A loucura entre nós
Wilson Franco
Comentário ao filme “A loucura entre nós”, documentário, direção de Fernanda Fontes Vareille, 2016, 76mins, lido no Cine Lacaneando, realizado na Casa Guilherme de Almeida em 5 de agosto de 2017
Oi!
Agradeço pela oportunidade de estar aqui, agradeço o convite. Como a loucura não pede licença e não espera muito pra que arrumem a mesa, vou começando:
Uma tia minha morreu essa semana. Não é exatamente uma tia: é parente de uma tia, não é parente direta minha. Eu a encontrava mais ou menos uma vez por ano, numa festa de Natal a que a família toda comparecia. Eu tinha medo dessa tia: era criança, ela nos chamava um por um quando chegávamos e pedia um beijo. Dava um beijo desses bem de tia, dizia que a gente tinha crescido, a coisa toda. Eu ficava bem incomodado, saía correndo assim que ela me soltava, limpando a bochecha com a manga da camiseta. Evitava passar perto dela.
Ela representa, pra mim, meu primeiro contato frontal com a loucura. É claro que não estou pensando aqui na loucura enquanto fenômeno bruto nem pensando na generalidade de suas múltiplas manifestações; afinal (como todos nós) sempre convivi com a loucura de meu pai, de minha mãe, de minha irmã, do resto de minha família e amigos e, sobretudo, sempre e muito, com a minha própria. Mas não é dessas loucuras insidiosas, demasiado humanas, aderidas ao nosso socius, às nossas origens e destinos, não é disso que falo quando falo da tia Ana: a tia Ana foi a primeira representante, em minha história, da loucura que estigamatiza a pessoa, a aderir-se como adesivo colado à testa, loucura sobreposta à pessoa e definindo sua circulação enquanto objeto social.
A tia Ana era louca. E é claro que sim, eu sou louco e vocês são loucos, todo mundo é louco e a loucura entre nós e tal e coisa – mas é diferente. A loucura entre nós quer dizer mais de uma coisa. Quer dizer, por um lado, que a loucura, encarnada naqueles que taxamos de loucos, está entre nós, porque eles circulam entre nós; há nós, “normais”, e há os loucos, circulando entre nós. Quer dizer, por outro lado, que a loucura está encarnada em nós, nós somos loucos ou há loucura dentro de nós, nós a portamos e ela se manifesta através de nós. Quer dizer, ainda, que a loucura não está nem em nós “normais” nem naqueles que estigmatizamos como loucos, mas “entre” nós, nas relações que estabelecemos uns aos outros, no vazio que nos une.
No duro uma coisa não nega a outra, e todas elas interagem, as interações produzindo matizes e padrões específicos ao sabor da história e dos lugares, ao sabor da história dos lugares e das pessoas que os habitam. A tia Ana, que faleceu sábado passado, foi esquizofrênica num período e num contexto onde isso tinha consequências dramáticas e bem específicas: ela falava de um jeito estranho, era bem gorda, tinha dificuldade de locomoção. Ela parecia pensar com clareza e distinguir bem as pessoas, ela estava na festa de Natal ali entre nós, mas ao mesmo tempo, estando entre nós, havia algo que a mantinha separada, algo que as crianças (como eu) sentiam e a que reagiam – os adultos deviam sentir aquilo também, agiam e reagiam aquilo e ela, entre nós, estava lá, sozinha como todos nós no limite estamos. A loucura que seu olhar, seu peso, sua presença portavam diz respeito à forma como sua loucura foi acolhida, aos loucos lugares onde foi tratada de loucas maneiras – essa é a loucura que mais pesava nela, que a mantinha presa e sozinha.
Então temos claro que ela não é louca num sentido absoluto – ela foi, digamos, absorvida por uma forma específica de se cuidar das pessoas que foram percebidas por seus próximos como louca. Ela foi tratada, e as coisas que me chamavam atenção nela – a fala “mole”, a entonação esquisita, o olhar vago, o fato de ela ser gorda e lenta e andar pouco e dificultosamente – essas coisas não eram a loucura que ela emanava de partida, mas a loucura que se incutiu nela. A face da loucura é, entre nós e nas últimas décadas, fruto do tratamento, e não de uma moléstia qualquer.
Eu poderia surtar, por exemplo; por sinal, poderia acontecer aqui mesmo, eu poderia começar a ver coisas, perder a condução dessa minha fala, eu poderia começar a gritar ou a acusar as pessoas de me perseguirem. Eu poderia ser internado, medicado e receber tratamento intensivo. Aí, por mais que família próxima e amigos me preservassem, mantivessem segredo quanto à minha loucura, por mais que se tentasse esconder, eu seria portador dessa outra loucura, essa que é no fundo o tratamento ele-mesmo: os remédios me dariam sono, eu teria o olhar perdido, eu teria tendência a engordar e/ou a ficar impotente, meu humor ficaria artificial e estranho aos demais, eu teria dificuldade de me manter empregado e de pagar minhas contas. As crianças que comparecessem à festa de Natal saberiam que há algo de esquisito comigo, provavelmente me evitariam e esfregariam a manga de suas camisetas onde quer que eu as tocasse.
Há, é claro, toda uma plasticidade, uma maleabilidade nas formas que isso assume – e isso não é de hoje. Pinel, o “pai dos pinéis”, trabalhou antes de ir pra Salpêtrière numa Maison de santé, que era uma casa de tratamento pra famílias ricas; as pessoas que sofriam eram encaminhadas pra esses locais pra que o tratamento não implicasse em um tão grande estigma ou, se a família fosse rica mesmo e estivesse engajada em manter segredo, as pessoas poderiam ser tratadas em suas próprias casas – amarradas quando em crise, médicos as visitariam, servos manteriam vigia etc. Nada disso mudou tanto quanto imaginaríamos: se eu surtasse eu poderia: 1. ser tratado por uma rede ambulatorial privada, minha família poderia se desdobrar para que eu fosse cuidado em casa e para que se mantivesse discrição, eventualmente eu reapareceria em uma rotina que se construiu pensando nas limitações que se sabe que eu terei a partir desse ponto; 2. passar por uma breve internação num período de crise, e depois ser tratado com a mesma discrição; 3. passar a frequentar serviços específicos, adequar-me à loucura e passar e circular tendo-a como centro organizador de minha vida; 4. poderia ser internado em algum lugar reservado para que eu me recuperasse no “meu” ritmo, e eventualmente poderia mesmo passar anos nesse lugar “preservado”.
Além disso, pensando a questão por um outro eixo, eu poderia receber um tratamento mais “pesado” em termos farmacológicos, o que me deixaria mais cheio de estereótipos e estigmas (o “esquizofrênico tornado shampoo” de que falam Deleuze e Guattari), poderia receber um tratamento “eficiente”, dosando eficiência e efeitos colaterais, poderia receber tratamento farmacológico mínimo ou mesmo poderia não ter tratamento farmacológico nenhum; poderia assumir minha loucura publicamente, tentar construir uma vida que a acolha, tentar mesmo estiliza-la de forma a que ela faça parte da minha performance social. Enfim: há uma ampla variedade de formas através das quais essa vivência, esse surto que eu teria tido, implicaria na entrada da loucura em minha vida.
Por sinal, a forma/imagem que mais fortemente associamos à loucura – internações breves e recorrentes, dependência de benefícios, frequência intensiva a serviços não-hospitalares, medicação pesada, precariedade de condições sócio-assistenciais, bafo forte de pão-com-café etc – essa imagem é a imagem da forma como a saúde mental pública adorna a pobreza, e só por derivação tem a ver com a loucura em si.
Tem gente – e não pouca gente – que passa por vivências como um surto, ou um momento de desorganização relativa, ou qualquer outra coisa que queiramos chamar de “loucura” enquanto desbalanceamento afetivo – e que toca a vida sem incorporar a isso qualquer lugar de destaque, sem fazer disso parte de uma singularidade ou identidade social e mesmo de auto-reconhecimento. Vocês podem ter certeza que em meio a seus ídolos – intelectuais, celebridades, políticos, professores e parentes – há pelo menos um, provavelmente mais de um, que trava, travava ou travou lutas relativamente intensas e frequentes com demônios pessoais e que puderam em alguma medida não ser soterrados pelas consequências sociais disso.
Essa tia Ana, de quem falei, que faleceu sábado passado, evidentemente não teve essa sorte; eu, a bem da verdade, nem sei que tipo de comportamento ou manifestação fez com que ela entrasse nessa “carreira”, não sei se teve surto, de que caráter, com que frequência e em que momento de sua vida; o que sei é que quando eu a encontrava eu encontrava a loucura, a loucura entre nós.
Um ponto importante em jogo aqui é que essa loucura que a tia Ana representava não é a loucura, porque o termo loucura se dispersa e passa a se referir a coisas heteróclitas. Eu mesmo, por exemplo: recentemente estive em Londres, pesquisando coisas pro meu doutorado, e no final da viagem passei uns dias em companhia de Paulo Beer, esse camarada simpático aqui do lado, e outro amigo. Pois bem, essa viagem a Londres mexeu com uma série de demônios pessoas meus, e no tempo que passei com eles, eu... bem, eu estava possuído em alguma medida. Esses meus amigos viram isso, viveram isso comigo, mas nada disso virou uma questão tão dramática – houve estofo, em mim e neles, e acima de tudo entre nós, para acomodar isso sem que fosse necessário convocar as camisas-de-força que adornam a loucura que assusta as crianças nas festas de Natal.
Um parêntese quanto a isso: uma das loucuras entre nós que me preocupa é que o espaço entre os demônios pessoais e as camisas de força talvez esteja diminuindo – me falta a sociologia pra tratar disso com o rigor que me parece necessário, mas é uma impressão que tenho: temos menos espaço pra acomodar esses processos, esses momentos e irrupções – esses demônios – e com isso faz-se necessário o recurso às camisas de força. Um dos elementos que seria crucial pra isso é a proliferação de circulações comerciais, hospitalares, clínicas de camisas de força – elas são terapias de controle, elas são remédios, elas são tratamentos, elas são internações, elas são serviços ambulatoriais. Elas estão em toda parte, e elas dizem respeito a todos nós. Elas poderiam dizer que nossa loucura, nossos demônios, podem estar entre nós, porque temos onde acolhê-los. Mas elas dizem, no mais das vezes, justamente o contrário: dizem que estamos prontos para amordaçar os demônios assim que eles derem as caras, ou assim que pensemos que o que vimos foi a cara deles.
O limite entre essas coisas – acomodar e acolher a loucura, por um lado, e amordaçar e trancafiar a loucura, por outro – é tênue, se é que existe. Acho mais provável que ele, ainda que exista, esteja o tempo todo se desdobrando em novos limites e novas configurações, um limite que vai gerando novas e mais complexas fronteiras. De qualquer forma esse é o limite entre o CAPS de que se tem orgulho, de que se fala com orgulho, e o CAPScômio de que se tem vergonha, de que se fala com vergonha; mais uma vez: não sei se esse limite existe, nem se ele é nítido em qualquer medida.
Não por acaso nesse limite, no limite entre essas coisas – de que nos orgulhamos e de que nos envergonhamos, nesses limites que nos separam entre nós e uns dos outros – nesse limite se passam loucuras. Nesse limite pessoas são manipuladas, histórias são manipuladas, contam-se versões distorcidas das vidas dessas pessoas, relatos se disputam. Nos limites entre essas coisas – o que no fundo é o limite entre nós – disputamos nossas histórias, nossos futuros e nossas loucuras (no sentido daquilo que queremos, fantasiosamente, e que empurramos ao mundo não aceitando “não” como resposta, e agimos como se a resposta que queríamos já tivesse sido dada). Nesse limite se disputa se quem manda é o cérebro ou o inconsciente, se vivemos no país da reforma ou no país do descaso, se falta leito ou se não deveria haver leito em hospital psiquiátrico. Nesse limite, nesse espaço, disputamos, cravamos nossos pés nas bordas e empurramos uns aos outros, patinamos em busca de terreno e vamos aos poucos alargando esse fosso que existe entre nós, onde a loucura mais triste vai cair e perder-se lá em baixo. Entre nós, e no entanto sozinha. A tia Ana, muito tempo atrás, caiu nesse buraco, e é de lá do fundo que ela vinha me dar oi no Natal, e eu tinha medo, e nojo. Demorei a ter nojo de mim mesmo: por muito tempo senti nojo dela.
Eu não sei nada sobre a tia Ana; perguntei a alguém, há um certo tempo, se ela era esquizofrênica, e esse alguém disse que sim, e isso é tudo que sei. É claro que eu sei pouco sobre uma série de outras pessoas da minha família – e certamente eu sei muito muito pouco sobre a loucura delas. De alguma maneira, é melhor pra elas que seja assim, já que isso ao menos reduz o risco do estigma, de cair no fosso, de ser empurrado a tratamentos que custarão tão caro.
E no entanto... não consigo deixar de pensar que seria ótimo se pudesse haver espaço. Não é mesmo? Não um espaço reservado, dividido, esquadrinhado, onde a loucura pudesse se encaixar por ter sido encaixotada; não esse espaço, mas o espaço entre nós, mesmo – nas nossas casas, nas nossas rotinas, nas nossas vidas. Se pudesse haver espaço para que a loucura fosse acolhida e não se fizesse questão, se ela não se impusesse por sobre o nome da pessoa, de sua história, sobre quem ela é. Se ela pudesse viver com seus demônios e seus amigos e familiares, sem competição ou sobreposição, sem domínio ou predomínio.
Sim, em alguma medida é um sonho. Mas ao mesmo tempo:
Primeiro: é um sonho real, na medida em que é isso que acontece, sempre que amamos ou temos bons amigos, sempre que podemos ficar loucos e ser acolhidos, sempre que isso acontece, e isso acontece, ainda, bastante, e sempre. Não por vergonha, nem por pudor, não pra esconder a loucura mas para que ela possa estar entre nós e não enquadrada, reificada, fetichizada e domesticada: entre nós;
Segundo: é um sonho real, na medida em que é dele que fala o documentário e a documentarista, no ponto onde o filme me parece interessante. Não me dispus a falar longa e explicitamente sobre o filme porque não me parece a melhor maneira de promover esse tipo de debate, mas é isso que me parece estar em jogo: é um documentário na voz de pessoas, que estiveram internadas mas não estavam, que se entendiam loucas mas não, que se passa em uma cooperativa que estava em um hospital psiquiátrico e que vai pra cidade levando um desfile da loucura e seus remédios. É um filme sobre uma mulher que se abre, entra em contato com sua arte, fala de si, mostra seu apartamento e, ao final, “salta para a morte”, ao mesmo tempo em que é filmada na praia. É um filme sobre uma mulher que é internada e sofre e acusa e sai da internação e retoma sua rotina e sua rotina está ali, os vizinhos com que brigou, a mãe que acusou, os filhos e os cachorros, todo mundo ali. Ali, no documentário, estão as mesmas questões: a Reforma, a cidade, as pessoas, seus discursos, a manicomialização e a luta pela circulação, tudo isso de que falamos e que discutimos. Temos que falar, e discutir, temos que lutar por uma saúde mental pública, por uma sociedade, por um lugar. Mas no documentário também se fala sobre duas pessoas, se fala sobretudo sobre duas pessoas, uma mais pra pobre outra mais pra classe média, uma mais pra sobrevivente a outra mais pra suicidada, uma mais pra outra e outra mais pra uma, e todas elas, e o cara que as acompanha na ala, e a documentarista e o Marcelo Veras, sobre vocês, e eu, e sobre a loucura entre nós. Acho que temos que falar sobre isso, e o documentário me pareceu um bom convite a que falemos disso.
Eu agradeço imensamente o convite para estar aqui, que me chegou pela Patrizia e pelo Paulo Beer – obrigado. Fiquei feliz com a oportunidade, acima de tudo porque o campo da saúde mental me inquieta e fascina há bastante tempo, e porque achei ótima a oportunidade de discutir sobre os temas a que me parece que o documentário remete: a loucura “fora dos muros” da internação, as nossas loucuras enquanto gente, e as nossas loucuras enquanto sociedade. Imagino que haja, no contexto do trabalho do Marcelo Veras, uma referência ao “nós” lacaniano, a que não me sinto em condições de me referir, mas em termos da psicanálise em geral espero poder tecer um comentário ou outro – espero não me enrolar!
Por falar em nós, há um fio interessante que a documentarista amarra e que acho que bem nos serve de fio condutor para começar: o documentário se centra em narrativas que vão ao encontro da documentarista por ocasião da estada de suas enunciadoras um hospital psiquiátrico, mas não toma como “espaço privilegiado” a área de internação, e sim um projeto chamado Criamundo. Essa montagem dá um caráter interessante às relações entre o dentro e o fora – “entramos” no Hospital guiados pela câmera e nos defrontamos com as grades, mas tomamos uma saída lateral e entramos nas salas do Criamundo, onde se estabelecem os focos narrativos pinçados por Vareille. Mais que isso: a narrativa diz respeito, em alguma medida, à transferência do Criamundo de um espaço no próprio Hospital para um outro espaço, “na cidade”