Eduardo Pellejero
NIETZSCHE E O TRÁGICO
1. Apresentação de O nascimento da tragédia
O nascimento da tragédia (1872) é um livro estranho, no qual: 1) a interpretação
filológica da tragédia ática se estende para nos oferecer uma visão (uma cosmovisão) da
Grécia, e 2) as considerações psicológicas sobre o homem grego conduzem-nós a uma
ontologia ou metafísica. Ao mesmo tempo, 3) o livro retoma linhas fundamentais da
filosofia de Schopenhauer para prosseguir esta proclamando um tom vital contraposto
(invertendo o signo do pessimismo e do niilismo do seu mestre e traduzindo em vontade
de viver e afirmação da vida aquilo que em Schopenhauer era vontade de negação e
inimizade desenganada com a vida)1, e inclusive 4) coloca sobre um mesmo plano
fenómenos artísticos antigos e contemporâneos para inscrever a obra de Wagner (a
quem o livro está dedicado2) na perspetiva da tragédia primitiva. Isto é, o livro – como
assinala Eugen Fink – quer coisas demais e aparece, em certa medida, sobrecarregado
na sua composição.
Por outra parte, a perspetiva da obra é completamente singular. A obra de arte
converte-se na chave de uma visão antiga do mundo. Como é sabido, para Nietzsche o
homem intuitivo, o artista, é superior ao lógico e ao científico (“porventura não é a Arte
um necessário correlativo e suplemento da Ciência?”). Procurando ver a ciência através
do artista (e, ainda, a arte através da vida), A origem de tragédia inscreve-se nessa
perspetiva, e – mesmo apresentando-se como uma obra «teórica» (filológica) – é
claramente devedora duma experiência poética fundamental. Nietzsche escreve:
Como é sabido, Nietzsche partiu, na origem da sua atividade como pensador, de uma profunda
admiração para com Schopenhauer, e a primeira das obras nietzscheanas destila a influencia daquele
grande pensador, e não pode se entender sem mencionar a dívida de Nietzsche para com ele. Agora,
mesmo que Nietzsche parta de um pessimismo perante a vida que é afim ao de Schopenhauer, toda a sua
obra se orienta para a abertura duma perspetiva afirmativa, de ação, de valoração da existência e não de
negação ou renuncia. Por oposição a Schopenhauer, para quem a tragédia fortalece em nós a resolução de
morrer, Nietzsche assinala na embriaguez trágica um heroico desafio das potências da morte, uma decisão
de afrontar a vida na sua totalidade e inclusive nas piores catástrofes. Nietzsche: “O que pensava
Schopenhauer sobre a tragédia? ‘O que dá a todo trágico o impulso para a elevação — diz ele em O
Mundo Como Vontade E Representação — é o esclarecimento do conhecimento de que o mundo, a vida,
não poderiam dar verdadeira satisfação, e que, portanto, nosso apego não teria valor: nisso consiste o
trágico, — ele conduz, portanto, à resignação’. Quão diferente era o que Dionísio me dizia! Quão afastada
de mim, precisamente naquela época, se achava toda resignação”.
2
“O grande artista, ao qual se dirigia [o livro], como para um diálogo: Richard Wagner”.
1
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
O que é o dionisíaco? Neste livro está uma resposta a tal pergunta – nele fala um
‘conhecedor’, o iniciado e apóstolo do seu deus.3 (p. 12)
A arte não é só o tema da interpretação, mas também o meio e o método da
mesma; isto é, a interpretação nietzscheana da tragédia faz uso da concepção trágica do
mundo. Nessa medida, Nietzsche pratica a ótica da arte que é objeto do seu estudo.
Contudo, também poderia dizer-se que Nietzsche escreve sob o duplo influxo da
poesia e do pensamento, ou, melhor, desgarrado pelo antagonismo do pensamento e a
poesia. Esse desgarro é denunciado anos mais tarde pelo próprio Nietzsche, no seu
ensaio de autocrítica (1886). Então escreve:
Deveria ter cantado, e não falado, essa ‘nova alma’. (...) Como lamento agora
não ter tido ainda nessa altura a coragem (ou a falta de humildade?) para
permitir-me também em todo o caso usar uma linguagem própria para intuições
e ousadias tão próprias – ter penosamente procurado exprimir, com fórmulas
schopenhauerianas e kantianas, juízos de valor estranhos e novos, tão
fundamentalmente opostos ao espírito de Kant e Schopenhauer, bem como ao
seu gosto! (p. 11 e 17)
2. Apolo e Dionísio
O nascimento da tragédia tem por base a distinção, já célebre, entre o dionisíaco
e o apolíneo, concebidos como dois elementos opostos mas complementários do espírito
grego (acaso uma derivação ou transformação dessas duas realidades às quais
Schopenhauer tinha chamado de vontade e representação)4. O que faz Nietzsche é
personificar esses dois elementos na pessoa de deuses da mitologia grega.
O dionisíaco irradia de Dionísio, o deus sofrido dos mistérios, de quem diz-se
nos mitos que, depois de ser despedaçado pelos titãs, voltou a ser parido por Demeter;
trata-se, segundo Nietzsche, de um deus sofrido mas, ao mesmo tempo, jubiloso: é o
deus do desmesurado, do excesso, do frenesim sexual, do vinho e da embriaguez, que
Citamos sempre: Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia, trad. de Helga Hoock Quadrado,
Lisboa, Relógio D’Agua, 1997.
4
“Este contraste imenso, que se abre entre a arte plástica como sendo a arte apolínea e a música como
sendo a arte dionisíaca, foi compreendido por um único grande pensador, de tal forma que ele, apesar de
não-iniciado no simbolismo divino da Hélade, adjudicou à música caráter e origem diferentes de todas as
outras artes, por ela ser, não como todas aquelas, imagem do fenómeno, mas porque representa uma
imagem do próprio desejo, figura o metafísico para todo o físico do mundo.”
3
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
bendizia a identificação/fusão entusiasta de todos os membros da comunidade durante a
apoteose da orgia.
O apolíneo, por outro lado, é o deus resplandecente, a divindade da luz, o deus
das artes figurativas que preside o mundo da representação, o da fantasia e da bela
aparência do onírico; é, segundo Nietzsche, o deus intérprete dos sonhos e do destino. E,
perante Dionísio, que patrocina a fusão orgiástica dos espíritos, Apolo simboliza o
princípio de individuação.
Mas, em todo o caso, o dionisíaco e o apolíneo ultrapassam amplamente a sua
identificação com os deuses da mitologia. Na concepção de Nietzsche, esses elementos
significam, entre os gregos, o reconhecimento de dois forças psíquicas ou fisiológicas
no homem, que genericamente correspondem às as formas da embriaguez e do sonho.
Todavia, Nietzsche salta da interpretação psicológica destas forças psíquicas à
sua compreensão como forças cósmicas, ontológicas ou metafísicas. Então, o apolíneo e
o dionisíaco aparecem como as duas grandes potencias contrapostas do ser, isto é, a
realidade passa a ser explicada como um antagonismo de contrários primordiais.
Deste ponto de vista, Apolo não aparece apenas como criador do mundo de
imagens do sonho humano, mas também como o criador do mundo de imagens de
aquilo que o homem ordinariamente considera a realidade; o poder da bela aparência é,
no fundo, apresentado como o criador do mundo fenoménico e como o principio da
individuação. Do mesmo modo, Dionísio deixa de ser simplesmente o símbolo da
embriaguez humana e da identificação dos indivíduos na comunidade, para passar a ser
o grande impulso vital, o fundo informe sobre o qual assenta o luminoso mundo da
individuação, da medida e da ordem, do qual surgem as suas figuras e no qual voltam a
afundar-se5:
Apolo está diante de mim como o génio transfigurador do principium
individuationis, só através dele se podendo obter a redenção pela aparência;
enquanto que sob o místico clamor de júbilo de Dionísio se rompe o anátema da
individuação, estando aberto o caminho para as mães do Ser, para o mais íntimo
cerne das coisas. (p. 112)
A afirmação trágica, mesmo a da desaparição da própria existência tem as suas raízes no conhecimento
fundamental de que todas as figuras finitas são só ondas momentâneas na grande maré da vida; de que o
afundamento do ente finito não significa a aniquilação total, mas a volta ao fundo da vida, do qual surge
todo o individualizado. Vida e morte encontram-se profundamente irmanadas num movimento rotatório
misterioso; quando uma ascende, a outra tem que baixar; umas figuras formam-se ao romper-se outras;
quando uma coisa sai à luz, outra tem que afundar-se na noite. Mas a luz e a noite, a figura e a sombra do
Hades, o nascimento e a decadência são só aspetos de uma e a mesma onda da vida.
5
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
a essência do elemento dionisíaco, que nos é dada do modo mais aproximado
pela analogia do êxtase. Seja sob a influência da bebida narcótica, de que falam
em hinos todos os homens e povos originários, seja com a poderosa aproximação
da Primavera, que penetra plena de prazer na natureza, desperta aquelas
agitações dionisíacas, em cuja progressão desaparece o que é subjetivo, até
atingir um pleno esquecimento de si próprio. (p. 27)
A psicologia do homem grego transforma-se assim numa estranha metafísica,
que já não só concerne ao mundo grego, mas à realidade em geral. O nascimento da
tragédia é, de fato, uma metafísica de artista, uma interpretação do mundo à luz (e à
sombra) da arte. A arte, de certa forma, transforma-se num símbolo da metafísica.
(Em O nascimento da tragédia Nietzsche utiliza ainda essa diferencia como uma
contraposição autêntica, como se o apolíneo estivesse numa parte e o dionisíaco noutra.
No curso do seu pensamento, contudo, essa contraposição inicial radicaliza-se até que o
dionisíaco absorve o apolíneo. O próprio princípio da vida informe passa a ser o
construtivo, o configurador, o criador de figuras – e o que as destrói também, por outra
parte. No final da evolução intelectual de Nietzsche o apolíneo passa a ser concebido
como um momento do dionisíaco. Assim, em Ecce Homo, Nietzsche dirá que a
descoberta do dionisíaco fora o decisivo de O nascimento da tragédia.)
Em todo o caso, para além da história e da mitologia, da psicologia e da
fisiologia, da ontologia e da metafísica, as figuras de Apolo e Dionísio são a chave da
nova filosofia da arte que Nietzsche propõe em O nascimento da tragédia. Nietzsche
escreve:
Muito teremos ganho para a ciência estética se houvermos chegado, não apenas
à perspiciência lógica, mas à certeza imediata da intuição segundo a qual a
evolução da arte se encontra ligada à duplicidade do elemento apolíneo e do
elemento dionisíaco: de modo semelhante àquele em que a geração depende da
dualidade dos sexos, em luta permanente e reconciliação apenas periódica.
Fomos buscar esses nomes aos Gregos, que tornam inteligíveis as doutrinas
misteriosas e profundas da sua visão artística, fazendo-o não tanto por meio de
conceitos mas através das figuras penetrantemente claras do seu mundo de
deuses. (p. 23)
3. Artes apolíneas, artes dionisíacas
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
Em todo o caso, o apolíneo e o dionisíaco aparecem, particularmente, como os
dois instintos estéticos mais importantes nos gregos, num antagonismo que
exemplarmente se manifesta na distancia que vai da música à figura.
Esteticamente, Apolo simboliza o instinto figurativo, o culto da claridade, da luz,
da medida, da forma e da disposição bela; é a linha luminosa das artes plásticas, na
pintura e na escultura ou, também, na poesia épica, donde se perfilam no espaço
contornos, figuras e imagens semelhantes ás que aparecem nos sonhos. O fim da arte
plástica apolínea é anular os sofrimentos do indivíduo pela glorificação brilhante da
eternidade do fenómeno, vencendo a beleza sobre a dor inerente à vida, ofuscando a dor
trás um manto de aparências. Assim, por exemplo:
A ‘ingenuidade’ homérica deve apenas ser entendida como a vitória completa da
ilusão apolínea (...). Essa é a esfera da beleza, na qual eles viam as suas imagens
refletidas ao espelho, as figuras olímpicas. Com esse reflexo de beleza, a
vontade helénica lutava contra o talento para o sofrimento e para a sabedoria no
sofrer, talento esse correlativo ao artístico: e como monumento da sua vitória
está Homero diante de nós, o artista ingénuo. (p. 37)
Dionísio, pela sua parte, é o arrebato da música, mas não da música severa,
refreada, que não passa duma ‘arquitetura dórica dos sons’, mas da música sedutora,
excitante, que desata todas as paixões e nos conduz para uma dolorosa submersão:
A música de Apolo era a arquitetura dórica em sons, mas em sons apenas
sugeridos, como são próprios da cítara. Com prudência é mantido à distância,
como não apolíneo, precisamente o elemento que perfaz o caráter da música
dionisíaca e com isso da música em geral, o poder perturbante do som, a
corrente unificadora da melodia e o mundo totalmente incomparável da
harmonia. No ditirambo dionisíaco, o ser humano é incitado a uma
intensificação extrema de todas as suas capacidades simbólicas; algo nunca
sentido manifesta urgência em ser exprimido, a destruição do véu de Maia, a
unicidade como génio da espécie e mesmo da natureza. (p. 32)
Somos realmente, por curtos instantes, a própria essência primordial e sentimos
os seus irrefreáveis avidez e prazer existenciais (...). Apesar do pavor e da
compaixão, somos os felizes seres vivos não como indivíduos mas como a coisa
viva, fundindo-nos com o seu prazer procriador. (p. 119)
O nascimento da tragédia tende a privilegiar esta arte dionisíaca sobre a arte
apolínea, mas não menospreza de forma nenhuma os produtos apolíneos que resultam
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
da confrontação com os impulsos dionisíacos. Neste sentido, da arte dórica, Nietzsche
pode escrever:
Pensemos o que podia significar, face a esse demoníaco canto popular, o artista
de Apolo como os seus salmos, com o som fantasmagórico da harpa! As musas
das artes da ‘aparência’ empalideciam diante de uma arte que falava a verdade
na sua embriaguez, a sabedoria do Sileno exclamava ‘Ó dor! Ó dor!’ contra os
serenos seres olímpicos. O indivíduo, com todos os seus limites e medidas,
ficava aqui submerso no esquecimento de si próprio, inerente aos estádios
dionisíacos, e esquecia as normas apolíneas. O excesso desvendava-se como
sendo a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores falava de si a partir
do coração da natureza. E assim, em todos os lugares onde penetrava o elemento
dionisíaco, o elemento apolíneo era suprimido e destruído. Mas é igualmente
certo que, aí onde o primeiro ímpeto foi substituído, o prestigio e a majestade do
deus délfico expressaram-se de modo mais rígido e mais ameaçador do que
nunca. Só consigo explicar a mim mesmo nomeadamente o Estado dórico e a
arte dórica como uma sequência do acampamento de guerra do elemento
apolíneo: só numa permanente resistência contra a essência titânico-bárbara do
elemento dionisíaco é que poderiam durar por um período mais longo uma arte
tão renitente e inflexível, rodeada de baluartes, uma educação tão aguerrida e
dura, um Estado tão cruel e irreverente. (p. 41)
Certas artes, por outra parte, são para Nietzsche a síntese de ambos os elementos.
É o caso da canção popular, que é simultaneamente lírica (dionisíaca) e representativa.
E é também o caso, muito especialmente, da tragédia. Na tragédia, como veremos,
Nietzsche encontra a oscilação entre a figura e o fundo informe, entre o finito e o
infinito, entre o apolíneo e o dionisíaco.
4. A tragédia como expressão máxima de Apolo e Dionísio
Nietzsche procura a suprema unificação e compenetração do dionisíaco e do
apolíneo e a encontra na tragédia antiga, que considera a representação apolínea do
dionisíaco mesmo.
ambos os impulsos, tão distintos, caminham lado a lado, na maioria dos casos
em divergência aberta um com o outro e provocando-se para criar novos
nascimentos cada vez mais vigorosos, a fim de perpetuar a luta daquela oposição
que a palavra comum ‘arte’ só aparentemente supera; até que finalmente, através
de um miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ helénica, eles surgem acasalados e,
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
neste acasalamento, acabam por gerar a obra de arte, tão dionisíaca como
apolínea, da tragédia ática 6. (p. 23)
Na tragédia, Apolo e Dionísio formam uma aliança fraternal: Dionísio fala a
linguagem de Apolo, mas debaixo da linguagem de Apolo é Dionísio quem grunhe.
Todas as tragédias revelam, segundo Nietzsche, a doutrina dos mistérios, isto é,
o conhecimento básico da unidade de todo o existente, a consideração da
individualização como princípio do mal, a arte como a alegre esperança duma rutura
(mesmo que momentânea) do feitiço da individuação e o pressentimento duma unidade
restabelecida. A tragédia opera essa síntese, onde confluem problematicamente música e
imagem, sonho e embriaguez, figura e caos, luz e noite.
Assim se poderia realmente simbolizar a difícil relação dos elementos apolíneo e
dionisíaco na tragédia, através de uma união fraterna de ambas as divindades:
Dionísio fala a linguagem de Apolo, Apolo porém acaba por falar a linguagem
de Dionísio; com isso se atingiu o supremo objetivo da tragédia e da arte em
geral. (p. 153)
Em Nietzsche e a filosofia, Gilles Deleuze propõe para a caracterização da
tragédia, a partir dessa perspetiva, três elementos:
1) A contradição, que exige ser resolvida, entre a unidade primitiva e a
individuação, entre vontade e aparência, entre vida e sofrimento. Nietzsche diz: “os
mundos artísticos separados do sonho e da êxtase”(p. 23).
2) A oposição entre Apolo e Dionísio, enquanto modos antitéticos de resolver
essa contradição: Apolo, mediatamente, na contemplação da imagem plástica; Dionísio,
imediatamente, no símbolo musical da vontade. Dionísio é, nesse sentido, o fundo sobre
o qual Apolo borda a sua bela aparência, mas debaixo de Apolo é Dionísio quem fala.
3) A reconciliação entre o fundo trágico e o desenvolvimento apolíneo do
trágico no drama, que é a que constitui - propriamente falando a tragédia7. “O mito
“Então se nos oferece a excelsa e altamente elogiada obra de arte da tragédia ática e do ditirambo
misterioso; depois de longa luta antecedente, se glorificou em tal filho, que é, ao mesmo tempo, Antígona
e Cassandra”.
7
“Tivemos de ressaltar que, sob a estranha influência artística da tragédia musical, uma ilusão apolínea,
nos deverá salvar do imediato estabelecimento da unidade com a música dionisíaca, enquanto que a nossa
excitação musical se poderá aliviar em um terreno apolíneo e em um mundo intermediário e visível.
Pensávamos ter observado, ao mesmo tempo, que, justamente por tal alívio, aquele mundo intermediário,
e o drama em geral, se fizeram visíveis e inteligíveis num grau que é inatingível por toda a arte apolínea
restante; de maneira que aqui, onde o mundo intermediário do acontecimento cénico era, por assim dizer,
alado e elevado pelo espírito da música, tivemos que reconhecer o maior aumento de suas forças e com
6
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
trágico deve apenas ser entendido como uma representação imagética da sabedoria
dionisíaca por métodos artísticos apolíneos; ele leva o mundo fenoménico até os limites
em que renega de si mesmo” (p. 155).
5. O coro (a voz de Dionísio)
A partir desta concepção da tragédia entendida como obra de arte apolíneodionisíaca, Nietzsche desenvolve uma teoria da evolução histórica da tragédia ática. E
nisso coloca como elemento primordial a música, que acredita encontrar no coro (a
música da tragédia, certamente, não chegou a nós nem ao próprio Nietzsche, pelo que
esta é apenas uma hipótese que está longe de ser consensual). Diz Nietzsche:
o coro ditirâmbico é um coro de seres metamorfoseados, nos quais foram
totalmente esquecidos o passado civil, a posição social; tornaram-se servos
intemporais do seu deus, vivendo fora de todas as esferas sociais. Toda a restante
lírica coral dos helenos constitui apenas uma enorme intensificação do cantor
apolíneo individual, enquanto que no ditirambo se encontra diante de nós uma
comunidade de atores inconscientes que se encaram mutuamente como estando
metamorfoseados. O encantamento é o pressuposto de toda a arte dramática. (p.
65)
A tragédia teria sido originariamente coro e nada mais do que coro (“a tragédia
é, naquele tempo, somente ‘coro’ e não ‘drama’”, diz Nietzsche), um coro trágico que
cantava os sofrimentos de Dionísio. Da música do coro surge para Nietzsche a visão da
cena dramática, a sua evolução teatral, mas que continua a ter sempre como único tema
os sofrimentos de Dionísio. Édipo e Prometeu, por exemplo, são para Nietzsche meras
máscaras de Dionísio.
Isto é, o coro oferece o seu sentido à tragédia, que é um sentido dionisíaco. Em
presença do coro satírico, o Estado e a sociedade, e em geral os abismos entre homem e
homem, cedam a um potentíssimo sentimento de unidade, o qual reconduz ao coração
da Natureza.
tal consolação surge em carnal nitidez sob a forma de coro de sátiros, coro de
seres naturais que vivem por assim dizer por detrás de toda a civilização,
permanecendo inextinguíveis e sempre os mesmos, mau grado toda a mutação
das gerações e da história dos povos. (p. 58)
isso, naquela aliança fraternal de Apolo e Dionísio, o cume dos propósitos artísticos tanto apolíneos como
dionisíacos”.
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
O coro satírico do ditirambo é a ação salvadora da arte grega e o fenómeno
primitivo dramático; pelo mesmo, o homem se vê transformado diante de si mesmo, e
age como se, de fato, tivesse penetrado em um outro corpo, em um outro caráter. Tal é o
princípio do desenvolvimento do drama.
O coro, portanto, é o princípio da tragédia e a fonte da sua forma dramática. No
encantamento provocado pelo coro, se vê o entusiasta dionisíaco como sátiro, e como
sátiro vê, por sua vez, o deus, isto é, ele vê em sua transformação uma outra visão fora
de si, como complemento apolíneo do seu estado. Com esta nova visão se completa o
drama.
Em vários e sucessivos extravasamentos, este solo primordial da tragédia irradia
aquela visão do drama: visão essa que é em absoluto um fenómeno onírico, logo
de natureza épica, representando porém, por outro lado, enquanto objetivação de
um estado dionisíaco, não a redenção olímpica na aparência mas, inversamente,
a fragmentação do indivíduo e a unificação deste com o Ser primordial. (p. 65)
A cena, juntamente com a ação, primitivamente só era, segundo Nietzsche,
imaginada como uma visão, e o coro era a única ‘realidade’, a partir da qual se
originava a visão, materializada no simbolismo da dança, do som e da palavra.
(Lembremos, antes de continuar, que Hegel interpretara o coro num sentido
diametralmente oposto ao de Nietzsche, percebendo neste um ‘representante da voz do
povo’, uma expressão da sabedoria da velhice, impotente, passiva, resignada e isenta de
rigor.)
6. O herói (a figura de Apolo)
A evolução da tragédia na sua forma dramática, em todo caso, dará lugar a uma
espécie de sedimentação da potência apolínea em jogo. E Dionísio passa a exprimir-se
cada vez menos por forças para passar a encarnar-se no herói épico e começar a falar
com uma linguagem semelhante à linguagem de Homero. O sorriso de Dionísio dá lugar
aos deuses do Olimpo – diz Nietzsche –, as suas lágrimas aos homens.
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
Os fenómenos apolíneos nos quais Dioniso se objetiva, já não são ‘um eterno
oceano, alternando a trama, a vida uma chama’, como é a música do coro; já não
são aquelas forças apenas sentidas e não condensadas em imagem, forças essas
nas quais o entusiástico servo de Dionísio sente a proximidade do deus: fala-lhe
agora, a partir da cena, a nitidez e firmeza da configuração épica (p. 68)
Dionísio
aparece,
na
forma dramática
da
tragédia,
travestido
numa
multiplicidade de figuras, com a máscara de um herói combatente e, por assim dizer,
enredado na rede da vontade individual; possuidor da clareza épica de Apolo,
assemelha-se ele a um indivíduo errante, esforçado e sofredor, que representa perante e
para o coro. Mas detrás das máscaras de Prometeu, de Édipo, e de todas as figuras
célebres do palco grego, não fala outro que Dionísio.
7. A morte da tragédia (de Eurípides a Sócrates)
O protagonismo ganhado por Apolo na evolução da tragédia não trai a essência
da tragédia, mas, pelo contrário, é o secreto da sua força. E quando Nietzsche aborde o
tema da morte da tragédia, não será Apolo quem se oponha ao trágico ou por quem o
trágico encontre a morte, mas Sócrates:
reconhecemos em Sócrates o adversário de Dionísio, o novo Orfeu, que se ergue
contra Dionísio e que, embora já condenado a ser dilacerado pelas Ménades do
tribunal ateniense, obriga contudo o deus omnipotente a pôr-se em fuga: este,
como nos tempos de Licurgo, refugiou-se nas profundezas do mar,
nomeadamente nas marés místicas de um culto secreto que a pouco e pouco se
alargava ao mundo inteiro. (p. 94)
Sócrates, carrasco da tragédia e da metafísica do trágico, não é nem apolíneo
nem dionisíaco. Sócrates – primeiro génio da decadência – é o ‘homem teórico’, único
inimigo verdadeiro do herói trágico. Ao profundo olhar trágico, que penetra até o
coração do universo, o socratismo contrapõe o predomínio do lógico, da racionalidade
intelectual, incapaz de ver já a vida que flui debaixo das figuras (essa vida que nos
constrói, nos destrói, obscura como a luz).
Nesse sentido, Nietzsche considera Sócrates como o negador da essência grega,
como o negador de Homero, Píndaro, Esquilo, Fidias, Péricles e Dionísio. Sócrates
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
simboliza o advento do homem teórico, e, com este, o fim da época trágica. Sócrates é
um fenómeno da razão, no qual toda a ambição e toda a paixão viraram vontade de
ordem e domínio racionais do existente. E esta elevação do teórico por sobre toda outra
pulsão não é possível mas que sobre a base duma arte que se tornou fraca e impotente
(logo, com a morte da tragédia, sepultada pela nova comédia).
A tragédia morre com o advento do homem teórico (Sócrates), ainda que o seu
nome perdure na forma vazia da nova comédia (Eurípides):
Foi esta luta de morte a que travou Eurípides; aquele género artístico tardio é
conhecido como a nova comédia ática. Nela sobreviveu a forma degenerada da
tragédia, como monumento ao seu penoso e violento fenecer. (p. 81)
Na nova comédia, inaugurada, segundo Nietzsche, por Eurípides, o herói trágico,
máscara apolínea de Dionísio, é suplantado por uma figura sem profundidade, reflexo
do espectador médio, que se alegra de reconhecer no palco uma figura depurada da sua
própria mediocridade. O homem teórico, aliás, democrático, passa a ocupar o ponto
central do enredo dramático; nisto consiste o ‘realismo’ de Eurípides para Nietzsche.
O elemento dionisíaco desaparece quase completamente, e a tragédia é
reedificada sobre uma concepção não dionisíaca do mundo, mas socrática:
Dionísio já havia sido expulso da cena trágica nomeadamente através de um
poder demoníaco falando pela boca de Eurípides. Também Eurípides era, num
certo sentido, apenas máscara: a divindade que falava através dele não era
Dionísio, nem tão-pouco Apolo, mas um demónio recém-nascido chamado
Sócrates. Eis a nova oposição: o elemento dionisíaco e o socrático, tendo a
tragédia grega sucumbido como obra de arte devido a ela. (p. 89)
A nova comédia já não consegue atingir a beleza apolínea da epopeia, nem
muito menos alcançar estados dionisíacos; nesse sentido, procura novos estimulantes
para produzir os seus efeitos: pensamentos frios e paradoxais (em lugar de concepções
apolíneas) e afetos fogosos (em lugar de êxtases dionisíacas).
A manifestação trágica de estados dionisíacos, como simbolização visível da
música, como o mundo de sonho da embriaguez dionisíaca, é substituída assim pelo que
Nietzsche chama de ‘socratismo estético’ (ainda que inaugurado pela obra de Eurípides),
e cuja lei principal reza mais ou menos o seguinte: ‘tudo deve ser inteligível, a fim de
ser belo’ (como paralelo à frase socrática: ‘só aquele que sabe é virtuoso’). Com esse
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
cânone na mão, Eurípides teria reformado a língua, os caracteres, a composição
dramática e a música coral num palco sobre o qual a tragédia se desconhece a si mesma.
Contra ele Nietzsche lança as suas invectivas mais virulentas:
Que querias tu, sacrílego Eurípides, ao tentar forçar este moribundo a colocar-se
uma vez mais ao teu serviço? Ele morreu nas tuas mãos violentas: necessitaste
então de um mito contrafeito e mascarado, que já só se sabia enfeitar com a
antiga pompa, como o macaco de Hércules. E assim como o mito morreu nas
tuas mãos, também te morreu o génio da música: por mais que tu as estendesses
avidamente para saquear todos os jardins da música, apenas conseguiste obter
uma música contrafeita e mascarada. E uma vez que abandonaste Dionísio,
também Apolo te abandonou; espanta todas as paixões dos lugares onde elas se
escondem, conduz-las para o teu círculo, aguça e apura uma dialética sofista,
ajustando-a aos discursos dos teus heróis – também eles possuem apenas paixões
contrafeitas e mascaradas, falando apenas em discursos contrafeitos e
mascarados. (p. 80)
O olho socrático já não consegue ver os abismos dionisíacos, o arrebato dos
heróis apolíneos sobre o palco. No século V a tragédia está morta, tem desaparecido sob
o novo drama, e Dionísio tem regressado aos secretos caminhos dos mistérios. É por
isso que Nietzsche – exaltadamente – dirá: “’Eu sou quem descobriu o trágico’, mesmo
os gregos o desconheceram”.
8. Metafísica do trágico
As teses nietzscheanas sobre a evolução da tragédia são certamente discutíveis e
não são bem aceites pela filologia académica. Isso não impede que a interpretação do
mundo que nos oferece O nascimento da tragédia seja extremamente valiosa tanto dum
ponto de vista filosófico como da perspetiva duma filosofia da arte que pretenda não ser
estética sem ser ao mesmo tempo existencial, cultural e política. Essa importância do
estético para o pensamento é programaticamente proclamada por Nietzsche, que escreve:
Talvez porém constitua precisamente para os alemães um motivo de repulsa ver
como um problema estético é levado tão a sério, nomeadamente no caso de nada
mais poderem reconhecer na arte do que um jocoso acessório, um repicar de
guizos igualmente dispensável em relação à ‘seriedade da existência’. Que sirva
de ensinamento a essas sérias criaturas o fato de eu estar convicto da arte como
sendo a missão superior e a atividade propriamente metafísica desta vida, no
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
sentido do homem ao qual eu aqui, enquanto meu sublime predecessor nesta via,
pretendo haver dedicado esta obra. (p. 22)
Eugen Fink assinala, nesse sentido, que com Nietzsche a teoria estética da
tragédia antiga desvela a essência do existente na sua integridade. Nietzsche vê no
fenómeno trágico a verdadeira natureza da realidade; o tema estético adquire a
dimensão de um princípio ontológico fundamental; a arte trágica se converte na chave
que abre passo à essência do mundo. Fink escreve:
A arte se converte no organon da filosofia; é considerado como o acesso mais
profundo, mais próprio, como a intelecção mais originária, detrás da qual vem o
conceito; ainda mais, o conceito não ganha originalidade senão quando se confia
à visão mais profunda da arte, quando re-pensa o que a arte experimenta
criadoramente.
Nessa formulação estética duma compreensão fundamental do ser radica o
caráter romântico de O nascimento da tragédia, que Nietzsche chama de ‘metafísica de
artista’. O fenómeno artístico situa-se no centro da reflexão filosófica, e é a partir dele
que se decifra o mundo (sentimos ecoar aqui a intuição que Heidegger cunhará no seu
ensaio sobre A origem da obra de arte).
Acho que ficou relativamente claro o que postula essa ‘metafísica de artista’. A
saber: o reino da individuação, da manifestação do existente múltiplo e individualizado,
paira sobre o fundo primordial da vida indiferenciada. Mas esse mundo de aparências
não carece de valor, pelo contrário, é necessário para que a vontade ganhe consciência
de si, para o auto-conhecimento do verdadeiramente existente (a vida impessoal do
mundo).
A existência é justificada só como fenómeno estético. Na arte é transfigurado
todo o que existe, o fundo primordial do ser encontra-se a si mesmo, vê-se brilhar
através da imagem do que existe.
Nas considerações expostas, temos já os componentes de uma visão profunda e
pessimista do mundo e, em simultâneo, a doutrina dos mistérios da tragédia: o
conhecimento fundamental da unidade de tudo o que existe, o encarar da
individuação como sendo a razão primordial da desgraça, a arte como esperança
jubilosa de como a maldição da individuação pode ser quebrada, enquanto
pressentimento de uma unidade restabelecida. (p. 78)
Eduardo Pellejero - Nietzsche e o trágico
Aludindo a esse fator da tomada de consciência do mundo, de fato, Nietzsche
virá mais tarde, em Ecce Homo, tomar distância de O nascimento da tragédia, dizendo
que essa obra fedia a Hegel.
E, por isso mesmo, Nietzsche renunciará também à concepção do drama que
sustentava em O nascimento da tragédia, na medida em que ainda reproduz o pathos
hegeliano da contradição. E, por isso mesmo, romperá com Wagner e a sua música, na
qual passará a ouvir apenas uma música decadente, e ‘não já a flauta de Dionísio’.
Bibliografia
●
Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia ou Helenismo e
Pessimismo, Trad. J. Guinsburg, São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
●
Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia, trad. de Helga Hoock
Quadrado, Lisboa, Relógio D’Agua, 1997.
●
Eugene Fink, A filosofia de Nietzsche, trad. Joaquim Lourenço Duarte
Peixoto, Lisboa, Editorial Presença, 1988.
●
Deleuze, Nietzsche e a filosofia, trad. de Ruth Joffily Dias e Edmundo
Fernandes Dias, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976.
●
Pilar Palop Jonqueres, «Freud, Hegel y Nietzsche sobre la tragedia
clásica», in El Basilisco: Revista de filosofía, ciencias humanas, teoría de
la ciencia y de la cultura, Nº 1, Oviedo, Março-Abril 1978, pp. 41-51.
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Pilar Palop Jonqueres, «Nietzsche y la tragedia», in El Basilisco: Revista de
filosofía, ciencias humanas, teoría de la ciencia y de la cultura, Nº 2,
Oviedo, Maio-Junho 1978, pp. 47-52.
●
Mario Perniola, Estética e política: Nietzsche e Heidegger, trad. de
António Guerreiro, Lisboa, Ed. Sagres-Promontório, 1991.