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INVENIRE_esp2015_94-105_Delmira Espada Custódio.pdf

The central theme of this article approaches the Book of Hours attributed to Queen Eleanor and its respective structure across two essential points: a brief presentation of the manuscript followed by the iconographic interpretation of its border figurations, one of the most significant facets of this codex. Illuminated in third quarter of the 15th century by the Flemish artist Willem Vrelant, the Queen Eleanor Book of Hours is undoubtedly one of the most important works held by the National Library of Portugal and an unparalleled example of the work of its author. Its borders, crowded by small figures and executed with great mastery, stand out for their uniqueness, abundance and the narrative character of these border figures. The reading we propose for these figurative clusters traces the structure of the sections trying to evaluate their relationship with the texts.

su INVENIRE io Revista de Be s Cultu ais da Ig eja INVENIRE é uma edição do Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja, organismo da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais. Di e to a Sandra Costa Saldanha Coo de aç o deste ú e o Fernanda Maria Guedes de Campos Co iss o Cie íi a Catarina Barreira; Fernanda Maria Guedes de Campos; Isabel Cepêda; Maria Adelaide Miranda Cola o a este ú e o Alícia Miguélez Cavero; Ana Lemos; Catarina Barreira; Catarina Martins Tibúrcio; Conceição Casanova; Delmira Espada Custódio; Horácio Augusto Peixeiro; Joana Antunes; Luís Correia de Sousa; Luís Urbano Afonso; Maria Adelaide Miranda; Maria Alessandra Bilotta; Maria Coutinho; Paula Freire Cardoso; Rita Araújo; Tiago Moita Fotog afia Academia das Ciências de Lisboa; Ana Lemos; Archivo del Monasterio de Santo Domingo de Silos; Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Balliol College; Biblioteca da Ajuda; Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra; Biblioteca Nacional de Portugal; Biblioteca Pública de Évora; Biblioteca Pública Municipal do Porto; Bibliothèque de Genève; British Library; Bodleian Library; Catarina Barreira; Cristina Montagner; Hispanic Society of America; José Pessoa - DGPC/ADF; Luís Correia de Sousa; Luísa Oliveira - DGPC/ADF; Museu Calouste Gulbenkian; Paula Cardoso; Pierpont Morgan Library; Projecto IMAGO; Ricardo Naito; Rita Araújo Assi atu as e pu li idade Rui Almeida Desig e o posiç o SNBCI I p ess o e a a a e to Sersilito Dist i uiç o Vasp ISSN 1647-8487 Editorial Fer a da Maria Guedes de Ca pos Fiat Lu Maria ádelaide Mira da Co e t rio aos Livros de Reis, de R so era o rist o Maria Coui ho a o Mauro: u a ual ajustado ao O ilu i ado da Bi liote a Na io al de Portugal: u a Bí lia port il do sé ulo XIII Luís Correia de Sousa Os Beatos áli ia Miguélez Cavero Os livros das Se te ças de Pedro Lo Catari a Barreira ardo a Bi liote a de ál o aça ás Ilustrações do C o : a propósito du Hor io áugusto Pei eiro Brevi rio e Missal de Sa ta Cruz ás té i as e os esilos a ilu i ura da Cró i a Geral de Espa ha de represe taç o da Igreja de Sa to Isidoro de Le o Catari a Mari s Ti úr io Ilu i ar o fe i i o: o s riptoriu sé ulo XV Paula Freire Cardoso ea do Mosteiro de Jesus de áveiro o i al do E tre os Judeus Portuguezes e Espa hoes orriaõ algu as Tradu ções : a Bí lia da ájuda, u a us rito e ro a e de i i iaiva judai a Tiago Moita á Es ola de Lis oa de ilu i ura he rai a Luís Ur a o áfo so O ofre º : u livro de horas do Pal io Na io al de Mafra, aso de estudo e de i terve ç o á a Le os, Rita áraújo e Co eiç o Casa ova Depósito legal 316372/10 á i o ograia das arge s o Livro de Horas dito de D. Leo or Del ira Espada Custódio Se eta iado Na io al pa a os Be s Cultu ais da Ig eja Quinta do Cabeço, Porta D 1885-076 Moscavide t. 218 855 481; f. 218 855 461 e. revistainvenire@bensculturais.pt U e e plo da ir ulaç o dos a us ritos jurídi os ilu i ados a Europa tr s a us ritos jurídi os ilu i ados preservados e Portugal Maria álessa dra Bilota www.revistainvenire.pt Te pus o Fugit: o ale d rio Joa a á tu es Conteúdos redigidos segundo a antiga ortografia, excepto nos casos em que os autores optaram pelo uso do novo acordo. Bi liograia edieval os a us ritos ilu i ados e edieval: Portugal Abre6iaturas ACL AMSDS ANTT ARTIS-IHA/FLUL BA BC BlC BdL BG BGUC BL BNP BPE BPMP CEAACP-UC CESEM-FCSH/UNL DGPC/ADF FCSH/UNL FCT/UNL FLUC HSA IEM-FCSH/UNL IICT MAV MCG MNAA PML PNM Academia das Ciências de Lisboa Archivo del Monasterio de Santo Domingo de Silos Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa Instituto de História da Arte/Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Biblioteca da Ajuda, Lisboa Biblioteca Casanatense, Roma Balliol College, Oxford Bodleian Library, Oxford Bibliothèque de Genève Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra British Library, Londres Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa Biblioteca Pública de Évora Biblioteca Pública Municipal do Porto Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património-UC Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical-FCSH/UNL Direcção Geral do Património Cultural/Arquivo de Documentação Fotográfica Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Ciências e Tecnologia/Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Hispanic Society of America, Nova Iorque Instituto de Estudos Medievais-FCSH/UNL Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa Museu de Aveiro Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa Pierpont Morgan Library, Nova Iorque Palácio Nacional de Mafra Capa: Livro de Horas dito de D. Leo or Lis oa, BNP, Il. , l. 99 v | Foto BNP A iconografia das margens no Livro de Horas dito de D. Leonor INVENIRE por Delmira Espada Custódio IEM/FCSH-UNL Resumo Abstract O artigo te o o te a e tral o Livro de Horas dito de D. Leo or e estrutura-se e dois po tos esse iais: u a reve aprese taç o do a us rito, seguida da leitura i oogr i a das igurações argi ais, u dos aspe tos ais sig ii aivos do ódi e. Ilu i ado o ter eiro uartel do sé ulo XV, pelo la e go Wille Vrela t, o Livro de Horas dito de D. Leo or é u a das peças ais i porta tes da ole ç o da Bi liote a Na io al de Portugal e u e e plar i o tor vel a o ra do seu ilu i ador. ás suas arge s, povoadas por pe ue as iguras e e e utadas o elevada estria, difere ia -se pela si gularidade, a u d ia e ar ter arraivo das suas igurações argi ais. á leitura ue propo os para estes ú leos iguraivos a o pa ha a estrutura das se ções, pro ura do avaliar a sua relaç o o os te tos ue a o pa ha . The e tral the e of this arti le approa hes the Book of Hours as ri ed to Quee Elea or a d its respe tive stru ture a ross t o esse tial poi ts: a rief prese tatio of the a us ript, follo ed the i o ographi i terpretatio of its order figuratio s, o e of the ost sig ifi a t fa ets of this ode . Illu i ated i the third uarter of the th e tur the Fle ish artist Wille Vrela t, the Quee Elea or Book of Hours is u dou tedl o e of the ost i porta t orks held the Natio al Li rar of Portugal a d a u paralleled e a ple of the ork of its author. Its orders, ro ded s all figures a d e e uted ith great aster , sta d out for their u i ue ess, a u da e a d arrative hara ter of these order figures. The readi g e propose for these figurative lusters tra es the stru ture of the se tio s tr i g to evaluate their relatio ship ith the te ts. Ao lado: Livro de Horas dito de D. Leo or , l. 97 v Lis oa, BNP, Il. Fotos Luís Correia de Sousa INVENIRE O Livro de Horas dito de D. Leonor, mulher do rei D. João II, data do terceiro quartel do século XV e é uma das obras mais significativas da colecção da Biblioteca Nacional de Portugal. É um manuscrito absolutamente notável, de uma qualidade ímpar, a nível do que melhor se produziu na Flandres deste período. Totalmente iluminado em grisalha e ouro, com apontamentos pontuais de cor, é também um dos exemplos mais significativos do corpus do seu iluminador, o flamengo Willem Vrelant, um artista de renome oriundo de Utreque, que desenvolveu a parte mais significativa da sua obra em Bruges, onde dirigiu um proeminente ateliê, cuja produção deixou uma marca significativa na iluminura flamenga do terceiro quartel do século XV. Brilhantemente executado, com vista a uma figura régia ou nobilitária de elevado prestígio social, conserva apenas seis iluminuras de página plena, executadas em fólio solto: Visitação (fl. 53v), Anúncio aos Pastores (fl. 65v), Circuncisão (fl. 72v), Matança dos Inocentes (fl. 76v), Juízo Final (fl. 99v) e Cerimónia Fúnebre (fl. 114v). Além da inegável qualidade plástica destes fólios, é notável a luz que os seus fólios libertam; a alvura do velino, que o iluminador sabiamente preservou por entre a ornamentação delicada, aliada ao brilho do ouro brunido, fazem deste códice uma obra de inestimável valor artístico. Constituído por 166 fólios, cuidadosamente empaginados, a sua atribuição à rainha fundamenta-se na pertença firmada no fólio de abertura1 e na sua proveniência do Mosteiro da Madre de Deus de Xabregas. Sabe-se, através da correspondência publicada por Gabriel Pereira em 1910, que o códice deu entrada na Biblioteca Nacional a 26 de Janeiro desse mesmo ano, estando anteriormente depositado no Arquivo da Imprensa Nacional (Pereira, 1910). Um dos aspectos mais significativos deste Livro de Horas é a singularidade, abundância e carácter narrativo das figurações marginais, sem paralelo no corpus do seu iluminador. Sem que os temas fujam ao repertório de outros códices, diferenciam-se pelo carácter narrativo que incorporam. Numa escala que raramente ultrapassa os 25 milímetros, as personagens não surgem isoladas; movimentam-se e interagem entre si, produzindo um efeito que vai muito além da ornamentação. O desenho é vigoroso, detalhado e muito preciso, revelando um pleno entendimento estrutural das formas. Os rostos são expressivos e individualizados, as poses diversificadas e imbuídas de movimento. Embora a escala seja muito reduzida, o iluminador não sacrificou os detalhes da representação, aplicando tons rosados nas partes descobertas do corpo e recorrendo ao ouro para diferenciar objectos. FIAT LUX Livro de Horas dito de D. Leo or ls. 99 v e Lis oa, BNP, Il. INVENIRE Livro de Horas dito de D. Leo or , ls. Lis oa, BNP, Il. Os núcleos figurativos situam-se, maioritariamente, nas cercaduras ornadas completas que introduzem as principais secções: dois na orla que circunscreve a miniatura (margens de pé e goteira) e três na que envolve o texto (margens de cabeça, pé e goteira). A ornamentação das margens internas, mais estreitas que as restantes, inclui apenas elementos da flora, pontualmente inseridos em jarras. Além destas, destacamos também as cenas que acompanham o calendário e as figuras antropomórficas incluídas nas tarjas dos fólios 82v, 88, 88v e 97v. A figuração marginal é uma das principais características do trabalho de Vrelant e conquanto não tenhamos encontrado nenhum outro manuscrito que lhe seja comparável, estamos em condições de afirmar que as margens deste iluminado são de sua autoria; não apenas pela excepcional qualidade dos elementos representados, como também pela sua afinidade formal com outros manuscritos do corpus. O levantamento sistemático destes núcleos evidência uma grande diversidade de figuras e poses que confirmam o recurso a modelos - utilizados indiscriminadamente tanto nas margens como nas miniaturas - e a sua manipulação na construção de múltiplas variantes, por forma a , v e 97 v evitar repetições evidentes. Num total aproximado de 135 figurações não detectámos uma única duplicação e a sua execução apresenta um elevado grau de diferenciação, em especial se atendermos à escala em que foram representados. As temáticas são bastante diversificadas, podendo dividir-se em três grupos: animais (reais e imaginários), seres compósitos e seres humanos. Num total de dezoito figurações, os animais reais apresentam uma grande variedade de espécies: três aves, uma raposa, um veado, um urso, um macaco, cinco cães e seis cavalos, figurando, maioritariamente, em cenas de caça (caça ao urso e ao veado com a ajuda de cães) ou em ambiente de corte (figuras montadas a cavalo). Conquanto evoquem o universo de lazer da nobreza, estas representações adquirem, em casos particulares, um significado simbólico. As aves (f. 17v, 25 e 72v), por exemplo, de presença discreta, dir-se-ia mais ornamental que simbólica, encontram significado na sua articulação com o texto e restantes elementos figurados. Pelo contrário, o macaco mitrado colocado na margem de pé do fólio 25 assume, claramente, um papel de sátira social. Entre os animais fantásticos identificam-se quatro tipologias: um unicórnio2, um cavalo dotado de chifre3, dois dragões Livro de Horas dito de D. Leo or , l. Lis oa, BNP, Il. Livro de Horas dito de D. Leo or , l. Lis oa, BNP, Il. categorias. O mais significativo, que marca a ambiência do códice, é constituído por cenas de luta, onde os soldados combatem corpo a corpo. As margens, repletas de pequenas figuras, são percorridas por arqueiros, homens com espada, lança e até camponeses desarmados, deslocando-se por entre as folhagens. Representam-se também cenas alusivas à vida de corte: o romance cortês, caçadas, uma coroação e tarefas administrativas. A música marca uma presença não menos significativa, estando representada em vários momentos da vida de corte, mas também em situações de carácter religioso, onde estabelece uma relação directa com os textos que acompanha. Identificámos duas trompas ou corno de caça, quatro harpas, dois trompetes, três charamelas, uma trombeta com estandarte, um triângulo, dois órgãos portativos, um saltério e três alaúdes, perfazendo um total de dezoito instrumentos9. Por último, há ainda a assinalar figuras e narrativas do Antigo e Novo Testamentos, bem como um grupo de seis carpideiras, em directa articulação com o texto que acompanham. A leitura que seguidamente apresentamos, pensada no contexto específico deste manuscrito, segue a estrutura das secções, procurando avaliar a relação que os núcleos figurativos FIAT LUX (f. 82 e 93v) e dois animais de grande porte servindo de montada (f. 53v e 146). As duas últimas, muito comuns ao corpus do iluminador, revestem-se, nas palavras de Bernard Bousmanne, de significado moral (Bousmanne, 1997). Os primeiros, com as suas asas membranosas, evocam seres maléficos e os segundos, tomando o lugar dos cavalos, parodiam o orgulho da nobreza. O grupo dos seres compósitos constitui uma das categorias privilegiadas das representações marginais do corpus Vrelant; apesar da estranheza da sua combinação, apresentam formas bem estruturadas e uma boa articulação entre as partes. No seu todo, o manuscrito engloba onze figurações que optámos por dividir em cinco categorias: dois seres maléficos, cuja estrutura é formada pela aglutinação de vários seres, com a presença de asas membranosas e cascos fendidos4; cinco seres formados a partir da reunião de um busto humano com uma parte inferior animal5; dois seres que lutam contra a própria cauda6; um anjo7 e, por último, um ser que resulta da justaposição de uma jovem com um ser antropomórfico8. O terceiro grupo, que reúne os seres humanos, é, entre todos, o mais abrangente, subdividindo-se em várias Livro de Horas dito de D. Leo or , ls. Lis oa, BNP, Il. ve INVENIRE estabelecem com os textos que acompanham. Identificámos, assim, três tipos de relação entre texto e imagem. Primeiro, uma complementaridade directa entre o tema da miniatura e as representações marginais; segundo uma relação indirecta, por vezes com introdução de narrativas paralelas e, por último, uma ausência de relação (ou relação ainda não identificada), sugerindo uma função ornamental. Neste último caso incluem-se as criaturas antropomórficas dos fólios 82v, 88, 88v e 97v que encontram muitas semelhanças formais com outras representações do corpus Vrelant. Como já anteriormente firmámos, as margens do nosso iluminado estão repletas de seres que lutam entre si, temática que atravessa a quase totalidade do códice. O fólio de abertura das Horas da Paixão de Nossos Senhor Jesus Cristo (f. 3-24v), introduzido imediatamente a seguir ao Calendário, fornece disso um bom exemplo: na margem de cabeça um soldado, munido de espada e escudo enfrenta um unicórnio; na margem de pé, uma figura antropomórfica é ameaçada por um arqueiro; e a margem de corte é dominada pela luta travada entre um ser antropomórfico e um arqueiro, que em conjunto defrontam um ser bicéfalo de asas membranosas e cascos fendidos. A sua leitura global aponta para uma disputa entre o bem e o mal, sugerindo uma personificação dos cristãos na sua luta contra os infiéis, aqui representados sob a forma de um híbrido - uma figura maléfica, associada a um ser demoníaco pela presença das já citadas asas membranosas e cascos fendidos. O peixe, símbolo dos primeiros cristãos, agregado a esta figura de guerreiro personifica a luta pela conversão dos povos e estabelece uma relação de complementaridade com o texto que acompanha. Num segundo nível de leitura, pensado no contexto exclusivo deste manuscrito, aceitamos que este ser híbrido possa aludir à narrativa secular que propomos para as Horas da Virgem, evocando o delfim Carlos, que deste modo se equipara a Cristo na luta que ambos travaram contra os seus inimigos. Seguindo a mesma linha de pensamento, os núcleos das margens de cabeça e pé do fólio 3, permitem-nos também entrever dois níveis de leitura. Na margem de cabeça um unicórnio enfrenta um soldado munido de espada e escudo; no extremo oposto, na margem de pé, um ser antropomórfico intimida o arqueiro que o ameaça. Atendendo à leitura que propomos para os núcleos de figuração marginal que acompanham as Horas da Virgem, aceitamos que estas duas cenas possam ser uma alusão a Joana d'Arc. A individualização e particularidades desta criatura compósita fundamentam a nossa a leitura. O tronco, visivelmente feminino, está protegido por armadura e segura uma lança com flâmula. O chapéu pontiagudo e o cabelo comprido, repetem-se nas figuras dos fólios 53v e 62 onde identificamos uma mulher guerreira, VII, na luta que ambos travaram contra os seus inimigos; temática que encontrará o seu desenvolvimento ao longo das Horas da Virgem - a parte mais significativa do Livro de Horas - onde o iluminador desenvolve, uma história profana, de carácter biográfico, cuja relação com os textos apenas se faz de forma indirecta. A sátira social encontra espaço no fólio 25 do nosso iluminado11, onde um macaco mitrado reproduz um gesto humano abençoando um cão. Pela sua proximidade física com o homem e pelo dom de imitação que possui, o macaco é frequentemente utilizado com propósitos satíricos, incorporando muitas vezes a imagem do homem degradado pelos seus próprios vícios. A cena representada na margem de pé deste fólio parodia a má reputação de alguns clérigos e mostra um sinal de reprovação àqueles que, enquanto representantes de Deus na Terra, condenaram Cristo à morte. Embora as aves tenham uma presença muito discreta no nosso iluminado, elas representam, segundo Bernard Bousmanne, uma das categorias mais importantes do ponto de vista dos elementos figurados na ornamentação marginal de Vrelant (Bousmanne, 1997: 129); assumindo, no manuscrito em análise, uma simbólica que não é imediatamente perceptível. Na iconografia cristã a ave representa a alma e tem um papel mediador entre o mundo terreno e o celeste. FIAT LUX no primeiro caso, associada a um cavalo com chifre. O animal que lhe está associado, intimidando com ar feroz o arqueiro que o procura atingir, lembra o unicórnio - expressão de força e de pureza - pela presença de um único chifre na cabeça. O licorne representado na margem superior desse mesmo fólio, enfrentando também uma figura armada de escudo e espada, reforça o significado simbólico destas representações. Na iconografia cristã, o licorne que adormece no regaço de uma Virgem, abandonando-se assim à morte, está directamente relacionado com a figura de Cristo; todavia, no contexto deste manuscrito, a sua repetida associação a uma figura feminina sugere uma possível ligação à heroína francesa10. O licorne é também entendido como a presença do divino na criatura e o seu chifre equivale à espada de Deus. Joana d'Arc age em nome de Deus, considerando-se uma mensageira divina. Assim, esta dupla presença do licorne e a sua justaposição à figura feminina poderá ser entendida como a força de Cristo que guiou a Virgem francesa no seu combate contra os ingleses, construindo uma analogia entre o sacrifício de Cristo pela salvação da humanidade e a luta travada pela reconquista dos territórios franceses. Em última análise, podemos inferir, a partir dos núcleos de figuração marginal do fólio 3, a construção de uma narrativa que visa estabelecer um paralelo entre Cristo e o rei Carlos Livro de Horas dito de D. Leo or Lis oa, BNP, Il. Ao lado e as pági as a teriores: l. Na pági a segui te: l. 77 Cristo é o tema central da narrativa12, revelam uma figuração marginal, de carácter simbólico, que estabelece uma relação indirecta com os textos que acompanham. As secções seguintes13 são dominadas pelas vivências do mundo profano, nomeadamente a guerra e a vida cortesã. O romance cortês domina as figurações do f. 33, onde na margem de cabeça figuram dois bustos enquadrados por duas grandes rosas entrelaçadas. Na margem de corte, outra cena de galanteio, representando uma figura feminina a dedilhar uma harpa, enquanto um jovem ajoelhado lhe estende uma flor. Por último, na margem de pé, o mesmo casal passeia a cavalo. No fólio 40, embora a temática da INVENIRE De igual modo, as Horas da Santa Cruz assinalam o ponto intermédio entre estes dois mundos, narrando o momento em que Cristo se liberta da sua carnalidade, transformando-se em espírito através da morte na Cruz. Ao avaliarmos a sua colocação dentro do manuscrito verificamos que as duas primeiras aves acompanham os textos directamente relacionados com a Paixão de Cristo. Na tarja do fólio 17v a presença da ave coincide com o início da Hora Noa, precisamente a Hora em que Jesus expirou; no fólio 25 é representada na margem de cabeça do fólio de abertura da secção, estando prestes a ser sacrificada. Analisadas em conjunto, estas duas secções onde a figura de Livro de Horas dito de D. Leo or , ls. Lis oa, BNP, Il. e9 trotear do cavalo, o som do corno de caça, a respiração ofegante dos cães ou o rastolhar do campo à passagem dos animais. De acordo com a leitura que temos vindo a apresentar aceitamos que os núcleos figurativo dos fólios 33 e 40 possam retratar o delfim Carlos e sua esposa Maria de Anjou. Não se trata, evidentemente, de retratos fieis; muito pelo contrário, são figurações que representam figuras de um determinado estatuto social, idênticas a tantas outras que, no contexto específico deste códice, podem ser associadas a figuras reais. Os mesmos temas repetem-se no fólio 96, que introduz a Missa da festa de Santo André, onde as figurações marginais incluem cenas de galanteio, uma justa e uma caçada ao urso. FIAT LUX guerra seja já introduzida na margem de cabeça, é a caça que predomina. Os dois bustos representados nos extremos da margem interna, o masculino no canto superior esquerdo e o feminino no inferior, seguem o desenvolvimento da acção. Enquanto o primeiro comanda e observa a cena de luta que se desenvolve na margem de cabeça, a figura feminina, de mãos postas em oração, acompanha atenta a partida do jovem que sai para uma caçada. A representação, fortemente expressiva e detalhada, inclui o jovem montado no seu cavalo de lança em punho, o tocador de buzina e dois cães perseguindo um veado. A narrativa é de tal forma expressiva que nos induz à reconstituição dos cheiros e dos sons que envolvem a acção: o Livro de Horas dito de D. Leo or , ls. Lis oa, BNP, Il. v, 7 v e Livro de Horas dito de D. Leo or , l. Lis oa, BNP, Il. A presença da música é significativa ao longo do manuscrito, estando representada com maior destaque no fólio que introduz as variações textuais para as Horas da Virgem (f. 86) e no duplo fólio que assinala o início dos Salmos Penitenciais (f. 99v e 100), estabelecendo, nestes casos, uma relação directa com o texto que acompanham. De igual modo, o duplo fólio que introduz o Ofício dos Defuntos (f. 114v-145v) apresenta uma complementaridade entre o texto e a figuração marginal, maioritariamente, marcada pela presença dos seis enlutados que ornamentam as margens. Com base na organização do códice estimamos que faltem dez iluminuras de página plena14, em fólio solto, INVENIRE Os restantes fólios das Horas da Virgem, com excepção do fólio 77 que vai buscar a sua temática à miniatura do fólio precedente, são povoados por pequenas figuras que lutam entre si, concertadas com cenas da vida de corte. No seu conjunto narram uma temática muito específica, provavelmente relacionada com a vontade do mecenas encomendante do manuscrito, que procura estabelecer ligações com as cenas bíblicas das miniaturas. Acreditamos ter reunido factos que comprovam a hipótese da leitura conjunta destes núcleos poder apresentar a história do rei de França, Carlos VII, com especial enfoque na intervenção de Joana d’Arc, no episódio que inverteu o resultado da Guerra dos Cem Anos e colocou termo ao conflito (Cf. Espada, 2010). Livro de Horas dito de D. Leo or , l. Lis oa, BNP, Il. Ao concluir, gostaríamos de firmar dois pontos que nos parecem essenciais na leitura iconográfica destas margens. Por um lado, colocar em destaque a singularidade do seu carácter marcadamente narrativo, sem paralelo no corpus do seu iluminador, que aliada a um desenho de qualidade excepcional fazem deste manuscrito uma obra de elevado valor patrimonial, artístico e histórico. As suas temáticas, fortemente marcadas pelas actividades quotidianas da nobreza - a música, o amor cortês, caçadas e torneios, entre outros temas - proporcionam uma visão das mentalidades da época, conciliando o universo das devoções religiosas com as vivências e gostos das famílias reais e estratos sociais mais elevados. Por outro, salientar que o extravio de 10 fólios iluminados, correspondentes a vinte núcleos de figuração marginal, representa uma perda de informação avultada, cuja recuperação poderá comprometer ou reforçar algumas das leituras propostas. Pelo que é nosso anseio que o estudo agora apresentado possa contribuir para a localização de algum desses fólios - à guarda de instituições públicas ou entidades privadas -, cuja divulgação viabilizará um conhecimento mais aprofundado deste precioso legado.  1. Fólio não numerado: Este livro foi da rainha dona lianor não se pode dar de fora so pena de escomunhão. 2. Margem de cabeça, f. 3. 3. Margem de pé, f. 53v. 4. Margens de pé e goteira, f. 3. 5. Margens de pé e goteira, f. 3; margem de corte, f. 66 e 82v; margem de goteira, f. 114v. 6. Margem de goteira, f. 88 e 88v. 7. Margem de goteira, f. 25. 8. Margem de goteira, f. 97v. 9. Agradeço ao meu colega Luís Correia de Sousa a identificação dos instrumentos musicais. 10. A leitura que propomos para estas figurações é igualmente sustentada por outros dados históricos, nomeadamente a importância que Joana d'Arc tem no período de execução deste Livro de Horas, a sua representação em manuscritos iluminados e noutras formas de expressão artística coevas e ainda a hipótese já levantada por outros investigadores da presença de Vrelant em França no período que antecede a sua instalação em Bruges. 11. Apenas três (f. 17v, 25 e 72v). 12. Horas da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (f. 3-24v) e Horas da Cruz (f. 25-29v). 13. Missa da Bem Aventurada Virgem Maria (f. 33-35v) e Horas da Bem Aventurada Virgem Maria (f. 40-93). 14. Antecedendo os fólios 3, 25, 33, 40, 62, 69, 82, 86, 96 e 146. FIAT LUX correspondentes a vinte núcleos de figuração marginal; conservando, actualmente, sessenta e cinco núcleos com mais de cento e trinta elementos representados. Das secções que inicialmente compunham o manuscrito, apenas três não incluem ornamentação figurada: Missa da Santa Cruz (f. 29v-31v), Missa de Nossa senhora (f. 31v-32v) e Perícopes Evangélicas (f. 36-39v). Destacamos também as figurações incluídas nas tarjas que acompanham o calendário (f. 1-2v) - de que restam apenas dois fólios -, abarcando um ciclo iconográfico bastante comum. Embora os temas representados se reportem aos trabalhos dos meses, com as habituais cenas do mundo rural, apresentam a singularidade de estar incluídos na ornamentação marginal sem qualquer enquadramento. A circunstância do verso dos fólios não ter recebido tarja ornada leva-nos a equacionar a hipótese de aí se prever introduzir os signos do zodíaco; solução muito frequente nesta tipologia de livro. As figurações marginais que acompanham as Horas da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e as Horas da Cruz, estabelecem uma relação indirecta com texto; introduzindo simultaneamente uma narrativa paralela, que se desenvolve ao longo das Horas da Virgem, proporcionando interessantes ligações entre a missão salvífica de Cristo e os feitos históricos de Carlos VII. Nas restantes secções, como tivemos oportunidade de analisar, verifica-se uma relação directa, de complementaridade com o tema da miniatura. INVENIRE Bibliografia ADAM, C. (1984) - Restauration des manuscrits et des livres anciens. Erec: Puteaux. AFONSO, Luís (2012) - O fólio em branco: a iluminura hebraica portuguesa da Idade Média. First International Conference “Jewish Heritage - Science, Culture, Knowledge”. Proceedings. 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