Norberto Bobbio
A teoria das formas de governo
Tradução
Sérgio Bath
10a Edição
EDITORA
UnB
Sumário
Prefácio para a edição brasileira
Nota para a edição brasileira
Prefácio - Celso Lajer
Agradecimentos
Nota
Introdução
Capítulo I Uma Discussão Célebre
Capítulo II Platão
Capítulo III Aristóteles
Capítulo IV Políbio
Apêndice
Capítulo V Intervalo
Capítulo VI Maquiavel
Capítulo VII Bodin
Capítulo VIII Hobbes
Capítulo IX Vico
Capítulo X Montesquieu
Capítulo XI Intervalo: o Despotismo
Capítulo XII Hegel
Apêndice (Michelangelo Bovero)
A Monarquia Constitucional: Hegel
Capítulo XIII Marx
Capítulo XIV Intervalo: a Ditadura
3
7
13
29
31
33
39
45
55
65
75
77
83
95
107
117
127
139
145
e Montesquieu 157
163
173
Prefácio para a edição brasileira
Este livro não é propriamente um livro. É uma série de aulas de
filosofia política ministradas na Faculdade de Ciências Políticas da
Universidade de Turim no ano letivo de 1975/76. Após ter ensinado
filosofia do direito durante muitos anos, em 1972 decidi passarão ensino
da filosofia política, cadeira criada há poucos anos pela reforma das
Faculdades de Ciências Políticas. O fato de eu ter deixado a matéria que
ensinara por mais de trinta anos, quando já havia quase chegado ao final da
carreira (que se encerrou em 1979), requer uma rápida explicação.
Em 1972, meu velho amigo, Alessandro Passerin D'Entrèyes, que
poucos anos antes havia inaugurado a primeira cátedra de filosofia
política, entrara em gozo de licença, e convidou-me para sucedê-lo. Não
hesitei nem um pouco e aceitei: ambos tínhamos sido alunos, ele alguns
anos antes de mim, do mesmo mestre, Gioele Solari, que, com a história
das doutrinas políticas, iniciara na Itália um ciclo de estudos conduzidos
mediante rigoroso método histórico e com forte inspiração filosófica. A
maior parte dos escritos de Solari foram reunidos em dois volumes sob a
responsabilidade de outro de seus alunos, Luigi Firpo: La Filosofia Política,
vol. I: Da Campanella a Rousseau, e vol. II: Da Kant a Comte (Bari, Laterza,
1974). Ao aceitar o convite, contribuiria para dar continuidade a uma
tradição que não merecia ser interrompida.
Devo acrescentar que estávamos em meados de 68, ano dos protestos
juvenis, que foram particularmente mais inflamados na Itália. A Universidade italiana (embora não apenas a italiana) mostrara-se politizada- e
mal politizada - sobretudo nas Faculdades de Ciências Humanas.
Politizada no sentido de que a revolta dos estudantes (porque se tratou
realmente de uma revolta) ocorrera sob o lema "Tudo é Política" ou,
inversamente, mas com o mesmo efeito, "A Política é Tudo". Mal
politizada no sentido de que a revolta contra o poder acadêmico, que
também podia ter suas razões, muitas vezes transformou-se em revolta
contra a seriedade dos estudos, contra a pesquisa levada a efeito com
rigor, contra a cultura do passado em nome da atualidade, na exaltação do
A Teoria das Formas de Governo
mais desenfreado tendenciosismo, da leviandade, da improvisação; na
substituição do discurso fundamentado e documentado pelo palavreado
oco. Parecia chegado o momento de fazer entender aos estudantes tão
inflamados quanto despreparados que a política era uma outra coisa e
que, com certeza, era importante transformar o mundo, mas, para
transformá-lo para melhor e não para pior, era necessário antes de tudo
compreendê-lo. Para compreendê-lo, era preciso estudar, relacionar os
problemas do presente aos do passado, definir os conceitos fundamentais
para evitar as superficialidades e as confusões, dar-se conta de que a
história, com seus problemas não resolvidos, não recomeça a cada
geração; em suma, fazer da política um objeto de análise racional e não
apenas uma ocasião de desabafos passionais, de projetos fantasiosos, de
controvérsias desprovidas de finalidade e infecundas. Para iniciar o meu
primeiro curso de filosofia política no outono de 1972, escolhi como tema
a relação entre sociedade civil e Estado de Hobbes a Marx e coloquei
como subtítulo "A Lição dos Clássicos".
A lição dos clássicos pode ser dividida de vários modos, ou desenvolvendo sinteticamente sua história em forma de manual, desde os gregos
até os nossos dias, escolhendo um autor, uma escola ou um período a
serem tratados em forma de monografia. Ambos os métodos são
geralmente seguidos, pelo menos nas universidades italianas, nos cursos
de história das doutrinas políticas. Para um curso de filosofia política, que
deveria ter sido mais teórico do que histórico, decidi tomar um terceiro
caminho: escolher como objeto do curso um dos temas fundamentais,
que chamei de "temas recorrentes", da teoria política, e segui-lo de um
autor a outro para captar-lhe o desenvolvimento interno através das
afinidades e das diferenças, das persistências e das inovações. Naturalmente, em uma escolha desse tipo está implícita uma idéia central (não
quero dizer que era propriamente uma teoria que tivesse necessidade de
um outro aparato de documentos e de argumentos): a idéia da continuidade histórica além das modificações, das rupturas, das convulsões e
também do que de início parece catastrófico. Mas existe também, embora
como subclasse, a idéia da extraordinária originalidade e fecundidade das
categorias elaboradas pelos gregos, em particular por Aristóteles, a cuja
Política deve o Ocidente um sistema conceituai que resistiu ao tempo e
chegou até nós praticamente intacto. Era uma idéia que devia ser posta à
prova: parece-me que nenhum tema se adaptaria mais a esta prova do que
a forma de governo, no mínimo por duas razões: não há obra política
clássica que não trate desse tema e não há autor clássico, que, tratando
dele, não faça, direta ou indiretamente, referência aos autores gregos (de
resto, os termos ainda hoje usados - monarquia, oligarquia, aristocracia,
democracia, autocracia, tirania - são de origem grega, do mesmo modo
que os termos construídos artificialmente, como tecnocracia e hierocracia).
Alguns anos mais tarde, no último ano de magistério (1978/79), escolhi
como tema do curso um outro dos temas recorrentes, o da passagem de
uma forma de governo a outra, e também neste caso o ponto de partida
obrigatório foi a Política de Aristóteles, em particular o famoso Livro V,
dedicado às mudanças.
Prefácio para a edição brasileira
5
O fato de o curso terminar com Marx não significa que o tema se
tenha exaurido na segunda metade do século passado. Trata-se de um
término puramente ocasional e imposto pelas circunstâncias. Tanto o
tema não se exauriu, que foi amplamente desenvolvido, na trilha da
tradição, por duas das maiores obras de teoria política do século passado,
Vorlesungen über Politik, de Heinrich von Treitschke (1897-1898) e os
Elementi di scienza política, de Gaetano Mosca (1895), que retoma, entre
outras coisas, a teoria tradicional do governo misto com uma referência
explícita a Aristóteles e a Políbio. A escolha dos autores, esta sim, talvez
seja arbitrária. Não quero dizer que não existam outros autores que
também merecessem entrar no nobile castello*: faltam os autores medievais,
desde John of Salisbury e São Tomás, e, entre os modernos, falta, por
exemplo, Giovanni Althusius. Mas tenho motivos para acreditar que
todos aqueles por mim considerados como co-autores mereceriam entrar
naquele castelo.
Sou grato à Editora da Universidade de Brasília por ter tido a idéia de
publicar este meu livro no Brasil em uma língua bem mais difundida que
o italiano, dando-me assim a satisfação de, pela primeira vez, poder ler
um livro meu escrito em português, língua que nunca estudei, mas na
qual muitas vezes me exercitei para ler as obras do meu colega e amigo, o
Professor Miguel Reale. Quando escrevi estas páginas para os meus
alunos de Turim, não poderia jamais imaginar que a minha voz chegaria
tão longe. Agradeço com particular afeto ao tradutor, ao Professor Nelson
Saldanha, ao Professor Celso Láfer, por me haver apresentado de forma
tão insigne, embora com alguns elogios excessivos, demonstrando sobre a
minha obra um conhecimento que me impressionou e me deixou
assombrado.
Norberto Bobbio
Setembro de 1981.
Dante, Divina Comédia, Canto IV, verso 106.
Nota para a edição brasileira
Sendo esta a primeira tradução do livro de Norberto Bobbio surgida
no Brasil, cabe certamente realçar o alto significado do fato. E realçá-lo
com algumas palavras, destinadas não propriamente a "apresentar" aos
leitores brasileiros a obra ou a figura do eminente professor italiano,
vastamente divulgado como pensador e crítico, mas a situar alguns traços
e aspectos fundamentais de sua obra em geral, como também do presente
livro, em especial.
Comecemos pelos dados pessoais. Nascido em Turim em 1909,
ensinou em Siena (1938-1940) e em Pádua (1940-1948), na peregrinação
que freqüentemente se nota na vida docente européia. A partir de 1948,
professor em Turim. Seus escritos iniciais, que revelam um interesse forte
e nítido pela filosofia alemã, aliás pela filosofia em geral, constituem, no
dizer de um estudioso de sua obra1, uma fase preparatória, que terá ido
até 1945. A partir de 1945, o pensamento de Bobbio se definirá, sob a
forma de trabalhos cada vez mais seguros, em torno de alguns temas
centrais, ligados à teoria do direito (e da ciência jurídica) e à teoria política
(e das ideologias).
O desenvolvimento da obra de Bobbio se manifestou através de uma
quase ininterrupta seqüência de ensaios e livros, abrangendo questões de
filosofia jurídica, lógica e teoria da linguagem, bem como problemas de
história do pensamento político - campo, aliás, que cultivou desde cedo
com admirável penetração. Nos livros sobre teoria do direito (dos quais se
destacam o sobre a teoria da norma, o sobre a teoria do ordenamento e o
sobre a teoria da ciência jurídica), a reflexão de Bobbio se notabiliza pelo
consciencioso hábito do rigor de expressão, que se distingue daquele
verbalismo fácil vez por outra encontrado em autores latinos, mas que por
outro lado não se transforma num culto excessivo, numa mania. A este
rigor de expressão, que evidentemente corresponde a um rigor de
pensamento, se liga uma visceral tendência ao racionalismo. Este racionalismo se acha patente em alguns de seus ensaios críticos mais
interessantes, inclusive naquele sobre o existencialismo2 e nos estudos
sobre o problema do direito natural3.
A Teoria das Formas de Governo
Destaquemos então o desdobramento de seus interesses temáticos,
que abrangem a teoria política e a teoria jurídica. Como tantos outros
grandes pensadores do direito (um Del Vecchio, um Pound, um Kelsen) e
da política (um Laski, um Burdeau, uma Hannah Arendt), Bobbio
sempre cultivou os chamados temas abrangentes. Mas, ao contrário de
Kelsen -cujo formalismo aliás o influenciou em larga medida como
rigorismo, além de deixar marcas específicas na teoria da norma e do
ordenamento -, Bobbio jamais levou a plenas conseqüências a idéia de
uma separação impermeável e intransponível entre o estudo do direito e
o das demais ciências sociais. Enquanto Kelsen, autor de estudos
eruditos e profundos sobre história de idéias, adotou uma drástica ascese
separatista, reservando ao jurista uma seca missão de análise normativa e
"intra-sistemática" do direito positivo, Bobbio sempre deixou que em
seus estudos jurídicos penetrasse (embora discretamente e na medida) a
luz da perspectiva política, da teoria das ideologias, e também o ponto
de vista histórico4.
A lucidez de Bobbio se evidencia, por exemplo, nas suas palavras a
respeito da opção entre jusnaturalismo e juspositivismo: para ele, é
precipitado afirmar que o positivismo é sempre algo reacionário, ou
afirmar que ele é essencialmente "progressista", porquanto posições
jusnaturalistas têm sido assumidas por liberais e por conservadores, e
posições positivistas têm sido também estadeadas por uns e por outros.
Confessando, com notável honestidade, não ter nunca conseguido
decidir-se entre uma e outra alternativa, preferiu Bobbio analisar o caráter
relativo e insuficiente de ambas as posições5.
A mesma lucidez, que é sempre um correlato de equilíbrio sem ser
acomodação, se reflete nas posições políticas de Bobbio, aliás, nas
teóricas, assim como nas práticas. Seu pensamento político se acha fundado
sobre lúcidas considerações filosóficas, geralmente nutridas pelo racionalismo acima mencionado, e geralmente conduzidas com flexibilidade e
sem radicalismo. No caso, lembraria seus interessantes estudos sobre a
igualdade e outros problemas fundamentais6. Lembraria também sua
constante e atuante presença no próprio debate político italiano, onde se
tem revelado um socialista convicto, com sério conhecimento da obra de
Marx, mas sem ser absolutamente um marxista stricto sensu, sem dogmatismo, sem unilateralismos, sem maniqueísmos7.
Todos estes aspectos do pensamento de Bobbio devem ser tidos em
conta ao considerarmos os caracteres do presente livro. Anote-se e
registre-se, desde logo, que não se trata- a meu ver, ao menos- de um dos
livros mais profundos do autor. Ele não tem, por exemplo, a erudição
compacta dos estudos incluídos em De Hobbes a Marx, nem tem a
complexidade analítica encontrada em certos ensaios de Bobbio. Tratase, em realidade, de um livro didático, oriundo (como tantos outros livros
seus) de um curso proferido durante o ano acadêmico de 1975-1976. Suas
explanações se aplicam sobre determinados autores e determinadas
obras, um tanto ao modo do método utilizado por Jean-Jacques
Chevallier em seu valioso e conhecido livro sobre As grandes obras políticas de
Maquiavel a nossos dias. Este método, excelente como forma de fixar a
atenção do estudante sobre determinados "momentos" da evolução de
Nota para a edição brasileira
9
um tema, tem seu reverso, dificultando a análise de questões "laterais",
que são laterais em relação aos "grandes nomes" escolhidos, mas não o
seriam se o enfoque utilizado fosse outro.
Um dos méritos maiores da exposição de Bobbio, neste livro, consiste
justamente na impressionante clareza, que se alia a uma magistral e
escrupulosa exatidão no indicar as "passagens" fundamentais das obras
comentadas.
Na realidade, alguns dos grandes desdobramentos teóricos do
problema das "formas de governo" estão justamente em planos doutrinários onde se conjugam a perspectiva filosófico-social, a política e a
jurídica. O tema "governo" tem sido considerado de modos os mais
diversos, mas na verdade o seu entendimento pleno tem de abranger estas
três perspectivas. Às vezes, aliás, a divergência entre dois autores se
acentua ou se agrava pelo fato de um utilizar preferentemente uma delas,
enquanto o outro se coloca noutra. Todo mundo sabe que, dos três
principais fundamentadores do absolutismo moderno, Maquiavel foi
sobretudo político, Bodin predominantemente jurista e Hobbes basicamente filósofo. Isto para não falar no teologismo já então meio
anacrônico de Filmer, alvo específico de Locke.
Colocando-se no ângulo de um curso de história do pensamento
político, Bobbio selecionou os autores que lhe pareceram mais decisivos e
marcantes para a trajetória (ou as trajetórias) do problema. Selecionou-os
sob critério notadamente político, sem se preocupar grandemente com o
contributo que ao problema tenham trazido juristas e filósofos. Isto,
evidentemente, na medida em que é possível sustentar uma distinção
perfeita entre as três perspectivas mencionadas acima, porquanto as
formulações políticas se acham sempre montadas sobre supostos filosóficos - ao menos implícitos - e se acham vinculadas a categorias jurídicas.
O problema das formas de governo é precisamente um problema em
que a interligação entre matéria política e matéria jurídica se apresenta
ostensivamente (vá a palavra "matéria" aqui em seu sentido mais clássico,
e passando-se ao largo da idéia restringente e sibilina de que o direito é
sempre "forma"). Por isso mesmo ele tem sido colocado e recolocado
com impressionante intensidade, desde os publicistas do fim do século
passado. Assim, tivemos o tema revisado porjellineck e Vittore Orlando; e
depois por Giese, por Kelsen, por Heller, por Schmitt. Certamente que
nestes autores o prisma jurídico foi até certo ponto preferencial; mas o
pensamento político não pode deixar de prestar atenção, por exemplo, ao
esquema de Carl Schmitt, referente ao Estado legislativo ou parlamentar e
ao Estado administrativo e ditatorial; ou ao de Friedrich Giese, que
distingue as Verfassungsformen (formas constitucionais) e as Regierungsformen,
que seriam propriamente formas de governo8. Assim como não pode
deixar de ter em vista o surgimento da própria distinção, ditajurídica mas
em geral politicamente situada, entre formas de governo e formas de
Estado. O mesmo se diga com referência à distinção entre formas de
governo e "regimes", sempre discutida embora corrente.
A combinação (não confusão) entre problemática "política" e problemática "jurídica", hoje presente em alguns dos mais sugestivos
10
A Teoria das Formas de Governo
pensadores do direito ou da política, tem sido realmente o caminho mais
fértil para o aprofundamento das reflexões, em ambos os campos. Na
Itália, este tem sido o caminho do próprio Bobbio, como tem sido o de
Luigi Bagolini e como foi, em dias passados, o de Piero Calamandrei; na
Alemanha, vem sendo o caminho de Niklas Luhmann, entre outros. No
Brasil, foi o de Pontes de Miranda como vem sendo o de Miguel Reale (tão
diferentes entre si, embora), o de Afonso Arinos, de Paulo Bonavides e de
Tércio Ferraz Júnior, para citar apenas estes9.
Na introdução do livro, Bobbio coloca o problema dos "dois
aspectos" sob os quais tem sido feita a história do problema das formas de
governo. Ele os denomina aspecto descritivo e aspecto prescritivo. Do
mesmo modo distingue, correlatamente, dois "usos" na exposição
daquele problema: o uso sistemático e o uso axiológico, aos quais,
adiante, acrescenta a alusão ao "uso histórico". Este corresponderia, diz,
à utilização do problema das formas de governo para a construção de uma
imagem filosófica da história.
Estas lineares tipologias, propostas de resto sem maiores pretensões,
mas antes como estratégia expositiva, são efetivamente mantidas por
Bobbio nas explanações que enchem os diversos capítulos do livro.
Infelizmente, porém, o caráter didático destas explanações - bem como
o fato de que o capítulo final se demarca em torno das experiências dos
anos trinta e quarenta — não permitiu que o autor aprofundasse e
desdobrasse a meditação sobre os caracteres "axiológicos" e os sistemáticos de certas recentes manifestações doutrinárias referentes a formas de
governo.
Creio pessoalmente que as grandes reformulações do problema têm
ocorrido nos momentos de transformação maior das estruturas e da
experiência institucional dos povos, tal como as grandes reformulações
do tema "classificação das ciências" sempre ocorreram em correlação
com revoluções científicas fundamentais. A partir de Revolução Francesa,
por exemplo, o triadismo clássico, de origem sobretudo aristotélica,
passou a ser superado pelos dualismos (Maquiavel havia proposto um
dualismo, com as frases iniciais de O Príncipe, mas sua formulação não
obteve maior continuidade): daí que no século XX a diferença entre
autocracia e democracia, presente em Kelsen, em Heller e outros, se
tornasse mais representativa e mais convincente do que o antigo tríptico
"democracia-aristocracia-monarquia", porque o avanço da mentalidade
democrática tornara obsoleta a separação entre monarquia e aristocracia10. Mas hoje a objetividade tipológica que se achava ínsita nos
dualismos (que ainda continham alguns elementos do relativismo liberal)
se acha ameaçada por alguns maniqueísmos emergentes: uma forma de
governo é para estes uma opção radical conjugada a uma decisão
escatológica e uma concepção dogmática das coisas.
O livro de Bobbio, iniciado com a clássica e fictícia, mas sempre
exemplar, teorização de Heródoto, na qual o triadismo se propõe pela
primeira vez, e terminado com algumas reflexões sobre a ditadura infelizmente um tanto breves -, tenta ser uma eficiente síntese da evolução
do tema. E consegue sê-lo, como indicação precisa e preciosa de pontos
Nota para a edição brasileira
11
fundamentais, e como autorizada base para que se volte sempre e sempre
à reflexão sobre o tema, tão essencial, tão decisivo nas cogitações dos
homens sobre seus modos de ser e de conviver.
Nelson Saldanha Recife,
fevereiro de 1980
Notas
1. ASTÉRIO DE CAMPOS, SDB, O pensamentojurídico de Norberto Bobbio, ed. Saraiva-Editora
da USP, São Paulo, 1966, capítulo I, p. 5.
2. NORBERTO BOBBIO, El existencialismo, ensayo de interpretación, .Trad. L. Terracini, ed.
FCE. México, 1958 (o original italiano foi de 1944). A mesma critica à filosofia existencial,
por sinal algo rígida, se encontra no parágrafo 27 da Introduzione alia Filosofia dei Diritto (ed.
Clappichelli, Turim, 1948).
3 Por exemplo. "Quelques arguments contre le droit naturel", em Le Droit NatureL, obra
coletiva, PUF, Paris, 1959; "II modello giusnaturalistico", em Revista Intemazionale di
Füascfia dei Dirilto, outubro-dezembro 1973, p. 603 e segs.
4. O artigo sobre o modelo jusnaturalístico, citado na nota anterior, se acha todo montado
sobre esquema histórico. Também na Teoria deWordinamenio giuridico (Giappichelli, Turim,
1960) o item 2 do capítulo II se volta para a formação histórica do ordenamento. Vejam-se
tam bém os estudos sobre o jusnaturalismo em H obbes e em Locke, em Da Hobbes a Marx, Ed.
Morano, Nápoles, 1965.
5. El problema dei positivismo jurídico, trad. E. Garzón Valdés, ed. Eudeba, Buenos Aires, 1965.
Cf. às pp. 9 e 10 da "Introdução".
6. Cf. por exemplo "Eguaglianza ed equalitarismo" em Riv. Intemazionale di Filosofia dei
Dintto, julho-setembro 1976, p. 321 e segs. Na Introduzione alia Filosofia dei Diritto (op. cit.), o
capítulo II, referente à justiça, se acha todo enlaçado a uma idéiasocía/ de justiça, concluindo
o livro com um parágrafo sobre a conexão entre justiça e ideologia política.
"- Cf por exemplo sua parte na mesa-redonda sobre "Poder e Participação", ocorrida em
Veneza em 1969 e editada na Riv. Int. de FiL dei Diritto, janeiro-março de 1970, p. 23 e
segs. E também seu debate com Umberto Cerroni e outros sobre o marxismo e o Estado,
editado nos Quadernt de Mondoperaio (O Marxismo e o Estado, trad. F. L. Boccarelo e R. Levie, ed.
Graal, Rio de Janeiro, 1979).
8. CARL SCHMITT, Legalidad y Legitimidad, trad. José DÍaz Garcia, ed. Aguillar, Madrid
1971, passim e principalmente p. 106 e segs. - Para GIESE, que para as "formas
constitucionais" se vale do triadismo clássico, as "formas de governo" abrangeriam o
absolutismo e o constitucionalismo. Seu esquema é complicado e discutível mas sem dúvida
interessante e muito representativo para o segundo pós-guerra e os esforços doutrinários
alemães de então (AUgemeines Staatsrecht, ed. J.C.B. Mohr, Tübingen, 1948, § § 8 e 9).
9. Tomaria a liberdade de incluir nesta linha meas trabalhos, inclusive a tese/4í Formas de
Governo e o Ponto de Vista Histórico (Recife, Imprensa Industrial, 1958; 2? edição RBEP, Belo
Horizonte, 1960). Também vale mencionar, dentro da bibliografia brasileira, pela ampli
tude da análise, o livro deJOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, Regimes Políticos, ed.
Resenha Universitária, S. Paulo, 1977.
10. NELSON SALDANHA, As Formas de Governo e o Ponto de Vista Histórico, cit., principal
mente capítulos V e VI. A referência às ditaduras do século XX se acha sobretudo no capítulo
VII, inclusive nas notas.
Prefácio
Norberto Bobbio nasceu em Turim (Itália) em 1909. Estudou Direito
e Filosofia, tendo sido aluno e discípulo de Gioele Solari (1872-1952), o
eminente historiador de filosofia jurídica e política. Foi professor nas
Universidades de Siena (1938-1940) e Pádua (1940-1948), até assumir, em
1948, a cátedra de filosofia do direito na Universidade de Turim, da qual
acaba de aposentar-se.
A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento Político é sua
primeira obra publicada na íntegra no Brasil. Daí a conveniência de
oferecer ao leitor brasileiro algumas indicações a respeito de como esta
obra se insere no pensamento de Bobbio - um homem, conforme
apontou com justa pertinência Guido Fassò, atento aos mais vivos e novos
problemas de nosso tempo, que vem examinando, por força de um
temperamento racional, com um rigor intelectual e uma limpidez
expositiva verdadeiramente admiráveis1.
A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento Político foi o curso
dado por Bobbio na Universidade de Turim, no ano acadêmico de
1975/76. Creio, por isso mesmo, que as primeiras indicações sobre esta
obra podem ser encontradas no programa de trabalho que Bobbio traçou
para si enquanto professor de filosofia do direito.
Num ensaio de 1962, posteriormente inserido em Giusnaturalismo e
Positivismo Giuridico, Bobbio aponta que os seus cursos universitários
obedeciam a três ordens de indagações, que constituiriam as três partes
em função das quais organizaria um tratado de filosofia do direito.
A primeira parte é a Teoria do Direito. Para Bobbio, o problema
fundamental da teoria do direito é a determinação do conceito de direito e
a diferenciação do fenômeno jurídico de outros fenômenos, como a
moral e o costume. Em matéria de teoria do direito, Bobbio realça o
"normativismo", vendo o direito como um conjunto de normas a serem
14
A Teoria das Formas de Governo
estudadas sistematicamente por meio do conceito de ordenamento
jurídico.
O estudo do ordenamento jurídico compreenderia: (i) a "composição" do ordenamento, ou seja, o conceito de normas e os seus vários tipos;
(ii) a "formação" do ordenamento,-ou seja, a teoria das fontes do direito;
(iii) a "unidade" do ordenamento, ou seja, o problema da hierarquia das
normas; (iv) a "inteireza" do ordenamento, ou seja, o problema das
lacunas e de sua integração; (v) a "coerência" do ordenamento enquanto
sistema, ou seja, o problema das antinomias e da sua eliminação; e
(vi) finalmente, as relações espaciais, materiais e temporais derivadas do
inter-relacionamento entre ordenamentos que ensejam o problema do
"reenvio" 2.
Nesta reflexão ontológica sobre o direito, a ênfase dada por Bobbio à
norma aproxima-o de algumas correntes do positivismo jurídico e de
autores como Kelsen, Hart e Ross, aos quais se iguala em rigor analítico.
São testemunhos do seu esforço nesta linha o curso de 1958 sobre a teoria
da norma jurídica e o de 1960 sobre teoria do ordenamento jurídico, bem
como uma série imensa de artigos e trabalhos em parte recolhidos nos
livros Studi per una Teoria Generale dei Diritto (1970) e Dalla Struttura alia
Funzione - Nuovi Studi di Teoria dei Diritto (1977)3.
Bobbio salienta que existem três pontos de vista a partir dos quais se
pode avaliar uma norma: o da justiça, o da validade e o da eficácia. É por
isso que, para ele, a experiência jurídica, na sua inteireza, deve levar em
conta as idéias de justiça a realizar, as normas que as exprimem e a ação e
reação dos homens em relação a estas idéias e a estas normas4. A opção de
Bobbio pelo normativismo em matéria de teoria do direito não significa,
portanto, uma visão reducionista da experiência jurídica. Ele não
identifica a lei com a justiça, nem desconsidera a reação dos homens
enquanto destinatários das normas. O normativismo, para Bobbio,
significa apenas que, tanto por uma exigência de rigor, quanto em função
de uma avaliação da práxis do direito, o mundo do direito é um mundo
em que a experiência se dá "sub specie legis" e no qual a distinção entre
fatos juridicamente relevantes e irrelevantes encontra na norma um dos
pressupostos do trabalho quotidiano dos operadores do direito.
Em outras palavras, o normativismo não exaure a filosofia do direito
e, precisamente porque, para Bobbio, a lei positiva não é justa pelo
simples fato de ser lei e resultar de uma convenção que deve ser cumprida
("pacta sunt servanda"), é que a sua teoria do direito exige uma teoria da
justiça que não seja apenas formal5. Daí a razão de uma segunda ordem de
indagações, ou segunda parte, que orienta e informa a sua proposta
pedagógica: a teoria da justiça.
Bobbio vê a "teoria dajustiça" como uma área pouco estudada e que
requer não apenas uma reflexão analítica do tipo daquela feita por Kelsen
e Perelman6, mas também um estudo que passe igualmente pela história
do direito. Esse estudo teria como critério condutor o conceito de
"justiça" entendido como um conjunto de valores, bens e interesses para
cuja proteção e incremento os homens se valem do direito enquanto
técnica de convivência. Para Bobbio o ponto de partida desta investigação
Prefácio
15
é axiológico e sociológico, inclusive etnográfico, e é por isso que, ao
contrário dos jusnaturalistas, a natureza do homem é o seu ponto de
chegada e não de partida. Neste sentido, Bobbio é um historicista que
combina a deontologia (o que o direito deve ser) com a sociologiajurídica
(a evolução do direito na sociedade e as relações entre o direito e a
sociedade)7.
À falta de melhor termo, Bobbio denomina a terceira parte de "teoria
da ciência jurídica", nela inserindo o problema metodológico e o estudo
dos modelos utilizados na percepção da experiência jurídica. Na sua
indagação epistemológica, que é também histórica, indica ele como o
modelo dos jusnaturalistas era o matemático; como o da escola histórica
era a historiografia; como Jhering assume o modelo de história natural;
como, com o positivismo lógico no campo jurídico, a ciência do direito foi
encarada do ângulo da teoria da linguagem; e assim por diante. Conclui
que, diante da variedade de modelos e da dificuldade de ajustá-los à
experiênciajurídica concreta, o mais pertinente é inverter a rota e começar
por uma análise dos tipos de argumentos que os juristas usam no seu
trabalho quotidiano.
Esta preocupação com a "logica legalis"* é o que aproxima Bobbio, nesta
sua reflexão epistemológica e metodológica, não só da lógica jurídica moderna mas, também, de Perelman e da nova retórica; de Viehweg e da tópica; de
Recasens Siches e da lógica do razoável; do Ascarelli dos estudos sobre a
origem da dogmática jurídica e sobre a interpretação e, entre nós, de
Tércio Sampaio Ferraz Jr. e da pragmática9.
Bobbio, no seu já mencionado ensaio de 1962, também faz referência
à história da filosofia do direito, que ele vê como algo útil e apaixonante no
contexto de seu programa de trabalho, apontando que não concebe uma
boa teoria do direito sem o conhecimento, por exemplo, de Grócio,
Hobbes, Kant ou Hegel; uma boa teoria da justiça sem o Livro V da Ética a
Nicômaco, de Aristóteles, e uma boa teoria da ciência jurídica sem Leibniz
ou Jhering. Não aprecia ele, no entanto, as histórias de filosofia do direito
enquanto elencos expositivos sumários de doutrinas heterogêneas.
Para Bobbio, igualmente, enquanto discípulo de Solari, o melhor
modo de fazer história da filosofia do direito é refazer as doutrinas do
passado, tema por tema, problema por problema, sem esquecer, no trato
dos assuntos e argumentos, os precedentes históricosi°. Exemplos desta
sua maneira de fazer história da filosofia e história da filosofia do direito
podem ser apreciados no seu curso, publicado em 1957 e revisto em 1969,
sobre direito e Estado no pensamento de Kant; no seu curso, publicado
em 1963, sobre Locke e o direito natural; na coletânea de ensaios reunidos
no livro Da Hobbes a Marx (1964) e também - que é o que interessa apontar no curso sobre A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento
Polüico u .
Portanto, a primeira indicação a respeito deste livro, que ora se
publica em português, é a de que se insere, coerentemente, num
programa de trabalho pedagógico e numa determinada maneira de fazer
a história da filosofia esclarecer e permear as indagações a partir das quais
Bobbio organiza o campo da filosofia do direito.
16
A Teoria das Formas de Governo
II
A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento Político, como o
próprio título indica, é um mergulho na filosofia política. Daí a pergunta:
qual é, para Bobbio, a relação entre filosofia política e filosofia do direito, e
como ê que esta relação, uma vez explicitada, se ajusta à sua proposta
pedagógica? A resposta a esta indagação permite oferecer uma segunda
ordem de indicações a respeito da inserção desta obra no percurso
intelectual de Norberto Bobbio.
Como se sabe, o termo filosofia do direito é recente, tendo-se
difundido na Europa nos últimos 150 anos. Uma das muitas acepções do
termo, diz Bobbio, é a que engloba propostas sistemáticas de reforma da
sociedade presente, com base em pressupostos, explícitos ou implícitos,
tendo como objetivo realizar certos fins axiológicos, tais como: liberdade,
ordem, justiça, bem-estar, etc. Nesta acepção, a filosofia do direito confina
com a filosofia política. Para a difusão desta acepção cabe dizer que muito
contribuiu a estreita relação que se verificou entre a noção de direito e a de
Estado, ocorrida na Europa com o aparecimento do Estado moderno12.
Tal relação, que provém da utilização do direito como instrumento de
governo e da conseqüente estatização das fontes de criação normativa,
aparece, por exemplo, na história da filosofia explicitada em Hobbes,
autor que Bobbio estudou com grande interesse e acuidade, tendo
preparado e prefaciado a edição italiana de De Civel3.
A convergência entre filosofia política e filosofia do direito exige, para
ser bem compreendida, uma discussão sobre o inter-relacionamento
entre o direito e o poder. Em estudo recente, Bobbio aponta a relevância
das grandes dicotomias no percurso do conhecimento, mencionando
entre outras: comunidades X sociedade, solidariedade orgânica X solidariedade mecânica, estado de natureza X estado de sociedade civil.
No campo do direito, diz Bobbio, a grande dicotomia é a que resulta
da distinção entre direito privado e direito público14. É com base nesta
distinção que se pode aferir de que maneira os juristas lidam com o
fenômeno do poder. Para os juristas e jusfilósofos, que encaram o direito a
partir do direito privado, o direito aparece kantianamente como um
conjunto de relações intersubjetivas que se distinguem da classe geral das
relações intersubjetivas pelo vínculo obrigatório que une os dois sujeitos.
Nesta perspectiva, a força é vista como um "meio" de realizar o direito
através do mecanismo da sanção organizada15. Entretanto, para os
juristas e jusfilósofos que encaram o direito a partir do direito público,
como é o caso de Santi-Romano, Kelsen, Bobbio - e, entre nós, de Miguel
Reale — o que salta aos olhos é a existência do Estado como instituição16.
Nesta perspectiva, que é a de quem encara a existência da pirâmide
escalonada de normas a partir do seu vértice, o direito aparece como um
conjunto de normas que estabelecem competências e que permitem o
exercício do poder, inclusive o poder de criar novas normas jurídicas17.
Bobbio, no entanto, não analisa a pirâmide escalonada de normas "ex
parte principis", isto é, na perspectiva daqueles a quem as normas conferem
poderes. Para esses, como ele aponta em A Teoria das Formas de Governo na
Prefácio
17
História do Pensamento Político, o tema recorrente é o da "discórdia", e a
preocupação constante é a de evitar a desagregação da unidade do
poder18. É por isso, por exemplo, que na filosofia política de Hobbes o
direito é concebido como instrumento para instaurar uma rigorosa
gramática de obediência19. Não é este, no entanto, o ângulo de Bobbio,
que encara as normas de organização do Estado, isto é, aquelas que
tornam possível a cooperação de indivíduos e grupos, cada um perseguindo no âmbito do Estado o seu papel específico, para um fim
comum20, ex parte populi.
Ex parte populi, o que interessa a Bobbio ressaltar são as tendências à
institucionalização do poder no mundo contemporâneo, fenômeno que
Miguel Reale vem denominando "jurisfação" do poder21. Nesta perspectiva, Bobbio aponta que uma das maneiras de distinguir a transformação
do Estado absolutista e arbitrário num Estado de direito é a extensão do
mecanismo de sanção, da base para o vértice da pirâmide jurídica, isto é,
dos cidadãos para os governantes. Este processo, que assinala a passagem
da irresponsabilidade para a responsabilidade jurídica de cargos, órgãos e
funções e a substituição da força arbitrária por poderes juridicamente
controlados e disciplinados, é uma das conquistas da técnica do Estado de
Direito e da reflexão liberal22.
Bobbio encara positivamente esta tendência à legalização do poder,
pois, para ele, a legalidade é "qualidade do exercício do poder", que
interessa antes aos governados do que aos governantes, uma vez que
impede a tyrannia quoad exercitium23. É por isso que ele examina a força
como conteúdo da norma jurídica, identificando o problema da legalidade
"ex parte populi" na determinação e verificação através do direito de:
(i) "quando" e em que condições o poder coativo da coletividade pode e
deve ser exercido; (ii) como, ou seja, que pessoas podem e devem
exercitá-lo; (iii) "como", ou seja, quais os procedimentos que devem
reger o exercício do poder por determinadas pessoas e em determinadas
circunstâncias; e (iv) finalmente, "quanto" de força devem e podem
dispor aqueles que, observando certos procedimentos, estão incumbidos
de exercer, em determinadas circunstâncias, em nome da coletividade, o
poder coativo24.
Bobbio, no entanto, não é um normativista puro, à moda de Kelsen,
que vê o direito tão-somente como um instrumento específico, sem
função específica, isto é, apenas como uma forma de controle social, que
se vale abstratamente da coerção organizada. Bobbio registra e reconhece
a historicidade do papel do direito e as funções de controle e estímulo que
exerce numa dada sociedade, reconhecendo, ao mesmo tempo, o
impacto destas funções na elaboração histórica da teoria do direito. É
neste sentido que, ao estudar a teoria de Kelsen sobre a estrutura interna
do sistema jurídico, Bobbio aponta que ela resulta de uma reflexão sobre
a complexa natureza da organização do moderno Estado
constitucional, traduzindo, no plano do direito, a reflexão sociológica de
Max Weber a respeito do processo de racionalização formal do poder
estatal25.
O normativismo de Bobbio é, basicamente, uma exigência de rigor,
indispensável no momento da pesquisa. Ele considera compatível esta
18
A Teoria das Formas de Governo
exigência de rigor com uma concepção democrática de Estado, posto que
vislumbra, numa das dimensões do positivismo jurídico, uma ética de
liberdade, de paz e de certeza. Creio não distorcer o seu pensamento ao
afirmar que, num segundo momento, conceitualmente distinto no seu
percurso - que é o da crítica das leis26 - o rigor de seu normativismo está a
serviço da causa da liberdade. A este tema consagrou ele, na década de
1950, importantes ensaios, entre os quais me permito lembrar Democrazia
e Dittatura e Delia Liberta dei Moderni Comparata a quella dei Posteri.
Nesses ensaios, ele chamou a atenção tanto para a liberdade moderna
enquanto não-impedimento e não-interferência do todo político-social
em relação ao indivíduo, quanto para a liberdade antiga enquanto
autonomia na aceitação da norma elaborada por meio da participação do
cidadão na vida pública. Nestas duas dimensões de liberdade, Bobbio
enxerga estados desejáveis do homem que, no entanto, só surgem quando
se cuida institucionalmente do problema do exercício do poder.
O problema do exercício do poder, continua Bobbio nestes ensaios
da década de 50, encontrou, historicamente, contribuições importantes
na técnica jurídica e na agenda de preocupações do Estado liberal que não
podem ser desconsideradas em qualquer proposta significativa de reforma da sociedade27. Entretanto, em virtude de sua percepção sociológica
das funções do direito numa dada sociedade, a causa da liberdade e da
reforma da sociedade exigiram de Bobbio que fosse além do tema técnico
da validade da norma e da legalidade do poder, confrontando-se
igualmente tanto com o problema da justificação do poder e do título para
o seu exercício, quanto com a justiça das normas.
Para Bobbio, poder e norma são as duas faces da mesma moeda,
existindo um evidente paralelismo entre os dois requisitos fundamentais
da norma jurídica - justiça e validade - e os dois requisitos do poder legitimidade e legalidade28.
Este paralelismo conclusivo apontado por Bobbio permite chegar a
uma segunda ordem de indicações a respeito de como o livro que ora se
publica em português se insere no seu percurso intelectual. Como norma
e poder, no mundo moderno, são as duas faces da mesma moeda, existe
uma convergência substantiva entre filosofia política e filosofia do direito.
A teoria do direito, com a qual se ocupa Bobbio, enquanto teoria do
ordenamento, requer uma teoria do Estado. Ambas exigem uma teoria da
justiça e da legitimidade, pois não existe uma cisão, mas um continuum
entre forma e substância, uma vez que a legalidade remete à validade, a
validade à legitimidade e a legitimidade à justiça, assim como, inversamente, a justiça fundamenta a legitimidade, a legitimidade fundamenta a
validade e a validade fundamenta a legalidade na interseção que se
estabelece entre a linha do poder e a norma29.
III
A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento Político é, como já
foi apontado, o curso dado por Norberto Bobbio no ano acadêmico de
1975/76. Data também de 1976 o seu livro Quale Socialismo?, que reúne
Prefácio
19
trabalhos redigidos entre 1973 e 1976. Quale Socialismo? é um excelente
exemplo daquilo que Bobbio denomina crítica ético-política, que ele vem
conduzindo na forma de incisivas e bem formuladas perguntas em
relação a certos temas para os quais não tem respostas definitivas30. Daí a
conveniência de mais uma indagação para arrematar estas indicações a
respeito de seu percurso intelectual.
Esta última indagação cifra-se, em síntese, no seguinte: qual é a
relação entre filosofia jurídico-política, tal como a concebe Norberto
Bobbio, e a sua crítica ético-política, exemplificada em Quale Socialismo?
Quale Socialismo? é um livro denso e qualquer resumo de seu conteúdo
corre o risco de nào fazer justiça à inteireza de seus argumentos. Com esta
ressalva, arriscaria, no entanto, dizer que a tese central de Bobbio neste
livro é a de que não se evita, a partir de uma verdadeira ótica socialista, o
problema de "como" se governa realçando apenas a dimensão de
"quem" governa (de poucos burgueses para as massas operárias). Como
tanto o Estado, quanto o poder político continuam a perdurar nos
regimes comunistas com a estatização dos meios de produção, é uma
ilusão pensar que a ditadura do proletariado é um fenômeno efêmero.
A mudança de hegemonia, afirma Bobbio, não é suficiente para
mudar a estrutura do poder e do direito, e o proletariado é, na melhor das
hipóteses, um sujeito histórico. Por essa razão, a "ditadura do proletariado" não é uma instituição apta a resolver o problema do bom governo,
que não se esgota com a mera mudança dos detentores do poder. Por isso,
as metas de uma democracia socialista- entendida como uma democracia
não-formal, mas substancial; não apenas política, mas também econômica; não só dos proprietários, mas de todos os produtores; não apenas
representativa, mas também direta; não só parlamentar, mas de conselhos
- exige a discussão e a proposta quanto a instituições político-jurídicas. É
com base nesta colocação que Bobbio insiste na atualidade de uma das
perguntas clássicas de filosofia política- "como se governa?" - "bem ou
mal?". Bobbio afirma que, por mais pertinente que seja a pergunta sobre
"quem governa?" —"poucos ou muitos?" -eaoportunidade de se discutir
a afirmação de Marx e Engels, baseada no realismo político, de que, quem
governa, governa em função dos interesses da classe dominante, é
igualmente urgente cuidar do problema institucional e das formas de
governo em qualquer proposta significativa de reforma da sociedade31.
Bobbio lembra que o socialismo, enquanto aspiração de justiça, é um
movimento que visa acabar não apenas com a mais-valia econômica, mas
também assegurar a emancipação do homem de suas servidões. Essa
liberação, para ser traduzida em liberdade, exige autonomia. No campo
do direito, o conceito de autonomia é utilizado no sentido próprio de
norma ou complexo de normas em relação às quais os criadores e os
destinatários das normas se identificam. É o caso da esfera da autonomia
privada- um contrato, por exemplo, bilateral ou plurilateral, em relação
ao qual os que põem as regras e os que as devem seguir são as mesmas
pessoas. É o caso de um tratado no direito das gentes e é também o caso,
no campo do direito público, do ideal a que tende o Estado moderno que
se deseja democrático, e que se diferencia de um Estado autocrático
20
A Teoria das Formas de Governo
precisamente pela menor prevalência da norma heterônoma. Neste
sentido, como dizia Rousseau no Contrato Social, a liberdade enquanto
autonomia consiste na obediência à lei que cada um se prescreveu32.
Falta, para a prevalência da autonomia e da democracia, uma teoria do
Estado socialista. As indicações de Marx, de Lenin ou de Gramsci são
insuficientes neste sentido, uma vez que a ênfase maior da reflexão
marxista sobre o poder gira em torno de como adquiri-lo - daí a teoria do
partido - e não de "como exercê-lo"33.
Torna-se evidente, à luz de alguns destes temas suscitados por Bobbio
em Quale Socialismo?, a razão de seu interesse pelo estudo das formas de
governo. De fato, ao refazer as doutrinas do passado, tema por tema,
problema por problema, sem esquecer, no trato dos assuntos e argumentos, os precedentes históricos, Bobbio procurou elementos sobre
"como se pode bem exercer o poder" valendo-se desses elementos na sua
crítica ético-política. A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento
Político é, portanto, no plano da filosofia política, também uma preparação
para a crítica ético-política de Quale Socialismo?, que parte não só da
avaliação de que os abusos de poder, numa sociedade socialista, sono
altrettanto possibili che in una società capitalistica mas, sobretudo, da assertiva
de que a ditadura do proletariado não é o melhor invólucro do
socialismo34.
Ê por essa razão que, ao estudar as formas de governo enquanto
modos de organização da vida coletiva, Bobbio, no seu curso, aponta não
apenas a relevância do uso descritivo e sistemático das formas de governo
como, também, o seu uso prescritivo e axiológico. É por essa razão,
igualmente, que, ao resgatar a importância da discussão sobre as formas
boas e más de governo, Bobbio aponta, na discussão sobre o governo
misto - que remonta a Aristóteles e Políbio e transita por Maquiavel,
Bodin, Montesquieu, Mably e Hegel - a existência de um tema recorrente
na história do pensamento político, que deriva da exigência de um
controle do poder35 como condição da liberdade. Este controle, de
acordo com Bobbio, pode apoiar-se no direito enquanto técnica de
convivência, apta a encaminhar, no mundo contemporâneo, a tutela de
valores que se destinam a conduzir a reforma da sociedade.
Bobbio também chama a atenção, no seu curso, para o fato de que,
na Idade Média, pouco se elaborou a teoria das formas de governo,
aventando a hipótese de que, nessa época, como se pode ler em Isidoro de
Sevilha (550-636), o Estado era visto como um mal necessário derivado da
queda do homem. Daí o símbolo da espada e a salvação não pela pólis, mas
sim pela Igreja. Todas as formas de governo são más porque necessariamente despóticas, não existindo Estados bons ou maus. A dicotomia
medieval era a relação Igreja e Estado, encontrando esta concepção
negativa de Estado um paralelo moderno em Marx.
De fato, para os escritores católicos medievais, o momento positivo da
vida na Terra era a Igreja e não o Estado - como na tradição clássica —
assim como, para Marx, o momento positivo não é o Estado, mas a futura
sociedade sem classes e, portanto, sem Estado36.
Numa concepção negativa de Estado, a distinção entre formas de
Prefácio
21
governo perde substância. Ora, como para Marx o Estado não surge,
como em Hobbes, para pôr termo à guerra de todos contra todos mas sim
para perpetuá-la através da manutenção da divisão do trabalho, que
perpetua a desigualdade, o Estado e o direito sempre representam o
despotismo de uma classe em relação a outras. É por isso que, para Marx,
o despotismo se encarna no Estado, pois ele tem do Estado uma
concepção técnica e realista, graças à qual ele o analisa como um
instrumento de domínio37, proveniente da divisão da sociedade em
classes.
Na tradição marxista, a obra mais completa sobre o Estado, lembra
Bobbio no seu curso, é a de Engels, que, no entanto, cuida mais da
formação histórica do Estado do que a da organização do poder
político38. É por essa razão que a tradição marxista é insuficiente para a
elaboração de uma doutrina socialista do Estado. A superavaliação das
poucas indicações prospectivas sobre a vida coletiva, dadas por Marx na
sua análise da Comuna de Paris, registra Bobbio em Quale Socialismo?, é
uma prova da exigüidade da documentação sobre o tema do Estado na
tradição do pensamento socialista, sobretudo quando comparada com a
rica tradição do pensamento liberal. Um Estado sobrecarregado de
funções, que geram inclusive uma multiplicidade de entidades dispersas
que escapam aos controles clássicos, como se verifica na práxis do Estado
contemporâneo, e que tende a perdurar, seja qual for o regime econômico, conclui Bobbio na sua crítica ético-política, não pode ser democratizado apenas através de fórmulas de confraternização do tipo das
preconizadas por Marx e retomadas por Lenin em O Estado e a Revolução39.
Daí a conveniência, para uma crítica ético-política baseada nestas
perspectivas, de se retomar, no plano da filosofia política e jurídica, o tema
da tirania e do despotismo.
Bobbio, no seu curso, menciona, entre os tratados medievais sobre o
tema, o De regimine civitatis, de Bartolo (1314-1357), no qual este introduz a
distinção entre o tyrannus expart exercitii, isto é, aquele que é tirano porque
exerce abusivamente o poder, e o tyrannus ex defectu tituli, isto é, aquele que
é tirano porque conquistou o poder sem ter direito. Esta distinção teve
sucesso e o próprio Bobbio dela se valeu para distinguir e diferenciar
legalidade de legitimidade40.
Bobbio também discute o Tractatus de tyranno, escrito no final do
século XV por Colucio Salutati, em que este retoma a distinção de Bartolo
e indica, como característica do principatus despoticus, aquela em que o rei
governa no interesse próprio, adicionando a esta postura aristotélica a
nota: como se os seus súditos fossem escravos41 e não homens livres.
Entretanto, mais do que a discussão sobre o tema da tirania e do
despotismo nos diversos autores que Bobbio examina, creio que importa
mencionar, para os propósitos deste ensaio, os capítulos XI e XIV do curso
intitulados, respectiva e significativamente, Intermezzo sul dispotismo e
Intermezzo sulla dittatura. Em ambos, Bobbio refaz as doutrinas do passado
para poder encaminhar a crítica ético-política do presente, com os olhos
voltados para o futuro.
No intermezzo sobre o despotismo, Bobbio aponta as continuidades e
22
A Teoria das Formas de Governo
as descontinuidades entre Montesquieu e a tradição que o precede. O
elemento de continuidade, em relação à categoria do despotismo, reside
na delimitação histórica e geográfica desta forma de governo, que a
tradição ocidental sempre localizou fora da Europa - na Ásia ou no
Oriente. O elemento de descontinuidade é a originalidade de Montesquieu ao considerar o despotismo não como uma monarquia degenerada,
à maneira de Aristóteles, Maquiavel e Bodin, mas sim como uma forma
autônoma de governo, explicável por uma série de variáveis entre as quais
se incluem o clima, o terreno, a extensão do território, a religião e a índole
dos habitantes.
Até o século XVII, seja como monarquia degenerada, seja como
categoria autônoma, o despotismo sempre foi encarado como uma forma
negativa de governo. Entretanto, é nesta época que pela primeira vez na
história do pensamento político surge, com os fisiocratas, uma avaliação
positiva do despotismo. É a célebre tese do "despotismo esclarecido",
propugnada por François Quesnay (1694-1774); Pierre-Samuel Dupont
de Nemour (1739-1817) e Paul-Pierre Mercier de la Rivière (1720-1793).
Em síntese, para esses autores as leis positivas devem ser leis declaratórias
da ordem natural, aplicadas por um príncipe ilustrado, pois apenas o
governo de uma só pessoa pode se deixar guiar pela evidência racional42,
que segundo essa corrente é capaz de esclarecer e nortear a vida da
comunidade política.
Se o despotismo até o século XVII sempre foi visto como uma forma
degenerada de governo, o mesmo não se pode dizer da ditadura, que na
sua origem romana, como lembra Bobbio no "intermezzo" final de seu
curso, era uma magistratura constitucional extraordinária, que nada tinha
a ver com o despotismo, pois a excepcionalidade dos poderes do ditador,
proveniente de um estado de necessidade e não da história ou da
geografia, tinha como contrapeso uma duração limitada. Classicamente,
o poder do ditador era apenas o executivo. Ele podia suspender as leis,
mas não modificá-las. Esta é a acepção de ditadura tal como aparece, por
exemplo, nas reflexões e análises de Maquiavel, Bodin e Rousseau*3.
Este conceito de ditadura se altera com a Revolução Francesa, quando
se instaurou, como dirá Carl Schmitt, uma ditadura soberana e constituinte. Esta, na lição de Saint-Just e Robespierre, baseia-se na concomitância
da virtude e do terror, posto que o terror, sem a virtude, é funesto, e a
virtude sem o terror é impotente. A ditadurajacobina, ao insistir no terror,
aproxima, pela primeira vez, o despotismo, caracterizado, como dizia
Montesquieu, pela igualdade diante do medo, da ditadura.
A ditadura jacobina assinala também o desaparecimento da
mono-craticidade do poder, pois este não é mais, como na tradição
clássica, a magistratura de uma só pessoa, mas a ditadura de um grupo
revolucionário - no caso da França-, a Comissão de Salvação Pública. Esta
dissociação entre o conceito de ditadura e o conceito de poder
monocrático indica, consoante Bobbio, a passagem do uso clássico do
conceito ao uso marxista, engelsiano e leninista, que introduziu e
divulgou a expressão "ditadura da burguesia" e "ditadura do
proletariado", com isso entendendo o domínio exclusivo de uma só
classe social44.
Prefácio
23
Não é preciso lembrar que o medo e o terror que se associaram ao
conceito de ditadura jacobina deram a esta forma de governo uma
conotação negativa, que se verifica hoje em dia no uso quotidiano da
palavra. Por outro lado, a dimensão de virtude imprime ao termo a sua
conotação positiva clássica. Esta conotação positiva tem, como aponta
Bobbio, um nexo com o despotismo esclarecido na medida em que, na
sua vertente marxista-leninista, é uma forma de governo conduzida por
uma vanguarda aparentemente iluminada por propósitos de virtude. Se
existe um nexo com a tirania- e estas são as palavras finais de Bobbio no
seu curso- este é um juízo que ele submete, hegelianamente, ao tribunal
da história45.
Se Bobbio, no seu curso, suspende o juízo, até mesmo por uma
exigência de rigor explícita na sua proposta pedagógica, não é isto o que
ele faz na sua crítica ético-política quando, em Quale Socialismo?, não hesita
em dizer que, se ditadura é domínio discricionário e se esta não se reveste
de uma natureza excepcional e provisória, o termo apropriado é
despotismo, com todas as cargas negativas que esta forma de governo
carrega na tradição da filosofia política46. Daí a insistência de Bobbio,
enquanto liberal e socialista, na democracia enquanto forma de governo.
Diria, neste sentido, que a tradição do pensamento liberal - Locke,
Kant, Benjamin Constante, Tocqueville - e as técnicas do Estado de
direito que inspiraram o normativismo convergem, na reflexão de
Bobbio, no sentido de evidenciar que o exercício do poder, no bom
governo, requer instituições disciplinadas pelo princípio da legalidade.
Por outro lado, a tradição socialista de Bobbio o impele a insistir no
aprofundamento e na extensão, ex parte populi, da legalidade, através da
recuperação das instâncias democráticas da sociedade por meio de regras
que permitam a participação de maior número de cidadãos nas deliberações que lhes interessam, seja nos diversos níveis (municipal, regional,
nacional), seja nos diversos loci (escola, trabalho, etc).
Em síntese, para Bobbio o problema do desenvolvimento da democracia no mundo contemporâneo não é apenas quem vota, mas onde se vota
e se delibera coletivamente, pois é no controle democrático do poder
econômico que, segundo ele, se vencerá ou se perderá a batalha pela
democracia socialista. Esta postura em prol da democracia, que é mais
revolucionária do que a socialização dos meios de produção, posto que
subverte a concepção tradicional de poder, Bobbio a justifica com
argumentos históricos, éticos, políticos e utilitários47.
Bobbio aponta que hoje se atribui à democracia um valor positivo,
que contrasta com significativas correntes da tradição clássica. Historicamente, este valor positivo resulta do desenvolvimento, a partir do século
passado, no contexto institucional do Estado liberal, do movimento
operário, da extensão do sufrágio e da entrada em cena dos partidos de
massa que, num processo de ação conjunta, evidenciaram as necessidades
de reforma da sociedade.
Eticamente, Bobbio explica por que o método democrático tende a
ativar a autonomia da norma aceita e, portanto, diminuir a heteronomia
da norma imposta. Politicamente, evoca ele a sabedoria institucional da
24
A Teoria das Formas de Governo
democracia, que enseja um controle dos governantes através da ação dos
governados, com isto institucionalizando um dos poucos remédios
válidos contra o abuso de poder. E, finalmente, a partir de uma ótica
utilitária, Bobbio reafirma a sua convicção de que os melhores intérpretes
do interesse coletivo são os próprios interessados48.
Bobbio não ignora as dificuldades da democracia, porém insiste nos
seus méritos, seja porque examina os problemas do Estado ex parte populi,
vendo portanto como problema de fundo das formas de governo o da
liberdade49, seja porque, coerentemente com esta perspectiva, realça que
as normas podem ser criadas de dois modos: autonomamente pelos seus
próprios destinatários, ou heteronomamente por pessoas diversas dos
destinatários. Ex parte populi, é evidente a razão pela qual Bobbio prefere a
democracia enquanto processo de nomogênese jurídica, posto que se
trata de uma forma de governo que privilegia uma concepção ascendente
de poder graças à qual a comunidade política elabora as leis através de
uma organização apropriada da vida coletiva. De fato, como diz Bobbio,
democrático é o sistema de poder no qual as decisões que interessam a
todos - e que por isso mesmo são coletivas - são tomadas por todos os
membros que integram uma coletividade50. Isto, no entanto, não ocorre
espontaneamente, sem uma organização apropriada que, por sua vez,
requer regras de procedimentos. Daí o papel do direito enquanto técnica
de convivência indispensável para a reforma da sociedade.
Estes procedimentos que, enquanto legalidade, conferem qualidade
ao exercício do poder, são indispensáveis, dada a relevância da relação
entre meios e fins e o nexo estreito que existe entre procedimentos e
resultados. O resultado da tortura, lembra Bobbio, pode ser a obtenção da
verdade, entretanto trata-se de procedimento que desqualifica os resultados. Os meios, portanto, condicionam os fins, e os fins, conclui Bobbio,
só justificam os meios quando os meios não corrompem e desfiguram os
fins almejados51.
É neste sentido que se pode dizer que o rigor técnico do normativismo de Bobbio está a serviço da causa da liberdade na sua defesa de um
socialismo democrático. De fato, uma das notas importantes que o rigor
técnico de Bobbio evidencia, no estudo dos ordenamentos jurídicos do
Estado contemporâneo, é o fato de os ordenamentos obedecerem, hoje
em dia, a um princípio dinâmico, ou seja, as normas que os compõem
mudam constantemente para enfrentar os desafios da conjuntura. É por
essa razão que ele dá ênfase à distinção técnica entre normas primárias e
normas secundárias. As normas primárias são as que prescrevem,
proscrevem, estimulam ou desestimulam comportamentos para a sociedade. Como elas estão em contínua transformação, torna-se cada vez mais
relevante - ao contrário do que ocorre num Direito tradicional e
sedimentado — estudar os procedimentos por meio dos quais estas
normas são criadas e aplicadas. Daí a relevância do estudo das normas
secundárias, isto é, das normas sobre normas, que são basicamente
aquelas que tratam, ou da produção das normas primárias, ou do modo
como as normas primárias são aplicadas. É, portanto, através das normas
secundárias que se pode, numa compreensão moderna da legalidade,
Prefácio
25
cuidar da qualidade dos procedimentos e do nexo positivo entre meios e
fins52.
Por outro lado, afirma Bobbio, o modo como o poder é conquistado não
é irrelevante para a forma pela qual ele será exercido53, estabelecendo ele,
desta maneira, o nexo entre a legalidade enquanto qualidade dos procedimentos e a legitimidade enquanto título para o exerdcio do poder. Já Políbio -o
grande teórico do governo misto, que Bobbio analisa com muita finura no
capítulo IV do seu curso - afirmava que o início não é apenas a metade do
todo, como reza o provérbio grego, mas alcança e vincula o término54. Na
expressiva afirmação de Guglielmo Ferrero, a legitimidade é uma ponte
de natureza jurídica que se insere entre o poder e o medo para tornar as
sociedades mais humanas55; se assim é, não há de ser pelo terror, ainda
que imbuído de virtude, mas sim pelo consenso do agir conjunto, que se
implantará na visão de Bobbio, uma democracia socialista.
Esta postura de Bobbio, na sua crítica ético-política, quanto ao
tema da legitimidade e da legalidade, resulta, creio eu, da firmeza de suas
convicções liberais e da generosidade de sua militância socialista. Raymond Aron tem razão quando afirma que os liberais da linhagem de
Tocqueville, entre os quais se inclui Bobbio, participam sem receio da
empresa prometeica do futuro, esforçando-se para agir segundo as lições,
por mais incertas que sejam, da experiência histórica, preferindo conformar-se com as verdades parciais que recolhem do que valer-se de falsas
visões totais56. Já os socialistas democráticos, como Bobbio, de extensos
conhecimentos de filosofia, não fazem parte daqueles que dizem: "É
preciso tudo destruir para, a seguir, recomeçar da estaca zero". Como
afirma outra grande figura contemporânea da esquerda democrática,
Pierre Mendes-France, na conclusão de seu livro La Vérité guidait leur.Pas:
"On ne repartpas de zero — ou alors on impose des cruautés et des convulsions que nous
avons le devoir d 'épargner aux plusfaibles etaux nouvelles générations. Et onperds du
temps. Je suis irnpatient"57.
Penso que, na defesa da causa da liberdade, a verdade guiou os passos
de Bobbio - para concluir com o título do livro de Mendes-France - no
caminho que percorreu e que transita, conforme procurei mapear nestas
notas, pela filosofia do direito, pela filosofia política e pela crítica éticopolítíca das leis. Um caminho em que o rigor da análise do filósofo não
impede o juízo do militante e a técnica do jurista não paralisa os esforços
do cidadão para realizar os valores da justiça.
Celso Lafer São Paulo,
maio de 1980
Notas
1. Cf. ASTÉRIO CAMPOS, O Pensamento Jurídico de Norberto Bobbio, S. Paulo: Saraiva, 1966,
cap. I; GUIDO FASSÒ, Storia delia Filosofia delDiritto, vol. III: Ottocento e Novecento, Bolonha: II.
Mulino, 1970, pp. 410-412.
2. NORBERTO BOBBIO, Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico, (2? ed.), Milão: Ed. di
Nota
Este curso tem como tema as teorias das formas de governo. Em anos
anteriores tive já a oportunidade de afirmar que se há uma razão que
justifique um curso de filosofia da política, distinto dos cursos sobre a
história das doutrinas políticas e da ciência política, é a necessidade de
estudar e analisar os chamados "temas recorrentes", quer dizer, os temas
que têm sido propostos e discutidos pela maioria dos escritores políticos,
em especial pelos que elaboraram ou esboçaram teorias gerais ou parciais
da política. O estudo desses temas recorrentes tem dupla importância: de
um lado, serve para identificar algumas categorias gerais (a começar pela
própria categoria do "político") que permitem a análise e a fixação dos
vários aspectos do fenômeno político, sua comparação, a construção de
sistemas conceituais mais ou menos coerentes e compreensivos; serve
também para determinar afinidades e diferenças entre teorias políticas
diversas, de épocas distintas.
Um desses temas recorrentes é a tipologia das formas de governo.
Quase todos os escritores políticos propuseram e defenderam uma certa
tipologia das formas de governo. É desnecessário acentuar aqui a
importância dessas tipologias, seja porque por meio delas alguns conceitos gerais foram elaborados e examinados repetidamente (os de oligarquia, democracia, despotismo, governo misto, etc), seja porque constituem um dos aspectos em que uma teoria pode ser melhor caracterizada e
confrontada com outras teorias.
Se considerarmos a sociedade política (numa definição provisória) a
forma mais intensa e vinculante de organização da vida coletiva, a
primeira constatação de qualquer observador da vida social é a de que há
vários modos de determinar essa organização, conforme o lugar e a época.
É a seguinte a pergunta que a temática das formas de governo vai
responder:
"Quantos são esses modos e quais são eles?"
O objetivo deste curso é justamente examinar algumas respostas a
essa pergunta, de significação especial, começando com a filosofia grega e
32
A Teoria das Formas de Governo
chegando ao limiar da Idade Contemporânea. Em cada período examinaremos apenas alguns autores, que reputo exemplares. Será desnecessário
explicar ainda uma vez que nosso objetivo não será histórico, porém
conceituai. Por outro lado, como não me consta que se tenha jamais feito
tentativa semelhante do ponto de vista histórico - isto é, da história das
idéias - o material aqui reunido poderá constituir um instrumento de
trabalho útil também para os historiadores.
Introdução
Antes de dar início à exposição e ao comentário de algumas das
teorias mais conhecidas sobre as formas de governo, cabe tecer certas
considerações genéricas sobre o tema.
A primeira delas é a de que, de modo geral, todas as teorias sobre as
formas de governo apresentam dois aspectos: um descritivo, o outro
prescritivo. Na sua função descritiva, o estudo das formas de governo leva
a uma tipologia- classificação dos vários tipos de constituição política que
se apresentam à consideração do observador de fato, isto é, na experiência
histórica. Mais precisamente, na experiência histórica conhecida e analisada pelo observador. Nesse caso, o escritor político se comporta como
um botânico que, depois de observar e estudar com atenção um
determinado número de plantas, divide-as de acordo com suas peculiaridades, ou as reúne segundo suas afinidades, chegando assim a classificálas com uma certa ordem. As primeiras grandes classificações das formas
de governo, como as de Platão e Aristóteles, pertencem a essa categoria:
baseiam-se em dados extraídos da observação histórica, espelhando a
variedade dos modos com que se vinham organizando as cidades
helênicas, a partir da Idade de Homero.
No entanto, não há tipologia que tenha exclusivamente uma função
descritiva. Ao contrário do botânico, que só se interessa pela descrição,
evitando escolher entre as várias espécies descritas, o escritor político não
se limita a um exercício descritivo: ele postula, geralmente, um outro
problema - o de indicar, de acordo com critério que difere naturalmente
de autor para autor, quais das formas descritas são boas, quais delas são
más; quais as melhores e as piores; por fim, qual é a melhor de todas, e a
pior. Em suma, não se limita a descrever, isto é, a expressar um
julgamento de fato; sem o perceber exatamente, exerce também uma
outra função — a de exprimir um ou mais julgamentos de valor,
orientando a escolha por parte dos outros. Em outras palavras, prescrevendo. Como se sabe, a propriedade de qualquerjuízo de valor na base da
qual achamos que alguma coisa (uma ação, um objeto, um indivíduo,
34
A Teoria das Formas de Governo
formação social) é boa ou má é a de exprimir uma preferência, com a
finalidade de modificar o comportamento alheio no sentido por nós
desejado.
Posso dizer também a mesma coisa da seguinte forma: uma tipologia
pode ser empregada de dois modos diferentes, "sistemático" ou "axiológico". O primeiro é aquele na base do qual a tipologia é usada para
ordenar os dados colhidos; o segundo, aquele em que a mesma tipologia
serve para determinar uma ordem de preferência entre tipos ou classes
dispostos sistematicamente, com o propósito de suscitar nos outros uma
atitude de aprovação ou desaprovação e, por conseguinte, de orientar sua
escolha.
Seria o caso de perguntar como o escritor político (de modo geral, o
cientista social) pode ter comportamento diferente do botânico (de modo
geral, do cientista da natureza). O problema é muito complexo, mas pode
ter uma resposta bastante simples: a postura assumida pelo cientista social
e pelo cientista da natureza, diante do objeto da sua investigação, é
influenciada pelo fato de que o primeiro crê poder interferir diretamente
nas transformações da sociedade, enquanto o segundo não pretende
influir sobre as transformações da natureza. O emprego axiológico de
qualquer conceito está ligado estreitamente à idéia de que uma mudança
na estrutura da realidade, à qual o conceito em questão se refere, é não só
desejável mas possível; um julgamento de valor pressupõe que as coisas a
que atribuo importância podem vir a ser diferentes do que são. Um
julgamento factual só tem a pretensão de dar a conhecer um certo estado
de coisas; mas um julgamento de valor pretende modificar o estado de
coisas existente. Pode-se dizer o mesmo de outro modo: enquanto uma
teoria sobre um aspecto qualquer da natureza é apenas uma teoria, a
teoria relativa a um aspecto da realidade histórica e social é quase sempre
também uma ideologia- isto é, um conjunto mais ou menos sistemático
de avaliações, que deveriam induzir o ouvinte a preferir uma determinada
situação a outra. Em suma, para concluir - extraindo as conseqüências
extremas do afastamento entre o cientista natural e o cientista social, e
exibindo-o em toda a sua evidência -, ninguém se espanta quando um
pesquisador social (que, de acordo com o ideal científico do naturalista,
deveria só "descrever, explicar" e eventualmente "rever") nos oferece um
projeto de reforma da sociedade; mas todos veriam com compreensível
desconfiança o físico que apresentasse um projeto de reforma da
natureza.
Creio que será útil dizer algo mais sobre o emprego axiológico.
Diante da variedade de formas de governo, há três posições possíveis:
a) todas as formas existentes são boas; b) todas são más; c) algumas são
boas, outras são más. De um modo muito geral, pode-se dizer que a
primeira posição implica uma filosofia relativista e historicista segundo a
qual todas as formas de governo são apropriadas à situação histórica
concreta que as produziram (e não poderiam produzir uma outra,
diferente): na conclusão de La Scienza Nuova, Vico fala a respeito de uma
"eterna república natural, excelente em cada uma das suas espécies". Em
Platão, encontramos um exemplo clássico da segunda posição, segundo a
Introdução
35
qual todas as formas de governo reais são más, pois representam uma
corrupção da única forma boa, que é ideal. A terceira posição é a mais
freqüente; como foi formulada numa obra que marcou época na história
da filosofia política - a Política de Aristóteles -, podemos chamá-la de
"aritotélica".
É necessário acrescentar, contudo, que de modo geral uma axiologia
não se limita a distinguir o que é bom (no sentido absoluto) do que é mau
(no mesmo sentido); geralmente estabelece uma ordem, hierarquia - ou
melhor, uma ordem hierarquizada - entre as coisas que são objeto de
avaliação, por meio do julgamento comparativo. O mesmo acontece com
o uso axiológico das tipologias das formas de governo, de modo que as
formas boas não são todas boas do mesmo modo, havendo algumas
melhores do que outras; e entre as formas más há algumas piores. Por
meio de um julgamento do valor comparativo, o êxito de uma axiologia
das formas de governo termina sendo sua ordenação de modo hierarquizado, permitindo passar do melhor ao pior através do menos bom e do
menos mau, numa escala de preferências. Parece supérfluo notar que a
possibilidade de estabelecer tal escala de preferências leva a uma grande
variedade de tipologias, sobretudo quando os objetos a ordenar são
numerosos; de fato, duas tipologias que concordam na avaliação de certas
formas como boas, e de outras como más, podem distinguir-se pela
caracterização das melhores formas, dentre as boas, e das piores, dentre as
más.
Além de um julgamento de valor comparativo, uma axiologia pode
compreender também juízos absolutos de valor. Isso significa que uma
tipologia das formas de governo pode levar a uma tomada de posição que,
indique qual é a melhor forma, e qual a pior. É freqüente o caso de
escritores políticos que formularam uma teoria da melhor forma de
república, ou do melhor Estado. Podemos distinguir pelo menos três
maneiras diferentes com quejá se elaboraram modelos do melhor Estado:
1) "Por meio da idealização de uma forma histórica". É o que
aconteceu, por exemplo, como veremos mais adiante, com relação a
Atenas e sobretudo Esparta, na Antigüidade (mas não só na Antigüidade),
com a República Romana- considerada por alguns dos mais importantes
escritores políticos como um modelo de Estado, o segredo de cujo poder e
glória se procurava descobrir -, com a República de Veneza, no
Renascimento, com a monarquia inglesa, na Idade Moderna. Poderíamos
acrescentar que o primeiro Estado socialista, a União Soviética, tem
exercido a mesma função, sendo considerado como um Estado-guia pelos
partidos comunistas dos Estados ainda não transformados pela revolução.
2) "Combinando numa síntese ideal os vários elementos positivos de
todas as formas boas, de modo a eliminar seus efeitos, conservando-lhes as
qualidades." É o ideal do chamado Estado misto, de que encontraremos
muitos exemplos nas lições que seguem, e cuja melhor formulação teórica
remonta ao historiador Políbio.
3) Por fim, "a construção da melhor república pode ser uma pura
elaboração intelectual, completamente abstrata, em relação à realidade
histórica", como pode ser confiada à imaginação, à visão poética, que se
36
A Teoria das Formas de Governo
compraz em planejar Estados ideais que nunca existiram e nunca
existirão. Trata-se do pensamento utópico, que aparece em todas as
épocas, especialmente durante as grandes crises sociais, elaborado por
criadores apaixonados e inspirados. Enquanto as duas formas precedentes do melhor Estado são uma idealização da realidade, a utopia dá um
salto para fora da história, projetando-se em lugar e época imaginários.
Estas observações introdutórias não estariam completas se não
mencionássemos o fato de que, ao lado do uso sistemático e axiológico da
tipologia das formas de governo, estas podem ter- e têm tido efetivamente
— um outro emprego, que chamaríamos "histórico": aquele que encontramos em alguns autores, interessados em esboçar uma filosofia da
história propriamente dita, isto é - para dizê-lo de modo mais simples com o propósito de desenhar as linhas do desenvolvimento histórico. Um
desenvolvimento cujo traçado, de uma forma de governo para outra,
naturalmente varia conforme o autor. Isso tem o seguinte resultado: as
várias formas de governo não são apenas modos diversos de organizar a
vida política de um grupo social, mas também fases ou modos diversos e
sucessivos, geralmente concatenados, um descendendo do outro, pelo
seu desenvolvimento interno, dentro do processo histórico. Como
teremos oportunidade de ver, na Antigüidade clássica as teorias das
formas de governo se resumem muitas vezes, ainda que de forma mais ou
menos mecânica, numa concepção cíclica da história; isto é, numa
concepção da história segundo a qual determinada forma de governo se
dissolve para transformar-se em outra, provocando assim uma série de
fases de desenvolvimento ou de decadência que representam o curso fatal
dos acontecimentos humanos. Hegel nos dá um exemplo notável do
emprego histórico de uma teoria das formas de governo ou, melhor dito,
da transformação do uso sistemático no uso histórico da mesma tipologia,
ao assumir a célebre divisão tríplice das formas de governo, enunciada
por Montesquieu (monarquia, república, despotismo), fazendo dela os
três momentos fundamentais do progresso histórico. Considera o despotismo como a forma de governo típica do mundo oriental; a república do
mundo romano; a monarquia, do mundo moderno.
Vale a pena lembrar que, de modo geral, no emprego histórico de
uma tipologia não é irrelevante a distinção entre a forma boa e a má,
porque esta última, degeneração da primeira, permite a passagem para
uma nova forma boa, a qual, por sua vez, ao se corromper, cria condições
para uma passagem ulterior. Assim, quando a monarquia- que é a forma
boa - se transforma em tirania - forma má -, nasce como reação a
aristocracia, que é também uma forma boa; esta, decaindo, transforma-se
em oligarquia, que vai gerar a democracia, e assim por diante. Em
substância, a forma má constitui uma etapa obrigatória da transformação
de uma fase em outra, tendo portanto uma função positiva (embora seja
essencialmente negativa), não em si mesma, porém quando considerada
como um momento da totalidade. Poder-se-ia dizer também que quando
uma tipologia é empregada historicamente, isto é, para traçar as linhas de
uma filosofia da história, readquire uma função meramente descritiva,
perdendo todo caráter prescritivo. Quando aquilo que é axiologicamente
Introdução
37
negativo se transforma em algo historicamente necessário, o julgamento
dos latos predomina sobre o julgamento de valor. Mas esteé um ponto ao
qual farei aqui apenas uma referência.
Capítulo I UMA
DISCUSSÃO CÉLEBRE
Uma história das tipologias das formas de governo, como esta, pode
ter início na discussão referida por Heródoto, na sua História (Livro III,
§§ 80-82), entre três persas-Otanes, Megabises e Dario-sobre a melhor
forma de governo a adotar no seu país depois da morte de Cambises. O
episódio, puramente imaginário, teria ocorrido na segunda metade do
século VI antes de Cristo, mas o narrador, Heródoto, escreve no século
seguinte. De qualquer forma, o que há de notável é o grau de desenvolvimento que já tinha atingido o pensamento dos gregos sobre a política
ura século antes da grande sistematização teórica de Platão e Aristóteles
(no século IV). A passagem é verdadeiramente exemplar porque, como veremos, cada uma das três personagens defende uma das três
formas de governo que poderíamos denominar de "clássicas" - não só
porque foram transmitidas pelos autores clássicos mas também porque se
tornaram categorias da reflexão política de todos os tempos (razão por
que são clássicas mas igualmente modernas). Essas três formas são: o
governo de muitos, de poucos e de um só, ou seja, "democracia",
"aristocracia" e "monarquia", embora naquela passagem não encontremos
ainda todos os termos com que essas três modalidades de governo foram
consignadas à tradição que permanece viva até nossos dias. Dado o caráter
exemplar do trecho, e sua brevidade, convém reproduzi-lo integralmente:
"Cinco dias depois de os ânimos se haverem acalmado, aqueles que
se rebelaram contra os magos examinaram a situação; as palavras que
disseram então pareceriam incríveis a alguns gregos, mas foram realmente pronunciadas.
Otanes propôs entregar o poder ao povo persa, argumentando assim:
'Minha opinião é que nenhum de nós deve ser feito monarca, o que seria
penoso e injusto. Vimos até que ponto chegou a prepotência de Cambises,
e sofremos depois a dos magos. De que forma poderia não ser irregular o
governo monárquico se o monarca pode fazer o que quiser, se não é
40
A Teoria das Formas de Governo
responsável perante nenhuma instância? Conferindo tal poder, a monarquia afasta do seu caminho normal até mesmo o melhor dos homens. A
posse de grandes riquezas gera nele a prepotência, e a inveja é desde o
princípio parte da sua natureza. Com esses dois defeitos, alimentará todas
as malvadezas: cometerá de fato os atos mais reprováveis, em alguns casos
devido à prepotência, em outros à inveja. Poderia parecer razoável que o
monarca e tirano fosse um homem despido de inveja, já que possui tudo.
Na verdade, porém, do modo como trata os súditos demonstra bem o
contrário: tem inveja dos poucos bons que permanecem, compraz-se com
os piores, está sempre atento às calúnias. O que há de mais vergonhoso é
que, se alguém lhe faz homenagens com medida, crê não ter sido bastante
venerado; se alguém o venera em excesso, se enraivece por ter sido
adulado. Direi agora, porém, o que é mais grave: o monarca subverte a
autoridade dos pais, viola as mulheres, mata os cidadãos ao sabor dos seus
caprichos.
O governo do povo, porém, merece o mais belo dos nomes,
'isonomia'; não faz nada do que caracteriza o comportamento do
monarca. Os cargos públicos são distribuídos pela sorte; os magistrados
precisam prestar contas do exercício do poder; todas as decisões estão
sujeitas ao voto popular. Proponho, portanto, rejeitarmos a monarquia,
elevando o povo ao poder o grande número faz com que tudo seja
possível'.
Esse foi o parecer de Otanes. Megabises, contudo, aconselhou a
confiança no governo oligárquico: 'Subscrevo o que disse Otanes em
defesa da abolição da monarquia; quanto à atribuição do poder ao povo,
contudo, seu conselho não é o mais sábio. A massa inepta é obtusa e
prepotente; nisto nada se lhe compara. De nenhuma forma se deve tolerar
que, para escapar da prepotência de um tirano, se caía sob a da plebe
desatinada. Tudo o que faz, o tirano faz conscientemente; mas o povo não
tem sequer a possibilidade de saber o que faz. Como poderia sabê-lo, se
nunca aprendeu nada de bom e de útil, se não conhece nada disso, mas
arrasta indistintamente tudo o que encontra no seu caminho? Que os que
querem mal aos persas adotem o partido democrático; quanto a nós,
entregaríamos o poder a um grupo de homens escolhidos dentre os
melhores - e estaríamos entre eles. É natural que as melhores decisões
sejam tomadas pelos que são melhores'.
Foi esse o parecer de Megabises. Em terceiro lugar, Dario manifestou
sua opinião: 'O que disse Megabises a respeito do governo popular me
parece justo, mas não o que disse sobre a oligarquia. Entre as três formas
de governo, todas elas consideradas no seu estado perfeito, isto é, entre a
melhor democracia, a melhor oligarquia e a melhor monarquia, afirmo
que a monarquia é superior a todas. Nada poderia parecer melhor do que
um só homem- o melhor de todos; com seu discernimento, governaria o
povo de modo irrepreensível; como ninguém mais, saberia manter seus
objetivos políticos a salvo dos adversários.
Numa oligarquia, é fácil que nasçam graves conflitos pessoais entre os
que praticam a virtude pelo bem público: todos querem ser o chefe, e
fazer prevalecer sua opinião, chegando por isso a odiar-se; de onde
Uma Discussão Célebre
41
surgem as facções, e delas os delitos. Os delitos levam à monarquia, o que
prova que esta é a melhor forma de governo.
Por outro lado, quando é o povo que governa, é impossível não haver
corrupção na esfera dos negócios públicos, a qual não provoca inimizades, mas sim sólidas alianças entre os malfeitores: os que agem contra o
bem comum fazem-no conspirando entre si. É o que acontece, até que
alguém assume a defesa do povo e põe fim às suas tramas, tomando-lhes o
lugar na admiração popular; admirado mais do que eles, torna-se
monarca. Por isso também a monarquia é a melhor forma de governo.
Em suma, para dizê-lo em poucas palavras: de onde nos veio a
liberdade? Quem a deu? O povo, uma oligarquia, ou um monarca?
Sustento que, liberados por obra de um só homem, devemos manter o
regime monárquico e, além disso, conservar nossas boas instituições
pátrias: não há nada melhor' ".
A passagem é tão clara que é quase desnecessário comentá-la. A
observação mais interessante que podemos fazer é a de que cada um dos
três interlocutores faz uma avaliação positiva de uma das três constituições e anuncia um julgamento negativo das outras duas. Defensor do
governo do povo (que ainda não é chamado de "democracia"; esse termo
tem de modo geral, nos grandes pensadores políticos, uma acepção
negativa, de mau governo), Otanes condena a monarquia. Defensor da
aristocracia, Megabises condena o governo de um só e o governo do povo.
Por fim, Dario que defende a monarquia, condena tanto o governo do
povo como o governo de uns poucos (usando o termo destinado a
descrever ordinariamente a forma negativa do governo de poucos - a
oligarquia). Como já foi observado, o fato de que cada constituição é
apresentada como boa por quem a defende e como má pelos defensores
dos dois outros tipos tem o efeito de deixar bem clara, no debate, a
classificação completa, que será enunciada por sucessivos pensadores,
para quem elas não serão apenas três, porém seis — já que às três boas
correspondem três outras, más. A diferença entre a apresentação dessas
constituições no debate de Heródoto e nas classificações seguintes (como
a de Aristóteles) está em que no debate, que é um discurso do tipo
prescritivo (vide a Introdução), a cada constituição proposta como boa
correspondem duas outras, vistas corno más; em Aristóteles, cuja linguagem é simplesmente descritiva, a cada constituição boa corresponde a
mesma na sua forma má. A diferença ficará clara nos dois esquemas
seguintes:
Heródoto
monarquia
aristocracia
democracia
Otanes
-
-
+
Megabises
-
+
-
Dario
+
-
-
A Teoria das Formas de Governo
Aristóteles
Monarquia
+-
Aristocracia
+-
Democracia
+-
Convém esclarecer, aqui, que a classificação sêxtupla (com três
constituições boas e três más) deriva do cruzamento de dois critérios, um
dos quais responde à pergunta "Quem governa?", o outro à pergunta
"Como governa?" (isto é, "como" governam aquele ou aqueles indicados
pela resposta à primeira pergunta). Como se pode ver no esquema
seguinte (no qual empregamos a terminologia de Políbio):
Como?
bem
Quem?
mal
um
monarquia
tirania
poucos
aristocracia
oligarquia
muitos
democracia
oclocracia
Será interessante considerar também brevemente os argumentos com
que os três interlocutores exaltam uma constituição e criticam as outras
duas; alguns desses argumentos manifestam de forma surpreendente
esses "temas recorrentes", aos quais me referi no início deste curso. O
contraste entre a monarquia considerada no seu aspecto negativo (isto é,
tirania) e o governo do povo, conforme representado por Otanes, é o que
existe entre ura governo irresponsável e portanto naturalmente arbitrário
("o monarca pode fazer o que quiser... não é responsável perante
nenhuma instância") e o governo baseado na igualdade perante a lei ("... o
mais belo dos nomes, "isonomia"...") e no controle pelo povo ("todas as
decisões estão sujeitas ao voto popular") - portanto, nem irresponsável
nem arbitrário. Ao tirano se atribuem alguns vícios, como a "prepotência", a "inveja", a "irascibilidade", que constituem exemplos já bastante
evidentes de uma fenomenologia da tirania que vem até nossos dias, com
diversas variações. Mais ainda: enquanto a tirania é caracterizada por
atributos psicológicos, o governo do povo é descrito sobretudo por meio
de uma instituição - a distribuição dos cargos públicos mediante sorteio, o
que pressupõe a igualdade absoluta dos cidadãos; fica clara assim, desde o
início - como se vê, e se verá melhor ainda mais adiante - a relação
existente entre os conceitos de "igualdade" e de "governo popular". Com
efeito, o sorteio só não é um procedimento arbitrário se se baseia na
premissa da igualdade dos cidadãos - isto é, de que todos valem o mesmo
Uma Discussão Célebre
43
e que, portanto, qualquer que seja a indicação da sorte, o resultado tem o
mesmo valor.
No que diz respeito às considerações de Megabises, vale observar que
o governo popular também é caracterizado por atributos psicológicos (o
desatino). O mais interessante é que das duas formas de governo
rejeitadas, uma (o governo popular) é considerada pior do que a outra (o
governo monárquico); essa comparação nos dá um exemplo claro da
gradação das constituições, boas ou más, de que falei na Introdução (nào
há apenas governos bons e maus, mas governos melhores e piores do que
outros). O que falta na análise de Megabises é uma caracterização
específica do governo proposto como melhor, diferentemente do que
tínhamos observado no discurso de Otanes, onde o governo do povo é
caracterizado por uma instituição peculiar - o sorteio. A propósito do
governo de poucos, seu defensor se limita a dizer, numa petição de
princípio, que "as melhores decisões (são) tomadas pelos que são
melhores".
Na exposição de Dario aparece pela primeira vez a condenação do
governo de poucos; Otanes criticara o governo tirânico mas não o
oligárquico, e Megabises havia considerado o governo de poucos como o
melhor. O ponto crítico da oligarquia é a facilidade com que o grupo
dirigente se fragmenta em facções - isto é, a falta de um guia único,
necessário para manter a unidade do Estado. O ponto crítico do governo
popular é justamente o contrário: não a discórdia dos bons, mas o acordo
entre os maus (as "sólidas alianças entre os malfeitores"); não a cisão do
que deveria permanecer unido, mas a conspiração do que deveria estar
dividido. Ainda que por razões opostas, tanto o governo de poucos como
o de muitos são maus. Justamente por causa da sua corrupção eles geram
por contraste a única forma boa de governo - a monarquia — que,
portanto, não é apenas melhor do que as outras constituições, de modo
abstrato, mas também necessária, em conseqüência da corrupção das
outras duas - por conseguinte, inevitável. Devemos ter presente o
argumento usado por Dario em favor da monarquia: sua superioridade
depende do fato de que responde a uma necessidade histórica, sendo a
única forma capaz de assegurar a "estabilidade" do poder. Não é em vão
que insistimos desde o início neste tema da "estabilidade", porque, como
veremos, a capacidade que tem qualquer constituição de perdurar, de
resistir à corrupção, à degradação, de se transformar na constituição
contrária, é um dos critérios principais - se não mesmo o principal - com
que podemos distinguir as boas constituições das que são más.
Capítulo II
PLATÃO
Em várias das suas obras Platão (428-347 a.C.) fala das diversas
modalidades de constituição, assunto que é desenvolvido particularmente nos três diálogos de A República, de O Político e das Leis. Vou determe aqui, em especial, em A República, que dedica ao tema dois livros, o
oitavo e o nono; terminarei com uma referência ao O Político.
O diálogo de A República é, como todos sabem, uma descrição da
república ideal, que tem por objetivo a realização da justiça entendida
como atribuição a cada um da obrigação que lhe cabe, de acordo com as
próprias aptidões. Consiste na composição harmônica e ordenada de três
categorias de homens- os governantes-filósofos, os guerreiros e os que se
dedicam aos trabalhos produtivos. Trata-se de um Estado que nunca
existiu em nenhum lugar, como comentam dois interlocutores, no final
do livro décimo:
"— Compreendo; tu falas do Estado que fundamos e discutimos
inexistente a não ser nas nossas palavras; não creio que ele exista em
nenhum lugar na terra.
- Mas talvez haja um exemplo de tal Estado no céu, para quem
queira encontrá-lo, ajustando-se a ele no governo de si próprio" (592 b).
Todos os Estados que realmente existem, os Estados reais, são
corrompidos - embora de modo desigual. Enquanto o Estado perfeito é
um só (e não pode deixar de ser assim, porque só pode haver uma
constituição perfeita), os Estados imperfeitos são muitos, de conformidade com o princípio afirmado em um trecho do diálogo, segundo o qual
"A forma da virtude é uma só, mas o vício tem uma variedade infinita"
(445 c). Segue-se que a tipologia das formas de governo de A República, em
contraste com a que consideramos até agora, originada no primeiro
debate sobre o tema, inclui só formas más, embora nem todas igualmente
más; nenhuma dessas formas é boa. Enquanto no diálogo de Heródoto
tanto as formas boas como as más são, de acordo com os pontos de vista
46
A Teoria das Formas de Governo
dos três interlocutores, formas históricas realizáveis, em A República as
formas históricas (que Platão examina detidamente no livro oitavo) são
más, justamente porque não se ajustam à constituição ideal. A única
forma boa ultrapassa a história - pelo menos até o presente. Ainda mais:
como veremos melhor em seguida, a idéia predominante, de Aristóteles a
Políbio, é a de que a história é uma sucessão contínua de formas boas e
más, como no esquema seguinte:
+-+-+Para Platão, ao contrário, só se sucedem historicamente formas mascada uma pior do que a precedente. A constituição boa não entra nessa
sucessão: existe por si mesma, como modelo, não importa se no princípio
ou no fim da série. Pode-se representar a idéia platônica assim:
+) ---- (+
Na verdade, Platão - como todos os grandes conservadores, que
sempre vêem o passado com benevolência e o futuro com espanto — tem
uma concepção pessimista da história (uma concepção "terrorista", como
diria Kant). Vê a história não como progresso indefinido mas, ao
contrário, como regresso definido; não como uma passagem do bem para
o melhor, mas como um regresso do mal para o pior. Tendo vivido na
época da decadência da gloriosa democracia ateniense, examina, analisa e
denuncia a degradação da pólis: não o seu esplendor. É também - como
todos os grandes conservadores - um historiador (e um moralista) da
decadência das nações, mais do que da sua grandeza. Diante da
degradação contínua da história, a solução só pode estar "fora" da
história, atingível por um processo de sublimação que representa uma
mudança radical (a ponto de levantar a suspeita de que a história não é
capaz de recebê-la e de suportá-la) com relação ao que acontece de fato no
mundo.
As constituições corrompidas que Platão examina demoradamente
no livro oitavo são, em ordem decrescente, as quatro seguintes: timocracia,
oligarquia, democracia e tirania. Vê-se logo que faltam nessa enumeração
duas das formas tradicionais - a monarquia e a aristocracia. Numa
passagem que convém citar em seguida, essas duas formas são atribuídas
indiferentemente à constituição ideal:
"- Digo que uma das formas de governo é justamente a que
consideramos (a constituição ideal), que podemos chamar de duas
maneiras: se um dentre todos os governantes predomina sobre os outros,
é a monarquia; se a direção do governo cabe a mais de uma pessoa, é a
aristocracia.
- É verdade.
— Essas duas modalidades constituem, portanto, uma única
forma:
não importa se são muitos ou um só que governam; nada se altera nas leis
fundamentais do Estado, desde que os governantes sejam treinados e
educados do modo que descrevemos" (445 d).
Platão
47
Em substância, Platão também aceita que haja seis formas de
governo; destas, porém, reserva duas para constituição ideal e quatro para
as formas reais que se afastam, em grau maior ou menor, da forma ideal.
Das quatro constituições corrompidas, a segunda, a terceira e a quarta
correspondem exatamente às formas corrompidas das tipologias tradicionais — a oligarquia corresponde à forma corrompida da aristocracia, a
democracia à "politeia" (como Aristóteles chamará o governo do povo na
sua forma pura), a tirania à monarquia. A timocracia (de timé, que significa
"honra") é uma forma introduzida por Platão para designar a transição
entre a constituição ideal e as três formas ruins tradicionais. Ele se
pergunta: "Não é esta talvez (a timocracia) uma forma de governo situada
entre a aristocracia e a oligarquia?" (547 c).
Na realidade histórica do seu tempo, a timocracia estava representada
em especial pelo governo de Esparta, que Platão admirava, e que tomou
como modelo para descrever sua república ideal. De fato o governo
timocrático de Esparta era o mais próximo da constituição ideal: sua falha,
e fator de corrupção, consistia em honrar os guerreiros mais do que os
sábios (547 e). Outra observação a fazer é a seguinte: enquanto nas
tipologias tradicionais, que vamos estudar, as seis formas se alternam,
sucedendo à forma boa a má que lhe corresponde, na representação
platônica, uma vez proposta a forma ideal (que no livro oitavo é
assemelhada à aristocracia), seguem-se as outras quatro corrompidas, de
modo descendente; não há assim alternância, mas uma decadência
contínua, gradual, necessária, um movimento de cima para baixo até
atingir o ponto inferior extremo, que é o último elo da cadeia. Nas
representações tradicionais há apenas um movimento descendente: a
timocracia é a degeneração da aristocracia, pressuposta forma perfeita,
descrita como Estado ideal; a oligarquia é a corrupção da timocracia, e
assim por diante. A forma mais baixa é a tirania, com a qual o processo
degenerativo chega ao ponto máximo. Platão não explica se a partir desse
ponto ocorre um retorno, nem de que maneira. É possível transformar o
tirano em rei-filósofo? Foi o que o próprio filósofo tentou fazer, em
Siracusa, com os tiranos locais. Empreendimento várias vezes tentado, em
vão.
Eis como Platão introduz sua exposição sobre as quatro formas
corrompidas:
"As constituições a que me refiro, que têm um nome especial, são:
antes de mais nada, a que é louvada por muitos — a de Creta e de Esparta (a
forma timocrática); em segundo lugar, também louvada, a chamada
oligarquia, governo pleno de infinitas dificuldades; em seguida, oposta à
forma precedente, a democracia; por fim, a nobilíssima tirania, superiora
todas as demais, quarta e máxima gangrena do Estado" (544 c).
Para caracterizar essas diferentes formas, Platão identifica as peculiaridades morais (isto é, os vícios e as virtudes) das respectivas classes
dirigentes. Vale lembrar que a primeira distinção entre as formas de
governo nasce da resposta à seguinte pergunta: "Quem governa?" Em
virtude desse critério de distinção, a resposta de Platão é que na
aristocracia governa o homem aristocrático, na timocracia o timocrático,
na oligarquia o oligárquico, etc:
48
A Teoria das Formas de Governo
"— Já examinamos o homem que se ajusta à aristocracia; não é por
acaso que o consideramos bom e justo.
—Sim; já o consideramos.
—Não te parece que seja apropriado passarmos agora em revista os
tipos inferiores, isto é, o tipo de homem prepotente e ambicioso, que
podemos considerar como correspondente à constituição espartana; em
seguida, o oligárquico, o democrático e o tirânico, de modo que,
compreendido qual o que mais se afasta da justiça, possamos opor-lhe o
que é mais justo?" (545 e).
Cada um desses homens, que representa um tipo de classe dirigente,
e portanto uma forma de governo, é retratado de modo muito eficaz
mediante a descrição da sua paixão dominante: para o timocrático, a
ambição, o desejo de honrarias; para o oligárquico, a fome de riqueza;
para o democrático, o desejo imoderado de liberdade (que se transforma
em licença); para o tirânico, a violência. Reproduzimos aqui alguns
trechos desses retratos:
O homem timocrático:
"... é severo com os criados, mas não deixa de ter consciência deles,
como quem recebeu uma educação perfeita; é brando para com os
homens livres, submetendo-se inteiramente à autoridade; desejoso do
comando, amante das honrarias, aspira a comandar não pela virtude das
suas palavras, ou por outra qualidade qualquer do mesmo gênero, mas
sim pela sua atividade bélica, pelo talento militar; terá igualmente a paixão
da ginástica e da caça" (549 a).
O homem oligárquico:
"- Quanto mais se inclinam a acumular dinheiro, e quanto mais os
tratam com honrarias, mais se reduz o respeito que têm pela virtude. Ou
será que não é verdade que, postas nos dois pratos de uma balança a
virtude e a riqueza sempre pesam em sentido contrário?
—É assim mesmo.
—Portanto, se a riqueza e os ricos são venerados num Estado, da
mesma forma são ali desprezados a virtude e os homens virtuosos.
—Está claro.
—Por outro lado, sempre se pratica aquilo a que se atribui o valor,
abandonando o que se despreza.
—Exato.
—Assim, os homens que desejam a supremacia e honrarias terminam
sempre por agir avaramente como cúpidos traficantes de riquezas;
aplaudem e admiram o rico, oferecendo-lhe as mais importantes funções
públicas, desprezando o pobre" (550 a 551 a).
O homem democrático:
"— Como é que uma democracia se governa? Que caráter tem esse
governo? Evidentemente, o homem que se assemelha a esse modelo será
o homem democrático.
Platão
49
- Está claro.
- Antes de mais nada, não serão homens livres, e não se encherá o
Estado de liberdade - liberdade de palavra, licença para todos fazerem o
que quiserem?
- Pelo menos é o que se diz.
—E quando tudo se permite, está claro que cada um pode ter seu
próprio estilo de vida pessoal, conforme melhor lhe pareça, não?"
(557 b).
O homem tirânico:
"... O governante, vendo que a multidão está pronta a obedecer, não
sabe evitar o derramamento de sangue dos cidadãos; com falsas acusações, usando os meios preferidos pelos que agem assim, arrasta as pessoas
aos tribunais; macula-se com o homicídio, provando com a língua, e os
lábios celerados, o sangue do próximo. A outros exila, promove sua
morte. De outro lado, prevê a remissão de dívidas e a redistribuição de
terras. Por isso não será necessário, inevitável mesmo, que esse homem
morra pela mão dos seus inimigos ou se faça um tirano, transformando-se
de lobo em homem?" (565 e).
Como e por que ocorre a passagem de uma constituição para outra?
Para descrever essa transformação, o filósofo acentua a importância do
revezamento das gerações. A mudança de uma constituição para outra
parece coincidir com a passagem de uma geração a outra. É uma mudança
não só necessária, num certo sentido inevitável, mas também muito
rápida. Parece ser a conseqüência fatal da rebelião do filho contra o pai, da
mudança de costumes que ela provoca (mudança que corresponde a uma
piora constante), especialmente na passagem da aristocracia para a
timocracia, da timocracia para a oligarquia. Eis aqui um exemplo dessa
análise sobre gerações (trata-se da passagem do pai timocrático ao filho
oligárquico):
"— Quando o filho de um homem timocrático desde o princípio
emula o pai, seguindo-lhe os passos, ao ver que este se choca contra o
Estado, como contra um escolho, e que depois de ter perdido tudo, a si
mesmo e a seus bens, é processado ou nas suas funções de comandante
supremo do exército ou enquanto ocupante de algum cargo governativo
de importância, acusado por quem caluniou, e desse modo condenado à
morte ou ao exílio, à perda dos direitos públicos e dos bens...
—Naturalmente.
—Precisamente por ver essas coisas e sofrimentos — por ter perdido
tudo —, ele se deixa dominar pelo medo e, de repente, abandona
precipitadamente a ambição e o orgulho da autoridade que havia antes no
seu espírito. Humilhado pela pobreza, põe-se a ganhar dinheiro e, graças
ao trabalho e ao esforço de economia, aos poucos recolhe uma nova
riqueza. Não crês que, chegando a tal ponto, esse homem não é levado a
entronizar a cupidez e a avareza, fazendo-as soberanas, cobrindo-as de
tiaras, colares e cimitarras?" (553 b-c).
Quanto ao motivo que explica a mudança, deve ser procurado
sobretudo na corrupção do princípio que inspira todos os governos. Para
50
A Teoria das Formas de Governo
uma ética como a helênica, acolhida e propugnada por Platão, fundamentada na idéia do "meio dourado", a corrupção de um princípio consiste
no seu "excesso". A honra do homem timocrático se corrompe quando se
transforma em ambição imoderada e ânsia de poder. A riqueza do
homem oligárquico, quando se transforma em avidez, avareza, ostentação despudorada de bens, que leva à inveja e à revolta dos pobres. A
liberdade do homem democrático, quando este passa a ser licencioso,
acreditando que tudo é permitido, que todas as regras podem ser
transgredidas impunemente. O poder do tirano, quando se transforma
em puro arbítrio, e violência pela própria violência. Sobre este tema,
bastará citar uma página famosa (a propósito da corrupção da democracia):
"— Que bem propõe a democracia?
- A liberdade. Num Estado governado democraticamente, é a
liberdade que verás proclamada como seu maior bem; por isso em tal
Estado só pode viver quem for liberal por temperamento.
- Com efeito é o que se ouve com muita freqüência.
- De fato, é o que te queria dizer. Não é talvez o desejo insaciável
desse bem, em troca do qual tudo o mais é abandonado, que determina
também a deformação dessa forma de governo, preparando o caminho
para a tirania?
- De que modo?
- Penso que quando um Estado constituído democraticamente, com
sede de liberdade, está em poder de maus governantes, e tão inebriado
dessa liberdade que a usufrui além da medida, se os que o governam não
são extremamente complacentes, permitindo a mais absoluta liberdade, o
povo os tratará como réus, punindo-os como traidores e oligarcas.
- É exatamente assim.
- E aqueles cidadãos que obedecem às autoridades constituídas são
ultrajados, tratados como homens sem qualquer valor, que se entrega
ram voluntariamente à escravidão; por outro lado, os magistrados que
parecem iguais aos cidadãos, e os cidadãos que se assemelham aos
magistrados, tanto nas coisas privadas como nas públicas, são louvados e
recebem honrarias. Não é inevitável, assim, que num Estado como esse
reine acima de tudo o espírito da liberdade?
- Como não?!
- E mais ainda, meu amigo: que ele se insinue na intimidade das
famílias, e que finalmente a anarquia atinja os próprios animais?
- Em que sentido?
- Por exemplo: o pai se habitua a tratar os filhos como iguais, e a
temê-los, o mesmo ocorrendo com os filhos em relação aos pais, de modo
que os primeiros passam a não mais respeitar ou temer os próprios
genitores, justamente por serem livres. Os metecos se tornam iguais aos
cidadãos, e estes aos metecos, o mesmo se podendo dizer com relação aos
estrangeiros.
- É exatamente o que acontece.
- Sim, e mais ainda: num Estado semelhante o professor teme e
adula seus alunos, que não dão importância ao mestre, como aos
educadores; em poucas palavras, os jovens se igualam aos velhos, tanto no
Platão
51
que dizem como no que fazem. Por sua vez, os velhos são condescendentes com relação aos jovens - com sua vivacidade e alegria -,
imitando-os para não parecerem intolerantes e despóticos" (562 c-e 563 a-b).
Como se manifesta a corrupção do Estado? Essencialmente pela
discórdia. Esse é um dos grandes temas da filosofia política de todos os
tempos - um tema recorrente. Sobretudo devido à reflexão política que
examina os problemas do Estado não ex parte populi (porque deste ponto
de vista o problema de fundo é o da liberdade), mas ex parte principis - isto
é, do ponto de vista daqueles que detêm o poder e que têm a
responsabilidade de conservá-lo. Para os que consideram o problema
político ex parte principis (e Platão é seguramente um deles, talvez o maior
de todos), o tema fundamental não é o da "liberdade" do indivíduo com
respeito ao Estado, mas o da "unidade" do Estado com relação ao
indivíduo. Se este é o bem maior, o mal será a discórdia - princípio da
desagregação da unidade. Da discórdia nascem os males da fragmentação
da estrutura social, a cisão em partidos, o choque das facções, por fim, a
anarquia- o maior dos males-, que representa o fim do Estado, a situação
mais favorável à instituição do pior tipo de governo: a tirania. O tema da
discórdia como moléstia, como patologia do Estado é freqüente; a
corrupção do Estado é muitas vezes comparada à doença do organismo,
dada a analogia contínua proposta por Platão entre o corpo do indivíduo e
o corpo do Estado:
"-Vamos! Tentemos explicar como é que a timocracia pode nascer
da aristocracia. Para começar, não é verdade indiscutível que todas as
formas de Estado se transformam devido justamente àqueles que
governam, quando entre eles surge a discórdia? E que, enquanto o
governo se mantém em harmonia, embora pequeno, permanece necessariamente inalterado?" (545 d).
Mas especificamente, há duas modalidades de discórdia que levam
uma cidade à ruína: a primeira é a que ocorre dentro da classe dirigente; a
outra, o conflito entre a classe dirigente e a classe dirigida, entre
governantes e governados. Na descrição platônica das formas corrompidas de convivência política, esses dois tipos podem ser vistos. Na
passagem da aristocracia para a timocracia, e da timocracia para a
oligarquia, a discórdia destrutiva é do primeiro tipo; na passagem da
oligarquia para a democracia, ao contrário, é do segundo tipo. As duas
primeiras são, com efeito, transformações internas das classes dirigentes;
a terceira implica a transferência do poder de uma classe para outra: para
usar a terminologia antiga (que perdurou até Rousseau), a mudança do
domínio dos ricos para o dos pobres.
É amplamente reconhecido que a teoria platônica do Estado como
organismo deve muito à sua teoria do homem. A filosofia platônica é um
exemplo notável da teoria orgânica da sociedade - isto é, da teoria que
concebe a sociedade (ou o Estado) como um verdadeiro organismo, à
imagem e semelhança do corpo humano. Como na república ideal, às três
classes que compõem organicamente o Estado correspondem três almas
individuais: a racional, a passional e a apetitiva; do mesmo modo, as
formas de governo podem também ser distinguidas com base nas
52
A Teoria das Formas de Governo
diferentes almas que as animam. O tema não foi perfeitamente desenvolvido, mas se não há dúvida de que a constituição ideal é dominada pela
alma racional, é indubitável que a constituição timocrática (que exalta o
guerreiro, mais do que o sábio) é dominada pela alma passional. As outras
três formas são dominadas pela alma apetitiva: o homem oligárquico, o
democrático e o tirano são todos eles cúpidos de bens materiais, estão
todos voltados para a Terra - embora apresentem aspectos diversos. A
passagem mais interessante onde se surpreende o critério para a distinção
entre as várias formas, com base nas respectivas almas, é aquela que
descreve o nascimento do homem timocrático como filho rebelde
do homem aristocrático:
"Nosso jovem, que ouve e vê tudo isso, e por outro lado escuta as
palavras do pai, ao mesmo tempo que observa sua conduta, compara-a
com a dos outros, sente-se atraído por uma e por outra: pelo pai, que irriga
e cultiva o aspecto racional da sua alma; pelos outros, que alimentam o
aspecto da concupiscência e do impulso. Não sendo mau por natureza,
mas estando freqüentemente em más companhias, e sofrendo essa dupla
atração, constitui em si mesmo um caráter intermediário, confiando o
governo de si mesmo à parte média da alma, prepotente e ambiciosa,
tornando-se um homem arrogante e sedento de honrarias" (550 a-b).
Também sob esse aspecto a timocracia aparece como forma qualitativamente diferente das demais, intermediária entre a perfeita e a mais
imperfeita. Embora não seja perfeita, é menos imperfeita do que as que se
lhe seguem. No que concerne à parte da alma correspondente, as três
últimas pertencem à mesma espécie, enquanto a timocracia participa de
espécie distinta. Neste sentido, a diferença entre esta última e aquelas
outras formas não é apenas de grau, mas de qualidade.
Quanto às três últimas formas, o critério de distinção a que Platão
recorre se baseia na diferença entre os vários tipos de necessidade ou de
desejo (o termo grego é epithumia), que em cada uma delas é atendido
preponderantemente. Há três espécies de necessidades: as essenciais, as
supérfluas e as ilícitas. O homem oligárquico se caracteriza pelo atendimento das necessidades essenciais; o democrático, das supérfluas; o
tirânico, das ilícitas. Platão define os dois primeiros tipos da seguinte
forma:
"É justo chamar necessários aqueles desejos que não é possível
desprezar, e todos os outros que devemos satisfazer - nos dois casos, são
inclinações devidas a uma necessidade natural... No que respeita àqueles
desejos de que nos podemos liberar, se nos dedicamos a isso desde a
juventude, e que quando existem em nós não nos trazem nenhum bem,
mas podem causar-nos mal, não estaríamos usando a denominação
correta se os chamássemos de desejos supérfluos?" (558 d-e - 559 a).
Eis alguns exemplos: o desejo de alimentar-se é necessário; o de
comer alimentos refinados é supérfluo. As necessidades ilícitas são uma
modalidade das supérfluas, próprias dos tiranos, embora aflijam todos os
homens (podem contudo ser extirpadas pela educação). A diferença entre
o homem normal e o tirano está em que esses desejos ilícitos ("violentos"
Platão
53
ou "tumultuosos", como também são conhecidos) perturbam o primeiro
só em sonhos, e o segundo na vigília.
A República é uma descrição da melhor forma de constituição; O
Político é uma investigação, estudo e descrição do melhor tipo de
governante - o rei-filósofo, que possui a ciência do bom governo. O que
nos interessa aqui é apenas um trecho de Platão em que o filósofo expõe
suas idéias sobre as formas de governo. Trata-se de passagem curta, que
reproduziremos completamente:
"— Não acreditamos que a monarquia é uma das nossas formas de
governo?
- Certamente.
- E depois da monarquia poderíamos citar o governo dos poucos.
- Naturalmente.
- Um terceiro tipo não seria o governo do grande número, a chamada
democracia?
-Sim.
- Ora, como são três, essas formas de governo não passarão a cinco,
de certo modo, cada uma com dois outros nomes?
- Quais?
- Os que se referem, de certa maneira, à natureza violenta ou
voluntária, à pobreza ou à riqueza, à legalidade ou ilegalidade, dividindo
em duas cada uma das formas, assim como chamamos à monarquia
tirania ou governo real.
- É verdade.
- E o Estado governado por poucos, nós o conhecemos como
aristocracia, ou oligarquia.
- Exato.
- Na democracia, ao contrário, o povo domina os que possuem bens,
seja com o seu consentimento, seja com a força; sejam as leis guardadas
ciosamente, sejam violadas, nunca se alterou essa denominação" (291
d-e - 292 a).
No que diz respeito à tipologia de A República, ela é menos original.
Sua única diferença, em comparação com a tipologia que se tornará
clássica, a das seis formas de governo - três boas e três más - é que em
O Político a democracia tem um só nome, o que não quer dizer que,
diferentemente das outras formas de governo, apresente um único
modelo. Também do governo popular há uma versão boa e uma versão
má (embora sob o mesmo nome), como vemos na seguinte passagem:
"Temos, na monarquia, o governo real e o tirânico; já dissemos, com
respeito ao governo dos poucos, que este pode ser a aristocracia, de nome
promissor, ou a oligarquia; quanto ao governo dos muitos, admitimos
inicialmente que dele existisse uma só modalidade: a democracia. É
preciso aceitar agora que se apresenta também sob forma dupla... (Nós o
dividiremos)... com um critério igual ao que foi aplicado aos outros,
embora percebamos agora que o nome dessa forma tem duas acepções.
Mas a distinção entre o governo de acordo com as leis e em oposição a elas
é aplicável a este caso, como aos demais" (0 Político, 302 d).
Continuando o diálogo, Platão coloca também o problema do
54
A Teoria das Formas de Governo
confronto entre as várias formas de governo, para avaliar se são relativamente mais ou menos boas (ou más); e sustenta a tese de que, se é
verdade que a democracia é a pior das formas boas, é no entanto a melhor
das más (vide 302 d-e e 303 a-b). Qual a conseqüência disso? Se
colocamos em ordem decrescente as seis formas, as três primeiras - as
boas - devem ser postas em determinada posição (monarquia, aristocracia, democracia), e as más em posição inversa (democracia, oligarquia,
tirania). A democracia está ao mesmo tempo no fim da série "boa" e no
princípio da série "má". Além do mais, essa disposição pode servir para
explicar por que a democracia tem um só nome: sendo a pior forma
dentre as boas, e a melhor das más, não apresenta, nas duas versões, a
diferença do governo de um só, que na versão boa é o melhor e na versão
má é o pior. Coloquemos, assim, as seis formas na ordem da sua
aceitabilidade: monarquia, aristocracia, democracia positiva, democracia
negativa, oligarquia, tirania. É evidente que as duas espécies de democracia formam um continuum, enquanto as duas formas do governo de um
só ocupam os dois extremos da escala.
Outra coisa a observar, no momento só incidentalmente (trata-se de
assunto ao qual vamos voltar com freqüência durante o curso), é o critério
ou critérios com base nos quais Platão distingue as formas boas das más.
Relendo a passagem citada, veremos que esses critérios são, em substância, dois: violência e consenso, legalidade e ilegalidade. As formas boas são
aquelas em que o governo não se baseia na violência, e sim no
consentimento ou na vontade dos cidadãos; onde ele atua de acordo com
leis estabelecidas, e não arbitrariamente.
Capítulo III
ARISTÓTELES
A teoria clássica das formas de governo é aquela exposta por
Aristóteles (384 - 322 a.C.) na Política; é clássica e foi repetida durante
séculos sem variações sensíveis. Aqui também Aristóteles parece ter
fixado em definitivo algumas categorias fundamentais que nós, seus
pósteros, continuamos a empregar no esforço de compreender a realidade. A Política está dividida em oito livros: destes, dois - o terceiro e o
quarto - estão dedicados à descrição e à classificação das formas de
governo. O primeiro trata da origem do Estado; o segundo critica as
teorias políticas precedentes, em especial a platônica; o quinto trata das
mudanças das constituições - isto é, da passagem de uma forma de
governo a outra -; o sexto estuda em particular as várias formas de
democracia e de oligarquia, as duas formas de governo em que Aristóteles
se detém com maior atenção em toda a obra; o sétimo e o oitavo tratam das
melhores formas de constituição.
O termo empregado por Artistóteles para designar o que até aqui
venho chamando de "forma de governo" é politeia, traduzido via de
regra como "constituição". Vale notar que na.Política encontramos
muitas definições de "constituição". Uma dessas definições está no livro
terceiro:
"A constituição é a estrutura que dá ordem à cidade, determinando o
funcionamento de todos os cargos públicos e sobretudo da autoridade
soberana" (1278 b).
Essa tradução talvez seja um pouco redundante: Aristóteles de fato se
limita a dizer que a constituição, a politeia, é "táxis ton archon", isto é, a
"ordenação das magistraturas" (ou seja, dos "cargos públicos"). Tal
definição corresponde, "grosso modo", ao que entendemos hoje como
"constituição". Digo "grosso modo" porque hoje incluiríamos algo mais
numa constituição: quando nos referimos à constituição italiana, francesa
ou chinesa falamos da lei fundamental de um Estado, que estabelece seus
órgãos, as respectivas funções, relações recíprocas, etc. Em suma, para
repetir Aristóteles, é a "ordenação das magistraturas".
56
A Teoria das Formas de Governo
Um tema a respeito do qual Aristóteles não cessa de chamar a atenção
do leitor é o de que há muitas constituições diferentes; portanto, uma das
primeiras tarefas do estudioso da política é descrevê-las e classificá-las.
Aristóteles enfrenta o problema no § 7 do Livro III, em passagem, que,
por sua importância histórica, merece ser reproduzida por inteiro:
"Como constituição e governo significam a mesma coisa, e o governo
é o poder soberano da cidade, é necessário que esse poder soberano seja
exercido por 'um só', por 'poucos' ou por 'muitos'. Quando um só, poucos ou muitos exercem o poder buscando o interesse comum, temos necessariamente as constituições retas; quando o exercem no seu interesse
privado, temos desvios... Chamamos 'reino' ao governo monárquico
que se propõe a fazer o bem público; 'aristocracia', ao governo de
poucos..., quando tem por finalidade o bem comum; quando a massa
governa visando ao bem público, temos a 'polida' , palavra com que
designamos em comum todas as constituições... As degenerações das
formas de governo precedentes são a ' tirania' com respeito ao reino; a
' oligarquia' , com relação à aristocracia; e a ' democracia', no que diz
respeito à ' polida'. Na verdade, a tirania é o governo monárquico
exercido em favor do monarca; a oligarquia visa ao interesse dos ricos; a
democracia, ao dos pobres. Mas nenhuma dessas formas mira a utilidade
comum" (1279 a-b).
Em poucas linhas, o autor formula, com extrema simplicidade e
concisão, a célebre teoria das seis formas de governo. Fica bem claro que
essa tipologia deriva do emprego simultâneo dos dois critérios fundamentais - "quem" governa e "como" governa. Com base no primeiro
critério, as constituições podem ser distinguidas conforme o poder resida
numa só pessoa (monarquia), em poucas pessoas (aristocracia) e em
muitas ("politia"). Com base no segundo, as constituições podem ser
boas ou más, com a conseqüência de que às três primeiras formas boas se
acrescentam e se contrapõem as três formas más (a tirania, a oligarquia e a
democracia). A simplicidade e a clareza desta tipologia são tais que seria
desnecessário qualquer comentário, além de certas considerações terminológicas. "Monarquia" significa propriamente "governo de um só",
mas na tipologia aristotélica quer dizer "governo bom de um só", ao qual
corresponde, como governo mau, a tirania. Do mesmo modo, "oligarquia", que significa propriamente "governo de poucos", corresponde a
"governo mau de poucos", a que está relacionada a "aristocracia", como
forma boa de governo. O termo "oligarquia" conservou de fato, nos
séculos seguintes, seu significado pejorativo original; ainda hoje se
costuma falar de "oligarquias", no sentido negativo, para designar grupos
de poder restritos que governam sem o apoio popular (contrapondo-se
assim à "democracia"). Quanto à "aristocracia", que significa propriamente "governo dos melhores", é o único dos três termos designando
as formas boas que tem por si mesmo um significado positivo: no curso do
tempo manteve significação menos negativa do que a de "oligarquia", mas
perdeu o sentido original de "governo dos melhores" (na linguagem política
moderna entendemos, via de regra, por governos "aristocráticos" os que
se baseiam em grupos restritos, nos quais o poder é transmitido por via
Aristóteles
57
hereditária). A maior novidade, a estranheza terminológica, é o uso de
"politia" para indicar a constituição caracterizada pelo governo de
muitos, e bom. Estranheza porque, como vimos, "politia" (termo que
traduz "politeia" sem traduzi-lo) significa "constituição" - é portanto um
termo genérico, não-espedfico. Hoje, quando queremos usar uma
palavra grega para indicar o governo de muitos dizemos "poliarquia" (é o
que faz, por exemplo, o cientista político Robert Dahl, para denominar a
democracia pluralística dos Estados Unidos da América). Os gregos
conheciam esse termo (que encontramos, por exemplo, em Tucídides, VI,
72), mas o empregavam na acepção pejorativa de comando militar
exercido por muitas pessoas, criando desordem e confusão. A confusão
que cria no leitor o uso do termo genérico "politia" ou "constituição"
para indicar uma das seis possíveis constituições é ainda maior porque em
outra obra, a Ética a Nicômaco, Aristóteles, repetindo a classificação das
formas boas e más, emprega para denotar a terceira forma boa o termo
"timocracia", que encontramos em Platão usado para designar a primeira
das quatro formas de governo descedentes da forma boa. Convém
reproduzir a passagem por inteiro:
"Três são as formas de governo e três são os desvios e corrupções
dessas formas. As formas são: o reino, a aristocracia e, a terceira, aquela
que se baseia sobre a vontade popular, que pareceria próprio chamar de
"timocracia", mas que a maioria chama apenas de "politia"... O desvio do
reino é a tirania... Da aristocracia se passa à oligarquia, pela malvadez dos
governantes... Da timocracia à democracia" (1160 a-b).
De qualquer forma o uso de um termo genérico, como "politia", ou
impróprio, como timocracia, confirma o que Platão já nos havia ensinado:
ao contrário do que acontece com as duas primeiras formas, para as quais
existem dois termos consagrados pelo uso para indicar respectivamente a
forma boa e a má, com relação à terceira há, no uso corrente, um só termo,
"democracia", com a conseqüência de que, uma vez adotado para indicar
exclusivamente a forma má, como fez Aristóteles (ao contrário do que fará
Políbio, como veremos), falta uma expressão também consagrada pelo
uso para denotar a correspondente forma boa.
O uso axiológico de uma tipologia comporta, como se disse no
capítulo introdutório, não só a distinção entre formas boas e más porém
uma hierarquia entre as várias formas - quer dizer, uma distinção entre
formas melhores e piores. A ordem hierárquica aceita por Aristóteles não
parece diferir da que Platão sustentou em O Político, que expus no fim do
capítulo precedente. O critério da hierarquia é o mesmo: a forma pior é a
degeneração da forma melhor, de modo que as degenerações das formas
que seguem a melhor são cada vez menos graves. Com base nesse critério,
a ordem hierárquica das seis formas é a seguinte: monarquia, aristocracia,
politia, democracia, oligarquia, tirania. E o que podemos dizer empregando as mesmas palavras de Aristóteles:
"É evidente qual dessas degenerações é a pior e qual vem logo depois.
Com efeito, é necessariamente pior a constituição derivada por degeneração da forma primeira, mais divina. Ora, o reino o é só de nome, não na
realidade; é reino porque quem reina excede extraordinariamente os
58
A Teoria das Formas de Governo
demais, da mesma forma que a tirania, que é a pior degeneração, é a mais
afastada da constituição verdadeira. Em segundo lugar vem a oligarquia
(de que a aristocracia difere muito), enquanto a democracia é mais
moderada" (1289 a-b).
Na Ética a Nicômaco podemos confirmar essa ordem. Na mesma
passagem que citamos há pouco lê-se, depois da listagem das seis formas
de governo:
"Delas a melhor é o reino, e a pior é a timocracia" (1160 a).
E pouco mais adiante:
"Mas a democracia é o desvio menos ruim: com efeito, pouco se afasta
da forma de governo correspondente" (1160 b).
Estabelecida assim a ordem hierárquica, observamos que o maior
afastamento é o que existe entre "monarquia" (a melhor constituição,
dentre as que são boas) e "tirania" (a pior, dentre as más); o menor é o
que existe entre a "politia" (a pior das formas boas) e a "democracia" (a
melhor das más). Explica-se também por que as duas formas da
democracia podem ter sido denominadas da mesma forma; estando uma
no fim da primeira série e a outra no princípio da segunda, são
semelhantes a ponto de poderem ser confundidas. Entre o que é melhor e
o que é pior a distância é grande e inabrangível; entre o menos bom e o
menos mau há uma linha contínua que nos veda traçar uma linha clara de
demarcação.
Há ainda uma observação a fazer sobre a distinção entre as formas
boas e as más. Com base em que critério Aristóteles distingue uma da
outra? Vale lembrar o que disse na última parte da lição sobre Platão, a
propósito da distinção que o filósofo introduz em O Político. O critério de
Aristóteles é diferente: não é o consenso ou a força, a legalidade ou
ilegalidade, mas sobretudo o interesse comum ou o interesse pessoal. As
formas boas são aquelas em que os governantes visam ao interesse
comum; más são aquelas em que os governantes têm em vista o interesse
próprio. Este critério está estreitamente associado ao conceito aristotélico
da polis (ou do Estado, no sentido moderno da palavra). A razão pela qual
os indivíduos se reúnem nas cidades - isto é formam comunidades políticas — não é apenas a de viver em comum, mas a de "viver bem" (1252 b
e 1280 b). Para que o objetivo da "boa vida" possa ser realizado, é
necessário que os cidadãos visem ao interesse comum, ou em conjunto ou
por intermédio dos seus governantes. Quando os governantes se aproveitam do poder que receberam ou conquistaram para perseguir interesses particulares, a comunidade política se realiza menos bem, assumindo
uma forma política corrompida, ou degenerada, com relação à forma
pura. Aristóteles distingue três tipos de relações de poder: o poder do pai
sobre o filho, do senhor sobre o escravo, do governante sobre o
governado. Essas três formas de poder se distinguem entre si com base no
tipo de interesse perseguido. O poder dos senhores é exercido no seu
próprio interesse; o patemo, no interesse dos filhos; o político, no
interesse comum de governantes e governados. Daí a seguinte conclusão:
"É evidente que todas as constituições que miram o interesse comum
são constituições retas, enquanto conformes à justiça absoluta; as que
Aristóteles
59
visam ao interesse dos governantes são errôneas, constituindo degenerações com respeito às primeiras" (1279 a).
A importância histórica da teoria das seis formas de governo, do modo
como foi fixada por Aristóteles, é enorme. Mas não devemos dar-lhe uma
importância excessiva dentro da obra aristotélica, que é mais rica de
observações e determinações do que poderia parecer considerando a
tipologia que estudamos. Poder-se-ia mesmo dizer que o êxito histórico do
esquema de classificação (facilmente compreensível, como o de todos os
esquemas que reduzem uma realidade histórica complexa, como era a
das cidades gregas, de suas evoluções e revoluções) terminou induzindo
uma leitura simplificada da Política, desprezando a complexidade das suas
articulações internas. Aristóteles analisa cada uma das seis formas em
especificações históricas, subdividindo-as em muitas espécies particulares, cuja determinação faz com que o esquema geral pareça muito
menos rígido do que ficou consignado na tradição do pensamento
político. Por vezes, deixa de seguir esse esquema, ao estudar a passagem
de uma subespécie para outra. Considere-se, por exemplo, a primeira
forma de governo - a monarquia. Ao iniciar o seu estudo, Aristóteles
afirma:
"É preciso antes de mais nada determinar se a monarquia constitui
um só gênero ou se está diferenciada em vários gêneros; é fácil perceber
que abrange muitos gêneros, em cada um dos quais o governo é exercido
de modo diferente" (1285 a).
Estabelecida esta premissa, a exposição sobre a monarquia se articula
por meio da distinção de várias espécies de monarquias, tais como: a dos
tempos heróicos, "que era hereditária, baseando-se no consentimento
dos súditos"; a de Esparta, em que o poder supremo se identificava com o
poder militar, tendo duração perpétua; o regime dos "esimneti" - isto é,
dos "tiranos eletivos" — bem como o dos chefes supremos de uma cidade
eleitos por um certo período, ou em caráter vitalício, no caso de choques
graves entre facções opostas; a monarquia dos povos bárbaros. Detenhome em particular nesta última, que introduz uma categoria histórica
destinada a ter grande importância nos séculos seguintes: a categoria da
monarquia despótica ou, ratione loci, do "despotismo oriental", sobre a
qual voltaremos a falar. São duas as características peculiares desse tipo de
monarquia: a) o poder é exercido tiranicamente; neste sentido se
assemelha ao poder do tirano; b) esse poder exercido tiranicamente é
contudo legítimo, porque é aceito; e é aceito porque "como esses povos
bárbaros são mais servis do que os gregos, e como os povos asiáticos são
mais servis do que os europeus, suportam sem dificuldade o poder
despótico exercido sobre eles" (1285 a). Essas duas características fazem
com que não se possa assemelhar tal tipo de monarquia à tirania, já que os
tiranos "governam súditos descontentes com o seu poder", poder que
não se fundamenta no consentimento - não é "legítimo", no sentido
preciso da palavra; ao mesmo tempo, é uma forma de monarquia que
difere das monarquias helênicas porque é exercida sobre povos "servis",
o que exige sua aplicação despótica. O poder despótico é aquele que o
senhor (em grego, despotes) exerce sobre os escravos; diferente, como já
60
A Teoria das Formas de Governo
vimos, tanto do poder paterno como do poder político. O poder
despótico é absoluto e, ao contrário do paterno, exercido no interesse dos
filhos, e do poder político ou civil, exercido no interesse de quem governa
ou de quem é governado, visa ao interesse do senhor, que o detém. Como
se sabe, Aristóteles justifica a escravidão por considerar que há homens
escravos pela sua natureza. Da mesma forma, há também povos naturalmente escravos (os "povos servis" das grandes monarquias asiáticas). Só
se pode exercer sobre esses povos o poder do tipo despótico que, não
obstante, é perfeitamente legítimo: é o único tipo de poder ajustado à
natureza de certos povos, embora duríssimo, como o do senhor de
escravos. Tanto é assim que esses povos o aceitam "sem dificuldade" melhor dito, sem lamentar-se (na tradução latina medieval, "sine tristitia") -, enquanto os tiranos, cujos súditos são povos livres, governam
cidadãos "descontentes", sem serem aceitos por eles. Justamente por isso
a tirania é uma forma corrupta de governo, contrastando com a
monarquia.
Para avaliar o afastamento entre o esquema geral das seis formas de
governo e as análises particulares, nada melhor do que examinar de perto
a forma denominada, à falta de outro termo mais apropriado, "politia". No
esquema, a "politia" corresponde à terceira forma - deveria consistir,
portanto, no poder de muitos exercido no interesse comum. Mas, quando
se chega à definição que lhe dá Aristóteles, encontramos coisa bem
diferente:
"A "politia" é, de modo geral, uma mistura de oligarquia e de
democracia; via de regra são chamados de polidas os governos que se
inclinam para a democracia, e de aristocracias os que se inclinam para a
oligarquia" (1293 b).
E preciso ter muita atenção, neste ponto: a politia é uma mistura de
oligarquia e democracia. Mas, o esquema abstrato não nos diz que tanto a
oligarquia como a democracia são formas corrompidas? O primeiro
problema, portanto, colocado diante da politia, é o de que uma forma boa
pode resultar de uma fusão de duas formas más. Em segundo lugar, se a
politia não é (conforme deveria ser, de acordo com o esquema) o governo
do povo ou a democracia na sua acepção correta, mas sim uma mistura de
oligarquia e democracia, isso significa que (este é o segundo problema) o
governo bom de muitos, que figura no terceiro lugar do esquema geral, é
uma fórmula vazia, uma idéia abstrata que não corresponde, concretamente, a qualquer regime histórico do presente ou do passado. Trata-se
pois de um problema que é complicado (o que quer dizer é tornado
historicamente mais interessante) pelo fato de que, contrariando também
o esquema geral, para Aristóteles nem a oligarquia é o governo de poucos
nem a democracia é o governo do povo. O critério adotado por Aristóteles
para distinguir a oligarquia e a democracia não é o critério numérico, de
caráter geral, mas um critério bem mais concreto: a diferença entre ricos e
pobres:
"Na democracia governam os homens livres, e os pobres, que
constituem a maioria; na oligarquia governam os ricos e os nobres, que
representam a minoria" (1290 b).
Aristóteles
61
O fato de que a oligarquia é o governo de poucos e a democracia o
governo de muitos pode depender apenas de que, de modo geral, em
todas as sociedades os ricos são menos numerosos do que os pobres. Mas,
o que distingue uma forma de governo da outra não é o número, e sim a
condição social dos que governam: não um elemento quantitativo, mas
qualitativo. É o que vemos claramente na passagem seguinte:
"A democracia e a oligarquia diferem uma da outra pela pobreza e a
riqueza; onde dominam os ricos, sejam muitos ou poucos, haverá
necessariamente uma oligarquia; onde dominam os pobres, uma democracia, embora aconteça, como se disse, que os ricos sejam poucos e os
pobres numerosos, já que poucos são os que se arriscam, mas todos
participam da liberdade" (1280 a).
Dizíamos, pois, que a política é uma fusão da oligarquia e da
democracia. Agora que sabemos em que consistem uma e outra,
podemos compreender melhor em que consiste essa fusão: é um regime
em que a união dos ricos e dos pobres deveria remediar a causa mais
importante de tensão em todas as sociedades - a luta dos que não possuem
contra os proprietários. É o regime mais propício para assegurar a "paz
social".
"Na maioria das cidades se proclama em altos brados a "politia",
procurando-se realizar a única união possível dos ricos e dos pobres, da
riqueza e da pobreza" (1294 a).
Aristóteles se ocupa também com o modo como se pode fundir os
dois regimes, de forma a criar um terceiro, melhor do que os dois
originais. Detém-se em particular sobre três expedientes extremamente
interessantes, do ponto de vista do que chamaríamos hoje de "engenharia
política":
1) CONCILIANDO PROCEDIMENTOS QUE SERIAM INCOM
PATÍVEIS: enquanto nas oligarquias se penalizam os ricos que não
participam das atividades públicas, mas não se concede nenhum prêmio
aos pobres que nelas tomam parte, nas democracias, pelo contrário, não
se inflige tal pena aos ricos e também não se concede esse prêmio aos
pobres. A conciliação entre os dois sistemas poderia consistir em "alguma
coisa intermediária e comum", como diz Aristóteles. Por exemplo: a
promulgação de lei que penalize os ricos não-participantes e dê um
prêmio aos pobres participantes.
2) ADOTANDO-SE UM "MEIO-TERMO" ENTRE AS DISPO
SIÇÕES EXTREMAS DOS DOIS REGIMES: enquanto o regime oligárquico só dá o direito de voto aos que têm uma renda muito elevada, o
regime democrático o atribui a todos, até mesmo aos que não possuem
qualquer terra- ou pelo menos aos que possuem renda muito pequena.
O "meio-termo", neste caso, consiste em diminuir o limite mínimo de
renda imposto pelo regime dos ricos, elevando o admitido no regime dos
pobres.
3) RECOLHENDO-SE O MELHOR DOS DOIS SISTEMAS LEGIS
LATIVOS: enquanto na oligarquia os cargos públicos são preenchidos
mediante eleição, mas só pelos que possuem uma certa renda, na
democracia esses cargos são distribuídos por sorteio entre todos os
62
A Teoria das Formas de Governo
cidadãos. Recolher o melhor dos dois sistemas, neste caso, significa
conservar o método eleitoral e excluir o requisito de renda.
O princípio que inspira esse regime de "fusão" é o da "mediação" ideal de toda a ética aristotélica, fundamentado, como se sabe, no valor
eminentemente positivo do que está no meio, situado entre dois
extremos. É um ideal referido pelo próprio Aristóteles numa passagem
relativa ao assunto de que estamos tratando:
"Se é exata a definição da ética segundo a qual a vida feliz é a que se
desenvolve de acordo com a virtude, e sem impedimentos, e se a virtude
está no meio-termo, a vida mediana é necessariamente a melhor, desde
que se trate dessa mediania que é acessível a todos" (1295 a).
Logo em seguida, o critério da mediania é aplicado às classes que
compõem a sociedade:
"Em todas as cidades há três grupos: os muito ricos, os muito pobres e
os que ocupam uma posição intermediária. Como admitimos que a
medida e a mediania são a melhor coisa, em todas as circunstâncias, está
claro que, em matéria de riqueza, o meio-termo é a melhor das condições,
porque nela é mais fácil obedecer à razão" (1295 b).
Uma vez introduzido na realidade histórica, o ideal ético da mediania
se resolve no celebérrimo elogio ao "ponto intermediário" (que interessa
muito a quem, como nós, anda buscando "temas recorrentes"):
"Está claro que a melhor comunidade política é a que se baseia na
classe média, e que as cidades que têm essa condição podem ser bem
governadas - aquelas onde a classe média é mais numerosa e tem mais
poder do que as duas classes extremas, ou pelo menos uma delas. Com
efeito, aliando-se a uma ou a outra, fará com que a balança penda para o
seu lado, impedindo assim que um dos extremos que se opõem ganhe
poder excessivo" (1295 b).
A razão fundamental por que as cidades melhor governadas são
aquelas onde predomina a classe média é explicada mais adiante pelo
próprio Aristóteles:
"Está claro que a forma intermediária é a melhor, já que é a mais
distante do perigo das revoluções; onde a classe média é numerosa
raramente ocorrem conspirações e revoltas entre os cidadãos" (1296 a).
Chamamos a atenção do leitor para este tema: a "estabilidade". Um
tema verdadeiramente central na história das reflexões acerca do "bom
governo", pois um dos critérios fundamentais que permite distinguir
(ainda hoje) o bom governo do mau é sua estabilidade. O que faz com que a
mistura de democracia e oligarquia seja boa (se com ela se busca uma
determinada forma política correspondente a certa estrutura social,
caracterizada pela predominância de uma classe que não é rica, como na
oligarquia, nem pobre, como na democracia) é justamente o fato de que
está menos sujeita às mutações rápidas provocadas pelos conflitos sociais - os quais, por sua vez, resultam da divisão muito nítida entre classes
contrapostas.
Resolvi deter-me também na "polida" por uma outra razão: ela é o
produto de uma "mistura". A idéia de que o bom governo é fruto de uma
mistura de diversas formas de governo é um dos grandes temas do
Aristóteles
63
pensamento político ocidental, que chega até os nossos dias. Trata-se do
tema do "governo misto", sobre o qual todos os grandes escritores
políticos terão algo a dizer - pró ou contra. Sua formulação mais feliz
será dada pelo escritor que discutirei no próximo capítulo - Políbio.
Capítulo IV
POLÍBIO
Além dos textos de Platão e de Aristóteles, a Antigüidade clássica nos
legou uma terceira obra fundamental para a teoria das formas de governo:
o livro VI da História de Políbio. É um texto de autoridade não menor
do que a de Platão e Aristóteles (basta pensar em Maquiavel). Ao contrário
dos dois primeiros, Políbio (que viveu no século II a.C.) não é um filósofo mas um historiador. Grego de nascimento, foi deportado para
a Roma depois da conquista da Grécia; entrou em contato ali com os
meios mais elevados, especialmente o círculo dos Cipiões, escrevendo em
grego a primeira grande história (apologética) de Roma antes de Tito
Livio. Terminadas as guerras púnicas, Roma avizinhava-se do auge da sua
potência. Depois de narrar os episódios da batalha de Cannes (216 a.C),
Políbio se detém, no Livro VI, para fazer uma exposição pormenorizada
da constituição romana, redigindo um pequeno tratado de direito público
romano, no qual descreveu as várias funções públicas (os cônsules, o
senado, os tribunos, a organização militar, etc). O motivo por que o
historiador descreve a constituição do povo, cuja história narra, é explicitado:
"Deve-se considerar a constituição de um povo como a causa
primordial do êxito ou do insucesso de todas as ações" (VI, 2).
Baseando-se nessa premissa, quer demonstrar a importância que
teve a excelência da constituição romana para explicar o sucesso da
política de um povo que "em menos de cinqüenta e três anos", como se lê
no mesmo parágrafo, conquistou todos os outros Estados, impondo-lhes
o seu domínio.
Antes de examinar a constituição romana, Políbio tece algumas
considerações sobre as constituições em geral - considerações que
constituem uma das mais completas teorias das formas de governo que a
história nos legou. Nessa teoria ele expõe sobretudo três teses que
merecem ser enunciadas, ainda que brevemente: 1) existem fundamental-
66
A Teoria das Formas de Governo
mente seis formas de governo - três boas e três más; 2) essas seis formas se
sucedem umas às outras de acordo com determinado ritmo, constituindo assim um ciclo, repetido no tempo; 3) além dessas seis formas
tradicionais, há uma sétima - exemplificada pela constituição romana que é a melhor de todas enquanto síntese das três formas boas. Com a
primeira tese, Políbio confirma a teoria tradicional; com a segunda, fixa
num esquema completo, embora rígido, a teoria dos ciclos (ou, para
empregar a terminologia dos gregos, da "anaciclose"), que Platão já tinha
exposto; com a terceira, formula pela primeira vez, de modo completo, a
teoria do governo misto (da qual examinamos uma forma espúria, pelo
menos com respeito à teorização clássica que será justamente a de Políbio,
na "Polida" de Aristóteles). Destas três teses a primeira representa o uso
sistemático da teoria das formas de governo; a segunda, o uso historiográfico; a terceira, o axiológico. Em outras palavras, com suas várias teses
Políbio fixa definitivamente a sistemática clássica das formas de governo;
expõe uma filosofia da história in nuce, segundo a qual o desenvolvimento
histórico ocorre de acordo com uma certa ordem, que é dada pela
sucessão predeterminada e recorrente das diversas constituições, e
exprime a preferência por uma constituição relativamente a todas as
outras - a constituição mista, em lugar das constituições simples.
Comecemos pela primeira tese, que não nos apresenta qualquer novidade, depois de tudo o que vimos até aqui; será desnecessário, portanto,
fazer sobre ela comentários particulares. Políbio inicia a exposição referindo-se à tipologia tradicional:
"A maior parte dos que nos querem dar lições sobre este ponto fala
de três formas constitucionais, chamando a primeira de 'reino', a
segunda de 'aristocracia' e a terceira de 'democracia' (VI, 3; ênfase acrescentada).
A única observação que podemos fazer é de natureza terminológica:
Políbio chama "democracia" a terceira forma, que Aristóteles tinha
denominado de "politia"; quer dizer emprega o termo "democracia"
com conotação positiva, ao contrário de Platão e de Aristóteles. Pouco
depois passa a tratar, como seria de esperar, das formas corrompidas:
"Não se pode chamar de 'reino' qualquer governo de uma só
pessoa, mas só o que é aceito voluntariamente, exercido de acordo com a
razão, mais do que com o terror e a força; também não se deve considerar
'aristocracia' todo governo de poucos, mas só o que é dirigido por
aqueles que forem eleitos os mais justos e sábios. Da mesma forma, não é
um governo popular aquele em que a multidão decide o que se deve fazer,
mas sim aquele onde é tradicional e habitual venerar os deuses, honrar os
pais, respeitar os mais idosos, obedecer às leis... Podemos considerar
assim seis espécies de constituição: três são conhecidas por todos - já
falamos sobre elas; outras três, derivadas das primeiras, são: a 'tirania', a
'oligarquia' e a 'oclocracia'" (VI, 4; ênfase acrescentada).
A este propósito, há duas observações a fazer: uma, simplesmente
terminológica; outra, mais substancial. Tendo usado o termo "democracia" para identificar a forma boa de governo popular, Políbio introduz
uma nova palavra (destinada a não ter uso muito difundido, permane-
Políbio
67
cendo apenas na linguagem culta) para designar o governo popular na sua
forma corrompida: "oclocracia", de oclos, que significa multidão,
massa, plebe, e corresponde bem ao nosso "governo de massa" ou "das
massas", quando o termo "massa" (que é bivalente) é empregado como
significado pejorativo que lhe é dado pelos escritores reacionários (em
expressões como "a rebelião das massas", "sociedade de massa", etc.). A
observação mais substancial tem a ver com o critério adotado por Políbio
para distinguir as constituições boas das más. É um critério que não
corresponde ao aristotélico, mas reproduz o de Platão. (De resto, parece
que Políbio não herdou nenhuma das suas teses de Aristóteles, seguindo
antes o modelo platônico. Ele próprio cita Platão no § 5, depois do que
estamos examinando.) Como já vimos, o critério aristotélico é o que se
baseia na diferença entre interesse público e privado: uma diferença que
não aparece no texto de Políbio. Não se pode dizer que o critério da
distinção entre as formas puras e as corrompidas esteja expresso muito
claramente na passagem citada; ou, pelo menos, que seja muito explícito;
de qualquer modo, não é o critério do interesse. Os critérios velados são
dois: de um lado, a contraposição entre o governo baseado na força e o
governo fundamentado no consenso; de outro, a contraposição análoga—
mas não idêntica - entre governo ilegal (portanto arbitrário) e legal. São
dois critérios que já encontramos em O Político de Platão.
Uma vez definidas as seis formas, Políbio as expõe em ordem
cronológica, apresentando a teoria dos ciclos. Aqui também é conveniente repetir toda a passagem relevante:
"Em primeiro lugar se estabelece sem artifício e 'naturalmente' o
governo de um só, ao qual segue (e do qual é gerado por sucessivas
elaborações e correções) o 'reino'. Transformando-se este no regime
mau correspondente, isto é, na 'tirania', pela queda desta última se gera
o governo dos 'melhores'. Quando a aristocracia por sua vez degenera
em 'oligarquia', pela força da natureza, o povo se insurge violentamente
contra os abusos dos governantes, nascendo assim o 'governo popular'.
Com o tempo, a arrogância e a ilegalidade dessa forma de governo levam à
'oclocracia'" (VI, 4; ênfase acrescentada).
Há muitas observações a fazer sobre esta passagem. Antes de mais
nada, as etapas do processo histórico são as seguintes: monarquia, tirania,
aristocracia, oligarquia, democracia e oclocracia. Em segundo lugar, o
processo histórico desenvolve, ciclo por ciclo, uma tendência que é, em
última análise, degenerativa, como a descrita por Platão; contudo,
diferentemente do ciclo platônico, em que cada forma é uma degeneração
da precedente, num processo contínuo, o ciclo polibiano se desenvolve
através da alternância de constituições boas e más; contudo, a constituição
boa que segue é inferior àquela que a precede; a má é pior do que
a má que a precede. Em outras palavras, a linha decrescente do ciclo
platônico é contínua, a do ciclo polibiano é fragmentada por uma
alternância de momentos bons e maus, embora tenda para baixo. Além da
diferença entre o processo contínuo, num caso, e o descontínuo, no outro,
há também uma diferença no que respeita a fase final- que para Platão é a
tirania, para Políbio a oclocracia. Não se pode silenciar o contraste entre
68
A Teoria das Formas de Governo
esta concepção regressiva da história e a visão progressiva, tão característica da idade moderna, pelo menos a partir do Renascimento (embora o
tema merecesse outro tipo de desenvolvimento), segundo a qual o que
vem depois é em última instância, senão imediatamente, melhor do que o
que vem antes (recorde-se a famosa metáfora do anão sobre os ombros do
gigante); entre uma concepção - a platônica - para a qual a história
caminha do mau para o pior e uma outra- moderna- para a qual o curso
da história vai do bom para o melhor. Em outras palavras, entre uma
teoria do retorno indefinido e uma concepção do progresso indefinido.
A terceira observação que se pode fazer é a de que esta concepção da
história é fatalista, no sentido de que a passagem de uma forma para outra
parece predeterminada, necessária e inderrogável; parece também natural, no sentido de estar prevista pela natureza das coisas, isto é, de estar
implícita na própria natureza dos governos, que não podem deixar de
sofrer o processo de transformação - e também no sentido, ainda mais
fértil, segundo o qual cada forma de governo só se pode converter em uma
outra forma determinada. Note-se, na passagem citada, a insistência em
expressões como "naturalmente", "natural", "pela força da natureza",
etc. Para demonstrar de modo evidente que o germe da corrupção está no
interior de todas as constituições, Políbio usa a imagem da oxidação do
ferro e da ação do caruncho na madeira, como se vê nesta passagem:
"Da mesma forma como a ferrugem, que é um mal congênito do
ferro, o caruncho e as traças, que são males (internos) da madeira, pelos
quais um e outra são consumidos, ainda que escapem a todos os danos
externos, assim também toda constituição apresenta um mal natural que
lhe é inseparável: o despotismo com relação ao reino; a oligarquia com
relação à aristocracia; o governo brutal e violento com respeito à
democracia. Nessas formas, como já disse, é impossível que não se
alterem com o tempo todas as constituições" (VI, 10).
Falta dizer o que acontece no fim do ciclo, quando a degradação das
constituições chega à fase final (que é a oclocracia). Em Platão - pelo
menos no livro oitavo de A República, a pergunta tinha ficado sem resposta.
Mas Políbio dá uma resposta muito precisa (resposta que está oculta no
próprio Platão): no fim do primeiro processo, o curso das constituições
retorna ao ponto de partida. Da oclocracia se volta, com um salto,
diretamente ao reino: da forma pior à melhor. A concepção que Políbio
tem da história é cíclica; segundo ele, a história é uma repetição contínua
de eventos que tornam sempre sobre si mesmos - o "eterno retorno do
mesmo". Depois de deter-se longamente a descrever de forma analítica os
seis momentos sucessivos (e fatais), conclui:
"Este é o rodízio das constituições: a lei natural segundo a qual as
formas políticas se transformam, decaem e ' retornam ao ponto de
partida'" (VI, 10; ênfase acrescentada).
Mesmo nesse caso, não se pode deixar de indicar outra grande teoria
cíclica da história, a de Giambattista Vico, embora tanto os momentos
quanto o ritmo e as dimensões históricas dessa concepção sejam
completamente diferentes, conforme teremos oportunidade de ver. Basta
dizer que enquanto a teoria de Políbio deriva do campo de observação
Políbio
69
muito limitado das cidades gregas, a teoria de Vico abrange toda a história
da humanidade. A teoria polibiana dos ciclos é deduzida da história das
cidades gregas no período do seu crescimento, esplendor e decadência;
aplica-se portanto só àquela limitada parte do mundo. As grandes
monarquias asiáticas escapam ao âmbito dessa concepção histórica;
continuarão, aliás, fora do fluxo da história européia mesmo nos séculos
seguintes - até Hegel, e mesmo depois dele. Representam não o
princípio do movimento e do progresso, mas o da imobilidade (que não se
deve confundir com a "estabilidade").
A tese principal da teoria polibiana das constituições é sem dúvida a
do governo misto. Políbio passou para a história do pensamento político
como o defensor por excelência do governo misto. Não será difícil
descobrir o nexo existente entre a idéia do governo misto e a teoria dos
ciclos: esta pôs em evidência o fato de que todas as formas simples - tanto
aquelas consideradas tradicionalmente "retas" como as corrompidas têm uma duração breve, porque estão destinadas pela própria natureza a
transformar-se numa forma diferente. Isso significa que todas as constituições sofrem de um vício, o da falta de estabilidade - vício grave porque,
por consenso geral, quanto mais estável uma constituição, mais louvável.
Qual é o objetivo de uma constituição? Para repetir a definição aristotélica, pode-se dizer que é ordenar os cargos governativos, isto é,
estabelecer quem deve governar, permitir o desenvolvimento regular e
ordeiro da vida civil - o que não pode ocorrer se o sistema político sofre
alterações contínuas. Um dos temas recorrentes da filosofia política é o da
ordem (muito mais do que seu contrário, a liberdade). A teoria dos ciclos
demonstra que as constituições comuns são instáveis; enquanto instáveis,
todas elas, mesmo as consideradas tradicionalmente boas, são más embora isso possa parecer paradoxal. Do ponto de vista do valor supremo
da ordem, garantido pela estabilidade, desaparece a distinção entre
constituições boas e más. Essa distinção desaparece se se observa o que
umas e outras têm em comum: são constituições simples, nas quais quem
governa são o rei (ou tirano), os melhores (ou os mais ricos), ou o povo (ou
a plebe). A tese de Políbio é a de que todas as constituições simples são más
porque são simples (mesmo as constituições "retas"). Qual o remédio,
então? O "governo misto", isto é, uma constituição que combine as três
formas clássicas. Antes mesmo de terminar a enumeração das três formas
boas (na passagem citada acima), Políbio acrescenta as seguintes palavras,
antecipando um conceito que desenvolverá mais completamente nos
parágrafos sucessivos.
"Está claro, de fato, que precisamos considerar ótima a constituição
que reúne as características de todas as três formas" (VI, 3).
O exemplo histórico que demonstra essa idéia é a Esparta de Licurgo.
Não importa que tenha havido as mais diversas interpretações da
constituição de Esparta, nem cabe discutir se a interpretação de Políbio
estava correta. O que nos interessa aqui é que, para Políbio, a constituição
de Esparta é excelente - porque é mista. A relação entre governo misto e
estabilidade parece clara desde o início da passagem:
"Licurgo tinha notado que cada uma das transformações mencio-
70
A Teoria das Formas de Governo
nadas se completava necessária e naturalmente; considerava que todos os
governo simples, baseados num só princípio, eram 'precários', transformando-se logo na forma corrompida correspondente, que devia
sucedê-los por força da natureza" (VI, 10; ênfase acrescentada).
Na sua descrição do remédio de Licurgo para o inconveniente do
caráter "precário" desses governos, Políbio apresenta uma formulação do
governo misto e do seu funcionamento que se tornou clássica:
"Licurgo... não formulou uma constituição simples e uniforme, mas
reuniu todas as características dos melhores sistemas políticos, de modo
que nenhuma delas, adquirindo força maior do que a necessária, se
desviasse no sentido dos seus males congênitos mas, ao contrário, de forma
que cada uma neutralizasse as outras; equilibravam-se os diversos
poderes, nenhum deles se tornava excessivo e o sistema político permanecia prolongadamente em perfeito equilíbrio, como um barco que vence
a força de uma corrente oposta" (VI, 10).
A composição das três formas de governo consiste no fato de que o rei
está sujeito ao controle do povo, que participa adequadamente do
governo; este, por sua vez, é controlado pelo senado. Como o rei
representa o princípio monárquico, o povo o princípio democrático e o
senado o aristocrático, o resultado dessa combinação é uma nova forma
de governo, que não coincide com as três formas simples retas - porque é
composta-, nem com as três formas corrompidas - porque é reta. Quanto
à razão da excelência do governo misto, Políbio vai encontrá-la no
mecanismo de controle recíproco dos poderes, ou no princípio do
"equilíbrio". Esse é um ponto de grande importância. O tema do equilíbrio dos poderes (que na idade moderna se tornará o tema central das
teorias "constitucionalistas", com o nome de balance of power) é um dos que
dominam toda a tradição do pensamento político ocidental. Embora a
teoria do governo misto, tão bem formulada por Políbio, não deva ser
confundida com a teoria moderna da separação e do equilíbrio dos
poderes (enunciada por Montesquieu em forma que se tornou famosa), é
um fato que a teoria do governo misto e a teoria do equilíbrio procedem
pari passu. O que a continuação do discurso confirma, quando Políbio
expõe particularizadamente os princípios em que se inspira a constituição
romana.
A razão por que Políbio enuncia a tese da excelência do governo
misto é a seguinte: ele considera como exemplo admirável desse gênero
de governo a constituição romana, na qual "os órgãos... que participavam
do governo eram três" (os cônsules, o senado e as eleições populares),
com a conseqüência de que:
"Considerando-se era especial o poder dos cônsules, o Estado
parecia monárquico e real; considerando-se em particular o senado,
parecia aristocrático; do ponto de vista do poder da multidão, parecia
indubitavelmente democrático" (VI, 12).
O conceito do controle recíproco dos poderes e do resultante
equilíbrio está tão estreitamente ligado à idéia do governo misto que volta
a surgir depois da exposição sobre a constituição romana. O parágrafo
final do Livro VI começa assim:
Políbio
71
"Como dessa forma cada órgão pode 'obstaculizar' os outros ou
'colaborar' com eles, sua união é benéfica em todas as circunstâncias, de
modo que não é possível haver um Estado melhor constituído".
E termina assim:
"Quando... um dos órgãos constitucionais, adquirindo força, cresce
em soberba e exerce um domínio maior do que o conveniente, está claro
que como nenhuma parte é autônoma, como já disse, e como todo
desígnio pode ser desviado ou impedido, nenhuma das panes excede sua
competência e ultrapassa sua medida. Assim, permanecem todos dentro
dos limites prescritos — de um lado porque têm impedidos todos os
impulsos agressivos, de outro porque desde o princípio temem a
vigilância dos demais" (VI, 18).
Com essas afirmativas, Políbio conclui perfeitamente a exposição que
iniciara dizendo que a primeira causa do êxito ou do insucesso de um
povo deve ser procurada na sua constituição. De fato, o que Políbio
evidencia claramente, para afirmar a excelência de uma constituição, é o
que hoje chamaríamos de seu "mecanismo". A teoria de Políbio é uma
teoria dos mecanismos constitucionais que tornam possível uma forma de
governo estável — por isso preferível a qualquer outra. É verdade que hoje
não nos inclinamos tanto a admitir que a causa fundamental do êxito ou
do fracasso de um povo seja sua constituição. Tendemos a afastar nossa
análise do sistema político para o sistema social subjacente; da anatomia
das instituições políticas para a anatomia da sociedade civil (como diria
Marx); das relações de poder para as relações de produção. No entanto, a
preferência atribuída às instituições perdurou longamente; conforme
veremos, não será estranha a Hegel.
Vale a pena fazer um rápido confronto com a "politia" de Aristóteles,
representada como uma forma antecipada de governo misto. Segundo
Aristóteles, a superação do antagonismo entre as duas partes em conflito
não ocorre, como para Políbio, a nível institucional; acontece — quando
acontece - na sociedade, por meio da formação de uma forte classe média
com interesse próprio na estabilidade. Antes de ser institucional, o
equilíbrio aristotélico é social; ele só é institucional se é previamente
social. Neste sentido, a teoria aristotélica da "politia" não é tanto uma
teoria do governo misto, mas sobretudo a admiração sentida por uma
sociedade sem grandes desequilíbrios de riqueza.
A presença simultânea dos três poderes e seu controle recíproco
preserva as constituições mistas da degeneração a que estão sujeitos os
governos simples, porque impede aqueles excessos que, por reação,
desencadeiam a oposição e provocam mudanças. Como conciliar, então,
a estabilidade dos governos mistos com a teoria dos ciclos? Não há talvez
uma contradição entre a afirmativa peremptória de que os ciclos das
constituições são um fato natural (portanto inevitável) e a afirmativa não
menos peremptória de que os governos mistos são estáveis? Não é de hoje
que os analistas do Livro VI de Políbio observam essa contradição: notase que é de fato estranho que o teorizador da fatalidade da mudança tenha
dedicado depois algumas páginas, no mesmo contexto, a descrever e
exaltar uma constituição cuja característica é subtrair-se à mudança. A
72
A Teoria das Formas de Governo
existência de uma constituição como a romana, que se formou lentamente
mediante "grandes lutas e agitações" (e justamente porque se desenvolveu por meio da criação de um sistema complexo de poderes contrapostos
não está sujeita à degeneração) não representa um desmentido solene da
teoria dos ciclos?
A contradição é mais aparente do que real. O fato de que as
constituições mistas são estáveis não significa que sejam eternas, mas
apenas mais duradouras do que as simples (de resto, o primeiro modelo
de constituição mista, o modelo espartano, no tempo de Políbio já não
passava de uma recordação histórica). O que diferencia as constituições
mistas das simples não é mais a proteção contra as mudanças, o fato de
que podem escapar ao destino mortal que condena todas as constituições como todas as coisas vivas -, mais sim um ritmo diferente e uma razão
diferente para a mudança. Não é por acaso que, referindo-se ao Estado
romano, Políbio escreve, logo depois de enunciar a lei dos ciclos
históricos:
"Especialmente no caso do Estado romano, com este método (isto é,
com a lei dos ciclos, segundo a qual 'as formas políticas se transformam,
decaem e retornam a© ponto de partida') tomaremos consciência do seu
surgimento, expansão e potência máxima, como da decadência que
seguirá" (VI, 9).
Parece não haver dúvida de que desde o princípio Políbio tem perfeita
consciência de que até mesmo o Estado romano, não obstante sua
excelência, está sujeito à "lei natural" do nascimento, crescimento e
morte; que, portanto, o que constitui o título de mérito do governo misto
é sua maior estabilidade - não sua perenidade.
No que concerne ao ritmo de mudança, ele é mais lento do que o das
constituições simples, porque, mediante o mecanismo de conciliação das
três partes que compõem a sociedade no seu conjunto, os conflitos entre
partes (que nas constituições simples provocam as transformações constitucionais, a passagem brusca e violenta de uma forma para outra) são
resolvidos dentro do sistema político; se produzem mudanças, elas são,
como diríamos hoje, sistemáticas e não extra-sistemáticas; graduais e não
violentas. Provocam não o desequilíbrio imprevisto que gera a revolução,
mas uma alteração do equilíbrio interno que é absorvida por um
deslocamento do mesmo equilíbrio em grau diferente. No que respeita à
razão que pode explicar por que as constituições mistas também decaem e
morrem, ela consiste num tal deslocamento do equilíbrio entre as três
partes, em favor de uma delas, que a constituição deixa de ser mista para
se tornar simples. A julgar pelo que Políbio diz sobre Cartago, que tinha
um governo misto, mas que estava destinada à derrota porque tinha caído
nas mãos de um governo democrático (no sentido depreciativo da
palavra), enquanto Roma deveria ser vitoriosa porque ali o equilíbrio
entre os três poderes ainda não se havia rompido em favor de um só
dentre eles, poder-se-ia deduzir que há uma espécie de ciclo também
dentro das constituições mistas, quedálugar a um "ciclo no ciclo" — com a
conseqüência de que nem todas as constituições mistas deveriam ser
colocadas no mesmo plano, mas sim deixadas separadamente, conforme
Políbio
73
prevalecesse uma ou outra pane da cidade, em constituições mistas
predominantemente monárquicas, aristocráticas ou democráticas.
Pode-se talvez arriscar a hipótese (embora não inteiramente explicitada) de que Políbio tenha usado também esse "ciclo no ciclo" de modo
axiológico, além de descritivo, estabelecendo uma graduação de mérito
entre os diversos tipos de constituições mistas; dando sua preferência ao
de predominância aristocrática, como era o da Roma do seu tempo, e
considerando que a constituição mista de predominância democrática
fosse o princípio do fim. Segundo esta hipótese, a melhor constituição
mista seria aquela em que das três partes componentes predomina a do
meio (isto é, a aristocrática) - outro exemplo claro da primazia do "meiotermo".
Apêndice
A excelência do governo misto e o elogio da constituição romana
continuam paralelamente na De Republica de Cícero (cerca de 50 a.C).
Quando Cícero escreveu sua obra- um século depois de Políbio -, a idéia
de que o governo misto é o melhor de todos e a representação da
constituição romana como constituição mista estão já consolidados. As
duas noções se reforçam mutuamente: a constituição romana é a melhor
porque é um governo misto; ao mesmo tempo, o governo misto é o
melhor dos governos porque foi elaborado em Roma durante séculos.
Depois de expor a teoria clássica das seis formas, Cícero escreve:
"A meu ver, dessas três primeiras formas, a monárquica é claramente
preferível; mas será superior a ela aquela composta 'equilibradamente
(aequatum et temperatum) por todas as três melhores formas de constituição"'
(I, 45; ênfase acrescentada).
Observe-se a expressão "aequatum et temperatum", que lembra o tema
polibiano do equilíbrio. Qual a razão da excelência desse tipo de
constituição?
"Na verdade, é bom que haja no governo alguma coisa de eminente e
de real que outros poderes sejam atribuídos e deferidos à autoridade dos
melhores e que certas questões fiquem reservadas ao julgamento e à
vontade da multidão" (I, 45).
Quais as conseqüências disso?
"Essa constituição apresenta, em primeiro lugar, uma certa igualdade, que a longo prazo os cidadãos livres não podem dispensar senão
com dificuldade; em segundo lugar, possui 'estabilidade (firmitudinem)"'
(I, 45; ênfase acrescentada).
Depois do que dissemos a respeito de Políbio, parece-me inútil
insistir na importância da idéia de "estabilidade" na avaliação positiva de
qualquer constituição. A passagem de Cícero que reproduzimos confirma isso, e confirma também que a excelência do governo misto reside, em
última instância, no fato de que ele assegura uma estabilidade que as
outras formas de governo não conseguem garantir, como fica claro no
trecho a seguir, que reproduz, em síntese rápida, o ciclo polibiano:
76
A Teoria das Formas de Governo
"Enquanto as três primeiras formas de governo facilmente se
desenvolvem nos defeitos opostos, de modo que o rei passa a tirano, os
melhores constituem uma facção, o povo se faz turba e leva à desordem,
transformando-se essas formas em outras, o mesmo não acontece, de
modo geral, num governo como este, composto e moderadamente
misto... Não há, de fato, razão para mudança (causa conversionis) onde todos
se mantêm firmemente no seu lugar, afastando-se das condições que
levam à precipitação e à queda".
Aqui também se nota uma relação estreita entre constituição mista e
estabilidade: quando o governo é composto, e cada uma das suas partes
exerce a função que lhe cabe dentro do conjunto, não há causa conversionis isto é, não há uma razão que leve o governo a degenerar, de modo que
dessa degeneração surja uma forma de governo completamente nova.
Mais uma vez encontramos, num texto clássico de filosofia política, o
elogio da estabilidade ao lado do temor da mudança - especialmente
quando esta conduz à "turba et confusio" do governo popular.
Capítulo V
INTERVALO
Chamarei de "Intervalo" a estas poucas noções dedicadas à Idade
Média — isto é, aos muitos séculos que separam a Antigüidade clássica de
Maquiavel, ao qual está dedicado o próximo capítulo. Já disse que na
presente excursão histórica vou deter-me só em algumas fases, que
considero essenciais na história das teorias das formas de governo. Quer
dizer: em algumas teorias que são exemplares. No curso da filosofia
política medieval nada há de genuinamente fundamental para o desenvolvimento das teorias das formas de governo. Limitar-me-ei portanto a
dar algumas razões para esse fato, a procurar explicá-lo.
Não se pode silenciar um motivo externo que pode ter influído para
motivar esse longo hiato histórico que vamos expor brevemente. O texto
canônico dessa história — a Política de Aristóteles — não era conhecido
pelos escritores cristãos dos primeiros séculos: perdeu-se, na crise da
cultura antiga, e só foi redescoberto no fim do século XIII. Quanto ao De
Republica de Cícero, foi redescoberto no princípio do século XIX.
Reencontrado o texto aristotélico, teve grande repercussão — tanto
que a célebre classificação das formas de governo passou a ser repetida
servilmente, embora a realidade histórica fosse bem diversa da que tinha
suscitado as observações e distinções dos autores gregos. Cito um
exemplo muito significativo: uma das obras políticas mais importantes da
Idade Média avançada é, sem dúvida, o Defensor Pacis, de Marcílio de
Pádua (1324). No cap. VIII, dedicado à classificação das constituições,
encontramos uma pura e simples repetição - quase uma tradução - do
trecho de Aristóteles, que citamos:
"Há dois gêneros de governos, um equilibrado e outro viciado. Com
Aristóteles,... chamo de bem equilibrado o gênero em que o governante
zela pelo bem comum, de acordo com a vontade dos seus súditos; o
gênero viciado é o que apresenta falha, deste ponto de vista. Cada um
desses gêneros se divide, em seguida, em três espécies: o equilibrado, em
78
A Teoria das Formas de Governo
monarquia real, aristocracia e polida; o viciado, nas três espécies opostas,
que são a monarquia tirânica, a oligarquia e a democracia".
Desejaria apontar uma razão mais profunda - embora o faça com
muita cautela, por se tratar de generalização que precisaria ser apoiada
com mais provas. Grande parte das teorias medievais sobre o Estado (pelo
menos as teorias dos primeiros séculos, anteriores à visão escolástica, que
retoma as teses aristotélicas) apresenta uma concepção negativa do
Estado. Considero "concepção negativa do Estado" a que lhe atribui a
função essencial de remediar a natureza má do homem, vendo-o
sobretudo como uma dura necessidade, considerando-o particularmente
no seu aspecto repressivo (simbolizado pela espada). A concepção helênica
era bem diferente. Basta lembrar que, para Aristóteles, o fim do Estado
não é só possibilitar a vida em conjunto, mas assegurar aos que vivem em
comum uma "vida boa". Para quem postula a natureza má do homem (o
homem depois da queda, o homem do pecado original), a finalidade do
Estado não é promover o bem, mas exclusivamente controlar, com a
espada da justiça, o desencadeamento das paixões que tornariam
impossível qualquer tipo de convivência pacífica. Quem provê a salvação
do homem não é o Estado, mas a Igreja. Para ilustrar o que denominei de
"concepção negativa do Estado", reproduzo trecho de um autor que
resume, na sua obra enciclopédica, o pensamento cristão dos primeiros
séculos — Isidoro de Sevilha (550-636):
"Pela vontade de Deus, a pena da servidão foi imposta à humanidade
devido ao pecado do primeiro homem; quando ele nota que a liberdade
não convém a alguns homens, misericordiosamente lhes impõe a
escravidão. E, embora todos os fiéis possam ser redimidos do pecado
original pelo batismo, Deus, na sua eqüidade, fez diferente a vida dos
homens, 'determinando que alguns fossem servos, outros senhores', de
modo que o arbítrio que têm os servos de agir mal fosse limitado pelo
poder dos que dominam. Com efeito, se ninguém temesse, quem poderia
impedir alguém de cometer o mal? Por isso são eleitos príncipes e reis,
para que 'com o terror' livrem seus súditos do mal, 'obrigando-os, pelas
leis, a viver retamente'" (Sententiae, III, 47).
Será difícil encontrar uma exposição mais incisiva e sintética da
concepção negativa do Estado: como sua razão de ser é a maldade
humana, o poder dos governantes só se pode aplicar com o terror. Os
homens não são naturalmente bons; o Estado é o instrumento dessa
coerção. Aquele a quem se solicita o exercício de poder tão terrível
pertence, pela sua natureza, à raça dos senhores, da mesma forma como
aqueles destinados a obedecer pertencem à raça dos servos. Vimos, no
capítulo dedicado a Aristóteles, que o regime em que a relação entre
governantes e governados é assemelhada à que existe entre senhores e
servos é a monarquia despótica. Na passagem citada de Isidoro o regime
descrito é a monarquia despótica. É fácil compreender que numa teoria
do Estado como esta não há lugar para uma teoria das formas de governo
que pressupõe - como se viu, repetidamente - a observação de que há
muitas dessas formas, algumas boas e outras más. Onde todas as
constituições são más, todas necessariamente despóticas, onde o Estado-
Intervalo
79
pelo simples fato de ser Estado - só pode ser despótico, onde, em outras
palavras, o Estado e o despotismo são unum et idem, não há lugar para
estabelecer distinções sutis entre as formas de governo, classificando-as
em gêneros, espécies e subespécies.
Poder-se-ia objetar que até mesmo Platão tinha uma concepção
negativa dos Estados existentes, que para ele eram todos maus em relação
à república ideal; Platão comparava os Estados existentes ao melhor
Estado possível e, por dedução, chegava à idéia do "bom Estado". Uma
passagem como de Isidoro não contrapõe o Estado mau ao Estado bom; o
constraste que apresenta é outro, entre o Estado e a Igreja. O grande tema
da política medieval é a dicotomia Estado-Igreja, não a variedade histórica
dos Estados. A salvação dos indivíduos não é algo que ocorre no Estado como acontecia para os escritores gregos e como será admitido também
pelos escritores políticos que inauguram a tradição do jusnaturalismo
moderno (como Hobbes) - mas por meio de outra instituição, diferente e
superior, sob certos aspectos até mesmo antitética - instituição que tem a
finalidade extraordinária de conduzir os homens ao reino de Deus.
Saltando alguns séculos, mas permanecendo dentro da mesma tradição,
não resisto à tentação de citar uma passagem célebre, em que o contraste
entre esses dois reinos não poderia ter sido pintado com cores mais fortes: o
texto Sobre a Autoridade Secular (1523), de Lutero.
"Pertencem ao reino da Terra - quer dizer, estão sujeitos às leis todos os que não são cristãos (isto é, que não combatem o mal, porém, ao
contrário, o praticam). De fato, são poucos os verdadeiros cristãos, e
menos numerosos ainda os que se conduzem de acordo com o espírito de
cristandade. Aos demais, que não têm condição cristã nem pertencem ao
reino de Deus, o Senhor impôs outro regulamento, submetendo-os com a
espada, de modo a não poderem exercer sua maldade, o que fariam de
bom grado; forçando-os a praticá-la medrosamente, sem contentamento
e serenidade - do mesmo modo como se prende com cordas e cadeias
uma fera selvagem e perigosa, para impedi-la de atacar e morder, como
lhe ordena o instinto, o que faria de boa vontade. Não é necessário tratar
da mesma maneira um animal dócil e doméstico, inofensivo mesmo sem
cordas e cadeias que o prendam" (M. Lutero, Escritos Políticos, Edição Utet,
p. 403).
Para encontrar outra concepção negativa do Estado comparável à dos
primeiros pensadores cristãos será necessário chegar a Marx. Dedicarei
um capítulo a Marx, mas desde já se pode dizer que, partindo de uma
concepção negativa da história (pelo menos até o momento da "ressurreição" pela revolução, isto é, da concepção segundo a qual todas as
sociedades que já existiram, exceto as primitivas, estiveram divididas era
classes antagônicas) ele afirma que a classe dominante tem necessidade de
uma força repressiva — representada justamente pelo Estado — para
manter seu domínio. O ponto de partida de Marx não é o homem mau —
menos ainda o homem que é mau porque está maculado pelo pecado
original; é, por assim dizer, a sociedade má, na qual a divisão do trabalho
levou à divisão em classes, que perpetua a desigualdade entre os
proprietários e os que não têm propriedade. Mas é sempre um ponto de
80
A Teoria das Formas de Governo
partida que tem como conseqüência o reconhecimento da necessidade de
um domínio férreo, sem o qual a classe dominante não poderia manter
seu poder.
Para Marx também o Estado não pode ser mantido sem o terror. A
diferença é que esse terror não é necessário devido à maldade dos súditos,
mas as condições objetivas das relações de produção que deram origem a
uma sociedade de desiguais, que só a força pode manter unida. Não é por
acaso que Marx se refere ao Estado burguês como "ditadura da
burguesia", e chama de "ditadura do proletariado" o Estado em que a
classe dominante será o proletariado. Designa o Estado - qualquer forma
de Estado - como um termo que sempre denotou uma forma de poder
exclusivo e absoluto. Veremos oportunamente que, com respeito à teoria
das formas de governo, a conseqüência é a mesma que extraímos da
concepção negativa do Estado, própria de alguns escritores cristãos:
mesmo em Marx não encontramos uma genuína teoria das formas de
governo. Se todos os Estados são "ditaduras", pelo simples fato de serem
Estados, todos valem o mesmo. Enquanto houver Estado haverá o
domínio pela força, a coação, a repressão, a violência da classe que detém
o poder sobre aquela que não o tem, etc. Está claro que Marx também não
vê no Estado a finalidade da história: ele deverá desaparecer, sendo
substituído pela sociedade sem Estado, quando não existirem mais classes
antagônicas.
Contudo, enquanto para os escritores cristãos a salvação do indivíduo
depende de outra sociedade paralela ao Estado ("extra ecclesiam nulla
salus"), para Marx a solução está na dissolução do Estado, isto é, na
sociedade que não se baseia mais em relações de força, a qual poderá ser
instaurada quando desaparecerem as divisões de classe. Dentro de uma
concepção negativa do Estado, não pode haver a afirmação de um
momento positivo, quer dizer, de uma entidade que se contraponha ao
Estado, dominando-o e por fim destroçando-o. Para os escritores cristãos,
esse momento positivo é a Igreja; para Marx, é a sociedade sem classes;
para uns uma forma de verdadeiro antiestado, para outros o não-Estado.
A fim de completar o quadro das concepções negativas do Estado, e
uma vez que mencionei Platão, vale acrescentar que a solução platônica
do Estado negativo não é nem o antiestado nem o não-Estado, mas sim o
Estado ideal, uma sublimação: o superestado, a sociedade organizada de
modo tal que a desigualdade entre os membros da comunidade estatal
(que fundamenta o Estado como puro domínio) seja fixada de uma vez
por todas, e perpetuada; em outras palavras, não se trata de eliminar a
divisão da sociedade em classes, mas sim de eternizá-la.
Pode-se dar também uma explicação filosófica para o escasso
interesse que os escritores cristãos têm na classificação das formas de
governo: o problema central dos escritores políticos dos primeiros séculos
do cristianismo é antes de tudo um problema moral. Trata-se da relação
entre o Estado (qualquer que seja sua forma histórica) e a justiça. Santo
Agostinho tinha enunciado com extrema clareza esse problema, que todo
o pensamento político medieval procura solucionar, ao perguntar-se:
"Desprezada a justiça, que são os reinos senão bandos de ladrões? E
Intervalo
81
que são os bandos de ladrões senão pequenos reinos?... Por isso foi
inteligente e veraz a resposta dada a Alexandre Magno por um pirata que
caiu sob o seu poder. Como Alexandre lhe perguntasse por que razão
infestava os mares, respondeu com audácia: - Pelo mesmo motivo por
que infestas a terra; mas como o faço com um pequeno barco, sou
chamado de pirata; como o fazes com uma grande frota, és chamado de
imperador" (De Civitate Dei, IV, 4).
Quero acentuar pelo menos uma conseqüência dessa colocação ética
do problema político: o interesse que o pensamento político medieval
demonstrou pelo problema da "tirania". Ouso dizer que, de todos os
grandes temas políticos que compõem o legado do pensamento clássico, a
tirania é talvez o que foi tratado mais particularmente no limiar do
pensamento moderno, às vésperas de Maquiavel. O tema maquiaveliano
(e maquiavélico!) por excelência- o "novo príncipe" - é o mesmo tema
clássico do tirano: aquele que conquista o poder de fato e o mantém,
exercendo-o segundo regras que não são as mesmas da moral pública, ou
religiosa.
É o mesmo tema, mas não mais tratado como problema moral ou
jurídico. Dos comentários medievais sobre a tirania, o mais célebre é o de
Bartolo (1314-1357); no De Regimine Civtatis, que introduz a distinção
(destinada ao êxito) entre o tirano que exerce abusivamente o poder "tyrannus ex parte exercitii" — e o que conquistou o poder sem ter direito "tyrannus ex defectu tituli". Possivelmente o mais completo dos tratados
sobre a tirania é o de Coluccio Salutati, e Tratado sobre o Tirano, escrito no
fim do século XV, com o qual o autor pretende responder à pergunta
sobre se César deveria ser considerado um tirano - e portanto se Dante
tinha razão para colocar seus assassinos no último círculo do inferno.
Coluccio retoma uma classificação das formas de governo, ou
principatus, que encontramos já em São Tomás, em Ptolomeu de Luca e em
Egídio Romano, e que deriva longinquamente de Aristóteles, sem chegar
a ser aristotélica na acepção estrita. As três formas de principatus são o
principatus regius, o politicus e o despoticus. É interessante o critério de
distinção, baseado nas relações familiares (como haviam sido apresentadas no Livro I da Política de Aristóteles): o principatus regius é aquele em
que o rei governa como o pai sobre os filhos; o politicus, aquele em que
governa como o marido sobre a esposa; o despoticus, como o senhor sobre
os escravos. Retorna à distinção (também aristotélica) entre o poder
exercido no interesse dos súditos (o poder paterno) e no interesse do
poderoso ou daquele ao qual se dirige o poder (o poder conjugai) e, de
outro lado, aquele exercido no interesse exclusivo de quem governa (o
poder senhorial). No que concerne à tirania, Coluccio retoma a distinção
entre suas duas formas, definidas por Bartolo: tirano é tanto o que "invadit
imperium et iustum non habet titulum dominandi" (o príncipe que conquista o
poder sem justo título a ele, sendo portanto um príncipe usurpador,
ilegítimo) quanto o que "superbe dominatur aut iniustitiamfacit vel iura tegesque
non observai" (o príncipe que, embora tenha título justo para exercer o
poder, o exerce em violação das leis, abusando de seus privilégios,
tratando cruelmente os súditos, etc). Por antítese, o príncipe legítimo e
justo - não tirano — é o que tem ao mesmo tempo um título justo ("cui iure
82
A Teoria das Formas de Governo
principatus delatus est") e governa com justiça ("qui iustüiam ministrai et leges
servat"). Estas breves indicações sobre a teoria do tirano servirão também
como introdução a Maquiavel, tema do próximo capítulo.
Capítulo VI
MAQUIAVEL
Com Maquiavel começam muitas coisas importantes na história do
pensamento político, inclusive uma nova classificação das formas de
governo. O assunto é tratado por Maquiavel tanto em O Príncipe como nos
Comentários sobre a Primeira Década de Tito Livio (os Discorsi). Pretendo ocupar-
me dos dois livros, e advirto que, com respeito ao tema que nos interessa,
há também uma diferença entre eles - o primeiro trata da política
militante, o segundo da teoria política, afastando-se mais dos acontecimentos da época.
A novidade da classificação de Maquiavel, em comparação com a
tipologia clássica, aparece já nas primeiras palavras de O Príncipe,
dedicadas justamente a esse ponto:
"Todos os Estados que existem e já existiram são e foram sempre
repúblicas ou monarquias".
Palavras importantes para a história do pensamento político, inclusive por introduzirem termo que perduraria até hoje - "Estado" -, para
indicar o que os gregos tinham chamado de polis, os romanos de res publica, e que um grande pensador, político, o francês Jean Bodin, meio
século depois de Maquiavel, chamará de république. Já se escreveu
muito, até recentemente, a respeito do emprego do termo "Estado" na
época de Maquiavel e imediatamente depois, dentro e fora da Itália. Não
me deterei neste ponto, mas aconselho, a este propósito, a leitura do cap.
IV da Doutrina do Estado, de A. Passerim d'Entrèves (Turim, Giappichelli,
1962, pp. 47-60).
No trecho citado observa-se logo que Maquiavel substitui a tripartição
clássica, aristotélico polibiana, por umabipartição. As formas de governo
passam de três a duas: principados e repúblicas. O principado corresponde ao reino; a república, tanto à aristocracia como à democracia. A
diferença continua a ser quantitativa (mas não só quantitativa) e é
simplificada: os Estados são governados ou por uma só pessoa ou por
muitas. Essa é a diferença verdadeiramente essencial. Os "muitos"
84
A Teoria das Formas de Governo
podem ser mais ou menos numerosos, permitindo distinguir, entre as
repúblicas, as aristocráticas e as democráticas. Mas esta segunda distinção
não se baseia mais numa diferença essencial. Em outras palavras, ou o
poder reside na vontade de um só - é o caso do principado - ou numa
vontade coletiva, que se manifesta em colegiado ou assembléia - e temos a
república, em suas várias formas. A diferença existente entre a vontade de
um colegiado restrito, como numa república aristocrática, e a vontade
numa assembléia popular, como a de uma república democrática, é
menos relevante do que a diferença entre a vontade de um soberano
único, que é a vontade de uma pessoa física, e a vontade de um soberano
coletivo, que é a de uma pessoa jurídica (de uma "pessoa fictícia"). O que
se modifica, na passagem do principado para a república, é a própria
natureza da vontade envolvida; da república aristocrática para a república
democrática, o que muda é somente o modo de formação da vontade
coletiva. Qualquer que ela seja, a vontade coletiva tem necessidade, para
sua formação, de que sejam respeitadas determinadas regras de procedimento (como, por exemplo, a da maioria), as quais não se aplicam à
formação da vontade singular do príncipe, que é a vontade de uma pessoa
física.
Independentemente destas considerações jurídicas, a distinção de
Maquiavel correspondia muito melhor à realidade do seu tempo do que a
classificação dos antigos. A teoria das formas de governo formulada pelos
gregos não tinha nascido na cabeça dos filósofos, mas na observação das
constituições das cidades helênicas, suas características e mudanças.
Tinha uma base histórica, como parece claro pelos exemplos que tanto
Platão como Aristóteles dão de uma ou de outra constituição real, quando
surge a oportunidade. O próprio Aristóteles tinha coligido 158 constituições do seu tempo, em obra que se perdeu. Mas a realidade política da
época de Maquiavel tinha mudado profundamente, e não podia passar
despercebida ao escritor que pretendia ser "mais conveniente ir diretamente à verdade efetiva (verità effetuale) das coisas do que à sua imaginação", vendo com suspicácia todos os que tinham anteriormente "imaginado repúblicas e principados que nunca foram vistos ou conhecidos
como realidade" (O Príncipe, XV). A Europa dos tempos de Maquiavel
oferecia ao observador desinteressado o espetáculo dos regna - como a
Inglaterra, a França, a Espanha —, que se tinham formado gradualmente
depois da dissolução do Império Romano (alguns dos quais se vinham
transformando nos grandes Estados territoriais que originaram o "Estado" moderno) e das civitates, que se tinham expandido, dominando o
território vizinho, inclusive outras cidades menores, e que eram governadas por senhores temporários e eletivos ou por conselhos de notáveis ou
de representantes. Na época de Maquiavel, a Itália apresentava, nesta
última categoria, alguns exemplos conspícuos, como as repúblicas de
Gênova, de Veneza e a própria Florença. É preciso não esquecer,
portanto, que mesmo no que dizia respeito à história, o campo das
reflexões de Maquiavel não foi o das cidades gregas, mas sim o da
república romana — história secular e gloriosa que parecia especialmente
apta, pela sua divisão entre uma república e uma monarquia (excetuados
Maquiavel
85
os primeiros séculos), para confirmar a tese de que os Estados são sempre
ou repúblicas ou principados, como se queria demonstrar.
O fato de que Maquiavel retorna com freqüência a essa distinção,
utilizando-a para compreender a realidade do seu tempo, prova que ela
não é livresca, ou meramente cômoda. Limito-me aqui a citar um trecho
de escritor menor, a Exposição sobre a Reforma do Estado de Florença a Instâncias
do Papa Leão, que começa com estas palavras:
"A razão por que Florença sempre variou nos seus governos reside no
fato de que nunca houve ali república ou principado com as qualidades
devidas. Não se pode dizer que é estável um principado onde tudo se faz
conforme deseja um só, e se delibera mediante o consenso de muitos;
nem se pode crer que seja duradoura a república onde não se satisfaz
aqueles requisitos que a arruinam, quando não satisfeitos".
A passagem não deixa lugar a dúvida no que concerne à importância
atribuída por Maquiavel à distinção. Trata-se de fato de uma diferença
verdadeiramente essencial, de modo que um Estado bem ordenado só
pode ter uma ou outra constituição. Diríamos hoje que cada uma das duas
formas tem sua "lógica", que precisamos respeitar se não queremos criar
confusões, originando Estados "defeituosos". O trecho que segue,
extraído da mesma Exposição, é ainda mais explícito:
"Quanto a impugnar o Estado de Cosmo, e à afirmativa de que
nenhum Estado pode ser estável se não é um genuíno principado ou uma
verdadeira república, porque todos os governos intermediários são
defeituosos, a razão é claríssima: o principado só tem um caminho para a
sua dissolução, que é descer até a república; e a república só tem um meio
de dissolver-se: subir até o principado. Mas os Estados intermediários têm
dois caminhos, um no sentido do principado, outro no sentido da
república — de onde nasce sua instabilidade".
O trecho é interessante também por outra razão. Na distinção nítida
entre principados e repúblicas não há lugar para "Estados intermediários" - para os Estados que não são nem carne nem peixe, nem principados
nem repúblicas, porque sofrem do mal característico dos maus Estados,
como já vimos mais de uma vez - isto é, da instabilidade. Uma tese como
esta parece contradizer a teoria do Estado misto, da qual Maquiavel,
admirador da república romana, é um defensor, seguindo os passos de
Políbio — como veremos mais adiante. Uma das razões da excelência do
Estado misto é, como se disse, sua estabilidade. Ora, essa passagem parece
indicar que para Maquiavel os Estados estáveis são os simples - puramente
principado ou república. A instabilidade seria uma característica dos
"Estados intermediários", instáveis pelo mesmo motivo por que, segundo os defensores do Estado misto, como Políbio, as formas simples seriam
instáveis — isto é, porque é neles, e não nas formas simples, que ocorre
mais facilmente a passagem de uma forma a outra.
Essa não é a única contradição entre o Maquiavel historiador e teórico
da política e o Maquiavel político, conselheiro de príncipes. Mas, será
realmente uma contradição? Os "Estados intermediários" e os "governos
mistos" serão a mesma coisa? Penso que não. Pode-se sustentar, de fato,
que nem todas as combinações entre diferentes formas de governo são
86
A Teoria das Formas de Governo
boas - quer dizer, são governos mistos propriamente. Não basta
combinar uma forma de governo com outra para chegar a um governo
misto. Há combinações que funcionam e outras que não. Uma combinação pode constituir uma síntese feliz de constituições opostas, sendo
assim superior às constituições simples; outra pode ser uma contaminação de constituições que não se ajustam entre si, sendo assim inferior a
uma constituição simples. Conforme veremos adiante, o governo misto
que Maquiavel identifica no Estado romano é uma república compósita,
complexa, formada por diversas partes que mantêm relações de concórdia contrastantes entre si. O Estado intermediário que ele critica deriva não
de uma fusão de diversas partes, num todo que as transcende, mas da
conciliação provisória entre duas partes que conflitam, que não chegaram
a encontrar uma constituição unitária que as abranja, superando-as a
ambas. Resta, contudo, o fato de que essa exposição sobre a reforma do
Estado de Florença está associada muito de perto à circunstância histórica
que a motivou para que possam ser comparadas sic et simpliciter à
formulação teórica das formas de governo em geral que Maquiavel expõe
nos Discorsi.
Uma vez classificados os Estados em principados e repúblicas,
O Príncípe se dedica ao estudo dos primeiros:
"Não pretendo discorrer aqui sobre as repúblicas, assunto que já
estudei extensamente em outra parte, mas somente sobre as monarquias,
examinando de que modo suas várias modalidades, acima indicadas,
podem ser mantidas e governadas (cap. II)".
Detenho-me somente na classificação dos principados. A primeira
distinção introduzida no livro é entre principados hereditários, nos quais
o poder é transmitido com base numa lei constitucional de sucessão, e
principados novos, onde o poder é conquistado por quem ainda não era
um "príncipe" (como aconteceu em Milão, com Francisco Sforza, para
dar o exemplo apresentado pelo próprio Maquiavel). O livro é dedicado
quase inteiramente aos novos principados. O que motiva Maquiavel é o
lançamento de premissas que lhe permitirão invocar finalmente, na
célebre exortação final, o "novo príncipe" que redimirá a Itália do
"domínio bárbaro", o novo "Teseu", o "redentor".
No que concerne aos principados hereditários, há duas espécies:
"No curso da história os reinos têm sido governados de duas formas:
por um príncipe e seus assistentes que, na qualidade de ministros, o
ajudam a administrar o país, agindo por sua graça e licença; ou por um
príncipe e vários barões, cuja posição não se explica por um favor do
soberano, mas pela antigüidade da própria família (cap. IV)".
O critério de distinção entre as duas espécies é claro: há príncipes que
governam sem intermediários, cujo poder é absoluto, com a conseqüência que os súditos são seus "servos" - mesmo os que, por concessão
graciosa do soberano, o ajudam como ministros; e há príncipes que
governam com a intermediação da nobreza, cujo poder é original, não
depende do rei. Esta segunda espécie de príncipe tem um poder nãoabsoluto, porque é dividido com os "barões", embora guarde uma
posição preeminente. Na primeira categoria de principado, Maquiavel
Maquiavel
87
retoma o conceito, já tradicional, da monarquia despótica, de que
Aristóteles tinha falado - quer dizer, da monarquia na qual a relação entre
dominante e dominado é semelhante à que existe entre senhor e servo. A
distinção é elucidada com os exemplos seguintes:
"Exemplos atuais desses dois tipos de governo são a Turquia e a
França. A monarquia turca é dirigida exclusivamente por um soberano,
que tem seus servidores e divide o reino em províncias, as quais envia
administradores, que substitui e exonera livremente. Já o rei da França é
cercado por um grande número de antigos nobres, reconhecidos como
tais pelos próprios súditos, e que são por eles estimados; têm prerrogativas, de que o rei não pode privá-los sem perigo para si" (ibidem).
O exemplo da Turquia é interessante: com a categoria da monarquia
despótica se transmite também a noção do "despotismo oriental", que já
aparecia claramente em Aristóteles, como vimos, e que persistirá até
Hegel (e mais recentemente ainda). Há sempre um Estado oriental, nãoeuropeu, a servir de exemplo para demonstrar a existência de uma forma
de governo própria dos "povos servis": para Aristóteles era a Pérsia; para
Maquiavel, a Turquia; no século XVIII, será a China.
Quanto aos novos principados, assunto da maior parte do livro,
Maquiavel distingue quatro espécies, de acordo com as diferentes
maneiras como o poder pode ser conquistado: a) pela virtú; b) pela
"fortuna"; c) pela violência; d) com o consentimento dos cidadãos. Estas
quatro espécies podem ser dispostas em duplas antitéticas: virtú-"fortuna";
força-consentimento. Os conceitos de virtú (coragem, valor, capacidade,
eficácia política) e de "fortuna" (sorte, acaso, influência das circunstâncias) têm grande importância para a concepção maquiaveliana da história,
como é sabido. Por virtú Maquiavel entende a capacidade pessoal de
dominar os eventos, de alcançar um fim objetivado, por qualquer meio;
por "fortuna", entende o curso dos acontecimentos que não dependem
da vontade humana. Diríamos hoje: o "momento subjetivo" e o
"momento objetivo" do movimento histórico. Para Maquiavel, o que se
consegue realizar não depende nem exclusivamente da virtú nem só da
"fortuna"; quer dizer: nem só do mérito pessoal nem apenas do favor das
circunstâncias, mas de ambos os fatores, em partes iguais:
"Para não ignorar inteiramente nosso livre arbítrio, creio que se pode
aceitar que a sorte decide a metade dos nossos atos, mas que nos permite o
controle sobre a outra metade, aproximadamente. Compararia a sorte a
um rio impetuoso que, quando turbulento, inunda a planície, derruba
casas e ediiicios, remove terra de um lugar para depositá-la em outro...
Contudo, embora tal seja sua natureza, quando as águas correm
quietamente é possível construir defesas contra elas, diques e barragens,
de modo que, quando voltem a crescer, sejam desviadas por um canal,
para que seu ímpeto seja menos selvagem e maléfico" (cap. XXV).
A diferença entre os principados conquistados pela virtú e os
conquistados pela "fortuna" é que os primeiros são mais duradouros; os
segundos, que o príncipe conquista devido a circunstâncias favoráveis, e
não pelo próprio mérito, são menos estáveis, destinados a desaparecer em
pouco tempo.
88
A Teoria das Formas de Governo
O principado adquirido pela violência, per scelera, nos dá a oportunidade de fazer outras considerações. Na distinção maquiaveliana entre
principado e república, não só desaparece a tripartição clássica, mas falta
também, pelo menos no plano visível, a duplicação das formas de
governo, em boas e más. Pelo menos no que diz respeito aos principadostema de O Príncipe —, Maquiavel não introduz a distinção entre principados
bons e maus, entre príncipe e tirano. Como se viu ele distingue os vários
tipos de principado de acordo com o modo da sua aquisição; aquele que
chega a dominar um principado per scelera corresponde à figura do tirano
clássico, mas, para Maquiavel, é um príncipe como os demais.
A verdade é que quando se examina a figura do tirano ilegítimo, ex defectu tituli, verifica-se que todos os príncipes novos são tiranos - não só o
príncipe "celerado". São tiranos no sentido moderno da palavra, pois seu
poder é um poder de fato, cuja legitimação só ocorre (quando ocorre) com
o tempo. Mas, justamente porque num certo sentido todos os príncipes
novos são tiranos, nenhum o é verdadeiramente. No contexto maquiaveliano, não apresentam nenhuma conotação negativa. Ao contrário, os
príncipes novos que conquistaram o poder pelo seu valor (virtú) são
celebrados como fundadores de Estados, grandes protagonistas do
desenvolvimento histórico - que Hegel chamará de "indivíduos cosmohistóricos", e a propósito dos quais Max Weber construirá a figura do
chefe carismático.
O caso do príncipe que conquista o Estado "per scelera" é diferente: é o
tirano no sentido tradicional, como se vê em um dos dois exemplos
apresentados por Maquiavel, o de Agátocles, rei de Siracusa (o outro
exemplo é de um contemporâneo, Liverotto de Fermo). Contudo, mesmo
nesse caso, o julgamento de Maquiavel não é de ordem moral. O critério
para distinguir a boa política da má é o seu êxito. No que diz respeito ao
príncipe novo, o êxito é medido pela capacidade de manter o Estado
(entra outra vez em cena o valor da "estabilidade"). A introdução do
critério do êxito como a única medida de julgamento político permite a
Maquiavel distinguir, mesmo dentro da categoria do tirano "celerado", o
bom tirano do mau. Bom é aquele que, como Agátocles, embora tenha
conquistado o poder por meios criminosos, consegue depois mantê-lo.
Mau é Liverotto de Fermo, que só se manteve no poder durante um ano,
após o que teve o mesmo fim miserável que havia dado aos seus
adversários. Em que consiste a diferença entre os dois príncipes?
Comenta Maquiavel, com uma de suas frases que lhe valeram fama e
infâmia: "Penso que depende da crueldade bem ou mal empregada". Os
dois príncipes foram cruéis, mas a crueldade de um deles foi bem
utilizada, tendo em vista seu objetivo — a única coisa que conta na
atividade política (isto é, foi empregada para a conservação do Estado); a
crueldade do outro não serviu ao único fim que deve orientar todas as
ações de um príncipe — a manutenção do poder. Dou a palavra a
Maquiavel:
"...a diferença reside no uso adequado ou não da crueldade. No
primeiro caso, estão aqueles que a usaram bem (se é que se pode qualificar
um mal com a palavra "bem"), uma vez só, com o objetivo de se garantir,
Maquiavel
89
e que depois não persistiram nela, mas ao contrário a substituíram por
medidas tão benéficas a seus súditos quanto possível. As crueldades malempregadas são as que, sendo a princípio poucas, crescem com o tempo,
em vez de diminuir. Os que aplicam o primeiro método podem remediar
de alguma forma sua condição, diante de Deus e dos homens, como
Agátocles. Quanto aos outros, não conseguem se manter" (cap. VIII).
Uma proposição deste tipo é um exemplo evidente do famigerado
princípio maquiavélico de que "o fim justifica os meios". Qual o fim de
um príncipe? Manter o poder. O julgamento sobre a bondade ou a
maldade de um príncipe não se faz com base nos meios que emprega, mas
exclusivamente com base no resultado que obtém - quaisquer que sejam
os meios usados:
"...na conduta dos homens, especialmente dos príncipes, da qual não
há recurso, os fins justificam os meios. Portanto, se um príncipe pretende
conquistar e manter um Estado, os meios que empregar serão sempre
tidos como honrosos, e elogiados por todos, pois o vulgo se deixa sempre
levar pelas aparências e os resultados; ..." (cap. XVIII).
Ao iniciar O Príncipe, Maquiavel declara que já tinha estudado
longamente as repúblicas. Refere-se ao Livro I dos Discorsi sopra la
Prima Deca di Tito Hvio, que já tinha completado quando começou a
escrever O Príncipe, em 1513. O cap. II dos Discorsi é intitulado Quantas
Espécies Há de Repúblicas, e a Qual Pertenceu a República Romana. A inspiração
é, como se vê, polibiana: da mesma forma que Políbio, Maquiavel se
limita a discorrer sobre a constituição de Roma, ao falar sobre a história
romana; para descrever uma constituição em particular, começa com uma
breve exposição sobre as constituições em geral. Mas Políbio não é sua
única inspiração. Como já se comentou muitas vezes, o capítulo II dos
Discorsi é uma paráfrase, se não uma tradução, do Livro VI da História de
Políbio. O fato de que aquele capítulo é uma paráfrase - e em alguns
pontos uma tradução quase literal - de Políbio não significa que essas
páginas, tão discutidas, não contenham reflexões originais. Contudo, o
certo é que a derivação é evidente, e a semelhança entre os dois textos,
impressionante. Nas páginas de Maquiavel encontramos os três temas
enunciados e desenvolvidos por Políbio: a tipologia clássica das seis
formas de governo, a teoria dos ciclos e a do governo misto - exemplificada, como em Políbio, com os governos de Esparta e Roma. Como
Políbio, Maquiavel distingue Esparta de Roma porque a primeira recebeu
sua constituição de um legislador, a segunda de uma tradição que se
formou gradualmente, quase que de modo natural. Como Políbio,
Maquiavel também enriquece seus comentários sobre as constituições em
geral, e a constituição romana, com um esboço da história universal que
descreve o surgimento dos Estados a partir de uma fase primitiva, quando
os homens viviam "dispersos, à semelhança dos animais".
Comecemos pela tipologia:
"... lembrarei (como os que escreveram a respeito da organização das
repúblicas) que há três espécies de governo: o monárquico, o aristocrático
e o popular; os que pretendem estabelecer a ordem numa cidade devem
escolher, dentre estas três espécies, a que melhor convém a seus objetivos.
Outros, segundo a opinião geral mais esclarecidos, acham que há seis
90
A Teoria das Formas de Governo
formas de governo, das quais três são essencialmente más; as três outras
são em si boas, mas degeneram tão facilmente que podem também
tornar-se perniciosas. Os bons governos são os que relacionei anteriormente; os maus, suas derivações. E se parecem tanto aos primeiros, aos
quais correspondem, que podem com facilidade ser confundidos com
eles. Deste modo, a monarquia se transforma em despotismo; a aristocracia, em oligarquia; a democracia, em permissividade. Em conseqüência,
todo legislador que adota para o Estado que vai fundar uma destas três
formas de governo não a mantém por muito tempo; não há o que apossa
impedir de precipitar-se no tipo contrário, tal a semelhança entre a forma
boa e a má ' (cap. II).
Na apresentação da tipologia clássica, Maquiavel já acena à sucessão
das constituições, sobre a qual se detém com mais vagar na página
seguinte, para explicar — embora sumariamente, e sempre sob a orientação de Políbio — as razões da transformação de uma forma em outra.
Trata-se da sucessão polibiana, segundo a qual toda constituição boa
degenera na correspondente constituição má, na seguinte ordem: governo de um, de poucos, de muitos. Do ponto de vista terminológico, vale
observar que dos termos gregos originais, só permaneceu "tirania" —
todos os outros são palavras latinas: principado, governo de poucos,
governo popular, governo "licencioso" ou "permissivo" (correspondente
à forma corrupta do governo de muitos). A transformação de uma
constituição em outra é também muito rápida. E o defeito das constituições simples é sua instabilidade. Um defeito tão grave que mesmo as
constituições que seriam boas por si mesmas são, na verdade, más devido à falta de estabilidade. Esta acentuação do aspecto negativo das
constituições positivas é ainda mais forte de que era Políbio. No trecho
citado, Maquiavel escreve que as constituições das três formas de governo
"boas" se corrompem com tal facilidade que "podem também tornar-se
perniciosas". Mais adiante dirá que:
"Para mim, todas estas formas de governo são igualmente desvantajosas: as três primeiras, porque não podem durar; as três outras, pelo
princípio de corrupção que contêm" (cap. II).
Em Maquiavel, como em Políbio, a classificação das constituições
procede pari passu com a observação da sua ordem de sucessão no
tempo. Para Maquiavel também essa sucessão é preestabelecida,
permitindo enunciar uma autêntica lei natural: a lei dos ciclos
históricos, a "anaci-close". Neste ponto, a proximidade entre
Maquiavel e o historiador romano é tão grande que a lei dos ciclos é
formulada com as mesmas palavras (quase como se se tratasse de uma
tradução). Políbio tinha falado na rotação das constituições, na lei natural
pela qual as formas políticas se transformam, decaem e retornam ao ponto
de partida. Maquiavel escreve:
"Este é o círculo seguido por todas as repúblicas que já existiram, e
pelas que existem" (cap. II).
Não obstante, a tese de Maquiavel não representa uma repetição
servil da de Políbio. Maquiavel é um escritor realista. A idéia de que os
"ciclos" se repetem até o infinito não encontra apoio na realidade,
sobretudo para um escritor que pode contemplar realidade histórica
muito mais rica e variada do que a observada pelos antigos gregos.
Maquiavel
91
Maquiavel parece crer assim na seqüência das seis formas, mas inclina-se
bem menos a aceitar a repetição sem fim dessa seqüência. O ponto
doloroso da teoria do ciclo era — como já vimos - o seguinte: o que
acontece depois da primeira seqüência, quando o processo de degradação
chega ao fim (em Platão, com a tirania; em Políbio, com o oclocracia)?
Políbio tinha respondido sem hesitação: o que acontece é o retorno ao
princípio, de onde a idéia da "rotação". Sobre este ponto, Maquiavel é
ainda mais prudente. Depois de enunciar a tese dos "círculos", acrescenta:
"Mas raramente se retorna ao ponto exato de partida, pois nenhuma
república tem resistência suficiente para sofrer várias vezes as mesmas
vicissitudes. Acontece com freqüência que, no meio destes distúrbios,
uma república, privada de conselhos e de força, é tomada por algum
Estado vizinho, governado com mais sabedoria" (cap. II).
Essa observação é digna de um escritor que se propôs a escrever sobre
a política buscando a "verità effetuale". Maquiavel duvida de que, tendo
chegado ao ponto mais baixo da sua decadência, um Estado tenha ainda
força própria para retornar ao ponto de partida. Conjectura que a solução
mais provável é a de que, uma vez atingido esse ponto, o Estado se torne
presa fácil de algum vizinho mais forte - mais forte porque melhor
organizado. Deste modo, não ocorre o retorno às origens no âmbito do
mesmo Estado, mas sim uma transferência de domínio, de um Estado
para outro. É supérfluo observar que essa visão é mais realista: configura
de modo bem mais verossímil a dinâmica das forças históricas que criam e
destroem os Estados, porque compreende não só as forças internas, mas
também as externas.
De qualquer modo, a teoria dos ciclos confirma a concepção
essencialmente naturalista que Maquiavel tem da história. O objetivo do
historiador seria o de extrair do estudo da história as grandes leis que
regulam os acontecimentos. Só quem tem condições de explicar "por
que" as coisas acontecem pode explicar também "como" vão acontecer.
Enunciada a lei da rotação, Políbio tinha escrito:
"Quem conhece bem esta doutrina poderá talvez cometer erros em
termos de duração, ao falar a respeito do futuro de um Estado, mas
poderá avaliá-lo com perfeita objetividade, dificilmente se enganando na
determinação do ponto em que ele se encontra no seu processo de
desenvolvimento ou decadência, e do modo como se transforma" (VI, 9).
Maquiavel acredita também que o historiador possa prever os
acontecimentos futuros, desde que seja bastante atilado e profundo para
explicar os eventos passados. Limito-me aqui a duas citações significativas (o problema da concepção da história e da ciência em Maquiavel é
amplo demais para ser tratado neste momento):
"Quem estudar a História Contemporânea e da Antigüidade verá que
os mesmos desejos e as mesmas paixões reinaram e reinam ainda em
todos os governos, em todos os povos. Por isto é fácil, para quem estuda
com profundidade os acontecimentos pretéritos, prever o que o futuro
reserva a cada Estado, propondo os remédios já utilizados pelos antigos
ou, caso isto não seja possível, imaginando novos remédios, baseados na
semelhança dos acontecimentos" (Livro I, cap. XXXIX).
E, em outra passagem:
92
A Teoria das Formas de Governo
"Nem é por acaso, nem sem motivo, que os sábios costumam dizer:
basta considerar o que foi para saber o que será. De fato, em todas as
épocas o que acontece neste mundo tem analogia com o que já aconteceu.
Isto provém do fato de que, como todas as coisas humanas são tratadas
por pessoas que têm e terão sempre as mesmas paixões, não podem
deixar de apresentar os mesmos resultados" (Livro III, cap. XLIII).
O pressuposto da formulação de leis históricas é a admissão da
constância de certas características da natureza humana. Nas duas
passagens acima, Maquiavel insiste nesse ponto. Na primeira, fala nos
"mesmos desejos e nas mesmas paixões"; na segunda, refere-se às
"mesmas paixões". A repetição de "mesmo", o retorno do que é sempre
igual, explica a aproximação das constituições, de acordo com uma
ordem preestabelecida.
A compreensão das leis profundas da história não serve apenas para
prever o que deve acontecer mas também para prevenir esses acontecimentos - isto é, para remediar o mal que a lei permite prever. Não há nisso
contradição. Na primeira das duas passagens, Maquiavel afirma não só
que quem examina com diligência as coisas passadas pode prever as
futuras, mas também que, feita essa previsão, é possível remediar o mal
previsto. Maquiavel aplica esta dupla atitude de previsão e prevenção ao
problema das constituições. A seqüência das seis constituições demonstrou que todas podem ser nocivas - não apenas as consideradas
tradicionalmente más, porém as boas também, devido à sua rápida
degeneração. Mas o homem não seria um ser em parte livre, não
determinado inteiramente pela "fortuna", se não fosse capaz de conceber
um remédio para o mal descoberto. Esse remédio (uma inspiração
polibiana) é o governo misto. De fato, depois de considerar desvantajosas
todas as constituições simples, Maquiavel prossegue:
"Por isto, todos os legisladores conhecidos pela sua sabedoria
evitaram empregar exclusivamente qualquer uma delas, reconhecendo o
vício de cada uma. Escolheram sempre um sistema de governo de que
todas participavam, por julgá-lo mais sólido e estável: se o príncipe, os
aristocratas e o povo governam em conjunto o Estado, podem com
facilidade controlar-se mutuamente" (cap. II).
Em seguida, elogia Licurgo, que:
"Nas leis que deu a Esparta, soube de tal modo contrabalançar o
poder do rei, da aristocracia e do povo que o Estado se manteve em paz
durante mais de oitocentos anos, para sua grande glória" (cap. II).
Sólon, porém, que tinha estabelecido em Atenas um governo
popular, "deu-lhe existência tão efêmera que ainda vivia quando eclodiu
a tirania de Pisístrato".
O objetivo de Maquiavel, ao elogiar o governo misto, é exaltar a
constituição da república romana— como tinhafeito Políbio. Ao contrário
da espartana, nascida inteiramente do cérebro de um legislador, a
constituição de Roma tinha sido formada através de longa gestação,
durante séculos, não pela vontade de um único legislador, porém "rebus
ipsis ac factis". Depois da expulsão dos reis, Roma transformou-se numa
república, conservando embora a função regia, com a instituição dos
cônsules:
Maquiavel
93
"A república, retendo os cônsules e o Senado, representou a princípio
a mistura de duas das três formas mencionadas: a monarquia e a
aristocracia. Só faltava introduzir o governo popular. A nobreza romana,
pelos motivos que vamos explicar, tornou-se insolente, despertando o
ressentimento do povo; para não perder tudo, teve que ceder-lhe uma
parte da autoridade. De seu lado, tanto o Senado como os cônsules
guardaram bastante desta autoridade para manter a posição que ocupavam no Estado. Estas foram as causas que originaram os tribunos do povo,
instituição que enfraqueceu a república porque cada um dos três
elementos do governo recebeu uma porção da sua autoridade. A sorte
favoreceu Roma de tal modo que, embora tenha passado da monarquia à
aristocracia e ao governo popular, seguindo a degradação provocada pelas
causas que estudamos, nem o poder real cedeu toda a sua autoridade para
os aristocratas, nem o poder destes foi todo transferido para o povo. O
equilíbrio dos três poderes fez assim com que nascesse uma república
perfeita" (cap. II).
Note-se, no final dessa passagem, o nexo entre o caráter misto da
república romana — o equilíbrio dos três poderes - e sua perfeição.
Lembre-se, por outro lado, que as constituições simples tinham sido
qualificadas de desvantajosas (em italiano, "perniziose" e "pestifere").
Enquanto Roma foi uma república aristocrática, embora integrada por
cônsules, não era perfeita. Só com a instituição dos tribunos do povo,
representantes do elemento popular, alcança a perfeição, completando a
mistura das três constituições simples. Já vimos em que consiste a
perfeição do governo misto: na sua capacidade de resistir ao tempo. Mas
não estaríamos reconhecendo toda a agudeza de Maquiavel se não
lembrássemos que a virtú do governo misto tem um outro aspecto, na
análise maquiaveliana da República romana. Leia-se o importante cap.
IV, intitulado: A Desunião entre o Povo e o Senado Foi a Causa da Grandeza e da
Liberdade da República Romana. Essa leitura nos leva a uma observação nova:
uma vez resolvido constitucionalmente, pela feliz mediação do governo
misto (ao mesmo tempo aristocrático e popular), o conflito entre os dois
partidos antagônicos da cidade - patrícios e plebeus, ricos e pobres — não
só garante a durabilidade da constituição como a liberdade interna dos
cidadãos. Na passagem que segue, justamente célebre, Maquiavel faz. uma
afirmativa destinada a ser considerada como uma antecipação da noção
moderna da sociedade civil, segundo a qual a condição de saúde dos
Estados não reside na harmonia forçada, mas sim na luta, no conflito, no
antagonismo (mais tarde dir-se-á: no processo histórico) - que correspondem à primeira proteção da liberdade:
"Os que criticam as contínuas dissensões entre os aristocratas e o
povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram fosse
conservada a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e
rumores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares.
Não querem perceber que em todos os governos há duas fontes de
oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as leis
para proteger a liberdade nascem da sua desunião, como prova o que
aconteceu em Roma, onde, durante os trezentos anos e mais que
94
A Teoria das Formas de Governo
transcorreram entre os Tarquínios e os Gracos, as desordens havidas
produziram poucos exilados, e mais raramente ainda fizeram correr
sangue. Não se pode, portanto, considerar estas dissensões como funestas, nem o Estado como inteiramente dividido, pois durante tantos anos
tais diferenças só causaram o exílio de oito ou dez pessoas, e a morte de
bem poucos cidadãos, sendo alguns outros multados. Não se pode, de
forma alguma, acusar de desordem uma república que deu tantos
exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação, a
boa educação das boas leis, e estas das desordens que quase todos
condenam irrefletidamente. De fato, se se examinar com atenção o modo
como tais desordens terminaram, ver-se-á que nunca provocaram o
exílio, ou violências prejudiciais ao bem público, mas que, ao contrário,
fizeram nascer leis e regulamentos favoráveis à liberdade de todos"
(cap. IV).
A importância de uma afirmativa desse tipo — de que os "tumultos"
que muitos lamentam constituem não a causa da ruína dos Estados mas
uma condição para que sejam promulgadas boas leis, em defesa da
liberdade - não pode ser exagerada. Ela exprime claramente uma nova
visão da história, uma visão "moderna", segundo a qual a desordem-não
a ordem, o conflito entre partidos que se opõem - não a paz social imposta
do alto, a desarmonia— não a harmonia, os tumultos — não a tranqüilidade
decorrente do domínio irresistível, são o preço que é preciso pagar pela
manutenção da liberdade.
Além disso, por meio desta compreensão da função benéfica do
contraste entre os dois partidos antagônicos, patrícios de um lado,
plebeus de outro, dos dois "temperamentos" presentes em toda república, a concepção do governo misto adquire uma profundidade histórica
que tinha faltado até então à teoria meramente constitucional do governo
misto. O governo misto deixa de ser um mero mecanismo institucional
para tornar-se o reflexo (a superes trutura) de uma sociedade determinada:
é a solução política de um problema — o conflito entre interesses
antagônicos - que surge na sociedade civil.
Capítulo VII
BODIN
A obra política mais importante do período de formação dos grandes
Estados territoriais é De la Republique, de Jean Bodin (1530-1596).
Publicada em 1576, em francês (uma edição latina sairá dez anos mais
tarde), o livro é, sem exagero, a obra de teoria política mais ampla e
sistemática desde a Política de Aristóteles. Já se observou que também na
distribuição da matéria as duas obras se aproximam. O livro de Bodin está
dividido em seis partes; o de Aristóteles em oito. Na primeira, Bodin
concentra o tratamento dos problemas gerais do Estado (correspondente
à matéria do primeiro livro aristotélico); a segunda é dedicada às formas
de governo, como o terceiro e o quarto livro da Política. A sexta, que
aborda o tema do melhor Estado, também clássico, corresponde aos dois
últimos livros, que encerram a obra de Aristóteles. Todavia, Bodin não é
em absoluto um aristotélico. A semelhança na estrutura formal das duas
obras não nos deve fazer pensar numa semelhança substancial. Não há
tema a respeito do qual Bodin não apresente soluções diferentes das de
Aristóteles e dos seus seguidores — às vezes até com animosidade.
Bodin passou para a história do pensamento político como o teórico
da soberania. Contudo, o conceito de soberania como caracterização da
natureza do Estado não foi inventado por ele. "Soberania significa
simplesmente poder supremo". Na escalada dos poderes de qualquer
sociedade organizada, verifica-se que todo poder inferior é subordinado a
um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder
superior. No ápice deve haver um poder que não tem sobre si nenhum
outro — e esse poder supremo,"summa potestas", é o poder soberano. Onde
há um poder soberano, há um Estado. Já os juristas medievais, comentaristas do Corpus Juris, tinham traçado uma distinção entre as "civitates
superiorem recognoscentes" e as "civitates superiorem non recognoscentes" — só estas
últimas possuíam o requisito da soberania, podendo ser consideradas
Estados, no sentido moderno do termo. Quando ocorreu a ruptura entre
96
A Teoria das Formas de Governo
os regna particulares e o império universal, cunhou-se a.fórmula "rex in
regno suo imperator" para afirmar a independência dos regna. A fórmula
significava que o rei se havia tornado soberano, quer dizer, "superiorem non
recognoscens". Bodin define deste modo a soberania:
"Por soberania se entende o poder absoluto e perpétuo que é próprio
do Estado" Livro I, cap. VIII).
São dois os atributos da soberania: o caráter absoluto e a perpetuidade. O significado de "perpetuidade" é óbvio, embora não seja claro
onde se possa traçar a linha de demarcação entre um poder perpétuo e
outro não-perpétuo. Da elucidação seguinte, e dos exemplos históricos
indicados, parece que para Bodin não se deve considerar perpétuo o
poder atribuído a pessoa ou a uma instituição "por período determinado". Dos muitos exemplos adotados o mais familiar é o do ditador
romano, que Bodin interpreta como um simples "comissário", aquém se
atribuía uma função específica - por exemplo, a de conduzir uma guerra
ou de submeter uma rebelião - exaurida, a qual cessava o poder
extraordinário. Voltaremos adiante várias vezes ao conceito de ditadura;
limito-me aqui a chamar atenção para a figura da "ditadura de comissariado", que um dos maiores estudiosos daditadura em diferentes épocas,
Karl Schmitt, distingue da "ditadura revolucionária". Por "caráter
absoluto" se entende que o poder soberano deve ser "legibus solutus". Quer
dizer: não deve precisar obedecer às leis, isto é, às leis positivas,
promulgadas pelos seus predecessores e por ele próprio. Diz Bodin:
"Quem é soberano não deve estar sujeito, de modo algum, ao
comando de outrem; deve poder promulgar leis para seus súditos,
cancelando ou anulando as palavras inúteis dessas leis, substituindo-as —o
que não pode fazer quem está sujeito às leis ou a pessoas que lhe
imponham seu poder".
Contrariamente ao que se pensa de modo geral, poder absoluto não
quer dizer poder ilimitado. Quer dizer simplesmente que o soberano,
detentor do poder de fazer leis válidas em todo o país, não está sujeito a
essas mesmas leis, porque "não pode dar ordens a si mesmo". Contudo,
como todos os outros seres humanos, o soberano está sujeito às leis que
não dependem da vontade dos homens — isto é, às leis naturais e divinas.
Na escala ascendente dos poderes, o poder do soberano terrestre não é o
mais alto; sobre ele está a summa potestas de Deus, de quem dependem as
leis naturais e divinas. Outros limites ao poder soberano são impostos
pelas leis fundamentais do Estado - que hoje chamaríamos de leis
constitucionais. Por exemplo: a lei que, numa monarquia, estabelece a
sucessão ao trono:
"O príncipe não pode revogar as leis que tratam da própria estrutura
do reino, dos seus fundamentos, as quais estão vinculadas à coroa, e aela
indissoluvelmente unidas (como, por exemplo, a lei sálica). O que quer
que um príncipe decida, nesta matéria, seu sucessor tem pleno direito de
abolir tudo o que se tenha feito em prejuízo daquelas leis sobre as quais se
apóia a própria majestade soberana".
Outro limite ao poder soberano é imposto pelas leis que regulam as
relações privadas entre os súditos, especialmente as relativas à propriedade:
Bodin
97
"Se o príncipe soberano não tem o poder de ultrapassar os limites das
leis naturais, estabelecidas por Deus - de que ele é uma imagem - só
poderá tomar os bens alheios se tiver motivo justo e razoável: mediante
compra, troca ou confisco legítimo; ou para a salvação do Estado... Não
havendo as razões mencionadas, o rei não poderá apropriar-se da
propriedade alheia, dispondo da mesma sem o consentimento do
proprietário".
Desnecessário salientar a importância desta última limitação ao poder
"absoluto" do Estado: serve para demonstrar que a sociedade considerada por Bodin se divide em uma esfera pública e uma esfera privada. Que
além do Estado existe a sociedade civil, com suas relações econômicas,
que tendem de modo permanente a escapar do poder do Estado. A
distinção entre a sociedade das pessoas pnvadas, regulada pelo direito
privado (um direito que se aplica a iguais), e a sociedade política, regulada
pelo direito público (que se aplica a desiguais) acompanha a formação do
Estado moderno. Não é em absoluto uma invenção de Hegel, como se
ouve freqüentemente.
Detive-me na definição da soberania de Bodin porque, como
veremos em breve, ele distingue o título da soberania do seu exercício,
distinção que tem incidência na teoria das formas de governo. Representa
mesmo o aspecto mais original da teoria bodiniana das formas de
governo. Contrasta também com a tradição sua refinação, apresentada
logo ao começar o tratamento do tema (assunto do Livro II), de duas teses
clássicas — a da duplicação das constituições (em boas e más) e a do
governo misto.
Para Bodin, as formas do Estado (état) são três - as três formas
clássicas: monarquia, aristocracia e democracia.
"Afirmamos que só há três regimes ou formas de Estado: monarquia,
aristocracia e democracia. Já dissemos que a monarquia é o Estado onde
há um só soberano, estando o povo excluído da soberania; democracia,
ou regime popular, é aquele em que todo o povo - ou sua maioria reunida
em assembléia — tem o poder soberano; na aristocracia, uma minoria,
reunida num órgão decisório, tem o poder soberano e legisla para o
restante do povo — tanto de modo geral como para os indivíduos em
particular."
Logo depois de enunciar essa classificação, Bodin se apressa a dizer
que as formas de Estado são somente três porque a distinção entre formas
boas e más não tem nenhum fundamento e porque nunca existiu a sétima
forma, que alguns escritores antigos e modernos (entre estes últimos cita
Maquiavel) identificaram erroneamente com o governo misto. No que
concerne à distinção entre formas boas e más, o principal argumento de
Bodin é o de que se tivéssemos que distinguir as constituições com base
nos defeitos que apresentam, e suas qualidades, o número de categorias
resultante seria infinito. Precisando seu pensamento explica que para
adotar definições válidas não podemos levar em conta "fatores acidentais", mas somente "diferenças essenciais e formais". Em suma, a
classificação dos Estados com base em qualidades e defeitos levaria a uma
casuística tão ampla que impossibilitaria qualquer tentativa de ordenação
98
A Teoria das Formas de Governo
sistemática, fazendo o investigador recair "num labirinto sem fim,
excluindo-lhe toda possibilidade de ciência genuína".
Na verdade, o argumento é um tanto especioso: de fato, os antigos
tinham introduzido a distinção entre formas boas e más com base em
critérios bem precisos, como o da força e do consentimento, ou o do
interesse comum e do interesse próprio dos governantes. Não tinham
simplesmente falado, de modo geral, das qualidades e defeitos das
constituições: procuraram identificar certas diferenças fundamentais, que
pudessem justificar uma distinção baseada em elementos não-acidentais.
Aliás, o próprio Bodin, contradizendo-se, voltará a introduzir a distinção
tradicional entre o bom governo e o mau ao falar das formas de governo
(que distingue, como se disse, das formas de Estado).
No que se refere à teoria do governo misto, o argumento principal
(que me parece não menos especioso) é o seguinte: "Os poderes real,
aristocrático e popular, em conjunto, só têm um resultado: a democracia". Essa afirmativa soa nova e estranha; vale a pena, assim, ouvir a
explicação que dá o próprio autor:
"Na realidade não se pode sequer imaginar como se poderia reunir a
monarquia, a aristocracia e a democracia. Se a soberania é, como
demonstramos, indivisível, como dividi-la entre um príncipe, senhores, e
o povo? A primeira prerrogativa da soberania é a de legislar para os
súditos. Ora, como poderiam os súditos obedecer, se tivessem também o
poder de fazer leis? Quem poderia legislar, se fosse obrigado ao mesmo
tempo a obedecer às leis? Não se pode deixar de concluir que, se ninguém
possuir o poder exclusivo de promulgar leis, e esse poder cabe a todos, o
regime do Estado é o democrático".
Procuremos entender o raciocínio de Bodin. O poder soberano
consiste eminentemente na capacidade de fazer leis, isto é, de estabelecer
as normas gerais que interessam a toda a comunidade. Das duas uma: ou o
povo não tem o poder de legislar, e o Estado não é misto (será
aristocrático, se esse poder pertencer ao senado; monárquico, se pertencer ao rei); ou então o poder pertence ao povo - e o Estado é democrático.
A afirmativa importante, na passagem citada, é a de que além dos
atributos que já consideramos — a perpetuidade e o caráter absoluto —, a
soberania é também indivisível. O soberano - seja um monarca ou uma
assembléia - ou tem todo o poder, ou não tem poder. Quando o poder
está dividido, o Estado perde unidade, e com ela a estabilidade. Ou o
Estado é uno ou não chega a ser um Estado. Como se vê, a razão pela qual
Bodin critica o Estado misto, o Estado dividido, é oposta àquela que seus
defensores apresentam para provar que é superior às outras formas. Se o
Estado é verdadeiramente misto, se de fato o poder soberano pertence ora
a um órgão, ora a um outro, o Estado sofrerá continuamente o efeito de
conflitos que vão dilacerá-lo, minando-lhe a segurança. Em vez de
garantir maior estabilidade, a mistura, no caso, é a causa principal da
instabilidade:
"Se se atribuísse a soberania um dia ao monarca, o dia seguinte a uma
minoria, outro dia a todo o povo — em suma, se a soberania fosse
concedida em rodízio... mesmo nesse caso não teríamos senão três
Bodin
99
regimes justapostos, que 'não poderiam ter vida longa', como uma
família mal-organizada, onde mulher e marido dessem ordens em
rodízio, cabendo depois a chefia da casa aos criados".
Poder-se-ia objetar, contudo, que os Estados considerados como
mistos pelos antigos e pelos modernos duraram mais do que os outros. A
resposta de Bodin a esta objeção é muito clara: se examinarmos com
cuidado sua constituição, em profundidade e não apenas em termos
formais, veremos que esses Estados não são de fato mistos, porque neles
uma das partes componentes prevaleceu sempre sobre as outras. Se não
fosse assim, eles se teriam precipitado bem cedo num conflito destrutivo
da sua unidade, e de sua própria natureza de Estado. Bodin acompanha a
afirmativa de princípio com uma crítica sutil às antigas constituições de
Esparta e de Roma que, como já vimos, eram consideradas modelos do
Estado misto; e acrescenta a crítica dos escritores modernos, que
interpretaram como Estado misto a república de Veneza. Para Bodin, a
república de Roma é democrática; Veneza, aristocrática. Repete insistentemente que o Estado dividido é péssimo. Vejamos esta citação, a
propósito do reino da Dinamarca:
"Pode-se dizer, seguramente, que o rei e a nobreza da Dinamarca
dividem entre si a soberania; mas é preciso acrescentar que 'justamente
por isso não há paz naquele Estado..., uma corruptela de Estado, e não
um Estado genuíno'. De fato, dizia com razão Heródoto que não existem
mais do que três formas de Estado, que não deixam de ser agitadas pelo
vento das discórdias e a tempestade das guerras civis até que o poder se
concentre nas mãos de um dos contendores" (ênfase acrescentada).
Não se poderia imaginar contraste mais profundo do que o existente
entre Bodin e os defensores do Estado misto: a forma que para uns é o
Estado por excelência para ele não passa de uma "corruptela de Estado".
Por outro lado, o Estado que para os autores criticados é indesejável —
"pestífero", para usar o epíteto de Maquiavel — é para Bodin, pelo
contrário, o "verdadeiro" Estado.
Na verdade esse contraste é menos profundo do que a leitura das
passagens reproduzidas leva a crer, desde que se considere a distinção
entre formas de "Estado" e de "governo" - assunto que examinaremos
agora mais detidamente. Para antecipar a conclusão, creio que se pode
afirmar que o reconhecimento de que há Estados compostos ressurge, na
análise que Bodin faz dos Estados históricos, com a distinção entre o título
de soberania (que pode pertencer, por exemplo, a um monarca, quando
se trata de uma monarquia) e o seu exercício, que o rei pode delegar, por
exemplo, a uma assembléia aristocrática ou popular. Em conseqüência,
um Estado pode ser monárquico-aristocrático, ou monárquico-democrático, sem ser um Estado misto. No momento em que Bodin se propõe a
falar da forma monárquica, distinguindo suas várias modalidades históricas, enuncia essa distinção entre Estado e governo, a que atribui tal
importância que considera "um segredo de Estado que ainda não foi
passado a ninguém". Como se verá no trecho seguinte, a noção do Estado
composto, expulsa da porta da frente pela crítica ao conceito de governo
misto, volta pelajanela, através da distinção entre "Estado" e "governo".
100
A Teoria das Formas de Governo
"O regime pode ser monárquico, mas ter governo democrático, se o
príncipe permite que todos participem das assembléias, das magistraturas, dos cargos públicos, das recompensas, sem levar em conta a nobreza,
a riqueza ou os méritos de cada um. Por outro lado, o regime pode ser
monárquico e o governo aristocrático, se o príncipe só confere poderes e
benefícios aos nobres, aos mais ricos ou aos que mais os merecem. Assim
também uma aristocracia pode ter governo democrático, se honras e
recompensas são distribuídas igualmente por todos os súditos; e governo
aristocrático, se só são distribuídas aos nobres ou aos ricos. Essa variedade
de formas de governo tem induzido alguns a erro, ievando-os a postular
formas mistas de Estado', sem perceber que o governo de um Estado é
coisa bem diferente da sua administração e do modo de governá-lo"
(ênfase acrescentada).
Nesse trecho Bodin não menciona a diferença entre regime e
governo, no que diz respeito à democracia, assunto ao qual se refere no
capítulo VII do Livro II, dedicado à democracia. Também ai lamenta a
confusão feita por Aristóteles entre o regime de um Estado e seu governo:
"Se a maioria dos cidadãos é soberana, mas o povo concede cargos
honoríficos, privilégios e benefícios só aos nobres - como em Roma, até a
lei canuléia-, teremos uma democracia com o governo aristocrático. Se o
poder está nas mãos da nobreza, ou dos ricos, que constituem uma
minoria, e os cargos, honrarias e benefícios são conferidos pelos senhores
indiferentemente aos cidadãos pobres e humildes como aos ricos, sem
privilégios especiais para ninguém, teremos uma aristocracia de governo
democrático. Mais ainda se a soberania incumbe a todo o povo, ou à
maioria, e os cargos e benefícios são distribuídos a todos sem quaisquer
privilégios - repartindo-se os cargos por todos os cidadãos mediante
sorteio - podemos afirmar que não só o regime desse Estado é
democrático, mas também seu governo".
Que se pode deduzir da distinção entre Estado e governo? Uma
tipologia das constituições muito mais rica do que a que Bodin tinha
deixado supor, ao propor inicialmente uma divisão tríplice das constituições simples. Nas passagens reproduzidas podemos ver que as
constituições não são apenas três, porém seis: monarquia aristocrática,
monarquia democrática, aristocracia aristocrática, aristocracia democrática, democracia aristocrática e democracia democrática. Se considerarmos também que pode haver uma forma de governo monárquica onde o
exercício do poder é conferido a uma só pessoa, teremos três outras
formas: monarquia monárquica, aristocracia monárquica e democracia
monárquica. Assim, conjugando formas de Estado e de governo, o total
das constituições possíveis chega a nove.
A distinção entre Estado e governo será retomada dois séculos mais
tarde por Rousseau, no Contrato Social, com uma diferença: para Rousseau,
a soberania reside unicamente no povo, no corpo coletivo que exprime a
vontade geral; portanto, para ele há só uma forma de Estado: a que se
fundamenta na soberania popular, e que chama de "república". Mas a
república popular pode ser governada de três modos diferentes, conforme o poder executivo — o exercício do poder — seja atribuído a uma só
Bodin
101
pessoa, a poucos ou a muitos. Rousseau também não rejeita a classificação
clássica, tríplice, admitindo-a porém não no nível do poder legislativo
(que pertence sempre exclusivamente ao povo), mas no do poder
executivo, o qual pode ser confiado a um só magistrado, a um grupo de
magistrados ou a todo o povo:
"Em primeiro lugar, o corpo soberano pode confiar o encargo do
governo a todo o povo ou à sua maior parte, de modo que haja mais
cidadãos magistrados do que simples cidadãos. A essa forma de governo
se dá o nome de 'democracia'. Ou então, pode restringir o governo nas
mãos de uma minoria, de modo que haja mais cidadãos simples do que
cidadãos magistrados: é a 'aristocracia'. Por fim, pode concentrar todo o
governo nas mãos de um único magistrado, do qual todos os demais
recebem seu poder. Essa terceira forma é a mais comum: a 'monarquia',
ou governo real" (Contrato Social, Livro III, cap. III).
Embora a opção política de Rousseau seja oposta à de Bodin, pois o
primeiro identifica a soberania cora a soberania popular e o segundo
pensa que ela pode residir tanto no povo como no príncipe ou na classe
aristocrática (e ao manifestar sua preferência pessoal escolhe a monarquia), a lógica de Rousseau é a mesma de Bodin. Para Rousseau também
uma das características da soberania é a indivisibilidade (assunto do
capítulo ad hoc, o II do Livro II). A soberania ou é única ou não existe.
Rousseau critica vigorosamente os que dividem a soberania e pensam
poder depois reconstituir sua unidade. Compara-os sarcasticamente aos
charlatães orientais que esquartejam uma criança diante dos espectadores
e lançam ao ar seus membros, um após o outro, para fazê-la em seguida
ressurgir viva e sã. Ao contrário de Bodin, Rousseau não rejeita a categoria
do governo misto, porque a interpreta não como divisão do Estado, mas
sim do governo. O fato de que o governo seja dividido não implica divisão
da soberania (ou do Estado). Na verdade, para Rousseau a divisão dos
poderes do governo é tão normal que de fato todos os governos são
mistos: "não existem governos simples" (cap. VII do Livro III).
Essa breve referência a Rousseau nos permite esclarecer melhor a
inovação de que Bodin tanto se orgulha, e que consiste na interpretação
diferente de fenômeno tão freqüente nas constituições de todos os tempos
- a presença simultânea de órgãos monocráticos e de órgãos colegiados,
de colegiados restritos e representativos da maioria do povo; isto é, de
órgãos que representam princípios constitucionais diversos: ora o
monárquico, ora o aristocrático, ora o democrático. Os teóricos do
governo misto sustentam que se trata de uma divisão do poder soberano
em partes distintas, cada uma das quais tem uma soberania limitada.
Bodin, ao contrário, sustenta que se trata de um Estado em que o governo,
ou poder executivo, é regulado na base de um princípio diferente daquele
que fundamenta o poder soberano — o qual, portanto, continua a residir
num órgão único (razão por que o Estado é, na verdade, simples), embora
os órgãos incumbidos do poder executivo obedeçam a princípio diferente.
Considere-se o exemplo clássico da constituição da Roma republicana:
para os teóricos do governo misto, a república romana era um Estado cuja
soberania estava dividida entre os cônsules, o Senado e o povo; para
102
A Teoria das Formas de Governo
Bodin, tratava-se de um Estado democrático, onde o poder soberano
residia no povo, tendo como órgãos executivos dessa vontade soberana
singular os cônsules e o Senado. Em outras palavras, pode-se dizer que
alguns vêem no Estado misto um equilíbrio de poderes igualmente
soberanos; Bodin, que não crê na possibilidade da coexistência de
poderes soberanos, vê um poder predominante (o verdadeiro poder
soberano) e outros poderes subordinados, que constituem não o regime
(o Estado) mas o governo; não o poder legislativo, que fundamenta todos
os outros, mas o poder executivo, que age em nome e por conta do
legislativo.
A distinção entre "regime" e "governo", entre o título da soberania e
seu exercício, tem outra conseqüência relevante, no complexo da teoria
bodiniana sobre as formas de governo. Vimos que esta distinção é útil para
compreender a realidade complexa dos Estados sem recorrer à teoria do
governo misto, que Bodin considera uma simples ficção. Vimos também
que Bodin rejeita, nas teorias tradicionais, não só o conceito de governo
misto mas também o das formas corrompidas. Pois a distinção entre
regime e governo lhe permite compreender (e portanto incluir no seu
sistema abrangente) o fenômeno das formas degeneradas, que representam não um vício da soberania em si mesma, mas do seu exercício.
Segundo Bodin, cada um dos três regimes - monarquia, aristocracia e
democracia — pode assumir três formas diferentes. A monarquia pode ser
real, despótica e tirânica. A aristocracia pode ser legítima, despótica e
facciosa. A democracia pode ser legítima, despótica e tirânica. A propósito
das três formas possíveis de monarquia, Bodin explica logo que não se
trata de "três regimes diferentes, mas só do modo de exercer o governo
num Estado de regime democrático". O mesmo se pode dizer com
respeito às três formas de aristocracia e às três formas de democracia. O
pensamento de Bodin transparece muito claramente na sua definição das
três formas de monarquia:
"A monarquia real ou legítima é aquela em que os súditos obedecem
às leis do rei, e o rei às leis da natureza, restando aos súditos a liberdade
natural e a propriedade dos seus bens. A monarquia despótica é aquela
em que o príncipe se assenhoreou de fato dos bens e das próprias pessoas
dos súditos, pelo direito das armas e da guerra justa, governando-os como
um chefe de família governa seus escravos. A monarquia tirânica é aquela
em que o monarca viola as leis da natureza, abusa dos cidadãos livres e dos
escravos, dispondo dos bens dos súditos como se lhe pertencessem".
Mais ou menos as mesmas fórmulas podem ser empregadas para
descrever as três formas de aristocracia e de democracia. Que sugerem
essas definições do Estado legítimo, despótico e tirânico? Algo muito
simples: que Bodin, depois de ter rejeitado a distinção entre formas
"retas" e formas corrompidas de Estado, volta a introduzi-la ao considerar o modo como o soberano - seja um príncipe, um conselho
aristocrático ou uma assembléia popular — exerce o poder. Com efeito,
que são a forma despótica e a forma tirânica que considera senão uma
corrupção das respectivas formas "legítimas"? O que muda, na classificação de Bodin, não é a presença ou ausência das formas corrompidas,
Bodin
103
mas pura e simplesmente sua interpretação. Repito: a corrupção não afeta
o Estado, mas o governo. Examinemos por um momento a diferença que
existe entre monarquia real e monarquia tirânica. O rei é o monarca que
respeita as leis da natureza; o tirano é o que não as respeita. Mas, não é a
mesma diferença entre o rei e o tirano da tradição clássica? Que é o tirano,
na definição de Bodin, senão o "tyrannus exparte exercitii" da tradição? Leiase este trecho, de eloqüência um pouco convencional, no qual Bodin
contrapõe o príncipe bom ao mau, numa seqüência de antíteses:
"A diferença mais notável entre o rei e o tirano é que o rei se conforma
às leis da natureza, e o tirano as viola. Um cultiva a piedade, a justiça,
respeita a palavra empenhada; o outro não reconhece Deus, fé ou lei. O
primeiro faz tudo o que considera útil para o bem comum e o cuidado dos
súditos; o outro só age em função de vantagens particulares, ou por
vingança, ou capricho... Um se compraz de ser visto e ouvido diretamente
pelos súditos; o outro se oculta deles, como se fossem seus inimigos. Um
leva muito em conta o amor do povo, o outro deseja ser temido... Um é
venerado e amado por todos os súditos, o outro os odeia a todos, e é por
todos odiado... Um é homenageado em vida e chorado depois de morto; o
outro é difamado enquanto vive e, depois de morto, toma-se sua memória
como exemplo".
Além da monarquia legítima e da tirânica, Bodin reconhece a
despótica, tema que não é novo: Aristóteles já o tinha tratado. De modo
não diferente do aristotélico, Bodin considera como elemento característico do despotismo a relação senhor-escravo. Déspota é o que governa o
povo como um senhor dirige seus escravos. O que muda, com relação a
Aristóteles, é a justificação do poder despótico: na Política, Aristóteles não
hesitara em falar em povos naturalmente servis, seguindo sua teoria da
diferença natural entre senhores e escravos, concepção que não se poderia
mais sustentar depois de séculos de cristianismo. A justificação de Bodin é
diferente: na passagem citada ele se refere ao déspota como aquele que se
assenhoreou dos próprios súditos "pelo direito das armas e da guerra
justa". Mais adiante, precisa seu pensamento:
"Não é inadmissível que, depois de vencer seus inimigos numa guerra
santa e justa, um rei se apodere das suas pessoas e propriedade, pelo
direito de guerra, passando a governar os novos súditos como um chefe de
família dispõe dos seus escravos e bens, seguindo plenamente seu
arbítrio, na qualidade de senhor".
Considerada como conseqüência da vitória numa guerra justa (é
preciso que a guerra seja "justa", isto é, que possa ser explicada como
reparação de um mal cometido pelo inimigo), a escravidão é justificada,
sendo considerada um castigo. Neste sentido, não é mais um fato da
natureza, porém conseqüência do livre-arbítrio (de uma vontade má, que
quis o mal - a guerra injusta - e deve sofrer as conseqüências dessa
escolha). Não deriva ex natura, mas ex delido, como a situação do
prisioneiro, que é escravo não por natureza, mas pelo crime que cometeu.
No âmbito da tradição clássica, resta a exemplificação histórica das
monarquias despóticas, de Bodin, que acrescenta um capítulo (o qual
104
A Teoria das Formas de Governo
encontraremos reproduzido com poucas variações nos séculos seguintes)
sobre o tema do despotismo oriental.
"As monarquias despóticas que continuam a existir são muito
poucas..., contudo, há sempre um certo número delas, na Ásia, na Etiópia
e mesmo na Europa — por exemplo, o país dos tártaros, e Moscou."
Depois de comentar que o reino da Etiópia é "uma autêntica
monarquia despótica", acrescenta:
"Os povos europeus, de outro lado, mais altivos e belicosos do que os
africanos, 'nunca puderam tolerar monarquias despóticas'" (ênfase
acrescentada).
Não as toleraram mas as impuseram, quando isso lhes foi possível, a
povos considerados inferiores. Sem revelar qualquer embaraço, Bodin dá
este outro exemplo:
"Depois de reduzir ao seu domínio o reino do Peru, o Imperador
Carlos V se fez monarca despótico daquele país, onde os súditos não
possuem bens senão em caráter provisório, pela duração da sua vida".
Exemplo que introduz um caso novo, extremamente interessante, na
fenomenologia do despotismo: o despotismo colonial, relacionado com o
vínculo entre europeus "livres" e povos "servis". Observe-se que o
despotismo deixa de ser exclusivamente "oriental", para tornar-se
também "ocidental", toda vez que as grandes nações do Ocidente entram
em contato com povos de outros continentes, considerados inferiores. Em
outras palavras, a existência de povos servis não justifica só o despotismo
doméstico, mas oferece um argumento para legitimar também o despotismo exercido sobre eles por povos que não admitiriam um regime
despótico para si mesmos. A partir da época das conquistas coloniais, o
despotismo não se caracteriza mais apenas como um regime "dos" povos
não-europeus, mas é também legitimado como regime "sobre" povos
não-europeus, por parte dos povos da Europa. Se é verdade que há povos
habituados ao governo despótico, não há razão para que eles não sejam
governados do mesmo modo por povos que considerariam ilegítimo um
governo despótico em seu próprio país; Bodin não desenvolve esse
argumento, mas o exemplo do governo espanhol sobre o Peru não deixa
dúvidas a respeito da extensão da categoria histórica do despotismo aos
regimes impostos aos povos extra-europeus.
De acordo com a tradição, distingue-se a monarquia despótica da
tirania, a primeira das quais é considerada superior à segunda. Essa
superioridade consiste no fato de que a monarquia despótica é severa no
exercício do poder, mas tem uma justificativa, e portanto é em última
instância legítima; a tirania, porém, além de severa é ilegítima (a
comparação é feita, naturalmente, entre o despotismo e a tirania ex defectu,
tituli). Vale a pena ler este trecho, pela clareza com que o problema é
apresentado:
"Embora seja em parte verdade que transformar homens livres em
escravos e apoderar-se da propriedade alheia é agir contra a lei da
natureza, é também verdade que, pelo consenso de todos os povos, o que
foi conquistado numa guerra legítima passa a ser propriedade do
vencedor, e os vencidos se transformam em seus escravos; não se pode
Bodin
105
dizer, portanto, que o poder conquistado desse modo corresponda a uma
tirania".
E este outro:
"De modo mais geral pode-se dizer que, se quisermos identificar o
regime despótico com o tirânico, chegaremos a afirmar que não há
diferença entre o inimigo legítimo, na guerra, e um ladrão - entre o
príncipe legítimo e o bandido, a guerra legalmente declarada e a força
ilegal e violenta".
A diferença nas causas está refletida nos efeitos. Enquanto o despotismo é estável, a tirania é efêmera. A razão dessa diferença é explicada
na passagem seguinte:
"O motivo por que a monarquia despótica é mais duradoura do que
as outras reside no fato de que é mais respeitável, e que os súditos
dependem inteiramente - no que concerne a sua vida, liberdade e
propriedade - do soberano que os conquistou com justo título, o que
reduz completamente sua ousadia; é o que acontece também com o
escravo, cônscio da sua condição, que se torna geralmente humilde, vil, de
ânimo servil, como se costuma dizer. De outro lado quando se tenta
submeter homens livres, donos de seus bens, usurpando o que lhes
pertence, eles logo se rebelam, porque têm o espírito generoso, nutrido de
liberdade e não abastardado pela servidão".
Como se vê, além do escravo por generationem há também o escravo por
institutionem - isto é, o escravo que não nasce nessa condição, mas a
adquire, porque a escravidão lhe é imposta; ele tem que adaptar-se, e
ajustando-se ao domínio do senhor dá-lhe força e estabilidade.
Capítulo VIII
HOBBES
Hobbes é o maior filósofo político da Idade Moderna, até Hegel.
Escreveu muitas obras políticas de importância capital para a compreensão do Estado moderno, sendo as principais The Elements ofLaw Natural and
Politic (1640), De Cive (1642 e 1647) e Leviathan (1651). No que respeita às
teses que nos interessam, liga-se diretamente a Bodin, mas as defende com
maior rigor, tanto que depois dele ninguém mais pôde defender as teses
tradicionais sem levar em conta os argumentos com que procurou rejeitálas. Como Bodin, Hobbes não aceita duas das teses que caracterizaram
durante séculos a teoria das formas de governo: a distinção entre as formas
boas e más e o governo misto. Nos dois casos a refutação deriva, com
lógica férrea, dos dois atributos fundamentais da soberania: seu caráter
absoluto e a indivisibilidade. Conforme veremos adiante, do caráter
absoluto deriva a crítica à distinção entre formas boas e más; da
indivisibilidade, a crítica ao governo misto.
Para Hobbes também, como para Bodin, o poder soberano é
absoluto. Se não fosse absoluto, não seria soberano: soberania e caráter
absoluto são unum et idem. Embora se possa dizer que "absoluto" não
comporta superlativo, não chega a ser paradoxal afirmar que o poder
soberano de Hobbes é ainda mais absoluto do que o de Bodin. Como
vimos, Bodin considera que o poder do soberano, embora absoluto (no
sentido de que não está limitado pelas leis positivas), admite certos limites
(fora das leis constitucionais): a observância das leis naturais e divinas e os
direitos privados. Diante porém do poder soberano absoluto concebido
por Hobbes, esses limites não se sustentam. No que concerne às leis
naturais e divinas, Hobbes não nega sua existência, mas afirma (justamente) que não se trata de leis como as positivas, porque não são aplicadas
com a força de um poder comum; por isso não são externamente
obrigatórias, mas só interiormente - isto é, no nível da consciência. Em
outras palavras, o vínculo que os súditos têm com relação às leis positivas
108
A Teoria das Formas de Governo
não é da mesma natureza do que prende o soberano às leis naturais. Se o
súdito não observar as leis positivas, poderá ser obrigado a isso pela força
do poder soberano; mas se o soberano não observar as leis naturais,
ninguém poderá constrangê-lo à sua obediência; ninguém poderá puni-lo
(pelo menos neste mundo). Em conseqüência, enquanto as leis positivas
constituem para os súditos comandos que precisam ser obedecidos
absolutamente, as leis naturais são, para o soberano, apenas regras de
prudência, sugerindo-lhe um determinado tipo de conduta, para alcançar
um certo fim; não lhe impõem necessariamente um comportamento
determinado. O soberano é juiz da conduta do seu súdito, mas a conduta
do soberano é Julgada por ele próprio. No que diz respeito aos direitos
privados, Bodin sustenta que o soberano não pode interferir neles,
porque têm sua fonte principal na vontade dos indivíduos enquanto
membros da sociedade das relações econômicas, que independe da
sociedade política.
Hobbes nega essa distinção entre a esfera pública e a privada; uma vez
instituído o Estado, a esfera privada, que em Hobbes coincide com o
estado na natureza, se dissolve inteiramente na esfera pública, isto é, nas
relações de domínio que ligam o soberano aos súditos. Com efeito, a
razão pela qual os indivíduos deixam o estado da natureza para ingressar
na esfera do Estado é que o primeiro, não regulado por leis impostas por
um poder comum, se resolve numa situação de conflito permanente (o
famoso "bellum omnium contra omnes"). Enquanto para Bodin a propriedade, como direito de gozar e dispor de uma coisa, à exclusão de todas as
outras pessoas, é um direito que se forma primeiramente numa esfera de
relações privadas, independentemente do Estado, para Hobbes o direito
de propriedade só existe, no Estado, mediante a tutela estatal; no estado
de natureza os indivíduos teriam um ius in omnia - um direito sobre todas
as coisas, o que quer dizer que não teriam direito a nada, já que se todos
têm direito a tudo, qualquer coisa pertence ao mesmo tempo a mim e a ti.
Só o Estado pode garantir, com sua força, superior à força conjunta de
todos os indivíduos, que o que é meu me pertença exclusivamente,
assegurando assim o sistema de propriedade individual.
Do caráter absoluto do poder estatal deriva, como se disse, a rejeição
da distinção entre formas boas e más de governo. O raciocínio de Hobbes,
neste particular, é premente: aquela distinção nasce da diferença entre os
soberanos que exercem o poder de acordo com as leis e os que governam
sem respeitá-las. Mas, se o soberano é verdadeiramente "legibus solutus", se
não é atingido por nenhuma lei superior a si próprio, como é possível
distinguir o que respeita as leis do que não as respeita? Em outras
palavras: o mau soberano é o que abusa do poder que lhe é confiado.
Contudo, tem sentido falar em abuso do poder onde o poder é ilimitado?
Quando o poder não tem limites, o próprio conceito de abuso se torna
contraditório. Como se pode, então, distinguir o bom soberano do mau,
se o único critério que permitiria tal diferenciação não se sustenta?
Convém dar a palavra ao próprio Hobbes, cuja clareza de exposição é
insuperável:
"Os antigos escritores políticos apresentaram outras três formas, que
Hobbes
109
se opõem a estas (entende-se: as três formas clássicas - monarquia,
aristocracia e democracia): a anarquia (ou seja, a confusão), contrastando
com a democracia; a oligarquia (o poder excessivo de uns poucos), em
oposição à aristocracia; e a tirania, contraposta à monarquia. Estas não
são, contudo, três formas de Estado diferentes das primeiras, mas apenas
três denominações diferentes, dadas àquelas por quem odiava o respectivo governo, ou os governantes. Com efeito, os homens têm o hábito de
não só indicar com nomes as coisas mas de manifestar os sentimentos a
seu respeito - o amor, o ódio, a ira, etc. Por isso, o que um chama de
aristocracia, o outro denomina oligarquia; um dá o título de tirano àquele
a quem um outro chama de rei. Deste modo, não se designa com tais
nomes diferentes formas de Estado, mas apenas as opiniões que têm os
cidadãos a respeito da pessoa dos governantes" (De Cive, VII, 2).
Nessa passagem, Hobbes faz uma assertiva filosófica importante: não
há nenhum critério objetivo para distinguir o bom rei do tirano, etc. Os
julgamentos de valor — isto é, os julgamentos na base dos quais dizemos
que uma coisa é boa ou má — são subjetivos, dependem da "opinião". O
que parece bom a uns a outros parecerá mau: isso acontece porque não há
critério racional que permita diferenciar o bem do mal. Todos os critérios
derivam da paixão, não da razão. O motivo por que não há um meio
objetivo que leve à distinção entre o rei e o tirano é elucidado limpidamente neste trecho:
"As paixões não permitem que os homens sejam persuadidos
facilmente de que o reino e a tirania são a mesma forma de Estado. Mesmo
que prefiram que o Estado esteja sujeito a um só indivíduo, em lugar de
muitos, pensam que não será bem governado se não o for de acordo com
seu julgamento. Contudo, a distinção entre o rei e o tirano deve ser
procurada com o raciocínio, não com os sentimentos. Eles não se
distinguem pela amplitude do poder, já que não se pode conceder um
poder mais amplo do que o soberano. Não se diferenciam também por ter
o primeiro uma autoridade limitada, e o segundo não: se a autoridade é
concedida com certos limites, quem a recebe não é rei, mas súdito de
quem a outorga" (De Cive, VII, 3).
Nessa passagem, Hobbes explica (depois de reafirmar que a distinção
entre rei e tirano é passional, não racional) que, se o soberano tem o poder
supremo, não pode haver nenhuma diferença entre um soberano e outro,
com respeito à amplitude maior ou menor do seu poder. Se o rei tivesse
poder limitado, comparativamente ao tirano, não seria de fato rei; se seu
poder é ilimitado, não se percebe como diferiria do que tem o tirano. Uma
vez mais, o tirano é um rei que não aprovamos; o rei, um tirano que tem
nossa aprovação. A figura do tirano que Hobbes tem em mente, neste
ponto, é a do tirano exparte exercitii: é como se dissesse que quando o poder
não tem limites (se os tivesse, não seria poder soberano) não tem sentido
falar de "excesso de poder"; portanto, não tem sentido também falar em
uma figura de soberano caracterizada justamente pelo poder excessivo.
Continuando, chega-se logo a essa outra forma de tirania, ex defectu tituli:
"Em segundo lugar, rei e tirano não diferem pelo modo como
adquirem seu poder. De fato, se num Estado democrático ou aristocrático
110
A Teoria das Formas de Governo
um cidadão conquista o poder pela força, torna-se um rei legítimo desde
que seja reconhecido pelos cidadãos; em caso contrário, permanece um
inimigo, e não se transforma em tirano" (De Cive, VII, 3).
Aqui também o raciocínio de Hobbes é dilemático: ou o príncipe que
conquista o Estado pela força (que a teoria tradicional chamaria de tirano
por falta de título) consegue manter-se no poder, assegurando o reconhecimento dos súditos — caso em que se torna um príncipe legítimo - ou não
mantém o poder, porque os súditos lhe são hostis - e então é um inimigo.
Será desnecessário sublinhar a importância dessa afirmativa: ela reside no
enunciado do princípio de que ou o príncipe legitima (ainda que post
factum) o próprio poder, e passa a ser um príncipe como os outros, ou não
o legitima, e não é um príncipe, porém um inimigo. A diferença que se
pode estabelecer não é entre príncipe bom e mau, mas entre príncipe e
não-príncipe.
Não me deterei aqui na legitimação post factum - o que os juristas
chamariam hoje de "princípio da efetividade" - porque teremos ocasião
de falar sobre o assunto em outras lições. Bastará comentar que se não
aceitássemos o princípio da efetividade, nenhum poder seria legítimo, em
última instância: tem-se um movimento contínuo, remontando cada
poder legítimo a outro poder legítimo que o precede, mas se chegará
forçosamente a um ponto em que topamos com um poder que, como
Atlas, não tem nenhum ponto de apoio além de si mesmo, ou seja, da sua
capacidade própria.
Conforme se viu, Bodin tinha traçado a distinção não só entre o reino
e a tirania, mas também entre a monarquia tirânica e a despótica. Como se
situa a monarquia despótica no sistema de Hobbes? Encontraremos a
resposta numa passagem, como sempre muito clara, do cap. XX do
Leviathan:
'' O domínio adquirido com a conquista ou com a vitória pela guerra é
o que alguns autores chamam de despótico - de 'despotes', que significa
senhor ou patrão. É o domínio que tem o patrão sobre o servo".
Não há nada a dizer a respeito da definição de despotismo: por
"despotismo" todos os autores indicam aquela forma de domínio em que
o poder do príncipe sobre seus súditos tem a mesma natureza do poder do
senhor sobre seus escravos. Contudo, a identificação do despotismo com
o domínio obtido através da conquista e da vitória merece um breve
comentário. Bodin tinha também relacionado o despotismo com a
conquista e a vitória, precisando contudo que devia tratar-se de uma
"guerra justa". Embora a omissão pareça grave, a um exame superficial,
na verdade Hobbes tem toda razão, não só do seu ponto de vista realista
mas também do ponto de vista da doutrina geral da guerra justa. Na
verdade, como distinguir a guerra justa da injusta? Não obstante as
tentativas de teólogos e juristas para estabelecer a priori os motivos de
justificação das guerras, enquanto duram, elas são sempre justas para os
dois lados. O que determina a justiça da guerra é a vitória: quando falta
um tribunal superior às partes, que possa decidir em favor de quem tem
razão, esta cabe ao vitorioso. Nos tempos de Bodin e de Hobbes
comparava-se a guerra entre os Estados ao duelo - um duelo público. Por
Hobbes
111
outro lado, o duelo podia perfeitamente ser comparado a uma guerra
particular. E no duelo, como se sabe, a solução de uma controvérsia é
confiada às armas: a vitória prova a justiça. Por isso Hobbes tinha razão
em falar unicamente de conquista e de vitória. Se estoura uma guerra
entre dois antagonistas que não admitem nenhum juiz superior, a vitória é
o único critério para determinar quem tem razão. Mas, se a conquista e a
vitória constituem a origem do Estado despótico, não é também, para
Hobbes, sua justificação, ou princípio de legitimação, como se vê na
passagem seguinte:
"Esse domínio (quer dizer, o domínio despótico) é alcançado pelo
vencedor quando o vencido, para evitar a morte, declara - com palavras
expressas ou outros sinais suficientes - que, enquanto lhe for concedido
viver e ter liberdade de movimentos, o vencedor o utilizará à sua vontade"
(Leviathan, cap. XX).
Ou nesta outra:
"Por isso, não é a vitória que dá direito de domínio sobre o vencido,
mas o pacto que o obriga; por outro lado, a obrigação não decorre do ter
sido vencido, derrotado ou afugentado, mas da submissão ao vencedor"
(ibidem).
Entende-se claramente nessa passagem que o fundamento do poder
despótico, a razão pela qual mesmo esse poder encontra em cenas
circunstâncias sua legitimação, é o consentimento de quem se submete.
Até aqui tínhamos visto o despotismo justificado ex natura (Aristóteles) e ex
delicto (Bodin). Agora o vemos justificado ex contractu. Esta tese se enquadra
perfeitamente na lógica de todo o sistema hobbesiano. Por que os
indivíduos deixam o estado da natureza e dão vida ao estado civil com
suas vontades concordes? A razão apresentada por Hobbes, como se
sabe, é que sendo o estado da natureza uma situação de guerra de todos
contra todos, nele ninguém tem garantia da própria vida: para salvar a
vida, os indivíduos julgam necessário assim submeter-se a um poder
comum suficiente para impedir o emprego da força particular. Em outras
palavras, o Estado surge de um pacto que os indivíduos assumem entre si,
com o propósito de alcançar a segurança da sua vida pela sujeição comum
a um único poder. O pactum subiectionis entre o vencedor e o vencido não é
diferente, em conteúdo ou escopo. O vencedor teria o direito de matar o
vencido que, para salvar a vida, renuncia à liberdade. Há uma verdadeira
troca de prestações: pela submissão o vencido oferece ao vencedor seus
serviços, isto é, promete servi-lo; de seu lado, o vencedor dá proteção ao
vencido. Tanto no pacto que origina o estado civil como naquele entre
vencedor e vencido, o bem supremo é a vida.
Outra característica da soberania é, como se disse, a indivisibilidade,
da qual deriva a segunda tese de Hobbes, que é preciso comentar: a crítica
da teoria do governo misto. Comecemos com a leitura de um trecho de De
Cive:
"Há quem estime necessária a existência de um poder soberano no
Estado, sustentando contudo que se esse poder se concentrasse nas mãos
de uma só pessoa, ou de uma só assembléia, a conseqüência seria, para os
demais, 'um estado de opressão servil'. A fim de evitar esta degradação
112
A Teoria das Formas de Governo
dos cidadãos à situação de escravos do poder soberano, pensam que pode
haver um Estado composto das três formas de governo acima descritas,
que seja contudo ao mesmo tempo diferente de cada uma delas. Esta
forma de Estado tem o nome de monarquia mista, aristocracia mista ou
democracia mista, segundo a forma simples que nela predomine. Por
exemplo: se a nomeação dos magistrados e as deliberações sobre a guerra
e a paz cabem ao rei, a administração da justiça aos notáveis, a imposição
de tributos ao povo, e a faculdade de promulgar leis a todos os três em
conjunto, o Estado justo é chamado propriamente de monarquia mista.
Mas, embora admitindo que possa haver um Estado desse tipo, 'não se
teria com isso assegurado maior liberdade para os cidadãos'. Com efeito,
como todos os poderes concordam entre si, a sujeição de cada cidadão
individual é tão grande que maior não poderia ser; se, ao contrário, ocorre
alguma dissensão, chega-se logo à guerra civil e ao direito das armas
particulares, pior do que qualquer sujeição" (De Cive, VII, 4).
Para Hobbes é certo que o poder soberano não pode ser dividido,
senão a preço da sua destruição. O filósofo chega a considerar a teoria
segundo a qual o poder soberano é divisível como sediciosa, a ser proibida
pelos governos bem organizados. Ao criticar as teorias sediciosas reitera
com vigor seu argumento:
"Há também os que subdividem o poder soberano, atribuindo a
faculdade de declarar a guerra e fazer a paz a uma só pessoa (o rei), e a
outrem o direito de impor tributos. Contudo, como os recursos são os
nervos da guerra e da paz, os que assim dividem a soberania ou não a
dividem de fato, porque atribuem o poder efetivo a quem dispõe dos
recursos, e a outros só o poder nominal, ou — se o dividem de fato dissolvem o Estado, já que sem dinheiro não é possível fazer a guerra, quando necessário, nem conservar a tranqüilidade pública" [De Cive,
XII, 5).
O raciocínio de Hobbes tem simplicidade exemplar: se o poder
soberano está efetivamente dividido, não é mais soberano; se continua a
ser de fato soberano, não está dividido - a divisão é só aparente. Sabemos
muito bem qual é a situação histórica da qual nasce a reflexão hobbesiana:
a disputa entre rei e parlamento, na Inglaterra, que deu origem à guerra
civil, isto é, à dissolução do Estado. Hobbes considera responsáveis por
essa dissolução aqueles que sustentaram, de diversos modos, a divisão do
poder soberano entre o monarca e o corpo legislativo. A doutrina
predominante já há alguns séculos, entre os constitucionalistas ingleses,
repetida às vésperas da guerra civil pelo rei Carlos I, em 1642, era a de que
a monarquia inglesa tinha caráter misto. Esta é uma das suas formulações
mais clássicas:
"A experiência e sabedoria dos nossos antepassados modelaram este
governo mediante uma combinação de formas diversas (monarquia,
aristocracia, democracia), de modo a dar a este reino, dentro dos limites
concedidos pela providência humana, as vantagens de todas as três
formas, sem os inconvenientes de nenhuma delas, para que haja um
equilíbrio entre os três poderes, e estes fluam conjuntamente no seu
próprio leito" (Answer to the Nineteen Propositions, cit. por L. D'Avack, "La
Hobbes
113
Teoria delia Monarchia Mista nell'Inghilterra del Cinque e del Seicento",
Riv Int. Fil. Dir., 1975, p. 613).
Vale notar, sobretudo na primeira passagem, a referência à liberdade
dos cidadãos, apresentada como argumento dos defensores do governo
misto. Como vimos, o argumento tradicional em favor do governo misto
era o da estabilidade. Mas não deixamos de notar que em Maquiavel já
havia surgido um segundo argumento, o da garantia da liberdade. Em
substância, a apologia do governo misto se fundamenta, assim, em dois
argumentos: ex parte principis, a maior estabilidade do Estado; ex parte
populi, a maior liberdade dos cidadãos. Hobbes parece acreditar no
argumento da liberdade, quando este rejeita o governo misto na base
do binômio servidão-liberdade. Mas não despreza o argumento da
estabilidade, mostrando que a conseqüência inevitável do governo misto é
a dissolução do Estado e a guerra civil. Como para Bodin, também para
Hobbes o inconveniente do governo misto é justamente o de levar a
conseqüências opostas aquelas que tinham sido imaginadas pelos seus
defensores: antes de mais nada, à instabilidade. Uma concepção como esta
não podia deixar de ter implicações no julgamento dos governos mistos
historicamente reconhecidos, principalmente o governo romano. Há
um parágrafo do Leviathan dedicado aos Estados que se dissolvem pela
falta de um poder absoluto. Dentre eles, o exemplo historicamente
significativo é a república romana, a respeito da qual Hobbes escreve:
"Enquanto o antigo governo romano era formado pelo Senado e pelo
povo de Roma, de fato nem um nem outro tinham todo o poder; o que
desde o princípio motivou as sedições de Tibério e Caio Graco, de Lúcio
Saturnino e de outros, e mais tarde a guerra entre o povo e o Senado, sob
Mário e Sila, e também sob Pompeu e César. Finalmente, isso levou à
extinção da democracia e à instituição da monarquia" {Leviathan, cap.
XXIX).
Inútil observar que Políbio e Hobbes se referem a períodos diferentes
da história romana, e que portanto os dois podem ter razão. Mas é
verdade que, para defender a tese da instabilidade do governo misto,
Hobbes levanta um argumento histórico baseado na própria constituição
exaltada como exemplo maravilhoso de estabilidade. No que diz respeito
ao segundo grande exemplo de governo misto, o de Esparta, Hobbes
emprega o outro lado do dilema (se o Estado é genuinamente misto, não é
estável; se é estável, não é genuinamente misto), num trecho em que
interpreta a constituição espartana como aristocrática - seguindo, aliás,
uma tradição antiga e sólida:
"O rei cujo poder é limitado não é superior aos que têm o poder de
limitá-lo; e quem não é superior não é supremo, isto é, não é soberano.
Portanto, a soberania está sempre na assembléia, que tem o direito de
limitá-la, e em conseqüência tal governo não é monárquico mas uma
democracia ou aristocracia, como Esparta na Antigüidade, onde os reis
tinham o privilégio de comandar os exércitos, mas a soberania recaía nos
éforos" (Leviathan, cap. XIX).
A crítica hobbesiana do governo misto origina outro problema, que já
mencionei mas que é preciso agora pôr em evidência com toda a sua
114
A Teoria das Formas de Governo
importância. Trata-se da sobreposição, diríamos mesmo, da confusão de modo geral não percebida e portanto transmitida acriticamente —
entre a teoria do governo misto e a teoria da separação dos poderes.
Observo logo que das passagens citadas ressalta claramente que a crítica de
Hobbes ao governo misto é ao mesmo tempo (ou mesmo
predominantemente) uma crítica à separação dos poderes. Mas, governo
misto e separação dos poderes serão a mesma coisa? Sim e não. Antes
de considerar o assunto um pouco mais a fundo, convém citar mais uma
passagem hobbesiana, muito incisiva e perspicaz:
"Às vezes, mesmo no poder civil singular há mais de um espírito,
como ocorre quando o poder de emitir moeda - a faculdade nutritiva —
depende de uma assembléia geral, o poder de comandar - a faculdade
motriz - depende de uma pessoa, e o poder de legislar - a faculdade
racional - de uma concordância acidental não só desses dois mas também
de uma terceira parte. Isso é às vezes maléfico para o Estado, pela falta da
nutrição necessária à vida e ao movimento. Com efeito, embora poucos
percebam que tal governo não é um governo, mas um Estado dividido em
três facções, chamando-o de monarquia mista, a verdade é que não temos
um único Estado independente, mas três facções autônomas; não há uma
pessoa singular queo represente, mas três. No reino de Deus pode haver
três pessoas independentes sem romper a unidade divina, que reina; mas
nos reinos dos homens, sujeitos a uma diversidade de opiniões, o mesmo
não pode acontecer. Como o rei representa também o povo, e o mesmo
ocorre com a assembléia geral, e uma outra assembléia representa uma
parte do povo, não há uma só pessoa representada, ou ura só soberano,
mas três pessoas e três soberanos. Não sei a que defeito, no corpo físico,
possa comparar exatamente essa irregularidade dos Estados; já vi contudo
um homem de cujo lado lhe saía outro homem, com cabeça, braços, peito
e ventre próprios; se tivesse do outro lado um terceiro homem, a
comparação seria exata" (Leviathan, cap. XXIX).
Se não bastassem as citações precedentes, estas últimas linhas nos
revelam a opinião de Hobbes sobre o governo misto, comparado a algo de
monstruoso. No reino espiritual, a união de três pessoas gera a Trindade;
no reino da Terra, porém, a união das três partes do Estado gera um
monstro. Mas, qual o verdadeiro alvo da crítica de Hobbes? Se relermos
com atenção as primeiras linhas, que aliás repetem o que já vimos em
passagens anteriores, veremos que sua crítica se dirige à separação das
funções principais do Estado, e à sua atribuição a órgãos diversos. Mas,
seria esta a idéia original do governo misto, herdada dos gregos? A idéia
do governo misto não havia surgido da exigência de dividir o poder único
do Estado, mas precisamente do contrário - da exigência de compor
numa unidade as diversas classes que constituem uma sociedade complexa. A sobreposição da teoria da separação dos poderes e do governo
misto só ocorre porque se procura fazer coincidir a divisão tríplice das
funções principais do Estado (que, de acordo com os defensores da
separação dos poderes, deveriam ser atribuídas a diferentes órgãos) com a
participação e a unificação das classes que compõem uma sociedade
complexa, cada uma das quais, de acordo com os defensores do governo
Hobbes
115
misto, deveriam ter um órgão próprio de representação no Estado
composto, por isso mesmo "misto".
Mas essa coincidência é desnecessária. Vejamos a questão mais de
perto: admitindo-se que as funções do Estado sejam três — a legislativa, a
executiva e a judiciária - a identificação da prática da divisão de poderes
com a realidade do sistema político "misto" só pode ser feita se a cada
função corresponder uma das três partes da sociedade (rei, nobres, povo);
isto é: se for possível conceber um Estado em que ao rei caiba a função
executiva, ao senado a judiciária, ao povo a legislativa. Ora, esta é uma
idéia que os primeiros teóricos do governo misto não tinham jamais
sustentado. Na verdade, o perfeito governo misto é o oposto: nele a
mesma função - a função principal, que é a legislativa - é exercida em
conjunto pelas três partes que o compõem; ou seja, para pensar nos
termos da constituição considerada por Hobbes, pelo rei juntamente com
os Lords e os Commons.
No governo misto não há uma correspondência necessária entre as
três funções do Estado e as três partes da sociedade que se compõem no
sistema político próprio do governo misto. A dificuldade da identificação
aumenta se se considera o fato de que os teóricos do governo misto
sempre falaram de três classes em que se divide o poder numa sociedade
complexa, enquanto os teóricos da separação dos poderes muitas vezes
reduzem a duas as funções fundamentais do Estado - a legislativa e a
executiva. Neste caso, não pode haver mais correspondência entre os três
possíveis sujeitos do governo (rei, nobres, povo) e as funções do Estado.
Onde a articulação do poder do Estado acompanha o modo como estão
divididas as funções que lhe competem, e não os possíveis sujeitos do
poder estatal, a interpretação mais correta da realidade é a bodiniana, que
traça no Estado composto uma distinção entre Estado e governo, e não na
teoria do governo misto, que o interpreta como composição entre
diferentes classes sociais.
A teoria política seguinte de maior importância é, sem dúvida, a que
foi exposta por John Locke nos Dois Tratados Sobre o Governo Civil, de 1680.
Locke passou para a história, justamente, como o teórico da monarquia
constitucional - um sistema político baseado, ao mesmo tempo, na dupla
distinção entre as duas partes do poder, o parlamento e o rei, e entre as
duas funções do Estado, a legislativa e a executiva, bem como na
correspondência quase perfeita entre essas duas distinções - o poder
legislativo emana do povo representado no parlamento; o poder executivo é delegado ao rei pelo parlamento.
Uma constituição desse gênero não corresponde ao governo misto,
no sentido tradicional da palavra (aliás, Locke não a considera assim). É
uma constituição que poderíamos chamar, de acordo com a interpretação
de Bodin, democrático-monárquica, ou seja, em que a soberania do
Estado pertence ao povo, e o governo, entendido como exercício do poder
executivo, ao rei.
Capítulo IX
VICO
Já mencionei Giambattista Vico, a propósito da teoria cíclica de
Políbio. A teoria histórica de Vico é também uma teoria cíclica. Pretendo
demonstrar aqui a influência da teoria tradicional das formas de governo,
na concepção geral do desenvolvimento histórico de Vico.
Retomando a distinção entre o uso sistemático, prescritivo e histórico
da teoria das formas de governo, observo, desde logo, que em Vico
prevalece o uso histórico. A teoria tradicional das três formas de governo é
empregada por Vico principalmente para traçar as linhas do curso
histórico percorrido pelas nações, da barbárie à civilização. Refiro-me,
em especial, à principal obra de Vico, La Scienza Nuova, de que há duas
edições, denominadas respectivamente La Scienza Nuova Prima, de 1725, e
La Scienza Nuova Seconda, de 1744. Escrito em italiano, o livro foi precedido
por uma obra latina em três partes // Diritto Universale, escrita entre 1720 e
1723, que pode ser considerada como a verdadeira primeira edição, ou
esboço original da obra maior.
Certamente não é o caso de dizer aqui em que consiste a "nova"
ciência que Vico propôs; limito-me a comentar que o livro representa
especialmente uma filosofia da história, uma tentativa grandiosa (a mais
grandiosa antes da de Hegel) de descobrir as leis gerais que presidem ao
desenvolvimento da história universal, permitindo, portanto, compreender o seu "sentido". Com efeito, para atribuir um "sentido" à história é
necessário descobrir a "direção" em que se movem os homens que são
seus artífices; e para compreender qual é essa direção é necessário voltar a
percorrer as várias etapas do movimento histórico e descobrir as razões da
passagem de uma para outra etapa, bem como o objetivo, o "telos" desse
movimento geral.
As principais categorias com as quais Vico procura abranger o
movimento histórico - senão em sua totalidade, pelo menos na sua parte
emergente - são, uma vez mais, as três formas clássicas (que se dispõem na
118
A Teoria das Formas de Governo
seguinte ordem: aristocracia, democracia, monarquia, alterando radicalmente a sucessão tradicional, herdada de Aristóteles, Políbio e outros).
Um dos pontos fundamentais da concepção da história de Vico é o de que,
logo que a humanidade deixou a fase pré-estatal - correspondente ao
"estado da natureza" dos jusnaturalistas - a primeira forma de Estado a
surgir foi a república aristocrática, seguida pela república popular, que
veio a dar na monarquia. Vico se refere a essas três formas de Estado com
riqueza de pormenores em Il Diritto Universale, do qual extraiu as seguintes
definições:
"O governo aristocrático se baseia na conservação, sob a tutela da
ordem dos patrícios que o constituiu, sendo máxima essencial da sua
política a de que só a patrícios sejam atribuídos os auspícios, os poderes, a
nobreza, os conúbios, as magistraturas, comandos e sacerdócios...
Constituem condições do governo popular a paridade dos sufrágios, a
livre expressão das sentenças e o acesso igual para todos às honrarias, sem
excluir as supremas... O caráter do reino, ou monarquia, é o domínio por
um só, a quem cabe o arbítrio soberano e inteiramente livre sobre todas as
coisas" [Dell'Unico Principio e Dell'Unico Fine del Diritto Universale, § 138).
Dessa definição se pode começar a extrair uma primeira observação:
o mundo histórico, objeto das reflexões de Vico, e do qual deduz
princípios e leis, é a história de Roma. É a partir da meditação sobre a
história romana que ele deriva a lei de sucessão dos Estados, a qual invene
a ordem indicada pelos escritores helênicos. Interpretando-se o período
antigo dos reis de Roma como a formação de uma república aristocrática,
esta se prolonga até a concessão dos direitos públicos à plebe, de onde
resulta uma república popular; a qual, por sua vez, devido às desordens
provocadas pelas facções e pela guerra civil, termina no principado de
Augusto, isto é, na monarquia.
Mas a sucessão das três formas de governo, que abrange toda a
história conhecida de Roma, não passa de uma parte da história universal.
O que atraiu Vico, e o levou a especulações que constituem a novidade
profunda da sua obra, foi a investigação a respeito dos "tempos
obscuros", que antecederam a história narrada e escrita. A tese de Vico,
bastante conhecida (e que não é nova, embora inove nas imagens que
utiliza e na amplitude da sua significação) é a de que o estado primitivo do
homem (que Vico localiza depois do dilúvio, para fazer proceder sua história,
que pretende ser profana,pari passu com a história sagrada) foi um "estado
bestial" ("stato ferino"). Uma tese que não é nova, como notei, porque o
estado bestial do homem primitivo já tinha sido descrito por Lucrécio em
passagem célebre do Livro V de De Rerum Natura ("...vulvivago vitam
tractabant more ferarum", V, verso 932), que inspirou o próprio Vico.
A característica desse estado, em que os homens decaídos se
conduzem como animais, é a ausência de quaisquer relações sociais, a
completa inexistência de qualquer forma de vida comum, até mesmo
familiar. Vale notar que nem sempre os que comparam a vida primitiva do
homem com a dos animais o consideram originalmente associai, observando que há muitas espécies de animais que vivem também agregados. É o
que acontece, por exemplo, com Políbio, que ao comparar a vida
Vico
119
primitiva dos homens com a dos animais diz que os primeiros se
"agruparam como os animais, sob a direção dos mais valentes e mais
fortes". Passo a palavra, agora, ao próprio Vico, que descreveu a vida
primitiva, numa passagem justamente célebre:
"Errando como animais pela grande selva da terra... para fugir as
feras que deviam existir em abundância e para perseguir as mulheres, que
naquele estado deviam ser selvagens, esquivas e fugidias; dispersando-se
para encontrar alimento e água, as mães abandonavam os filhos, que
cresciam sem ouvir voz humana, e sem aprender os costumes do homem,
numa situação bestial, na qual as mães apenas os amamentavam,
deixando-os brincar nus no meio das suas fezes; mal desmamados, eram
abandonados para sempre" (La Scienza Nuova Seconda, cap. 369).
Como se vê, o estado bestial é totalmente associai; nele, até mesmo a
família, essa primeira forma de vida em comum, não chega a se constituir.
Nesse estado, o homem vive só e isolado. No De Uno (a primeira parte de Il
Diritto Universale), Vico distingue três tipos de autoridade, que denomina
monástica, econômica e civil. A primeira caracteriza a vida do homem
primitivo, definida deste modo:
"A primeira autoridade jurídica que o homem teve na solidão pode
ser chamada de monástica ou solitária. Entendo aqui igualmente por
solidão os lugares freqüentados e os desabitados, desde que neles o
homem assaltado e ameaçado não possa recorrer às leis para sua defesa...
Devido à sua autoridade monástica, o homem se torna soberano na
solidão; quando assaltado, precisa proteger-se, consciente da sua superioridade sobre o assaltante porque o supera no sentimento da justiça;
mata-o exercendo um direito de superioridade ou de soberania" (op. cit.,
§ § 98 e 99).
O estado da natureza descrito por Hobbes é também aquele em que
cada um vive por sua conta, e precisa cuidar da própria defesa, pelo que
termina numa guerra de todos contra todos. O mesmo acontece com o
estado natural descrito por Rousseau na Exposição sobre a Origem da
Desigualdade entre os Homens, em que o homem primitivo, identificado com
o "bom selvagem", leva uma vida simples, rudimentar, em contato, não
com seus semelhantes, mas só com a natureza. Essa situação é concebida,
em termos de Vico, como estado "monástico", isto é, associai. Mas as
diferenças são sensíveis. Para Vico, o estado bestial é histórico - quer
dizer, encontra-se na origem da verdadeira história da humanidade; para
Hobbes, trata-se de uma hipótese racional, que deriva da imaginação do
que seria a vida do homem se não houvesse um poder comum a impedir o
desencadeamento dos instintos, mas é também o estado ao qual a
humanidade está destinada a retornar, sempre que falta a autoridade
estatal (como ocorreu na guerra civil inglesa, e como acontece costumeiramente nas relações entre Estados, que se relacionam entre si como
se estivessem no estado natural).
Quanto ao "estado natural" do "bom selvagem" de Rousseau, podese pensar também que Rousseau o concebeu como situação histórica isto é, como a situação em que viviam os selvagens antes de tocados (e, de
acordo com Rousseau, estragados) pela civilização. Contudo, a diferença
120
A Teoria das Formas de Governo
existente com relação ao "estado bestial", de Vico, está no julgamento
valorativo - positivo em Rousseau, negativo em Vico.
A humanidade não passou diretamente, de acordo com Vico, do
estado bestial para o das "repúblicas" (no sentido latino de sociedade civil
ou política). Entre as duas etapas, Vico postula uma fase intermediária,
que não é mais "pré-histórica" mas que ainda não é "estatal": a fase das
famílias, em que se formam essas primeiras formas de vida associativa.
Descreve, imaginativamente, o modo como se passou do estado bestial
para o das comunidades familiares: depois de longo período de tempo
seco e árido, o primeiro trovão e o primeiro relâmpago fazem com que o
homem se espante, levante os olhos e tome consciência do céu, adquirindo assim uma primeira percepção da divindade, ainda obscura. Com o
temor de Deus, nasce a vergonha da vida bestial e principalmente da
"venere vaga". Os homens passam a levar as mulheres ao interior das
cavernas, para possuí-las longe dos olhos dos seus semelhantes; institui
assim uma relação durável com sua companheira- o matrimônio, que dá
origem à vida familiar. Com essa douta fábula, Vico pretende demonstrar
que as instituições civis, especialmente o matrimônio (a que se segue a
sepultura dos mortos), nascem da religião; que a passagem da vida bestial
para a humana ocorre quando o homem levanta os olhos para o céu.
A esta primeira fase da história da humanidade (considerada separadamente da sua "pré-história") Vico denomina, em vários momentos,
de "estado de natureza". Portanto, para ele - ao contrário de Hobbes —
trata-se de um estado social, embora representado por essa forma
primitiva e natural de associação que é a família. Além disso, não é (ao
contrário de Hobbes e de todos os jusnaturalistas) o estado primitivo da
humanidade, e sim aquele em que o homem, deixando a fase bestial,
inicia a vida em sociedade, embora sob uma forma de vida em comum
que não é ainda o Estado.
Para Vico, depois da autoridade monástica vem a autoridade econômica (de "oikos", que significa "casa"), definida assim:
"... nasceu a autoridade econômica, ou familiar, pela qual os pais são
soberanos em sua família. A liberdade dos filhos depende do arbítrio dos
pais, pelo que estes adquiriram o direito de vender os filhos... Os pais têm
tutela sobre os filhos como sobre sua casa e todas as suas coisas, de que
podem dispor em herança e deixar imperativamente a outrem" (Dell'Unico
Principio, § 102).
A passagem termina assim:
"As famílias constituíram, assim, um primeiro e pequeno esboço dos
governos civis" (ibidem, § 103).
É preciso dizer, ainda, que Vico entende por sociedade familiar, de
acordo aliás com a tradição, não só a família natural, no sentido restrito e
moderno da palavra, mas aquela que abrange os filhos, descendentes e
servos, sujeitos à autoridade do pai e que dele dependem: é o conjunto
dos "clientes", constituído pelos que não deixaram ainda o estado bestial
e que para sobreviver são levados a submeter-se às primeiras famílias
constituídas. Gostaria de chamar atenção para o fato de que ainda uma vez
a exigência de uma autoridade social — neste caso a do pai de família — se
Vico
121
origina em situação objetiva de desigualdade: trata-se não só da desigualdade natural entre pai e filhos, mas da desigualdade social entre duas
classes de homens — os que deixaram o estado bestial, iniciando a vida
humana, e os que nele permaneceram, e pertencem, portanto, a uma raça
inferior, destinada a ser dominada e a servir aos poderosos.
A fase das famílias, como etapa intermediária entre o estado bestial e
o estado civil, é uma das inovações introduzidas por Vico na doutrina
dominante, tanto a que retoma a versão aristotélica (que vê o início da
história da sociedade civil na família) como a da maior parte dos
jusnaturalistas (para quem a história eterna ideal da humanidade se divide
fundamentalmente em duas fases, a natural e a civil). Com essa inovação,
Vico pretende demonstrar que a história da humanidade é muito mais
complexa e variada do que possa parecer a quem não se tenha aprofundado, como ele, na investigação dos "tempos obscuros". Leia-se esta
passagem:
"Somente agora seja lícito refletir aqui, plenamente, que os homens
da Antigüidade paga, nascidos num ambiente de liberdade selvagem,
graças a um longo período de ciclópica disciplina familiar, foram sendo
domesticados em Estados, o que os obrigava a vi ver juntos de modo civil,
obedecendo naturalmente às leis" (La Scienza Nuova Seconda).
A passagem da fase das famílias à primeira forma de organização
estatal, que é a república aristocrática, se deve à rebelião dos escravos.
Voltaremos mais tarde a este ponto. Com base no princípio de que "é
natural que o servo deseje ardentemente escapar da servidão", Vico
explica por que "os fâmulos, obrigados a viver permanentemente nesse
estado servil, com o correr do tempo deveriam aborrecer-se", amotinando-se. A revolta dos servos obriga os chefes de família a se unirem para
se defender, e conservar seu domínio: a união dos chefes de família
representa a primeira forma de Estado, que, como se queria demonstrar, é
uma república aristocrática, enquanto união de pais, num certo sentido
paritária.
Com a primeira forma de Estado se origina, depois da autoridade
monástica e da econômica, aquela forma mais complexa e completa de
autoridade que Vico denomina de "autoridade civil". A república
aristocrática é, portanto, a primeira forma histórica de autoridade civil.
Nela, a condição de desigualdade que justifica o domínio de uma pane
sobre outra não é mais a que separa os patres dos famuli, mas a que divide os
patrícios dos plebeus - isto é, os que gozam de direitos privados e públicos
e os que não têm um estado jurídico definido. A passagem da república
aristocrática à popular ocorre pelo mesmo motivo que explica a passagem
da fase das famílias isoladas à das famílias unidas na forma primitiva de
república: a revolta dos que estão sujeitos contra os que detêm o poder
para sua vantagem exclusiva - a luta do oprimido pelo reconhecimento
dos seus direitos (a luta de classes, dir-se-ia hoje). Quando essa luta
termina, isto é, quando os plebeus alcançam em primeiro lugar o direito
de propriedade, depois o direito às núpcias solenes e legítimas ("connubia
patrum"), por fim os direitos políticos (que Vico faz coincidir com a lex
Publilia, de 416 a.C, com a qual "a república romana reconheceu sua
122
A Teoria das Formas de Governo
transformação, de aristocrática em popular"), dá-se passagem da primeira para a segunda forma de república.
O fim da república popular, e a passagem à terceira forma de Estado -o
principado, ou monarquia - ocorre graças a razões não diversas das
apontadas pelos autores clássicos para explicar a morte natural de todas as
democracias, pela degeneração da liberdade em licenciosidade e do antagonismo criativo na contenda destrutiva das facções, com a guerra civil.
Para Vico, o principado surge não contra as liberdades populares, mas
para protegê-las do faccionismo, para defender o povo - poder-se-ia dizer contra si mesmo. No elogio de Vico à forma monárquica (elogio válido
mesmo para a sua época), deve-se recolher a idéia de que o reino não é
uma forma alternativa de Estado, com relação à república popular- assim
como esta é de fato uma forma alternativa da república aristocrática - mas é
na verdade a própria república popular protegida contra seus males; é o
governo popular levado à perfeição, quase imunizado contra a degeneração fácil e fatal. Em outras palavras, dir-se-ia que enquanto a república
aristocrática e a popular são antitéticas, a monarquia é uma continuação
do governo popular.
Essa diversidade de planos em que se colocam as três formas de
Estado é confirmada, aliás, por uma outra representação do curso
histórico da humanidade, que Vico enuncia baseando-se numa tradição
egípcia. Refiro-me à divisão da história em era dos deuses, dos heróis e
dos homens. À era dos deuses corresponde o Estado das famílias,
caracterizado pelo surgimento do sentido religioso e pela subordinação
reverente do homem primitivo, mal desperto do sono da animalidade,
aos sinais da divindade. À era dos heróis corresponde a fase das repúblicas
aristocráticas, que Vico chama também de "sociedades heróicas", porque
são dominadas por homens fortes, rudes, violentos como seus súditos- os
verdadeiros fundadores dos primeiros Estados, responsáveis genuínos
pelo grande salto do estado de natureza para o estado civil. À era dos
homens correspondem tanto a república popular como a monarquia. De
onde se vê que, se a república aristocrática constitui por si só um gênero, a
república popular e a monarquia são duas espécies do mesmo gênero.
Essa conclusão não se modificará se considerarmos outra classificação dos tempos históricos, apresentada por Vico com base na distinção
(que também é clássica) entre as três faculdades da alma - a percepção, a
fantasia e a razão: a república aristocrática pertence à era em que prevalece
a fantasia, mas tanto a república popular como a monárquica se relacionam
com a era da razão, na qual o homem atingiu o ponto mais alto da sua
humanidade. Finalmente, se dividirmos toda a história da humanidade
em duas grandes fases — a barbárie e a civilização -, as sociedades heróicas
pertencerão à primeira, e a república popular e a monarquia representarão o momento em que o homem ingressou na civilização. Vale
observar que, adotada uma ou outra dessas divisões, a república
aristocrática pertencerá sempre a uma categoria distinta daquela em que
se situam a república popular e a monarquia.
Observe-se ainda que a partição tríplice da história não coincide com
a tripartição das autoridades - monástica, econômica e civil - a que já nos
Vico
123
referimos. Trata-se, na verdade, de duas classificações diferentes do
tempo histórico. A tripartição das autoridades compreende todos os cinco
momentos do desenvolvimento histórico - a fase bestial, a fase das
famílias, a república aristocrática, a república popular, a monarquia -,
divindo-as assim: fase bestial (autoridade monástica); fase das famílias
(autoridade econômica); as três formas de Estado (autoridade civil). A
repartição tríplice da história compreende apenas quatro dos cincos
momentos, deixando de fora a fase bestial. A divisão que propõe é a
seguinte: fase das famílias (era dos deuses), república aristocrática (era dos
heróis), república popular e monarquia (era dos homens).
Creio que não há melhor modo de resumir tudo o que disse do que
citar uma passagem sintética de La Scienza Nuova Seconda, intitulada: "Três
Espécies de Governos":
"Os primeiros (governos) foram 'divinos' - que os gregos chamavam
de 'teocráticos' - nos quais os homens atribuíam todas as ordens aos
deuses; foi a era dos oráculos, a mais antiga de todas. Os segundos foram
os 'governos heróicos', ou 'aristocráticos', o que quer dizer, 'governos dos
melhores', no sentido de 'os mais poderoso'... Nos quais, como característica da sua natureza mais nobre, tida como de origem divina (como
acima se disse), todos os privilégios civis se restringiam às ordens
prevalecentes desses mesmos heróis, só se permitindo aos plebeus,
reputados de origem animal, o gozo da vida e da liberdade natural. Os
terceiros são os 'governos humanos', nos quais, devido à homogeneidade
da sua natureza inteligente, que é a própria natureza humana, as leis
tratam igualmente a todos, desde que nascidos livres nas suas cidades; ou
são 'populares', quando todos (ou a maioria) constituem as forças da
cidade, senhores da liberdade popular, ou 'monárquicos', nos quais os
monarcas tratam todos os súditos igualmente com suas leis e, sendo os
únicos a ter em suas mãos a força das armas, ocupam somente eles uma
posição política especial".
Creio que será útil também reproduzir num quadro todas as
categorias definidas até aqui, com a respectiva partição. Na coluna central
indico os cinco momentos do curso histórico; à esquerda, os agrupamentos binários; à direita, os ternários:
Barbárie
fase
préestatal
fase dos
Estados
Civilização
pré-história fase bestial
história
autoridade
monástica
fase
autoridade
das famílias econômica
era
dos deuses
república
aristocrática
era dos heróis
república
popular
monarquia
autoridade
civil
era dos
homens
124
A Teoria das Formas de Governo
Não se pode concluir um capítulo sobre a teoria de Vico sem tentar
compará-la com as teorias precedentes. Deter-me-ei especialmente em
dois pontos que me parecem essenciais para distinguir o grande e
temerário empreendimento de Vico dos esforços dos que o precederam:
o sentido do curso histórico e a causa das mudanças. Já observei que uma
filosofia da história se caracteriza pela direção que imprime às mudanças
e pela natureza das causas pelas quais acredita que as mudanças tenham
ocorrido. No que diz respeito ao primeiro ponto, pode-se distinguir dois
modelos - o do sentido progressivo (do bom para o melhor) e o do sentido
regressivo (do mau para o pior). Outras concepções, que não nos
interessam aqui, são as de que a história não tem uma direção (movendose em todos os sentidos sem razão plausível) e de que não se move (é
estática, sempre igual a si mesma).
Com respeito à direção da história, a visão de Vico se distingue das
filosofias da história dos antigos por ser progressiva. O exemplo clássico
de uma concepção regressiva, oposta à de Vico, é a platônica, segundo a
qual a passagem de uma constituição a outra ocorre por degenerações
sucessivas, com a conseqüência de que cada constituição é pior do que a
precedente. Contudo, mesmo na concepção aristotélica, e na de Políbio,
retomada por Maquiavel, embora o curso das constituições siga uma linha
interrompida, e não contínua, é em última instância sempre no sentido da
degradação paulatina. Na concepção de Vico acontece o contrário: o
homem se eleva gradualmente do estado bestial até a melhor forma de
governo. Consideremos só as três formas clássicas — monarquia, aristocracia, democracia. Até aqui encontramos autores que, tendo feito dessas
formas um uso histórico, as dispuseram em ordem decrescente, partindo
da melhor para chegar à pior. Vico faz o contrário: parte da pior (a
república aristocrática, que ainda não pertence ao momento da razão) e
chega à melhor — a que considera melhor, mesmo para a sua época.
Portanto, a concepção histórica de Vico se inscreve perfeitamente na
história das teorias do progresso, que tem início com a concepção cristã e
prossegue com a visão - primeiro humanista, depois iluminista - que
seculariza a concepção cristã sem renegá-la.
O problema dos diversos esquemas conceituais com que os filósofos
têm refletido sobre a história da humanidade é muito interessante, mas
sério demais para ser discutido aqui. Limito-me, portanto, a indicar ura
livro estimulante sobre o tema, Significação e Fim da História, de K. Lõwith.
Deixaremos incompleta nossa descrição da visão histórica de Vico se
não respondermos também a esta indagação: que acontece quando o
curso da história se esgota, no caso, com a adoção da forma de Estado
monárquica? Há pelo menos três respostas possíveis: a história termina,
progride rumo a outras formas não-previsíveis, retorna ao ponto de
partida. Esta última é a solução dada por Vico: uma vez completado o
primeiro "curso", a humanidade ingressa numa fase de decadência tão
grave que precisa recomeçar um novo ciclo. Depois do "corso" vem o
"ricorso", o que significa que a concepção de Vico é ao mesmo tempo
"progressiva" e "cíclica". De um lado, é progressiva e difere assim da
concepção dos antigos; de outro, enquanto cíclica, continua a tradição,
Vico
125
distinguindo-se das teorias do progresso indefinido - isto é, contínuo, sem
regresso -, próprias dos modernos.
É preciso dizer também que o tema da decadência e do ricorso foi
sugerido a Vico pela própria história de Roma: o fim do império romano
aparece a Vico como uma nova era, que ele estuda num livro da sua obra
mais importante; é a idade medieval, considerada como "retorno da
barbárie", ou "segundabarbárie", comparável à "primeira barbárie" que
deu origem ao ciclo inicial, esgotado com a decadência do Estado romano
e as invasões bárbaras. Na idade medieval, a humanidade retorna à fase
das famílias, passa pela etapa das repúblicas aristocráticas (que Vico diz
estarem desaparecendo, dando Gênova, Veneza, Luca e Ragusa como
exemplos) e culmina nas repúblicas populares (que exemplifica com os
Países Baixos e a Suíça) e sobretudo nas monarquias (não se deve esquecer
que ele próprio era súdito de uma monarquia) da sua época. Vico
contempla assim o segundo corso - ou primeiro ricorso - e se detém aí.
Permanece de pé o problema das causas dessas mudanças, das
passagens de fase para fase no curso da história, e da passagem de um corso
para o sucessivo ricorso. Com exceção da passagem da fase bestial para a
das famílias, cuja causa é externa (o trovão e o raio dejúpiter), as causas de
todas as outras passagens são internas - a revolta dos servos (na passagem
para a fase das repúblicas aristocráticas), a luta dos plebeus pelo
reconhecimento dos seus direitos e pela igualdade jurídica com os
patrícios (na passagem para a república popular), as discórdias e a guerra
civil (na passagem para a monarquia). Há uma certa semelhança entre as
causas das duas primeiras passagens, embora as conseqüências sejam
diferentes: no primeiro caso, a revolta dos oprimidos não leva a uma
etapa na qual os oprimidos da véspera se tornem os novos dominadores,
mas, ao contrário, ao reforço do domínio dos antigos senhores, que se
aliam entre si para conservar seu domínio (um exemplo notável da
heterogênese dos fins!). No segundo caso, a revolta dos oprimidos
provoca a instituição de um Estado genuinamente novo, a república
popular, que altera em substância a velha relação de forças. Mas é
importante notar que as duas mudanças são interpretadas como movimentos de progresso histórico (não de regresso). Isso significa que, para
Vico, a luta, o antagonismo, o conflito não devem ser considerados
fatores destrutivos, mas sim momentos necessários para o avanço da
sociedade. Já vimos que Maquiavel aflora a noção de que a luta de classes
entre patrícios e plebeus foi um dos motivos da manutenção da liberdade
em Roma. Continuando essa lição, Vico exprime uma idéia antagonística
da história, a concepção de que o momento de aparência negativa- a luta
entre partidos adversos — tem um resultado positivo: a instituição de uma
forma de convivência humana superior à precedente. Embora com
alguma cautela, poder-se-ia falar de uma concepção dialética da história,
segundo a qual o curso histórico procede por meio de afirmações e
negações, em que estas são igualmente necessárias. Mesmo na passagem
da república popular para a monarquia, pode-se dizer que do mal nasce o
bem, do facciosismo e da guerra civil se origina a forma mais elevada de
organização política, ainda que os partidos antagônicos não sejam mais
126
A Teoria das Formas de Governo
classes em conflito, mas pólos antagônicos dentro do mesmo partido
dominante.
Não se pode dizer o mesmo, no entanto, a respeito da causa da
mudança de todo o curso, isto é, da passagem do corso ao ricorso. Vejamos,
antes, a página esplêndida em que Vico descreve a passagem da fase
extrema da civilização à "segunda barbárie":
"Mas, quando os povos se corrompem nessa última moléstia política,
nem aceitando um monarca nascido no próprio país, nem sendo
conquistados e conservados do exterior por melhores nações, a providência lhes dá um remédio fortíssimo para seu mal extremo:... o
facciosismo obstinado e guerras civis desesperadas transformam as
cidades em selvas, e as selvas em covis de homens; assim, 'depois de longos
séculos de barbárie', enferrujam-se as agudezas dos engenhos maléficos,
que a 'barbárie das idéias' tinha tornado mais selvagens do que a
primeira barbárie, só dos sentidos" (La Scienza Nuova Seconda; ênfase
acrescentada).
Nessa passagem as lutas intestinas também têm importância crucial.
A diferença com respeito às passagens precedentes é a seguinte: as
mesmas causas não geram mais os mesmos efeitos - quer dizer, uma
mudança dentro do ciclo histórico. A conseqüência é ainda mais
perturbadora: passa-se de um ciclo a outro, do corso ao ricorso. Qual é o
elemento distintivo: deve-se procurá-lo na expressão "barbárie das
idéias" ("barbárie delia riflessione"). Que significa? É a razão que, desvinculando-se de uma concepção providencialista da história, pretende
contar só consigo mesma. Condenando a "barbárie das idéias", acusando-a de constituir a causa principal da decadência das nações, Vico acusa a
razão libertina e, por antecipação, a razão iluminista - que conduz sua
potência inquisitiva até as últimas conseqüências, dessacralizando a
natureza e a história, provocando o regresso àquela fase original em que o
homem, depois de perder o sentido do divino e o temor de Deus, se põe a
errar outra vez pela selva, como um animal.
Em conclusão, seria possível afirmar que, nas passagens parciais, do
mal nasce o bem, mas que, na passagem total, do mal nasce o mal,
desmentindo a lei dialética? Sim e não. Sim, porque do mal da razão
excessiva nasce o mal da perda da razão e do retorno ao homem que é
todo sentido, sem razão. Não, porque essa degradação radical da
sociedade que se fez bárbara por excesso de civilização é necessária para
que o homem, retornando à barbárie genuína (a dos sentidos, não a das
idéias) encontre forças que lhe permitam voltar a percorrer a longa estrada
de uma nova civilização. A providência seguramente fará com que essa
estrada supere o caminho precedente, para que o esforço e o sofrimento
da repetição não sejam vãos.
Capítulo X
MONTESQUIEU
A obra mais importante de Montesquieu (1689-1755), L'Esprit des Lois
(O Espirito das Leis), é de 1748 - poucos anos depois da segunda edição de La
Scienza Nuova deVico(1744). Como La Scienza Nuova, O Espírito das Leis éum
livro complexo, que pode ser interpretado de diferentes modos. Não é
uma obra de teoria política, embora contenha uma teoria política, que
será o objeto exclusivo do estudo que faremos aqui. De todas as
interpretações de La Scienza Nuova acentuei especialmente a que a considera
uma filosofia da história: De todas as interpretações de O Espírito das Leis
darei ênfase, considerando os objetivos deste curso, à que o vê como uma
"teoria geral da sociedade". Como Vico, Montesquieu propõe também o
problema de saber se há leis gerais que presidem à formação e ao
desenvolvimento da sociedade humana, de modo geral, e das sociedades,
consideradas em particular. Ao contrário de Vico, porém, Montesquieu
tem uma perspectiva mais ampla: o escopo da erudição sem fim de Vico é
em grande parte o mundo clássico, só marginalmente o mundo medieval
e moderno; com ênfase nos Estados europeus. No horizonte de Montesquieu, contudo, entram - e ocupam posição determinante - os Estados
extra-europeus, tanto que uma categoria fundamental da sua construção
conceituai, o despotismo, foi eleborada sobretudo para explicar a
natureza dos governos que não pertencem ao mundo europeu. A parte,
tanto para Vico como para Montesquieu, está o mundo dos "selvagens",
dos povos primitivos.
Mas a diferença profunda entre os dois autores é outra: a dimensão de
Vico é sobretudo temporal, razão por que apresentei suas idéias principalmente como filosofia da história, embora a custo de reduzir um pouco
seu escopo; a dimensão de Montesquieu é sobretudo espacial ou
geográfica— por isso prefiro defini-la como uma teoria geral da sociedade.
Vico se interessa particularmente pela decifração das leis que orientaram e
continuam a orientar o desenvolvimento histórico da humanidade;
128
A Teoria das Formas de Governo
Montesquieu, sobretudo pela explicação da variedade das sociedades
humanas e seus respectivos governos, não só no tempo mas também no
espaço.
Desde o primeiro capítulo da grande obra de Montesquieu, intitulado "Das Leis em Geral", fica claro que o seu interesse é principalmente a
descoberta das leis que governam o movimento e as formas das
sociedades humanas, para tornar possível a elaboração de uma teoria da
sociedade. Já as primeiras linhas são dedicadas a uma definição das leis:
"No seu significado mais amplo, as leis constituem as relações
necessárias que derivam da natureza das coisas; neste sentido, todos os
seres têm suas próprias leis: a divindade, o mundo material, as inteligências superiores ao homem, os animais, os seres humanos".
A definição não é muito clara ou precisa. No que diz respeito ao nosso
interesse, porém, ela pode levar a pelo menos duas afirmativas: a) todos os
seres do mundo (inclusive Deus) são governados por leis; b) tem-se uma
lei (melhor dito: é possível enunciar uma lei) sempre que há relações
necessárias entre dois seres, de modo que, dado um deles, não pode
deixar de haver também o outro. O exemplo clássico é a relação de
causalidade, a qual nos permite dizer que dois seres físicos constituem um
a causa do outro quando, dado o primeiro, segue-se necessariamente o
segundo.
Dessas duas afirmativas - isto é, a definição de lei como
enunciado de relação necessária entre dois ou mais seres e a constatação
de que todas as coisas são governadas por leis - Montesquieu extrai uma
conseqüência: o mundo não é governado por "cega fatalidade". Tanto
que, depois de expor a teoria que pretende rejeitar, reitera, em favor da
teoria que quer sustentar, a tese inicial sobre a existência das leis, com
estas palavras:
"Há portanto uma razão primitiva, e as leis são as relações entre ela e
os vários seres, bem como as relações destes últimos entre si".
Até este ponto poder-se-ia dizer que Montesquieu pretende considerar o universo do homem como o físico considera o universo natural.
Mas no primeiro as coisas são um pouco mais complexas, porque,
embora a afirmativa possa parecer espantosa, "o mundo da inteligência
está bem longe de ser tão bem governado quanto o mundo físico". Por
quê? Devido à natureza inteligente do homem, que o leva a não observar as
leis da natureza, bem como as que impôs a si mesmo - como veremos
adiante. O fato de que o homem se inclina, pela sua própria natureza, a
desobedecer as leis naturais, tem uma conseqüência que distingue
nitidamente o mundo físico do humano: para assegurar o respeito às leis
naturais, os homens foram obrigados a dar-se outras leis - as leis positivas,
promulgadas em todas as sociedades pela autoridade à qual incumbe
manter a coesão do grupo. Acontece assim que, enquanto o mundo da
natureza é dirigido exclusivamente pelas leis naturais, sendo portanto
mais fácil de apreender, e de analisar, nos seus movimentos mais regulares
uniformes, o universo do homem é influenciado pela lei natural, comum
a todos, e por leis posidvas - que, devendo adaptar-se às diferentes
modalidades de organização social, divergem de povo para povo. Por isso
Montesquieu
129
o estudo do universo humano é muito mais complicado, o que pode
explicar por que as ciências físicas têm progredido mais do que as sociais.
Os dois planos distintos em que se situam os dois tipos de lei ficam
evidentes nesta passagem:
"De modo geral, a lei é a razão humana enquanto governa todos os
povos da terra; e as leis políticas e civis de todas as nações não devem ser
senão os casos particulares em que se aplica essa razão humana".
A relação entre a lei natural e as leis positivas é a que existe entre um
princípio geral e suas aplicações práticas. A lei natural se limita a enunciar
um princípio, como, por exemplo, aquele segundo o qual as promessas
devem ser mantidas; as leis positivas estabelecem a cada momento - e de
forma diversa de acordo com as diferentes sociedades - "como" devem
ser feitas as promessas para que sejam válidas as sanções impostas aos que
nào as mantiverem, para tornar mais provável sua execução, etc.
Montesquieu distingue três espécies de leis positivas: as que regulam as
relações entre grupos independentes (por exemplo, entre os Estados), as
que regulam as relações entre governantes e governados dentro de um
grupo e as que regulam o relacionamento dos governados entre si.
Constituem, respectivamente, o direito das gentes (direito internacional),
o direito político (direito público) e o direito civil (que ainda hoje
conhecemos por esse nome).
Uma vez constatada a distinção entre uma lei natural de caráter
universal e as leis positivas particulares, o estudo do universo humano
exige, ao contrário do estudo do universo natural, o conhecimento mais
amplo possível das leis positivas, isto é, das leis que mudam com o tempo
e o lugar. Só se pode elaborar uma teoria geral da sociedade (como a
define O Espírito das Leis) com base no estudo das sociedades particulares.
O objetivo de Montesquieu é construir uma teoria geral da sociedade a
partir da consideração do maior número possível de sociedades históricas. Por que razão tantas sociedades diferentes, cada uma com seus ritos,
costumes, leis diversas, se as leis naturais são universais? A intenção
fundamental de O Espírito das Leis é justamente explicar essa variedade. O
tema da multiplicidade das leis - que faz com que o que é justo de um lado
dos Alpes seja injusto do outro lado - é tão antigo quanto a reflexão sobre
as sociedades humanas. É um desses temas que podem receber as
respostas mais diversas, cada uma das quais caracterizando uma determinada
concepção da natureza e do homem. Pode-se responder que essa
variedade é incompreensível para a mente do homem porque é desejada
por uma mente superior, que na sua infinita sabedoria faz convergirem
todas as formas de civilização para uma misteriosa unidade. Pode-se achar
também que não há qualquer explicação racional para tal variedade; que a
história, com suas estranhezas e aberrações, é o fruto da loucura do
homem, ou então do puro acaso. Mas a solução proposta por Montesquieu é diferente: a multiplicidade das leis tem uma razão, cujas raízes
podem ser encontradas, desde que se apliquem ao universo humano
métodos de estudo tão rigorosos quanto o dos físicos, e desde que se adote
o mesmo espírito de observação. Resumindo as conclusões a que chega
pelo exame de enorme quantidade de dados, postos à sua disposição pela
130
A Teoria das Formas de Governo
filosofia política, as narrativas históricas e os relatos de viajantes, afirma
que as causas da variedade das leis são de três categorias: "físicas" ou
"naturais", como o clima, a maior ou menor fertilidade do solo;
"econômico-sociais" como o modo de subsistência (distinguindo-se, sob
este prisma, os povos selvagens, caçadores; bárbaros, pastores; civis;
agricultores e depois comerciantes); e "espirituais", como a religião.
Após a apresentação sumária do significado da obra de Montesquieu,
cabe notar a posição central que nela ocupa nosso tema - as formas de
governo. Para Montesquieu, as categorias gerais que permitem ordenar
sistematicamente as várias formas históricas de sociedade correspondem
aos diversos tipos de organização política. Aqui também a tipologia das
formas de governo assume uma importância decisiva para a compreensão
(o uso sistemático), a avaliação (o uso prescritivo) e a interpretação
histórica (o uso historiográfico) da fenomenologia social. O que muda em
Montesquieu é o conteúdo da tipologia, que não corresponde mais nem à
classificação tradicional (a tripartição, com base no "quem" e no "como")
nem à tipologia maquiaveliana (a biparti ção em principados e repúblicas).
O Livro II tem início com um capítulo intitulado "Da Natureza dos Três
Diferentes Tipos de Governo", que convém reproduzir:
"Há três espécies de governo: o 'republicano', o 'monárquico' e o
'despótico'... Estou pressupondo três definições- ou melhor, três fatos:
o governo republicano é aquele no qual todo o povo, ou pelo menos uma
parte dele, detém o poder supremo; o monárquico é aquele em que
governa uma só pessoa, de acordo com leis fixas e estabelecidas; no
governo despótico, um só arrasta tudo e a todos com sua vontade e
caprichos, sem leis ou freios".
A diferença entre esta tipologia e as anteriores salta aos olhos. As
primeiras duas formas correspondem às duas formas de Maquiavel: a
"república" compreende aqui, com efeito, tanto a aristocracia quanto a
democracia, conforme o poder seja exercido por "todo o povo" ou só
uma parte. É o que Montesquieu afirma, logo em seguida:
"Quando, na república, é o povo inteiro que dispõe do poder
supremo, tem-se uma democracia. Quando o poder supremo se encontra
nas mãos de uma pane do povo, uma aristocracia".
O que significa que também para Montesquieu a diferença fundamental com respeito ao poder soberano é identificada no governo de um
só e no governo de mais de uma pessoa (não importa se os governantes são
muitos ou poucos). Mas a tipologia de Montesquieu difere da de
Maquiavel por ser tríplice, como a dos antigos. Com uma peculiaridade:
chega à tripartição pelo acréscimo de uma forma de governo tradicionalmente considerada forma específica de monarquia (Bodin também
pensava assim, como vimos), quer dizer, do despotismo. Se considerarmos mais de perto a definição dada ao despotismo por Montesquieu, na
passagem que reproduzimos, perceberemos que ele o define nos mesmos
termos com que se vinha definindo tradicionalmente a tirania, em
especial a tirania ex parte exercita - isto é, como governo de uma só pessoa,
"sem leis ou freios". Em suma, a terceira forma de governo de
Montesquieu corresponde, na teoria clássica, a uma das formas más ou
Montesquieu
131
corrompidas. A conseqüência é que a tipologia que estou descrevendo é
bastante anômala com respeito a todas as tipologias que examinamos até
aqui: a anomalia consiste no fato de que mistura dois critérios diferentes o dos sujeitos do poder soberano, que permite distinguir a monarquia da
república, e o do modo de governar, que leva à distinção entre monarquia
e despotismo.
Em outras palavras, Montesquieu utiliza simultaneamente os dois
critérios tradicionais - um deles para caracterizar a primeira forma com
relação à segunda, o outro para distinguir a segunda da terceira. Além de
anômala, a tipologia de O Espírito das Leis pode dar a impressão de
incompleta: de fato, apresentando o despotismo como única forma
degenerada, deixa entender que não há formas corrompidas de república.
Até aqui vimos tipologias que ou negam a distinção entre formas boas e
más (como as de Bodin e Hobbes) ou duplicam todas as formas boas (e
não só a monarquia) nas respectivas formas más. Montesquieu, porém,
acolhe o critério axiológico, mas só o aplica a uma das formas. Precisaremos deduzir que a república - democrática ou aristocrática - não é
susceptível de degeneração? Vou citar pelo menos um trecho em que
Montesquieu parece contradizer-se, no Livro VIII, ao tratar da "corrupção" dos princípios que regem os governos. Fala da corrupção da
democracia e da aristocracia e, a propósito da segunda, afirma:
"Como as democracias se arruinam quando o povo não reconhece a
autoridade do senado, dos magistrados e juizes, as monarquias se
corrompem quando são retirados os privilégios das cidades e as prerrogativas das ordens. No primeiro caso, chega-se ao 'despotismo de
todos'; no outro, ao despotismo de um só".
Note-se a expressão "despotismo de todos", que se contrapõe a
"despotismo de um só". Trata-se de expressão imprópria: se o governo
democrático também se pode corromper (denomine-se ou não esta forma
corrupta de "despotismo"), como no caso do governo monárquico, a
tripartição principal das formas de governo (em que a corrupção da
monarquia é a única forma degenerada) é de fato incompleta. Não
abrange toda a variedade dos governos instituídos pelos homens no longo
curso da sua história.
Ao examinar cada teoria das formas de governo tive sempre a
preocupação de demonstrar o modo mais ou menos direto como se
prendia à realidade histórica considerada pelo seu proponente. Procurei
mostrar que essas teorias nunca são especulações puramente livrescas. O
mesmo se pode dizer da teoria de Montesquieu, cuja aparente anomalia e
caráter incompleto só se explicam quando a consideramos como interpretação da história do seu tempo, e da história do passado de acordo com
uma interpretação pessoal. Já comentei que a obra de Montesquieu se
distingue da de Vico pela enorme importância que nela tem o mundo
extra-europeu, especialmente o asiático. Ora, a categoria do despotismo,
elevada pela primeira vez ao nível de uma das formas típicas de governo
(quando até então o despotismo era considerado um tipo de monarquia),
torna-se essencial para a compreensão do mundo oriental. É como se
disséssemos que, uma vez admitido o mundo oriental no nosso campo de
132
A Teoria das Formas de Governo
observação, não se pode mais dispensar a categoria do despotismo para
elaborar uma tipologia correta, e completa, das formas de governo. É tão
profunda a convicção de Montesquieu de que o mundo extra-europeu,
especialmente o asiático, não pode ser abrangido pelas categorias
históricas utilizadas há milênios para compreender o mundo europeu
que a China é apresentada como exemplo típico de despotismo, embora
os iluministas a exaltassem como modelo de bom governo (interpretando-a não como governo "despótico", ou "senhorial", mas sim
"paternal"). Montesquieu dedica um capítulo (cap. XXI do Livro VIII) a
rebater "nossos missionários, que nos falam do vasto império chinês
como um governo admirável", concluindo-o com as seguintes palavras:
"A China é, portanto, um Estado despótico, baseado no princípio do
medo. É possível que sob as primeiras dinastias, quando o império ainda
não se estendera tanto, aquele governo se afastasse por vezes desse
espírito. Hoje, porém, não é mais assim".
A tipologia de Montesquieu se torna mais clara se a interpretamos
como reiteração da classificação tradicional, pelo menos da posterior a
Maquiavel, que baseando-se nas transformações ocorridas na sociedade
européia, classifica todos os Estados como repúblicas ou principados,
com um acréscimo: a categoria que serve para incluir no esquema geral
das formas de governo o mundo oriental. Deve-se acrescentar que
Montesquieu podia ter confirmado sua tipologia com base na história
passada, especialmente a de Roma, que havia estudado - como todos os
grandes escritores políticos, depois de Políbio -, especialmente num livro
anterior a O Espírito das Leis, intitulado Considérations sur les Causes de Ia
Grandeur des Romains et de leur Décadence (1733).
A história de Roma podia ser dividida nos seguintes períodos: a
monarquia inicial, a república (primeiro democrática, depois aristocrática), o despotismo do período imperial. Note-se a diferença com respeito à
interpretação de Vico, que julga de forma positiva o império romano (pelo
menos nos seus primeiros anos) por considerar o principado como
correspondente ao governo monárquico, que para ele é a melhor forma
de governo.
Em comparação com as tipologias precedentes, a de Montesquieu
apresenta outra novidade: está formulada em dois planos diversos, o da
"natureza" dos governos e o dos "princípios" que os orientam. As
definições dos três governos, dadas até agora, correspondem à sua
natureza; mas eles podem ser caracterizados também com base nos
respectivos princípios. Montesquieu explica assim a diferença entre
natureza e princípio:
"A diferença entre a natureza do governo e seu princípio é que a
natureza o faz ser o que é, e o princípio o faz agir. A primeira corresponde
a sua estrutura particular; o segundo, às paixões humanas que o fazem
mover-se".
A "natureza" de um governo deriva da sua "estrutura", isto é, da
constituição que regula de certo modo - diferente em cada forma "quem" governa, e "como". Mas as formas de governo podem ser
caracterizadas também, de acordo com Montesquieu, pela paixão fun-
Montesquieu
133
damental que induz os súditos a agir de conformidade com as leis
estabelecidas, permitindo assim a durabilidade de todo ordenamento
político. Esta "paixão" fundamental, que Montesquieu chama muitas
vezes de "mola", necessária para que todo governo possa desenvolver
adequadamente suas tarefas, é o "princípio".
Esta tese da diversidade dos princípios que inspiram os diversos
ordenamentos políticos também não é nova; lembra a tipologia platônica,
que se fundamenta em parte nas diversas "paixões" que imprimem um
caráter específico às diferentes classes dirigentes, representadas pelo
homem timocrático, o oligárquico, etc. Usando o termo "princípio",
como Montesquieu, podemos dizer que, para Platão, o princípio da
timocracia é a honra, o da oligarquia a riqueza, o da democracia a
liberdade, o da tirania a violência. Quais são os três princípios de
Montesquieu? São os seguintes: a virtude cívica, para a república; a honra,
para a monarquia; o medo, para o despotismo. Um só - a honra - é
comum a Platão e a Montesquieu. Mas se observarmos com cuidado as
duas tipologias, veremos que a platônica é feita ex parte pnncipis, a de
Montesquieu, ex parte populi - como se vê perfeitamente no caso da tirania
ou despotismo, caracterizado por Platão com base na "paixão" do tirano,
por Montesquieu na "paixão" dos súditos.
Por "virtude" Montesquieu quer dizer não só a virtude moral (uma
disposição meramente individual), mas a atitude que vincula intimamente
o indivíduo a tudo de que participa. Repetidamente a caracteriza como
"amor da pátria", como na passagem seguinte:
"O temor dos governos despóticos nasce por si só, entre ameaças e
castigos; nas monarquias, as paixões favorecem a honra, e são por ela
favorecidas; mas a virtude política é uma renúncia a si mesmo, sempre
penosa. Podemos defini-la como o amor das leis e da pátria - amor que,
exigindo a preferência contínua do interesse público, em oposição ao
privado, produz todas as virtudes particulares, as quais não são mais do
que essa preferência".
E mais ainda:
"A virtude republicana é coisa extremamente simples: é o amor pela
república - um sentimento, não a seqüela de percepções; pode ser
experimentada por todos os cidadãos, do primeiro ao último. Ao receber,
uma vez para sempre, boas máximas, o povo as segue por mais tempo do
que aqueles que conhecemos como homens de bons costumes. Raramente a corrupção se origina no povo. Muitas vezes a limitação das suas
luzes faz com que se apegue mais à ordem estabelecida. O amor da pátria
leva aos bons costumes, e estes ao amor da pátria".
Este modo de definir a virtude provocou, desde a época de Montesquieu, muitas objeções, começando com as de Voltaire, para quem a
virtude caracterizava os governos monárquicos, e a honra, os republicanos. De modo geral perguntava-se: a virtude não era necessária a todas as
formas de governo? Montesquieu responde com a advertência inscrita nas
edições sucessivas da sua obra:
"Para compreender os quatro primeiros livros desta obra, é preciso
levar em conta: 1) que o que chamo de virtude, nas repúblicas, não é senão
134
A Teoria das Formas de Governo
o amor da pátria, isto é, da igualdade - não uma virtude moral, ou cristã,
mas sim política: a mola que impulsiona o governo republicano, como a
honra é a mola que impulsiona a monarquia. Chamei portanto de virtude
política o amor da pátria e da igualdade".
Ao precisar a noção de virtude como mola das repúblicas, Montesquieu recorre também, como vimos, ao conceito de igualdade. É um
conceito que deve ser salientado porque serve para distinguir a república
(isto é, a república democrática) de outras formas de governo, fundamentadas na desigualdade irredutível entre governantes e governados e na
irredutível desigualdade entre os próprios governados. É um conceito
importante, que condiciona o exercício da virtude enquanto amor da
pátria. Ama-se a pátria como algo que é de todos: ela é percebida como
pertencente a todos, que se consideram iguais entre si.
Menos fácil de compreender e de definir é o conceito de honra (que
Montesquieu não define). Entre as várias passagens a este respeito, a mais
clara me parece a seguinte:
"Conforme já dissemos, o governo monárquico pressupõe a existência de estratos, de posições de preeminência social, e também de uma
nobreza original. Pela sua natureza, a honra exige distinções e preferências: ela se situa, portanto, num governo que é também assim. A ambição
é perigosa numa república, mas tem bons efeitos numa monarquia; dálhe vida e tem a vantagem de não lhe trazer perigo, porque pode
facilmente ser reprimida. Pode-se-ia dizer que o mesmo acontece com o
sistema do universo, onde há uma força que afasta do centro incessantemente todos os corpos, enquanto a gravidade os reconduz ao centro. A
honra faz com que se movimentem todas as partes do corpo político,
ligando-os com sua própria ação; por outro lado, todos se dirigem para o
bem comum, acreditando orientar-se pelos interesses particulares".
Por "honra" se entende aquele sentimento que nos leva a executar
uma boa ação exclusivamente pelo desejo de ter- ou de manter- uma boa
reputação. A virtude republicana nos faz agir tendo em vista o bem
comum, mas a honra é uma "mola" individual (como o interesse) que
serve contudo ao bem comum, independentemente da vontade individual,
pois leva ao cumprimento do dever. O essencial é que haja em todas as
sociedades "molas", ou "paixões", que levem seus membros a cumprir
os respectivos deveres — antes de mais nada o de obedecer às leis. Ao
contrário da virtude republicana, que só se pode explicar numa sociedade
de iguais, a honra pressupõe uma sociedade de desiguais, baseada na
diferenciação hierárquica, na presença de ordens ou classes privilegiadas,
às quais são confiados com exclusividade os cargos de governo, e que
retêm o poder público nas suas várias expressões. O sentimento da honra
não é de todos, nem para todos: é a "mola" daqueles a quem o soberano
confia a direção do Estado, e que por isso constituem grupos limitados, e
privilegiados.
A "mola" do despotismo - o medo - não requer qualquer comentário
especial. Bastará uma citação:
"Como a virtude na república, e a honra na monarquia, no governo
Montesquieu
135
despótico é preciso o medo: nele a virtude é desnecessária, e a honra seria
perigosa".
Aproveito porém a oportunidade e chamo a atenção para a importância histórica que terá o princípio do medo como integrante da categoria do
despotismo, meio século depois da publicação da obra de Montesquieu.
No fim daquele século, pela primeira vez na história do despotismo, uma
ditadura - a dos jacobinos - será chamada de "regime de terror". Daí
em diante, ditadura revolucionária e terror serão considerados como o
resultado conjunto do mesmo estado de necessidade. Para Saint-Just e
Robes-pierre, o terror é necessário para instaurar o reino da virtude uma outra categoria de Montesquieu, a república democrática.
Robespierre dirá, num discurso célebre, que "a mola do governo popular
na revolução é ao mesmo tempo a "virtude" e o "terror": a virtude, sem
a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente".
Até aqui considerei a tipologia de O Espirito das Leis principalmente no
seu aspecto sistemático e em parte historiografia). Que dizer, porém, do
seu uso prescritivo? Em outras palavras, qual o ideal político de Montesquieu?
Ao responder, entrarei na parte historicamente mais importante da sua
obra. Não há dúvida de que a preferência de Montesquieu se inclina para
a monarquia. Contudo, a monarquia para ele é uma forma de governo
que se distingue mais ainda do despotismo do que da república, porque o
poder do monarca é controlado pelos chamados corpos intermediários.
No capítulo intitulado "A Excelência do Governo Monárquico", ele diz:
"O governo monárquico apresenta uma grande vantagem com
relação ao despótico. Como sua natureza exige que o príncipe tenha
debaixo de si várias ordens relativas à constituição, o Estado é mais
resistente, a constituição mais inabalável, a pessoa dos governantes mais
segura".
Essa comparação entre despotismo e monarquia apresenta a monarquia como a forma de governo em que há uma faixa de poderes
intermediários entre os súditos e o soberano: os "contrapoderes", que
impedem o abuso, pelo monarca, da sua própria autoridade. Estes
contrapoderes são corpos privilegiados, que exercem funções estatais e
impossibilitam a concentração do poder público nas mãos de uma só
pessoa, que caracteriza o governo despótico; permitem uma primeira
(mas não única) forma de divisão do poder a "divisão horizontal", que se
contrapõe à "vertical", sobre a qual falaremos mais adiante.
Não é o caso de desenvolver aqui a importância da teoria dos corpos
intermediários para o Estado moderno; basta dizer que ela se contrapõe
não só à teoria do despotismo como à teoria da república enunciada por
Rousseau, para quem, uma vez estabelecida pelo pacto social a vontade
geral, única titular da soberania, deixam de ser admissíveis as "sociedades
parciais", que se interpõem entre os indivíduos e o total social - um ideal
apreciado pelas doutrinas liberais do século XIX, que verão não só no
despotismo tradicional, mas também na ditadura jacobina, um triste
efeito da supressão dos corpos intermediários. Limito-me aqui a acentuar
a importância que essa noção do governo monárquico, caracterizado pela
presença dos corpos intermediários, tem na teoria de Montesquieu
136
A Teoria das Formas de Governo
considerada sob seu aspecto prescritivo, porque introduz na tipologia dos
governos uma figura nova - a do "governo moderado". Leia-se esta
passagem:
"... pareceria que a natureza humana deveria rebelar-se continuamente contra o governo despótico; contudo, malgrado seu amor pela
liberdade, e seu ódio contra a violência, a maior pane dos povos se
submete; o que se pode compreender facilmente. Para formar um
'governo moderado' é necessário reunir as potências, dirigi-las, moderálas, fazê-las atuar; dar lastro a uma, para que possa resistir à outra: uma
obra-prima de legislação que o acaso e a prudência raramente conseguem
realizar".
Como os "governos moderados" podem ser também republicanos,
somos levados a pensar que a tipologia ternária das formas de governo
poderia ser substituída (se se introduzisse o emprego prescritivo) por uma
classificação dupla, era governos moderados e imoderados (ou despóticos). Não faz fé, por outro lado, o título do capítulo X do Livro III, que soa
"Diferenças entre a obediência nos governos moderados e nos governos
despóticos". E, ainda uma vez, que é que faz de um determinado tipo de
organização política um "governo moderado"? O trecho citado é claro: a
distribuição do poder de tal modo que, havendo poderes contrapostos,
nenhum deles tenha condições de atuar arbitrariamente.
Ao lado de uma divisão horizontal do poder há, em Montesquieu,
uma divisão "vertical", que constitui a célebre teoria da separação dos
poderes. De todas as teorias do autor de O Espírito das Leis foi esta seguramente a que teve maior projeção, tanto que as primeiras constituições escritas, a norte-americana de 1776 e a francesa de 1791, são
consideradas suas aplicações. Já a mencionamos na parte final do capítulo
sobre Hobbes. Vale a pena repetir aqui que essa teoria pode ser
considerada como a interpretação moderna da teoria clássica do governo
misto. Há uma unidade de inspiração no governo misto e no "governo
moderado" de Montesquieu: as duas noções derivam da convicção de
que, para evitar o abuso do poder, este deve ser distribuído de modo que o
poder supremo seja conseqüência de um jogo de equilíbrio entre diversos
poderes parciais, e não se concentre nas mãos de uma só pessoa.
Recordem-se as expressões usadas pelo primeiro teórico do governo
misto, Políbio, quando diz que num governo misto "nenhuma das partes
ultrapassa a medida e excede sua competência". Encontraremos expressões análogas em Montesquieu. Porém entre governo misto e governo
moderado há uma diferença com respeito ao modo como é concebido tal
distribuição dos poderes. O governo misto deriva de uma recomposição
das três formas clássicas, e portanto de uma distribuição do poder pelas
três partes componentes da sociedade, entre os diversos possíveis
"sujeitos" do poder, em particular entre as duas partes antagônicas - os
ricos e os pobres (patrícios e plebeus). O governo moderado de Montesquieu
deriva, contudo, da dissociação do poder soberano e da sua partição com
base nas três funções fundamentais do Estado - a legislativa, a-executiva e
a judiciária. Essas duas divisões podem coincidir, no caso de que caiba
cada uma das três funções a uma das três partes, mas tal coincidência não é
Montesquieu
137
necessária. Certamente ela não interessa de modo especial a Montesquieu.
Só lhe interessa a divisão dos poderes segundo as funções, não de acordo
com as partes que compõem a sociedade. Ao elogiar (como costumam
fazer os teóricos do governo misto) a república romana, não a elogia por
considerá-la um governo misto, mas porque a considera um governo
moderado, baseado na divisão e no controle recíproco dos poderes:
"As leis de Roma tinham dividido sabiamente o poder público num
grande número de magistraturas, que se sustinham, se freavam e se
temperavam reciprocamente; como elas só tinham um poder limitado,
qualquer cidadão podia exercê-las. E o povo, vendo passar uma sucessão
de ocupantes desses cargos, não se habituava a nenhum deles em
particular" (Considérations sur les Causes de la Grandeur des Romains et de leur
Décadence, cap. XI).
A teoria da separação dos poderes é formulada por Montesquieu no
Livro XI, que trata das leis que formam a liberdade política. Nesse
capítulo, após definir a liberdade como "o direito de fazer tudo o que as leis
permitem" (o que hoje se chamaria de liberdade "negativa"), afirma que:
"A liberdade política se encontra nos governos moderados" e prossegue:
"Mas ela não existe sempre nos Estados moderados: só quando não há
"abuso de poder". Acontece sempre que todos os homens, quando têm
poder, "se inclinam ao seu abuso", até encontrar limites... Para que não
seja possível abusar do poder é necessário que, pela disposição das coisas,
"o poder constitua um freio para o poder" (ênfase acrescentada).
Qual o expediente constitucional que pode permitir a atuação do
princípio segundo o qual "o poder constitui um freio para o poder"? A
resposta de Montesquieu, que tem em mente a constituição inglesa (que
fora inspirada, entre outras, por Locke), é clara: a atribuição das três
funções do Estado a órgãos diferentes:
"Quando na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistrados, o
poder legislativo se junta ao executivo, desaparece a liberdade; pode-se
temer que o monarca ou o senado promulguem leis tirânicas, para aplicálas tiranicamente. Não há liberdade se o poder judiciário não está separado
do legislativo e do executivo. Se houvesse tal união com o legislativo, o
poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, já que o juiz
seria ao mesmo tempo legislador. Se o judiciário se unisse com o executivo,
o juiz poderia ter a força de um opressor. E tudo estaria perdido se a mesma
pessoa, ou o mesmo corpo de nobres, de notáveis, ou de populares,
exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de ordenar a execução das
resoluções públicas e o de julgar os crimes e os conflitos dos cidadãos".
Não me demorarei mais neste tema; os textos reproduzidos são
bastante eloqüentes. Bastará recordar que, na teoria da separação dos
poderes, encontramos a resposta do constitucionalismo moderno ao
perigo recorrente representado pelo despotismo, como aparece com toda
clareza nesta passagem:
"Os príncipes que quiseram transformar-se em tiranos começaram
sempre reunindo na sua pessoa todas as funções públicas".
A importância que Montesquieu atribui à separação dos poderes, que
caracteriza os governos moderados, confirma a tese de que, ao lado da
138
A Teoria das Formas de Governo
tríplice classificação das formas de governo (república, monarquia e
despotismo), que corresponde ao uso descritivo e histórico da tipologia, há
uma outra tipologia, mais simples, relacionada com o uso prescritivo, a
qual distingue os governos em moderados e despóticos (abrangendo estes
últimos não só monarquias mas também repúblicas).
Capítulo XI INTERVALO: O
DESPOTISMO
Considero útil esta pausa porque, depois de chamar atenção para a
importância da categoria do "despotismo", que acompanhamos desde
Aristóteles (como vimos, não há autor que não a leve em consideração),
não podemos deixar de salientar que só na obra de Montesquieu ela se
torna fundamental para a análise das sociedades políticas. Creio que não
há obra política em que os regimes despóticos tenham sido objeto de
tantas observações como O Espírito das Leis, onde são minuciosíssimas. O
despotismo é estudado ali em todos os seus aspectos - das causas naturais,
econômico-sociais e religiosas que o determinam às leis penais, civis, etc,
que o caracterizam. Mas, como a noção do despotismo começa com
Aristóteles, terá interesse saber o que Montesquieu escreveu a propósito
da concepção aristotélica:
"A incerteza de Aristóteles aparece claramente quando trata da
monarquia, da qual reconhece cinco tipos, que não distingue pela forma
da constituição mas por fatos acidentais, como a virtude e os vícios do
príncipe, ou causas externas, como a usurpação ou a sucessão da tirania.
Considera entre as monarquias o império persa e o reino de Esparta. Mas,
quem não se recorda de que o primeiro era um Estado despótico e o
segundo uma república? Por não conhecerem a distribuição dos poderes
no governo de um só, os antigos não podiam ter uma idéia justa da
monarquia".
Embora breve, essa passagem nos faz tocar na novidade introduzida
por Montesquieu: enquanto Aristóteles, acompanhado pela maior parte
dos escritores políticos, mesmo os modernos (como Maquiavel e Bodin),
fez do despotismo uma espécie de gênero "monarquia", Montesquieu
explica, no trecho citado, por que se deve considerar o despotismo uma
forma de governo inteiramente diversa da monarquia, elucidando o
motivo por que na sua tipologia o despotismo aparece pela primeira vez
como forma autônoma, distinta tanto da república como da monarquia.
140
A Teoria das Formas de Governo
O critério de diferenciação é, como se viu no capítulo precedente, a
"distribuição dos poderes", que existe nas monarquias mas não nos
regimes despóticos. Deste modo', a passagem que reproduzimos demonstra mais uma vez a importância que atribuía à separação dos poderes,
instituição que torna o governo "moderado".
Uma prova da amplitude e da autonomia da categoria do despotismo,
no sistema de Montesquieu, pode ser encontrada também na observação
de que ela é descrita em seus vários aspectos - naturais, econômicos,
jurídicos, sociais, religiosos, etc. —, enquanto nos autores precedentes o
critério que caracteriza o despotismo é sobretudo o político, em especial a
qualificação do relacionamento entre governantes e governados como
vínculo unindo senhores e escravos. Na obra de Montesquieu não faltam
referências ao conceito de escravidão, em particular de "escravidão
política", distinguida cuidadosamente da escravidão civil e da doméstica;
por exemplo, quando afirma, a propósito da educação, que nos governos
despóticos "a educação precisa ser servil" (IV, 3), ou, ao falar sobre a
mulher, quando escreve que "nos Estados despóticos as mulheres não
introduzem o luxo, mas são elas mesmas objetos de luxo, vivendo na
condição de extrema escravidão" (VII, 9). Ou ainda, a propósito das leis
que regulam a servidão civil, que "nos países despóticos, onde já existe
um regime de escravidão política, a servidão civil é mais tolerável" (XV, 1).
Mas a escravidão é apenas um dos elementos - e não é sequer o mais
importante - que distinguem o regime despótico. Os outros são o clima
(calor), a natureza do terreno (é mais fácil que se estabeleça um regime
despótico nos países mais férteis), a extensão territorial (o despotismo é
necessário nos Estados muito extensos), a índole ou caráter dos habitantes
(quando são moles e preguiçosos), o tipo de leis (não as leis escritas, mas os
hábitos e costumes transmitidos oralmente), a religião (o governo
moderado se adapta melhor à religião cristã, o governo despótico à
maometana), etc. Leia-se, a propósito, este capítulo de duas linhas,
verdadeiramente lapidar:
"Quando os selvagens da Luisiana querem comer fruta, cortam uma
árvore pelas raízes, para colhê-la. É assim o governo despótico" (V, 13).
O despotismo é relacionado também com o comportamento na
esfera econômica, algumas páginas adiante, onde Montesquieu sustenta
que nesses Estados "só se constroem casas que durem uma vida; não se
escavam fossos nem se plantam árvores; tira-se tudo da terra, sem nada lhe
restituir. Tudo é inculto e deserto".
Montesquieu baseia essa observação no comportamento dos selvagens da Luisiana, narrado por missionários - comportamento que havia
indignado Voltaire pela sua "imbecilidade". Contudo, Corrado Rosso
comentou recentemente que os "selvagens" não eram tão imbecis;
preconceitos arraigados, difíceis de vencer, os pintavam assim. Com
efeito, há árvores, como a bananeira, cujos frutos são colhidos "cortando-a
pelas raízes", como explicava, aliás, o artigo "Bananier" da Enciclopédia.
O elemento de continuidade entre Montesquieu e os clássicos, com
respeito à categoria do despotismo, é a delimitação histórica e geográfica
dessa forma de governo. Montesquieu se refere a "aquela parte do mundo
Intervalo: O Despotismo
141
onde o despotismo, vamos dizer, surge naturalmente — a Ásia". A
identificação do despotismo com o despotismo "oriental" — que encontraremos ainda em Hegel e na maior parte dos escritores do século XIX - é
definida por Montesquieu em todos os seus particulares, e por assim dizer
consagrada. Na sua obra principal -De l'Esprit (1758) - Helvécio se detém
na comparação dos governos livres com os despóticos (sobretudo nos
capítulos XVI-XXI, da terceira parte), mas no momento em que enfrenta
esse contraste, explica logo que, ao falar em despotismo, refere-se a
"aquele desejo desenfreado de poder arbitrário, que se encontra no
Oriente".
Distinguindo duas espécies de despotismo — o que se abate subitamente, com a força, sobre uma nação virtuosa, como a Grécia, e o que se
estabelece gradualmente, com o luxo e a moleza dos cidadãos -, pretende
deter-se sobretudo neste último, que caracteriza os Estados orientais.
Baseando-se nas observações de Montesquieu sobre as relações entre
despotismo e religião, Nicolas Antoine Boulanger propõe uma interpretação religiosa, ou melhor, teocrática do despotismo, na sua obra Recherches
sur l'Origine du Despotisme Oriental, publicada postumamente em 1762: a
origem de todos os males da sociedade reside, segundo Boulanger, no
governo da religião, isto é, na teocracia, que tem produzido no Oriente os
governos despóticos: "De todos os vícios políticos da teocracia esse é o
maior e o mais fatal - o que prepara o caminho para o despotismo oriental
(XI)". Não é supérfluo lembrar aqui que, por motivos de polêmica
política, o tema do despotismo oriental foi ressuscitado em nossos dias
pelo conhecido e muito discutido (além de discutível) livro de Karl A.
Wittfogel, Oriental Despotism (1957). A comparação entre sociedades policêntricas, como as que existem na Europa, caracterizadas por forte tensão
entre sociedade civil e instituição estatal, e sociedades monocêntricas,
marcadas pelo predomínio do Estado sobre a sociedade, formadas e
estabilizadas nos grandes impérios orientais (de modo geral, fora da
Europa, como algumas das grandes civilizações da América précolombiana, que o próprio Montesquieu incluía entre os regimes
despóticos), seria não um conceito polêmico mas uma realidade histórica
a ser analisada com instrumentos de pesquisa diferentes dos usuais:
Wittfogel retoma alguns temas tradicionais: o caráter total, não-controlado (e portanto absoluto) do poder despótico; o terror como instrumento
de domínio e, correlatamente, a sujeição total do súdito ao soberano; sua
longa duração e, por fim, o vínculo entre regime despótico e teocracia.
Com respeito à tradição, a inovação de Wittfogel diz respeito à
explicação do fenômeno: os poderosos aparelhos burocráticos que
constituem o sistema nervoso do despotismo nascem da necessidade de
regulamentar a irrigação, nas grandes planícies asiáticas. Não se trata
mais, como nos escritores clássicos, da própria natureza dos povos servis,
ou da natureza do clima e do terreno, como era Montesquieu. O Estado
burocrático e despótico das sociedades que o autor denomina "hidráulicas" nasce por motivos técnicos, relacionados com a natureza do solo e o
processo da produção. Como forma de governo, o despotismo se
caracteriza pelo monopólio da organização burocrática que, formado por
142
A Teoria das Formas de Governo
razões objetivas nas sociedades agrárias, é hoje aplicado também em
sociedades altamente industrializadas (é evidente, aqui, o alvo polêmico),
representando a maior ameaça já surgida à liberdade do homem.
Em todos os autores citados, o "despotismo oriental" é sempre uma
categoria negativa. Montesquieu emprega a expressão "aqueles governos
monstruosos". Contudo, no século XVIII houve escritores que a empregaram, creio que pela primeira vez na história, com uma conotação
positiva. Refiro-me em especial aos fisiocratas, que propõem à reflexão
dos seus contemporâneos um novo tema- o "despotismo iluminado" (do
modo como o despotismo era entendido tradicionalmente, essa expressão
é uma contradictio in adiecto - contraditória em seus termos). A tese
fundamental da escola fisiocrática, de François Quesnay (1694-1774), é
que a única "cracia", ou domínio, que os homens deveriam aceitar, para
viverem felizes e prósperos, é a da fisis (isto é, da natureza). Tanto a
natureza como a sociedade humana são dirigidas (segundo o ensaio
intitulado Droit Naturel) por leis universais e necessárias, que a razão
humana bem aplicada pode conhecer. Infelizmente, o homem, corrompido pelas paixões e preconceitos, muitas vezes ignora essas leis da
natureza e, com leis positivas bárbaras e insensatas, impede a natureza de
exercer sua orientação sábia e benéfica. Ora, Quesnay e seus seguidores
pensavam ter descoberto tais leis: bastava que um príncipe, iluminado
por esses sábios, as aplicasse.
As leis positivas, impostas pela autoridade soberana - que os
fisiocratas chamam de "autoridade tutelar" -, não devem ser mais do que
a projeção das leis naturais; devem ser não leis constitutivas, mas
"declarativas". Para constituir esse conjunto de leis, cuja única função é
espelhar o mais fielmente possível as leis naturais, basta um único
príncipe, sábio, com a força necessária para se fazer obedecer. Sendo
único o príncipe, mais concentrado e iluminado seu poder, e maior sua
capacidade de governar de conformidade com as leis naturais que devem
reger a sociedade dos homens, melhores condições terá de fazer respeitar
"a ordem natural e essencial" das coisas. Desse conjunto de idéias nasce a
nova figura do "bom déspota"; concentrando o máximo de poder nas
suas mãos, ele pode restabelecer a ordem natural subvertida pelas leis
positivas inadequadas. Cito De l'Origine et des Progrès d'une Science Nouvelle
(1768), de Pierre-Samuel Dupont de Nemours (1739-1817):
"Há uma ordem natural, essencial e genérica, que encerra as leis
constitutivas e fundamentais de toda sociedade: uma ordem da qual
nenhuma sociedade pode afastar-se sem se tornar menos sociedade, sem
que o Estado político perca consistência".
Criticando diretamente Montesquieu, que quer dividir o poder
soberano, Dupont de Nemours sustenta que a autoridade, cuja função é
"zelar por todos, enquanto cada um se ocupa dos seus próprios
negócios", deve ser única; declara absurda a idéia de várias autoridades
concorrendo entre si, dizendo que se todas essas autoridades são iguais, o
resultado será a anarquia; se uma prevalecer sobre as outras, esta será
única autoridade genuína (não há nada de novo sob o sol: o mesmo
argumento já tinha sido empregado, quase que com as mesmas palavras,
Intervalo: O Despotismo
143
por Hobbes). Para ele, a autoridade soberana não deve fazer as leis,
porque estas são feitas pelo Criador; as leis do soberano são atos
declarativos da ordem natural; portanto, as ordens contrárias às leis
naturais "não são leis, mas atos insensatos que não deveriam ser
obrigatórios para ninguém" (neste ponto, nosso autor chega às conseqüências lógicas do postulado jusnaturalista segundo o qual há leis
naturais axiologicamente superiores às leis positivas; por isso uma lei
positiva contrária a uma lei natural "non est lex", como diriam os
escolásticos, "sed corruptio legis"). Quanto à forma de governo, segundo
Dupont de Nemours só a monarquia hereditária - não a monarquia
eletiva, a democracia ou a aristocracia - corresponde ao ideal do bom
governo, porque só nesses governos "simples e naturais" os soberanos
são genuinamente "despóticos", isto é, podem dispor dos seus plenos
poderes (numa nota, o autor explica, com uma etimologia imaginada, que
"déspota" é o que pode "dispor" do poder segundo seu talento).
A obra em que a teoria do "bom déspota" é exposta com maior
convicção é L 'Ordre Naturel et Essentiel des Sociétés Politiques (17 6 7), de Paul-
Pierre Le Mercier de Ia Rivière (1720-1793), cujo título é em si mesmo um
programa. O autor pergunta qual a melhor forma de governo, e responde:
"É aquela que não permite que se possa tirar vantagem de governar
mal; que, ao contrário, obriga quem governa a ter no bem governar seu
maior interesse" (I, p. 239).
Só o governo de uma pessoa pode alcançar esse grau de perfeição,
porque é o único que se pode deixar guiar pela evidência - o oposto do
arbítrio. Onde reina a evidência, e onde o comando do soberano não é
ditado pelo seu capricho, mas pelo conhecimento das leis necessárias
para regular a sociedade, não é necessário haver muitos poderes em
concorrência. Basta um só poder, férreo e sábio. Le Mercier declara, com
segurança, que não é preciso ter medo dessa palavra, empregada de modo
geral para denotar governos arbitrários e desumanos. De fato, há
despotismo e despotismo:
"Há um despotismo legal, estabelecido natural e necessariamente
com base na evidência das leis de uma ordem essencial, e um despotismo
arbitrário, produzido pela opinião que se presta a todas as desordens, a
todos os excessos de que a ignorância o torna susceptível".
Aquilo de que Le Mercier quer falar, quando elogia o despotismo
como a única forma de governo adequado e sábio, não é o despotismo
arbitrário, mas o legal; aquele cujo critério não é a opinião (mutável e
subjetiva), mas a evidência - um critério objetivo, que não depende das
nossas sensações, que tem sempre e para todos a mesma autoridade.
Euclides, que descobriu as regras da geometria, as quais desde então
seguimos necessariamente, sem nos rebelarmos, não é um déspota? Mas
seu despotismo é o da evidência, não o da opinião. E o despotismo da
evidência é o único modo que temos de liberar-nos do despotismo da
opinião, isto é, do arbítrio. Feliz a nação que goza o benefício de um
despotismo da evidência.
Não nos afastamos muito de Montesquieu, como poderia parecer. A
avaliação positiva do despotismo, feita pelos fisiocratas, e levada às
144
A Teoria das Formas de Governo
conseqüências mais extremas por Le Mercier de Ia Rivière, é a antítese da
opinião que tinha do despotismo ("monstruoso governo") o autor de
O Espírito das Leis. Uma antítese também porque um dos pontos fixos dos
defensores do despotismo, embora puramente legal, é a crítica da
separação dos poderes, dos chamados "contrapesos". Em 1768, Mably
(1709-1785), num livro intitulado Doutes Propesées aux Philosophes Économistes
sur 1'Ordre Naturel et Essentiel des Sociétés Politiques, refutou ponto por ponto a
tese de Le Mercier. Um dos temas mais extensamente tratados desse livro
é a crítica do despotismo e a defesa da separação dos poderes, identificada
pelo autor com a figura tradicional do "governo misto". Para Mably não
se pode traçar uma distinção entre despotismo legal e despotismo
arbitrário; o defeito do despotismo, sob qualquer forma, é a concentração
do poder nas mãos de uma só pessoa- o que é sempre um mal. Contra o
despotismo só há um remédio: o governo misto, o mesmo que Montesquieu
tinha chamado de "governo moderado". Na defesa do governo misto,
Mably exprime com extrema clareza a idéia recorrente de que o melhor
remédio para o abuso do poder é dividi-lo, colocando um poder contra o
outro de modo que, pelo controle recíproco, se garanta a estabilidade do
regime e a liberdade dos cidadãos. Há uma passagem que resume muito
bem essa idéia:
"Em política, os contrapesos são instituídos não para privar o poder
legislativo e o executivo da ação que lhes é própria e necessária, mas para
que seus atos não sejam convulsos, nem irrefletidos, apressados ou
precipitados. Criam-se dois poderes rivais para que as leis tenham um
poder superior ao dos magistrados, e para que todas as ordens da
sociedade tenham protetores com que possam contar. Forma-se um
governo misto a fim de que ninguém se ocupe só com os próprios
interesses; para que todos os membros do Estado, obrigados a ajustar-se
aos interesses alheios, trabalhem para o bem público, a despeito das suas
próprias conveniências.
O exemplo dos antigos era a república romana; o dos modernos, a
monarquia inglesa. Com efeito, a passagem continua assim:
"Na Inglaterra, por exemplo, o monarca não pode promulgar
nenhuma lei sem o Parlamento, nem o Parlamento pode fazê-lo sem o rei.
Não se deve concluir, porém, que os ingleses não têm leis. O rei, os pares e
os comuns são obrigados, pela Constituição, a se aproximarem para que
um decreto tenha força legal. Nenhum dos três membros do corpo
legislativo será sacrificado aos outros dois: o governo se consolida, o
costume o fortalece e a nação tem leis imparciais, respeitosas igualmente
das prerrogativas reais, da dignidade dos pares e da liberdade do povo"
(Escritos Políticos, de Mably).
Não será a última vez que vamos encontrar o governo misto exaltado
como a melhor forma de governo. Em cada um desses encontros não
podemos deixar de refletir na vitalidade da idéia, na sua adaptabilidade às
mais diversas condições históricas, na exigência perene que exprime da
imposição de um controle ao poder pelo próprio poder.
Capítulo XII
HEGEL
Já disse que em Vico encontramos predominantemente uma concepção
histórica das formas de governo; em Montesquieu, uma concepção
geográfica, espacíal. Em Hegel — pensador no qual convergem, e se
fundem num sistema abrangente e complexo, dois milênios de reflexão
filosófica - há as duas coisas. Conforme se observou ainda recentemente
(Storia Universale e Geografia in Hegel, edit. por P. Rossi, Florença, 1975), "a
afirmação do fundamento geográfico do processo histórico... constitui
uma das bases doutrinárias da filosofia hegeliana da história" (p. 6).
Também sob esse aspecto, a dívida de Hegel para com Montesquieu
(que, num texto de 1802, ele qualifica de "autor da obra imortal") é
enorme. Mas o que em Montesquieu é apenas intuitivo, em Hegel seguindo as idéias do geógrafo alemão Karl Ritter, autor de uma geografia
"relacionada com a natureza e a história do homem", de 1817 — se torna
uma verdadeira teoria. Nas Lições de Filosofia da História, que representam a
última fase da evolução do seu pensamento, Hegel dedica um capítulo
introdutório à "base geográfica da história mundial", no qual explica que a
história do mundo passou por três fases, caracterizadas por três tipos
diversos de base geográfica: o "altiplano", com suas grandes estepes e
planuras, paisagem típica da Ásia central, onde têm origem as nações
nômades (principalmente pastoris); a "planície fluvial", que caracteriza as
terras do Indus, do Ganges, do Tigre e do Eufrates, até o Nilo, onde o solo
fértil leva espontaneamente à "agricultura"; por fim, a "zona costeira",
onde se desenvolve a inclinação para o comércio e se formam novos
motivos de riqueza, e novas condições de progresso civil. Para dar uma
idéia da linguagem ao mesmo tempo rigorosa e imaginativa de Hegel,
leia-se este trecho:
"De modo geral, o mar dá origem a um tipo especial de existência. O
elemento indeterminado nos dá a idéia do ilimitado e infinito; sentido-se
nessa infinitude, o homem adquire coragem para superar o limitado. O
146
A Teoria das Formas de Governo
próprio mar é infinito, e não aceita demarcações pacificas de Estados,
como a terra firme. A terra, a planície fluvial, fixa o homem ao solo; sua
liberdade é restringida assim por imenso complexo de vínculos. O mar,
porém, o leva além dessas limitações. Ele desperta a coragem; convida o
homem à conquista, mas também ao ganho e à aquisição" (Lições de
Filosofia da História).
Como se vê, as atividades pastoril, agrícola e comercial, que representam as três fases do desenvolvimento da sociedade humana, do ponto de
vista econômico, - para usar a terminologia de Montesquieu, do ponto de
vista do "modo de subsistência" - correspondem também a três regiões
distintas da Terra, confirmando quase a importância que Montesquieu
atribuíra à "natureza do solo" como elemento determinante da diferenciação social. Além disso, o fato de que as três fases da civilização
correspondem a três zonas distintas da Terra demonstra que a evolução
das sociedades não ocorre apenas em momentos sucessivos do tempo,
como se acreditava, e no mesmo espaço (como se viu com o espaço de Vico
que, salvo o ocupado por povos selvagens, é essencialmente a Europa),
mas sim mediante um deslocamento de área em área. Que, em outras
palavras, uma mudança no tempo corresponde também a uma mudança
no espaço, numa cena direção: do Oriente para o Ocidente, isto é,
acompanhando o sol. Será lícito deduzir, portanto, que, uma vez
alcançada sua maturidade na Europa, a civilização terá uma próxima fase
na América, há pouco liberada do domínio colonial, e destinada a um
rápido progresso econômico e demográfico? Hegel não quer fazer
profecias, mas em várias oportunidades afirma que a América é o "país do
futuro", aquele "para o qual se inclinará o interesse da história universal,
nos tempos futuros..." (Lições).
A influência de Montesquieu sobre Hegel ultrapassa porém a
concepção geográfica do desenvolvimento histórico. Tem a ver com a
própria tipologia das formas de governo. Há um trecho muito significativo num livro do primeiro período, A Constituição da Alemanha, escrito entre
o fim do século XVIII e o princípio do século XIX. Hegel lamenta que a
Alemanha não seja mais um Estado, invocando, como Maquiavel, o novo
Teseu que voltará a lhe dar unidade. Depois de sustentar que todos os
Estados monárquicos foram fundados com populações germânicas,
porque nelas, originalmente, "todo homem livre, pelo fato de contar com
seus braços, tinha participado também com sua vontade na gestação
nacional", acrescenta:
"O sistema da representação é o de todos os modernos Estados
europeus. Não existia nas selvas da Alemanha, mas nelas nasceu, e fixa
uma época na história universal. A continuidade da cultura mundial levou
o gênero humano, depois do 'despotismo oriental', e da degeneração da
'república' que tinha dominado o mundo, a esta posição intermediária
entre as duas fases precedentes - e dos alemães nasceu a terceira figura
universal do espírito do mundo" (A Constituição da Alemanha).
Nessa passagem, Hegel não concorda com Montesquieu num ponto
secundário: quando afirma que o sistema da representação "não existia
Hegel
147
nas selvas da Alemanha" contradiz afirmativa do autor de O Espírito das
Leis, que escrevera:
"Quem lê a admirável obra de Tácito sobre os costumes dos alemães
verá que deles os ingleses tiraram a idéia do governo político - um belo
sistema, descoberto nos bosques" (Livro IX, cap. VI).
Mas a concordância com Montesquieu a respeito das três formas de
governo e sua sucessão é de fato surpreendente. Embora breve, o trecho
citado é muito claro. Para o jovem Hegel, as formas de governo
historicamente relevantes são as mesmas de Montesquieu - o despotismo
(oriental), a república (antiga) e a monarquia (moderna).
Se dermos um salto de décadas, para chegar a uma das últimas obras
de Hegel, Lições de Filosofia da História, veremos como o filósofo foi fiel a essa
tipologia. Na primeira parte das Lições, de caráter introdutório, há um
capítulo dedicado ao conceito de "constituição", onde Hegel explica que
a constituição é "a porta pela qual o momento abstrato do Estado penetra
na vida e na realidade", e que a primeira determinação que assinala a
passagem da idéia abstrata de Estado à sua forma concreta e histórica é "a
diferença entre quem governa e quem é governado". Logo depois,
acrescenta:
"Com razão, portanto, as constituições têm sido classificadas universalmente nas categorias de monarquia, aristocracia e democracia. É
preciso porém observar, em primeiro lugar, que 'a própria monarquia
pode ser distinguida em despotismo e em monarquia como tal'" (ênfase
acrescentada).
Desnecessário repetir que a cisão entre os dois conceitos de "monarquia" e de "despotismo", tradicionalmente abrangidos pelo mesmo
genus, é um dos traços característicos - senão o mais característico - da
tipologia de Montesquieu. Há uma passagem ainda mais decisiva, numa
das edições das Lições, que é a seguinte:
"A história universal é o processo mediante o qual se dá a educação
do homem, que passa da fase desenfreada da vontade natural à universal,
e à liberdade subjetiva. O Oriente sabia e sabe que um só é livre; o mundo
grego e romano, que alguns são livres; o mundo germânico, que todos são
livres. Por isso, a primeira forma que encontramos na história universal é
o 'despotismo', a segunda é a 'democracia' e a 'aristocracia', a terceira é a
'monarquia'".
À parte a interpretação destas formas históricas das constituições,
baseada no princípio da liberdade e sua extensão, que é propriamente
hegeliana, a tipologia de Hegel não se distingue da de Montesquieu, desde
que se tenha o cuidado de reunir na única categoria de "república" os dois
conceitos de democracia e aristocracia - como tinha feito, aliás, o autor de
O Espírito das Leis. Não só a tipologia hegeliana não difere da de Montesquieu,
mas é adotada como esquema geral do processo histórico de modo bem
mais exemplar e rígido do que poderíamos encontrar na obra do autor
francês. Há um trecho ainda mais importante, que reproduzo:
"As diferenças das constituições têm a ver com a forma como se
manifesta a totalidade da vida estatal. A primeira forma é aquela em que
essa totalidade ainda não evoluiu, suas esferas particulares não alcança-
148
A Teoria das Formas de Governo
ram ainda autonomia; a segunda, aquela em que tais esferas, e com elas os
indivíduos, se tornam mais livres; a terceira, por fim, aquela em que estes
são autônomos, e sua atividade consiste na produção do universal.
"Vemos todos os reinos, toda a história do mundo percorrer essas formas'. Vemos sobretudo, em cada Estado, uma espécie de reino patriarcal, pacífico e guerreiro. Esta primeira manifestação do Estado é
despótica e instintiva. Mas, mesmo na obediência e na violência, no medo
de um dominador, ela é já um complexo da vontade. Mas tarde se
manifesta a particularidade: são aristocratas, esferas singulares, órgãos
democráticos, indivíduos que dominam. Nesse indivíduos se cristaliza
uma aristocracia acidental, e ela se transforma em novo reino, em
monarquia. O fim, portanto, é a sujeição dessas particularidades a um
poder tal que fora dele necessariamente as diversas esferas tenham sua
autonomia — é o poder monárquico. É preciso distinguir, assim, entre um
primeiro e um segundo tipo de poder real".
A explicação é clara: as formas históricas de constituição, pelas quais
passam todos os Estados, e a própria história do mundo, são três - uma
primeira forma de reino patriarcal, que corresponde à categoria do
despotismo; uma forma de Estado livre, embora de liberdade particularística, que é a república nas suas manifestações históricas da república
aristocrática e democrática; por fim, uma forma de reino que já não é
patriarcal ou despótica - a monarquia, em que o rei governa uma
sociedade articulada em esferas relativamente autônomas ("monarquia",
no sentido de Momesquieu, é aquela forma de governo em que o poder
do monarca é compensado pela existência de ordens relativamente
independentes, que exercem funções públicas). Essa passagem, porém,
não é uma simples repetição da tipologia de Montesquieu. A novidade,
com respeito à tradição, e ao próprio Montesquieu, é o critério usado para
distinguir as três formas. Observe-se bem: não se emprega mais o critério
de "quem" e de "como", que contudo era admitido ainda por Montesquieu.
Trata-se de critério muito mais rico de potencialidades explicativas,
porque leva em conta a estrutura da sociedade no seu conjunto.
Com efeito, as três formas de governo correspondem a três tipos de
sociedade: a primeira é ainda indiferenciada e inarticulada, em que as
esferas particulares de que se compõe uma sociedade evoluída (ordens,
classes ou grupos) não emergiram da indistinta unidade inicial (como
acontece na família, um todo que ainda não se compõe de partes
relativamente autônomas); na segunda, começam a surgir as esferas
particulares, que contudo não chegam a ser completamente autônomas
com relação à totalidade - é o momento da unidade desagregada e não
recomposta; na terceira, a unidade se recompõe mediante a articulação
das suas diferentes partes - há unidade e diferenciação, e a unidade é
perfeitamente compatível com a liberdade das partes; de fato, só funciona
mediante o jogo relativamente autônomo dessas partes. A este terceiro e
último momento do desenvolvimento do Estado ao qual corresponde
historicamente a monarquia moderna (diferente do antigo despotismo),
isto é, a monarquia constitucional, pode referir-se o trecho, abaixo
Hegel
149
reproduzido, em que Hegel fala das "esferas particulares" num "Estado
evoluído":
"Num Estado evoluído, no qual esses aspectos se tornaram distintos e
completaram seu progresso de acordo com as exigências da natureza de
cada um, eles precisam articular-se em diversas classes... Estas esferas se
dividem, de outro lado, em classes especiais, pelas quais se distribuem os
indivíduos: elas constituem a sua profissão. As diferenças que se observam nesses aspectos devem constituir, com efeito, esferas particulares,
dedicadas a ocupações caracterizadas singularmente. Sobre isso se baseia
a diferença entre as classes que encontramos num Estado organizado. De
fato, o Estado é um todo orgânico, no qual todas as articulações são
necessárias, como num organismo. Ele é um todo orgânico de natureza
ética. O que é livre não tem indivíduos: concede-lhes momentos de
construção, e, não obstante, o universal conserva a força que mantém
essas determinações unidas a si".
Entende-se que se a forma de governo é a estrutura política de
uma sociedade bem determinada, cada sociedade possui sua própria
constituição - e não pode ter uma outra. Uma constituição não é um
chapéu que se possa colocar à vontade sobre qualquer sociedade. O
trecho que citamos termina com estas considerações:
"Este é o curso abstrato 'mas necessário' do desenvolvimento dos
Estados genuinamente autônomos, de modo que deve nele aparecer, cada
vez, uma constituição determinada que 'não dependa de escolha', mas
seja 'a única adequada, em cada caso, ao espírito do povo'" (ênfase
acrescentada).
A estreita dependência em que a constituição está do "espírito do
povo" é uma tese à qual Hegel retorna muitas vezes também em outras
obras (veja-se a Enciclopédia, § 540, e também A Constituição da Alemanha, já
citada). É a razão por que não se cansa de atacar a ilusão iluminista de que
uma constituição bela e perfeita pode ser imposta aos povos mais diversos.
Considera absurdo indagar quem deve fazer uma constituição - seria o
mesmo que perguntar "quem deve fazer o espírito de um povo"
(Enciclopédia, § 540). Rejeita assim qualquer tentação de se ocupar da
república ótima, considerando perda de tempo qualquer discussão sobre
a melhor forma de governo. No mesmo capítulo sobre a "constituição",
onde colhi as citações precedentes, encontramos também a seguinte:
"A pergunta sobre qual a melhor constituição é formulada muitas
vezes não só como se a teoria a esse respeito fosse uma simples matéria de
convicção subjetiva, mas também como se a adoção efetiva de uma
constituição — que fosse a melhor possível, ou assim considerada pudesse resultar de deliberação teórica. Enfim, como se o tipo de
constituição só dependesse de uma livre escolha, determinada pela
reflexão".
O leitor se lembrará certamente do debate entre os três príncipes
persas com que demos início a este curso. Tomando-o como exemplo de
discussão ociosa sobre a melhor forma de governo, Hegel comenta:
"Neste sentido absolutamente ingênuo se aconselharam senão os
persas, pelo menos os grandes daquele povo... Não havendo nenhum
150
A Teoria das Formas de Governo
descendente da família real, discutiram sobre a constituição a adotar na
Pérsia; com a mesma ingenuidade Heródoto narra tal discussão e deliberação".
Depois de tudo o que dissemos até aqui a respeito de Hegel, visto
como continuador de Montesquieu, pode provocar alguma surpresa a
constatação de que quando Hegel trata sistematicamente as diversas
épocas da história universal, nos últimos parágrafos da. Filosofia do Direito e
nas Lições de Filosofia da História, elas não são mais três, porém quatro precisamente: o mundo oriental, o mundo helênico, o mundo romano e o
mundo germânico.
Para um filósofo sistemático como Hegel, que procede por tríades,
esse rompimento do esquema tríplice, na própria classificação das épocas
da história universal, deve ter sido um ato de submissão forçada à
evidência das coisas. Salta logo aos olhos que o esquema quádruplo deriva
da divisão do mundo antigo em mundo grego e romano. Hegel foi
obrigado a isso pela reflexão sobre a era imperial, que não pode ser
deixada entre parênteses, como se não tivesse existido, e também não
pode, de modo algum, ser absorvida pela categoria da república,
democrática ou aristocrática, considerada como forma típica do mundo
antigo.
Para quem só tinha à sua disposição a tríplice classificação clássica e a
de Montesquieu, o império não podia ser interpretado senão como uma
modalidade de principado, como fizera Vico. Mas Vico tinha podido fazêlo porque havia interposto, entre o principado da Antigüidade e as
monarquias contemporâneas, a "segunda barbárie" medieval. Isto é:
tinha posto fim ao primeiro corso da história universal com o império
romano. A alternativa seria interpretá-lo como forma de despotismo,
seguindo Montesquieu, para quem o curso da história não era tão
rigidamente predeterminado como para Hegel. Mas nenhuma das duas
interpretações podia ser válida para Hegel, que considerava o movimento
histórico contínuo, não cíclico, e para quem todas as coisas estavam
rigorosamente associadas ao espaço geográfico e ao tempo histórico, de
modo que não podiam repetir-se. Surge, então, a necessidade de romper
o esquema tríplice e introduzir uma quarta era, que não pode ser
reduzida a nenhuma das três formas históricas. No momento histórico do
"mundo romano" Hegel inclui só a época imperial. E interpreta esse
período como uma grande era de transição entre o fim do mundo antigo e
o início do moderno. Enquanto transição, a época imperial não corresponde a nenhuma das três formas históricas, porque nâo é propriamente
uma forma de Estado. Na análise do mundo imperial da antiga Roma,
Hegel acentua todos os aspectos que devem servir para pôr em dúvida a
sua forma de Estado. Há dois aspectos que desejo sublinhar:
a) Enquanto domínio que abrange uma variedade de povos, o
império não possui a determinação característica de todo Estado, que é
seu elemento popular (ou nacional); é, na terminologia de Hegel, uma
"universalidade abstrata" (enquanto um Estado, para ser genuíno, deve
refletir espírito de um povo, ser uma universalidade concreta); prova disso
Hegel
151
é o fato de que em Roma se dedica um templo a todos os deuses (o
Panteon), enquanto os outros povos têm seu próprio Deus e religião.
b) Ao conceder título de cidadania indistintamente a todos os súditos
do império, este domínio universal os transforma a todos em pessoas
formalmente iguais, ligadas exclusivamente por relações de direito
privado - e quando só existem relações de direito privado não há ainda
um Estado.
Tanto o universalismo abstrato como o particularismo individualista
são características que contrastam com a realidade concreta e histórica de
um Estado. Daí a crua descrição do império romano que se pode ler num
parágrafo da Filosofia do Direito:
"A dissolução da totalidade termina na infelicidade universal e na
morte da vida ética, na qual as individualidades nacionais morrem na
unidade do Panteon, todos os indivíduos decaem à condição de pessoas
privadas, iguais entre si sob um direito formal; pessoas que, no entanto, só
estão unidas por um arbítrio abstrato, que chega à monstruosidade" (§
357).
Uma vez interpretado o império como um longo período de transição
entre duas formas de Estado, a história universal volta ao ritmo ternário.
Como insisti muitas vezes na importância histórica da categoria do
despotismo, detenho-me aqui unicamente na primeira era, correspondente ao mundo oriental, que para Hegel é também a idade do
despotismo. Deslocando-se do Oriente para o Ocidente, os Estados
despóticos são três: o despotismo teocrático da China, a aristocracia
teocrática da Índia, a monarquia teocrática da Pérsia. Como se vê, o
caráter determinante do regime despótico é para Hegel a teocracia. O
nexo entre despotismo e teocracia se tinha tornado um lugar comum
entre os escritores iluministas (recorde-se Boulanger). No parágrafo da
Filosofia de Direito dedicado ao mundo oriental, Hegel escreve:
"Este primeiro mundo é a concepção universal, derivada da totalidade natural patriarcal, em si mesma indivisa, substancial, na qual o governo
do mundo é teocracia, o soberano é o sumo sacerdote ou deus, a
constituição do Estado e suas leis são, ao mesmo tempo, religião, como os
preceitos religiosos ou morais; ou melhor, os usos e os costumes são
também leis do Estado e do direito" (§ 355).
Hegel chama o mundo oriental de "era infantil da história"; com isso
quer dizer que na idade do despotismo o homem ingressa pela primeira
vez na história (antes do surgimento da primeira forma de Estado não há
ainda história, mas só pré-história). Contudo, embora sendo já um
mundo histórico, o universo do despotismo oriental não apresenta um
verdadeiro desenvolvimento histórico; é um reino, como diz Hegel, da
"duração constante" - sem alterações substanciais; uma "história sem
história", uma "história a-histórica", processo "que não é verdadeiramente um processo", porque todas as mutações, embora incessantes,
"não produzem qualquer progresso" (Lições de Filosofia da História). A
história como processo real, a história "histórica", só tem começo no
Ocidente. Assim, na sua caracterização do mundo oriental, Hegel não se
152
A Teoria das Formas de Governo
afasta da tradição que sempre contrapôs a móvel e progressista civilização
européia às civilizações estáticas do Oriente.
Falei no Estado oriental como o ingresso do homem na história. Antes
disso, o que havia era o homem natural, fora da história. Para Hegel, esse
homem natural pré-histórico (o "selvagem" dos escritores iluministas) é o
homem africano. Antes de mencionar o mundo oriental, a partir do qual
começa o curso histórico da humanidade, Hegel dedica à África algumas
páginas que hoje pareceriam repletas de blasfêmias. Para ele, o negro é o
"homem no estado bruto", "o homem natural na sua total barbárie e
ausência de freios", etc:
"O resultado é que o que caracteriza a índole do negro é a falta de
freios, uma condição que não é susceptível de qualquer desenvolvimento
ou educação: ele sempre foi como o vemos hoje. Na imensa energia do
arbítrio sensível, que o domina, o momento moral não tem qualquer
poder preciso. Quem quiser conhecer manifestações espantosas da
natureza humana poderá encontrá-las na África. As notícias mais antigas
que temos dessa parte do mundo dizem o mesmo: ela não tem
propriamente uma história".
Como a lembrança de Montesquieu é constante nestas lições de
Hegel, não devemos esquecer que o autor de O Espírito das Leis tinha sido
igualmente severo (para não dizer cruel) com os negros. Basta citar duas
frases, abaixo reproduzidas:
"Não nos podemos convencer de que Deus, um ser de grande
sabedoria, pôs uma alma, e sobretudo uma boa alma, num corpo tão
negro... É impossível supormos que se trate de homens porque, se
admitíssemos isso, poderíamos começar a crer que nós próprios não
somos cristãos" (XV).
Quantas reflexões poderíamos fazer sobre os preconceitos dos
filósofos - daqueles que colocam na ausência de preconceitos a dignidade
do seu saber!
Resta falar sobre o uso prescritivo da teoria das formas de governo no
pensamento de Hegel - embora falar de "uso prescritivo", neste caso, seja
sumamente impróprio. Como dissemos há pouco, Hegel recusa colocar o
problema da melhor forma de governo. A tarefa que ele se propõe, ao
enunciar uma teoria do direito e do Estado, como aparece no conhecido
prefácio de Perfil de Filosofia do Direito, é a de "entender o que é a razão".
Precisamente:
"Assim, enquanto contém a ciência do Estado, este tratado não deve
ser mais do que a tentativa de entender e de apresentar o Estado como
coisa racional em si mesma. Enquanto texto filosófico, deve permanecer
muito longe de tentar construir um Estado como ele deve ser; o
adestramento que se pode obter com ele não pode levar a ensinar ao
Estado como ele deve ser mas, sim, de que modo deve ser reconhecido
como universo ético".
Isso não impede que Hegel defenda uma determinada forma de
Estado - a "monarquia constitucional". Contudo, em várias oportunidades transparece que sua preferência pela monarquia constitucional não se
deve a que ela seja, em abstrato, a melhor forma de governo, mas a forma
Hegel
153
que corresponde melhor ao "espírito do tempo". Só neste sentido muito
restrito se pode falar, com relação a Hegel, de uso prescritivo da teoria das
formas de governo. Na realidade, Hegel não quer dar caráter prescritivo a
nada: quer somente constatar a que fase de desenvolvimento chegou a
história universal.
Vale a pena acompanhar,passo por passo, a evolução do pensamento
de Hegel com respeito a este tema. A primeira obra em que ele se detém
sobre as formas de governo com atenção particular é Propedêutica Filosófica
(que reúne as lições elementares de Hegel dadas no liceu de Nuremberg,
em 1812, e que pode ser considerada como a primeira tentativa, ainda
muito imperfeita, de sistematização total da matéria que vai constituir o
objetivo da sua obra maior, Perfil de Filosofia do Direito, de 1821). Nessas
lições, Hegel se baseia literalmente na antiga tradição, distinguindo as seis
formas de governo - três boas e três más - na terminologia polibiana,
nesta ordem: democracia, oclocracia, aristocracia, oligarquia, monarquia,
despotismo (onde se vê o termo "despotismo" substituindo a designação
tradicional, "tirania"). A propósito da monarquia, afirma:
"O monarca não tem condições de exercer diretamente todo o poder
governamental, e confere em parte o exercício dos poderes particulares a
colegiados ou corporações públicas, que em nome do rei, e sob seu
controle e direção, aplicam o poder conferido, de acordo com as leis.
Numa monarquia, a liberdade civil está melhor protegida do que em
qualquer outra constituição" {Primeiro Curso, § 28).
O caráter da monarquia resulta ainda mais claramente do confronto
com a respectiva forma corrompida, o despotismo, definido como a
forma de governo em que o governante exerce o poder "diretamente", de
modo arbitrário, e na qual os direitos dos indivíduos não estão garantidos.
A monarquia, ao contrário, é a forma de governo em que o rei exerce o
poder "indiretamente", através dos chamados "corpos intermediários",
e na qual, conseqüentemente (aqui aparece a conotação positiva), "a
liberdade civil está melhor protegida do que em qualquer outra constituição". Na obra seguinte, a chamada Enciclopédia de Heidelberg (de 1817),
Hegel não fala das formas de governo, mas numa glosa de 1818 publicada recentemente — há uma anotação preciosa (comentário aos § §
437-439):
"Monarquia constitucional, única constituição racional/Constituição
a) em grandes Estados b) onde o sistema da sociedade civil já se
desenvolveu/Democracia em pequenos Estados".
Nessas linhas encontramos coisas muito importantes: em primeiro
lugar, a expressão "monarquia constitucional", acompanhada por julgamento positivo; em segundo lugar, a afirmação de que a superioridade da
monarquia constitucional não é absoluta mas relativa, e relativa a duas
condições: a) é a forma mais apropriada aos grandes Estados (a melhor
para os pequenos Estados é a democracia); b) é a forma que melhor se
ajusta aos povos que já desenvolveram o sistema da sociedade civil. Sobre
a primeira condição não há nada de novo a dizer: a idéia de que a
república é um governo possível só nos pequenos Estados era também
defendida por Montesquieu, e depois dele por Rousseau. A única
154
A Teoria das Formas de Governo
observação pertinente (ou, ao contrário, impertinente) é que na época de
Hegel já tinha surgido uma república num grande Estado - um Estado
que se tornaria muito maior do que as velhas monarquias européias: os
Estados Unidos da América. Contudo, Hegel considerava esse país um
Estado ainda em formação, uma "sociedade civil" que não havia atingido
a perfeição do Estado. Uma terceira observação diz respeito à expressão
"sociedade civil", empregada aqui talvez pela primeira vez no sentido
específico em que é usada na obra maior, onde o momento ético (que na
esfera do espírito objetivo segue o do direito e da moralidade) é dividido
em três momentos parciais - da família, da "sociedade civil" e do Estado.
É uma esfera intermediária, portanto, entre a família e o Estado. Com
uma rápida anotação, Hegel quer dizer que onde a sociedade se vem
articulando pela divisão em classes, é necessário que haja uma constituição
diferente da que bastava em sociedades mais simples, isto é, sociedades
onde não se fez sentir ainda a distinção entre a esfera do público e a do
privado; quer dizer: é necessária a forma de governo monárquica, no
sentido específico que ela adquiriu em Montesquieu: governo indireto de
um monarca, mediado pela presença ativa dos corpos intermediários.
A idéia da monarquia constitucional é um dos temas centrais de Perfil
de Filosofia do Direito. Quando Hegel aborda o problema do Estado, depois
de expor suas idéias a respeito da família e da sociedade civil, o Estado a
que se refere é a monarquia constitucional - a forma por excelência do
Estado moderno é a monarquia constitucional. No § 273, depois de
distinguir os três poderes do Estado (poder legislativo, poder de governo e
poder do príncipe ou do soberano), Hegel conclui afirmando que o
Estado assim composto e articulado é a "monarquia constitucional".
Logo depois, na anotação seguinte, precisa que "o aperfeiçoamento do
Estado em monarquia constitucional é obra do mundo moderno",
confirmando o conceito fundamental da ordem histórica em que se
sucedem as várias formas de governo, e a idéia (que é também um ideal
político) da forma de governo monárquico como a última a que chegou a
história universal - e, portanto, a forma "boa" para o seu tempo, para a
qual não existiria, na época, melhor alternativa. Nessa mesma anotação,
Hegel compara a monarquia constitucional com as formas tradicionais
(que já tinha considerado na Propedêutica Filosófica), fazendo a seguinte
observação:
"A antiga classificação das constituições em monarquia, aristocracia e
democracia tem como base a unidade substancial ainda indivisa, que não
alcançou sua distinção interna (e uma organização desenvolvida de si
mesma); portanto, que não chegou à profundidade e à racionalidade
concreta".
Dessa comparação da monarquia constitucional com as formas
clássicas resulta, ainda uma vez, que o critério fundamental com base no
qual Hegel distingue as várias constituições é o da maior ou menor
complexidade da sociedade. As formas clássicas só se adaptam a
sociedades simples; só a monarquia constitucional, que é a monarquia
entendida no sentido em que Montesquieu a descreveu, contrapondo-a
ao despotismo, se adapta a sociedades complexas em que os componentes
Hegel
155
que constituem a "sociedade civil" são relativamente independentes com
respeito ao sistema estatal. E prossegue:
"Estas formas (as formas simples, isto é, as três formas clássicas), que
pertencem assim a diversas totalidades, 'se reduzem a momentos da
monarquia constitucional': o monarca é um deles; com o poder governativo intervêm os poucos; e com o legislativo o povo em geral".
São palavras que merecem comentário. Que representa a afirmativa
de que as três formas simples são "reduzidas" a momentos da monarquia
constitucional, senão um ressurgimento da velha idéia do governo misto?
Não há dúvida de que o modo como Hegel apresenta, nessa breve
passagem, a monarquia constitucional, a faz aparecer como reencarnação
- ou forma moderna - do governo misto, entendido na sua essência: a
combinação das três formas simples. Já tive ocasião de salientar muitas
vezes a extraordinária vitalidade, e excepcional sorte, da teoria do
governo misto. Mas não é preciso acreditar que Hegel tenha pretendido,
com essas palavras, identificar a monarquia constitucional com o governo
misto (identificação que aliás nem o próprio Montesquieu tinha feito). De
fato, ele comenta, logo depois:
"Mas essas diferenças (as diferenças entre o único detentor do poder,
os poucos e os muitos), simplesmente quantitativas, são, como se disse,
apenas superficiais, e não indicam o conceito da coisa..."
Quer dizer com isso que o caráter distintivo da monarquia constitucional não reside no fato de que governem um, poucos e muitos, em
diferentes níveis, porém no fato, bem mais substancial de que os poderes
fundamentais do Estado estão divididos, e são exercidos por diversos
órgãos.
Em várias oportunidades, chamei a atenção do leitor para a diferença
- que se vem acentuando historicamente, com a formação doEstado
moderno - entre teoria do governo misto e da divisão dos poderes. Em
Hegel, essa distinção atinge uma perfeita clareza; o trecho citado quer
demonstrar como é insuficiente, superficial e extrínseca a configuração da
monarquia constitucional - a monarquia de poderes divididos como
governo misto, quer dizer, como governo representando combinação das
formas simples. Isto é: a aproximação meramente superficial e extensa
entre governo de uma só pessoa, o governo de poucos e o de muitos.
Apêndice
A MONARQUIA CONSTITUCIONAL: HEGEL E
MONTESQUIEU
(Michelangelo Bovero)
O tema da monarquia constitucional merece algumas considerações
adicionais, que nos permitam precisar melhor a natureza da relação entre
Hegel e Montesquieu sob os dois aspectos da continuidade e da
diferenciação — os dois postos em evidência, aliás explicitamente, pelo
próprio Hegel.
A constituição monárquica que Hegel descreve, em Perfil de Filosofia do
Direito, como constituição "racional" é bem mais articulada e complexa,
em comparação com a monarquia descrita pela tipologia clássica das
formas de governo. Do mesmo modo, a monarquia que Montesquieu
apresenta como forma de governo "excelente" dentre todas é uma
constituição complexa- complexidade que a caracteriza, com respeito às
demais formas de governo. Como Montesquieu considera que a monarquia "moderada" é o tipo de regime político adaptado às grandes
nações da Europa moderna, da mesma forma, segundo Hegel do ponto
de vista da modernidade, a monarquia tradicional e as outras formas da
tipologia clássica podem ser consideradas "indiferentes", porque ineficientes, isto é, não ajustadas ao desenvolvimento histórico e da sociedade, desajustadas à época. Trata-se com efeito de constituições "simples", que se referem, todas elas, à "unidade indiferenciada" como
estrutura da vida coletiva da Antigüidade: a idade moderna já apresenta
diferenciação e articulações na vida coletiva, e portanto, em certo sentido,
exige uma constituição articulada, que é a monarquia constitucional. A
inovação da concepção hegeliana, com relação à de Montesquieu,
consiste na maneira diferente de considerar a sociedade moderna e suas
articulações. Segundo Hegel, a vida social se diferenciou numa multiplicidade de aspectos e níveis particulares, mas sobretudo se "duplicou",
158
A Teoria das Formas de Governo
por assim dizer, em duas esferas distintas, com caracteres opostos: a
sociedade civil e o Estado. Isso significa que da unidade substancial
indivisa da comunidade pré-moderna não só se emancipou o princípio da
particularidade e da subjetividade, mas que esse princípio se tornou o
fundamento de novo aspecto, moderno, da existência social— a "sociedade civil", esfera da vida coletiva de caráter "privado", que funciona com
base nos interesses particulares dos indivíduos e que constitui o "sistema"
autônomo mediante sua dependência recíproca objetiva. Este sistema é
em si mesmo uma esfera da vida coletiva distinta do Estado. É na
sociedade civil, lugar da atividade econômica, da reprodução social e da
sua regulamentação jurídico-administrativa, que os indivíduos se distinguem em grupos ou "massas particulares" - aí se desenvolve a divisão
em posições ou condições sociais (Estados, ordens, grupos) diferentes e
desiguais.
Esquematicamente, pode-se dizer que para Hegel a vida coletiva
moderna se diferencia em duas esferas: a sociedade civil, que é a das
diferenças sociais; e o Estado, a da unidade política, na qual as diferenças
sociais são articuladas e recompostas. Assim, numa primeira aproximação, podemos afirmar que a monarquia constitucional, como constituição "articulada", corresponde à época moderna como sociedade
"diferenciada"; e que a divisão dos poderes nos quais se articula a
constituição moderna se impõe porque a unidade simples da comunidade antiga não existe mais, e uma nova unidade não se pode formar a não
ser admitindo as diferenças sociais - como unidade complexa.
Montesquieu também achava que a monarquia com "leis fundamentais" é a forma de governo apropriada aos Estados modernos, porque se
baseia numa sociedade diferenciada e representa a unificação das suas
diferenças. Examinemos a relação entre unidade e diferenças, em
Montesquieu, relendo as passagens em que ele se refere ao corpo político,
em geral, e especificamente à monarquia. Observaremos que: 1) o
referente social, no texto de Montesquieu, tanto nos seus traços formais
como na lógica do seu funcionamento (cada um persegue o interesse
próprio, e com isso assegura o interesse comum), é análogo à "sociedade
civil" de Hegel; 2) contudo, não é visto como sociedade civil, no sentido
hegeliano de esfera separada da estatal, porém em termos imediatamente
políticos, pelos quais as diferenças aparecem como diferenças próprias do
corpo político; 3) sua diferenciação não é a mesma da sociedade civil de
Hegel.
Vejamos este último ponto, que deriva diretamente dos precedentes.
A monarquia de Montesquieu tem uma base que apresenta dois aspectos
reciprocamente condicionantes: um objetivo (as desigualdades), o outro
subjetivo (a honra). A divisão em classes ou estratos é claramente uma
divisão por linhas horizontais, e as diferenças que dela resultam são
vinculadas à atividade social, e na verdade a determinam; são diferenças
políticas imediatas: indicam a quem cabem os privilégios e o princípio da
honra. Na sociedade civil de Hegel, a divisão é sobretudo econômicosocial: feita com linhas verticais, de modo que, no âmbito da reprodução
social, cada unidade é funcional em relação às outras e ao conjunto, pelo
A Monarquia Constitucional
159
que todas estão em princípio no mesmo plano. As diferenças sociais
resultantes consistem, em primeiro lugar, simplesmente na particularidade da atividade de cada um com respeito aos demais, mas também na
"desigualdade das fortunas", que é o resultado de fato e inevitável da
atividade social e da divisão econômica "funcional".
Justamente por isso a desigualdade não é preestabelecida, e nada tem
a ver com os privilégios do ancien regime: De fato, a abolição dos privilégios
é para Hegel uma conquista positiva da Revolução Francesa. Na verdade,
um resíduo do princípio da honra subsiste ainda na visão hegeliana: refirome à "dignidade do grupo", que o filósofo atribui aos membros das
corporações. De qualquer forma, essa dignidade, como expressão imediata do princípio da particularidade, tem validade efetiva no âmbito da
sociedade civil, e não no do Estado. A causa da ação política é, para Hegel,
o "dever", que se dirige ao universal, e não o interesse associado à posição
social de cada um. Poder-se-ia dizer que, em Hegel, o dever substitui a
honra como "mola" (princípio, no sentido específico de Montesquieu) do
Estado moderno, monárquico-constitucional. Sobre este complexo de
diferenças se baseia a interpretação que dá Hegel à monarquia de
Montesquieu como forma de governo ligada a institutos pré-modernos.
"O fato de que Montesquieu reconhece a honra como princípio da
monarquia decorre do fato de que ele tem em mente não a constituição
patriarcal ou antiga, em geral, nem a que se desenvolve com uma
constituição objetiva, mas a 'monarquia feudal', enquanto as relações
do seu direito interno são concretizadas... em privilégios de indivíduos e
de corporações. Como nessa constituição ávida do Estado se fundamenta
em uma personalidade privilegiada, em cuja vontade reside em grande
parte o que se deve fazer para a existência do Estado, a objetividade de tais
prestações não se coloca nos deveres, mas sim na representação e na
opinião; assim em lugar do dever, o que mantém o Estado unido é a
honra" (Fil. Dir. § 273).
Os membros do Estado descrito por Hegel não atuam com base no
privilégio, nem, de modo geral, com base num princípio particular, como
acontece na sociedade civil, mas sim na base do dever; e o dever para os
indivíduos é o de "levar uma vida universal": nisso está também sua
verdadeira liberdade. Em outras palavras, para Hegel a liberdade consiste
na obediência às leis, porque assim os indivíduos cumprem conscientemente seu dever na coletividade. Na visão de Hegel, o Estado é, de
modo geral, o reino da liberdade, pois nele cada indivíduo, cumprindo
seu dever, tem consciência do objetivo que busca, e que as leis
prescrevem — o bem coletivo. A sociedade civil é o reino da necessidade,
pois sua finalidade coletiva- a subsistência material e o bem-estar geral- é
alcançada sem intenção consciente por pane dos cidadãos, que na sua
vida particular (isto é, enquanto membros da sociedade civil) perseguem
cada qual seus fins individuais.
Bem diferente é a liberdade de que fala Montesquieu, que pode ser
definida, de modo geral, como liberdade "negativa" — a ausência da
opressão e dos abusos. Se tentarmos encontrar a forma positiva desse
conceito, relacionando-o com a estrutura hierarquizada do Estado
160
A Teoria das Formas de Governo
monárquico descrito por Montesquieu, veremos claramente como a
liberdade "de fazer o que as leis permitem" consiste, na verdade, na
possibilidade de agir com base nas prerrogativas da situação de cada um,
assegurada e garantida pela lei. Em outras palavras, a condição da
liberdade, na monarquia de Montesquieu, é a garantia dos privilégios.
Nessa perspectiva se deve ver o tema recorrente do perigo que ameaça a
monarquia moderada de recair no despotismo - invocado por Montesquieu para explicar sua aversão pelo absolutismo. Na mesma perspectiva,
porém, deve-se considerar o sentido da teoria da separação dos poderes,
instrumento de defesa da liberdade contra os abusos.
Embora a interpretação deste aspecto do pensamento de Montesquieu apresente muitas dificuldades, não há dúvida de que a separação
dos poderes é concebida como um sistema de "freios" para manter
determinado "equilíbrio"; o objetivo desse sistema é evitar que alguma
potência (especialmente o rei) adquira tanto poder (atribuindo-se as
diversas funções do Estado) que esvazie as prerrogativas e os privilégios de
todas as outras (em particular da nobreza). Hegel, que aceita o princípio
da divisão dos poderes, com vista à liberdade pública, critica duramente
esse modo de conceber tal divisão, com base no conceito próprio de
liberdade crítica:
"... a divisão necessária dos poderes do Estado... se fosse considerada
no seu significado verdadeiro, justamente, poderia ser considerada a
garantia da liberdade pública...; mas, como a entende o intelecto abstrato,
nela vamos encontrar, em parte, a falsa determinação da autonomia
absoluta dos poderes, um com relação ao outro, e era parte o caráter
unilateral que implica a interpretação do seu relacionamento recíproco
enquanto negativo, considerado como limitação mútua. Deste ponto de
vista, o princípio (da divisão dos poderes) se transforma em hostilidade,
medo diante de cada um dos poderes..., com a determinação de opor-se a
eles e de realizar, com este contrapeso, um equilíbrio geral, mas não uma
unidade viva" (Fil. Dir. § 272).
Ao reafirmar o princípio da unidade do Estado, Hegel ataca a
autonomia absoluta (isto é, a separação) dos poderes com argumentos de
puro sabor hobbesiano:
"Com a autonomia dos poderes... surge de imediato, como se viu
largamente, a destruição do Estado, ou, quando este se conserva
essencialmente, a luta pela qual um poder submete outro - ela produz em
primeiro lugar a unidade, ainda que receba outro nome, e salva, assim, só
o que é essencial: a existência do Estado" (ibid.).
Dentro do modelo hegeliano, o princípio da divisão dos poderes
assume novo significado: não representa um artificio concebido para
prevenir o perigo dos abusos do poder, nem é algo de mecânico ou
instrumental, mas sim de orgânico. E o princípio de organização do corpo
político, mediante o qual as esferas particulares são reconduzidas ao
universal. A divisão dos poderes, em que consiste o caráter constitucional
do Estado, é para Hegel a forma racional da unidade política, na
diferenciação própria da vida social moderna.
Vale notar, ainda, que os poderes compreendidos pela constituição
A Monarquia Constitucional
161
descrita por Hegel não correspondem perfeitamente àqueles examinados
por Montesquieu. Com efeito, Hegel distingue: o poder do príncipe, o do
governo, o legislativo. O poder judiciário não aparece nessa partição
porque é interpretado por Hegel não como genuíno poder constitucional,
mas como atividade administrativa diretamente funcional, na ordem civil,
mais do que na política. A administração da justiça é colocada assim por
Hegel no nível da "sociedade civil". Já o poder do príncipe (do monarca,
do soberano) representa um acréscimo ao paradigma dos poderes de
Montesquieu, que tendia a atribuir ao monarca o poder executivo, e não
um poder ulterior, específico. Na constituição de Hegel, é no monarca
que todos os negócios e poderes particulares do Estado encontram sua
unidade definitiva; ele representa o momento da decisão, da resolução
com respeito a todas as coisas, o momento da "pura vontade sem nenhum
acréscimo". No modelo hegeliano, a figura do monarca manifesta,
portanto, a unidade pura e simples do Estado, enquanto esta unidade,
para não ser exclusivamente alegórica, deve concretizar-se na vontade de
uma única pessoa física.
Mas o modelo constitucional hegeliano não teve muita sorte. Embora
Hegel tenha recolhido justamente o caráter, em muitos aspectos antiquado, da construção de Montesquieu, foi esta última, como se sabe (e
não a de Hegel), que teve a maior influência na história das idéias e na
história dos eventos na nossa era.
Capítulo XIII
MARX
Existe uma teoria das formas de governo no pensamento político de
Marx? Esta indagação não é comum entre os numerosos estudiosos que se
têm ocupado do pensamento político de Marx, e que manifestam quase
sempre uma tendência para acentuar sua teoria geral do Estado, em vez de
analisar-lhe aspectos particulares à luz da tradição do pensamento
político atual. Creio, porém, que a resposta a essa pergunta tem um certo
interesse mesmo para a compreensão geral da teoria política marxista, e
para a avaliação da sua utilidade atual.
Empregarei, aqui também, a distinção entre o uso descritivo, o
histórico e o prescritivo da tipologia, começando pelo uso descritivo. Em
nenhum lugar da sua imensa obra encontramos qualquer manifestação
do interesse de Marx pelo problema da tipologia das formas de governo que, no entanto, esteve sempre presente nos escritores políticos, de
Platão a Hegel. Pode-se admitir uma causa extrínseca para esta ausência: o
fato de que, embora se tivesse proposto inicialmente a escrever também
uma "crítica da política", demonstrando seu interesse pela teoria política
ao comentar alguns parágrafos a respeito do Estado da Filosofia do Direito,
de Hegel (vide o texto juvenil Crítica da Filosofia do Direito Público de Hegel,
escrito em 1843 e só em 1927 publicado pela primeira vez), Marx não
produziu nenhuma obra dedicada expressamente ao problema do
Estado. Sua teoria política precisa ser extraída de trechos, em geral curtos,
de obras de economia, história, política, letras, etc. Uma obra abrangente
sobre o Estado é a de Engels, A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, de
1884, cujo tema, contudo, é mais o da formação histórica do Estado do
que o da organização do poder político - problema central da teoria
política clássica. Penso que uma razão intrínseca do pouco interesse de
Marx (bem como de Engels, que contudo escreveu todo um livro sobre o
Estado) pela tipologia das formas de governo é sua concepção caracteristicamente negativa do Estado. Já expliquei, no capítulo quinto, o que
164
A Teoria das Formas de Governo
quero dizer com "concepção negativa do Estado". • Em Marx, essa
concepção negativa é ainda mais evidente quando se a compara com a
concepção extremamente positiva do seu grande predecessor e antagonista, Hegel. No que diz respeito à relação entre sociedade civil e Estado, a
posição de Marx é antitética à de Hegel. Para este, o Estado é "racional em
si mesmo, e por si mesmo", é o "deus terreno", o sujeito da história
universal, o momento final do espírito objetivo; como tal, supera as
contradições que se manifestam na sociedade civil. Para Marx, ao
contrário, o Estado não passa do reflexo dessas contradições; não é sua
superação, mas sim sua perpetuação.
Não só para Hegel, aliás, mas para a maioria dos filósofos clássicos, o
Estado representa um momento positivo na formação do homem civil. O
fim do Estado é ora a justiça (Platão), ora o bem comum (Aristóteles), a
felicidade dos súditos (Leibniz), a liberdade (Kant), a máxima expressão
do etkos de um povo (Hegel). É considerado geralmente como o ponto de
escape da barbárie, da guerra de todos contra todos; visto como o
domínio da razão sobre as paixões, da reflexão sobre o instinto. Grande
parte da filosofia política é uma glorificação do Estado. Marx, ao
contrário, considera o Estado como um puro e simples "instrumento" de
domínio; tem uma concepção que chamaria de "técnica", para contrapor
à concepção "ética" prevalecente nos escritores que o precederam, entre
os quais o representante máximo é certamente o teórico do "estado
ético".
Em poucas palavras, os dois elementos principais da concepção
negativa do Estado em Marx são: a) consideração do Estado como pura e
simples superestrutura que reflete o estado das relações sociais determinadas pela base econômica; b) a identificação do Estado como aparelho
de que se serve a classe dominante para manter seu domínio, motivo pelo
qual o fim do Estado não é um fim nobre, como ajustiça, a liberdade ou o
bem-estar, mas pura e simplesmente o interesse específico de uma parte
da sociedade; não é o bem comum, mas o bem da classe dominante, o
bem particular de quem governa - o que, como vimos, fez com que se
considerasse sempre o Estado que o manifesta como uma forma
corrompida. No que diz respeito ao primeiro ponto, limito-me a estas
citações:
"A vida material dos indivíduos, que não depende em absoluto da sua
vontade pura, seu modo de produção e a forma de relacionamento que os
condiciona reciprocamente são 'a base real do Estado', e continuam a sêlo em todas as fases nas quais é ainda necessária a divisão do trabalho e a
propriedade privada... Essas relações reais não são em absoluto criadas
pelo poder do Estado; na verdade, elas constituem o poder que cria o
Estado (Ideologia Alemã)"'.
Na obra seguinte, publicada em 1845, A Sagrada Família - uma
polêmica com Bruno Bauer -, Marx escreve:
"Só a 'superstição política' pode imaginar ainda hoje que a vida civil
deva existir dentro do Estado; na verdade, é o Estado que existe dentro da
vida civil".
Está claro que neste ponto Marx entende por "superstição política"
Marx
165
qualquer concepção que, valorizando excessivamente o Estado, termina
por fazer dele um "deus terreno", ao qual devemos sacrificar até a vida em
nome do interesse coletivo- que só o Estado representaria. Tomando essa
expressão no seu sentido mais fértil, diríamos que a teoria do Estado de
Marx representa o fim da superstição política (mesmo que não esqueçamos Maquiavel, para quem o Estado era, como para Marx, pura e simplesmente um instrumento de poder). Eis outra passagem, a mais conhecida:
"O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura
econômica da sociedade, ou seja, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, à qual correspondem formas determinadas de consciência social" (Pela Crítica da Economia Política, Prefácio).
No que diz respeito ao segundo ponto, basta lembrar a famosa
afirmativa do Manifesto do Partido Comunista, de 1848:
"No sentido próprio, o poder político é o poder de uma classe
organizado para oprimir outra classe".
Numa concepção negativa do Estado, o problema da diferenciação
das formas de governo, e sobretudo a distinção entre formas boas e más,
perde grande parte da sua importância, como já notei no capitulo quinto.
Numa concepção negativa do Estado, este é sempre mau — qualquer que
seja a forma de governo. O que importa para Marx e para Engels (como
para Lenin) é a relação real de domínio, entre classe dominante e classe
dominada, qualquer que seja a forma institucional de que se revista.
Porque a forma institucional não altera substancialmente a realidade da
relação de domínio, que tem suas raízes na base real da sociedade, isto é,
nas relações de produção. Do ponto de vista das relações reais de
domínio, não das aparentes (fixadas nas constituições formais, ou nas
estruturas institucionais), cada Estado é uma forma de despotismo. Vejase, por exemplo, esta passagem, extraída de uma das obras de Marx mais
ricas em referências de teoria política:
"A derrota dos insurretos de junho tinha preparado o terreno sobre o
qual poderia ser fundada a república burguesa; no entanto, tinha
demonstrado também que havia na Europa outros problemas além do da
república ou monarquia. Revelara que a república burguesa significa
'despotismo absoluto de uma classe sobre outras classes'" (O Dezoito
Brumário de Luís Bonaparte, cap. I).
Depois de tudo o que disse sobre o "despotismo" como categoria
histórica, esta identificação do conceito de "república" com o de
"despotismo" parece estranha. Mas na verdade não é estranha, se se leva
em conta que neste contexto "república" indica a forma de governo, que
como tal é pura e simplesmente o aspecto externo, e "despotismo" indica
a natureza da relação real de domínio, que se serve da forma institucional
mais adequada.
Pode-se observar que no próprio texto do qual retirei a citação, Marx
identifica uma forma genuína de governo, distinta do Estado representativo — o chamado "bonapartismo". Esta observação, embora de muita
importância devendo ser levada em conta, não demonstra contudo que a
tese da irrelevância das formas de governo é errônea. Que é o "bonapartismo"? Num texto escrito alguns anos mais tarde, Engels, depois de
166
A Teoria das Formas de Governo
reafirmar a tese de que o Estado é sempre o Estado da classe mais
poderosa, acrescenta que, excepcionalmente, quando as classes antagônicas têm quase a mesma força, o poder estatal pode assumir função
mediadora entre as classes, adquirindo uma certa "autonomia". Exemplifica com "o bonapartismo do primeiro e especialmente do segundo
império, que se valeu do proletariado contra a burguesia, e da burguesia
contra o proletariado" (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado).
O comentário de Engels, sobre o bonapartismo, faz pensar no modo
como se interpretou no passado, muitas vezes, a figura do tirano clássico,
considerado como aquele que toma o poder num momento de graves
conflitos sociais, fazendo-se árbitro, por cima dos partidos em luta. Na
realidade, se se lê com atenção o ensaio de Marx sobre o golpe de Estado
que levou Luís Napoleão ao poder, em 2 de dezembro de 1851, torna-se
difícil ver na figura do neto de Napoleão um árbitro por cima dos partidos.
O ditador é também um instrumento da classe dominante, a qual, no
momento do perigo, renuncia ao próprio poder, exercido diretamente,
entregando-se nas mãos do "salvador" (a figura do bonapartismo é
lembrada muitas vezes nas interpretações do fascismo). Parece-me
decisivo a este propósito, o trecho que segue:
"Chamando de heresia socialista o que antes exaltara como liberal, a
burguesia confessa que seu próprio interesse lhe impõe fugir ao perigo do
autogoverno. Que, para manter a tranqüilidade no país, deve antes de
mais nada reduzir à calma seu parlamento burguês. Que, para manter
intacto seu poder social, deve destruir seu poder político. Que os
burgueses podem individualmente continuar explorando as outras classes, gozando tranqüilamente os benefícios da propriedade, da família, da
religião e da ordem, desde que sua classe seja condenada a ser um zero
político. Que, para salvar a bolsa, é preciso perder a coroa" (cap. IV).
Assim, com a ascensão do ditador ao poder, a burguesia renuncia ao
poder político - mas não renuncia ao poder econômico; dir-se-ia mesmo
que, em certos momentos de graves tensões sociais, o único meio de que
dispõe a classe dominante para manter seu poder econômico é a renúncia
momentânea ao poder político (até que a ordem seja restabelecida). Mais
do que uma nova forma de governo, o bonapartismo é uma inversão de
papéis no âmbito do Estado burguês. Com efeito, para Marx a novidade
do governo bonapartista consiste no fato de que o poder executivo é mais
importante do que o legislativo (o que aconteceu na Itália, por exemplo,
com o advento do fascismo). Enquanto no governo representativo o
centro do poder estatal é o parlamento, do qual depende o poder
executivo, no Estado bonapartista o executivo marginaliza o legislativo,
apoiando-se no "espantoso corpo parasitário" da burocracia. Todavia,
essa inversão de papéis nada altera na natureza do Estado, que é sempre
um Estado de classe, exercendo poder despótico. Para confirmar a pouca
relevância das formas de governo na teoria do Estado de Marx, parece-me
que não há frase mais eloqüente do que esta:
"A França parece assim ter escapado do despotismo de uma classe
para recair sob o despotismo de um indivíduo" (cap. VII).
Marx
167
Muda o titular do poder político, o que não muda é a natureza
despótica do Estado - qualquer que seja este, enquanto Estado, é, por
natureza, despótico. Mudando a forma de governo, muda o modo como o
poder é exercido, não a substância do poder. Em suma, a categoria do
despotismo, que até então sempre caracterizou um tipo de Estado, e de
modo geral (salvo a exceção aceita pelos fisiocratas), um tipo corrompido
de Estado, adquire na linguagem de Marx significação geral, servindo
para indicar a própria essência do Estado.
Por outro lado, na linguagem marxista o termo mais usado para
indicar, o domínio de uma classe sobre outra não é "despotismo", que
encontramos nos trechos de Marx acima reproduzidos, mais sim "ditadura". Tornaram-se usuais na teoria política marxista, para designar o
Estado burguês e o Estado proletário, as expressões "ditadura da
burguesia" e "ditadura do proletariado". Parece que Marx utilizou pela
primeira vez a expressão "ditadura do proletariado" na carta escrita a
Joseph Weydemeyer, em 5 de março de 1852, que teve o mérito de
demonstrar que: 1) a existência das classes só está ligada a determinada
fase do desenvolvimento histórico da produção; 2) a luta das classes leva
necessariamente à "ditadura do proletariado"; 3) esta ditadura constitui
apenas uma passagem para a fase de supressão de todas as classes, a uma
sociedade sem classes.
A carta a Weydemeyer foi considerada por Lenin, em Estado e
Revolução, de 1917, como um dos documentos mais importantes da teoria
marxista do Estado, com o seguinte comentário:
"Só é marxista quem estende o reconhecimento da luta de classes até
a admissão da 'ditadura do proletariado'. Essa ê a diferença mais
profunda entre o marxista e o pequeno burguês".
É ainda Lenin que comenta:
"A essência da doutrina do Estado de Marx só é alcançada por quem
compreende que a ditadura de uma classe é necessária não apenas para
toda sociedade classista, de modo geral - não só o proletariado, depois de
ter derrubado a burguesia-, mas para todo o período histórico que separa
o capitalismo da sociedade sem classes e do comunismo. As formas que
assumem os Estados burgueses 'são extraordinariamente variadas', mas
sua essência é uma só: todos esses Estados constituem em última
instância, de um modo ou de outro, uma 'ditadura da burguesia'. A
transição do capitalismo ao comunismo, indubitavelmente, 'não pode
deixar de produzir grande número e variedade de formas políticas', mas
sua essência será inevitavelmente uma só: a 'ditadura do proletariado'".
Essa passagem é importante para os nossos propósitos, porque,
embora admitindo que "as formas que assumem os Estados burgueses
são extraordinariamente variadas", e que a transição para o comunismo
"não pode deixar de produzir grande número e variedade de formas
políticas", reconhece que em sua essência o Estado é sempre uma
ditadura de classe - no primeiro caso, da burguesia, no segundo, do
proletariado. Como se vê, o que comentei a respeito das frases que
empregam o termo "despotismo" vale também para aquelas que usam
"ditadura" - considerado como sinônimo, embora seu significado seja
168
A Teoria das Formas de Governo
muito diferente. A relação fundamental de domínio, que deriva da forma
de produção, é num certo sentido indiferente à forma de governo; em
outras palavras, a descontinuidade eventual das formas de governo não
incide sobre a continuidade da relação de domínio, uma vez que qualquer
relação de domínio encontra sempre a forma de governo apropriada à sua
substância, enquanto não se alteram as relações sociais, isto é, os vínculos
subjacentes às formas políticas.
O desinteresse de Marx pelas formas de governo é confirmado pela
sua filosofia da história que, ao contrário das precedentes (até Hegel),
prescinde completamente das formas de governo para determinar as
etapas do desenvolvimento histórico. Já no século XVIII, Montesquieu
havia proposto um critério de classificação dos vários momentos do
progresso histórico que prescindia completamente das formas de governo, levando em conta apenas a variedade dos sistemas econômicos.
Refiro-me à distinção entre povos selvagens (caçadores), bárbaros (pastores), civis (agricultores), que o próprio Montesquieu comentou, sem
contudo relacioná-la com a divisão tríplice das formas de governo:
"Entre os povos selvagens e bárbaros há esta diferença: os primeiros
são pequenas nações dispersas que, por alguma razão especial, não se
podem reunir; os bárbaros são, de modo geral, pequenas nações que
podem reunir-se. Os primeiros são geralmente povos caçadores; os
segundos, pastores" (Livro XVIII, cap. 11).
Em 1767, aparecia a obra do escocês Adam Ferguson, An Essay on lhe
History of Civil Society, em grande parte inspirada em Montesquieu, que
descrevia o desenvolvimento da humanidade em três momentos: as
nações selvagens, bárbaras e civis, referindo-se em primeiro lugar às
instituições econômicas, e muito especialmente à propriedade. O nascimento da economia, no século XVIII, e da sociologia, no XIX.contribuiu para que se desse mais atenção à história do progresso civil da
humanidade, do ponto de vista do sistema econômico ou social, do que
sob o ângulo do sistema político. O critério adotado por Marx para dividir
as várias épocas da história é, como se sabe, o da evolução das relações de
produção, segundo a qual a humanidade teria passado da sociedade
escravista para a sociedade feudal, e desta para a burguesa, estando
destinada a passar da sociedade burguesa para a socialista (e depois a
comunista). Em Marx, o que subsiste das filosofias da história precedentes
é a interpretação substancialmente eurocêntrica, que relega o inundo
oriental a um espaço à parte, caracterizado pela imobilidade. Como se
sabe, Marx considera, ao lado dos modos de produção escravista, feudal e
capitalista, o "asiático", a respeito do qual afirma:
"O organismo produtivo simples destas comunidades auto-suficientes (refere-se às comunidades agrícolas indianas) que se reproduzem
da mesma forma e que, quando são destruídas, se reconstroem no mesmo
local, sob o mesmo nome, nos permite compreender o segredo da
'imutabilidade' das 'sociedades' asiáticas, que oferecem um contraste tão
evidente com a constante dissolução e reforma dos 'Estados' asiáticos, e
com a mudança incessante das dinastias" (O Capital, I, 2).
No que concerne ao Estado e sua evolução, o livro de Engels, já
Marx
169
citado, sobre a origem da família e do Estado (o qual retoma e amplia as
conclusões do antropólogo norte-americano Lewis Morgan, em The
Ancient Society, de 1877), apresenta uma linha de evolução da história da
humanidade dividida em três fases. A princípio o homem se reúne em
grupos que têm uma organização comunitária e familiar, não conhecem a
propriedade e a divisão do trabalho, e nada apresentam em comum com o
tipo de organização social baseada na divisão em classes antagônicas e no
domínio de uma classe sobre outra, que chamamos de "Estado". É uma
fase "pré-estatal", que corresponde ao "estado da natureza" dos jusnaturalistas, à fase das famílias, de Vico, à era dos selvagens, de
Montesquieu e seus seguidores. Sucede-se a etapa do Estado, que dura até
hoje, e que, sob certos aspectos, representa uma decadência em relação à
fase inicial. Decadência da qual a humanidade poderá salvar-se com um
salto qualitativo, que a leve da fase do Estado à da dissolução do Estado,
mediante "etapa de transição" destinada a extinguir gradualmente as
instituições políticas. O trecho adiante reproduzido mostra como Engels,
à maneira de Rousseau, considera decadente a passagem das sociedades
primitivas à sociedade de classes - o início de um longo período de
corrupção (embora isso possa arranhar nossos ouvidos):
"Essa constituição paga, com todas as puerilidades e sua simplicidade, é maravilhosa!"
E mais adiante:
"Eram assim os homens e a sociedade antes da divisão em classes. Se
comparássemos sua situação à da imensa maioria dos homens civilizados
de hoje, veríamos que é enorme a distância que medeia entre o
proletariado e o pequeno camponês de hoje e o membro livre da antiga
gens".
Eis como Engels descreve, idilicamente, a vida dos povos primitivos
(retomando o tema do "bom selvagem", de Rousseau e do século
dezoito):
"Sem soldados, gendarmes e policiais; sem nobres, rei, governadores,
prefeitos ou juizes; sem prisões, processos, tudo segue seu curso normal.
Todos os litígios e disputas são decididos pela coletividade dos que têm
interesse no problema, pela gens ou pela tribo, ou então gentes singulares
entre si... Embora os assuntos comuns fossem bem mais numerosos do que
hoje (a administração é comum a uma série de famílias, é comunal; o solo
é propriedade da tribo - só as pequenas hortas são confiadas provisoriamente às administrações domésticas), não era necessário manter nem a
sombra do nosso vasto e complicado aparelho administrativo. Os
interessados decidem e, na maior parte dos casos, o costume secular já
regulamentou tudo. Não pode haver pobres ou necessitados: a administração comunal e agem conhecem suas obrigações para com os idosos, os
doentes e os órfãos de guerra. Todos são livres e iguais, inclusive as
mulheres".
Reproduzi integralmente a passagem porque as características com
que Engels descreve as sociedades primitivas são as mesmas que toda a
tradição marxista atribuirá à sociedade sem Estado, prometida pelo
comunismo: a ausência de um poder coator e opressivo, a inexistência de
170
A Teoria das Formas de Governo
um aparelho administrativo (a qual se efetivará, segundo Lenin, quando
até as cozinheiras possam decidir assuntos do Estado), a substituição das
leis pelos costumes, liberdade e igualdade para todos.
A fase do Estado é, portanto, intermediária entre a etapa pré-estatal já
irremediavelmente transcorrida e a fase pós-estatal que virá ainda. Como
se articula esta longa fase do Estado? Tanto Vico quanto Hegel, para dar os
exemplos mais conspícuos de uma filosofia da história que abrange o
curso histórico da humanidade, tinham partido de uma fase pré-estatal
para percorrer em seguida a fase do Estado, superando gradualmente a
república aristocrática, a república democrática, a monarquia (para Vico);
o despotismo, a república, a monarquia (para Hegel). Engels porém não
pensava da mesma maneira:
"Como o Estado nasceu da necessidade de frear os antagonismos de
classes, mas seguiu também no meio de conflitos entre essas classes, representa, como regra geral, a classe mais poderosa, economicamente
dominante, que o utiliza para se tornar também politicamente dominante,
adquirindo mais um instrumento para submeter e explorar a classe
oprimida. Do mesmo modo como o Estado antigo foi, antes de mais nada,
o Estado dos proprietários de escravos, que se destinava a mantê-los
submetidos, assim também o Estado feudal foi um órgão da nobreza, que
sujeitava os camponeses; e o Estado representativo moderno é um
instrumento para a exploração do trabalho assalariado por parte do
capital".
Dos três tipos de Estado que Marx enumera, só o terceiro - o Estado
representativo — pode ser considerado como uma forma de governo. Os
outros dois - o Estado escravista e o feudal - se caracterizam não pela
forma de governo, mas pelo tipo de sociedade que refletem. Melhor dito,
pelo tipo de relações de produção (relação entre senhores e escravos, entre
os nobres e os camponeses) que, como Estado, pretendem perpetuar. Não
é preciso mais, na minha opinião, para reafirmar que, na teoria do Estado
de Marx e Engels, as tipologias das formas de governo, empregadas durante
séculos para dividir as fases da história, perderam quase todo valor.
Para terminar, encontramos em Marx o uso prescritivo da teoria das
formas de governo? Em outras palavras, Marx propõe, pelo menos para o
futuro Estado, o problema da "melhor" forma de governo? Embora tanto
Marx quanto Engels tenham sido sempre muito avaros em indicações a
respeito da organização do Estado futuro, encontramos uma ou outra
sugestão nas páginas que Marx escreveu sobre a experiência de governo
da Comuna de Paris, entre março e maio de 1871. Costuma-se dizer que
Marx extraiu dessa experiência a idéia de que o Estado proletário (isto é, o
Estado como "domínio organizado do proletariado") representaria uma
democracia direta, com a participação dos cidadãos nos vários órgãos
detentores de poder, sem representantes eleitos, em contraste com a
democracia representativa, própria do Estado burguês.
A democracia direta fora o ideal de Rousseau que, criticando o
sistema representativo inglês, havia sentenciado que o povo inglês "pensa
ser livre, mas muito se engana; só é livre durante a eleição dos membros do
parlamento. Logo depois de elegê-los, torna-se escravo, não vale mais
Marx
171
nada" (Contrato Social, III, 15). Ê provável que Marx tivesse em mente a
democracia no sentido de Rousseau quando, na Crítica da Filosofia do Direito
Público de Hegel, uma obra da juventude, contrapõe ao ideal hegeliano da
monarquia constitucional o ideal da democracia, que qualifica como "o
enigma resolvido por todas as constituições".
É verdade que, elogiando o governo da Comuna, exemplar na sua
efêmera realidade, Marx tende a acentuar sobretudo o exercício direto
dos vários graus de poder estatal pelo povo, que participa das diferentes
funções governamentais. De fato, depois de afirmar que a Comuna foi a
antítese direta do império (a forma de Estado que lhe tinham sugerido as
páginas sobre o "bonapartismo"), Marx enumerara alguns aspectos do
breve governo da Comuna que lhe parecem uma inovação radical com
respeito às formas de governo precedentes: 1) a supressão do exército
permanente, substituído pelo povo em armas; 2) eleições por sufrágio
universal dos conselheiros municipais, permanentemente responsáveis e
demissíveis, e a transformação da Comuna em local de trabalho conjunto
executivo e legislativo; 3) retirada das atribuições políticas da polícia, com
sua transformação em instrumento responsável da Comuna; 4) o mesmo
com relação à administração pública, com a redução drástica dos
estipêndios (ao nível dos salários recebidos pelos operários); 5) dissolução
e desapropriação de todas as igrejas, como entidades proprietárias;
6) acesso gratuito do povo a todas as instituições de ensino; 7) eletividade
dos magistrados e juizes, que passam a ser responsáveis e demissíveis
como todos os outros funcionários públicos.
O exemplo da Comuna de Paris deveria estender-se a todas as
comunas francesas, de modo que o antigo governo centralizado fosse
substituído pelo "autogoverno dos produtores". Das comunas se irradiariam para o centro os delegados da periferia, a fim de tratar dos assuntos
de interesse nacional, de forma tal que não se reconstituísse um
parlamento soberano central, formando-se apenas um ponto de encontro
para os delegados locais.
Parece-me que os temas principais da "melhor" forma de governo,
segundo Marx, podem ser assim resumidos: a) supressão dos chamados
"corpos separados", como o exército e a polícia; b) transformação da
administração pública, da "burocracia" (contra a qual Marx escreveu
ferozmente, desde a sua juventude), em corpos de agentes responsáveis e
demissíveis, a serviço do poder popular, c) extensão do princípio da
eletividade, e portanto da representação, sempre revogável, a outras
funções públicas, como a de juiz; d) eliminação da proibição do mandato
imperativo (um instituto clássico das primeiras constituições liberais), que
seria imposto a todos os eleitos - isto é: a obrigação de os representantes
seguirem as instruções dos seus eleitores, sob pena de revogação do
mandato; e) amplo processo de descentralização, de modo a reduzir ao
mínimo o poder central do Estado.
Para comentar essas breves indicações de Marx foram gastos rios de
tinta. Basta-nos dizer aqui que o que Marx propõe não é tanto a
democracia direta, no sentido próprio (isto é, a forma de democracia na
qual todos participam pessoalmente da deliberação coletiva, como
172
A Teoria das Formas de Governo
acontece nos casos de referendum), mas a democracia eletiva com revogação dos mandatos - uma forma de democracia em que os representantes eleitos têm seu mandato limitado às instruções recebidas dos
eleitores. As indicações sumárias mas incisivas de Marx, neste sentido, se
tornaram célebres por terem inspirado Lenin, em pleno fogo da revolução: um capítulo de Estado e Revolução foi dedicado a comentar as páginas
de Marx sobre a Comuna de Paris. Nelas, Lenin vê "a substituição
grandiosa de um tipo de instituição por instituições baseadas em outros
princípios": uma democracia "exercida integral e coerentemente", de
modo a transformar a "democracia burguesa" em "democracia proletária", e a mudar o "Estado", entendido como força especial para a
repressão de uma classe determinada, em "algo que não é mais
exatamente o Estado".
Não há dúvida de que, para Marx, ao contrário de todos os escritores
políticos que o precederam, a melhor forma de governo é aquela que
agiliza o processo de extinção do Estado- que permite a transformação da
sociedade estatal em sociedade não-estatal. A essa melhor forma de
governo corresponde a fase que Marx chama de "transição" (de Estado
para a ausência de Estado), e que é, do ponto de vista do domínio de
classe, o período da "ditadura do proletariado". Para usar as mesmas
palavras usadas por Marx na Crítica ao Programa de Gotha:
"Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista transcorre o
período da transformação revolucionária de uma em outra. A ele
corresponde também um período político de transição, que não pode ser
senão a 'ditadura revolucionária do proletariado'".
Ou ainda, para usar palavras de Engels, na introdução a uma reedição
dos textos marxistas sobre a guerra civil francesa:
"O filisteu social-democrático ultimamente se sentiu outra vez
dominado por salutar terror, ao ouvir a expressão 'ditadura do proletariado'. Muito bem, senhores, querem saber em que consiste essa
ditadura? Vejam a Comuna de Paris, que foi uma ditadura do proletariado" (citado de Marx-Engels, O Partido e a Internacional).
Capítulo XIV
INTERVALO: A DITADURA
Como vimos no capítulo precedente, os termos "despotismo" e
"ditadura" são empregados, na linguagem marxista, como sinônimos,
nas expressões "despotismo de classe" e "ditadura de classe". Mas, como
também já dissemos, "ditadura" terminou por prevalecer, de modo que
hoje, tanto na linguagem comum como na especializada, dos três termos
tradicionalmente empregados para indicar um governo absoluto, exclusivo,
pessoal, moral e juridicamente condenável - "tirania", "despotismo" e "ditadura" -, os dois primeiros caíram em desuso. Só o terceiro é usado
continuamente, aplicado às situações mais diversas.
Começou-se a falar em ditadura a propósito do fascismo italiano;
depois, do nacional-socialismo (nazismo) alemão, do stalinismo, e por
fim de todos os governos, inclusive o dos coronéis gregos e o do general
Pinochet (Chile), cujo regime constitucional precedente foi afastado pela
força e onde, depois da conquista do poder por um grupo armado, o
governo continua a ser exercido com violência, supressas todas as
liberdades civis e políticas. Em 1936, Élie Halévy definia a sua época
como "era das tiranias"; mas hoje ninguém mais usaria essa expressão
para definir os vinte anos decorridos entre as duas grandes guerras: os
regimes que Halévy chamava (talvez com maior propriedade, seguindo a
tradição) de "tiranias" passaram à história com o nome de
"ditaduras".
"Ditadura", como "tirania" e "despotismo", é um termo que nos
vem da Antigüidade clássica - embora do mundo romano, e não do
helênico. Em Roma, chamava-se de "ditador" um magistrado extraordinário, ocupante de cargo instituído por volta de 500 a. Ce que perdurou
até o fim do século III antes de Cristo. O "ditador" era nomeado por
um dos cônsules em circunstâncias extraordinárias, como uma guerra
(dictator rei publicae gerendae cansa) ou rebelião (dictator seditionis sedandae
causa). Dada a excepcionalidade da situação, o ditador recebia poderes
extraordinários, consistindo sobretudo no desaparecimento da distinção
174
A Teoria das Formas de Governo
entre o imperium domi (o comando soberano exercido dentro dos muros da
cidade), sujeito a limites que hoje chamaríamos de "constitucionais" como a provocatio ad populum - e o imperium militae (comando exercido
fora dos muros caracterizado pela ausência de tais limites).
O contrapeso do caráter excepcional do poder ditatorial consistia na
sua interinidade. O ditador era nomeado só pela duração da tarefa
extraordinária que lhe era confiada; em hipótese alguma deveria exceder
o período de seis meses, ou o mandato do cônsul que o nomeara. O
ditador romano era, portanto, um magistrado extraordinário mas perfeitamente legítimo, cujo poder estava previsto pela constituição, e que se
justificava pelo "estado de necessidade" (que constitui, do ponto de vista
jurídico, um "fato normativo", o qual suspende a situação jurídica
precedente ou estabelece nova situação jurídica). As características da
ditadura romana podem ser resumidas brevemente assim: a) estado de
necessidade, no que concerne à legitimação; b) excepcionalidade dos
poderes, consistindo sobretudo na suspensão das garantias constitucionais ordinárias; c) unidade de comando (o ditador é sempre um
indivíduo); d) caráter temporário da função. A ditadura romana é,
portanto, uma magistratura monocrática, com poderes extraordinários
mas legítimos (constitucionais), limitada no tempo. Essas características
permitem distingui-la conceitualmente da tirania e do despotismo termos que, na linguagem corrente, são muitas vezes confundidos. A
tirania é monocrática, tem poderes extraordinários, mas não é legítima,
nem necessariamente temporária. O despotismo é monocrático, tem
poderes excepcionais, é legítimo, mas não temporário (pelo contrário, é
um regime de longa duração). As três formas têm em comum o caráter
monocrático e absoluto do poder, mas a tirania e a ditadura diferem no
que respeita à legitimidade (a ditadura tem uma base de legitimidade que
falta à tirania); o despotismo e a ditadura diferem no que diz respeito ao
fundamento de legitimidade (histórico-geográfico para o despotismo, o
"estado de necessidade" para a ditadura). Finalmente, a ditadura se
distingue da tirania e do despotismo devido ao caráter temporário.
É justamente a natureza temporária da ditadura que sempre a
distinguiu da tirania e do despotismo, como forma positiva de governo- a
qual, portanto, não se confundia com as formas corrompidas ou
negativas, como se pode demonstrar com rápidas referências históricas,
para as quais me sirvo de dois autores que já conhecemos - Maquiavel e
Bodin -, bem como de Rousseau, o grande ausente deste curso.
Num capítulo dos Discorsi (cap. XXXIV, Livro I), intitulado, significativamente, A Instituição da Ditadura Fez Bem, e Não Mal, à República
Romana..., Maquiavel refuta os que sustentaram que a ditadura tinha
causado "a tirania imposta a Roma". Mas a causa da tirania (a referência é
a César) não foi a ditadura em si mesma, mas o prolonga mento
do mandato do ditador além dos limites estabelecidos: sabe-se que Sila foi
o primeiro a receber uma ditadura especial (rei publicae constituendae) e
perpétua, que exerceu do ano 82 ao 79 a.C. César foi nomeado ditador
por tempo indeterminado em 48 a.C, e, em 46, ditador anual pelo período
de dez anos. Ao perder sua peculiaridade, que era o caráter temporário, a
Intervalo: A Ditadura
175
função da ditadura se alterava. Maquiavel tem perfeita consciência dessa
peculiaridade, que acentua com a agudeza habitual.
"...o ditador romano era designado por tempo limitado; a duração do
seu poder não excedia as circunstâncias que haviam obrigado à sua
instituição. Sua autoridade consistia em tomar sozinho as medidas que
considerasse oportunas para enfrentar um perigo determinado. Não tinha
necessidade de realizar consultas, e podia punir sem apelo os que
considerasse culpados. Mas o ditador nada podia fazer que atentasse
contra o governo estabelecido - como retirar autoridade ao Senado ou ao
povo, ou substituir as antigas instituições da república. A curta duração da
ditadura, os limites que definiam o seu poder, bem como as virtudes do
povo romano, tornavam impossível que transbordasse da sua autoridade,
prejudicando o Estado, ao qual, pelo contrário, sempre foi de utilidade"
(Discorsi, Livro I, cap. XXXIV).
Maquiavel acentua, acima de tudo, como já observou Carl Schmitt,
em A Ditadura, um aspecto do poder ditatorial que será salientado por
todos os que elogiaram a instituição: o ditador nada podia fazer que
diminuísse o Estado, o que significa que sua função se limitava ao poder
executivo, não se estendendo ao legislativo. Em outras palavras, o ditador
podia suspender momentaneamente as leis vigentes, mas não podia
alterá-las, ou modificar a constituição do Estado. Conforme notei, o
julgamento de Maquiavel sobre a ditadura romana é altamente positivo:
"Enquanto a ditadura se manteve dentro das normas legais, e não foi
usurpada pelos cidadãos, representou um sustentáculo da república. De
fato, os magistrados instituídos por meios extraordinários, e o poder
alcançado por esses meios, não são perigosos para o Estado. Se examinarmos os acontecimentos ocorridos na república romana, veremos que
os ditadores só lhe prestaram serviços importantes, por razões evidentes"
(ibidem).
No capítulo VII indiquei que Bodin apresenta o ditador romano
como exemplo, para distinguir o poder soberano do não-soberano com
base na perpetuidade. Como uma das características da soberania é a
perpetuidade, o ditador romano, enquanto magistrado por tempo
determinado, não podia ser considerado como detentor do poder
soberano - que pertencia, na verdade, aos que nomeavam o ditador. Cito
textualmente:
"Vemos assim que o ditador romano não era um príncipe ou um
magistrado soberano, como muitos já afirmaram, mas só tinha na verdade
uma delegação precisa - conduzir uma guerra, ou reprimir revolta;
reformar o Estado ou instituir novos magistrados. A soberania, porém,
não é limitada quanto aos seus poderes, atribuições ou duração" (Livro I,
cap. VIII).
Com Maquiavel, Bodin respondia aos que objetavam apresentando o
exemplo de Sila, dizendo que " não se tratava de lei ou de ditadura, mas de
cruel tirania", embora Sila tivesse abandonado suas funções depois de
quatro anos, respeitando sempre a liberdade de oposição dos tribunos.
Ao falar de "delegação precisa", Bodin acentua que uma das características da ditadura é a limitação do seu poder, além do limite imposto à
176
A Teoria das Formas de Governo
sua duração-limitação que consiste no fato, já observado por Maquiavel,
de que o ditador exerce o poder no âmbito da função executiva, e não no
da legislativa.
Rousseau dedica todo um capítulo do Contrato Social à ditadura. Parte
da justa consideração de caráter geral de que as leis não podem prever
tudo, e que portanto podem surgir casos excepcionais em que se
justifique a suspensão dos seus efeitos (ao contrário dos escritores
propriamente políticos e dos historiadores, como Maquiavel e Bodin,
Rousseau toma sempre como ponto de partida uma posição de princípio).
"Nesses casos, raros e evidentes, garante-se a segurança pública com um
ato especial, que entrega a responsabilidade governamental ao mais
digno". Essa delegação pode ser dada de duas formas: ou aumentando a
autoridade do governo legítimo- e não se altera portanto a autoridade das
leis, mas só o modo da sua aplicação-ou nomeando um chefe supremo (é
o caso do ditador), quando o perigo é tal que as leis passam a constituir um
obstáculo à ação. Esse líder supremo fará "silenciar todas as leis,
suspendendo momentaneamente a autoridade soberana".
"Deste modo, a suspensão da autoridade legislativa não a abole; o
magistrado que pode silenciá-la não a pode fazer falar: domina-a sem
poder representá-la. Tudo pode fazer, exceto as leis" (Livro IV, cap. IV).
Como se vê, Rousseau insiste particularmente no caráter executivo da
ditadura, afirmando que o ditador pode fazer calar as leis (suspendendo
temporariamente sua validade), mas não pode fazê-las falar (não tem o
poder de promulgar novas leis). O outro ponto salientado por Rousseau é
o caráter temporário da ditadura. Na conclusão desse capítulo, escreve:
"Aliás, qualquer que seja a forma como essa importante delegação é
concedida, torna-se necessário fixar-lhe a duração em termos muito
breves, sem prorrogação possível. Nas crises que fazem necessária tal
delegação, o Estado é logo salvo, ou então destruído. Por outro lado,
passada a necessidade urgente, a ditadura se torna tirânica, ou inútil"
(ibidem).
Contudo, a história da ditadura "executiva", que estudamos através
de Maquiavel, Bodin e Rousseau, é apenas uma pane da história da
ditadura. Precisaremos referir a segunda parte dessa história para
esclarecer o conceito de ditadura da literatura marxista. Conforme
observei no capítulo sobre Bodin, Carl Schmitt chama a ditadura
tradicional de "ditadura comissária", para distingui-la de uma outra
forma que vamos encontrar na Revolução Francesa, por exemplo, e que
denomina de "soberana". Schmitt explica que, enquanto a ditadura
delegada, ou "comissária", limita-se a suspender a constituição justamente para defendê-la, a "ditadura soberana vê em toda a ordenação
política existente um estado de coisas que precisa alterar completamente
com suas próprias ações". Portanto, "não suspende a constituição em
vigor com fundamento num direito que ela própria prevê, mas procura
criar uma situação na qual seja possível impor uma constituição que
entende ser autêntica". A ditadura soberana (que Schmitt chama desse
modo porque o ditador tem o poder soberano, e não um poder delegado)
nasce também de estado de necessidade, propondo-se desde o princípio
Intervalo: A Ditadura
177
como poder excepcional, temporário pela sua natureza, mas a tarefa que
se atribui é muito mais ampla: não só dar remédio a uma crise parcial do
Estado, como uma guerra ou subversão, mas resolver crise total, que
questiona a própria existência do Estado, como pode ser uma guerra civil,
"revolucionária".
Enquanto o ditador comissário se mantém dentro dos limites
constitucionais, o ditador soberano põe em jogo toda a constituição
preexistente, atribuindo-se a tarefa extraordinária de instituir uma outra. O
ditador comissário é "constituído"; o ditador soberano é "constituinte".
O primeiro é investido do poder próprio da autoridade constituída; o
segundo resulta de uma auto-investidura (ou de investidura só simbolicamente popular). O exemplo dado por Schmitt de ditadura soberana é o
da convenção nacional que decidiu, em 10 de outubro de 1793, suspender
a constituição francesa de 1793 (que não voltou a ter vigor), determinando
que a França seria governada provisoriamente por governo "revolucionário", até que se estabelecesse a paz.
Georges Lefebvre, o grande historiador da Revolução Francesa,
apresenta sinteticamente os elementos essenciais do "governo revolucionário", com que a revolução respondeu ao perigo externo e interno,
dizendo que esse governo "foi concebido juridicamente como um regime
provisório, destinado a durar apenas até que fosse aprovada uma nova
constituição", e que "foi também um regime de guerra, destinado a
defender a revolução contra o inimigo interno e o externo, por meio de
poderes excepcionais, que suspenderam os direitos do homem e do
cidadão" (A Revolução Francesa).
Não há dúvida a respeito da continuidade existente entre a ditadura
clássica, ou comissária, e a soberana, e revolucionária (embora uma
ditadura soberana possa ser também anti-revolucionária): esta última
modalidade apresenta, de modo muito nítido, as duas características da
excepcionalidade e do caráter temporário, mesmo que seus limites
temporais não sejam preestabelecidos. Aliás, excepcionalidade e caráter
temporário são dois atributos estreitamente interligados: toda situação
excepcional é vista, em princípio, como temporária. Quando surge um
governo excepcional, revolucionário, ele é sempre provisório, embora se
prolongue no tempo. O que distingue a ditadura soberana da ditadura
comissária é antes de mais nada a perda do caráter monocrático: a
ditadura jacobina não é ditadura de uma pessoa - apesar da importância da
figura de Robespierre -, mas sim de um grupo revolucionário;
concretamente, do Comitê de Salvação Pública. Esta dissociação entre o
conceito de ditadura e o de poder monocrático, mediante a interpretação do
governo provisório revolucionário como ditadura, assinala a passagem do uso
clássico do termo para o uso marxista, engelsiano ou leninista, que introduziu
e divulgou as expressões "ditadura da burguesia" e "ditadura do proletariado"
no sentido de domínio de toda uma classe social, não de uma pessoa ou de
um grupo. A segunda e mais importante característica que distingue a
ditadura comissária da ditadura soberana é a extensão do poder, que não se
limita mais à execução de um comando - embora excepcional - mas se
estende à promulgação de novas leis ou mesmo de
178
A Teoria das Formas de Governo
nova constituição, ainda que, no caso específico, o governo revolucionário francês tendesse a se apresentar como uma ditadura no sentido
clássico, e portanto como um governo que não abole, porém suspende,
excepcional e provisoriamente, as garantias constitucionais.
E preciso notar também que, embora em termos abstratos seja clara a
diferença entre ditadura comissária e soberana, que é a distinção entre a
ditadura clássica e a moderna, entre uma ditadura constitucional e
constituída e uma outra extraconstitucional e constituinte, de fato, os
limites que separam uma da outra nem sempre são fáceis de estabelecer.
Não parece haver dúvida, porém, de que, do ponto de vista da ditadura
clássica, a ditadura soberana-revolucionária ou anti-revolucionária-não
é mais uma ditadura, porém, uma forma diversa de governo, que os
autores clássicos chamam de "tirania" (denominação odiosa, que os
ditadores modernos não aceitam). Quando o ditador, usando o poder que
lhe foi confiado, se apropria de um poder maior, tornando-se soberano,
para um escritor clássico ele deixa de ser um ditador, e passa a ser um
tirano.
Um passo adicional na história da ditadura moderna, que serve de
prelúdio à teoria marxista e leninista da ditadura, foi o dos infelizes
precursores de uma revolução não-burguesa, mas socialista e igualitária:
Babeuf, Buonarroti e seus companheiros, protagonistas da Conspiração
dos Iguais, de 9 e 10 de setembro de 1795. No livro Filipe Buonarroti e os
Revolucionários do Século XIX, o historiador A. Galante Garrone afirma que,
no estado atual das investigações históricas, parece que os iguais preconizavam "um governo revolucionário de poucas pessoas, apoiado no
favor popular e investido de poderes ditatoriais durante o período
seguinte ao da insurreição, até que se instituísse uma ordenação constitucional estável". Uma ditadura soberana, portanto, no sentido de
Schmitt. Procurando precisar o pensamento de Buonarroti (que no fim da
sua vida se tornará o historiador e teórico da seita, com a obra Conspiration
pour VÉgalité dite de Babeuf, de 1830) Schmitt diz que no seu ideário era clara
a noção de que "deve seguir-se à revolução um período transitório
durante o qual os poderes são assumidos ditatorialmente pelos pouquíssimos homens que chefiaram a revolução; e que, devendo esta ser
uma revolução não só política mas também social, a última das revoluções, a ditadura revolucionária deve durar até que as novas instituições
igualitárias tenham sido fundadas e estabelecidas". Num breve texto de
Buonarroti, reproduzido por Galante Garrone, a tese da ditadura pelo
povo (ou sobre o povo?) é enunciada de modo tão claro que chega a ser
provocante. Eis aqui um trecho especialmente significativo:
"Para superar estas dificuldades (as dificuldades que se opõem à revolução) é preciso a força de todos. 'Mas essa força geral não vale de nada se
não for dirigida por uma vontade forte, constante, iluminada, imutável...'
É possível ter a liberdade logo depois da insurreição? Não; somente uma
esperança fundamentada de alcançá-la... Muitas 'reformas são necessárias antes que a vontade geral possa manifestar-se, e ser reconhecida'.
Até que essas reformas se completem, o povo não pode perceber ou
declarar a vontade geral" (ênfase acrescentada).
Intervalo: A Ditadura
179
A conclusão é a seguinte:
"A experiência demonstrou, portanto, 1) que o rei e os privilegiados
são maus dirigentes das revoluções populares; 2) que o povo é incapaz de
regenerar-se por si mesmo, e de designar as pessoas que devem dirigir sua
regeneração; 3) que antes de pensar em constituição e em leis 'é necessário instituir um governo reformista ou revolucionário em outras
bases que não as de uma liberdade regular e pacífica'. Como se organizará o governo revolucionário dos 'sábios' para que tenha a simpatia do povo? Será preciso dar-lhe uma organização correspondente
às funções que deve exercer. Essas funções são de natureza diferente:
dirigir toda a força nacional contra os inimigos externos e internos; criar e
estabelecer as instituições mediante as quais o povo será levado insensivelmente a exercer de fato a soberania; 'preparar a constituição popular',
para completar e concluir a revolução" (ênfase acrescentada).
Se essa passagem não fosse absolutamente clara, a última função
indicada - "preparar a constituição" - poderia caracterizar a natureza
específica da ditadura soberana, que assume o poder primário, do qual
dependem todos os demais poderes, e que é soberano por excelência— o
poder constituinte.
Mas nossos comentários estariam incompletos se não observássemos
que algumas frases (como a que fala de uma vontade "iluminada", e a que
chama de "sábios" os líderes do governo revolucionário) sugerem a
aproximação entre a ditadura revolucionária e o despotismo esclarecido,
ou iluminado, aceita, como vimos, por alguns "sábios" da era do
iluminismo. Não tenho dúvida de que há um vínculo entre o despotismo
na sua acepção positiva e a ditadura, que teve sempre uma conotação
positiva. Decidir se há também um nexo entre o despotismo e a "tirania" é
algo que deixo de boa vontade à decisão do " tribunal da história" - como
diria Hegel.