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O_discipulado_segundo_Mateus._Um_abordag.pdf

2018, Revista de Cultura Teológica

A study of the subject of discipleship is proposed, based on the vocational accounts present in the Gospel according to Matthew (4,18-22, 8,18-22, 9,9,10-13; 19,16-22). The work, of synchronic methodology, follows a communicative perspective. Prepared to encourage interpretive cooperation, the gospel does not merely inform an event from the past, but offers several elements that tend to provoke the reader and lead him to an attitude that arises from the verification of his positions and expectations, in confrontation with the narrative. The objective of the article is to identify the literary and pragmatic strategies used by the author. It begins with the description of the genre vocational narrative, with the comparison between 1 Kgs 19,19-21 and Mt 4,18-20. Then an analysis of the reports follows, in order to identify the elements of cohesion and internal coherence of each of them, highlighting their communicative potential. Finally, with the pragmatic focus, we observe the progressive distribution of the narratives in the whole narrative, in order to identify their performative dimension, that is, the itinerary, traced by the implicit author, in order to lead the reader to assume the values and the proposal of discipleship of Jesus Christ, in the perspective of the Kingdom of Heaven. Keywords: Called-Discipleship; vocational reports; pragmatic analysis; Gospel according to Matthew.

Discipleship according to Matthew A pragmatic-communicative approach Jean Richard Lopes* Boris Agustín Nef Ulloa** Resumo: Propõe-se um estudo do tema do discipulado, a partir dos relatos vocacionais, presentes no Evangelho segundo Mateus (4,18-22; 8,18-22; 9,9.10-13; 19,16-22). O trabalho, de metodologia sincrônica, segue uma perspectiva comunicativa. Elaborado de forma a estimular a cooperação interpretativa, o evangelho não se limita a informar um acontecimento do passado, mas oferece vários elementos que tendem a provocar o leitor e a levá-lo a uma atitude que surge da verificação das suas posições e expectativas, em confronto com a narrativa. O objetivo do artigo é de identificar as estratégias literárias e pragmáticas usadas pelo autor. Inicia-se da descrição do gênero relato vocacional, com a comparação entre 1Rs 19,19-21 e Mt 4,18-20. Depois segue-se uma análise dos * Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Docente em Teologia Bíblica e Teologia Fundamental na PUC-Minas. E-mail: jeanrichl@hotmail.com. ** Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Diretor da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: baulloa@pucsp.br. ⚫ ⚫ relatos, de modo a identificar os elementos de coesão e coerência interna de cada um deles, destacando o seu potencial comunicativo. Por fim, com a focalização pragmática, observa-se a distribuição progressiva dos relatos, no conjunto da narrativa, de modo a identificar a sua dimensão performativa, ou seja, o itinerário traçado pelo autor implícito, com a finalidade de conduzir o leitor a assumir os valores e a proposta de discipulado de Jesus Cristo, na ótica do Reino dos Céus. Palavras-chave: Chamado-Discipulado; relatos vocacionais; análise pragmática; Evangelho segundo Mateus Abstract: A study of the subject of discipleship is proposed, based on the vocational accounts present in the Gospel according to Matthew (4,18-22, 8,18-22, 9,9,10-13; 19,16-22). The work, of synchronic methodology, follows a communicative perspective. Prepared to encourage interpretive cooperation, the gospel does not merely inform an event from the past, but offers several elements that tend to provoke the reader and lead him to an attitude that arises from the verification of his positions and expectations, in confrontation with the narrative. The objective of the article is to identify the literary and pragmatic strategies used by the author. It begins with the description of the genre vocational narrative, with the comparison between 1 Kgs 19,19-21 and Mt 4,18-20. Then an analysis of the reports follows, in order to identify the elements of cohesion and internal coherence of each of them, highlighting their communicative potential. Finally, with the pragmatic focus, we observe the progressive distribution of the narratives in the whole narrative, in order to identify their performative dimension, that is, the itinerary, traced by the implicit author, in order to lead the reader to assume the values and the proposal of discipleship of Jesus Christ, in the perspective of the Kingdom of Heaven. Keywords: Called-Discipleship; vocational reports; pragmatic analysis; Gospel according to Matthew Um tema central dos evangelhos é o discipulado de Cristo, que implica na dupla atitude de renúncia e seguimento. O conjunto dos relatos pretende, portanto, confirmar a comunidade na adesão já realizada e, ao mesmo tempo, oferecer uma síntese de sua complexa e exigente experiência de seguimento com a clara meta missionária, isto é, aquela de despertar novos discípulos. Este artigo propõe uma análise do tema do discipulado no Evangelho segundo Mateus em chave comunicativa. Esta perspectiva entende que os relatos vocacionais não almejam, simplesmente, informar sobre o fato de que Jesus chamou alguns personagens, mas reflete uma estratégia comunicativa, cujo objetivo é levar o leitor real a identificar-se com o chamado leitor implícito. Destaca-se, então, o aspecto performativo do texto, que pretende promover o seguimento/discipulado. Na narrativa mateana, o tema do chamado/seguimento é abordado em diversos relatos, os quais diferem pelo modo como apresentam a resposta do vocacionado frente ao chamado, que pode ser imediata (positiva), suspensa (em aberto) ou rejeição (negativa). Distinguem-se, assim, aqueles paradigmáticos (4,18-22; 9,9), em aberto (8,18-22; 9,11-13) e sem sucesso (19,16-22). O entrelaçamento progressivo destes relatos, no contexto geral do evangelho, contribuem para uma melhor compreensão de sua força semântica e pragmática. Os relatos de vocação constituem um gênero literário encontrado no Antigo e no Novo Testamentos. A análise da estrutura e dos elementos característicos desta cena típica nos evangelhos sinóticos se apoiam no modelo identificado em 1Rs 19,19-21. Porém, a reprodução do esquema literário nem sempre é exata, reservando a cada autor a possibilidade de introduzir modificações. ⚫ ⚫ Para uma melhor compreensão do gênero em questão e da sua pertinência pragmática no Evangelho segundo Mateus, propõe-se uma comparação da citação do livro dos Reis com Mt 4,18-20. A escolha do texto evangélico para comparar é devida a dois motivos: 1. Nesta perícope encontra-se pela primeira vez, em Mateus, a reprodução do gênero vocacional1; 2. A sua forma e posição na narrativa, como se verá mais à frente, desencadeia uma reflexão que perpassa todo o evangelho. Há uma grande correspondência entre os dois textos. Ambos têm alguém que passa e chama, Elias e Jesus, e outros que são chamados. Aqueles que são chamados apresentam três aspectos característicos. O primeiro é o nome: Eliseu, Pedro e André. O segundo é uma designação do tipo familiar. No livro dos Reis, Eliseu é relacionado com os pais. No evangelho, destaca-se a relação fraterna entre os dois personagens vocacionados. O terceiro, de ordem prática, descreve a profissão: Eliseu trabalhava a terra com uma junta de doze bois; Pedro e André eram pescadores. Embora o efeito seja parecido, as ações correspondentes ao chamado são descritas de formas diferentes. Sem explicações, Elias executa o gesto simbólico de lançar sobre Eliseu o seu manto; Jesus, por sua vez, chama os primeiros discípulos com um imperativo, seguido imediatamente de uma motivação: “Vinde atrás de mim e vos farei pescadores de homens”. O relato do livro dos Reis é construído segundo uma perspectiva positiva, que se repete em Mateus. A reação de Eliseu, “correr atrás”, é o primeiro indício da sua adesão, mas carrega também um condicionamento, fato confirmado pelos verbos do pedido dirigido a Elias: “Deixa-me abraçar meu pai e minha mãe, e, então, te seguirei”. O imperfeito qal de “beijar” (nšq), com a partícula ̓n, é um coortativo, que manifesta um desejo intenso de ir até os pais, para se despedir. O aparente condicionamento (deixar beijar) é superado imediatamente na sequência do discurso, pois o verbo seguir (hlk), com uma w consecutiva, indica uma 1 SILVA, C. M. D. da, Metodologia de exegese bíblica, p. 207. consequência lógica de disponibilidade e adesão2. A atitude disponível é repetida, com uma intensidade ainda maior, por Pedro e André, pois, deixando as redes, seguiram Jesus, sem impor uma condição. O potencial comunicativo de um texto depende muito do contexto no qual ele se encontra. Isso quer dizer que, embora possam ser considerados num mesmo grupo formal (relatos vocacionais), como muitas vezes acontece nos textos bíblicos, as escolhas feitas pelo autor – exclusão, inserção, suspensão, deslocamento ou retomada de alguns elementos estruturais da narrativa – têm uma função hermenêutica determinada e em sintonia com um horizonte mais amplo, seja imediato ou da inteira obra. O evangelho, como produto literário, não é uma crônica exata da vida de Jesus e dos personagens ao seu redor. Ele é uma narrativa que pretende, por meio do seu enredo, interpelar o leitor e estabelecer um diálogo performativo3. O relato vocacional, apesar da sua forma muito sumária, introduz o leitor no imaginário do autor e da sua função paradigmática, com o mérito de evidenciar, imediatamente, a centralidade da pessoa que chama, reconhecida como autoridade que deve ser obedecida4. O leitor não chega ao texto de Mt 4,18-20 despreparado, pois, nos capítulos anteriores, Mateus ofereceu várias referências sobre este Jesus que chama. A condição de autoridade, ou aspectos desta, podem ser expressos por meio de uma titulação. Ausente no texto em 4,18-20.21-22 e 9,9, alguns títulos são usados, em vez, nos outros relatos vocacionais, como 8,19: mestre; 8,21, Senhor; 9,11 e 19,16, mestre. A ausência coincide com textos sem problematização, enquanto o uso de titulação se apresenta em textos com GESENIUS, W; KAUTZSCH, E. Gesenius’ Hebrew Grammar, 112a-d, 105b, 108b. Por diálogo performativo se entende que a comunicação e, de consequência, a linguagem que a constitui, não se limita a informar, embora possa assumir a forma de uma descrição. A comunicação é dotada de intencionalidade e força ilocutória, ou seja, “dire è sempre anche un fare” (BIANCHI, C. Pragmatica del linguaggio, 61). 4 BERGER, K. As formas literárias do Novo Testamento, p. 299-301. 2 3 ⚫ ⚫ dificuldades ao seguimento. Por isso, a distribuição dos relatos, os personagens envolvidos e a sequência com a qual são introduzidos, a ausência/presença de problematização (indisponibilidade, controvérsia, não despojamento) manifestam uma intenção comunicativa que se desenvolve estrategicamente ao longo do evangelho e que parte de um modelo de resposta muito claro (4,18-20), paradigmático, mas que ainda precisa ser assimilado. Em referência ao contexto histórico do evangelho, os relatos vocacionais projetam o leitor num mundo (empírico) marcado pelo conflito e a consequente separação entre a sinagoga e o grupo dos seguidores de Cristo. A identificação deste mundo na trama narrativa, feita também com apoio de estudos diacrônicos, leva a descobrir a instância normativa do texto, ou seja, o ponto de vista do autor implícito e sua proposta de resposta ao chamado que, para além das questões históricas dos destinatários originais, interpela qualquer leitor 5. A dependência e relação com o contexto (imediato e amplo) não exclui uma articulação estratégica interna de cada relato. Pelo contrário, a consideração de tal articulação interna dá acesso ao real potencial comunicativo do relato, no seu contexto, o motivo pelo qual ele tem significado na trama do livro. Por isso, esta parte da análise propõe evidenciar os elementos formais dos relatos vocacionais no evangelho de Mateus. Se observará, então, a estrutura e os elementos que promovem a sua coesão, os indícios linguísticos que servem para situar o papel dos participantes na cena, a distância e/ou proximidade deles, o léxico característico. Todos esses fatores contribuem com a identificação da situação textual e do sentido da comunicação. Alguns indícios relativos à ausência ou presença de uma problematização permitem distinguir os relatos em dois grupos: os paradigmáticos e aqueles em aberto. 5 BROWN, J. K. Scripture as Communication, p. 49.52. Em 4,18-19 encontra-se a construção mais elaborada do relato vocacional paradigmático que é repetida em 4,20-21 e 9,96. Uma leitura comparativa dos textos mateanos faz emergir as convergências e particularidades dos relatos7. Mt 4,18-20 i. Jesus, passando, vê a dupla de irmãos (Pedro e André) jogando as redes porque eram pescadores ii. [chama] Diz, com um discurso direto, motivando o chamado iii. Respondem: imediatamente deixando [redes], seguiram-no Mt 4,21-22 i. Jesus, seguindo adiante, vê a dupla de irmãos (João e Tiago) estavam na barca com o pai aprontando as redes ii. [chama], sem motivação iii. Respondem: imediatamente deixando [barcos e o pai deles], seguiram-no Mt 9,9 i. Jesus, passando, vê “um” homem (chamado Mateus) sentado na coletoria de impostos ii. [chama] Diz, com um discurso direto, sem motivação -------levantando-se [da mesa], seguiu-o iii. Responde: a) Mt 4,18-20 A base da disposição narrativa é determinada por três verbos: passar (peripatōn) ver (eîden) e dizer (légei). O primeiro verbo, um particípio presente, expõe um pano de fundo dinâmico, Jesus está em movimento junto ao mar da 6 Uma estrutura semelhante está presente na fonte marcana (1,16-18). Lucas, por sua vez, embora fundamentado em Marcos, amplia a narrativa (5,1-11) e, na resposta de Simão, introduz um problema (v. 5b) derivado da constatação do insucesso da pescaria noturna. O problema é superado imediatamente, na mesma resposta, com o reconhecimento da autoridade da palavra de Jesus. 7 Cf. LUZ, U. El evangelio según Mateo, I, p. 292. ⚫ ⚫ Galileia. A indicação geográfica conecta o texto com o que antecede, “ele se retirou para a Galiléia” (4,12), e contribui com a sua coesão interna. O mar e a condição de pescadores dos personagens interpelados por Jesus são um fator de coesão textual. Os dois verbos seguintes expressam o primeiro plano da narração, da ação principal. Com o verbo ver, uma aoristo, a atenção do leitor é direcionada para o mesmo foco do sujeito, Jesus. Outros elementos auxiliam na focalização. Trata-se de uma dupla, cuja relação é caracterizada por dois fatores: o primeiro, de parentesco, são irmãos; o segundo, de ordem prática, estão lançando uma rede ao mar, pois eram pescadores. O “ver” de Jesus não é destacado, de fato, promove e direciona a segunda ação principal (v. 19). Jesus se dirige verbalmente aos dois irmãos pescadores. Ao localizar o discurso direto no primeiro plano e na boca do protagonista, o autor deixa claro qual a sua intenção: apresentar um chamado que vem de Jesus. O uso do advérbio deûte, com valor imperativo8, expressa a força ilocutória diretiva com qual Jesus convoca os dois irmãos. E a locução preposicional de lugar, “atrás de mim”, redimensiona a situação da cena, ou seja, se passa de uma geografia de passagem para uma relação de proximidade. Já foi destacado acima a ausência de uma titulação como indicativo de um tipo de autoridade. Mas o discorrer da cena mostra que a modalidade presente é a relação mestre-discípulo. O ato diretivo é motivado por uma metáfora construída a partir da profissão dos dois irmãos. Essa nova relação, mestre-discípulo, acarreta também uma nova vida, ou trabalho, como é evidenciado pelo acréscimo do genitivo “de homens” ao vocábulo “pescadores”. A motivação, por ora, prospecta uma expectativa futura – Jesus usa o futuro de poiéō –, algo a ser alcançado, cuja expressão máxima e operativa é revelada plenamente no comando do ressuscitado: "... fazei discípulos meus todos os povos..." (28,19-20). À ação de Jesus corresponde a resposta positiva dos dois irmãos. Eles, deixando tudo, o seguiram. Do ponto de vista dos planos narrativos, é possível destacar ainda alguns fatores. Antes de tudo, a presença do advérbio temporal 8 BAUER, W.; ARNDT, W. F.; GINGRICH, F. W. A Greek-English Lexicon of the New Testament. p. 176. euthéōs, “imediatamente”. Ele não enfatiza somente prontidão, que se espera do leitor, mas confirma também a proximidade com Jesus. Se o verbo “farei” prospecta um futuro a ser alcançado, o advérbio confirma que isto é possível a partir do presente vivido na relação com Jesus 9. Deixar e seguir não estão no mesmo plano. Deixar é um particípio, que remete o leitor ao plano de fundo, enquanto seguir é um aoristo, a ação principal. No caso, fundo e primeiro plano indicam a consequência lógica do seguimento. Para seguir é necessário deixar. O verbo aphíēmi, deixar, e akolouthéō, seguir, expressam as duas condições básicas da experiência do seguimento. O primeiro, diz a condição fundamental. O segundo, em correspondência com o posicionamento, atrás de, indica o movimento correto do discípulo. Pedro e André são dois personagens que ainda não tinham aparecido na narrativa do evangelho. A indicação dos nomes não permite que eles permaneçam no anonimato e, com isso, por serem os primeiros a responder ao chamado, os propõe como companheiros de viagem para o leitor. De fato, eles serão invocados em outras situações narrativas. b) Mt 4,21-22 Em 4,21-22, repete-se, basicamente, a estrutura literária de 4,18-20 e a sua perspectiva vocacional. Com um breve deslocamento espacial (v. 21a), porque tudo acontece no mesmo ambiente, indicativo do segundo plano, o texto reforça a dinamicidade da narrativa e sublinha a progressividade paradigmática do agir de Jesus, como autoridade que forma um grupo de discípulos. Os personagens convocados, Tiago e João, como a primeira dupla de irmãos, são pescadores e se encontram no ambiente de trabalho deles. Porém, diferentemente de Pedro e André, a nova dupla está junto do pai, enquanto prepara as redes para iniciar a pesca. Neste relato, o autor não apresenta um discurso, mesmo que breve, de Jesus, que especifique a motivação do chamado. Mas, apoiado no relato anterior, o texto sintetiza a convocação no emprego do verbo kaléō seguido do pronome pessoal 9 Cf. LUZ, U. El evangelio según San Mateo, p. 291-292. ⚫ ⚫ (autoús), que, evidentemente, faz referência a Tiago e João. A ausência da motivação explícita é justificada pelo paralelo dos relatos, ou seja, já que Tiago e João também são pescadores, subentende-se que seja a mesma proposta dirigida a Simão e André. c) Mt 9,9 O relato de 9,9 se apresenta num cenário totalmente diferente dos dois primeiros. Tudo se passa num ambiente típico de um cobrador de impostos. A estrutura narrativa elaborada pelos verbos é a mesma de 4,18-20. Um verbo secundário de deslocamento (particípio: parágōn), seguido de dois verbos principais (ver, eîden, e falar, légei), que direcionam a atenção para um homem sentado na coletoria de impostos. A indeterminação inicial (ánthrōpon) é superada imediatamente com a apresentação do seu nome, Mateus. Se, nos relatos do início do evangelho, o autor implícito coloca o leitor diante de personagens ordinários, quatro pescadores, agora destaca alguém que não gozava de boa aceitação, devido à sua profissão: coletor de impostos. Além do ambiente histórico-cultural conhecido de então, o próprio texto evidencia isso ao associar coletores de impostos e pecadores (vv. 10.11). Jesus rompe as distâncias sócio-religiosas e dirige o chamado a Mateus, com um imperativo típico do campo semântico do chamado, ἀκολούθει. Este terceiro chamado não apresenta uma motivação explícita. Contudo, a mesma é identificada na sequência narrativa, por meio da polêmica sobre a autoridade de Jesus em perdoar pecados (9,1-8) e na resposta dada aos fariseus (9,13). Com o ato diretivo, Jesus busca promover a adequação da realidade dos destinatários ao seu comando (proposta). E a resposta dos destinatários, nos relatos tratados até aqui, mostra essa adequação caracterizada por dois momentos consecutivos, despojamento e seguimento (4,20.22; 9,9). A consecutividade das ações reflete a perspectiva narrativa: despojar-se e seguir. Mas há de se considerar também a perspectiva semântica que entende as duas ações como intrínsecas à adesão a Jesus e ao Reino dos Céus, por ele proclamado. Nos dois primeiros relatos, o autor acrescenta o advérbio euthéōs, com o qual sublinha-se a imediatez da resposta. Este elemento dêitico (deixis temporal) é implicitamente presente no terceiro relato pela brevidade da narrativa e pela ausência de qualquer objeção indicada pela expressão "e levantando-se o seguiu". Nos relatos paradigmáticos, embora positivos nas respostas imediatas, fica em aberto o resultado desse seguimento. Com esses relatos, tem início um processo que será guiado por discursos e ações em potência de Jesus, que abrem aos vocacionados a possibilidade de conhecê-lo melhor e de aprofundar sua condição de discípulos, na perspectiva do Reino dos céus. A narrativa do evangelho cresce por meio de outros fatores, aumentando a sua complexidade. Emergem, então, condicionamentos, objeções e conflitos que explicitam ainda mais as exigências na adesão a Jesus, como Mestre e Senhor. a) Mt 8,18.19-22 I18 Vendo Jesus que estava cercado de grandes multidões, ordenou que partissem para a outra margem. A 19 a Então aproximando-se um escriba b lhe disse: i Mestre, te seguirei para onde quer que vás. B 20 a E Jesus lhe respondeu: i As raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; ii Mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça. A’ 21 a Outro dos discípulos b lhe disse: i Senhor, permite-me ir primeiro enterrar meu pai. B’ 22 a Mas Jesus lhe disse: i Segue-me, ii e deixa que os mortos enterrem os mortos. O relato de 8,18-22 abre-se com um versículo introdutório (I) que descreve a situação e a geografia do momento. Nos versículos anteriores (vv. 14-15.16-17), Jesus realizou vários exorcismos e curas. Ele se encontrava em Cafarnaum, na casa de Pedro. Ao seu redor se aglomerou uma multidão que o levou a dar a ordem aos discípulos de partirem para a outra margem (v. 18). Segue, então, uma composição ⚫ ⚫ paralelística: AB A’B’, com duas situações muito similares na sua estrutura e nuances diferentes no conteúdo. A e A’ apresentam os interlocutores de Jesus (um escriba e outro dos discípulos), de quem eles se aproximam, enquanto em B e B’ é expressa a resposta dada por Jesus a cada um deles. Alguns artifícios literários e linguísticos, utilizados na construção da semântica e pragmática, destacam a intencionalidade do texto. O primeiro é de ordem verbal. Os segmentos A e A’ (vv. 19.22) são estruturados por um verbo secundário, expressando movimento (particípio proselth´wn), seguido do verbo principal (indicativo eîpen) que abre um diálogo. Cabe lembrar que, no evangelho segundo Mateus, o aspecto intencional contido no uso do particípio de prosérchomai é muito variado. Há quem se aproxima de Jesus para lhe prestar um serviço de apoio (Mt 4,11), solicitar curas e milagres (8,2.5.19; 9,18.20; 14,15; 15,23.30; 17,14-15; 19,20; 21,14; 26,7), demandar esclarecimentos (9,14; 13,10.36; 15,1.12; 16,1; 17,19; 18,1; 21,23; 22,23; 24,1.3; 26,17), colocá-lo à prova (4,3; 19,3; 22,35) e lançar escárnios e insultos (26,49.50.60.69.73; 27,58; 28,1.9). O segundo artifício é identificado na denominação dos interlocutores de Jesus, apresentados como “um escriba” e “outro dos discípulos”. O adjetivo numérico “um” (v. 19) exclui a possibilidade de se pensar no grupo dos escribas e destaca sua individualidade. Ainda em Mateus, o adjetivo numeral indica alguém que se destaca do grupo a que pertence e tem alguma iniciativa pessoal relacionada com a figura de Jesus: 9,18; 19,16. O sentido do adjetivo indefinido, “outro”, reforça o paralelismo entre o escriba, que destacado do seu grupo identitário, tende agora a se deslocar e se associar ao grupo dos discípulos de Jesus. O terceiro artifício é explicitado nos diálogos. O primeiro interlocutor, ao usar um verbo no futuro, expressa seu desejo de seguir Jesus e enfatiza a sua disponibilidade com a indicação de ordem espacial, que afasta qualquer tipo de restrição: “para onde quer que vás”. O segundo, ao contrário, como bem demonstra o uso do advérbio primeiramente (prōtos), antepõe ao seguimento o pedido para ir enterrar o próprio pai. As respostas de Jesus são narradas em B-B’ (vv. 20-22). Diante do escriba (B), ele não se mostra participante do mesmo entusiasmo, mesmo que não refute a sua intenção. A sua resposta é articulada em duas partes. Começa com uma correspondência espacial (i) por meio da qual se elencam dois lugares (toca e ninho) que expressam proteção e segurança. Na segunda parte (ii), afirma-se que o “Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. Trata-se de uma oração introduzida por uma conjunção adversativa (dé), que evidencia um paradoxo. Ao aplicar a figura retórica do merisma 10, com a indicação de um animal terrestre (raposas) e outro dos céus (aves), Jesus deixa claro que, na sua proposta, não tem nenhuma segurança material para oferecer. Em A’, o outro discípulo dirige-se a Jesus com um imperativo aoristo (permite-me), que indica um desejo preciso, cujo conteúdo é imediatamente apresentado: ir enterrar seu pai11. O seu pedido poderia invocar a figura de Eliseu em 1Rs 19. Mas, na verdade, Mateus segue sua lógica narrativa. Assim, Jesus também faz uso do imperativo, ao retomar os dois verbos já presentes em 4,20.22, em ordem inversa: seguir e deixar/abandonar (B'). Num olhar de conjunto, percebe-se, então, que ambos interlocutores usam os verbos para expressar desejo. O primeiro, um desejo aberto, cuja ação ainda não é completa12, por isso no futuro. O segundo, com o imperativo aoristo seguido do advérbio (primeiramente), indica uma situação precisa que parece pesar na decisão de seguir e, com isso, retarda o seguimento. Se diante do primeiro, Jesus enfatiza o aspecto da disponibilidade total, como já visto, no segundo, ele evidencia que o seguimento é possível somente no deixar, no renunciar a algo. A ordem dos verbos, certamente, coloca em evidência o seguir, o tornar-se discípulo, como uma ação que exige deixar algo, uma condição e até redimensionar relações. Ao olhar para o contexto, entende-se que seguir e deixar sintetiza a relação das duas cenas (8,18-22.23-27) que implica numa passagem. 10 Cf. ALETTI, J.-N.; GILBERT, M.; SKA, J.-L.; DE VULPILLIÈRES, S. Vocabulário ponderado da exegese bíblica, p. 114. 11 Segundo BERGER, K. A afirmação “Deixa os mortos enterrarem os mortos” deve ser interpretada como uma admoestação metafórica, afinal, morto não enterra morto, p. 37. 12 Cf. GRILLI, M. Le parole ultime e le penultime, p. 199. ⚫ ⚫ b) Mt 9,10-13 Em primeiro lugar, deve-se observar que a perícope 9,10-13 é um desdobramento direto de 9,9. Note-se também que a versão mateana tem sua fonte em Mc 2,15-17 (e seu paralelo em Lc 5,29-32). Sendo que o seu acréscimo redacional mais significativo é o v. 13, no qual utiliza-se a citação explícita de Os 6,6. A perícope abre-se com o v. 10ab, o qual apresenta o cenário, o pano de fundo, no qual se desenvolverá toda a narrativa: "uma refeição em casa". Ao encontrar-se à mesa com seus discípulos, Jesus atrai também outros coletores de impostos e pecadores (v. 10). Mateus direciona o foco e enfatiza a presença destes últimos personagens, como bem indica o uso de καὶ ἰδοὺ e do adjetivo "muitos". Então, entram em cena os fariseus, os quais vendo (v. 11a) se dirigem aos discípulos (v. 11b) interrogando-os: Por que come com cobradores de impostos e pecadores o vosso mestre? (v. 11c). A afirmação "vosso mestre" marca a distância entre os interrogantes (fariseus) e os interrogados (discípulos de Jesus). Mas, sobretudo, sublinha proximidade e distância de Jesus, uns são seus discípulos, outros não o são. Questiona-se de forma explícita o comportamento, a prática de Jesus: ele come com pecadores!! Frente ao desafio dos fariseus lançado sobre os discípulos, o evangelista muda o foco e descreve a iniciativa de Jesus. Ele é quem responde (v. 12 ab). Utiliza, para isso, um ditado popular: “não são os que têm saúde que precisam de médicos, e sim os doentes” (v. 12). E depois exorta os fariseus: “Ide pois e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não sacrifício” (v. 13). Para, então, chegar ao clímax da narrativa: a proclamação final e solene de Jesus frente aos seus desafiadores (fariseus), comensais (cobradores de impostos e pecadores) e seus discípulos - pois, eu não vim chamar justos mas pecadores! Note-se a centralidade do verbo "chamar" (kaléō). O chamado, segundo Jesus, é propriamente destinado aos pecadores. Por isso, segundo Mateus, não deveria existir nenhum alarde, surpresa ou admiração frente a prática externada por Jesus e compartilhada por seus discípulos. Deve-se observar que a exortação de Jesus dirigida aos fariseus deixa explícita a possibilidade deles assumirem um novo aprendizado: a prática da misericórdia e, assim, tornarem-se seus discípulos. É dentro desta perspectiva que deve ser compreendida a inserção de Os 6,6. Na sequência dos relatos vocacionais, não poderia deixar de ser mencionado 19,16-22. Nesses versículos, o interlocutor de Jesus é apresentado sem nenhuma identificação nominal ou relacional (parentesco). Ele é definido como “um, alguém” (heîs). Este personagem se aproxima de Jesus, invocando-o como “mestre”. Diante da pergunta desse “alguém”, de como obter a vida eterna, Jesus propõe uma resposta que parte da prática comum do seu ambiente sócio religioso, segundo os mandamentos. Frente às indicações de Jesus, esse “alguém”, que afirma já cumprir os mandamentos, mostrando-se um judeu piedoso insiste na sua demanda, ao perguntar se ainda falta algo. Do ponto de vista da estratégia narrativa, esta segunda pergunta abre à possibilidade de uma ulterior reflexão, que permite a Jesus direcionar a atenção para o tema do discipulado. Embora o verbo aphíēmi (deixar) não esteja presente na resposta de Jesus, nota-se a reprodução dos dois elementos constitutivos do discipulado deixar e seguir, como já se deu em 4,20.22; 8,22; 9,9. Neste caso, Mateus evidencia também, de forma clara, o resultado negativo diante da proposta de Jesus e a sua motivação. O jovem vai embora entristecido, porque “era possuidor de muitos bens” (v. 22). A narrativa mateana, comumente é dividida pelos exegetas em dois grandes blocos bastante desiguais na sua extensão: cc. 1-2 (relatos da infância) e 3-28 (ministério de Jesus). Sendo que os cc. 3-28 podem ser ainda subdivididos em quatro unidades menores: 3,1-4,11 (preparação para o ministério público de Jesus); 4,12-18,35 (ministério de Jesus na Galiléia); 19,1-20,34 (viagem de Jesus para Jerusalém); 21,1-28,20 (ministério de Jesus em Jerusalém - relato de sua ⚫ ⚫ paixão, morte e ressurreição). Nesta sequência e subdivisão narrativa, o autor distribui, de forma progressiva, os elementos essenciais de construção do leitor implícito, enquanto projeção da resposta esperada. Em outras palavras, é possível observar e constatar a coerência narrativa complexiva do evangelho, a partir dos motivos que constituem o tema do chamado-discipulado13. O lugar ocupado por Mt 1-2 e sua conexão com o corpo da narrativa é um aspecto importante a ser observado, não somente para uma melhor compreensão de seu conteúdo teológico, senão que de toda a obra por eles introduzida. Segundo Brown, “os relatos da infância são veículos respeitáveis da mensagem do evangelho; efetivamente, cada um é a história essencial do evangelho em miniatura”14. Unidos aos relatos da infância, Mt 3-4 devem também ser considerados como introdutórios. Na sequência dos dois blocos introdutórios, o autor apresenta a figura central do evangelho, Jesus de Nazaré, o Cristo. Assim, os relatos de Mt 1-2 são marcadamente cristológicos, nos quais destacam-se três temas principais: 1) A genealogia (1,1-17), transmite importantes aspectos da identidade de Jesus, os quais trazem à luz sua messianidade davídica e sua ascendência abraâmica; 2) O primeiro sonho de José (1,20-21), explica o caráter divino da concepção do menino, sua vocação e missão de salvar seu povo de seus pecados; 3) O tema “Jesus, filho de Deus”, ainda que não venha explicitamente abordado nos relatos, constitui-se um argumento central em Mt 1-2, tal como se vê na frequência do substantivo de huiós. Em Mt 1-2, identificam-se, ainda, cinco referências explícitas a textos veterotestamentários, com a finalidade de expressar que no evento Cristo cumpremse as Escrituras: 1,18-25 (Is 7,14); 2,1-12 (Mq 5,1.3); 2,13-15 (Os 11,1); 2,16-18 (Jr 1,15); 2,19-23 (referência genérica a um profeta desconhecido). 13 GRILLI, M. Le parole ultime e le penultime, p. 174. BROWN, R. E. El nacimiento del Mesías, p. 14. Por sua vez, FITZMYER, J. A. El evangelio según Lucas, II, p. 45, "considera-os uma espécie de ouverture solene que apresenta os principais temas de todo o relato evangélico". 14 A narrativa, nesta perspectiva de revelação cristológica, pretende promover no leitor uma atitude que supere as dificuldades e controvérsias, representadas em alguns personagens e grupos, de modo a estimular um discipulado coerente e efetivo. Nesse sentido, destacam-se os escribas e os fariseus, figuras que, pouco a pouco, se tornam os opositores de Jesus. Ainda que com carga negativa diferenciada, ambos são retomados em alguns textos vocacionais. A elaboração dos personagens tem uma função pragmática ao provocar reações nos leitores, como empatia, simpatia ou antipatia15. A primeira vez que os escribas aparecem no evangelho mateano, encontra-se no relato da chegada dos magos do Oriente que, seguindo a estrela do rei nascido, se dirigem a Jerusalém. Herodes, alarmado pela narrativa dos personagens estrangeiros, chama os chefes dos sacerdotes e os escribas para se informar do local de nascimento do referido rei. Os escribas, perscrutando as Escrituras, respondem de forma objetiva e pontual: em Belém de Judá (2,4-6.7-8). Os escribas, assim, são apresentados não somente como aqueles que conhecem as Escrituras, mas sobretudo como seus intérpretes autorizados. Eles sabem reconhecer o lugar do nascimento do rei, mas não se dirigem a ele. Os que se dirigem, são os personagens vindos de longe. Os fariseus aparecem pela primeira vez no relato das multidões que se dirigem a João, apresentado como precursor do Messias (3,11), para receber o seu batismo (3,1-12). No contexto de exortação à necessária conversão, em vista do juízo escatológico, segundo João iminente, os fariseus são identificados pelo profeta como raça de víboras (v. 7). A grande sessão do ministério de Jesus na Galileia (4,12-18,35) inclui os relatos vocacionais paradigmáticos (4,18-20.21-22; 9,9) e os chamados que permanecem abertos (8,18.19-22; 9,10-13). Ainda, dentro desta sessão, assume 15 VIGNOLO, R. Approccio narrativo ai personaggi biblici, 143-186. ⚫ ⚫ particular importância o relato do diálogo de Jesus com o jovem rico (19,16-22), devido às suas consequências no diálogo de Jesus com seus discípulos (19,2326.27-30). A partir do chamado do jovem, então, o evangelho aprofunda a questão do seguimento, despojamento, recompensa do discípulo. É significativo que, logo após Jesus ser informado da prisão de João Batista, o evangelho descreva o seu deslocamento de Nazaré para a região de Cafarnaum, na Galileia (4,12-13). Então, por meio de um sumário, descreve-se o início do ministério de Jesus, declarando o conteúdo de sua pregação: "Converteivos porque está próximo o Reino dos Céus” (v. 17). A força do sumário se estende pelos textos sucessivos e abrange também os relatos vocacionais. De fato, a ação inaugural das atividades de Jesus consiste no chamado dos primeiros discípulos. A sequência da trama narrativa permite inferir que a resposta positiva ao chamado é expressão do desenvolvimento do processo enfatizado no v. 17 16. Como visto antes, o primeiro relato vocacional é positivo e privo de qualquer problematização. Mateus retarda aspectos de problematização diante do chamado, confirmado por 4,25, no qual se declara que multidões numerosas o seguiram. Observa-se, então, que somente após apresentar o grande discurso da montanha (Mt 5,1-7,27), no qual Jesus começa a delinear os elementos específicos a serem assimilados pelos discípulos, surgem as primeiras dificuldades de proceder com o seguimento, em Mt 8,18-22. A imediatez do seguimento nos relatos modelos (4,18-22; 9,9) se contrapõe ao entusiasmo ingênuo (8,19-20) e ao pedido anteposto (8,21-22) ou à controvérsia (9,10-13), que tendem a alargar o tempo de decisão e adesão ao discipulado, a fim de oferecer ao leitor mais elementos de reflexão a partir das reações dos demais personagens presentes nas cenas ao redor dos relatos vocacionais. Por isso, é muito significativo que o escriba manifeste a sua incondicional disponibilidade de seguimento logo após Jesus ter dado a ordem aos seus discípulos de irem para a outra margem (v. 18). Ordem esta que é cumprida somente no v. 23, o qual inicia outra cena, aquela da tempestade acalmada (vv. 23-27). 16 LUZ, U. El evangelio según San Mateo, I, p. 293. Dois termos ganchos conectam as duas cenas (vv. 18-22 e 23-27): o verbo “seguir” e o vocábulo “discípulos”. O texto não afirma explicitamente que o escriba e o outro discípulo seguiram a Jesus. Mas o v. 23ss, mais que uma indicação espacial, exerce uma função semântico-pragmática. Entre a ordem e o seu cumprimento, Mateus insere o duplo diálogo vocacional17, indicando que a passagem para outra margem é intrínseca ao discipulado daqueles que acolhem a radicalidade de uma ausência de segurança material e se dispõem a abandonar tudo, inclusive vínculos estreitos, para seguir Jesus. A exigência fundamental que permite entrar na ótica desta passagem e superar todas as adversidades que a ela se contrapõem é a fé. Não acaso, então, os relatos de Mt 8,18-22 e Mt 9,9.10-13 são inseridos numa macrosseção caracterizada por uma série de relatos de milagres (ou ações em potência), realizados por Jesus, nos quais se constata e sublinha a fé (explícita ou implícita) dos seus interlocutores: a cura de um leproso (8,1-4), do servo do centurião (8,5-13), da mulher hemorroíssa (9,18-26), de dois cegos (9,27-31)18. Ainda em Mt 9, destaca-se a perícope composta pelos vv. 1-8. Diante da afirmação da autoridade de Jesus de perdoar pecados19, os escribas manifestam rejeição, acusando-o de blasfêmia (v. 3). O motivo destes versículos antecipa o relato do chamado de Mateus (v. 9), o qual, por ser publicano, é associado aos pecadores (v. 10), contexto no qual surge uma controvérsia com os fariseus. Estes, de um lado, questionam a autoridade de Jesus como mestre, afinal, um mestre tradicional não partilharia uma refeição com publicanos e pecadores. De outro, permite aprofundar um importante aspecto do chamado, entendido como uma experiência de misericórdia; atualizando, deste modo, o motivo da conversão devida à proximidade do Reino dos Céus (4,17). Diante das várias controvérsias com a sinagoga farisaica, Mt associa o fariseu à figura do Tentador, usando para ambos o mesmo verbo, peirázōn. Em 4,3, o Tentador (hó peirázōn), aproximando-se de Jesus, faz (“diz”) uma pergunta, com um condicional: se és Filho de Deus [...]? Em 22,35-36, um membro do grupo 17 LUZ, U. El evangelio según San Mateo, II, p. 47-48. GUIDI, M. Sequela e misericórdia. Uno studio pragmático di Mt 9,9-13. p. 205. 19 Ibidem, p. 207. 18 ⚫ ⚫ dos fariseus (vv. 34.41), denomindo nomikós, especialista da lei, pergunta (“diz”) a Jesus qual é o maior dos mandamentos. O narrador introduz uma informação significativa que permite entender a intenção do fariseu, como o Tentador de 4,3, ele intenciona colocar Jesus à prova. Em Mateus, os fariseus constituem, de forma permanente, um grupo hostil à pessoa de Jesus enquanto Messias e, por consequência, à sua hermenêutica (22,41-46). Esta hostilidade é contraposta com determinação no c. 23, no qual Jesus apresenta uma série de advertências contra os escribas e os fariseus. No v. 23, torna-se explícito que uma das graves faltas dos fariseus continua sendo a falta de misericórdia. Isso revela que não haviam acolhido o convite que Jesus lhes fizera em 9,13: “Ide antes aprender o que significa misericórdia...”. Contudo, o evangelho reserva algo diferente aos escribas. Apesar de muitos deles participarem da mesma atitude dos fariseus, uma obstinada objeção a Jesus, Mateus reconhece a possibilidade de que se tornem discípulos do Reino (13,52) e os inclui no grupo de seus enviados: sábios profetas e escribas (23,34). A narrativa do chamado é, normalmente, de ação. Tem um antes e um depois, uma mudança de situação20, como se vê no chamado de Pedro e André, Tiago e João. Mas percebe-se também elementos da trama de revelação, pois a mudança de situação se dá também no reconhecimento de Jesus como o Messias. A argumentação mateana que, em 8,20 por primeira vez, utiliza o título "Filho do Homem", insere no horizonte do discipulado a perspectiva escatológica, aquela que impulsiona rumo a uma plenitude ainda esperada. Esta mesma figura do Filho do Homem aparece novamente no horizonte do discipulado, após o afastamento do jovem rico (19,22) e a subsequente afirmação de Jesus que adverte os seus discípulos para a dificuldade de um rico entrar no Reino dos Céus (19,23-26). 20 SKA, J. L. Sincronia: a análise narrativa, p. 136. Então, Pedro, em nome dos Doze, pergunta a Jesus sobre a recompensa daqueles que, sendo discípulos, como eles, deixaram tudo para seguilo (19,27). Jesus responde que, “quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glória”, os seus seguidores sentar-se-ão em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel (19,28). Insere-se, assim, no horizonte do discipulado o motivo eclesiológico que é identificado na tensão conflitiva entre a comunidade dos discípulos de Jesus e a sinagoga farisaica, que os expulsara por causa da fé messiânica deles. Na segunda parte da resposta de Jesus, sublinha-se outra característica do discipulado, expressa pelo verbo deixar seguido da promessa de receber o cêntuplo e a herança de vida eterna (19,29-30), sendo que esta última questão já fora introduzida na narrativa pelo jovem (19,20), que se aproximou de Jesus para interrogá-lo (19,16). Os verbos deixar e seguir descrevem as duas atitudes típicas daquele que adere ao chamado de Jesus, como ocorre em dois dos relatos paradigmáticos (4,20.22); enquanto, em 9,9, os verbos são anístēmi e akolouthéō. O verbo anístēmi adapta-se melhor à condição daquele que é chamado, no caso de Mateus, que trabalhava (sentado) na coletoria de impostos, mas o sentido é o mesmo de deixar (cf. também 19,21), ou seja, levantar-se equivale a deixar algo para trás. A análise do tema do discipulado, a partir dos relatos vocacionais presentes no evangelho segundo Mateus, permitiu identificar um percurso, construído com grande habilidade literária. Cada relato possui uma coesão e coerência internas carregadas de força comunicativa. À medida que a narrativa do evangelho progride, a retomada de alguns personagens ou a aparição de outros, as diferentes geografias e situações, os diálogos, inserem novos motivos, aprofundando o tema do discipulado. Esse processo constrói o leitor implícito, isto é, o texto oferece instrumentos que, nas inferências, capacitam o leitor real para interpretar e interagir com sua proposta. ⚫ ⚫ Os motivos que compõem o tema se formam em torno ao eixo central do evangelho que é Jesus Cristo. Isso significa que no percurso proposto, da Galileia a Jerusalém, o leitor é convidado a responder ao chamado numa crescente experiência sempre mais profunda de Cristo. Assim, Mateus interpreta o chamado como atualização do imperativo à conversão associada com a proximidade do Reino dos Céus (4,17). O autor prospecta também uma comunidade de discípulos capaz de fazer novos discípulos que aderem ao batismo e assumem os ensinamentos dados pelo seu mestre e Senhor (cf. 28,16-20). Assim, a referida comunidade é chamada a renovar de forma permanente o seu testemunho missionário, fundamentado na necessária renúncia para o seguimento (4,20.22; 8,22; 9,9; 19,21.29). 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