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O Conflito entre o Teísmo Cético e a Epistemologia Reformada

Resumo: O nosso objetivo principal neste texto é argumentar que uma das respostas mais plausíveis para o problema do mal, a teoria do Teísmo Cético, entra em conflito com a resposta da Epistemologia Reformada a propósito da basicidade apropriada da crença teísta. Defendemos que o Teísmo Cético dá-nos boas razões para bloquear o argumento central a favor da tese da Epistemologia Reformada. Abstract: Our main aim in this paper is to argue that one of the most plausible answers to the problem of evil, the theory of Skeptical Theism, conflicts with the response of Reformed Epistemology about the proper basicity of theistic belief. We argue that Skeptical Theism gives us good reasons to block the central argument in favor of Reformed Epistemology thesis.

O CONFLITO ENTRE O TEÍSMO CÉTICO E A EPISTEMOLOGIA REFORMADA THE CONFLICT BETWEEN SKEPTIC THEISM AND REFORMED EPISTEMOLOGY DOMINGOS FARIA (*) Resumo O nosso objetivo principal neste texto é argumentar que uma das respostas mais plausíveis para o problema do mal, a teoria do Teísmo Cético, entra em conflito com a resposta da Epistemologia Reformada a propósito da basicidade apropriada da crença teísta. Defendemos que o Teísmo Cético dá-nos boas razões para bloquear o argumento central a favor da tese da Epistemologia Reformada. Palavras-chave: Problema do Mal, Teísmo Cético, Epistemologia Reformada, Basicidade Apropriada. Abstract (*) Domingos Faria - Doutorado em Filosofia na especialidade de Epistemologia e Filosofia da Religião. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1600-Lisboa, Portugal. E-mail: df@domingosfaria.net Our main aim in this paper is to argue that one of the most plausible answers to the problem of evil, the theory of Skeptical Theism, conflicts with the response of Reformed Epistemology about the proper basicity of theistic belief. We argue that Skeptical Theism gives us good reasons to block the central argument in favor of Reformed Epistemology thesis. Key-words: Problem of Evil, Skeptical Theism, Reformed Epistemology, Proper Basicity. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL 2018 / ISSN 2358-8284 67 DOMINGOS FARIA INTRODUÇÃO Neste texto * pretendemos defender que a teoria da Epistemologia Reformada (doravante ER) entra de alguma forma em conflito com uma resposta influente e bastante plausível para o problema do mal: a teoria do Teísmo Cético (doravante TC). Portanto, sustentamos que há um conflito entre TC e ER. O conflito aqui em questão não tem a ver com uma inconsistência lógica entre TC e ER. Pelo contrário, o conflito refere-se ao facto do TC constituir uma boa razão para se duvidar de uma premissa central da ER. Isto constitui um grande problema para praticamente todos os defensores da ER, como é o caso, entre outros, de Plantinga, Alston, Bergmann, porque eles defendem um TC como resposta ao problema do mal. Mas, se eles defendem um TC para evitar o problema do mal, então têm igualmente uma boa razão para deixarem de adotar a teoria da ER. Para continuarem a aceitar a ER, terão de rejeitar o TC. Contudo, quem não aceitar o TC ficará sem uma das respostas mais prometedoras para o problema do mal. Deste modo, o teórico da ER fica perante um dilema: ou aceita o TC e, dessa forma, tem uma boa razão para abandonar ER; ou rejeita TC e, desse modo, fica sem a resposta mais plausível para o problema do mal. Para desenvolver esta tese, na secção 1 formularemos o argumento indiciário ou probabilístico do mal, bem como defenderemos que o TC constitui uma via plausível para bloquear esse problema. Na secção 2 apresentaremos a ER e o argumento central que sustenta essa teoria. Na secção 3 argumentaremos que há de facto um conflito entre TC e ER. Por fim, na secção 4 expomos algumas objeções recentes para a nossa tese e tentaremos dar uma resposta procedente. 1. TC COMO RESPOSTA AO PROBLEMA DO MAL O argumento do mal tem várias versões, como a versão lógica (cf. Faria 2016). Porém, a versão mais prometedora do argumento do mal é a versão probabilística. Para * Agradecimentos: Uma versão anterior deste artigo foi discutida na 45ª Semana de Filosofia da Universidade de Brasília a propósito dos 500 anos da Reforma Protestante. Agradecemos os comentários de Agnaldo Portugal, Desidério Murcho, e Bruno Lomas de Souza. Estamos igualmente gratos a Ricardo Santos e a Pedro Galvão pela orientação da nossa dissertação de doutoramento que inclui alguns pormenores que desenvolvemos no presente texto. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL. 2018 / ISSN 2358-8284 68 O CONFLITO ENTRE O TEÍSMO CÉTICO E A EPISTEMOLOGIA REFORMADA desenvolver uma versão probabilística do argumento do mal, William Rowe (1979) baseia-se em exemplos de sofrimento intenso, em seres humanos ou animais, que aparentemente não servem qualquer propósito benéfico. Assim, tais casos seriam exemplos de males gratuitos. Por exemplo: Suponha-se que “um corço fica horrivelmente queimado durante um incêndio provocado pela descarga de um raio, sofrendo terrivelmente durante cinco dias antes de morrer. Ao contrário dos seres humanos, não se atribui livre-arbítrio aos corços, pelo que não podemos imputar o terrível sofrimento do corço a um mau uso do livre-arbítrio. Porque permitiria então Deus que isto acontecesse quando, se existe, poderia tê-lo impedido com tanta facilidade?” (Rowe 1979). A ideia principal de Rowe é que o mal em questão não parece do nosso ponto de vista fazer qualquer sentido; ou seja, parece meramente gratuito, pois (i) é extraordinariamente difícil imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspetiva razoável, de Deus permitir que aquele mal aconteça, e (ii) é difícil imaginar um mal equivalente, ou até pior, que Deus se visse forçado a permitir caso impedisse o mal em questão. Assim, partimos dos seguintes dados: (𝐹 ) Pelo menos algum dos males no nosso mundo parece gratuito (p.e., o sofrimento do corço). Daí se infere que provavelmente: (𝐺) Algum dos males no nosso mundo é gratuito. Tendo em conta 𝐺, temos as seguintes hipóteses: ( 𝐻1 ) Teísmo: há um designer sobrenatural omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito. (𝐻2) Ateísmo: não há um designer sobrenatural omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito. Com base nestes dados, pode-se argumentar que a existência de mal gratuito que supostamente encontramos no mundo é muito improvável dado o teísmo, mas não é improvável dado ateísmo. Assim, pode-se dizer que 𝑃𝑟(𝐺|𝐻2) > 𝑃𝑟(𝐺|𝐻1) . Mas então, pelo princípio de verosimilhança (doravante PV), de acordo com o qual uma observação 𝑂 suporta ou confirma a hipótese 𝐶1 em vez da hipótese 𝐶2 se 𝑃𝑟(𝑂|𝐶1) > REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL. 2018 / ISSN 2358-8284 69 DOMINGOS FARIA 𝑃𝑟(𝑂|𝐶2), pode-se concluir que a existência de mal gratuito fornece fortes razões para se preferir o ateísmo ao teísmo. Ou de um modo mais formal: (1) 𝑃𝑟(𝐺|𝐻2) > 𝑃𝑟(𝐺|𝐻1). (2) Se 𝑃𝑟(𝐺|𝐻2) > 𝑃𝑟(𝐺|𝐻1), então 𝐺 confirma 𝐻2 em detrimento da hipótese rival 𝐻1. [Instância de PV] (3) ∴ 𝐺 confirma 𝐻2 em detrimento da alternativa. [De 1 e 2] Será este um bom argumento? Como uma das mais plausíveis respostas ao problema indiciário ou probabilístico do mal (doravante PM), pode-se utilizar a teoria do TC e sustentar que a inferência de 𝐹 para 𝐺 não é procedente dada a nossa posição epistémica ou limitação cognitiva. A ideia central do TC é que dada a nossa situação epistémica limitada e o hiato cognitivo entre o nosso ponto de vista e o ponto de vista de Deus, não há razão para acreditar que estamos na posição de saber que razão Deus poderia ter ou não para realizar uma determinada ação particular; i.e. Deus tem razões para agir em qualquer caso particular que estão para além do nosso alcance. Por outras palavras, o TC alega que somos ignorantes sobre as razões totais de Deus e, por isso, não se pode fazer uma inferência indutiva de 𝐹 para 𝐺. Aplicando o TC ao PM pode-se então sustentar que: O facto de os seres humanos serem incapazes de conceber qualquer razão justificativa para Deus permitir um mal não torna mais provável a inexistência de tais razões; isto porque se Deus existe, a mente de Deus seria muito maior do que as nossas de modo que não seria surpreendente se Deus tiver razões que não somos capazes de pensar (Bergmann 2012: 11). Para suportar o TC pode-se conceber algumas analogias, como a seguinte: suponha-se que um novato está a assistir a uma partida de xadrez entre o campeão mundial Magnus Carlsen e o seu oponente Sergey Karjakin; pelo facto do novato não conseguir pensar numa boa razão para Carlsen fazer um movimento particular no tabuleiro, daí não se segue que não haja uma boa razão para tal movimento de Carlsen. De forma similar, não podemos usar a nossa incapacidade para discernir as razões que justifiquem a Deus permitir um mal para concluir que é improvável que haja qualquer razão que justifique a Deus permitir o mal. Portanto, pelo facto de termos 𝐹 daí não se segue 𝐺. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL. 2018 / ISSN 2358-8284 70 O CONFLITO ENTRE O TEÍSMO CÉTICO E A EPISTEMOLOGIA REFORMADA 2. A TEORIA DA ER Os teóricos da ER defendem um modelo não-inferencialista (doravante MNI) sobre a racionalidade da crença teísta. De acordo com MNI, a crença teísta T de um sujeito S pode ter um relevante estatuto epistémico positivo (abreviando EEP) mesmo se S não possui qualquer inferência apropriada para suportar T e mesmo se não há disponível qualquer inferência apropriada para suportar T. Por outras palavras, a crença T pode ser apropriadamente básica. Mas como é que o EEP deve ser entendido? E que graus de EEP existem? A este propósito os vários teóricos da ER advogam diferentes teorias sobre o EEP. Num outro lugar (cf. Faria 2017 e 2018), defendemos que a melhor teoria é um fiabilismo evidencialista funcional com três graus ou níveis de EEP que as crenças podem ter, nomeadamente: (i) justificação interna ou subjetiva: uma crença p é subjetivamente justificada para S sse p é uma resposta apropriada à evidência E de S e S não tem derrotadores nãoderrotados de p; (ii) justificação externa ou objetiva: uma crença p é objetivamente justificada para S sse, além de satisfazer (i), a probabilidade condicional objetiva de p ser verdadeira, dado a evidência E e a função apropriada de S, é alta em condições normais; (iii) garantia suficiente para o conhecimento: uma crença p de S tem garantia suficiente para o conhecimento sse, para além de satisfazer (i) e (ii), a crença p de S é modalmente segura. Mas será que a crença básica ou não-inferencial teísta pode ter tais níveis de EEP? Os defensores da ER e do modelo MNI externista, tal como Wolterstorff (1988), Alston (1991), Evans (2011), Bergmann (2015), Plantinga (2000, 2015), não afirmam categoricamente que a crença básica teísta tem justificação externa ou objetiva e garantia suficiente para o conhecimento. Pelo contrário, só querem defender que o MNI é lógica e epistemicamente possível e, por essa razão, a crença teísta pode ter justificação objetiva e o nível mais elevado de garantia de forma básica; e se Deus existe, provavelmente a crença teísta tem esse estatuto epistémico positivo de forma não-inferencial. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL. 2018 / ISSN 2358-8284 71 DOMINGOS FARIA Mas em que consiste o MNI e como é descrito? Para a descrição de MNI seguimos a proposta de Plantinga (2000, 2015), mas fazemos algumas alterações significativas para tornar o modelo mais plausível, com base nas propostas de Tucker (2011) e de Dougherty & McAllister (forthcoming). Deste modo, no MNI sustenta-se que há uma faculdade ou um módulo cognitivo, que Calvino descreve como sensus divinitatis (doravante SD), um sentido da divindade, que numa grande variedade de circunstâncias produz experiências, impressões, pareceres sobre Deus, o seu amor, o seu poder, entre outros; e, por conseguinte, pode-se formar uma crença teísta como resposta a tal evidência não-inferencial. P.e., perante as apreciações das glórias da natureza, como o caso de um belo pôr-do-sol, o SD pode gerar experiências, impressões, pareceres sobre o poder de Deus; e diante dessa evidência o sujeito pode formar uma crença em Deus. Esse tipo de evidência não-inferencial sobre Deus produzida pelo SD e a crença teísta como resposta a essa evidência não fazem parte de uma conclusão de um argumento, nem as várias circunstâncias C (que acionam a operação do SD) são premissas de um argumento. Portanto, neste MNI a crença teísta é básica ou nãoinferencial uma vez que não é aceite com base em qualquer argumento ou inferência da teologia natural. Além disso, seguindo o MNI, a crença teísta não é apenas básica, mas é igualmente apropriadamente básica com respeito à justificação externa ou objetiva. Isto porque de acordo com MNI, o SD foi projetado por Deus, que deseja que os seres humanos se relacionem com ele, de tal forma que se tal módulo cognitivo funcionar apropriadamente nos humanos e estiver nas suas condições normais (como nas circunstâncias C), produz em tais humanos evidência não-inferencial sobre Deus para a qual eles podem ajustar ou conformar a sua crença teísta. Assim, a probabilidade condicional objetiva da crença teísta ser verdadeira, dado a evidência não-inferencial em consideração (gerada pelo SD em C) e dada a função apropriada de SD, é alta em condições normais. Portanto, a crença teísta pode ser apropriadamente básica com respeito à justificação externa ou objetiva. Dado que o MNI parece ser consistente, mostra-se a possibilidade (lógica e epistémica) da crença teísta ter um relevante EEP mesmo se não houver disponível qualquer bom argumento teísta. Mas será o MNI verdadeiro no mundo atual? Terá a crença teísta de facto aquele EEP de forma básica? A resposta é positiva caso a crença REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL. 2018 / ISSN 2358-8284 72 O CONFLITO ENTRE O TEÍSMO CÉTICO E A EPISTEMOLOGIA REFORMADA teísta seja verdadeira e, portanto, caso Deus exista. O argumento pode ser explicitamente apresentado da seguinte forma: (1) Se a crença teísta é verdadeira, então há um Deus que pretende que os seres humanos o conheçam. (2) Se há um Deus que pretende que os seres humanos o conheçam, então o MNI, ou algum bastante parecido, é muito provavelmente verdadeiro. (3) Se o MNI, ou algum bastante parecido, é muito provavelmente verdadeiro, então a crença teísta tem muito provavelmente justificação externa ou objetiva e garantia suficiente para o conhecimento de forma não-inferencial. (4) ∴ Se a crença teísta é verdadeira, então ela tem muito provavelmente justificação externa ou objetiva e garantia suficiente para o conhecimento de forma nãoinferencial. [De 1-3] Mas qual é a relevância de uma conclusão condicional? É relevante notar que a conclusão (4) constitui uma resposta à objeção de jure em que se tenta mostrar que a crença teísta, quer seja verdadeira ou falsa, é de qualquer forma irracional ou sem EEP relevante; por outras palavras, mesmo se a crença teísta for verdadeira, muito provavelmente não tem EEP mais objetivo de forma não-inferencial. Todavia, se o argumento em consideração é bem-sucedido e se (4) for uma conclusão verdadeira, então tais objeções de jure à crença religiosa estão equivocadas e, por isso, constituem objeções mal-sucedidas uma vez que a crença básica teísta terá esse elevado EEP se for verdadeira. 3. CONFLITO ENTRE TC E ER Na secção anterior contatamos que, de acordo com a premissa (1) do argumento a favor de MNI, se a crença teísta é verdadeira, então há um Deus que pretende que os seres humanos o conheçam. Isto porque recorrendo ao argumento de Plantinga (2000: 188-189), se a crença teísta é verdadeira, “há de facto uma tal pessoa como Deus, uma pessoa que nos criou à sua imagem (...), que nos ama, que deseja que nós o conheçamos e amemos (...). Mas se as coisas são assim, então ele obviamente pretende que sejamos capazes de estar cientes da sua presença e saber alguma coisa sobre ele”. Deste modo, REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL. 2018 / ISSN 2358-8284 73 DOMINGOS FARIA se Deus ama e deseja que os seres humanos o conheçam, é provável que Deus pretenda projetar os seres humanos (com um SD) de forma a serem capazes de o conhecer. Mas pode-se começar por notar uma ambiguidade neste raciocínio, uma vez que podemos estar a referir coisas diferentes com a palavra “deseja” ou “pretende”. Por um lado, pode-se afirmar que Deus considerando todas as coisas deseja ou pretende que os seres humanos o conheçam. Por outro lado, pode-se afirmar que Deus tem algum desejo ou pretensão que os seres humanos o conheçam. Estes sentidos são diferentes, pois p.e. podemos ter algum desejo ou pretensão por descansar, todavia, considerando todas as coisas, não temos esse desejo ou pretensão dado o nosso forte desejo ou pretensão por fazer um trabalho dentro do prazo de entrega. Ora, algo similar pode ocorrer com Deus. O problema é que na premissa (1) não se está apenas a defender que Deus tem algum deseja ou pretensão que os seres humanos o conheçam, da forma como o MNI explicita, mas sustenta-se igualmente que Deus tem esse desejo ou pretensão consideradas todas as coisas. Mas como poderíamos saber o que Deus deseja ou pretende considerando todas as coisas? Não será isso algo que estará fora do nosso alcance? Desta forma, o raciocínio subjacente à premissa (1) do argumento a favor de MNI, que diz respeito ao que Deus pretende ou deseja considerando todas as coisas, parece entrar de alguma forma em conflito com a resposta do TC para o PM. Pois, de acordo com TC, somos ignorantes sobre as razões totais de Deus. Mas, assim, da mesma forma que expressamos ceticismo, a propósito do PM, sobre o nosso conhecimento do que Deus faria numa situação particular, também devemos expressar um ceticismo semelhante em relação à premissa (1) do argumento a favor de MNI. Portanto, devemos ser agnósticos sobre se Deus, considerando todas as coisas, tem propósitos ou não de projetar os seres humanos (com um SD ou similar) de forma a serem capazes de o conhecer clara e imediatamente. Ou seja, a tese central do TC é a de que somos ignorantes sobre as razões totais de Deus, i.e., somos ignorantes sobre o que Deus deseja ou pretende consideradas todas as coisas. Deste modo, mesmo se pudéssemos saber que Deus deseja ou pretende que os seres humanos o conheçam, esse desejo pode entrar em conflito com outros desejos mais fortes de Deus para produzir outros bens ou evitar alguns males que são desconhecidos de nós e que estão fora do nosso alcance. Por isso, somos ignorantes REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL. 2018 / ISSN 2358-8284 74 O CONFLITO ENTRE O TEÍSMO CÉTICO E A EPISTEMOLOGIA REFORMADA sobre se Deus deseja ou pretende consideradas todas as coisas que os seres humanos o conheçam da forma como o MNI explicita; i.e., temos boas razões para duvidar e para sermos agnósticos sobre a premissa (1). Assim, o TC oferece-nos razões para duvidar da ER. 4. OBJEÇÕES E RESPOSTAS Será possível mitigar este conflito entre TC e ER? Como objeção talvez se possa alegar, como Michael Rea (2013: 485), que: Temos maneiras de discernir as razões de Deus para agir em algumas ocasiões particulares. (A Escritura, p.e., diz-nos que uma das razões para Deus encarnar foi o amor pelo mundo).. Mas como é que isto poderá ajudar a salvar a premissa (1)? Rea não desenvolve o seu argumento (nem parece estar ciente deste conflito entre o TC e a ER), mas talvez se possa defender que na Escritura, supondo que é divinamente inspirada, encontramos indícios de que Deus deseja e pretende que os seres humanos o conheçam. Assim, poder-se-ia conciliar o TC com a premissa (1). Contudo, recorrer à Escritura para defender a premissa (1) não parece uma manobra bem-sucedida por vários motivos: em primeiro lugar, não existe apenas uma, mas sim várias Escrituras e cada tradição religiosa tem a sua própria; ora, só por causa disso torna-se difícil identificar quais são afinal os desejos ou propósitos divinos consideradas todas as coisas. Em segundo lugar, as diversas Escrituras retratam vários desejos e pretensões supostamente divinas que entram em conflito. Ainda assim, talvez se possa sustentar que em todas essas Escrituras está de forma geral retratado algum desejo ou uma pretensão de Deus para que os seres humanos o conheçam. Mas será que daí se segue que Deus tem de facto tal desejo ou pretensão consideradas todas as coisas da forma como está exposto no modelo MNI? Isto é reforçado pela ideia plausível de que, mesmo se Deus existe e supondo que as Escrituras são divinamente inspiradas, essas várias Escrituras são contingentes, histórica e culturalmente localizadas, escritas por seres humanos em determinados contextos que tentam interpretar uma suposta comunicação divina. Por exemplo, de acordo com van Inwagen (2011: 89), a Escritura reflete uma gradual apreensão humana de Deus numa evolução progressiva. Mas, dessa forma, parece irrazoável afirmar-se que se apreende REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL. 2018 / ISSN 2358-8284 75 DOMINGOS FARIA quais são realmente os desejos e pretensões significativas de Deus consideradas todas as coisas. Em vez da Escritura, poder-se-á igualmente pensar em alguma revelação divina que indicaria a premissa (1) como verdadeira. Mas isso enfrenta igualmente alguns problemas, pois em virtude da lacuna entre a cognição humana e divina, tal como defendida pelo TC, não temos boas razões para pensar que a forma como algum humano interpreta uma suposta revelação ou comunicação divina é realmente representativa dos desejos ou pretensões de Deus, consideradas todas as coisas, ou antes do que Deus quer que ele entenda. No fundo, ainda que se possa saber algum desejo ou pretensão de Deus, é improvável (dado o nosso hiato cognitivo) que se possa saber consideradas todas as coisas os desejos ou pretensões de Deus, tal como aquelas expressas no MNI. Uma outra forma de se tentar escapar ao conflito em consideração passa simplesmente por reformular a premissa, tal como sugere Andrew Moon (2017). A ideia é substituir a premissa (1) por alguma parecida à seguinte: (1’) Se o teísmo cristão é verdadeiro, então há um Deus que pretende que os seres humanos o conheçam. E esse consequente segue-se do antecedente meramente porque faz parte da história Cristã. No entanto, não nos parece claro que isto ajude a afastar completamente o problema; pois, como é que sabemos que o que se relata na história Cristã é realmente aquilo que Deus deseja ou pretende consideradas todas as coisas? É verdade que na história Cristã relata-se que Deus deseja e pretende de alguma forma que os seres humanos o conheçam e se relacionem com ele. Ainda assim haverá um salto se passarmos dessa condicional para a ideia de que, se Deus existe, ele deseja e pretende consideradas todas as coisas que os seres humanos o conheçam exatamente da forma como está descrita no modelo MNI ou nalgum bastante similar. Além disso, terá de se reconhecer que tais declarações ou interpretações do que supostamente Deus deseja ou pretende são realizadas por seres humanos cognitivamente limitados, falíveis, numa dada situação histórica e cultural. Por isso, dado o hiato cognitivo entre os humanos e Deus, será que se pode ter assim tanta segurança para se afirmar realmente o que Deus deseja ou pretende consideradas todas as coisas? Dadas as nossas limitações cognitivas, e se o TC for plausível, tal pretensão parece de alguma forma irrazoável. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO / BRASÍLIA / V.5 N.1 / JUL. 2018 / ISSN 2358-8284 76 O CONFLITO ENTRE O TEÍSMO CÉTICO E A EPISTEMOLOGIA REFORMADA Alguém poderá insistir que esta nossa tese nega a revelação divina, as práticas religiosas, e impossibilita qualquer conhecimento divino. Contudo, isso não se segue da tese que defendemos. Considere-se a seguinte analogia: imagine-se que revelamos oralmente ou por escrito aos nossos amigos que estamos fatigados e que pretendemos ir dormir. Com base nisso os nossos amigos podem formar a crença verdadeira de que temos algum desejo para descansar. Todavia, suponha-se que chegamos a casa e consultamos na agenda que temos de submeter um artigo importante numa revista amanhã e, por isso, ficamos toda a noite a trabalhar em vez de descansar. Ou seja, apesar de termos algum desejo para descansar, consideradas todas as coisas temos um desejo ou pretensão mais forte por trabalhar durante toda a noite. Dada a situação em consideração, apesar dos nossos amigos saberem que temos algum desejo para descansar, eles não sabem as nossas razões totais e qual é afinal o nosso desejo consideradas todas as coisas. Ora, se isso sucede com as relações humanas quotidianas, muito provavelmente ou até em maior grau acontecerá também com Deus. É importante sublinhar que com a nossa tese não estamos a negar que, se Deus existe, possa haver conhecimento sobre algum desejo ou pretensão divina. Pelo contrário, o que colocamos seriamente em questão é que se possa saber quais são afinal os desejos ou pretensões divinas consideradas todas as coisas ou as razões totais de Deus. Ou seja, a atitude mais razoável para seres epistemicamente limitados e frágeis como nós é enveredar por um saudável ceticismo e por uma humildade epistémica quanto às razões totais de Deus ou sobre os desejos ou pretensões de Deus consideradas todas as coisas. É igualmente este teísmo cético que permite evitar fundamentalismos religiosos e que poderá constituir uma base para se promover uma salutar tolerância entre religiões. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. ALSTON, William (1991) Perceiving God: The Epistemology of Religious Experience. Cornell University Press. BERGMANN, Michael (2012) “Commonsense Skeptical Theism”. In: Science, Religion, and Metaphysics: New Essays on the Philosophy of Alvin Plantinga, ed. Rea. Oxford University Press, pp. 9-30. 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