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O Discipulado no Evangelho de Marcos.docx

FACULDADE VICENTINA ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DO DISCIPULADO NO EVANGELHO DE MARCOS Trabalho apresentado ao Curso de Convalidação de Teologia. Aluno: Osmar Debatin Prof: Luiz Balsan RIO DO SUL, SC 2017 INTRODUÇÃO A motivação que perpassa e orienta todo o Segundo Evangelho é o desejo de responder a pergunta pela identidade de Jesus (FERNANDES, 2012, p. 07), simultaneamente ocultada e desvelada pelo segredo messiânico. O fundamento último deste anseio não é meramente teórico ou doutrinal, mas trata-se da procura existencial de uma resposta, que só pode ser alcançada no convívio com Jesus e que, uma vez achada, possui a potencialidade de mudar a vida de modo radical (FERNANDES, 2012, p. 34). O espaço teológico dessa experiência é o caminho, no qual a pessoa se encontra com Jesus e é chamada ao seguimento, ou “o discipulado no Evangelho segundo Marcos, bem como o catecúmeno, é aquele que aceita seguir Jesus através da Via Crucis” (FERNANDES, 2012, p. 41). Este, por sua vez, exige renúncia e confiança, pois, uma vez iniciado, Jesus faz questão de ir sempre na frente. Aliás, o caminho conduz à Jerusalém, onde aguarda a cruz, que é, não somente o destino do Senhor, mas também o do discípulo e, portanto, o da Igreja (FERNANDES, 2012, p. 26-27). Nessa lógica, o caminho supõe optar por Jesus, clarificar as implicâncias dessa opção, fazer experiência da crise e, eventualmente, reoptar pelo seguimento – desta vez com maior consciência. Nesta dinâmica, queremos destacar neste pequeno artigo, a visão marcana do discipulado com duas perguntas que orientarão a nossa reflexão: O que é ser discípulo para Marcos? Que tipo de relação existe entre a concepção messiânica de Marcos e seu modo de compreender o discipulado? Ressaltamos ainda que, não é possível entender o discipulado em Marcos sem uma prévia e adequada percepção da sua concepção messiânica. 1. SEGUIR JESUS NO CAMINHO  Para Marcos, ser discípulo é, fundamentalmente, seguir Jesus no caminho (FERNANDES, 2012, p. 26). Isso explica por que, na seção dedicada ao discipulado (cf. Mc 8,22–10,52), o verbo “seguir” é predominante (cf. Mc 8,34; 10,21.28.32.52), assim como também o substantivo “caminho”, que é o itinerário existencial onde o discipulado acontece (cf. Mc 8,27; 9,33.34; 10,32.46.52). (SMITH, 1996, p. 527). Sendo a essência do discipulado, o seguimento é a proposta básica de Jesus nos relatos de chamamento: “Segue-me” (cf. Mc 1,17-18.20; 2,14; 10,21). Essa proposta inicial é posteriormente qualificada por Marcos: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” (Mc 8, 34). “O discípulo, de fato, segue Jesus num caminho específico: aquele que leva à Jerusalém, onde o Filho do Homem será entregue”. (TERRA, 1997, p. 22). Entretanto, na intimidade do caminho, no convívio quotidiano, Jesus se dá a conhecer à comunidade dos seguidores. Por isso, o caminho é o espaço da grande pergunta marcana: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mc 8,27). Ela conduz às respostas basilares onde a identidade de Jesus é desvendada (cf. Mc 8,29; 15,39). Mas não somente Jesus se revela no caminho, pois também os discípulos se dão a conhecer no seguimento do Mestre (FERNANDES, 2012, p. 28). De fato, Marcos não se propõe apenas a desvelar o mistério de Jesus Cristo, Filho de Deus (cf. Mc 1,1), mas quer que, simultaneamente, o discípulo descubra seus medos, suas incompreensões, suas fragilidades, suas contradições e suas resistências diante de uma proposta que lhe questiona e desinstala (cf. Mc 8,32-33; 9,33-34; 10,35-40). (FERNANDES, 2012, p. 40-41). 2. OS “DE DENTRO” E OS “DE FORA” OU “ENTRAR” E “SAIR” “Em Marcos, encontra-se uma dinâmica interessante, que movimenta o ministério público de Jesus pelo jogo espaço-geográfico: “entrar” e “sair”; “fora” e “dentro” (FERNANDES, 2012, p. 60). Ou seja, na dinâmica do discipulado para Marcos, a atitude assumida diante do evangelho define o ser “de dentro” ou “de fora” (cf. Mc 3,31). Os “de dentro” são os “com Jesus”, ou seja, seu círculo íntimo, aqueles que, sentindo-se interpelados por ele e desejosos de conhecê-lo, colocam-se a caminho e o seguem (FERNANDES, 2012, p. 62). Para isso, sentir-se admirado, incomodado ou desconcertado por sua pessoa, suas ações ou seu ensinamento pode ser o passo inicial. Tais sentimentos ou moções podem, de fato, suscitar o desejo de ir atrás de Jesus à procura de uma maior compreensão. Em contraste com o grupo anterior, os “de fora” são aqueles incapazes de aceitar a Boa Nova de Jesus Cristo, Filho de Deus. São “de fora”, não literalmente, mas no sentido de não estarem iniciados no mistério cristão da salvação. Nessa condição se situam: os adversários de Jesus, aos quais se dedicam numerosos relatos de controvérsias (cf. Mc 2,6-12.15-17.18-22; 3,1-6;6,1-6; 7,1-13; 8,11-13; 10,1-12; 12,1-12.18-27.35-40); os próprios parentes de Jesus (cf. Mc 3,20-35) e a multidão, uma massa indiferenciada de pessoas que Jesus atrai, evita ou procura. (ANTONIAZZI, 1989, p. 38). Contudo, a distinção entre “os de dentro” e “os de fora” não pode ser tomada de forma radical e completa. Em primeiro lugar, porque os discípulos podem provir da multidão que, enquanto tal, integra a categoria dos “de fora” (FERNANDES, 2012, p. 61). Dito de outro modo, embora os discípulos não sejam uma parte da multidão, mas um grupo diferenciado, frequentemente são tirados dela. (BEST, 1977, p. 392). Por outro lado, apesar das instruções que os discípulos recebem em particular e embora lhes seja confiado o mistério do Reino de Deus (cf. Mc 4,11), eles não dão conta de compreender o que Jesus faz ou diz (cf. Mc 4,13; 6,52; 7,18; 8,17; 9,32), assumem com frequência as atitudes do antirreino (cf. Mc 8,32; 9,33-41; 10,35-40) e abandonam o Mestre na paixão (cf. Mc 14,50). Os “de fora”, pelo contrário, em algumas ocasiões surpreendem por sua capacidade de acolher o Reino. Uma vez ou outra, Marcos inverte os papeis, de modo que os “de dentro” fiquem fora (como Pedro no primeiro anúncio da paixão – cf. Mc 8,32), e os “de fora” fiquem dentro (como Bartimeu, que, uma vez curado da sua cegueira, segue Jesus decididamente pelo caminho – cf. Mc 10,52). (SMITH, 1996, p. 527). 3. DISCIPULADO, INCOMPREENSÃO E CEGUEIRA O Segundo Evangelista insiste na incompreensão dos interlocutores de Jesus, o que constitui um desdobramento do segredo messiânico. (FERNANDES, 2012, p. 28). Este, de fato, encontra sua razão de ser na incapacidade, tanto dos “de dentro” quanto dos “de fora”, para compreender o messianismo diferente que lhes é apresentado. Tal incompreensão só poderá ser superada após a ressurreição do Filho do Homem, momento no qual o segredo desaparece (cf. Mc 9,9). Os próprios seguidores, embora sejam feitos partícipes do conteúdo do segredo (Mc 4,11), não dão conta de enxergá-lo. “A cegueira caracteriza assim a situação dos discípulos pré-pascais e, de certo modo, da comunidade de Marcos que, à medida que resiste à cruz, exclui a si mesma da experiência pascal” (TILLESSE, 1992, p. 120). Marcos expressa esse estado de incompreensão construindo uma grande inclusão, que se abre na cura do cego de Betsaida (cf. Mc 8,22-26) e se encerra na cura do cego de Jericó (cf. Mc 10,46-52), delimitando assim a seção sobre o discipulado (cf. Mc 8,22–10,52). A primeira cura, localizada imediatamente antes da profissão de Pedro (cf. Mc 8,27-30) e realizada em duas etapas, após uma cura parcial (“estou vendo as pessoas como se fossem árvores andando” – Mc 8,24), parece introduzir uma confissão de fé válida, mas ainda necessitada de esclarecimento ulterior (“e começou a ensinar-lhes que era necessário o Filho do Homem sofrer muito” – Mc 8,31). (TERRA, 1997, p. 12). Aliás, a perícope encontra-se precedida pela censura aos discípulos presente em Mc 8,18 (“tendo olhos, não enxergais, e tendo ouvidos, não ouvis?” – cf. Jr 5,21), o que reforça a ideia de que o relato aponta para o grupo de seguidores (incluída a Igreja de Marcos). (TILLESSE, 1992, p. 122). Por sua vez, a segunda cura sugere, na figura de Bartimeu, que a incapacidade dos discípulos perdura nas proximidades de Jerusalém, pois, antes de fazerem a experiência da ressurreição – única que pode abrir os olhos definitivamente –, devem passar pela paixão e pela cruz (FERNANDES, 2012, p. 28) 4. AS TRÊS PREDIÇÕES DA PAIXÃO: CONSEQUÊNCIAS PARA O DISCIPULADO Se no esquema bipartido de Marcos a profissão de fé petrina constitui o começo da segunda parte, as subsequentes predições da paixão significam, para o grupo de discípulos, um verdadeiro recomeçar. A comunidade deverá confrontar-se com a necessidade da paixão e, diante da crise que isso provoca, deverá tomar uma nova decisão: desistir ou reoptar pelo seguimento, mas, desta vez, de maneira mais consciente e madura que no princípio. (FERNANDES, 2012, p. 47). Para que isso aconteça, o evangelista coloca um tríplice anúncio da paixão, evidenciando, em cada ocasião, não somente a natureza do messianismo de Jesus, mas também as incongruências da comunidade e o caráter processual do seguimento (FERNANDES, 2012, p. 97). Ora, uma vez explicitado o destino do Filho do Homem, o evangelista exprime suas consequências para o grupo de seguidores. As consequências da opção pelo Mestre aparecem imediatamente depois da primeira predição da paixão (cf. Mc 8,34-38), projetando-se o influxo desse ensinamento sobre as duas predições restantes. Primeira predição da paixão – Seguimento e renúncia (cf. Mc 8,31-38). Diferentemente da profissão de Pedro, que recebe ordem de silêncio no âmbito do segredo messiânico, o primeiro anúncio da paixão – imediatamente posterior – é realizado “abertamente” (Mc 8,32). O evangelista faz questão de situar a cena “no caminho” (Mc 8,27), âmbito próprio do seguimento. A reação de Pedro, porta-voz dos discípulos, é de contundente rejeição, o que evidencia a resistência do grupo (e da Igreja de Marcos) perante a cruz. A resposta de Jesus é igualmente contundente: quem se opõe à dinâmica do sofrimento assume o papel de Satanás, o opositor por excelência, e está fora do caminho. Por isso, Pedro, que sendo seguidor de Jesus parece pretender agora ser seguido por ele, deve retomar o caminho se quer continuar o discipulado. (MATEOS; CAMACHO, 1994,p. 168). Aliás, mediante a dura exortação de Mc 8,33, “Vai para trás de mim, satanás!”, é renovado o chamamento de Mc 1,17, “Segui-me” (FERNANDES, 2012, p. 39). Reiterado o convite ao seguimento, Jesus explicita logo as consequências do discipulado: participar do seu destino messiânico (cf. Mc 8,34-38). Sem preâmbulos e sem se preocupar com a repercussão do discurso, Marcos coloca às claras as exigências da opção pelo Mestre. Quem quiser continuar – ou iniciar – o caminho de Jesus deve saber que a renúncia de si mesmo e a acolhida da cruz são requisitos sinequa non – portanto, inegociáveis – do seguimento. Livre frente a si mesmo e a seus interesses, o discípulo precisará integrar a dinâmica do Servo. Como Jesus, deverá abraçar a rejeição social e a possibilidade extrema e atual do martírio. E, em consequência, descobrirá que a vida plena e a autêntica realização pessoal somente se alcançam na fidelidade a Cristo, frente à qual caem todos os bens e as promessas que o mundo pode oferecer (cf. Mc 8,34-38). (BARBAGLIO, 1990, v. 1, p. 515-518). A segunda predição da paixão – Quem é o maior? (cf. Mc 9,30-37). Salientando a incompreensão dos discípulos diante do segundo anúncio – em essência, igual ao anterior – Marcos coloca uma cena particularmente reveladora da distância abismal entre o que está sendo comunicado e a atitude da comunidade: os discípulos continuam presos aos esquemas hierárquicos judeus e discutem “pelo caminho” (Mc 9,33) quem é o maior. A questão afeta diretamente o relacionamento recíproco entre os discípulos e assume, portanto, proporções comunitárias. Como no primeiro anúncio da paixão, mais uma vez, fica em evidência a dificuldade do grupo para aceitar a dinâmica do Reino. Sentando-se solenemente – posição correspondente a de um Mestre, sempre pronto a ensinar –, Jesus inverte a perspectiva: “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos, aquele que serve a todos!” (Mc 9,35). Em seguida, chama uma criança – pouco valorizada no mundo antigo e à margem da Torá –, coloca-a no meio deles, abraça-a e se identifica com ela: “Quem acolhe em meu nome uma destas crianças, a mim acolhe” (Mc 9,37a). E, em última instância, identifica-a com o próprio Deus: “quem me acolhe, acolhe, não a mim, mas Àquele que me enviou” (Mc 9,37b). Portanto, a comunidade deve abrir-se aos mais desfavorecidos e ser para eles um espaço de acolhida amorosa, serviço e participação. Novamente, os Doze são confrontados com a lógica paradoxal de Deus: “Quem quiser salvar sua vida a perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim e do evangelho, a salvará” (Mc 8, 35). A terceira predição da paixão – Os primeiros lugares (cf. Mc 10,32-45). Como nos dois anúncios anteriores, também o terceiro é colocado sob o motivo do caminho ou, mais precisamente, do caminho que leva à Jerusalém (cf. Mc 10,32). Aliás, Marcos deixa claro que Jesus caminha na frente e os discípulos atrás (FERNANDES, 2012, p. 45). Para Marcos – reiteramos – o caminho com o mestre à frente é a imagem do discipulado; ser discípulo significa ir atrás dos passos de Jesus no caminho para a cruz. (GNILKA,1986, v. 2, p. 113). Contudo, a perícope seguinte (cf. Mc 10,35-45) evidencia que, embora sigam os passos do Mestre, o seguimento ainda é marcado pela inconsistência. De fato, nas proximidades da Cidade Santa, a incongruência dos discípulos parece aumentar. Num contraste chocante com o que acaba de ser anunciado, os filhos de Zebedeu pedem para eles os primeiros lugares. Os outros discípulos não são melhores; reagem com ira diante da perspectiva de que tal honra lhes seja arrebatada. Em seguida, Jesus contrapõe as imagens do servo e do escravo como modelos a serem seguidos pela nova comunidade. (BARBAGLIO, 1990, v. 1, p. 536-539). Esta não deve orientar-se pelos critérios dos poderosos, mas pelo exemplo do Filho do Homem, que veio para servir e dar a vida (cf. Mc 10,42-45). 5. RECOMEÇAR NA GALILEIA Como já sabemos, ao tratar da estrutura do Segundo Evangelho (FERNANDES, 2012, p. 22-26), o texto redigido por Marcos termina na cena do sepulcro vazio (cf. Mc 16,8), que inclui o anúncio do jovem resplandecente às mulheres, o mandato de transmiti-lo aos discípulos e a Pedro e o subsequente silêncio daquelas. Mas alguém – certamente sem compreender plenamente a teologia marcana – julgou inacabado ou pouco satisfatório esse final, acrescentando um sumário – também canônico – que sintetiza as narrativas de aparições tiradas dos outros Evangelhos (cf. Mc 16,9-20) (FERNANDES, 2012, p. 26). Em todo caso, a perplexidade diante de um final tão sucinto e despojado parece compreensível e, por que não, desejada pelo próprio evangelista. Para Marcos, o leitor deve conformar-se, pelo menos provisoriamente, com o anúncio do jovem: “Procurais Jesus, o nazareno, aquele que foi crucificado? Ressuscitou! Não está aqui!” (Mc 16,6). Nem aparições do Ressuscitado nem discípulos proclamando a fé pascal; só a promessa de um encontro futuro na Galileia (cf. Mc 16,7), eco de Mc 14,28. A concepção marcana do discipulado é levada assim até as últimas consequências: quem quiser encontrar-se com o Ressuscitado deve voltar à Galileia (FERNANDES, 2012, p. 46) – onde tudo começou e onde Jesus aguarda para reconstituir o rebanho disperso (cf. Mc 14,27) –; deve percorrer, atrás do Mestre, seguindo os passos dele, o caminho que leva à Jerusalém; deve acompanhá-lo, como as mulheres, ao pé da cruz; deve confessá-lo, como o centurião no momento de máxima humilhação (cf. Mc 15,39), e deve também, como as mulheres, adentrar-se no sepulcro vazio. (KONINGS, 1994, p. 66). Para aqueles que já iniciaram o caminho, o retorno à Galileia é como um novo começo, pois o discípulo nunca está pronto; ele deve sempre recomeçar. Para aqueles que ainda não o iniciaram, é como se Marcos, ainda que visando transmitir a fé pascal, somente achasse possível conduzi-los até a periferia da fé, pois nada – nem mesmo o relato evangélico – pode suprir a experiência personalíssima do encontro com o Ressuscitado. (GNILKA, 1986, v. 2, p. 403). CONSIDERAÇÕES FINAIS  Começamos nosso artigo destacando a ideia central da qual partimos: no Segundo Evangelho, o seguimento de Jesus – o discipulado – está intrinsecamente relacionado com o tipo de messias que o evangelista compreende que Jesus é. Em outras palavras, para Marcos, uma adequada percepção do messianismo assumido por Jesus não é tão somente uma exigência cristológica, mas é também condição essencial para uma adequada compreensão do discipulado. Assim, o discípulo que quiser completar o itinerário proposto por Jesus – e por Marcos –, deverá antes, ou melhor, concomitantemente ao percurso do caminho, esclarecer a natureza do seu messianismo. Concluímos este trabalho realçando a relevância do Evangelho de Marcos hoje, no que tange ao tema do discipulado. Há mais de dois milênios de sua escrita, mediados por inúmeras e radicais mudanças histórico-culturais, ressoa ainda em nossos corações o Evangelho de Jesus que Marcos anunciou. Ainda que o Jesus apresentado por Marcos não seja o messias esperado por uma imensidão de cristãos – que desejariam que ele fosse um Deus miraculoso, sempre a nosso serviço – ele é, com certeza, a Boa-Nova do Pai que o mundo precisa conhecer e que nós cristãos devemos anunciar. No mundo contemporâneo, onde a Boa-Nova de Jesus tornou-se desconhecida inclusive para os batizados, é urgente redescobrir a pessoa e a proposta de Jesus. Aliás, é fundamental aproveitar a oportunidade única que nos concede o processo de secularização para propor a experiência de Jesus Cristo e suscitar uma resposta verdadeiramente pessoal, já não mais dependente do ambiente de cristandade, próprio dos séculos passados. No novo contexto, a exigência da adesão pessoal à fé cristã ganha destaque, e a proposta de Marcos     – com sua pergunta central, “Quem é Jesus?” – encontra ainda mais pertinência. Para saber quem é Jesus, é preciso caminhar com ele, deixar-se impregnar por seu Evangelho e entrar na dinâmica de seu seguimento. Para conhecê-lo, é preciso fazer a experiência de sua presença no caminho.   Em tempos de pós-modernidade, que tanto valoriza a subjetividade, devemos insistir na vigência do Segundo Evangelho. Percebemos que hoje o ser humano encontra-se cada vez mais ávido de novas experiências que o afirmem no caminho de sua subjetividade. Marcos, que propõe o Evangelho como força pra viver no seguimento de Jesus, tem muito a contribuir, nesta tarefa, com seu modelo de discipulado. Para ele, o discipulado não é processo de doutrinação nem de aprendizado, mas o seguimento de uma pessoa concreta, Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, do qual se faz experiência no convívio quotidiano (Documento de Aparecida, 12; Sacrosanctum Concilium, 1). Em síntese, destacamos a profunda comunhão existente entre a compreensão marcana da fé em Jesus e a percepção que os homens e as mulheres de hoje possuem da própria existência. Esta é, cada vez mais, sentida como devir fluído e dinâmico, como processo nunca fechado e sempre inconcluso, como compromisso que não se dá uma vez para sempre, mas que, para perdurar, precisa ser renovado incessantemente. Assim também é a fé para Marcos. Ela nunca é um ponto de chegada, que possa ser conquistada de modo definitivo, mas um constante ponto de partida, uma “eterna iniciante”, um permanente “voltar à Galileia”. À luz desta compreensão dinâmica da fé – e do discipulado –, as palavras ditas a Pedro no caminho de Cesareia, “vai para trás de mim satanás” (Mc 8,33), ganham, no sepulcro vazio, um novo significado: “Ele vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis, como ele vos disse!” (Mc 16,7)… É preciso recomeçar! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTONIAZZI, Alberto. O segredo que poucos alcançam. Pistas para entender Mc 4. Estudos Bíblicos, São Bernardo do Campo, n. 22, p. 31-42,1989. BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos (I). São Paulo: Loyola, 1990. BEST, Ernest. The role of the disciples in Mark.New Testament Studies, Cambridge, v. 22, p. 380-401, 1977. CARMO, Solange Maria do. Catequese num mundo pós-cristão: estudo do terceiro paradigma formulado por Denis Villepelet (Tese de doutorado em Teologia, aprovada pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, não publicada). Belo Horizonte: FAJE, 2013. CONSELHO EPISCOPAL LATINOAMERICANO. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latinoamericano e do Caribe. São Paulo, Paulinas, 2009. FERNANDES, A.; GRENZER M. Evangelho segundo Marcos. Eleição, partilha e amor. São Paulo: Paulinas, 2012. GNILKA, Joachim. El Evangelho según San Marcos. Mc 1,1–8,26. Salamanca: Sígueme, 1986, v. 1. -----------------------. El Evangelio según San Marcos. Mc 8,27–16,20. Salamanca: Sígueme, 1986, p. 9, v. 2. KONINGS, Johan. Marcos. São Paulo: Loyola, 1994. MARTÍNEZ, Juan Pablo García; CARMO, Solange Maria. Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus: as linhas mestras do Evangelho de Marcos. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v. 13, n. 26, p. 45-59, 2014. 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