de romper o limite da incompletude, começa a se
estabelecer uma relação constitutiva do sujeito e da linguagem.
Impossibilitado de ver a própria face, o Eu a buscará/criará na
imagem espelhada/projetada na face do Outro (por exemplo, é a
expressão da face do Outro que me diz se meu gesto é um afago ou
uma agressão).
O que ocorre, no entanto, é que a diferenciação entre Eu e
Outro não se restringe a uma dicotomia, uma vez que esse Outro se
bifurca. Primeiramente é preciso considerar que é o desejo que cria
47
esse impulso, fruto da incompletude que necessita do Outro para
suprir
a
dor
primordial
da
falta.
A primeira
falta
primordial
é
representada pela impossibilidade que o corpo tem de sobreviver sem
a interação com o meio ambiente. Sendo assim, há a necessidade de
buscar
no
mundo
os
elementos
que
trarão
a
satisfação
da
necessidade de se manter vivo. É possível tomar-se uma metáfora
platoniana para expressar dois aspectos desse desejo. O primeiro
deles
seria
o
desejo-aspiração
e
o
segundo,
o
desejo-apetite.
Pessanha (1990:91-92 ) faz um paralelo pertinente entre os dois
tipos:
No primeiro, o modelo fisiológico é a respiração, que
garante a vida na medida em que insere o homem
permanentemente, na amplidão volátil e ritmada do
cosmos que, ele próprio vivo, respira; no segundo, o
paradigma - mostra Platão no Filebo - é a urgência
intermitente, episódica, da sede e da fome.
Na relação especular que os muitos silêncios deflagram, não se
pode
conceber
uma
análise
de
processo
sem
considerar
pressupostos da alteridade. O que Pessanha nos aponta
função
do
desejo-apetite
que
se
pode
falar
da
os
que é em
bifurcação
da
percepção do Outro.
Toda a discussão filosófica e psicológica sobre a constituição
do sujeito, dessa perspectiva, não tem como não ser perpassada
pelos primeiros contatos do bebê com o mundo e os outros seres
48
humanos que o cercam. Tratam-se de necessidades biológicas,
(re)interpretadas pela cultura e pelo discurso. Assim, enquanto a
sede e a fome são saciadas pelo seio materno, depara-se ainda com
a figura do Outro como uma categoria mais ampla, designando tudo
aquilo que não seja o Eu.
Quanto mais forte for a percepção, por
parte da criança, da separação entre o seu corpo e o da mãe, mais a
presença do Outro se instaurará e, como conseqüência, delimitará
cada vez mais, os limites constitutivos do Eu.
Ocorre, no entanto, que, com o passar do tempo, a satisfação
desse desejo primordial deixa de ser suprida exclusivamente pelo
seio materno, passando progressivamente a se transferir para a
alimentação pela ingestão oral de líquidos e sólidos que não têm
origem humana.
A partir desse momento pode-se considerar que a relação de
alteridade já não se limita ao fato de a criança começar a perceber
que existem outros seres da mesma espécie, nos quais ela se
reconhece
enquanto
semelhante,
embora,
com
tendências
de
individuação. Acrescenta-se a percepção de que existem “coisas” que
não são o Eu, mas que também não são humanas.
A conseqüência mais imediata disso é que passa a existir uma
exterioridade dupla: o Outro-humano e o Outro-não-humano. Será
esse Outro-humano que fornecerá, depois de um certo tempo, a
primeira
possibilidade
de
visualização
da
própria
face,
embora
distorcida e invertida: o espelho. Retoma-se, dessa maneira, um mito
49
primordial (o de Narciso): na face-espelho da água, superfície do
elemento em que esteve imerso em sua gestação, o Eu reconhece a
própria face e se encanta por ela, inconsciente das modificações que
a refração ocasiona na imagem. Portanto, o Outro-Humano é a
medida do gesto (fazer), enquanto o Outro-Não-Humano (mundo) é a
medida da representação (linguagem).
Enquanto fonte supridora do desejo, o mundo acrescenta a
satisfação da própria imagem, simbolizada na superfície do espelho .
A representação de si próprio levará, igualmente à necessidade de
representar (simbolizar) o Outro-Humano. Dessa busca de similitude
e contraste nascerão as funções sociais futuras e os limites da
individuação.
São, então, três termos, em lugar de dois. E se quase todas as
classificações e hierarquizações privilegiam as relações binárias,
pode ser precisamente porque, das três posições possíveis (Eu,
Outro-Humano, Outro-Não-Humano), uma representa o ponto de vista
em que insere o participante do processo. Sendo assim, pela
impossibilidade da auto-contemplação a não ser na posição do Outro
(Humano
ou
Não),
o
Eu
ilude-se
com
a
percepção
binária
(estabelece-se aqui um tipo importante de silêncio). 2 5
25
Nas culturas ditas ocidentais, há uma tradição de apagamento do terceiro elemento, levando a um
binarismo. Não cabe a este trabalho discutir se há no horizonte visual da criança elementos que reforcem essa
percepção ou se ela é de outra natureza.
50
Se for aceita essa linha de análise, chegará a se acreditar que
uma das três posições se apaga (silencia) e que, portanto, o silêncio ,
enquanto condição epistemológica, é constitutivo não só do Eu, mas
do jogo de representação e de identificação entre o Eu e o Outro.
Sob esse ponto de vista, a palavra nasceria entremeada de
silêncio pelo simples fato de a representação somente ser possível
quando o Eu busca simbolizar a si mesmo e ao Outro-Humano no
Mundo, ou seja, pelo fato de em nenhum momento ser possível
desconsiderar um dos elementos da tríade, embora também seja
impossível considerar todos ao mesmo tempo. A necessidade do
ponto de vista, do foco do olhar, determina o elemento silenciado.
Isso coloca cada ser humano primordialmente como refém de
seu próprio silêncio (do desejo) e o silêncio (enquanto desejo) como
ponto de partida do Humano. Nesse sentido, o desejo/silêncio para o
Eu é interno.
Quando o Eu se depara com o outro, na verdade está se
deparando com um outro-Eu, só que privado (para o primeiro Eu) da
vivência da internalidade. Embora o outro tenha o desejo/silêncio
circunscrito aos limites de seu corpo, para o Eu esse outro se
manifestará apenas como a presença desses limites, de forma
externa. Ou seja, do ponto de vista do Eu, só o que é externo ao
desejo/silêncio
do
outro
(que
é
um
outro-Eu)
é
passível
de
apreensão.
51
Essa apreensão remete a um terceiro elemento, que é a
inserção. Deste ponto de vista 2 6 , pode-se considerar que o olhar do
Eu traz a exterioridade do Outro para a internalidade do Eu, na
medida em que a imagem do Outro se internaliza na mente (e, por
extensão, no corpo, no desejo e no silêncio do Eu). Essa inserção
representa o mundo, que é o elemento aglutinador, constitutivo da
interação entre o Eu e o Outro, estabelecendo-se, posteriormente,
também
um
lugar
diferenciador/diferente
do
Eu,
mas
também
diferente do Outro (estabelece-se, assim, a diferença entre o outroEu humano, e o outro-não-humano, que é o mundo.
Um elemento também presente nessa interação é o cruzamento
de olhares. O Eu, ao perceber o olhar do Outro, inicia um processo de
constituição do humano pela identificação do
Eu no Outro, sendo
este último o ser-que-olha/ser-que-deseja. Entretanto, esses dois
atributos não serão apreendidos ao mesmo tempo. Enquanto ser-queolha, o Outro (humano) causará identificação à medida em que o Eu
também se reconheça como ser-que-olha (para o Outro).
Já o ser-que-deseja será percebido no Outro pelo Eu quando
esse Eu se perceber enquanto ser-olhado-pelo-outro, enquanto objeto
do desejo/silêncio do Outro, alternando de papel na interação,
fazendo-se outro do Outro, que então se faz Eu.
26
Levando-se em consideração a forma do olhar.
52
1.6 – Diversidades de silêncios no movimento dos sentidos
Uma primeira consideração, e que pode ser útil para delimitar
diferentes efeitos do silêncio, é a dos elementos que constituem o
processo interlocutivo. Há, neste caso, o enunciador, o enunciatário e
uma série de elementos contextuais. Podem-se postular silêncios
contextuais, mas entende-se que estes são conseqüências desses
outros tipos, advindos do enunciador ou enunciatário.
Um segundo elemento fundamental, decorrente do primeiro
critério acima, é o dos códigos semióticos. Um problema teoricamente
relevante
e
metodologicamente
complexo
é
o
de
estabelecer,
inicialmente dentro de cada código semiótico, e depois na relação
que um código estabelece com outro, até onde o silêncio de/em uma
semiose não se dá pela presença de outra. Assim, em relações
intersemióticas como a fala típica (face-a-face), não haveria nunca
uma ausência de um código semiótico em particular, mas uma
interpenetração. O que falta à palavra estaria preenchida pelo gesto,
pela expressão do corpo etc. Isso implica considerar que cada
semiose
apresenta
entrelaçamento
uma
destas
sintaxe
resultaria
característica
igualmente
e
uma
que
do
rede
de
sobreposições e de silêncios.
53
A escrita literária do tipo que se está analisando nesta tese
apresenta uma maior operacionalidade, na medida em que a interrelação semiótica se dá entre a escrita e a significação visual da
página, no sentido básico da diagramação. Tanto nos textos em prosa
quanto naqueles em poesia, os elementos significativos situam-se
nos espaços entre as letras, palavras, paragrafação, distâncias entre
títulos,
subtítulos,
estabelecem-se
notas,
epígrafes
fundamentalmente
etc.
De
qualquer
em
função
de
maneira,
gêneros
culturalmente estabelecidos e convenções de escrita tais como
ortografia, sentido de leitura da página, alinhamento, entre outros.
A partir do pressuposto de que, para o ser humano tudo é
passível de significação, já exposto na introdução, entende-se que
não existirá nenhuma situação em que cesse o ato interpretativo, por
ausência total 2 7 .
Pode-se, hoje, ler um texto de Aristóteles. Nessa situação
enunciativa o sujeito Aristóteles diz de um lugar discursivo que
depende
de
uma
tradição
interpretativa,
da
preservação
dos
enunciados, das imagens culturalmente estabelecidas a seu respeito
(na nossa circunstância cultural) e de como todos esses elementos
dialogam
com
os
enunciados
que
foram
produzidos
em
outro
contexto, para outros enunciatários. Depende, sobretudo, de como
27
Um ex em pl o di s s o nos vem da fi l os ofi a em que concei t os negat i vos t ai s com o o Nada,
o Não- s er, s ão pas s í vei s de anál i s e. Out ro ex em pl o im port ant e, nes t e cas o, é a m ort e.
M es m o ent endi da com o ces s ação tot al da vi da e, port ant o, de t odas as condi ções de
i nt erpret abi l i dad e por part e do i ndi ví duo, a cons t i t ui ção do s uj ei t o ai nda perm ane ce
at ravés da m em óri a, do mi t o, da hi s t óri a e da aut ori a.
54
nossas representações de autoria nos remetem a essa leitura. Se
algum estudioso surpreendesse o mundo com a afirmação de que
teria descoberto textos inéditos do filósofo grego, seria estabelecida
uma discussão complexa sobre os critérios de reconhecimento do que
seriam traços de autoria de Aristóteles. Se essas implicações forem
levadas suficientemente a sério, pode-se afirmar que, tal como a
autoria, o silêncio é sempre, necessariamente, intersubjetivo.
No caso do corpus deste trabalho, decorre um tipo de silêncio
que é eminentemente característico do processo semiótico da língua.
Obviamente, contrariamente a esta, seja por excesso ou por ausência
relativa, o silêncio permite encadeamentos enunciativos diferentes do
que se costuma enxergar na constituição da língua.
Desde o ponto de vista mais básico da semiose lingüística, sob
uma perspectiva bakhtiniana, todo signo, enquanto parte de um
sistema intersubjetivo que se pretende como ato interpretativo, é
dialógico.
Nessa perspectiva, os silêncios entendidos enquanto pausas,
interrupções e finalizações somente são significativos pois há, dentro
daquela semiose, como dentro de qualquer outra, o desejo básico de
produzir sentidos. Sentidos que se delimitam, se sobrepõem e criam
ilusões de unicidade 2 8 . A partir deste aspecto, há, portanto, um tipo
particularmente interessante de silêncio: para que uma semiose se
estabeleça como tal, os lugares enunciativos têm de ser marcados. É
28
Isso será visto adiante, na aplicação do conceito de função-autor, de Foucault.
55
imperativo silenciar a fala do outro presente na fala do Eu, sob a
pena dela, coro polifônico de um concerto barroco 2 9 , ensurdecer, ao
mesmo tempo, o enunciador e o enunciatário com um excesso
brutalmente fragmentador do sujeito.
Outro aspecto a ser considerado é a da relação entre silêncio e
dizer, já exposta anteriormente. Sob esse ponto de vista, pode-se
entender o silêncio como ausência (não dizer) e como excesso (dizer
demais; o que é dito sobrepondo o que não se diz). Como já foi
discutido
inicialmente,
são
processos
complementares
(não
se
concebe um processo de sobreposição sem a ausência do que foi
sobreposto e igualmente, o não dizer estabelece um excesso –
sobreposição, também – em relação à palavra).
1.7 – Silêncio como ausência x representação simbólica
Há pelo menos dois sentidos básicos a partir dos quais se pode
entender a ausência como processo deflagrador da representação
simbólica. O primeiro alude à exterioridade das Formações Sociais
(FS daqui em diante) e o segundo ao interior delas.
O primeiro refere-se ao fato de que cada FS recorta da
virtualidade do mundo (enquanto totalidade indiferenciada, passível
29
A metáfora de concerto barroco, aqui, remete à sua estrutura, composta pela superposição de várias
melodias.
56
de referenciação) um grupo de objetos, através do valor particular
que
eles
assumem,
como
signos,
passando
a
significarem
na
instância inter-individual, momento a partir do qual entra-se no âmbito
da ideologia. São ilustrativas a esse respeito, duas passagens de
Bakhtin(1988):
A
cada
etapa
do
desenvolvimento
da
sociedade, encontram-se grupos de objetos
particulares e limitados que se tornam objeto
da atenção do corpo social e que, por causa
disso, tomam um valor particular. Só este
grupo de objetos dará origem a signos, tornarse-á um elemento da comunicação por signos.
Para que o objeto, pertencente a qualquer
esfera da realidade, entre no horizonte social
do grupo e desencadeie uma reação semióticoideológica, é indispensável que ele esteja
ligado
às
condições
sócio-econômicas
essenciais do referido grupo, que concerne de
alguma maneira às bases de sua existência
material.
Assim, dialeticamente, ausência é a sobra ou o excesso , ALÉM
dos objetos representativos para a FS e que vão se transformar em
signo,
transformação
esta
que
circunscreve
o
ideológico
desta
representação sígnica.
O segundo sentido, interior a cada FS, alude ao que, na relação
entre seus objetos e signos constrói-se como DISCURSO e, assim
sendo, necessita dos apagamentos de sua gênese enquanto processo
mesmo de ausências. É no silenciamento da alteridade para com
57
outros DISCURSOS, gerados em outros processos, dentro de outras
FSs, que se dá tal ausência. Nesse sentido, constitutivamente, a
presença dos discursos outros se dá como índice, a partir da
ausência
desses
mesmos
conceitos, presente
Ideológica
e,
na
discursos.
Daí
AD, de Formação
principalmente,
o
de
serem
relevantes
Discursiva,
Interdiscurso.
os
Formação
Nesse
tecido
entremeado entre o que se pode e o que se deve dizer, numa dada
conjuntura, estabelecem-se espaços internos de ausência (o que não
se
deve
e
o
que
não
se
pode
dizer,
como
já
foi
discutido
anteriormente).
O importante a ser dito aqui é que essa internalidade, como
constitutivamente dialógica (da perspectiva de Bakhtin) ou essa
heterogeneidade constitutiva (do ponto de vista de Authier-Revuz )
remete sempre a uma exterioridade, exatamente aquela primeira
instância da ausência brevemente discutida acima. E remete a uma
ausência enquanto alteridade, na medida em que reconhece (ou
desconfia de) outros percursos possíveis da representação simbólica
(1) nos outros discursos, advindos de outras Formações Discursivas e
Formações Ideológicas, ou (2) na sombra do corpo simbólico (que é
seu próprio discurso).
Cabe dizer, ainda, que enquanto exterioridade, cada FS traz
para o discurso a não-presença possível dos objetos inscritos no
valor
de
seu
corpo
social.
Na
impossibilidade
de
apropriar-se
fisicamente, corporalmente desses objetos, estes são presentificados
58
e representados na materialidade da constituição interacional e
ideológica do processo sígnico 3 0 .
1.8 – Silêncios indiciados
Entre as muitas possibilidades que este trabalho permite,
talvez a mais importante seja a de refletir sobre formas de olhar para
como são vistas as representações, por parte do enunciador, de sua
função, do Outro, que ele se esquece 3 1 estar imanente em sua
constituição e, principalmente, dos níveis de mediação que as
palavras, entrecortadas de silêncio, estabelecem com outras palavras
(e com outros silêncios).
É possível olhar para um texto como uma teia de relações com
silêncios e com palavras e, mais do que isso, entre silêncios, entre
palavras e entre ambos. É igualmente possível ver que nesse espaço
intermediário é que os sentidos são propostos e se colocam como
espelho para a reflexão (com os vários sentidos que essa palavra
pode possuir) do Outro.
30 *
De alguma forma, essa ausência dos objetos, embora destituída do caráter ideológico já foi antevista por
Aristóteles, quanto este filósofo diz que o símbolo está para algo que não está presente.
31
Pode-se considerar que tal esquecimento esteja na base do esquecimento n.º 1, apontado por Pêcheux &
Fuchs (1975)
59
O
processo
intervalar
não
é
desconhecido.
Foucault,
na
Arqueologia do Saber, ao rever a proposta de As Palavras e as
Coisas, toca numa questão próxima:
‘As palavras e as coisas’ é o título – sério – de um
problema; é o título – irônico – do trabalho que lhe
modifica a forma, lhe desloca os dados e revela, afinal
de contas, uma tarefa inteiramente diferente, que
consiste em não mais tratar os discursos
como
conjuntos de signos (elementos que remetem a
conteúdos ou a representações), mas como práticas
que formam sistematicamente os objetos de que falam.
Certamente os discursos são feitos de signos; mas o
que fazem é mais que utilizar esses signos para
designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à
língua e ao ato da fala. (...)” (1987: 56) – destaque
nosso.
É como prática, como construção nesse processo labiríntico e
sucessivo de mediações que o silêncio significa; não como um
contraponto binário da palavra, mas essencialmente como um espaço
de movimento que medeia cada silêncio anterior, cada palavra ainda
não-dita, cada discurso esvaziado de sentido pelo excesso que
também não diz e que silencia o outro, para, talvez, mantê-lo intacto
na imanência do Eu.
Brandão (1997: 287), no artigo Escrita, Leitura, Dialogicidade
cita Umberto Eco 3 2 para distinguir as duas instâncias através das
quais o leitor se institui no texto. A primeira delas seria no nível
32
O texto de Eco comentado por Brandão é do Lector in Fabula. Em obras posteriores, o semioticista italiano
aprofunda algumas de suas posições teóricas, principalmente no que se refere aos limites da interpretação.
Esses contrapontos serão aprofundados no Capítulo 2.
60
pragmático,
pela
atenção
que
o
escritor
tem
em
relação
ao
interlocutor; a segunda, que nos interessa mais no momento, dá-se
no nível lingüístico-semântico e representaria a potencialidade, o
texto, frente à realização que a leitura propicia dessa potencialidade.
Nesse sentido:
É o movimento da leitura, o trabalho de elaboração de
sentidos feito pelo leitor que dá concretude ao texto. Em
graus diferentes de complexidade, um texto é sempre
lacunar, reticente. Apresenta ‘vazios’
- implícitos,
pressupostos, subentendidos que se constituem
em
espaços disponíveis a serem preenchidos pelo leitor.
(idem, ibidem)
Talvez
fosse
necessário
ampliar
a
noção
desses
‘vazios’
apontados por Eco para o âmbito do silêncio. Sendo isso possível,
haveria o entendimento de que os silêncios são heterogêneos e
gradativos porque basicamente as práticas que convidam o Outro a
participar menos ou mais intensamente do jogo enunciativo tecem
espaços que se fecham ou que se (entre)abrem. Por decorrência,
esses espaços por onde se entrelaça o interdiscurso como instância
dialógica e intersubjetiva, trazem o Eu-no-Outro e o Outro-no-Eu para
seu reverso, para a intermediação dos silêncios como brechas
possíveis para a produção dos sentidos.
Cabe, por fim, fazer uma opção. Este trabalho privilegiará como
unidade de análise o silêncio enquanto heterogeneidade mostrada.
Authier-Revuz concebe o discurso enquanto heterogêneo, clivado
61
pela alteridade, concebe-se aqui que o silêncio constitui-se como
procedimento dessa clivagem de vozes (silenciamento), também se
constitui como uma dessas vozes. E através de indícios (mais diretos
ou menos diretos) será enfocada essa heterogeneidade onde a
presença de um Outro se insinua ou se mostra. Em função dessa
opção pela heterogeneidade mostrada, portanto, a constitutividade do
silêncio será abordada de maneira secundária.
62
CAPÍTULO 2
LEITURAS SOBRE BORGES
A realidade é como essa nossa
imagem que surge em todos os
espelhos, simulacro que existe por
nós, que conosco vem, gesticula e se
vai, mas em cuja busca basta ir para
sempre topar com ele
Jorge Luís Borges - A encruzilhada
de Berkeley
A primeira parte deste capítulo pretende situar a produção
borgeana num contexto crítico relevante. É sabido que muito se tem
escrito sobre Borges, das mais diferentes perspectivas. Portanto, não
se
torna
tarefa
fácil
proceder
a
uma
seleção
de
uma
crítica
representativa, ainda mais num trabalho como este, em que as
posições críticas possuem uma função auxiliar de contextualizar
aspectos da estética borgeana.
Tomou-se
um
crítico
reconhecido
como
fio
condutor
para
explorar os labirintos de Borges e inserir outros autores que possam
contribuir para essa contextualização. Esse
fio
condutor
será
constituído, basicamente, pela análise da obra borgeana enquanto
63
proposta poética, feita por Emir Rodriguez Monegal , um dos maiores
e mais reconhecidos críticos da literatura hispano-americana 3 3 .
Em sua obra “Borges: uma poética da leitura”, Monegal procura
demonstrar como o escritor argentino vai construindo uma concepção
estética que inaugura um novo olhar para a literatura, para as
funções do autor, do leitor e da própria obra. Conhecer essa
argumentação torna-se bastante relevante para a discussão sobre
estratégias de silêncio no texto escrito, literário e, especificamente,
borgeano.
2.1 – Crítica francesa
Monegal aponta que foi exatamente a crítica francesa (nouvelle
critique)
que
renovou
a
obra
borgeana
e
a
situou
num
nível
internacional.
Um primeiro crítico francês, dentro desta perspectiva, que é
analisado por Monegal é Maurice Blanchot, que aponta como aspecto
central da cosmovisão literária de Borges a noção de infinito.
33
Observe-se que há inclusão de perspectivas às vezes contempladas por Monegal, às vezes não. No caso de
Blanchot e Genette, há essa coincidência. Há acréscimo de autores como Barnatán, Campos e a própria obra
crítica de Borges.
64
Blanchot procura demonstrar que "qualquer espaço limitado pode
converter-se em infinito, quando ele se torna para nós um espaço
escuro, se a cegueira (real ou metafórica) nos invade.”
(Monegal,
1980: 20)
Blanchot aponta uma característica crucial do sujeito-estético
Borges:
Pour l’homme mesuré et de mesuré, la chambre, le
désert et le monde sont des lieux strictement
déterminés.
Pour
l’homme
désertique
et
labyrintique, voué à l’erreur d’une demarche
nécessairement un peu plus longue que sa vie, le
même espace sera vraiment infini, même s’il sait
qu’il ne l’est pas et d’autant plus qu’il le saura.
(BLANCHOT, 1959: 116)
Pode-se
entender
que
esse
infinito,
no
entanto,
torna-se
labirinto, na medida em que a infinitude não se dá pela extensão do
espaço de conhecimento, mas sim pelas relações.
sempre
um
universo
infinitamente
Borges propõe
inter-relacional,
intertextual,
ambos tidos como uma construção estética. Essa identificação entre
o livro e o mundo também será percebida por Blanchot.
Tal associação resulta em conseqüências fundamentais, senão
terríveis para uma concepção mais tradicional do fazer estético. Sem
limites de referência, “o mundo e o livro trocam eternamente e
infinitamente suas imagens refletidas”. Esse espelhamento titânico
65
tem
uma
conseqüência
inevitável:
ofusca
o
olhar,
através
dos
truques, enganos, artifícios.
Percebe-se
neste
pormenor
um
aspecto
relevante para a discussão sobre o silêncio . Se,
profundamente
como foi visto no
primeiro capítulo, a reflexão da imagem na superfície do espelho
silencia por nos ocultar a alteridade dessa imagem, num jogo de
espelhos reduplicados, ocorre um efeito ainda mais silenciador que é
o do ofuscamento do olhar. O esquecimento número um de Pêcheux
fica, no interior deste jogo, abalado: como acreditar num sujeito que
seja fonte e origem do dizer, se este dizer ricocheteia eternamente
nas referências infindáveis, sem origem nem fim ?
Essas questões, embora via outro olhar epistemológico, não
passaram despercebidas a Blanchot, quando ele aponta a concepção
de literatura e de autoria em Borges:
Borges comprend que la périlleuse dignité de la littérature
n’est pas de nous faire supposer au monde un grand auteur,
absorbé dans de rêveuses mystifications, mais de nous faire
éprouver l’approche d’une étrange puissance, neutre et
impersonelle. Il aime qu’on dise de Shakespeare: “Il
resemblait à tous les hommes.” Il voit dans tous les auteurs
un seul auteur que est l’unique Carlyle, l’unique Whitman, qui
n’est personne. Il se reconnaît en George Moor et en Joyce –
il pourrait dire en Lautréamont, en Rimbaud -, capables
d’incorporer à leurs livres des pages ed des figures qui ne
leur appartenaient pas, car l’essentiel, c’est la littérature, non
les individus, et dans la littérature, qu’elle soit
impersonellement, en chaque livre, l’unité inépuisabele d’un
seul livre et la répétition lassée de tous le livres.
(BLANCHOT, 1959: 118)
66
Para Blanchot, “toda escritura é uma tradução”, embora ele
conceba a tradução como uma concepção linear, como se não
houvesse várias concepções de tradução. Quando, ao estabelecer
uma comparação com a ficção borgeana, ele diz que na tradução há
uma obra numa dupla linguagem, percebe-se que a questão não é tão
simples assim. Blanchot silenciou sobre a concepção de tradução em
que acredita. De uma outra perspectiva, não seria uma única obra,
mas
cada
tradutor
seria
um
autor
diferente.
Não
cabe,
neste
momento, optar por uma ou outra. O que interessa é que estabeleceuse entre uma análise crítica e a própria obra borgeana que ela
analisa, uma relação de silêncio, na medida em que também não se
coloca neste caso, que, se a comparação com a tradução é pertinente
(e ela o é), tal pertinência não se dá por semelhança estrutural (o
fato de, no entender de Blanchot, tanto a tradução quanto a ficção
borgeana serem múltiplas). De uma perspectiva borgeana elas são
múltiplas pelas mesmas razões. Seria oportuno citar este trecho:
67
Numa tradução, temos a mesma obra numa dupla
linguagem; na ficção de Borges, temos duas obras na
identidade da mesma linguagem e, nessa identidade que
não é una, o fascinante espelho da duplicidade dos
possíveis. Ora, onde há um duplo perfeito, o original é
apagado, até mesmo a origem. Assim, o mundo, se pudesse
ser exatamente traduzido e reduplicado num livro, perderia
todo começo, e todo fim tornar-se-ia esse volume esférico,
finito e sem limites, que todos os homens escrevem e no
qual eles são escritos: já não seria isto o mundo, seria, será
o mundo pervertido na soma infinita de seus possíveis. (Esta
perversão é provavelmente o prodigioso, o abominável
aleph) (p. 23 – Blanchot, p. 118-9)
A perspicácia da análise de Blanchot sobre a estética de Borges
é instigadora. O que ficou como silêncio para a própria análise é que,
desta perspectiva estética (a borgeana), a tradução também seria
esse apagamento de origem. Mais do que isso: falta a essa análise a
percepção da alteridade. A idéia de duplo perfeito não deixa de ser
uma quimera centralizadora da posição de um sujeito que se concebe
ainda como origem e centro do dizer. Numa sala de espelhos, o terror
provocado pela multiplicação de imagens iguais é a mesma ilusão do
sujeito. Se cada imagem é invertida e se o próximo espelho vai
inverter essa inversão, na verdade nenhuma imagem será igual 3 4 .
Somente da perspectiva de um imaginário que conceba a existência
do sujeito original e perfeito.
34
O raciocínio aqui sustenta-se na óptica e não na lógica formal. Logicamente ~(~p) = p , o que daria a ilusão
de que a inversão recuperaria o “sujeito original”. Do ponto de vista óptico, no entanto, sempre há algum grau
de deformação no processo de reflexão/refração.
68
Como se espera que fique ainda mais claro no decorrer desta
discussão, a estética borgeana não imobiliza, neste perverso jogo de
espelhos, nem o fazer literário, nem a própria escritura. Esses
reflexos multiplicados, silenciados e silenciadores, instauram uma
outra concepção de linguagem. Aliás, para Borges, apropriando-se de
Croce, a linguagem, mesmo antes de ser literária ou artística, já
consiste numa poética.
Essa outra forma de se conceber a linguagem não lhe rouba os
silêncios que a constituem, mas é fundamental frisar que os vê num
movimento, entre essas referências nunca exauridas, porque mesmo
sem terem a origem e o centramento definidos, dependem da
participação do leitor (o que se verá mais adiante). Borges, em sua
conferência “O livro”, ao falar sobre a construção de sentidos que se
opera sobre uma obra, diz que
Hamlet não é exactamente o Hamlet que
Shakespeare concebeu no princípio do século XVII;
Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de
Bradley. Hamlet foi ressuscitado. O mesmo
acontece com o Quijote. (...) Os leitores foram
enriquecendo o livro. (1979:29)
Ora, se o leitor pode enriquecer o livro, é porque essas
imagens-outras multiplicadas no jogo de espelhos não o acorrentam
69
numa
linguagem
imóvel
e
petrificada.
Mesmo
que
seja
numa
tradução 3 5 .
Outro crítico analisado por Monegal é Gerard
Genette, que
destaca na obra borgeana um aspecto muito ligado ao trecho citado
acima. É o caso da leitura como escritura.
Genette aprofunda alguns aspectos da análise de Blanchot,
particularmente com relação ao conto Pierre Menard, autor del
Quijote.
O crítico francês inicia discutindo (e refutando) a acusação
de pedantismo que a obra de Borges sofre costumeiramente, por
empreender um catálogo associativo de autores e obras, como se
apenas relatasse as “diferentes entoações que têm tomado no correr
dos séculos.”
Para Gérard Genette, esse suposto pedantismo da obra de
Borges reflete algo mais profundo, uma nova concepção de autoria
como algo único, intemporal e anônimo, sendo, desta perspectiva,
todas as obras escritas por esse único autor . Genette aponta uma
radicalização dessa visão no conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, mas
ela pode ser encontrada em praticamente toda a obra borgeana.
Textos como La flor de Coleridge ou mesmo trechos de seu “Ensaio
Autobiográfico” 3 6 são bastante enfáticos nesse aspecto. Do ponto de
35
Em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Jorge Luís Borges, ao descrever a filosofia e literatura de Tlön diz que “Un
libro que no encierra su contralibro es considerado incompleto. A crítica de Blanchot em essa virtude.
Monegal frisa essa característica: “O paradoxo radical da análise de Blanchot é que a literatura não é um mero
engano, mas sim ‘o perigoso poder de ir ao que é, pela infinita multiplicidade do imaginário’. No imaginário
reside o infinito.” (p. 24)
36
Sinto que durante toda a minha vida tenho estado escrevendo esse único livro. (p. 66)
70
vista da recepção da obra de Jorge Luís Borges, no entanto, o texto
mais emblemático continua sendo, sem dúvida, Pierre Menard, autor
del Quijote.
As perspectivas apontadas por Borges para explicar esta idéia
da enumeração não satisfaz Genette, que considera mais profunda a
concepção de que
(...) a idéia excessiva da literatura a que Borges
gosta às vezes de nos arrastar designa talvez uma
tendência profunda da coisa escrita, que é a de
extrair ficticiamente em sua esfera a integralidade
das coisas existentes (e inexistentes) como se a
literatura só pudesse manter-se e justificar-se a
seus próprios olhos com esta utopia literária. O
mundo existe, dizia Mallarmé, para terminar num
Livro. (GENETTE, 1972:124)
No âmbito da discussão levantada nesta tese, é oportuno
cotejar esse comentário de Genette com as considerações que
Authier-Revuz faz sobre a relação entre literatura e silêncio.
Esse universo de referências e citações, depois metaforizado
em Biblioteca de Babel, altera a própria noção linear e seqüencial de
tempo, inúmeras vezes refutada por Borges. No labirinto cíclico que é
a concepção de tempo borgeana, a identidade da obra, do autor (e do
próprio leitor) passa a ser também (inter)textual, sujeita a esse
quadro de citações e referências que, segundo Borges, constitui o
universo. Por isso, faz sentido, desta perspectiva, a fala final do
personagem Joseph Cartaphilus, no conto El inmortal:
71
Cuando se acerca el fin, ya no quedan imágenes
del recuerdo; sólo quedan palabras. No es extraño
que el tiempo haya confundido las que alguna vez
me representaron com las que fueron símbolos de
la suerte de quien me acompañó tantos siglos. Yo
he sido Homero; en breve, seré Nadie, como Ulises;
en breve, seré todos: estaré muerto. (1989: 543544)
Em seguida, Genette passa a analisar outra perspectiva crucial
na obra de Borges, que o escritor argentino desenvolve no texto
Kafka y sus precursores, no volume Otras inquisiciones: a de que
“cada escritor crea
a sus precursores. Su labor modifica nuestra
concepción del pasado, como há de modificar el futuro.” (1989:712 –
destaque do próprio Borges). O interessante, acusa Monegal, é que
Genette compara adequadamente o ponto de vista de Borges com o
de Valéry, mas esquece-se de levar em consideração a nota de final
de página do texto borgeano e que refere essa idéia a T. S. Elliot , no
texto Points of view.
A concepção estética decorrente será uma valorização da
posição do leitor (como produtor de sentidos) e uma sacralização do
livro como objeto capaz de proporcionar, através do acesso ao texto,
esse encontro com o extraordinário 3 7 :
37
Outro texto de Borges que toca nesta questão do fato estético é o epílogo de La muralla y los libros: “La
musica, los estados de felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el tiempo, ciertos crepúsculos y ciertos
lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que ho hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta
inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético. (1989: 635)
72
A idéia de um livro sagrado, do Corão ou da Bíblia,
ou dos Vedas – onde também se diz que os Vedas
criam o mundo – , pode ser coisa do passado, mas
o livro conserva ainda uma certa santidade que
devemos esforçar-nos por não perder. Pegar num
livro e abri-lo mantém a possibilidade do
acontecimento estético. O que são as palavras
encostadas umas às outras num livro ? O que são
esses símbolos mortos ? Absolutamente nada. O
que é um livro, se o não abrimos ? É simplesmente
um cubo de papel e de couro, com folhas; mas se o
lemos acontece uma coisa extraordinária; creio que
não é a mesma de cada vez que o fazemos. 3 8
(1979: 28-29)
Essa idéia de que o leitor é que, em última instância, o fator
mais importante para a trajetória de sentidos de um livro será
desenvolvida
por
Genette a partir das noções de Borges . Em
Pierre Menard, fundamentalmente, afirma Monegal, “(...) encontrará
Genette a base para afirmar que a leitura é... “a mais importante
operação que contribui para o nascimento de um livro ...” (GENETTE,
1972: 27)
Tal impessoalidade da tradição literária, ampliada de Elliot e,
segundo Genette, coincidente com Valéry,
faz alusão a muitos
momentos na obra borgeana em que o indivíduo cede espaço para a
espécie.
38
Essa idéia de mutabilidade da leitura será levada às últimas conseqüências no conto El libro de arena.
73
Borges desenvolverá esta idéia, apoiando-se em conceitos
como o de “tempo circular” (Tiempo circular, Nueva refutación del
tiempo, La Doctrina de los Ciclos etc.), a irrealidade das formas e das
identidades (Ruinas circulares, O consciente e o inconsciente 3 9 ), Essa
pequenez do indivíduo diante do universo fica evidente no conto La
escritura del dios:
Que muera conmigo el misterio que está escrito en
los tigres. Quien há entrevisto el universo, quien há
entrevisto los ardientes designios del universo, no
puede pensar en un hombre, en sus triviales dichas
o desventuras, aunque ese hombre sea él. Ese
hombre ha sido él y ahora no le importa. Qué le
importa la suerte de aquel outro qué le importa la
nación de aquel outro, si él, ahora es nadie. (...)
(1989: 599)
Outro crítico mencionado por Monegal é
Jean Ricardou , que
aponta na obra borgeana o caráter labiríntico e circular. Sua análise
mais abrangente de Borges será do texto El arte narrativo y la magia
(do volume Discusión), no qual Borges analisa o romance The
adventures de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe. A discussão
feita por Ricardou foge aos objetivos deste trabalho e, portanto, não
será pormenorizada.
39
Este texto encontra-se numa coletânea editada por Borges e que não consta de suas Obras Completas. A
edição brasileira chama-se Livro dos sonhos. São Paulo: Difel, 1985.
74
Já Claude Ollier debruça-se sobre o conto Tema del traidor y
del héroe, de Ficciones. Neste conto, o narrador relata a história de
seu bisavô, Kilkpatrick, herói revolucionário que se comporta como
traidor dos seus colegas, mas que não pode ser denunciado pois isto
desmobilizaria
a
própria
revolução.
A
solução
encontrada
é
o
assassinato, mas de maneira que o traidor ficasse caracterizado
como um herói ou mártir. Esse assassinato foi concebido baseandose nas tramas de duas obras de Shakespeare: Macbeth e Julio Cesar.
A análise de Claude Ollier identifica no texto borgeano cinco
dramas superpostos: 1) redação de Borges; 2) investigação de Ryan;
3) improvisação de Nolan; 4) elaboração de Shakespeare e 5)
assassinato
de
Júlio
César.
Monegal
faz
uma
crítica
a
essa
abordagem:
(...) [Ollier] Não repara que o conto de Borges não
só indica as semelhanças entre o destino de
Kilkpatrick e o de Júlio César, e entre textos de
Nolan e de Shakespeare, mas também entre o
destino de Kilkpatrick e o (futuro) de Lincoln, bem
como alude, nas entrelinhas, a outro famoso Herói
e outro famoso relato: Jesus nos Evangelhos. (...)
(MONEGAL, 1980:37)
O próximo
crítico discutido por Monegal
é Macherey, um
discípulo de Althusser, que se propõe a examinar as condições de
produção literária, a especificidade do discurso literário em relação
75
ao discurso ideológico e algum desvendamento do mecanismo da
complexidade literária. Macherey acredita que “seria preciso buscar o
sentido
do
texto
borgiano
não
na
leitura
mas
na
escritura.”
(MONEGAL, 1980: 39)
Monegal aponta que, embora o modelo proposto por Macherey
possa
ser
considerado
pertinente,
acaba
sendo
excessivamente
redutor, limitando-se a um único esquema. Além disso, o modelo
aplica-se bem aos textos analisados, mas apresenta problemas com
relação ao restante da obra de Borges. Também a noção de leitura, já
ressaltada por outros críticos (como Genette), entra em contradição
com alguns postulados do modelo de Macherey 4 0 .
Finalmente, Emir Monegal discute a leitura que Foucault faz da
obra borgeana, principalmente a partir do prefácio de As palavras e
as Coisas. Foucault considera que Borges questiona tudo, ao fazer
indagações sobre a sintaxe, a gramática, a linguagem. Foucault
vincula o fazer borgeano a processos afásicos:
O embaraço que faz rir quando se lê Borges é por
certo aparentado ao profundo mal-estar daqueles
cuja linguagem está arruinada: ter perdido o
“comum” do lugar e do nome. Atopia, afasia.
(FOUCAULT, 1981: 08)
40
É oportuno reproduzir a citação de Wahl, com que Monegal encerra a análise da crítica de Macherey:
“En choisissant les structures de l’ideíologie contre celles de l’écriture, Macherey ne décale pas, il réduit:
exactement comme Qui prétendrait fonder la science des rêves non das l’organisation de l’inconscient mais
dans ce Qui s’y réprésente du corps.” (p. 40)
76
Foucault vai além de Blanchot e de Genette, uma vez que eles
se limitaram a tentar revelar alguns aspectos subjacentes à obra de
Borges. Foucault mergulha no âmago da estética borgeana: “uma
empresa literária que se baseia na ‘total’ destruição da literatura e
que, por sua vez, paradoxalmente, instaura uma nova literatura; uma
écriture que se volta para si mesma para recriar, com suas próprias
cinzas, uma nova maneira de escrever (...)” 4 1
2.2 – Outros aspectos críticos
Não é novidade nem a complexidade da obra borgeana (mas
qual obra, afinal não é complexa ? – diria Borges), nem a extensão da
produção crítica sobre ela (decorrência provável da perplexidade
exercida por sua obra).
O que se pretende aqui não é uma análise exaustiva dessa
crítica e isso justifica-se por dois motivos básicos. O primeiro deles,
já aventado na introdução desta tese, é que o objetivo deste trabalho
não é um exercício de teoria literária. Busca-se em um conjunto
restrito de textos borgeanos um pretexto de se discutirem questões
sobre a relação que o silêncio estabelece com uma visão da produção
(e circulação) dos sentidos enquanto movimento dinâmico, a partir de
41
A idéia de ressurgimento das cinzas, ligado ao encontro com o extraordinário pode ser percebida na trama
do conto La Rosa de Paracelso, do livro La memoria de Shakespeare.
77
uma perspectiva teórico-epistemológica que é a Análise do Discurso
de linha francesa.
Sob esse prisma interessa discutir o estético e o literário como
efeitos de sentido, como movimento, processo enquanto gênero que
representa e aciona redes de memória relativamente características
no interior do interdiscurso. Tratando-se de Borges, há que se
inquietar sempre em se falar de um conceito já intrinsecamente
problemático como o de obra.
Da perspectiva assumida aqui, parte-se inicialmente desta idéia
de
que
os
gêneros
constituem
uma
materialização
textual
(e
discursiva) sob a forma de palavras, enunciados e sentidos jáproduzidos e recuperados, sob procedimentos de esquecimentos
parciais, para que se constitua a função-autor pela apropriação de
outros dizeres (e outros silêncios). Esse parece ser um quadro
epistemológico que, a partir de concepções caras à AD francesa,
estabelece um diálogo aparentemente frutuoso como o conceito
foucaultiano de função-autor e com concepções de gênero inspiradas
em Bakhtin.
No entanto, faz-se necessário, do ponto de vista assumido aqui,
enfocar mais alguns aspectos sobre essas questões. Tratando-se da
produção estética borgeana – o que não impede estender essa
assunção a outros autores, em outras circunstâncias de produção -,
assumem-se alguns pontos fundamentais:
78
1) reconhecem-se, a partir da perspectiva discursiva exposta acima,
regularidades decorrentes (a) da produção, por parte do autor,
enquanto função-autor, de sentidos que reafirmam (e deslocam)
sentidos já existentes; (b) por utilização, por parte deste, de
signos, palavras, enunciados, estratégias textuais que atendam ao
modo através do qual se costumam associar tais sentidos à parte
formal (elementos lingüísticos) de acordo com a língua utilizada,
num determinado momento de sua configuração de historicidade
(não entendida como sucessão linear, mas como o conjunto de
práticas
materiais
e
imaginárias
que
(re)configuram
constantemente as memórias inscritas no interdiscurso). Tais
regularidades devem também ser reconhecidas como fazendo
parte do repertório implícito do leitor (também como efeito do
interdiscurso),
possibilitando
a
ele
o
reconhecimento
dessas
mesmas práticas e da materialização textual feita pela funçãoautor como indiciadora mesma dessas práticas.
2) também
como
conseqüência
das
relações
dinâmicas
e
constitutivamente contraditórias dessas práticas, reconhece-se que
ao utilizar sentidos preconstruídos, mas em outras situações,
outras configurações de conflitos, contradições e relações entre
lugares discursivos, o sentido assume variações, fazendo o mesmo
transformar-se em outro, pelo deslocamento de seus efeitos e pela
(re)construção incessante de sua historicidade (mesmo que alheia
79
total ou parcialmente ao sujeito, ainda quando esteja atuante na
função-autor 4 2 ).
3) Em vista dessa dinamicidade de sentidos outros, a historicidade da
produção de uma função-autor, pensada enquanto projeção de
uma trajetória dessas relações num espaço de tempo, tem que ser
admitida como em movimento, já que essas (re)configurações são
mutáveis. Portanto, entende-se que buscar regularidades não
implica jamais que elas sejam estáticas, como se os sentidos se
congelassem e assumissem um arcabouço rígido 4 3 . Assim, um
modelo epistemológico, externo à AD francesa, mas que se mostra
útil neste contexto, é o conceito proposto por Wittgenstein de
“semelhanças de família”.
Para Wittgenstein, se se tentar definir quais são os traços
essenciais de um jogo, haverá um fracasso. Como encontrar um traço
comum ao futebol, ao xadrez, à paciência, às brincadeiras de roda, às
anedotas, por exemplo. O que permite a identificação de um tipo de
42
Segundo Foucault (1992:46) “(...) característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento
de alguns discursos no interior de uma sociedade.”
43
Na verdade, nem mesmo a metáfora do esqueleto serviria hoje para sustentar tal visão paralisante. Sabemos
que é falsa a noção de rigidez que atribuímos ao esqueleto dos vertebrados. Além de ser uma fonte de
fabricação e renovação de glóbulos sangüíneos (medula óssea), além da função de dar forma e sustentação aos
órgãos, o esqueleto é responsável pelo controle do nível de utilização de cálcio no corpo, o que aumenta ou
diminui sua porosidade continuamente, na medida em que retira ou acrescenta cálcio aos ossos ou o repõe na
corrente sangüínea ou nos músculos.
80
jogo A a um B não implica que seja a mesma com um C. Por exemplo,
se forem tomados o futebol (A) e o xadrez (B), identificaremos como
elemento comum a competição, que desaparece num elemento (C)
como o jogo de paciência. Pode-se encontrar como elemento comum
o entretenimento, mas vários outros traços desapareceram. Tais
identidades dinâmicas levam o filósofo austríaco a postular o conceito
de semelhanças de família:
E o resultado desta observação é: vemos uma
complicada
rede
de
semelhanças
que
se
sobrepõem umas às outras e se entrecruzam.
Semelhanças em grande e pequena escala.
Não posso caracterizar melhor essas semelhanças
do que por meio das palavras ‘semelhanças
familiares’; pois assim se sobrepõem e se
entrecruzam as várias semelhanças que existem
entre os membros de uma família: estatura, traços
fisionômicos, cor dos olhos, andar, temperamento,
etc., etc. – E eu direi: os ‘jogos’ formam uma
família.(Wittgenstein, 1994:52)
A utilização de um conceito da mesma natureza dentro do
arcabouço
epistemológico
da
AD
francesa
seria
extremamente
operacional. Já que essa (re)configuração de sentidos deslocados do
mesmo para o outro (e do outro para o mesmo, por que não dizer ?),
implica
uma
dinamicidade
nos
elementos
que
compõem
a
regularidade (a língua continuamente transforma-se, as relações
entre FSs, FIs e FDs transforma-se igualmente), tais regularidades
teriam que ser vislumbradas no quadro dessa dinamicidade.
81
Sob
essa
perspectiva,
a
própria
concepção
de
obra
se
reconfigura. Encontrar identidades que nos permitam atribuir a uma
assinatura uma função-autor, significa, deste ponto de vista, aceitar
que essas regularidades se deslocam continuamente, tal como as
“semelhanças de família” de Wittgenstein.
Talvez um grande equívoco na análise da obra borgeana
(Monegal aponta, por exemplo, críticos franceses que fracassaram ao
atribuir características a alguns textos da produção borgeana e que
se mostravam inaceitáveis em outros contextos do conjunto da obra
de Borges). A análise pretendida nesta tese prefere apostar nessa
dinamicidade que não inviabiliza as regularidades, mas que as
concebe em
movimento. Isso
não
isenta
o
trabalho de
outros
equívocos, já que o equívoco, de alguma forma, faz parte desta
inserção da alteridade na tentativa unificadora da função-autor. Mas,
por um determinado prisma, caracteriza melhor o viés discursivo
assumido aqui.
Um aspecto importante na produção borgeana é a da inclusão
de Jorge Luís
Borges ao que T.S. Elliot chama de “crítica de
praticantes”, ou seja, que o próprio escritor assuma também um papel
crítico, não só de suas obras, mas da de outros.
Esta perspectiva, incrementada imensamente no decorrer do
século XX assume não só uma indissociabilidade da criação e da
discussão estética (também enquanto criação), mas repensa o papel
82
do crítico. É o que Monegal percebe em Octavio Paz, segundo o qual
é função do crítico facilitar a comunhão poética e, depois, retirar-se.
Monegal considera que
(...) a crítica não consiste apenas na formação de
um âmbito intelectual, por mais importante que
seja. Implica também, a produção de um ‘duplo’ da
própria obra: duplo que se estende pelo campo do
discurso, o que a obra ‘diz’ no campo da poesia.
(...) (1980: 63)
Este entrecruzamento entre o crítico e o autor encontra outras
simetrias, tais como a identificação entre crítico e leitor (o que se
pode entender como decorrentes de um entrecruzamento entre as
funções de autor e leitor):
(...) Por ser apenas o condutor, o poema não ‘contém”, mas
‘transmite’ a poesia. A crítica faz o mesmo. Sob este ponto
de vista, o crítico não é senão um leitor privilegiado, um leitor
que conduz os outros ao poema, que facilita a transmissão.
Mas cabe também dizer , ao revés, que o leitor é um crítico,
já que ao realizar sua função, isto é; ao ler, escutar ou repetir
o poema, o reproduz. ‘Cada vez que o leitor revive deveras o
poema, acede a um estado que podemos chamar poético’,
escreveu Paz. Com sua habitual concisão, Borges dissera
(adaptando Schopenhauer) que cada homem que lê uma
linha (um verso) de ‘Shakespeare es Shakespeare’. (1980:
64)
Subjacente a afirmações borgeanas desta natureza pode-se
vislumbrar o quanto as concepções de realidade no
interior da
produção estética de Borges são depositárias do idealismo filosófico,
83
notadamente de Berkeley. Estas concepções podem ser encontradas
em vários de seus textos, mas um deles que se torna bastante
representativo (inclusive pela enumeração de alusões a outros textos
que fazem o mesmo) é Nueva refutación del tiempo , publicado em
Otras Inquisiciones.
Obviamente, esta concepção tem profundas implicações em
questões relacionadas à autoria e à função do leitor. O próprio
Monegal aponta isso, quando, ao analisar a frase de Borges, diz que
Quando Borges cita Schopenhauer em alguma parte
de seus contos para dizer que ‘todos os homens
que repetem uma frase de Shakespeare são
Shakespeare’, não é para dividir com os leitores a
glória do mestre elizabetano, mas para aniquilar as
pretensões de paternidade literária que este
pudesse ter. Ninguém é alguém. Shakespeare é
todos
(como
suspeitou
romanticamente
De
Quincey); Shakespeare é ninguém, como agora
insinua Borges. (1980:69)
Ninguém discordaria de que o idealismo está profundamente
impregnado em dizeres como esse. No entanto, há que se tomar
cuidado
com
os
jogos
borgeanos.
Já
na
introdução
a
Nueva
refutación del tiempo, o argentino diz descrer da negação do tempo
que escreveu, a partir de Berkeley e Leibniz. (De)negação espelhada
? Depende do enfoque. O que nos interessa, neste momento, é que
essa afirmação de que todos que lêem Shakespeare são Shakespeare
84
encontra-se em vários textos, atribuídos ora a Schopenhauer, ora a
uma das igrejas de Tlön (do conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius) ou sem
autoria definida em La forma de la espada. 4 4
O paradoxal, aqui, é que mesmo adotando um postulado
extremadamente idealista, a estratégia de Borges permite-se analisar
de uma perspectiva discursiva. A análise de Monegal, na última
citação acima, fornece-nos uma chave valiosa para este viés.
O que está em jogo é a atribuição de autoria. Em diferentes
textos, Borges atribui diferentes autorias a um mesmo enunciado. A
anulação
da
paternidade
autoral
(inclusive
como
auctoritas)
de
Shakespeare, coloca o leitor não como criador todo-poderoso, mas
como
um
autor-provisório
que
remexe
as
cinzas
dos
dizeres
esquecidos, enquanto autoria, para poder instaurar-se na funçãoleitor, que, do ponto de vista borgeano, tem elementos comuns à
função-autor, pelo menos no que se refere a essa dinamicidade e
ilusoriedade da assinatura da palavra.
44
Cf . nota n.º 18, à página 64 de Monegal (1980).
85
Pode-se, de uma perspectiva da AD francesa, entender que
mesmo que Borges insistisse na sua concepção idealista (seria
arriscado acreditar ingenuamente que Borges realmente acreditasse
nela senão como jogo e armadilha para o leitor), o processo é
descritível por uma concepção de interdiscurso. O leitor que recria o
texto, a obra, é Shakespeare porque participa de uma memória
discursiva
que
Shakespeare
lhe
que
permite
ele
referir-se
(leitor)
precisa
a
um
personagem-autor
interligar
na
rede
de
interpretações que as formações de que participa e com as quais
dialoga, no encontro ou no confronto, e que lhe direcionam enquanto
reconhecimento do que seja literário, estético, e, particularmente, das
imagens do que seja tipicamente um texto com uma designação de
assinatura chamada Shakespeare. Shakespeare é, ao mesmo tempo,
ninguém, já que alguns dos seus sentidos precisam ser apagados
enquanto apropriações necessárias a serem feitas pelo leitor, modos
e instâncias de leitura do que este imagina ser a obra do escritor
inglês.
Por outro lado, enquanto esta assinatura de autoria permanecer
nas redes de memória podendo ser atribuível às regularidades
textuais e de sentidos já-construídos (re)tomados pelo leitor, cada um
que lê Shakespeare estará atualizando a função-autor a que aquela
assinatura induz.
O
labor
borgeano
é
interdiscursivo.
Barnatán
(1977:48),
comentando o processo de criação de Pierre Menard, autor del
86
Quijote, cita uma versão do próprio Borges para o conto (ele não cita
a fonte):
Assim havia um pouco a idéia de que não
inventamos do nada, de que se trabalha com a
memória, ou, para falar de uma forma mais exata,
que se trabalha com o esquecimento.
É notável a afinidade com elementos tão constitutivos da
abordagem da AD, especialmente a de interdiscurso. Mais adiante,
comentando o conto Funes, el memorioso, retorna essa questão da
memória, nas palavras de Borges, citadas por Barnatán:
Queria dormir e não podia. Para dormir é
necessário esquecer um pouco as coisas. Nessa
época eu não podia esquecer. Fechava os olhos e
imaginava-me, com os olhos fechados, na minha
cama.
Imaginava
os
móveis,
os
espelhos,
imaginava a casa. Imaginava o jardim, as plantas,
havia estátuas nesse jardim. Para me libertar de
tudo isso, escrevi esta história de Funes, que uma
espécie de metáfora da insônia, da dificuldade ou
impossibilidade de abandonar o esquecimento. Já
que dormir é isso: abandonar-se ao esquecimento
total. Esquecer a sua identidade, as suas
circunstâncias. Funes não podia. Por isso morreu,
finalmente, esmagado. (...) (1977: 49-50)
87
CAPÍTULO 3
AUTORIA, PAPEL DO LEITOR E EFEITO ESTÉTICO
(...) a própria obra literária postula a
realidade de sua ficção, ao introduzirse como realidade no mundo que seus
personagens habitam.
Emir R. Monegal
poética da leitura
–
Borges:
uma
Um
livro
é
produzido,
evento
minúsculo, pequeno objeto manejável.
A partir daí, é aprisionado num jogo
contínuo de repetições; seus duplos,
a sua volta e bem longe dele,
formigam; cada leitura atribui-lhe, por
um momento, um corpo impalpável e
único; fragmentos de si próprio
circulam como sendo sua totalidade,
passando por contê-lo quase todo e
nos quais acontece-lhe, finalmente
encontrar abrigo; os comentários
desdobram-no, outros discursos no
qual enfim ele mesmo deve aparecer,
confessar o que se recusou a dizer,
libertar-se daquilo que, ruidosamente,
fingia ser.
Michel Foucault – História da Loucura.
Entre as grandes controvérsias existentes nas discussões sobre
linguagem, uma que ocupou um espaço considerável , principalmente
a partir da segunda metade do século passado, foi a do papel do
leitor. Silenciado durante muitos séculos, o leitor passou a ter um
status cada vez mais prestigiado, chegando, em alguns modelos, a
88
ser concebido com uma função capaz de determinar, sozinho, o
sentido de um texto.
Obviamente, o assunto interessa a esta tese, por duas razões
básicas: a primeira, porque na discussão sobre a participação que o
silêncio tem na produção e no movimento dos sentidos, não há como
escapar
de
se
tratar
de
autoria,
função
do
leitor
e
questões
correlatas. Em segundo lugar, porque Jorge Luís Borges caracterizase, entre outras coisas, por um tipo de valorização do leitor e de uma
proposta estética que redistribui as funções de autoria, leitor e texto.
Essa
dicotomia
autor/leitor
apresenta
silêncios
e
silenciamentos. Talvez o maior desses silenciamentos, que de alguma
forma já vem sendo discutido neste trabalho, é o de processo, de
movimento. Os sentidos não são estáticos, eles estão em contínuo
movimento processual. Isto significa que as funções autor/leitor
apresentam continuidades, contradições, que elas recobrem-se uma à
outra no interior deste movimento.
Não
há
como se
conceber
autoria sem
que
se
leve
em
consideração que esta função pressupõe, mesmo que num quadro
mais amplo, o que é entendido por leitura. Se isso parece exagero ou
uma extrapolação pouco confortável do conceito de leitura, bastaria
trabalhar com o conceito de jogo de imagens, de Pêcheux, para se
obterem os mesmos efeitos. Se, de imediato, não se identifica tal
conceito com a leitura em si, fica difícil, todavia, afirmar-se que o
jogo de imagens não é da mesma natureza do processo de leitura.
89
Já a leitura, por sua vez, pressupõe um fazer, uma realização
complexa de uma série de tarefas que deslocam o leitor de uma
decodificação passiva, para inscrevê-lo numa produção, também de
natureza muito semelhante à da autoria.
Se se pensar ainda no conceito de alteridade, fica ainda mais
nítida
a
reconfiguração
dessa
dicotomia.
Se
em
cada
ato
de
linguagem existe um Outro que permeia a fala do Eu, esse processo
vai ocorrer igualmente em relação às funções de autor e leitor. Não
se concebe um leitor que não esteja prenhe de autoria e vice-versa.
Este é um ponto para ser discutido e assumido como viés desta
tese: supervalorizar autor ou leitor, qualquer um, é cair na armadilha
fácil de romper com essa alteridade. Não existe nem autor nem leitor
todo-poderoso,
pela
simples
questão
que
um
subjaz
ao
outro.
Reciprocamente.
É claro que existe uma objeção clássica: mas, afinal, o que o
texto diz ? Onde está a materialidade do texto ? A materialidade do
texto existe, assim como existe a materialidade do autor e do leitor.
Igualmente há a materialidade das condições de produção.
Não há meios de se fazer efetivamente AD se forem ignoradas
as
condições
de
produção
do
discurso .
E,
nessa
rede
de
materialidades, existirão configurações diferentes, com maior ou
menor participação de cada um desses elementos mencionados
(autor, leitor, texto, condições de produção). O caso-limite situa-se
nos gêneros em que o sentido de um texto é produzido exatamente
90
pela negação/reinterpretação do que está indiciado na superfície
textual e lingüística. É o que ocorre com a alegoria, a fábula, a
parábola, entre outros.
Numa
parábola,
por
exemplo,
tanto
autor
quanto
leitor
assumem, por exemplo, que a palavra “peixe” não pode ser entendida
com o sentido esperado, e muitas vezes nem pelo que se costuma
chamar, em algumas teorias, de conotação 4 5 .
Portanto, numa parábola, os sentidos produzidos pelo autor
estão igualmente indiciados no texto, mas supõem um trabalho por
parte do leitor, em primeiro lugar, de saber que aquelas palavras não
significam aquilo que se esperaria que significassem. Reboul (1998),
ao tratar da alegoria, chega a uma conclusão instigante: a alegoria
funciona
enquanto
tal
porque
desenvolve
uma
“pedagogia
do
mistério”, motivando o leitor a construir um percurso parecido com o
do autor. Há que se lembrar, porém, que os caminhos construídos por
esse autor têm suas marcas silenciadas.
Neste contexto, a dicotomia autor/leitor, de uma perspectiva que
leve às últimas conseqüências conceitos bastante básicos de AD
pode ser pensada como uma relação, um movimento:
uma maneira
mais dinâmica, mais representativa de um processo imensamente
mais dinâmico, sutil e dialético.
45
Esse fenômeno pode ser melhor compreendido pela explicação da teoria do alegorismo, neste capítulo e
pela análise do texto El espejo de los enigmas (4º Capítulo).
91
Essas considerações são importantes porque a análise de
textos borgeanos pode levar, superficialmente, a uma impressão de
supervalorização
do
leitor,
como
se
o autor
fizesse
um
papel
secundário.
Para empreender-se esta discussão, serão abordados aspectos
ligados à função de autor, leitor, bem como alguns apontamentos
sobre
a
relação
entre
autoria
e
efeito
estético.
Para
isso,
primeiramente será feita uma incursão em um autor bastante citado
nesse assunto: Umberto Eco. Em seguida os conceitos-chave deste
capítulo serão discutidos à luz da Análise do Discurso e de suas
relações com o silêncio.
3.1 – Autor, leitor e texto
Serão discutidas, neste item, três obras do semioticista italiano
Umberto Eco que se tornaram discursos fundadores com relação aos
limites da interpretação, aos papéis do autor e do leitor e da abertura
de uma obra estética, enquanto convite a um tipo específico de leitor,
participante.
Tais temas interessam profundamente, não só à discussão de
conceitos que depois serão abordados de uma perspectiva da AD
92
francesa, mas também pela relação estreita que têm com pontos
centrais da estética borgeana.
3.1.1 – Obra Aberta
Um dos pontos de partida do livro Obra Aberta, publicado nos
anos 60 do século passado, foi inspirar-se por uma epistemologia
característica da física quântica, que já não estabelece o fenômeno
como estático e/ou indiferente à posição do observador. Não se
conceberá mais que se pense um elétron numa posição rígida “a” ou
“b”. Ele terá que ser calculado como uma incidência numa zona de
probabilidade 4 6 .
Eco,
com
relação
à
obra
(preferencialmente
estética),
irá
desenvolver raciocínio semelhante: as funções de autor e leitor
(especialmente esta última), são noções que se recobrem, uma como
46
Para se ter uma idéia das implicações provocadas pelo elétron na epistemologia da Física, veja-se este
trecho de Gleiser (MAIS! , Domingo, 14/12/97):
O elétron criou sérias dores de cabeça para os físicos do início do século 20. Em 1924, o físico francês Louis
de Broglie propôs que, tal como Einstein havia sugerido para o fóton (partículas de radiação
eletromagnética) em 1905, elétrons também exibem a chamada dualidade onda-partícula, isto é, exibem
propriedades físicas de ondas, como a difração, e também propriedades de partículas. Tudo depende do
preparo do experimento. Essa dualidade de comportamento sugere que na realidade o elétron não é
partícula nem onda. Mas nós apenas sabemos representá-lo através dessas duas imagens concretas. E já que
o elétron exibe esta ou aquela propriedade, de acordo com os detalhes do experimento, o próprio observador
tem um papel na definição da realidade física do elétron. Não podemos dizer que um determinado elétron
existe antes de ele ser observado.
93
potência da outra, num movimento de constituição de sentidos, tal
qual uma zona de probabilidade.
“Obra
Aberta”
representou
um
momento
privilegiado
de
discussão no final dos anos 60 do século passado. Talvez na esteira
de Borges (se não se pode afirmar com plena convicção a influência
de Borges num Eco semioticista ou estudioso de estética, o mesmo
não acontece com o literato).
Uma
das
primeiras
necessidades
a
se
colocar
é
alguma
determinação do que constitui uma obra, conceito bastante amplo e
cada vez mais polêmico nos estudos estéticos.
No início do primeiro ensaio que caracteriza o livro, Eco
entende por obra “um objeto dotado de propriedades estruturais
definidas,
que
permitam,
mas
coordenem,
o
revezamento
da
interpretações, o deslocar-se das perspectivas.” (1976:23).
Nota-se, aqui, um forte apelo estrutural, característico do
momento epistemológico que se vivia. Há que se atentar, no entanto,
para o fato de que a conceituação de obra, genericamente, já supõe
um
deslocamento
de
perspectivas,
um
descentramento
de
uma
posição exclusiva ou supervalorizada de um autor todo-poderoso 4 7 .
47
Essa epistemologia encontra justificativa, por parte de Eco numa relação entre o modelo de análise e as
condições históricas:
“Fixar portanto a atenção, como temos feito, sobre a relação fruitiva obra-consumidor, como se configura nas
poéticas da obra aberta, não significa reduzir nossa relação com a arte aos termos de um puro jogo tecnicista,
como muitos gostariam. É, pelo contrário, um modo entre muitos, aquele que nos é permitido por nossa
específica vocação para a pesquisa, de reunir e coordenar os elementos necessários a um discurso sobre o
momento histórico em que vivemos.” (p. 36)
94
Mais adiante, esta opção epistemológica ficará mais evidente,
quando Umberto Eco afirma que “(...) uma obra é ao mesmo tempo o
esboço do que pretendia ser e do que é de fato, ainda que os dois
valores não coincidam(...).”
(1976:25). Neste caso, já aparece a
participação do leitor. A expressão “ao mesmo tempo” tem aqui uma
importância decisiva. Uma leitura atenta de “Obra aberta” jamais
poderia impunemente atribuir ao pensador italiano uma radicalização
da função-leitor.
Seria oportuno relatar brevemente a discussão que o Umberto
Eco faz da teoria do alegorismo, vigente na Idade Média. Segundo tal
concepção, que visava inicialmente a uma hermenêutica bíblica, mas
que foi estendida posteriormente a outros tipos de textos, haveria, no
texto, quatro níveis de sentidos: 1) literal; 2) alegórico; 3) moral e 4)
anagógico.
Tal teoria apresenta
suas raízes
em
São
Paulo 4 8
e
foi
desenvolvida por São Jerônimo, Agostinho, Beda, Escoto Erígeno,
Hugo e Ricardo de São Vitor, Allain de Lille, Boaventura, Tomás e
outros, tornando-se, posteriormente, o eixo da poética medieval.
Sob tal perspectiva, por exemplo, a saída dos hebreus do Egito
descrita no livro bíblico do Êxodo 4 9 , no sentido literal significariam a
libertação da escravidão naquele país, no tempo de Moisés; no
alegórico, a redenção através de Cristo; no sentido moral, significa a
48
Vide capítulo 4, onde há um texto de Borges que discute este trecho de São Paulo.
Eco cita a “Epístola a Cangrande della Scala (XIII)”, de Dante Alighieri, onde há um verso sobre o fuga dos
hebreus do Egito, analisado por Dante sob o enfoque da teoria do alegorismo medieval.
49
95
conversão da alma, do pecado para a graça e, finalmente, no sentido
anagógico, “a saída da alma santa da servidão desta corrupção para
a liberdade da glória eterna 5 0 .”
Umberto Eco faz a ressalva pertinente com relação à abertura
das leituras feitas sob esta teoria do alegorismo medieval:
Mas, nesse caso ‘abertura’ não significa amente
‘indefinição’
da
comunicação,
‘infinitas’
possibilidades da forma, liberdade de fruição; há
somente
um
feixe
de
resultados
fruitivos
rigidamente prefixados e condicionados, de maneira
que a reação interpretativa do leitor não escape
jamais ao controle do autor. (1976:43)
Num
certo
sentido, pode-se
até
conjeturar
que
os
textos
posteriores que o próprio Eco tenha escrito, mais direcionados para
as características internas da obra, devam-se mais ao rumo que a
recepção desses conceitos teve do que a uma percepção de falha
epistemológica.
Ao evocar essa simultaneidade e reciprocidade entre funções do
autor e do leitor, Eco sugere que a obra tem que ser pensada numa
relação,
num
contexto
processual,
enfim,
numa
concepção
de
movimento 5 1 . Embora no âmbito do estruturalismo, Eco, em vários
50
Nas palavras de Dante: “(...) si ad anagogicum, significatur exitus animae sanctae ab huius corruptionis
servitute ad aeternae gloriae libertatem.” Dante, Alighieri. Epístola a Cangrande della Scala. In:
http://www.fh-augsburg.de/~harsch/augusta.html#it Tradução sob responsabilidade da edição brasileira de
“Obra aberta” (op. cit.).
51
“(...) o âmbito do discurso é o período do qual nós próprios somos ao mesmo tempo juízes e produto, o jogo
das relações entre fenômenos culturais e contexto histórico torna-se muito mais intrincado.” (p. 35)
96
pontos do texto traz à tona a polêmica criada com Lévis-Strauss,
quando da primeira edição de Obra Aberta, pelo fato de o antropólogo
francês ter considerado que uma obra, do ponto de vista estrutural,
deveria ser “rígida como um cristal”, ponto de vista com o qual
Umberto Eco não concorda, achando esse último que para se fazer
uma análise estruturalista não é necessário optar por essa rigidez 5 2 .
Eco propõe-se a analisar preferencialmente a obra de arte. E se
já entende que qualquer obra, em geral, tem esse dinamismo, na obra
de arte, em particular, reconhece que esta “é uma mensagem
fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que
convivem num só significante.” (1976: 22).
Novamente a relação entre autor e leitor dinamiza-se e o fato de
o leitor passar a ter o reconhecimento de um papel mais participativo
não exclui a perspectiva autoral:
(...) uma obra de arte é um objeto produzido por um
autor que organiza uma seção de efeitos
comunicativos de modo que cada possível fruidor
52
Eco tem o cuidado, para não negar uma validade estrutural de sua análise, de conceituar forma, dentro da
perspectiva da obra aberta:
“Uma forma é uma obra realizada, ponto de chegada de uma produção e ponto de partida de uma consumação
que – articulando-se – volta a dar vida, sempre e de novo, à forma inicial, através de perspectivas diversas.”
(p. 28)
97
possa recompreender (através do jogo de respostas
à configuração de efeitos sentida como estímulo
pela
sensibilidade
e
pela
inteligência)
a
mencionada obra, a forma originária imaginada pelo
autor. (1976: 40)
Pode-se, desde já, considerar uma diferença significativa entre
as funções exercidas por autor e leitor. No capítulo anterior pôde-se
iniciar
a
discussão
de
como
tais
funções
são
encaradas
e
trabalhadas dentro da estética borgeana, o que será mais detalhado
na segunda parte deste capítulo.
Se
se
conceberem
autoria
e
função
de
leitor
como
co-
participantes em ambas funções, haverá, efetivamente, do ponto de
vista epistemológico, um movimento de sentidos. Antes de ser autor
de um texto escrito (e ao mesmo tempo em que o é), qualquer autor é
também leitor. O leitor, por sua vez, por mais direcionado que seja
um texto ou por mais restritivas que sejam as condições de leitura
deste mesmo, exercerá uma atividade criativa, assemelhada àquela
empreendida
pelo
autor.
assumem-se
conceitos
Se,
como
de
uma
alteridade,
perspectiva
dialogismo,
discursiva,
surge
a
obrigação de se curvar para a questão de que os sentidos não se
produzem sozinhos 5 3 . Impossível, portanto, pensar-se o autor sem o
leitor ou o leitor sem o autor. Um pressupõe o outro, em cada
instância própria em que cada uma dessas funções se coloca.
53
Embora Eco não esteja inserido no mesmo contexto epistemológico da AD francesa, faz uma observação
sobre estética que apresenta um aspecto convergente com este ponto da discussão: “Em estética (...) a relação
entre intérprete e obra foi sempre uma relação de alteridade.” (p. 33)
98
A questão epistemológica que se estabelece, neste caso, é a da
validade da dicotomia. Se autor é também leitor, e se leitor é também
autor, para que continuar trabalhando com tal distinção. Será que ela
já não teria perdido sua operacionalidade conceitual ? Não, se se
pensar que uma diferença pode ser nitidamente caracterizada: a
natureza dos significantes disponíveis para cada função.
Numa concepção ampliada de significante, extrapolando-se a
língua,
pode-se
disposição
conceber
significantes
que
o
autor
lingüísticos
e
tem
não
inicialmente
lingüisticos
à
sua
(textos;
memória de textos, fatos, pessoas, filmes, músicas; gravuras, fotos,
mapas, músicas etc.) e, através destes, irá compor um texto,
concretizado em significantes lingüísticos e não lingüísticos concretos
(texto, imagens estáticas, gravuras, tabelas 5 4 etc.). O leitor, por sua
vez, já terá imediatamente à sua disposição, como condição prévia
da leitura (embora tal aspecto não garanta em si mesmo uma leitura
aceita
ou
reconhecida
como
válida)
um
texto
constituído
por
significantes lingüísticos e não lingüísticos, mas já colocados na
superfície do texto pelo autor. A partir destes significantes, tal leitor
construirá outros (de memória, de silêncio ) e atribuirá significados
àqueles propostos pelo autor e a esses, interpolados por si mesmo.
De um ponto de vista discursivo, seria mais adequado falar-se em
construção de sentidos.
54
Não se nega aqui a materialidade dos significantes da memória e do silêncio. O que se está dizendo é que
tais significantes são constitutivamente silenciados para o leitor.
99
De
outra
perspectiva,
Umberto
Eco
também
propõe
uma
reflexão que pondera que a posição do autor não está sendo
desfigurada por seu conceito de obra aberta:
O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra a
acabar: não sabe exatamente de que maneira a
obra poderá ser levada a termo, mas sabe que a
obra levada a termo será, sempre e apesar de tudo,
a sua obra, não outra, e que ao terminar o diálogo
interpretativo ter-se-á concretizado uma forma que
é a sua forma, ainda que organizada por outra de
um modo que não podia prever completamente:
pois ele, substancialmente, havia proposto algumas
possibilidades já racionalmente organizadas e
dotadas
de
exigências
orgânicas
de
desenvolvimento. (1976:. 62)
De uma perspectiva espelhada, Borges tem especialmente dois
textos que apresentam, por silenciamento, tal perspectiva. O primeiro
é a parte inicial de uma advertência ao leitor de Fervor de Buenos
Aires: “Si las páginas de este libro consienten algún verso feliz,
perdóneme
el
lector
la
descortesia
de
haberlo
usurpado
yo,
previamente.” (1989: 16)
O outro, é uma das conferências ministradas por Borges ,
publicada no volume Siete Noches (La poesia):
Bradley dijo que uno de los efectos de la poesia
debe ser darnos la impresión, no de descubrir algo
nuevo, sino de recordar algo olvidado. Cuando
100
leemos um buen poema pensamos que también
nosotros hubiéramos podido escribirlo; que ese
poema preexistia en nosotros. (1989: 257)
Nestes dois trechos, pode-se perceber que inicialmente Borges
se coloca numa perspectiva de apagamento do autor e valorização do
leitor. No entanto, o que se silencia aqui é que se, de alguma forma o
autor subtraiu ao leitor algo que era deste último, a partir deste
momento, como já-dito, passa a pertencer à instância a partir da qual
diz o autor. Isso pode ser relacionado com o a afirmação de Eco que
a obra levada a termo será a do autor e não qualquer outra.
Outro ponto importante nesse sentido de não (de)negação da
posição do autor ocorre quando o semioticista italiano diz que a
noção de obra aberta “(...) indica não propriamente como são
resolvidos os problemas artísticos, mas como são propostos. “ (1976:
26)
Eco
prossegue
analisando
os
vários
períodos
estéticos
(Barroco, Romantismo/simbolismo) e procurando mostrar brevemente
como cada período vai (re)organizando a abertura da obra e as
relações entre autor e leitor. É relevante repetir o que Umberto Eco
diz
a
respeito
do
barroco,
mas
que
se
poderia
utilizar
muito
apropriadamente para caracterizar a poética borgeana:
As poéticas do pasmo, do gênio, da metáfora,
visam, no fundo, além de suas aparências
101
bizantinas, a estabelecer essa tarefa inventiva do
homem novo, que vê na obra de arte, não um
objeto baseado em relações evidentes, a ser
desfrutado como belo, mas um mistério a
investigar, uma missão a cumprir, um estímulo à
vivacidade da imaginação. (1976: 45) 5 5
Eco subcategoriza a obra aberta para aqueles casos em que
explicitamente se pretende, na obra de arte, uma participação
singularmente ativa do leitor, a ponto de “assumir[em] diversas
estruturas
imprevistas,
fisicamente
irrealizadas”:
a
obra
em
movimento. Ele a define da seguinte maneira:
Como no universo einsteniano, na obra em
movimento o negar que haja uma única experiência
privilegiada não implica o caos das relações, mas a
regra que permite a organização das relações. A
obra em movimento, em suma, é possibilidade de
uma multiplicidade de intervenções pessoais, mas
não é convite amorfo à intervenção indiscriminada:
é o convite não necessário nem unívoco à
intervenção orientada, a nos inserirmos livremente
num mundo que, contudo, é sempre aquele
desejado pelo autor. (1976: 62)
55
Também pode ser relacionado com a já supracitada “pedagogia do mistério” subjacente à alegoria, tal como
analisa Olivier Reboul.
102
Antecipa-se aqui uma análise sob a perspectiva de Lacan que
será desenvolvida no capítulo 4 desta tese: o leitor, embora participe
ativamente numa instância criadora da obra, faz parte do desejo do
autor. Em certa medida, é isso que lhe confere identidade, o que o
instaura como sujeito.
Como síntese do ensaio, Eco , a partir de Luigi Paryson,
destaca:
Pode-se
afirmar,
portanto,
que
‘todas
as
interpretações são definitivas, no sentido de que
cada uma delas é, para o intérprete, a própria obra,
e provisórias, no sentido de que cada intérprete
sabe da necessidade de aprofundar continuamente
a própria interpretação. Enquanto definitivas, as
interpretações são paralelas, de modo que uma
exclui as outras, sem contudo negá-las. 5 6 (1976:
65)
3.1.2 – Lector in Fabula
Esse livro de Umberto Eco foi escrito buscando, basicamente,
direcionar análises anteriores (como as de Obra Aberta) para o texto
narrativo
escrito,
mais
especificamente
tocando
na
questão
da
cooperação interpretativa.
56
Relacionar o que se diz nessa citação com a nota n.º 2, quando se coloca o conceito de complementaridade
em Física.
103
Logo na introdução, Eco historia sua trajetória de estudo do
tema e sinaliza o momento em que se situa na pragmática do texto
que ele define como
(...) a atividade cooperativa que leva o destinatário a tirar do
texto aquilo que o texto não diz (mas pressupõe, promete,
implica e implicita), a preencher espaços vazios, a conectar o
que existe naquele texto com a trama da intertextualidade,
da qual aquele texto se origina e para a qual acabará
confluindo. (...) (1986:IX)
Este trecho já sugere relações com o silêncio. Eco retoma, na
mesma introdução, mais detalhadamente, a polêmica com LéviStrauss (mencionada no item anterior deste capítulo). Em resposta à
rigidez de Lévi-Strauss e Jakobson, o semioticista italiano pondera:
(...) se até as alusões anafóricas postulam cooperação da
parte do leitor, então nenhum texto escapa a esta regra.
Exato. Os textos que então eu definia como ‘abertos’ são
apenas o exemplo mais provocante de exploração, para fins
estéticos, de um princípio que regula tanto a geração quanto
a interpretação de todo tipo de texto. (ibidem)
O que é relevante neste trecho é que, em confirmação ao que
se viu em Obra Aberta, a tarefa cooperativa do leitor é fundamental
para a construção dos sentidos. Será visto mais adiante que tal
afirmação não significa que o leitor tudo possa e o autor seja um
pobre coitado que se escraviza, impotente, diante das extrapolações
perversas daquele.
104
A análise privilegiará o capítulo “Leitor Modelo.” Neste ensaio,
Eco discute que o autor possui um conjunto de competências que
serão
manifestadas
no
texto
e,
na
medida
em
que
essas
competências sejam convergentes com as do leitor, o texto será bem
sucedido na construção dos sentidos por parte do leitor e na
estratégia, por parte do autor. Para que isso ocorra, do ponto de vista
do autor, é necessária uma previsão dessas competências do leitor . É
a essa previsão que Eco chama de Leitor-Modelo:
Por conseguinte [o autor] preverá um Leitor-Modelo capaz de
cooperar para a atualização textual como ele, o autor,
pensava, e de movimentar-se interpretativamente conforme
ele se movimentou gerativamente. (1986: 39)
A partir do conceito de não-dito, de Ducrot, Eco faz as seguintes
considerações:
O texto está, pois, entremeado de espaços brancos, de
interstícios a serem preenchidos, e que o emitiu previa que
esses espaços e interstícios seriam preenchidos e os deixou
brancos por duas razões. Antes de tudo, porque um texto é
um mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive a
valorização de sentido que o destinatário ali introduziu; e
somente em casos de extremo formalismo, de extrema
preocupação didática ou de extrema repressividade o texto
se complica com redundâncias e especificações ulteriores –
até o limite em que se violam as regras normais da
conversação. Em segundo lugar, porque, à medida que
passa da função didática para a estética, o texto quer deixar
ao leitor a iniciativa interpretativa, embora costume ser
interpretado com uma margem suficiente de univocidade.
Todo texto quer que alguém o ajude a funcionar. (1986: 37)
105
Baseado em posições como essa, e criticando o que ele
considera uma redução imposta pela teoria da comunicação, Umberto
Eco
vai
discutindo
o
papel
dessa
previsão
do
Leitor-Modelo
pressupondo sempre níveis de significação que não se restringem à
superfície do texto.
É oportuno verificar-se que o papel igualmente ativo do autor
aparece também contemplado por Eco:
(...) prever o próprio Leitor-Modelo não significa
somente ‘esperar’ que exista, mas significa também
mover o texto de modo a construí-lo. O texto não
apenas repousa numa competência, mas contribui
para produzi- la 5 7 . (1986: 40)
Este trecho sinaliza a existência de elementos internos ao texto
e estratégias de autoria que pretendem construir/influenciar o leitor.
Uma perspectiva criativa da instância da autoria, portanto.
Além disso, quando se discute o uso e a interpretação, volta-se
a uma ponderação importante sobre os limites desses processos. Eco
entende que interpretação seja um processo diferente de um uso
livre. Ponderação consciente, já que os riscos nessa discussão são
grandes:
tende-se
a
pensar
em
extremos,
com
um
autor
57
Em Obra Aberta, Eco faz um comentário sobre a arte que é da mesma natureza do que diz aqui:
“Se a arte reflete a realidade, é fato que reflete com muita antecipação. E não há antecipação – ou vaticínio –
que não contribua de algum modo a provocar o que anuncia." (p. 18)
106
superpoderoso e uma leitura fechada ou um leitor onipotente e um
autor impotente:
Devemos, assim, distinguir entre o uso livre de um
texto aceito como estímulo imaginativo e a
interpretação de um texto aberto. É nesta fronteira
que se baseia sem ambigüidade teórica a
possibilidade daquilo que Barthes chama de texto
de fruição ou gozo: a pessoa tem que decidir se
usa um texto como texto de fruição ou se um
determinado texto considera como constitutiva da
própria
estratégia
(e,
portanto,
da
própria
interpretação) a estimulação ao uso mais livre
possível. Acreditamos, porém, que alguns limites
são estabelecidos e que a noção de interpretação
sempre envolve uma dialética entre estratégia do
autor e resposta do Leitor –Modelo. (1986: 43)
Imediatamente após dizer o que está no trecho acima, Eco
considera a possibilidade de existência de estéticas que subvertam
intencionalmente
essa
atitude
cooperativa,
rompendo
essas
fronteiras. Note-se, entretanto, que ao propor que possa existir uma
estética dessa natureza, Eco coloca essa definição nas mãos do
autor. Direcioná-la para o leitor redundará em outras questões, tais
como a da leitura permitida ou a da leitura errada. Ou seja: até que
ponto o leitor tem autonomia e/ou condições sociais de leitura para
poder atribuir tal ou qual visão a um texto ? Isso será retomado no
último item deste capítulo da tese, quando se estiverem analisando
as relações entre autoria, leitura e silêncio.
107
O que interessa mais diretamente discutir, neste momento, é
esta estética “aberrante” mencionada por Eco. Ele a caracteriza,
destacando
exatamente
Jorge
Luís
Borges
como
sendo
seu
representante:
Naturalmente, além de uma prática, pode ocorrer uma
estética do uso livre, aberrante, desiderativo e malicioso dos
textos. Borges sugeria que se lesse a Odisséia como se
fosse posterior à Eneida ou a Imitação de Cristo como se
tivesse sido escrita por Céline. Propostas esplêndidas,
excitantes e facilmente realizáveis. Mais do que outras,
criativa, porque de fato é produzido um novo texto (da
mesma forma que o Quixote de Pierre Menard é bem
diferente daquele de Cervantes, ao qual casualmente
corresponde palavra por palavra). E que depois, ao escrever
esse outro texto (ou texto Outro), se chegue a criticar o texto
original ou a descobrir-lhe possibilidades e valências ocultas
– isto é óbvio, nada é mais revelador de uma caricatura
justamente porque parece, mas não o é, o objeto
caricaturado, e, por outro lado, sem dúvida certos romances
que foram renarrados se tornam mais bonitos porque se
convertem em ‘outros romances’. (1986: 44)
Instaura-se aqui, mais uma vez, a perspectiva da obra borgeana
como jogo, no qual o leitor encontra-se, de um lado, livre para
recompor um texto que lhe é apresentado como um conjunto de
possibilidades, mas de outro, preso aos estratagemas de um autor
que multiplica-lhe as armadilhas num labirinto de espelhos, limitando
efetivamente as condições de leitura.
Um ponto alto do ensaio de Eco, no que se refere a essa
discussão
sobre
os
limites
e
fronteiras
da
interpretação
é
a
comparação que ele faz entre uma novela policial e um romance de
108
Kafka (ele cita O Processo). O pensador italiano argumenta que nada
impede que se leia uma novela policial de uma perspectiva kafkiana,
mas
ler
O
Processo
como
uma
novela
policial
“textualmente
produz[iria] um resultado infelicíssimo”. Eco atribui isso a uma
distinção entre textos abertos e fechados, dizendo que estes últimos
suportam melhor ao uso do que os abertos. Pode-se, vislumbrar, no
entanto,
que
aspectos
ligados
ao
gênero
possam
também
ser
evocados para explicar a não reciprocidade de usos analisada aqui 5 8 .
Outro conceito apresentado no texto de Umberto Eco é a de que
tanto autor como leitor são hipóteses interpretativas:
Se o Autor e o Leitor-Modelo constituem duas estratégias
textuais, então nos encontramos diante de uma dupla
situação. De uma lado, conforme dissemos até aqui, o autor
empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, formula
uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da
própria estratégia, configura a si mesmo autor na qualidade
de sujeito do enunciado, em termos igualmente
‘estratégicos’, como modo de operação textual. Mas, de
outro lado, também o leitor empírico, como sujeito concreto
dos atos de cooperação, deve configurar para si uma
hipótese de Autor, deduzindo-a justamente dos dados de
estratégia textual. A hipótese formulada pelo leitor empírico
acerca do próprio Autor-Modelo parece mais garantida do
que aquela que o autor empírico formula acerca do próprio
Leitor-Modelo. Com efeito, o segundo deve postular algo que
atualmente ainda não existe e realizá-lo como série de
operações textuais; o primeiro, ao invés, deduz uma
imagem-tipo de algo que se verificou anteriormente como ato
de enunciação e está textualmente presente como
enunciado. (1986: 46)
58
Não nos deteremos neste aspecto neste trabalho.
109
A primeira parte deste trecho indica um tipo de reflexão que
pode ser relacionada com conceitos como alteridade e formação
discursiva.
A
formulação
de
hipótese
interpretativa,
dentro
da
epistemologia abraçada por Eco parece ser meramente individual,
não
se
levando
em
conta,
constitutivamente,
as
condições
de
produção dessas hipóteses ou mesmo a memória discursiva que as
inscreve no imaginário partilhado (ou não) por autor e leitor.
A segunda parte dá uma pista relevante a respeito de uma certa
especificidade da função-autor, diferenciando-a, de certa maneira, da
função-leitor. No caso deste último, existe um produto textual a partir
do qual realiza sua construção de sentidos (isto já foi discutido no
item anterior, quando se propôs um traço diferenciador entre autor leitor e leitor-autor).
Eco finaliza o ensaio com uma questão que, ao mesmo tempo
se relaciona com esses limites, e com o silêncio:
A configuração do Autor-Modelo depende de traços
textuais, mas põe em jogo o universo do que está
atrás
do
texto,
atrás
do
destinatário
e
provavelmente diante do texto e do processo de
cooperação (no sentido de que depende da
pergunta: ‘Que quero fazer com este texto ?’).
(1986:49)
110
3.1.3 – Interpretação e Superinterpretação
Em 1990, em Clarence Hall, na universidade de Cambridge,
como é de praxe, foram organizadas conferências sobre temas
relacionados às humanidades. Naquele ano, o principal conferencista
foi o semioticista italiano Umberto Eco, que propôs-se a discutir
questões ligadas à interpretação. Tais conferências, juntamente com
as dos demais participantes, foi publicada posteriormente. No interior
deste
contexto
foi
apresentado
por
Eco
o
conceito
de
superinterpretação, que consistiria numa extrapolação, por parte do
leitor,
de
tal
modo
que
se
produzissem
leituras
inadequadas,
exageradas, além da possibilidade que o texto permitiria.
Eco posiciona-se de uma perspectiva cautelosa e restritiva a
modelos de análise de obras e da própria atividade interpretativa
fortemente centradas no leitor e para as quais, em maior ou menor
grau,
os
limites
entre
as
leituras
possíveis
são
escassamente
demarcados.
No decorrer das conferências, há uma discussão de cunho
histórico (que Stephan Collini contextualiza de maneira didática na
introdução da publicação), que procura mostrar como a atividade
interpretativa
percorre
um
trajeto
inicialmente
relacionado
à
decifração da Palavra de Deus e, paralelamente e posteriormente,
111
como
foi-se
deslocando
para
a
crítica
filosófica,
notadamente
estética.
Nos meandros dessa trajetória, enfrentam-se, muitas vezes,
perspectivas antagônicas. É o caso da desconstrução, de um lado, e
do
pragmatismo
(ou
neopragmatismo,
de
Richard
Rorty,
principalmente) em oposição a uma tradição mais evidentemente
aristotélica e racionalista.
Umberto Eco dedica a primeira conferência “Interpretação e
história”,
para
tratar
da
história
do
irracionalismo,
a
fim
de
demonstrar como as perspectivas que postulam uma total liberdade
interpretativa do leitor apresentam uma convergência epistêmica com
o hermetismo, criado a partir do 2 º século depois de Cristo e
reforçado por correntes como o gnosticismo.
Na
pensador
segunda
italiano
conferência,
introduz
“Superinterpretando
propriamente
o
textos”,
conceito
o
de
superinterpretação e, finalmente, na última, “Entre autor e texto”,
procura desenvolver o conceito de intentio operis (intenção da obra),
em contraposição à intentio actoris e à intentio lectoris, ou seja,
postula que a organização de um texto permite que se identifiquem
aspectos e tendências interpretativas que não podem ser contrariadas
sob pena de desvirtuar-se a leitura. Há, ainda, uma réplica de Eco às
falas de Richard Rorty, Jonathan Culler e Christine Brooke-Rose, na
qual ele reafirma seus conceitos.
112
Ao escolher proporcionar um panorama histórico do hermetismo,
o objetivo é mostrar que se criou uma tradição interpretativa – com a
qual várias teorias atuais são convergentes – que valoriza o segredo,
de tal forma a não somente criar uma elite de iniciados, mas,
principalmente, caracterizar o processo de interpretação como uma
busca infindável de segredos ocultos atrás de outros tantos segredos.
Tal atitude, para Eco, determina uma “leitura paranóica”, na qual o
grau de suspeita necessário para que se proceda a uma leitura mais
profunda torna-se exagerado (exatamente nesta desconfiança) já que
precisa continuamente percorrer esse elo infinito de alegorias. Daí o
que Eco chama de superinterpretação.
Superinterpretar não é simplesmente interpretar demais. É
exagerar no
grau
de
uma atitude
necessária
para
o
processo
interpretativo, que é a suspeita. Eco relaciona tal suspeita à busca
contínua (e compulsiva) de sentidos ocultos, mesmo quando tal
abordagem não se sustenta.
Outra consideração é em que contexto da discussão de Eco
sobre a interpretação se situa esse conceito. Da mesma forma como
o conceito de Obra Aberta, desenvolvido por Eco nos anos 60 do
século passado levou uma legião de leitores a endossar perspectivas
que concebiam uma ausência de limites da interpretação, há leitores
que tomam o conceito de superinterpretação como um fechamento,
uma espécie de contrição de Umberto Eco, revendo o conceito
anterior. Uma leitura mais abrangente e atenta nega isso (a não ser
113
que se conceba, é claro, que se pode interpretar a obra dele como se
queira).
Quando Obra Aberta foi publicada, Eco já alertava para o fato
de que estava discutindo um determinado tipo de obra, caracterizado
como “criativa”. Em princípio, preferencialmente o texto estético. Em
Lector in Fabula, livro cronologicamente posterior, ele restringiu o
escopo para textos literários (escritos). Ele reiterou, em vários
momentos do texto de Obra Aberta, que não era objetivo daquela
discussão aplicar um modelo capaz de caracterizar qualquer obra
empírica,
principalmente
aquelas
que
fugiam
deste
perfil
de
“criativas”.
Outro aspecto fundamental é que se faz uma confusão muito
grande com o sentido atribuído por Eco ao termo “interpretação”.
Desde Obra Aberta, é feita por ele uma distinção entre “interpretação”
e “uso”. O semioticista italiano não acha inadequado que uma obra
seja provocativa de leituras e/ou hipóteses pouco relacionadas ao
objetivo a que ela se propunha. Neste caso, ele caracteriza que há
um “uso” da mesma, um processo de apropriação.
Para ele, no entanto, interpretar é comprometer-se com os
sentidos possíveis de se atribuir ao texto. Se se tiver um mínimo de
critério analítico, há que se respeitar inicialmente essa distinção. Não
se
trata
de
discutir
aqui
sua
pertinência.
Mesmo
que
haja
discordância quanto a isso, o que não se pode conceber num olhar
114
mais atento para a discussão que Eco empreende é igualar sentidos
que não correspondem.
De alguma forma, é o que a linha argumentantiva de Jonathan
Culler, embora contenha elementos oportunos em contraposição a um
aparente estreitamento de horizonte conceitual por parte de Eco,
ignora. Quando Culler, discutindo como a desconstrução concretiza
uma determinada forma de análise crítica, diz que
Muitas das formas mais interessantes da crítica
moderna não perguntaram o que a obra tem em
mente, mas o que ela esquece, não o que ela diz,
mas o que toma como ponto pacífico. (CULLER,
1993: 137)
Culler parece não se dar conta de que esta ponderação seria
irrepreensível
distinção
se
entre
não
desconsiderasse,
“interpretação”
e
“uso”,
de
alguma
reiterada
maneira
numa
a
das
conferências de Eco.
O que o leitor desta tese poderá estranhar é que a citação de
Culler não deixa de ter relação com o silêncio. Perguntar-se o que a
obra não diz, pode-se dizer, talvez seja um dos aspectos analíticos
deste trabalho.
Um dos riscos numa discussão como essa, sobre o silêncio, é
exatamente de uma remissão a um discurso
e a uma prática
herméticos (no sentido técnico e histórico que este termo tem), na
115
medida em que se busque sempre o sentido oculto, atrás de um outro
e se assuma a postura “paranóica” de desconfiar de qualquer palavra
ou ausência dela.
De uma perspectiva discursiva como a que se pretende aqui, tal
caminho seria muito questionável. Há que se presumir, inicial e
taxativamente, que desvelar (ou atribuir) sentidos a alguns silêncios,
se, por um lado, cria outros silêncios, em contrapartida, também cria
outros dizeres. Para que esta afirmação não caia no hermetismo,
pode-se entender que se nos propomos a analisar a constitutividade
da linguagem e se se acredita que tal constitutividade é heterogênea
não somente no interior do dizer, mas igualmente no interior do
silêncio e nas relações entre dizeres e silêncios, o que sempre
ocorrerá em qualquer ato interpretativo é sempre uma redefinição dos
espaços ocupados pela palavra e pelo silêncio. Não há, do ponto de
vista
desta
epistemologia,
um
sentido
preexistente,
seja
como
palavra, seja como silêncio, que esteja debaixo do último véu.
Essa
reconfiguração
de
espaços,
antes
de
mais
nada,
é
material. Ou seja: as condições sociais e ideológicas da interpretação
são tão materiais quanto a forma do texto. Desse ponto de vista
talvez
aí
resida
uma
limitação
de
horizontes
da
epistemologia
abraçada por Umberto Eco. Fala-se de intenções de um autor , que,
mesmo entendido enquanto estratégia textual, aparece despido de
sua
historicidade,
de
sua
inserção
nas
relações
econômicas,
116
políticas,
sociais,
ideológicas
que
vive,
juntamente
com
outros
sujeitos.
Talvez por não dar conta dessas relações mais abrangentes,
algumas observações de Eco soam estranhas para alguém postado
no território da AD. Quando ele diz que as leituras “possíveis” são
confirmadas pela comunidade com o passar do tempo, incorre numa
petição de principio.
Ora, isto é conseqüência de que esta leitura
conseguiu estabelecer-se como correta e não que seja correta em si
mesma. Essa contradição fica mais evidente se se considerar que em
nenhum momento de sua discussão (e isso desde Obra Aberta até
Interpretação e Superinterpretação) Eco pretende que exista uma
única leitura ou que algumas possam ser, absolutamente, mais
corretas do que outras. O que ele pretende é discutir os limites de
leituras que colidam com um direcionamento semiótico insinuado pelo
próprio texto.
Outra
observação
importante
relaciona-se
precisamente
a
Borges. No texto Pierre Menard, autor del Quijote, Jorge Luís Borges
propõe que se leia a Imitação de Cristo como se fosse escrita por
Céline. Eco, em sua terceira e última conferência admite que realizou
este exercício e que o resultado seria uma prova de que algumas
leituras não são possíveis. No caso em questão, ler um texto de
tradição
mística
medieval
por
uma
outra
perspectiva
criou
inconsistências na leitura.
117
É óbvio que não poderia ser diferente. As razões para isso é
que podem ser vistas de maneira muito diversa. Eco desconsiderou,
em sua análise, um pormenor decisivo (não importa se consciente ou
inconscientemente): como leitor, ele (Eco) é um medievalista. Desta
perspectiva, seria impossível que ele não notasse certas contradições
em uma obra atribuída a Céline, pertencente a uma outra época e
mentalidade. Segundo aspecto: ele conhecia um conjunto bastante
rico de informações contextuais sobre a obra em questão e sobre o
outro autor a quem ela estava sendo atribuída.
Mas o ponto fundamental talvez ainda esteja em outro lugar.
Eco subinterpretou (para usar a expressão de Culler, baseada em
Wayne Booth) Borges. Neste aspecto cabe analisar uma das funções
desta reconfiguração entre o dizer e o silenciar, mencionada acima.
Ou seja: Eco apostou na proposta estética de Borges, esquecendo-se
que dentro do universo borgeano a palavra-chave é engodo.
Dizer que todos os textos têm um único autor (o Espírito) e
propor que um texto seja lido como sendo de outra época e outro
autor
–
como
Borges
faz
em
La
flor
de
Coleridge
-
não
é,
absolutamente, uma proposta de liberdade total para o leitor. No
labirinto de espelhos do engodo borgeano, produzir (ou propor) uma
obra que seja constantemente recriada pelo leitor, não significa,
efetivamente, uma desvalorização da função do autor . Borges ocultase numa rede de denegações. Seu leitor não é qualquer leitor. Se
Pierre Menard escreve o mesmo texto do Quijote no século XX e
118
produz outra obra, diferente da de Cervantes, e que passa a ter um
outro autor (Menard), se se atribuísse a Céline o mesmo texto da
Imitação de Cristo, tal como Borges propõe, jamais, da própria
perspectiva estética do escritor argentino, seria possível pensar-se
que a obra continuasse a ser a mesma. Seria de Céline, pelo fato de
que seria lida com os olhos da época de Céline.
A argumentação de Eco fragiliza-se no labirinto do engodo
borgeano, pois ela não leva em consideração que, tal como nos jogos
de Borges, a postura do semioticista italiano caracteriza-se como a
de um autor, mesmo quando procurava ler. O que se pode entender
do jogo borgeano, a partir das regras do seu próprio universo, é que
o cerne da questão é o próprio jogo. Pierre Menard é um truque de
espelhos. Da perspectiva desse jogo, jamais poderia ser lido dessa
forma (jamais seria aceito que o texto fosse dele) porque, exatamente
como disse Borges
(...) O mesmo acontece com o Quijote. O mesmo
acontece com Lugones e Martinez Estrada, o Martín
Fierro não é o mesmo. Os leitores foram
enriquecendo o livro. (1979: 29)
Se os leitores do Quijote o foram enriquecendo, isto significa
que soma-se à obra o conjunto de interpretações que se faz sobre
ela. Dessa perspectiva, o texto mesmo de Cervantes seria de
Cervantes, embora nos esquecêssemos que já não lemos Cervantes
119
como
quando
o
Quijote
foi
escrito.
Isso
ocorre
porque
nos
inscrevemos em discursos sobre o que é ser autor de uma obra, a
própria obra e daí por diante.
O que Borges faz, com este jogo, é mostrar a um leitor que
participa, mesmo sem aceitar ou saber da retransformação da obra,
que seu poder de leitor é anacrônico, na medida em que depende de
um autor que lhe diga e lhe mostre isso, enquanto jogo, e que, diante
do assombro, se ele entender o jogo, o terá comprovado. E se o
comprovar terá sido aprisionado em sua armadilha.
Um aspecto sutil desse jogo é a referência a Madame Henri
Bachelier. Borges propõe que
Esa técnica de aplicación infinita nos insta a
recorrer la Odisea como si fuera posterior a la
Eneida y el libro Le jardin du Centaure de Madame
Henri Bachelier como si fuera de Madame Henri
Bachelier. (Pierre Menard, autor del Quijote.)
Ocorre um jogo de espelhos: ler um texto, com a assinatura de
autoria de “X” como se a autoria fosse realmente de “X”. Aplicando-se
o
quadrado
semiótico
de
Greimas,
obtém-se
um
resultado
esclarecedor: se “X” parece ser autor da obra “Y”, mas não é, há a
mentira. Mas se “X” é autor de “Y”, mas não parece ser, há o
segredo. A expressão
“como
si fuera”
induz prioritariamente à
primeira. Então, se a assinatura de autoria de uma obra, mesmo
120
reconhecida como assinatura válida é uma mentira, quem é realmente
o autor ? Talvez aquele único autor de La flor de Coleridge (para
Elliot, o Espírito. Para Borges, mais certamente, a Literatura). No
entanto, o caráter de jogo é que nesse caso Borges propõe que se
leia como uma ilusão, acreditando-se na assinatura de autoria. De um
lado, propõe trocar a assinatura arbitrariamente (autor da Imitação de
Cristo por Céline ou Joyce), de outro, acreditar numa assinatura de
autoria somente pelo prazer de jogar, embora não se considere que
ela seja válida. Não é um exercício fácil ou agradável como Eco diz
em Lector in Fabula nem uma experiência factível, como ele admitiu
em
Interpretação
intelectual,
uma
e
Superinterpretação.
brincadeira
com
um
É
apenas
conceito,
um
exercício
talvez
para
desmistificar os limites rígidos da função-autor.
Uma imagem dessa relação de armadilha e descoberta do leitor
borgeano é a do sadomasoquismo. O leitor se compraz em ser
ludibriado pelo prazer do jogo. Sofre a derrota do aprisionamento mas
a vitória de ter saboreado o jogo. Silenciosamente, há nesta estética,
também, uma supervalorização do autor. Um autor que se delicia
duplamente pelo fato de saber que enganará seu leitor e que ele
(leitor) gostará disso.
Neste sentido, a proposta de ler a Imitação de Cristo como se
fosse de Céline é mais uma intromissão do fantástico no mundo
considerado real. Tal qual em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, há uma
intromissão de um mundo imaginado na realidade da leitura.
121
O fato de Eco não aplicar a Borges a própria distinção já
definida
em
Obra
Aberta
e
mantida
em
Interpretação
e
Superinterpretação resulta numa fragilização do viés de leitura do
pensador italiano. A proposta de Borges não pode ser lida como
“interpretação”, mas como “uso”. Se o próprio Eco reconhece que
esses limites de leitura aceitáveis não se aplicariam a Joyce, por que
tentar aplicá-los a Borges ?
Talvez haja mais um aspecto digno de consideração. Borges se
utiliza de diversas estratégias do discurso hermético. A infinita
intertextualidade, a metáfora do universo como livro (ou biblioteca, o
que só multiplica ao infinito a concepção), a adesão a postulados
idealistas extremados, o platonismo, o fascínio pelos labirintos e
pelos próprios textos herméticos (cabala, Swedenborg, por exemplo)
seriam
indícios
mais
que
suficientes
para
caracterizá-lo
nesta
filiação. No entanto, ao contrário dos hermetistas que buscam o
segredo escondido atrás do último véu, para Borges, atrás deste não
existe nada.
Dessa
perspectiva,
se
para
Borges,
na
função-autor,
tal
discussão seja universal porque caracteriza a nossa natureza, para
ele próprio e para seu leitor, enquanto função-leitor, a estratégia
discursiva da estética borgeana é um grande blefe, quiçá um insulto,
a um leitor que, sabe Borges, só pode ser leitor (e, particularmente,
leitor de sua obra) se for criador, mas que está condenado a se
perder nos labirínticos jogos de espelhos. Vingança de um autor que
122
não pode, como qualquer outro, controlar sua obra. Mas já que o
leitor passa a ser um pouco autor também, estende-se a ele (leitor)
tal impotência.
Esta digressão interessa ao trabalho aqui discutido. É possível
existir uma estética do leitor , como a de Borges, sem que se pretenda
que os limites da interpretação (ou do uso) sejam irrestritos.
O que
ocorre é que o leitor é a instância de chegada, de determinação
(adequada ou não) de qualquer obra 5 9 . Aceitar isso não significa
negar
que
a
obra
tenha
identidades
formais
que
possam
ser
analisadas. Wolfgang Iser, por exemplo, ao discutir a importância da
recepção, não descarta especificidades da obra.
Há alguns exemplos bastante frutuosos, dados por Eco que
ilustram esse último aspecto. Ainda no Lector in Fabula, como já foi
mencionado neste capítulo, ele faz uma relação pertinente entre a
obra
“O
Processo”,
de
Franz
Kafka
e
a
novela
policial.
Em
Interpretação e Superinterpretação, Eco dá um exemplo hipotético,
imaginando que Jack, o estripador, pudesse justificar seus crimes a
partir da leitura do Evangelho de São Lucas (Note-se que Borges faz
algo semelhante em El evangelio según Marcos 6 0 ). Neste caso, o
embaraçoso seria justificar tal leitura como apropriada. Veja-se que a
59
O próprio Eco reconhece isso ao fazer uma ponderação sobre seu conceito de intentio operis:
“Assim é possível falar da intenção do texto apenas em decorrência de uma leitura por parte do leitor. A
iniciativa do leitor consiste basicamente em fazer uma conjetura sobre a intenção do texto.”(p. 75)
60
Uma leitura extrema de temas religiosos pode ser vista também no filme A Carne, do diretor italiano Marco
Belocchio.
123
discussão é sobre o conceito de “interpretação”, desenvolvido pelo
semioticista. Se se falasse em uso, a discussão seria outra.
3.2 – Autoria, função do leitor e silêncio
Até este momento, dentro do presente capítulo, as questões
sobre autoria e função do leitor foram tratadas pelo viés de uma outra
epistemologia, que não aquela norteadora desta tese.
Sob a perspectiva da AD francesa, no entanto, há outras
considerações relevantes e que fundamentam mais adequadamente a
análise sobre o silêncio. Um ponto de referência crucial é a discussão
de Michel Foucault sobre autoria, especificamente sobre o que ele
passa a designar como função-autor.
Foucault, em O que é um autor faz um panorama histórico da
construção do conceito de autoria e nos permite visualizá-lo dentro
das condições de produção materiais e da formação de mentalidades,
num processo que se inicia mais nitidamente a partir do final do
século XVII e do decorrer do século XVIII.
Algumas
condições
básicas
merecem
ser
mencionadas.
A
existência de discursos transgressores passou a exigir uma origem
determinada a fim de que as sanções pudessem ser aplicadas.
124
Essa situação contrastava com a prática exercida desde a Idade
Antiga de os textos tais como contos, narrativas, epopéias, tragédias,
comédias
serem
validados
independentemente
de
terem
autoria
definida. Às vezes, a própria antigüidade de um texto constituía uma
garantia de sua autenticidade. Os textos acadêmicos, no entanto,
precisavam de um autor que os autorizasse.
A Idade Média prosseguiu, de forma geral, com esta tendência.
A relação entre autores e leitores era muito mais fluida, dentro de
ume escopo religioso-idealista onde o autor supremo era Deus 6 1 .
A partir dos séculos XVII e XVIII o critério de validade dos
textos científicos passou a ocorrer em função da ligação deles a um
conjunto sistemático de verdades, geralmente consideradas como tais
sob uma concepção empirista.
Outra característica importante, já no final do século XVIII e no
século XIX foram as condições materiais de circulação do livro.
Desde o aparecimento da página impressa, a interferência do leitor
no texto foi-se desvanecendo e a autoridade do autor foi ganhando
importância. Com o aumento de complexidade comercial, através do
desenvolvimento do capitalismo, e da inserção da relação autor/editor
61
Maria Helena Pereira Dias, no site http://www.unicamp.br/~hans/mh/autor.html, “Uma experiência
hipertextual” (O autor), faz uma consideração ilustrativa:
“No período dos manuscritos, quando escribas e exegetas freqüentemente alteravam os textos que
transcreviam e copiavam a separação entre autores e leitores não era tão significativa, vale lembrar que a
visão expressa por Sto. Tomás de Aquino e Sto. Agostinho de que não eram autores, mas realizadores da
palavra de Deus consolidou a metáfora bíblica das duas leituras: a leitura do livro da natureza - obra de Deus e a leitura da palavra revelada, também obra divina, que lhes conferia autoridade.” (p. 1)
125
nesse contexto, os direitos do autor passaram a se constituir como
um território quase físico, de propriedade, de bem.
É interessante observar-se que determinadas instâncias de
textos científicos passaram a constituir um novo tipo de autoria,
segundo Foucault:
Afigura-se-me, porém que ao longo do século XIX
europeu apareceram tipos de autor bastante
singulares, que não se podem confundir com os
‘grandes’ autores literários, nem com os autores de
textos
religiosos
canônicos,
nem
com
os
fundadores das ciências. Chamemos-lhes então, de
forma um pouco arbitrária, ‘iniciadores de práticas
discursivas’. (FOUCAULT, 1992:58)
Para Foucault, diferentemente dos textos literários, textos como
os de Freud e Marx, que o pensador francês dá como exemplos
desses
“iniciadores
das
práticas
discursivas”,
entendendo
este
processo não só como a produção da própria obra deles, mas, o fato
de também terem produzido “a possibilidade e as regras de formação
de outros textos” (ibidem).
Partindo destas considerações, Foucault irá enfocar algo que
interessa
muito
à
discussão
empreendida
neste
trabalho.
Tais
práticas discursivas, segundo ele, são heterogêneas no que tange às
suas futuras modificações:
126
Por outro lado, a iniciação de uma prática
discursiva é heterogênea com respeito a suas
transformações
ulteriores.
Ampliar
a
prática
psicanalítica, tal como fora iniciada por Freud, não
é conjeturar uma generalidade formal não posta de
manifesto em seu começo; é explorar um número
de ampliações possíveis. Limitá-la é isolar nos
textos originais um pequeno grupo de proposições
ou afirmações às quais se lhes reconhece um valor
inaugural e que revelam a outros conceitos ou
teorias freudianas como derivados. Finalmente, não
há afirmações ‘falsas’ na obra destes iniciadores;
aquelas afirmações consideradas não essenciais ou
‘prehistóricas’, por estarem associadas com outro
discurso, são simplesmente ignoradas em favor dos
aspectos mais pertinentes de sua obra. (ibidem)
Esta definição leva Foucault a entender que é inevitável que os
praticantes desses discursos “regressem à origem”. Para ele, este
regresso designa um movimento que caracteriza a iniciação das
práticas discursivas, e significa, em última instância, que ele “(...) é
devido a uma omissão básica e construtiva, uma omissão que não é o
resultado de um acidente ou incompreensão.”
A ligação com o silêncio é bastante evidente. O ignorar
aspectos
das
obras
dos
autores
que
inauguram
as
práticas
discursivas mencionadas por Foucault consiste, inicialmente, num
silêncio por ausência. Será visto, um pouco mais à frente, que o
silêncio
por
excesso
está
também
imbricado
nas
próprias
considerações do pensador francês. Quando ele menciona que essa
omissão não é nem acidental nem fruto de uma incompreensão, pode-
127
se entender que visualiza aspectos constitutivos nessas omissões,
aqui nesta tese caracterizadas como silêncios.
Vista desta perspectiva, compatível com a AD francesa, a
autoria se constrói no interdiscurso - teia de memórias afetadas pelo
esquecimento 6 2 - na medida em que não só os discursos e os textos
que os manifestam possuem uma outra materialidade além das
palavras: uma materialidade que historiciza as leituras da obra e a
reconstrói. Autor e leitor são sempre, dessa forma, co-participantes
desse jogo de memórias, mesmo que distanciados pelo tempo e
sujeitos a condições de apropriação.
Embora Foucault não o diga exatamente desta forma, pode-se
perceber que tais concepções são possíveis. A continuação do texto
vai além:
Ademais, se trata sempre de um regresso ao texto
em si mesmo, especificamente, a um texto primário
e sem ornamentos, prestando particular atenção
àquelas coisas registradas nos interstícios do texto,
seus espaços em branco e suas ausências.
Regressamos àqueles espaços vazios que foram
cobertos por omissão e ocultos em uma plenitude
falsa e enganosa.
Nestes
redescobrimentos
de
uma
carência
essencial, encontramos a oscilação de duas
respostas características: ‘Esta observação foi
feita, não pode evitar vê-la se se sabe ler” ou a
inversa, ’Não, essa observação não está feita em
nenhuma das palavras impressas no texto, porém
está expressa através das palavras em suas
relações e na distância que as separa’. (ibidem)
62
Apropriando-se de Orlandi 1999:33.
128
Aqui se observa uma análise que pode equivaler à categoria de
silêncio como excesso, já discutida nesta tese. A expressão “cobertos
por omissão” pode perfeitamente ser relacionada a isso.
Cabe considerar, principalmente no escopo deste trabalho,
como se comporta essa função-autor no texto escrito. Gregolin
(2001), a partir da análise de Foucault, aponta que o sujeito do
discurso está inscrito na materialidade do texto.
O que se torna desafiador, enquanto exercício analítico, é não
confundir a materialidade do texto com a materialidade dos discursos.
Ambas existem, do ponto de vista da AD, mas não pelos mesmos
processos. Não basta identificar em cada significante um sentido
unívoco dele decorrente. Dependendo da perspectiva assumida, há
relações entre significantes antes de haver destes com significado(s)
(em Lacan, por exemplo) ou já se entende como premissa que o signo
expressa um sentido plural (em Bakhtin, quando este afirma que o
signo é dialógico).
Portanto, se é aceito que a materialidade do sentido decorre da
relação que os significantes apresentam com os discursos que
concretizam no corpo do texto, passa a ser necessário focar o olhar
nas condições de produção e circulação dos discursos, bem como na
rede de memória que constrói elos entre os discursos e suas filiações
– o interdiscurso. Neste aspecto, Gregolin (2001:63) menciona que:
129
“A ‘função-autor’ é, assim, característica do modo
de existência, de circulação e de funcionamento
dos discursos no interior de uma sociedade, e, por
esse motivo, a reflexão sobre a autoria não pode
estar desvinculada, do nosso ponto de vista, da
discussão sobre os regimes de apropriação dos
textos e da construção da memória coletiva de uma
sociedade.”
A autora continua sua linha de argumentação estabelecendo
uma relação entre essa circulação de discursos na sociedade e os
gêneros discursivos (utiliza-se de Bakhtin), de tal modo que tais
discursos se concretizem em formas textuais típicas de cada um
desses gêneros. Analisando um poema que tem a maior parte de seu
conteúdo composto por afirmações científicas a respeito da água,
Gregolin empreende uma discussão sobre o papel das redes de
memória e sua relação com a constituição da autoria.
Sob essa ótica, um texto inscreve-se no gênero literário ou
científico na medida em que acionar as memórias respectivas,
relativas a um ou outro desses gêneros. É claro que essas memórias,
assentadas
materialidade
na
materialidade
decorrente
das
do
texto,
condições
terão
igualmente
sociais,
uma
ideológicas,
políticas, econômicas, vividas pelos sujeitos participantes dessas
redes de lembranças e esquecimentos de dizeres e sentidos que
circulam.
A operacionalidade deste conceito reside na circunstância que
ele permite, ao mesmo tempo, considerar as condições do texto e sua
exterioridade. Assim, o modo de circulação dos discursos e dos
130
gêneros e
de como eles acionam (ou deixam de acionar) os elos
dessas memórias, depende de vieses construídos historicamente. O
que se entende por gênero científico hoje, aqui, não corresponderá às
mesmas operações, resgates e esquecimentos de sentidos já-ditos,
préconstruídos, de outra sociedade, com outras representações de
imaginário e com outra historicidade de seus discursos.
É nesse quadro que
“A instalação da autoria problematiza a evidência
do sentido e permite pensar a complexa teia em
que o sujeito se enreda, ocupando o lugar de
enunciador, ao inserir-se nas séries de falas que o
precedem.” (Gregolin, 2001:76)
Tão imprescindível para a discussão sobre autoria e função do
leitor quanto as noções de memória discursiva, interdiscurso e
historicidade, é a noção de incompletude da linguagem.
Authier-Revuz,
ao
analisar
as
formas
de
modalização
autonímica subjacentes à heterogeneidade mostrada, estabelece uma
tipologia de diferentes formas de não-coincidência na construção do
discurso 6 3 .
63
A saber: a) não coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores; b) não-coincidência do discurso
consigo mesmo, afetado pela presença de outros discursos; c) não-coincidência entre as palavras e as coisas;
d) não-coincidência das palavras consigo mesmas, afetadas por outros sentidos, outras palavras, jogo da
polissemia, da homonímia etc. (Authier-Revuz, 1998: 20-21)
131
Esta
série
de
não-coincidências
mostra
esse
aspecto
de
incompletude da linguagem. O sujeito, a cada enunciação, depara-se
com uma história de sentidos já produzidos antes de sua existência (e
antes especificamente daquela enunciação), história da qual ele
também não é a origem. Entre as falas retomadas ou esquecidas,
delimitadas de uma rede mais ampla de memórias, sobram arestas,
faltam encaixes, há sobreposições e buracos.
A
partir
dessa
dispersão
do
sujeito,
por
conta
dos
esquecimentos necessários para que o sujeito possa inserir-se no
discurso, há que se criar um princípio de agrupamento, de coerência,
unicidade e completude, mesmo que imaginários. É o que Orlandi
(1999:73) compreende da função-autor de Foucault:
O autor é o lugar em que se realiza esse projeto
totalizante, o lugar em que se constrói a unidade do
sujeito. Como o lugar da unidade é o texto, o
sujeito se constitui como autor ao constituir o texto
em sua unidade, com sua coerência e completude.
Coerência e completude imaginárias.
Para ela, assim, o sujeito está para o discurso da mesma
maneira que o autor está para o texto, exatamente como esse
princípio organizador e unicizante.
Gregolin (2001:67), no final de seu artigo, também faz uma
abordagem semelhante:
132
“A atribuição de uma assinatura de autoria a um
texto constitui a escrita como expressão de uma
individualidade que fundamenta a autenticidade da
obra, atribuindo ao autor a idéia de invenção
individual e criação original.”
Neste caso, Gregolin, além dessa idéia de criação, enfoca
igualmente o aspecto de autentificação da obra, particularmente
pensando-se na escrita.
Pois bem: as não-coincidências e seu aspecto de incompletude
da
linguagem
implicam
essa dispersão, ameaçadora da própria
constituição do discurso. Na medida em que esse sujeito de-centrado
e disperso assume a função-autor cria uma unicidade imaginária,
suficiente
para
manter
fios
possíveis
de
entrelaçamento
das
memórias de sentidos já-produzidos (e que serão (re)transformados
nesse outro dizer, oscilando entre a paráfrase e a polissemia).
No âmbito desta tese, pode-se considerar que estas nãocoincidências têm uma relação bastante íntima com o silêncio.
Primeiramente,
enquanto
silenciamento
dessas
próprias
não-
coincidências, o que pode ser feito, entre outros processos, pelo
conceito de função-autor, assim como foi exposto acima. Mas há um
outro aspecto relevante: o da não-coincidência da palavra com o
silêncio (não há recursividade total entre eles, ou seja, nem todo
silêncio é representável em palavras e vice-versa). Como já foi
133
mencionado, o silêncio pode ser entendido como um procedimento de
clivagem dos dizeres e das vozes.
Assim, um silêncio por ausência evitaria a ocorrência de um
espaço de dizeres não-coincidentes, inconvenientes ao fechamento
imaginário (e provisório) do discurso. Já um silêncio por excesso
exerceria, por sua sobreposição característica, um apagamento de
dizeres não-coincidentes, com efeitos de natureza semelhante ao do
silêncio por ausência.
Já o silêncio enquanto voz teria como característica ser um
procedimento de inserção do sujeito no universo do discurso, ou seja,
um sujeito não se constitui como tal somente pelo que diz, mas
também pelo que silencia, seja esse dizer composto de palavras ou
não.
Para avançar em direção a uma concepção de autoria e suas
relações com a função do leitor – do ponto de vista da AD francesa –
que
dêem
conta
da
produção
borgeana, são
necessárias
mais
algumas considerações.
Se é possível aceitar a função-autor como uma estratégia de
completude imaginária, faz-se necessário estabelecer a relação entre
esse tipo de autoria e a função do leitor, consideração fundamental
para se abordar a estética borgeana.
Para Orlandi (1999: 76-77)
134
“Essa representação do sujeito, ou melhor, essa
sua função, tem seu pólo correspondente que é o
leitor. De tal modo isso é assim que cobra-se do
leitor um modo de leitura especificado pois ele está,
como o autor, afetado pela sua inserção no social e
na história. O leitor tem sua identidade configurada
enquanto tal pelo lugar social em que se define
‘sua’ leitura, pela qual, aliás, ele é considerado
responsável. Isso varia segundo a forma histórica,
tal como a autoria: não se é autor (ou leitor) do
mesmo modo que na Idade Média e hoje. Entre
outras coisas, porque a relação com a interpretação
é diferente nas diferentes épocas, assim como
também é diferente o modo de constituição do
sujeito nos modos como ele se individualiza (se
identifica) na relação com as diferentes instituições,
em diferentes formações sociais, tomadas na
história.”
Pela simetria estabelecida por Orlandi entre as funções de autor
e leitor, pode-se considerar que, tal qual
o autor, o leitor também
representa um princípio de estabelecimento de unicidade, coerência e
completude imaginárias ao
discurso, através da textualização. A
questão aqui reside em determinar as especificidades de cada
processo
(função),
principalmente
em
suas
respectivas
materialidades.
Schinelo & Villarta-Neder (2000: 117), ao analisarem o processo
de autoria em Fita Verde no cabelo, de Guimarães Rosa, estabelecem
uma relação ampla entre autor e leitor, colocando um calculado olhar
de um leitor virtual subjacente à constituição do autor. Além disso,
tentam estabelecer uma relação entre narrativas orais que são
(re)construídas e transferidas para a escrita a partir desse olhar. Tais
relações podem ser visualizadas no gráfico abaixo:
135
Gráfico 3
O que pode interessar para esta tese nestas relações é não
somente esse leitor introjetado, pela alteridade, na função do autor,
mas também a inclusão das narrativas orais.
No contexto dos textos borgeanos há muito de jogo e de
denegação com as funções do autor e do leitor. Como será visto no
tópico seguinte deste capítulo, Borges, no prólogo de
Historia
Universal da Infâmia (1935), coloca-se como “mero” tradutor e leitor
dos textos que apresenta no interior do livro. Há nessas denegações
borgeanas identificações estreitas com esse processo relacional entre
as narrativas orais e o olhar de leitor introjetado na função do autor.
136
Isto
ocorre
se,
por
analogia,
conceber-se
a
função-autor
borgeana como a de um rapsodo (daí a similitude com a recitação de
narrativas orais) cuja função é a de meramente transmitir uma
tradição narrativa perdida na névoa dos tempos. Aliás, o que atende à
condição
para
que
o
sentido
se
construa:
a
de
que,
pelo
esquecimento de sua origem mais imediata, as palavras (ou o
silêncio) do Outro possa ser apagado e passar a fazer sentido nas
palavras do Eu. (Orlandi, 1999: 34)
Seria possível, usando uma forma do dizer borgeano, afirmar-se
que Borges, ao insistir tanto em valorizar suas fontes (quando não
pseudo-fontes, inventadas) faz um espelhamento do silêncio, na
medida em que faz parecer seu inverso: em vez de reafirmar tais
vozes,
pelo
excesso
com
que
as
valoriza,
ele
as
silencia,
inscrevendo-as nesse jogo paradoxal de esquecimentos e retomadas
que é o interdiscurso. Está-se diante de um caso típico de silêncio
por excesso.
E tal estratégia o inscreve igualmente na função-autor (e não
meramente na de um tradutor que realiza uma atividade braçal), pelo
mesmo
espelhamento
silenciador:
ao
se
negar
como
princípio
unificador do texto, ele fornece ao leitor uma razão, um motivo que
confere
a
este
texto
uma
coerência.
Em
outras
palavras,
faz
exatamente o que diz não fazer, comportando-se como esse princípio
que estabelece completude e unidade ao discurso. Cumpre, com a
maestria de um silêncio tagarela, a função-autor.
137
Sua
valorização
do
leitor
pode
ser
entendida
também
simetricamente, como a citação de Orlandi estabelece. Para participar
do jogo estético, do gênero literário cuja memória o leitor resgate (e
esqueça), tal leitor precisa ter características parecidas: apreciar,
saborear o engodo e, assim, saboreando-o e esquecendo que está
preso numa armadilha, tomar sentidos anteriores como se fossem
seus (ou seja: pensar que descobriu integralmente o jogo e, portanto,
ter-se apropriado dos seus sentidos).
Se Borges se insere numa memória discursiva de um gênero
que comporta (e exige) um leitor participante, tal “convite” ao leitor
não faz outra coisa senão espoliá-lo da possibilidade de construir
seus sentidos (dele, leitor) pelo apagamento dos já-ditos pela funçãoautor. Ao multiplicar as armadilhas e as casualidades no interior dos
textos (como Borges assume fazer no início de Tlön, Uqbar, Orbis
Tertius), Borges, assim como diz, no prólogo de Fervor de Buenos
Aires, ter roubado idéias e/ou impressões do leitor, rouba-lhe também
possibilidades
de
inserção
no
interdiscurso,
possibilidades
de
acreditar serem seus sentidos que ele (leitor) não acha no texto.
Provoca um silenciamento de silêncios (bem ao seu gosto especular).
Isto significa que a valorização que Jorge Luís Borges faz do
leitor é, ao mesmo tempo, uma memória necessária ao gênero em que
se constitui como autor e um engodo, na medida em que não está
introjetando o olhar de um leitor qualquer. Essa especificidade do
leitor borgeano é apresentada por Campos (1988:26):
138
Por outro lado, nem todo leitor pode ser autor. Será
participante, na dependência de uma série de
fatores: a relação que se estabelece entre o
cabedal de suas leituras e aquela do momento. Se
a intertextualidade, consciente ou não, na obra, é
um fato, só se torna evidência na leitura capacitada
a explicitá-la. Por isso, o título de participante, que
Borges outorga aos leitores de sua obra, não
poderá
receber
aval,
senão
mediante
o
conhecimento de uma fração significativa dela, pelo
menos da que se relaciona ao assunto sob enfoque.
(...)
Faz parte, portanto, do jogo borgeano eleger um tipo específico
de leitor, cujas características mais evidentes podem ser apontadas
como a disposição para o jogo, a vivência da leitura como um
processo de criação, a possibilidade de estabelecer complexas
relações intertextuais, o saber enciclopédico, entre outros.
Por último, cabe levantar outra questão que será discutida no
próximo item deste capítulo e no capítulo seguinte. Como se sabe, no
conto Pierre Menard, autor del Quijote , Borges cria um personagem
que pretende reescrever a obra de Cervantes, na verdade escrevendo
outra obra, identificável como sendo dele, Menard. Borges compara
dois trechos de ambas e estonteia o leitor, já que textualmente são
idênticos. Atribui ao texto de Cervantes uma atualidade e ao de
Menard um estilo arcaizante e estrangeiro.
Possenti (1990:110), ao discutir as condições de legibilidade
dos textos analisa essa passagem de Borges para mostrar que o
escritor argentino atribui um tópico ao trecho de Cervantes diferente
139
do de Menard (é bom lembrar que os textos são idênticos). A partir
desta constatação, Possenti se pergunta:
Que eu saiba, não se chama a atenção, não se
percebe ou não se quer perceber aquela manobra
de Borges. No entanto, ela é visível. E propicia a
seguinte pergunta: algumas das propriedades
atribuídas
aos
textos
não
serão
talvez
características dos leitores ? Será que Borges quis
errar (ou errou sem querer) para que seu texto
significasse que não há leitor capaz de lançar o
mesmo olhar sobre dois textos, mesmo que sejam
‘iguais’ ?
Esta indagação incide não somente sobre a possibilidade de o
leitor abarcar todas as interpretações, mas igualmente sobre as
condições de funcionamento do jogo borgeano. Pretender-se que tal
estética prescinda da autoria em favor de um leitor todo-poderoso
torna-se, dessa perspectiva, questionável.
3.3 – Autoria e Estética do leitor em Borges
140
Monegal, em sua obra Borges: uma poética da leitura, faz uma
arqueologia das concepções borgeanas de autoria. Para Borges, mais
do que o autor, é o leitor que atribui um sentido à obra. E ainda mais
longe: na verdade, o leitor passa a responder por uma função de
autoria, de criação estética. Há inúmeros textos de Borges onde estas
concepções podem ser encontradas. Serão privilegiados aqui os
textos apontados no quadro abaixo, por serem mais representativos:
TÍTULO DO TEXTO
Epígrafe de Fervor de
Buenos Aires
La supersticiosa ética del
lector
Prólogo à 1 ª edição de
História Universal de la
Infamia
Pierre Menard, autor del
Quijote
Otras inquisiciones
Prólogo de Fervor
Buenos Aires
O livro
La poesia
Embora
para
OBR A
Fervor de Buenos Aires
Obras
Completas (Ed. Emecé), 1989
Discusión
Obras Completas (Ed. Emecé), 1989
Historia Universal de la Infamia
Obras Completas (Ed. Emecé), 1989
Ficciones
Obras Completas (Ed. Emecé),
Otras inquisiciones
Obras Completas (Ed. Emecé),
de Fervor de Buenos Aires
Obras Completas (Ed. Emecé),
Borges Oral (Ed. portuguesa.
Original: Borges Oral)
Siete Noches
Obras Completas (Ed. Emecé),
Borges
a
cronologia
seja
DATA
1925
1930
1935
1941
1989
1952
1989
1969
1989
Título 1978
1980
1989
recusada
em
sua
linearidade, é oportuno considerar como as concepções de autoria e
da função do leitor, ou, como diz Monegal, da criação desta “poética
da leitura” vão-se constituindo com o decorrer do tempo.
141
O primeiro texto a ser considerado aqui será a epígrafe de
Fervor de Buenos Aires, de 1925, onde Borges se dirige ao leitor com
estas palavras:
A QUIEN LEYERE
Si las páginas de este libro consienten algún
Verso feliz, perdóneme el lector la descortesia de haberlo usurpado yo, previamente.
Nuestras nadas poco difieren: es trivial y
Fortuita la circunstancia de que seas tú el
Lector de estos ejercicios, y yo su redactor.
(1989: 16)
Aqui já se pode perceber esboçada a importância e a função
que Borges atribuiria ao leitor durante todo o decorrer da produção de
sua obra. Essa casualidade apontada pelo escritor argentino na
circunstância de ser ele o autor e não o leitor, e a idéia de que o
autor, de alguma forma, é um leitor mais esperto que rouba do leitor
comum uma idéia parecem, à primeira vista, apenas um jogo de
palavras. A trajetória borgeana vai mostrar que não.
Em 1930, num ensaio entitulado “La supersticiosa ética del
lector” e que foi publicado em 1932 no livro Discusión,
Jorge Luís
Borges, ao discutir a preocupação excessiva que os autores têm com
a perfeição de suas próprias obras, sugere novamente uma função
mais participativa do leitor:
142
La preferida equivocación da literatura de hoy es el
énfasis. Palabras definitivas, palabras que postulan
sabidurias adivinas o angélicas o resoluciones de
una más que humana firmeza – único, nunca,
siempre, todo, perfección, acabado son del
comercio habitual de todo escritor. No piensam que
decir de más una cosa es tan de inhabiles como no
decirla del todo, y que la descuidada generalización
e intensificación es una pobreza y que así la siente
el lector. (...)
Note-se que, em vez de
valorizar a estratégia do autor que
busca a perfeição, Borges mostra como esta tentativa inútil é vista
como uma pobreza pelo leitor. O fundamental aqui é que esta visão
do leitor é tida em conta como um elemento ridicularizador dessa
busca impossível, feita pelo autor. A generalização descuidada e a
intensificação são uma pobreza e o leitor percebe essa falha.
Um aspecto digno de se ressaltar neste trecho borgeano é uma
relação possível
às categorias de silêncio como excesso e como
ausência apontadas nesta tese. Borges, aqui, critica a tagarelice
como tão inábil quanto o que deveria ser dito e não se diz. Dois
âmbitos de silêncio, portanto.
O texto seguinte é o prólogo da primeira edição de História
Universal da Infâmia, publicado em 1935 e que contribuiu para uma
maior difusão e conhecimento de Borges. Nele, Jorge Luís Borges
também valoriza o leitor:
143
En cuanto a los ejemplos de magia que cierran el
volumen, no tengo outro derecho sobre ellos que
los de traductor y lector. A veces creo que los
buenos lectores son cisnes aun más tenebrosos y
singulares que los buenos autores. (...)Leer, por lo
pronto, es una actividad posterior a la de escribir:
más resignada, más civil, más intelectual.
No início deste trecho, é perceptível a inserção que Borges faz
de si mesmo como autor no espaço de leitor. Obviamente este é um
embuste
borgeano
que
ficará
mais
evidente
pelas
relações
intertextuais (intratextuais, neste caso) entre suas obras e suas
posições críticas e estéticas. Pode parecer uma modéstia e uma
desvalorização do autor porque ele se coloca meramente na posição
de tradutor e leitor como funções menores, menos nobres.
Instaura-se
diferentes.
Num
aqui,
no
nível
entanto,
superficial,
um
relação
de
aparentemente
dois
há
níveis
uma
desvalorização do autor via identificação com as funções secundárias
de tradutor e leitor. Num nível implícito, ocorre o contrário: sua
posição de autor faz sentido esteticamente porque já que é o leitor
que determina a recriação constante da obra, sua
história de
sentidos (como se verá no texto “ O livro”), identificar-se com esse
leitor corresponde a desempenhar uma função esteticamente ativa e
relevante. Para Borges, aliás, não poderia ser diferente. Tentar uma
autoria que não corresponda à de ser mais um (bom) leitor nesse
144
ciclo de elos que forma a grande biblioteca que é para ele o universo,
é cair no exagero exposto na citação anterior.
Mais tarde, no volume entitulado Ficciones, publicado em 1941,
na visão de vários críticos (Monegal, inclusive), Borges estabeleceuse
como
um
autor
relacionado
ao
fantástico.
Um
dos
contos
fundamentais para se analisar a concepção de autoria e a função de
leitor em Borges, presente nesse
livro, é Pierre Menard, autor del
Quijote. Todo o conto é uma proposta neste sentido, mas seu final
deixa isso especialmente mais explícito:
Menard (acaso sin quererlo) ha enriquecido
mediante una técnica nueva el arte detenido y
rudimentario de la lectura: la técnica del
anacronismo deliberado y de las atribuiciones
erróneas. Esa técnica de aplicación infinita nos
insta a recorrer la Odisea como si fuera posterior a
la Eneida y el libro Le jardin du Centaure de
Madame Henri Bachelier como si fuera de Madame
Henri Bachelier. Esa técnica puebla de aventura los
libros más calmosos. Atribuir a Luis Ferdinand
Céline o a James Joyce La Imitación de Cristo ¿no
es una suficiente renovación de esos ténues avisos
espirituales ?” (1989: 450)
Monegal vai analisar o conto borgeano, no sentido de que é um
texto instaurador de uma poética centrada na leitura:
(...) Partindo-se desta noção do leitor como autor,
toda uma nova poética pode ser edificada. Pelo
caminho da leitura, e na atividade individual do
incessante diálogo de textos que a leitura
145
pressupõe – essa intertextualidade, de que agora
tanto se fala - , Borges encontra uma saída para
suas múltiplas negações, uma resposta para seu
isolamento solipsista, um âmbito para a comunhão.
Se o verdadeiro produtor de um texto não é o autor,
mas sim o leitor, todo leitor é todos os autores.
Todos somos um. (1980: 72)
Em outro texto, La flor de Coleridge, Borges também expressa
essa concepção idealista da relação autor-leitor, fundamental ao que
Monegal
considera
uma
poética
da
leitura.
Segundo
Borges,
assumindo a idéia de Valéry de que existe um único autor, que é o
Espírito, a desenvolve in extremis elencando temas que foram
utilizados por autores diferentes, em diferentes épocas, como se
perfizessem um continuum e representassem manifestações dessa
única obra, ditada pelo Espírito, seu único autor. Novamente está
presente essa dissolução da
persona
do autor tal qual
ela é
concebida a partir da Revolução Industrial e da circulação comercial
dos livros impressos.
Em princípio, há aí um reforço do que foi discutido sobre Pierre
Menard: se há um único autor, ou se todos os autores são ninguém,
somente o leitor poderá dignificar e sacralizar a obra, materializá-la
enquanto texto.
Ocorre, porém, que, embora o papel atribuído ao leitor seja
efetivamente importante no contexto da produção estética borgeana,
essa relação autor-leitor e mesmo essa poética tem que ser vista
146
dentro do quadro dos jogos e armadilhas de Borges. Pode-se dizer
que tal valorização se dá
exatamente porque Borges se insere
enquanto autor-leitor de um livro (ou do conjunto de todos os livros
que se repetem) que metaforiza o mundo.
Se o leitor é o único que realmente importa, para que se
preocupar
tão
obsessivamente
em
enganá-lo,
a
expô-lo
a
tal
multiplicidade de armadilhas colocadas de maneira tão sutil e casual
nos textos ? Uma boa razão poderia ser encontrada na justificativa de
que um bom leitor (um cisne raro, talvez mais raro do que bons
autores, nas próprias palavras de Borges) é aquele que vivência sua
impotência como autor que também é.
Faz-se útil abordar um pouco esse universo de armadilhas e
falseamentos borgeanos. O primeiro que merece menção (dos que é
possível identificar) é relativo a uma obra que tanto para a crítica
quanto para o próprio Borges (afinal, ele também é um crítico) foi a
que o projetou como escritor: Historia Universal de la infamia.
Em seu Ensaio Autobiográfico, publicado originalmente em
inglês, Borges comenta o processo de criação da obra:
Em História Universal da Infâmia eu não queria
repetir o que Marcel Schwob fizera em suas Vidas
Imaginárias, inventando biografias de homens reais
sobre os quais há escassa ou nenhuma informação.
Eu, ao contrário, li sobre a vida de pessoas
conhecidas
e
modifiquei
e
deformei
tudo
deliberadamente, a meu bel-prazer. Por exemplo,
depois de ler The Gangs of New York , de Herbert
Asbury, escrevi minha versão livre de Monk
147
Eastman,
o
pistoleiro
judeu,
em
flagrante
contradição com a autoridade por mim escolhida.
Fiz o mesmo com Billy the Kid, com John Murrel
(que rebatizei de Lazarus Morell), com o Profeta
Velado do Kurassen, com o demandante Tichborne
e com vários outros. (...) (2000: 101-102)
Seria frutuoso perguntar-se que condições teria a maioria dos
leitores borgeanos de identificar cada uma dessas interpolações no
texto. Seria pertinente, de igual maneira, relacionar a renomeação de
Murrel para Morell como uma alusão ao livro A invenção de Morel,
escrito por Adolfo Bioy Casares, seu amigo e co-autor de vários
livros,
sendo
que
precisamente este último foi prefaciado por
Borges ? Sabendo-se que a Invenção de Morel representa toda uma
reconfiguração
do
que
se
entende
por
trama,
bem
como
uma
discussão metafórica do processo de representação, instaurando-o na
perplexidade do fantástico, (não aquele da magia irracionalista, mas,
como aponta Monegal, a magia de relações causais bem definidas,
ainda que diferentes daquelas da ortodoxia científica pós-cartesiana),
haveria aí uma intertextualidade a ser considerada ou teríamos que
imaginar
o
autor
Borges,
leitor
de
seus
leitores,
sorrindo
maliciosamente atrás de uma névoa de intertextos que estonteia e
vence definitivamente o leitor ?
Há mais. No mesmo livro, o personagem Hákim de Merv (conto
no qual aparece pela primeira vez a frase que ficou mais conhecida
em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, atribuída um dos heresiarcas de Tlön:
148
“los espejos y la cópula son abominables, porque multiplican el
número de los hombres” 6 4 – 1989:431), segundo Monegal, é quase
totalmente inventado.
Cabe lembrar outro “pormenor”: Borges atribui os textos de
Historia
Universal
de
la
Infamia
a
“releituras
de
Stevenson
e
Chesterton e também dos primeiros filmes de von Sternberg e talvez
de certa biografia de Evaristo Carriego.” Monegal aponta que essa
biografia foi escrita por Borges e publicada em 1930, o que o escritor
argentino, hábil prestidigitador de silêncios, não mencionou.
Há, portanto, que se tomar muitos cuidados ao conceber essa
poética da leitura em Borges como
supervalorização do leitor.
Constitui-se como um labirinto de citações (veja-se o final do conto El
Inmortal, já citado), que, no final das contas, aniquila tanto autor
quanto leitor. Mas que é habilmente urdido por um autor com falsa
modéstia e falsa timidez, conhecedor, ele próprio que os limites de
sua função-autor são também os limites do leitor-autor.
Existem na obra borgeana aspectos, ora mais presentes, ora
pairando como uma desconfiança densa, por parte de um leitor-autor,
profundamente performativos. Ao criar uma História Universal da
Infâmia, Borges faz as suas infâmias verbais, talvez para que o leitor
sinta como efeito as infâmias constitutivas da própria linguagem e
dessa relação heterogênea e tão prenhe de alteridade que é aquela
64
Em Historia Universal de la Infamia, a frase, dita pelo profeta velado Hákim, é a seguinte:
“La tierra que habitamos es un error, una incompetente parodia. Los espejos y la paternidad son abominables,
porque la multiplican y afirman.” Também aparece modificada em Los espejos (El hacedor).
149
entre autoria e leitura. Monegal aponta atentamente que, no prólogo
dessa mesma obra ,
que a “imagem de si próprio que [Borges]
pretende impor ao seu leitor é a de outro leitor , meramente anterior e
sem nenhum privilégio de invenção.” (1980: 91). Se o leitor é
supervalorizado e Borges se coloca como leitor, então há denegação;
se a supervalorização é um engodo, a que se é levado por vários
momentos de sua produção estética, então o leitor que está sendo
valorizado está, na verdade, sendo anulado. Como leitor-autor, este
leitor é um autor. E
se o autor é sempre ninguém, ele, visto da
maneira como Borges diz, também é ninguém.
Há
como
se
fazer
uma
interpretação
dessa
ambivalência
borgeana sem se cair numa abordagem reducionista. Tal enfoque
exige que se tome o texto borgeano ao mesmo tempo como jogo e
como uma “pedagogia estética” que mostra perlocutivamente ao leitor
seus próprios limites (tais quais os do autor) sem que, para isso, ele
(leitor) precise abdicar se saborear o fascínio e a perplexidade de
jogo que a linguagem e a literatura possuem (Borges, a partir de
Croce, entende que cada palavra é um ato estético).
Pode-se vislumbrar algo nesse sentido no texto Nota sobre
(hacia) Bernard Shaw, publicado em Otras inquisiciones (1989:747):
La máquina de Lulio, el temor de Mill y la caótica
biblioteca de Lasswitz pueden ser materia de
burlas, pero exageran una propensión que es
común: hacer de la metafísica y de las artes, una
suerte de juego combinatorio. Quienes practican
150
ese juego olvidan que un libro es más que una
estructura verbal, o que una serie de estrucuras
verbales; es el diálogo que entabla com su lector y
la entonación que impone a su voz y las cambiantes
y durables imágenes que deja en su memoria. Ese
diálogo es infinito; las palabras amica silentiia
lunae significan ahora la luna íntima, silenciosa y
luciente, y en la Eneida significaron el interlunio, la
oscuridad que permitió a los griegos entrar en la
ciudad de Troya... La literatura no es agotable, por
la suficiente y simple razón de que un solo libro no
lo es. El libro no es un ente incomunicado: es una
relación, es un eje de innumerables relaciones. Una
literatura difere de outra, ulterior o anterior, menos
por el texto que por la manera de ser leída: sí me
fuera otorgado leer cualquier página actual – ésta,
por ejemplo – como la leerán el año dos mil, yo
sabría cómo será la literatura del año dos mil.
(1951)
Estabelecida a literatura como relação, podem-se abandonar
concepções simplistas que supervalorizem somente um dos pólos
dessa relação. Reconhecer que o leitor é um fator de chegada não
lhe atribui exclusividade, mas finalidade: se se produz literatura,
obviamente, é para ser lida 6 5 .
Nesse contexto de sacralização do livro (cf. O Livro, em Borges
oral e Del culto de los libros, em Otras inquisiciones), a literatura se
enriquece e ganha a dimensão cosmológica que exerce fascínio sobre
o Borges leitor. É precisamente esse fascínio que ele entende ser
indispensável proporcionar como efeito para o leitor. Sem ter sido
leitor, ele (nem ninguém) poderia ter sido autor. Borges sabe que
Funes, o memorioso, é um personagem aberrante, metáfora da aflição
65
Essas relações mais complexas e dinâmicas podem ser apreciadas igualmente em La biblioteca de Babel, de
Borges e no romance experimental de Osman Lins, Avalovara.
151
da insônia e – isso ele não mencionou – da pretensão vaidosa de
tudo lembrar e tudo conhecer. Sem o esquecimento, também não há
memória, e sem memória, não há identidade 6 6 . Por outras vias,
novamente o interdiscurso.
Nesse diálogo do fascínio
da dinamicidade de um mundo que
muda sempre para cumprir sempre seu ciclo, Borges enxerga esse
leitor que dá sentido ao ato de escrever.
A instigação desse leitor dá-se pelo fantástico, às vezes
também chamado de realismo mágico. Borges adere lentamente a
essa práxis estética e o faz como ruptura com tradições cristalizadas,
sejam a expectativa paterna e familiar de que ele fosse escritor (nos
moldes de continuar uma obra que o avô e/ou o pai, mais direta e
explicitamente, não levou satisfatoriamente a cabo), seja a resolução
de uma equação entre ser universal e tratar dos temas da própria
terra. Nesse universo estético, é possível instaurar sempre, de
maneira ampla, a perplexidade e o fascínio, sem os quais a literatura,
sequer a palavra, valeria para coisa alguma.
Deve-se
entender
esse
“mágico”,
no
entanto,
de
outra
perspectiva, tal como Bioy Casares realizou em Invenção de Morel, e
que Borges destaca no prefácio do livro. Monegal faz ponderações
sobre esse conceito:
66
Cf. a afirmação de Borges: “A identidade pessoal é a memória.” (O pensamento vivo de Jorge Luís Borges)
152
Uma narrativa ‘mágica’ fundamenta-se aqui, mas
uma narrativa em que o termo mágico pouco ou
nada tem a ver com as vaguezas que, desde Franz
Roh e Massimo Bontempelli, até Uslar Pietri e Alejo
Carpentier,
vêm-se
atribuindo
na
crítica
contemporânea. Rigor e lucidez intelectual são as
características centrais desta narrativa ‘mágica’.
(MONEGAL, 1980: 168)
Para se compreender o estatuto que apresenta o fantástico na
produção borgeana, é necessário deter-se um pouco na análise que
ele faz dos tipos de narração:
a) narração mimética = realista, psicológica, que imita a causalidade
natural e que é, portanto, caótica, como o mundo real
b) narração mágica = (ou fantástica), que tem, ao contrário, como
fundamento a causalidade mágica e que é extremamente rigorosa
c) narração maravilhosa = (ou milagrosa) em que a causalidade seria
sobrenatural, isto é, totalmente arbitrária.
Esse rigor da causalidade mágica, instaurador do fantástico, é
que seria o mais conveniente para criar essas relações dinâmicas e
manter a necessária dinamicidade do ato estético.
Otras Inquisiciones, livro publicado em 1952, traz um conjunto
de textos que aprofundam o posicionamento de Borges enquanto
crítico praticante, um escritor que também pensa a produção estética,
seja a própria, seja a de outros. Ao discutir esse papel de crítico
153
praticante de Borges comparativamente ao do ensaísta e poeta
mexicano
Octávio
Paz,
Monegal
analisa
o
tipo
de
estética
desenvolvida pelo escritor argentino, uma estética que privilegia o
espaço do leitor, colocando este último numa função de produção de
sentidos, como já foi mencionado:
Num dos ensaios de Otras inquisiciones (‘La flor
de Coleridge’), Borges afirma, apoiado por citações
de Paul Valéry, Emerson e Shelley, que a literatura
universal parece ter sido escrita por um só autor , o
Espírito. Esta teoria, de um panteísmo literário que
contém restos românticos, permite a Borges
dissolver a noção de um autor original dentro da
noção, mais impessoal, da literatura. Ninguém
(outra vez) é alguém. Acontece que as últimas
conseqüências desta teoria vão mais além da mera
negação (afinal de contas, idiossincrática) da
personalidade individual do autor. Uma poética da
leitura, em vez de uma poética da escritura, está
implícita nesta negação. Borges inverte aqui os
termos habituais do debate literário: em vez de
apoiar-se na produção original da obra, remete à
produção posterior e sempre renovada do leitor. As
conseqüências dessa inversão são alucinantes
(MONEGAL, 1980: 69-70)
Dessa perspectiva borgeana, autor e leitor são co-participantes
de uma rede infinita de textos que se aludem, se referenciam. A
literatura perde um culto personalista a um autor todo-poderoso,
onisciente e controlador de todos os sentidos. “Cada palavra é uma
obra poética.” 6 7 Um aspecto peculiar, profundamente dialético nesse
jogo borgeano, é de que para deslocar autoria dessa onipotência,
67
A poesia. In: Sete noites. São Paulo/SP: Ed. Max Limonad, 1987, p. 122.
154
atribui a ela, mesmo que retoricamente, um supra-autor , que se
personifica no Espírito. 6 8
Outro
ensaio
do
livro
Otras
inquisiciones
apresenta
uma
questão da mesma natureza da que foi discutida em Pierre Menard,
autor del Quijote. Em La esfera de Pascal, o argumento é uma
metáfora sobre Deus (ou um princípio absoluto equivalente) que
associa a divindade à esfera e que, no correr de muitos séculos e nas
páginas
de
vários
autores
assume
a
seguinte
proposição:
(a
divindade ou o princípio absoluto) “es una esfera infinita, cuyo centro
está en todas partes y la circunferencia en ninguna.” (1989:638).
Borges termina o ensaio dizendo que “Quizá la historia universal es la
historia de la diversa entonación de algunas metáforas.” (ibidem).
Novamente há um mesmo texto (praticamente o mesmo) dito por
autores diferentes, de épocas e concepções distintas. Assim como em
Pierre Menard, as mesmas palavras não serão o mesmo texto porque
os leitores serão outros. Na introdução da tradução brasileira de
Siete Noches editado pela Max Limonad, Pepe Escobar e Samuel
León fazem uma observação pertinente que
se relaciona com o que
se está discutindo neste momento:
Partimos
da
concepção
de
literatura
como
produção. É a leitura que organiza o futuro relato.
Borges diz alguma vez que se soubéssemos como
68
Essa concepção insere-se na concepção metafísica expressa pela obra de Borges, também esta de caráter
profundamente inter-relacional: somos todos sonhados por outros, sonhos dentro de sonhos, jogos de
espelhos, labirintos sem portas nem trancas, enfim, uma eterna “inminencia de una revelación, que no se
produce, [y que] es, quizá, el hecho estético (La muralla de los libros. In: Otras inquisiciones, op. cit.).
155
se lê no ano 2000, saberíamos como é a literatura
do ano 2000. (1987:10)
Borges, magistralmente, autoaplica essa estratégia de autoria
ao seu próprio texto. A frase inicial de La esfera de Pascal é “Quizá
la historia universal es la historia de unas cuantas metáforas.”
(1989:636). As palavras que mudam de um enunciado para outro
representam a singularidade, o traço de contribuição que como leitor
(pensando-se nesse leitor-produtor) irá acrescentar à historicidade do
texto. Na conferência sobre o livro, pronunciada na Universidade de
Belgrano, em Buenos Aires, e publicada no volume “Borges Oral”,
Jorge Luís Borges deixa mais clara essa função do leitor:
Heráclito disse (demasiadas vezes o tenho
repetido) que ninguém se banha duas vezes nas
mesmas águas de um rio. Ninguém se banha duas
vezes no mesmo rio porque as águas mudam, mas
o que mais terrível é que nós não somos menos
fluidos do que o rio. De cada vez que lemos um
livro, o livro não é o mesmo, a conotação das
palavras é outra. (...)
(...) Hamlet não é exactamente o Hamlet que
Shakespeare concebeu no princípio do século XVII;
Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe, e de
Bradley. Hamlet foi ressuscitado. (...) Os leitores
foram enriquecendo o livro.
156
Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo
o tempo que transcorreu até nós desde o dia em
que ele foi escrito. (1979:29)
Por isso, a função do autor
para Borges é revelar algo
preexistente, mas que só terá existência efetiva no encontro com o
leitor. Ele desenvolve esses conceitos no texto La Poesia (no volume
Siete Noches). Deste ponto de vista, o comentário de Monegal
merece ser levado em consideração:
(...) é supérfluo indicar se uma obra é ‘original’ ou
‘copiada’ de outra fonte. Toda história, todo texto, é
definitivamente original porque o ato de produção
(=reprodução) não está na escritura, mas na
leitura. (MONEGAL, 1980: 71)
Ou seja, para a perspectiva borgeana o sentido somente se
instaura a partir da presença do leitor. Aí acontece o feito estético.
Não que o texto não esteja lá. Borges não nega jamais a escritura.
Pode insinuá-la como simulacro, instigar o leitor a considerá-la
ilusória. Pode ser um labirinto abstrato, um jogo de espelhos, mas
está lá. A partir de uma concepção platônica, cabe somente ao poeta
descobri-las.
Platonismo
que
se
transforma
em
outro
engodo
borgeano. Talvez não se possa dizer, plausivelmente, que ele não
acredite
no
que
está
dizendo.
Há,
entretanto,
um
profundo
silenciamento aqui. Nada indica que Borges acredite metafisicamente
157
na concepção platônica exposta. Se ele assim a professa, é porque
se vê um autor-leitor, em contato atento com um mundo (universo)
que não deixa de ser uma imensa rede de textos. A descoberta que o
poeta faz é a leitura desses textos, sempre já-ditos em algum grau,
mas igualmente depositários do enriquecimento que cada leitor lhe
proporciona (seja como autor-leitor, ou como leitor-autor).
Por fim, no texto La flor de Coleridge, o último parágrafo parece
contrastar com essa visão de eterna apropriação entre os textos.
Borges diz que
Quienes minuciosamente copian a un escritor, lo
hacen impersonalmente, lo hacen porque confunden
a ese escritor com la literatura, lo hacen porque
sospechan que apartarse de él en un punto es
apartarse de la razón y de la ortodoxía. Durante
muchos años, yo creí que la casi infinita literatura
estaba en un hombre. Ese hombre fue Carlyle, fue
Johannes Becher, fue Whitman, fue Rafael
Cansinos-Asséns, fue De Quincey. (1989:641)
Existe uma contradição aparente: se nenhum texto, mesmo
idêntico, jamais terá o mesmo sentido e será exatamente o mesmo
texto, por que razão a crítica borgeana a essa atitude de cópia,
mencionada aqui por ele ? A primeira chave para essa pergunta pode
estar sutilmente na frase “porque confunden a ese escritor com la
literatura”. Já não se trata de criar versões diferentes de um mesmo
158
texto, escrito por um mesmo autor. Cada autor, lido em circunstâncias
diferenciadas, será um outro autor. As palavras que ele usa já não
são
integralmente
dele,
mas
dessa
rede
infinita
de
textos
e
referências que é a literatura. A segunda chave pode ser entendida
na palavra ortodoxia. Monegal afirma que Borges destrói a literatura
enquanto tradição. Se se entender essa tradição como uma ortodoxia,
uma rígida concepção de que os sentidos já estão prontos e
cristalizados no texto, sim. A concepção borgeana da produção dos
sentidos (principalmente a estética) é fluida como o rio de Heráclito,
num jogo de espelhos atravessado por um rio humano que personifica
a nossa identidade. É nessa mutabilidade do encontro de cada leitorautor com o que o autor -leitor lhe propõe que se dá essa iminência de
revelação, citada na nota número 34.].
Borges, aqui, não se contradiz. Ele pode continuar produzindo
textos como Pierre Menard ou La esfera de Pascal, porque tais textos
não são cópias de um autor fonte e origem do sentido (para usar a
expressão de Pêcheux, relativa ao esquecimento número 1), nem uma
glosa de textos canônicos, fiéis à ortodoxia de uma literatura estática.
Borges, ao propor um estética da leitura, na verdade propõe também
uma estética da alteridade. Como autor -leitor, suas palavras jamais
serão totalmente suas. Elas já terão sido ditas de alguma forma,
antes. Mudará a entonação. Mas isso não importa, porque
é no
leitor-autor que os sentidos serão produzidos efetivamente e que a
159
fluidez
dessa
outra
literatura
dinâmica,
processual,
movimento
contínuo, se processará.
160
CAPÍTULO 4
NO SILÊNCIO DO ESPELHO
4.1 – Corpus
O corpus desta tese é constituído por textos literários do
escritor argentino Jorge Luís Borges. Foram selecionados, dentre os
textos que tratam da temática do espelho, aqueles que se mostraram
mais representativos para a discussão aqui pretendida.
Como já se pôde perceber, outros textos do mesmo autor são
citados quando há um ou outro aspecto relevante a ser considerado
na discussão em andamento.
Dado que a temática do espelho está presente em um número
extremamente alto de textos de Borges, optou-se por uma seleção
dos mesmos que contemplasse diferentes momentos da produção
borgeana. Há casos em que a abordagem do tema é bastante similar
em alguns textos (é o caso, por exemplo, de Al espejo, do volume
Oro de los tigres).
Preferencialmente,
foi
feita
a
opção
de
utilizar
os
textos
originais, em espanhol. Já que os efeitos de sentido em Borges se
dão, muitas vezes por nuances extremamente sutis, considerou-se
que a utilização geral de traduções poderia acrescentar um elemento
complicador à análise. Foram utilizados textos da Obras Completas,
da Editora Emecé. Constituem exceção apenas três obras: Borges
161
Oral, Jorge Luis Borges – Um ensaio autobiográfico e O Livro dos
seres imaginários. Nenhum deles consta da edição argentina. O
primeiro
compreende
conferências
realizadas
por
Borges
com
posterior publicação das anotações. Está sendo utilizada uma edição
portuguesa (no Brasil há uma publicação equivalente com o título
Cinco visões pessoais.) O terceiro título teve sua primeira edição
publicada no México, com colaboração de Margarita Guerrero. Utilizase a tradução brasileira publicada pela Editora Globo. Finalmente,
Jorge Luis Borges – Um ensaio autobiográfico teve sua primeira
edição no jornal norte-americano The New Yorker, em forma de
suplemento, tendo sido escrito originalmente em inglês. É utilizada a
reedição brasileira recente, feita pela Editora Globo (havia uma
edição antiga, publicada juntamente com Elogio da Sombra, sob o
titulo Perfis – já esgotada)
Na tabela abaixo estão listados os textos do corpus, com o
volume em que se inserem na publicação definitiva e com o ano
original de publicação:
N º
1
2
3
4
5
Título
Sala vacía
El espejo
Animais dos Espelhos
Los espejos velados
El espejo de los enigmas
Livro
Fervor de Buenos Aires
Historia de la noche
Livro dos seres imaginários
El hacedor
Otras inquisiciones
Ano
1923
1977
1974
1960
1952
162
As opções epistêmico-metodológicas já foram detalhadas nos
capítulos anteriores, mas cabe ressaltar um aspecto. A proposta
deste trabalho é a de, através dos textos literários selecionados,
empreender uma análise do ponto de vista da AD, considerando as
condições
de
produção
dos
discursos
que
circunscrevem
a
materialização em textos escritos, de gênero literário, buscando os
indícios dos silêncios.
4.2 – Textos analisados
4.2.1 – Sala vacía
Este poema de Borges faz parte do livro “Fervor de Buenos
Aires”,
uma
de
suas
primeiras
obras
publicadas.
A
temática
compreende basicamente o tempo perdido, a memória de um passado
irresgatável, testemunhado pelos móveis e objetos de uma sala vazia.
Uma estrofe interessa particularmente à nossa análise:
Los daguerreotipos
mienten su falsa cercanía
de tiempo detenido en un espejo
y ante nuestro examen se pierden
como fechas inútiles
de borrosos aniversarios
Aqui
o
enunciador
alude
à
questão
da
representação
fotográfica. Um primeiro elemento a chamar a atenção é o verbo
163
“mentir”.
Filosoficamente
os
problemas
ligados
à
representação
sempre estiveram diretamente relacionados à noção de verdade.
Pode-se afirmar, de maneira breve, que a linha epistemológica que
tem mantido a hegemonia no pensamento ocidental é exatamente
aquela
que
postula
a
existência
de
uma
verdade
atrás
da
representação da linguagem e do próprio mundo. Platão foi um dos
maiores expoentes dessa concepção idealista, mas não faltaram
representantes que dessem continuidade ou que, de uma forma ou de
outra,
reafirmassem,
com
pequenas
alterações,
tal
escolha
filosófica 6 9 .
Nesse sentido, “mentir” poderia ser entendido, a partir desse
ponto de vista, como “dizer algo oposto à verdade”. Tomando-se por
base o quadrado lógico de Aristóteles, surgem questões bastante
complexas
que
escapariam
propriamente
ao
modelo
proposto.
Simplificando um pouco a discussão, a natureza dessa complexidade
e extrapolação reside no ato de enunciação. O modelo aristotélico
permite, em princípio, verificar a falsidade ou veracidade de uma
proposição, mas não a intenção e/ou efeito de quem a enunciou.
Assim, a uma proposição tal como “a fotografia é mentirosa”,
podem-se elencar contextos que nos levariam (ou não) a uma
conclusão válida, sem contrariar a coerência interna do sistema. O
problema (e que representa a grande crítica ao modelo) é que mesmo
69
Não é intenção deste trabalho enumerar esses representantes. De um modo geral, há uma tendência a se
identificarem as perspectivas idealistas com a tradição platoniana.
164
diante de um silogismo impecável, não se pode deixar de admitir que
só se chega a uma dedução pela soma (ou combinação) de um
apanhado de induções. Ou seja: é o conhecimento de mundo do
sujeito que torna possível uma generalização ampla o bastante para
depois ser cotejada com a realidade – mesmo que como exercício
lógico - (eis aí outra atividade interpretativa do sujeito) e verificada a
falsidade
ou
não
da
proposição.
Mas
mesmo
que
isso
fosse
devidamente equacionado, não resolveria totalmente o problema:
mentir, semanticamente, não pressupõe uma atitude enunciativa, uma
intenção de proferir algo que, transformado em proposição, seja
verdadeiro ou falso ?
A semiótica greimasiana trata a questão por outro enfoque.
Dessa perspectiva, não se está diante da verdade/falsidade, mas da
veridicção. Sucintamente, no jogo dos papéis actanciais, o sujeito, a
partir de uma competência (querer e/ou poder e/ou saber-fazer) no
plano
narrativo
desempenha
uma
simulação,
algo
que
imita
a
realidade, que “parece, mas efetivamente não é.” Estabelece-se,
portanto, uma relação entre o ser e o parecer, que fica melhor
compreendida no quadrado semiótico 7 0 :
70
Greimas (1977:184)
165
VERDADEIRO
PARECER
SER
R
SEGREDO
Não-parecer
MENTIRA
NÃO-SER
FALSO
Gráfico 4
Nesse referencial a mentira seria, portanto, a conjunção entre o
parecer e o não-ser. Para a análise das questões pretendidas nesta
tese este aspecto é significativo. Ou seja, do ponto de vista do
quadrado semiótico, as fotografias mentem porque o que nelas
parece ser, na verdade não é. Tal como os espelhos, a fotografia
encerra uma metáfora da representação. Uma foto nada mais é do
que a captação, por parte de uma película sensível quimicamente de
uma emissão de luz que, projetada sobre um corpo, reflete e marca
tal reflexo na superfície do negativo. Este negativo, por sua vez,
devidamente tratado, imprime sobre a superfície de um papel especial
(celulóide, basicamente) o reverso da imagem contida nele, negativo.
166
Enquanto processo, não passa de um jogo de espelhos, pois, na
verdade, o que fica no papel não é o objeto, mas a luz que se
deformou ao incidir sobre ele, a representação reversa dessa luz,
convertida novamente no oposto desse reverso para gerar o positivo,
empiricamente identificado como a foto comum.
O poema menciona que as fotografias mentem
a respeito
exatamente de sua proximidade (falsa, explicitamente assumida pelo
enunciador) não com a realidade em si, mas com algo muito mais
sutil. O que é mentirosa é a falsa proximidade “de tempo que se
detém em um espelho”.
Note-se, inicialmente, o jogo de espelhos entre o verbo mentir e
o adjetivo “falsa”. Ao dizer “mente a falsa proximidade”, por um
princípio lógico elementar, subentende-se uma dupla negação, o que
insinua uma afirmação. Mentir a falsa proximidade pode ser lido como
“afirmar a proximidade”. A questão relevante aqui, e que transcende a
lógica clássica, é a atitude enunciativa. Num ato de enunciação, o
enunciador disse a palavra “mentir” e, ao fazê-lo, comprometeu-se
com essa opção. Ao se referir ao jogo de espelhos da representação,
o enunciador cria exatamente esse jogo.
Mais ainda: o poema continua, referindo-se ao espelho. Assume
que o processo de representação da fotografia não só é como um
jogo de espelhos, mas que procede como o espelho . Mente para
denunciar a mentira. Reduplica o avesso do reverso do reflexo. No
entanto a metáfora aprofunda-se em complexidade: não é a realidade
167
em si, refletida e reduplicada na fotografia ou no espelho; é o tempo.
Tempo, pelo menos numa tradição pós cartesiana, é movimento: do
presente que se torna passado, do futuro que se torna presente.
Outras direções também são possíveis (passado para o presente,
presente para o futuro), mas explicitam demasiadamente a atividade
interpretativa. Pensar o passado é, de algum modo, conferir ao
presente que já se perdeu uma organização da memória, do registro e
do que merece emergir do silêncio da ausência para a presença dos
ritos vivificadores do grupo.
Neste ponto, podem-se começar a perceber alguns indícios do
movimento dos sentidos empreendido no interior do silêncio . No
Capítulo 1 desta tese propõe-se a metáfora do espelho
como
sinalizador do movimento dos sentidos. Estabelece-se um paralelo
entre a velocidade da luz que reflete sobre um corpo e “viaja” até a
superfície do espelho para ser outro reflexo que atingirá o olho. O
quadrado semiótico mencionado anteriormente pode ser uma das
ilustrações visuais desse espelhamento.
Pensando-se na questão da representação, tratada pelo trecho
analisado
do
representação)
poema,
vem
pode-se
a
ser
(a
entender
própria
que
o
que
representação)
parece
(a
enquanto
performativo. Ou seja, a mentira da representação expõe-se como
mentira ao dizer, no complexo mecanismo da negação, o contrário do
que diz. E o que não é (tudo aquilo que a representação não é) deixa
168
de parecer (não parece ser) representação no jogo da simulação, na
veridicção.
Nesse
caso,
admitido
esse
complexo
raciocínio
dialético,
haveria um espelhamento da mentira, que se transformaria em
segredo (ser e não-parecer). O segredo, enquanto ausência, é
silêncio. E a própria justaposição de um processo a outro é silêncio
enquanto excesso.
Tomando-se uma perspectiva da AD, estabelece-se relação com
o conceito de interdiscurso, já mencionado na introdução deste
trabalho. Quando Courtine & Marandin dizem que uma formação
discursiva alude a seu exterior e que tendem a se redefinir, tais
autores
apontam
subjacentes,
não
inerentes
só
às
a
lembrança
FDs,
mas
dos
próprios
também
o
elementos,
apagamento,
esquecimento e denegação como fatores (re)organizadores no interior
do interdiscurso.
De alguma forma, portanto, o silêncio é fundamental, não só
porque é
espaço de apagamento (seja por falta, seja por excesso),
necessário à reconfiguração no interior do interdiscurso. Mais do que
isso, é uma das vozes inscritas no dialogismo da linguagem, é
condição de alteridade entre os dizeres, as formas de dizer (ou nãodizer), entre os efeitos desse intervalo entre dizer e não-dizer. É o
moto contínuo entre posições enunciativas, lugares discursivos. É
nesse jogo de cabra-cega que o sujeito interpela seu outro como um
reflexo desdobrado, como imagem que parece ser a sua. Imagem que
169
muda a cada enunciação, mas cuja incessante mutabilidade oculta-se
nos apagamentos e vozerios que permitem a ilusão de unicidade.
A
cisão
do
sujeito
disfarça-se
atrás
da
máscara
da
representação ritual do discurso, dos liames que o congregam não na
fixidez das formações discursivas, mas no intervalo entre elas .
Pode-se aludir à metáfora básica dessa análise, dizendo que não é o
movimento da luz que se constitui em silêncio, mas as condições de
percepção do olhar.
É o olhar, necessariamente despreparado para a estonteante
multiplicidade (velocidade ?) da incompletude que “confia” no reflexo
como “verdade”, como “realidade em si”. A mentira transforma-se em
segredo não porque a fotografia “pretenda mentir”, mas porque trai
uma direção do olhar, disfarçada de representação fiel. Mas mesmo
essa percepção do sujeito não deixa de ser um simulacro.
As alusões do poema borgeano vão além das complexas
questões da negação: adentram a denegação, na qual a voz que nega
se acotovela com outra que desconfia da própria negação.
O enunciador mergulha ainda mais: todo esse jogo de espelhos
e
de
silêncios
ocorre
dentro
da
interpretação
(“ante
nuestro
examen”). Outra relação especular ocorre a partir da conjunção “y”.
Se já é débil e incerta toda e qualquer representação da fotografia,
em sua semelhança com os espelhos, tal aparência de representação
perde-se irremediavelmente diante de nossa tentativa de reflexão (no
sentido de pensar sobre) acerca do próprio processo. No poema a
170
ambigüidade ocorre com a palavra “examen”. Ela pode ser entendida
tanto no sentido de análise feita pelo sujeito, quanto no de uma
prova, um teste sobre nossa função dentro da representação da
realidade.
Diante desse intrincado labirinto de espelhos e de silêncios, o
próprio suporte físico se descaracteriza (note-se que a concordância
verbal de “se pierden” é estabelecida com “los daguerreotipos”),
portanto,
numa
referência
ao
próprio
objeto
da
representação.
Perder-se, aqui, também assume vários sentidos: o de esvanecer-se,
mas também o de deixar de ter uma função. O primeiro, embora
menos indiciado, pode ser estabelecido se se pensar na comparação
seguinte, com “borrosos aniversários”. A imagem, sinestésica, alude
ao ofuscamento da visão, à perda dos contornos.
Perder-se, neste contexto, significa também silenciar. Sem esse
silêncio igualmente constitutivo, a consciência do sujeito como eixo 7 1
do dizer pulverizar-se-ia no vozerio da heterogeneidade. Claro que os
silêncios também são heterogêneos. Mas haveria, inclusive, um
silêncio sobre o silêncio apagando até a imagem dessa pluralidade.
71
Prefere-se, aqui, “eixo” a “centro”. Desse ponto de vista, a ilusão necessária do sujeito, discutida por
Pêcheux, poderia ser vista não necessariamente como um centramento do mesmo, no sentido de achar-se
“centro” e “origem” do dizer, mas como um eixo organizador, no sentido de que os dizeres deveriam passar
por seu olhar (do sujeito). Acreditamos que epistemologicamente tal diferença constitua-se como modelo
mais adequado para interpretar contextos nos quais o sujeito declara algum grau de consciência do processo
de interpelação ideológica. Ou seja: mesmo assumindo-se como não-fonte e não-origem do dizer, ele se
apropria de pré-construídos de diferentes FDs obrigando o Outro, no jogo enunciativo, a passar por suas
trilhas (dele, sujeito).
171
O próprio
dificuldade
anseio
adicional
de
perceber
bastante
o
movimento
arriscada
para
resulta
o
olhar.
numa
Na
representação fotográfica isso pode ser metaforizado pelas fotos com
exposição longa, como a de automóveis, à noite, numa auto-estrada.
As luzes aparecem como rastros disformes e uma das inquietações
de um observador da fotografia pode se traduzir da seguinte forma:
como posso saber se essa luz arrastada de um farol ou de uma
lanterna traseira pertence a esse carro, retratado numa foto, ou a
outro que, em seu movimento, não deixou senão um fragmento desse
rastro de luz, mas que enquanto corpo, objeto, ficou para além da
representação ? 7 2
A própria questão dos limites de uma fotografia (como a dos
espelhos, das telas de cinema e do próprio ângulo possível do olhar)
estabelece uma interioridade e uma exterioridade que funcionam
como espaços de alteridade. Pode-se dizer que existem silêncios
qualitativamente diferentes: uns, interiores ao frame 7 3 fotográfico e
outros, externos.
A relação entre esses tipos de silêncio pode ser percebida no
filme Blade Runner, de Ridley Scott, que faz uma jogo discursivo com
esses
limites
da
moldura
do
olhar.
O
detetive
Rick
Deckard,
interpretado por Harrison Ford, toma uma foto e, colocando-a num
aparelho, capta lugares ocultos, não retratados na imagem original,
72
Cf. nos Anexos, uma foto de exposição longa (domínio público) que exemplifica essa questão dos traços.
73
Termo tomado aqui do jargão fotográfico.
172
em ângulos impossíveis para o observador que tirou a fotografia 7 4 .
São espaços silenciados, mas que ao serem expostos, não deixam de
silenciar aquele primeiro, representado no papel fotográfico. Mais
importante ainda: ao se contraporem, silenciam, enquanto enigma, o
próprio processo de representação da fotografia. O que é captar a
realidade ? Até onde pode-se extrair de um olhar aquilo que ele não
vê ? Somente se for um olhar-outro. Mas até que ponto se pode
conviver impunemente com olhares que vêem de onde não se enxerga
como sujeitos ? Não se pode, sob a pena da cegueira ou da loucura.
Enxergar pressupõe determinar um ponto de vista e reenviar os
demais ao coro de silêncios em que a linguagem se sustenta.
Mas o trecho analisado do poema de Borges ainda estabelece
outro jogo especular e paradoxal com o tempo. O tempo, detido nas
fotos, como nos espelhos é igualmente o tempo inútil de datas, dos
“borrosos aniversarios”. Datas são cíclicas, são retomadas e se assim
o são, pressupõem uma memória que estabeleça a sua circularidade
e um alguém que se lembre. Ou o tempo é cíclico e não se detém,
inalterado, nas fotos e nos espelhos, ou é inerte e não se submete
aos engenhos da memória para que seja cíclico.
74
Já existe, na Internet, um recurso que simula esse efeito, recurso esse chamado de Foto 360°. Ao arrastar-se
o mouse, pode-se descrever uma trajetória de 360° na paisagem escolhida. Claro que este recurso difere ainda
do artifício ficcional explorado no filme Blade Runner, pois neste último não havia ângulo interditado à
redefinição do olhar, podendo este adentrar espaços ocultos atrás de paredes, por exemplo (o recurso da foto
360° pode ser encontrado em sites diversos, como do do Masp e em www.paraty.com.br).
173
Mas se tudo isso pode ser dito a respeito da fotografia, cabe
dizer que não se trata da representação fotográfica em si, mas de
uma de suas formas. O poema utiliza a palavra “ daguerreotipos”,
referência
às
primeiras
técnicas
de
representação
fotográfica,
desenvolvida por Daguèrre. Esta técnica consiste em imprimir a
imagem sobre uma superfície metálica (posteriormente de outros
materiais, como o vidro). O suporte físico da imagem conta muito
como representação da representação. A imagem não está entregue à
volatilidade do papel, mas à permanência do metal enquanto ícone da
presença dessa mesma representação.
Por
isso
mesmo,
é,
simultaneamente,
segredo
e
mentira:
segredo, porque esconde os processos pelos quais a interpretação
entranhou-se nessa malha de silêncios a que a veridicção ou o efeito
de realidade a submeteu; mentira, porque nem o papel, nem muito
menos o metal significam pelo que são enquanto suportes físicos da
representação, mas sim pelos efeitos que provocam, pelas imagens
que suscitam, enfim, pelas interpretações que desencadeiam e que,
silenciadas, simulam ser reflexos da realidade... como se os reflexos
fossem
imunes
à
historicidade
dos
lugares
enunciativos
que
percorreram e que distorceram sua trajetória.
O poema de Borges participa plenamente de todos esses
embustes: na sala vazia, há vozes e luzes. Em diferentes condições,
ambas se contrapõem e se silenciam. As vozes, porque são excesso
que preenche a sala antes da luz do dia apagá-las; a luz, porque
174
remete as vozes ao espaço da ausência, colocando-se também como
excesso que as sobrepõe.
4.2.2 – El espejo
Este poema encontra-se no livro “Historia de la noche”.
El espejo
Yo, de niño, temía que el espejo
Me mostrara otra cara o una ciega
Máscara impersonal que ocultaría
Algo sin duda atroz. Temí asimismo
Que el silencioso tiempo del espejo
Se desviara del curso cotidiano
De las horas del hombre y hospedara
En su vago confín imaginario
Seres y formas y colores nuevos.
(A nadie se lo dije; el niño es tímido.)
Yo temo ahora que el espejo encierre
El verdadero rostro de mi alma,
Lastimada de sombras y de culpas,
El que Dios ve y acaso ven los hombres.
O poema acima começa com um pronome de primeira pessoa.
Além de remeter à enunciação, ocorre algo digno de atenção, se se
pensar que um poema não prescinde de alguma recitação, da
sonoridade. Enunciado pelo leitor, o pronome passa a referir-se a um
outro enunciador, que recoloca a alteridade, deslocando as posições
do Eu e do Outro.
Essa posição enunciativa, introduzida pelo pronome de primeira
pessoa
é,
na
verdade,
a
voz
da
memória,
pois
a
expressão
175
intercalada “de niño” e a forma do verbo “temía”, no passado,
induzem ao efeito de que fala-se de um temor que não é o atual (o
que vai se confirmar num segundo momento do poema, quando outro
pronome de primeira pessoa, desta vez sucedido por um verbo no
presente – “yo temo ahora” - , refere-se aos temores atuais do
enunciador).
Esse
temor
proporcionada
passado
pelo
tem
espelho.
O
a
ver
com
enunciador
a
representação
relembra-se
criança,
temendo, inicialmente, que o reflexo no espelho não fosse o seu. Há
aqui um diálogo silencioso desse temor com a concepção de que o
espelho reflete a imagem de quem olha para ele. No plano da
memória, é relatada uma espécie de conflito, expresso pelo temor,
que
corresponde
à
ansiedade
gerada
pela
possível
quebra
de
expectativa.
Um pormenor estabelece-se nesse momento. Está-se diante de
uma polifonia. Duas vozes opostas, enunciando-se, embora uma
delas
esteja
implícita:
a
de
que
o
reflexo
do
espelho
deva
corresponder à face de quem o olha (o que fica evidente se se pensar
que só faz sentido o temor de que o espelho não reflita a própria face
se se souber que ele possa refleti-la). O temor parece equivaler ao
mundo da criança; já a expectativa, corresponde ou à vivência da
criança de se acostumar com a própria imagem refletida no espelho,
ou à incorporação das concepções adultas de que é isso que
realmente acontece na representação especular.
176
Do ponto de vista da construção da subjetividade, pode-se dizer
que os dois processos são equivalentes. Tal discussão pode ser
melhor detalhada se for utilizada a discussão de Lacan sobre a
criança e o estádio do espelho no texto “O estádio do espelho como
formador da função do eu” 7 5 :
Esse acontecimento pode produzir-se, como
sabemos desde Baldwin, a partir da idade de
seis meses, e sua repetição muitas vezes
deteve nossa meditação ante o espetáculo
cativante de um bebê que, diante do espelho,
ainda sem ter o controle da marcha ou sequer
da postura ereta, mas totalmente estreitado por
algum suporte humano ou artificial (...),
supera, numa azáfama jubilatória, os entraves
desse apoio, para sustentar sua postura numa
posição mais ou menos inclinada e resgatar,
para fixá-lo, um aspecto instantâneo da
imagem. (Lacan,1998:97)
Com essa descrição inicial, Lacan discute os primórdios da
constituição
do
sujeito,
e
basicamente,
como
essa
se
dá
inevitavelmente através do olhar do Outro. Aspecto mais interessante
da criança diante de sua própria imagem no espelho é que, num
primeiro momento o bebê não se reconhece refletido. E, mais
importante ainda, quando se reconhece, é precisamente porque
identifica-se com o olhar do adulto, para quem aquela imagem
designa a criança. Obviamente, há a relação com o mecanismo de
75
Lacan (1998)
177
nomeação atribuído ao bebê. Expressões do adulto como “Olha o
nenê”, “Cadê fulano (nome do bebê) ? Tá ali...” provavelmente têm
influência decisiva nessa trajetória.
Para que se entenda convenientemente tal trajetória seria
pertinente recordar alguns processos típicos do desenvolvimento
infantil inicial. Lajonquiere (1992) aponta dois momentos prévios a
essa identificação que a criança faz da própria imagem. O primeiro é
o de brincar com uma imagem confusa, um “ser sorridente que tem
ante seus olhos”, brincando de olhá-lo e ser olhado pelos olhos que
vê na superfície do espelho. A confusão estabelece-se principalmente
no que se refere ao olhar/ser olhado, o que corresponde a uma
indiferenciação
um/outro.
Se
se
lembrar
que
as
relações
de
causa/conseqüência e de anterioridade/posterioridade ainda estão
pouco definidas para a criança nesse momento de sua existência, fica
mais fácil compreender como se caracteriza essa confusão: a criança
que bate diz ter sido batida; se ela vê alguém cair, chora (talvez
pensando tratar-se da própria queda).
Já num segundo momento, a criança descobre que o que há no
espelho não se trata de um ser real, mas de uma imagem. Não tenta
agarrar
ou
tocar
tal
imagem.
Esse
momento
é
particularmente
complexo, se se pensar que começa a ocorrer uma distinção entre
“imagem
do
outro”
e
“realidade
do
outro”.
É uma
instauração
simbólica já com um grau de abstração.
178
Em seguida ocorre a identificação dessa imagem do outro
(presente no espelho) com a sua própria. Perceba-se que há também
um espelhamento na própria percepção do eu enquanto sujeito: ao eu
só é possível ver-se como outro. Alie-se a essa circunstância que
essa percepção acontece unicamente porque o olhar do adulto,
enquanto
Outro,
é
que
dirige
o
olhar
da
criança
para
essa
configuração sígnica:
O bebê ‘vê’ sua imagem porque o olhar da mãe
(primeiro outro a encarnar o Outro) dá
sustentação ao acontecimento. A criança ‘se
vê’ através dos olhos da mãe. É como se a
criança dissesse: isso que está aí é o que
vêem os olhos de minha mãe. Porém, o
importante não é o olhar da mãe ou a mãe na
sua dimensão empírica mas o desejo da mãe
que faz as vezes de ‘matriz simbólica’ sobre a
qual se precipita, se atira, se debruça o infans
(Lacan, 1949:87). A criança se prende (agarrase) a essa imagem porque, em última
instância, é assim que se faz objeto do desejo
materno.(...) (Lajonquiere, 167-168)
Esse olhar do adulto traz um desejo anterior à existência da
criança como sujeito e que representa os desejos a respeito dela (que
seja assim, que aja desta ou daquela maneira, que queira ser isso ou
aquilo profissionalmente, que professe tal ou qual fé ou opção
política, que se case, que tenha filhos etc.). A esse respeito,
Lajonquiere diz:
179
O recém-nascido, como dissemos, já tem um
lugar reservado numa trama desiderativa que
começou a se tecer quem sabe quando. A
trama é infinita e onipresente na medida em
que o desejo não é (depois de Hegel) desejo
de nenhum objeto natural suscetível de ser
achado com maior ou menor sorte; o desejo
deseja o desejo do outro enquanto outro
desejante. Em outras palavras, o objeto do
desejo é o desejo do outro , que é mais ou
menos o mesmo que dizer que cada um de nós
deseja ser desejado pelo outro, exatamente
como supomos que o fomos naquela mítica
oportunidade. (...) (Lajonquiere, ibidem, 157)
Entre
os
muitos
efeitos
que
essa
aparentemente
simples
identificação pode ter, ressalta-se a criação de laços simbólicos muito
profundos entre a criança e o adulto, atribuindo a ela desejos que são
da comunidade que a cerca. Esses desejos constituirão sentidos que
serão instauradores de um espaço de tensão simbólica entre o
indivíduo (a partir do momento em que a criança se reconhece como
um, como ser indiviso) e essa comunidade inicial, bem como outras
comunidades com as quais o indivíduo irá se deparar no decorrer de
sua existência. A multiplicidade de sentidos a que ele estará exposto
e a maneira através da qual cada sentido será naturalizado vai
instaurá-lo na rede do interdiscurso 7 6 . E isso só se torna possível
porque instauram-se regras sobre o dizer (e o não dizer), constituindo
as formações (discursivas, ideológicas), as relações entre elas, e o
sujeito que se constitui nesse espaço dialético. Lacan , ao tratar de
implicações do estádio do espelho aponta algo nessa direção:
76
Através de interdições, dos espaços de denegação e apagamento necessários não só à constituição do
sujeito, mas também de sua filiação a FSs, FIs e FDs.
180
É esse momento que decisivamente faz todo o
saber humano bascular para a mediatização
pelo desejo do outro, constituir seus objetos
numa equivalência abstrata pela concorrência
de outrem, e que faz do [eu] esse aparelho
para o qual qualquer impulso dos instintos será
um perigo, ainda que corresponda a uma
maturação natural – passando desde então a
própria normalização dessa maturação a
depender, no homem, de uma intermediação
cultural (...)(Lacan, 1998:101-102)
Voltando ao poema borgeano, pode-se perceber a polifonia
expressa no temor de que o espelho mostrasse ao enunciador outra
face que não fosse a sua. Obviamente, esse ponto de vista só pode
ser a de quem já passou pelo estádio do espelho e que já se
identificou enquanto imagem a si próprio. Cabe ressaltar, ainda, que
a utilização do pronome “ otra”, na expressão “otra cara” é mais
reveladora dessa polifonia. Pode-se subentender que essa
“outra”
opõe-se a uma face conhecida, esperada. São, portanto, duas vozes,
dois pontos de vista.
181
O temor seguinte também é digno de análise. O enunciador
teme que o espelho mostre outra face que não a sua própria 7 7 ou
“una ciega máscara impersonal”. Alude aqui a uma série de questões
muito
relacionadas
à
constituição
da
subjetividade.
A
palavra
máscara faz alusão ao teatro grego, com a máscara que expressa a
personagem, a persona. Nesse sentido o sintagma nominal “ máscara
impersonal” constitui uma antítese, uma contradição e até uma
ironia 7 8 .
No entanto, cria um espaço do dizer, e entrediz algo que nega
e/ou silencia a individualidade e poderia, talvez, ser enunciado da
seguinte forma: o que vejo no espelho (supondo que acredite que o
espelho seja uma representação fiel) é, ao contrário de uma imagem
que me distinga das outras pessoas, uma imagem que me torne
exatamente igual a todas elas. O que me torna indivíduo é meramente
minha ilusão de não enxergar em mim o que enxergo em todos os
outros.
Essa constatação implícita é sugerida pela continuidade da
expressão “máscara impersonal”: “que ocultaría algo sin duda atroz”.
A criança, ainda não individuada, ainda não sujeito do discurso, não
77
No poema Los espejos velados, publicado em El hacedor, Jorge Luís Borges explora outra possibilidade
semelhante. Relata uma história em que uma moça, conhecida sua, depois de saber do medo de Borges na
infância de que os espelhos não refletissem seu próprio rosto, anos mais tarde enlouquece e os espelhos da
casa dela têm que se manter velados, pois a moça alega que, por alguma conjuração mágica, ela vê nos
espelhos o reflexo de Borges e não o dela própria. No interior do Brasil, em algumas regiões rurais, quando
morria alguém era costume cobrir os espelhos para que a alma pudesse ir em paz e não ficasse aprisionada
neles.
78
Esta antítese acentua-se ainda mais se considerarmos que, embora a máscara recubra a face, atribuindo
outro papel ao sujeito, ele possui os orifícios dos olhos, por onde o olhar deste mesmo sujeito encontra um
espaço de constituição próprio (baseado em comunicação pessoal de Nascimento, E. 2001).
182
pode ter tais tipos de temores porque ainda não se julga uma
unidade. Mergulhada no inconsciente, ela ainda não opera com
nenhuma diferenciação convencional entre Eu e Outro. Não foi capaz,
até esse momento, de olhar através do olhar do adulto e ver-se como
objeto do desejo.
Tal discurso, esse dos temores sobre a identidade só faz
sentido se localizado num lugar enunciativo pertencente ao adulto
que
após ter passado pela ilusão da identidade, começa a refletir
polifonicamente sobre a validade dessa crença. De alguma forma,
esse adulto reincorpora a confusão inicial, indiferenciada, da criança
pré estádio do espelho e a faz dialogar com essa movediça e frágil
certeza de identidade. Por isso, ocorre a polifonia, a heterogeneidade
que constitui sua dúvida e que subjaz a ela e o silêncio do adulto num
dizer atribuído à criança (mesmo que na memória do adulto).
A partir da metade do quarto verso, o
enunciador teme que o
tempo do espelho não seja o mesmo do cotidiano e que este último
hospede seres, formas e cores novas. Aqui se dá um jogo de
espelhos. Se para constituir-se como Eu, o futuro indivíduo necessita
de olhar com o olhar do Outro para ver-se desse lugar discursivo, à
medida que o Eu teme o novo (uma das metáforas do Outro), por um
jogo especular, pode-se dizer que ele teme constituir-se como Eu. É a
própria subjetividade que se esmigalha nesse ponto.
Mas há uma pista que não deve ser desprezada e que constitui
um verso intermediário desse trecho analisado: “en su vago confín
183
imaginario” (referindo-se ao espelho). Ou seja: essa hospedagem do
novo, do Outro, esse tempo diferente e assustador determina-se em
grande parte pela natureza dos limites e fronteiras do espelho como
mecanismo
de
representação.
Seus
confins
são
vagos
e
–
imaginários. Se se tomar o conceito de imaginário, tal como o
apresentado por Laplantine & Trindade, a partir de uma concepção
bachelardiana, de que
O processo do imaginário constitui-se da
relação entre o sujeito e o objeto que percorre
desde o real, que aparece ao sujeito figurado
em imagens, até a representação possível do
real.(...) (1997: 27),
há a necessidade de se aceitar um sujeito que objetifica algo como
exterior a si mesmo, ainda que essa exterioridade seja o espaço
necessário para que ele se reconheça como sujeito. No caso das
fronteiras do espelho, elas não existiriam sem o olhar de alguém que
as imaginasse.
Um
exemplo
aparentemente
absurdo
seria
a
questão
da
moldura. Supondo-se um espelho com moldura, de onde vem a
certeza de que a moldura está fora da representação especular ? Se
isso pode parecer absurdo ao se pensar em molduras de materiais
não
refletores
de
luz,
que
tal
considerarem-se
superfícies
especulares metálicas, cujos contornos, também metálicos, refletem
de maneira muito mais distorcida as imagens ? Se o sujeito for
184
levado, de alguma maneira a considerar somente o que está refletido
no interior do espelho – intramoldura – não será exatamente em
função de uma imagem
(também imagem, note-se, só que do ponto
de vista psíquico) do que seja uma representação especular ?
Nesse
sentido,
os
contornos
do
espelho
serão
sempre
imaginários, pelo menos em dois sentidos que esta última palavra
pode apresentar. Num primeiro sentido, de imaginados por alguém, o
sentido de contornos torna-se mais abstrato e refere-se aos limites do
processo de representação da realidade. Existe uma fronteira vertical
entre
a
realidade
aquém
e
a
realidade
além
do
espelho;
da
tridimensionalidade do real para a bidimensionalidade da imagem
especular 7 9 .
Um outro sentido de imaginário (talvez fosse mais criterioso
chamar de imagético), teria a ver com as imagens ópticas. Do ponto
de vista físico, a extensão da superfície do espelho determinará o
espaço possível de reflexão/refração da luz incidente sobre um corpo.
Os limites estariam condicionados, numa primeira instância, ao
tamanho,
à
extensão
do
suporte.
Todavia,
como
no
processo
especular o olhar é fundamental para que ele seja conhecido, a
extensão do suporte é limitada pelo horizonte desse olhar.
Do ponto de vista físico, ocorre sempre algum grau de desvio
quando há um processo de reflexão/refração da luz, como o que
79
Na verdade, a bidimensionalidade refere-se mais às características ópticas do olho humano do que
propriamente ao suporte físico ou formato do espelho. Poderíamos conceber um espelho tridimensional, mas
não podemos nos esquecer que, para nossos olhos, a percepção dessa tridimensionalidade é um artifício para
superar o processo bidimensional de comunicação de impulsos nervosos-luminosos entre o olho e o cérebro.
185
ocorre nas imagens refletidas em espelhos. No âmbito discursivo,
pode-se dizer que o imaginário representa essa distorção, na medida
em que, nesse movimento inevitavelmente interdependente entre o
sujeito e o objeto na interação, a representação do real está
condicionada à esfera do possível. Isso significa que ela depende das
categorias de mundo que a cultura disponibiliza, e ao recorte entre o
que é possível dizer e silenciar no entrecruzamento de posições
enunciativas.
O verso seguinte, intermediário entre o tempo da memória e a
percepção atual refere-se igualmente ao silêncio: o menino – lembrase o homem adulto – não disse nada a ninguém, pois o menino é
tímido). Há um silêncio pela ausência (o não dizer) que sobrepõe (por
excesso) a polissemia, a multiplicidade de sentidos que esses
temores todos assumem. Mas há alguma coisa que se reveste de um
silêncio mais profundo. Um silêncio que se concretiza na categoria
mentira, do quadrado semiótico (não ser/parecer). Esse silêncio
refere-se ao fato de que é falso afirmar-se que isso não foi dito. Se
se aceita que o inconsciente é constitutivamente heterogêneo, de que
(...) tudo aquilo que aninha-se no sujeito, em
última instância, é do Outro. Neste sentido,
dissemos, precisamente, que o desejo era
causado pelo desejo do Outro. Nesse mesmo
sentido, deve-se agora entender que as
pulsões, que perambulam tão silenciosas como
infatigáveis no sujeito, são o efeito do
pulsionar do Outro. O Outro é aquele que
186
sustenta,
pulsiona,
o
sujeito
a
avançando. (Lajonquiere, ibidem, 159),
viver
para constituir-se como sujeito, o menino teve de desejar esse olharOutro que o via como tal. Para passar a existir como sujeito, em
outras palavras, ele teve que nascer desse diálogo contraditório,
cindido entre o indiferenciado e o pré-construído pelo desejo de sua
comunidade, de sua posição inicial no jogo interdiscursivo. Esse
silêncio é da natureza dos esquecimentos necessários apontados por
Pêcheux. É silêncio constitutivo, originário do inconsciente, advindo
da voz do Outro, imbricada na própria voz do Eu.
Outro silêncio exposto neste verso refere-se a um recurso
poético/literário
bastante
utilizado
na
criação
borgeana:
o
do
simulacro, do engodo. Novamente a mentira, no quadrado semiótico.
A timidez do menino, universalizada pelo presente do indicativo é um
pretexto para fazer acreditar que isso não foi dito. Mas o que se
discute que está silenciado aqui é que fora desse diálogo constitutivo
entre Eu e o Outro, isso não foi dito a ninguém naquele tempo de
menino. Porém, agora, no tempo do homem, a voz mesma do menino,
igualmente imbricada na voz da memória do homem, diz em alto e
bom som isso no poema. Senão, por que escrever um texto ? Por que
publicá-lo ? Há um interlocutor e o tipo de interlocutor visado não é
unicamente um eu interior.
187
Finalmente, os quatro últimos versos tratam do tempo atual, do
homem que se analisa através de suas concepções atuais. O primeiro
indício disso aparece no uso do dêitico “ahora”, que alude à
circunstância de enunciação.
Essas concepções do homem adulto também refletem temores.
O principal deles, segundo o poema, é que o espelho encerre “el
verdadero rostro de mi alma ”. O adjetivo merece uma atenção
especial. Aqui ocorre novamente polifonia e silenciamento. Dizer
“verdadeiro” depois de ter mencionado “face” anteriormente, significa
que há uma (de)negação das concepções anteriores, as da criança
que a memória recria. O silenciamento ocorre por sobreposição,
exatamente dessas concepções anteriores. Ao ler “verdadeiro” o leitor
esperará que agora sim seja mencionado qual é o tipo de rosto da
alma do enunciador.
Tal natureza do rosto fica evidenciada no verso final: é o que
Deus vê e, que por acaso, os homens também vêem. Curioso jogo de
espelhos (labirinto seria um termo mais borgeano e apropriado). Se
como criança havia um temor de que o rosto (cara) fosse diferente da
esperada (daquela que o sujeito acredita ser a sua própria, por ser
diferente das demais), como adulto, há o temor de que aquela
representação fiel ansiada pela criança seja tão fiel ao ponto de
refletir não só a face, mas a alma. No início do poema a palavra
utilizada é “cara”. Aqui é “rostro de mi alma”.
188
Essa alma, no entanto, extrapola o domínio exclusivo do sujeito.
Segundo o enunciador, em suas concepções atuais, esse rosto da
alma é visto por Deus e – talvez esse seja um temor ainda maior,
– pelos homens. O sentido entredito de espelho aqui é metafísico: o
processo de representação não dá conta somente da realidade
material, mas do imaginário, ou seja, da maneira como a realidade é
sentida.
O grande temor do enunciador é que essa maneira através da
qual sua vida é avaliada pelo seu Eu (ou mais propriamente, pelo
Outro-Eu que dialogicamente está dentro de si), seja representável
para os outros, externos ao sujeito. E uma das razões para isso,
sugerida pela presença do penúltimo verso, tem a ver com a questão
da subjetividade, mas basicamente, também com a historicidade. É a
alma, “lastimada de sombras y de culpas” que o enunciador teme ser
reconhecida na face do espelho. E ser reconhecida na face do
espelho, aqui, significaria apenas evidenciar o que já é uma suspeita,
uma concepção denegada: a de que o Eu é o único que não vê o que
todos os outros vêem (Deus e os homens) 8 0 .
Se
as
silenciamento,
sombras
na
podem
medida
em
ser
que
consideradas
constituem
espaços
de
processos
do
80
Em outro texto, não analisado nesta tese, que é o Epílogo do livro O Fazedor, Borges, no último parágrafo,
utiliza uma concepção semelhante (a de que a face de um Homem é o resultado de suas experiências):
Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo. A lo largo de los años
puebla un espacio com imágenes de provincias, de reinos, de montañas, de
bahias, de naves, de islas, de peces, de habitaciones, de instrumentos, de astros,
de caballos y de personas. Poco antes de morir, descubre que ese paciente
laberinto de lineas traza la imagen de su cara. (1989: 854)
189
inconsciente, irrecuperáveis à consciência do Eu-sujeito (silêncio pela
ausência), as culpas são indícios de heterogeneidade mostrada já
que correspondem a um conflito entre o Eu e o Outro, no interior do
interdiscurso.
O
mais
atroz
agora
não
é
ser
uma
face
sem
individualidade; é saber, de alguma forma, que essa individualidade
não
garante
jamais
um
espaço
demarcado
e
completamente
independente dos outros. Esses outros, presentes no Outro interno, é
que tornam possível a própria ilusão de que sentir-se um seja estar
apartado das partes.
Como o corpo fragmentado do bebê que mal comanda sua
motricidade é antecipado pela visão de uma unicidade desejada pelo
Outro, a reflexão do adulto exibe uma incompletude constitutiva: é o
imaginário que cria recortes, representações possíveis, de onde o
sujeito se diferencia. O que ocorre, porém, é que além de ser espaço
de
silêncio, exatamente
porque
é
ausência,
essa
diferenciação
também é silêncio porque é movimento. Assim como a luz se
movimenta, o olhar, o corpo, o espelho se movimentam e isso implica,
no âmbito dessa metáfora, que os sentidos não estão fixados nem na
memória nem no sujeito. Eles dialogam entre (de)graus, espaços e
tempos do dizer e do silenciar, seja porque mostram uma falta, seja
porque deixam de mostrá-la.
190
4.2.3 – Animais dos Espelhos
Esta narrativa encontra-se no Livro dos Seres Imaginários, obra
que Borges editou em co-autoria com Margarita Guerrero e que se diz
ser um manual que é resultado de uma compilação “dos estranhos
entes que engendrou, ao longo do tempo e do espaço, a fantasia dos
homens.” (Prólogo, XI). No entanto, antes de caracterizar dessa
forma a obra, os autores dizem que o nome do livro
justificaria a inclusão do príncipe Hamlet, do ponto, da
linha, da superfície, do hipercubo, de todas as palavras
genéricas e, talvez, de cada um de nós e da Divindade.
Em suma, de quase todo o universo.
Com esse toque de ironia, os autores insinuam que nossa
própria
discussão
existência faz parte do imaginário. Se se considerar a
sobre
principalmente
a
imaginário
feita
na
análise
respeito
das
categorias
do
de
texto
mundo
anterior,
e
da
representação possível do real a partir delas, a idéia é bastante
provocadora, mas não desprovida de sentido. O que significa que no
contexto dessa obra, o termo imaginário subentende que não permita
ser interpretado como “falso”, mas provoque o leitor para uma forma
de encarar algo de real visto a partir de uma determinada cultura,
ponto(s) de vista diferente(s), categorias de mundo. A narrativa
analisada participa desta provocação.
191
Trata-se, de acordo com diversas fontes citadas no texto, da
crença no Peixe, que faz “parte de um mito mais amplo, referente à
época legendária do Imperador Amarelo.” (p.6)
No interior do mito narra-se que teria havido um tempo primevo
no
qual
o
mundo
dos
homens
e
dos
espelhos
teriam
tido
a
possibilidade de comunicação, podendo as pessoas passarem para o
lado de lá e os seres dos espelhos passarem para o lado dos
homens. Tais seres seriam muito diferentes de nós, não coincidindo
nem os seres, nem as cores, nem as formas. A paz reinante entre os
dois reinos teria sido quebrada no momento em que os seres do
espelho invadiram a Terra. Depois de sangrentas batalhas foram
vencidos
pelas
artes
mágicas
do
Imperador
Amarelo,
que
os
condenou a viverem encarcerados nos espelhos e de “repetir, como
numa espécie de sonho, todos os atos dos homens”.
Esta vitória humana, no entanto, não seria definitiva. Para o
mito,
um
dia
tais
seres
se
livrariam
desse
sortilégio
e
nos
dominariam. Deixariam de ser semelhantes a nós. O primeiro a
despertar seria o Peixe (ou o Tigre, em outra versão). Junto às
criaturas dos espelhos combateriam as da água.
O primeiro aspecto que merece atenção é a introdução da
narrativa do mito propriamente dita. Nela, o narrador relata que numa
obra entitulada Cartas Edificantes e Curiosas, um padre jesuíta
“planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Cantão” e que
“num levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo
192
e
resplandecente
que
ninguém
havia
tocado,
mas
que
muitos
alegavam ter visto no fundo dos espelhos.” (p.6).
A analogia com o estádio do espelho de Lacan chama a
atenção, particularmente em relação ao ver e não tocar a imagem.
Isso corresponde aos estágios da criança frente ao espelho . Ocorre,
porém, nesse caso, que há uma indeterminação se quem alega ter
visto o Peixe não o tocou apenas porque ele seria “um ser fugitivo” ou
porque o viu simplesmente como imagem e não como realidade. A
primeira hipótese parece mais provável no interior do mito, mas de
qualquer forma, nesse aspecto há um silenciamento da narrativa a
respeito disso. Há ainda a expressão “no fundo dos espelhos”, o que
sugere alguma profundidade, volume, tridimensionalidade a eles.
Essas características também sugerem um maior grau de veridicção
aos interlocutores do mito (cf. o conto Pierre Menard, autor del
Quijote).
A narrativa borgeana utiliza essa forma de relato, aproveitandose dos dois tipos fundamentais de silêncio, o por ausência e o por
excesso para criar esse efeito. Assim, a não referência, em momento
algum à palavra superfície (ou equivalente), ao se referir a espelho
instaura
uma
ausência
que
confere
maior
realidade,
maior
profundidade ao conceito espelho, o que é necessário à veridicção.
Além disso, a expressão repetidamente utilizada “fundo dos espelhos”
silencia por excesso qualquer possibilidade de se pensar no espelho
193
como
uma
superfície
plana,
bidimensional
e
meramente
representativa da realidade.
Significativo é o fato de que a invasão da Terra pelos seres dos
espelhos se dê durante a noite, segundo o relato. A noite implica
ausência de luz, substância fundamental para que os espelhos
reflitam a imagem dos corpos. As artes mágicas do Imperador
Amarelo criam no âmbito do mito a explicação para a representação
existente nos espelhos. As imagens vistas num espelho seriam seres
condenados a parecerem conosco, a repetirem cada gesto, cada ato
humano.
Novamente o silêncio. Entre o mito e explicação física da
imagem especular, falta a inversão. A imagem refletida no espelho
não repetirá nunca os atos dos homens, uma vez que, de alguma
forma, através da refração esses atos serão invertidos, distorcidos.
Vale a metáfora para qualquer grau de paráfrase. O seu extremo, a
réplica, no sentido de cópia, não será jamais uma repetição. No
movimento dos sentidos, a
enunciação terá sido outra e, se há
alguma regularidade discursiva possível, pode-se entender que ela
exista
unicamente
no
silenciamento
que
o
sujeito
obriga-se
a
estabelecer com relação às diferenças entre cada enunciação.
A narrativa borgeana
representa
metaenunciativamente esse
processo. Ao fingir meramente relatar o mito, compilar visões de
criaturas imaginárias, o texto silencia que esse relato partirá de um
outro lugar discursivo, estará dialogando com outros discursos,
194
diferentes daqueles em um outro contexto de relato e que esse
diálogo se instaurará desde a perspectiva do espaço de autoria,
quanto do espaço do leitor.
A questão fundamental que se coloca neste caso (e isso é muito
oportuno de se discutir em face de um texto literário) é a do
assujeitamento do sujeito. Seguindo-se a análise sob o mesmo prisma
de Lacan, provavelmente não se escapasse desse conceito. A
criança, como corpo fragmentado de sensações e movimentos de
membros e órgãos, ainda não individuada, estaria, desde antes de
seu nascimento assujeitada à sua cultura, às categorias de mundo,
aos desejos de sua família e comunidade. Sendo assim, ao desejar o
desejo do Outro e constituir-se como sujeito, estaria fadada a um
assujeitamento permanente 8 1 .
No âmbito do silêncio, pode-se imaginar até que ponto o sujeito
pode escolher silenciar. A constitutividade do silêncio não implica
necessariamente sua inconsciência, para que o coro de vozes que
constitui o discurso seja imaginado pelo sujeito como sua própria voz
unicamente ? Se uma formação discursiva implica regras do que deve
e pode (e o que não deve e não pode) ser dito, como pensar o mundo
e dizer algo se essas regras forem violadas ? Se, como sujeito,
alguém
toma
consciência
de
que
dizer
“como
vai”
em
língua
portuguesa é uma fórmula ritual para se cumprimentar o interlocutor e
81
No entanto, pode-se interpretar que análise lacaniana refere-se prioritariamente a um assujeitamento de
origem. Cf. página 190 desta tese.
195
que não corresponde necessariamente a um desejo de se saber como
o interlocutor está realmente passando, será possível a ele ter essa
idéia presente todos os momentos em que cumprimentar alguém, até
o final de sua vida ? Obviamente, não.
Esse esquecimento necessário para que o discurso se produza
é um tipo de silêncio que, para se adaptar uma categoria já proposta
por Orlandi (1992), pode-se chamar de silenciamento. É preciso, no
entanto, avançar um pouco em algumas implicações desse processo.
No início do trabalho foi mencionado que constitutivamente o silêncio
assume um movimento cíclico e complementar que é o de ausência e
o de excesso. Uma questão essencial que precisa ser lembrada é que
esse processo é dialético.
Isso
significa
que
silenciar
por
ausência
propicia
uma
sobreposição da polissemia em relação ao sentido estabelecido num
determinado contexto. Inversamente, silenciar por excesso significa
gerar uma ausência do que não foi dito.
Entre o silêncio e o dizer, pode-se igualmente pensar essa
constitutividade; se o silêncio apaga o dizer (enquanto possibilidade)
o dizer igualmente apaga o silêncio por ausência, mas estabelece o
silêncio por excesso. Como na metáfora do espelho, o sujeito estará
inexoravelmente impedido de ver o movimento da luz que incide sobre
o corpo, reflete na superfície do espelho e reflete sobre o olho (sem
contar
que
o
estímulo
luminoso
vai
até
o
cérebro,
transformado/representado em estímulo elétrico/nervoso e volta para
196
o olho), assim como está impedido de ver o movimento dos sentidos
em toda a sua extensão.
Todavia, se alguém piscar um facho de luz diante de um
espelho uma pessoa poderá ser capaz de perceber de onde partiu a
luz, percebê-la refletir sobre a superfície do espelho e entender que
houve um movimento. O que talvez jamais seja possível, com relação
aos movimentos dos sentidos, é
1) ter consciência de todos eles
2) ter consciência simultânea deles
3) ter somente consciência deles (negando-se que haja outras
relações
mais
amplas
das
quais
esse
movimento
dos
sentidos participa)
4) ter consciência deles sem a presença do olhar do Outro (é
a outra direção do olhar que vai acusar a incompletude do
olhar do sujeito)
Como espaço, o movimento dos sentidos é multifacetado. Por
um lado é um gradiente de possibilidades entre formas de dizer, entre
formas de silenciar e entre formas de dizer e de silenciar. Por um
outro, é um desnível de incompletudes de dizeres sobre dizeres e
silêncios sobre silêncios. Finalmente, e isto é muito importante ser
reafirmado,
é
um
trabalho,
no
sentido
de
que
é
sempre
(re)construção. Como tal, redistribui incessantemente os lugares
197
dinâmicos entre os dizeres, os silêncios e entre ambos, assim como
no jogo do interdiscurso redistribuem-se continuamente as formações
sociais, ideológicas e discursivas, os lugares de onde se diz e de
onde se ouve.
Nessa dimensão de trabalho é que se pode ver o texto
borgeano. Se se perguntar até que ponto, como autor (ou co-autor,
nesse caso) ele sabe
a respeito das escolhas que fez nesse
entrecruzar permeado de silêncios,
será necessário reconfigurar
inicialmente os sentidos do que seja saber. Se for substituída a idéia
de consciência pela de saber, pode-se dar um passo essencial para
aprofundar essa discussão.
Essa
redistribuição
de
lugares
mencionada
acima,
e
que
constitui essencialmente o trabalho no discurso, depende do saber,
em suas múltiplas facetas: saber fazer, saber dizer, saber silenciar,
saber agir, saber olhar, saber saber etc. Uma metáfora útil, nesse
caso, é exatamente a de jogo. Para jogar é necessário saber as
regras. Mas nem todas as regras são, a todo momento, conscientes.
Um jogador de basquete minimamente habilidoso “sabe” que deverá
sempre manusear a bola com as mãos e jamais com os
pés. Um
motorista “sabe” que tem de embrear o automóvel para mudar as
marchas, mesmo que o faça inconscientemente. Outro exemplo é que
os seres humanos sabem respirar 8 2 .
82
A respiração é um exemplo útil. Na maioria das vezes respiramos mecanicamente, inconscientemente. Isso
não impede, porém, que tomemos consciência dessa respiração (tanto no sentido de percebê-la fisicamente,
quanto no de discutir sobre ela), ou que a provoquemos/modifiquemos intencionalmente.
198
No caso do autor, ele sabe que tem de criar um narrador para
relatar a história. Mesmo que nominalmente identificado com o
próprio nome do autor (esse recurso é largamente utilizado por
Borges), esse narrador representará um princípio organizador do
relato que refletirá não o autor, mas o conjunto de características
daquele ato enunciativo (do contrário o autor teria uma única forma
de dizer). Esse trabalho, realizado pelo autor , demanda um saber
fazer e um saber dizer que se referem, numa instância primordial ao
que se aceita como fazer estético e literário numa determinada
cultura,
numa
determinada
época.
Supor
um
sujeito
totalmente
assujeitado seria imaginar esse mesmo autor à mercê de discursos e
posições
que
reorganizado,
representa,
às
vezes,
sem
que
inclusive,
esse
de
saber
maneira
pudesse
consciente
ser
e
deliberada.
Pode-se apontar talvez o que seja uma confusão metodológica
nesta questão. O que a leitura de Lacan aponta inequivocamente é
um assujeitamento de origem. Mesmo antes de nascer, o futuro
indivíduo já está sujeito ao desejo de sua comunidade (este aspecto
já era apontado por Freud).
O problema é o quanto de mobilidade existirá nos espaços
discursivos atravessados pelo sujeito e que também se entrecruzam
em sua constituição dialógica. Se, por certo, é inconcebível uma
liberdade e autonomia totais, também soa questionável uma leitura
extremada da interpelação althusseriana do indivíduo em sujeito pela
199
ideologia como um processo monolítico 8 3 . Cumpre considerar (e
Possenti (1996) levanta essa linha de análise) que também a
ideologia é dialógica, heterogênea. Ao contrário de Althusser, que diz
que ela é eterna, entende-se, nesta tese, que ela tem história.
É
necessário
enfatizar
a
questão
do
ponto
de
vista
metodológico, porque exatamente o conflito epistemológico parece
ser não a existência de interpelação, mas a forma como ela ocorre.
Afirmar
que
a
ideologia
é
eterna
é
desconsiderar
essa
dialogicidade presente na própria ideologia. É, igualmente, olhar para
conceitos como Formações Discursivas e Ideológicas de maneira
estática, sem avaliar o movimento e o intervalo. Se os conceitos de
interdiscurso
e
de
alteridade
profundidade epistemológica, a
forem
voz
considerados
não mais
será
com
maior
única, será
dialética, prenhe de contradições. Até que ponto a fala do Outro não
desloca a minha ? Não enquanto indivíduo, mas enquanto sujeito
também dialógico. No fundo, o que está em jogo é a questão a
historicidade e da forma de constituição das vozes do sujeito.
Faz parte do universo borgeano o engodo, a dissimulação e a
utilização de silenciamentos trabalhados no interior do discurso . Seria
possível,
então, afirmar-se que o autor “conhece o movimento dos
sentidos” ? No sentido de que “sabe” colocá-los ação, (re)conhece
sua dialeticidade, sim.
83
Para o próprio Althusser, a interpelação é um processo com contradições: ao mesmo tempo o sujeito é e não
é constitutivo de toda ideologia. (1985:93)
200
Claro que isso somente é possível estabelecendo-se outros
textos de um autor como olhares-Outros capazes de mostrar as
falhas, ausências. Além disso, o olhar analítico será, no mínimo, um
terceiro olhar para com esse diálogo.
O jogo borgeano estabelece-se nestas relações intradiscursivas
como num jogo de espelhos, um texto dialogando com outro, no
conjunto da obra. É o caso da relação entre o texto Animais dos
Espelhos e o poema anterior El espejo. Neste último há uma
seqüência de versos assim:
Que el silencioso tiempo del espejo
Se desviara del curso cotidiano
De las horas del hombre e hospedara
En su vago confín imaginario
Seres y formas y colores nuevos.
Já no texto Animais dos Espelhos há o seguinte trecho:
Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o
mundo dos homens não estavam, como agora,
incomunicáveis. Eram, além disso, muito
diferentes; não coincidiam nem os seres, nem
as cores nem as formas. (...)
Note-se que as expressões finais de ambos os trechos citados
são constituídas por enumerações dos substantivos seres, formas e
cores. As diferenças encontradas são 1) no poema El espejo, o
substantivo cores está adjetivado (novas); 2) a ordem da enumeração
201
é diferente (no texto animais dos Espelhos cores vem antes de
formas; 3) em Animais dos Espelhos a frase é negativa e, no poema,
afirmativa.
Considerando-se que Animais dos Espelhos é assumida pelos
autores como simplesmente uma compilação, há algo digno de
atenção: ou o poema El espejo apropria-se de uma expressão num
texto compilado ou Animais dos Espelhos retoma parcialmente uma
forma de dizer que se insere no estilo borgeano. Uma ou outra leitura
implica opções a partir de elementos contextuais mais amplos,
trabalho com indícios e inter-relações, que somente são possíveis
através de relações intertextuais.
Assume-se aqui a análise de uma estratégia peculiar do fazer
de Borges. Formalizar tal estratégia pressupõe coletar indícios e
interpretá-los de modo a construir categorias mais abstratas e
generalizáveis. Quanto à questão dos indícios, alguns modelos
teóricos amparam tal perspectiva. Pode-se citar talvez a semiótica
peirciana, com seu conceito de índice (ou index). Neste caso,
entretanto, parece mais funcional utilizar o conceito de “paradigma
indiciário”, de Carlo Ginzburg.
Para
o
autor
italiano,
essa
seria
uma
forma
de
olhar
epistemológico que privilegiaria a singularidade, em detrimento da
regularidade. No decorrer de alguns de seus textos, especialmente no
artigo “Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário” (1989) 8 4 , ele cita
84
In: Ginzburg, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. (1989)
202
como vários saberes tais como a medicina, a investigação de
falsidade em obras, entre outros, têm ou tiveram momentos de opção
por este olhar. Assim, pondera, ao se analisar um suposto quadro de
um pintor, por exemplo, a chave estará em verificar não o que é
característico do suposto autor, mas os detalhes que não deteriam
jamais a atenção de um falsário. Tomando um dos exemplos de
Ginzburg, alguém que tentasse imitar a Gioconda, de Da Vinci,
procuraria ser perfeito nos detalhes do famoso e enigmático sorriso,
mas talvez estivesse menos concentrado na forma do pintor italiano
retratar uma orelha ou as unhas.
Adotar tal paradigma, no entanto, prevê uma reorganização
epistêmica e metodológica. Instaura como pressuposto de análise a
subjetividade do analista e a sua relação com seu objeto:
“(...) o rigor flexível (se nos for permitido o
oxímoro)
do
paradigma
indiciário
mostra-se
ineliminável.
Trata-se
de
formas
de
saber
tendencialmente mudas – no sentido de que, como
já dissemos, suas regras não se prestam a ser
formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício
de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a
pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de
conhecimento entram em jogo (diz- se normalmente)
elementos imponderáveis: faro, golpe de vista,
intuição.” (GINZBURG, 1989:179)
203
Ao redimensionar o signo como sintoma 8 5 , Ginzburg rompe uma
tradição de inspiração das ciências humanas em suas congêneres
inicialmente ciências naturais e posteriormente nas ciências exatas
(notadamente a matemática e a estatística).
Essa tradição é especialmente intensa na constituição da
lingüística
e,
constituição
considerando
da
AD,
a
cabe
participação
refletir
sobre
que
os
esta
tem
na
compromissos
epistemológicos da primeira e como tais compromissos se deslocam
(ou até que ponto de deslocam) no interdiscurso para com a segunda.
A
primeira
implicação
vem
das
escolhas
saussurianas.
Amparado em uma mentalidade positivista, a obra publicada de
Saussure,
o
necessidade
Curso
de
primordial
Lingüística
de
campo
Geral,
científico,
instaura,
enquanto
inicialmente
uma
distinção a tudo o que na língua era de caráter particular, individual e
o que era social, geral. Optou-se, então, pela segunda, em nome de
princípios como regularidade, sistematicidade e por uma condição
organizacional certamente ainda muito influenciada pelo entusiasmo
com o rigor metodológico de outras ciências. O status de “ciênciapiloto
das
ciências
humanas”
construiu-se
sobre
um
alicerce
solidamente estabelecido nesta trajetória.
Até o desenvolvimento de teorias da enunciação, disseminadas
a partir dos anos 60 do século XX, a atenção do olhar era para o
geral, universal. Desde então, estabeleceu-se uma relação dialética
85
O que traz algumas aproximações com Lacan e Peirce (neste último especificamente com relação ao índice)
204
mais explícita entre essa opção hegemônica e desejos de criar
ferramentas
analíticas
capazes
de
interpretar
algum
grau
de
singularidade. Se, por um lado, isso coincide com uma tendência
mais ampla de a ciência no século XX colocar-se diante das
anomalias de seu paradigma ainda fortemente mecanicista, principal
e paradoxalmente a partir da física, dentro dos estudos da linguagem,
tal inquietação coloriu-se de matizes peculiares. Tal tendência pode
estar associada, inclusive, com o surgimento da Análise do Discurso,
em fins dos anos 60.
Outra implicação decisiva é de caráter epistemológico e
refere-se especificamente a como as relações entre o objeto (interno)
e sua exterioridade dialogam. A AD instaurou-se como diferença
neste
aspecto,
por
utilizar
conceitos
que
remetem
para
a
exterioridade da língua, sem abrir mão da interioridade desta última.
Se se pensar nas práticas sociais básicas, como a identificação
cultural e a própria aquisição de uma língua, será visto com relativa
facilidade que os princípios de regularidade e sistematicidade às
vezes não são muito funcionais. As regras de conduta ou de
organização da língua não são veiculadas e apreendidas somente
pelo que é dito, mas pela convivência com formas de dizer e de fazer,
e
pelo
contato
dialético
com
a
transgressão
(seja
social
ou
lingüística) é que constrói uma práxis de delimitar o que pode ou
deve ser dito ou o que pode e deve ser feito (e, sempre por extensão,
o que não pode nem deve).
205
Se esse raciocínio faz sentido, então torna-se imprescindível
considerar as condições exteriores, que em seu diálogo permanente e
dialético com o que tais sistemas têm de interno, estabelecem tais
regras. Impossível, portanto, desconsiderar a relação que o singular
tem com o geral, impossível
desconsiderar o
movimento
entre
posições estabelecidas, as descontinuidades, as falhas, os intervalos
e as reconfigurações incessantes entre, por exemplo, dizer e silêncio.
Abala-se um pressuposto saussuriano decisivo, ao se aceitarem
necessidades metodológicas decorrentes de olhares tais como o de
Ginzburg. A singularidade é passível de análise, sim, desde que haja
espaço epistêmico para a subjetividade. Não no sentido de um sujeito
alienado ou supra-humano, mas a de, nesse âmbito de relações entre
o que é interno e externo, o gesto interpretativo do sujeito, entre
outros elementos, é uma parte decisiva do jogo. Tal como o sintoma
não existe sem uma leitura prévia de seus limites entre o que indicia
e o que significa.
Tal relação, inclusive, desloca a visão saussuriana sobre o
signo. Pensado como sintoma, ele não pode mais prescindir do gesto
interpretativo
que
une
o
significante
ao
significado.
Também
abordagens como a de Derrida ou Lacan podem ser problematizadas
neste aspecto: a existência única do significante, seja por qual viés,
desconsidera o ato interpretativo. Não que ele seja o sentido que a
palavra ou o silêncio possuem; ele é o desejo de que as coisas e
seus índices simbólicos signifiquem, façam sentido.
206
Faz parte de nossa incompletude e, mais do que isso, da
incompletude necessária da palavra (e do próprio silêncio , enquanto
movimento dos sentidos) essa falta do simbólico e esse excesso do
real. E essa falha essencial do sentido não é uma espécie de pecado
original, resgatável, mas uma falha constitutiva, sem a qual a
linguagem não seria possível. Faz parte da condição humana a
linguagem e, intrínseca e complementarmente em ambas não há outro
modo de ser que não seja essa incompletude.
Quando ela
(a incompletude) é atribuída ao silêncio, isso
significa que, para nós, é impossível conceber o silêncio sem a
palavra ou vice-versa e, principalmente, que o quão significativo será
o silêncio dependerá desses limites, estabelecidos dinamicamente
nas interações.
Voltando aos poemas de Borges, existe uma contradição entre a
afirmação dos autores no prefácio de O livro dos seres imaginários
(onde se situa o texto Animais dos Espelhos) de que os textos se
tratam de compilações e a presença dos mesmos elementos no
poema El espejo. Ou os autores mentem no prefácio e trata-se de
uma fingida compilação, ou o poema também partilha a mesma
característica.
Em outros trechos de outras obras, Borges sempre afirma, de
alguma forma, que o que ele faz é apenas recontar o que outros já
disseram. Mais ainda: para ele a literatura não deixa de ser isso.
Desse ponto de vista, seria corroborada a leitura de que El espejo
207
também não deixa de ser uma compilação de formas de dizer. Mas
não é tão simples assim.
Se se pensar no que estava sendo discutido anteriormente a
respeito do paradigma indiciário e de como ele instaura relações
diferenciadas entre o interno e o externo de uma análise, surgiraá a
lembrança de um pressuposto fundamental da AD que são as
condições de produção do discurso.
Nessa delimitação entre dizer e silenciar, pode-se analisar o
que Borges como autor diz de seu fazer literário. No prefácio do Livro
dos
Seres
Imaginários
ele
afirma
tratar-se
apenas
de
uma
compilação. Opta, portanto, por não estabelecer um silêncio por
ausência
a
respeito
das
condições
(algumas,
pelo
menos)
de
produção de sua obra. Sobrepõe a palavra ao silêncio e delimita uma
direção do dizer. Cabe ao leitor acreditar ou não, mas rompe-se a
polissemia que um silêncio por ausência poderia estabelecer.
O acreditar ou não constitui, neste caso, um episódio de
veridicção.
Pode-se
aplicar
o
quadrado
semiótico.
Se
o
leitor
acreditar (comparando ambos os textos), estará diante do segredo
(é uma compilação, mas não parece ser), se não acreditar, diante de
uma mentira (parece ser uma compilação, mas não é). O que importa,
aqui, é que a escolha pelo dizer modifica o espaço de silêncio sobre
as condições de produção da obra. Se não tivesse sido dito que se
tratava de uma compilação, caberia ao leitor interpretar a relação
208
intertextual em função do que não foi dito, mas que se insinua nos
textos.
Como sintoma de algo posto, sugerido, há, no entanto que se
resolver esse primeiro problema, que se torna mais complexo na
medida em que supõe que este mesmo leitor tivesse efetivamente
comparado
tais
textos.
Que
seu
olhar
se
deparasse
com
tal
singularidade. Faz parte do que ainda restou do silêncio como
ausência sobre as condições de produção do fazer borgeano o que
indicia a paráfrase. É o exterior do texto em si que vai apontar isso.
Poder-se-ia falar aqui do conceito de arquivo, tão caro à AD, pelo
menos em seus momentos iniciais. De certa forma, cabe como
análise. No entanto, seria importante considerar que a unicidade
atribuída a um mesmo autor, no conjunto de sua obra (o que teria a
ver com o conceito de arquivo) é construído culturalmente a partir de
direções de leitura, de jogos de imagens (conceito tomado de
Pêcheux, 1969), enfim, de funções culturais como autor, obra, gênero
etc.
Não deixa de ser muito mais silenciador das condições de
produção (que envolvem esses aspectos mencionados no parágrafo
anterior) o autor ter construído um dizer que atribui a um dos
momentos de sua obra que estabelece paráfrase com vários outros o
título de compilação. Silencia uma extensão maior da própria função
de autoria, bem como disfarça o quanto do papel de leitor está sendo
(super)valorizado por Borges. Se ao autor cabe somente compilar, é
209
ao leitor que se incumbe interpretar, (re)fazer a obra, circunscrever
seus sentidos. Inclusive os silêncios dela.
Há uma diferença especial na distribuição do silêncio entre a
fala e a escrita: contrariamente à fala, quando o enunciador dispõe de
algum poder de decisão sobre o ritmo e os tipos de silêncio que
propõe, na escrita, mesmo que sinalizados pelo autor , os silêncios
serão reconfigurados pelo leitor, inclusive – e isso é muito importante
– no ritmo do leitor.
Interpretar o dizer borgeano, nestes enunciados, sobre as
condições de produção de seu texto como um silenciamento de
silêncios mais amplos pode-se ver nisto um sintoma de atribuição de
um
papel
mais
interpretação
só
decisivo
pode
para
fazer
o
leitor .
sentido
O
crucial
dentro
de
é
que
uma
essa
opção
epistemológica que inclua o gesto interpretativo do sujeito, vendo-o
em relação aos outros elementos contextuais, em movimento, em
deslocamento dialógico e dialético.
Cabe, porém, fazer uma ressalva. Ao se fazer um discurso como
esse, nesta análise, pode-se ter a impressão de que os fatores
externos são sempre mais importantes do que os internos. Pensar
desta maneira seria ignorar a contradição como elemento constitutivo
do discurso, da linguagem e da condição humana, principalmente no
ato de produzir sentidos.
Somente existe exterioridade em relação ao que não é exterior,
portanto
interno.
Se
esse
raciocínio
for
aplicado
à
língua,
e
210
especificamente no caso desta análise destes dois textos de Borges,
há que se considerar obrigatoriamente que um elemento instaurador
de silêncios bastante amplos foi exatamente o dizer. Não somente o
ato de dizer, mas o que foi dito. A palavra compilação, a sintaxe dos
enunciados correlacionados. Novamente vale a observação: trabalhar
com conceitos como movimento e intervalo não significa ignorar ou
(de)negar
a
materialidade
da
língua
(como
a
materialidade
do
silêncio). Por exemplo, quando a Filosofia propõe o movimento como
solução para o paradoxo de Aquiles e da tartaruga, formulada por
Zenão de Eléia, não se está negando a realidade ou a existência de
nenhum dos dois (Aquiles e a tartaruga), nem da corrida ou do
trajeto. Apenas a relação entre os elementos torna-se de outra
natureza.
Possenti (1988:115) faz uma ponderação pertinente sobre essa
relação entre exterioridade e interioridade:
O que parece é que, com o advento das teorias de
significação que se utilizam de conceitos como
enunciação e contexto, assistiu-se a uma espécie
de desprezo pela materialidade específica das
línguas, em outros termos, pela análise detalhada
dos recursos expressivos, erigindo-se aqueles
fatores como os essenciais a serem considerados
na descoberta do sentido.(...)
Parece, pois, necessário dizer de novo o óbvio. E o
óbvio é que, por mais relevantes que sejam os
fatores que poderiam ser chamados sem nenhuma
exigência
de
refinamento
conceitual
de
‘extralingüísticos’ (isto é, não lexicais ou sonoros)
para a descoberta do sentido, a forma do discurso,
211
desde que tomada em sua materialidade mesma, e
não como hipostasia de uma metalinguagem, é o
elemento essencial na construção do sentido. Ela
nunca o esgota, por causa da indeterminação desta
forma, mas o fato de não esgotá-lo não implica em
seu abandono ou sua consideração apenas em
último lugar. Os elementos ‘extralingüísticos’
devem sempre ser considerados, é claro, inclusive
porque eles não são relevantes apenas para a
interpretação dos discursos, mas um importante
papel no condicionamento de sua própria forma.”
4.2.4 – El espejo de los enigmas
Texto publicado no volume Otras Inquisiciones, em 1952, livro
que representa um dos raros momentos concentrados da produção
crítica de Jorge Luís Borges.
Esse ensaio parte da teoria do alegorismo (já discutida no
capítulo 3 º ), o pensamento de que a Sagrada Escritura apresenta,
além de um sentido literal, um valor simbólico. Borges começa
argumentando que esta idéia não é irracional e traz como testemunho
da antigüidade (e da autoridade) dessa idéia autores como Filón de
Alexandria, os cabalistas, Emanuel Swedenborg. Apresenta outros
ainda, como León Bloy, Novalis, DeQuincey, que têm hipótese
semelhante: a de que há uma gramática (esquecida pelos homens)
que subjaz às ínfimas coisas, aos menores gestos, enfim, “las
212
mínimas cosas del universo pueden ser espejos secretos de las
mayores 8 6 ”
Após esse preâmbulo, Borges retoma a referência a León Bloy e
situa um versículo de São Paulo (1 ª Epístola aos Coríntios, Cap. 13,
12), que ele cita em latim no texto: “Videmus nunc per speculum in
aenigmate: tunc autem facie ad faciem. Nunc conosco ex parte: tunc
autem cognoscam sicut et cognitus sum.” 8 7
Borges, em seguida, irá cotejar a interpretação e a tradução de
diversos autores, mostrando como as concepções diferenciam-se. O
primeiro a ser mencionado é Torres Amat, que, segundo Borges,
traduz miseravelmente: “Al presente no vemos a Dios sino como en
un espejo, y bajo imágenes oscuras: pero entonces le veremos cara a
cara. Yo no le conozco ahora sino imperfectamente: mas entonces le
conoceré com una visión clara, a la manera que soy yo conocido ”
(destaques do texto de Borges). Borges ironiza, dizendo que o autor
usou 44 palavras para traduzir 22, sendo “palabrero y lánguido”.
O autor seguinte, Cipriano de Valera recebe uma apreciação
mais
positiva
em
sua
tradução:
“Ahora
vemos
por
espejo,
en
oscuridad; mas entonces veremos cara a cara. Ahora conozco en
parte; mas entonces conocoré como soy conocido”
86
Aqui a referência não declarada é a uma das obras basilares da tradição ocultista, a Tábua Esmeraldina,
atribuída a Hermes Trismegisto, segundo a qual o microcosmo é espelho do macrocosmo, “o que ocorre em
baixo, ocorre em cima”.
87
A tradução da Bíblia de Jerusalém é a seguinte: “Ago ra vem os em es pel ho e de m anei ra
confus a, m as , depoi s , verem os face a face. Agora o m eu conheci m ent o é li m i t ado, m as
depoi s , conhecer ei com o s ou conheci do.”
213
Borges contrapõe as ênfases diferentes de cada autor. Afirma
que Torres Amat atribui o versículo à nossa visão da divindade,
enquanto Cipriano de Valera e León Bloy à nossa visão geral. O
passo seguinte é identificar, neste último, diferentes interpretações
desse versículo de São Paulo, cada uma delas traduzida por Borges.
A primeira, de junho de 1894:
La sentencia de San Pablo (...) seria una claraboya
para sumergirse el el Abismo verdadero, que es el
alma del hombre. La aterradora inmensidad de los
abismos del firmamento es una ilusión, un reflejo
exterior de nuestros abismos, percebidos ‘en un
espejo’. Debemos invertir nuestros ojos y ejercer
una astronomia sublime en el infinito de nuestros
corazones, por los que Dios quiso morir... Si vemos
la Via Láctea, es porque existe verdaderamente en
nuestra alma.
Já se pode perceber que o que está sendo discutida é a
concepção de leitura e representação. É necessário, no entanto, um
pouco de paciência, e, embora sejam seis no total, vale a pena ir
acompanhando as nuances de concepções e como Borges conduz ao
desfecho do ensaio.
A segunda, de novembro de 1894 (mesmo ano da anterior):
214
Recuerdo una de mis ideas más antíguas. El Zar es
el jefe y el padre espiritual de ciento cincuenta
millones de hombres. Atroz responsabilidad que
sólo es aparente. Quizá no es responsable, ante
Dios, sino de unos pocos seres humanos. Si los
pobres de su imperio están oprimidos durante su
reinado, si de esse reinado resultan catástrofes
inmensas ¿quién sabe si el sirviente encargado de
lustrarle las botas no es el verdadero y solo
culpable ? En las disposiciones misteriosas de la
Profundidad ¿quién es de veras Zar, quién es rey,
quién puede jactarse de ser un mero sirviente ?
A terceira, uma carta escrita em dezembro (mesmo ano, 1894):
Todo es símbolo, hasta el dolor más desgarrador.
Somos durmientes que gritan en el sueño. No
sabemos si tal cosa que nos aflige no es el
principio secreto de nuestra alegría ulterior. Vemos
ahora, afirma San Pablo, per speculum in
aenigmate, literalmente: “en enigma por medio de
un espejo” y no veremos de outro modo hasta el
advenimiento de Aquel que está todo en llamas y
que debe enseñarnos todas las cosas.
A quarta, de maio de 1904:
Per speculum in aenigmate, dice San Pablo. Vemos
todas las cosas al revés. Cuando creemos dar,
ricibimos, etc. Entonces (me dice una querida alma
angustiada) nosotros estamos en el cielo y Dios
sufre en la tierra.
A quinta, de maio de 1908:
215
Aterradora idea de Juana, acerca del texto Per
speculum. Los goces de este mundo serían los
tormentos del infierno, vistos al revés, en un
espejo.
A sexta e última, de maio de 1912. Retirado das páginas de
L’Ame de Napoleon, livro com o propósito de decifrar o símbolo
Napoleon, considerado precursor de outro herói, oculto no porvir
(homem e simbólico também). Borges cita duas passagens:
Cada hombre está en la tierra para simbolizar algo
que ignora y para realizar una partícula, o una
montaña, de los materiales invisibles que servirán
para edificar la Ciudad de Dios.
No hay en la tierra un ser humano capaz de
declarar quién es com certidumbre. Nadie sabe qué
ha
venido a hacer a este mundo, a qué
corresponden sus actos, sus sentimientos sus
ideas, ni cuál es su nombre verdadero, su
imperecedero Nombre en registro de la Luz... La
historia es un inmenso texto litúrgico donde las
iotas y los puntos no valen menos que los
versículos o capítulos integros, pero la importancia
de unos y de otros es indeterminable y está
profundamente escondida.
216
Borges interpreta, em seguida, que Bloy limitou-se a seguir
princípios que parecem razoáveis enquanto doutrina cristã, apenas
estendendo a toda a criação o método que os cabalistas judeus
aplicaram à Escritura. Um livro escrito pelo Espírito Santo não
haveria de comportar nada que fosse acidental, nenhuma colaboração
do azar. Caberia, desta perspectiva, somar letras, fazer combinações,
buscar minúcias de sentidos potencialmente ocultos.
Borges, no penúltimo parágrafo, apresenta sua ironia implacável
e sutil. Considera que o mundo não tenha sentido, sendo bem menos
provável que tenha dois ou três, mas que o método de Bloy satisfaz à
dignidade “del Dios intelectual de los teólogos”.
O parágrafo final é o momento em que Borges oferece a chave
do jogo que vinha propondo ao leitor. Vale a pena saboreá-lo todo:
Ningún hombre sabe quién es, afirmó León Bloy.
Nadie como él para ilustrar esa ignorancia íntima.
Se creía un católico riguroso y fue un continuador
de los cabalistas, un hermano secreto de
Swedenborg y de Blake: heresiarcas.
Este ensaio (que também se comporta como um conto) pode ser
considerado como uma discussão sobre a tarefa do leitor diante de
um texto. No caso, um fragmento bíblico, mas o que esteve envolvido
217
em termos de processos interpretativos aqui, ocorre igualmente com
qualquer texto.
Há inicialmente um modelo de leitura a ser aplicado ao texto: a
de que a Sagrada Escritura tem, além de um sentido literal, um valor
simbólico. Tal modelo – do ponto de vista da AD pode-se considerar
os
conceitos
de
jogo
de
imagens
(Pêcheux,
1969)
e
o
de
interdiscurso, pelo menos – implica aplicar sobre um sentido literal
um sentido alegórico, moral ou anagógico, como foi visto no capítulo
3 º . Borges silencia sobre os dois outros sentidos (moral e anagógico),
como se não os conhecesse, o que se tratando de Borges, num
assunto que era uma de suas obsessões, é pouco provável. Há,
portanto, a presunção de um silêncio por ausência (consciente ou
inconscientemente exercido).
Supondo que qualquer um deles pudesse ser aplicado sem
alterar o foco central da discussão pretendida por Borges, pode-se
escolher o alegórico, o que será econômico, pois exigirá menos
conhecimento teológico para desenvolver a argumentação.
Se existe um texto (Sagrada Escritura) que afirma que nosso
conhecimento atual é parcial, incompleto e obscuro como o de um
espelho e que somente quando nos encontrarmos com a divindade é
que, face a face com Deus, seremos capazes de conhecer o todo,
assim como somos conhecidos por Ele, temos de aplicar, segundo o
modelo de leitura acima, um sentido literal e um sentido alegórico.
218
Mas, se o trecho é uma alegoria, o que seria o “literal de uma
alegoria” e a “alegoria de uma alegoria” ? Para simplificar pode-se
considerar que o literal de uma alegoria é considerá-la como alegoria
mesma. Isso implica, é claro, a necessidade de decifrar uma alegoria
e supor que tal decifração seja já o sentido literal (parece paradoxal).
O procedimento seguinte é mais espinhoso. Alegoria de uma alegoria
seria uma não alegoria ? Ou uma alegoria atrás de outra alegoria ?
Se
se
pensar
nas
redes
de
memória
e
nas
Formações
Discursivas, ocorrerão algumas opções mais definidas. Dentro de
uma tradição hermetista, a segunda possibilidade é que seria a
válida. Mas até que ponto o catolicismo permitiria, em sua FD (“o que
pode e deve ser dito”), tal leitura ? Borges dá a resposta na última
linha do texto: “herege”. Bloy filiou-se, na verdade, numa tradição
hermetista.
Entretanto, se for observado atentamente o texto de Borges,
vamos verificar que o deslocamento de sentidos de uma FD para a
outra foi gradual, uma reconfiguração constante, silenciadora, em
cada momento, de aspectos autorizados por um tipo de discurso que
foram se ausentando ou se sobrepondo a ponto de migrarem para
outro discurso, que do ponto de vista do inicial, é não autorizado.
Borges espicaça com ironia sem fim: Ninguém como Bloy para ilustrar
essa ignorância íntima- que cada homem tem de não saber que é, já
que pensava estar sendo um católico rigoroso e estava já irmanado
com cabalistas e hereges (para a ortodoxia, são sinônimos).
219
Como este processo se deu, considerando Bloy leitor do texto
bíblico ? Seguindo a tradição hermetista, será necessário desmontar
a alegoria num primeiro nível e posteriormente em outros.
É a trajetória que Bloy faz nas seis menções que Borges cita. O
grande complicador é a alegoria do espelho. É característica do
espelho a inversão ou deformação da imagem real. Os destaques de
Borges nas traduções de Torres Amat e Cipriano de Valera (que tem
visão coincidente com León Bloy) são um primeiro indício.
Enquanto para Torres Amat a ênfase era nas palavras e
pronomes que designavam a divindade, para Cipriano de Valera (e
León Bloy, por extensão), era no verbo “ver”. Assim, como aponta
Borges, o primeiro considerava que o sentido literal do versículo se
aplicava somente à maneira como se concebia a divindade. Já Bloy,
assim como Cipriano, utilizaram a extensão máxima do verbo “ver”
consideraram que o sentido literal equivaleria a uma proposição do
tipo
“nossos
consciência
sentidos
depende
estão
sempre
daqueles,
ela
errados
e,
como
também
está
nossa
enganada.
Conclusão: não sabemos o que é o mundo, quem é a divindade e
quem somos.”
A aplicação de um sentido alegórico sobre esta proposição
implica, em primeiro lugar, considerar a metáfora do espelho. Do
ponto de vista de Bloy, se o espelho inverte a imagem real, e não
conhecemos nenhuma imagem real, verdadeira, é porque vemos
invertido.
220
Na primeira interpretação de Bloy esta inversão é atribuída
relativamente à alma (na verdade, temos aqui o sentido anagógico) e
à extensão do olhar. É de se perguntar que motivação simbólica fez
Bloy relacionar a extensão do olhar com o sentido de “abismo” e,
mais do que isso, aplicar um signo que normalmente é usado para
expressar
profundidade
para
relacioná-lo
à
alma,
categoria
normalmente associada à elevação, à semelhança com a divindade
etc.
Existe
um
ponto
comum,
silenciado
por
ausência,
que
é
memória discursiva (inclusive icônica) do inferno. Bloy assume uma
alma já condenada por seu desconhecimento. Outros poderiam ver
uma simples inversão da extensão do céu, firmamento. No entanto,
este elemento, sozinho, não seria suficiente para associar abismo
com alma. Poderia haver uma interpretação que, aplicando a idéia de
inversão às aparências do mundo tal qual o vemos postulasse que se
vemos um firmamento que parece infinito, se vemos a Via Láctea, e
se tudo está invertido, não estamos vendo uma elevação, mas sim um
abismo. Abismo, no imaginário cristão, remete a inferno. Utilizam-se
palavras com sentidos preconstruídos tais como “Queda dos Anjos
Rebeldes”, “Satanás precipitou-se no abismo” e outras semelhantes.
A associação com a alma é construída, como toda metáfora,
sobre um elemento silenciado. Neste caso, uma oposição entre
mundo material e mundo espiritual. Se olho para o céu e vejo um céu
material e tudo isso é um grande engano especular, então não basta
221
considerar que a altura é abismo. O que parece ser material é
espiritual. Então firmamento já não é firmamento, é uma alegoria
invertida de alma. E se o firmamento parece elevado e se não é nem
firmamento nem elevação, só pode ser abismo e alma.
O que fica silenciado e que implica exatamente o quanto o leitor
de um texto borgeano como esse pode ser um leitor participante,
segundo o que Monegal nomeia como sendo a “estética de leitor” em
Borges, é o que se torna necessário em termos de mecanismos
interdiscursivos para que haja essa leitura participante e produtora de
sentidos.
Há que ser um leitor forçosamente enciclopédico, tal como
Borges. Nesta estratégia (estratagema seria talvez uma palavra mais
indicada), Borges parece espelhar-se no leitor. Isso, no entanto, pode
ser visto de outra maneira. Lembremo-nos que o espelho inverte. Não
é um espelhamento. Borges não olha para o espelho como a criança,
no estádio do espelho de Lacan. Borges é o adulto que segura a
criança e que impõe seu olhar. Um olhar protegido porque já criou um
olhar que os outros lhe atribuíram e que (teme sempre) sabe que uma
hora ou outra aparecerá na superfície do espelho mostrando seres e
formas e cores muito diferentes das que estão deste lado da
superfície especular, como é o caso do texto “Animais dos Espelhos”
entre tantos outros textos borgeanos.
É o leitor Borges, conhecedor habilidoso do Latim, da história
européia, de teologias diversas (das ortodoxias às heresias mais
222
extremas), da tradição hermética, da hermenêutica, mas, sobretudo,
dos fundamentos fenomenológicos da produção dos sentidos. É esse
o grau de exigência para que o leitor se habilite a produzir sentidos.
Talvez por isso mesmo Borges reconheça que bons leitores são
cisnes ainda mais raros que bons autores. É, por outro lado, o prazer
da
descoberta
intertextos
que
dos
labirintos
Borges
quer
enquanto
jogos
compartilhar
com
de
memória,
os
leitores
de
que
estiverem aptos para cumprirem a missão de Teseu. Só que neste
caso Ariadne não acompanha. Seu fio está tecido juntamente com
cada fibra do texto que é o próprio labirinto onde o Minotauro se
encontra, tal como uma esfinge, prestes a devorar quem não o
decifrar.
Espera-se desse leitor, fundamentalmente, que seja um leitor de
silêncios, sejam por excesso, nos falseamentos que só podem ser
descobertos como tais por comparação a outros textos que devem ser
conhecidos e/ou recuperados no interdiscurso, sejam por ausência,
nas
informações,
intertextos
ou
esquecimentos
que
devem
ser
processados.
A chave hermética não é mencionada aqui. A identidade entre
microcosmo e macrocosmo, característica central de leitura desta
tradição, o que estabelece analogias, simpatias e interpretações por
índices, não é mencionada. Ela é conhecida por Borges, pois ele trata
de assuntos relacionados a tais tradições, como é o caso da cabala e
menciona aspectos como esse. Independente de essa estratégia ser
223
consciente ou não, implica que o leitor deve ser capaz de interagir
com este silêncio para que possa adequadamente compreender a
angústia infrutífera de León Bloy, que metaforiza o gênero humano.
Na segunda interpretação de Bloy, a inversão alegórica do
espelho se aplica à hierarquia. Há aqui outros textos ocultos, da
tradição cristã: “Muitos dos primeiros serão os últimos, e muitos dos
últimos, primeiros.” (Mt 19,30); “Ao contrário, aquele que quiser
tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser
o primeiro dentre vós, seja o vosso servo.” (Mt. 20, 26-27);“Pois todo
o que se exalta
será humilhado, e quem se humilha será exaltado .”
(Lc 18,14) 8 8 . A inversão da responsabilidade pela opressão dos
pobres ou pelas catástrofes é atribuída ao servo, encarregado de
lustrar as botas do soberano. É típico da visão cristã. Dessa
perspectiva, a incapacidade de ver as coisas como realmente são
invertem a verdadeira hierarquia. Assim, se os últimos serão os
primeiros, se o próprio Filho de Deus veio à terra como pobre para
ser morto e servir a todos, é isso que a inversão especular de nossa
obscuridade não nos permite ver.
Note-se novamente um quadro de referências que é silenciado.
Mesmo que se assuma que foi colocado como pressuposto (o leitor
deve – é útil ler-se o verbo dever nos dois sentidos – saber isso),
88
Outro trecho, talvez o mais representativo, seja o seguinte:
“Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas
esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura
de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz !.” (Fil. 2, 6-7)
224
essas pressuposição nos permite identificar quais representações a
função-autor assume como princípio unificador do texto. Quase um
antiautor,
já
que
exerce
o
papel
unificador
do
discurso
na
textualidade por uma anti-unidade, um texto perfurado de silêncios,
convidando um leitor que tem desenvolver estratégias unificadores
ele também. Mas, para isso, esse leitor tem que também ser Borges,
assim
como
quando
ele
aponta
que
quem
lê
Shakespeare
é
Shakespeare. O que Borges silencia é o estatuto do verbo ler. Não
basta estar diante do texto de Shakespeare (ou, afinal, do próprio
Borges,
que
é
o
que
nos
interessa
mais
diretamente
nesta
discussão). O já-dito do verbo “ler” no contexto borgeano, significa
ter de se constituir proximamente como o sujeito Borges para poder
exercer o princípio unificador da função-autor, convertendo-se de
sujeito em autor, e neste caso, em leitor-autor.
A quarta
interpretação
está
baseada
no
mesmo
princípio,
tomando a alegoria em relação à hierarquia. A diferença, de grau, no
entanto, é decisiva. Já não há uma inversão hierárquica entre
atribuições humanas, mas entre o ser humano e a divindade. Este é
um momento das leituras feitas por Bloy em que se caracteriza a
transposição de uma FD para outra. Há aqui uma ruptura para com as
leituras que podem e devem ser praticadas. Há uma extrapolação
para uma exterioridade transgressora das memórias possíveis dentro
de uma interpretação cristã, principalmente católica. Afinal, já que se
tem que alegorizar a alegoria, Bloy vai até as últimas conseqüências
225
e intepreta que aquilo que vemos como sendo a divindade na verdade
somos nós e vice-versa 8 9 . Desta perspectiva (também relativamente
silenciada), nós estamos no céu (entenda-se, felizes) e Deus sofre na
terra (!). A partir deste momento, Bloy insere-se plenamente no
discurso da heresia (ou da loucura). Borges como narrador habilidoso
se exime de descrever as etapas e, pela gradação, expõe ao leitor o
patético. Este trecho exige menos conhecimento teológico do leitor,
pois fica evidente que uma inversão de hierarquia desta natureza
rompe inteiramente com uma tradição que pretenda valorizar a
divindade como ser absoluto.
Para entender-se mais detalhadamente essa passagem para a
exterioridade exilatória de uma FD cumpre considerar a terceira
interpretação de Bloy. Estruturalmente parece mais simples. É,
verdade
uma
conclusão,
deduzida
das
premissas
na
anteriores,
correspondentes a cada uma das etapas interpretativas do versículo
de São Paulo. Resume-se a considerar que, se estamos enganados
por uma inversão, tudo o que vemos é alegórico e portanto temos que
assumir que tudo é símbolo de tudo. É esse axioma que permite, na
interpretação seguinte, chegar ao patético de considerar que a
divindade sofre na terra e nós gozamos a glória divina (como Deus ?
– será que somos todos um único ser ?) no céu 9 0 .
89
Talvez Umberto Eco apreciasse este trecho como uma metáfora de exageros interpretativos de alguns
desconstrutivistas.
90
Cabe lembrar que Borges usou esta reductio ad absurdum, ligada a temas teológico-religiosos em pelo
menos três momentos mais representativos. Nos textos “Evangelio según Marcos”, “Tres versiones de Judas”
e “Los teologos”.
226
Na quinta, Bloy, através de Juana (quem ? Sóror Juana, mística
? – há aqui outro silêncio constrangedor para o leitor do texto), aplica
a inversão especular às sensações. Aquilo que consideramos gozos,
são os tormentos do inferno, vistos ao contrário. Mas se estamos
vivendo os tormentos do inferno, já estamos condenados, já que para
a teologia cristã em geral, o inferno é irrecorrível, significa a perda
definitiva da salvação. Não são mencionados os sofrimentos terrenos.
Pela inversão, seriam os gozos celestes.
Mas há que se considerar um problema interpretativo que não
se apresenta claramente, porque está assentado em silêncios tanto
227
por excesso quanto por ausência.
A falta total de referência à
oposição de céu (é terra ou inferno ?) na interpretação dessa
alegoria, recobre por excesso interpretações heresíacas.
Se se
supõe uma oposição céu/inferno (como a que está subjacente na
interpretação n.º 1), então quem se encontra no inferno, condenado
aos tormentos eternos da danação da alma é que realmente está no
céu e quem está no céu estaria no inferno. O problema é que tal
interpretação exclui a referência textual aos gozos terrenos. Aqui
parece haver uma comparação bastante complexa de três termos e
não de dois. Uma solução interpretativa seria considerar que céu
(elemento silenciado da tricotomia) alinha-se a inferno e à terra.
Assim, os gozos terrenos são infernais porque há a oposição
gozo/tormento e tormento é do campo do inferno.
Pela especularidade, inverte-se e o que é tormento passa a ser
gozo e, assim, quem sofre os tormentos infernais, sejam na terra ou
no inferno estão na verdade no céu. Essa seria uma interpretação
extremada do princípio cristão de “os últimos serão os primeiros e os
primeiros serão os últimos”.
As conseqüências últimas dessa concepção – que fariam para a
Inquisição a fogueira parecer um prêmio – é o estatuto da divindade.
Se o gozo terreno (e, por extensão o celeste, é o tormento
infernal invertido, e se a divindade participa do gozo celeste (ou,
mais propriamente, ele emana d’Ela) então a inversão é que a
divindade seria demoníaca e que os seres dos infernos seriam divinos
228
(!). Pelo mesmo princípio, os tiranos e piores homens seriam os mais
virtuosos, os incrédulos seriam os crentes mais sinceros e assim por
diante.
A sexta e última interpretação de Bloy é a dissolução panteísta
decorrente
das
conseqüências
da
terceira
interpretação.
Nesse
relativismo total, se tudo é símbolo de tudo, então nada é símbolo de
nada e já não se é possível estabelecer limites entre quem sou Eu,
quem
é
o
Outro.
Nisso,
os
dois
trechos
citados
por
Borges
convergem. A função de cada homem pode ser um grão de poeira,
uma montanha ou “os materiais invisíveis para edificar a Cidade de
Deus”.
Interessante alusão à Cidade de Deus, de Santo Agostinho.
Faz pensar, a partir da inversão da interpretação n.º 5, na conversão
do santo. Se tudo é especular, ele era santo quanto ímpio e, agora,
convertido e santificado, é pecador extremado. Borges coloca a
referência à Cidade de Deus, sem nenhuma manifestação.
A frase final citada por Borges, na sexta interpretação, é
emblemática. É oportuno repetir a citação:
La historia es un inmenso texto litúrgico donde las
iotas y los puntos no valen menos que los
versículos o capítulos integros, pero la importancia
de unos y de otros es indeterminable y está
profundamente escondida.
229
A sacralização da história e do mundo expressa na primeira
parte do trecho vale pouco em função de seu término. Afinal, já que a
importância de cada símbolo, sua dimensão é indeterminável, e já
que está profundamente escondida, tão escondida a ponto de ser
insondável, estamos condenados à solidão total da falta de sentido.
Somos incapazes de conhecer.
Este texto de Borges é particularmente complexo. Há um sujeito
do discurso, inscrito num gênero literário, manifestando-se como
princípio unificador, atribuindo coerência
a uma textualidade que se
constrói sobre um narrador que alterna os papéis de relator de outras
vozes e de intérprete delas. Como narrador, voz representativa do
ponto de vista assumido pelo autor enquanto função, é como se esse
Borges
personagem-narrador
ou
não
soubesse
das
informações
essenciais para que o leitor possa participar da produção dos
sentidos preconizada por um outro Borges narrador, em outras
materialidades textuais, representando outro Borges função-autor,
que nos diz que é o leitor que dá sentido à obra.
Um
leitor
tipicamente
borgeano, depois
dessa
“corrida
de
obstáculos” se colocaria a seguinte pergunta: por um acaso este texto
não seria, em um dos seus múltiplos sentidos, uma alegoria dos
modos de leitura e dos limites da interpretação ? Do labirinto sem
paredes em que estão confinados autor e leitor ?
230
Um analista do discurso faria talvez uma apreciação de que,
mais uma vez, Borges performativamente trabalha com o movimento
dos sentidos. São especulares, como um jogo que o leitor só
apreende se dele participa. Esses sentidos em deslocamento, sempre
trocando de posições, movem-se impregnados de silêncios, ora pelas
palavras, ora pelo que não é dito.
231
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sentimos
o
campo,
o
verdor, o silêncio. Já o
fato
de
haver
uma
palavra para designar o
silêncio parece-me uma
criação estética.
Jorge Luís Borges (Sete
Noites: A poesia)
Nunca dizer demais. Nunca,
nunca, dizer tudo. Já fiz essa
grande descoberta.
Monteiro Lobato, 1903
Chegar a um final de trabalho é sempre uma demarcação
provisória e arbitrária. Faz parte da delimitação incessante entre o
que foi dito através das palavras e igualmente silenciado através
delas, bem como aquilo que foi dito através do silêncio e apagado por
intermédio dele (e por intermédio das palavras). Mais do que isso,
faz-nos sentir que palavra e silêncio (e também cada uma delas e a
conjunção de ambas) são duas instâncias heterogêneas.
232
No início desta tese, foram estabelecidos objetivos, que eram:
1)
Identificar e discutir a existência de indícios (internos e/ou
externos ao texto) que remetam o leitor para o silêncio;
2) Proceder a uma breve caracterização desses indícios;
3) Dentro do universo de textos selecionados da produção
borgeana, apontar algumas especificidades do texto literário
escrito enquanto configuração específica de silêncio(s) como
procedimentos de instauração de heterogeneidade mostrada.
Os indícios analisados durante o trabalho relacionam-se, como
se espera ter ocorrido, primeiramente à justificativa da constituvidade
do silêncio para, em seguida, abordar como o silêncio emerge na
superfície do discurso enquanto procedimento de heterogeneidade
mostrada. No plano da constitutividade, somente é possível, do ponto
de vista metodológico, conceber o silêncio em vista de outros
sentidos que poderiam ser enunciados. É na alteridade desses
sentidos que se pensa o silêncio, o que Borges realiza com a
maestria de um jogo refinado e de uma criação estética sutil e
maliciosa. No plano da heterogeneidade mostrada, pode-se entender
que a proliferação dos jogos e armadilhas da estética desenvolvida
233
por Jorge Luís Borges, apresentam, no mínimo, o silêncio enquanto
excesso.
No decorrer da produção borgeana, da qual somente uma
pequena parte foi analisada aqui, o leitor é sempre levado a este jogo
ambíguo entre ausência e excesso. Peça fundamental na estética de
Borges, o leitor, no entanto, torna-se refém de um autor que, tal como
no modelo de Schinelo & Villarta-Neder (2000), também é leitor. Este
leitor é levado ao silêncio não só no sentido de que é colocado diante
de uma virtualidade de sentidos em face dos quais tem de exercer
complexas escolhas discursivas. Ele, igualmente, é conduzido ao
ocultamento
e/ou
construídos
do
à
contradição.
discurso
Ao
borgeano
primeiro,
são
sempre
porque
os
pré-
labirínticos;
à
contradição, porque são caleidoscópicos: o que parece ser engodo é
engodo mesmo, mas precisa ser desvelado enquanto tal. O leitor
precisa descobrir que foi enganado para fruir o truque. É nesse
espaço dialético que o silêncio significa, sem deixar de ser silêncio.
Ao mesmo tempo, cumpre considerar a relação entre o jogo
apresentado ao leitor por Borges e os esquecimentos discutidos por
Pêcheux. Borges ao mesmo tempo desmistifica o espaço de autoria
enquanto fonte e origem do sentido. Para a estética borgeana não só
os textos, mas o próprio Universo é uma gigantesca paráfrase. Mas,
contraditoriamente, é este mesmo autor que supervaloriza o leitor,
que espera dele a cumplicidade nos jogos, no engodo, na construção
de um labirinto especular onde este leitor se reconheça como autor,
234
seja pela inversão da imagem, seja pela visualização lacaniana tal
como no Estádio do Espelho. Borges, autor , dialeticamente também
fragiliza
o
esquecimento
número
2.
Assim
como
no
controle
necessário do jogo discursivo do humor, o sujeito-autor borgeano só
é possível mediante uma urdidura de filigranas cinzeladas por um
autor. Marx & Engels (1989:35), no texto “Ideologia Alemã”, ao
comentarem as condições reais e materiais da produção e da criação
de diferentes consciências, afirmam que “(...) indivíduos criam uns
aos outros, no sentido físico e moral (...)”. Por razões muito
diferentes, o texto borgeano faz o mesmo.
Ao fazê-lo, paradoxalmente, torna pertinente essa associação
com
posições
marxistas
que
estão
na
base
da
AD
francesa:
estabelecido esse dinamismo de posições entre autor e leitor, Borges
fornece uma oportunidade valiosa para ser questionada a antihistoricidade da ideologia como um todo apontada por Althusser . São
nossas opções históricas enquanto sujeitos únicos e insubstituíveis
(estes dois termos no sentido althusseriano) que nos permitem nos
constituirmos ou não como esses autores-leitores indispensáveis para
interagirem com o texto borgeano. Sem a consciência do jogo, tal
constituição não se dá. Se por um lado isso não representa um
grande controle, por outro representa algum.
Quanto
ao
segundo
objetivo
proposto,
que
seria
a
caracterização desses indícios de silêncio, pôde-se ver que eles são
de naturezas distintas. De um lado, da constitutividade, somente são
235
possíveis pela presença do Outro, pela alteridade. São os discursos
não previstos ou excluídos pela interdição fundadora das FDs (o que
se pode ou deve dizer, o que não se pode, não se deve dizer; o que
se pode ou deve silenciar, o que não se pode ou não se deve
silenciar) em contraposição aos discursos produzidos que
permitem
rastrear as penumbras dos silêncios. De outro lado, os indícios de
silêncio
são
interpretáveis
a
partir
de
estratégias
textuais
e
discursivas que se congregam na modalização autonímica. Há, neste
caso,
modalizações autonímicas referentes ao dizer (seja pela
retificação, seja pela dificuldade em dizer) e ao silenciar (por
exemplo, no poema “El espejo”, quando o enunciador explicita: “ A
nadie lo dije ; el niño es timido.” – destaque nosso). Isso apresenta
uma distribuição entre a materialidade da língua e as instâncias mais
externas e abstratas, subjacentes à constitutividade.
Sob o ponto de vista da AD francesa, pode-se conceber que no
funcionamento do interdiscurso, a maneira como os pré-construídos
são trazidos para cada FD manifesta uma materialidade do silêncio.
Os pré-construídos interditados são preenchidos pelo silêncio , tais
como, analogicamente, os bens e necessidades interditados nas
relações de produção. O silêncio como excesso também pode ser
relacionado à materialidade, na medida em que materializa, no nível
da ideologia, um desvio do olhar das reais necessidades e da forma
como as relações entre as forças produtivas e as de dominação
estabelecem e mantém o funcionamento da sociedade.
236
Há que se considerar ainda a materialidade da língua. Se, como
foi exposto no decorrer do trabalho, não é somente a ausência da
palavra
que constitui o silêncio , mas
a própria
palavra, como
excesso, também representa uma de suas possibilidades, haverá uma
materialidade dessas palavras que, organizadas formalmente de uma
maneira e não de outra, se constituirão como silêncio.
Quanto
à
escrita,
especificamente,
alguns
autores,
como
Orlandi (1992), entendem que ela é um espaço privilegiado para o
silêncio. A análise desenvolvida no decorrer desta tese apela para
uma concepção mais cautelosa. Uma escrita menos imbricada por
outras linguagens facilita metodologicamente a discussão sobre seus
silêncios. Pensar numa hegemonia da escrita neste aspecto pode
representar, entre outras implicações, um silêncio sobre as condições
de funcionamento da fala. Obviamente este silêncio existe, mas, do
ponto de vista deste trabalho, preferiu-se assumir tal silêncio como
segredo, em função do quanto ainda não se sabe, no nível do
conhecimento acadêmico, a respeito de determinadas condições da
fala.
É necessário, no entanto, que não se deixe enganar com
facilidade: uma página de jornal, com a convivência de diversas
linguagens, entre elas a escrita, nos colocaria em situação muito
próxima à da fala, quanto à possibilidade de análise do silêncio . Num
texto multimídia, o desafio avoluma-se exponencialmente. O que
concede à escrita mais linear do ponto de vista da diagramação e do
237
uso dos grafemas analisada aqui (os textos borgeanos) alguma
operacionalidade é
que ela incorre em um cenário contextual mais
reduzido do que a fala, tendo o autor de um texto desta natureza,
principalmente quando escrito em prosa, que se utilizar de uma
contextualização mais cuidadosa, através quase que exclusivamente
das próprias palavras.
Nesse
final
provisório,
a
metáfora
que
acompanhou
o
movimento dos sentidos, em função do próprio movimento dos
sentidos aqui trabalhados, transmuta-se. Para a Física, o ângulo de
incidência da luz é sempre igual ao ângulo de reflexão. Usamos o
espelho, a luz, a visão e a reflexão como metáfora. No entanto,
tratando-se
do
movimento
dos
sentidos,
talvez
coubesse
uma
metáfora mais rica: diferentemente de um único espelho , seria mais
apropriado pensar num caleidoscópio.
Assim, a interpenetração entre as diferentes FDs, as retomadas
e (de)negações de pré-construídos no interior do interdiscurso, o jogo
contínuo e complementar entre silêncios e palavras, palavras e
palavras e entre silêncios e silêncios pode ser vislumbrado de uma
maneira mais rica. Nos inúmeros espelhos virtuais criados no interior
de um caleidoscópio, podemos visualizar simetrias infinitas e zonas e
regiões ambíguas 9 1 , numa relação dialógica entre as imagens. Tal
como os labirintos borgeanos.
91
Esses dois últimos termos são tomados da própria Física.
238
Culturalmente, estamos habituados a manter momentos de
silêncio em circunstâncias graves, nas quais a construção de um
discurso através das palavras se faz inconveniente por constituir-se,
talvez, frágil diante da perplexidade, do mistério ou da comoção. O
que ignoramos sistematicamente na nossa tradição analítica é que
esses momentos silenciosos são somente uma parte da constituição
do discurso. Antes de mais nada, eles são também discursos, em
outras linguagens que sobrepõem a palavra.
Para Borges, cada
palavra é uma criação estética.
Entenda-se esta estética como uma infinita intertextualidade,
cuja trama constitui o que entendemos por universo. Presos pela
impossibilidade de conhecermos o mundo a não ser mediados pelas
nossas próprias concepções sobre ele, chegamos no olhar-paradentro-de-si borgeano, a uma radical desconstrução dos limites entre
a literatura e o conhecimento: para Borges, a metafísica é um ramo
da literatura fantástica. Afirmação extremamente polissêmica, se nos
debruçarmos atentamente para a noção de fantástico. Para Todorov ,
esse instante instável de revelação e de multiplicidade de sentidos
que instiga o leitor a construir um sentido que dê o fechamento
necessário (mas provisório) do texto e do discurso.
Sendo
assim,
a
metafísica
não
é
um
ramo
da
literatura
fantástica apenas porque chega a tramas cheias de perplexidade,
mas também porque exige de nós, como leitores, essa atitude
imprescindível para a estética borgeana que é a do leitor que
239
participa, mesmo sem saber exatamente a sua função (“a máquina do
mundo é bastante complexa para a simplicidade dos homens” –
Inferno I, 32 in El Hacedor). Tal como o tigre encarcerado existe e
vive seu cativeiro para dar
dependendo da tradução)
ao
a
palavra
poema
tigre
(ou leopardo,
de Dante, este último existe
para ser uma referência no texto de Borges , que também a é em
outros tantos textos.
Tal concepção permite estabelecer uma relação com conceitos
tão caros ao momento histórico-tecnológico que estamos vivendo, tais
como os de hipertexto, mundo virtual. O final do texto de Pierre Levy
(2002), “Nós somos o texto”, dá uma idéia dessa similaridade:
Por intermédio dos espaços virtuais que os
exprimiriam, os coletivos humanos se jogariam
a uma escritura abundante, a uma leitura
inventiva deles mesmos e de seus mundos.
Como certos manifestantes desse fim de
século gritaram nas ruas “Nós somos o povo”,
poderemos então pronunciar uma frase um
pouco bizarra, mas que ressoará de todo seu
sentido quando nossos corpos de saber
habitarem o cyberspace: “Nós somos o texto.”
E nós seremos um povo tanto mais livre quanto
mais nós formos um texto vivo.
A diferença é o tom mais politizadamente explícito no texto de
Levy, mas fica um laço comum. Há uma escritura que nos faz textos,
ou seja, que nos coloca num grau de similitude com as outras
instâncias do universo com as quais convivemos. Não importa
240
realmente discutir aqui o que elas efetivamente são, uma vez que a
nossa
mediação
textualização,
de
através
do
discurso
discursivização.
tornará
Sem
esse
tudo
passível
de
amplo
quadro
de
referências textuais, perdemos nossa identidade, labirinto que funde
nossas experiências numa tentativa de unidade, que, da perspectiva
estética de Borges, só pode ser textual. Isso se insinua no parágrafo
final do Epílogo de El Hacedor:
Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo.
A lo largo de los años puebla un espacio com
imágenes de provincias, de reinos, de montañas, de
bahias, de naves, de islas, de peces, de
habitaciones, de instrumentos, de astros, de
caballos y de personas. Poco antes de morir,
descubre que ese paciente laberinto de lineas traza
la imagen de su cara. (1989: 854)
A obra borgeana articula silêncios como qualquer outro texto. O
que ela tem de peculiar é um requinte de jogo através de espelhos e
labirintos (entre outros símbolos), de tal forma que induz o leitor a
silenciar, de uma forma urdida pelo autor (leitor do processo a ser
desencadeado
multiplicação
pelo
de
leitor
empírico).
obstáculos,
Esse
armadilhas,
embuste
detalhes
dá-se
pela
textuais
que
somente são compreendidos e visualizados no manejo constante
desse amplo quadro de referências.
Se num texto que não tenha uma intenção estética consciente
haverá redirecionamentos feitos pelo leitor , quando este ignora e
241
sobrepõe sinais e indícios expressos na superfície do texto ou
implicitados nas estratégias de construção textual, o texto borgeano,
com sua estética radicalmente intertextual, multiplica ad infinitum
esses redirecionamentos.
A obra de Borges alude ao universo como infinito 9 2 não porque
o represente perfeitamente. Esta utopia da representação exata das
coisas achas-se ridicularizada em outro texto de El Hacedor que se
chama “Del rigor en la ciencia” e que é citado por Borges como sendo
de Suárez Miranda, de 1658. Tal texto relata a tentativa dos
cartógrafos de um Império - indefinido no tempo e no espaço - de
fazer um mapa que coincidisse exatamente com os lugares que
representa. O texto diz que as gerações seguintes perceberam a
inutilidade desses mapas e os abandonaram. O final deixa perceptível
a ironia:
(...) En los
despedazadas
Animales y por
otra reliquia de
847)
desiertos del Oeste perduran
Ruinas del Mapa, habitadas por
Mendigos; en todo el Pais no hay
las Disciplinas Geográficas. (1989:
Dessa perspectiva, portanto, qualquer texto (e os de Borges ,
mais exemplarmente) integra-se nesse ciclo de alusões, imperfeitas
sempre, mas interdependentes e complementares. Nesse labirinto
92
Aspecto apontado por Monegal na sua resenha da crítica francesa de Blanchot
242
sem paredes só restam citações, como se conscientiza o antiquário
Joseph Cartaphilus, em El inmortal:
Cuando se acerca el fin, escribió Cartaphilus, ya no
quedan imágenes del recuerdo; sólo quedan
palabras. Palabras, palabras despedazadas y
mutiladas, palabras de otros, fue la pobre limosna
que le dejaron las horas y los siglos. (1989: 544)
Os elos desses liames que articulam esse ciclo existem apenas
como afinidades reveladas pelo fantástico. Tal como as “semelhanças
de família” de Wittgenstein, é inútil procurarmos nelas um único traço
definidor, uma unidade que não seja a da perplexidade multifacetada
do mundo. Como sinaliza Borges no poema “Las Cosas”,
tal
perplexidade não será compartilhada pelos objetos do mundo com os
quais vivemos ou que nos servem de escravos, essas coisas “Durarán
más allá de nuestro olvido: No sabrán nunca que nos hemos ido.”
Espera-se que na discussão desenvolvida neste trabalho tenha
se
evidenciado
a
noção
não
de
que
os
sentidos
da
escrita,
particularmente dos textos analisados de Jorge Luís Borges, tenham
sido aprisionados ou congelados. Nem que os silêncios daqueles
textos tenham sido desvelados pelas palavras deste outro.
Enquanto movimento de sentidos, tal como a palavra, o silêncio
também é múltiplo. Também participa da ausência e do excesso,
processos complementares e constitutivos dos quais o engodo, o
autoengano, o jogo e a diferença são elementos fundamentais.
243
Borges, no texto “Los dos reyes y los dos laberintos”, relata o
caso de um rei da Babilônia que, para zombar de um rei árabe,
coloca-o num labirinto no qual este último fica perdido por toda uma
tarde. O rei árabe, como vingança, arrasa Babilônia e, levando o
primeiro rei prisioneiro, propõe-se a mostrar outro labirinto: “donde
no hay escaleras que subir, ni puertas que forzar, ni fatigosas
galerías que recorrer, ni muros que te veden el paso ”. Após três dias
de caminhada, abandona o rei de Babilônia no meio do deserto, onde
este último morre de sede e de fome.
Para usar uma metáfora aproximada, podemos conceber o
movimento dos sentidos como esse imenso labirinto onde os silêncios
e as palavras criam limites instáveis e em constante mutação. Ele é
real, material, como são suas dunas, seus ventos, sua interminável
amplidão. Seus limites, porém, movem-se
sempre, dinâmicos e
desafiadores. Analisá-los exige, mais do que qualquer outra coisa, a
disponibilidade
para
esse
movimento
nem
sempre
visível,
mas
sempre presente.
244
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ÍNDICE REMISSIVO E ONOMÁSTICO
A
Althusser............................................................................................................................................................. 74, 200, 235
apagamento............................................................................................................................................................... 133, 138
Apagamento(s)................................................................................... 6, 27, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 44, 49, 67, 100, 169, 180
Authier-Revuz........................................................................................ 15, 24, 27, 31, 32, 35, 37, 38, 41, 42, 44, 57, 60, 70
Autor..... 10, 15, 16, 18, 34, 37, 63, 66, 69, 70, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106,
107, 108, 109, 111, 115, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 154, 155, 157, 158,
159, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 208, 209, 210, 234, 235, 238, 241, 248
B
Barthes........................................................................................................................................................................ 32, 106
Blanchot................................................................................................................................... 63, 64, 65, 66, 67, 69, 76, 242
Borges..3, 5, 16, 17, 18, 19, 62, 63, 64, 65, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 82, 87, 88, 93, 94, 99, 100, 107, 116, 117,
119, 121, 122, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 149, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 161, 163, 173, 174, 189, 191,
199, 202, 207, 208, 209, 211, 232, 233, 234, 239, 240, 241, 242, 243, 244
C
Courtine................................................................................................................................................................ 24, 44, 169
Courtine & Marandin.......................................................................................................................................................... 34
D
Discurso.6, 11, 14, 16, 22, 27, 28, 33, 34, 35, 36, 41, 42, 43, 48, 57, 59, 60, 74, 75, 82, 89, 93, 95, 114, 121, 126, 170, 182,
183, 195, 196, 198, 200, 208, 210, 211, 233, 234, 239, 241, 248, 255, 259
Ducrot................................................................................................................................................................... 25, 26, 104
E
Eco.......14, 20, 59, 60, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113,
114, 115, 116, 117, 118, 121, 122
Eco, Umberto............................................................................................................................................................ 120, 226
Elliot............................................................................................................................................................................. 71, 72
Espelho...... 16, 39, 40, 42, 45, 46, 48, 49, 58, 65, 67, 161, 167, 168, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 188,
189, 190, 192, 193, 194, 196, 197, 238, 249, 253, 261, 266, 267
F
Fiorin............................................................................................................................................................................ 41, 42
Formações....................................................................................................................................................... 24, 55, 57, 200
Formações..............................................................................................................................................................................
discursivas................................................................................................................................................ 14, 27, 180, 198
Foucault.................................................................................................. 54, 59, 75, 76, 79, 87, 123, 125, 126, 127, 128, 131
Freud......................................................................................................................................................... 125, 126, 199, 250
G
Genette.................................................................................................................................................. 69, 70, 71, 72, 75, 76
Ginzburg........................................................................................................................................................... 202, 204, 206
I
Interdiscurso............................................ 29, 34, 35, 36, 44, 60, 127, 169, 170, 180, 183, 186, 190, 198, 200, 204, 236, 238
Iser.................................................................................................................................................................................... 122
J
Jakobson...........................................................................................................................................................................
103
L
Lacan.............................................................................................. 31, 45, 102, 177, 179, 180, 181, 193, 195, 199, 204, 206
Lajonquiere............................................................................................................................................... 178, 179, 180, 187
Laplantine......................................................................................................................................................................... 184
Leitor..... 6, 12, 18, 27, 59, 60, 63, 68, 70, 71, 72, 82, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104,
105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 114, 117, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 127, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 150,
154, 156, 157, 158, 159, 175, 188, 191, 195, 208, 209, 210, 233, 234, 235, 239, 241
Lévis-Strauss...................................................................................................................................................................... 96
Levy.................................................................................................................................................................................. 240
M
Macherey...................................................................................................................................................................... 74, 75
Maingueneau...................................................................................................................................................................... 34
Marx......................................................................................................................................................................... 125, 235
Merleau-Ponty.................................................................................................................................................................... 21
Monegal...................................................................................... 63, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 87, 141, 149, 154, 157, 159, 242
262
O
Ollier................................................................................................................................................................................... 74
Orlandi..................................................................................................................... 15, 20, 21, 28, 36, 37, 38, 127, 196, 237
P
Pêcheux.................................................................................... 14, 15, 17, 24, 58, 65, 88, 159, 171, 187, 209, 234, 252, 260
Pessanha............................................................................................................................................................................. 47
Poe...................................................................................................................................................................................... 73
Possenti..................................................................................................................................................................... 200, 211
R
Reboul......................................................................................................................................................................... 90, 101
Rey-Debove........................................................................................................................................................................ 35
Ricardou............................................................................................................................................................................. 73
S
Schinelo................................................................................................................................................................................ 4
Schinelo & Villarta-Neder........................................................................................................................................ 134, 234
Silêncio6, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 44,
46, 49, 50, 51, 52, 54, 55, 58, 59, 60, 61, 63, 65, 66, 67, 70, 88, 91, 98, 103, 106, 109, 114, 115, 123, 126, 128, 143,
168, 169, 170, 171, 172, 183, 186, 187, 190, 193, 194, 195, 196, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 232, 233, 234, 235, 236,
237, 239, 243, 245, 251, 255, 260, 261
Silêncio...................................................................................................................................................................................
ausência.......10, 11, 16, 20, 21, 22, 23, 27, 29, 30, 44, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 112, 115, 126, 143, 168, 169, 175, 186,
190, 193, 194, 196, 208, 209, 234, 237, 243
excesso.... 11, 16, 17, 24, 28, 29, 38, 44, 54, 55, 56, 59, 126, 128, 143, 169, 174, 175, 186, 193, 196, 207, 234, 236, 237,
243
T
Todorov............................................................................................................................................................................
239
V
Valéry................................................................................................................................................................... 71, 72, 154
Villarta-Neder..................................................................................................................................................................... 44
W
Wittgenstein....................................................................................................................................................
79, 80, 81, 243
263
ANEXOS
264
SALA VACÍA 9 3
los muébles de caoba perpetúan
entre la indecisión del brocado
su tertulia de .siempre.
Los daguerrotipos
mienten su falsa cercanía
de tiempo detenido en un espejo
y ante nuestro examen se pierden
como fechas inútiles
de borrosos aniversarios.
Desde hace largo tiempo
sus angustiadas voces nos buscan
y ahora apenas están
en las mañanas iniciales de nuestra infancia.
La luz del dia de hoy
exalta los cristales de la ventana
desde la calle de clamor y de vértigo
y arrincona y apaga la voz lacia
de los antepasados.
93
In Fervor de Buenos Aires, 1923.
265
Animais dos Espelhos 9 4
Num dos volumes das Cartas Edificantes e Curiosas que
apareceram em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o
Pe. Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das
ilusões e erros do povo de Cantão; num levan tamento preliminar
anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém
havia tocado, mas que muitos alegavam ter visto no fundo dos
espelhos. O Pe. Zallinger morreu em 1736 e o trabalho iniciado por
sua pena ficou inacabado; cento e cinqüenta anos depois, Herbert
AIlen Giles assumiu a tarefa interrompida.
Segundo Giles, a crença no Peixe é parte de um mito mais
amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo.
Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens
não
estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito
diferentes;
não
coincidiam
nem
os
seres nem as cores nem as
formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz;
entrava-se
espelho
e saía-se pelos espelhos.
invadiu
a
Este
espelhos e lhes impôs
94
noite, a gente do
Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de
sangrentas batalhas as artes mágicas
prevaleceram.
Uma
rechaçou
a
tarefa
os
de
do
Imperador Amarelo
invasores,
repetir,
encarcerou-os nos
como
numa
espécie
In Livro dos Seres Imaginários, 1974
266
de sonho, todos os atos dos
de sua
homens. Privou-os de sua força e
figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia,
entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia.
O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho
perceberemos uma linha muito tênue e a cor dessa linha não se
parecerá com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras
formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos
imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não
serão vencidas. Junto as criaturas dos espelhos combaterão as
criaturas da água.
No Yunnan não se fala do Peixe e sim do Tigre do Es pelho.
Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos
espelhos o rumor das armas.
267
EL ESPEJO 9 5
Yo, de niño, temía que el espejo
Me mostrara otra cara o una ciega
Máscara impersonal que ocultaría
Algo sin duda atroz. Temí asimismo
Que el silencioso tiempo del espejo
Se desviara del curso cotidiano
De las horas del hombre y hospedara
En su vago confin imaginario
Seres y formas y colores nuevos.
(A nadie se lo dije; el niño es timido.)
Yo temo ahora que el espejo encierre
Ei verdadero rostro de mi alma,
Lastimada de sombras y de culpas.
El que Dios ve y acaso ven los hombres.
95
In Historia de La Noche, 1977.
268
(foto de domínio público)
269