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OS MOVIMENTOS DO SILÊNCIO: OS MOVIMENTOS DO SILÊNCIO

This thesis undertakes a reflection on the silence in relation to the production of the senses, using as corpus literary texts of Jorge Luís Borges, related to the thematic of the mirror, metaphor used in this work to represent the silent path of the movement of the meanings.

MARCO ANTONIO VILLARTA-NEDER OS MOVIMENTOS DO SILÊNCIO: ESPELHOS DE JORGE LUÍS BORGES UNESP MARCO ANTONIO VILLARTA-NEDER OS MOVIMENTOS DO SILÊNCIO: ESPELHOS DE JORGE LUÍS BORGES Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras – área de concentração em Lingüística e Língua Portuguesa – da Universidade Estadual Paulista para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento ARARAQUARA 2002 2 DEDICATÓRIA À Neusa, muito mais do que esposa, minha iniciadora nos espelhos de Borges, e que se faz presente como Outro que me dá a identidade necessária para viver intensamente. A minha mãe, Olga, pelo que me ensinou a buscar e pela oportunidade de poder compartilhar leituras de Borges. A Maria Helena Martins de Oliveira, pelos rumos que me tornou possível tomar nesse labirinto fascinante que é estudar a linguagem. 3 Agradecimentos A minha esposa, minha família e amigos pela compreensão, apoio e pelo quanto me cederam um tempo meu que era deles. À minha orientadora, Profa. Dra. Edna Maria Fernandes do Nascimento, pela confiança no projeto e pela firmeza e solicitude com que tratou o difícil processo de construção desta tese. A Rosimar de Fátima Schinelo pelas valiosas discussões e pela crença num trabalho, antes que ele tivesse tomado forma. A André Luís de Campos pelas leituras, discussões e pela torcida amiga diante das ansiedades que cercaram essa escritura. A João Bôsco Cabral do Santos, pela trajetória de amizade e trabalho conjunto que resultou em momentos importantes de discussão e de apoio. A Ítalo Oscar Riccardi León pelo interesse amigo e pela solidariedade. Aos colegas da Pós, pela convivência, por todos os momentos acadêmicos, pela troca de experiências e, principalmente, pela oportunidade de experimentarmos juntos outras escritas. Aos professores e funcionários da Unesp-Ar pelo apoio e convivência que viabilizaram etapas necessárias desta tese. Aos que, de alguma forma, contribuíram para a confecção deste trabalho. 4 René Magritte - “Reprodução Proibida (Retrato de Edward James)”, 1973 Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é, quiçá, o modo mais enfático de indicála. Jorge Luís Borges - O Jardi m dos Caminhos que se bifurcam Hablar sobre el silencio constituye un delito... Es atentar contra una realidad misteriosa e indescriptible, es pisar un terreno desconocido, es introducirse en un reino escondido e desértico donde la palabra es una intrusa. Francesc Torralba Roselló – El silencio: un reto educativo 5 RESUMO Esta tese empreende uma reflexão sobre o silêncio em relação à produção dos sentidos, tendo como corpus textos literários de Jorge Luís Borges, voltados para a temática do espelho, metáfora utilizada neste trabalho para representar a trajetória silenciosa do movimento dos sentidos. O silêncio é aqui assumido em duas categorias: (1) ausência, que representa o não dizer, e (2) excesso, que compreende a sobreposição que a palavra instaura sobre o silêncio ou sobre outras palavras. Essas relações dialéticas e complementares fazem do silêncio, mais que um apagamento das vozes do discurso, um procedimento de instauração da heterogeneidade. Sustentada na Análise do Discurso de linha francesa, discutiu-se o processo de constituição dos sentidos como movimento, do qual participa(m), o(s) silêncio(s), a palavra e a relação dialética entre eles, tendo como objetivos: (a) Identificar e discutir a existência de indícios (internos e/ou externos ao texto) que remetam o leitor para o silêncio; (b) discutir relações entre operações metaenunciativas, relações intertextuais e o texto escrito; c) no universo de textos selecionados da produção borgeana, apontar algumas especificidades do texto literário escrito enquanto configuração específica de silêncio(s) como procedimentos de instauração de heterogeneidade mostrada. Discutiram-se ainda as relações entre silêncio, autoria e funções do autor e do leitor, aspectos diretamente ligados às concepções e ao fazer estético da obra borgeana. Quanto a esta última, buscou-se caracterizá-la como um jogo dialético entre diversidades de silêncios, heterogêneos, e a relação destes com a palavra. 6 ABSTRACT This thesis undertakes a reflection on the silence in relation to the production of the senses, using as corpus literary texts of Jorge Luís Borges, related to the thematic of the mirror, metaphor used in this work to represent the silent path of the movement of the meanings. The silence is assumed here in two categories: (1) absence, that represents the non-saying, and (2) excess, which represents the superposition that the word establishes on the silence or on other words. Those dialectic and complimentary relationships with the silence, more than a deletion of the voices of the discourse, is a procedure of establishment of the heterogeneity. Sustained in the Discourse Analysis of French line, the process of constitution of the meanings was discussed as movement, of which participate, silence(s), the word and the dialectic relationship among them. The work’s objectives are the following: (a) to identify and to discuss the existence of indications (internal and/or external to the text) that send the reader for the silence; (b) to discuss relationships among metaenunciative operations, intertextual relationships and the written text; c) in the universe of selected texts of the borgean production, to point out some specificities of the literary writing text while specific configuration of silence(s) as procedures of establishment of shown heterogeneity. They were still discussed the relationships among silence, authorship and the author's and the reader’s functions, aspects directly linked to the conceptions and to the aesthetic of the borgean work. Related to this last one, they were characterised as 7 a dialectic game between diversities of silences, heterogeneous, and the relationship of these with the word. 8 ÍNDICE RESUMO_____________________________________________________v ABSTRACT________________________________________________ ___vi RESUMO________________________________________________________ 6 ABSTRACT..................................................................................................................................................... 7 INTRODUÇÃO__________________________________________________10 CAPÍTULO 1____________________________________________________19 ANÁLISE DO DISCURSO E SILÊNCIO____________________________19 1.1– PRESSUPOSTOS TEÓRICO-EPISTEMOLÓGICOS..................................................................................................... 19 1.2– OUTROS OLHARES SOBRE O SILÊNCIO ............................................................................................................. 36 1.3– O ESPELHO COMO METÁFORA........................................................................................................................ 39 1.4– ESPELHO COMO PROCESSO DE REPRESENTAÇÃO.................................................................................................40 1.5– O ESPELHO DE LACAN................................................................................................................................. 45 1.6– DIVERSIDADES DE SILÊNCIOS NO MOVIMENTO DOS SENTIDOS...............................................................................52 1.7– SILÊNCIO COMO AUSÊNCIA X REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA...................................................................................55 1.8– SILÊNCIOS INDICIADOS..................................................................................................................................58 CAPÍTULO 2____________________________________________________62 LEITUR AS SOBRE BORGES_____________________________________62 2.1 – CRÍTICA FRANCESA..................................................................................................................................... 63 2.2 – OUTROS ASPECTOS CRÍTICOS ....................................................................................................................... 76 CAPÍTULO 3____________________________________________________87 AUTORIA, PAPEL DO LEITOR E EFEITO ESTÉTICO______________87 3.1 – AUTOR, LEITOR E TEXTO..............................................................................................................................91 3.1.1 – Obra Aberta....................................................................................................................................92 3.1.2 – Lector in Fabula...........................................................................................................................102 ............................................................................................................................................................................ 102 3.1.3 – Interpretação e Superinterpretação............................................................................................. 110 3.2 – AUTORIA, FUNÇÃO DO LEITOR E SILÊNCIO.....................................................................................................123 3.3 – AUTORIA E ESTÉTICA DO LEITOR EM BORGES............................................................................................... 140 CAPÍTULO 4___________________________________________________161 NO SILÊNCIO DO ESPELHO____________________________________161 4.1 – CORPUS.................................................................................................................................................. 161 4.2 – TEXTOS ANALISADOS................................................................................................................................ 163 4.2.1 – Sala vacía..................................................................................................................................... 163 9 4.2.2 – El espejo....................................................................................................................................... 175 4.2.3 – Animais dos Espelhos...................................................................................................................191 4.2.4 – El espejo de los enigmas.............................................................................................................. 212 CONSIDERAÇÕES FIN AIS______________________________________232 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________245 BIBLIOGR AFIA________________________________________________254 ÍNDICE REMISSIVO E ONOMÁSTICO____________________________262 ANEXOS______________________________________________________ 264 10 INTRODUÇÃO Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida ? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. Guimarães Espelho Rosa – O Esta tese é o resultado de uma trajetória que se iniciou em lugares muito diferentes: primeiramente a pesquisa imaginava olhar para o professor que se forma e se debate diante dos desafios crescentes que a atividade educacional exige e no quanto lhe faltaria saber sobre a constitutividade do silêncio em seu trabalho cotidiano com a linguagem na sala de aula. No entanto, a reflexão iniciada desta forma acabou por instigar um contorno mais teórico, em nome de uma curiosidade acadêmica que já não se satisfazia mais em se perguntar por que o professor não se dá conta do(s) silêncio(s), mas passou a se questionar até que ponto as próprias áreas tradicionalmente responsáveis pela produção do conhecimento acadêmico sobre a linguagem, notadamente a lingüística, assumiriam teórica e epistemologicamente a construção de conhecimentos nessa direção. Assim, o autor desta tese talvez constitua-se numa outra espécie de sujeito, que não se contenta em se constituir através do 11 que diz. Em vez disso, sua tarefa é também constituir-se através do que diz a respeito do dizer. Inicialmente, como foi dito acima, partiu-se de um interesse em perscrutar os silêncios que o discurso pedagógico, especificamente no ensino de português como língua materna, faz a respeito de pressupostos indispensáveis da leitura e da escrita, e de um silêncio ainda mais amplo, já que também se cala sobre os efeitos discursivoargumentativos do silêncio. Em algum momento desta reflexão houve um desejo de se esboçar um estudo mais teórico sobre as condições de produção do silêncio. Assim, o silêncio tornou-se objeto de análise, dado que ele pode ser caracterizado (1) como ausência e, como tal, torna-se difícil reconstituir o que não se disse; (2) como excesso e, também nesse caso, existe uma dificuldade, já que se tem que buscar um dizer virtual que teria sido sobreposto. Para indícios 1 resolver de essa silêncios. questão, buscou-se a A constituiu-se etapa seguinte identificação de pelo levantamento de um corpus. Coube uma decisão metodológica de trabalhar exclusivamente com textos escritos. Tal decisão foi motivada por dois fatores: a) uma suspeita de que a interlocução via escrita apresenta níveis de silêncio não presentes na fala; 1 Usa-se aqui a palavra “indício” porque permite, neste momento inicial da discussão, abranger tanto estratégias marcadas textualmente, quanto situações não marcadas no texto, mas que contextualmente possam remeter o sujeito a outras enunciações. 12 b) uma maior operacionalidade, já que analisar a fala implicaria necessariamente lidar com várias linguagens de forma simultânea. Neste âmbito, os silêncios da fala poderiam não ser silêncios propriamente, mas espaços de interpenetração dessas linguagens. No caso de uma escrita sem concomitância com outras linguagens, estaríamos diante de uma situação mais direcionada, pois os aspectos extralingüísticos seriam limitados às características visuais da diagramação e dos grafemas. No decorrer deste processo foram inicialmente utilizados textos literários, jornalísticos e científicos. Posteriormente, em função do escopo deste trabalho, foram selecionados alguns textos literários e definidos, a partir disso, os objetivos desta tese: 1) Identificar e discutir a existência de indícios (internos e/ou externos ao texto) que remetam o leitor para o silêncio; 2) Proceder a uma breve discussão a respeito das relações entre operações metaenunciativas, relações intertextuais e o texto escrito; 3) Dentro do universo de textos selecionados da produção borgeana, apontar algumas especificidades do texto literário escrito enquanto configuração específica de silêncio(s) como procedimentos de instauração de heterogeneidade mostrada. Inscrita dentro de uma trajetória de reflexão sob o prisma da Análise do Discurso de linha francesa (AD daqui em diante), esta tese 13 pretende constituir-se como um fazer epistemológico que estabeleça um diálogo entre concepções vigentes e alguns pressupostos sobre a produção dos sentidos. Um dos aspectos que se pretende discutir aqui é o quanto o processo de produção de sentidos sempre, de alguma forma, está diante de uma delimitação entre a palavra e o silêncio. Paradoxalmente, dizer algo sobre o silêncio pode parecer uma pretensão de transformá-lo integralmente em palavra. Revelá-lo, desvendá-lo. Qual um véu de Ísis, seria atingir seus segredos. Não é o caso. O silêncio, da posição que se assume nesta tese, não é somente dinâmico no sentido de que se move; se ele é, por essa característica, movediço, também o é no mesmo âmbito da areia que, se acomodando, jamais adquire uma estabilidade e traga para suas profundezas qualquer um que se aventure a pisar seu solo aparentemente seguro. Dessa perspectiva, trabalhar com o silêncio é, antes de mais nada, assumir que tal tarefa consiste intermitentemente num deslocamento. Atribuir sentidos a alguns silêncios pelo recobrir da palavra é, inevitavelmente, puxar um cobertor bem menor do que o próprio corpo: cria-se um jogo infinito entre outros espaços de silêncio. Para que tal atividade seja possível, pretende-se em relação à AD, fio condutor do trabalho, estabelecer, em momentos bastante 14 pontuais do trabalho, algumas alteridades epistemológicas 2 . Ora se fará necessária a presença de aspectos filosóficos, ora semióticos. Um dos aspectos cruciais de trabalhar com esse fio incerto é a constante recriação de metáforas. Alguns aspectos de psicanálise são igualmente imprescindíveis. Não é o intuito do trabalho proceder especificamente filosófica ou psicanalítica. São a uma discussão pertinentes, no entanto, considerações sobre os limites entre as áreas constitutivas da AD 3 (especialmente a Lingüística e a Psicanálise) no que se refere à problemática da produção dos sentidos. Dentro da trajetória da AD, essa produção metamorfoseia-se em descontinuidades e opções epistemológicas. Além disso, cumpre discutir a natureza do silêncio enquanto fenômeno. Propor-se a analisar o silêncio é deter-se sobre a intersubjetividade. 2 Umberto Eco em seu texto A poética da Obra aberta, em A Obra Aberta, ao discutir a possível filiação desse tipo de concepção estética a uma epistemologia característica de um momento histórico determinado, menciona, em forma de pergunta retórica, a noção, utilizada pela Física, de complementaridade, que ilustra um pouco essa questão da alteridade epistemológica: “Seria casual o fato de tais poéticas serem contemporâneas ao princípio físico da complementaridade, segundo o qual não é possível indicar simultaneamente diversos comportamentos de uma partícula elementar, e para descrever estes comportamentos diversos valem diversos modelos, que ‘são portanto justos quando utilizados no lugar apropriado, mas se contradizem entre si e se chamam, por isso, reciprocamente complementares ?” (p. 57) 3 Podemos exemplificar melhor essa afirmação com uma citação de Pêcheux & Fuchs (1975: 163-164): “(...) começaremos por apresentar, numa primeira parte, o quadro epistemológico geral deste empreendimento. 1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; 2. a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo; 3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. Convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica).” 15 Se forem tomados alguns textos da AD que abordam o silêncio através da palavra 4 podemos perceber que eles se filiam a paradigmas 5 que privilegiam o movimento e o intervalo. Pensar a produção dos sentidos desta perspectiva (o que, de alguma forma, é mais ou menos explícito em cada autor da AD) implica discutir o alcance e os limites desses conceitos. É uma convicção expressa neste trabalho que tal relação seja impossível sem a inclusão do silêncio . Para isso, faz-se fundamental relembrar o conceito de Formação Discursiva (FD daqui em diante), inicialmente como formulado por Pêcheux & Fuchs (1990: 166-167): componente de uma formação ideológica que, sozinha ou interligada a outras FDs “determinam o que pode e o que deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes. Diremos que toda formação discursiva deriva de condições de produção específicas, identificáveis a partir do que acabamos de designar. Assim, pode-se entender que a própria AD, nos movimentos de suas atividades interpretativas, move-se não somente entre esses dizeres possíveis e autorizados pelas FDs, mas como conseqüência 4 5 Basicamente Orlandi, 1992; Authier-Revuz, 1994 e Machado,1997. No sentido utilizado por Kuhn (1987) 16 disso, desloca-se pelos silêncios, espaços de exclusão e de recorte que envia para o excesso o que lhe é exterior, exterior esse que passa a ser ausência. Em alguns momentos desta tese, entende-se que será necessário recobrir/desvendar alguns desses silêncios para que possam ser analisados enquanto tais. Para isso, será útil indiciar as penumbras e sombras do discurso, que, se comportando como um jogo de espelhos, recolocando pontos de partida e de chegada temporários para a luz que se movimenta invisível e que se reflete na face dos espelhos, mostra uma outra face que quer se conhecer. A atitude interpretativa pretendida nesta tese é da mesma natureza que a mentalidade que instaura na pintura, na filosofia, numa área como a própria AD, essa necessidade de retomar o olhar que vague pela profundidade, a altura e a largura desses sentidos velozes e silenciosos exaustividade, mas a entre de sujeitos. uma Não alteridade, a de pretensão uma da polifonia, redistribuindo as configurações incessantes entre o silêncio e a palavra. O corpus, literário, trata tematicamente da intersubjetividade através da metáfora do espelho, a partir de um autor tradicionalmente conhecido por seus jogos: Jorge Luís Borges. Um desses jogos é muitas vezes o estatuto da palavra como representação, o que é conveniente para a análise aqui pretendida. 17 No Curso de Lingüística Geral, o texto publicado pelos alunos de Saussure apresenta a defesa de que “(...) bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista (...) é o ponto de vista que cria o objeto.” (1977:15). Pelo menos do ponto de vista deste trabalho, existe um princípio semelhante. Metodologicamente esta decisão é fundamental. Qualquer modelo teórico circunscreve, para determinar seu objeto, limites entre o que lhe é interno em oposição a uma exterioridade, tida como um excesso incômodo 6 . Mas é precisamente essa exterioridade silenciada que permite tatear os vestígios dos desejos presentes na interioridade. Por outra perspectiva, a interioridade pressupõe uma falta, identificável como o que lhe é externo. Discutir tais questões é obrigatório num trabalho que pretende mover-se nos intervalos, refletir-se nos espelhos, buscar atrás da representação da face talvez um infinito jogo de outras representações. No percurso aqui pretendido, faz parte do método considerar a natureza do fenômeno: a relação entre a palavra e o silêncio é movimento, intervalo, diálogo. Quanto à organização formal, tal trabalho pretende estruturar-se da seguinte maneira: no capítulo primeiro, serão apresentados os pressupostos conceituais da tese. O segundo capítulo procurará debater brevemente algumas posições críticas sobre Borges. 6 Se considerarmos o sujeito epistemológico, essa seria uma extensão no domínio do saber científico, do esquecimento número 1, proposto por Pêcheux & Fuchs, 1975. 18 No terceiro capítulo serão discutidas questões atinentes à autoria, função do leitor e aspectos do efeito estético, procurando, em primeiro lugar, situar aspectos dentro e fora do âmbito da AD francesa; em segundo lugar, traçar uma linha das concepções de autoria e estética em Borges e, finalmente, procurar relacionar autor , leitor e efeito estético a alguns aspectos relativos ao silêncio. O Capítulo 4 compreenderá a análise do corpus, onde alguns conceitos serão discutidos em relação aos índices decorrentes da interpretação dos textos selecionados de Jorge Luís Borges e sua relação com o silêncio. Enfim, nas Considerações finais, pretende-se responder às questões básicas colocadas, bem como recuperar para o leitor os objetivos da tese. Serão finalmente resgatados os aspectos que evidenciam o processo de constituição dos sentidos como movimento, do qual participa(m), o(s) silêncio(s), a palavra e a relação dialética entre eles. Constarão do Apêndice cópias dos textos utilizados no corpus, assim como gráficos, tabelas, fotos, ilustrações e outras informações relevantes. 19 CAPÍTULO 1 ANÁLISE DO DISCURSO E SILÊNCIO El bastón, las monedas, el llavero La dócil cerradura, las tardías Notas que no leerán los pocos días Que me quedan, los naipes y el tablero, Un libro y en sus páginas la ajada Violeta, monumento de una tarde Sin duda inolvidable y ya olvidada. El rojo espejo occidental en que arde Una ilusoria aurora. ¡ Cuántas cosas, Limas, umbrales, atlas, copas, clavos, Nos sirven como tácitos esclavos, Ciegas y extrañamente sigilosas ! Durarán más allá de nuestro olvido: No sabrán nunca que nos hemos ido. Jorge Luís Borges - Las Cosas 1.1– Pressupostos teórico-epistemológicos Um pressuposto conceitual da discussão feita nesta tese é de que não é possível se pensar a constituição da linguagem sem levar em consideração o silêncio. Para que tal afirmação soe razoável, faz- 20 se necessário que esta tese assuma, como acarretamento 7 da assertiva acima, que o silêncio produza sentidos. Prosseguir a partir daqui exige, então, que se caracterize o silêncio. Se se tomá-lo somente no sentido de “ausência”, tais assertivas podem realmente parecer absurdas, uma vez que, numa acepção do senso comum ,o que não existe ainda, o que não se tornou palavra, não teria significado algum. Tal questão se resolve, do ponto de vista deste trabalho, pela assunção de que o homem é um ser simbólico e que, por causa desta característica constitutiva de sua natureza, não escapa de buscar sentido em qualquer coisa que se apresente em seu horizonte existencial 8 . Orlandi (1992: 31-32) aborda esse aspecto, estabelecendo o silêncio como objeto possível de análise da linguagem: O homem está ‘condenado’ a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à ‘interpretação’: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico. Desse desejo primordial de atribuir significado a tudo decorre o sentido do silêncio: diante da necessidade de interpretação o silêncio transforma-se em sentidos virtuais, o que estabelece polissemia 9 . 7 Equivalente ao termo inglês entailment. De outra forma, e dentro de outra epistemologia, Umberto Eco faz uma consideração importante sobre isso: “(...) não existe análise de aspectos significantes que já não implique uma interpretação e por conseguinte um preenchimento de sentido” Eco, Umberto. Lector in Fabula, XV. 9 O que está sendo discutido aqui é a relação entre o silêncio e a palavra. A interpretação tende a buscar no silêncio uma tradução de um conjunto de palavras. Enquanto o dizer não se realiza, tal atividade interpretativa 8 21 Assim, o significante do silêncio 1 0 é sobreposto pelos significantes do dizer, que circunscrevem a possibilidade de sentido, delimitando essa polissemia do silêncio 11 (o limite são as categorias de mundo). A objeção possível é a do vazio. Algumas vertentes filosóficas (existencialismo, por exemplo) e a psicanálise postulam a existência do vazio, de uma ausência total de sentido. O que se assume neste trabalho é que o ser humano é incapaz de não exercer atos interpretativos, mesmo em relação ao vazio. Considerando que a produção dos sentidos é um movimento (e daí, também, o sentido do silêncio e do vazio), não se admite que tal sentido esteja na coisaem-si, mas no intervalo dinâmico entre os elementos que participam concebe uma virtualidade de sentidos (está-se querendo dizer “a” ou “b” ou outra coisa). Por essa polissemia entende-se, nesta tese, essa virtualidade que abarca as possibilidades conhecidas de sentido, mas que também abre oportunidade de se pensarem possibilidades ainda não criadas. 10 Ao utilizarmos o termo significante do silêncio, estamos concebendo um materialidade para ele. Dentro da AD, Orlandi (1992) emprega-o quando diz que “(...) o silêncio é fundante. Quer dizer, o silêncio é a matéria significante por excelência, um continuum significante.” (Orlandi, 1992: 31). Tal postura inscreve-se numa tradição filosófica, a fenomenologia de Merleau-Ponty: (...) se expulsarmos do espírito a idéia de um texto original, do qual a linguagem seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a idéia de uma expressão completa é um contra-senso, que toda linguagem é indireta e alusiva e, se quisermos, silêncio. (MERLEAU-PONTY, 1989:92) Em termos mais lingüísticos, podemos identificar como exemplo de significante so silêncio o caso do morfema zero como marca de singular em português, como é observado na nota n. 13, à página 15. 11 Uma consideração importante a ser feita é que tal categoria tem implicações decisivas: ao dizermos que tudo pode significar muitas coisas, ao mesmo tempo e inversamente estamos também dizendo que tudo pode significar coisa alguma. Essa observação é importante, pois do ponto de vista da psicanálise, assume-se o vazio de significação. Neste trabalho, um pouco diferentemente, não se nega a existência do vazio (alguém pode considerar que algo não significa nada), mas pondera-se que mesmo este vazio, por intermédio do desejo, significa através da relação que ocupa com o não-vazio nas relações discursivas. Postula-se, ainda, uma materialidade simbólica e imaginária, social e histórica (entre outras) desse vazio. 22 da interação. Assim, o vazio significa não porque exista necessariamente algo dentro dele, mas porque fundamentalmente na relação entre ele, o sujeito e o outro, é-lhe inevitavelmente atribuído um sentido, mesmo que negativo. É perfeitamente possível que alguém, diante de uma situação, não entenda nada. A questão que nos interessa é que essa ausência de entendimento será passível de uma reconfiguração, não porque haja necessariamente uma hierarquia de linguagens, mas, antes, porque é da natureza do processo de circunscrição do silêncio pela palavra (ou vice-versa) referir-se a si mesmo. Tal recursividade consiste, neste caso, em interpretar o que significa “não entender nada” num contexto determinado. Cada enunciação enunciação do silêncio, da palavra redistribuindo reconfigura, os silêncios portanto, a significados anteriormente. O movimento seguinte consiste no silenciamento da palavra, em vista das condições de funcionamento do discurso (as FDs). É importante perceber que a sobreposição significante aqui se inverte: agora, é o significante do silêncio que recobre o da palavra. E essa palavra, por sua vez, corresponde a uma virtualidade do silêncio 1 2 . Disto decorre fundamentalmente a constitutividade do silêncio , na medida, em que não se admite, desta perspectiva, a existência 12 Não cabe pensar essa relação dinâmica em termos de anterioridade. Enquanto fenômeno, há um interdependência: o silêncio não significa sem a palavra, nem a palavra sem o silêncio. 23 quer deste, quer da palavra sem uma relação fundamental de reciprocidade. E se essa constitutividade se dá desde o nível do significante, isso implica que desde o âmbito fonético 1 3 há um encadeamento que alterna formas e efeitos de dizer e de silenciar, ou, mais ainda, que alterna gradações entre o dizer e o silenciar. Existe na tradição dos estudos lingüísticos uma tendência bastante forte, em alguns contextos hegemônica, que, mais próxima de uma preocupação formalista, costuma analisar enunciados (desconsiderando a enunciação), apagando de suas análises níveis de silêncio que estejam no âmbito pragmático e discursivo. Como exceção poderiam pragmática. Mesmo ser consideradas assim, tais algumas vertentes, muitas vertentes da vezes, são estigmatizadas dentro da própria comunidade de lingüistas mais formalistas que consideram qualquer modelo menos rígido e não imediatamente sistematizável em termos de superfície textual como de pouca validade acadêmico-científica Assim, quando numa interlocução alguém produz uma “ausência de enunciado”, ou seja, silencia, deixa de dizer, há um “vazio” no nível da unidade de análise que se costuma tomar e, geralmente por esse motivo, não se dá conta que, na situação enunciativa onde se instaurou a produção daquele silêncio, ele é constitutivo. Igual atitude 13 Um exemplo de silêncio que se inicia no nível fonético e é decisivo no nível morfológico em português seria o caso do morfema zero marcador do singular. 24 ocorre diante da produção do silêncio pelo excesso do dizer, caso no qual normalmente se debruça sobre enunciados isolados, esquecendo-se que o conjunto deles significa por contrapor-se ao pressuposto de que o enunciado deve dizer, parecer claro, informar. O silêncio também é constitutivo pela inescapável “falha ao nomear” presente no sujeito, mencionada por Authier-Revuz (1994), a partir de um ponto de vista lacaniano. Essa palavra que falta (ou para ampliar a discussão – que sobra) institui um espaço heterogêneo dentro do qual a semiose acontece seja pela intervenção de outros códigos, seja pela significância do silêncio. É nos aspectos ilocucional e performativo que esse silêncio vai se manifestar de maneira funcional para os agentes presentes na enunciação. E, no discurso, sobrepõem-se outros efeitos desse silêncio: a interdição de enunciados que não se admitem dos filiados a determinadas formações sociais, ideológicas e discursivas (e não se admitem antes pela visão de mundo que congrega e homogeneiza o grupo do que por regras explícitas de conduta). A noção de Formações Discursivas como aquilo que se pode ou deve dizer 1 4 estabelece uma decorrência em relação ao silêncio . Por extensão, elas determinam o que pode ou deve ser silenciado. Assumindo-se uma perspectiva bakhtiniana de que a linguagem é dialógica, é bom ressaltar que a produção do silêncio não deixa de ser uma voz que, atravessando outros significantes, 14 alinhava o Pêcheux & Fuchs, 1990;Courtine & Marandin, 1981. 25 caráter único, inefável de cada situação enunciativa. O que ocorre, no entanto, é que essa escala de gradações entre a produção do silêncio, e a produção do dizer (dizer, não dizer, negar, sugerir, insinuar... ) tem história, que coincide com a história das interações, das situações enunciativas vividas e paulatinamente incorporadas ao imaginário social. No caso da escrita, esses apagamentos da interlocução tornamse mais contundentes. Já que para alguns modelos teóricos 1 5 o texto escrito é, entre outras coisas, um produto intermediário da situação enunciativa, tais teorias encontram mais facilidade em esquecer da enunciação e considerar apenas os enunciados já escritos. Todavia, se a escrita também é linguagem, e como linguagem é interlocução, ela também apresenta essa constitutividade alternada entre o dizer e o silêncio. E, para exemplificar outros usos do silêncio que representam delimitação de poder na interlocução, cabe citar algumas estratégias discursivas por parte de falantes de uma língua do que Ducrot (1977:144) chama de lei da exaustividade. Esse autor, para ilustrar a lei da exaustividade relata o caso de um general que, tendo perdido uma cidade inteira numa batalha, admite ter perdido apenas uma aldeia. Ducrot comenta que se o destinatário desconhecer o fato e 15 Poderíamos citar os enfoques que supervalorizam a forma. Atualmente as teorias que atuam no âmbito da Sintaxe Gerativo-Transformacional tendem a trabalhar quase que exclusivamente com enunciados reduzidos ao limite da frase. 26 supuser que o locutor 1 6 respeitou a lei da exaustividade, acreditará na extensão dos fatos admitidos. O que nos interessa aqui não é propriamente esse "crédito de confiança" do destinatário, mas que a atitude do locutor representou um silenciamento parcial de fatos que eram de seu conhecimento mas não de conhecimento de seu interlocutor. Dessa forma, o general só pode ter dito menos do que teria para dizer porque construiu a imagem de que o seu interlocutor desconhecia a totalidade do fato que ele, general, iria enunciar (imagem de que, ao ter perdido uma cidade inteira, perdeu, no mínimo, uma aldeia [que constitui uma das partes integrantes da totalidade representada pela cidade], mas que perder uma aldeia significaria perder algo menor que uma cidade inteira). Em vista disso, ao silenciar uma parte do que teria a dizer, beneficia-se da desinformação do outro, investindo-se do poder de excluir, pelo próprio ato de omitir, possíveis reações ou julgamentos. Dessa perspectiva ocorrem dois tipos diferentes (mas inter-relacionados) de silêncio. O primeiro, que é o de dizer somente até certo ponto e o segundo, representado pelo que o interlocutor deixará de pensar ( e dizer) em função do desconhecimento do que não foi dito pelo locutor. Isso só pode ser considerado possível na medida em que o locutor avalie que seu ouvinte desconheça a extensão informativa a 16 Embora os termos locutor e destinatário não pertençam ao mesmo referencial epistemológico da AD francesa, estão mantidos aqui porque são aqueles usados por Ducrot. 27 ser relatada. Se tal uso discursivo for pensado em uma situação típica de escrita, considerando o alto grau de descontextualização e graus variáveis de distanciamento espaço-temporal do leitor, tal estratégia de silenciamento pode tornar-se um efeito de sentido ainda mais poderoso. A ausência e seus apagamentos presentes nesse tipo de interlocução podem ser abordados heterogeneidade do discurso do ponto de vista da (Authier-Revuz, 1990). Assim, o próprio fato das vozes que constituem o discurso não serem sempre perceptíveis (na heterogeneidade mostrada, não marcada) ou nunca serem perceptíveis (na heterogeneidade constitutiva) já implica um tipo de silêncio. Nesse caso, a heterogeneidade mostrada seria um reenvio à polissemia decorrente desse silêncio. O que interessa ainda na discussão deste trabalho é estabelecer que o silêncio é mais do que um apagamento das vozes do discurso, constituindo-se como um procedimento de instauração da heterogeneidade. Pode-se dizer, nesse caso, que o olhar para o mundo que as formações sociais, ideológicas e discursivas estabelecem pela história das interações entre os sujeitos e os sentidos produzidos como decorrentes dessas interações, estabelecem, ao mesmo tempo, um ponto cego, alheio ao foco do olhar, e que se torna palco de uma nova história de sentidos produzidos pelas contradições e pelos conflitos do que não se sabe, do que não se vê. Claro que esses 28 conflitos só se tornam possíveis através do contato polêmico com o Outro, para quem aquele espaço polissêmico do não visto pelo Eu é visível. A partir disso, haveria duas direções básicas do silêncio : uma que coincide com o espaço do não-dito, por não ser conhecido, por serem apagadas as condições de produção de seus sentidos, de sua enunciação; outra, que coincide com uma reafirmação do já-dito, o que assevera a presença do olhar onde ele já está, cerceando seu desvio para o discurso obscuro do Outro, para onde – do ponto de vista do Eu - ainda há somente silêncio. No entanto, esse Outro apresenta momentos de erupção na superfície do discurso, sob a forma da heterogeneidade mostrada. São momentos em que se ressalta a enunciação e o caráter polifônico do discurso. É possível acreditar-se que o mesmo possa ocorrer com o silêncio, visto sua interligação com a heterogeneidade defendida acima. Dessa perspectiva, haveria, a partir das considerações de Orlandi (1992), a possibilidade de se estabelecer uma dicotomia da seguinte natureza: (1) um excesso do dizer, sob a forma de uma necessidade de reafirmar um sentido pode ser interpretado como um silenciamento de um espaço polissêmico que emerge e incomoda o sujeito, obrigando-o a tentar evitar outros sentidos. E a existência de marcas que indiquem um abandono da tentativa de estabelecer um 29 sentido apontaria (2) um silêncio (não-dizer) sobre esses sentidos escorregadios e/ou inconvenientes. Em situações típicas de escrita (interação à distância, mediada pelo texto), existem os dois tipos básicos de silêncio . Um como uma ausência, que incide de maneira mais acentuada sobre a enunciação. Nesse sentido, a própria visualização de um texto escrito como produto acabado dá ao seu interlocutor a ilusão de que o sentido encontra-se nos enunciados ali presentes. Um segundo tipo de silêncio presente na escrita (como excesso ) poderia ser representado pelo fato de que os significantes registrados no texto constituem uma sobreposição a outros significantes virtuais. Assim, diz-se X para não se dizer Y. No caso do primeiro tipo de silêncio mencionado acima, a visualização dos enunciados registrados num suporte físico (papel, tela de computador etc.) representa um tipo de apagamento das condições de produção da escrita. Um primeiro nível de apagamento seria o silêncio sobre a história e a origem dos sentidos produzidos. Assim, em qualquer interlocução, seja falada ou escrita, existiria uma forte tendência de se ignorarem a heterogeneidade constitutiva e a historicidade daqueles sentidos que inscrevem o falante no interdiscurso. Essa tendência levaria ao “efeito de verdade” a ser buscado no dizer, abstraindo das condições sociais, históricas, econômicas, antropológicas de criação daquelas “verdades”. 30 O segundo nível de apagamento (que está diretamente relacionado à visualização), por sua vez, seria um aumento nesse grau de abstração. Já não é o Outro que diz verdades que acredita sobre o mundo; passa-se a um registro dessas verdades, que é considerado irreversível, chegando, em alguns casos (como o das leis), à situação em que o texto apresenta o efeito ilusório da própria verdade dizendo-se a si mesma, como se não houvesse um sujeito a enunciá-lo (esfuma-se, então, a alteridade: o texto já não é uma interação; ele é o próprio sentido independente de quem o produziu). Ligada a essa opção metodológica pela escrita está uma questão relevante para esta tese e que já foi apresentada: analisar o silêncio na fala, enquanto ausência, seria investigar como a falta de um dizer através das palavras se deixa (ou não) substituir por um dizer inscrito em outros processos semióticos. Dessa forma, já que a fala se analisar encontra seus essencialmente silêncios seria associada considerar a a outras rede de semioses, silêncios estabelecidos entre as diversas semioses constitutivas da fala face-aface 1 7 . Não é a opção deste trabalho, uma vez que tal complexidade ultrapassa o escopo e os objetivos da tese. Essa é a motivação epistemológica para eleger o texto escrito como foco. Quanto à decisão de fazer a análise a partir de um corpus literário, isto decorre de alguns fatores. O primeiro deles é uma 17 Deve-se considerar que existem concomitâncias de linguagens na escrita e/ou na situações multimídia. Isso está discutido na página 228. 31 tentativa de discussão de um gênero discursivo que apresenta, do ponto de vista aqui pretendido, especificidades na configuração do silêncio. O estético é uma instância na qual esse arranjo de/entre silêncio(s) parece ser especialmente multiforme. Borges, com seus jogos, leva ao extremo as potencialidades do texto estético. Dentre as muitas faces e vozes de sua obra, o tema do espelho permitiu uma continuidade em relação a outras reflexões desenvolvidas no decorrer do doutorado. Também é significativo o que pode representar o uso estético da escrita enquanto (de)negação do silêncio, o que pode ser vislumbrado na análise de Authier-Revuz (1994: 254): Se as línguas imaginárias ou o silêncio respondem pela apresentação, fictícia de um lugar outro, à ferida da linguagem é como resposta inversa que pode ser compreendida a literatura, prática só de linguagem, inscrita inteiramente no lugar mesmo do desvio, nessas palavras que são falhas. Antes de mais nada é útil relembrar que Authier-Revuz trabalha aqui sob uma inspiração lacaniana com o conceito da falha ao nomear. Para Lacan a nomeação não deixa de ser um desejo e todo desejo estabelece com seu objeto uma relação de desajuste, seja por falta ou por excesso. A satisfação jamais será na mesma medida desse desejo: ou será menor ou maior. Portanto, à luz dessas concepções, entende-se que essa falha atribuída à literatura deve ser 32 pensada como uma dupla falha: em primeiro lugar, como qualquer manifestação de linguagem, incorrerá na impossibilidade de dizer exatamente algo. Em segundo lugar, porque, alimentando, mesmo que indireta e inconscientemente, a ilusão de, por ser um trabalho estético com instaura-se a palavra, poder como falha ao dizer melhor alguma coisa, ela pretender ser uma linguagem mais trabalhada, que, de algum modo, se não diz mais, diz melhor. Obviamente, essa tentativa igualmente falha da literatura faria desta última também um espaço de silêncio, um intervalo angustiante e paradoxal e/ou uma recusa entre tomar partido pelo real ou pela linguagem, já que ambos não apresentam nenhum paralelismo. 1 8 Cabe ainda uma última distinção. Até esse momento, não houve nenhuma diferenciação entre silêncio e apagamento. Seria pertinente colocar-se a questão: seriam categorias equivalentes ? Entende-se que há, do ponto de vista epistemológico, pelo menos duas instâncias a serem consideradas neste caso. A primeira, de caráter metafísico, faz referência ao indizível, ao que se é impossível nomear. Há uma sutil diferença entre esta categoria e a perspectiva lacaniana há pouco mencionada. O pressuposto dessa metafísica é de um real que não se deixa capturar pela palavra. Já para Lacan, é o desejo mesmo que estabelece essa falta ou sobra, não porque o real não esteja lá, na exterioridade da 18 Posições, citadas por Authier-Revuz, respectivamente de Oster e Barthes. 33 palavra, mas porque a expectativa do real não corresponderá nunca a ele. A segunda instância refere-se a um processo recíproco de apagamentos, já que se por um lado o silêncio apaga as palavras, por outro as palavras apagam silêncios. Ao se fazerem esses apagamentos, seja em direção à palavra, seja em direção a silêncio, criam-se, por outro lado, relações de sentido. Assim, as palavras não só apagam silêncios porque se sobrepõem a eles – e estabelecem, assim um silêncio por excesso -, mas também silenciam outras palavras pelo mesmo processo de sobreposição. Igualmente o silêncio não somente apaga as palavras porque as sobrepõe (excesso), mas porque cria uma virtualidade em que outras palavras possíveis sobrepõem (excesso, ainda) as que não foram ditas (ausência). Portanto, apagamento, deste ponto de vista, mesmo provocado pela palavra, implica sempre a instauração de um tipo de silêncio, o leva a considerá-lo como uma decorrência do silêncio. Estabelecidas essas distinções, pode-se retomar a questão de que normalmente as análises lingüísticas desconsideram os âmbitos pragmático e discursivo da linguagem, principalmente sob o ponto de vista do silêncio. Da perspectiva do discurso, torna-se obrigatório considerar-se a enunciação, as condições de produção e, a partir disso, o texto 1 9 como unidade de análise. 19 Entendido aqui como manifestação concreta do discurso, enquanto materialidade lingüística, dentro da enunciação. 34 Isso exige que se trabalhe não só com textos isoladamente, mas com a relação entre eles; e não somente com um dado discurso , mas com as relações que este último estabelece e mantém com suas condições de produção. Isso equivale a considerar conceitos das relações entre discursos e das relações entre textos. Chega-se, assim, à noção de interdiscurso, que (...) consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é conduzida (...) a incorporar elementos preconstruídos produzidos no exterior dela própria; a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitar igualmente a lembrança de seus próprios elementos, a organizar sua repetição, mas também a provocar eventualmente seu apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação. (Courtine & Marandin, 1981) E, se assim, o interdiscurso manifesta a heterogeneidade e a alteridade, isso significa, como entende Maingueneau, que o Outro é constitutivo do interdiscurso como falta necessária para que o sentido possa se produzir, como “part de sens qu’il a fallu que le discours sacrifie pour constituer son identité ” (Maingueneau, 1984:31). A partir dessa relação entre interdiscurso e alteridade, esse autor chega à noção de intertextualidade como aquela que “abrangeria os tipos de relações intertextuais definidas como legítimas que uma FD mantém com outras.” E já que o texto é unidade de análise deste trabalho, essas relações intertextuais tornam-se fundamentais para os objetivos 35 dessa discussão. Depois de detalhadas, cabe um retorno a estratégias inscritas no interdiscurso que se liguem ao silêncio (o próprio conceito citado acima, ao mencionar os termos apagamento, esquecimento e denegação vislumbra tal ligação). Uma perspectiva teórica pertinente a essa discussão seria a das operações metaenunciativas do discurso, estabelecidas por ReyDebove e também discutidas por Authier-Revuz. Tais operações remetem ao ato de enunciação e, por extensão, como já foi discutido anteriormente, aos silêncios nela inscritos. Além disso, o próprio silêncio sobre a enunciação seria rompido, expondo indícios de subjetividade, de heterogeneidade. A esse respeito, seria útil citar a própria Authier-Revuz, quando trata da modalização autonímica: Toda forma de modalização autonímica aparece como uma ‘costura aparente’ sobre o tecido do dizer, ressaltando em um mesmo movimento a falha que expõe o dizer a uma de suas não-coincidências enunciativas, e sua sutura, seu ‘conserto’ metaenunciativo; mas o próprio das formas que, inscritas no campo da relação palavra-coisa, nos retém aqui, é que é, especificamente a uma falta de palavras que responde esta excrescência de palavras que o ‘laço’ meta-enunciativo vem enxertar em um ponto do fio do dizer para aí nomear a falha, abrindo o dizer, pelo dito, sobre o que ele não diz, fazendo ressoar em outras palavras mais esta parte de silêncio que se experimenta nas palavras. (Authier-Revuz, 1994: 256) 36 1.2 – Outros olhares sobre o silêncio A trajetória de reconhecimento e análise do silêncio que vem sendo empreendida neste trabalho deixa antever, a cada passo, a complexidade e abrangência do assunto, bem como as implicações resultantes dessa abordagem inicial. Será efetuada, em seguida, uma breve resenha dos trabalhos que alguns autores têm feito para conceber diferentes categorias de silêncio. Orlandi (1992) estabelece uma classificação (dentre as muitas que esboça) básica para o silêncio : 1) o silêncio fundante e 2) a política do silêncio (silenciamento). Para ela o primeiro tipo “indica que todo processo de significação traz uma relação necessária ao silêncio” e o segundo tipo indica que ao dizer o sujeito está, necessariamente, não dizendo outros sentidos, uma vez que o sentido é produzido de um lugar, de uma posição desse sujeito (1992: 55). A autora inicia a discussão com uma análise do primeiro tipo e busca inter-relações e conseqüências a conceitos como discurso , interdiscurso, sujeito e história, para citar os mais evidentes. Depois, parte para uma subcategorização do segundo tipo. É oportuno citar o trecho em que a autora procede à classificação: 37 Considero pelo menos duas grandes divisões nas formas do silêncio: a) o silêncio fundador e b) a política do silêncio. O fundador é aquele que torna toda significação possível, e a política do silêncio dispõe as cisões entre o dizer e o não-dizer. A política do silêncio distingue por sua vez duas subdivisões: a) constitutivo (todo dizer cala algum sentido necessariamente) e b) local (a censura). (Orlandi, 1992:105) Orlandi ainda cita outros tipos de silêncio 2 0 : o das emoções, da contemplação, da introspecção, da revolta, da resistência, da disciplina, do exercício do poder, da derrota da vontade, o silêncio místico. Authier-Revuz, (1994),num artigo intitulado “Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio” apresenta um enfoque ligeiramente diferente sobre o silêncio. Partindo de um ponto de vista lacaniano, da complementares “falha da ao relação nomear”, entre a explora palavra dois e o aspectos silêncio: primeiramente, a palavra que falta quando o sujeito tenta dizer algo; em segundo lugar, o dizer que se constrói, através de processos metaenunciativos, para explicitar essa falha que angustia esse sujeito. 20 Outro autor, Dantas (1997) - que também se utiliza bastante das categorizações de Orlandi - faz também uma coletânea de obras que tratam do silêncio. Quanto a tipologias sobre o silêncio, há uma estabelecida por Le Breton (1997) e especialmente Rosalba-Torrelló (1996) que classifica o silêncio em: a) epidérmico, b) interior, c) obstinado, d) da plenitude, e) ético, f) estético, g) imposto, h) massivo, i) compassivo, j) cruel, k) criativo, l) místico, m) ascético, n) litúrgico, o) do recém-nascido, p) dos mortos. Tais tipologias, no entanto, por seu caráter estritamente antropológico, não serão abordados nesta tese. 38 As posições epistemológicas de Orlandi e Authier-Revuz são diferenciadas. Essa visão é corroborada por Machado (1997), num artigo denominado “Movimentos dos sentidos no silêncio”. Embora Orlandi despenda parte considerável de seu livro “As Formas do Silêncio” tratando da constitutividade do silêncio, acaba valorizando mais o que ela chama de “política do silêncio” e, dentro desta, a censura. A autora, no terceiro capítulo (o livro, na verdade, parece ser uma coletânea de artigos), ocupa-se de um estudo sobre a censura e no último capítulo, trata da relação entre cópia e silêncio . Igualmente, Machado (1997), em seu artigo, após resenhar as posições de Orlandi e Authier-Revuz, acaba optando pela política do silêncio ao analisar textos jornalísticos a respeito da empresa de energia elétrica do Rio Grande do Sul após sua privatização. Nesta tese, a opção epistemológica aproxima-se mais de Authier-Revuz. A “palavra que falta” associa-se, neste trabalho, à categoria do silêncio enquanto ausência, e os processos metaenunciativos são da mesma natureza do silêncio como excesso. Pretende-se discutir como essas categorias se comportam nos textos borgeanos. 39 1.3 – O espelho como metáfora Para utilizar uma imagem da Física como metáfora-base dessa discussão, entenda-se que a imagem projetada num espelho é a luz refletida por um corpo na superfície desse espelho; luz que se propaga entre o corpo e o espelho. Para que isso aconteça é necessário que esse espaço a ser percorrido pela luz esteja livre de obstáculos, ausente de formas que possam desviar a trajetória dos raios de luz (impedindo-os de alcançarem a representação do corpo na superfície especular ou alterando o foco dessa representação). Do ponto de vista físico, é a diferença entre a velocidade da luz e a velocidade da percepção do olho que faz com que nos seja impossível perceber o deslocamento dessa imagem, preenchendo o espaço que se considera vazio. Dessa perspectiva, a forma de representação criada pelo olhar é constitutivamente silenciadora desse espaço pleno de movimento, de deslocamento. Não cabe a este trabalho discutir se a linguagem verbal toma essa característica do olhar como metáfora primordial 2 1 . O objetivo aqui é apenas o de considerar que também no texto escrito 2 2 , em seu nível da representação do signo lingüístico, ocorre um processo que 21 O que equivaleria discutir se essa condição física do olhar determina o olhar semiótico. O texto escrito representa a soma de indícios desse deslocamento por esse espaço intermediário, espaço que se torna silêncio. 22 40 abstrai desse espaço intermediário, mas que não o desconsidera na constituição dos sentidos (efeitos de sentido se produzem por uma remissão ao silêncio). 1.4 – Espelho como processo de representação O que faz do espelho processo de representação é o constituirse como espaço do olhar do Outro para o Eu: é o desejo do desejo do Outro 2 3 que rompe a fragmentação inicial do Eu, porque traz desse Outro um olhar unificador, olhar que se interioriza no Eu e que constrói o Eu pela semiose, atravessando, percorrendo, perpassando um espaço que decorre das relações dinâmicas – e especulares – entre Eu e Outro. Esse espaço tem sido apontado em diversas teorias, não só como existente, mas como fundante dos atos de linguagem. A Análise do Discurso, especialmente, assume que os efeitos de sentido são produzidos entre o Eu e o Outro. Como não poderia deixar de ser, empreender uma discussão desta natureza implica atravessar um emaranhado de questões teóricas extremamente contundentes para a AD. Será feita uma 23 Este conceito lacaniano será aprofundado no Capítulo 4º. 41 alusão a elas brevemente, colocando-as como pressupostos e referenciais de apoio para o objetivo buscado. Um primeiro pressuposto são os conceitos bakhtinianos de dialogismo e polifonia. A concepção da linguagem como processo dialógico é um dos instrumentos conceituais mais proveitosos na utilização que a AD faz de sua obra 2 4 . Em linhas gerais, coloca como característica constitutiva da linguagem uma relação dialética entre o Eu e o Outro, algumas vezes marcada dentro do próprio discurso que se enuncia. Embora se façam leituras diferenciadas da aplicação e das imbricações desse conceito, será utilizada a de Fiorin (1997: 229230): Segundo Bakhtin, a língua, em sua ‘totalidade concreta, viva’, em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica. Essas relações dialógicas não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a face. Ao contrário, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu. Ademais, não se pode pensar o dialogismo em termos de relações lógicas ou semânticas, pois o que é diálogo no discurso são posições de sujeitos sociais, são pontos de vista acerca da realidade (...) 24 Na verdade, esta utilização dá-se preferencialmente via Authier-Revuz. O interesse mais direto por parte de alguns autores da AD por Bakhtin é mais recente. 42 Assim, considerar que o discurso do Outro está presente no do enunciador e que o dialógico “são pontos de vista acerca da realidade” interessa diretamente a esta reflexão, na medida em que justifica a noção de intersubjetividade, permitindo, também, considerações sobre o que se poderia chamar de “olhar dialógico”: o olhar do Eu, inevitavelmente perpassado pelo do Outro, será sempre um espaço intermediário constitutivo para a produção dos sentidos. O espelho seria uma figurativização dessa temática. No entanto, não basta utilizar o conceito de dialogismo. Importa discutir se esse processo está marcado ou não no texto, se esse olhar plural, já em seu ponto inicial de deslocamento, deixa indícios de seu viés. Quando as vozes do discurso se mostram, em sua relação dialética, ocorre a noção de polifonia. A Análise do Discurso opera com outros conceitos convergentes, como o de heterogeneidade (Authier-Revuz ). Para a autora, o discurso não opera sobre a realidade das coisas, mas sobre outros discursos, que são atravessados pelo discurso do outro e, por isso, a fala seria fundamentalmente heterogênea. Fiorin (ibidem) observa que tal conceito precisa teoricamente o de dialogismo. Ele sintetiza assim a classificação de Authier-Revuz: 43 A heterogeneidade pode ser constitutiva ou mostrada. A primeira é aquela que não se mostra no fio do discurso; a segunda é a inscrição do outro na cadeia discursiva, alterando sua aparente unicidade. Naquela, o discurso não revela a alteridade na sua manifestação; nesta a alteridade exibe-se ao longo do processo discursivo. A heterogeneidade mostrada pode ser marcada, quando se circunscreve explicitamente, por meio de marcas lingüísticas, a presença do outro (por exemplo, discurso direto, discurso indireto, negação, aspas, metadiscurso do enunciador), e não marcada, quando o outro está inscrito no discurso, mas sua presença não é explicitamente demarcada (por exemplo, discurso indireto livre, imitação). (idem, ibidem) Nas palavras da própria Authier-Revuz, pode-se perceber a distinção entre os tipos de heterogeneidade: C’est aussi qui instaure, au lieu de seuils et de frontiéres un continuum, un degradé menant des formes les plus ostentatoires – dans leur modalité implicite – aux formes incertaines de la présence de l’autre, avec a l’horizon, un point de fuite ou s’épuiserait la possibilité d’une saisie linguistique, dans la reconnaissance – fascinée ou désabusée – de la présence dilué, partout, de l’autre dans le discours. (1982: 97) (...) Un autre type d’héterogénéité peut s’inscrire, montré, dans la ligne du discours: celui des autres mots , sous , dans les mots . Il n’est pas question d’entrer ici vraiment dans ce domaine multiforme oú se rencontrement les données matérielles du signe (avec l’homonymie, la paronymie, la polysémie...) et les innombrables figures ou tropes qui permettent d’en jouer (de la métaphore et de la métonymie, aux équivoques, calembours, à peu prés, rébus, etc...). (ibidem) – destaques da autora. 44 O conceito de interdiscurso, já citado anteriormente, torna-se importante também em relação a esta discussão, especificamente. Nas relações dialógicas entre os vários discursos constitui-se um espaço entrelaçado de gradações de silêncios que constróem a intersubjetividade. O conceito de interdiscurso, de Courtine & Marandin, já citado, relaciona-se diretamente a essa questão. A alusão a apagamento e esquecimento pode permitir reflexões sobre diferentes ocorrências de silêncios e a denegação abre uma perspectiva de uma relação polêmica consideravelmente complexa entre Eu e Outro, configurando algumas condições de alteridade. Isso interessa particularmente ao objetivo desta análise; como entende Authier-Revuz, a heterogeneidade se, marcada-não- mostrada está a meio caminho entre a heterogeneidade constitutiva e a marcada, pode-se vislumbrar um espaço de (des)continuidades que organiza (aos olhos do sujeito) essa dispersão (no sentido foucaultiano) de sentidos entre o Eu e o Outro. Da perspectiva deste trabalho, os apagamentos, esquecimentos e denegações mencionadas por Courtine & Marandin instauram o(s) silêncio (s) (por ausência ou por excesso – Villarta-Neder, 1998) que constróem a intersubjetividade. Espera-se que um olhar analítico e dialógico para o corpus propicie alguns indícios dessas relações. 45 1.5 – O espelho de Lacan Como será visto no Capítulo 4, o conceito de Estádio do Espelho de Lacan apresenta aspectos significativos para a análise do corpus. A imagem vista no espelho é a perspectiva do Outro, assumida pelo Eu. Reflexo, refração e inversão. Nos múltiplos e heterogêneos intervalos silêncios constrói-se que a tiram essa percepção idéia de básica, uma em seus subjetividade pretensamente poderosa e exterior ao mundo. Como neste momento a preocupação concentra-se exclusivamente na relação que a metáfora de Lacan possa ter com a metáfora do espelho , utilizada nesta tese, seria oportuno citar um trecho de uma análise do conto O Espelho, de Guimarães Rosa: (...) É o olhar enquanto portador do desejo pulsional que é perseguido, para que possa se dar a ultrapassagem do ilusório da imagem. É aí que se situa o porém. Édipo via: mas é quando seu olhar se constitui enquanto olhar que sabe – de seu desejo – que seu destino selado, registrado, se manifesta – torna-se cego. Esse é o momento que o espelho impede que aconteça e, ardilosamente, “imaja-se” ante o olho, aprisionando-o na visão. A estranha inquietude do Monstro – o desejo – há que silenciar para que a angústia de castração se torne suportável, ao assumir o lugar deslocado (...) (Nunes Filho, 1983:138) 46 Depara-se aqui, portanto, com um silêncio sobre o silêncio , atravessado pela questão da alteridade. O espelho, silenciador do Eu na imagem que dele (Eu) tem o Outro, silencia-se como efeito e silencia o que o Eu jamais poderia dizer (também silêncio). A relevância teórica do conceito lacaniano, entre muitas outras razões, reside em pensar o silêncio dentro da relação intrínseca da alteridade. Partindo-se do pressuposto de que o desejo é a falta, num de seus sentidos possíveis (o de ausência) o silêncio equivale ao desejo. Assim, haveria uma primeira razão para afirmar que o silêncio é constitutivo: como desejo que se projeta para um fazer no mundo, o silêncio, enquanto pulsão, solicita a palavra que interprete, o ruído articulado que rompa uma polissemia, indeterminada, que impede a satisfação. Dessa forma, a falta necessita do que a preencha, a dor e o terror precisam cessar (prazer). Nesse impulso de romper o limite da incompletude, começa a se estabelecer uma relação constitutiva do sujeito e da linguagem. Impossibilitado de ver a própria face, o Eu a buscará/criará na imagem espelhada/projetada na face do Outro (por exemplo, é a expressão da face do Outro que me diz se meu gesto é um afago ou uma agressão). O que ocorre, no entanto, é que a diferenciação entre Eu e Outro não se restringe a uma dicotomia, uma vez que esse Outro se bifurca. Primeiramente é preciso considerar que é o desejo que cria 47 esse impulso, fruto da incompletude que necessita do Outro para suprir a dor primordial da falta. A primeira falta primordial é representada pela impossibilidade que o corpo tem de sobreviver sem a interação com o meio ambiente. Sendo assim, há a necessidade de buscar no mundo os elementos que trarão a satisfação da necessidade de se manter vivo. É possível tomar-se uma metáfora platoniana para expressar dois aspectos desse desejo. O primeiro deles seria o desejo-aspiração e o segundo, o desejo-apetite. Pessanha (1990:91-92 ) faz um paralelo pertinente entre os dois tipos: No primeiro, o modelo fisiológico é a respiração, que garante a vida na medida em que insere o homem permanentemente, na amplidão volátil e ritmada do cosmos que, ele próprio vivo, respira; no segundo, o paradigma - mostra Platão no Filebo - é a urgência intermitente, episódica, da sede e da fome. Na relação especular que os muitos silêncios deflagram, não se pode conceber uma análise de processo sem considerar pressupostos da alteridade. O que Pessanha nos aponta função do desejo-apetite que se pode falar da os que é em bifurcação da percepção do Outro. Toda a discussão filosófica e psicológica sobre a constituição do sujeito, dessa perspectiva, não tem como não ser perpassada pelos primeiros contatos do bebê com o mundo e os outros seres 48 humanos que o cercam. Tratam-se de necessidades biológicas, (re)interpretadas pela cultura e pelo discurso. Assim, enquanto a sede e a fome são saciadas pelo seio materno, depara-se ainda com a figura do Outro como uma categoria mais ampla, designando tudo aquilo que não seja o Eu. Quanto mais forte for a percepção, por parte da criança, da separação entre o seu corpo e o da mãe, mais a presença do Outro se instaurará e, como conseqüência, delimitará cada vez mais, os limites constitutivos do Eu. Ocorre, no entanto, que, com o passar do tempo, a satisfação desse desejo primordial deixa de ser suprida exclusivamente pelo seio materno, passando progressivamente a se transferir para a alimentação pela ingestão oral de líquidos e sólidos que não têm origem humana. A partir desse momento pode-se considerar que a relação de alteridade já não se limita ao fato de a criança começar a perceber que existem outros seres da mesma espécie, nos quais ela se reconhece enquanto semelhante, embora, com tendências de individuação. Acrescenta-se a percepção de que existem “coisas” que não são o Eu, mas que também não são humanas. A conseqüência mais imediata disso é que passa a existir uma exterioridade dupla: o Outro-humano e o Outro-não-humano. Será esse Outro-humano que fornecerá, depois de um certo tempo, a primeira possibilidade de visualização da própria face, embora distorcida e invertida: o espelho. Retoma-se, dessa maneira, um mito 49 primordial (o de Narciso): na face-espelho da água, superfície do elemento em que esteve imerso em sua gestação, o Eu reconhece a própria face e se encanta por ela, inconsciente das modificações que a refração ocasiona na imagem. Portanto, o Outro-Humano é a medida do gesto (fazer), enquanto o Outro-Não-Humano (mundo) é a medida da representação (linguagem). Enquanto fonte supridora do desejo, o mundo acrescenta a satisfação da própria imagem, simbolizada na superfície do espelho . A representação de si próprio levará, igualmente à necessidade de representar (simbolizar) o Outro-Humano. Dessa busca de similitude e contraste nascerão as funções sociais futuras e os limites da individuação. São, então, três termos, em lugar de dois. E se quase todas as classificações e hierarquizações privilegiam as relações binárias, pode ser precisamente porque, das três posições possíveis (Eu, Outro-Humano, Outro-Não-Humano), uma representa o ponto de vista em que insere o participante do processo. Sendo assim, pela impossibilidade da auto-contemplação a não ser na posição do Outro (Humano ou Não), o Eu ilude-se com a percepção binária (estabelece-se aqui um tipo importante de silêncio). 2 5 25 Nas culturas ditas ocidentais, há uma tradição de apagamento do terceiro elemento, levando a um binarismo. Não cabe a este trabalho discutir se há no horizonte visual da criança elementos que reforcem essa percepção ou se ela é de outra natureza. 50 Se for aceita essa linha de análise, chegará a se acreditar que uma das três posições se apaga (silencia) e que, portanto, o silêncio , enquanto condição epistemológica, é constitutivo não só do Eu, mas do jogo de representação e de identificação entre o Eu e o Outro. Sob esse ponto de vista, a palavra nasceria entremeada de silêncio pelo simples fato de a representação somente ser possível quando o Eu busca simbolizar a si mesmo e ao Outro-Humano no Mundo, ou seja, pelo fato de em nenhum momento ser possível desconsiderar um dos elementos da tríade, embora também seja impossível considerar todos ao mesmo tempo. A necessidade do ponto de vista, do foco do olhar, determina o elemento silenciado. Isso coloca cada ser humano primordialmente como refém de seu próprio silêncio (do desejo) e o silêncio (enquanto desejo) como ponto de partida do Humano. Nesse sentido, o desejo/silêncio para o Eu é interno. Quando o Eu se depara com o outro, na verdade está se deparando com um outro-Eu, só que privado (para o primeiro Eu) da vivência da internalidade. Embora o outro tenha o desejo/silêncio circunscrito aos limites de seu corpo, para o Eu esse outro se manifestará apenas como a presença desses limites, de forma externa. Ou seja, do ponto de vista do Eu, só o que é externo ao desejo/silêncio do outro (que é um outro-Eu) é passível de apreensão. 51 Essa apreensão remete a um terceiro elemento, que é a inserção. Deste ponto de vista 2 6 , pode-se considerar que o olhar do Eu traz a exterioridade do Outro para a internalidade do Eu, na medida em que a imagem do Outro se internaliza na mente (e, por extensão, no corpo, no desejo e no silêncio do Eu). Essa inserção representa o mundo, que é o elemento aglutinador, constitutivo da interação entre o Eu e o Outro, estabelecendo-se, posteriormente, também um lugar diferenciador/diferente do Eu, mas também diferente do Outro (estabelece-se, assim, a diferença entre o outroEu humano, e o outro-não-humano, que é o mundo. Um elemento também presente nessa interação é o cruzamento de olhares. O Eu, ao perceber o olhar do Outro, inicia um processo de constituição do humano pela identificação do Eu no Outro, sendo este último o ser-que-olha/ser-que-deseja. Entretanto, esses dois atributos não serão apreendidos ao mesmo tempo. Enquanto ser-queolha, o Outro (humano) causará identificação à medida em que o Eu também se reconheça como ser-que-olha (para o Outro). Já o ser-que-deseja será percebido no Outro pelo Eu quando esse Eu se perceber enquanto ser-olhado-pelo-outro, enquanto objeto do desejo/silêncio do Outro, alternando de papel na interação, fazendo-se outro do Outro, que então se faz Eu. 26 Levando-se em consideração a forma do olhar. 52 1.6 – Diversidades de silêncios no movimento dos sentidos Uma primeira consideração, e que pode ser útil para delimitar diferentes efeitos do silêncio, é a dos elementos que constituem o processo interlocutivo. Há, neste caso, o enunciador, o enunciatário e uma série de elementos contextuais. Podem-se postular silêncios contextuais, mas entende-se que estes são conseqüências desses outros tipos, advindos do enunciador ou enunciatário. Um segundo elemento fundamental, decorrente do primeiro critério acima, é o dos códigos semióticos. Um problema teoricamente relevante e metodologicamente complexo é o de estabelecer, inicialmente dentro de cada código semiótico, e depois na relação que um código estabelece com outro, até onde o silêncio de/em uma semiose não se dá pela presença de outra. Assim, em relações intersemióticas como a fala típica (face-a-face), não haveria nunca uma ausência de um código semiótico em particular, mas uma interpenetração. O que falta à palavra estaria preenchida pelo gesto, pela expressão do corpo etc. Isso implica considerar que cada semiose apresenta entrelaçamento uma destas sintaxe resultaria característica igualmente e uma que do rede de sobreposições e de silêncios. 53 A escrita literária do tipo que se está analisando nesta tese apresenta uma maior operacionalidade, na medida em que a interrelação semiótica se dá entre a escrita e a significação visual da página, no sentido básico da diagramação. Tanto nos textos em prosa quanto naqueles em poesia, os elementos significativos situam-se nos espaços entre as letras, palavras, paragrafação, distâncias entre títulos, subtítulos, estabelecem-se notas, epígrafes fundamentalmente etc. De qualquer em função de maneira, gêneros culturalmente estabelecidos e convenções de escrita tais como ortografia, sentido de leitura da página, alinhamento, entre outros. A partir do pressuposto de que, para o ser humano tudo é passível de significação, já exposto na introdução, entende-se que não existirá nenhuma situação em que cesse o ato interpretativo, por ausência total 2 7 . Pode-se, hoje, ler um texto de Aristóteles. Nessa situação enunciativa o sujeito Aristóteles diz de um lugar discursivo que depende de uma tradição interpretativa, da preservação dos enunciados, das imagens culturalmente estabelecidas a seu respeito (na nossa circunstância cultural) e de como todos esses elementos dialogam com os enunciados que foram produzidos em outro contexto, para outros enunciatários. Depende, sobretudo, de como 27 Um ex em pl o di s s o nos vem da fi l os ofi a em que concei t os negat i vos t ai s com o o Nada, o Não- s er, s ão pas s í vei s de anál i s e. Out ro ex em pl o im port ant e, nes t e cas o, é a m ort e. M es m o ent endi da com o ces s ação tot al da vi da e, port ant o, de t odas as condi ções de i nt erpret abi l i dad e por part e do i ndi ví duo, a cons t i t ui ção do s uj ei t o ai nda perm ane ce at ravés da m em óri a, do mi t o, da hi s t óri a e da aut ori a. 54 nossas representações de autoria nos remetem a essa leitura. Se algum estudioso surpreendesse o mundo com a afirmação de que teria descoberto textos inéditos do filósofo grego, seria estabelecida uma discussão complexa sobre os critérios de reconhecimento do que seriam traços de autoria de Aristóteles. Se essas implicações forem levadas suficientemente a sério, pode-se afirmar que, tal como a autoria, o silêncio é sempre, necessariamente, intersubjetivo. No caso do corpus deste trabalho, decorre um tipo de silêncio que é eminentemente característico do processo semiótico da língua. Obviamente, contrariamente a esta, seja por excesso ou por ausência relativa, o silêncio permite encadeamentos enunciativos diferentes do que se costuma enxergar na constituição da língua. Desde o ponto de vista mais básico da semiose lingüística, sob uma perspectiva bakhtiniana, todo signo, enquanto parte de um sistema intersubjetivo que se pretende como ato interpretativo, é dialógico. Nessa perspectiva, os silêncios entendidos enquanto pausas, interrupções e finalizações somente são significativos pois há, dentro daquela semiose, como dentro de qualquer outra, o desejo básico de produzir sentidos. Sentidos que se delimitam, se sobrepõem e criam ilusões de unicidade 2 8 . A partir deste aspecto, há, portanto, um tipo particularmente interessante de silêncio: para que uma semiose se estabeleça como tal, os lugares enunciativos têm de ser marcados. É 28 Isso será visto adiante, na aplicação do conceito de função-autor, de Foucault. 55 imperativo silenciar a fala do outro presente na fala do Eu, sob a pena dela, coro polifônico de um concerto barroco 2 9 , ensurdecer, ao mesmo tempo, o enunciador e o enunciatário com um excesso brutalmente fragmentador do sujeito. Outro aspecto a ser considerado é a da relação entre silêncio e dizer, já exposta anteriormente. Sob esse ponto de vista, pode-se entender o silêncio como ausência (não dizer) e como excesso (dizer demais; o que é dito sobrepondo o que não se diz). Como já foi discutido inicialmente, são processos complementares (não se concebe um processo de sobreposição sem a ausência do que foi sobreposto e igualmente, o não dizer estabelece um excesso – sobreposição, também – em relação à palavra). 1.7 – Silêncio como ausência x representação simbólica Há pelo menos dois sentidos básicos a partir dos quais se pode entender a ausência como processo deflagrador da representação simbólica. O primeiro alude à exterioridade das Formações Sociais (FS daqui em diante) e o segundo ao interior delas. O primeiro refere-se ao fato de que cada FS recorta da virtualidade do mundo (enquanto totalidade indiferenciada, passível 29 A metáfora de concerto barroco, aqui, remete à sua estrutura, composta pela superposição de várias melodias. 56 de referenciação) um grupo de objetos, através do valor particular que eles assumem, como signos, passando a significarem na instância inter-individual, momento a partir do qual entra-se no âmbito da ideologia. São ilustrativas a esse respeito, duas passagens de Bakhtin(1988): A cada etapa do desenvolvimento da sociedade, encontram-se grupos de objetos particulares e limitados que se tornam objeto da atenção do corpo social e que, por causa disso, tomam um valor particular. Só este grupo de objetos dará origem a signos, tornarse-á um elemento da comunicação por signos. Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre no horizonte social do grupo e desencadeie uma reação semióticoideológica, é indispensável que ele esteja ligado às condições sócio-econômicas essenciais do referido grupo, que concerne de alguma maneira às bases de sua existência material. Assim, dialeticamente, ausência é a sobra ou o excesso , ALÉM dos objetos representativos para a FS e que vão se transformar em signo, transformação esta que circunscreve o ideológico desta representação sígnica. O segundo sentido, interior a cada FS, alude ao que, na relação entre seus objetos e signos constrói-se como DISCURSO e, assim sendo, necessita dos apagamentos de sua gênese enquanto processo mesmo de ausências. É no silenciamento da alteridade para com 57 outros DISCURSOS, gerados em outros processos, dentro de outras FSs, que se dá tal ausência. Nesse sentido, constitutivamente, a presença dos discursos outros se dá como índice, a partir da ausência desses mesmos conceitos, presente Ideológica e, na discursos. Daí AD, de Formação principalmente, o de serem relevantes Discursiva, Interdiscurso. os Formação Nesse tecido entremeado entre o que se pode e o que se deve dizer, numa dada conjuntura, estabelecem-se espaços internos de ausência (o que não se deve e o que não se pode dizer, como já foi discutido anteriormente). O importante a ser dito aqui é que essa internalidade, como constitutivamente dialógica (da perspectiva de Bakhtin) ou essa heterogeneidade constitutiva (do ponto de vista de Authier-Revuz ) remete sempre a uma exterioridade, exatamente aquela primeira instância da ausência brevemente discutida acima. E remete a uma ausência enquanto alteridade, na medida em que reconhece (ou desconfia de) outros percursos possíveis da representação simbólica (1) nos outros discursos, advindos de outras Formações Discursivas e Formações Ideológicas, ou (2) na sombra do corpo simbólico (que é seu próprio discurso). Cabe dizer, ainda, que enquanto exterioridade, cada FS traz para o discurso a não-presença possível dos objetos inscritos no valor de seu corpo social. Na impossibilidade de apropriar-se fisicamente, corporalmente desses objetos, estes são presentificados 58 e representados na materialidade da constituição interacional e ideológica do processo sígnico 3 0 . 1.8 – Silêncios indiciados Entre as muitas possibilidades que este trabalho permite, talvez a mais importante seja a de refletir sobre formas de olhar para como são vistas as representações, por parte do enunciador, de sua função, do Outro, que ele se esquece 3 1 estar imanente em sua constituição e, principalmente, dos níveis de mediação que as palavras, entrecortadas de silêncio, estabelecem com outras palavras (e com outros silêncios). É possível olhar para um texto como uma teia de relações com silêncios e com palavras e, mais do que isso, entre silêncios, entre palavras e entre ambos. É igualmente possível ver que nesse espaço intermediário é que os sentidos são propostos e se colocam como espelho para a reflexão (com os vários sentidos que essa palavra pode possuir) do Outro. 30 * De alguma forma, essa ausência dos objetos, embora destituída do caráter ideológico já foi antevista por Aristóteles, quanto este filósofo diz que o símbolo está para algo que não está presente. 31 Pode-se considerar que tal esquecimento esteja na base do esquecimento n.º 1, apontado por Pêcheux & Fuchs (1975) 59 O processo intervalar não é desconhecido. Foucault, na Arqueologia do Saber, ao rever a proposta de As Palavras e as Coisas, toca numa questão próxima: ‘As palavras e as coisas’ é o título – sério – de um problema; é o título – irônico – do trabalho que lhe modifica a forma, lhe desloca os dados e revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. (...)” (1987: 56) – destaque nosso. É como prática, como construção nesse processo labiríntico e sucessivo de mediações que o silêncio significa; não como um contraponto binário da palavra, mas essencialmente como um espaço de movimento que medeia cada silêncio anterior, cada palavra ainda não-dita, cada discurso esvaziado de sentido pelo excesso que também não diz e que silencia o outro, para, talvez, mantê-lo intacto na imanência do Eu. Brandão (1997: 287), no artigo Escrita, Leitura, Dialogicidade cita Umberto Eco 3 2 para distinguir as duas instâncias através das quais o leitor se institui no texto. A primeira delas seria no nível 32 O texto de Eco comentado por Brandão é do Lector in Fabula. Em obras posteriores, o semioticista italiano aprofunda algumas de suas posições teóricas, principalmente no que se refere aos limites da interpretação. Esses contrapontos serão aprofundados no Capítulo 2. 60 pragmático, pela atenção que o escritor tem em relação ao interlocutor; a segunda, que nos interessa mais no momento, dá-se no nível lingüístico-semântico e representaria a potencialidade, o texto, frente à realização que a leitura propicia dessa potencialidade. Nesse sentido: É o movimento da leitura, o trabalho de elaboração de sentidos feito pelo leitor que dá concretude ao texto. Em graus diferentes de complexidade, um texto é sempre lacunar, reticente. Apresenta ‘vazios’ - implícitos, pressupostos, subentendidos que se constituem em espaços disponíveis a serem preenchidos pelo leitor. (idem, ibidem) Talvez fosse necessário ampliar a noção desses ‘vazios’ apontados por Eco para o âmbito do silêncio. Sendo isso possível, haveria o entendimento de que os silêncios são heterogêneos e gradativos porque basicamente as práticas que convidam o Outro a participar menos ou mais intensamente do jogo enunciativo tecem espaços que se fecham ou que se (entre)abrem. Por decorrência, esses espaços por onde se entrelaça o interdiscurso como instância dialógica e intersubjetiva, trazem o Eu-no-Outro e o Outro-no-Eu para seu reverso, para a intermediação dos silêncios como brechas possíveis para a produção dos sentidos. Cabe, por fim, fazer uma opção. Este trabalho privilegiará como unidade de análise o silêncio enquanto heterogeneidade mostrada. Authier-Revuz concebe o discurso enquanto heterogêneo, clivado 61 pela alteridade, concebe-se aqui que o silêncio constitui-se como procedimento dessa clivagem de vozes (silenciamento), também se constitui como uma dessas vozes. E através de indícios (mais diretos ou menos diretos) será enfocada essa heterogeneidade onde a presença de um Outro se insinua ou se mostra. Em função dessa opção pela heterogeneidade mostrada, portanto, a constitutividade do silêncio será abordada de maneira secundária. 62 CAPÍTULO 2 LEITURAS SOBRE BORGES A realidade é como essa nossa imagem que surge em todos os espelhos, simulacro que existe por nós, que conosco vem, gesticula e se vai, mas em cuja busca basta ir para sempre topar com ele Jorge Luís Borges - A encruzilhada de Berkeley A primeira parte deste capítulo pretende situar a produção borgeana num contexto crítico relevante. É sabido que muito se tem escrito sobre Borges, das mais diferentes perspectivas. Portanto, não se torna tarefa fácil proceder a uma seleção de uma crítica representativa, ainda mais num trabalho como este, em que as posições críticas possuem uma função auxiliar de contextualizar aspectos da estética borgeana. Tomou-se um crítico reconhecido como fio condutor para explorar os labirintos de Borges e inserir outros autores que possam contribuir para essa contextualização. Esse fio condutor será constituído, basicamente, pela análise da obra borgeana enquanto 63 proposta poética, feita por Emir Rodriguez Monegal , um dos maiores e mais reconhecidos críticos da literatura hispano-americana 3 3 . Em sua obra “Borges: uma poética da leitura”, Monegal procura demonstrar como o escritor argentino vai construindo uma concepção estética que inaugura um novo olhar para a literatura, para as funções do autor, do leitor e da própria obra. Conhecer essa argumentação torna-se bastante relevante para a discussão sobre estratégias de silêncio no texto escrito, literário e, especificamente, borgeano. 2.1 – Crítica francesa Monegal aponta que foi exatamente a crítica francesa (nouvelle critique) que renovou a obra borgeana e a situou num nível internacional. Um primeiro crítico francês, dentro desta perspectiva, que é analisado por Monegal é Maurice Blanchot, que aponta como aspecto central da cosmovisão literária de Borges a noção de infinito. 33 Observe-se que há inclusão de perspectivas às vezes contempladas por Monegal, às vezes não. No caso de Blanchot e Genette, há essa coincidência. Há acréscimo de autores como Barnatán, Campos e a própria obra crítica de Borges. 64 Blanchot procura demonstrar que "qualquer espaço limitado pode converter-se em infinito, quando ele se torna para nós um espaço escuro, se a cegueira (real ou metafórica) nos invade.” (Monegal, 1980: 20) Blanchot aponta uma característica crucial do sujeito-estético Borges: Pour l’homme mesuré et de mesuré, la chambre, le désert et le monde sont des lieux strictement déterminés. Pour l’homme désertique et labyrintique, voué à l’erreur d’une demarche nécessairement un peu plus longue que sa vie, le même espace sera vraiment infini, même s’il sait qu’il ne l’est pas et d’autant plus qu’il le saura. (BLANCHOT, 1959: 116) Pode-se entender que esse infinito, no entanto, torna-se labirinto, na medida em que a infinitude não se dá pela extensão do espaço de conhecimento, mas sim pelas relações. sempre um universo infinitamente Borges propõe inter-relacional, intertextual, ambos tidos como uma construção estética. Essa identificação entre o livro e o mundo também será percebida por Blanchot. Tal associação resulta em conseqüências fundamentais, senão terríveis para uma concepção mais tradicional do fazer estético. Sem limites de referência, “o mundo e o livro trocam eternamente e infinitamente suas imagens refletidas”. Esse espelhamento titânico 65 tem uma conseqüência inevitável: ofusca o olhar, através dos truques, enganos, artifícios. Percebe-se neste pormenor um aspecto relevante para a discussão sobre o silêncio . Se, profundamente como foi visto no primeiro capítulo, a reflexão da imagem na superfície do espelho silencia por nos ocultar a alteridade dessa imagem, num jogo de espelhos reduplicados, ocorre um efeito ainda mais silenciador que é o do ofuscamento do olhar. O esquecimento número um de Pêcheux fica, no interior deste jogo, abalado: como acreditar num sujeito que seja fonte e origem do dizer, se este dizer ricocheteia eternamente nas referências infindáveis, sem origem nem fim ? Essas questões, embora via outro olhar epistemológico, não passaram despercebidas a Blanchot, quando ele aponta a concepção de literatura e de autoria em Borges: Borges comprend que la périlleuse dignité de la littérature n’est pas de nous faire supposer au monde un grand auteur, absorbé dans de rêveuses mystifications, mais de nous faire éprouver l’approche d’une étrange puissance, neutre et impersonelle. Il aime qu’on dise de Shakespeare: “Il resemblait à tous les hommes.” Il voit dans tous les auteurs un seul auteur que est l’unique Carlyle, l’unique Whitman, qui n’est personne. Il se reconnaît en George Moor et en Joyce – il pourrait dire en Lautréamont, en Rimbaud -, capables d’incorporer à leurs livres des pages ed des figures qui ne leur appartenaient pas, car l’essentiel, c’est la littérature, non les individus, et dans la littérature, qu’elle soit impersonellement, en chaque livre, l’unité inépuisabele d’un seul livre et la répétition lassée de tous le livres. (BLANCHOT, 1959: 118) 66 Para Blanchot, “toda escritura é uma tradução”, embora ele conceba a tradução como uma concepção linear, como se não houvesse várias concepções de tradução. Quando, ao estabelecer uma comparação com a ficção borgeana, ele diz que na tradução há uma obra numa dupla linguagem, percebe-se que a questão não é tão simples assim. Blanchot silenciou sobre a concepção de tradução em que acredita. De uma outra perspectiva, não seria uma única obra, mas cada tradutor seria um autor diferente. Não cabe, neste momento, optar por uma ou outra. O que interessa é que estabeleceuse entre uma análise crítica e a própria obra borgeana que ela analisa, uma relação de silêncio, na medida em que também não se coloca neste caso, que, se a comparação com a tradução é pertinente (e ela o é), tal pertinência não se dá por semelhança estrutural (o fato de, no entender de Blanchot, tanto a tradução quanto a ficção borgeana serem múltiplas). De uma perspectiva borgeana elas são múltiplas pelas mesmas razões. Seria oportuno citar este trecho: 67 Numa tradução, temos a mesma obra numa dupla linguagem; na ficção de Borges, temos duas obras na identidade da mesma linguagem e, nessa identidade que não é una, o fascinante espelho da duplicidade dos possíveis. Ora, onde há um duplo perfeito, o original é apagado, até mesmo a origem. Assim, o mundo, se pudesse ser exatamente traduzido e reduplicado num livro, perderia todo começo, e todo fim tornar-se-ia esse volume esférico, finito e sem limites, que todos os homens escrevem e no qual eles são escritos: já não seria isto o mundo, seria, será o mundo pervertido na soma infinita de seus possíveis. (Esta perversão é provavelmente o prodigioso, o abominável aleph) (p. 23 – Blanchot, p. 118-9) A perspicácia da análise de Blanchot sobre a estética de Borges é instigadora. O que ficou como silêncio para a própria análise é que, desta perspectiva estética (a borgeana), a tradução também seria esse apagamento de origem. Mais do que isso: falta a essa análise a percepção da alteridade. A idéia de duplo perfeito não deixa de ser uma quimera centralizadora da posição de um sujeito que se concebe ainda como origem e centro do dizer. Numa sala de espelhos, o terror provocado pela multiplicação de imagens iguais é a mesma ilusão do sujeito. Se cada imagem é invertida e se o próximo espelho vai inverter essa inversão, na verdade nenhuma imagem será igual 3 4 . Somente da perspectiva de um imaginário que conceba a existência do sujeito original e perfeito. 34 O raciocínio aqui sustenta-se na óptica e não na lógica formal. Logicamente ~(~p) = p , o que daria a ilusão de que a inversão recuperaria o “sujeito original”. Do ponto de vista óptico, no entanto, sempre há algum grau de deformação no processo de reflexão/refração. 68 Como se espera que fique ainda mais claro no decorrer desta discussão, a estética borgeana não imobiliza, neste perverso jogo de espelhos, nem o fazer literário, nem a própria escritura. Esses reflexos multiplicados, silenciados e silenciadores, instauram uma outra concepção de linguagem. Aliás, para Borges, apropriando-se de Croce, a linguagem, mesmo antes de ser literária ou artística, já consiste numa poética. Essa outra forma de se conceber a linguagem não lhe rouba os silêncios que a constituem, mas é fundamental frisar que os vê num movimento, entre essas referências nunca exauridas, porque mesmo sem terem a origem e o centramento definidos, dependem da participação do leitor (o que se verá mais adiante). Borges, em sua conferência “O livro”, ao falar sobre a construção de sentidos que se opera sobre uma obra, diz que Hamlet não é exactamente o Hamlet que Shakespeare concebeu no princípio do século XVII; Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. Hamlet foi ressuscitado. O mesmo acontece com o Quijote. (...) Os leitores foram enriquecendo o livro. (1979:29) Ora, se o leitor pode enriquecer o livro, é porque essas imagens-outras multiplicadas no jogo de espelhos não o acorrentam 69 numa linguagem imóvel e petrificada. Mesmo que seja numa tradução 3 5 . Outro crítico analisado por Monegal é Gerard Genette, que destaca na obra borgeana um aspecto muito ligado ao trecho citado acima. É o caso da leitura como escritura. Genette aprofunda alguns aspectos da análise de Blanchot, particularmente com relação ao conto Pierre Menard, autor del Quijote. O crítico francês inicia discutindo (e refutando) a acusação de pedantismo que a obra de Borges sofre costumeiramente, por empreender um catálogo associativo de autores e obras, como se apenas relatasse as “diferentes entoações que têm tomado no correr dos séculos.” Para Gérard Genette, esse suposto pedantismo da obra de Borges reflete algo mais profundo, uma nova concepção de autoria como algo único, intemporal e anônimo, sendo, desta perspectiva, todas as obras escritas por esse único autor . Genette aponta uma radicalização dessa visão no conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, mas ela pode ser encontrada em praticamente toda a obra borgeana. Textos como La flor de Coleridge ou mesmo trechos de seu “Ensaio Autobiográfico” 3 6 são bastante enfáticos nesse aspecto. Do ponto de 35 Em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Jorge Luís Borges, ao descrever a filosofia e literatura de Tlön diz que “Un libro que no encierra su contralibro es considerado incompleto. A crítica de Blanchot em essa virtude. Monegal frisa essa característica: “O paradoxo radical da análise de Blanchot é que a literatura não é um mero engano, mas sim ‘o perigoso poder de ir ao que é, pela infinita multiplicidade do imaginário’. No imaginário reside o infinito.” (p. 24) 36 Sinto que durante toda a minha vida tenho estado escrevendo esse único livro. (p. 66) 70 vista da recepção da obra de Jorge Luís Borges, no entanto, o texto mais emblemático continua sendo, sem dúvida, Pierre Menard, autor del Quijote. As perspectivas apontadas por Borges para explicar esta idéia da enumeração não satisfaz Genette, que considera mais profunda a concepção de que (...) a idéia excessiva da literatura a que Borges gosta às vezes de nos arrastar designa talvez uma tendência profunda da coisa escrita, que é a de extrair ficticiamente em sua esfera a integralidade das coisas existentes (e inexistentes) como se a literatura só pudesse manter-se e justificar-se a seus próprios olhos com esta utopia literária. O mundo existe, dizia Mallarmé, para terminar num Livro. (GENETTE, 1972:124) No âmbito da discussão levantada nesta tese, é oportuno cotejar esse comentário de Genette com as considerações que Authier-Revuz faz sobre a relação entre literatura e silêncio. Esse universo de referências e citações, depois metaforizado em Biblioteca de Babel, altera a própria noção linear e seqüencial de tempo, inúmeras vezes refutada por Borges. No labirinto cíclico que é a concepção de tempo borgeana, a identidade da obra, do autor (e do próprio leitor) passa a ser também (inter)textual, sujeita a esse quadro de citações e referências que, segundo Borges, constitui o universo. Por isso, faz sentido, desta perspectiva, a fala final do personagem Joseph Cartaphilus, no conto El inmortal: 71 Cuando se acerca el fin, ya no quedan imágenes del recuerdo; sólo quedan palabras. No es extraño que el tiempo haya confundido las que alguna vez me representaron com las que fueron símbolos de la suerte de quien me acompañó tantos siglos. Yo he sido Homero; en breve, seré Nadie, como Ulises; en breve, seré todos: estaré muerto. (1989: 543544) Em seguida, Genette passa a analisar outra perspectiva crucial na obra de Borges, que o escritor argentino desenvolve no texto Kafka y sus precursores, no volume Otras inquisiciones: a de que “cada escritor crea a sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del pasado, como há de modificar el futuro.” (1989:712 – destaque do próprio Borges). O interessante, acusa Monegal, é que Genette compara adequadamente o ponto de vista de Borges com o de Valéry, mas esquece-se de levar em consideração a nota de final de página do texto borgeano e que refere essa idéia a T. S. Elliot , no texto Points of view. A concepção estética decorrente será uma valorização da posição do leitor (como produtor de sentidos) e uma sacralização do livro como objeto capaz de proporcionar, através do acesso ao texto, esse encontro com o extraordinário 3 7 : 37 Outro texto de Borges que toca nesta questão do fato estético é o epílogo de La muralla y los libros: “La musica, los estados de felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el tiempo, ciertos crepúsculos y ciertos lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que ho hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético. (1989: 635) 72 A idéia de um livro sagrado, do Corão ou da Bíblia, ou dos Vedas – onde também se diz que os Vedas criam o mundo – , pode ser coisa do passado, mas o livro conserva ainda uma certa santidade que devemos esforçar-nos por não perder. Pegar num livro e abri-lo mantém a possibilidade do acontecimento estético. O que são as palavras encostadas umas às outras num livro ? O que são esses símbolos mortos ? Absolutamente nada. O que é um livro, se o não abrimos ? É simplesmente um cubo de papel e de couro, com folhas; mas se o lemos acontece uma coisa extraordinária; creio que não é a mesma de cada vez que o fazemos. 3 8 (1979: 28-29) Essa idéia de que o leitor é que, em última instância, o fator mais importante para a trajetória de sentidos de um livro será desenvolvida por Genette a partir das noções de Borges . Em Pierre Menard, fundamentalmente, afirma Monegal, “(...) encontrará Genette a base para afirmar que a leitura é... “a mais importante operação que contribui para o nascimento de um livro ...” (GENETTE, 1972: 27) Tal impessoalidade da tradição literária, ampliada de Elliot e, segundo Genette, coincidente com Valéry, faz alusão a muitos momentos na obra borgeana em que o indivíduo cede espaço para a espécie. 38 Essa idéia de mutabilidade da leitura será levada às últimas conseqüências no conto El libro de arena. 73 Borges desenvolverá esta idéia, apoiando-se em conceitos como o de “tempo circular” (Tiempo circular, Nueva refutación del tiempo, La Doctrina de los Ciclos etc.), a irrealidade das formas e das identidades (Ruinas circulares, O consciente e o inconsciente 3 9 ), Essa pequenez do indivíduo diante do universo fica evidente no conto La escritura del dios: Que muera conmigo el misterio que está escrito en los tigres. Quien há entrevisto el universo, quien há entrevisto los ardientes designios del universo, no puede pensar en un hombre, en sus triviales dichas o desventuras, aunque ese hombre sea él. Ese hombre ha sido él y ahora no le importa. Qué le importa la suerte de aquel outro qué le importa la nación de aquel outro, si él, ahora es nadie. (...) (1989: 599) Outro crítico mencionado por Monegal é Jean Ricardou , que aponta na obra borgeana o caráter labiríntico e circular. Sua análise mais abrangente de Borges será do texto El arte narrativo y la magia (do volume Discusión), no qual Borges analisa o romance The adventures de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe. A discussão feita por Ricardou foge aos objetivos deste trabalho e, portanto, não será pormenorizada. 39 Este texto encontra-se numa coletânea editada por Borges e que não consta de suas Obras Completas. A edição brasileira chama-se Livro dos sonhos. São Paulo: Difel, 1985. 74 Já Claude Ollier debruça-se sobre o conto Tema del traidor y del héroe, de Ficciones. Neste conto, o narrador relata a história de seu bisavô, Kilkpatrick, herói revolucionário que se comporta como traidor dos seus colegas, mas que não pode ser denunciado pois isto desmobilizaria a própria revolução. A solução encontrada é o assassinato, mas de maneira que o traidor ficasse caracterizado como um herói ou mártir. Esse assassinato foi concebido baseandose nas tramas de duas obras de Shakespeare: Macbeth e Julio Cesar. A análise de Claude Ollier identifica no texto borgeano cinco dramas superpostos: 1) redação de Borges; 2) investigação de Ryan; 3) improvisação de Nolan; 4) elaboração de Shakespeare e 5) assassinato de Júlio César. Monegal faz uma crítica a essa abordagem: (...) [Ollier] Não repara que o conto de Borges não só indica as semelhanças entre o destino de Kilkpatrick e o de Júlio César, e entre textos de Nolan e de Shakespeare, mas também entre o destino de Kilkpatrick e o (futuro) de Lincoln, bem como alude, nas entrelinhas, a outro famoso Herói e outro famoso relato: Jesus nos Evangelhos. (...) (MONEGAL, 1980:37) O próximo crítico discutido por Monegal é Macherey, um discípulo de Althusser, que se propõe a examinar as condições de produção literária, a especificidade do discurso literário em relação 75 ao discurso ideológico e algum desvendamento do mecanismo da complexidade literária. Macherey acredita que “seria preciso buscar o sentido do texto borgiano não na leitura mas na escritura.” (MONEGAL, 1980: 39) Monegal aponta que, embora o modelo proposto por Macherey possa ser considerado pertinente, acaba sendo excessivamente redutor, limitando-se a um único esquema. Além disso, o modelo aplica-se bem aos textos analisados, mas apresenta problemas com relação ao restante da obra de Borges. Também a noção de leitura, já ressaltada por outros críticos (como Genette), entra em contradição com alguns postulados do modelo de Macherey 4 0 . Finalmente, Emir Monegal discute a leitura que Foucault faz da obra borgeana, principalmente a partir do prefácio de As palavras e as Coisas. Foucault considera que Borges questiona tudo, ao fazer indagações sobre a sintaxe, a gramática, a linguagem. Foucault vincula o fazer borgeano a processos afásicos: O embaraço que faz rir quando se lê Borges é por certo aparentado ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem está arruinada: ter perdido o “comum” do lugar e do nome. Atopia, afasia. (FOUCAULT, 1981: 08) 40 É oportuno reproduzir a citação de Wahl, com que Monegal encerra a análise da crítica de Macherey: “En choisissant les structures de l’ideíologie contre celles de l’écriture, Macherey ne décale pas, il réduit: exactement comme Qui prétendrait fonder la science des rêves non das l’organisation de l’inconscient mais dans ce Qui s’y réprésente du corps.” (p. 40) 76 Foucault vai além de Blanchot e de Genette, uma vez que eles se limitaram a tentar revelar alguns aspectos subjacentes à obra de Borges. Foucault mergulha no âmago da estética borgeana: “uma empresa literária que se baseia na ‘total’ destruição da literatura e que, por sua vez, paradoxalmente, instaura uma nova literatura; uma écriture que se volta para si mesma para recriar, com suas próprias cinzas, uma nova maneira de escrever (...)” 4 1 2.2 – Outros aspectos críticos Não é novidade nem a complexidade da obra borgeana (mas qual obra, afinal não é complexa ? – diria Borges), nem a extensão da produção crítica sobre ela (decorrência provável da perplexidade exercida por sua obra). O que se pretende aqui não é uma análise exaustiva dessa crítica e isso justifica-se por dois motivos básicos. O primeiro deles, já aventado na introdução desta tese, é que o objetivo deste trabalho não é um exercício de teoria literária. Busca-se em um conjunto restrito de textos borgeanos um pretexto de se discutirem questões sobre a relação que o silêncio estabelece com uma visão da produção (e circulação) dos sentidos enquanto movimento dinâmico, a partir de 41 A idéia de ressurgimento das cinzas, ligado ao encontro com o extraordinário pode ser percebida na trama do conto La Rosa de Paracelso, do livro La memoria de Shakespeare. 77 uma perspectiva teórico-epistemológica que é a Análise do Discurso de linha francesa. Sob esse prisma interessa discutir o estético e o literário como efeitos de sentido, como movimento, processo enquanto gênero que representa e aciona redes de memória relativamente características no interior do interdiscurso. Tratando-se de Borges, há que se inquietar sempre em se falar de um conceito já intrinsecamente problemático como o de obra. Da perspectiva assumida aqui, parte-se inicialmente desta idéia de que os gêneros constituem uma materialização textual (e discursiva) sob a forma de palavras, enunciados e sentidos jáproduzidos e recuperados, sob procedimentos de esquecimentos parciais, para que se constitua a função-autor pela apropriação de outros dizeres (e outros silêncios). Esse parece ser um quadro epistemológico que, a partir de concepções caras à AD francesa, estabelece um diálogo aparentemente frutuoso como o conceito foucaultiano de função-autor e com concepções de gênero inspiradas em Bakhtin. No entanto, faz-se necessário, do ponto de vista assumido aqui, enfocar mais alguns aspectos sobre essas questões. Tratando-se da produção estética borgeana – o que não impede estender essa assunção a outros autores, em outras circunstâncias de produção -, assumem-se alguns pontos fundamentais: 78 1) reconhecem-se, a partir da perspectiva discursiva exposta acima, regularidades decorrentes (a) da produção, por parte do autor, enquanto função-autor, de sentidos que reafirmam (e deslocam) sentidos já existentes; (b) por utilização, por parte deste, de signos, palavras, enunciados, estratégias textuais que atendam ao modo através do qual se costumam associar tais sentidos à parte formal (elementos lingüísticos) de acordo com a língua utilizada, num determinado momento de sua configuração de historicidade (não entendida como sucessão linear, mas como o conjunto de práticas materiais e imaginárias que (re)configuram constantemente as memórias inscritas no interdiscurso). Tais regularidades devem também ser reconhecidas como fazendo parte do repertório implícito do leitor (também como efeito do interdiscurso), possibilitando a ele o reconhecimento dessas mesmas práticas e da materialização textual feita pela funçãoautor como indiciadora mesma dessas práticas. 2) também como conseqüência das relações dinâmicas e constitutivamente contraditórias dessas práticas, reconhece-se que ao utilizar sentidos preconstruídos, mas em outras situações, outras configurações de conflitos, contradições e relações entre lugares discursivos, o sentido assume variações, fazendo o mesmo transformar-se em outro, pelo deslocamento de seus efeitos e pela (re)construção incessante de sua historicidade (mesmo que alheia 79 total ou parcialmente ao sujeito, ainda quando esteja atuante na função-autor 4 2 ). 3) Em vista dessa dinamicidade de sentidos outros, a historicidade da produção de uma função-autor, pensada enquanto projeção de uma trajetória dessas relações num espaço de tempo, tem que ser admitida como em movimento, já que essas (re)configurações são mutáveis. Portanto, entende-se que buscar regularidades não implica jamais que elas sejam estáticas, como se os sentidos se congelassem e assumissem um arcabouço rígido 4 3 . Assim, um modelo epistemológico, externo à AD francesa, mas que se mostra útil neste contexto, é o conceito proposto por Wittgenstein de “semelhanças de família”. Para Wittgenstein, se se tentar definir quais são os traços essenciais de um jogo, haverá um fracasso. Como encontrar um traço comum ao futebol, ao xadrez, à paciência, às brincadeiras de roda, às anedotas, por exemplo. O que permite a identificação de um tipo de 42 Segundo Foucault (1992:46) “(...) característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade.” 43 Na verdade, nem mesmo a metáfora do esqueleto serviria hoje para sustentar tal visão paralisante. Sabemos que é falsa a noção de rigidez que atribuímos ao esqueleto dos vertebrados. Além de ser uma fonte de fabricação e renovação de glóbulos sangüíneos (medula óssea), além da função de dar forma e sustentação aos órgãos, o esqueleto é responsável pelo controle do nível de utilização de cálcio no corpo, o que aumenta ou diminui sua porosidade continuamente, na medida em que retira ou acrescenta cálcio aos ossos ou o repõe na corrente sangüínea ou nos músculos. 80 jogo A a um B não implica que seja a mesma com um C. Por exemplo, se forem tomados o futebol (A) e o xadrez (B), identificaremos como elemento comum a competição, que desaparece num elemento (C) como o jogo de paciência. Pode-se encontrar como elemento comum o entretenimento, mas vários outros traços desapareceram. Tais identidades dinâmicas levam o filósofo austríaco a postular o conceito de semelhanças de família: E o resultado desta observação é: vemos uma complicada rede de semelhanças que se sobrepõem umas às outras e se entrecruzam. Semelhanças em grande e pequena escala. Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que por meio das palavras ‘semelhanças familiares’; pois assim se sobrepõem e se entrecruzam as várias semelhanças que existem entre os membros de uma família: estatura, traços fisionômicos, cor dos olhos, andar, temperamento, etc., etc. – E eu direi: os ‘jogos’ formam uma família.(Wittgenstein, 1994:52) A utilização de um conceito da mesma natureza dentro do arcabouço epistemológico da AD francesa seria extremamente operacional. Já que essa (re)configuração de sentidos deslocados do mesmo para o outro (e do outro para o mesmo, por que não dizer ?), implica uma dinamicidade nos elementos que compõem a regularidade (a língua continuamente transforma-se, as relações entre FSs, FIs e FDs transforma-se igualmente), tais regularidades teriam que ser vislumbradas no quadro dessa dinamicidade. 81 Sob essa perspectiva, a própria concepção de obra se reconfigura. Encontrar identidades que nos permitam atribuir a uma assinatura uma função-autor, significa, deste ponto de vista, aceitar que essas regularidades se deslocam continuamente, tal como as “semelhanças de família” de Wittgenstein. Talvez um grande equívoco na análise da obra borgeana (Monegal aponta, por exemplo, críticos franceses que fracassaram ao atribuir características a alguns textos da produção borgeana e que se mostravam inaceitáveis em outros contextos do conjunto da obra de Borges). A análise pretendida nesta tese prefere apostar nessa dinamicidade que não inviabiliza as regularidades, mas que as concebe em movimento. Isso não isenta o trabalho de outros equívocos, já que o equívoco, de alguma forma, faz parte desta inserção da alteridade na tentativa unificadora da função-autor. Mas, por um determinado prisma, caracteriza melhor o viés discursivo assumido aqui. Um aspecto importante na produção borgeana é a da inclusão de Jorge Luís Borges ao que T.S. Elliot chama de “crítica de praticantes”, ou seja, que o próprio escritor assuma também um papel crítico, não só de suas obras, mas da de outros. Esta perspectiva, incrementada imensamente no decorrer do século XX assume não só uma indissociabilidade da criação e da discussão estética (também enquanto criação), mas repensa o papel 82 do crítico. É o que Monegal percebe em Octavio Paz, segundo o qual é função do crítico facilitar a comunhão poética e, depois, retirar-se. Monegal considera que (...) a crítica não consiste apenas na formação de um âmbito intelectual, por mais importante que seja. Implica também, a produção de um ‘duplo’ da própria obra: duplo que se estende pelo campo do discurso, o que a obra ‘diz’ no campo da poesia. (...) (1980: 63) Este entrecruzamento entre o crítico e o autor encontra outras simetrias, tais como a identificação entre crítico e leitor (o que se pode entender como decorrentes de um entrecruzamento entre as funções de autor e leitor): (...) Por ser apenas o condutor, o poema não ‘contém”, mas ‘transmite’ a poesia. A crítica faz o mesmo. Sob este ponto de vista, o crítico não é senão um leitor privilegiado, um leitor que conduz os outros ao poema, que facilita a transmissão. Mas cabe também dizer , ao revés, que o leitor é um crítico, já que ao realizar sua função, isto é; ao ler, escutar ou repetir o poema, o reproduz. ‘Cada vez que o leitor revive deveras o poema, acede a um estado que podemos chamar poético’, escreveu Paz. Com sua habitual concisão, Borges dissera (adaptando Schopenhauer) que cada homem que lê uma linha (um verso) de ‘Shakespeare es Shakespeare’. (1980: 64) Subjacente a afirmações borgeanas desta natureza pode-se vislumbrar o quanto as concepções de realidade no interior da produção estética de Borges são depositárias do idealismo filosófico, 83 notadamente de Berkeley. Estas concepções podem ser encontradas em vários de seus textos, mas um deles que se torna bastante representativo (inclusive pela enumeração de alusões a outros textos que fazem o mesmo) é Nueva refutación del tiempo , publicado em Otras Inquisiciones. Obviamente, esta concepção tem profundas implicações em questões relacionadas à autoria e à função do leitor. O próprio Monegal aponta isso, quando, ao analisar a frase de Borges, diz que Quando Borges cita Schopenhauer em alguma parte de seus contos para dizer que ‘todos os homens que repetem uma frase de Shakespeare são Shakespeare’, não é para dividir com os leitores a glória do mestre elizabetano, mas para aniquilar as pretensões de paternidade literária que este pudesse ter. Ninguém é alguém. Shakespeare é todos (como suspeitou romanticamente De Quincey); Shakespeare é ninguém, como agora insinua Borges. (1980:69) Ninguém discordaria de que o idealismo está profundamente impregnado em dizeres como esse. No entanto, há que se tomar cuidado com os jogos borgeanos. Já na introdução a Nueva refutación del tiempo, o argentino diz descrer da negação do tempo que escreveu, a partir de Berkeley e Leibniz. (De)negação espelhada ? Depende do enfoque. O que nos interessa, neste momento, é que essa afirmação de que todos que lêem Shakespeare são Shakespeare 84 encontra-se em vários textos, atribuídos ora a Schopenhauer, ora a uma das igrejas de Tlön (do conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius) ou sem autoria definida em La forma de la espada. 4 4 O paradoxal, aqui, é que mesmo adotando um postulado extremadamente idealista, a estratégia de Borges permite-se analisar de uma perspectiva discursiva. A análise de Monegal, na última citação acima, fornece-nos uma chave valiosa para este viés. O que está em jogo é a atribuição de autoria. Em diferentes textos, Borges atribui diferentes autorias a um mesmo enunciado. A anulação da paternidade autoral (inclusive como auctoritas) de Shakespeare, coloca o leitor não como criador todo-poderoso, mas como um autor-provisório que remexe as cinzas dos dizeres esquecidos, enquanto autoria, para poder instaurar-se na funçãoleitor, que, do ponto de vista borgeano, tem elementos comuns à função-autor, pelo menos no que se refere a essa dinamicidade e ilusoriedade da assinatura da palavra. 44 Cf . nota n.º 18, à página 64 de Monegal (1980). 85 Pode-se, de uma perspectiva da AD francesa, entender que mesmo que Borges insistisse na sua concepção idealista (seria arriscado acreditar ingenuamente que Borges realmente acreditasse nela senão como jogo e armadilha para o leitor), o processo é descritível por uma concepção de interdiscurso. O leitor que recria o texto, a obra, é Shakespeare porque participa de uma memória discursiva que Shakespeare lhe que permite ele referir-se (leitor) precisa a um personagem-autor interligar na rede de interpretações que as formações de que participa e com as quais dialoga, no encontro ou no confronto, e que lhe direcionam enquanto reconhecimento do que seja literário, estético, e, particularmente, das imagens do que seja tipicamente um texto com uma designação de assinatura chamada Shakespeare. Shakespeare é, ao mesmo tempo, ninguém, já que alguns dos seus sentidos precisam ser apagados enquanto apropriações necessárias a serem feitas pelo leitor, modos e instâncias de leitura do que este imagina ser a obra do escritor inglês. Por outro lado, enquanto esta assinatura de autoria permanecer nas redes de memória podendo ser atribuível às regularidades textuais e de sentidos já-construídos (re)tomados pelo leitor, cada um que lê Shakespeare estará atualizando a função-autor a que aquela assinatura induz. O labor borgeano é interdiscursivo. Barnatán (1977:48), comentando o processo de criação de Pierre Menard, autor del 86 Quijote, cita uma versão do próprio Borges para o conto (ele não cita a fonte): Assim havia um pouco a idéia de que não inventamos do nada, de que se trabalha com a memória, ou, para falar de uma forma mais exata, que se trabalha com o esquecimento. É notável a afinidade com elementos tão constitutivos da abordagem da AD, especialmente a de interdiscurso. Mais adiante, comentando o conto Funes, el memorioso, retorna essa questão da memória, nas palavras de Borges, citadas por Barnatán: Queria dormir e não podia. Para dormir é necessário esquecer um pouco as coisas. Nessa época eu não podia esquecer. Fechava os olhos e imaginava-me, com os olhos fechados, na minha cama. Imaginava os móveis, os espelhos, imaginava a casa. Imaginava o jardim, as plantas, havia estátuas nesse jardim. Para me libertar de tudo isso, escrevi esta história de Funes, que uma espécie de metáfora da insônia, da dificuldade ou impossibilidade de abandonar o esquecimento. Já que dormir é isso: abandonar-se ao esquecimento total. Esquecer a sua identidade, as suas circunstâncias. Funes não podia. Por isso morreu, finalmente, esmagado. (...) (1977: 49-50) 87 CAPÍTULO 3 AUTORIA, PAPEL DO LEITOR E EFEITO ESTÉTICO (...) a própria obra literária postula a realidade de sua ficção, ao introduzirse como realidade no mundo que seus personagens habitam. Emir R. Monegal poética da leitura – Borges: uma Um livro é produzido, evento minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições; seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo sua totalidade, passando por contê-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente encontrar abrigo; os comentários desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se recusou a dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser. Michel Foucault – História da Loucura. Entre as grandes controvérsias existentes nas discussões sobre linguagem, uma que ocupou um espaço considerável , principalmente a partir da segunda metade do século passado, foi a do papel do leitor. Silenciado durante muitos séculos, o leitor passou a ter um status cada vez mais prestigiado, chegando, em alguns modelos, a 88 ser concebido com uma função capaz de determinar, sozinho, o sentido de um texto. Obviamente, o assunto interessa a esta tese, por duas razões básicas: a primeira, porque na discussão sobre a participação que o silêncio tem na produção e no movimento dos sentidos, não há como escapar de se tratar de autoria, função do leitor e questões correlatas. Em segundo lugar, porque Jorge Luís Borges caracterizase, entre outras coisas, por um tipo de valorização do leitor e de uma proposta estética que redistribui as funções de autoria, leitor e texto. Essa dicotomia autor/leitor apresenta silêncios e silenciamentos. Talvez o maior desses silenciamentos, que de alguma forma já vem sendo discutido neste trabalho, é o de processo, de movimento. Os sentidos não são estáticos, eles estão em contínuo movimento processual. Isto significa que as funções autor/leitor apresentam continuidades, contradições, que elas recobrem-se uma à outra no interior deste movimento. Não há como se conceber autoria sem que se leve em consideração que esta função pressupõe, mesmo que num quadro mais amplo, o que é entendido por leitura. Se isso parece exagero ou uma extrapolação pouco confortável do conceito de leitura, bastaria trabalhar com o conceito de jogo de imagens, de Pêcheux, para se obterem os mesmos efeitos. Se, de imediato, não se identifica tal conceito com a leitura em si, fica difícil, todavia, afirmar-se que o jogo de imagens não é da mesma natureza do processo de leitura. 89 Já a leitura, por sua vez, pressupõe um fazer, uma realização complexa de uma série de tarefas que deslocam o leitor de uma decodificação passiva, para inscrevê-lo numa produção, também de natureza muito semelhante à da autoria. Se se pensar ainda no conceito de alteridade, fica ainda mais nítida a reconfiguração dessa dicotomia. Se em cada ato de linguagem existe um Outro que permeia a fala do Eu, esse processo vai ocorrer igualmente em relação às funções de autor e leitor. Não se concebe um leitor que não esteja prenhe de autoria e vice-versa. Este é um ponto para ser discutido e assumido como viés desta tese: supervalorizar autor ou leitor, qualquer um, é cair na armadilha fácil de romper com essa alteridade. Não existe nem autor nem leitor todo-poderoso, pela simples questão que um subjaz ao outro. Reciprocamente. É claro que existe uma objeção clássica: mas, afinal, o que o texto diz ? Onde está a materialidade do texto ? A materialidade do texto existe, assim como existe a materialidade do autor e do leitor. Igualmente há a materialidade das condições de produção. Não há meios de se fazer efetivamente AD se forem ignoradas as condições de produção do discurso . E, nessa rede de materialidades, existirão configurações diferentes, com maior ou menor participação de cada um desses elementos mencionados (autor, leitor, texto, condições de produção). O caso-limite situa-se nos gêneros em que o sentido de um texto é produzido exatamente 90 pela negação/reinterpretação do que está indiciado na superfície textual e lingüística. É o que ocorre com a alegoria, a fábula, a parábola, entre outros. Numa parábola, por exemplo, tanto autor quanto leitor assumem, por exemplo, que a palavra “peixe” não pode ser entendida com o sentido esperado, e muitas vezes nem pelo que se costuma chamar, em algumas teorias, de conotação 4 5 . Portanto, numa parábola, os sentidos produzidos pelo autor estão igualmente indiciados no texto, mas supõem um trabalho por parte do leitor, em primeiro lugar, de saber que aquelas palavras não significam aquilo que se esperaria que significassem. Reboul (1998), ao tratar da alegoria, chega a uma conclusão instigante: a alegoria funciona enquanto tal porque desenvolve uma “pedagogia do mistério”, motivando o leitor a construir um percurso parecido com o do autor. Há que se lembrar, porém, que os caminhos construídos por esse autor têm suas marcas silenciadas. Neste contexto, a dicotomia autor/leitor, de uma perspectiva que leve às últimas conseqüências conceitos bastante básicos de AD pode ser pensada como uma relação, um movimento: uma maneira mais dinâmica, mais representativa de um processo imensamente mais dinâmico, sutil e dialético. 45 Esse fenômeno pode ser melhor compreendido pela explicação da teoria do alegorismo, neste capítulo e pela análise do texto El espejo de los enigmas (4º Capítulo). 91 Essas considerações são importantes porque a análise de textos borgeanos pode levar, superficialmente, a uma impressão de supervalorização do leitor, como se o autor fizesse um papel secundário. Para empreender-se esta discussão, serão abordados aspectos ligados à função de autor, leitor, bem como alguns apontamentos sobre a relação entre autoria e efeito estético. Para isso, primeiramente será feita uma incursão em um autor bastante citado nesse assunto: Umberto Eco. Em seguida os conceitos-chave deste capítulo serão discutidos à luz da Análise do Discurso e de suas relações com o silêncio. 3.1 – Autor, leitor e texto Serão discutidas, neste item, três obras do semioticista italiano Umberto Eco que se tornaram discursos fundadores com relação aos limites da interpretação, aos papéis do autor e do leitor e da abertura de uma obra estética, enquanto convite a um tipo específico de leitor, participante. Tais temas interessam profundamente, não só à discussão de conceitos que depois serão abordados de uma perspectiva da AD 92 francesa, mas também pela relação estreita que têm com pontos centrais da estética borgeana. 3.1.1 – Obra Aberta Um dos pontos de partida do livro Obra Aberta, publicado nos anos 60 do século passado, foi inspirar-se por uma epistemologia característica da física quântica, que já não estabelece o fenômeno como estático e/ou indiferente à posição do observador. Não se conceberá mais que se pense um elétron numa posição rígida “a” ou “b”. Ele terá que ser calculado como uma incidência numa zona de probabilidade 4 6 . Eco, com relação à obra (preferencialmente estética), irá desenvolver raciocínio semelhante: as funções de autor e leitor (especialmente esta última), são noções que se recobrem, uma como 46 Para se ter uma idéia das implicações provocadas pelo elétron na epistemologia da Física, veja-se este trecho de Gleiser (MAIS! , Domingo, 14/12/97): O elétron criou sérias dores de cabeça para os físicos do início do século 20. Em 1924, o físico francês Louis de Broglie propôs que, tal como Einstein havia sugerido para o fóton (partículas de radiação eletromagnética) em 1905, elétrons também exibem a chamada dualidade onda-partícula, isto é, exibem propriedades físicas de ondas, como a difração, e também propriedades de partículas. Tudo depende do preparo do experimento. Essa dualidade de comportamento sugere que na realidade o elétron não é partícula nem onda. Mas nós apenas sabemos representá-lo através dessas duas imagens concretas. E já que o elétron exibe esta ou aquela propriedade, de acordo com os detalhes do experimento, o próprio observador tem um papel na definição da realidade física do elétron. Não podemos dizer que um determinado elétron existe antes de ele ser observado. 93 potência da outra, num movimento de constituição de sentidos, tal qual uma zona de probabilidade. “Obra Aberta” representou um momento privilegiado de discussão no final dos anos 60 do século passado. Talvez na esteira de Borges (se não se pode afirmar com plena convicção a influência de Borges num Eco semioticista ou estudioso de estética, o mesmo não acontece com o literato). Uma das primeiras necessidades a se colocar é alguma determinação do que constitui uma obra, conceito bastante amplo e cada vez mais polêmico nos estudos estéticos. No início do primeiro ensaio que caracteriza o livro, Eco entende por obra “um objeto dotado de propriedades estruturais definidas, que permitam, mas coordenem, o revezamento da interpretações, o deslocar-se das perspectivas.” (1976:23). Nota-se, aqui, um forte apelo estrutural, característico do momento epistemológico que se vivia. Há que se atentar, no entanto, para o fato de que a conceituação de obra, genericamente, já supõe um deslocamento de perspectivas, um descentramento de uma posição exclusiva ou supervalorizada de um autor todo-poderoso 4 7 . 47 Essa epistemologia encontra justificativa, por parte de Eco numa relação entre o modelo de análise e as condições históricas: “Fixar portanto a atenção, como temos feito, sobre a relação fruitiva obra-consumidor, como se configura nas poéticas da obra aberta, não significa reduzir nossa relação com a arte aos termos de um puro jogo tecnicista, como muitos gostariam. É, pelo contrário, um modo entre muitos, aquele que nos é permitido por nossa específica vocação para a pesquisa, de reunir e coordenar os elementos necessários a um discurso sobre o momento histórico em que vivemos.” (p. 36) 94 Mais adiante, esta opção epistemológica ficará mais evidente, quando Umberto Eco afirma que “(...) uma obra é ao mesmo tempo o esboço do que pretendia ser e do que é de fato, ainda que os dois valores não coincidam(...).” (1976:25). Neste caso, já aparece a participação do leitor. A expressão “ao mesmo tempo” tem aqui uma importância decisiva. Uma leitura atenta de “Obra aberta” jamais poderia impunemente atribuir ao pensador italiano uma radicalização da função-leitor. Seria oportuno relatar brevemente a discussão que o Umberto Eco faz da teoria do alegorismo, vigente na Idade Média. Segundo tal concepção, que visava inicialmente a uma hermenêutica bíblica, mas que foi estendida posteriormente a outros tipos de textos, haveria, no texto, quatro níveis de sentidos: 1) literal; 2) alegórico; 3) moral e 4) anagógico. Tal teoria apresenta suas raízes em São Paulo 4 8 e foi desenvolvida por São Jerônimo, Agostinho, Beda, Escoto Erígeno, Hugo e Ricardo de São Vitor, Allain de Lille, Boaventura, Tomás e outros, tornando-se, posteriormente, o eixo da poética medieval. Sob tal perspectiva, por exemplo, a saída dos hebreus do Egito descrita no livro bíblico do Êxodo 4 9 , no sentido literal significariam a libertação da escravidão naquele país, no tempo de Moisés; no alegórico, a redenção através de Cristo; no sentido moral, significa a 48 Vide capítulo 4, onde há um texto de Borges que discute este trecho de São Paulo. Eco cita a “Epístola a Cangrande della Scala (XIII)”, de Dante Alighieri, onde há um verso sobre o fuga dos hebreus do Egito, analisado por Dante sob o enfoque da teoria do alegorismo medieval. 49 95 conversão da alma, do pecado para a graça e, finalmente, no sentido anagógico, “a saída da alma santa da servidão desta corrupção para a liberdade da glória eterna 5 0 .” Umberto Eco faz a ressalva pertinente com relação à abertura das leituras feitas sob esta teoria do alegorismo medieval: Mas, nesse caso ‘abertura’ não significa amente ‘indefinição’ da comunicação, ‘infinitas’ possibilidades da forma, liberdade de fruição; há somente um feixe de resultados fruitivos rigidamente prefixados e condicionados, de maneira que a reação interpretativa do leitor não escape jamais ao controle do autor. (1976:43) Num certo sentido, pode-se até conjeturar que os textos posteriores que o próprio Eco tenha escrito, mais direcionados para as características internas da obra, devam-se mais ao rumo que a recepção desses conceitos teve do que a uma percepção de falha epistemológica. Ao evocar essa simultaneidade e reciprocidade entre funções do autor e do leitor, Eco sugere que a obra tem que ser pensada numa relação, num contexto processual, enfim, numa concepção de movimento 5 1 . Embora no âmbito do estruturalismo, Eco, em vários 50 Nas palavras de Dante: “(...) si ad anagogicum, significatur exitus animae sanctae ab huius corruptionis servitute ad aeternae gloriae libertatem.” Dante, Alighieri. Epístola a Cangrande della Scala. In: http://www.fh-augsburg.de/~harsch/augusta.html#it Tradução sob responsabilidade da edição brasileira de “Obra aberta” (op. cit.). 51 “(...) o âmbito do discurso é o período do qual nós próprios somos ao mesmo tempo juízes e produto, o jogo das relações entre fenômenos culturais e contexto histórico torna-se muito mais intrincado.” (p. 35) 96 pontos do texto traz à tona a polêmica criada com Lévis-Strauss, quando da primeira edição de Obra Aberta, pelo fato de o antropólogo francês ter considerado que uma obra, do ponto de vista estrutural, deveria ser “rígida como um cristal”, ponto de vista com o qual Umberto Eco não concorda, achando esse último que para se fazer uma análise estruturalista não é necessário optar por essa rigidez 5 2 . Eco propõe-se a analisar preferencialmente a obra de arte. E se já entende que qualquer obra, em geral, tem esse dinamismo, na obra de arte, em particular, reconhece que esta “é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante.” (1976: 22). Novamente a relação entre autor e leitor dinamiza-se e o fato de o leitor passar a ter o reconhecimento de um papel mais participativo não exclui a perspectiva autoral: (...) uma obra de arte é um objeto produzido por um autor que organiza uma seção de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor 52 Eco tem o cuidado, para não negar uma validade estrutural de sua análise, de conceituar forma, dentro da perspectiva da obra aberta: “Uma forma é uma obra realizada, ponto de chegada de uma produção e ponto de partida de uma consumação que – articulando-se – volta a dar vida, sempre e de novo, à forma inicial, através de perspectivas diversas.” (p. 28) 97 possa recompreender (através do jogo de respostas à configuração de efeitos sentida como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a mencionada obra, a forma originária imaginada pelo autor. (1976: 40) Pode-se, desde já, considerar uma diferença significativa entre as funções exercidas por autor e leitor. No capítulo anterior pôde-se iniciar a discussão de como tais funções são encaradas e trabalhadas dentro da estética borgeana, o que será mais detalhado na segunda parte deste capítulo. Se se conceberem autoria e função de leitor como co- participantes em ambas funções, haverá, efetivamente, do ponto de vista epistemológico, um movimento de sentidos. Antes de ser autor de um texto escrito (e ao mesmo tempo em que o é), qualquer autor é também leitor. O leitor, por sua vez, por mais direcionado que seja um texto ou por mais restritivas que sejam as condições de leitura deste mesmo, exercerá uma atividade criativa, assemelhada àquela empreendida pelo autor. assumem-se conceitos Se, como de uma alteridade, perspectiva dialogismo, discursiva, surge a obrigação de se curvar para a questão de que os sentidos não se produzem sozinhos 5 3 . Impossível, portanto, pensar-se o autor sem o leitor ou o leitor sem o autor. Um pressupõe o outro, em cada instância própria em que cada uma dessas funções se coloca. 53 Embora Eco não esteja inserido no mesmo contexto epistemológico da AD francesa, faz uma observação sobre estética que apresenta um aspecto convergente com este ponto da discussão: “Em estética (...) a relação entre intérprete e obra foi sempre uma relação de alteridade.” (p. 33) 98 A questão epistemológica que se estabelece, neste caso, é a da validade da dicotomia. Se autor é também leitor, e se leitor é também autor, para que continuar trabalhando com tal distinção. Será que ela já não teria perdido sua operacionalidade conceitual ? Não, se se pensar que uma diferença pode ser nitidamente caracterizada: a natureza dos significantes disponíveis para cada função. Numa concepção ampliada de significante, extrapolando-se a língua, pode-se disposição conceber significantes que o autor lingüísticos e tem não inicialmente lingüisticos à sua (textos; memória de textos, fatos, pessoas, filmes, músicas; gravuras, fotos, mapas, músicas etc.) e, através destes, irá compor um texto, concretizado em significantes lingüísticos e não lingüísticos concretos (texto, imagens estáticas, gravuras, tabelas 5 4 etc.). O leitor, por sua vez, já terá imediatamente à sua disposição, como condição prévia da leitura (embora tal aspecto não garanta em si mesmo uma leitura aceita ou reconhecida como válida) um texto constituído por significantes lingüísticos e não lingüísticos, mas já colocados na superfície do texto pelo autor. A partir destes significantes, tal leitor construirá outros (de memória, de silêncio ) e atribuirá significados àqueles propostos pelo autor e a esses, interpolados por si mesmo. De um ponto de vista discursivo, seria mais adequado falar-se em construção de sentidos. 54 Não se nega aqui a materialidade dos significantes da memória e do silêncio. O que se está dizendo é que tais significantes são constitutivamente silenciados para o leitor. 99 De outra perspectiva, Umberto Eco também propõe uma reflexão que pondera que a posição do autor não está sendo desfigurada por seu conceito de obra aberta: O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra a acabar: não sabe exatamente de que maneira a obra poderá ser levada a termo, mas sabe que a obra levada a termo será, sempre e apesar de tudo, a sua obra, não outra, e que ao terminar o diálogo interpretativo ter-se-á concretizado uma forma que é a sua forma, ainda que organizada por outra de um modo que não podia prever completamente: pois ele, substancialmente, havia proposto algumas possibilidades já racionalmente organizadas e dotadas de exigências orgânicas de desenvolvimento. (1976:. 62) De uma perspectiva espelhada, Borges tem especialmente dois textos que apresentam, por silenciamento, tal perspectiva. O primeiro é a parte inicial de uma advertência ao leitor de Fervor de Buenos Aires: “Si las páginas de este libro consienten algún verso feliz, perdóneme el lector la descortesia de haberlo usurpado yo, previamente.” (1989: 16) O outro, é uma das conferências ministradas por Borges , publicada no volume Siete Noches (La poesia): Bradley dijo que uno de los efectos de la poesia debe ser darnos la impresión, no de descubrir algo nuevo, sino de recordar algo olvidado. Cuando 100 leemos um buen poema pensamos que también nosotros hubiéramos podido escribirlo; que ese poema preexistia en nosotros. (1989: 257) Nestes dois trechos, pode-se perceber que inicialmente Borges se coloca numa perspectiva de apagamento do autor e valorização do leitor. No entanto, o que se silencia aqui é que se, de alguma forma o autor subtraiu ao leitor algo que era deste último, a partir deste momento, como já-dito, passa a pertencer à instância a partir da qual diz o autor. Isso pode ser relacionado com o a afirmação de Eco que a obra levada a termo será a do autor e não qualquer outra. Outro ponto importante nesse sentido de não (de)negação da posição do autor ocorre quando o semioticista italiano diz que a noção de obra aberta “(...) indica não propriamente como são resolvidos os problemas artísticos, mas como são propostos. “ (1976: 26) Eco prossegue analisando os vários períodos estéticos (Barroco, Romantismo/simbolismo) e procurando mostrar brevemente como cada período vai (re)organizando a abertura da obra e as relações entre autor e leitor. É relevante repetir o que Umberto Eco diz a respeito do barroco, mas que se poderia utilizar muito apropriadamente para caracterizar a poética borgeana: As poéticas do pasmo, do gênio, da metáfora, visam, no fundo, além de suas aparências 101 bizantinas, a estabelecer essa tarefa inventiva do homem novo, que vê na obra de arte, não um objeto baseado em relações evidentes, a ser desfrutado como belo, mas um mistério a investigar, uma missão a cumprir, um estímulo à vivacidade da imaginação. (1976: 45) 5 5 Eco subcategoriza a obra aberta para aqueles casos em que explicitamente se pretende, na obra de arte, uma participação singularmente ativa do leitor, a ponto de “assumir[em] diversas estruturas imprevistas, fisicamente irrealizadas”: a obra em movimento. Ele a define da seguinte maneira: Como no universo einsteniano, na obra em movimento o negar que haja uma única experiência privilegiada não implica o caos das relações, mas a regra que permite a organização das relações. A obra em movimento, em suma, é possibilidade de uma multiplicidade de intervenções pessoais, mas não é convite amorfo à intervenção indiscriminada: é o convite não necessário nem unívoco à intervenção orientada, a nos inserirmos livremente num mundo que, contudo, é sempre aquele desejado pelo autor. (1976: 62) 55 Também pode ser relacionado com a já supracitada “pedagogia do mistério” subjacente à alegoria, tal como analisa Olivier Reboul. 102 Antecipa-se aqui uma análise sob a perspectiva de Lacan que será desenvolvida no capítulo 4 desta tese: o leitor, embora participe ativamente numa instância criadora da obra, faz parte do desejo do autor. Em certa medida, é isso que lhe confere identidade, o que o instaura como sujeito. Como síntese do ensaio, Eco , a partir de Luigi Paryson, destaca: Pode-se afirmar, portanto, que ‘todas as interpretações são definitivas, no sentido de que cada uma delas é, para o intérprete, a própria obra, e provisórias, no sentido de que cada intérprete sabe da necessidade de aprofundar continuamente a própria interpretação. Enquanto definitivas, as interpretações são paralelas, de modo que uma exclui as outras, sem contudo negá-las. 5 6 (1976: 65) 3.1.2 – Lector in Fabula Esse livro de Umberto Eco foi escrito buscando, basicamente, direcionar análises anteriores (como as de Obra Aberta) para o texto narrativo escrito, mais especificamente tocando na questão da cooperação interpretativa. 56 Relacionar o que se diz nessa citação com a nota n.º 2, quando se coloca o conceito de complementaridade em Física. 103 Logo na introdução, Eco historia sua trajetória de estudo do tema e sinaliza o momento em que se situa na pragmática do texto que ele define como (...) a atividade cooperativa que leva o destinatário a tirar do texto aquilo que o texto não diz (mas pressupõe, promete, implica e implicita), a preencher espaços vazios, a conectar o que existe naquele texto com a trama da intertextualidade, da qual aquele texto se origina e para a qual acabará confluindo. (...) (1986:IX) Este trecho já sugere relações com o silêncio. Eco retoma, na mesma introdução, mais detalhadamente, a polêmica com LéviStrauss (mencionada no item anterior deste capítulo). Em resposta à rigidez de Lévi-Strauss e Jakobson, o semioticista italiano pondera: (...) se até as alusões anafóricas postulam cooperação da parte do leitor, então nenhum texto escapa a esta regra. Exato. Os textos que então eu definia como ‘abertos’ são apenas o exemplo mais provocante de exploração, para fins estéticos, de um princípio que regula tanto a geração quanto a interpretação de todo tipo de texto. (ibidem) O que é relevante neste trecho é que, em confirmação ao que se viu em Obra Aberta, a tarefa cooperativa do leitor é fundamental para a construção dos sentidos. Será visto mais adiante que tal afirmação não significa que o leitor tudo possa e o autor seja um pobre coitado que se escraviza, impotente, diante das extrapolações perversas daquele. 104 A análise privilegiará o capítulo “Leitor Modelo.” Neste ensaio, Eco discute que o autor possui um conjunto de competências que serão manifestadas no texto e, na medida em que essas competências sejam convergentes com as do leitor, o texto será bem sucedido na construção dos sentidos por parte do leitor e na estratégia, por parte do autor. Para que isso ocorra, do ponto de vista do autor, é necessária uma previsão dessas competências do leitor . É a essa previsão que Eco chama de Leitor-Modelo: Por conseguinte [o autor] preverá um Leitor-Modelo capaz de cooperar para a atualização textual como ele, o autor, pensava, e de movimentar-se interpretativamente conforme ele se movimentou gerativamente. (1986: 39) A partir do conceito de não-dito, de Ducrot, Eco faz as seguintes considerações: O texto está, pois, entremeado de espaços brancos, de interstícios a serem preenchidos, e que o emitiu previa que esses espaços e interstícios seriam preenchidos e os deixou brancos por duas razões. Antes de tudo, porque um texto é um mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive a valorização de sentido que o destinatário ali introduziu; e somente em casos de extremo formalismo, de extrema preocupação didática ou de extrema repressividade o texto se complica com redundâncias e especificações ulteriores – até o limite em que se violam as regras normais da conversação. Em segundo lugar, porque, à medida que passa da função didática para a estética, o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa, embora costume ser interpretado com uma margem suficiente de univocidade. Todo texto quer que alguém o ajude a funcionar. (1986: 37) 105 Baseado em posições como essa, e criticando o que ele considera uma redução imposta pela teoria da comunicação, Umberto Eco vai discutindo o papel dessa previsão do Leitor-Modelo pressupondo sempre níveis de significação que não se restringem à superfície do texto. É oportuno verificar-se que o papel igualmente ativo do autor aparece também contemplado por Eco: (...) prever o próprio Leitor-Modelo não significa somente ‘esperar’ que exista, mas significa também mover o texto de modo a construí-lo. O texto não apenas repousa numa competência, mas contribui para produzi- la 5 7 . (1986: 40) Este trecho sinaliza a existência de elementos internos ao texto e estratégias de autoria que pretendem construir/influenciar o leitor. Uma perspectiva criativa da instância da autoria, portanto. Além disso, quando se discute o uso e a interpretação, volta-se a uma ponderação importante sobre os limites desses processos. Eco entende que interpretação seja um processo diferente de um uso livre. Ponderação consciente, já que os riscos nessa discussão são grandes: tende-se a pensar em extremos, com um autor 57 Em Obra Aberta, Eco faz um comentário sobre a arte que é da mesma natureza do que diz aqui: “Se a arte reflete a realidade, é fato que reflete com muita antecipação. E não há antecipação – ou vaticínio – que não contribua de algum modo a provocar o que anuncia." (p. 18) 106 superpoderoso e uma leitura fechada ou um leitor onipotente e um autor impotente: Devemos, assim, distinguir entre o uso livre de um texto aceito como estímulo imaginativo e a interpretação de um texto aberto. É nesta fronteira que se baseia sem ambigüidade teórica a possibilidade daquilo que Barthes chama de texto de fruição ou gozo: a pessoa tem que decidir se usa um texto como texto de fruição ou se um determinado texto considera como constitutiva da própria estratégia (e, portanto, da própria interpretação) a estimulação ao uso mais livre possível. Acreditamos, porém, que alguns limites são estabelecidos e que a noção de interpretação sempre envolve uma dialética entre estratégia do autor e resposta do Leitor –Modelo. (1986: 43) Imediatamente após dizer o que está no trecho acima, Eco considera a possibilidade de existência de estéticas que subvertam intencionalmente essa atitude cooperativa, rompendo essas fronteiras. Note-se, entretanto, que ao propor que possa existir uma estética dessa natureza, Eco coloca essa definição nas mãos do autor. Direcioná-la para o leitor redundará em outras questões, tais como a da leitura permitida ou a da leitura errada. Ou seja: até que ponto o leitor tem autonomia e/ou condições sociais de leitura para poder atribuir tal ou qual visão a um texto ? Isso será retomado no último item deste capítulo da tese, quando se estiverem analisando as relações entre autoria, leitura e silêncio. 107 O que interessa mais diretamente discutir, neste momento, é esta estética “aberrante” mencionada por Eco. Ele a caracteriza, destacando exatamente Jorge Luís Borges como sendo seu representante: Naturalmente, além de uma prática, pode ocorrer uma estética do uso livre, aberrante, desiderativo e malicioso dos textos. Borges sugeria que se lesse a Odisséia como se fosse posterior à Eneida ou a Imitação de Cristo como se tivesse sido escrita por Céline. Propostas esplêndidas, excitantes e facilmente realizáveis. Mais do que outras, criativa, porque de fato é produzido um novo texto (da mesma forma que o Quixote de Pierre Menard é bem diferente daquele de Cervantes, ao qual casualmente corresponde palavra por palavra). E que depois, ao escrever esse outro texto (ou texto Outro), se chegue a criticar o texto original ou a descobrir-lhe possibilidades e valências ocultas – isto é óbvio, nada é mais revelador de uma caricatura justamente porque parece, mas não o é, o objeto caricaturado, e, por outro lado, sem dúvida certos romances que foram renarrados se tornam mais bonitos porque se convertem em ‘outros romances’. (1986: 44) Instaura-se aqui, mais uma vez, a perspectiva da obra borgeana como jogo, no qual o leitor encontra-se, de um lado, livre para recompor um texto que lhe é apresentado como um conjunto de possibilidades, mas de outro, preso aos estratagemas de um autor que multiplica-lhe as armadilhas num labirinto de espelhos, limitando efetivamente as condições de leitura. Um ponto alto do ensaio de Eco, no que se refere a essa discussão sobre os limites e fronteiras da interpretação é a comparação que ele faz entre uma novela policial e um romance de 108 Kafka (ele cita O Processo). O pensador italiano argumenta que nada impede que se leia uma novela policial de uma perspectiva kafkiana, mas ler O Processo como uma novela policial “textualmente produz[iria] um resultado infelicíssimo”. Eco atribui isso a uma distinção entre textos abertos e fechados, dizendo que estes últimos suportam melhor ao uso do que os abertos. Pode-se, vislumbrar, no entanto, que aspectos ligados ao gênero possam também ser evocados para explicar a não reciprocidade de usos analisada aqui 5 8 . Outro conceito apresentado no texto de Umberto Eco é a de que tanto autor como leitor são hipóteses interpretativas: Se o Autor e o Leitor-Modelo constituem duas estratégias textuais, então nos encontramos diante de uma dupla situação. De uma lado, conforme dissemos até aqui, o autor empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, formula uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da própria estratégia, configura a si mesmo autor na qualidade de sujeito do enunciado, em termos igualmente ‘estratégicos’, como modo de operação textual. Mas, de outro lado, também o leitor empírico, como sujeito concreto dos atos de cooperação, deve configurar para si uma hipótese de Autor, deduzindo-a justamente dos dados de estratégia textual. A hipótese formulada pelo leitor empírico acerca do próprio Autor-Modelo parece mais garantida do que aquela que o autor empírico formula acerca do próprio Leitor-Modelo. Com efeito, o segundo deve postular algo que atualmente ainda não existe e realizá-lo como série de operações textuais; o primeiro, ao invés, deduz uma imagem-tipo de algo que se verificou anteriormente como ato de enunciação e está textualmente presente como enunciado. (1986: 46) 58 Não nos deteremos neste aspecto neste trabalho. 109 A primeira parte deste trecho indica um tipo de reflexão que pode ser relacionada com conceitos como alteridade e formação discursiva. A formulação de hipótese interpretativa, dentro da epistemologia abraçada por Eco parece ser meramente individual, não se levando em conta, constitutivamente, as condições de produção dessas hipóteses ou mesmo a memória discursiva que as inscreve no imaginário partilhado (ou não) por autor e leitor. A segunda parte dá uma pista relevante a respeito de uma certa especificidade da função-autor, diferenciando-a, de certa maneira, da função-leitor. No caso deste último, existe um produto textual a partir do qual realiza sua construção de sentidos (isto já foi discutido no item anterior, quando se propôs um traço diferenciador entre autor leitor e leitor-autor). Eco finaliza o ensaio com uma questão que, ao mesmo tempo se relaciona com esses limites, e com o silêncio: A configuração do Autor-Modelo depende de traços textuais, mas põe em jogo o universo do que está atrás do texto, atrás do destinatário e provavelmente diante do texto e do processo de cooperação (no sentido de que depende da pergunta: ‘Que quero fazer com este texto ?’). (1986:49) 110 3.1.3 – Interpretação e Superinterpretação Em 1990, em Clarence Hall, na universidade de Cambridge, como é de praxe, foram organizadas conferências sobre temas relacionados às humanidades. Naquele ano, o principal conferencista foi o semioticista italiano Umberto Eco, que propôs-se a discutir questões ligadas à interpretação. Tais conferências, juntamente com as dos demais participantes, foi publicada posteriormente. No interior deste contexto foi apresentado por Eco o conceito de superinterpretação, que consistiria numa extrapolação, por parte do leitor, de tal modo que se produzissem leituras inadequadas, exageradas, além da possibilidade que o texto permitiria. Eco posiciona-se de uma perspectiva cautelosa e restritiva a modelos de análise de obras e da própria atividade interpretativa fortemente centradas no leitor e para as quais, em maior ou menor grau, os limites entre as leituras possíveis são escassamente demarcados. No decorrer das conferências, há uma discussão de cunho histórico (que Stephan Collini contextualiza de maneira didática na introdução da publicação), que procura mostrar como a atividade interpretativa percorre um trajeto inicialmente relacionado à decifração da Palavra de Deus e, paralelamente e posteriormente, 111 como foi-se deslocando para a crítica filosófica, notadamente estética. Nos meandros dessa trajetória, enfrentam-se, muitas vezes, perspectivas antagônicas. É o caso da desconstrução, de um lado, e do pragmatismo (ou neopragmatismo, de Richard Rorty, principalmente) em oposição a uma tradição mais evidentemente aristotélica e racionalista. Umberto Eco dedica a primeira conferência “Interpretação e história”, para tratar da história do irracionalismo, a fim de demonstrar como as perspectivas que postulam uma total liberdade interpretativa do leitor apresentam uma convergência epistêmica com o hermetismo, criado a partir do 2 º século depois de Cristo e reforçado por correntes como o gnosticismo. Na pensador segunda italiano conferência, introduz “Superinterpretando propriamente o textos”, conceito o de superinterpretação e, finalmente, na última, “Entre autor e texto”, procura desenvolver o conceito de intentio operis (intenção da obra), em contraposição à intentio actoris e à intentio lectoris, ou seja, postula que a organização de um texto permite que se identifiquem aspectos e tendências interpretativas que não podem ser contrariadas sob pena de desvirtuar-se a leitura. Há, ainda, uma réplica de Eco às falas de Richard Rorty, Jonathan Culler e Christine Brooke-Rose, na qual ele reafirma seus conceitos. 112 Ao escolher proporcionar um panorama histórico do hermetismo, o objetivo é mostrar que se criou uma tradição interpretativa – com a qual várias teorias atuais são convergentes – que valoriza o segredo, de tal forma a não somente criar uma elite de iniciados, mas, principalmente, caracterizar o processo de interpretação como uma busca infindável de segredos ocultos atrás de outros tantos segredos. Tal atitude, para Eco, determina uma “leitura paranóica”, na qual o grau de suspeita necessário para que se proceda a uma leitura mais profunda torna-se exagerado (exatamente nesta desconfiança) já que precisa continuamente percorrer esse elo infinito de alegorias. Daí o que Eco chama de superinterpretação. Superinterpretar não é simplesmente interpretar demais. É exagerar no grau de uma atitude necessária para o processo interpretativo, que é a suspeita. Eco relaciona tal suspeita à busca contínua (e compulsiva) de sentidos ocultos, mesmo quando tal abordagem não se sustenta. Outra consideração é em que contexto da discussão de Eco sobre a interpretação se situa esse conceito. Da mesma forma como o conceito de Obra Aberta, desenvolvido por Eco nos anos 60 do século passado levou uma legião de leitores a endossar perspectivas que concebiam uma ausência de limites da interpretação, há leitores que tomam o conceito de superinterpretação como um fechamento, uma espécie de contrição de Umberto Eco, revendo o conceito anterior. Uma leitura mais abrangente e atenta nega isso (a não ser 113 que se conceba, é claro, que se pode interpretar a obra dele como se queira). Quando Obra Aberta foi publicada, Eco já alertava para o fato de que estava discutindo um determinado tipo de obra, caracterizado como “criativa”. Em princípio, preferencialmente o texto estético. Em Lector in Fabula, livro cronologicamente posterior, ele restringiu o escopo para textos literários (escritos). Ele reiterou, em vários momentos do texto de Obra Aberta, que não era objetivo daquela discussão aplicar um modelo capaz de caracterizar qualquer obra empírica, principalmente aquelas que fugiam deste perfil de “criativas”. Outro aspecto fundamental é que se faz uma confusão muito grande com o sentido atribuído por Eco ao termo “interpretação”. Desde Obra Aberta, é feita por ele uma distinção entre “interpretação” e “uso”. O semioticista italiano não acha inadequado que uma obra seja provocativa de leituras e/ou hipóteses pouco relacionadas ao objetivo a que ela se propunha. Neste caso, ele caracteriza que há um “uso” da mesma, um processo de apropriação. Para ele, no entanto, interpretar é comprometer-se com os sentidos possíveis de se atribuir ao texto. Se se tiver um mínimo de critério analítico, há que se respeitar inicialmente essa distinção. Não se trata de discutir aqui sua pertinência. Mesmo que haja discordância quanto a isso, o que não se pode conceber num olhar 114 mais atento para a discussão que Eco empreende é igualar sentidos que não correspondem. De alguma forma, é o que a linha argumentantiva de Jonathan Culler, embora contenha elementos oportunos em contraposição a um aparente estreitamento de horizonte conceitual por parte de Eco, ignora. Quando Culler, discutindo como a desconstrução concretiza uma determinada forma de análise crítica, diz que Muitas das formas mais interessantes da crítica moderna não perguntaram o que a obra tem em mente, mas o que ela esquece, não o que ela diz, mas o que toma como ponto pacífico. (CULLER, 1993: 137) Culler parece não se dar conta de que esta ponderação seria irrepreensível distinção se entre não desconsiderasse, “interpretação” e “uso”, de alguma reiterada maneira numa a das conferências de Eco. O que o leitor desta tese poderá estranhar é que a citação de Culler não deixa de ter relação com o silêncio. Perguntar-se o que a obra não diz, pode-se dizer, talvez seja um dos aspectos analíticos deste trabalho. Um dos riscos numa discussão como essa, sobre o silêncio, é exatamente de uma remissão a um discurso e a uma prática herméticos (no sentido técnico e histórico que este termo tem), na 115 medida em que se busque sempre o sentido oculto, atrás de um outro e se assuma a postura “paranóica” de desconfiar de qualquer palavra ou ausência dela. De uma perspectiva discursiva como a que se pretende aqui, tal caminho seria muito questionável. Há que se presumir, inicial e taxativamente, que desvelar (ou atribuir) sentidos a alguns silêncios, se, por um lado, cria outros silêncios, em contrapartida, também cria outros dizeres. Para que esta afirmação não caia no hermetismo, pode-se entender que se nos propomos a analisar a constitutividade da linguagem e se se acredita que tal constitutividade é heterogênea não somente no interior do dizer, mas igualmente no interior do silêncio e nas relações entre dizeres e silêncios, o que sempre ocorrerá em qualquer ato interpretativo é sempre uma redefinição dos espaços ocupados pela palavra e pelo silêncio. Não há, do ponto de vista desta epistemologia, um sentido preexistente, seja como palavra, seja como silêncio, que esteja debaixo do último véu. Essa reconfiguração de espaços, antes de mais nada, é material. Ou seja: as condições sociais e ideológicas da interpretação são tão materiais quanto a forma do texto. Desse ponto de vista talvez aí resida uma limitação de horizontes da epistemologia abraçada por Umberto Eco. Fala-se de intenções de um autor , que, mesmo entendido enquanto estratégia textual, aparece despido de sua historicidade, de sua inserção nas relações econômicas, 116 políticas, sociais, ideológicas que vive, juntamente com outros sujeitos. Talvez por não dar conta dessas relações mais abrangentes, algumas observações de Eco soam estranhas para alguém postado no território da AD. Quando ele diz que as leituras “possíveis” são confirmadas pela comunidade com o passar do tempo, incorre numa petição de principio. Ora, isto é conseqüência de que esta leitura conseguiu estabelecer-se como correta e não que seja correta em si mesma. Essa contradição fica mais evidente se se considerar que em nenhum momento de sua discussão (e isso desde Obra Aberta até Interpretação e Superinterpretação) Eco pretende que exista uma única leitura ou que algumas possam ser, absolutamente, mais corretas do que outras. O que ele pretende é discutir os limites de leituras que colidam com um direcionamento semiótico insinuado pelo próprio texto. Outra observação importante relaciona-se precisamente a Borges. No texto Pierre Menard, autor del Quijote, Jorge Luís Borges propõe que se leia a Imitação de Cristo como se fosse escrita por Céline. Eco, em sua terceira e última conferência admite que realizou este exercício e que o resultado seria uma prova de que algumas leituras não são possíveis. No caso em questão, ler um texto de tradição mística medieval por uma outra perspectiva criou inconsistências na leitura. 117 É óbvio que não poderia ser diferente. As razões para isso é que podem ser vistas de maneira muito diversa. Eco desconsiderou, em sua análise, um pormenor decisivo (não importa se consciente ou inconscientemente): como leitor, ele (Eco) é um medievalista. Desta perspectiva, seria impossível que ele não notasse certas contradições em uma obra atribuída a Céline, pertencente a uma outra época e mentalidade. Segundo aspecto: ele conhecia um conjunto bastante rico de informações contextuais sobre a obra em questão e sobre o outro autor a quem ela estava sendo atribuída. Mas o ponto fundamental talvez ainda esteja em outro lugar. Eco subinterpretou (para usar a expressão de Culler, baseada em Wayne Booth) Borges. Neste aspecto cabe analisar uma das funções desta reconfiguração entre o dizer e o silenciar, mencionada acima. Ou seja: Eco apostou na proposta estética de Borges, esquecendo-se que dentro do universo borgeano a palavra-chave é engodo. Dizer que todos os textos têm um único autor (o Espírito) e propor que um texto seja lido como sendo de outra época e outro autor – como Borges faz em La flor de Coleridge - não é, absolutamente, uma proposta de liberdade total para o leitor. No labirinto de espelhos do engodo borgeano, produzir (ou propor) uma obra que seja constantemente recriada pelo leitor, não significa, efetivamente, uma desvalorização da função do autor . Borges ocultase numa rede de denegações. Seu leitor não é qualquer leitor. Se Pierre Menard escreve o mesmo texto do Quijote no século XX e 118 produz outra obra, diferente da de Cervantes, e que passa a ter um outro autor (Menard), se se atribuísse a Céline o mesmo texto da Imitação de Cristo, tal como Borges propõe, jamais, da própria perspectiva estética do escritor argentino, seria possível pensar-se que a obra continuasse a ser a mesma. Seria de Céline, pelo fato de que seria lida com os olhos da época de Céline. A argumentação de Eco fragiliza-se no labirinto do engodo borgeano, pois ela não leva em consideração que, tal como nos jogos de Borges, a postura do semioticista italiano caracteriza-se como a de um autor, mesmo quando procurava ler. O que se pode entender do jogo borgeano, a partir das regras do seu próprio universo, é que o cerne da questão é o próprio jogo. Pierre Menard é um truque de espelhos. Da perspectiva desse jogo, jamais poderia ser lido dessa forma (jamais seria aceito que o texto fosse dele) porque, exatamente como disse Borges (...) O mesmo acontece com o Quijote. O mesmo acontece com Lugones e Martinez Estrada, o Martín Fierro não é o mesmo. Os leitores foram enriquecendo o livro. (1979: 29) Se os leitores do Quijote o foram enriquecendo, isto significa que soma-se à obra o conjunto de interpretações que se faz sobre ela. Dessa perspectiva, o texto mesmo de Cervantes seria de Cervantes, embora nos esquecêssemos que já não lemos Cervantes 119 como quando o Quijote foi escrito. Isso ocorre porque nos inscrevemos em discursos sobre o que é ser autor de uma obra, a própria obra e daí por diante. O que Borges faz, com este jogo, é mostrar a um leitor que participa, mesmo sem aceitar ou saber da retransformação da obra, que seu poder de leitor é anacrônico, na medida em que depende de um autor que lhe diga e lhe mostre isso, enquanto jogo, e que, diante do assombro, se ele entender o jogo, o terá comprovado. E se o comprovar terá sido aprisionado em sua armadilha. Um aspecto sutil desse jogo é a referência a Madame Henri Bachelier. Borges propõe que Esa técnica de aplicación infinita nos insta a recorrer la Odisea como si fuera posterior a la Eneida y el libro Le jardin du Centaure de Madame Henri Bachelier como si fuera de Madame Henri Bachelier. (Pierre Menard, autor del Quijote.) Ocorre um jogo de espelhos: ler um texto, com a assinatura de autoria de “X” como se a autoria fosse realmente de “X”. Aplicando-se o quadrado semiótico de Greimas, obtém-se um resultado esclarecedor: se “X” parece ser autor da obra “Y”, mas não é, há a mentira. Mas se “X” é autor de “Y”, mas não parece ser, há o segredo. A expressão “como si fuera” induz prioritariamente à primeira. Então, se a assinatura de autoria de uma obra, mesmo 120 reconhecida como assinatura válida é uma mentira, quem é realmente o autor ? Talvez aquele único autor de La flor de Coleridge (para Elliot, o Espírito. Para Borges, mais certamente, a Literatura). No entanto, o caráter de jogo é que nesse caso Borges propõe que se leia como uma ilusão, acreditando-se na assinatura de autoria. De um lado, propõe trocar a assinatura arbitrariamente (autor da Imitação de Cristo por Céline ou Joyce), de outro, acreditar numa assinatura de autoria somente pelo prazer de jogar, embora não se considere que ela seja válida. Não é um exercício fácil ou agradável como Eco diz em Lector in Fabula nem uma experiência factível, como ele admitiu em Interpretação intelectual, uma e Superinterpretação. brincadeira com um É apenas conceito, um exercício talvez para desmistificar os limites rígidos da função-autor. Uma imagem dessa relação de armadilha e descoberta do leitor borgeano é a do sadomasoquismo. O leitor se compraz em ser ludibriado pelo prazer do jogo. Sofre a derrota do aprisionamento mas a vitória de ter saboreado o jogo. Silenciosamente, há nesta estética, também, uma supervalorização do autor. Um autor que se delicia duplamente pelo fato de saber que enganará seu leitor e que ele (leitor) gostará disso. Neste sentido, a proposta de ler a Imitação de Cristo como se fosse de Céline é mais uma intromissão do fantástico no mundo considerado real. Tal qual em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, há uma intromissão de um mundo imaginado na realidade da leitura. 121 O fato de Eco não aplicar a Borges a própria distinção já definida em Obra Aberta e mantida em Interpretação e Superinterpretação resulta numa fragilização do viés de leitura do pensador italiano. A proposta de Borges não pode ser lida como “interpretação”, mas como “uso”. Se o próprio Eco reconhece que esses limites de leitura aceitáveis não se aplicariam a Joyce, por que tentar aplicá-los a Borges ? Talvez haja mais um aspecto digno de consideração. Borges se utiliza de diversas estratégias do discurso hermético. A infinita intertextualidade, a metáfora do universo como livro (ou biblioteca, o que só multiplica ao infinito a concepção), a adesão a postulados idealistas extremados, o platonismo, o fascínio pelos labirintos e pelos próprios textos herméticos (cabala, Swedenborg, por exemplo) seriam indícios mais que suficientes para caracterizá-lo nesta filiação. No entanto, ao contrário dos hermetistas que buscam o segredo escondido atrás do último véu, para Borges, atrás deste não existe nada. Dessa perspectiva, se para Borges, na função-autor, tal discussão seja universal porque caracteriza a nossa natureza, para ele próprio e para seu leitor, enquanto função-leitor, a estratégia discursiva da estética borgeana é um grande blefe, quiçá um insulto, a um leitor que, sabe Borges, só pode ser leitor (e, particularmente, leitor de sua obra) se for criador, mas que está condenado a se perder nos labirínticos jogos de espelhos. Vingança de um autor que 122 não pode, como qualquer outro, controlar sua obra. Mas já que o leitor passa a ser um pouco autor também, estende-se a ele (leitor) tal impotência. Esta digressão interessa ao trabalho aqui discutido. É possível existir uma estética do leitor , como a de Borges, sem que se pretenda que os limites da interpretação (ou do uso) sejam irrestritos. O que ocorre é que o leitor é a instância de chegada, de determinação (adequada ou não) de qualquer obra 5 9 . Aceitar isso não significa negar que a obra tenha identidades formais que possam ser analisadas. Wolfgang Iser, por exemplo, ao discutir a importância da recepção, não descarta especificidades da obra. Há alguns exemplos bastante frutuosos, dados por Eco que ilustram esse último aspecto. Ainda no Lector in Fabula, como já foi mencionado neste capítulo, ele faz uma relação pertinente entre a obra “O Processo”, de Franz Kafka e a novela policial. Em Interpretação e Superinterpretação, Eco dá um exemplo hipotético, imaginando que Jack, o estripador, pudesse justificar seus crimes a partir da leitura do Evangelho de São Lucas (Note-se que Borges faz algo semelhante em El evangelio según Marcos 6 0 ). Neste caso, o embaraçoso seria justificar tal leitura como apropriada. Veja-se que a 59 O próprio Eco reconhece isso ao fazer uma ponderação sobre seu conceito de intentio operis: “Assim é possível falar da intenção do texto apenas em decorrência de uma leitura por parte do leitor. A iniciativa do leitor consiste basicamente em fazer uma conjetura sobre a intenção do texto.”(p. 75) 60 Uma leitura extrema de temas religiosos pode ser vista também no filme A Carne, do diretor italiano Marco Belocchio. 123 discussão é sobre o conceito de “interpretação”, desenvolvido pelo semioticista. Se se falasse em uso, a discussão seria outra. 3.2 – Autoria, função do leitor e silêncio Até este momento, dentro do presente capítulo, as questões sobre autoria e função do leitor foram tratadas pelo viés de uma outra epistemologia, que não aquela norteadora desta tese. Sob a perspectiva da AD francesa, no entanto, há outras considerações relevantes e que fundamentam mais adequadamente a análise sobre o silêncio. Um ponto de referência crucial é a discussão de Michel Foucault sobre autoria, especificamente sobre o que ele passa a designar como função-autor. Foucault, em O que é um autor faz um panorama histórico da construção do conceito de autoria e nos permite visualizá-lo dentro das condições de produção materiais e da formação de mentalidades, num processo que se inicia mais nitidamente a partir do final do século XVII e do decorrer do século XVIII. Algumas condições básicas merecem ser mencionadas. A existência de discursos transgressores passou a exigir uma origem determinada a fim de que as sanções pudessem ser aplicadas. 124 Essa situação contrastava com a prática exercida desde a Idade Antiga de os textos tais como contos, narrativas, epopéias, tragédias, comédias serem validados independentemente de terem autoria definida. Às vezes, a própria antigüidade de um texto constituía uma garantia de sua autenticidade. Os textos acadêmicos, no entanto, precisavam de um autor que os autorizasse. A Idade Média prosseguiu, de forma geral, com esta tendência. A relação entre autores e leitores era muito mais fluida, dentro de ume escopo religioso-idealista onde o autor supremo era Deus 6 1 . A partir dos séculos XVII e XVIII o critério de validade dos textos científicos passou a ocorrer em função da ligação deles a um conjunto sistemático de verdades, geralmente consideradas como tais sob uma concepção empirista. Outra característica importante, já no final do século XVIII e no século XIX foram as condições materiais de circulação do livro. Desde o aparecimento da página impressa, a interferência do leitor no texto foi-se desvanecendo e a autoridade do autor foi ganhando importância. Com o aumento de complexidade comercial, através do desenvolvimento do capitalismo, e da inserção da relação autor/editor 61 Maria Helena Pereira Dias, no site http://www.unicamp.br/~hans/mh/autor.html, “Uma experiência hipertextual” (O autor), faz uma consideração ilustrativa: “No período dos manuscritos, quando escribas e exegetas freqüentemente alteravam os textos que transcreviam e copiavam a separação entre autores e leitores não era tão significativa, vale lembrar que a visão expressa por Sto. Tomás de Aquino e Sto. Agostinho de que não eram autores, mas realizadores da palavra de Deus consolidou a metáfora bíblica das duas leituras: a leitura do livro da natureza - obra de Deus e a leitura da palavra revelada, também obra divina, que lhes conferia autoridade.” (p. 1) 125 nesse contexto, os direitos do autor passaram a se constituir como um território quase físico, de propriedade, de bem. É interessante observar-se que determinadas instâncias de textos científicos passaram a constituir um novo tipo de autoria, segundo Foucault: Afigura-se-me, porém que ao longo do século XIX europeu apareceram tipos de autor bastante singulares, que não se podem confundir com os ‘grandes’ autores literários, nem com os autores de textos religiosos canônicos, nem com os fundadores das ciências. Chamemos-lhes então, de forma um pouco arbitrária, ‘iniciadores de práticas discursivas’. (FOUCAULT, 1992:58) Para Foucault, diferentemente dos textos literários, textos como os de Freud e Marx, que o pensador francês dá como exemplos desses “iniciadores das práticas discursivas”, entendendo este processo não só como a produção da própria obra deles, mas, o fato de também terem produzido “a possibilidade e as regras de formação de outros textos” (ibidem). Partindo destas considerações, Foucault irá enfocar algo que interessa muito à discussão empreendida neste trabalho. Tais práticas discursivas, segundo ele, são heterogêneas no que tange às suas futuras modificações: 126 Por outro lado, a iniciação de uma prática discursiva é heterogênea com respeito a suas transformações ulteriores. Ampliar a prática psicanalítica, tal como fora iniciada por Freud, não é conjeturar uma generalidade formal não posta de manifesto em seu começo; é explorar um número de ampliações possíveis. Limitá-la é isolar nos textos originais um pequeno grupo de proposições ou afirmações às quais se lhes reconhece um valor inaugural e que revelam a outros conceitos ou teorias freudianas como derivados. Finalmente, não há afirmações ‘falsas’ na obra destes iniciadores; aquelas afirmações consideradas não essenciais ou ‘prehistóricas’, por estarem associadas com outro discurso, são simplesmente ignoradas em favor dos aspectos mais pertinentes de sua obra. (ibidem) Esta definição leva Foucault a entender que é inevitável que os praticantes desses discursos “regressem à origem”. Para ele, este regresso designa um movimento que caracteriza a iniciação das práticas discursivas, e significa, em última instância, que ele “(...) é devido a uma omissão básica e construtiva, uma omissão que não é o resultado de um acidente ou incompreensão.” A ligação com o silêncio é bastante evidente. O ignorar aspectos das obras dos autores que inauguram as práticas discursivas mencionadas por Foucault consiste, inicialmente, num silêncio por ausência. Será visto, um pouco mais à frente, que o silêncio por excesso está também imbricado nas próprias considerações do pensador francês. Quando ele menciona que essa omissão não é nem acidental nem fruto de uma incompreensão, pode- 127 se entender que visualiza aspectos constitutivos nessas omissões, aqui nesta tese caracterizadas como silêncios. Vista desta perspectiva, compatível com a AD francesa, a autoria se constrói no interdiscurso - teia de memórias afetadas pelo esquecimento 6 2 - na medida em que não só os discursos e os textos que os manifestam possuem uma outra materialidade além das palavras: uma materialidade que historiciza as leituras da obra e a reconstrói. Autor e leitor são sempre, dessa forma, co-participantes desse jogo de memórias, mesmo que distanciados pelo tempo e sujeitos a condições de apropriação. Embora Foucault não o diga exatamente desta forma, pode-se perceber que tais concepções são possíveis. A continuação do texto vai além: Ademais, se trata sempre de um regresso ao texto em si mesmo, especificamente, a um texto primário e sem ornamentos, prestando particular atenção àquelas coisas registradas nos interstícios do texto, seus espaços em branco e suas ausências. Regressamos àqueles espaços vazios que foram cobertos por omissão e ocultos em uma plenitude falsa e enganosa. Nestes redescobrimentos de uma carência essencial, encontramos a oscilação de duas respostas características: ‘Esta observação foi feita, não pode evitar vê-la se se sabe ler” ou a inversa, ’Não, essa observação não está feita em nenhuma das palavras impressas no texto, porém está expressa através das palavras em suas relações e na distância que as separa’. (ibidem) 62 Apropriando-se de Orlandi 1999:33. 128 Aqui se observa uma análise que pode equivaler à categoria de silêncio como excesso, já discutida nesta tese. A expressão “cobertos por omissão” pode perfeitamente ser relacionada a isso. Cabe considerar, principalmente no escopo deste trabalho, como se comporta essa função-autor no texto escrito. Gregolin (2001), a partir da análise de Foucault, aponta que o sujeito do discurso está inscrito na materialidade do texto. O que se torna desafiador, enquanto exercício analítico, é não confundir a materialidade do texto com a materialidade dos discursos. Ambas existem, do ponto de vista da AD, mas não pelos mesmos processos. Não basta identificar em cada significante um sentido unívoco dele decorrente. Dependendo da perspectiva assumida, há relações entre significantes antes de haver destes com significado(s) (em Lacan, por exemplo) ou já se entende como premissa que o signo expressa um sentido plural (em Bakhtin, quando este afirma que o signo é dialógico). Portanto, se é aceito que a materialidade do sentido decorre da relação que os significantes apresentam com os discursos que concretizam no corpo do texto, passa a ser necessário focar o olhar nas condições de produção e circulação dos discursos, bem como na rede de memória que constrói elos entre os discursos e suas filiações – o interdiscurso. Neste aspecto, Gregolin (2001:63) menciona que: 129 “A ‘função-autor’ é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento dos discursos no interior de uma sociedade, e, por esse motivo, a reflexão sobre a autoria não pode estar desvinculada, do nosso ponto de vista, da discussão sobre os regimes de apropriação dos textos e da construção da memória coletiva de uma sociedade.” A autora continua sua linha de argumentação estabelecendo uma relação entre essa circulação de discursos na sociedade e os gêneros discursivos (utiliza-se de Bakhtin), de tal modo que tais discursos se concretizem em formas textuais típicas de cada um desses gêneros. Analisando um poema que tem a maior parte de seu conteúdo composto por afirmações científicas a respeito da água, Gregolin empreende uma discussão sobre o papel das redes de memória e sua relação com a constituição da autoria. Sob essa ótica, um texto inscreve-se no gênero literário ou científico na medida em que acionar as memórias respectivas, relativas a um ou outro desses gêneros. É claro que essas memórias, assentadas materialidade na materialidade decorrente das do texto, condições terão igualmente sociais, uma ideológicas, políticas, econômicas, vividas pelos sujeitos participantes dessas redes de lembranças e esquecimentos de dizeres e sentidos que circulam. A operacionalidade deste conceito reside na circunstância que ele permite, ao mesmo tempo, considerar as condições do texto e sua exterioridade. Assim, o modo de circulação dos discursos e dos 130 gêneros e de como eles acionam (ou deixam de acionar) os elos dessas memórias, depende de vieses construídos historicamente. O que se entende por gênero científico hoje, aqui, não corresponderá às mesmas operações, resgates e esquecimentos de sentidos já-ditos, préconstruídos, de outra sociedade, com outras representações de imaginário e com outra historicidade de seus discursos. É nesse quadro que “A instalação da autoria problematiza a evidência do sentido e permite pensar a complexa teia em que o sujeito se enreda, ocupando o lugar de enunciador, ao inserir-se nas séries de falas que o precedem.” (Gregolin, 2001:76) Tão imprescindível para a discussão sobre autoria e função do leitor quanto as noções de memória discursiva, interdiscurso e historicidade, é a noção de incompletude da linguagem. Authier-Revuz, ao analisar as formas de modalização autonímica subjacentes à heterogeneidade mostrada, estabelece uma tipologia de diferentes formas de não-coincidência na construção do discurso 6 3 . 63 A saber: a) não coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores; b) não-coincidência do discurso consigo mesmo, afetado pela presença de outros discursos; c) não-coincidência entre as palavras e as coisas; d) não-coincidência das palavras consigo mesmas, afetadas por outros sentidos, outras palavras, jogo da polissemia, da homonímia etc. (Authier-Revuz, 1998: 20-21) 131 Esta série de não-coincidências mostra esse aspecto de incompletude da linguagem. O sujeito, a cada enunciação, depara-se com uma história de sentidos já produzidos antes de sua existência (e antes especificamente daquela enunciação), história da qual ele também não é a origem. Entre as falas retomadas ou esquecidas, delimitadas de uma rede mais ampla de memórias, sobram arestas, faltam encaixes, há sobreposições e buracos. A partir dessa dispersão do sujeito, por conta dos esquecimentos necessários para que o sujeito possa inserir-se no discurso, há que se criar um princípio de agrupamento, de coerência, unicidade e completude, mesmo que imaginários. É o que Orlandi (1999:73) compreende da função-autor de Foucault: O autor é o lugar em que se realiza esse projeto totalizante, o lugar em que se constrói a unidade do sujeito. Como o lugar da unidade é o texto, o sujeito se constitui como autor ao constituir o texto em sua unidade, com sua coerência e completude. Coerência e completude imaginárias. Para ela, assim, o sujeito está para o discurso da mesma maneira que o autor está para o texto, exatamente como esse princípio organizador e unicizante. Gregolin (2001:67), no final de seu artigo, também faz uma abordagem semelhante: 132 “A atribuição de uma assinatura de autoria a um texto constitui a escrita como expressão de uma individualidade que fundamenta a autenticidade da obra, atribuindo ao autor a idéia de invenção individual e criação original.” Neste caso, Gregolin, além dessa idéia de criação, enfoca igualmente o aspecto de autentificação da obra, particularmente pensando-se na escrita. Pois bem: as não-coincidências e seu aspecto de incompletude da linguagem implicam essa dispersão, ameaçadora da própria constituição do discurso. Na medida em que esse sujeito de-centrado e disperso assume a função-autor cria uma unicidade imaginária, suficiente para manter fios possíveis de entrelaçamento das memórias de sentidos já-produzidos (e que serão (re)transformados nesse outro dizer, oscilando entre a paráfrase e a polissemia). No âmbito desta tese, pode-se considerar que estas nãocoincidências têm uma relação bastante íntima com o silêncio. Primeiramente, enquanto silenciamento dessas próprias não- coincidências, o que pode ser feito, entre outros processos, pelo conceito de função-autor, assim como foi exposto acima. Mas há um outro aspecto relevante: o da não-coincidência da palavra com o silêncio (não há recursividade total entre eles, ou seja, nem todo silêncio é representável em palavras e vice-versa). Como já foi 133 mencionado, o silêncio pode ser entendido como um procedimento de clivagem dos dizeres e das vozes. Assim, um silêncio por ausência evitaria a ocorrência de um espaço de dizeres não-coincidentes, inconvenientes ao fechamento imaginário (e provisório) do discurso. Já um silêncio por excesso exerceria, por sua sobreposição característica, um apagamento de dizeres não-coincidentes, com efeitos de natureza semelhante ao do silêncio por ausência. Já o silêncio enquanto voz teria como característica ser um procedimento de inserção do sujeito no universo do discurso, ou seja, um sujeito não se constitui como tal somente pelo que diz, mas também pelo que silencia, seja esse dizer composto de palavras ou não. Para avançar em direção a uma concepção de autoria e suas relações com a função do leitor – do ponto de vista da AD francesa – que dêem conta da produção borgeana, são necessárias mais algumas considerações. Se é possível aceitar a função-autor como uma estratégia de completude imaginária, faz-se necessário estabelecer a relação entre esse tipo de autoria e a função do leitor, consideração fundamental para se abordar a estética borgeana. Para Orlandi (1999: 76-77) 134 “Essa representação do sujeito, ou melhor, essa sua função, tem seu pólo correspondente que é o leitor. De tal modo isso é assim que cobra-se do leitor um modo de leitura especificado pois ele está, como o autor, afetado pela sua inserção no social e na história. O leitor tem sua identidade configurada enquanto tal pelo lugar social em que se define ‘sua’ leitura, pela qual, aliás, ele é considerado responsável. Isso varia segundo a forma histórica, tal como a autoria: não se é autor (ou leitor) do mesmo modo que na Idade Média e hoje. Entre outras coisas, porque a relação com a interpretação é diferente nas diferentes épocas, assim como também é diferente o modo de constituição do sujeito nos modos como ele se individualiza (se identifica) na relação com as diferentes instituições, em diferentes formações sociais, tomadas na história.” Pela simetria estabelecida por Orlandi entre as funções de autor e leitor, pode-se considerar que, tal qual o autor, o leitor também representa um princípio de estabelecimento de unicidade, coerência e completude imaginárias ao discurso, através da textualização. A questão aqui reside em determinar as especificidades de cada processo (função), principalmente em suas respectivas materialidades. Schinelo & Villarta-Neder (2000: 117), ao analisarem o processo de autoria em Fita Verde no cabelo, de Guimarães Rosa, estabelecem uma relação ampla entre autor e leitor, colocando um calculado olhar de um leitor virtual subjacente à constituição do autor. Além disso, tentam estabelecer uma relação entre narrativas orais que são (re)construídas e transferidas para a escrita a partir desse olhar. Tais relações podem ser visualizadas no gráfico abaixo: 135 Gráfico 3 O que pode interessar para esta tese nestas relações é não somente esse leitor introjetado, pela alteridade, na função do autor, mas também a inclusão das narrativas orais. No contexto dos textos borgeanos há muito de jogo e de denegação com as funções do autor e do leitor. Como será visto no tópico seguinte deste capítulo, Borges, no prólogo de Historia Universal da Infâmia (1935), coloca-se como “mero” tradutor e leitor dos textos que apresenta no interior do livro. Há nessas denegações borgeanas identificações estreitas com esse processo relacional entre as narrativas orais e o olhar de leitor introjetado na função do autor. 136 Isto ocorre se, por analogia, conceber-se a função-autor borgeana como a de um rapsodo (daí a similitude com a recitação de narrativas orais) cuja função é a de meramente transmitir uma tradição narrativa perdida na névoa dos tempos. Aliás, o que atende à condição para que o sentido se construa: a de que, pelo esquecimento de sua origem mais imediata, as palavras (ou o silêncio) do Outro possa ser apagado e passar a fazer sentido nas palavras do Eu. (Orlandi, 1999: 34) Seria possível, usando uma forma do dizer borgeano, afirmar-se que Borges, ao insistir tanto em valorizar suas fontes (quando não pseudo-fontes, inventadas) faz um espelhamento do silêncio, na medida em que faz parecer seu inverso: em vez de reafirmar tais vozes, pelo excesso com que as valoriza, ele as silencia, inscrevendo-as nesse jogo paradoxal de esquecimentos e retomadas que é o interdiscurso. Está-se diante de um caso típico de silêncio por excesso. E tal estratégia o inscreve igualmente na função-autor (e não meramente na de um tradutor que realiza uma atividade braçal), pelo mesmo espelhamento silenciador: ao se negar como princípio unificador do texto, ele fornece ao leitor uma razão, um motivo que confere a este texto uma coerência. Em outras palavras, faz exatamente o que diz não fazer, comportando-se como esse princípio que estabelece completude e unidade ao discurso. Cumpre, com a maestria de um silêncio tagarela, a função-autor. 137 Sua valorização do leitor pode ser entendida também simetricamente, como a citação de Orlandi estabelece. Para participar do jogo estético, do gênero literário cuja memória o leitor resgate (e esqueça), tal leitor precisa ter características parecidas: apreciar, saborear o engodo e, assim, saboreando-o e esquecendo que está preso numa armadilha, tomar sentidos anteriores como se fossem seus (ou seja: pensar que descobriu integralmente o jogo e, portanto, ter-se apropriado dos seus sentidos). Se Borges se insere numa memória discursiva de um gênero que comporta (e exige) um leitor participante, tal “convite” ao leitor não faz outra coisa senão espoliá-lo da possibilidade de construir seus sentidos (dele, leitor) pelo apagamento dos já-ditos pela funçãoautor. Ao multiplicar as armadilhas e as casualidades no interior dos textos (como Borges assume fazer no início de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius), Borges, assim como diz, no prólogo de Fervor de Buenos Aires, ter roubado idéias e/ou impressões do leitor, rouba-lhe também possibilidades de inserção no interdiscurso, possibilidades de acreditar serem seus sentidos que ele (leitor) não acha no texto. Provoca um silenciamento de silêncios (bem ao seu gosto especular). Isto significa que a valorização que Jorge Luís Borges faz do leitor é, ao mesmo tempo, uma memória necessária ao gênero em que se constitui como autor e um engodo, na medida em que não está introjetando o olhar de um leitor qualquer. Essa especificidade do leitor borgeano é apresentada por Campos (1988:26): 138 Por outro lado, nem todo leitor pode ser autor. Será participante, na dependência de uma série de fatores: a relação que se estabelece entre o cabedal de suas leituras e aquela do momento. Se a intertextualidade, consciente ou não, na obra, é um fato, só se torna evidência na leitura capacitada a explicitá-la. Por isso, o título de participante, que Borges outorga aos leitores de sua obra, não poderá receber aval, senão mediante o conhecimento de uma fração significativa dela, pelo menos da que se relaciona ao assunto sob enfoque. (...) Faz parte, portanto, do jogo borgeano eleger um tipo específico de leitor, cujas características mais evidentes podem ser apontadas como a disposição para o jogo, a vivência da leitura como um processo de criação, a possibilidade de estabelecer complexas relações intertextuais, o saber enciclopédico, entre outros. Por último, cabe levantar outra questão que será discutida no próximo item deste capítulo e no capítulo seguinte. Como se sabe, no conto Pierre Menard, autor del Quijote , Borges cria um personagem que pretende reescrever a obra de Cervantes, na verdade escrevendo outra obra, identificável como sendo dele, Menard. Borges compara dois trechos de ambas e estonteia o leitor, já que textualmente são idênticos. Atribui ao texto de Cervantes uma atualidade e ao de Menard um estilo arcaizante e estrangeiro. Possenti (1990:110), ao discutir as condições de legibilidade dos textos analisa essa passagem de Borges para mostrar que o escritor argentino atribui um tópico ao trecho de Cervantes diferente 139 do de Menard (é bom lembrar que os textos são idênticos). A partir desta constatação, Possenti se pergunta: Que eu saiba, não se chama a atenção, não se percebe ou não se quer perceber aquela manobra de Borges. No entanto, ela é visível. E propicia a seguinte pergunta: algumas das propriedades atribuídas aos textos não serão talvez características dos leitores ? Será que Borges quis errar (ou errou sem querer) para que seu texto significasse que não há leitor capaz de lançar o mesmo olhar sobre dois textos, mesmo que sejam ‘iguais’ ? Esta indagação incide não somente sobre a possibilidade de o leitor abarcar todas as interpretações, mas igualmente sobre as condições de funcionamento do jogo borgeano. Pretender-se que tal estética prescinda da autoria em favor de um leitor todo-poderoso torna-se, dessa perspectiva, questionável. 3.3 – Autoria e Estética do leitor em Borges 140 Monegal, em sua obra Borges: uma poética da leitura, faz uma arqueologia das concepções borgeanas de autoria. Para Borges, mais do que o autor, é o leitor que atribui um sentido à obra. E ainda mais longe: na verdade, o leitor passa a responder por uma função de autoria, de criação estética. Há inúmeros textos de Borges onde estas concepções podem ser encontradas. Serão privilegiados aqui os textos apontados no quadro abaixo, por serem mais representativos: TÍTULO DO TEXTO Epígrafe de Fervor de Buenos Aires La supersticiosa ética del lector Prólogo à 1 ª edição de História Universal de la Infamia Pierre Menard, autor del Quijote Otras inquisiciones Prólogo de Fervor Buenos Aires O livro La poesia Embora para OBR A Fervor de Buenos Aires Obras Completas (Ed. Emecé), 1989 Discusión Obras Completas (Ed. Emecé), 1989 Historia Universal de la Infamia Obras Completas (Ed. Emecé), 1989 Ficciones Obras Completas (Ed. Emecé), Otras inquisiciones Obras Completas (Ed. Emecé), de Fervor de Buenos Aires Obras Completas (Ed. Emecé), Borges Oral (Ed. portuguesa. Original: Borges Oral) Siete Noches Obras Completas (Ed. Emecé), Borges a cronologia seja DATA 1925 1930 1935 1941 1989 1952 1989 1969 1989 Título 1978 1980 1989 recusada em sua linearidade, é oportuno considerar como as concepções de autoria e da função do leitor, ou, como diz Monegal, da criação desta “poética da leitura” vão-se constituindo com o decorrer do tempo. 141 O primeiro texto a ser considerado aqui será a epígrafe de Fervor de Buenos Aires, de 1925, onde Borges se dirige ao leitor com estas palavras: A QUIEN LEYERE Si las páginas de este libro consienten algún Verso feliz, perdóneme el lector la descortesia de haberlo usurpado yo, previamente. Nuestras nadas poco difieren: es trivial y Fortuita la circunstancia de que seas tú el Lector de estos ejercicios, y yo su redactor. (1989: 16) Aqui já se pode perceber esboçada a importância e a função que Borges atribuiria ao leitor durante todo o decorrer da produção de sua obra. Essa casualidade apontada pelo escritor argentino na circunstância de ser ele o autor e não o leitor, e a idéia de que o autor, de alguma forma, é um leitor mais esperto que rouba do leitor comum uma idéia parecem, à primeira vista, apenas um jogo de palavras. A trajetória borgeana vai mostrar que não. Em 1930, num ensaio entitulado “La supersticiosa ética del lector” e que foi publicado em 1932 no livro Discusión, Jorge Luís Borges, ao discutir a preocupação excessiva que os autores têm com a perfeição de suas próprias obras, sugere novamente uma função mais participativa do leitor: 142 La preferida equivocación da literatura de hoy es el énfasis. Palabras definitivas, palabras que postulan sabidurias adivinas o angélicas o resoluciones de una más que humana firmeza – único, nunca, siempre, todo, perfección, acabado son del comercio habitual de todo escritor. No piensam que decir de más una cosa es tan de inhabiles como no decirla del todo, y que la descuidada generalización e intensificación es una pobreza y que así la siente el lector. (...) Note-se que, em vez de valorizar a estratégia do autor que busca a perfeição, Borges mostra como esta tentativa inútil é vista como uma pobreza pelo leitor. O fundamental aqui é que esta visão do leitor é tida em conta como um elemento ridicularizador dessa busca impossível, feita pelo autor. A generalização descuidada e a intensificação são uma pobreza e o leitor percebe essa falha. Um aspecto digno de se ressaltar neste trecho borgeano é uma relação possível às categorias de silêncio como excesso e como ausência apontadas nesta tese. Borges, aqui, critica a tagarelice como tão inábil quanto o que deveria ser dito e não se diz. Dois âmbitos de silêncio, portanto. O texto seguinte é o prólogo da primeira edição de História Universal da Infâmia, publicado em 1935 e que contribuiu para uma maior difusão e conhecimento de Borges. Nele, Jorge Luís Borges também valoriza o leitor: 143 En cuanto a los ejemplos de magia que cierran el volumen, no tengo outro derecho sobre ellos que los de traductor y lector. A veces creo que los buenos lectores son cisnes aun más tenebrosos y singulares que los buenos autores. (...)Leer, por lo pronto, es una actividad posterior a la de escribir: más resignada, más civil, más intelectual. No início deste trecho, é perceptível a inserção que Borges faz de si mesmo como autor no espaço de leitor. Obviamente este é um embuste borgeano que ficará mais evidente pelas relações intertextuais (intratextuais, neste caso) entre suas obras e suas posições críticas e estéticas. Pode parecer uma modéstia e uma desvalorização do autor porque ele se coloca meramente na posição de tradutor e leitor como funções menores, menos nobres. Instaura-se diferentes. Num aqui, no nível entanto, superficial, um relação de aparentemente dois há níveis uma desvalorização do autor via identificação com as funções secundárias de tradutor e leitor. Num nível implícito, ocorre o contrário: sua posição de autor faz sentido esteticamente porque já que é o leitor que determina a recriação constante da obra, sua história de sentidos (como se verá no texto “ O livro”), identificar-se com esse leitor corresponde a desempenhar uma função esteticamente ativa e relevante. Para Borges, aliás, não poderia ser diferente. Tentar uma autoria que não corresponda à de ser mais um (bom) leitor nesse 144 ciclo de elos que forma a grande biblioteca que é para ele o universo, é cair no exagero exposto na citação anterior. Mais tarde, no volume entitulado Ficciones, publicado em 1941, na visão de vários críticos (Monegal, inclusive), Borges estabeleceuse como um autor relacionado ao fantástico. Um dos contos fundamentais para se analisar a concepção de autoria e a função de leitor em Borges, presente nesse livro, é Pierre Menard, autor del Quijote. Todo o conto é uma proposta neste sentido, mas seu final deixa isso especialmente mais explícito: Menard (acaso sin quererlo) ha enriquecido mediante una técnica nueva el arte detenido y rudimentario de la lectura: la técnica del anacronismo deliberado y de las atribuiciones erróneas. Esa técnica de aplicación infinita nos insta a recorrer la Odisea como si fuera posterior a la Eneida y el libro Le jardin du Centaure de Madame Henri Bachelier como si fuera de Madame Henri Bachelier. Esa técnica puebla de aventura los libros más calmosos. Atribuir a Luis Ferdinand Céline o a James Joyce La Imitación de Cristo ¿no es una suficiente renovación de esos ténues avisos espirituales ?” (1989: 450) Monegal vai analisar o conto borgeano, no sentido de que é um texto instaurador de uma poética centrada na leitura: (...) Partindo-se desta noção do leitor como autor, toda uma nova poética pode ser edificada. Pelo caminho da leitura, e na atividade individual do incessante diálogo de textos que a leitura 145 pressupõe – essa intertextualidade, de que agora tanto se fala - , Borges encontra uma saída para suas múltiplas negações, uma resposta para seu isolamento solipsista, um âmbito para a comunhão. Se o verdadeiro produtor de um texto não é o autor, mas sim o leitor, todo leitor é todos os autores. Todos somos um. (1980: 72) Em outro texto, La flor de Coleridge, Borges também expressa essa concepção idealista da relação autor-leitor, fundamental ao que Monegal considera uma poética da leitura. Segundo Borges, assumindo a idéia de Valéry de que existe um único autor, que é o Espírito, a desenvolve in extremis elencando temas que foram utilizados por autores diferentes, em diferentes épocas, como se perfizessem um continuum e representassem manifestações dessa única obra, ditada pelo Espírito, seu único autor. Novamente está presente essa dissolução da persona do autor tal qual ela é concebida a partir da Revolução Industrial e da circulação comercial dos livros impressos. Em princípio, há aí um reforço do que foi discutido sobre Pierre Menard: se há um único autor, ou se todos os autores são ninguém, somente o leitor poderá dignificar e sacralizar a obra, materializá-la enquanto texto. Ocorre, porém, que, embora o papel atribuído ao leitor seja efetivamente importante no contexto da produção estética borgeana, essa relação autor-leitor e mesmo essa poética tem que ser vista 146 dentro do quadro dos jogos e armadilhas de Borges. Pode-se dizer que tal valorização se dá exatamente porque Borges se insere enquanto autor-leitor de um livro (ou do conjunto de todos os livros que se repetem) que metaforiza o mundo. Se o leitor é o único que realmente importa, para que se preocupar tão obsessivamente em enganá-lo, a expô-lo a tal multiplicidade de armadilhas colocadas de maneira tão sutil e casual nos textos ? Uma boa razão poderia ser encontrada na justificativa de que um bom leitor (um cisne raro, talvez mais raro do que bons autores, nas próprias palavras de Borges) é aquele que vivência sua impotência como autor que também é. Faz-se útil abordar um pouco esse universo de armadilhas e falseamentos borgeanos. O primeiro que merece menção (dos que é possível identificar) é relativo a uma obra que tanto para a crítica quanto para o próprio Borges (afinal, ele também é um crítico) foi a que o projetou como escritor: Historia Universal de la infamia. Em seu Ensaio Autobiográfico, publicado originalmente em inglês, Borges comenta o processo de criação da obra: Em História Universal da Infâmia eu não queria repetir o que Marcel Schwob fizera em suas Vidas Imaginárias, inventando biografias de homens reais sobre os quais há escassa ou nenhuma informação. Eu, ao contrário, li sobre a vida de pessoas conhecidas e modifiquei e deformei tudo deliberadamente, a meu bel-prazer. Por exemplo, depois de ler The Gangs of New York , de Herbert Asbury, escrevi minha versão livre de Monk 147 Eastman, o pistoleiro judeu, em flagrante contradição com a autoridade por mim escolhida. Fiz o mesmo com Billy the Kid, com John Murrel (que rebatizei de Lazarus Morell), com o Profeta Velado do Kurassen, com o demandante Tichborne e com vários outros. (...) (2000: 101-102) Seria frutuoso perguntar-se que condições teria a maioria dos leitores borgeanos de identificar cada uma dessas interpolações no texto. Seria pertinente, de igual maneira, relacionar a renomeação de Murrel para Morell como uma alusão ao livro A invenção de Morel, escrito por Adolfo Bioy Casares, seu amigo e co-autor de vários livros, sendo que precisamente este último foi prefaciado por Borges ? Sabendo-se que a Invenção de Morel representa toda uma reconfiguração do que se entende por trama, bem como uma discussão metafórica do processo de representação, instaurando-o na perplexidade do fantástico, (não aquele da magia irracionalista, mas, como aponta Monegal, a magia de relações causais bem definidas, ainda que diferentes daquelas da ortodoxia científica pós-cartesiana), haveria aí uma intertextualidade a ser considerada ou teríamos que imaginar o autor Borges, leitor de seus leitores, sorrindo maliciosamente atrás de uma névoa de intertextos que estonteia e vence definitivamente o leitor ? Há mais. No mesmo livro, o personagem Hákim de Merv (conto no qual aparece pela primeira vez a frase que ficou mais conhecida em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, atribuída um dos heresiarcas de Tlön: 148 “los espejos y la cópula son abominables, porque multiplican el número de los hombres” 6 4 – 1989:431), segundo Monegal, é quase totalmente inventado. Cabe lembrar outro “pormenor”: Borges atribui os textos de Historia Universal de la Infamia a “releituras de Stevenson e Chesterton e também dos primeiros filmes de von Sternberg e talvez de certa biografia de Evaristo Carriego.” Monegal aponta que essa biografia foi escrita por Borges e publicada em 1930, o que o escritor argentino, hábil prestidigitador de silêncios, não mencionou. Há, portanto, que se tomar muitos cuidados ao conceber essa poética da leitura em Borges como supervalorização do leitor. Constitui-se como um labirinto de citações (veja-se o final do conto El Inmortal, já citado), que, no final das contas, aniquila tanto autor quanto leitor. Mas que é habilmente urdido por um autor com falsa modéstia e falsa timidez, conhecedor, ele próprio que os limites de sua função-autor são também os limites do leitor-autor. Existem na obra borgeana aspectos, ora mais presentes, ora pairando como uma desconfiança densa, por parte de um leitor-autor, profundamente performativos. Ao criar uma História Universal da Infâmia, Borges faz as suas infâmias verbais, talvez para que o leitor sinta como efeito as infâmias constitutivas da própria linguagem e dessa relação heterogênea e tão prenhe de alteridade que é aquela 64 Em Historia Universal de la Infamia, a frase, dita pelo profeta velado Hákim, é a seguinte: “La tierra que habitamos es un error, una incompetente parodia. Los espejos y la paternidad son abominables, porque la multiplican y afirman.” Também aparece modificada em Los espejos (El hacedor). 149 entre autoria e leitura. Monegal aponta atentamente que, no prólogo dessa mesma obra , que a “imagem de si próprio que [Borges] pretende impor ao seu leitor é a de outro leitor , meramente anterior e sem nenhum privilégio de invenção.” (1980: 91). Se o leitor é supervalorizado e Borges se coloca como leitor, então há denegação; se a supervalorização é um engodo, a que se é levado por vários momentos de sua produção estética, então o leitor que está sendo valorizado está, na verdade, sendo anulado. Como leitor-autor, este leitor é um autor. E se o autor é sempre ninguém, ele, visto da maneira como Borges diz, também é ninguém. Há como se fazer uma interpretação dessa ambivalência borgeana sem se cair numa abordagem reducionista. Tal enfoque exige que se tome o texto borgeano ao mesmo tempo como jogo e como uma “pedagogia estética” que mostra perlocutivamente ao leitor seus próprios limites (tais quais os do autor) sem que, para isso, ele (leitor) precise abdicar se saborear o fascínio e a perplexidade de jogo que a linguagem e a literatura possuem (Borges, a partir de Croce, entende que cada palavra é um ato estético). Pode-se vislumbrar algo nesse sentido no texto Nota sobre (hacia) Bernard Shaw, publicado em Otras inquisiciones (1989:747): La máquina de Lulio, el temor de Mill y la caótica biblioteca de Lasswitz pueden ser materia de burlas, pero exageran una propensión que es común: hacer de la metafísica y de las artes, una suerte de juego combinatorio. Quienes practican 150 ese juego olvidan que un libro es más que una estructura verbal, o que una serie de estrucuras verbales; es el diálogo que entabla com su lector y la entonación que impone a su voz y las cambiantes y durables imágenes que deja en su memoria. Ese diálogo es infinito; las palabras amica silentiia lunae significan ahora la luna íntima, silenciosa y luciente, y en la Eneida significaron el interlunio, la oscuridad que permitió a los griegos entrar en la ciudad de Troya... La literatura no es agotable, por la suficiente y simple razón de que un solo libro no lo es. El libro no es un ente incomunicado: es una relación, es un eje de innumerables relaciones. Una literatura difere de outra, ulterior o anterior, menos por el texto que por la manera de ser leída: sí me fuera otorgado leer cualquier página actual – ésta, por ejemplo – como la leerán el año dos mil, yo sabría cómo será la literatura del año dos mil. (1951) Estabelecida a literatura como relação, podem-se abandonar concepções simplistas que supervalorizem somente um dos pólos dessa relação. Reconhecer que o leitor é um fator de chegada não lhe atribui exclusividade, mas finalidade: se se produz literatura, obviamente, é para ser lida 6 5 . Nesse contexto de sacralização do livro (cf. O Livro, em Borges oral e Del culto de los libros, em Otras inquisiciones), a literatura se enriquece e ganha a dimensão cosmológica que exerce fascínio sobre o Borges leitor. É precisamente esse fascínio que ele entende ser indispensável proporcionar como efeito para o leitor. Sem ter sido leitor, ele (nem ninguém) poderia ter sido autor. Borges sabe que Funes, o memorioso, é um personagem aberrante, metáfora da aflição 65 Essas relações mais complexas e dinâmicas podem ser apreciadas igualmente em La biblioteca de Babel, de Borges e no romance experimental de Osman Lins, Avalovara. 151 da insônia e – isso ele não mencionou – da pretensão vaidosa de tudo lembrar e tudo conhecer. Sem o esquecimento, também não há memória, e sem memória, não há identidade 6 6 . Por outras vias, novamente o interdiscurso. Nesse diálogo do fascínio da dinamicidade de um mundo que muda sempre para cumprir sempre seu ciclo, Borges enxerga esse leitor que dá sentido ao ato de escrever. A instigação desse leitor dá-se pelo fantástico, às vezes também chamado de realismo mágico. Borges adere lentamente a essa práxis estética e o faz como ruptura com tradições cristalizadas, sejam a expectativa paterna e familiar de que ele fosse escritor (nos moldes de continuar uma obra que o avô e/ou o pai, mais direta e explicitamente, não levou satisfatoriamente a cabo), seja a resolução de uma equação entre ser universal e tratar dos temas da própria terra. Nesse universo estético, é possível instaurar sempre, de maneira ampla, a perplexidade e o fascínio, sem os quais a literatura, sequer a palavra, valeria para coisa alguma. Deve-se entender esse “mágico”, no entanto, de outra perspectiva, tal como Bioy Casares realizou em Invenção de Morel, e que Borges destaca no prefácio do livro. Monegal faz ponderações sobre esse conceito: 66 Cf. a afirmação de Borges: “A identidade pessoal é a memória.” (O pensamento vivo de Jorge Luís Borges) 152 Uma narrativa ‘mágica’ fundamenta-se aqui, mas uma narrativa em que o termo mágico pouco ou nada tem a ver com as vaguezas que, desde Franz Roh e Massimo Bontempelli, até Uslar Pietri e Alejo Carpentier, vêm-se atribuindo na crítica contemporânea. Rigor e lucidez intelectual são as características centrais desta narrativa ‘mágica’. (MONEGAL, 1980: 168) Para se compreender o estatuto que apresenta o fantástico na produção borgeana, é necessário deter-se um pouco na análise que ele faz dos tipos de narração: a) narração mimética = realista, psicológica, que imita a causalidade natural e que é, portanto, caótica, como o mundo real b) narração mágica = (ou fantástica), que tem, ao contrário, como fundamento a causalidade mágica e que é extremamente rigorosa c) narração maravilhosa = (ou milagrosa) em que a causalidade seria sobrenatural, isto é, totalmente arbitrária. Esse rigor da causalidade mágica, instaurador do fantástico, é que seria o mais conveniente para criar essas relações dinâmicas e manter a necessária dinamicidade do ato estético. Otras Inquisiciones, livro publicado em 1952, traz um conjunto de textos que aprofundam o posicionamento de Borges enquanto crítico praticante, um escritor que também pensa a produção estética, seja a própria, seja a de outros. Ao discutir esse papel de crítico 153 praticante de Borges comparativamente ao do ensaísta e poeta mexicano Octávio Paz, Monegal analisa o tipo de estética desenvolvida pelo escritor argentino, uma estética que privilegia o espaço do leitor, colocando este último numa função de produção de sentidos, como já foi mencionado: Num dos ensaios de Otras inquisiciones (‘La flor de Coleridge’), Borges afirma, apoiado por citações de Paul Valéry, Emerson e Shelley, que a literatura universal parece ter sido escrita por um só autor , o Espírito. Esta teoria, de um panteísmo literário que contém restos românticos, permite a Borges dissolver a noção de um autor original dentro da noção, mais impessoal, da literatura. Ninguém (outra vez) é alguém. Acontece que as últimas conseqüências desta teoria vão mais além da mera negação (afinal de contas, idiossincrática) da personalidade individual do autor. Uma poética da leitura, em vez de uma poética da escritura, está implícita nesta negação. Borges inverte aqui os termos habituais do debate literário: em vez de apoiar-se na produção original da obra, remete à produção posterior e sempre renovada do leitor. As conseqüências dessa inversão são alucinantes (MONEGAL, 1980: 69-70) Dessa perspectiva borgeana, autor e leitor são co-participantes de uma rede infinita de textos que se aludem, se referenciam. A literatura perde um culto personalista a um autor todo-poderoso, onisciente e controlador de todos os sentidos. “Cada palavra é uma obra poética.” 6 7 Um aspecto peculiar, profundamente dialético nesse jogo borgeano, é de que para deslocar autoria dessa onipotência, 67 A poesia. In: Sete noites. São Paulo/SP: Ed. Max Limonad, 1987, p. 122. 154 atribui a ela, mesmo que retoricamente, um supra-autor , que se personifica no Espírito. 6 8 Outro ensaio do livro Otras inquisiciones apresenta uma questão da mesma natureza da que foi discutida em Pierre Menard, autor del Quijote. Em La esfera de Pascal, o argumento é uma metáfora sobre Deus (ou um princípio absoluto equivalente) que associa a divindade à esfera e que, no correr de muitos séculos e nas páginas de vários autores assume a seguinte proposição: (a divindade ou o princípio absoluto) “es una esfera infinita, cuyo centro está en todas partes y la circunferencia en ninguna.” (1989:638). Borges termina o ensaio dizendo que “Quizá la historia universal es la historia de la diversa entonación de algunas metáforas.” (ibidem). Novamente há um mesmo texto (praticamente o mesmo) dito por autores diferentes, de épocas e concepções distintas. Assim como em Pierre Menard, as mesmas palavras não serão o mesmo texto porque os leitores serão outros. Na introdução da tradução brasileira de Siete Noches editado pela Max Limonad, Pepe Escobar e Samuel León fazem uma observação pertinente que se relaciona com o que se está discutindo neste momento: Partimos da concepção de literatura como produção. É a leitura que organiza o futuro relato. Borges diz alguma vez que se soubéssemos como 68 Essa concepção insere-se na concepção metafísica expressa pela obra de Borges, também esta de caráter profundamente inter-relacional: somos todos sonhados por outros, sonhos dentro de sonhos, jogos de espelhos, labirintos sem portas nem trancas, enfim, uma eterna “inminencia de una revelación, que no se produce, [y que] es, quizá, el hecho estético (La muralla de los libros. In: Otras inquisiciones, op. cit.). 155 se lê no ano 2000, saberíamos como é a literatura do ano 2000. (1987:10) Borges, magistralmente, autoaplica essa estratégia de autoria ao seu próprio texto. A frase inicial de La esfera de Pascal é “Quizá la historia universal es la historia de unas cuantas metáforas.” (1989:636). As palavras que mudam de um enunciado para outro representam a singularidade, o traço de contribuição que como leitor (pensando-se nesse leitor-produtor) irá acrescentar à historicidade do texto. Na conferência sobre o livro, pronunciada na Universidade de Belgrano, em Buenos Aires, e publicada no volume “Borges Oral”, Jorge Luís Borges deixa mais clara essa função do leitor: Heráclito disse (demasiadas vezes o tenho repetido) que ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam, mas o que mais terrível é que nós não somos menos fluidos do que o rio. De cada vez que lemos um livro, o livro não é o mesmo, a conotação das palavras é outra. (...) (...) Hamlet não é exactamente o Hamlet que Shakespeare concebeu no princípio do século XVII; Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe, e de Bradley. Hamlet foi ressuscitado. (...) Os leitores foram enriquecendo o livro. 156 Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. (1979:29) Por isso, a função do autor para Borges é revelar algo preexistente, mas que só terá existência efetiva no encontro com o leitor. Ele desenvolve esses conceitos no texto La Poesia (no volume Siete Noches). Deste ponto de vista, o comentário de Monegal merece ser levado em consideração: (...) é supérfluo indicar se uma obra é ‘original’ ou ‘copiada’ de outra fonte. Toda história, todo texto, é definitivamente original porque o ato de produção (=reprodução) não está na escritura, mas na leitura. (MONEGAL, 1980: 71) Ou seja, para a perspectiva borgeana o sentido somente se instaura a partir da presença do leitor. Aí acontece o feito estético. Não que o texto não esteja lá. Borges não nega jamais a escritura. Pode insinuá-la como simulacro, instigar o leitor a considerá-la ilusória. Pode ser um labirinto abstrato, um jogo de espelhos, mas está lá. A partir de uma concepção platônica, cabe somente ao poeta descobri-las. Platonismo que se transforma em outro engodo borgeano. Talvez não se possa dizer, plausivelmente, que ele não acredite no que está dizendo. Há, entretanto, um profundo silenciamento aqui. Nada indica que Borges acredite metafisicamente 157 na concepção platônica exposta. Se ele assim a professa, é porque se vê um autor-leitor, em contato atento com um mundo (universo) que não deixa de ser uma imensa rede de textos. A descoberta que o poeta faz é a leitura desses textos, sempre já-ditos em algum grau, mas igualmente depositários do enriquecimento que cada leitor lhe proporciona (seja como autor-leitor, ou como leitor-autor). Por fim, no texto La flor de Coleridge, o último parágrafo parece contrastar com essa visão de eterna apropriação entre os textos. Borges diz que Quienes minuciosamente copian a un escritor, lo hacen impersonalmente, lo hacen porque confunden a ese escritor com la literatura, lo hacen porque sospechan que apartarse de él en un punto es apartarse de la razón y de la ortodoxía. Durante muchos años, yo creí que la casi infinita literatura estaba en un hombre. Ese hombre fue Carlyle, fue Johannes Becher, fue Whitman, fue Rafael Cansinos-Asséns, fue De Quincey. (1989:641) Existe uma contradição aparente: se nenhum texto, mesmo idêntico, jamais terá o mesmo sentido e será exatamente o mesmo texto, por que razão a crítica borgeana a essa atitude de cópia, mencionada aqui por ele ? A primeira chave para essa pergunta pode estar sutilmente na frase “porque confunden a ese escritor com la literatura”. Já não se trata de criar versões diferentes de um mesmo 158 texto, escrito por um mesmo autor. Cada autor, lido em circunstâncias diferenciadas, será um outro autor. As palavras que ele usa já não são integralmente dele, mas dessa rede infinita de textos e referências que é a literatura. A segunda chave pode ser entendida na palavra ortodoxia. Monegal afirma que Borges destrói a literatura enquanto tradição. Se se entender essa tradição como uma ortodoxia, uma rígida concepção de que os sentidos já estão prontos e cristalizados no texto, sim. A concepção borgeana da produção dos sentidos (principalmente a estética) é fluida como o rio de Heráclito, num jogo de espelhos atravessado por um rio humano que personifica a nossa identidade. É nessa mutabilidade do encontro de cada leitorautor com o que o autor -leitor lhe propõe que se dá essa iminência de revelação, citada na nota número 34.]. Borges, aqui, não se contradiz. Ele pode continuar produzindo textos como Pierre Menard ou La esfera de Pascal, porque tais textos não são cópias de um autor fonte e origem do sentido (para usar a expressão de Pêcheux, relativa ao esquecimento número 1), nem uma glosa de textos canônicos, fiéis à ortodoxia de uma literatura estática. Borges, ao propor um estética da leitura, na verdade propõe também uma estética da alteridade. Como autor -leitor, suas palavras jamais serão totalmente suas. Elas já terão sido ditas de alguma forma, antes. Mudará a entonação. Mas isso não importa, porque é no leitor-autor que os sentidos serão produzidos efetivamente e que a 159 fluidez dessa outra literatura dinâmica, processual, movimento contínuo, se processará. 160 CAPÍTULO 4 NO SILÊNCIO DO ESPELHO 4.1 – Corpus O corpus desta tese é constituído por textos literários do escritor argentino Jorge Luís Borges. Foram selecionados, dentre os textos que tratam da temática do espelho, aqueles que se mostraram mais representativos para a discussão aqui pretendida. Como já se pôde perceber, outros textos do mesmo autor são citados quando há um ou outro aspecto relevante a ser considerado na discussão em andamento. Dado que a temática do espelho está presente em um número extremamente alto de textos de Borges, optou-se por uma seleção dos mesmos que contemplasse diferentes momentos da produção borgeana. Há casos em que a abordagem do tema é bastante similar em alguns textos (é o caso, por exemplo, de Al espejo, do volume Oro de los tigres). Preferencialmente, foi feita a opção de utilizar os textos originais, em espanhol. Já que os efeitos de sentido em Borges se dão, muitas vezes por nuances extremamente sutis, considerou-se que a utilização geral de traduções poderia acrescentar um elemento complicador à análise. Foram utilizados textos da Obras Completas, da Editora Emecé. Constituem exceção apenas três obras: Borges 161 Oral, Jorge Luis Borges – Um ensaio autobiográfico e O Livro dos seres imaginários. Nenhum deles consta da edição argentina. O primeiro compreende conferências realizadas por Borges com posterior publicação das anotações. Está sendo utilizada uma edição portuguesa (no Brasil há uma publicação equivalente com o título Cinco visões pessoais.) O terceiro título teve sua primeira edição publicada no México, com colaboração de Margarita Guerrero. Utilizase a tradução brasileira publicada pela Editora Globo. Finalmente, Jorge Luis Borges – Um ensaio autobiográfico teve sua primeira edição no jornal norte-americano The New Yorker, em forma de suplemento, tendo sido escrito originalmente em inglês. É utilizada a reedição brasileira recente, feita pela Editora Globo (havia uma edição antiga, publicada juntamente com Elogio da Sombra, sob o titulo Perfis – já esgotada) Na tabela abaixo estão listados os textos do corpus, com o volume em que se inserem na publicação definitiva e com o ano original de publicação: N º 1 2 3 4 5 Título Sala vacía El espejo Animais dos Espelhos Los espejos velados El espejo de los enigmas Livro Fervor de Buenos Aires Historia de la noche Livro dos seres imaginários El hacedor Otras inquisiciones Ano 1923 1977 1974 1960 1952 162 As opções epistêmico-metodológicas já foram detalhadas nos capítulos anteriores, mas cabe ressaltar um aspecto. A proposta deste trabalho é a de, através dos textos literários selecionados, empreender uma análise do ponto de vista da AD, considerando as condições de produção dos discursos que circunscrevem a materialização em textos escritos, de gênero literário, buscando os indícios dos silêncios. 4.2 – Textos analisados 4.2.1 – Sala vacía Este poema de Borges faz parte do livro “Fervor de Buenos Aires”, uma de suas primeiras obras publicadas. A temática compreende basicamente o tempo perdido, a memória de um passado irresgatável, testemunhado pelos móveis e objetos de uma sala vazia. Uma estrofe interessa particularmente à nossa análise: Los daguerreotipos mienten su falsa cercanía de tiempo detenido en un espejo y ante nuestro examen se pierden como fechas inútiles de borrosos aniversarios Aqui o enunciador alude à questão da representação fotográfica. Um primeiro elemento a chamar a atenção é o verbo 163 “mentir”. Filosoficamente os problemas ligados à representação sempre estiveram diretamente relacionados à noção de verdade. Pode-se afirmar, de maneira breve, que a linha epistemológica que tem mantido a hegemonia no pensamento ocidental é exatamente aquela que postula a existência de uma verdade atrás da representação da linguagem e do próprio mundo. Platão foi um dos maiores expoentes dessa concepção idealista, mas não faltaram representantes que dessem continuidade ou que, de uma forma ou de outra, reafirmassem, com pequenas alterações, tal escolha filosófica 6 9 . Nesse sentido, “mentir” poderia ser entendido, a partir desse ponto de vista, como “dizer algo oposto à verdade”. Tomando-se por base o quadrado lógico de Aristóteles, surgem questões bastante complexas que escapariam propriamente ao modelo proposto. Simplificando um pouco a discussão, a natureza dessa complexidade e extrapolação reside no ato de enunciação. O modelo aristotélico permite, em princípio, verificar a falsidade ou veracidade de uma proposição, mas não a intenção e/ou efeito de quem a enunciou. Assim, a uma proposição tal como “a fotografia é mentirosa”, podem-se elencar contextos que nos levariam (ou não) a uma conclusão válida, sem contrariar a coerência interna do sistema. O problema (e que representa a grande crítica ao modelo) é que mesmo 69 Não é intenção deste trabalho enumerar esses representantes. De um modo geral, há uma tendência a se identificarem as perspectivas idealistas com a tradição platoniana. 164 diante de um silogismo impecável, não se pode deixar de admitir que só se chega a uma dedução pela soma (ou combinação) de um apanhado de induções. Ou seja: é o conhecimento de mundo do sujeito que torna possível uma generalização ampla o bastante para depois ser cotejada com a realidade – mesmo que como exercício lógico - (eis aí outra atividade interpretativa do sujeito) e verificada a falsidade ou não da proposição. Mas mesmo que isso fosse devidamente equacionado, não resolveria totalmente o problema: mentir, semanticamente, não pressupõe uma atitude enunciativa, uma intenção de proferir algo que, transformado em proposição, seja verdadeiro ou falso ? A semiótica greimasiana trata a questão por outro enfoque. Dessa perspectiva, não se está diante da verdade/falsidade, mas da veridicção. Sucintamente, no jogo dos papéis actanciais, o sujeito, a partir de uma competência (querer e/ou poder e/ou saber-fazer) no plano narrativo desempenha uma simulação, algo que imita a realidade, que “parece, mas efetivamente não é.” Estabelece-se, portanto, uma relação entre o ser e o parecer, que fica melhor compreendida no quadrado semiótico 7 0 : 70 Greimas (1977:184) 165 VERDADEIRO PARECER SER R SEGREDO Não-parecer MENTIRA NÃO-SER FALSO Gráfico 4 Nesse referencial a mentira seria, portanto, a conjunção entre o parecer e o não-ser. Para a análise das questões pretendidas nesta tese este aspecto é significativo. Ou seja, do ponto de vista do quadrado semiótico, as fotografias mentem porque o que nelas parece ser, na verdade não é. Tal como os espelhos, a fotografia encerra uma metáfora da representação. Uma foto nada mais é do que a captação, por parte de uma película sensível quimicamente de uma emissão de luz que, projetada sobre um corpo, reflete e marca tal reflexo na superfície do negativo. Este negativo, por sua vez, devidamente tratado, imprime sobre a superfície de um papel especial (celulóide, basicamente) o reverso da imagem contida nele, negativo. 166 Enquanto processo, não passa de um jogo de espelhos, pois, na verdade, o que fica no papel não é o objeto, mas a luz que se deformou ao incidir sobre ele, a representação reversa dessa luz, convertida novamente no oposto desse reverso para gerar o positivo, empiricamente identificado como a foto comum. O poema menciona que as fotografias mentem a respeito exatamente de sua proximidade (falsa, explicitamente assumida pelo enunciador) não com a realidade em si, mas com algo muito mais sutil. O que é mentirosa é a falsa proximidade “de tempo que se detém em um espelho”. Note-se, inicialmente, o jogo de espelhos entre o verbo mentir e o adjetivo “falsa”. Ao dizer “mente a falsa proximidade”, por um princípio lógico elementar, subentende-se uma dupla negação, o que insinua uma afirmação. Mentir a falsa proximidade pode ser lido como “afirmar a proximidade”. A questão relevante aqui, e que transcende a lógica clássica, é a atitude enunciativa. Num ato de enunciação, o enunciador disse a palavra “mentir” e, ao fazê-lo, comprometeu-se com essa opção. Ao se referir ao jogo de espelhos da representação, o enunciador cria exatamente esse jogo. Mais ainda: o poema continua, referindo-se ao espelho. Assume que o processo de representação da fotografia não só é como um jogo de espelhos, mas que procede como o espelho . Mente para denunciar a mentira. Reduplica o avesso do reverso do reflexo. No entanto a metáfora aprofunda-se em complexidade: não é a realidade 167 em si, refletida e reduplicada na fotografia ou no espelho; é o tempo. Tempo, pelo menos numa tradição pós cartesiana, é movimento: do presente que se torna passado, do futuro que se torna presente. Outras direções também são possíveis (passado para o presente, presente para o futuro), mas explicitam demasiadamente a atividade interpretativa. Pensar o passado é, de algum modo, conferir ao presente que já se perdeu uma organização da memória, do registro e do que merece emergir do silêncio da ausência para a presença dos ritos vivificadores do grupo. Neste ponto, podem-se começar a perceber alguns indícios do movimento dos sentidos empreendido no interior do silêncio . No Capítulo 1 desta tese propõe-se a metáfora do espelho como sinalizador do movimento dos sentidos. Estabelece-se um paralelo entre a velocidade da luz que reflete sobre um corpo e “viaja” até a superfície do espelho para ser outro reflexo que atingirá o olho. O quadrado semiótico mencionado anteriormente pode ser uma das ilustrações visuais desse espelhamento. Pensando-se na questão da representação, tratada pelo trecho analisado do representação) poema, vem pode-se a ser (a entender própria que o que representação) parece (a enquanto performativo. Ou seja, a mentira da representação expõe-se como mentira ao dizer, no complexo mecanismo da negação, o contrário do que diz. E o que não é (tudo aquilo que a representação não é) deixa 168 de parecer (não parece ser) representação no jogo da simulação, na veridicção. Nesse caso, admitido esse complexo raciocínio dialético, haveria um espelhamento da mentira, que se transformaria em segredo (ser e não-parecer). O segredo, enquanto ausência, é silêncio. E a própria justaposição de um processo a outro é silêncio enquanto excesso. Tomando-se uma perspectiva da AD, estabelece-se relação com o conceito de interdiscurso, já mencionado na introdução deste trabalho. Quando Courtine & Marandin dizem que uma formação discursiva alude a seu exterior e que tendem a se redefinir, tais autores apontam subjacentes, não inerentes só às a lembrança FDs, mas dos próprios também o elementos, apagamento, esquecimento e denegação como fatores (re)organizadores no interior do interdiscurso. De alguma forma, portanto, o silêncio é fundamental, não só porque é espaço de apagamento (seja por falta, seja por excesso), necessário à reconfiguração no interior do interdiscurso. Mais do que isso, é uma das vozes inscritas no dialogismo da linguagem, é condição de alteridade entre os dizeres, as formas de dizer (ou nãodizer), entre os efeitos desse intervalo entre dizer e não-dizer. É o moto contínuo entre posições enunciativas, lugares discursivos. É nesse jogo de cabra-cega que o sujeito interpela seu outro como um reflexo desdobrado, como imagem que parece ser a sua. Imagem que 169 muda a cada enunciação, mas cuja incessante mutabilidade oculta-se nos apagamentos e vozerios que permitem a ilusão de unicidade. A cisão do sujeito disfarça-se atrás da máscara da representação ritual do discurso, dos liames que o congregam não na fixidez das formações discursivas, mas no intervalo entre elas . Pode-se aludir à metáfora básica dessa análise, dizendo que não é o movimento da luz que se constitui em silêncio, mas as condições de percepção do olhar. É o olhar, necessariamente despreparado para a estonteante multiplicidade (velocidade ?) da incompletude que “confia” no reflexo como “verdade”, como “realidade em si”. A mentira transforma-se em segredo não porque a fotografia “pretenda mentir”, mas porque trai uma direção do olhar, disfarçada de representação fiel. Mas mesmo essa percepção do sujeito não deixa de ser um simulacro. As alusões do poema borgeano vão além das complexas questões da negação: adentram a denegação, na qual a voz que nega se acotovela com outra que desconfia da própria negação. O enunciador mergulha ainda mais: todo esse jogo de espelhos e de silêncios ocorre dentro da interpretação (“ante nuestro examen”). Outra relação especular ocorre a partir da conjunção “y”. Se já é débil e incerta toda e qualquer representação da fotografia, em sua semelhança com os espelhos, tal aparência de representação perde-se irremediavelmente diante de nossa tentativa de reflexão (no sentido de pensar sobre) acerca do próprio processo. No poema a 170 ambigüidade ocorre com a palavra “examen”. Ela pode ser entendida tanto no sentido de análise feita pelo sujeito, quanto no de uma prova, um teste sobre nossa função dentro da representação da realidade. Diante desse intrincado labirinto de espelhos e de silêncios, o próprio suporte físico se descaracteriza (note-se que a concordância verbal de “se pierden” é estabelecida com “los daguerreotipos”), portanto, numa referência ao próprio objeto da representação. Perder-se, aqui, também assume vários sentidos: o de esvanecer-se, mas também o de deixar de ter uma função. O primeiro, embora menos indiciado, pode ser estabelecido se se pensar na comparação seguinte, com “borrosos aniversários”. A imagem, sinestésica, alude ao ofuscamento da visão, à perda dos contornos. Perder-se, neste contexto, significa também silenciar. Sem esse silêncio igualmente constitutivo, a consciência do sujeito como eixo 7 1 do dizer pulverizar-se-ia no vozerio da heterogeneidade. Claro que os silêncios também são heterogêneos. Mas haveria, inclusive, um silêncio sobre o silêncio apagando até a imagem dessa pluralidade. 71 Prefere-se, aqui, “eixo” a “centro”. Desse ponto de vista, a ilusão necessária do sujeito, discutida por Pêcheux, poderia ser vista não necessariamente como um centramento do mesmo, no sentido de achar-se “centro” e “origem” do dizer, mas como um eixo organizador, no sentido de que os dizeres deveriam passar por seu olhar (do sujeito). Acreditamos que epistemologicamente tal diferença constitua-se como modelo mais adequado para interpretar contextos nos quais o sujeito declara algum grau de consciência do processo de interpelação ideológica. Ou seja: mesmo assumindo-se como não-fonte e não-origem do dizer, ele se apropria de pré-construídos de diferentes FDs obrigando o Outro, no jogo enunciativo, a passar por suas trilhas (dele, sujeito). 171 O próprio dificuldade anseio adicional de perceber bastante o movimento arriscada para resulta o olhar. numa Na representação fotográfica isso pode ser metaforizado pelas fotos com exposição longa, como a de automóveis, à noite, numa auto-estrada. As luzes aparecem como rastros disformes e uma das inquietações de um observador da fotografia pode se traduzir da seguinte forma: como posso saber se essa luz arrastada de um farol ou de uma lanterna traseira pertence a esse carro, retratado numa foto, ou a outro que, em seu movimento, não deixou senão um fragmento desse rastro de luz, mas que enquanto corpo, objeto, ficou para além da representação ? 7 2 A própria questão dos limites de uma fotografia (como a dos espelhos, das telas de cinema e do próprio ângulo possível do olhar) estabelece uma interioridade e uma exterioridade que funcionam como espaços de alteridade. Pode-se dizer que existem silêncios qualitativamente diferentes: uns, interiores ao frame 7 3 fotográfico e outros, externos. A relação entre esses tipos de silêncio pode ser percebida no filme Blade Runner, de Ridley Scott, que faz uma jogo discursivo com esses limites da moldura do olhar. O detetive Rick Deckard, interpretado por Harrison Ford, toma uma foto e, colocando-a num aparelho, capta lugares ocultos, não retratados na imagem original, 72 Cf. nos Anexos, uma foto de exposição longa (domínio público) que exemplifica essa questão dos traços. 73 Termo tomado aqui do jargão fotográfico. 172 em ângulos impossíveis para o observador que tirou a fotografia 7 4 . São espaços silenciados, mas que ao serem expostos, não deixam de silenciar aquele primeiro, representado no papel fotográfico. Mais importante ainda: ao se contraporem, silenciam, enquanto enigma, o próprio processo de representação da fotografia. O que é captar a realidade ? Até onde pode-se extrair de um olhar aquilo que ele não vê ? Somente se for um olhar-outro. Mas até que ponto se pode conviver impunemente com olhares que vêem de onde não se enxerga como sujeitos ? Não se pode, sob a pena da cegueira ou da loucura. Enxergar pressupõe determinar um ponto de vista e reenviar os demais ao coro de silêncios em que a linguagem se sustenta. Mas o trecho analisado do poema de Borges ainda estabelece outro jogo especular e paradoxal com o tempo. O tempo, detido nas fotos, como nos espelhos é igualmente o tempo inútil de datas, dos “borrosos aniversarios”. Datas são cíclicas, são retomadas e se assim o são, pressupõem uma memória que estabeleça a sua circularidade e um alguém que se lembre. Ou o tempo é cíclico e não se detém, inalterado, nas fotos e nos espelhos, ou é inerte e não se submete aos engenhos da memória para que seja cíclico. 74 Já existe, na Internet, um recurso que simula esse efeito, recurso esse chamado de Foto 360°. Ao arrastar-se o mouse, pode-se descrever uma trajetória de 360° na paisagem escolhida. Claro que este recurso difere ainda do artifício ficcional explorado no filme Blade Runner, pois neste último não havia ângulo interditado à redefinição do olhar, podendo este adentrar espaços ocultos atrás de paredes, por exemplo (o recurso da foto 360° pode ser encontrado em sites diversos, como do do Masp e em www.paraty.com.br). 173 Mas se tudo isso pode ser dito a respeito da fotografia, cabe dizer que não se trata da representação fotográfica em si, mas de uma de suas formas. O poema utiliza a palavra “ daguerreotipos”, referência às primeiras técnicas de representação fotográfica, desenvolvida por Daguèrre. Esta técnica consiste em imprimir a imagem sobre uma superfície metálica (posteriormente de outros materiais, como o vidro). O suporte físico da imagem conta muito como representação da representação. A imagem não está entregue à volatilidade do papel, mas à permanência do metal enquanto ícone da presença dessa mesma representação. Por isso mesmo, é, simultaneamente, segredo e mentira: segredo, porque esconde os processos pelos quais a interpretação entranhou-se nessa malha de silêncios a que a veridicção ou o efeito de realidade a submeteu; mentira, porque nem o papel, nem muito menos o metal significam pelo que são enquanto suportes físicos da representação, mas sim pelos efeitos que provocam, pelas imagens que suscitam, enfim, pelas interpretações que desencadeiam e que, silenciadas, simulam ser reflexos da realidade... como se os reflexos fossem imunes à historicidade dos lugares enunciativos que percorreram e que distorceram sua trajetória. O poema de Borges participa plenamente de todos esses embustes: na sala vazia, há vozes e luzes. Em diferentes condições, ambas se contrapõem e se silenciam. As vozes, porque são excesso que preenche a sala antes da luz do dia apagá-las; a luz, porque 174 remete as vozes ao espaço da ausência, colocando-se também como excesso que as sobrepõe. 4.2.2 – El espejo Este poema encontra-se no livro “Historia de la noche”. El espejo Yo, de niño, temía que el espejo Me mostrara otra cara o una ciega Máscara impersonal que ocultaría Algo sin duda atroz. Temí asimismo Que el silencioso tiempo del espejo Se desviara del curso cotidiano De las horas del hombre y hospedara En su vago confín imaginario Seres y formas y colores nuevos. (A nadie se lo dije; el niño es tímido.) Yo temo ahora que el espejo encierre El verdadero rostro de mi alma, Lastimada de sombras y de culpas, El que Dios ve y acaso ven los hombres. O poema acima começa com um pronome de primeira pessoa. Além de remeter à enunciação, ocorre algo digno de atenção, se se pensar que um poema não prescinde de alguma recitação, da sonoridade. Enunciado pelo leitor, o pronome passa a referir-se a um outro enunciador, que recoloca a alteridade, deslocando as posições do Eu e do Outro. Essa posição enunciativa, introduzida pelo pronome de primeira pessoa é, na verdade, a voz da memória, pois a expressão 175 intercalada “de niño” e a forma do verbo “temía”, no passado, induzem ao efeito de que fala-se de um temor que não é o atual (o que vai se confirmar num segundo momento do poema, quando outro pronome de primeira pessoa, desta vez sucedido por um verbo no presente – “yo temo ahora” - , refere-se aos temores atuais do enunciador). Esse temor proporcionada passado pelo tem espelho. O a ver com enunciador a representação relembra-se criança, temendo, inicialmente, que o reflexo no espelho não fosse o seu. Há aqui um diálogo silencioso desse temor com a concepção de que o espelho reflete a imagem de quem olha para ele. No plano da memória, é relatada uma espécie de conflito, expresso pelo temor, que corresponde à ansiedade gerada pela possível quebra de expectativa. Um pormenor estabelece-se nesse momento. Está-se diante de uma polifonia. Duas vozes opostas, enunciando-se, embora uma delas esteja implícita: a de que o reflexo do espelho deva corresponder à face de quem o olha (o que fica evidente se se pensar que só faz sentido o temor de que o espelho não reflita a própria face se se souber que ele possa refleti-la). O temor parece equivaler ao mundo da criança; já a expectativa, corresponde ou à vivência da criança de se acostumar com a própria imagem refletida no espelho, ou à incorporação das concepções adultas de que é isso que realmente acontece na representação especular. 176 Do ponto de vista da construção da subjetividade, pode-se dizer que os dois processos são equivalentes. Tal discussão pode ser melhor detalhada se for utilizada a discussão de Lacan sobre a criança e o estádio do espelho no texto “O estádio do espelho como formador da função do eu” 7 5 : Esse acontecimento pode produzir-se, como sabemos desde Baldwin, a partir da idade de seis meses, e sua repetição muitas vezes deteve nossa meditação ante o espetáculo cativante de um bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por algum suporte humano ou artificial (...), supera, numa azáfama jubilatória, os entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada e resgatar, para fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem. (Lacan,1998:97) Com essa descrição inicial, Lacan discute os primórdios da constituição do sujeito, e basicamente, como essa se dá inevitavelmente através do olhar do Outro. Aspecto mais interessante da criança diante de sua própria imagem no espelho é que, num primeiro momento o bebê não se reconhece refletido. E, mais importante ainda, quando se reconhece, é precisamente porque identifica-se com o olhar do adulto, para quem aquela imagem designa a criança. Obviamente, há a relação com o mecanismo de 75 Lacan (1998) 177 nomeação atribuído ao bebê. Expressões do adulto como “Olha o nenê”, “Cadê fulano (nome do bebê) ? Tá ali...” provavelmente têm influência decisiva nessa trajetória. Para que se entenda convenientemente tal trajetória seria pertinente recordar alguns processos típicos do desenvolvimento infantil inicial. Lajonquiere (1992) aponta dois momentos prévios a essa identificação que a criança faz da própria imagem. O primeiro é o de brincar com uma imagem confusa, um “ser sorridente que tem ante seus olhos”, brincando de olhá-lo e ser olhado pelos olhos que vê na superfície do espelho. A confusão estabelece-se principalmente no que se refere ao olhar/ser olhado, o que corresponde a uma indiferenciação um/outro. Se se lembrar que as relações de causa/conseqüência e de anterioridade/posterioridade ainda estão pouco definidas para a criança nesse momento de sua existência, fica mais fácil compreender como se caracteriza essa confusão: a criança que bate diz ter sido batida; se ela vê alguém cair, chora (talvez pensando tratar-se da própria queda). Já num segundo momento, a criança descobre que o que há no espelho não se trata de um ser real, mas de uma imagem. Não tenta agarrar ou tocar tal imagem. Esse momento é particularmente complexo, se se pensar que começa a ocorrer uma distinção entre “imagem do outro” e “realidade do outro”. É uma instauração simbólica já com um grau de abstração. 178 Em seguida ocorre a identificação dessa imagem do outro (presente no espelho) com a sua própria. Perceba-se que há também um espelhamento na própria percepção do eu enquanto sujeito: ao eu só é possível ver-se como outro. Alie-se a essa circunstância que essa percepção acontece unicamente porque o olhar do adulto, enquanto Outro, é que dirige o olhar da criança para essa configuração sígnica: O bebê ‘vê’ sua imagem porque o olhar da mãe (primeiro outro a encarnar o Outro) dá sustentação ao acontecimento. A criança ‘se vê’ através dos olhos da mãe. É como se a criança dissesse: isso que está aí é o que vêem os olhos de minha mãe. Porém, o importante não é o olhar da mãe ou a mãe na sua dimensão empírica mas o desejo da mãe que faz as vezes de ‘matriz simbólica’ sobre a qual se precipita, se atira, se debruça o infans (Lacan, 1949:87). A criança se prende (agarrase) a essa imagem porque, em última instância, é assim que se faz objeto do desejo materno.(...) (Lajonquiere, 167-168) Esse olhar do adulto traz um desejo anterior à existência da criança como sujeito e que representa os desejos a respeito dela (que seja assim, que aja desta ou daquela maneira, que queira ser isso ou aquilo profissionalmente, que professe tal ou qual fé ou opção política, que se case, que tenha filhos etc.). A esse respeito, Lajonquiere diz: 179 O recém-nascido, como dissemos, já tem um lugar reservado numa trama desiderativa que começou a se tecer quem sabe quando. A trama é infinita e onipresente na medida em que o desejo não é (depois de Hegel) desejo de nenhum objeto natural suscetível de ser achado com maior ou menor sorte; o desejo deseja o desejo do outro enquanto outro desejante. Em outras palavras, o objeto do desejo é o desejo do outro , que é mais ou menos o mesmo que dizer que cada um de nós deseja ser desejado pelo outro, exatamente como supomos que o fomos naquela mítica oportunidade. (...) (Lajonquiere, ibidem, 157) Entre os muitos efeitos que essa aparentemente simples identificação pode ter, ressalta-se a criação de laços simbólicos muito profundos entre a criança e o adulto, atribuindo a ela desejos que são da comunidade que a cerca. Esses desejos constituirão sentidos que serão instauradores de um espaço de tensão simbólica entre o indivíduo (a partir do momento em que a criança se reconhece como um, como ser indiviso) e essa comunidade inicial, bem como outras comunidades com as quais o indivíduo irá se deparar no decorrer de sua existência. A multiplicidade de sentidos a que ele estará exposto e a maneira através da qual cada sentido será naturalizado vai instaurá-lo na rede do interdiscurso 7 6 . E isso só se torna possível porque instauram-se regras sobre o dizer (e o não dizer), constituindo as formações (discursivas, ideológicas), as relações entre elas, e o sujeito que se constitui nesse espaço dialético. Lacan , ao tratar de implicações do estádio do espelho aponta algo nessa direção: 76 Através de interdições, dos espaços de denegação e apagamento necessários não só à constituição do sujeito, mas também de sua filiação a FSs, FIs e FDs. 180 É esse momento que decisivamente faz todo o saber humano bascular para a mediatização pelo desejo do outro, constituir seus objetos numa equivalência abstrata pela concorrência de outrem, e que faz do [eu] esse aparelho para o qual qualquer impulso dos instintos será um perigo, ainda que corresponda a uma maturação natural – passando desde então a própria normalização dessa maturação a depender, no homem, de uma intermediação cultural (...)(Lacan, 1998:101-102) Voltando ao poema borgeano, pode-se perceber a polifonia expressa no temor de que o espelho mostrasse ao enunciador outra face que não fosse a sua. Obviamente, esse ponto de vista só pode ser a de quem já passou pelo estádio do espelho e que já se identificou enquanto imagem a si próprio. Cabe ressaltar, ainda, que a utilização do pronome “ otra”, na expressão “otra cara” é mais reveladora dessa polifonia. Pode-se subentender que essa “outra” opõe-se a uma face conhecida, esperada. São, portanto, duas vozes, dois pontos de vista. 181 O temor seguinte também é digno de análise. O enunciador teme que o espelho mostre outra face que não a sua própria 7 7 ou “una ciega máscara impersonal”. Alude aqui a uma série de questões muito relacionadas à constituição da subjetividade. A palavra máscara faz alusão ao teatro grego, com a máscara que expressa a personagem, a persona. Nesse sentido o sintagma nominal “ máscara impersonal” constitui uma antítese, uma contradição e até uma ironia 7 8 . No entanto, cria um espaço do dizer, e entrediz algo que nega e/ou silencia a individualidade e poderia, talvez, ser enunciado da seguinte forma: o que vejo no espelho (supondo que acredite que o espelho seja uma representação fiel) é, ao contrário de uma imagem que me distinga das outras pessoas, uma imagem que me torne exatamente igual a todas elas. O que me torna indivíduo é meramente minha ilusão de não enxergar em mim o que enxergo em todos os outros. Essa constatação implícita é sugerida pela continuidade da expressão “máscara impersonal”: “que ocultaría algo sin duda atroz”. A criança, ainda não individuada, ainda não sujeito do discurso, não 77 No poema Los espejos velados, publicado em El hacedor, Jorge Luís Borges explora outra possibilidade semelhante. Relata uma história em que uma moça, conhecida sua, depois de saber do medo de Borges na infância de que os espelhos não refletissem seu próprio rosto, anos mais tarde enlouquece e os espelhos da casa dela têm que se manter velados, pois a moça alega que, por alguma conjuração mágica, ela vê nos espelhos o reflexo de Borges e não o dela própria. No interior do Brasil, em algumas regiões rurais, quando morria alguém era costume cobrir os espelhos para que a alma pudesse ir em paz e não ficasse aprisionada neles. 78 Esta antítese acentua-se ainda mais se considerarmos que, embora a máscara recubra a face, atribuindo outro papel ao sujeito, ele possui os orifícios dos olhos, por onde o olhar deste mesmo sujeito encontra um espaço de constituição próprio (baseado em comunicação pessoal de Nascimento, E. 2001). 182 pode ter tais tipos de temores porque ainda não se julga uma unidade. Mergulhada no inconsciente, ela ainda não opera com nenhuma diferenciação convencional entre Eu e Outro. Não foi capaz, até esse momento, de olhar através do olhar do adulto e ver-se como objeto do desejo. Tal discurso, esse dos temores sobre a identidade só faz sentido se localizado num lugar enunciativo pertencente ao adulto que após ter passado pela ilusão da identidade, começa a refletir polifonicamente sobre a validade dessa crença. De alguma forma, esse adulto reincorpora a confusão inicial, indiferenciada, da criança pré estádio do espelho e a faz dialogar com essa movediça e frágil certeza de identidade. Por isso, ocorre a polifonia, a heterogeneidade que constitui sua dúvida e que subjaz a ela e o silêncio do adulto num dizer atribuído à criança (mesmo que na memória do adulto). A partir da metade do quarto verso, o enunciador teme que o tempo do espelho não seja o mesmo do cotidiano e que este último hospede seres, formas e cores novas. Aqui se dá um jogo de espelhos. Se para constituir-se como Eu, o futuro indivíduo necessita de olhar com o olhar do Outro para ver-se desse lugar discursivo, à medida que o Eu teme o novo (uma das metáforas do Outro), por um jogo especular, pode-se dizer que ele teme constituir-se como Eu. É a própria subjetividade que se esmigalha nesse ponto. Mas há uma pista que não deve ser desprezada e que constitui um verso intermediário desse trecho analisado: “en su vago confín 183 imaginario” (referindo-se ao espelho). Ou seja: essa hospedagem do novo, do Outro, esse tempo diferente e assustador determina-se em grande parte pela natureza dos limites e fronteiras do espelho como mecanismo de representação. Seus confins são vagos e – imaginários. Se se tomar o conceito de imaginário, tal como o apresentado por Laplantine & Trindade, a partir de uma concepção bachelardiana, de que O processo do imaginário constitui-se da relação entre o sujeito e o objeto que percorre desde o real, que aparece ao sujeito figurado em imagens, até a representação possível do real.(...) (1997: 27), há a necessidade de se aceitar um sujeito que objetifica algo como exterior a si mesmo, ainda que essa exterioridade seja o espaço necessário para que ele se reconheça como sujeito. No caso das fronteiras do espelho, elas não existiriam sem o olhar de alguém que as imaginasse. Um exemplo aparentemente absurdo seria a questão da moldura. Supondo-se um espelho com moldura, de onde vem a certeza de que a moldura está fora da representação especular ? Se isso pode parecer absurdo ao se pensar em molduras de materiais não refletores de luz, que tal considerarem-se superfícies especulares metálicas, cujos contornos, também metálicos, refletem de maneira muito mais distorcida as imagens ? Se o sujeito for 184 levado, de alguma maneira a considerar somente o que está refletido no interior do espelho – intramoldura – não será exatamente em função de uma imagem (também imagem, note-se, só que do ponto de vista psíquico) do que seja uma representação especular ? Nesse sentido, os contornos do espelho serão sempre imaginários, pelo menos em dois sentidos que esta última palavra pode apresentar. Num primeiro sentido, de imaginados por alguém, o sentido de contornos torna-se mais abstrato e refere-se aos limites do processo de representação da realidade. Existe uma fronteira vertical entre a realidade aquém e a realidade além do espelho; da tridimensionalidade do real para a bidimensionalidade da imagem especular 7 9 . Um outro sentido de imaginário (talvez fosse mais criterioso chamar de imagético), teria a ver com as imagens ópticas. Do ponto de vista físico, a extensão da superfície do espelho determinará o espaço possível de reflexão/refração da luz incidente sobre um corpo. Os limites estariam condicionados, numa primeira instância, ao tamanho, à extensão do suporte. Todavia, como no processo especular o olhar é fundamental para que ele seja conhecido, a extensão do suporte é limitada pelo horizonte desse olhar. Do ponto de vista físico, ocorre sempre algum grau de desvio quando há um processo de reflexão/refração da luz, como o que 79 Na verdade, a bidimensionalidade refere-se mais às características ópticas do olho humano do que propriamente ao suporte físico ou formato do espelho. Poderíamos conceber um espelho tridimensional, mas não podemos nos esquecer que, para nossos olhos, a percepção dessa tridimensionalidade é um artifício para superar o processo bidimensional de comunicação de impulsos nervosos-luminosos entre o olho e o cérebro. 185 ocorre nas imagens refletidas em espelhos. No âmbito discursivo, pode-se dizer que o imaginário representa essa distorção, na medida em que, nesse movimento inevitavelmente interdependente entre o sujeito e o objeto na interação, a representação do real está condicionada à esfera do possível. Isso significa que ela depende das categorias de mundo que a cultura disponibiliza, e ao recorte entre o que é possível dizer e silenciar no entrecruzamento de posições enunciativas. O verso seguinte, intermediário entre o tempo da memória e a percepção atual refere-se igualmente ao silêncio: o menino – lembrase o homem adulto – não disse nada a ninguém, pois o menino é tímido). Há um silêncio pela ausência (o não dizer) que sobrepõe (por excesso) a polissemia, a multiplicidade de sentidos que esses temores todos assumem. Mas há alguma coisa que se reveste de um silêncio mais profundo. Um silêncio que se concretiza na categoria mentira, do quadrado semiótico (não ser/parecer). Esse silêncio refere-se ao fato de que é falso afirmar-se que isso não foi dito. Se se aceita que o inconsciente é constitutivamente heterogêneo, de que (...) tudo aquilo que aninha-se no sujeito, em última instância, é do Outro. Neste sentido, dissemos, precisamente, que o desejo era causado pelo desejo do Outro. Nesse mesmo sentido, deve-se agora entender que as pulsões, que perambulam tão silenciosas como infatigáveis no sujeito, são o efeito do pulsionar do Outro. O Outro é aquele que 186 sustenta, pulsiona, o sujeito a avançando. (Lajonquiere, ibidem, 159), viver para constituir-se como sujeito, o menino teve de desejar esse olharOutro que o via como tal. Para passar a existir como sujeito, em outras palavras, ele teve que nascer desse diálogo contraditório, cindido entre o indiferenciado e o pré-construído pelo desejo de sua comunidade, de sua posição inicial no jogo interdiscursivo. Esse silêncio é da natureza dos esquecimentos necessários apontados por Pêcheux. É silêncio constitutivo, originário do inconsciente, advindo da voz do Outro, imbricada na própria voz do Eu. Outro silêncio exposto neste verso refere-se a um recurso poético/literário bastante utilizado na criação borgeana: o do simulacro, do engodo. Novamente a mentira, no quadrado semiótico. A timidez do menino, universalizada pelo presente do indicativo é um pretexto para fazer acreditar que isso não foi dito. Mas o que se discute que está silenciado aqui é que fora desse diálogo constitutivo entre Eu e o Outro, isso não foi dito a ninguém naquele tempo de menino. Porém, agora, no tempo do homem, a voz mesma do menino, igualmente imbricada na voz da memória do homem, diz em alto e bom som isso no poema. Senão, por que escrever um texto ? Por que publicá-lo ? Há um interlocutor e o tipo de interlocutor visado não é unicamente um eu interior. 187 Finalmente, os quatro últimos versos tratam do tempo atual, do homem que se analisa através de suas concepções atuais. O primeiro indício disso aparece no uso do dêitico “ahora”, que alude à circunstância de enunciação. Essas concepções do homem adulto também refletem temores. O principal deles, segundo o poema, é que o espelho encerre “el verdadero rostro de mi alma ”. O adjetivo merece uma atenção especial. Aqui ocorre novamente polifonia e silenciamento. Dizer “verdadeiro” depois de ter mencionado “face” anteriormente, significa que há uma (de)negação das concepções anteriores, as da criança que a memória recria. O silenciamento ocorre por sobreposição, exatamente dessas concepções anteriores. Ao ler “verdadeiro” o leitor esperará que agora sim seja mencionado qual é o tipo de rosto da alma do enunciador. Tal natureza do rosto fica evidenciada no verso final: é o que Deus vê e, que por acaso, os homens também vêem. Curioso jogo de espelhos (labirinto seria um termo mais borgeano e apropriado). Se como criança havia um temor de que o rosto (cara) fosse diferente da esperada (daquela que o sujeito acredita ser a sua própria, por ser diferente das demais), como adulto, há o temor de que aquela representação fiel ansiada pela criança seja tão fiel ao ponto de refletir não só a face, mas a alma. No início do poema a palavra utilizada é “cara”. Aqui é “rostro de mi alma”. 188 Essa alma, no entanto, extrapola o domínio exclusivo do sujeito. Segundo o enunciador, em suas concepções atuais, esse rosto da alma é visto por Deus e – talvez esse seja um temor ainda maior, – pelos homens. O sentido entredito de espelho aqui é metafísico: o processo de representação não dá conta somente da realidade material, mas do imaginário, ou seja, da maneira como a realidade é sentida. O grande temor do enunciador é que essa maneira através da qual sua vida é avaliada pelo seu Eu (ou mais propriamente, pelo Outro-Eu que dialogicamente está dentro de si), seja representável para os outros, externos ao sujeito. E uma das razões para isso, sugerida pela presença do penúltimo verso, tem a ver com a questão da subjetividade, mas basicamente, também com a historicidade. É a alma, “lastimada de sombras y de culpas” que o enunciador teme ser reconhecida na face do espelho. E ser reconhecida na face do espelho, aqui, significaria apenas evidenciar o que já é uma suspeita, uma concepção denegada: a de que o Eu é o único que não vê o que todos os outros vêem (Deus e os homens) 8 0 . Se as silenciamento, sombras na podem medida em ser que consideradas constituem espaços de processos do 80 Em outro texto, não analisado nesta tese, que é o Epílogo do livro O Fazedor, Borges, no último parágrafo, utiliza uma concepção semelhante (a de que a face de um Homem é o resultado de suas experiências): Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo. A lo largo de los años puebla un espacio com imágenes de provincias, de reinos, de montañas, de bahias, de naves, de islas, de peces, de habitaciones, de instrumentos, de astros, de caballos y de personas. Poco antes de morir, descubre que ese paciente laberinto de lineas traza la imagen de su cara. (1989: 854) 189 inconsciente, irrecuperáveis à consciência do Eu-sujeito (silêncio pela ausência), as culpas são indícios de heterogeneidade mostrada já que correspondem a um conflito entre o Eu e o Outro, no interior do interdiscurso. O mais atroz agora não é ser uma face sem individualidade; é saber, de alguma forma, que essa individualidade não garante jamais um espaço demarcado e completamente independente dos outros. Esses outros, presentes no Outro interno, é que tornam possível a própria ilusão de que sentir-se um seja estar apartado das partes. Como o corpo fragmentado do bebê que mal comanda sua motricidade é antecipado pela visão de uma unicidade desejada pelo Outro, a reflexão do adulto exibe uma incompletude constitutiva: é o imaginário que cria recortes, representações possíveis, de onde o sujeito se diferencia. O que ocorre, porém, é que além de ser espaço de silêncio, exatamente porque é ausência, essa diferenciação também é silêncio porque é movimento. Assim como a luz se movimenta, o olhar, o corpo, o espelho se movimentam e isso implica, no âmbito dessa metáfora, que os sentidos não estão fixados nem na memória nem no sujeito. Eles dialogam entre (de)graus, espaços e tempos do dizer e do silenciar, seja porque mostram uma falta, seja porque deixam de mostrá-la. 190 4.2.3 – Animais dos Espelhos Esta narrativa encontra-se no Livro dos Seres Imaginários, obra que Borges editou em co-autoria com Margarita Guerrero e que se diz ser um manual que é resultado de uma compilação “dos estranhos entes que engendrou, ao longo do tempo e do espaço, a fantasia dos homens.” (Prólogo, XI). No entanto, antes de caracterizar dessa forma a obra, os autores dizem que o nome do livro justificaria a inclusão do príncipe Hamlet, do ponto, da linha, da superfície, do hipercubo, de todas as palavras genéricas e, talvez, de cada um de nós e da Divindade. Em suma, de quase todo o universo. Com esse toque de ironia, os autores insinuam que nossa própria discussão existência faz parte do imaginário. Se se considerar a sobre principalmente a imaginário feita na análise respeito das categorias do de texto mundo anterior, e da representação possível do real a partir delas, a idéia é bastante provocadora, mas não desprovida de sentido. O que significa que no contexto dessa obra, o termo imaginário subentende que não permita ser interpretado como “falso”, mas provoque o leitor para uma forma de encarar algo de real visto a partir de uma determinada cultura, ponto(s) de vista diferente(s), categorias de mundo. A narrativa analisada participa desta provocação. 191 Trata-se, de acordo com diversas fontes citadas no texto, da crença no Peixe, que faz “parte de um mito mais amplo, referente à época legendária do Imperador Amarelo.” (p.6) No interior do mito narra-se que teria havido um tempo primevo no qual o mundo dos homens e dos espelhos teriam tido a possibilidade de comunicação, podendo as pessoas passarem para o lado de lá e os seres dos espelhos passarem para o lado dos homens. Tais seres seriam muito diferentes de nós, não coincidindo nem os seres, nem as cores, nem as formas. A paz reinante entre os dois reinos teria sido quebrada no momento em que os seres do espelho invadiram a Terra. Depois de sangrentas batalhas foram vencidos pelas artes mágicas do Imperador Amarelo, que os condenou a viverem encarcerados nos espelhos e de “repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens”. Esta vitória humana, no entanto, não seria definitiva. Para o mito, um dia tais seres se livrariam desse sortilégio e nos dominariam. Deixariam de ser semelhantes a nós. O primeiro a despertar seria o Peixe (ou o Tigre, em outra versão). Junto às criaturas dos espelhos combateriam as da água. O primeiro aspecto que merece atenção é a introdução da narrativa do mito propriamente dita. Nela, o narrador relata que numa obra entitulada Cartas Edificantes e Curiosas, um padre jesuíta “planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Cantão” e que “num levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo 192 e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos alegavam ter visto no fundo dos espelhos.” (p.6). A analogia com o estádio do espelho de Lacan chama a atenção, particularmente em relação ao ver e não tocar a imagem. Isso corresponde aos estágios da criança frente ao espelho . Ocorre, porém, nesse caso, que há uma indeterminação se quem alega ter visto o Peixe não o tocou apenas porque ele seria “um ser fugitivo” ou porque o viu simplesmente como imagem e não como realidade. A primeira hipótese parece mais provável no interior do mito, mas de qualquer forma, nesse aspecto há um silenciamento da narrativa a respeito disso. Há ainda a expressão “no fundo dos espelhos”, o que sugere alguma profundidade, volume, tridimensionalidade a eles. Essas características também sugerem um maior grau de veridicção aos interlocutores do mito (cf. o conto Pierre Menard, autor del Quijote). A narrativa borgeana utiliza essa forma de relato, aproveitandose dos dois tipos fundamentais de silêncio, o por ausência e o por excesso para criar esse efeito. Assim, a não referência, em momento algum à palavra superfície (ou equivalente), ao se referir a espelho instaura uma ausência que confere maior realidade, maior profundidade ao conceito espelho, o que é necessário à veridicção. Além disso, a expressão repetidamente utilizada “fundo dos espelhos” silencia por excesso qualquer possibilidade de se pensar no espelho 193 como uma superfície plana, bidimensional e meramente representativa da realidade. Significativo é o fato de que a invasão da Terra pelos seres dos espelhos se dê durante a noite, segundo o relato. A noite implica ausência de luz, substância fundamental para que os espelhos reflitam a imagem dos corpos. As artes mágicas do Imperador Amarelo criam no âmbito do mito a explicação para a representação existente nos espelhos. As imagens vistas num espelho seriam seres condenados a parecerem conosco, a repetirem cada gesto, cada ato humano. Novamente o silêncio. Entre o mito e explicação física da imagem especular, falta a inversão. A imagem refletida no espelho não repetirá nunca os atos dos homens, uma vez que, de alguma forma, através da refração esses atos serão invertidos, distorcidos. Vale a metáfora para qualquer grau de paráfrase. O seu extremo, a réplica, no sentido de cópia, não será jamais uma repetição. No movimento dos sentidos, a enunciação terá sido outra e, se há alguma regularidade discursiva possível, pode-se entender que ela exista unicamente no silenciamento que o sujeito obriga-se a estabelecer com relação às diferenças entre cada enunciação. A narrativa borgeana representa metaenunciativamente esse processo. Ao fingir meramente relatar o mito, compilar visões de criaturas imaginárias, o texto silencia que esse relato partirá de um outro lugar discursivo, estará dialogando com outros discursos, 194 diferentes daqueles em um outro contexto de relato e que esse diálogo se instaurará desde a perspectiva do espaço de autoria, quanto do espaço do leitor. A questão fundamental que se coloca neste caso (e isso é muito oportuno de se discutir em face de um texto literário) é a do assujeitamento do sujeito. Seguindo-se a análise sob o mesmo prisma de Lacan, provavelmente não se escapasse desse conceito. A criança, como corpo fragmentado de sensações e movimentos de membros e órgãos, ainda não individuada, estaria, desde antes de seu nascimento assujeitada à sua cultura, às categorias de mundo, aos desejos de sua família e comunidade. Sendo assim, ao desejar o desejo do Outro e constituir-se como sujeito, estaria fadada a um assujeitamento permanente 8 1 . No âmbito do silêncio, pode-se imaginar até que ponto o sujeito pode escolher silenciar. A constitutividade do silêncio não implica necessariamente sua inconsciência, para que o coro de vozes que constitui o discurso seja imaginado pelo sujeito como sua própria voz unicamente ? Se uma formação discursiva implica regras do que deve e pode (e o que não deve e não pode) ser dito, como pensar o mundo e dizer algo se essas regras forem violadas ? Se, como sujeito, alguém toma consciência de que dizer “como vai” em língua portuguesa é uma fórmula ritual para se cumprimentar o interlocutor e 81 No entanto, pode-se interpretar que análise lacaniana refere-se prioritariamente a um assujeitamento de origem. Cf. página 190 desta tese. 195 que não corresponde necessariamente a um desejo de se saber como o interlocutor está realmente passando, será possível a ele ter essa idéia presente todos os momentos em que cumprimentar alguém, até o final de sua vida ? Obviamente, não. Esse esquecimento necessário para que o discurso se produza é um tipo de silêncio que, para se adaptar uma categoria já proposta por Orlandi (1992), pode-se chamar de silenciamento. É preciso, no entanto, avançar um pouco em algumas implicações desse processo. No início do trabalho foi mencionado que constitutivamente o silêncio assume um movimento cíclico e complementar que é o de ausência e o de excesso. Uma questão essencial que precisa ser lembrada é que esse processo é dialético. Isso significa que silenciar por ausência propicia uma sobreposição da polissemia em relação ao sentido estabelecido num determinado contexto. Inversamente, silenciar por excesso significa gerar uma ausência do que não foi dito. Entre o silêncio e o dizer, pode-se igualmente pensar essa constitutividade; se o silêncio apaga o dizer (enquanto possibilidade) o dizer igualmente apaga o silêncio por ausência, mas estabelece o silêncio por excesso. Como na metáfora do espelho, o sujeito estará inexoravelmente impedido de ver o movimento da luz que incide sobre o corpo, reflete na superfície do espelho e reflete sobre o olho (sem contar que o estímulo luminoso vai até o cérebro, transformado/representado em estímulo elétrico/nervoso e volta para 196 o olho), assim como está impedido de ver o movimento dos sentidos em toda a sua extensão. Todavia, se alguém piscar um facho de luz diante de um espelho uma pessoa poderá ser capaz de perceber de onde partiu a luz, percebê-la refletir sobre a superfície do espelho e entender que houve um movimento. O que talvez jamais seja possível, com relação aos movimentos dos sentidos, é 1) ter consciência de todos eles 2) ter consciência simultânea deles 3) ter somente consciência deles (negando-se que haja outras relações mais amplas das quais esse movimento dos sentidos participa) 4) ter consciência deles sem a presença do olhar do Outro (é a outra direção do olhar que vai acusar a incompletude do olhar do sujeito) Como espaço, o movimento dos sentidos é multifacetado. Por um lado é um gradiente de possibilidades entre formas de dizer, entre formas de silenciar e entre formas de dizer e de silenciar. Por um outro, é um desnível de incompletudes de dizeres sobre dizeres e silêncios sobre silêncios. Finalmente, e isto é muito importante ser reafirmado, é um trabalho, no sentido de que é sempre (re)construção. Como tal, redistribui incessantemente os lugares 197 dinâmicos entre os dizeres, os silêncios e entre ambos, assim como no jogo do interdiscurso redistribuem-se continuamente as formações sociais, ideológicas e discursivas, os lugares de onde se diz e de onde se ouve. Nessa dimensão de trabalho é que se pode ver o texto borgeano. Se se perguntar até que ponto, como autor (ou co-autor, nesse caso) ele sabe a respeito das escolhas que fez nesse entrecruzar permeado de silêncios, será necessário reconfigurar inicialmente os sentidos do que seja saber. Se for substituída a idéia de consciência pela de saber, pode-se dar um passo essencial para aprofundar essa discussão. Essa redistribuição de lugares mencionada acima, e que constitui essencialmente o trabalho no discurso, depende do saber, em suas múltiplas facetas: saber fazer, saber dizer, saber silenciar, saber agir, saber olhar, saber saber etc. Uma metáfora útil, nesse caso, é exatamente a de jogo. Para jogar é necessário saber as regras. Mas nem todas as regras são, a todo momento, conscientes. Um jogador de basquete minimamente habilidoso “sabe” que deverá sempre manusear a bola com as mãos e jamais com os pés. Um motorista “sabe” que tem de embrear o automóvel para mudar as marchas, mesmo que o faça inconscientemente. Outro exemplo é que os seres humanos sabem respirar 8 2 . 82 A respiração é um exemplo útil. Na maioria das vezes respiramos mecanicamente, inconscientemente. Isso não impede, porém, que tomemos consciência dessa respiração (tanto no sentido de percebê-la fisicamente, quanto no de discutir sobre ela), ou que a provoquemos/modifiquemos intencionalmente. 198 No caso do autor, ele sabe que tem de criar um narrador para relatar a história. Mesmo que nominalmente identificado com o próprio nome do autor (esse recurso é largamente utilizado por Borges), esse narrador representará um princípio organizador do relato que refletirá não o autor, mas o conjunto de características daquele ato enunciativo (do contrário o autor teria uma única forma de dizer). Esse trabalho, realizado pelo autor , demanda um saber fazer e um saber dizer que se referem, numa instância primordial ao que se aceita como fazer estético e literário numa determinada cultura, numa determinada época. Supor um sujeito totalmente assujeitado seria imaginar esse mesmo autor à mercê de discursos e posições que reorganizado, representa, às vezes, sem que inclusive, esse de saber maneira pudesse consciente ser e deliberada. Pode-se apontar talvez o que seja uma confusão metodológica nesta questão. O que a leitura de Lacan aponta inequivocamente é um assujeitamento de origem. Mesmo antes de nascer, o futuro indivíduo já está sujeito ao desejo de sua comunidade (este aspecto já era apontado por Freud). O problema é o quanto de mobilidade existirá nos espaços discursivos atravessados pelo sujeito e que também se entrecruzam em sua constituição dialógica. Se, por certo, é inconcebível uma liberdade e autonomia totais, também soa questionável uma leitura extremada da interpelação althusseriana do indivíduo em sujeito pela 199 ideologia como um processo monolítico 8 3 . Cumpre considerar (e Possenti (1996) levanta essa linha de análise) que também a ideologia é dialógica, heterogênea. Ao contrário de Althusser, que diz que ela é eterna, entende-se, nesta tese, que ela tem história. É necessário enfatizar a questão do ponto de vista metodológico, porque exatamente o conflito epistemológico parece ser não a existência de interpelação, mas a forma como ela ocorre. Afirmar que a ideologia é eterna é desconsiderar essa dialogicidade presente na própria ideologia. É, igualmente, olhar para conceitos como Formações Discursivas e Ideológicas de maneira estática, sem avaliar o movimento e o intervalo. Se os conceitos de interdiscurso e de alteridade profundidade epistemológica, a forem voz considerados não mais será com maior única, será dialética, prenhe de contradições. Até que ponto a fala do Outro não desloca a minha ? Não enquanto indivíduo, mas enquanto sujeito também dialógico. No fundo, o que está em jogo é a questão a historicidade e da forma de constituição das vozes do sujeito. Faz parte do universo borgeano o engodo, a dissimulação e a utilização de silenciamentos trabalhados no interior do discurso . Seria possível, então, afirmar-se que o autor “conhece o movimento dos sentidos” ? No sentido de que “sabe” colocá-los ação, (re)conhece sua dialeticidade, sim. 83 Para o próprio Althusser, a interpelação é um processo com contradições: ao mesmo tempo o sujeito é e não é constitutivo de toda ideologia. (1985:93) 200 Claro que isso somente é possível estabelecendo-se outros textos de um autor como olhares-Outros capazes de mostrar as falhas, ausências. Além disso, o olhar analítico será, no mínimo, um terceiro olhar para com esse diálogo. O jogo borgeano estabelece-se nestas relações intradiscursivas como num jogo de espelhos, um texto dialogando com outro, no conjunto da obra. É o caso da relação entre o texto Animais dos Espelhos e o poema anterior El espejo. Neste último há uma seqüência de versos assim: Que el silencioso tiempo del espejo Se desviara del curso cotidiano De las horas del hombre e hospedara En su vago confín imaginario Seres y formas y colores nuevos. Já no texto Animais dos Espelhos há o seguinte trecho: Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres, nem as cores nem as formas. (...) Note-se que as expressões finais de ambos os trechos citados são constituídas por enumerações dos substantivos seres, formas e cores. As diferenças encontradas são 1) no poema El espejo, o substantivo cores está adjetivado (novas); 2) a ordem da enumeração 201 é diferente (no texto animais dos Espelhos cores vem antes de formas; 3) em Animais dos Espelhos a frase é negativa e, no poema, afirmativa. Considerando-se que Animais dos Espelhos é assumida pelos autores como simplesmente uma compilação, há algo digno de atenção: ou o poema El espejo apropria-se de uma expressão num texto compilado ou Animais dos Espelhos retoma parcialmente uma forma de dizer que se insere no estilo borgeano. Uma ou outra leitura implica opções a partir de elementos contextuais mais amplos, trabalho com indícios e inter-relações, que somente são possíveis através de relações intertextuais. Assume-se aqui a análise de uma estratégia peculiar do fazer de Borges. Formalizar tal estratégia pressupõe coletar indícios e interpretá-los de modo a construir categorias mais abstratas e generalizáveis. Quanto à questão dos indícios, alguns modelos teóricos amparam tal perspectiva. Pode-se citar talvez a semiótica peirciana, com seu conceito de índice (ou index). Neste caso, entretanto, parece mais funcional utilizar o conceito de “paradigma indiciário”, de Carlo Ginzburg. Para o autor italiano, essa seria uma forma de olhar epistemológico que privilegiaria a singularidade, em detrimento da regularidade. No decorrer de alguns de seus textos, especialmente no artigo “Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário” (1989) 8 4 , ele cita 84 In: Ginzburg, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. (1989) 202 como vários saberes tais como a medicina, a investigação de falsidade em obras, entre outros, têm ou tiveram momentos de opção por este olhar. Assim, pondera, ao se analisar um suposto quadro de um pintor, por exemplo, a chave estará em verificar não o que é característico do suposto autor, mas os detalhes que não deteriam jamais a atenção de um falsário. Tomando um dos exemplos de Ginzburg, alguém que tentasse imitar a Gioconda, de Da Vinci, procuraria ser perfeito nos detalhes do famoso e enigmático sorriso, mas talvez estivesse menos concentrado na forma do pintor italiano retratar uma orelha ou as unhas. Adotar tal paradigma, no entanto, prevê uma reorganização epistêmica e metodológica. Instaura como pressuposto de análise a subjetividade do analista e a sua relação com seu objeto: “(...) o rigor flexível (se nos for permitido o oxímoro) do paradigma indiciário mostra-se ineliminável. Trata-se de formas de saber tendencialmente mudas – no sentido de que, como já dissemos, suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz- se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição.” (GINZBURG, 1989:179) 203 Ao redimensionar o signo como sintoma 8 5 , Ginzburg rompe uma tradição de inspiração das ciências humanas em suas congêneres inicialmente ciências naturais e posteriormente nas ciências exatas (notadamente a matemática e a estatística). Essa tradição é especialmente intensa na constituição da lingüística e, constituição considerando da AD, a cabe participação refletir sobre que os esta tem na compromissos epistemológicos da primeira e como tais compromissos se deslocam (ou até que ponto de deslocam) no interdiscurso para com a segunda. A primeira implicação vem das escolhas saussurianas. Amparado em uma mentalidade positivista, a obra publicada de Saussure, o necessidade Curso de primordial Lingüística de campo Geral, científico, instaura, enquanto inicialmente uma distinção a tudo o que na língua era de caráter particular, individual e o que era social, geral. Optou-se, então, pela segunda, em nome de princípios como regularidade, sistematicidade e por uma condição organizacional certamente ainda muito influenciada pelo entusiasmo com o rigor metodológico de outras ciências. O status de “ciênciapiloto das ciências humanas” construiu-se sobre um alicerce solidamente estabelecido nesta trajetória. Até o desenvolvimento de teorias da enunciação, disseminadas a partir dos anos 60 do século XX, a atenção do olhar era para o geral, universal. Desde então, estabeleceu-se uma relação dialética 85 O que traz algumas aproximações com Lacan e Peirce (neste último especificamente com relação ao índice) 204 mais explícita entre essa opção hegemônica e desejos de criar ferramentas analíticas capazes de interpretar algum grau de singularidade. Se, por um lado, isso coincide com uma tendência mais ampla de a ciência no século XX colocar-se diante das anomalias de seu paradigma ainda fortemente mecanicista, principal e paradoxalmente a partir da física, dentro dos estudos da linguagem, tal inquietação coloriu-se de matizes peculiares. Tal tendência pode estar associada, inclusive, com o surgimento da Análise do Discurso, em fins dos anos 60. Outra implicação decisiva é de caráter epistemológico e refere-se especificamente a como as relações entre o objeto (interno) e sua exterioridade dialogam. A AD instaurou-se como diferença neste aspecto, por utilizar conceitos que remetem para a exterioridade da língua, sem abrir mão da interioridade desta última. Se se pensar nas práticas sociais básicas, como a identificação cultural e a própria aquisição de uma língua, será visto com relativa facilidade que os princípios de regularidade e sistematicidade às vezes não são muito funcionais. As regras de conduta ou de organização da língua não são veiculadas e apreendidas somente pelo que é dito, mas pela convivência com formas de dizer e de fazer, e pelo contato dialético com a transgressão (seja social ou lingüística) é que constrói uma práxis de delimitar o que pode ou deve ser dito ou o que pode e deve ser feito (e, sempre por extensão, o que não pode nem deve). 205 Se esse raciocínio faz sentido, então torna-se imprescindível considerar as condições exteriores, que em seu diálogo permanente e dialético com o que tais sistemas têm de interno, estabelecem tais regras. Impossível, portanto, desconsiderar a relação que o singular tem com o geral, impossível desconsiderar o movimento entre posições estabelecidas, as descontinuidades, as falhas, os intervalos e as reconfigurações incessantes entre, por exemplo, dizer e silêncio. Abala-se um pressuposto saussuriano decisivo, ao se aceitarem necessidades metodológicas decorrentes de olhares tais como o de Ginzburg. A singularidade é passível de análise, sim, desde que haja espaço epistêmico para a subjetividade. Não no sentido de um sujeito alienado ou supra-humano, mas a de, nesse âmbito de relações entre o que é interno e externo, o gesto interpretativo do sujeito, entre outros elementos, é uma parte decisiva do jogo. Tal como o sintoma não existe sem uma leitura prévia de seus limites entre o que indicia e o que significa. Tal relação, inclusive, desloca a visão saussuriana sobre o signo. Pensado como sintoma, ele não pode mais prescindir do gesto interpretativo que une o significante ao significado. Também abordagens como a de Derrida ou Lacan podem ser problematizadas neste aspecto: a existência única do significante, seja por qual viés, desconsidera o ato interpretativo. Não que ele seja o sentido que a palavra ou o silêncio possuem; ele é o desejo de que as coisas e seus índices simbólicos signifiquem, façam sentido. 206 Faz parte de nossa incompletude e, mais do que isso, da incompletude necessária da palavra (e do próprio silêncio , enquanto movimento dos sentidos) essa falta do simbólico e esse excesso do real. E essa falha essencial do sentido não é uma espécie de pecado original, resgatável, mas uma falha constitutiva, sem a qual a linguagem não seria possível. Faz parte da condição humana a linguagem e, intrínseca e complementarmente em ambas não há outro modo de ser que não seja essa incompletude. Quando ela (a incompletude) é atribuída ao silêncio, isso significa que, para nós, é impossível conceber o silêncio sem a palavra ou vice-versa e, principalmente, que o quão significativo será o silêncio dependerá desses limites, estabelecidos dinamicamente nas interações. Voltando aos poemas de Borges, existe uma contradição entre a afirmação dos autores no prefácio de O livro dos seres imaginários (onde se situa o texto Animais dos Espelhos) de que os textos se tratam de compilações e a presença dos mesmos elementos no poema El espejo. Ou os autores mentem no prefácio e trata-se de uma fingida compilação, ou o poema também partilha a mesma característica. Em outros trechos de outras obras, Borges sempre afirma, de alguma forma, que o que ele faz é apenas recontar o que outros já disseram. Mais ainda: para ele a literatura não deixa de ser isso. Desse ponto de vista, seria corroborada a leitura de que El espejo 207 também não deixa de ser uma compilação de formas de dizer. Mas não é tão simples assim. Se se pensar no que estava sendo discutido anteriormente a respeito do paradigma indiciário e de como ele instaura relações diferenciadas entre o interno e o externo de uma análise, surgiraá a lembrança de um pressuposto fundamental da AD que são as condições de produção do discurso. Nessa delimitação entre dizer e silenciar, pode-se analisar o que Borges como autor diz de seu fazer literário. No prefácio do Livro dos Seres Imaginários ele afirma tratar-se apenas de uma compilação. Opta, portanto, por não estabelecer um silêncio por ausência a respeito das condições (algumas, pelo menos) de produção de sua obra. Sobrepõe a palavra ao silêncio e delimita uma direção do dizer. Cabe ao leitor acreditar ou não, mas rompe-se a polissemia que um silêncio por ausência poderia estabelecer. O acreditar ou não constitui, neste caso, um episódio de veridicção. Pode-se aplicar o quadrado semiótico. Se o leitor acreditar (comparando ambos os textos), estará diante do segredo (é uma compilação, mas não parece ser), se não acreditar, diante de uma mentira (parece ser uma compilação, mas não é). O que importa, aqui, é que a escolha pelo dizer modifica o espaço de silêncio sobre as condições de produção da obra. Se não tivesse sido dito que se tratava de uma compilação, caberia ao leitor interpretar a relação 208 intertextual em função do que não foi dito, mas que se insinua nos textos. Como sintoma de algo posto, sugerido, há, no entanto que se resolver esse primeiro problema, que se torna mais complexo na medida em que supõe que este mesmo leitor tivesse efetivamente comparado tais textos. Que seu olhar se deparasse com tal singularidade. Faz parte do que ainda restou do silêncio como ausência sobre as condições de produção do fazer borgeano o que indicia a paráfrase. É o exterior do texto em si que vai apontar isso. Poder-se-ia falar aqui do conceito de arquivo, tão caro à AD, pelo menos em seus momentos iniciais. De certa forma, cabe como análise. No entanto, seria importante considerar que a unicidade atribuída a um mesmo autor, no conjunto de sua obra (o que teria a ver com o conceito de arquivo) é construído culturalmente a partir de direções de leitura, de jogos de imagens (conceito tomado de Pêcheux, 1969), enfim, de funções culturais como autor, obra, gênero etc. Não deixa de ser muito mais silenciador das condições de produção (que envolvem esses aspectos mencionados no parágrafo anterior) o autor ter construído um dizer que atribui a um dos momentos de sua obra que estabelece paráfrase com vários outros o título de compilação. Silencia uma extensão maior da própria função de autoria, bem como disfarça o quanto do papel de leitor está sendo (super)valorizado por Borges. Se ao autor cabe somente compilar, é 209 ao leitor que se incumbe interpretar, (re)fazer a obra, circunscrever seus sentidos. Inclusive os silêncios dela. Há uma diferença especial na distribuição do silêncio entre a fala e a escrita: contrariamente à fala, quando o enunciador dispõe de algum poder de decisão sobre o ritmo e os tipos de silêncio que propõe, na escrita, mesmo que sinalizados pelo autor , os silêncios serão reconfigurados pelo leitor, inclusive – e isso é muito importante – no ritmo do leitor. Interpretar o dizer borgeano, nestes enunciados, sobre as condições de produção de seu texto como um silenciamento de silêncios mais amplos pode-se ver nisto um sintoma de atribuição de um papel mais interpretação só decisivo pode para fazer o leitor . sentido O crucial dentro de é que uma essa opção epistemológica que inclua o gesto interpretativo do sujeito, vendo-o em relação aos outros elementos contextuais, em movimento, em deslocamento dialógico e dialético. Cabe, porém, fazer uma ressalva. Ao se fazer um discurso como esse, nesta análise, pode-se ter a impressão de que os fatores externos são sempre mais importantes do que os internos. Pensar desta maneira seria ignorar a contradição como elemento constitutivo do discurso, da linguagem e da condição humana, principalmente no ato de produzir sentidos. Somente existe exterioridade em relação ao que não é exterior, portanto interno. Se esse raciocínio for aplicado à língua, e 210 especificamente no caso desta análise destes dois textos de Borges, há que se considerar obrigatoriamente que um elemento instaurador de silêncios bastante amplos foi exatamente o dizer. Não somente o ato de dizer, mas o que foi dito. A palavra compilação, a sintaxe dos enunciados correlacionados. Novamente vale a observação: trabalhar com conceitos como movimento e intervalo não significa ignorar ou (de)negar a materialidade da língua (como a materialidade do silêncio). Por exemplo, quando a Filosofia propõe o movimento como solução para o paradoxo de Aquiles e da tartaruga, formulada por Zenão de Eléia, não se está negando a realidade ou a existência de nenhum dos dois (Aquiles e a tartaruga), nem da corrida ou do trajeto. Apenas a relação entre os elementos torna-se de outra natureza. Possenti (1988:115) faz uma ponderação pertinente sobre essa relação entre exterioridade e interioridade: O que parece é que, com o advento das teorias de significação que se utilizam de conceitos como enunciação e contexto, assistiu-se a uma espécie de desprezo pela materialidade específica das línguas, em outros termos, pela análise detalhada dos recursos expressivos, erigindo-se aqueles fatores como os essenciais a serem considerados na descoberta do sentido.(...) Parece, pois, necessário dizer de novo o óbvio. E o óbvio é que, por mais relevantes que sejam os fatores que poderiam ser chamados sem nenhuma exigência de refinamento conceitual de ‘extralingüísticos’ (isto é, não lexicais ou sonoros) para a descoberta do sentido, a forma do discurso, 211 desde que tomada em sua materialidade mesma, e não como hipostasia de uma metalinguagem, é o elemento essencial na construção do sentido. Ela nunca o esgota, por causa da indeterminação desta forma, mas o fato de não esgotá-lo não implica em seu abandono ou sua consideração apenas em último lugar. Os elementos ‘extralingüísticos’ devem sempre ser considerados, é claro, inclusive porque eles não são relevantes apenas para a interpretação dos discursos, mas um importante papel no condicionamento de sua própria forma.” 4.2.4 – El espejo de los enigmas Texto publicado no volume Otras Inquisiciones, em 1952, livro que representa um dos raros momentos concentrados da produção crítica de Jorge Luís Borges. Esse ensaio parte da teoria do alegorismo (já discutida no capítulo 3 º ), o pensamento de que a Sagrada Escritura apresenta, além de um sentido literal, um valor simbólico. Borges começa argumentando que esta idéia não é irracional e traz como testemunho da antigüidade (e da autoridade) dessa idéia autores como Filón de Alexandria, os cabalistas, Emanuel Swedenborg. Apresenta outros ainda, como León Bloy, Novalis, DeQuincey, que têm hipótese semelhante: a de que há uma gramática (esquecida pelos homens) que subjaz às ínfimas coisas, aos menores gestos, enfim, “las 212 mínimas cosas del universo pueden ser espejos secretos de las mayores 8 6 ” Após esse preâmbulo, Borges retoma a referência a León Bloy e situa um versículo de São Paulo (1 ª Epístola aos Coríntios, Cap. 13, 12), que ele cita em latim no texto: “Videmus nunc per speculum in aenigmate: tunc autem facie ad faciem. Nunc conosco ex parte: tunc autem cognoscam sicut et cognitus sum.” 8 7 Borges, em seguida, irá cotejar a interpretação e a tradução de diversos autores, mostrando como as concepções diferenciam-se. O primeiro a ser mencionado é Torres Amat, que, segundo Borges, traduz miseravelmente: “Al presente no vemos a Dios sino como en un espejo, y bajo imágenes oscuras: pero entonces le veremos cara a cara. Yo no le conozco ahora sino imperfectamente: mas entonces le conoceré com una visión clara, a la manera que soy yo conocido ” (destaques do texto de Borges). Borges ironiza, dizendo que o autor usou 44 palavras para traduzir 22, sendo “palabrero y lánguido”. O autor seguinte, Cipriano de Valera recebe uma apreciação mais positiva em sua tradução: “Ahora vemos por espejo, en oscuridad; mas entonces veremos cara a cara. Ahora conozco en parte; mas entonces conocoré como soy conocido” 86 Aqui a referência não declarada é a uma das obras basilares da tradição ocultista, a Tábua Esmeraldina, atribuída a Hermes Trismegisto, segundo a qual o microcosmo é espelho do macrocosmo, “o que ocorre em baixo, ocorre em cima”. 87 A tradução da Bíblia de Jerusalém é a seguinte: “Ago ra vem os em es pel ho e de m anei ra confus a, m as , depoi s , verem os face a face. Agora o m eu conheci m ent o é li m i t ado, m as depoi s , conhecer ei com o s ou conheci do.” 213 Borges contrapõe as ênfases diferentes de cada autor. Afirma que Torres Amat atribui o versículo à nossa visão da divindade, enquanto Cipriano de Valera e León Bloy à nossa visão geral. O passo seguinte é identificar, neste último, diferentes interpretações desse versículo de São Paulo, cada uma delas traduzida por Borges. A primeira, de junho de 1894: La sentencia de San Pablo (...) seria una claraboya para sumergirse el el Abismo verdadero, que es el alma del hombre. La aterradora inmensidad de los abismos del firmamento es una ilusión, un reflejo exterior de nuestros abismos, percebidos ‘en un espejo’. Debemos invertir nuestros ojos y ejercer una astronomia sublime en el infinito de nuestros corazones, por los que Dios quiso morir... Si vemos la Via Láctea, es porque existe verdaderamente en nuestra alma. Já se pode perceber que o que está sendo discutida é a concepção de leitura e representação. É necessário, no entanto, um pouco de paciência, e, embora sejam seis no total, vale a pena ir acompanhando as nuances de concepções e como Borges conduz ao desfecho do ensaio. A segunda, de novembro de 1894 (mesmo ano da anterior): 214 Recuerdo una de mis ideas más antíguas. El Zar es el jefe y el padre espiritual de ciento cincuenta millones de hombres. Atroz responsabilidad que sólo es aparente. Quizá no es responsable, ante Dios, sino de unos pocos seres humanos. Si los pobres de su imperio están oprimidos durante su reinado, si de esse reinado resultan catástrofes inmensas ¿quién sabe si el sirviente encargado de lustrarle las botas no es el verdadero y solo culpable ? En las disposiciones misteriosas de la Profundidad ¿quién es de veras Zar, quién es rey, quién puede jactarse de ser un mero sirviente ? A terceira, uma carta escrita em dezembro (mesmo ano, 1894): Todo es símbolo, hasta el dolor más desgarrador. Somos durmientes que gritan en el sueño. No sabemos si tal cosa que nos aflige no es el principio secreto de nuestra alegría ulterior. Vemos ahora, afirma San Pablo, per speculum in aenigmate, literalmente: “en enigma por medio de un espejo” y no veremos de outro modo hasta el advenimiento de Aquel que está todo en llamas y que debe enseñarnos todas las cosas. A quarta, de maio de 1904: Per speculum in aenigmate, dice San Pablo. Vemos todas las cosas al revés. Cuando creemos dar, ricibimos, etc. Entonces (me dice una querida alma angustiada) nosotros estamos en el cielo y Dios sufre en la tierra. A quinta, de maio de 1908: 215 Aterradora idea de Juana, acerca del texto Per speculum. Los goces de este mundo serían los tormentos del infierno, vistos al revés, en un espejo. A sexta e última, de maio de 1912. Retirado das páginas de L’Ame de Napoleon, livro com o propósito de decifrar o símbolo Napoleon, considerado precursor de outro herói, oculto no porvir (homem e simbólico também). Borges cita duas passagens: Cada hombre está en la tierra para simbolizar algo que ignora y para realizar una partícula, o una montaña, de los materiales invisibles que servirán para edificar la Ciudad de Dios. No hay en la tierra un ser humano capaz de declarar quién es com certidumbre. Nadie sabe qué ha venido a hacer a este mundo, a qué corresponden sus actos, sus sentimientos sus ideas, ni cuál es su nombre verdadero, su imperecedero Nombre en registro de la Luz... La historia es un inmenso texto litúrgico donde las iotas y los puntos no valen menos que los versículos o capítulos integros, pero la importancia de unos y de otros es indeterminable y está profundamente escondida. 216 Borges interpreta, em seguida, que Bloy limitou-se a seguir princípios que parecem razoáveis enquanto doutrina cristã, apenas estendendo a toda a criação o método que os cabalistas judeus aplicaram à Escritura. Um livro escrito pelo Espírito Santo não haveria de comportar nada que fosse acidental, nenhuma colaboração do azar. Caberia, desta perspectiva, somar letras, fazer combinações, buscar minúcias de sentidos potencialmente ocultos. Borges, no penúltimo parágrafo, apresenta sua ironia implacável e sutil. Considera que o mundo não tenha sentido, sendo bem menos provável que tenha dois ou três, mas que o método de Bloy satisfaz à dignidade “del Dios intelectual de los teólogos”. O parágrafo final é o momento em que Borges oferece a chave do jogo que vinha propondo ao leitor. Vale a pena saboreá-lo todo: Ningún hombre sabe quién es, afirmó León Bloy. Nadie como él para ilustrar esa ignorancia íntima. Se creía un católico riguroso y fue un continuador de los cabalistas, un hermano secreto de Swedenborg y de Blake: heresiarcas. Este ensaio (que também se comporta como um conto) pode ser considerado como uma discussão sobre a tarefa do leitor diante de um texto. No caso, um fragmento bíblico, mas o que esteve envolvido 217 em termos de processos interpretativos aqui, ocorre igualmente com qualquer texto. Há inicialmente um modelo de leitura a ser aplicado ao texto: a de que a Sagrada Escritura tem, além de um sentido literal, um valor simbólico. Tal modelo – do ponto de vista da AD pode-se considerar os conceitos de jogo de imagens (Pêcheux, 1969) e o de interdiscurso, pelo menos – implica aplicar sobre um sentido literal um sentido alegórico, moral ou anagógico, como foi visto no capítulo 3 º . Borges silencia sobre os dois outros sentidos (moral e anagógico), como se não os conhecesse, o que se tratando de Borges, num assunto que era uma de suas obsessões, é pouco provável. Há, portanto, a presunção de um silêncio por ausência (consciente ou inconscientemente exercido). Supondo que qualquer um deles pudesse ser aplicado sem alterar o foco central da discussão pretendida por Borges, pode-se escolher o alegórico, o que será econômico, pois exigirá menos conhecimento teológico para desenvolver a argumentação. Se existe um texto (Sagrada Escritura) que afirma que nosso conhecimento atual é parcial, incompleto e obscuro como o de um espelho e que somente quando nos encontrarmos com a divindade é que, face a face com Deus, seremos capazes de conhecer o todo, assim como somos conhecidos por Ele, temos de aplicar, segundo o modelo de leitura acima, um sentido literal e um sentido alegórico. 218 Mas, se o trecho é uma alegoria, o que seria o “literal de uma alegoria” e a “alegoria de uma alegoria” ? Para simplificar pode-se considerar que o literal de uma alegoria é considerá-la como alegoria mesma. Isso implica, é claro, a necessidade de decifrar uma alegoria e supor que tal decifração seja já o sentido literal (parece paradoxal). O procedimento seguinte é mais espinhoso. Alegoria de uma alegoria seria uma não alegoria ? Ou uma alegoria atrás de outra alegoria ? Se se pensar nas redes de memória e nas Formações Discursivas, ocorrerão algumas opções mais definidas. Dentro de uma tradição hermetista, a segunda possibilidade é que seria a válida. Mas até que ponto o catolicismo permitiria, em sua FD (“o que pode e deve ser dito”), tal leitura ? Borges dá a resposta na última linha do texto: “herege”. Bloy filiou-se, na verdade, numa tradição hermetista. Entretanto, se for observado atentamente o texto de Borges, vamos verificar que o deslocamento de sentidos de uma FD para a outra foi gradual, uma reconfiguração constante, silenciadora, em cada momento, de aspectos autorizados por um tipo de discurso que foram se ausentando ou se sobrepondo a ponto de migrarem para outro discurso, que do ponto de vista do inicial, é não autorizado. Borges espicaça com ironia sem fim: Ninguém como Bloy para ilustrar essa ignorância íntima- que cada homem tem de não saber que é, já que pensava estar sendo um católico rigoroso e estava já irmanado com cabalistas e hereges (para a ortodoxia, são sinônimos). 219 Como este processo se deu, considerando Bloy leitor do texto bíblico ? Seguindo a tradição hermetista, será necessário desmontar a alegoria num primeiro nível e posteriormente em outros. É a trajetória que Bloy faz nas seis menções que Borges cita. O grande complicador é a alegoria do espelho. É característica do espelho a inversão ou deformação da imagem real. Os destaques de Borges nas traduções de Torres Amat e Cipriano de Valera (que tem visão coincidente com León Bloy) são um primeiro indício. Enquanto para Torres Amat a ênfase era nas palavras e pronomes que designavam a divindade, para Cipriano de Valera (e León Bloy, por extensão), era no verbo “ver”. Assim, como aponta Borges, o primeiro considerava que o sentido literal do versículo se aplicava somente à maneira como se concebia a divindade. Já Bloy, assim como Cipriano, utilizaram a extensão máxima do verbo “ver” consideraram que o sentido literal equivaleria a uma proposição do tipo “nossos consciência sentidos depende estão sempre daqueles, ela errados e, como também está nossa enganada. Conclusão: não sabemos o que é o mundo, quem é a divindade e quem somos.” A aplicação de um sentido alegórico sobre esta proposição implica, em primeiro lugar, considerar a metáfora do espelho. Do ponto de vista de Bloy, se o espelho inverte a imagem real, e não conhecemos nenhuma imagem real, verdadeira, é porque vemos invertido. 220 Na primeira interpretação de Bloy esta inversão é atribuída relativamente à alma (na verdade, temos aqui o sentido anagógico) e à extensão do olhar. É de se perguntar que motivação simbólica fez Bloy relacionar a extensão do olhar com o sentido de “abismo” e, mais do que isso, aplicar um signo que normalmente é usado para expressar profundidade para relacioná-lo à alma, categoria normalmente associada à elevação, à semelhança com a divindade etc. Existe um ponto comum, silenciado por ausência, que é memória discursiva (inclusive icônica) do inferno. Bloy assume uma alma já condenada por seu desconhecimento. Outros poderiam ver uma simples inversão da extensão do céu, firmamento. No entanto, este elemento, sozinho, não seria suficiente para associar abismo com alma. Poderia haver uma interpretação que, aplicando a idéia de inversão às aparências do mundo tal qual o vemos postulasse que se vemos um firmamento que parece infinito, se vemos a Via Láctea, e se tudo está invertido, não estamos vendo uma elevação, mas sim um abismo. Abismo, no imaginário cristão, remete a inferno. Utilizam-se palavras com sentidos preconstruídos tais como “Queda dos Anjos Rebeldes”, “Satanás precipitou-se no abismo” e outras semelhantes. A associação com a alma é construída, como toda metáfora, sobre um elemento silenciado. Neste caso, uma oposição entre mundo material e mundo espiritual. Se olho para o céu e vejo um céu material e tudo isso é um grande engano especular, então não basta 221 considerar que a altura é abismo. O que parece ser material é espiritual. Então firmamento já não é firmamento, é uma alegoria invertida de alma. E se o firmamento parece elevado e se não é nem firmamento nem elevação, só pode ser abismo e alma. O que fica silenciado e que implica exatamente o quanto o leitor de um texto borgeano como esse pode ser um leitor participante, segundo o que Monegal nomeia como sendo a “estética de leitor” em Borges, é o que se torna necessário em termos de mecanismos interdiscursivos para que haja essa leitura participante e produtora de sentidos. Há que ser um leitor forçosamente enciclopédico, tal como Borges. Nesta estratégia (estratagema seria talvez uma palavra mais indicada), Borges parece espelhar-se no leitor. Isso, no entanto, pode ser visto de outra maneira. Lembremo-nos que o espelho inverte. Não é um espelhamento. Borges não olha para o espelho como a criança, no estádio do espelho de Lacan. Borges é o adulto que segura a criança e que impõe seu olhar. Um olhar protegido porque já criou um olhar que os outros lhe atribuíram e que (teme sempre) sabe que uma hora ou outra aparecerá na superfície do espelho mostrando seres e formas e cores muito diferentes das que estão deste lado da superfície especular, como é o caso do texto “Animais dos Espelhos” entre tantos outros textos borgeanos. É o leitor Borges, conhecedor habilidoso do Latim, da história européia, de teologias diversas (das ortodoxias às heresias mais 222 extremas), da tradição hermética, da hermenêutica, mas, sobretudo, dos fundamentos fenomenológicos da produção dos sentidos. É esse o grau de exigência para que o leitor se habilite a produzir sentidos. Talvez por isso mesmo Borges reconheça que bons leitores são cisnes ainda mais raros que bons autores. É, por outro lado, o prazer da descoberta intertextos que dos labirintos Borges quer enquanto jogos compartilhar com de memória, os leitores de que estiverem aptos para cumprirem a missão de Teseu. Só que neste caso Ariadne não acompanha. Seu fio está tecido juntamente com cada fibra do texto que é o próprio labirinto onde o Minotauro se encontra, tal como uma esfinge, prestes a devorar quem não o decifrar. Espera-se desse leitor, fundamentalmente, que seja um leitor de silêncios, sejam por excesso, nos falseamentos que só podem ser descobertos como tais por comparação a outros textos que devem ser conhecidos e/ou recuperados no interdiscurso, sejam por ausência, nas informações, intertextos ou esquecimentos que devem ser processados. A chave hermética não é mencionada aqui. A identidade entre microcosmo e macrocosmo, característica central de leitura desta tradição, o que estabelece analogias, simpatias e interpretações por índices, não é mencionada. Ela é conhecida por Borges, pois ele trata de assuntos relacionados a tais tradições, como é o caso da cabala e menciona aspectos como esse. Independente de essa estratégia ser 223 consciente ou não, implica que o leitor deve ser capaz de interagir com este silêncio para que possa adequadamente compreender a angústia infrutífera de León Bloy, que metaforiza o gênero humano. Na segunda interpretação de Bloy, a inversão alegórica do espelho se aplica à hierarquia. Há aqui outros textos ocultos, da tradição cristã: “Muitos dos primeiros serão os últimos, e muitos dos últimos, primeiros.” (Mt 19,30); “Ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o vosso servo.” (Mt. 20, 26-27);“Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado .” (Lc 18,14) 8 8 . A inversão da responsabilidade pela opressão dos pobres ou pelas catástrofes é atribuída ao servo, encarregado de lustrar as botas do soberano. É típico da visão cristã. Dessa perspectiva, a incapacidade de ver as coisas como realmente são invertem a verdadeira hierarquia. Assim, se os últimos serão os primeiros, se o próprio Filho de Deus veio à terra como pobre para ser morto e servir a todos, é isso que a inversão especular de nossa obscuridade não nos permite ver. Note-se novamente um quadro de referências que é silenciado. Mesmo que se assuma que foi colocado como pressuposto (o leitor deve – é útil ler-se o verbo dever nos dois sentidos – saber isso), 88 Outro trecho, talvez o mais representativo, seja o seguinte: “Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz !.” (Fil. 2, 6-7) 224 essas pressuposição nos permite identificar quais representações a função-autor assume como princípio unificador do texto. Quase um antiautor, já que exerce o papel unificador do discurso na textualidade por uma anti-unidade, um texto perfurado de silêncios, convidando um leitor que tem desenvolver estratégias unificadores ele também. Mas, para isso, esse leitor tem que também ser Borges, assim como quando ele aponta que quem lê Shakespeare é Shakespeare. O que Borges silencia é o estatuto do verbo ler. Não basta estar diante do texto de Shakespeare (ou, afinal, do próprio Borges, que é o que nos interessa mais diretamente nesta discussão). O já-dito do verbo “ler” no contexto borgeano, significa ter de se constituir proximamente como o sujeito Borges para poder exercer o princípio unificador da função-autor, convertendo-se de sujeito em autor, e neste caso, em leitor-autor. A quarta interpretação está baseada no mesmo princípio, tomando a alegoria em relação à hierarquia. A diferença, de grau, no entanto, é decisiva. Já não há uma inversão hierárquica entre atribuições humanas, mas entre o ser humano e a divindade. Este é um momento das leituras feitas por Bloy em que se caracteriza a transposição de uma FD para outra. Há aqui uma ruptura para com as leituras que podem e devem ser praticadas. Há uma extrapolação para uma exterioridade transgressora das memórias possíveis dentro de uma interpretação cristã, principalmente católica. Afinal, já que se tem que alegorizar a alegoria, Bloy vai até as últimas conseqüências 225 e intepreta que aquilo que vemos como sendo a divindade na verdade somos nós e vice-versa 8 9 . Desta perspectiva (também relativamente silenciada), nós estamos no céu (entenda-se, felizes) e Deus sofre na terra (!). A partir deste momento, Bloy insere-se plenamente no discurso da heresia (ou da loucura). Borges como narrador habilidoso se exime de descrever as etapas e, pela gradação, expõe ao leitor o patético. Este trecho exige menos conhecimento teológico do leitor, pois fica evidente que uma inversão de hierarquia desta natureza rompe inteiramente com uma tradição que pretenda valorizar a divindade como ser absoluto. Para entender-se mais detalhadamente essa passagem para a exterioridade exilatória de uma FD cumpre considerar a terceira interpretação de Bloy. Estruturalmente parece mais simples. É, verdade uma conclusão, deduzida das premissas na anteriores, correspondentes a cada uma das etapas interpretativas do versículo de São Paulo. Resume-se a considerar que, se estamos enganados por uma inversão, tudo o que vemos é alegórico e portanto temos que assumir que tudo é símbolo de tudo. É esse axioma que permite, na interpretação seguinte, chegar ao patético de considerar que a divindade sofre na terra e nós gozamos a glória divina (como Deus ? – será que somos todos um único ser ?) no céu 9 0 . 89 Talvez Umberto Eco apreciasse este trecho como uma metáfora de exageros interpretativos de alguns desconstrutivistas. 90 Cabe lembrar que Borges usou esta reductio ad absurdum, ligada a temas teológico-religiosos em pelo menos três momentos mais representativos. Nos textos “Evangelio según Marcos”, “Tres versiones de Judas” e “Los teologos”. 226 Na quinta, Bloy, através de Juana (quem ? Sóror Juana, mística ? – há aqui outro silêncio constrangedor para o leitor do texto), aplica a inversão especular às sensações. Aquilo que consideramos gozos, são os tormentos do inferno, vistos ao contrário. Mas se estamos vivendo os tormentos do inferno, já estamos condenados, já que para a teologia cristã em geral, o inferno é irrecorrível, significa a perda definitiva da salvação. Não são mencionados os sofrimentos terrenos. Pela inversão, seriam os gozos celestes. Mas há que se considerar um problema interpretativo que não se apresenta claramente, porque está assentado em silêncios tanto 227 por excesso quanto por ausência. A falta total de referência à oposição de céu (é terra ou inferno ?) na interpretação dessa alegoria, recobre por excesso interpretações heresíacas. Se se supõe uma oposição céu/inferno (como a que está subjacente na interpretação n.º 1), então quem se encontra no inferno, condenado aos tormentos eternos da danação da alma é que realmente está no céu e quem está no céu estaria no inferno. O problema é que tal interpretação exclui a referência textual aos gozos terrenos. Aqui parece haver uma comparação bastante complexa de três termos e não de dois. Uma solução interpretativa seria considerar que céu (elemento silenciado da tricotomia) alinha-se a inferno e à terra. Assim, os gozos terrenos são infernais porque há a oposição gozo/tormento e tormento é do campo do inferno. Pela especularidade, inverte-se e o que é tormento passa a ser gozo e, assim, quem sofre os tormentos infernais, sejam na terra ou no inferno estão na verdade no céu. Essa seria uma interpretação extremada do princípio cristão de “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”. As conseqüências últimas dessa concepção – que fariam para a Inquisição a fogueira parecer um prêmio – é o estatuto da divindade. Se o gozo terreno (e, por extensão o celeste, é o tormento infernal invertido, e se a divindade participa do gozo celeste (ou, mais propriamente, ele emana d’Ela) então a inversão é que a divindade seria demoníaca e que os seres dos infernos seriam divinos 228 (!). Pelo mesmo princípio, os tiranos e piores homens seriam os mais virtuosos, os incrédulos seriam os crentes mais sinceros e assim por diante. A sexta e última interpretação de Bloy é a dissolução panteísta decorrente das conseqüências da terceira interpretação. Nesse relativismo total, se tudo é símbolo de tudo, então nada é símbolo de nada e já não se é possível estabelecer limites entre quem sou Eu, quem é o Outro. Nisso, os dois trechos citados por Borges convergem. A função de cada homem pode ser um grão de poeira, uma montanha ou “os materiais invisíveis para edificar a Cidade de Deus”. Interessante alusão à Cidade de Deus, de Santo Agostinho. Faz pensar, a partir da inversão da interpretação n.º 5, na conversão do santo. Se tudo é especular, ele era santo quanto ímpio e, agora, convertido e santificado, é pecador extremado. Borges coloca a referência à Cidade de Deus, sem nenhuma manifestação. A frase final citada por Borges, na sexta interpretação, é emblemática. É oportuno repetir a citação: La historia es un inmenso texto litúrgico donde las iotas y los puntos no valen menos que los versículos o capítulos integros, pero la importancia de unos y de otros es indeterminable y está profundamente escondida. 229 A sacralização da história e do mundo expressa na primeira parte do trecho vale pouco em função de seu término. Afinal, já que a importância de cada símbolo, sua dimensão é indeterminável, e já que está profundamente escondida, tão escondida a ponto de ser insondável, estamos condenados à solidão total da falta de sentido. Somos incapazes de conhecer. Este texto de Borges é particularmente complexo. Há um sujeito do discurso, inscrito num gênero literário, manifestando-se como princípio unificador, atribuindo coerência a uma textualidade que se constrói sobre um narrador que alterna os papéis de relator de outras vozes e de intérprete delas. Como narrador, voz representativa do ponto de vista assumido pelo autor enquanto função, é como se esse Borges personagem-narrador ou não soubesse das informações essenciais para que o leitor possa participar da produção dos sentidos preconizada por um outro Borges narrador, em outras materialidades textuais, representando outro Borges função-autor, que nos diz que é o leitor que dá sentido à obra. Um leitor tipicamente borgeano, depois dessa “corrida de obstáculos” se colocaria a seguinte pergunta: por um acaso este texto não seria, em um dos seus múltiplos sentidos, uma alegoria dos modos de leitura e dos limites da interpretação ? Do labirinto sem paredes em que estão confinados autor e leitor ? 230 Um analista do discurso faria talvez uma apreciação de que, mais uma vez, Borges performativamente trabalha com o movimento dos sentidos. São especulares, como um jogo que o leitor só apreende se dele participa. Esses sentidos em deslocamento, sempre trocando de posições, movem-se impregnados de silêncios, ora pelas palavras, ora pelo que não é dito. 231 CONSIDERAÇÕES FINAIS Sentimos o campo, o verdor, o silêncio. Já o fato de haver uma palavra para designar o silêncio parece-me uma criação estética. Jorge Luís Borges (Sete Noites: A poesia) Nunca dizer demais. Nunca, nunca, dizer tudo. Já fiz essa grande descoberta. Monteiro Lobato, 1903 Chegar a um final de trabalho é sempre uma demarcação provisória e arbitrária. Faz parte da delimitação incessante entre o que foi dito através das palavras e igualmente silenciado através delas, bem como aquilo que foi dito através do silêncio e apagado por intermédio dele (e por intermédio das palavras). Mais do que isso, faz-nos sentir que palavra e silêncio (e também cada uma delas e a conjunção de ambas) são duas instâncias heterogêneas. 232 No início desta tese, foram estabelecidos objetivos, que eram: 1) Identificar e discutir a existência de indícios (internos e/ou externos ao texto) que remetam o leitor para o silêncio; 2) Proceder a uma breve caracterização desses indícios; 3) Dentro do universo de textos selecionados da produção borgeana, apontar algumas especificidades do texto literário escrito enquanto configuração específica de silêncio(s) como procedimentos de instauração de heterogeneidade mostrada. Os indícios analisados durante o trabalho relacionam-se, como se espera ter ocorrido, primeiramente à justificativa da constituvidade do silêncio para, em seguida, abordar como o silêncio emerge na superfície do discurso enquanto procedimento de heterogeneidade mostrada. No plano da constitutividade, somente é possível, do ponto de vista metodológico, conceber o silêncio em vista de outros sentidos que poderiam ser enunciados. É na alteridade desses sentidos que se pensa o silêncio, o que Borges realiza com a maestria de um jogo refinado e de uma criação estética sutil e maliciosa. No plano da heterogeneidade mostrada, pode-se entender que a proliferação dos jogos e armadilhas da estética desenvolvida 233 por Jorge Luís Borges, apresentam, no mínimo, o silêncio enquanto excesso. No decorrer da produção borgeana, da qual somente uma pequena parte foi analisada aqui, o leitor é sempre levado a este jogo ambíguo entre ausência e excesso. Peça fundamental na estética de Borges, o leitor, no entanto, torna-se refém de um autor que, tal como no modelo de Schinelo & Villarta-Neder (2000), também é leitor. Este leitor é levado ao silêncio não só no sentido de que é colocado diante de uma virtualidade de sentidos em face dos quais tem de exercer complexas escolhas discursivas. Ele, igualmente, é conduzido ao ocultamento e/ou construídos do à contradição. discurso Ao borgeano primeiro, são sempre porque os pré- labirínticos; à contradição, porque são caleidoscópicos: o que parece ser engodo é engodo mesmo, mas precisa ser desvelado enquanto tal. O leitor precisa descobrir que foi enganado para fruir o truque. É nesse espaço dialético que o silêncio significa, sem deixar de ser silêncio. Ao mesmo tempo, cumpre considerar a relação entre o jogo apresentado ao leitor por Borges e os esquecimentos discutidos por Pêcheux. Borges ao mesmo tempo desmistifica o espaço de autoria enquanto fonte e origem do sentido. Para a estética borgeana não só os textos, mas o próprio Universo é uma gigantesca paráfrase. Mas, contraditoriamente, é este mesmo autor que supervaloriza o leitor, que espera dele a cumplicidade nos jogos, no engodo, na construção de um labirinto especular onde este leitor se reconheça como autor, 234 seja pela inversão da imagem, seja pela visualização lacaniana tal como no Estádio do Espelho. Borges, autor , dialeticamente também fragiliza o esquecimento número 2. Assim como no controle necessário do jogo discursivo do humor, o sujeito-autor borgeano só é possível mediante uma urdidura de filigranas cinzeladas por um autor. Marx & Engels (1989:35), no texto “Ideologia Alemã”, ao comentarem as condições reais e materiais da produção e da criação de diferentes consciências, afirmam que “(...) indivíduos criam uns aos outros, no sentido físico e moral (...)”. Por razões muito diferentes, o texto borgeano faz o mesmo. Ao fazê-lo, paradoxalmente, torna pertinente essa associação com posições marxistas que estão na base da AD francesa: estabelecido esse dinamismo de posições entre autor e leitor, Borges fornece uma oportunidade valiosa para ser questionada a antihistoricidade da ideologia como um todo apontada por Althusser . São nossas opções históricas enquanto sujeitos únicos e insubstituíveis (estes dois termos no sentido althusseriano) que nos permitem nos constituirmos ou não como esses autores-leitores indispensáveis para interagirem com o texto borgeano. Sem a consciência do jogo, tal constituição não se dá. Se por um lado isso não representa um grande controle, por outro representa algum. Quanto ao segundo objetivo proposto, que seria a caracterização desses indícios de silêncio, pôde-se ver que eles são de naturezas distintas. De um lado, da constitutividade, somente são 235 possíveis pela presença do Outro, pela alteridade. São os discursos não previstos ou excluídos pela interdição fundadora das FDs (o que se pode ou deve dizer, o que não se pode, não se deve dizer; o que se pode ou deve silenciar, o que não se pode ou não se deve silenciar) em contraposição aos discursos produzidos que permitem rastrear as penumbras dos silêncios. De outro lado, os indícios de silêncio são interpretáveis a partir de estratégias textuais e discursivas que se congregam na modalização autonímica. Há, neste caso, modalizações autonímicas referentes ao dizer (seja pela retificação, seja pela dificuldade em dizer) e ao silenciar (por exemplo, no poema “El espejo”, quando o enunciador explicita: “ A nadie lo dije ; el niño es timido.” – destaque nosso). Isso apresenta uma distribuição entre a materialidade da língua e as instâncias mais externas e abstratas, subjacentes à constitutividade. Sob o ponto de vista da AD francesa, pode-se conceber que no funcionamento do interdiscurso, a maneira como os pré-construídos são trazidos para cada FD manifesta uma materialidade do silêncio. Os pré-construídos interditados são preenchidos pelo silêncio , tais como, analogicamente, os bens e necessidades interditados nas relações de produção. O silêncio como excesso também pode ser relacionado à materialidade, na medida em que materializa, no nível da ideologia, um desvio do olhar das reais necessidades e da forma como as relações entre as forças produtivas e as de dominação estabelecem e mantém o funcionamento da sociedade. 236 Há que se considerar ainda a materialidade da língua. Se, como foi exposto no decorrer do trabalho, não é somente a ausência da palavra que constitui o silêncio , mas a própria palavra, como excesso, também representa uma de suas possibilidades, haverá uma materialidade dessas palavras que, organizadas formalmente de uma maneira e não de outra, se constituirão como silêncio. Quanto à escrita, especificamente, alguns autores, como Orlandi (1992), entendem que ela é um espaço privilegiado para o silêncio. A análise desenvolvida no decorrer desta tese apela para uma concepção mais cautelosa. Uma escrita menos imbricada por outras linguagens facilita metodologicamente a discussão sobre seus silêncios. Pensar numa hegemonia da escrita neste aspecto pode representar, entre outras implicações, um silêncio sobre as condições de funcionamento da fala. Obviamente este silêncio existe, mas, do ponto de vista deste trabalho, preferiu-se assumir tal silêncio como segredo, em função do quanto ainda não se sabe, no nível do conhecimento acadêmico, a respeito de determinadas condições da fala. É necessário, no entanto, que não se deixe enganar com facilidade: uma página de jornal, com a convivência de diversas linguagens, entre elas a escrita, nos colocaria em situação muito próxima à da fala, quanto à possibilidade de análise do silêncio . Num texto multimídia, o desafio avoluma-se exponencialmente. O que concede à escrita mais linear do ponto de vista da diagramação e do 237 uso dos grafemas analisada aqui (os textos borgeanos) alguma operacionalidade é que ela incorre em um cenário contextual mais reduzido do que a fala, tendo o autor de um texto desta natureza, principalmente quando escrito em prosa, que se utilizar de uma contextualização mais cuidadosa, através quase que exclusivamente das próprias palavras. Nesse final provisório, a metáfora que acompanhou o movimento dos sentidos, em função do próprio movimento dos sentidos aqui trabalhados, transmuta-se. Para a Física, o ângulo de incidência da luz é sempre igual ao ângulo de reflexão. Usamos o espelho, a luz, a visão e a reflexão como metáfora. No entanto, tratando-se do movimento dos sentidos, talvez coubesse uma metáfora mais rica: diferentemente de um único espelho , seria mais apropriado pensar num caleidoscópio. Assim, a interpenetração entre as diferentes FDs, as retomadas e (de)negações de pré-construídos no interior do interdiscurso, o jogo contínuo e complementar entre silêncios e palavras, palavras e palavras e entre silêncios e silêncios pode ser vislumbrado de uma maneira mais rica. Nos inúmeros espelhos virtuais criados no interior de um caleidoscópio, podemos visualizar simetrias infinitas e zonas e regiões ambíguas 9 1 , numa relação dialógica entre as imagens. Tal como os labirintos borgeanos. 91 Esses dois últimos termos são tomados da própria Física. 238 Culturalmente, estamos habituados a manter momentos de silêncio em circunstâncias graves, nas quais a construção de um discurso através das palavras se faz inconveniente por constituir-se, talvez, frágil diante da perplexidade, do mistério ou da comoção. O que ignoramos sistematicamente na nossa tradição analítica é que esses momentos silenciosos são somente uma parte da constituição do discurso. Antes de mais nada, eles são também discursos, em outras linguagens que sobrepõem a palavra. Para Borges, cada palavra é uma criação estética. Entenda-se esta estética como uma infinita intertextualidade, cuja trama constitui o que entendemos por universo. Presos pela impossibilidade de conhecermos o mundo a não ser mediados pelas nossas próprias concepções sobre ele, chegamos no olhar-paradentro-de-si borgeano, a uma radical desconstrução dos limites entre a literatura e o conhecimento: para Borges, a metafísica é um ramo da literatura fantástica. Afirmação extremamente polissêmica, se nos debruçarmos atentamente para a noção de fantástico. Para Todorov , esse instante instável de revelação e de multiplicidade de sentidos que instiga o leitor a construir um sentido que dê o fechamento necessário (mas provisório) do texto e do discurso. Sendo assim, a metafísica não é um ramo da literatura fantástica apenas porque chega a tramas cheias de perplexidade, mas também porque exige de nós, como leitores, essa atitude imprescindível para a estética borgeana que é a do leitor que 239 participa, mesmo sem saber exatamente a sua função (“a máquina do mundo é bastante complexa para a simplicidade dos homens” – Inferno I, 32 in El Hacedor). Tal como o tigre encarcerado existe e vive seu cativeiro para dar dependendo da tradução) ao a palavra poema tigre (ou leopardo, de Dante, este último existe para ser uma referência no texto de Borges , que também a é em outros tantos textos. Tal concepção permite estabelecer uma relação com conceitos tão caros ao momento histórico-tecnológico que estamos vivendo, tais como os de hipertexto, mundo virtual. O final do texto de Pierre Levy (2002), “Nós somos o texto”, dá uma idéia dessa similaridade: Por intermédio dos espaços virtuais que os exprimiriam, os coletivos humanos se jogariam a uma escritura abundante, a uma leitura inventiva deles mesmos e de seus mundos. Como certos manifestantes desse fim de século gritaram nas ruas “Nós somos o povo”, poderemos então pronunciar uma frase um pouco bizarra, mas que ressoará de todo seu sentido quando nossos corpos de saber habitarem o cyberspace: “Nós somos o texto.” E nós seremos um povo tanto mais livre quanto mais nós formos um texto vivo. A diferença é o tom mais politizadamente explícito no texto de Levy, mas fica um laço comum. Há uma escritura que nos faz textos, ou seja, que nos coloca num grau de similitude com as outras instâncias do universo com as quais convivemos. Não importa 240 realmente discutir aqui o que elas efetivamente são, uma vez que a nossa mediação textualização, de através do discurso discursivização. tornará Sem esse tudo passível de amplo quadro de referências textuais, perdemos nossa identidade, labirinto que funde nossas experiências numa tentativa de unidade, que, da perspectiva estética de Borges, só pode ser textual. Isso se insinua no parágrafo final do Epílogo de El Hacedor: Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo. A lo largo de los años puebla un espacio com imágenes de provincias, de reinos, de montañas, de bahias, de naves, de islas, de peces, de habitaciones, de instrumentos, de astros, de caballos y de personas. Poco antes de morir, descubre que ese paciente laberinto de lineas traza la imagen de su cara. (1989: 854) A obra borgeana articula silêncios como qualquer outro texto. O que ela tem de peculiar é um requinte de jogo através de espelhos e labirintos (entre outros símbolos), de tal forma que induz o leitor a silenciar, de uma forma urdida pelo autor (leitor do processo a ser desencadeado multiplicação pelo de leitor empírico). obstáculos, Esse armadilhas, embuste detalhes dá-se pela textuais que somente são compreendidos e visualizados no manejo constante desse amplo quadro de referências. Se num texto que não tenha uma intenção estética consciente haverá redirecionamentos feitos pelo leitor , quando este ignora e 241 sobrepõe sinais e indícios expressos na superfície do texto ou implicitados nas estratégias de construção textual, o texto borgeano, com sua estética radicalmente intertextual, multiplica ad infinitum esses redirecionamentos. A obra de Borges alude ao universo como infinito 9 2 não porque o represente perfeitamente. Esta utopia da representação exata das coisas achas-se ridicularizada em outro texto de El Hacedor que se chama “Del rigor en la ciencia” e que é citado por Borges como sendo de Suárez Miranda, de 1658. Tal texto relata a tentativa dos cartógrafos de um Império - indefinido no tempo e no espaço - de fazer um mapa que coincidisse exatamente com os lugares que representa. O texto diz que as gerações seguintes perceberam a inutilidade desses mapas e os abandonaram. O final deixa perceptível a ironia: (...) En los despedazadas Animales y por otra reliquia de 847) desiertos del Oeste perduran Ruinas del Mapa, habitadas por Mendigos; en todo el Pais no hay las Disciplinas Geográficas. (1989: Dessa perspectiva, portanto, qualquer texto (e os de Borges , mais exemplarmente) integra-se nesse ciclo de alusões, imperfeitas sempre, mas interdependentes e complementares. Nesse labirinto 92 Aspecto apontado por Monegal na sua resenha da crítica francesa de Blanchot 242 sem paredes só restam citações, como se conscientiza o antiquário Joseph Cartaphilus, em El inmortal: Cuando se acerca el fin, escribió Cartaphilus, ya no quedan imágenes del recuerdo; sólo quedan palabras. Palabras, palabras despedazadas y mutiladas, palabras de otros, fue la pobre limosna que le dejaron las horas y los siglos. (1989: 544) Os elos desses liames que articulam esse ciclo existem apenas como afinidades reveladas pelo fantástico. Tal como as “semelhanças de família” de Wittgenstein, é inútil procurarmos nelas um único traço definidor, uma unidade que não seja a da perplexidade multifacetada do mundo. Como sinaliza Borges no poema “Las Cosas”, tal perplexidade não será compartilhada pelos objetos do mundo com os quais vivemos ou que nos servem de escravos, essas coisas “Durarán más allá de nuestro olvido: No sabrán nunca que nos hemos ido.” Espera-se que na discussão desenvolvida neste trabalho tenha se evidenciado a noção não de que os sentidos da escrita, particularmente dos textos analisados de Jorge Luís Borges, tenham sido aprisionados ou congelados. Nem que os silêncios daqueles textos tenham sido desvelados pelas palavras deste outro. Enquanto movimento de sentidos, tal como a palavra, o silêncio também é múltiplo. Também participa da ausência e do excesso, processos complementares e constitutivos dos quais o engodo, o autoengano, o jogo e a diferença são elementos fundamentais. 243 Borges, no texto “Los dos reyes y los dos laberintos”, relata o caso de um rei da Babilônia que, para zombar de um rei árabe, coloca-o num labirinto no qual este último fica perdido por toda uma tarde. O rei árabe, como vingança, arrasa Babilônia e, levando o primeiro rei prisioneiro, propõe-se a mostrar outro labirinto: “donde no hay escaleras que subir, ni puertas que forzar, ni fatigosas galerías que recorrer, ni muros que te veden el paso ”. Após três dias de caminhada, abandona o rei de Babilônia no meio do deserto, onde este último morre de sede e de fome. Para usar uma metáfora aproximada, podemos conceber o movimento dos sentidos como esse imenso labirinto onde os silêncios e as palavras criam limites instáveis e em constante mutação. Ele é real, material, como são suas dunas, seus ventos, sua interminável amplidão. Seus limites, porém, movem-se sempre, dinâmicos e desafiadores. Analisá-los exige, mais do que qualquer outra coisa, a disponibilidade para esse movimento nem sempre visível, mas sempre presente. 244 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALIGHIERI, Dante. Epístola a Cangrande della Scala (XIII). In: http://www.fh-augsburg.de/~harsch/augusta.html#it Acesso em janeiro de 2002. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos do Estado. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas/SP, IEL/UNICAMP, n. 19: 25-42, jul/dez. 1990. ISSN 0102-5767 ________________________. Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio. In: ORLANDI, Eni P. (org.) Gestos de Leitura. Da História no Discurso. Campinas/SP: 1994, pp. 253-276. ISBN 85268-0312-3 _______________________. Palavras Incertas. As não-coincidências do dizer. 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ISBN 85-08-03322-2 261 ÍNDICE REMISSIVO E ONOMÁSTICO A Althusser............................................................................................................................................................. 74, 200, 235 apagamento............................................................................................................................................................... 133, 138 Apagamento(s)................................................................................... 6, 27, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 44, 49, 67, 100, 169, 180 Authier-Revuz........................................................................................ 15, 24, 27, 31, 32, 35, 37, 38, 41, 42, 44, 57, 60, 70 Autor..... 10, 15, 16, 18, 34, 37, 63, 66, 69, 70, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 111, 115, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 154, 155, 157, 158, 159, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 208, 209, 210, 234, 235, 238, 241, 248 B Barthes........................................................................................................................................................................ 32, 106 Blanchot................................................................................................................................... 63, 64, 65, 66, 67, 69, 76, 242 Borges..3, 5, 16, 17, 18, 19, 62, 63, 64, 65, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 82, 87, 88, 93, 94, 99, 100, 107, 116, 117, 119, 121, 122, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 149, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 161, 163, 173, 174, 189, 191, 199, 202, 207, 208, 209, 211, 232, 233, 234, 239, 240, 241, 242, 243, 244 C Courtine................................................................................................................................................................ 24, 44, 169 Courtine & Marandin.......................................................................................................................................................... 34 D Discurso.6, 11, 14, 16, 22, 27, 28, 33, 34, 35, 36, 41, 42, 43, 48, 57, 59, 60, 74, 75, 82, 89, 93, 95, 114, 121, 126, 170, 182, 183, 195, 196, 198, 200, 208, 210, 211, 233, 234, 239, 241, 248, 255, 259 Ducrot................................................................................................................................................................... 25, 26, 104 E Eco.......14, 20, 59, 60, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 121, 122 Eco, Umberto............................................................................................................................................................ 120, 226 Elliot............................................................................................................................................................................. 71, 72 Espelho...... 16, 39, 40, 42, 45, 46, 48, 49, 58, 65, 67, 161, 167, 168, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 188, 189, 190, 192, 193, 194, 196, 197, 238, 249, 253, 261, 266, 267 F Fiorin............................................................................................................................................................................ 41, 42 Formações....................................................................................................................................................... 24, 55, 57, 200 Formações.............................................................................................................................................................................. discursivas................................................................................................................................................ 14, 27, 180, 198 Foucault.................................................................................................. 54, 59, 75, 76, 79, 87, 123, 125, 126, 127, 128, 131 Freud......................................................................................................................................................... 125, 126, 199, 250 G Genette.................................................................................................................................................. 69, 70, 71, 72, 75, 76 Ginzburg........................................................................................................................................................... 202, 204, 206 I Interdiscurso............................................ 29, 34, 35, 36, 44, 60, 127, 169, 170, 180, 183, 186, 190, 198, 200, 204, 236, 238 Iser.................................................................................................................................................................................... 122 J Jakobson........................................................................................................................................................................... 103 L Lacan.............................................................................................. 31, 45, 102, 177, 179, 180, 181, 193, 195, 199, 204, 206 Lajonquiere............................................................................................................................................... 178, 179, 180, 187 Laplantine......................................................................................................................................................................... 184 Leitor..... 6, 12, 18, 27, 59, 60, 63, 68, 70, 71, 72, 82, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 114, 117, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 127, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 150, 154, 156, 157, 158, 159, 175, 188, 191, 195, 208, 209, 210, 233, 234, 235, 239, 241 Lévis-Strauss...................................................................................................................................................................... 96 Levy.................................................................................................................................................................................. 240 M Macherey...................................................................................................................................................................... 74, 75 Maingueneau...................................................................................................................................................................... 34 Marx......................................................................................................................................................................... 125, 235 Merleau-Ponty.................................................................................................................................................................... 21 Monegal...................................................................................... 63, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 87, 141, 149, 154, 157, 159, 242 262 O Ollier................................................................................................................................................................................... 74 Orlandi..................................................................................................................... 15, 20, 21, 28, 36, 37, 38, 127, 196, 237 P Pêcheux.................................................................................... 14, 15, 17, 24, 58, 65, 88, 159, 171, 187, 209, 234, 252, 260 Pessanha............................................................................................................................................................................. 47 Poe...................................................................................................................................................................................... 73 Possenti..................................................................................................................................................................... 200, 211 R Reboul......................................................................................................................................................................... 90, 101 Rey-Debove........................................................................................................................................................................ 35 Ricardou............................................................................................................................................................................. 73 S Schinelo................................................................................................................................................................................ 4 Schinelo & Villarta-Neder........................................................................................................................................ 134, 234 Silêncio6, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 44, 46, 49, 50, 51, 52, 54, 55, 58, 59, 60, 61, 63, 65, 66, 67, 70, 88, 91, 98, 103, 106, 109, 114, 115, 123, 126, 128, 143, 168, 169, 170, 171, 172, 183, 186, 187, 190, 193, 194, 195, 196, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 232, 233, 234, 235, 236, 237, 239, 243, 245, 251, 255, 260, 261 Silêncio................................................................................................................................................................................... ausência.......10, 11, 16, 20, 21, 22, 23, 27, 29, 30, 44, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 112, 115, 126, 143, 168, 169, 175, 186, 190, 193, 194, 196, 208, 209, 234, 237, 243 excesso.... 11, 16, 17, 24, 28, 29, 38, 44, 54, 55, 56, 59, 126, 128, 143, 169, 174, 175, 186, 193, 196, 207, 234, 236, 237, 243 T Todorov............................................................................................................................................................................ 239 V Valéry................................................................................................................................................................... 71, 72, 154 Villarta-Neder..................................................................................................................................................................... 44 W Wittgenstein.................................................................................................................................................... 79, 80, 81, 243 263 ANEXOS 264 SALA VACÍA 9 3 los muébles de caoba perpetúan entre la indecisión del brocado su tertulia de .siempre. Los daguerrotipos mienten su falsa cercanía de tiempo detenido en un espejo y ante nuestro examen se pierden como fechas inútiles de borrosos aniversarios. Desde hace largo tiempo sus angustiadas voces nos buscan y ahora apenas están en las mañanas iniciales de nuestra infancia. La luz del dia de hoy exalta los cristales de la ventana desde la calle de clamor y de vértigo y arrincona y apaga la voz lacia de los antepasados. 93 In Fervor de Buenos Aires, 1923. 265 Animais dos Espelhos 9 4 Num dos volumes das Cartas Edificantes e Curiosas que apareceram em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o Pe. Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Cantão; num levan tamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos alegavam ter visto no fundo dos espelhos. O Pe. Zallinger morreu em 1736 e o trabalho iniciado por sua pena ficou inacabado; cento e cinqüenta anos depois, Herbert AIlen Giles assumiu a tarefa interrompida. Segundo Giles, a crença no Peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo. Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se espelho e saía-se pelos espelhos. invadiu a Este espelhos e lhes impôs 94 noite, a gente do Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas prevaleceram. Uma rechaçou a tarefa os de do Imperador Amarelo invasores, repetir, encarcerou-os nos como numa espécie In Livro dos Seres Imaginários, 1974 266 de sonho, todos os atos dos de sua homens. Privou-os de sua força e figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia. O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho perceberemos uma linha muito tênue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas. Junto as criaturas dos espelhos combaterão as criaturas da água. No Yunnan não se fala do Peixe e sim do Tigre do Es pelho. Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas. 267 EL ESPEJO 9 5 Yo, de niño, temía que el espejo Me mostrara otra cara o una ciega Máscara impersonal que ocultaría Algo sin duda atroz. Temí asimismo Que el silencioso tiempo del espejo Se desviara del curso cotidiano De las horas del hombre y hospedara En su vago confin imaginario Seres y formas y colores nuevos. (A nadie se lo dije; el niño es timido.) Yo temo ahora que el espejo encierre Ei verdadero rostro de mi alma, Lastimada de sombras y de culpas. El que Dios ve y acaso ven los hombres. 95 In Historia de La Noche, 1977. 268 (foto de domínio público) 269