ARTIGOS
Psicologia & Sociedade, 29: e131525
DISpOSITIvO DAS DROGAS e GOveRnO DA vIDA
DiSPoSitivo De laS DrogaS y gobierno De la viDa
DiSPoSitive of DrugS anD government of life
http://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29131525
Wanderson vilton Silva
universidade federal do rio grande do Sul, Porto alegre/rS, brasil
Simone Maria Hüning
universidade federal de alagoas, maceió/al, brasil
ReSuMO
Na perspectiva da Psicologia Social em diálogo com as teorizações de Michel Foucault e Giorgio Agamben, o
objetivo deste artigo é problematizar de que maneira as drogas são constituídas como explicação para assassinatos
de moradores de rua, construindo práticas e discursos relacionados ao governo da vida e da morte nas cidades.
O material que apresentamos consiste em textos midiáticos e documentos públicos elaborados entre julho de
2010 e novembro de 2012 abordando tais assassinatos. Analisamos como o dispositivo das drogas formula uma
ambiguidade e uma complexidade importantes para o governo dos moradores de rua a partir da construção
de oposições: criminoso ou em situação de vulnerabilidade social. Procuramos contribuir criticamente com
políticas públicas que visem os diversos modos de existir na cidade, pensar os espaços urbanos, os modos de
governo e os processos de subjetivação, considerando a análise da ambiguidade e da complexidade produzidas
em torno do dispositivo das drogas.
palavras-chave: dispositivo; drogas; sem-teto; políticas públicas; homicídio.
ReSuMen
Desde el punto de vista de la psicología social, en el diálogo con Michel Foucault y Giorgio Agamben, el
propósito de este artículo es discutir cómo las drogas son reconocidas como una explicación de los asesinatos de
personas sin hogar, construyendo prácticas y discursos relacionados con el gobierno de la vida y la muerte en las
ciudades. El material analizado se compone de documentos públicos producidos entre julio de 2010 y noviembre
de 2012. Analizamos cómo el dispositivo de las drogas produce una ambigüedad y una complejidad importantes
para el gobierno de las personas sin hogar, desde la construcción de oposiciones: criminoso o en situación de
vulnerabilidad social. Buscamos contribuir críticamente con las políticas públicas relacionadas a los diferentes
modos de existir en la ciudad, pensando en los espacios urbanos y las formas de gobierno y los procesos de
subjetivación, teniendo en cuenta el análisis la complejidad producida alrededor del tema.
palabras clave: dispositivo; drogas; sin techo; políticas públicas; asesinato.
AbSTRAcT
From a Social Psychology perspective in dialogue with the theories of Michel Foucault and Giorgio Agamben,
the purpose of this paper is to address how drugs are constituted as an explanation for the murders of homeless
people, building practices and discourses related to government of life and death in the cities. The material
analyzed consists of media texts and public documents produced between July 2010 and August 2012 that address
such murders. We analyze how the dispositive of drugs formulates an ambiguity and complexity important for
the government of the homeless from the construction of those oppositions: criminal or social vulnerability.
From this analysis we seek to contribute critically to public policies that aim the various modes of existing in
the city, thinking urban spaces, modes of government and the processes of subjectivity, from the analysis of the
ambiguity and complexity produced around the dispositive of drugs.
Keywords: dispositive; drugs; homeless; public policies; homicide.
1/11
Silva, W. V. & Hüning, S. M. (2017). Dispositivo das drogas e governo da vida.
Introdução
A partir de julho de 2010, os jornais de Alagoas
noticiam assassinatos de moradores de rua no estado. A
mídia nacional veicula aos noticiários as investigações
que o Estado e o Município de Maceió empreendiam
sobre um possível grupo de extermínio, compreendido
pelo Ministério Público como uma quadrilha
especializada em limpar a cidade. Naquele ano, a
imprensa nacional e local abordou estes assassinatos
em Alagoas associando-os a um massacre. Em 2011, os
assassinatos continuaram e notícias foram veiculadas
às versões eletrônicas dos jornais locais. Entre julho
de 2010 e fevereiro de 2014, 108 moradores de rua
foram assassinados, conforme dados de relatórios de
mecanismos de direitos humanos, da Polícia Civil, do
Ministério Público e de sites de notícias.
Neste artigo, abordaremos o dispositivo das
drogas, posicionando-nos com certo estranhamento
sobre como surge para explicar os assassinatos de
moradores de rua em Maceió, de maneira similar
ao que vem sendo feito em situações análogas no
cenário nacional. Para isto, traremos materiais de
jornais referentes aos assassinatos e exibiremos o
conceito de dispositivo para nos auxiliar a pensar de
que forma as drogas emergem para dispor as coisas
e os acontecimentos de certo modo, ao favorecer e
fortalecer alguns discursos em detrimento de outros
e fabricar sujeitos e subjetividades neste processo,
viabilizando o governo de suas condutas. Nesse
sentido, discutiremos sobre como este dispositivo
formula uma ambiguidade e uma complexidade
relevantes para pensar os moradores de rua a partir de
oposições como criminoso ou em situação de risco,
humano e não humano, entre outros.
Materiais e metodologia
O material utilizado para a análise é composto
por matérias jornalísticas de sites de notícias locais e
nacionais que veicularam os assassinatos de moradores
de rua em Maceió no período de julho de 2010 até
novembro de 2012. As notícias foram acessadas
através de sites de busca online e busca em sites de
empresas de notícias, tais como Folha.com, Tudo na
Hora, Gazeta Web, G1, entre outros deste tipo, a partir
dos descritores: moradores de rua em Maceió, mortes
de moradores de rua em Maceió, assassinatos de
moradores de rua em Maceió. Além disso, acessamos
documentos públicos e relatórios escritos no período
de julho de 2010 até agosto de 2012 acerca de tais
assassinatos, redigidos por diferentes setores da
sociedade, tais como Igrejas, entidades relacionadas
2/11
aos direitos humanos e o Relatório consolidado sobre
as mortes de moradores de rua na cidade de Maceió,
elaborado pelo Ministério Público Estadual, disponível
no site desta instituição desde 13 de julho de 2012
anexado ao Diário Oicial do Estado.
A análise foi realizada ao considerarmos o que
chamamos de genealogia do acontecimento, que se
caracteriza pela busca minuciosa de descontinuidades,
rupturas e atravessamentos históricos, desnaturalizando
acontecimentos, coisas que pareceriam óbvias a
um primeiro olhar. Nesse aspecto, a genealogia
compromete-se com a geração de crítica, e crítica
do presente (de como nos tornamos o que somos)
direcionada à ação (Foucault, 1979/2011).
Em uma abordagem foucaultiana, buscamos
interrogar o presente e criar estratégias que visam
constituir campos de possibilidades, os quais possam
se efetivar outras formas de lidar com a vida e
com a morte em nossas sociedades. Desse modo,
diferentemente de construir direções e destinos para
as políticas públicas, interessa-nos olhar a cena que
inventam e assim propiciar não sua cristalização ou
estagnação, mas colocá-las em constante movimento
ressaltando sua pontualidade e insuiciência em tratar
da vida como elemento complexo nas relações de
poder.
A análise que fazemos recupera documentos
públicos e matérias jornalísticas veiculados na mídia.
Estas últimas entram como importantes para contar
a história dos assassinatos de moradores de rua em
Maceió, pois são tomadas pelos órgãos públicos
para engendrar ações no Ministério Público Estadual
e na construção de narrativas sobre tais assassinatos
em documentos da Organização dos Advogados do
Brasil em Alagoas. Portanto, ao contar a história dos
referidos assassinatos, torna-se imprescindível para a
análise retomá-las, inclusive como forma de assinalar
e marcar os assassinatos como um acontecimento,
dando-lhes visibilidade e retirando-os do anonimato,
mediante a análise dos registros escassos das páginas
policiais de jornais e de outros documentos públicos.
Para o presente artigo, ocupamo-nos não em
confrontar informações e veriicar sua veracidade, mas
explorar os efeitos de verdade que elas produzem ao
serem veiculadas. Interessa-nos não a origem primeira
desse estado de coisas, mas as produções de práticasdiscursos neste campo de acontecimentos. Conforme
Foucault (1979):
Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era
imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem
exatamente adequada a si; é tomar por acidental
todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas
as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas
Psicologia & Sociedade, 29: e131525
as máscaras para desvelar enim uma identidade
primeira. (p. 17)
Longe disso, buscaremos apresentar tais textos
como disparadores de práticas que constituem
uma realidade sobre a qual vão interagir saberes e
competências num cenário político especíico. É sobre
este arranjo de forças que nos ocuparemos ao longo
do texto.
Posto isto, a seguir exibiremos aspectos gerais
associados à forma como abordamos os materiais
de pesquisa, considerando esses materiais como
disparadores de questões e constituidores de um campo
especíico de problemas e soluções imbricados em
relações de poder. O esquema analítico não consiste
de um modelo aplicável a quaisquer outras análises,
mas uma operação construída especiicadamente no
tratamento dos materiais analisados para este artigo,
inerentes ao caminho de análise que percorremos,
e o referencial foucaultiano de uma genealogia do
acontecimento.
A análise que fez parte dos materiais de
jornais e outros documentos públicos: a partir deles,
identiicamos discursos e práticas relacionados à
construção da problemática produzida sobre os
assassinatos dos moradores de rua em Maceió. Então
seguimos em direção ao que tais discursos e práticas
se associam, atentos à forma como constituem os
assassinatos um problema e quais elementos elencam
para elucidá-lo. Com isso, forma-se um campo
problemático atravessado de relações de poder, a
partir do qual identiicamos práticas de governo
das populações e processos de subjetivação que
estabelecem relações de reciprocidade complexas
para pensarmos os assassinatos de moradores de rua
em Maceió. Portanto, trata-se de operar com conceitos
mais do que isolá-los, tratando-os como ferramentas
teórico-metodológicas que auxiliam na nossa análise.
Com base nos materiais analisados, destacamos
dois discursos aparentemente díspares e contraditórios:
primeiro, um discurso que responsabilizará a forma
como os moradores de rua vivem pelos seus assassinatos,
chamando-os de criminosos que estão se matando; e
segundo, outro discurso que lhes nomeará de sujeitos
que vivem em situação de vulnerabilidade, sendo
assim, vítimas de uma violência institucional e social
que os obrigaría a viver como vivem. No entanto, há
uma mudança importante ao longo das narrativas sobre
esses assassinatos, que fará tais discursos coincidirem
a partir do que chamaremos de dispositivo das drogas.
Nas declarações da polícia civil, as matérias
analisadas destacam a relação dos assassinatos ao
envolvimento dos moradores de rua com as drogas,
tornando-se a principal explicação e justiicativa
nos discursos oiciais. Sob a alegação de que são
criminosos que estão se matando, conigura-se uma
realidade relacionada à dívida com traicantes, que se
constitui como um potente naturalizador de questões
sociais e históricas do Estado de Alagoas. Numa
racionalidade que toma a vida dos referidos sujeitos
como medida para falar de uma periculosidade
inerente às suas condições de vida, apontamos um
corte biopolítico importante entre aqueles que devem
viver e os que devem morrer, seja através do assassínio
ou de sua exclusão ou rejeição (Foucault, 1999). Nos
discursos da polícia e de representantes de entidades de
segurança pública daquele estado, as drogas aparecem
como a causa principal para explicar os assassinatos de
moradores de rua. Ao colocar tal enunciado em análise,
apresentamos um estranhamento a esta explicação
na tentativa de produzir novas possibilidades para
pensar atravessamentos históricos, políticos e sociais
imbricados na construção deste discurso e no governo
da vida e da morte nas cidades. Queremos destacar
a entrada em cena deste discurso sobre as drogas
como um importante analisador das políticas públicas
nas áreas de segurança pública, educação e saúde
no Brasil. Destacamos também que esta temática
corresponde a uma construção social e política de nossa
contemporaneidade, relacionada, mas não restrita aos
moradores de rua.
Drogas: um dispositivo para pensar o presente
Em matéria publicada pelo Correio Braziliense,
em 22 de novembro de 2010, o então presidente da
Comissão de Direitos Humanos da OAB em Alagoas
teria airmado que somente após a repercussão
nacional dos assassinatos houve alguma celeridade
nas investigações dos assassinatos de moradores de
rua em Maceió, bem como a necessidade de ações
sociais conjuntas para proteger a vida de tais sujeitos.
Segundo o Jornal:
Ele airmou que, para garantir a segurança dos
moradores de rua, é preciso implementar um conjunto
de ações sociais. “O monitoramento ostensivo nas ruas
é importante, assim como usar a inteligência policial.
Nas últimas duas décadas, não foram implementadas
políticas para esses moradores de rua. Eles foram
esquecidos e eram considerados invisíveis”. (Daniella
Jinkings, 2010)
É sobre a forma como as drogas e esses assassinatos
assinalam um lugar comum para a investida de ações
que iremos nos deter agora. Para isto, retomaremos a
noção de dispositivo nos textos de Michel Foucault,
a partir do texto o que é um dispositivo?, de Giorgio
3/11
Silva, W. V. & Hüning, S. M. (2017). Dispositivo das drogas e governo da vida.
Agamben. Nese texto, Agamben (2009) proporá uma
genealogia do conceito de dispositivo, lançando a
hipótese de que “a palavra ‘dispositivo’ seja um termo
técnico decisivo na estratégia do pensamento de
Foucault”, principalmente a partir da segunda metade
dos anos setenta, em que Foucault aborda a questão
do “governo dos homens” (p. 27). Este autor recorre
a uma das poucas vezes em que Foucault (1979/2011)
fornece uma deinição para tal termo numa entrevista a
Alain Grosrichard e outros convidados em 1977:
Com o termo dispositivo, compreendo uma espécie –
por assim dizer – de formação que num certo momento
histórico teve como função essencial responder a
uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma
função eminentemente estratégica ... o dispositivo
é: um conjunto de estratégias de relações de força
que condicionam certos tipos de saber e por ele são
condicionados. (Foucault, citado por Agamben, 2009,
p. 28)
A partir disto, Agamben (2009) seguirá com a
genealogia do termo dispositivo, retomando outros
dois: “positivé” e “oikonomia”. O primeiro fora
utilizado por Foucault em arqueologia do saber, de
acordo com Agamben (2009), para deinir seu objeto
de pesquisa. Airmará também que o termo positivé
está atrelado ao que Hegel teria chamado de elemento
histórico. Este atuaria como uma força externa, de
forma positiva sobre os comportamentos, de modo
que os produziria a partir de uma série de ritos, regras
e instituições impostas aos indivíduos, que, ao ser
interiorizada, comporia seus repertórios de crenças e
sentimentos sobre as coisas do mundo. Dessa maneira,
Agamben (2009) salienta que:
Foucault, tomando emprestado este termo (que se
tornará mais tarde “dispositivo”), toma posição em
relação a um problema mais próprio: a relação entre
os indivíduos como seres viventes e o elemento
histórico, entendido com este termo o conjunto das
instituições, dos processos de subjetivação e das
regras em que se concretizam as relações de poder. O
objetivo de Foucault não é, porém, como em Hegel,
aquele de reconciliar os dois elementos. E nem o
de enfatizar o conlito entre eles. Trata-se para ele,
antes, de investigar os modos concretos em que as
positividades (ou dispositivos) agem nas relações, nos
mecanismos e nos “jogos” de poder. (Agamben, 2009,
pp. 32-33)
O referido autor evidencia o caráter histórico dos
dispositivos como uma recusa de Foucault a trabalhar
com os universais: categorias universais ou gerais para
abordar as temáticas na busca de uma verdade unívoca
sobre as coisas (Veyne, 2011). A partir daí, Agamben
(2009) irá questionar-se acerca do contexto histórico
originário do termo dispositivo, quando então recorre
4/11
à palavra oikonomia dos gregos. O autor enfatiza que,
para responder seu questionamento, teve que iniciar
uma genealogia teológica da economia. Segundo o
autor, o termo oikonomia era utilizado pelos gregos
para designar uma práxis, uma atividade prática
diante de um problema, de uma determinada situação.
oikonomia designa a administração do oikos, da casa
- sendo usado também no sentido de gestão. O autor
segue dizendo que, nos primeiros séculos de história
da Igreja Católica, tal termo teve função importante
para a teologia.
Conforme Agamben (2009), o principal efeito
produzido por este uso do termo diz respeito à fratura e
a uma cisão entre ontologia e práxis, entre ser e ação, é
aí que “a ação (a economia, mas também a política) não
tem nenhum fundamento no ser: esta é a esquizofrenia
que a doutrina teológica da oikonomia deixa como
herança à cultura ocidental” (p. 37). De acordo com
o autor, nos textos dos teólogos cristãos em latim, a
palavra oikonomia dos gregos fora traduzida como
dispositio: é este termo em latim que sintetizará a ideia
de uma oikonomia teológica para os cristãos. Agamben
(2009) destaca que é na cisão entre ser e ação que os
dispositivos, mencionados por Foucault, atuam sob a
herança da teologia cristã:
O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio
do qual se realiza uma pura atividade de governo sem
nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos
devem sempre implicar um processo de subjetivação,
isto é, devem produzir o seu sujeito. (Agamben, 2009,
p. 38)
É assim que este autor ressalta uma primazia
dos dispositivos na contemporaneidade, de uma
pura oikonomia dos seres viventes. Os dispositivos
multiplicam-se sem, no entanto, airma Agamben
(2009), haver a produção de uma subjetivação
real, apenas processos de subjetivação dissociados
dos processos de dessubjetivação, construindo
simplesmente corpos dóceis e administráveis,
obedientes aos imperativos contemporâneos em
aspectos da vida: na saúde, na alimentação e nos
desejos, ou seja, os aspectos mínimos do cotidiano
seriam comandados e administrados por dispositivos.
Conforme este autor, os dispositivos contemporâneos
atuam criando uma subjetividade virtual adequada ao
governo das condutas, um homem comum.
Para avançarmos na discussão, assinalamos
os aspectos citados por Agamben (2009) quanto
aos dispositivos: (a) os dispositivos são elementos
históricos circunscritos em contextos social, político
e cultural especíicos; (b) estão relacionados a uma
economia das relações humanas, dispondo os homens
de modo a conduzi-los a um bem; (c) os dispositivos
Psicologia & Sociedade, 29: e131525
produzem uma cisão entre o ser e a ação, de maneira
que produzem corpos dóceis e úteis, capazes de
obedecer aos imperativos biopolíticos numa pura
atividade de governo.
Além disso, recorrendo a Foucault (1979/2011),
podemos aludir que um dispositivo se constitui como
tal e permanece sendo-o quando participa de um duplo
processo:
Por um lado, processo de sobreterminação funcional,
pois cada efeito, positivo ou negativo, desejado ou
não, estabelece uma relação de ressonância ou de
contradição com os outros, e exige uma rearticulação,
um reajustamento dos elementos heterogêneos que
surgem dispersamente; por outro lado, processo de
perpétuo preenchimento estratégico. (p. 245)
Quanto aos assassinatos dos moradores de rua
em Maceió, podemos pensar que a entrada das drogas
como explicação para este acontecimento torna-se um
potente dispositivo, a partir do qual discursos e práticas
que, num primeiro momento, pareciam díspares e
contraditórios – de um lado, um discurso que chama os
moradores de rua de criminosos envolvidos com drogas
e furtos e, de outro, um que considera os moradores
de rua assassinados como sujeitos abandonados a
situações de risco social por parte do Estado e das
políticas públicas – são chamados a se rearranjarem de
modo tal que passam a coincidir, formando um discurso
coeso que reclama por uma intervenção política sobre
as condições de vida dos moradores de rua. É sobre a
necessidade de um governo desses sujeitos, alavancada
pelo dispositivo das drogas, que tais discursos vão
se alinhar, propondo ações de intervenção nas vidas
dos referidos sujeitos. Portanto, torna-se importante
situar que é a esta funcionalidade que o dispositivo
das drogas servirá para este acontecimento. As drogas,
diferentemente de serem tomadas como um aspecto
destacado do contexto histórico e político que aparece
para explicar tais assassinatos, numa relação de causa
e efeito, devem ser postas em análise do ponto de vista
histórico e das relações de força que as constituem
como um problema ou uma solução ao articular ações
nas atuais políticas públicas.
em análise a produção da ambiguidade e da
complexidade
“mas tudo converge para a questão das drogas”
Em declaração atribuída ao secretário de Defesa
Social do Estado, ao falar sobre os assassinatos dos
moradores de rua em Maceió, este teria airmado que
não se tratava de um grupo de extermínio, tampouco
de uma força paralela ao Estado: ao que parecia,
tudo convergia para as drogas e o envolvimento com
traicantes.
A polícia de Alagoas descarta que as mortes tenham
sido provocadas por “justiceiros” determinados a
“limpar a cidade”. Segundo a corporação, a maioria
dos crimes foi praticada por questões relacionadas a
drogas e acerto de contas com traicantes. (Carazzai,
2010)
Tal informação tornou-se uma explicação
importante para os assassinatos: de massacre ou grupo
de extermínio, as investigações se redirecionaram para
a questão das drogas. Não só as investigações, mas
uma série de ações passou a convergir à explicação
das drogas: os discursos veiculados pela imprensa a
respeito desses assassinatos, as políticas públicas de
segurança, saúde e educação, as explicações cotidianas
sobre a natureza dos crimes, entre outros.
O secretário Paulo Rubim airmou que as mortes só
vão cessar com uma atuação integrada no combate às
drogas, principalmente nas fronteiras. “Se os Estados
não agirem, juntamente com o Ministério da Justiça,
não vamos conseguir. A polícia por si só não vai
conseguir vencer essa onda assassina que vem com o
crack”. (Gomes, 2011)
A polícia civil, em suas investigações, descartou a
atuação de grupos de extermínio, airmando que os
homicídios estariam relacionados ao tráico de drogas,
uma vez que 83% das vítimas eram dependentes
químicos. (Madeiro, 2010)
Dos 39 casos de assassinatos de pessoas em situação
de vulnerabilidade em Maceió, 24 envolveram
moradores de rua e a maioria dos crimes foi motivada
por questões relacionadas ao tráico de drogas e por
brigas, de acordo com relatório da Polícia Civil de
Alagoas. (Jinkings, 2010)
Sob o signo das drogas, airmou-se a necessidade
de combatê-las, pelo seu caráter mortífero que
promoveu uma onda de assassinatos na capital alagoana.
É através de uma naturalização e da construção de
associações entre o estilo de vida desses sujeitos e
os assassinatos que as drogas são apresentadas como
uma explicação plausível, quase que óbvia, para os
assassinatos. No entanto, ainda são airmadas outras
causas para explicar a onda de assassinatos, por parte
dos órgãos ligados aos direitos humanos em Maceió.
A Polícia Civil de Alagoas crê que os crimes contra
moradores de rua são casos isolados e têm relação
com o consumo de drogas. Mas a secção regional
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) acredita
que grupos de extermínio estão por trás destes 31
homicídios. Seria uma espécie de “limpeza étnica”
5/11
Silva, W. V. & Hüning, S. M. (2017). Dispositivo das drogas e governo da vida.
nas ruas para livrar Maceió de pessoas miseráveis
que têm como leito as calçadas e como teto o céu.
(Massacre em Maceió, 2011)
Consideramos importante esta disparidade de
discursos construída para explicar os assassinatos de
moradores de rua em Maceió. Por isto, pretendemos
apontar a forma como ganha força numa relação de
reciprocidade entre esses discursos, a partir da qual
tais verdades passam a caminhar lado a lado: mesmo
divergentes, esses discursos chegam em um momento
no qual são obrigados a se cruzarem, construindo uma
narrativa concisa sobre os assassinatos.
As drogas, entre outras coisas, exercem uma
força de coesão desses discursos que, à primeira vista,
parecem excluir-se um ao outro. Dispõem os discursos
e os sujeitos numa outra relação, possibilitando a
colaboração entre os discursos e as práticas de forma
arrojada.
Coincidência ou não, a série de assassinatos
começa logo após ser divulgada uma pesquisa feita
pela prefeitura de Maceió – sob a encomenda do
Ministério Público e da vice-governadoria do Estado
– que apontava que 97% dos moradores de rua daquela
cidade eram consumidores de drogas.
Na época da divulgação, em novembro de
2009, o promotor de justiça responsável pela área de
direitos humanos, do Ministério Público de Alagoas,
concluiu que a pesquisa “aponta para uma situação de
risco, que necessita de uma intervenção urgente do
poder público, com ações eicientes, para amenizar
o sofrimento de vidas”. Ele airmou, ainda, que o
consumo de drogas por moradores de rua seria apenas
parte do problema dessa população, relexo de suas
péssimas condições de vida, e que “para mudar essa
situação, é preciso a intervenção em conjunto de
todos” (Gomes, 2011)
O sofrimento e as péssimas condições de vida,
relacionados ao consumo de drogas, apresentam-se
como um campo de batalha de um conjunto de ações.
Desse modo, criam-se condições de intervenção sobre
as vidas de tais sujeitos, que são tomadas como alvo de
práticas que visam amenizar o sofrimento, dada uma
situação de risco iminente em que vivem pelas ruas,
expostos à própria sorte. Este é o cenário sobre o qual
serão propostas ações de tutela dos referidos sujeitos,
tendo as drogas como pano de fundo para naturalizar
intervenções sobre suas vidas.
Tais proposições vêm se exacerbando de forma
importante através das internações involuntárias de
usuários de drogas que moram nas ruas das grandes
cidades brasileiras: tendo como base uma defesa da
vida e da segurança pública, práticas de internação
6/11
sobre esses sujeitos vêm sendo efetivadas, associadas
a um discurso médico de proteção da vida deles.
Contudo, é sobre a população pobre que essas práticas
são implementadas e aqui nos interessa a forma
como as condições de pobreza são relaciondas ao
risco à vida social, e, sob esta premissa, práticas de
criminalização e de tutela de suas vidas são efetivadas
com alguma legitimidade. Neste sentido, o paradigma
médico e o policial fazem uma parceria para lidar com
esta situação ambígua (Batista, 2003). Com relação
aos moradores de rua em Maceió, tal campo tornase ambíguo, pois, como sujeitos expostos a riscos e,
ao mesmo tempo, considerados criminosos, quais as
soluções que são formuladas e endereçadas a eles?
Repressão ou proteção? Como se decide sobre qual
medida deve ser endereçada a eles?
É nessa ambiguidade que as medidas de proteção
à vida são postas em questão, pois como trabalhar
com uma população de sujeitos que são reticentes
aos enquadramentos e às lógicas de normatização
contemporâneas? Sujeitos que, simultaneamente, são
considerados em risco social e criminosos. Como
efetivar práticas concretas de proteção a sujeitos que
teimam em viver numa relação de limite com a norma,
com a lei e com seus representantes?
Os moradores de rua apresentam-se como
um desaio para as intervenções de um Estado que
costumeiramente os colocou numa exterioridade à vida
na cidade, como marginais às formas de vida desejáveis.
A maneira como os discursos sobre as drogas dispõem
a vida desses sujeitos pouco resolve a ambiguidade
mencionada. Ao contrário, produzem-na e colocam-na
numa disposição natural a práticas de tutela e de gestão
da vida deles sem levar em conta os aspectos históricos
que se arrastam na vida social do estado. Assim, tais
discursos produzem esta ambiguidade como um motor
para ações que visam requaliicar1 aquelas vidas,
reforçando aspectos atrelados à sua tutela por meio de
um discurso competente que criminaliza e desvaloriza
a forma como vivem essas pessoas.
“a prevenção de novos crimes é ‘complexa’ e envolve questões sociais e sanitárias”
Em 6 de dezembro de 2010, a Secretaria
Municipal de Assistência Social (SEMAS) de Maceió
dá continuidade ao projeto Papo Cabeça, com o
objetivo de sensibilizar os moradores de rua para
os perigos das drogas para suas vidas e viabilizar o
tratamento de dependência química desses sujeitos.
No mês seguinte, o promotor especial de Direitos
Humanos teria falado a respeito da necessidade de
investir com tratamentos de dependência química para
os moradores de rua, inclusive contra a vontade deles:
Psicologia & Sociedade, 29: e131525
Segundo ele, a prevenção de novos crimes é
“complexa” e envolve questões sociais e sanitárias.
Para o promotor, o mais importante agora é que o Estado
inancie com eiciência o tratamento de dependentes
químicos. “Os moradores de rua são pessoas que
estão em situação de risco social, e normalmente são
dependentes químicos. O estado precisa com urgência
investir no tratamento involuntário desses viciados, já
que hoje se é feito para aqueles voluntários. Nem todo
mundo que está no mundo das drogas quer se tratar, já
que é mais vantagem para ele continuar na droga. Tem
que entrar com uma medida de força, pois uma pessoa
dessas está com suas capacidades comprometidas”,
destacou o promotor. (Madeiro, 2011)
Algumas questões devem ser apontadas em
relação ao trecho acima: (a) ressalta-se o fato de os
moradores de rua estarem em risco social e serem
dependentes químicos; (b) a necessidade de tratamento
involuntário desses viciados, ao airmarem que estão
com suas capacidades comprometidas, portanto, sem
condições de decidirem acerca do seu tratamento. No
discurso acima, o fato de serem incapazes de decidir
sobre o seu bem – o tratamento de dependência química
– justiicaria uma medida de força que lhes obrigaria
o tratamento, apesar da vontade contrária. Talvez isto
que seja apontado, no discurso acima, como complexo
na prevenção dos novos crimes, ressaltando o aspecto
social e sanitário de tais medidas. Dessa forma,
destacamos que operar com tais discursos não implica
tomá-los como verdades ou localizar sua origem no
sujeito que os teria proferido, mas por em análise os
regimes e efeitos de verdade que tornam possíveis
determinadas práticas.
Lembramos ainda que, em 31 de julho de 2006,
no site da Prefeitura de Maceió, a SEMAS mencionara
uma diiculdade quanto às práticas de remoção desses
sujeitos das ruas: a falta da documentação impede a
SEMAS de prestar apoio com a compra de passagens
para que essas famílias retornem aos municípios de
origem.
Para tentar contornar o problema, a SEMAS por
meio do Plantão Social mantém uma parceria com o
Instituto de Identiicação para agilizar a expedição das
carteiras de identidade. (Prefeitura de Maceió, 2006)
Além disso, em 6 de dezembro de 2010, o projeto
Papo Cabeça enfatiza a importância das famílias para
o processo de tratamento dos dependentes químicos
que moram nas ruas e, em uma de suas atividades, a
SEMAS buscou localizar as famílias dos moradores de
rua com a inalidade de resgatar o vínculo entre esses
sujeitos e suas respectivas famílias. Com diiculdades
em encontrar as famílias e garantir a remoção dos
referidos sujeitos das ruas de Maceió para as suas
cidades de origem, em 2010 as drogas aparecem
de forma importante para uma política de remoção
involuntária deles, mediante a justiicativa de um
tratamento de dependência química. Neste momento
expressa-se o aspecto sanitário da complexa rede de
prevenção destacada anteriormente.
Carvalho (2008) airma que é a partir de uma
retórica dos direitos humanos, preocupada com a
tutela dos interesses e valores da sociedade, que
a violência institucional permanece como uma
prática destinada a certos sujeitos. Para o autor, o
que caracteriza um sistema repressivo é a prática de
violências arbitrárias de forma duradoura ao longo da
história. Porém, argumenta que, com a emergência
dos direitos humanos, houve uma retaliação dessas
práticas em nome dos princípios humanitários, apenas
sendo possível em governos ditatoriais num regime
de exceção. “Desta forma, a retórica humanista
acabou adquirindo papel dissimulador à programação
autoritária” (Carvalho, 2008, p. 166). É, portanto,
através de um discurso de garantia de direitos que
práticas de violência institucionalizadas tornam-se
eicazes e permanentes, mas sob a premissa de um bem
público e social, como também para a vida do sujeito.
Nesse sentido, Carvalho (2008) diz que, por meio de
uma guerra declarada às drogas, um inimigo é forjado
e sobre este o direito se coloca em suspensão, de modo
tal que práticas de violação dos direitos constitucionais
de sujeitos envolvidos com drogas são efetivadas num
regime de exceção. Essas práticas seriam possíveis,
entre outras coisas, pelo fato de que o bem social
resultado seria maior que o prejuízo individual
efetivado por tais práticas.
Desse modo, não é de se estranhar a
contemporaneidade da lógica higienista abordada por
Chalhoub (1996), que age em nome de uma verdade
produzida nos meios acadêmicos, por conseguinte,
numa pretensa neutralidade e cientiicidade que
levariam à civilização. É sobre a continuidade
dessas práticas na política que podemos pensar nossa
atualidade sobre os assassinatos em questão. As
drogas constituem um dispositivo que articula práticas
e discursos da academia, do direito e da política de
forma competente, carregando consigo uma história de
mortes, exclusão e marginalização de subjetividades,
de costumes e de culturas diversas. Mas é sobre um
discurso de garantia de direitos e de um bem social e
individual aos moradores de rua que se justiica uma
efetiva prática de institucionalização, pois, uma vez
envolvidos com as drogas, os mencionados sujeitos
deixariam de ser um corpo dócil e passam a ser alvo
de um massacre que retira deles a possibilidade de
consumir outros bens, outros valores civilizatórios
7/11
Silva, W. V. & Hüning, S. M. (2017). Dispositivo das drogas e governo da vida.
socialmente aceitáveis. Esbarramos, assim, numa
racionalidade biopolítica, na qual a vida se torna
um bem de consumo, administrável e necessário ao
exercício do poder. Logo, salientamos que as drogas
aparecem nesse cenário como um dispositivo que, de
um lado, articula práticas de proteção de uma vida
passível de governo de um corpo dócil, e de outro,
estabelece uma exposição à morte e à exclusão de uma
vida que se coloca como ingovernável, fora do eixo de
um consumo civilizado.
Considerações inais: moradores de rua e o
resgate de uma humanidade
Ao que pudemos demarcar até agora, as
investidas das práticas e dos discursos que se inserem
como resposta aos assassinatos de moradores de rua em
Maceió apontam a importância de reforma e de uma
requaliicação da vida deles. Essas respostas mostram
o aspecto marginal e ambíguo da vida de tais sujeitos,
indicando a necessidade de uma transformação na bíos
para devolver-lhes dignidade de moradia, de saúde, de
educação, de proissionalização, entre outros.
A requaliicação dos espaços urbanos das ruas
não é abordada pelas respostas como uma via de
transformação desta realidade, a não ser através da
remoção das pessoas das ruas e sua institucionalização,
seja em ambientes de tratamento à dependência
química ou albergues para passarem a noite, e até
mesmo através de um resgate dos vínculos familiares.
As ruas são abordadas como lugares de perigo, por
nelas habitarem sujeitos potencialmente perigosos à
circulação dos citadinos.
Com a modernidade e o surgimento das ciências
humanas, a concepção de humano é forjada a partir da
ideia de que o homem pode ser fabricado e conduzido
pelas práticas pedagógicas e/ou punitivas, entre outras.
Tais práticas irão mostrar sua força através do resultado
das mudanças que são possíveis na vida dos sujeitos
(Foucault, 2008). E é por meio de um investimento
em práticas individualizantes que serão efetivadas,
dando consistência a um discurso psicológico sobre a
autonomia dos sujeitos.
Esta racionalidade biopolítica, gestada ao longo
da nossa contemporânea modernidade, irá investir
numa multiplicação de instituições e lugares que
servirão a tal objetivo, bem como numa proliferação de
proissões e de saberes que se ocuparão da fabricação
de sujeitos habilitados a gerar riqueza e um excedente
de vida para o consumo nos sistemas de governo
capitalistas. Daí a importância de uma vida útil e
disposta ao consumo de bens em nossa civilização.
8/11
Diante disto, gostaríamos de nos deter no aspecto de
reforma ou de requaliicação da vida dos sujeitos como
uma maneira de lidar com o humano nas tecnologias
biopolíticas contemporâneas.
Agamben (2007) faz uma genealogia da
concepção de humano moderna percorrendo textos
cientíicos, obras literárias e artísticas de diferentes
épocas. Em meio a isto, o autor se refere a uma
máquina antropológica, responsável pela produção do
homem numa diferenciação entre este e os animais,
entre este e um não-humano. Para Agamben (2007),
tal oposição é condição para a construção do humano,
atuando de forma que se cria um dentro e um fora
excludentes, uma zona de indeterminação entre o
humano e o não humano. Logo, “el hombre no tiene
ninguna identidad especíica, excepto la de poder
reconocerse” (Agamben, 2007, p. 57): é a partir de sua
capacidade de reconhecer a si mesmo e de diferenciarse que o homem se produz.
Em outros termos, Agamben (2007) airma que
a produção do homem na máquina antropológica
moderna ocorre por uma operação de separação
ou exclusão do não humano no interior da própria
humanidade. Assim, o não humano é pensado pelo
autor como algo inerente à condição de ser humano,
e, portanto, a relação entre estes é de negação,
estabelecida num regime de exceção constante através
da exclusão do não humano. A partir daí, o humano e o
não humano habitam um terreno único na engrenagem
desta máquina.
Tenemos así la máquina antropológica de los modernos.
Ella funciona – lo hemos visto – excluyendo de sí
como no (todavía) humano un ya humano, esto es,
animalizando lo humano, aislando lo no-humano en el
hombre: Homo alalus, o hombre-simio. Es suiciente
desplazar algunos decenios nuestra investigación
y, en vez de este inocuo hallazgo paleontológico,
tendremos el judío, esto es, el no-hombre producido
en el hombre, o el néomort y el ultra-comatoso, esto
es, el animal aislado en el mismo cuerpo humano.
(Agamben, 2007, p. 75)
Este autor se referirá, também, às crianças
selvagens encontradas na Europa no inal do século
XIX, ao escravo, ao bárbaro e ao estrangeiro “como
iguras de um animal com formas humanas” (Agamben,
2007, p. 76). Nesse aspecto, aponta-nos a forma como
a máquina antropológica moderna funciona através
de uma animalização do humano, diferentemente
da máquina antropológica dos antigos, que teria seu
funcionamento voltado para a inclusão de algo que
foi posto fora da civilização, como, por exemplo, as
crianças selvagens por meio de práticas pedagógicas,
bem como os escravos e os bárbaros.
Psicologia & Sociedade, 29: e131525
Agamben (2007) nos fala que a máquina
antropológica moderna funcionará na produção de
um homem que tem sua vida desnudada, disposta
a ser reformada e produzida através do governo de
suas condutas e de seus comportamentos, numa
oikonomia da vida dele. Nesse sentido, a vida que
os antigos afastaram da política e a relegaram ao
ambiente privado de uma economia doméstica passa
a ser central para a política moderna, a partir das
tecnologias biopolíticas.
uma humanidade perdida nos diversos abandonos
e violências que os acometeram. É nesta via que a
ideia de garantir direitos se instaura sobre a vida deles
como uma medida efetiva que objetiva alterar as
condições sociais em que vivem. É pelo tratamento da
dependência química, da remoção desses sujeitos das
ruas da cidade que tais mudanças são pensadas. Ou
seja, trata-se de inserir nos discursos e práticas ações
de reforma, de restauração e de reabilitação na vida
dos sujeitos.
Portanto, ao animalizar o homem, ao tornar seu
corpo biológico como fonte de poder e de governo
das condutas, a política contemporânea inscreve uma
ambiguidade na qual um corpus é produzido em cada
ser vivente, ou seja, é produzido “um ser bifronte,
portador tanto da sujeição ao poder soberano quanto
das liberdades individuais” (Agamben, 2010, p. 121).
Dessa forma, podemos pensar as contemporâneas
discussões sobre a decisão acerca da continuidade
da vida de pacientes em estado vegetativo ou ultracomatosos e, também, em outras situações em que
sujeitos perdem, por alguma razão (o uso prolongado
de drogas, por exemplo), suas capacidades de
produção.
É a partir dos assassinatos de moradores de rua
que a vulnerabilidade é acusada, tornando necessária
uma atuação que vise à garantia de direitos. É neste
mesmo momento que a ambiguidade relacionada
às suas formas de viver é ativada pelos discursos
do direito e criminal: quando eles aparecem em
vulnerabilidade, diante da possibilidade de um
assassínio e das condições não dignas em que vivem,
o resgate de suas humanidades e dignidades, corroídas
pela história de exclusão em que foram inscritos como
sujeitos, torna-se necessário.
Ao considerarmos a produção dessa vida nua
fabricada pela máquina antropológica moderna,
estamos nos referindo à vida como um elemento
central da política contemporânea. Podemos dizer que
é sobre a zona de indiferença apontada por Agamben
(2007), entre o humano e o não humano, que as drogas
irão atuar como um dispositivo de subjetivação,
constituindo subjetividades e fazendo interagir sobre
elas uma série de saberes e de decisões que intervirão
sobre as vidas dos moradores de rua em Maceió, mas
também sobre outras vidas através do governo dos
comportamentos.
Entretanto, os assassinatos de moradores de
rua em Maceió deixam entrever uma realidade
historicamente construída, a partir da qual uma
periculosidade é forjada numa associação desses
sujeitos e das ruas às drogas e à morte. As ruas são
inscritas como lugares perigosos para uma vida
digna, tornando-se uma vitrine de exposição da vida
ao assassínio e à violência. Então, como um espaço
urbano que deve ser desocupado e evitado, as ruas são
tomadas como lugares de exceção e de uma decisão
sobre vida e morte. Nas ruas, todos são suspeitos em
potencial: a vida nua a habita.
Sob o signo da vulnerabilidade e de uma
exposição ao risco das ruas, a vida de seus moradores
é facilmente capturada por práticas e discursos de
tutela que visam reorientar seus destinos, numa
tentativa de devolver-lhes dignidade e resgatar
Ao se referir ao racismo de estado relacionado
às pessoas que moram em áreas consideradas
vulneráveis, Vianna e Neves (2011) recorrem ao
mito da periculosidade associada à pobreza, presente
nas políticas de repressão às drogas. Segundo as
autoras, as ações de repressão e de tutela dos sujeitos
envolvidos com drogas aparecem quando as drogas
são tomadas como um inimigo da sociedade civilizada
– a qual deve ser livre de vícios imorais e degradantes.
Este quadro irá se acirrar a partir do momento em que
tal inimigo é associado à pobreza.
Embora a pobreza seja abordada nos discursospráticas higienistas e eugênicos como um potente
agravador de processos de degenerescência, há uma
pobreza que merece maior atenção e cautela por
parte destes: os pobres que não trabalham e que não
têm uma família estruturada nos moldes burgueses
(Batista, 2003). Conforme Coimbra (2001), os
pobres trabalhadores e com famílias de pai e mãe,
trabalhadores e saudáveis, eram menos preocupantes
para a ordem social; já aqueles que não trabalhavam
e se dedicavam ao ócio, passando o tempo pelas ruas,
eram considerados vagabundos e um potente foco de
vícios e de degeneração que deveria ser combatido pela
polícia. Seriam sujeitos suspeitos que poderiam ser
presos por vagabundagem. As práticas de reabilitação
que intervirão sobre a vida deles têm como intuito
instaurar uma nova relação desses sujeitos consigo e
com o mundo, mediante uma transformação daquilo
que eles podem se tornar: criminosos. É sobre esta
virtualidade que tais práticas irão fortalecer uma rede
de ações sobre os referidos sujeitos.
9/11
Silva, W. V. & Hüning, S. M. (2017). Dispositivo das drogas e governo da vida.
Quanto aos moradores de rua, que podem
morrer, como qualquer um, por qualquer razão, ou,
como descrevem os materiais analisados, devido
à prática de furtos, brigas ou envolvimento com
traicantes – em alguma escala, essas práticas acabam
sendo relacionadas às drogas –, o que se espera é
dar-lhes longevidade e inseri-los numa outra lógica
de trabalho, de moradia, de família que garantiria a
esses sujeitos uma vida digna e útil para o consumo
de outros hábitos, outros costumes e outros produtos
socialmente qualiicados pelo mercado capitalista. Ao
serem capturados nessas práticas e discursos, buscase, de certa forma, um extermínio de subjetividades
indesejadas, modos de viver que colocam uma
civilização de costumes e hábitos socialmente aceitos
em risco. E o foco de tais ações seria a erradicação
de subjetividades e sujeitos que vivem em situação de
pobreza extrema, associados à vida nas ruas e à sorte
de vícios que consiste em viver nelas.
Por im, assinalamos que, embora as ações
constituídas diante dos assassinatos de moradores de
rua em Maceió se inscrevam no debate público como
relevantes e possíveis frente à temática das drogas, os
mencionados sujeitos não foram convocados ao debate
ou interrogados acerca das formas que julgam legítimas
para o enfrentamento dos problemas elencados pelos
mecanismos de Direitos Humanos. Ao contrário,
quem parece responder por eles são órgãos do Estado,
reforçando a ideia de tutela da vida deles. Não seria o
momento de chamá-los ao debate público e construir
conjuntamente ações possíveis de execução no atual
cenário político, criando mecanismos de participação
efetiva dos moradores de rua na elaboração de
estratégias de enfrentamento desta situação?
nota
1
A ideia de qualiicação da vida, apontada neste texto, se
refere a um modelo de vida ideal, a partir do qual as vidas
são postas em parâmetro de comparação, tendo como
elemento central a possibilidade de consumo de hábitos
e costumes ditos civilizados, desejáveis à vida social
moderna: a qualiicação se daria nessa direção. Agamben
(2010) menciona as ideias gregas de vida qualiicada
(bíos), relacionada à forma como um determinado grupo ou
indivíduo vive; e a simples vida natural dos viventes (zoé),
que seria o mero fato da vida: a dos animais, dos homens
e dos outros seres vivos. No entanto, cabe ressaltar que,
mesmo propondo a ideia de qualiicação da vida, a partir
dos textos de Agamben (2010), neste artigo, deve ser lida
no contexto dos materiais de análise, considerando aspectos
históricos de uma “monocultura da existência” em Alagoas.
Tal monocultura é proposta para pensar uma determinada
racionalidade de Estado que expõe determinados grupos
sociais em Alagoas a situações de morte e/ou sub-humanas
de existência.
10/11
Referências
Agamben, G. (2007). lo abierto: el hombre y el animal (2ª ed.).
Buenos Aires: Adriana Hidalgo.
Agamben, G. (2009). O que é um dispositivo? In o que é o
contemporâneo? e outros ensaios (pp. 25-54). Chapecó, SC:
Argos.
Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida
nua i (2ª ed.) Belo Horizonte: UFMG.
Batista, V. M. (2003). Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude
pobre no rio de Janeiro (2ª ed., Coleção Pensamento
Criminológico). Rio de Janeiro: Revan.
Carazzai, E. H. (2010, 28 de novembro). Em Maceió (AL),
300 pessoas protestam contra morte de moradores de rua.
folha.com. Acesso 19 de outubro, 2012, em http://www1.
folha.uol.com.br/cotidiano/2010/11/837522-em-maceio-al300-pessoas-protestam-contra-morte-de-moradores-de-rua.
shtml.
Carvalho, S. (2008). A política de guerra às drogas na América
Latina entre o direito penal do inimigo e o estado de exceção
permanente. revista Panóptica, 2(7), 164-177.
Chalhoub, S. (1996). Cidade febril: cortiços e epidemias na
corte imperial (5ª reimp.). São Paulo: Companhia das Letras.
Coimbra, C. (2001). operação rio: o mito das classes perigosas:
um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os
discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oicina do
Autor; Niterói: Intertexto.
Foucault, M. (2011). microfísica do Poder (29ª reimp.). Rio de
Janeiro: Graal. (Original publicado em 1979)
Foucault, M. (1999). em defesa da sociedade: curso no Collège
de france (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes.
Foucault, M. (2008). Segurança, território, população: curso
dado no Collège de france (1977-1978). São Paulo: Martins
Fontes.
Gomes, L. F. (2011). O extermínio de moradores de rua em
Maceió. Jusbrasil. Acesso em 19 de outubro, 2012, em
http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121921219/oexterminio-de-moradores-de-rua-em-maceio.
Gomes, L. F. (2011, 5 de abril). O extermínio de moradores
de rua em Maceió. instituto avante brasil. Acesso em 19
de outubro, 2012, em http://institutoavantebrasil.com.br/oexterminio-de-moradores-de-rua-em-maceio/.
Jinkings, D. (2010) Para oab, investigação sobre mortes de
moradores de rua em alagoas foi lenta. Acesso em 22 de
outubro, 2012, em http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/
noticia/2010-11-22/para-oab-investigacao-sobre-mortes-demoradores-de-rua-em-alagoas-foi-lenta
Madeiro, C. (2010). Secretário descarta ação de grupos de
extermínio e diz que mortes de moradores de rua em AL
são “criminosos se matando”. uolnotícias. Acesso em 19
de outubro, 2012, em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/
ultimas-noticias/2010/11/19/secretario-descarta-acao-degrupos-de-exterminio-e-diz-que-mortes-de-moradores-derua-em-al-sao-criminosos-se-matando.htm.
Madeiro, C. (2011, 24 de janeiro). Após onda de assassinatos
em 2010, AL já contabiliza quatro mortes de moradores
de rua este ano. uolnotícias. Acesso em 19 de outubro,
2012, em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimasnoticias/2011/01/24/apos-onda-de-assassinatos-em-2010-alja-contabiliza-quatro-mortes-de-moradores-de-rua-este-ano.
htm.
Psicologia & Sociedade, 29: e131525
Massacre em Maceió. (2011, 19 de novembro). Jornal da
Cidade Sergipe, p. 17.
Prefeitura de Maceió. Secretaria Municipal de Assistência
Social. (2006, 31 de julho). SemaS discute remoção de
moradores de rua.
Veyne, P. (2011). foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
Vianna, P. C. & Neves, C. E. A. B. (2011). Dispositivos de
repressão e varejo do tráico de drogas: relexões acerca do
Racismo de Estado. estudos de Psicologia, 16(1), 31-38.
Submissão em: 05/03/2014
Revisão em: 11/10/2014
Aceite em: 24/10/2014
Wanderson vilton Silva é doutorando em Psicologia Social
e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Endereço para correpondência: PPG em Psicologia
Social e Institucional/UFRGS. Rua Ramiro Barcelos, 2777
- Sala 212. CEP 90035007. Bairro Santana. Porto Alegre/
RS, Brasil.
E-mail: wandersonvilton@gmail.com
Agradecimento
À agência de fomento, Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES. Bolsa de mestrado do primeiro autor (UFAL
2011-2013).
Simone maria Hüning é doutora em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Atualmente é professora e pesquisadora da Graduação
e Programa de Pós-graduação em Psicologia pela
Universidade Federal de Alagoas.
E-mail: simone.huning@ip.ufal.br
11/11