22/04/2018
Gilberto Freyre, o inimigo do politicamente correto | Revista Bula
Gilberto Freyre, o inimigo do
politicamente correto
POR ADEMIR LUIZ
EM ENTREVISTAS
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Gustavo Mesquita, doutor em História pela USP,
venceu o 6º Concurso de Ensaios sobre Gilberto
Freyre com o trabalho “Gilberto Freyre e o Estado
Novo: Região, Nação e Modernidade”, publicado pela
Editora Global. Nesta entrevista ele explica o apelido
“vitoriano dos trópicos” dado a Freyre e sua relação
com guras como Getúlio Vargas, Florestan
Fernandes e Oscar Niemeyer. Também destaca a
relação de Freyre com os movimentos negros, sua
visão acerca do sobrenatural, vocação para a
polêmica e muito mais.
O que signi ca ser um vitoriano dos trópicos?
Gustavo Mesquita — Sua primeira pergunta já
tocou numa polêmica. O fato de Freyre ter sido
um intelectual cosmopolita, interessado na
cultura humanística universal e guloso leitor das
criações da literatura, da história, da loso a e
das ciências sociais, fez com que seus biógrafos
e estudiosos procurassem as inspirações mais
fortes de suas ideias. Assim nasceu o rótulo de
“vitoriano dos trópicos”. Menos politicamente e
mais esteticamente, esse termo quer dizer que
Freyre se inspirou nas artes e na literatura
inglesas da era vitoriana para escrever o
controverso “Casa-grande & Senzala”. As obras
ensaísticas e poéticas de Walter Pater, Lafcadio
Hearn, Charles Dickens e W. B. Yeats, entre
outros, teriam lhe ensinado o uso assistemático
e esplendoroso da palavra na forma de um
ensaio. A autora do termo, Maria Lúcia PallaresBurke, chamou atenção para a anglo lia de
Freyre, apaixonado pela literatura vitoriana. Mas
nesse ponto é importante ter cuidado
redobrado: o termo “vitoriano dos trópicos”
pode dar a entender que Freyre era simpático
aos valores da sociedade vitoriana, como o
protestantismo, o industrialismo e o moralismo
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reinantes nas cidades. Isso está completamente
errado! Nada mais contrário ao que ele pensou
e propôs para os trópicos em sua obra…
Seu trabalho, premiado no 6º Concurso Nacional de
Ensaios sobre Gilberto Freyre, trata das relações
de Freyre com o Estado Novo. Em linhas gerais,
quais foram essas relações?
Gustavo Mesquita — Foram relações muito
fortes, para discutir interesses que diziam
respeito à identidade do brasileiro no mundo
moderno, e por serem fortes e
comprometedoras mesmo é que Freyre sempre
tentava escondê-las. Ele quis esconder seu
pacto com o regime de Vargas. O livro “Gilberto
Freyre e o Estado Novo” põe uma lupa sobre
essas relações e revela algumas de suas
consequências para a história, a memória e a
invenção da nação.
Freyre chegou a se encontrar pessoalmente com
Vargas?
Gustavo Mesquita — Sim, algumas vezes. Nos
“Diários” de Vargas não há registro desses
encontros, mas isso não quer dizer que não
tenham se encontrado. No meu livro toco mais
nesse assunto. Muita comunicação de Freyre
com o governo aconteceu por cartas e
telegramas, em vários momentos turbulentos da
Era Vargas.
O sociólogo e escritor brasileiro Gilberto Freyre, em 1981
A noção de democracia racial defendida por
Gilberto Freyre costuma ser acusada de ser uma
desculpa para justi car o racismo. Isso é justo,
simpli cação, desonestidade intelectual ou os
militantes simplesmente não entenderam o
conceito?
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Gustavo Mesquita — Os ativistas negros não
aceitam mais viver numa sociedade que se diz
livre do racismo, mas não dá oportunidades
iguais de cidadania por preconceito. Há
bastante tempo, Freyre é o alvo da militância
justamente porque seu pensamento é
dominante entre as elites. Uma guerra está
armada entre os que acreditam que a
mestiçagem preponderante livrou o Brasil do
racismo e os que acreditam que ela só criou um
racismo diferente do padrão nórdico, porém
igualmente prejudicial para os afrodescendentes
no Brasil. O problema é quando os mais radicais
e obcecados querem lançar todos os problemas
do país nas costas do sociólogo. Isso é um erro
inaceitável! É inaceitável quererem que nós o
esqueçamos por uma falsa justi cativa de que
ele é só um ideólogo do branqueamento.
Simpli cação mais burra! Ainda bem que
Ricardo Benzaquen de Araújo pôde trazê-lo de
novo à cena com seu “Guerra e Paz”.
Em sua famosa entrevista para a revista
“Playboy”, Gilberto Freyre disse que alguns de seus
amigos mais próximos eram muito chatos, como
Oscar Niemeyer, Miguel Arraes e Rubem Braga.
Justi cou que certas pessoas são “mais
interessantes escrevendo do que falando”. Essa
frase serve para o próprio Gilberto Freyre? Ou
seja, sabemos que Freyre foi um grande prosador,
mas ele era chato ou um “papista” dos bons, como
Ariano Suassuna?
Gustavo Mesquita — Vaidoso que era, um –
como ele mesmo dizia – autoapologeta, o que
vou dizer agora o envaideceria ainda mais:
Freyre era bom de papo. Talvez pela beleza de
suas ideias nacionalistas e boa oratória, ele
conseguia atrair e convencer muitas audiências
mundo afora. Temos poucos vídeos com ele
disponíveis na internet e em outros acervos. É
difícil avaliar. Acho que ele não era tão bom
quanto Ariano Suassuna na contação de
histórias em público.
Nessa mesma entrevista, Gilberto Freyre disse que
Oscar Niemeyer, apesar de ser um arquiteto genial,
era muito ignorante, que só falava por chavões e
slogans comunistas. Aparentemente, o objetivo foi
al netar o amigo dizendo que suas amarras
ideológicas restringiam suas re exões e mesmo
leituras. Qual a relação do Gilberto Freyre com o
Partidão? Havia diálogo?
Gustavo Mesquita — Interessante como essas
farpas eram recíprocas, pois Niemeyer também
atacava Freyre com frequência. Era um duelo
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dos bons! Realmente estimulante para o
pensamento. Eles trabalharam juntos algumas
vezes, como na direção do atual IPHAN, então
eram naturais essas brigas e desentendimentos
vários. Ao contrário de Niemeyer, Freyre nunca
foi comunista. Foi intelectual atuante ao modo
anticomunista, especialmente na Guerra Fria,
momento em que colaborou para a plataforma
dos Estados Unidos e defendeu a ditadura
militar no Brasil.
Um dos livros mais divertidos de Freyre é
“Assombrações do Recife Velho”. Dizem que ele
a rmou ter visto um fantasma em certa ocasião.
Hoje, sua casa recebe turistas para um “tour
assombrado”. Como interpretar esse lado “místico”
de Freyre? Ele era religioso? Abertamente
supersticioso? Ou tudo é intriga da oposição?
Gustavo Mesquita — Ele era um sujeito
inventivamente contraditório. Vejam o seu
“Como e Por Que Sou e Não Sou Sociólogo”. São
os contrários se equilibrando sem formar um
todo uno, uma única personalidade intelectual.
O que ele gostava mesmo era de alimentar
elogios em torno de si. Suas histórias são
recheadas de mistério, além, claro, de muita
qualidade literária. E acaso isso não atrai mais
público para sua obra?
Gilberto Freyre e o Estado Novo
Região, Nação e Modernidade (Global, 240
páginas)
Em mais de uma ocasião Gilberto Freyre
menosprezou o trabalho de Caio Prado Júnior.
Consta que certa vez chegou a dizer “quem é Caio
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Prado Júnior comparado comigo?”. O que motivou
essa rivalidade? Aonde ela levou?
Gustavo Mesquita — Não é bem assim. No
começo das carreiras de ambos, quando ainda
estavam se a rmando, Freyre falava de Caio
Prado Júnior com respeito. Chegou a dizer que
concordava com alguns aspectos do livro
marxista “Evolução Política do Brasil”.
Provavelmente essa relação se degradou por
causa de suas posições políticas posteriores à
Era Vargas. O fato é que com o tempo Freyre se
afastou o quanto pôde dos intelectuais alojados
nas universidades, sendo que, para estes
(especialmente os de São Paulo), o sociólogo
pernambucano era um autêntico representante
do estamento burocrático, maior símbolo do
atraso nacional. Essa guerra só terminou
quando Freyre faleceu.
A rivalidade com Florestan Fernandes, que você
estudou no doutorado, parece ter sido mais
amistosa. É verdade ou só impressão?
Gustavo Mesquita — Parece ser verdade.
Tirando o episódio em que Freyre chamou
Fernando Henrique Cardoso de inteligente,
Florestan Fernandes de fraco e Octavio Ianni de
burro em seu “Como e Por Que Sou e Não Sou
Sociólogo”, o tratamento entre eles foi cortês,
até certo ponto. Reparem em como o
tratamento entre eles era respeitoso… Farpas
recíprocas, além das críticas abertas, foram
muito comuns.
Gilberto Freyre realmente almejava ser professor
na USP? Florestan Fernandes teve alguma
in uência nisso?
Gustavo Mesquita — Eu nunca soube dessa
vontade. Na verdade, em algumas cartas para
Florestan ele menosprezou a USP. Ele não tinha
interesse algum nas universidades de modo
geral e na forma de fazer pesquisa que elas
impõem. São, para ele, pesquisas pouco
signi cativas, cuja linguagem não encarna o
devir do homem.
Qual a diferença fundamental entre a visão racial
de Freyre e a de Florestan Fernandes?
Gustavo Mesquita — O primeiro via na cultura
da mestiçagem nossa principal vantagem
diante de todas as outras nações do globo,
enquanto o segundo a via como um aspecto
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secundário, importando mais a estrutura das
relações entre os brancos e os negros, ou seja, a
herança da escravidão. Para Florestan, a
mestiçagem é só um passo a mais no processo,
em curso, de limpeza étnica e social iniciado
depois da abolição do trabalho escravo, no
século 19. Para Freyre, a mestiçagem expressa a
originalidade da cultura brasileira, nossa
capacidade de nos misturarmos sexual e
socialmente e formarmos vários outros,
in nitamente. Daí vem sua ideia muito polêmica
de metarraça: a única sociedade do mundo sem
raças. Outros intelectuais, é bom lembrar,
entraram nesse debate. Abdias do Nascimento,
Lélia Gonzalez e Clóvis Moura são alguns
exemplos. Precisamos ouvir mais o que esses
pensadores disseram sobre a questão racial.
É possível dizer quem está certo?
Gustavo Mesquita — Não. Sugiro que procurem
a verdade nas bibliotecas e no olhar sobre a
realidade de ontem e de hoje. Mas deixo aqui
uma pulga atrás da orelha: passados 130 anos
da abolição, por que os negros ainda são os
mais pobres na sociedade brasileira?
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