apresenta
#ZIKAZERO. A CAIXA APOIA ESSA LUTA
A CAIXA Cultural apresenta a mostra África(s). Cinema e Revolução, em
parceria com o StudioIntro, uma mostra internacional inédita no país que retrata
a fase de Independência de alguns países africanos, como Angola, Moçambique
e Guiné-Bissau, e as revoluções ocorridas após a descolonização.
A programação conta ainda com debates, oicinas, mesa redonda e exibições com a presença de cineastas e pesquisadores, que relacionam cinema,
independência, resistência e revolução, que acontecerão na CAIXA Cultural São
Paulo e no CAIXA Belas Artes.
Acesse caixacultural.gov.br
Curta facebook.com/CaixaCulturalSaoPaulo
Baixe o Aplicativo CAIXA Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
A CAIXA orgulha-se de, através desse patrocínio, oferecer ao público uma
oportunidade única de contato com a história, a arte e a cultura, de países com
realidades tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes da brasileira, contribuindo com o pensamento crítico e com a formação do público.
Desde que foi criada, em 1861, a empresa tem atuado intensamente na
melhoria da qualidade de vida da população. Além de seu papel como banco
público e parceiro das políticas de estado, a CAIXA apoia e estimula a cultura,
especialmente na circulação de eventos pelas sete unidades da CAIXA Cultural.
África(s), Cinema e Revolução (2016 : São Paulo, SP).
África(s) : cinema e revolução / [curadoria da mostra e organização do catálogo de]
Lúcia Ramos Monteiro. — São Paulo : Buena Onda Produções Artísticas e Culturais, 2016.
Não é fácil chegar a tantas pessoas e lugares, mas esse é um desaio
que vale a pena. Ainal, para a CAIXA, a vida pede mais!
196 p. ; 22 cm.
Catálogo da mostra realizada no Caixa Belas Artes São Paulo entre os dias 10 e 23 de
novembro de 2016.
ISBN 978-85-93054-01-3
1. CINEMA MILITANTE. 2. ANGOLA. 3. GUINé-BISSAU.. 4 MOçAMBIQUE. 5.
INDEPENDêNCIA. 6. ÁFRICA LUSóFONA. 7. CINEMA E MEMóRIA. 8. CINEMA E HISTóRIA.
I. Caixa Cultural. II. Caixa Belas Artes. III. Monteiro, Lúcia Ramos, org. IV. Título.
Ficha catalográica elaborada por Naira Silveira – CRB-7 6250
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
08
16
APRESENTAÇÃO
ENSAIOS
19
África lusófona nas telas:
depois da utopia e antes do fim da esperança
POR FERNANDO ARENAS
fazedores de cinema em inhaKa e Xefina
O tempo dos leopardos (1985), de Zdravko Velimorović e Camilo de Sousa
115 Sobre
POR CAMILO DE SOUSA
35
jÁ ouviu falar de internacionalismo?
as amizades socialistas do cinema moçambicano
POR ROS GRAY
olhar sobre a libertação (através do cinema) de uma nação
121 umaSobre
partir da tabanca de Xime
Xime (1994), de Sana Na N’Hada
67
71
75
83
87
91
101
111
180 SINOPSES
192 FICHA TÉCNICA
POR MARIA DO CARMO PIçARRA
elementos para a história do cinema moçambicano:
África, o colonialismo e o cinema
POR JORGE REBELO
ruy Guerra e moçambique
POR VAVY PACHECO BORGES
“que a luz neGra ilumine o meu rosto!”:
a Grandeza e o mistério do cinema de flora Gomes
POR JUSCIELE OLIVEIRA
um olhar sobre o mundo
POR ANNOUCHKA DE ANDRADE
blecaute na censura
Sobre 25 (1975), de José Celso Martinez Corrêa e Celso Luccas
POR CELSO LUCCAS
as imaGens de uma revolução cantada e dançada
125 Sobre
Kuxa Kanema (2004), de Margarida Cardoso
POR LILIAN SANTIAGO
luanda se esvazia
Sobre Na cidade vazia, de Maria João Ganga (2004)
129 quando
POR JACQUELINE KACZOROWSKI
aonde eu nunca vim”: o reempreGo de imaGens na elaboração
133 de“aqui
uma “contra-história” do colonialismo tardio portuGuês
Sobre Avó (Muidumbe) (2009), de Raquel Schefer
POR RAQUEL SCHEFER
da descolonização: imaGens, fantasmas e detritos imperiais
145 impasses
Sobre Prefácio a Fuzis para Banta (2011), Tudo bem, tudo bem, vamos continuar (2012)
e Um ilme italiano (África, adeus!) (2012), de Mathieu Kleyebe Abonnenc
POR EMI KOIDE
“mueda é o respeito pela realidade histórica.”
ruy Guerra em entrevista à revista tempo
POR SOL CARVALHO
cinematoGrÁficas da luta armada e do socialismo em moçambique
Sobre Vovós guerrilheiras (2012), de Ike Bertels
151 testemunhos
POR ROBERT STOCK
cinema e conflito no moçambique pós-colonial:
imaGens de arquivo como ilustração e evidência
Sobre Estas são as armas (1978), de Murilo Salles
POR ROBERT STOCK
passado inabordÁvel e a necessidade de imaGinação
157 oSobre
Tabu (2012), de Miguel Gomes
POR MARIANA DUCCINI
miradas anti-coloniais de santiaGo Álvarez em moçambique
Sobre Maputo, meridiano novo (1976) e Nova sinfonia (1982)
POR CRISTINA BESKOW
poderes
Sobre Redemption (2013), de Miguel Gomes
175 pobres
POR BEATRIZ RODOVALHO
apresentação
10
11
a
pesar de sua incomparável importância histórica e estética, e apesar também de seus estreitos laços com o contexto brasileiro, ainda é muito pouco conhecido entre nós o
cinema que surge em meio aos processos de independência de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, bem como
aquele, mais recente, que trabalha a memória do colonialismo português na
África e das lutas dos africanos para, utilizando os meios do cinema, libertar-se de séculos de dominação.
Como se sabe, entre o inal dos anos 1960 e o inal dos anos 1970, no
contexto das lutas de libertação das então colônias portuguesas na África,
estabelecem-se as bases de uma cinematograia nova. Trata-se de um cinema ímpar, que nasce em meio a uma combinação muito peculiar de nacionalismo e internacionalismo, em que pesam tanto a visão do cinema como instrumento de luta quanto a ambição de criar uma forma artística nova e
revolucionária. Aliam-se nessa empreitada, de forma surpreendente, forças à
primeira vista tidas como contraditórias, entre as quais o desejo de fundar
um cinema 100% africano e a necessidade de se estabelecer parcerias com
instituições, cineastas e técnicos de outros continentes.
Caso ao mesmo tempo extraordinário e exemplar da história mais larga
é o da cineasta Sarah Maldoror (1938-). Ao inal da década de 1960, essa
francesa de família originária da Guadalupe e raízes africanas já havia fundado, em Paris, uma pioneira trupe de teatro negro, e passado uma temporada
em Moscou estudando cinema, quando decide ilmar na África ao lado do
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Rodado na Argélia, seu
primeiro curta-metragem, Monangambee (1969), toma como base um conto
do escritor angolano José Luandino Vieira, à época detido no campo de concentração de Tarrafal, em Cabo Verde, para narrar a violência sofrida pelos
presos políticos que se opunham ao poder colonial. Os africanos independentistas não são vitimizados na narrativa que, ao contrário, enfatiza a ignorância dos guardas portugueses, desconhecedores da culinária e do vocabu-
lário do lugar onde viviam. O domínio da mise en scène e a precisão da
fotograia comprovam que Maldoror sabia muito bem o que fazia.
A ilmograia africana de Maldoror ilustra bem as conexões intercontinentais dos movimentos independentistas, com bases em diversos países
africanos, além de Portugal, França, Reino Unido, Cuba, União Soviética,
Brasil. Esses elos transatlânticos são reairmados pelos documentários africanos assinados pelo cubano Santiago Álvarez (o sotaque claramente brasileiro da locutora que conduz a narração, em espanhol, de Maputo, meridiano
novo [1976], acrescenta uma camada ao internacionalismo da produção).
Também estiveram em Moçambique, em cooperação com o Instituto Nacional
de Cinema (INC), cineastas e técnicos da então Iugoslávia, além do francês
Jean Rouch, com um projeto ambicioso de popularização do super-8, e o
franco-suíço Jean-Luc Godard, que pensava nas potencialidades do vídeo
para a criação de uma televisão nacional moçambicana. No que se refere à
“fundação” do cinema moçambicano, é preciso, ainda, registrar a presença
de brasileiros, como José Celso Martinez Corrêa e Celso Luccas, autores de
25 (1975), Murilo Salles, realizador de Estas são as armas (1978), e de Ruy
Guerra, que depois de anos trabalhando como cineasta no Rio de Janeiro,
realiza em Moçambique três curtas e o longa Mueda, memória e massacre
(1979-80). Pontos de exceção na história do cinema por suas ambições estéticas, éticas e políticas, os ilmes que acabam de ser citados foram vistos
poucas vezes em exibições públicas no Brasil.1
“Parte da história cultural do Moçambique pós-colonial é fortemente
relacionada a esse princípio de engajamento universal que fez com que cineastas
1
Entre outras iniciativas, merece ser lembrada a mostra África lusófona, realizada pelo
Cinusp Paulo Emílio, em 2014, por ocasião dos quarenta anos das independências das
ex-colônias portuguesas na África, em que foi exibido Mueda, memória e massacre.
As três edições da mostra Cinema da África e da diáspora, realizada na Caixa Cultural
do Rio de Janeiro, e Uhuru. Mostra de cinema africano pós-independência, na mesma
Caixa Cultural do Rio, contribuíram para dar visibilidade a títulos importantes, embora
não houvesse foco no cinema da chamada “África lusófona”. São ainda dignos de nota
os programas das mostras de cinema africano realizadas pela Universidade Federal de
Juiz de Fora e pela Universidade Federal do Ceará.
12
13
estrangeiros (europeus, mas também brasileiros) participassem do processo
de criação do cinema neste país lusófono da África”, escreve o marinense
Mahomed Bamba (1967-2015), professor da Universidade Federal da Bahia,2
num artigo em que relaciona a participação de cineastas de diversas nacionalidades em meio aos movimentos de independência africanos à história do
engajamento (sartreano) do intelectual e do artista, num “cinémAction” de
muitas repercussões terceiro-mundistas, em sintonia com o manifesto de Solanas e Getino.
Paralelamente à colaboração internacionalista sobre a qual versa Bamba,
há esforços de airmação de cinemas mais genuinamente “africanos”. Um dos
fundadores do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde
(PAIGC), Amílcar Cabral envia quatro estudantes para aprender cinema em
Cuba, tendo em mente que o cinema da Guiné-Bissau deveria ser feito por
cineastas nascidos na Guiné-Bissau. Flora Gomes e Sana Na N’Hada são dois
desses jovens cineastas que foram levados por Cabral ao Instituto Cubano
de Arte e Indústria Cinematográica (ICAIC). Faz-nos falta uma retrospectiva
integral da obra desses dois realizadores no Brasil. Em África(s). Cinema e
Revolução poderemos ver, de Gomes, Morte negada (1988), Árvore de sangue
(1996) e A República dos Meninos (2012) e, de Na N’Hada, seu primeiro longa-metragem, Xime (1994), além de 33 outros ilmes de algum modo ligados
às independências de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.
Para além de homenagear o capítulo moçambicano da(s) história(s) do
cinema de Godard – seu projeto jamais veio à luz como tal, dele restando apenas
as páginas de uma edição especial da revista Cahiers du Cinéma –, o “s” entre
2
Mahomed Bamba, “In the Name of ‘Cinema Action’ and Third World: The Intervention of
Foreign Film-makers in Mozambican Cinema in the 1970s and 1980s”. Journal of African
Cinemas, v. 3, 2012, p. 173-85. Tradução para o português de Alessandra Meleiro, a ser
publicado pela revista Rebeca/ Socine (www.socine.org.br/rebeca) no inal de 2016,
em dossiê coordenado por Amaranta Cesar e por mim. Agradeço a Amaranta Cesar e a
Alessandra Meleiro por me terem colocado em contato com esse texto.
parênteses acrescentado à palavra África pretende traduzir a variedade de realidades e cinematograias que o continente encerra. Fruto de uma discussão
com Rita Chaves, importante interlocutora deste projeto, o plural se faz necessário mesmo quando está claro o foco em apenas três dos países costumeiramente classiicados como “lusófonos” – termo que, aliás, não corresponde à
variedade linguística dos próprios países e, menos ainda, de seu cinema.
As independências de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique representavam a concretização de algumas utopias e, dentre elas, a de um cinema feito
por africanos para africanos, do povo para o povo, e que podia contribuir de
fato na criação de um sentimento nacional – lembremos que, naquele momento, nenhum desses países possuía televisão local. Sobrevieram, porém,
longos anos de guerra civil, o que diicultou, interrompeu e, em alguns casos,
pôs im às iniciativas de cinema utópico, como o cinejornal moçambicano
Kuxa Kanema, a que a cineasta portuguesa Margarida Cardoso dedica um
belo documentário, Kuxa Kanema. O nascimento do cinema (2003), ilme
pioneiro no trabalho com os arquivos do cinema moçambicano.
Há pouco mais de uma década essa ilmograia começou a ser sistematicamente estudada. O festival de documentários Dockanema, criado em 2006
por Pedro Pimenta na cidade Maputo e interrompido desde 2013, possibilitou
que muitos desses títulos pudessem ser vistos. Mais recentemente, graças a
iniciativas como a parceria entre a Universidade de Bayreuth, na Alemanha,
e a Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, ilmes importantes como
Mueda, memória e massacre e O tempo dos leopardos (1985) são restaurados,
digitalizados e, assim, tornados visíveis. Ao mesmo tempo, cineastas de diferentes gerações, dentro e fora do continente africano, debruçam-se sobre os
arquivos coloniais, anti-coloniais e pós-coloniais, produzindo e reelaborando
memórias. é o caso do francês Mathieu Kleyebe Abonnenc, dos portugueses
Margarida Cardoso, Raquel Schefer e, mais recentemente, Miguel Gomes,
além de Licínio Azevedo em Moçambique, Flora Gomes na Guiné-Bissau e
Maria João Ganga em Angola.
14
Diante da escassez de publicações sobre essa ilmograia no contexto
brasileiro, optamos por reunir, neste catálogo, textos de diferentes naturezas, cronologias e geograias. Artigos panorâmicos, fruto de um cuidadoso
trabalho de pesquisa, como os de Ros Gray e Fernando Arenas, devem ajudar
o leitor a entender os processos históricos e as relações entre ilmes, cineastas e instituições. Há, em seguida, ensaios mais curtos, voltados à análise
pontual de algumas obras ou da ilmograia de autores determinados, como
os de Beatriz Rodovalho, Camilo de Sousa, Cristina Alvares Beskow, Emi
Koide, Jacqueline Kaczorowski, Jusciele Oliveira, Lilian Santiago, Maria do
Carmo Piçarra, Mariana Duccini, Robert Stock e Vavy Pacheco Borges. Finalmente, tentamos privilegiar a voz dos cineastas sempre que isso foi possível – a
palavra de Celso Luccas, Raquel Schefer, Ruy Guerra (em entrevista a Sol
Carvalho) e Sarah Maldoror (por intermédio de sua ilha, Annouchka de Andrade) pode ser lida em textos sensíveis, que conjugam a relexão sobre o
método de trabalho a informações preciosas para o espectador. Reproduzimos, ainda, um trecho do discurso do então ministro da informação moçambicano, Jorge Rebelo, com o objetivo de restituir um pouco da atmosfera
político-cultural da época. O projeto inicial era que esse catálogo incluísse uma
série de outros documentos históricos, desejo que aguardará outra ocasião
para se concretizar.
As questões levantadas pelos ilmes reunidos nesta mostra devem encontrar eco no contexto brasileiro atual, em que as discussões sobre negritude,
racismo, identidade cultural e engajamento na arte conquistam espaço e ganham novos contornos. Nesse sentido, a websérie Empoderadas, presente na
mostra com três de seus já dez episódios, atualiza e traz para o cenário brasileiro algumas das questões presentes na ilmograia africana mais histórica.
Esperamos que esta iniciativa contribua para dar centralidade, na crítica
e nos estudos de cinema, para ilmes ligados à memória colonial e à luta anticolonial. é impossível não lembrar, aqui, da discussão entre os cineastas
Ousmane Sembène e Jean Rouch, travada em 1965, portanto mais de dez
15
anos antes da chegada de Rouch a Moçambique, onde realiza Makwayela
(1977) e elabora o projeto de realização em super-8 mencionado acima, jamais implementado. “Quando houver muitos cineastas africanos, os cineastas
europeus como você, por exemplo, pretendem continuar fazendo ilmes sobre
a África?”, perguntava Sembène a Rouch.3 Os 39 ilmes que África(s). Cinema
e Revolução reúne podem ser encarados como 39 possíveis respostas.
LúCIA RAMOS MONTEIRO é curadora da mostra África(s). Cinema e Revolução e organizadora deste catálogo e doutora em cinema pela Universidade
Sorbonne Nouvelle - Paris 3 e pela Universidade de São Paulo. Realiza atualmente uma pesquisa de pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com auxílio da Fapesp, sobre
cinemas nacionais periféricos.
3
“Une Confrontation historique en 1965 entre Jean Rouch et Sembène Ousmane:
‘Tu nous regardes comme des insectes’”. Entrevista publicada em France nouvelle,
n. 1033, pp. 4-10, ago. 1965 e em CinémAction, n. 81, 1996, dossiê Jean Rouch ou le
ciné-plaisir, editado por René Prédal.
ensaios
África
lusófona
nas telas:
depois da
utopia e antes
do fim da
esperança
Por fernando arenas
Este texto é uma versão condensada do terceiro capítulo do livro África lusófona:
Além da independência, de Fernando Arenas, a ser publicado pela Edusp em 2017,
com tradução de Cristiano Mazzei.
20
n
o caso especíico das nações africanas como Moçambique, Angola, e Guiné-Bissau, o cinema desempenhou um
papel importantíssimo na representação das lutas libertárias, aglutinando o apoio aos movimentos políticos triunfantes que subiram ao poder após a Independência e
construindo nações pós-coloniais. No entanto, as catastróicas guerras civis
ocorridas em Angola e Moçambique, como resultado duma combinação de fatores internos, regionais e geopolíticos globais, parcialmente relacionados à Guerra Fria e ao Apartheid, foram quase fatais à sobrevivência do cinema. Com a paz,
normalização e reconstrução praticamente concluídas em Moçambique e em
Angola, o cinema encontra-se em fase de recuperação. Contudo, continua a
enfrentar desaios inanceiros e infraestruturais comuns ao restante do continente africano, inclusive seus parceiros lusófonos, Guiné-Bissau e Cabo Verde;
desaios estes que persistem em parte como resultado do colonialismo, com
consequências duradouras sob a égide da globalização contemporânea.
Muito semelhante ao restante do continente africano ou nações em desenvolvimento em geral, o cinema em toda a África de língua oicial portuguesa tende a não se limitar exclusivamente a dimensões estético-formais, ou de
entretenimento (mesmo quando tais dimensões não desempenham um papel
insigniicante). O cinema é estimulado por um compromisso ético com enfoque em questões sociais, processos históricos e desenvolvimentos culturais no
âmbito individual, coletivo, nacional e continental. Os ilmes africanos lusófonos
são tão heterogêneos quanto os países que compreendem o agrupamento
geográico/linguístico da “África lusófona”, ou continente africano como um
todo. Em consonância com Françoise Pfaff, fazendo eco do sentimento expresso pelo diretor mauritano Med Hondo, não existe uma entidade monolítica
ou homogênea chamada “cinema africano”, e sim cinemas ou ilmes africanos,
ou, mais precisamente, “cineastas africanos lutando com diiculdade para fazer
cinema”.1 Há uma corrente autoral e não comercial de importância nos ilmes
de países africanos lusófonos, assim como de toda a África, com orçamentos
21
inquestionavelmente baixos. A produção cinematográica é intermitente e
com frequência afetada por restrições inanceiras e desaios relacionados à
infraestrutura de produção e distribuição. Embora haja uma abundância de
estórias a serem contadas e um vasto inventário de talentos, o cinema continua a depender, em grande parte, de subsídios originários da Europa (França,
Portugal e outros países da União Europeia) e Brasil. De fato, Portugal e Brasil
desempenham papéis importantes nos cinemas africanos lusófonos através
de subsídios, coproduções, parcerias, e assim por diante, mas a França continua a ser a igura dominante no que diz respeito a subsídios cinematográicos
em toda a África lusófona e francófona. De forma geral, os subsídios estrangeiros continuam sendo essenciais não apenas para ilmagem e produção,
mas também para a disseminação de ilmes africanos de caráter autoral no
circuito internacional, que, na maioria dos casos, está circunscrito a festivais
de cinema. Mesmo assim, uma presença africana nem sempre é garantida
nesses festivais devido à produção escassa e esporádica de ilmes em todo o
continente. Pode-se contar nos dedos o número de ilmes africanos que atingiram o circuito cinematográico global.
Na altura da Independência, os portugueses praticamente não deixaram
nenhuma infraestrutura cinematográica para trás ou técnicos treinados em
seus territórios africanos. Portanto, os “cinemas nacionais” nos casos de Moçambique, Angola, e também a Guiné, tiveram que ser construídos a partir do
nada, como parte integrante das lutas de libertação nas décadas de 1960 e
1970, na maioria das vezes, envolvendo iniciativas e esforços de colaboração
com diretores e produtores de cinema estrangeiros. Apesar das condições
econômicas, materiais e geopolíticas reinantes na época do nascimento e
subsequente desenvolvimento do cinema nas antigas colônias portuguesas
terem sido muito mais precárias do que no restante da África, a experiência da
1
Françoise Pfaff, Focus on African Films. Bloomington/ Indianapolis: Indiana University
Press, 2004, p. 10.
23
22
luta armada que marcou as origens do cinema em Angola, Moçambique e Guiné2
o diferenciam de forma ainda mais drástica do cinema produzido em outras
nações africanas nos primeiros anos de independência. A falta de treinamento
em cinematograia e infraestrutura, por um lado, e a coesão e unidade do propósito dentro do MPLA em Angola e Frelimo em Moçambique, por outro lado,
inspiraram uma onda de solidariedade internacional envolvendo cineastas e
ativistas da França, Suécia, ex-Iugoslávia, Cuba, Estados Unidos, entre outros
países, que ajudaram na produção de inúmeros documentários.3 Eles dedicaram seus talentos e recursos à visão emancipatória dos movimentos de libertação, contribuindo para uma estratégia ideologicamente complexa: utilizar o
cinema como ferramenta ou até mesmo arma estratégica a im de documentar,
educar e disseminar informações sobre a guerra, possibilitando a educação do
público africano sobre sua própria condição histórica, e, ao mesmo tempo,
informando a comunidade internacional sobre as guerras anticoloniais na
África. Também é essencial observar que o surgimento de um cinema anticolonial e pós-colonial, tanto em Angola quanto em Moçambique, coincidiu com
a modernização e revitalização do meio cinematográico em desenvolvimento
nas décadas de 1960 e 1970, segundo Marcus Power.4 Como tal, o cinema foi
2
O documentário O regresso de Amílcar Cabral (1976), feito em colaboração por vários
cineastas guineenses (entre eles, Sana Na N’Hada e Florentino “Flora” Gomes), é
considerado um texto fílmico fundacional para a Guiné-Bissau independente, retratando
o regresso do corpo de Cabral de Conakry (onde foi assassinado em 1973) e a sua
procissão através das ruas de Bissau, assim como as exéquias oiciais.
3
Para uma abordagem histórico-crítica exaustiva do cinema em Moçambique no período
da luta armada anterior à Independência, e logo depois, na transição para a Independência
e o início da guerra de desestabilização entre os anos 1970-1990 (incluindo a morte de
Samora Machel e colapso do Instituto Nacional de Cinema), vide Ros Gray, “Cinema on
the Cultural Front: Film-Making and the Mozambican Revolution”. Journal of African
Cinemas, n. 3, vol. 2, 2001, pp. 139-160. Para um estudo sobre o papel de cineastas
estrangeiros no desenvolvimento do cinema em Moçambique entre os anos 1970-1980,
vide Mohamed Bamba, “In the Name of ‘Cinema-Action’ and Third World: The Intervention
of Foreign Film-Makers in Mozambican Cinema in the 1970s and 1980s”. Journal of
African Cinemas. op. cit., pp. 173-185.
capaz de se tornar um veículo de representação importante para a promoção
da causa libertária nacional, angariando apoio internacional.
O longa-metragem mais destacado a surgir dessa onda internacional de solidariedade aos movimentos de libertação nacional nas colônias africanas portuguesas foi Sambizanga (1972),5 dirigido por Sarah Maldoror de Guadalupe, baseado no romance clássico de 1961 do autor angolano José Luandino Vieira, A vida
verdadeira de Domingos Xavier. Tanto o romance como o ilme documentam os
primeiros momentos do conlito pela Independência em Angola através da estória
de Domingos e sua família, destacando, entre outros aspectos, a tenacidade do
compromisso de Domingos para com a nascente luta libertária. O ilme, contudo,
vai além do romance de Luandino, ao destacar a busca heroica de Maria pelo seu
marido preso, Domingos, assim como a sua devoção ao marido e família e, por
extensão, à luta coletiva. Tanto o romance quanto o ilme pintam um quadro carismático da sociedade angolana colonial nos seus últimos anos, destacando uma
consciência emancipatória emergente entre os angolanos. é considerado um dos
ilmes mais extraordinários dos primórdios do cinema negro-africano devido à sua
força política, amplo apelo humanístico e qualidade artística. Além disso, é notável
que um ilme relativamente antigo privilegie a representação da experiência da
mulher na luta de libertação nacional a partir da perspectiva de uma diretora.
Sambizanga é raramente visto, apesar de ser reverenciado no contexto da história
e crítica do cinema africano, mais especialmente em Angola.
4
Marcus Power. “Post-colonial Cinema and the Reconiguration of Moçambicanidade”.
Lusotopie. v. 11, 2004, p. 272.
5
O roteiro de Sambizanga foi escrito pelo intelectual e líder nacionalista angolano Mário
Pinto de Andrade, que foi casado com Maldoror. Apesar de numerosos críticos fazerem
referência à Sambizanga, as análises mais detalhadas e sutis foram escritas por Michael
Dembrow, “Sambizanga and Sarah Maldoror”, 2006. Disponível em: <http://spot.pcc.
edu/˜mdembrow/sambizanga.htm>; Marissa Moorman, “Of Westerns, Women, and War:
Re-Situating Angolan Cinema and the Nation”. Research in African Literatures., v. 32,
2001, pp. 103-22 ; Josef Gugler, African Film: Re-Imagining a Continent. Bloomington/
Indianapolis: Indiana University Press, 2003.
24
25
Assim que assumiu o poder, o governo do MPLA investiu recursos na produção cinematográica ao serviço da causa nacional, ideologicamente motivados
por uma ética marxista-leninista. Portanto, dezenas de documentários para
consumo interno foram encomendados, os quais destacavam o cotidiano e experiências coloniais de vários tipos de trabalhadores em diferentes regiões em
toda a Angola, ou relatos heroicos sobre as lutas de libertação. Ruy Duarte de
Carvalho menciona que o trabalho cinematográico em Angola após a Independência foi principalmente realizado no departamento de cinema com apoio da
televisão nacional, além da equipe de cinema ligada ao Ministério de Informação
com enfoque em assuntos da atualidade.6 De acordo com Matos-Cruz e Mena
Abrantes, durante o início dos anos do pós-Independência, a produção cinematográica angolana optou por uma estratégia de “cinema direto”, registrando
eventos político-militares assim como o clima festivo durante o período de transição.7 Os cineastas mais ativos durante os primórdios do cinema angolano
pós-colonial foram Asdrúbal Rebelo, os irmãos Henriques (Carlos, Francisco e
Victor), António Ole e Ruy Duarte de Carvalho. Infelizmente, devido a pressões
iminentes de uma guerra civil, a produção cinematográica em Angola sucumbiu
à estagnação por volta de 1982, somente sendo retomada mais de vinte anos
depois. Lamentavelmente, a maioria dos diretores angolanos ativos durante o
período até 1982 abandonaram a arte.
Moçambique, por outro lado, desempenhou um papel pioneiro na história do cinema africano pós-colonial através da criação, à época da Independência, de uma infraestrutura de cinema nacional desvinculada do circuito
cinematográico comercial global e ao serviço da nação marxista que emergiu
após o colonialismo português. Em 1975, o primeiro ato cultural por parte do
partido governante, a Frelimo, foi a criação do Instituto de Cinema de Moçambique. O governo convidou Ruy Guerra, um dos mestres do Cinema Novo bra6
7
“Entretien avec Ruy Duarte de Carvalho”. Cahiers du Cinéma, V. 274, 1977, pp. 59-60.
José de Matos-Cruz; José Mena Abrantes, Cinema em Angola. Luanda: Chá de Caxinde,
2002, p. 22.
sileiro (nascido em Moçambique), para ser seu diretor. De acordo com Camilo
de Sousa, o cinema foi utilizado como instrumento vital para os propósitos de
educação e propaganda ideológica no processo de construção simbólica da
nova nação independente (conforme declarado no ilme Kuxa Kanema. O nascimento do cinema, 2003). O Instituto tornou-se um laboratório que aproximou os talentos e visões de numerosos cineastas, roteiristas, editores, produtores e técnicos, tanto moçambicanos como estrangeiros. Foi o espaço de
treinamento para cineastas emergentes como Licínio Azevedo, João Ribeiro e
Sol de Carvalho, entre outros. Simultaneamente, atraiu uma onda de solidariedade internacional, inclusive os diretores vanguardistas franceses Jean Rouch
e Jean-Luc Godard.
Os projetos liderados por Rouch e Godard, respectivamente, ilustram as
limitações tecnológicas da produção fílmica no contexto de extrema pobreza e
tensões resultantes de um relacionamento que era percebido pelos moçambicanos como neocolonial, apesar das melhores intenções ideológicas por parte
dos cineastas franceses. Além disso, Godard entrou em conlito com o dogmatismo ideológico da Frelimo, pois estava mais interessado em proporcionar aos
camponeses moçambicanos meios técnicos e a liberdade criativa para produzirem imagens em um novo tipo de televisão do povo para o povo, sem seguir
a linha do partido. Rouch e Godard foram ambos convidados pelo governo
moçambicano, sob orientação de Ruy Guerra e do Instituto. Rouch encabeçou
o acordo de cooperação patrocinado pelo governo francês envolvendo um importante projeto super-8, o qual incluía a construção de um laboratório totalmente equipado com a tecnologia necessária para produzir ilmes juntamente
com instrutores franceses, e cujo objetivo era treinar os moçambicanos no
uso de tal tecnologia. Desentendimentos fundamentais surgiram entre Guerra
e o Instituto sobre concepções e abordagens divergentes no que dizia respeito
à produção, em especial, a praticabilidade e viabilidade em termos de custo a
longo prazo de tal laboratório no contexto moçambicano. Andrade-Watkins
destaca que, no início, os moçambicanos estavam mais interessados no formato
26
27
35mm do que o 8mm proposto por Rouch. Sentiram que Rouch estava de fato
“tentando institucionalizar um grau de subdesenvolvimento técnico”.8 Entretanto, Rouch simplesmente não achava que o formato de 35mm fosse prático
ou eiciente economicamente. Em última instância, nenhuma das fórmulas se
tornou viável em termos de custo a longo prazo para Moçambique. No caso de
Godard (juntamente com sua produtora SonImages), houve um desentendimento ideológico fundamental com a Frelimo, conforme documentado pelo
ilme de Margarida Cardoso, Kuxa Kanema, e Manthia Diawara.9
Além desses projetos de colaboração, o Instituto tornou-se o centro de
produção de cinejornais, documentários e alguns longas-metragens.10 Seu
projeto mais conhecido, Kuxa Kanema [O nascimento do cinema],11 é considerado por críticos e historiadores do cinema a tentativa mais bem-sucedida da
8
Claire Andrade-Watkins, “Portuguese African Cinema: Historical and Contemporary
Perspectives–1969 to 1993”. Research in African Literatures. V. 26, 1995, pp. 137-139.
9
O desentendimento entre Guerra, Rouch e Godard em Moçambique foi amplamente
documentado por Manthia Diawara, African Cinema. Bloomington/Indianapolis: Indiana
University Press, 1992, pp. 93-94.
10
Ruy Guerra dirigiu um dos primeiros longas-metragens em Moçambique, Mueda, memória
e massacre (1979), documentando a representação anual do massacre de 1960 do povo
makonde pelas forças coloniais portuguesas no norte de Moçambique. Vide Ukadike (pp.
240-241) para uma análise deste ilme. Houve quatro longas importantes lançados no inal
da década de 1980, inclusive a coprodução polêmica com a Iugoslávia intitulada O tempo dos
leopardos (1987), que enfoca os anos inais da guerra de libertação no norte de Moçambique.
Conforme relatado por Licínio Azevedo e Luís Carlos Patraquim (corroteiristas) no
documentário de Margarida Cardoso, Kuxa Kanema, a polêmica teve a ver com a arrogância
e eurocentrismo por parte dos iugoslavos que entregaram a eles um roteiro que ignorava as
especiicidades históricas e culturais da guerra de libertação moçambicana e que estavam
mais interessados em produzir um ilme de ação que se passasse num lugar exótico, sob uma
lógica maniqueísta lançando negros contra brancos. O vento sopra do norte (1987) de José
Cardoso também ressalta a guerra de libertação no norte de Moçambique e foi a primeira
produção exclusivamente moçambicana. O documentário moçambicano-brasileiro Fronteiras
de sangue (1987) de Mário Borgneth adverte sobre a campanha de desestabilização realizada
pela África do Sul da era do Apartheid contra seus vizinhos (inclusive Moçambique).
A colheita do diabo (1991), codirigida por Licínio Azevedo e Brigitte Bagnol, mistura fato
e icção para retratar um vilarejo assolado pela seca no meio da guerra civil. Para mais
detalhes sobre estes e outros ilmes desse período vide Andrade-Watkins (op. cit., p. 17),
Marcus Power (2004), e Ros Gray (2011), anteriormente citados.
criação de um cinema africano que atendia os interesses do povo africano;
neste caso, o propósito de construir uma nação sob os auspícios do partido
governante e antigo exército de libertação Frelimo e sua visão de uma república socialista. Maria Loftus argumenta que o projeto de Kuxa Kanema não só
retratou o nascimento e morte do projeto socialista da Frelimo, mas também a
ascensão e queda do cinema em Moçambique,12 posto ao serviço daquele projeto. De acordo com a cineasta portuguesa Margarida Cardoso em seu extraordinário documentário, Kuxa Kanema. O nascimento do cinema, o projeto envolvia cinejornais semanais de dez minutos que eram exibidos em todo o país
nos cinemas ou através de vans doadas pela antiga União Soviética em áreas
rurais remotas. Entre 1981 e 1991, Kuxa Kanema produziu 359 edições semanais e 119 documentários de curta duração, além de vários longas.13 Em 1991,
infelizmente, os equipamentos de cinema, a sala de edição, de som e os laboratórios de processamento pertencentes ao Instituto de Cinema de Moçambique foram praticamente destruídos por um incêndio, o que levou ao seu colapso.14
Mesmo antes do incêndio, no entanto, o Instituto já vinha sofrendo consideravelmente com problemas inanceiros, de logística, infraestrutura e criatividade
devido à devastadora Guerra Civil. A ruína do Instituto de Cinema Moçambicano ocorreu sob o pano de fundo da guerra, assim como da morte prematura
de seu fundador e carismático líder, Samora Machel, num suspeito acidente
De acordo com Lopes, Sitoe e Nhamuende (2000), Kuxa Kanema é um neologismo criado
pelo poeta, roteirista e produtor Luís Carlos Patraquim que signiica “o nascimento ou a
aurora do cinema”, cunhado a partir dos idiomas changana e makua falados no sul e norte
de Moçambique, respectivamente, num gesto que evidencia o princípio abrangente de
unidade nacional após a Independência.
12
Vide Maria Loftus, “Kuxa Kanema: The Rise and Fall of an Experimental Documentary
Series in Mozambique”. Journal of African Cinemas. 3, v. 2, 2011, pp. 161-171.
13
Claire Andrade-Watkins, “Portuguese African Cinema: Historical and Contemporary
Perspectives –1969 to 1993”, op. cit., p. 141.
14
De acordo com uma entrevista de Marcus Power com o cameraman Gabriel Mondlane
(vide “Post-colonial Cinema”, op. cit., p. 276). O extinto Instituto foi reconigurado para
tornar-se o Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema (INAC), o qual vem batalhando com
diiculdade para recuperar seu legado.
11
28
29
de avião sobre a África do Sul em 1986, selando deinitivamente o im do sonho utópico de uma sociedade igualitária, na qual o cinema desempenhou um
papel importante.
LICíNIO AZEVEDO
Licínio Azevedo – cineasta, jornalista e escritor – nasceu no Rio Grande
do Sul, mas vive em Moçambique desde a Independência. Trabalhou no Instituto Nacional de Cinema durante os primeiros anos do cinema moçambicano,
colaborando com Rouch e Godard. Azevedo também trabalhou para a televisão de Moçambique e hoje é um cineasta independente e diretor da produtora
de ilmes e multimídia ébano Multimedia, com sede em Maputo. Azevedo tem
realizado um número considerável de documentários e longas-metragens
abordando um amplo leque de questões importantes ao entendimento da experiência pós-colonial e pós-guerra de Moçambique, do retorno emocional
dos refugiados de guerra à sua terra natal (A árvore dos antepassados, 1994);
à ameaça mortal das minas terrestres espalhadas pelo interior de Moçambique (O acampamento da desminagem, 2005); às perdas humanas e ambientais causadas por quinze anos de guerra civil (A guerra da água, 1996); às
injustiças decorrentes do dogmatismo ideológico do governo no pós-Independência (Virgem Margarida, 2012); às trágicas consequências da epidemia da
Aids (Night Stop, 2002). Vários de seus ilmes foram exibidos em festivais
internacionais e ganharam prêmios. Porém, a obra de Licínio Azevedo ainda
não recebeu a atenção crítica que merece, apesar de ser o cineasta mais importante de Moçambique.
O conjunto da obra de Azevedo oferece um mosaico da vida contemporânea em Moçambique através das experiências de pessoas comuns vivendo,
até certo ponto, sob circunstâncias extraordinárias. O ethos humanístico de
Azevedo é a força motora por trás de sua prática cinematográica com que
retrata a sociedade moçambicana através de uma multiplicidade de vozes.
Seus documentários, que constituem a maior parte de sua produção, repre-
sentam a realidade social moçambicana e seguem uma abordagem ética que
permite ao “outro” (neste caso, na sua maioria moçambicanos pobres do interior) falar com um mínimo de interferência do diretor, em diálogos que parecem não terem sido ensaiados nem as cenas redigidas. A práxis cinematográica de Azevedo revela uma grande ainidade com o “modo observacional” dos
documentários descrito por Bill Nichols em seu clássico Representing Reality
(1991), que enfatiza a não intervenção do cineasta. Fiel à sua colaboração com
Jean Rouch, os documentários de Azevedo seguem algumas das convenções
do cinéma vérité (que constitui uma excelente ilustração do modo observacional), assim como a distância não intrusiva entre a câmera e os sujeitos; a natureza da performance aparentemente pouco ensaiada ou dramatizada por
parte dos atores; o foco em pessoas comuns; o uso de câmera portátil; locais
autênticos; sons naturais e pouca pós-produção. A edição envolve breves cenas ocasionais intercaladas no io narrativo retratando o cotidiano, a paisagem, animais, instrumentos musicais tocados por pessoas locais, ou rituais de
dança, que acrescentam textura ao mesmo tempo em que enriquecem e complementam a estória, através da inclusão de elementos relacionados a práticas
culturais e hábitat, constitutivos das vidas dos sujeitos retratados. O estilo de
direção de Licínio Azevedo conta, em grande parte, com uma “presença ausente” (conforme teorizado por Nichols), proporcionando sons e imagens,
mas com uma presença de direção que permanece despercebida e não reconhecida. Os documentários de Azevedo são, em grande parte, estruturados ao
redor de um “princípio axiográico”,15 no qual uma ética de representação é
conhecida e vivenciada através da relação espacial entre a câmera e os sujeitos, reletida na proximidade física conforme deduzida pelo uso de closes de
grande ângulo, assim como uma aceitação tácita, mútua, entre cineasta e sujeitos, a qual prevalece em todos seus ilmes. Pode-se argumentar que o papel
15
Bill Nichols, Representing Reality: Issues and Concepts in Documentary. Bloomington/
Indianapolis: Indiana University Press, 1991, pp. 77-95.
30
31
de Azevedo em seus documentários é simultaneamente o de “outsider/insider”, portanto descentralizando, até certo grau, sua perspectiva de um brasileiro branco de classe média em relação aos sujeitos retratados – moçambicanos
negros e pobres, na sua maioria camponeses.
Hóspedes da noite (2007) desenrola-se no Grande Hotel, na cidade da
Beira (costa central de Moçambique), um antigo hotel de luxo à beira-mar,
com 350 quartos e uma piscina olímpica, onde hoje vivem 3500 pessoas. O
hotel, com arquitetura em estilo art déco, foi inaugurado em 1953 e é hoje a
imagem esquelética de tal passado: faltam paredes, janelas, eletricidade ou
água encanada, elevador ou corrimão nas escadas. Muitos de seus atuais moradores (homens e mulheres, em sua maioria jovens ou de meia-idade, além
de muitas crianças) são sobreviventes da guerra civil. Todos são pobres, enfrentando diiculdades para sobreviverem em tempos de paz com criatividade
e perseverança, em meio a uma nação pós-colonial que os abandonou por
completo. Esse curto documentário visualmente poético oferece um mosaico
da vida no Grande Hotel, onde os moradores são ilmados à medida que desenvolvem suas atividades diárias em condições deploráveis e perigosas, ao
mesmo tempo que são retratados com dignidade e beleza. Hóspedes da noite
também destaca a visita de dois ex-empregados ao hotel (sr. Caíto e sr. Pires).
À medida que exploram a estrutura fantasmagórica do hotel pululando de
vida, os ex-funcionários relembram sua época opulenta durante o período colonial. Suas memórias dos anos dourados, quando senhoras elegantes bebiam
uísque no fabuloso bar/discoteca do hotel, contrastam nitidamente com as
imagens dos atuais moradores – “hóspedes da noite”, esquecidos pela história, cujas vidas desaiam os indicadores tão divulgados do forte crescimento
econômico de Moçambique.
A narrativa fílmica é estruturada em torno de várias cenas envolvendo
diálogos entre os dois visitantes, três jovens mães (Rachida, Soia e Francisca), dois irmãos jovens e órfãos, e dois homens de meia-idade (Eusébio, um
segurança noturno, e Eunísio, um vendedor ambulante). De forma seme-
lhante a Night Stop, essas cenas proporcionam uma textura humana à medida que os sujeitos compartilham estórias de tragédia e sobrevivência durante e após a guerra civil, assim como antes e depois de chegarem ao Grande
Hotel. Suas conversas variam entre tentativas por parte dos garotos órfãos
de lembrarem a sua falecida mãe; os horrores da fuga de vilarejos em chamas durante a guerra, conforme descritos pelas mulheres quando jovens, ou
seus complexos relacionamentos com homens quando adultas; e estórias
compartilhadas entre o segurança e o vendedor ambulante sobre crianças e
bêbados caindo dos andares mais altos do hotel para a morte. Todas essas
iguras, especialmente as mulheres, são representadas através de closes
que acentuam seu charme inocente e capacidade de superar diiculdades.
Tais cenas são intercaladas por sequências de tomadas de plano geral e
médio retratando variados aspectos da vida nesse microcosmo dos pobres
de Moçambique, por exemplo: crianças assistindo a um ilme de ação de
Hong Kong numa tela esverdeada de TV, um grupo barulhento de crianças
que pulam de alegria com a ideia de fazerem suas necessidades na praia,
mães alimentando seus ilhos, cultos religiosos muçulmanos e pentecostais,
baldes de dejetos humanos sendo jogados das sacadas, um professor de
geograia (com o nome improvável, porém simbólico, de professor Camões)
trabalhando em seu computador enquanto se candidata a um cargo universitário, momentos de afeto entre mães e ilhos, jovens praticando golpes de
caratê, mulheres e homens cozinhando, mulheres fazendo cafunés nos cabelos umas das outras, adultos trocando gracejos divertidos e sugestivamente sexuais, pessoas buscando água na piscina, tomadas de pessoas com
membros amputados como resultado da guerra, e imagens de ratos correndo
pelas paredes.
Ocasionalmente, o ponto de vista adotado é o dos ex-funcionários do hotel, mas a perspectiva que predomina é a do diretor, o qual emprega um olhar de
empatia um pouco voyeurístico sem evocar pena nos espectadores face aos
sujeitos representados, mas exigindo um reconhecimento de sua humanidade.
32
33
Tal estratégia de representação é acentuada pelo amplo uso de closes dos sujeitos falantes e a estética chiaroscuro, em que a intensa luz dos espaços exteriores contrasta de forma marcante com a escuridão dos interiores, criando um
efeito-tableau, certa estetização da pobreza que lembra o diretor português
Pedro Costa e seus ilmes com enfoque nas margens sociais de Lisboa (por
exemplo O quarto de Vanda [2004], Juventude em marcha [2006] ou Cavalo
dinheiro [2014]). A estetização da pobreza no caso de Azevedo é, contudo,
amenizada por numerosas referências escatológicas, verbais ou visuais, feitas
ao longo do ilme. Portanto, ao invés de simplesmente “embelezar” a sua representação dos pobres, Azevedo opta por tornar palpável tanto a beleza como a
feiura, de forma explícita ou implícita, no quadro das forças biopolíticas, infraestruturais, históricas e econômicas em funcionamento que moldam a “vida
nua” (conforme postulado pelo ilósofo Giorgio Agamben)16 que os espectadores testemunham no Grande Hotel. Da mesma forma, em Hóspedes da noite não
há narração em off (semelhante à maioria dos documentários de Azevedo) e o
ilme apenas fornece informações básicas na forma de letreiros sobre os sujeitos falantes quando eles aparecem pela primeira vez. Todas as informações
adicionais sobre suas vidas; a história do hotel, assim como suas condições de
moradia são apresentadas por meio de conversas quase sem nenhuma roteirização entre os sujeitos (como em O acampamento de desminagem e Night
Stop), ao mesmo tempo em que proporcionam um amplo panorama sobre a vida
urbana de Moçambique (semelhante ao curta de icção O grande bazar [2006]).
Em última análise, Azevedo apresenta o Grande Hotel como uma metáfora
viva da espacialização do tempo; neste caso, as múltiplas temporalidades e
processos históricos convergindo num único local (os anos inais do colonialismo, a guerra civil da pós-Independência, o relativamente estável, embora
16
Agamben postula a noção de “vida nua” como análoga ao corpo, assim como à vida
biológica e suas necessidades – todos eles fatores decisivos na esfera política.
(Giorgio Agamben, Homo Sacer and Bare Life. Palo Alto: Stanford University Press,
1998, p. 119-135).
incerto, presente neoliberal) e seus efeitos nos segmentos mais vulneráveis e
marginalizados da população moçambicana. Embora denunciando de forma
implícita a injustiça social reservada aos sujeitos representados, o ilme não
os retrata necessariamente como vítimas sem esperança.
Azevedo permanece iel ao imperativo ético de representar o povo de
Moçambique e proporcionar agenciamento histórico aos pobres das zonas
rurais, evidenciado por esse capítulo extraordinário na história do cinema africano que ocorreu em Moçambique durante os primeiros anos de Independência.
Acontecimentos cataclísmicos levaram à destruição da utopia de uma sociedade igualitária, sob a liderança de um governo de partido único nacionalista
e marxista-leninista, causando uma ruptura no paradigma socioeconômico e
político hegemônico, enquanto que o cinema se adaptou aos tempos em mudança. Licínio Azevedo tem dedicado sua arte cinematográica a documentar
as consequências do fracasso violento da utopia; em especial, o preço cobrado dos sobreviventes que hoje em dia constroem um futuro incerto num país
que se encontra precariamente reconciliado.
FERNANDO ARENAS é professor de Estudos Culturais Lusófonos nos departamentos de Estudos Afro-Americanos e Africanos e Línguas e Literaturas Românicas na University of Michigan. é o autor de Lusophone África: Beyond Independence (University of Minnesota Press, 2011), cuja versão traduzida e atualizada
em português será publicada pela Edusp em 2017; Utopias of Otherness: Nationhood and Subjectivity in Portugal and Brazil (University of Minnesota Press,
2003); e co-editor, junto com Susan C. Quinlan, de Lusosex: Sexuality and Gender
in the Portuguese-Speaking World (University of Minnesota Press, 2002).
JÁ ouviu falar
de internacionalismo? as
amizades
socialistas
do cinema
moçambicano
Por ros gray
Este texto foi originalmente publicado em Lars Kristensen (org.), Postcommunist Film –
Russia, Eastern Europe and World Culture: Moving Images of Postcommunism. Abingdon:
Routledge, 2012, pp. 53-74.
36
e
ste texto explora a noção de “amizade socialista” como um
fenômeno transnacional que conecta diversos ilmes e culturas cinematográicas, e traz à tona experiências marginalizadas do socialismo do século XX que expandem o conceito de
pós-comunismo. O ensaio traça algumas das conexões de
solidariedade manifestadas no cinema entre vários países socialistas e as
lutas de libertação da África lusófona, com um foco particular na cultura do
cinema construída depois da Independência, em 1975, no Moçambique revolucionário. No caso de Moçambique, a dependência da Frente de Libertação
de Moçambique (Frelimo) em relação à União Soviética foi formalmente reconhecida no “Tratado de Amizade” assinado entre os dois países em 1977.
Contudo, o Instituto Nacional de Cinema (INC) também se beneiciou do
apoio dado durante a luta armada por outros países socialistas não alinhados do bloco do Leste, e essas conexões de solidariedade continuaram após
a Independência. Envolvendo principalmente assistência técnica e pedagógica, essas interconexões formaram “comunidades afetivas”, produzindo
uma geograia daquilo que icou conhecido como “amizade socialista”, que
era bem mais conlituosa e multifacetada – uma geograia relacional desigual. O termo “comunidade afetiva” é usado por Leela Gandhi para descrever
indivíduos e grupos associados a estilos de vida marginalizados – homossexualidade, vegetarianismo, espiritualismo e assim por diante – que renunciaram aos privilégios do imperialismo britânico para eleger a ainidade com
as vítimas da expansão colonial. Adapto essa ideia para descrever os laços
emocionais forjados através de conexões de solidariedade que vão além da
identiicação ideológica. A própria noção de “amizade socialista” pode, assim, se estender para descrever uma comunidade afetiva além da estrutura
do Estado-nação revolucionário, na qual a amizade funcionou como um recurso para a colaboração transnacional anticapitalista.
A questão do legado dessas amizades socialistas é levantada no documentário Rostov-Luanda (1997), de Abderrahmane Sissako, cineasta nascido
37
na Mauritânia e criado no Mali, que foi à União Soviética para estudar na escola de cinema VGIK, em 1982. Rostov-Luanda acompanha a busca do cineasta
por Afonso Baribanga, um amigo de Angola que Sissako conheceu enquanto
aprendia russo em Rostov. Sissako descreve como a educação e a assistência
cultural que a União Soviética ofereceu a estudantes africanos, num gesto de
amizade socialista, também facilitou as ailiações pan-africanas à medida que
indivíduos de diferentes países de todo o continente se encontravam na Rússia
e compartilhavam as esperanças pela libertação da África. A montagem do ilme cria uma geograia afetiva entre diversas paisagens: o deserto em torno de
Kiffa, na Mauritânia, que é o ponto de partida do cineasta; cenas de neve na
Rússia, de onde sua ex-professora de russo, Natalia Lvovna, que fala afetuosamente com ele pelo telefone, envia uma foto de turma; e a paisagem tropical,
destruída pela guerra, de Angola, onde ele conduz sua busca. Ainda assim, a
busca pelo amigo se torna quase secundária em relação aos testemunhos de
experiências individuais da descolonização coletados, o legado cultural especíico do colonialismo português em Angola, e os laços afetivos que mantêm as
pessoas lá, apesar da longa Guerra Civil. O envolvimento político é descrito
como muito mais relacionado às conexões pessoais com determinados amigos
e amantes do que a um compromisso ideológico. Diante da fotograia de turma
de Sissako, as pessoas que ele entrevista costumam icar confusas: “Por que
você está procurando esse homem?” e “Eu também fui à União Soviética – poderia ser eu nessa foto”. Eventualmente, o cineasta encontra um endereço de
Baribanga em Berlim. Nós o vemos parado à porta, tocando a campainha. A
porta se abre, ele entra e o ilme termina. Sissako deixa a questão do que signiicam essas “amizades socialistas” radicalmente aberta.
O signiicado de tais amizades socialistas foi em grande parte ignorado na
teorização da condição pós-comunista. De fato, uma espécie de impasse conceitual foi gerado não só pelo fato de que os países africanos que eram formalmente socialistas são tanto pós-comunistas quanto pós-coloniais, mas também porque a União Soviética teve uma relação imperialista com outros Estados
38
39
não capitalistas. Josephine Woll é uma das poucas acadêmicas do cinema soviético a considerar esta relação entre a União Soviética e o cinema africano.
Como descreve Woll, no início dos anos 1960, a União Soviética começou a
oferecer algumas oportunidades para africanos de tendências esquerdistas
estudarem cinema. Concentrando-se nos cineastas francófonos Ousmane
Sembène, Souleymane Cissé e Abderrahmane Sissako, Woll argumenta que a
União Soviética buscou estender sua inluência na África através da pedagogia
do cinema, entre outras áreas.1 Embora Woll dê atenção às formas pelas quais
o desenvolvimento da produção cinematográica na África foi descrito na União
Soviética, sua análise dos ilmes desses cineastas em termos de inluência soviética dá pouco espaço para reconhecer como cada um deles tinha relações
especíicas e complexas com os locais nos quais izeram seus ilmes, e que
havia outras forças transnacionais e estrangeiras em relação às quais eles se
deiniam, às vezes em oposição – particularmente a política cultural do governo
francês de estender sua inluência por todo o continente africano através do
apoio inanceiro à produção cinematográica. Uma perspectiva lusófona também coloca em foco até que ponto o a produção cinematográica na África no
inal dos anos 1960 e 1970 foi percebida como uma atividade inerentemente
política, normalmente conectada com movimentos políticos especíicos.
Além de indivíduos africanos francófonos, houve outros cujo convite
para estudar na União Soviética se deu por causa de conexões com organizações políticas singulares. Sarah Maldoror, por exemplo, uma escritora de Guadalupe que era associada ao movimento Negritude em Paris, foi convidada a
estudar em Moscou por causa de sua ailiação ao MPLA, que, entre os vários
movimentos pela Independência em Angola, foi o que conseguiu ganhar a coniança da União Soviética (seu parceiro, Mário Pinto de Andrade, foi um dos
líderes do MPLA durante a luta armada, e depois da Independência atuou
como Ministro da Cultura em Guiné-Bissau).2 Contudo, a União Soviética não
foi o único país socialista a ajudar a produção cinematográica liberacionista
africana. Equipes de ilmagem da Iugoslávia e Cuba, bem como delegações de
municipalidades comunistas como Reggio Emilia, na Itália, e cineastas esquerdistas do Leste Europeu, da América do Norte e do Sul, vieram a produzir
documentários sobre as lutas armadas lusófonas africanas. Esse arquivo disperso é testemunha de um mapa mais complexo de ailiação socialista e não
alinhamento. Em 1967, Cabral selecionou quatro jovens estudantes – Flora
Gomes, Sana N’Hada, Joseina Lopes Crato e José Bolama Cobuma – para ir
a Cuba estudar cinema no ICAIC. Eles icaram em Cuba até 1972, quando retornaram à Guiné-Bissau e seguiram para o Senegal a im de continuar os estudos. Isso sinalizou um comprometimento contínuo de Cuba com a assistência técnica e pedagógica pela causa da libertação africana; a parte cultural de
uma grande intervenção militar feita com frequência à frente da União Soviética e contra seus desejos. De fato, cineastas moçambicanos como João Ribeiro e Orlando Mesquita estudaram cinema em Cuba até os anos 1990.
Apesar dessas condições de dependência, a “Revolução Africana” foi
teorizada como um movimento que permitiria à África produzir formas locais
especíicas de modernidade, que seriam os meios através de que os povos africanos escapariam dos regimes colonialistas de conhecimento, nos quais eram
lançados a um passado perpétuo. A revolução permitiria que eles reentrassem
no presente global e contribuíssem com a cultura universal da humanidade,
desenvolvendo os melhores aspectos de suas culturas indígenas em diálogo
2
1
Josephine Woll, “The Russian Connection: Soviet Cinema and the Cinema of Francophone
Africa”, in Françoise Pfaff (org.), Focus on African Films. Bloomington/ Indianapolis:
Indiana University Press, 2004, pp. 223-40.
Sembène e Maldoror estudaram com Mark Donskoy no Gorky Studio, um instituto
dedicado a fazer ilmes para crianças. Este tipo de treinamento foi talvez considerado
apropriado por causa do imperativo para usar a imagem em movimento para propósitos de
educação, embora, como Jeremy Hicks sugeriu, tenha tido consequências estilísticas: os
ilmes de Sembène e Maldoror também compartilham com Donskoy uma certa estética de
naturalismo em sua atenção à isicalidade do corpo e rituais coletivos.
40
41
transnacional. Essa ambição internacionalista da Revolução Africana tem uma
relação desconfortável com o presente e com a forma pela qual o pós-comunismo foi teorizado quase exclusivamente em relação à experiência europeia – ou,
para ser mais precisa, uma ideia do experimento europeu com o Socialismo
Estatal que apaga um tipo de internacionalismo xenofílico, que existiu em certos momentos dentro de regimes totalitários e estava alinhado aos apoiadores
esquerdistas dos movimentos de libertação na Europa.
Por exemplo, ao deinir pós-comunismo como uma categoria que não pode
ser compreendida pelos estudos culturais ocidentais, Boris Groys não trata de
como a teoria pós-colonial, que muito animou a disciplina durante os anos 1980 e
1990, era em parte uma resposta ao colapso das esperanças atribuídas às políticas de libertação africana do inal dos anos 1960 e 1970, que buscaram produzir
formas de futuridade tanto especiicamente africanas, quanto socialistas. Groys
argumenta que os estudos culturais ocidentais têm diiculdades fundamentais em
descrever e teorizar o Leste Europeu pós-comunista porque a pressuposição da
disciplina é celebrar a diversidade, o que, na visão de Groys, não passa de uma
máscara colorida para a comodiicação da diferença pelas forças do capitalismo.
Essa tendência, de acordo com Groys, coincide com a demanda das forças do
mercado global contemporâneo de que o mundo pós-comunista redescubra, redeina e manifeste sua suposta identidade cultural a partir de seus passados précomunistas imaginados, preferencialmente folclóricos e etnicamente homogêneos. Os estudos culturais são, assim, conceitualmente insuicientes para
entender a extensão do radicalismo da ruptura do socialismo do século XX com o
passado e a forma pela qual os movimentos estéticos que ele produziu já se posicionavam como parte de um futuro moderno e universal. No cerne do argumento
de Groys está o modelo de universalismo leninista-stalinista, deinido pela “rejeição da diversidade e da diferença em nome de uma causa comum”:
tentes, que poderia ser abraçado por todo mundo... Esta noção de universalidade estava ligada
ao conceito de mudança interior... de transição de uma velha identidade para uma nova.3
Em seu foco pós-modernista em vez de pós-colonial, e na suposta cumplicidade entre o “discurso da diversidade cultural e da diversiicação dos mercados
culturais”, o argumento habilidoso de Groys, na verdade, ignora vários pontos que
são cruciais para uma compreensão mais internacionalista do “pós-comunismo”.
A emergência dos estudos culturais ocidentais como uma disciplina coincidiu não
só com “a emergência da informação, da mídia, e mercados de entretenimento
globalizados... e a expansão desses mercados nos anos 1980 e 1990”.4 Ela também
coincidiu e airmou sua ailiação com a ascensão signiicativa de movimentos de
libertação não alinhados durante os anos 1960 e 1970. De sua fundação na Conferência de Bandung, em 1955, o movimento não alinhado repetidamente desaiou
a hegemonia da União Soviética. Contudo, do inal dos anos 1970 até o início dos
anos 1990, um governo revolucionário após o outro chegou ao im, quer através de
uma derrubada violenta (Chile, 1973), quer através de novos governos que se
transformaram em regimes opressivos, ou de uma longa guerra civil (Argélia,
Guiné-Bissau, Angola, Moçambique). Essa derrota foi uma frustração profunda
para a esquerda internacionalmente. Para entender a profundidade desse mal-estar, é necessário considerar que os movimentos de libertação não alinhados ofereceram uma noção de universalismo e uma ideia do papel da cultura na transformação social que estava baseada na cooperação internacional.
Por todo o continente africano, nos anos 1960, a produção cinematográica começou a ser compreendida como “um ato de cultura” que fazia parte
de uma luta maior anticapitalista pela libertação.5 Crucialmente, a noção de
Boris Groys, Art Power. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2008, p. 152.
Ibidem, p. 150.
5
O ano de 1969 teve uma explosão de eventos culturais e inaugurações: o festival de
cinema FESPACO aconteceu pela primeira vez em Uagadugu, a Féderation Pan-Africaine de
Cineastes (FEPACI) foi formada, e Argel realizou o Primeiro Festival Cultural Pan-Africano.
3
4
ser universal era reinventar uma ideia ou um projeto artístico que poderia unir pessoas de diferentes origens, que poderia transcender a diversidade de suas identidades culturais já exis-
42
43
cultura desenvolvida por Cabral, Andrade e outros, que era a extrapolação
teórica da experiência da luta armada, insistia no efeito transformador de participar de uma revolução. Cabral airmou que a luta pela libertação cria um
tipo diferente de conhecimento do mundo, diverso daquele do imperialismo
capitalista. é uma “réplica à acumulação de informação e conhecimentos etnográicos” que agrupa pessoas de acordo com categorias supostamente
eternas de raça, casta e etnicidade, e que se tornou alvo de atenção daqueles
que estudam sociedades chamadas “primitivas” ou “em desenvolvimento”. Em
vez disso, “a luta traz a necessidade de compreender as características de
sociedades em luta e mudança radical”.6 A revolução se transforma no meio
pelo qual as pessoas deinem de forma coletiva um novo tipo de modernidade
que é especiicamente localizado e está em diálogo transnacional como uma
contribuição para o mundo.
Em 1973, foi realizado em Argel um encontro para “estabelecer a estrutura de uma organização para cineastas do Terceiro Mundo”.7 Cineastas que
tinham estudado na União Soviética e em Cuba, incluindo Ousmane Sembène, Flora Gomes, Sarah Maldoror e Sana N’Hada, estavam entre os que discutiram como um cinema africano liberto poderia ser construído. Os cineastas envolvidos compartilhavam com Cabral e Frantz Fanon a convicção de
que, como Sembène airma em Homem é cultura, nas “zonas tempestuosas”
da guerra revolucionária, “a única forma de expressão artística é a luta armada: a busca absoluta pela independência; a recuperação do próprio patrimônio cultural e também sua defesa”.8 O que era claramente possível de se
pensar naquela época era a ideia de que o Estado-nação poderia fornecer a
Amílcar Cabral, A arma da teoria: unidade e luta 1. Lisboa: Seara Nova/ S.A.R.L., 1976,
pp. 235-36.
7
“Resolution of the Third World Film-Makers Meeting”, Argel, 1973. Texto reproduzido
em Teshome Gabriel, Third Cinema in the Third World: The Aesthetics of Liberation.
Ann Arbor: UMI Research Press, 1982, pp. 103-7.
8
Ousmane Sembène, Man is Culture, The Sixth Annual Wolff Memorial Lecture.
Bloomington/ Indianapolis: Indiana University Press, 5 mar. 1975, p. 2.
6
estrutura para construir a produção cinematográica, a distribuição e a exibição que serviria à Revolução Africana. As indústrias cinematográicas nacionalizadas dos estados socialistas formariam uma rede de cinema autônoma em relação ao Ocidente capitalista, e isso atuaria na “frente cultural”
contra o imperialismo.
Entre todos os Estados-nação que podem ter aspirado a esta visão do
que o cinema poderia ser, em nenhum outro lugar ela foi mais completamente realizada do que em Moçambique. Em 1975, Moçambique conquistou a
independência de Portugal depois de uma longa luta armada liderada pela
Frelimo, um movimento de libertação que em 1969 havia abraçado o marxismo-leninismo. Um dos primeiros atos culturais da Frelimo foi estabelecer o INC,
em 1976. A missão do INC era “fornecer ao povo uma imagem do povo”. Por
todo o território cujas fronteiras estavam deinidas pela conquista colonial,
com uma população dividida linguística e culturalmente, cuja grande maioria
não tinha experiência com a imagem em movimento, a tarefa do INC era produzir e distribuir um novo tipo de cinema liberto que apresentaria ao povo
moçambicano uma imagem dele próprio. Este momento foi uma instância de
um porvir revolucionário no qual o cinema foi privilegiado como o meio para
dar forma visual e sônica a um novo eleitorado político. Dessa forma, ele
reletia as revoluções socialistas anteriores do início do século XX, na Rússia, China, Cuba e outros lugares, onde o cinema foi reconhecido como um
agente de revolução por sua capacidade de mobilizar, educar e informar em
situações de grande subdesenvolvimento e analfabetismo.
No início dos anos 1960, guerras de independência aconteceram nas
colônias africanas portuguesas de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique,
após uma série de massacres por parte do Exército português que convenceram o Movimento do Povo pela Libertação de Angola (MPLA), o Partido
Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e a Frelimo de
que a luta armada era a única forma de derrubar um regime fascista-colonial recalcitrante determinado a se agarrar a seu império a qualquer cus-
44
45
to.9 Durante os anos 1960, o otimismo inicial que havia acompanhado a independência das colônias britânicas e francesas deu lugar a uma
consciência aguda da realidade do neocolonialismo, e isso levou a uma mudança militante nas lutas de libertação que aconteciam por todo o continente. No clima político polarizado da Guerra Fria, MPLA, PAIGC e Frelimo
passaram a depender cada vez mais do apoio que recebiam de países socialistas como a União Soviética, China e Cuba, que lhes forneciam armas,
oportunidades de treinamento militar e outras formas de educação numa
época em que os países da Otan abasteciam o regime fascista de Portugal
com armas que eram usadas para atacar os povos colonizados. Líderes de
movimentos de libertação como Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Eduardo
Mondlane, alguns dos quais se conheceram estudando em Portugal, eram
membros de uma minúscula elite de africanos que tinha conseguido acesso
à educação superior sob o governo português. A grande maioria, contudo,
não tinha oportunidade nem para a educação básica.
Em comparação com o treinamento militar, técnico ou médico, fazer
cinema estava bem abaixo na lista de prioridades. Mas o cinema tinha o potencial de combater a propaganda colonial, contando ao resto do mundo sobre as novas sociedades que começavam a ser construídas nas zonas libe-
9
Em 1959, um ataque de trabalhadores portuários no porto de Pijiguiti em Bissau
foi violentamente reprimido pelo Exército português, que matou mais de cinquenta
manifestantes. Em 1960, cerca de quinhentos manifestantes foram mortos em Mueda,
no norte de Moçambique; e em 1961, camponeses que trabalhavam para a multinacional
Cotonang na região da Baixa de Cassanje se revoltaram. O Exército português respondeu
bombardeando vilarejos na área, matando até 7 mil pessoas. O Movimento Popular pela
Libertação de Angola (MPLA) foi fundado em 1961 e liderado por Agostinho Neto, que se
tornou presidente após a Independência em 1975. O Partido Africano pela Independência
da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) foi estabelecido em 1963 e liderado por
Amílcar Cabral até seu assassinato em 1973, um ano antes do PAIGC ser reconhecido
internacionalmente por ter conquistado a Independência; ele foi sucedido por seu irmão
Luis Cabral. A Frente para Libertação de Moçambique (Frelimo) foi fundada em 1962. Ela
foi liderada por Eduardo Mondlane até sua morte em 1969, e depois por Samora Machel,
que se tornou presidente após a Independência, em 1975.
radas. O cinema se tornou outra área na qual os movimentos de libertação
lusófonos, sem a habilidade, o equipamento e os recursos para fazer os próprios ilmes, acolhiam a ajuda estrangeira. Equipes vieram do mundo inteiro
para produzir ilmes sobre as lutas armadas, envolvendo algumas iguraschave do cinema militante internacional. Com frequência, os noticiários ou
documentários produzidos por essas equipes de cinema traduziam as lutas
africanas em termos que lembravam as batalhas revolucionárias de seus
próprios países contra o imperialismo estrangeiro e formas de feudalismo
que persistiram no século XX.
Embora Guiné-Bissau e Angola também tenham estabelecido novas
instituições dedicadas ao cinema após a Independência, Moçambique foi o
país onde, por alguns breves anos, este plano começou a ser realizado.
Quando a Independência inalmente chegou, os ilmes feitos por cineastas
estrangeiros sobre a luta armada foram incorporados ao arquivo nacional e
usados como recursos para cultivar novas narrativas de identidade nacional
nascidas dessa luta. Os ilmes feitos com a Frelimo raramente se concentravam no combate – apenas A luta continua (1971), dirigido pelo norte-americano Robert Van Lierop, tem cenas ao vivo de batalha porque a equipe de
ilmagem foi pega de surpresa por um ataque. Em vez disso, os ilmes tendem a enfatizar a construção de uma nova sociedade mostrando o treinamento, os cuidados médicos e a educação nas zonas libertadas. As zonas
libertadas tinham, assim, uma importância além do signiicado militar. Era
nelas que as pessoas envolvidas na luta armada começavam a se organizar
coletivamente como precursoras do novo tipo de sociedade que esperavam
construir após a Independência. Esta era a mensagem que os movimentos
de independência queriam projetar para o resto do mundo.
A realidade do combate signiicava que havia limites para os tipos de
ilmes que podiam ser produzidos. A cineasta britânica Margaret Dickinson,
que planejava passar longos períodos com comunidades para ilmar como a
luta havia transformado suas vidas, descobriu que essa abordagem, uma espécie
46
47
de etnograia em profundidade da mudança radical, era impossível.10 Dickinson,
na verdade, estivera envolvida com a luta armada da Frelimo desde meados
dos anos 1960, quando foi recrutada por Eduardo Mondlane para trabalhar na
base da Frelimo em Nashingwea, na Tanzânia. Ao voltar para a Inglaterra, ela
começou a levantar dinheiro para o ilme e inalmente recebeu o apoio inanceiro de Charles Cooper, um membro do Partido Comunista Britânico que era
dono da Comtemporary Films, uma importante distribuidora internacional de
ilmes de arte e documentários, e que estava na posição de garantir alguma
distribuição. Behind the Lines (1971) inclui imagens dos campos da Frelimo e
entrevistas com militantes sobre seus papéis como soldados, professores e
intérpretes, através das quais eles descrevem suas trajetórias e contam como
a participação na luta transformou suas vidas. O momento-chave do ilme,
contudo, em termos de articulação da nova cultura revolucionária que emergia nas zonas liberadas, mostra os quadros da Frelimo ensinando uns aos outros as danças e músicas das diferentes regiões de Moçambique. A luta armada, segundo propõe o ilme, é a alquimia que funde uma nova cultura a partir
dos melhores elementos dos modos indígenas de vida e formas de expressão,
uma cultura nacional que promete eliminar as divisões étnicas e as desigualdades sociais após a Independência.
Logo após a Independência, um Serviço Nacional de Cinema foi estabelecido para que as autoridades pudessem manter os cinemas nas cidades funcionando em meio ao caos que se seguiu à repentina partida em massa da
população portuguesa. Entre os primeiros ilmes lançados pelo Serviço estavam vários realizados durante a luta armada, como Nachingwea, do iugoslavo
Dragutin Popovic, e Do Rovuma ao Maputo, ambos lançados em 1975.
Nachingwea usa uma zona libertada como metáfora para o próprio processo
de descolonização, tratando deste tema no momento da Independência, quando o movimento de libertação se consolidava como um governo nacional. Ele
representa a história do movimento de libertação através da história do campo
de Nachingwea da Frelimo, na Tanzânia, cujo liderança era Julius Nyerere,
seguidor de políticas informadas pela ilosoia “Ujamaa” de socialismo africano. Esse pedaço de terra concedido pelo governo da Tanzânia começa como
uma área árida que é transformada pelos militantes da Frelimo numa zona
produtiva – tendas improvisadas se transformam em casas, oicinas e escolas
feitas de tijolos e cimento. O cultivo nos campos acontece paralelamente ao
despertar da consciência política através da educação e do treinamento militar.
10
Nachingwea se torna um lugar onde as pessoas realizam seu potencial, sugerindo que a Frelimo estava pronta para fazer o mesmo em todo o Moçambique.
Foi durante a luta armada que a Frelimo começou a promover a noção do
“Novo Homem”. José Luis Cabaço argumentou que essa igura foi desenvolvida como uma resposta à ansiedade de que os quadros da Frelimo na Tanzânia
pudessem se distrair por causa dos confortos relativos e das tentações de Dar
es Salaam.11 O “Novo Homem” era um modelo de comportamento militante que
compreendia a disciplina, a produtividade e a integridade moral representadas
Dickinson tinha sido recrutada com sua amiga Polly Gastar por Eduardo Mondlane no
Cairo, e ambas icaram no centro de operações da Frelimo na Tanzânia durante a luta
armada. A Frelimo tinha material de ilmagem que esperava transformar em ilme, mas
Dickinson (que tinha trabalhado como montadora antes de começar a viajar pela África)
achou o material e as instalações totalmente inadequados. Em vez disso, enquanto
estava na Tanzânia, ela trabalhou com Sergio Vieira para escrever o livro de Mondlane
The Struggle for Mozambique, que foi publicado primeiro em inglês. As duas britânicas
voltaram então para Londres, onde montaram uma organização ailiada ao Movimento
Anti-Apartheid para angariar apoio à luta pela libertação. O grupo era intencionalmente
pequeno e os envolvidos decidiram conscientemente não se transformar numa
organização que buscaria muitos membros para evitar o risco de ser sequestrado por
outras facções dentro do movimento nacionalista, uma luta que aconteceu dentro da
própria Frelimo depois do assassinato de Mondlane, na qual o campo marxista-leninista
conseguiu ascender e Machel foi declarado líder. Entrevista com Margaret Dickinson,
Londres, 13 de outubro de 2005, in Ros Gray, Ambitions of Cinema: Revolution, Event,
Screen, tese de doutorado, University of London, 2007, apêndice.
11
José Luís Cabaço, “The New Man (Brief Itinary of a Project)”, in António Sopa (org.),
Samora: Man of the People. Maputo: Maguezo Editores, 2001, p. 105.
48
49
pelo novo líder da Frelimo, Samora Machel. Do Rovuma ao Maputo acompanha a jornada de um mês de Machel do rio Romuva, que corre ao longo da
fronteira com a Tanzânia, até a capital Maputo, no sul, uma jornada que culminou com a proclamação da Independência em 25 de junho. Registrando a recepção de Machel pelas multidões que se aglomeravam para vê-lo de passagem, a jornada passa a signiicar a simbiose da Frelimo com os desejos do
povo. Esses ilmes de Popovic eram particularmente apropriados para o Partido usar na mobilização. Contudo, no caótico momento da Independência, à
medida que cineastas de todo o mundo viajaram ao país para testemunhar a
revolução, a resistência de Moçambique ao colonialismo foi tratada de várias
maneiras, algumas delas mais experimentais e expressivas.
O ilme 25 (1975) dos brasileiros José Celso Martinez Corrêa e Celso Luccas,
que também foi um dos primeiros produzidos pelo Serviço, ilustra esse ponto.
Os dois faziam parte de um grupo teatral brasileiro muito inluenciado pela pedagogia radical de Paulo Freire e pelo Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Eles
deixaram o Brasil, então sob a ditadura militar, para ir a Portugal na época da
Revolução dos Cravos, antes de viajar a Moçambique. 25 é sobre a Independência moçambicana, mas também expressa uma imaginação política global sugestiva de que esta luta especíica faz parte de uma cultura de revolução que ultrapassa fronteiras e tem quase uma dimensão mística.12 O ilme começa e termina
com imagens de um quadro negro em uma das zonas libertadas. Nesse quadro
negro, uma mulher soletra “re-vo-lu-ção”. Esse alfabeto da revolução é a nova
língua que os povos colonizados estão aprendendo para se libertarem.
O ilme 25 combina imagens das zonas libertadas, celebrações da Independência, encenações de movimentos de resistência anticolonial na Ilha de
12
O título se refere à data de fundação da Frelimo; o “Dia da Resistência” que começou a
luta armada; o dia da Revolução dos Cravos que derrubou o fascismo em Portugal, e 25 de
junho de 1975, o dia em que Moçambique se tornou independente. 25 de junho de 1962,
25 de setembro de 1964, 25 de abril de 1974.
Moçambique, e sequências simbólicas. A trilha sonora é feita de fragmentos
de discursos de Samora Machel, Martin Luther King e outros, com músicas
que evocam a luta revolucionária. Alusões ao conlito racial nos Estados Unidos são feitas por meio de cenas de protestos pelos direitos civis, manifestações dos Panteras Negras e linchamentos da Ku Klux Klan, sobrepostas pelo
som de “Strange Fruit”, de Billie Holiday. Num ilme sem estrutura narrativa e
que dura, na sua versão mais longa, mais de três horas, essas imagens e sons
sugerem uma cultura comum da luta revolucionária, libertação e consciência
política que ultrapassa o tempo e o espaço.
A montagem eufórica e inventiva do ilme é evidenciada na parte que mostra
um discurso de Samora Machel costurado com imagens e sons da Makwayela,
uma música e dança com origem no sul de Moçambique, que se desenvolveu
como uma forma de resistência nas minas da África do Sul e foi reinventada
para celebrar a independência e o internacionalismo. Durante essa sequência,
Machel é questionado sobre a relação entre o povo de Moçambique e o povo de
Portugal. Quando ele esclarece que a linha da Frelimo é de luta contra o imperialismo fascista e não contra os camponeses e operários oprimidos pelo regime, o
ilme corta por um instante para uma fotograia de uma família de camponeses
portugueses. No meio dessa expressão eufórica e pungente da força cultural
moçambicana, 25 mostra como as lutas armadas na África, ao precipitar a Revolução dos Cravos, também libertaram o povo de Portugal.
Signiicativamente, contudo, parece que o Partido não sabia muito o que
fazer com 25. Embora ele tenha sido exibido internacionalmente, o ilme rapidamente passou à obscuridade em Moçambique. Em vez disso, Do Rovuma ao
Maputo, que é bem mais ortodoxo, tornou-se o ilme mais amplamente distribuído no país através dos cinemas móveis. 25 é excessivo em duração e estilo,
e esta exuberância pode ser entendida como uma expressão da liberdade, livre das demandas tanto do comercialismo, quanto da propaganda. Mas há
outros aspectos que militam contra sua apropriação pelo Partido. Em uma
sequência, que Pedro Pimenta enfatizou na exibição do ilme na cidade de
50
51
Maputo, em 2005, 25 passa da celebração estatal da Independência em
Maputo, com bandeiras erguidas, saudações militares e políticos se abraçando, para uma cena na praia onde as pessoas se reúnem para celebrar a Independência de outra forma. Uma multidão forma um círculo em volta de uma
fogueira e, quando o sol se levanta e as ondas quebram na praia, as pessoas
dançam e cantam num diferente tipo de ritual. O ilme se recusa, assim, a fundir o Partido com “o povo”, aqui mostrado como uma multidão mais misteriosa
de corpos que, ao que parece, estão em outra parte, com seus próprios modos
de expressão que não podem ser totalmente representados pelos símbolos e
pela retórica da política oicial.
No início da luta, a Frelimo percebeu a importância de produzir informação e propaganda para convencer os moçambicanos a apoiarem a insurreição
armada, bem como para angariar apoio no exterior. Comunidades de camponeses dispersas tinham de ser conscientizadas de como suas diiculdades
eram ainda maiores por causa da exploração colonial, e persuadidas de que
lutar pela Independência poderia mudar suas vidas. As populações rurais divididas pela cultura e pela língua, com pouca referência fora de seus mundos
imediatos, não tinham um compromisso nacionalista inerente com uma noção
abstrata de “Independência”.13 Em 1975, a Frelimo se convenceu de que o cinema poderia ensinar ao povo o signiicado da Independência, o que representava ser moçambicano, e poderia mostrar como as necessidades e energias dos
camponeses e trabalhadores ditariam a Revolução.
13
Revendo este período, as Resoluções da primeira Conferência de Informação e
Propaganda da Frelimo em 1975 concluem que, durante a luta: “nas zonas onde foi
possível realizar uma intensa atividade de informação e propaganda antes do início da
luta armada, [essas campanhas] tiveram sucesso imediato. Ao contrário, nos locais onde
isso não foi possível, os soldados costumavam enfrentar indiferença e até hostilidade por
parte das populações que há séculos tinham sido submetidas a uma intensa propaganda
colonialista”. Ver Frelimo, “Mensagem do Departamento de Informação e Propaganda
de Cabo Delgado à Conferência Nacional do Departamento de Informação e Propaganda
da Frelimo”, in Documentos da Conferência Nacional do Departamento de Informação e
Propaganda da Frelimo, Maconima, 26-30 de novembro de 1975, p. 10.
A primeira Conferência Nacional do Departamento de Informação e Propaganda da Frelimo, que aconteceu em Macomia entre 16 e 30 de novembro
de 1975, estabeleceu os objetivos do Partido para o cinema. Embora nesse
estágio o cinema fosse visto como secundário em eicácia em relação ao rádio
em sua capacidade para atingir “as massas”, a “Resolução sobre cinema, livros e discos” enfatiza três frentes através das quais a produção cinematográica e a distribuição seriam transformadas. Primeiro, ela condenava “a projeção de ilmes baseados nos temas que negavam as realidades dos
moçambicanos, ou seja, a exibição de ilmes pornográicos, de violência gratuita ou de ideologias marcadamente reacionárias”.14 A Frelimo anunciou que
nacionalizaria todos os canais de distribuição em Moçambique e estabeleceria uma Comissão de Exame e Classiicação de Espetáculos para controlar a
exibição e deinir “critérios rigorosos” para a classiicação dos ilmes.
Em segundo lugar, ela airmava a necessidade de criar um “cinema verdadeiramente moçambicano”, recomendando a produção de ilmes sobre a
luta armada, o colonialismo e “as várias fases da revolução em nosso país”.15
Isso envolveria a construção de sistemas de distribuição que levariam o cinema a todos os moçambicanos, enfatizando a importância dos cinemas móveis
para a educação nos vilarejos, especialmente através de documentários que
seriam encomendados pelo Departamento de Informação. Em terceiro lugar,
ela tratava da necessidade de estabelecer circuitos de cinema com outros países
Frelimo, “Resolução Sobre o Cinema, o Livro e o Disco”, in Documentos da Conferência
Nacional do Departamento de Informação e Propaganda da Frelimo, Maconima, 26-30
de novembro 1975. As minutas de uma reunião realizada em 12 de novembro de 1975
mostram a preocupação da Frelimo com a quantidade de ilmes que tinham níveis
inaceitáveis de “pornograia e violência gratuita” que invadiram Moçambique a partir
de 1974, por causa da suspensão da censura durante a Revolução dos Cravos. Ver “Acta
de uma reunião onde se discutiram questões relacionadas com o cinema no período
imediatamente posterior à Independência”, 12 de novembro de 1975. Jorge Rebelo cedeu
gentilmente uma cópia deste documento.
15
Ibidem, p. 79.
14
52
53
socialistas. Além de combater as estruturas neocoloniais da indústria capitalista do cinema do Ocidente, isso daria aos moçambicanos acesso a “ilmes
que testemunham as lutas de outros Povos do Mundo contra a opressão e a
exploração, sobre a luta das classes trabalhadoras, ilmes de natureza política, educacional e informativa, recreativos, mas não de maneiras que mitigam
nossos valores culturais e princípios ideológicos”.16
O INC foi estabelecido com equipamento tomado das casas de produção
coloniais e câmeras e unidades de cinema móvel doadas pela União Soviética.
Ele tinha um arquivo de ilmes que compreendia uma coleção eclética de ilmes, incluindo documentários britânicos, ilmes soviéticos e musicais indianos. O arquivo também incluía produções coloniais, que foram recicladas em
novas produções como o ilme-ensaio Estas são as armas (1978) de Murilo
Salles, que derrubava os mitos do imperialismo português. O cineasta e produtor britânico Simon Hartog, que estivera envolvido com o estabelecimento dos
Estados Gerais do Cinema em Paris, no ano de 1968, e havia comparecido ao
Encontro dos Cineastas do Terceiro Mundo de Argel, em 1973, delineou um
novo sistema de aquisição e distribuição para quebrar a dependência do INC
em relação aos distribuidores norte-americanos. Isso foi crucial à medida que
a Motion Picture Association of America (MPAA) tinha tomado a decisão de
boicotar Moçambique, na tentativa de manter seu monopólio. O novo sistema
de aquisição envolvia comprar cópias de ilmes em vez de simplesmente alugá-los, de forma a construir um arquivo de ilmes internacionais. Os lucros eram
então investidos na produção e treinamento cinematográicos para se esquivar dos distribuidores norte-americanos. Nos primeiros anos, o sistema foi
muito bem-sucedido.
Nos anos que se seguiram, Moçambique buscou desenvolver isso em
parceria com outros países africanos. A Conferência Africana de Cooperação
Cinematográica, que aconteceu em Maputo em 1977, foi um momento-chave
16
Ibidem, pp. 78-79.
para articular as esperanças de criar infraestruturas regionais que quebrariam a dependência das redes de distribuição estrangeiras. A conferência lançou a Associação Africana de Cooperação Cinematográica (AACC), primeira
tentativa de reorganizar a indústria do cinema no nível governamental entre
Estados-nação africanos de diversas línguas.17 O discurso de Jorge Rebelo
que abriu a conferência airmou como isso constituía uma “nova frente de
combate contra o imperialismo”.18 A batalha pela “libertação cultural da África”
não era simplesmente uma questão de estética, como na “ideologia reacionária” da Negritude, mas demandava a criação de novas esferas econômicas:
Nossos objetivos não são só, portanto, combater e neutralizar o cinema inimigo em nossos países.
São também produzir, exibir e desenvolver um cinema verdadeiramente revolucionário, um cinema
que participa e é capaz de levar adiante a transformação revolucionária. Para fazer isso, precisamos
estabelecer uma ruptura gradual com a dependência econômica e tecnológica nos setores de produção, distribuição e exibição cinematográica. O combate nesta frente é ainda mais decisivo quando o
cinema que domina nossos países, como ainda é o caso na maior parte do mundo, é aquele diretamente controlado por uma rede complexa de monopólios internacionais.19
A equipe do INC incluía ativistas da Frelimo envolvidos com informação
e produção cinematográica durante a luta armada, cooperantes internacionais e portugueses moçambicanos que se comprometeram com a nova nação.
Muitos dos moçambicanos brancos que se juntaram ao INC quando ele foi
estabelecido estavam envolvidos com clubes de cinema coloniais, que haviam
sido locais clandestinos de dissidência para aqueles que se opunham ao fascismo. Essa tendência cinéila militava contra a ideia mais instrumentalista
17
Presentes na Conferência estavam delegações da Tanzânia, Zâmbia, Congo, Guiné,
Madagascar, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
18
Jorge Rebelo, discurso proferido na Conferência Africana de Cooperação Cinegráica,
21 de fevereiro de 1977, reproduzido in Retrospectiva do Cinema Moçambicano, Maputo:
Instituto Nacional de Cinema, junho de 1982.
19
Ibidem.
54
55
que a Frelimo tinha do cinema como uma ferramenta de informação, educação
e mobilização, e o INC tentou construir uma cultura cinematográica mais criticamente informada através de festivais internacionais de cinema, concentrando-se, por exemplo, no cinema da Argélia, Cuba, Itália e África. Também é
evidente um interesse em gêneros de cinema que tinham apelo popular em
Moçambique, particularmente os musicais indianos, que na época se passavam principalmente na zona rural, e ilmes de Kung Fu, que eram populares
por mostrar um herói não ocidental que conseguia superar seus inimigos através da força e habilidade física, em vez de armas.
Os cooperantes internacionais eram cineastas proissionais que ajudavam a dar treinamento, além de fazer ilmes. Eles eram pagos por seu trabalho,
mas também eram comprometidos politicamente com a causa da Independência moçambicana. Ao lado de indivíduos como Margaret Dickinson, o brasileiro Murilo Salles, alguns do Canadá e de outros lugares, vários países socialistas enviaram delegações de cineastas para treinar e produzir ilmes sobre a
revolução. Naquele mesmo ano, delegações de Cuba e da Coreia do Norte
foram ao INC ao mesmo tempo para treinar os funcionários e, no processo,
produzir um ilme. Ambos os ilmes celebravam o líder carismático da Frelimo,
mas eram muito diferentes em tom e abordagem. “Todo mundo queria trabalhar com os cubanos”, lembra-se Pedro Pimenta, então diretor de produção,
quando o ICAIC era o centro de um tipo de produção cinematográica revolucionária sedutora e lírica, bem como eicaz como propaganda.20 A coprodução
norte-coreana se chamou Moçambique em progresso sob a direcção do Presi-
dente Samora Moisés Machel (1982), título que já indica o tom do ilme. Por
outro lado, a equipe cubana fez um ilme chamado Nova sinfonia (1982), cujo
ponto de partida era o hábito que Machel tinha de cantar no início das reuniões do Partido! Santiago Álvarez, que liderou a delegação cubana, desenvolveu uma forma única de propaganda política, usando uma montagem rápida
20
Entrevista com Pedro Pimenta, Johannesburgo, 30 de junho de 2005.
imbuída de humor e ironia, que foi uma novidade nos ilmes políticos durante
os anos 1960 e 1970. Ela funcionava na promessa revolucionária de montagem para uma síntese disjuntiva, suas justaposições de imagens não relacionadas e sons quebravam a ilusão burguesa de continuidade e envolviam o
espectador na construção de uma “nova sinfonia” ao conectar suas partes
disparatadas.
Em 1977, o INC também começou a treinar uma nova geração de cineastas moçambicanos para que “os ilhos dos trabalhadores e camponeses” pudessem se envolver na produção da imagem em movimento na nova nação. A
Frelimo considerava isso uma tarefa essencial da descolonização do cinema,
já que durante o colonialismo apenas poucos técnicos e operadores de câmera negros tinham conseguido encontrar trabalho, em posições subalternas.
Em 1976, um grupo de jovens moçambicanos que ainda estava na escola foi
selecionado para aprender diferentes aspectos da produção cinematográica
e foram treinados principalmente através do trabalho e observando cineastas
mais experientes. O fato de que a maioria desses estagiários ainda trabalha no
cinema ou na televisão é um testemunho não só do sucesso do esquema enquanto ele funcionou, mas também do fato de que uma rápida transformação
social raramente acontece sem uma estratégia de intervenção.
Esse esforço de descolonizar radicalmente o cinema, concentrando-se em
quem produziria as imagens em movimento de Moçambique, também foi tratado
em projetos mais marginais, particularmente os de Jean Rouch e Jean-Luc Godard, que foram ao país para fazer pesquisa, ilmes e treinamento no inal dos
anos 1970. Rouch foi convidado por Jacques d’Arthuys, então adido cultural
francês em Moçambique, um papel que ele havia desempenhado no Chile quando o país estava sob o governo popular de Salvador Allende; ambos estavam
entusiasmados em usar fundos franceses disponíveis para atividades culturais
que de outra forma não teriam sido concedidos a um país socialista como Moçambique. Rouch levou equipamento super-8 para a Universidade Eduardo
Mondlane e icou trabalhando em 1976, para que os alunos pudessem aprender
56
57
a fazer “ilmes postais”, que seriam captados, editados e exibidos num único dia.
O primeiro ilme que a equipe mostrou aos estudantes para começar sua educação cinematográica foi Encouraçado Potemkin (1925), de Serguei Eisenstein,
pois acreditava-se que o ilme silencioso seria apropriado para ensinar os elementos através dos quais se constrói a imagem em movimento. O processador
de ilme super-8 que eles levaram prometia autonomia, mas, de acordo com o
relatório de Rouch, o grupo também se preocupava com o fato de que esta peça
cara de equipamento pudesse ser muito “soisticada” e “luxuosa” para o contexto de Moçambique.21 Contudo, as próprias qualidades do super-8 de que Rouch
gostava – a capacidade, crua e rápida, de fazer pequenos ilmes descartáveis
que capturavam a vida cotidiana – não era de amplo interesse para o governo de
uma nação emergente começando a construir seu próprio arquivo de imagens.
Contudo, a equipe teve algum sucesso com os ilmes produzidos com o grupo de
alunos, e alguns deles foram usados para fazer intervenções diretas na mudança social, para mobilizar e educar.
Em 1978, Godard foi convidado pelo então Ministro da Segurança, Jacinto
Veloso, que ele havia conhecido no período em que Veloso trabalhava para as
operações clandestinas da Frelimo na Europa e Argélia durante a luta armada.
Assim, o caminho que levou Godard a Moçambique foi bem diferente do de Rouch.
Godard foi convidado pelo governo moçambicano para delinear as possibilidades de um projeto de televisão livre. Na época não existia televisão em Moçambique, e Godard via o país como um lugar onde ainda havia alguma liberdade
para criar tipos alternativos de experiências coletivas através do cinema, ao
contrário do Ocidente, onde os registros sônicos e visuais já estavam “colonizados” pelos interesses e ideologias capitalistas. Sua proposta foi de que as comunidades deveriam ser treinadas por sua companhia SonImage para usar equipa-
21
Jean Rouch, “Histoire des seize ilms realisés de Juin à Septembre dans le cadre des
ateliers Super-8 de L’Université de Maputo au Mozambique”, 1978, relatório não
publicado, p. 2.
mento de vídeo de forma que as pessoas pudessem produzir o que quisessem
– isso formaria a base da produção televisiva em Moçambique.
O plano foi rejeitado pelo Estado por ser considerado muito caro e pouco
prático, e o único resultado direto do projeto de Godard foi um artigo com texto e imagem que ele fez para os Cahiers du Cinéma em 1979, no qual ele chamava seu projeto de “Nascimento (da imagem) de uma Nação”. De forma intrigante, citando o título do ilme de Grifith, O nascimento de uma nação (1915),
Godard insere as palavras “da imagem” entre parênteses no meio do título de
Grifith, sugerindo que quando a produção da imagem em movimento é radicalmente democratizada, tem o potencial de interromper a consolidação do
Estado-nação em torno de uma noção singular de identidade.
Enquanto isso, a principal produção do INC era mais condizente com seus
objetivos, que estavam sendo revistos para transformar o instituto numa operação mais eiciente e proissional em preparação para a chegada da televisão,
que teve a primeira transmissão em Moçambique em 1981. O cinejornal Kuxa
Kanema foi feito a princípio de forma esporádica em 1978 e, a partir de 1981, foi
produzido semanalmente como um ilme de dez minutos. Ele era distribuído por
todo o país por meio de unidades de cinema móvel. O Kuxa Kanema tinha a intenção de tecer uma imagem coesa de identidade nacional baseada no nacionalismo revolucionário, que ultrapassaria as diferenças étnicas e linguísticas. O
nome signiica “nascimento do cinema”, com palavras em Ronga, Changange,
Chua e Macua combinadas para simbolizar a unidade da nação. Outra importante função do cinejornal era educar o povo moçambicano sobre as lutas revolucionárias que aconteciam em outras partes do mundo, para que a situação local
fosse entendida como parte de um movimento global. A pergunta que fornece o
título para este ensaio é citada a partir de uma das primeiras edições do Kuxa
Kanema, que mostra uma unidade de cinema móvel viajando pelo interior até um
vilarejo remoto. Quando a van entra no vilarejo, um alto-falante anuncia que
haverá uma exibição de um ilme naquela noite. “Já ouviu falar do internacionalismo?”, pergunta o projecionista, “Este equipamento é um presente do povo da
58
União Soviética”. O cinema é assim apresentado como um canal de cooperação
e boa vontade no mundo socialista.
O cinejornal tinha a função não só de informar, mas também de promover o exemplar fervor revolucionário do “novo moçambicano” encarnado por Samora Machel. O comportamento distinto de Machel, e a forma
pela qual ele dominava e persuadia suas plateias, era extremamente popular entre os espectadores de cinema. Durante o final dos anos 1970 e início
dos 1980, o INC permaneceu concentrado em usar formas de documentário para as tarefas revolucionárias de informação, educação e mobilização. Ofensival Offensive (1980), de Camilo de Sousa, mostra Samora Machel num novo tipo de ofensiva na zona portuária de Maputo. Aqui ele
aborda o “inimigo”, mas de outra forma, eliminando os “sabotadores econômicos” que se infiltraram no sistema de fornecimento para paralisar a
economia. Uma cena em particular demonstra como a fusão de diferentes
culturas, presente em Behind the Lines de Dickinson como uma expressão
de uma política de libertação, estava se cristalizando numa forma altamente centralizada e cada vez mais dogmática e autoritária de marxismo
-leninismo. Machel chega à zona portuária com uma comitiva de ministros,
oficiais e cineastas para dar aos trabalhadores uma “orientação ideológica”. Falando com um grupo de homens reunido a seu redor, Machel esboça
um diagrama de poder no qual o trabalho dos operários para sustentar
suas famílias se estende para o país como um todo e é uma expressão de
sua identificação com o Estado. A cena demonstra não só o imenso carisma de Machel, mas também como os ideais do “Novo Homem” continuavam sendo centrais para a noção de identidade nacional que a Frelimo
buscava promover. Contudo, nas circunstâncias mutáveis após a Independência, o desejo de transformar as atitudes e relações sociais passou a se
concentrar na necessidade de maximizar a produção. Nas palavras de
José Luís Cabaço, que estava presente nesta sequência de Offensive em
seu papel como Ministro da Informação:
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Mecanismos para o poder democrático e a administração coletiva deram lugar à autoridade
individual: a subordinação a líderes e a vários níveis organizacionais foi colocada contra a liberdade e o espírito de iniciativa. A sociedade se tornou organizada numa hierarquia. 22
Durante os anos 1980, o governo da Frelimo foi icando cada vez mais
comprometido pelos ataques da Renamo, que eram inanciados primeiro pela
Rodésia governada por uma minoria branca e depois pelo Apartheid da África
do Sul em retaliação ao apoio da Frelimo à ANC. A Renamo conseguiu ganhar
força através do apoio de comunidades descontentes com algumas das políticas de menos sucesso da Frelimo, particularmente aquelas voltadas a coletivizar a produção agrícola e a erradicar as divisões tribais. Ao longo do curso
daquela década, o país caiu numa desastrosa guerra civil. À medida que Moçambique perdia cada vez mais o passo para acompanhar as economias de
livre mercado perseguidas em outras partes do continente, o objetivo de substituir os monopólios de distribuição estrangeiros por circuitos de distribuição
regionais intra-africanos nunca foi realizado. Mas alguma cooperação internacional foi alcançada. Onde isso foi bem-sucedido, se reletiu nas solidariedades forjadas durante a luta armada pela Independência e no apoio que Moçambique deu a outros movimentos de libertação.23 Camilo de Sousa, Funcho
(João Costa) e Licínio Azevedo foram para Angola durante a invasão sul-africana, onde izeram Cinco tiros de Mauser (1981). Funcho e o cineasta angolano Carlos Henriques trabalharam juntos para fazer Pamberi ne Zimbawe
(1981), um ilme sobre as primeiras eleições que resultaram na vitória do
ZANU-PF. Essa colaboração entre o Instituto Angolano de Cinema e o INC foi
a primeira coprodução do sul da África feita inteiramente sem apoio externo.
22
23
Cabaço, op. cit., p. 108.
Assim, por exemplo, quando Julius Nyere deixou a presidência da Tanzânia, o INC enviou
uma equipe de câmeras para ilmar sua turnê estatal inal uma vez que a Tanzânia não tinha
instalações e capacidade para transformar as gravações em ilme. Entrevista com Luis
Simão, Maputo, 17 de setembro de 2005. Ver Ros Gray, op. cit., apêndice.
60
61
O apoio soviético evaporou com a ascensão de Gorbachev ao poder e, em
1986, foi oicialmente anunciado que a União Soviética não estava mais interessada no envolvimento político nos países do sul da África. O tempo dos leopardos (1987), de Zdravko Velimirović, que foi uma coprodução com a Iugoslávia,
pode assim ser visto como um grande gesto de solidariedade na produção cinematográica entre Estados africanos e socialistas europeus. A “amizade socialista” com a Iugoslávia havia começado durante a luta armada, quando Popovic
fez ilmes com a Frelimo, mas este era um projeto numa escala diferente. O tempo dos leopardos é um relato iccional da guerra anticolonial, contado da perspectiva do colonizado. Retornando ao início da luta armada, ele lembra em tema
e escala dois outros ilmes de icção africanos: Sambizanga (1972), de Sarah
Maldoror, que foi feito durante a guerra colonial em Angola sobre a luta do
MPLA, e Morte negada (Mortu Nega, 1988), de Flora Gomes, que é tanto um
relato quanto uma relexão sobre a luta armada na Guiné-Bissau e o legado do
pensamento de Amílcar Cabral. O que distingue o ilme tematicamente, contudo,
é sua mensagem antiessencialista, na qual brancos e negros se unem para lutar
pela Independência de Moçambique.
Embora a colaboração com a Iugoslávia tenha permitido ao INC fazer seu
mais ambicioso projeto de ilme até a data, a experiência de moçambicanos que
trabalharam em O tempo dos leopardos deixa claro que a relação de poder desta
“amizade socialista” estava bem longe de ser igualitária. O governo iugoslavo forneceu a maior parte do orçamento, estoque de ilme e o local para o processamento colorido, e seus roteiristas, diretores e técnicos supervisionaram os procedimentos. O roteiro esboçado por Licínio Azevedo e Luís Carlos Patraquim sofreu
mudanças por parte dos iugoslavos, os quais distorceram a tentativa de fazer do
ilme um retrato realista da experiência da luta armada, que foi conduzida por um
“exército do povo”, cuja força estava no poder popular e não no aparato militar.24
24
O roteiro original foi baseado num livro de Licínio Azevedo (1995), uma coleção de contos
baseados em testemunhos da luta armada colhidos de pessoas que participaram do conlito.
Gabriel Mondlane, um dos primeiros da geração de negros moçambicanos a serem
treinados no INC, foi à Iugoslávia como engenheiro de som. Em seu relato do tempo que passou lá, ele teve de convencer os mentores iugoslavos de que tinha habilidade suiciente para realizar suas tarefas proissionais, ao mesmo tempo, sua
etnicidade o tornava um objeto de curiosidade importuna para as pessoas que
nunca tinham encontrado um africano antes. A ironia é que a mensagem utópica
do ilme, na qual a ética antiessencialista da Frelimo tem o poder de unir pessoas
negras e brancas dentro de uma identidade revolucionária nacional única, é destruída pela experiência de produção do ilme, que trouxe à tona o racismo e desigualdades profundamente arraigadas dentro da dinâmica da amizade socialista.
O ilme de icção seguinte do INC, O vento sopra do norte (1987), de
José Cardoso, foi feito em preto e branco para que pudesse ser revelado pelo
laboratório do INC em vez de ser enviado para fora, embora essa escolha represente uma intensa evocação do passado colonial do país. O ilme dá forma
cinemática a um desejo coletivo de mudança através da visão altamente pessoal do diretor. Como tal, quando o ilme apareceu nos anos inais da
Revolução, ele ofereceu um vislumbre de outra versão na qual um “cinema
nacional” moçambicano poderia ter abarcado em diferentes circunstâncias.
Em O vento sopra do norte, a luta pela libertação aparece apenas como um
tremor numa sociedade reprimida. Passado em Lourenço Marques, o ilme
mostra o clima de medo que afetava tanto os colonizadores quanto os colonizados. Ele penetra em todos os aspectos da vida cotidiana, infectando as brincadeiras das crianças europeias que perseguem umas às outras com armas de
brinquedo atrás de cercas. A corrente subjacente de violência culmina na tentativa de estupro de uma jovem negra por parte de um policial português bêbado.
Os ventos da mudança que “sopram do norte” aparecem apenas como os
sons crepitantes de A voz de Moçambique, o programa de rádio da Frelimo
ouvido em segredo na cena de abertura do ilme, ou como rumores sobre conexões militantes clandestinas após uma prisão. Em O vento sopra..., a câmera costura o espaço, pegando fragmentos de conversas e fazendo ligações,
62
63
com frequência acompanhando e se demorando em iguras sociais marginalizadas – o empregado que poda a cerca em silêncio enquanto crianças portuguesas brincam e suas mães fofocam no jardim, ou o menino na cena do café
que vai mendigando de mesa em mesa, em grande parte ignorado. As sequências passam entre os diferentes espaços que dividem a cidade colonial: os
barracos de madeira e placas de ferro nos subúrbios; a sede do PIDE na Villa
Algarve; mansões de colonos portugueses com serviçais negros; e uma cena
num café na parte central da cidade, onde europeus se queixam e vociferam
contra a insurreição armada, mas continuam a tratar o resto da população
com desprezo. Memórias individuais de diferentes gerações são encerradas
na narrativa, de forma que também passam a signiicar memórias coletivas,
para fazer uma acusação contra a sociedade colonial e signiicar o desejo que
está escondido nelas por uma mudança radical.
Ironicamente, contudo, esses dois ilmes emergem entre dois eventos
que reverteram o caminho do país em direção ao socialismo. Em 1986, Samora
Machel foi morto quando seu avião foi desviado misteriosamente e caiu em
território sul-africano. Em 1989, a Frelimo renunciou formalmente ao marxismo-leninismo, abrindo caminho para negociações que levaram a eleições multipartidárias no país e abraçando o mercado livre. A crise econômica causada
pela guerra, junto com a retirada de apoio dos países do bloco soviético, fez
com que, durante os anos 1980, os lucros do INC fossem cada vez mais apropriados pelo Estado para outros usos. Produções foram canceladas, e cinemas de todo o país icaram num estado abjeto. Na noite de 12 de fevereiro de
1991, entre a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, o INC
foi quase que totalmente destruído pelo fogo.
O paradoxo do INC é que ele incorporava um conjunto de aspirações
que, na época de sua emergência, pareciam o começo de algo novo e inevitável. Mas, na verdade, ele marca o im de uma era, tanto em termos de mudança tecnológica para a televisão, vídeo e formas digitais, quanto em termos de
fracasso dos Estados-nação socialistas africanos em criar uma rede de distri-
buição e produção de cinema independente do imperialismo capitalista. As
revoluções africanas dos anos 1970 costumam ser caracterizadas hoje pelo
desapontamento e catástrofe que se seguiram a elas. Os próprios ilmes que
deveriam fornecer uma visão contrária – os ilmes sobre a luta armada e aqueles feitos pelo INC – são em grande parte inacessíveis, raramente vistos, exceto em exibições ocasionais para públicos de especialistas ou via cópias degradadas que circulam informalmente. Mas este arquivo problemático é
testemunha de que, durante a Revolução, Moçambique se tornou um localchave para teorizar através da prática e, por algum tempo, realizar a descolonização do cinema na região. Isso teve uma série de efeitos inesperados que
rompem com a ideia de que o Ocidente ou o bloco soviético eram locais de
inovações radicais tardiamente exportadas ao “Terceiro Mundo”. Também
rompe com um certo ceticismo que dizia que esses projetos são inevitavelmente outra manifestação que apenas espelha ou reproduz a dinâmica do imperialismo, na qual os gigantes econômicos e militares do mundo projetam
suas fantasias utópicas sobre a África como se ela fosse um quadro em branco esperando para ser inscrito. Em vez disso, conexões forjadas através do
cinema produziram uma relação geográica que ultrapassou grandes distâncias, na qual o cinema foi uma forma privilegiada de produzir sons e imagens
desta Revolução Africana.
A própria sobrevivência dessas imagens em movimento tem uma relação
desconfortável com a realidade política e econômica dos dias de hoje. Quando a
Frelimo abandonou sua política de nacionalização, a função do INC deixou de
ser um instituto dedicado a um sistema integrado de produção, aquisição e distribuição para se tornar um regulador estatal das companhias privadas de produção cinematográica. Durante o período de transição ao capitalismo de livre
mercado, mudanças também foram feitas na administração do INC, que tiveram
o efeito de reverter os esforços feitos durante a Revolução para tratar das desigualdades sociais e raciais que eram o legado do colonialismo. Os cineastas
pós-comunistas de Moçambique foram expostos à pressão para se conformarem
64
à linha da elite política e receberam pouco apoio para produzir o tipo de documentários e ilmes de icção socialmente engajados que um punhado de diretores conseguiu fazer a despeito das circunstâncias. À medida que os cinemas e a
televisão de Moçambique continuam a ser dominados por imagens estrangeiras
de culturas de consumo além do alcance da vasta maioria, o neoliberalismo
triunfa através de uma combinação de saturação e amnésia.
Nesta situação, qual é o legado afetivo dessas amizades socialistas?
Dos documentários e ilmes de icção feitos independentemente em Moçambique desde 1991, apenas um fala diretamente das “amizades socialistas” que
foram uma parte proeminente da experiência da Revolução Moçambicana.
Adeus RDA (1992), de Licínio Azevedo, é uma compilação de entrevistas com
moçambicanos que foram trabalhar na Alemanha Oriental durante a Revolução. Alguns que acreditavam que recebiam uma oportunidade para estudar no
estrangeiro chegaram à Alemanha Oriental para descobrir que, na verdade,
esperava-se que eles trabalhassem “como robôs” fazendo trabalhos servis em
fábricas. O ilme conta como os moçambicanos que chegaram lá sob o tratado
de “amizade socialista” foram forçados a retornar para Moçambique com a
reuniicação da Alemanha, apesar do fato de que o país tinha sido seu lar por
vários anos. A narrativa esmagadora da reuniicação alemã como triunfo da
democracia sobre o totalitarismo esconde esses testemunhos de uma geograia relacional entre a África e o bloco do Leste que também izeram parte da
experiência europeia do socialismo. O ilme de Azevedo, feito na época de um
clima de xenofobia e aumento das atividades da extrema-direita na Alemanha
uniicada, é prova de uma xenoilia anterior, embora menor, que existia dentro
do socialismo do bloco oriental.
Qual é o futuro dessa conexão afetiva entre os povos que viviam sob regimes socialistas geograicamente distantes? Uma resposta possível é talvez sugerida por outro ilme de Sissako. Seu belo curta Octyabr (1993) captura momentos de uma relação amorosa malfadada entre Idrissa, um estudante africano,
e Zhenya, uma mulher russa que deve decidir se quer dar continuidade a uma
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gravidez da qual não informou o amante porque acredita que ele vai voltar para
seu país. O ilme mostra a vigilância constante de uma sociedade racista atomizada pela repressão. Filmado em preto e branco, há um único momento primoroso de cor que invade a tela quando Zhenya se espeta numa rosa. Os amantes
mal conversam entre si, mas há lashbacks do momento feliz e leve do primeiro
encontro. Numa cena mais adiante, Idrissa aparece sozinho em um parque coberto de neve. Ele se inclina e enche a mão de neve, que leva ao rosto num momento cinemático intensamente sensorial. Ele olha para cima e vê uma jovem
mestiça, com uma mulher russa idosa ao fundo. A cena pode ser interpretada
pelo viés de documentário, como referência à longa história dos povos africanos
que foram à Rússia – dos pequenos números de indivíduos que encontraram lá
possibilidades de educação e trabalho, normalmente apesar de circunstâncias
adversas. Mas será que este momento também pode ser lido como uma visão da
criança que ele deixaria para trás sem saber? é uma leitura que abre a possibilidade de futuro para esta ligação afetiva entre duas pessoas que lutam para
sobreviver dentro da estrutura social repressiva que os cerca. Nos ilmes póscomunistas citados aqui, o legado da amizade socialista parece coninado aos
espaços íntimos do afeto pessoal – aquele das amizades individuais, amantes,
ilhos. Indo além de uma ânsia pelas “alternativas perdidas” do socialismo do
século XX, novas sensibilidades coletivas devem emergir nesse contexto. Talvez
seja aqui, nesses pontos humanos de interconexão entre longas distâncias, paisagens e culturas diversas, que podemos localizar uma forma do político orientada em direção a um futuro diferente.
ROS GRAY é professora do departamento de artes da Goldsmiths, da Universidade de Londres.
Traduzido do inglês por Eloise de Vylder
elementos
para a história
do cinema
moçambicano:
África, o
colonialismo
e o cinema
Por jorge rebelo
68
69
n
a generalidade, o colonialismo concedeu ao cinema um
papel indireto no processo de dominação cultural dos
nossos povos. O grau de penetração do cinema no seio
das largas massas populares africanas foi bastante reduzido. As salas de cinema destinavam-se principalmente à
burguesia colonial e aos colonos e, mais tarde, também à burguesia interna
nascente. O cinema era ostensivamente utilizado para fomentar e perpetuar o
mito racista da supremacia branca entre os colonos. Mesmo assim, os efeitos
alienantes do cinema como instrumento de dominação, de despersonalização
cultural e de difusão da ideologia das classes exploradas izeram-se sentir
com relativa intensidade nas massas urbanas, e, em particular, contribuíram
fortemente para a formação ideológica e cultural de burguesias nacionais
identiicadas com os falsos valores da burguesia colonial e do capitalismo.
A utilização do cinema como instrumento de dominação cultural intensiicou-se no nosso continente a partir dos últimos anos da década de 1950 e,
em especial, dos primeiros anos da década seguinte. Signiicativamente isto
coincide com a fase histórica em que a maioria dos países africanos conquista
a independência. é no contexto da dominação neocolonial que o cinema assume uma função de máxima importância no conjunto da máquina imperialista
de propaganda ideológica e de despersonalização cultural. Nesse quadro,
interessa ao imperialismo reproduzir integralmente, nos países sob o seu domínio, a superestrutura política, ideológica e cultural característica dos países
capitalistas. Juntamente à televisão, o cinema é o meio de comunicação de
massas mais poderoso para servir a esses objetivos.
Desse modo, é especialmente a partir de 1961 que os grandes monopólios do cinema se organizam no nosso continente, criando redes de distribuição uniicadas que dominam a exibição em diversos países africanos. Signiicativo é também o facto de este acentuado interesse dos monopólios sobre
o controlo da exibição em África ser grandemente desproporcionado em relação à reduzida dimensão do mercado africano no sector de cinema.
A esse respeito basta lembrar que, se excluirmos a África do Sul, o
nosso continente possui sensivelmente o mesmo número de salas de espetáculos que a Inglaterra só por si dispõe.
Ao mesmo tempo que procura alargar e intensiicar seu domínio sobre a
produção, distribuição e exibição de ilmes em todo o mundo, o imperialismo
recorre a novos, mais sutis e mais diversiicados métodos, formas e temas,
para a difusão da sua ideologia através do cinema. Raramente encontramos o
discurso abertamente reacionário, colonialista e racista, característico de
muitos ilmes das décadas de 1960, 1950 e anteriores, em particular daqueles
que se referiam à África, Ásia e América Latina. A propaganda dos valores
burgueses, da sociedade capitalista, da pretensa superioridade da cultura ocidental, passou a ser feita por formas mais sutis e envolventes, e por isso, mais
perigosas. À negação pura e simples dos povos africanos, substitui-se a deturpação sistemática das nossas realidades culturais e o acolhimento e promoção de ideologias reacionárias, como a da “negritude”. Face à impossibilidade de esconder as contradições, as crises, as desproporções, a corrupção e
os crimes que caracterizam o sistema capitalista, tenta demonstrar que se
trata de casos isolados provocados por comportamentos individuais ou, no
outro extremo, procura criar a convicção de que são fatalidades inerentes a
qualquer tipo de sociedade humana.
JORGE REBELO foi Ministro da Informação da República Popular de Moçambique. Este texto é um extrato do discurso à Conferência Africana de Cooperação Cinematográica, proferido em fevereiro de 1977. Publicado no livro Cinema africano. Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, organizado por Manuel
Costa e Silva no âmbito da Festa do Avante, realizada em setembro de 1981
(Lisboa: Célula de Cinema do Partido Comunista Português, 1981).
ruy Guerra e
moçambique
Por vavy Pacheco borges
72
e
m palavras cruzadas, encontrei algumas vezes “moçambicano”
para “nacionalidade do cineasta Ruy Guerra”; por vezes ele se
apresentou como “sou um cineasta brasileiro que nasceu em Moçambique”. De família bem constituída – pai alto funcionário português na colônia – lá viveu até os vinte anos. Desde adolescente
foi parte de um grupo de jovens revoltados contra a dominação colonial e o racismo; sua indignação se expressava em contos, poemas, críticas de ilmes, um documentário sobre os trabalhadores do cais do porto. A maioria do grupo constituiu
a “geração da diáspora”, espalhados pelo mundo. Ruy partiu para se formar cineasta no Idhec, em Paris. Poucos anos depois, um poema: “A minha saudade / é tão
intensa / tão isiológica / Tão crua / Que um pedaço de terra moçambicana / Eu a
comeria / Neste medo/ De perder a lembrança de seu sabor”.
Em busca de sua grande paixão – ilmar – deslocou-se por vários países em
três continentes. Mas foi no Rio de Janeiro que se tornou cineasta e adquiriu
prestígio internacional, sendo o primeiro dos cinemanovistas a ilmar fora do Brasil. Aqui suas saudades amainaram, sentia-se em casa com clima, língua, alimentação, presença do negro. Voltou à sua terra natal a cada quarto de século. Entre
1976 e 1986 a im de colaborar na criação de um cinema moçambicano; para o
governo de Samora Machel, a tela do cinema seria a lousa que explicaria ao povo
iletrado a nova nação, onde se construiria sua memória. Voltou depois por duas
semanas em 2011, para ser homenageado por seu trabalho nesse período. Na revista Le Nouvel Observateur em junho de 2000 há uma reportagem sobre Les
Vies de Ruy Guerra. Referindo-se a esse momento diz: “Dez anos se passam, marcados por alguns ilmes engajados, sem que se saiba exatamente se Guerra se
tornou um revolucionário que faz cinema ou um cineasta que faz a revolução”.
Nesses intermitentes dez anos, realizou uma produção quase que desconhecida.
Quando se deu a revolução nacional e socialista realizada pela Frelimo e vitoriosa em 1975, Ruy era um homem de 44 anos, cineasta experimentado e premiadíssimo; com passado em Lourenço Marques, no então presente de uma Maputo de ponta-cabeça. Na época, gostava de citar a frase do amigo L. C. Patraquim:
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“A África precisa tanto de imagens quanto de proteínas”. Em entrevista recente,
disse ter voltado “numa missão de resposta à minha juventude […] sentia-me obrigado a estar lá, mas era uma obrigação profundamente agradável. Redimi-me um
pouco de estar ausente das lutas da independência […] tinha saído antes [doze
anos] e começado a vida noutro caminho. E também muito feliz de ter sido requisitado pela Frelimo”. No início esteve bastante ligado ao Instituto Nacional de Cinema (INC), sem cargo administrativo; como função, a preparação de quadros e a
adequação para produção de ilmes pela compra de máquinas e material. Encarregado de estabelecer contatos internacionais, recebeu credencial que o levou em
missões de serviço fora do país. Segundo se disse na época, procurou criar condições para se fazer cinema, distribuí-lo e exibi-lo “em atitude anti-imperialista”.
Para Ros Gray, a inluência de Ruy foi “decisiva na visão e nas políticas do INC […]
o elemento central para explorar as intersecções entre o cinema enquanto arte
das massas, as raízes da memória coletiva e a prática revolucionária”.
Em entrevista durante festejos da Revolução dos Cravos, Ruy airmou: “Não
nego a necessidade do cinema político em certos contextos, pode ser válido”. Filmou documentários de curta-metragem sobre a realidade que o país vivia. Operação Búfalo (1978) tratou do abate ecológico de búfalos na região do Gorongosa,
enorme parque nacional. Cobre o percurso do búfalo desde seu hábitat natural até
a comercialização do couro e chifres. Um povo nunca morre (1980) mostra a
transladação da Tanzânia para Maputo dos restos mortais de combatentes da
Frelimo, durante a comemoração do Dia dos Heróis.
Ruy considera tênues as fronteiras entre documentário e icção. Mueda,
memória e massacre (1979) é descrito como o primeiro longa de icção do Moçambique independente, mas parece desaiar qualquer categorização. Registra um
espetáculo teatralizado da comemoração anual do massacre dos chamados “indígenas” num protesto, perpetrado pela polícia colonial em Mueda, norte do país.
Ganhou prêmios em festival russo, sendo exibido em festivais de Hong Kong, Los
Angeles, Sidney e Melbourne. Recebeu crítica elogiosa na revista americana Variety, da qual Ruy muito se orgulha.
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Em 1982, deu-se sua última ilmagem em Maputo: Os comprometidos –
Actas de um processo de descolonização. Registrou trinta horas do julgamento, durante mais de uma semana, dos indivíduos comprometidos com estruturas do antigo sistema colonial que tinham permanecido no país após a
revolução. O governo pensava em ilmar só alguns momentos do processo;
percebendo seu sentido histórico e seu possível alcance, Ruy sugeriu que se
ilmasse tudo. Comentou décadas depois: “Era uma catarse, um processo psicanalítico do colonialismo, uma festa, tudo misturado”. Os episódios passaram durante dias na TVE, sempre à mesma hora, antes ou depois do noticiário.
No início dos anos 1980, tornou-se o elemento-chave na implementação de
uma nova fórmula de produção com a criação da produtora Kanemo. A produção
do INC não ia adiante, arrastada, com diiculdades de material e de infraestrutura;
os membros eram funcionários do Estado, muita burocracia, muita dependência
da Frelimo. A empresa se organizou sob tríplice parceria: a maior parte icou com
o governo de Samora Machel, parte com o INC e parte com a Austra, uma produtora formada por Ruy no Rio de Janeiro. Quando Samora morre, em 1986, Ruy já
estava com um pé fora do país. Em crônica dos anos 1990 relembrou o que se
passou: “Uma emoção, que vem da tristeza do fracasso do generoso projeto de
uma sociedade não racista e socialista, roída pela guerra, pelo banditismo, pela
ingenuidade, pela corrupção, e pelos interesses políticos e econômicos mais poderosos das potências internacionais”. Em 1981, em Maputo, tinha escrito na
agenda: “A vontade de reescrever/ Não os versos/ A vida”. No mesmo ano compôs
o poema “Meu país”: “Eu tenho como país /Uma asa negra de vento/ Eu tenho
como país/ Migalhas de acácias rubras/ Eu tenho como país/ Espadas fugazes de
madrugadas/ Eu tenho como país/ Um veludo satânico de mulher/ Eu tenho como
país/ uma bússola gangrenada de esperança/ Na verdade eu só tenho como país/
essa insônia teimosa dentro de um sonho vivo”. E assim foi-se embora de vez.
VAVY PACHECO BORGES é historiadora e autora de Ruy Guerra: paixão escancarada, no prelo pela editora Boitempo.
“que a luz
neGra ilumine
o meu rosto!”:
a Grandeza e
o mistério
do cinema de
flora Gomes
Por jusciele oliveira
76
o
cineasta Flora Gomes nasceu no dia 31 de dezembro de 1949,
em Cadique, na antiga Guiné Portuguesa, sob o jugo colonial
português. Estudou cinema em Cuba, no Instituto Cubano del
Arte e Industria Cinematográicos (ICAIC), entre 1967 e 1972,
e no Senegal, sob orientação de um dos mestres do cinema
africano, Paulin Soumanou Vieyra, de 1972 a 1974. Trabalhou como repórter
para o Ministério da Informação por três anos (1975-1977), o que deve ter inluenciado sua produção cinematográica, principalmente aquela relacionada
ao fator histórico e à Guerra de Independência da Guiné-Bissau, presentes no
ilme Morte negada (Mortu Nega, 1987) e no documentário As duas faces da
guerra (2007), que assina com a realizadora portuguesa Diana Andringa.
Flora Gomes iniciou a sua carreira no cinema ao lado de Sana Na N’Hada,
com quem dirigiu dois curtas-metragens em 1976: O regresso de Amílcar Cabral e
Anos no Oça luta. Realizou ainda o média-metragem A reconstrução (1977), com
Sérgio Pina e N’Trudu. Seus longas-metragens de icção são: Morte negada, Olhos
azuis de Yonta (Udju azul di Yonta, 1992), Árvore de sangue (Po di sangui, 1996),
Minha fala (Nha fala, 2002) e A República dos Meninos (Republica di Mininus,
2012) e o documentário As duas faces da guerra já mencionado.
O estilo de Flora Gomes comunica-se com delicadeza, expõe a situação
local e global sem declarações partidárias; evita métodos fáceis de interpretação da realidade; com diálogos irônicos, levando o espectador a reletir e pensar
com sua própria cabeça. Gomes carrega a sabedoria de um griot e a necessidade de apresentar, nos seus ilmes, o seu discurso da memória e da história da
Guiné-Bissau, da África e de Amílcar Cabral, contra o esquecimento do passado
recente, que todos vivem, em busca de um mundo múltiplo, colorido (como o
arco-íris), mas iluminado pela luz negra, regado a utopia e ousadia, para ir além
do que as mentes e os corpos ainda colonizados pressupõem. Ele propõe que
ousemos ir além das expectativas criadas para os jovens, quando a morte é a
nossa única certeza (Minha fala). Não só os mundos dos vivos e dos mortos,
mas os mundos do Norte e do Sul, dos Nós e dos Outros, do erudito e do popular.
77
Narrando histórias que referenciam sua vida, sua arte, sua cultura, seu país.
Os ilmes do cineasta e roteirista bissau-guineense contam histórias locais
com desdobramentos globais, já que falam de trânsitos, música, mulheres, crianças, guerra, colonialismo, neocolonialismo, cosmogonia, de vida, morte, amor,
nascimento, de migração, tradição, modernidade, coletividade, de política; tratam
de problemas socioeconômicos, relacionados com o ecossistema (desmatamento, seca, água), utilizando como cenário o espaço natural, ao ar livre: no meio do
mato, na guerra, na cidade, no bairro, no deserto, na tabanca (aldeia), na rua, na
praia, seja na África (Guiné-Bissau, Tunísia, Cabo Verde, Moçambique), seja na
Europa (França, Portugal); com um discurso irônico, crítico e metafórico, através
de diálogos sem muito confronto entre as personagens, contudo carregados de
simbologias, o que permite uma liberdade maior na exploração do texto discursivo,
interpretativo, por vezes utópico, metafórico e relexivo.
O ilme Mortu Nega, que na tradução para o português pode ser entendido
como “Morte negada” ou “E a morte o negou”, é o primeiro longa-metragem de
icção de Gomes e, por sua vez, é também o primeiro da Guiné-Bissau, com lançamento em 1988. Este narra a trajetória de luta e vida de Diminga (Bia Gomes),
que perderá seus ilhos na guerra, vivida ao lado do marido Sako (Tunu Eugênio
Almada). Diminga passará grande parte do ilme em companhia da mindjer-garandi (mulher-grande, idosa) Lebeth (M’male Nhassé), que participa da luta,
pois sua tabanca foi destruída pelos militares a serviço do colonialismo português. No écran, contemplar-se-ão muitas crianças, jovens, mulheres e homens
carregando armamento, ajudando na libertação, demonstrando que foi uma
luta, que triunfou pela coletividade, com a participação não só dos militares bissau-guineenses e aliados, mas de todo o povo, visto que no ilme Morte negada
o protagonista é o povo guineense. Os heróis são eles, os resistentes, os que
viveram a luta contra o colonialismo português e vivem a luta do dia a dia
contra o neocolonialismo e os problemas políticos do pós-Independência.
Como numa necessidade de continuar a contar a história política, econômica e cultural do seu país, Flora Gomes realizará o ilme Olhos azuis de Yonta,
78
destacando os problemas do momento pós-colonial vividos, após a recente independência, através da jovem e bela Yonta (Maysa Marta), secretamente apaixonada por Vicente (Antônio Simão Mendes), um homem mais velho, amigo dos
seus pais e antigo herói da luta pela Independência do país, mas que vive o conlito de abandonar os seus ideais de luta. Enquanto isso, Zé (Pedro Dias), um jovem
do porto, manda uma carta apaixonada e anônima para Yonta, retratando um
triângulo amoroso, em que não se é amado. A questão central da trama é a carta,
na qual consta um poema, copiada por Zé de um livro, possivelmente europeu, que
destaca as características físicas de uma mulher branca, com olhos azuis e fatores climáticos, que não condizem com os do cenário apresentado. Essa é a crítica
do cineasta ao neocolonialismo, no qual se utiliza o modelo de democracia europeu, como uma mera cópia de carta, sem se preocupar com os contextos locais.
Já na película Árvore de sangue, Gomes afasta-se de Bissau e vai à tabanca
Amanha lundju [Amanhã longe] e à Tunísia (especiicamente o deserto), para
narrar a história de um povo que, quando nasce uma criança, uma árvore deve
ser plantada, visto que o espírito da criança estará ligado a este pau por toda a
vida. Ao dar à luz aos gêmeos Ami e Du (Ramiro Naka), sua mãe planta duas
árvores. Ami, que ica na tabanca, começa a derrubar as árvores para fazer carvão e por isso morre, entretanto, a árvore ou pau de sangue que morre é o de Du,
que partiu e vivia longe da tabanca. Encena-se o retorno de Du para a realização
do ritual fúnebre de seu irmão Ami, o qual também guiará o povo em busca de
novas terras, pois a seca assolou a tabanca. Gomes destacará suas preocupações ambientais, através da relação entre o homem e a natureza.
A comédia-musical Minha fala conta parte da história da protagonista Vita
(Fatou N’Diaye), jovem bissau-guineense, inicialmente apresentada como às
vésperas de partir da sua cidade, com bolsa de estudos para cursar contabilidade, na França, e que carrega uma maldição familiar segundo a qual as mulheres
são proibidas de cantar; caso seja descumprida a tradição, elas morrem. Todavia, numa espécie de desaio subliminar a essa tradição, em Paris, Vita conhece
Pierre (Jean-Christophe Dollé), um jovem e talentoso músico por quem se apai-
79
xona. Em Paris, distante da família e após uma noite de amor, a protagonista
canta. Deixando-se convencer por Pierre e seus amigos, grava um disco (O
medo/La Peur), que se torna um sucesso de vendas imediato na Europa. Mas,
temendo que a mãe descubra que quebrou a promessa, preocupada com a morte de seus parentes, e desejosa de satisfazer a tradição, Vita decide voltar a
casa… para morrer! E com a ajuda de Pierre (atual namorado) e de Yano (Ângelo
Torres), antigo namorado que deixara em Bissau, de seus familiares e amigos
africanos e europeus, Vita encena a própria morte e renascimento, para mostrar
à família e amigos, assim como o cineasta em relação aos possíveis receptores
desse ilme, que tudo é possível, se tiverem a coragem de ousar.
Seu último longa-metragem A República dos Meninos é uma coprodução
Guiné-Bissau, França, Portugal, Bélgica e Alemanha, gravado em Moçambique,
com a participação de Danny Glover, único adulto no enredo. Conta a história
de um país africano (ou não), onde as crianças são responsáveis por tudo que
acontece no local, inclusive organização política, saúde, educação e essa
República torna-se um país estável e próspero. Mas, ela tem um problema: as
crianças não crescem.
Assim, destacam-se nos ilmes de Flora Gomes trânsitos físicos e culturais
em que as viagens e caminhadas das personagens signiicam sempre deslocamento, passagem, movimento e encontro. Interessa sobremaneira considerar a
declaração do cineasta de que em todos os seus ilmes há alguém que viaja. Neles,
as personagens estão a todo instante envoltas em trânsitos, passam grande parte
dos ilmes andando sozinhas ou acompanhadas; como o trânsito entre a vidamorte-vida (rituais funerários/ Minha fala; rituais e viagens iniciáticas/ Árvore de
sangue); e a relação entre tradição e modernidade (Morte negada, Olhos azuis de
Yonta, Árvore de sangue, Minha fala e A República dos Meninos).
Outra presença constante, de maneira mais ou menos direta na obra
do realizador, é o seu país de nascimento, a Guiné-Bissau. Embora o idioma
oicial seja o português, a língua falada por mais de 80% da população é o
crioulo, a mesma utilizada pelo cineasta Flora Gomes desde o início da sua
80
ilmograia. Mais uma referência ao seu país de nascimento e residência é a
personagem histórica, política e cultural da África e da Guiné-Bissau Amílcar
Cabral, o homem que mudou o futuro da Guiné e de Cabo Verde, no momento da
guerra contra o colonialismo português, em 1973, destacando em seus ilmes o
ideal político, cultural e social de Cabral. No ilme Olhos azuis de Yonta, Amílcar
Cabral é caracterizado pela criança Amilcarzinho, irmão de Yonta, representação de futuro para seu país. No ilme Morte negada é anunciada a morte de
Amílcar Cabral, como o poder do discurso e da luta do homem que mudou o futuro da Guiné e de Cabo Verde, pois o ilme encena-se no momento da guerra
contra o colonialismo português, em 1973. Já em Árvore de sangue, representase o modelo de casa pensado por Amílcar Cabral, em relação à cultura local das
tabancas. O ideal político, cultural e social de Cabral também está muito presente nas falas e discursos do menino-soldado Mão de Ferro, no ilme A República
dos Meninos, e na representação dos seus óculos, encontrado pela jovem Nuta,
que permitem vislumbrar o futuro.
A cidade de Bissau é representada e “personiicada” no ilme Olhos azuis
de Yonta, que começa com a canção “Bissau kila muda”, misturada à risada de
crianças, através de um travelling, como se estivéssemos dentro de um carro
e fôssemos responsáveis pelo movimento da câmera. O cineasta nos faz passear pela avenida Osvaldo Vieira, a principal da cidade, que liga o aeroporto ao
centro. A música em crioulo nos conta a história desta vila, deste povo, que
deseja mudar, ao mesmo tempo que a câmera nos mostra as pessoas, os carros, o movimento, os sons, o trânsito, o mercado de Bandim.
As crianças e seus sorrisos são presenças constantes nos ilmes do
realizador. Normalmente elas são exibidas no écran brincando e felizes, ou ainda indo para a escola, demonstrando que a educação formal seria uma possiblidade de mudança da própria situação da criança e do porvir, já que estas representariam o futuro do país, da nação, do mundo. Nessa perspectiva, é pelos
olhos das crianças que o cineasta permite-se fantasiar a realidade e inventar o
mundo, como nas falas de Amilcarzinho (Olhos azuis de Yonta) no ilme dedica-
81
do às crianças do seu país e ao seu ilho mais velho. As crianças são tão usuais
na obra do cineasta, que culmina com o ilme representado quase exclusivamente por crianças, A República dos Meninos.
A trilha sonora é uma marca e grande preocupação do cineasta Flora
Gomes. A do ilme Olhos azuis de Yonta foi gravada por Adriano Atchutchi e
outros membros do grupo original guineense Super Mama Djombo. A trilha do
musical Minha fala, composto de oito músicas originais, é assinada pelo músico e saxofonista camaronês Manu Dibango. No seu último longa, A República
dos Meninos, no qual a “a música é uma personagem [e] serve para ilustrar o
ilme”, quem assina a trilha sonora é o músico senegalês Youssou N’Dour.1
A mulher africana, em particular a bissau-guineense, é destaque na obra de
Flora Gomes. No ilme Morte negada, a personagem Diminga é, literalmente, uma
guerreira, que ajuda os companheiros de luta a carregar armamento para outros
sítios na guerra colonial, sendo também responsável pela plantação e pelas tarefas
domésticas. Yonta (Olhos azuis de Yonta) é o símbolo da beleza africana, que trabalha e luta pelos seus ideais no dia a dia. Há também as várias mulheres que movimentam a tabanca Amanha Lundju (Árvore de sangue), especialmente a mãe dos
gêmeos (Homi e Du), que resolve não cumprir a tradição e sacriicar uma criança.
Vita (Minha fala) ganha uma bolsa de estudos, para estudar na França, trabalha
fora de casa como cantora e ganha muito dinheiro, fugindo do papel/ lugar tradicionalmente atribuído à mulher neste país. E, inalmente, a jovem Nuta (A República
dos Meninos) também foge dos padrões, pois é médica e tem o poder de ver o futuro, através dos óculos que herda de Dubem. Gomes, assim, foge do lugar-comum
de representar a mulher bissau-guineense e africana como única, apresentandonos uma pluralidade de mulheres fora do afropessimismo comumente atribuído
ao continente. Numa tentativa constante de descolonizar as mentes dos seus
1
Roni Nunes, “Entrevista a Flora Gomes, o realizador de República di Mininus”. Publicada
em 16 de maio de 2013, por Roni Nunes, disponível no site http://www.c7nema.net/
entrevista/item/38976-entrevista-a-lora-gomes,-o-realizador-de-republica-di-mininusestreia-maio.html.
82
espectadores, ele espera sempre que estes tentem fazer um esforço para compreender o Outro e não simplesmente o resgate ou o rotule, dessa forma o excluindo.
Nos ilmes de Flora Gomes, a modernidade e as tradições estão entrelaçadas. é o caso de Morte negada, Árvore de sangue e Minha fala, sendo que neste
último se destacam elementos na África do século XXI. O cineasta parece acreditar que a África tem duas faces: uma virada para o passado, outra para o futuro,
incialmente mostradas em contraponto e, no entanto, tornadas inseparáveis
e passíveis de contemporização, nos sentidos de conjugação e simultaneidade.
A África é um continente constantemente dividido entre o peso das origens e a
força dos desejos, entre a colonização e a independência, entre as tradições e a
modernidade, como se as personagens procurassem a conciliação e compatibilização dos dois lados, com elementos das duas partes. é preciso ressaltar que a
leitura não é de contraposição (tradição versus modernidade), mas sim de conciliação e, em alguns momentos, de “negociação” de uma modernidade africana.
O cineasta Flora Gomes, através de sua ilmograia diversa, é objeto de
inspiração, admiração e investigação. Sua obra possibilita a continuidade de
descobertas acadêmicas, cinematográicas e culturais sobre a Guiné-Bissau e
o continente africano. E os inais metafóricos e utópicos de seus ilmes permitem múltiplas leituras e interpretações, pois, segundo o próprio autor, “[...]
nos meus ilmes nunca haverá a palavra “im”, porque meus ilmes não têm
im, eles continuam... a viver, a lutar”.2
JUSCIELE OLIVEIRA é Mestre em Literatura e Cultura pela Universidade
Federal da Bahia, doutoranda do Centro de Investigação em Artes e Comunicação
da Universidade do Algarve-CIAC/Ualg, em Faro/Portugal, com pesquisa sobre as
marcas autorais nos ilmes do cineasta bissau-guineense Flora Gomes. Bolsista
do Programa Doutorado Pleno no Exterior da Capes.
2
Cristina Fina, “Entrevista com Flora Gomes”, in Cinemas de África – Catálogo.
Lisboa: Cinemateca Portuguesa/Culturgest, 1995, pp. 44-49.
um olhar
sobre o mundo
Por annouchka de andrade
84
85
a
inda que ela não seja africana de nascimento, suas origens, seu trabalho e seu interesse pela causa africana permitem dizer que Sarah Maldoror ocupa um lugar privilegiado no cinema negro mundial. Para se deinir, ela diz:
“Sinto-me em casa em toda parte. Sou de toda parte e de
lugar algum. Meus ancestrais eram escravos. No meu caso, isso torna as
coisas mais difíceis. Os antilhenses me acusam de não viver nas Antilhas, os
africanos dizem que eu não nasci no continente africano e os franceses me
criticam por não ser como eles”.1
Sarah Maldoror (ela escolheu esse nome depois da leitura dos Cantos de
Maldoror, de Lautréamont) criou, ao lado de Toto Bissainthe, Timité Bassari e
Ababacar Samb-Makharam, a primeira trupe de teatro negro de Paris, Les
Griots. O objetivo era divulgar autores negros, formar uma escola de teatro e
interpretar todos os papéis a que não tinham acesso. Assim, encenaram Entre
quatro paredes (Huis clos, 1944), de Jean-Paul Sartre, e As criadas (Les Bonnes,
1958), de Jean Genet, sob a direção de Roger Blin.
Depois de uma temporada na Guiné-Conacri, Sarah decide estudar cinema
em Moscou para levar à tela as lutas africanas de Independência. Ela adaptará
diversos autores, precisando: “Não me importa que o autor seja negro ou branco,
se a história for interessante. O cinema não tem fronteiras”. Na Argélia, ela realiza
seu primeiro curta-metragem, Monangambee (1969), adaptação do conto “O fato
completo de Lucas Matesso”, de José Luandino Vieira, que estava preso no Tarrafal (Cabo Verde) em função de suas atividades políticas. Ela convoca atores não
proissionais, todos militantes angolanos, com exceção do ator Mohamed Zinet.
A música ica a cargo do Art Ensemble of Chicago, que tem no curta-metragem
sua primeira colaboração cinematográica. O ilme, produzido pelo Centro da Cinematograia Africana, obtém diversos prêmios (Festival de Dinard, Prêmio da
Crítica no Festival de Cartago, terceiro lugar no Festival de Ouagadougou).
1
Black Art, v. 5, n. 2, 1982, p. 31.
Entre 1971 e 1972, ela realiza Sambizanga, outra adaptação de Luandino
Vieira, no caso, do romance A verdadeira vida de Domingos Xavier. O roteiro é
assinado por Maurice Pons e Mário de Andrade.2 O ilme, de produção francesa, foi rodado no Congo-Brazzaville e conquistou vários prêmios (Tanis de
Ouro em Cartago, Grande Prêmio do Festival de Ouagadougou, entre outros).
No longa, para além da trama dramática tecida ao redor da prisão e da tortura
de Domingos Xavier pelo colonialista português, Sarah Maldoror coloca no
centro sua mulher, Maria, que toma a estrada determinada a reencontrar o
marido. O tom é decididamente íntimo, e possui até mesmo um lirismo meditativo, parti pris raro quando se trata desses assuntos.
Deinitivamente estabelecida em Paris, ela realiza mais de quarenta ilmes, entre os quais retratos de poetas (Aimé Césaire, Léon-Gontran Damas,
Senghor, Louis Aragon) e de artistas (Mirò, Robert Doisneau, Alberto Carlisky,
Ana Mercedes Hoyos), sempre com o mesmo olhar pertinente e a mesma vontade de compartilhar seu encantamento diante do mundo.
ANNOUCHKA DE ANDRADE é ilha de Sarah Maldoror e Mário Pinto de Andrade. Ela trabalha há mais de vinte anos na promoção da diversidade cultural.
Foi responsável pelo serviço audiovisual nos países andinos para o serviço
diplomático francês.
Traduzido do francês por Lúcia Ramos Monteiro
2
A autora refere-se ao nacionalista angolano Mário Pinto de Andrade (1928-1990). [N. T.]
blecaute na
censura:
sobre 25, de
José celso
martinez corrêa
e celso luccas
Por celso luccas
Este texto foi originalmente publicado no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo,
em 16 de outubro de 2016.
88
q
uarenta anos depois da primeira exibição do ilme Vinte e
cinco – A revolução de Moçambique na primeira Mostra de
Cinema de São Paulo, me vem na cabeça alguns short cuts
da famosa sessão de estreia do ilme no Brasil. Era plena
ditadura, eu e Zé Celso, os diretores, estávamos exilados há
vários anos e não podíamos retornar. A nossa cópia 16mm
foi enviada clandestinamente da França ao Brasil, para participar da Mostra a
convite de seu diretor Leon Cakoff. Sem o certiicado de censura, houve a
inesquecível e histórica projeção no Masp, com várias intervenções da plateia
que tomava totalmente os assentos e escadas. Durante a sessão, no escuro do
cinema, houve de tudo do que, na época, não se podia ter: num fato inédito,
houve várias manifestações, palavras de ordem contra a “dura”, furores revolucionários e um receio inquietante de uma invasão ou repressão na sala do
Masp lotada. Era a primeira vez na ditadura que se via e se ouvia uma re-vo-lução em língua portuguesa. A mensagem era clara: des-co-lo-ni-za-ção, libertação! Portugal, África, Brasil.
O 25 foi a luz no im do túnel, como uma chave mágica, ele abriu a era
da abertura política.
Sua chegada provocou um “vento” vindo das terras africanas, um respiro no sufoco dos anos de chumbo. Prenunciou a saída de cena dos militares, a volta dos exilados, o im da censura e a democratização. No Rio, houve
sessões também no MAM, provocando várias intervenções da plateia. O voto
do público consagrou-o como o melhor ilme da primeira Mostra de Cinema
de São Paulo. O júri oicial elegeu , praticamente empatado com o 25, Lúcio
Flávio, o passageiro da agonia (1976), do Babenco. A passagem do ilme na
Mostra foi a deixa de que era a hora de retornar da Europa e mostrar o trabalho pelo Brasil afora.
Na sequência, o ilme, convidado pelo Festival de Gramado, ainda sem a
liberação da censura, foi mostrado numa sessão super tumultuada, onde o
público e praticamente quase todos os cineastas brasileiros presentes já es-
89
tavam sentados na plateia, à espera do ilme, quando aparece um sujeito sombrio da Censura Federal na cabine de projeção querendo impedir a sessão.
Rapidamente desci da cabine e coloquei o fato da proibição que estava ocorrendo para a plateia que, indignada, decidiu coletivamente pela exibição mesmo sem autorização. O censor foi cercado pelos cineastas e, diante da confusão armada no saguão do festival, fugiu, e o ilme teve início. Decorridos vinte
minutos de projeção, a censura, com apoio de funcionários do hotel, consegue
fazer um blackout no quadro geral elétrico, interrompendo novamente a sessão. Brigas, tapas, revolta entre prós e contras e a direção do festival, temerosa de uma interdição, mas pressionada pelo público, decide religar a energia e
a sessão chegou até o inal. Na prática, tivemos que forçar a “abertura” em
todas as cidades em que mostramos o 25 e o O parto (José Celso Martinez
Corrêa e Celso Luccas, 1975) pelo Brasil, numa viagem que duraria dois anos,
projetando os ilmes em todos lugares disponíveis de cada região, usando
como sala de projeção praças, ruas, teatros, auditórios, igrejas, danceterias,
ambulatórios e até boates. Essa trajetória com o cinema ambulante, mambembe e sempre improvisado, começa no Rio Grande do Sul, passa pelo Sudeste,
vai pelo Nordeste e entra na Amazônia, percorre mais de quarenta cidades
brasileiras levando cinema em lugares que o cinema nunca tinha chegado e
todas as peripécias dessa viagem estão contadas no livro
Cinema ambulante, da editora Global.
CELSO LUCCAS é cineasta. Ele codirigiu, com José Celso Martinez Corrêa,
os ilmes 25 e O parto, sobre a revolução portuguesa, em 1975. Ele é também
autor do longa premiado em festivais internacionais Mamazônia – A última
loresta (1996). Em 2016, trabalha na edição de O condor e o dragão, documentário sobre a felicidade e o bem-viver, ilmado no Butão e na Bolívia em
parceria com a diretora Brasilia Mascarenhas.
“mueda é o
respeito pela
realidade
histórica.”
ruy Guerra em
entrevista à
revista tempo
Por sol carvalho
Publicado originalmente na revista Tempo, n. 512, Maputo, 03/08/1980.
92
r
ecentemente Ruy Guerra esteve de novo em Moçambique.
Esteve no nosso país uma vez mais, depois de uma estada
de catorze meses durante a qual realizou o primeiro longametragem cinematográico, produzido após a Independência Nacional: Mueda, memória e massacre (1979-80). A
nossa intenção, ao fazermos uma entrevista com Ruy Guerra, não era falarmos do ilme, do seu signiicado e dos principais problemas que ele coloca,
tanto mais que a Tempo já o izera. Queríamos, sim, esclarecer uma questão
que já é motivo de especulação na imprensa cinematográica ocidental e pôr
“a pratos limpos” o que realmente se havia passado.
Como se sabe, o ilme estreou e icou depois algum tempo parado até
ter entrado, de novo, no circuito comercial. Esse fato foi aproveitado por
certa imprensa ocidental, inclusive a brasileira, para especular sobre o sucedido airmando, nomeadamente, que houvera repressão sobre o ilme, que
o realizador “não tinha podido fazer o ilme como queria” etc. Por detrás
dessas informações “objetivas” escondia-se uma tática de fundo que é bastante cara à imprensa ocidental no que diz respeito à arte: a tese de que, em
socialismo, não é possível realizar obras de arte em “liberdade”, como se a
proclamada e abstrata liberdade existisse nos regimes capitalistas.
Mas, por que de fato se pretendeu dar essa ideia? A mim, particularmente, jornalistas brasileiros que encontrei em Cuba durante a cimeira dos
Não Alinhados izeram-me perguntas nesse sentido.
A oportunidade de conversar diretamente com Ruy Guerra sobre o
assunto, era, pois, imperdível e, por isso, insistimos em lhe pedir para descrever todos os passos da realização do filme e o que realmente tinha se
passado.
Ruy Guerra nasceu em Moçambique e talvez poucas pessoas saibam
disso. Após trinta anos de ausência volta para, como diz, para “reconverterse ao seu país de origem”, num processo que ele próprio assume como difícil
e, tanto quanto nos pareceu, com profunda responsabilidade.
93
Falamos, assim, das relações de Ruy Guerra com o nosso (seu) país e
sobre o que viu em Moçambique.
O ilme Mueda e o homem Ruy Guerra em relação a Moçambique constituem, pois, os eixos fundamentais da entrevista que se segue. Questões que
ainal não estão desligadas pois é a realização do ilme Mueda na República
Popular de Moçambique que constitui a base material de uma nova relação do
homem (Ruy Guerra) com o país.
TEMPO — Esta é mais uma das vezes que você está em Moçambique.
Por que mais esta presença?
RUY GUERRA — Esta minha vinda a Moçambique para trabalhar durante
catorze meses no Instituto Nacional de Cinema não foi a primeira. Já tinha vindo
para a Independência e para o III Congresso.1 Na realidade, o que se passa é o
processo de uma pessoa que nasceu num país na época colonial, saiu por diversas razões (entre as quais o fato, justamente, de ter nascido numa colônia) e que
a partir do momento da Independência e depois de muitos anos no exterior, procura reconverter-se ao seu país de origem. Agora, essa reconversão é sempre um
processo difícil, porque um longo exílio, de trinta anos, implica em novos hábitos,
criar novas raízes noutros locais. Embora a proissão de cinema já seja um pouco
desenraizada pelo seu próprio processo de trabalho, radiquei-me no Brasil, a que
iquei ligado geográica, física e sobretudo culturalmente. Quer dizer, interessoume o Brasil porque correspondia a uma cultura mais próxima da minha de origem
e também por ser um país em vias de desenvolvimento, um país com uma problemática do Terceiro Mundo, embora com governos ditatoriais sucessivos.
T — Uma das suas estadas prolongou-se durante catorze meses. Alguma
razão especial?
1
Momento, em 1977, em que o movimento decidiu transformar-se em partido político,
de cunho marxista-leninista (Partido Frelimo). [N. E.]
94
R.G. — Essa estada mais longa que iz aqui foi em uma perspectiva de me
reencontrar culturalmente, e na busca da minha própria identidade, dentro de
uma área de trabalho especíica como o cinema, no momento em que o cinema
está começando a nascer em Moçambique.
Evidentemente, todos os nascimentos são sempre processos difíceis e
dolorosos. Principalmente devido também às minhas indeinições diante desse processo pessoal de volta às origens, o meu trabalho icou dirigido para
diferentes áreas: uma área reorganizativa, no sentido da própria tentativa da
descolonização das estruturas do cinema em Moçambique, as áreas de distribuição, exibição e a área que constituía a tentativa de começar a lançar as
bases de produção que eram inexistentes, pois o que vinha da época colonial,
especialmente aqueles “jornais de atualidades”, não tinha signiicado nenhum, a não ser usar o sistema para vender um produto qualquer.
Então, foi dentro dessa área, desse quadro de produção, que procurei
atuar e é natural que isso tenha acontecido porque a minha formação sempre
foi voltada para a produção.
T — Foi durante essa estada mais prolongada que surgiu o Mueda. Como
foi o processo?
R.G. — Não fomos nós, aqui no Instituto, que decidimos fazer um longametragem sobre uma icção. Foi a própria realidade existente de um grupo
teatral que já se exercia dentro do fato Mueda desde as lutas de Libertação e
que foi sedimentando essa tradição de todos os anos na data de Mueda reconstituírem o fato. Diante desse conhecimento, nós resolvemos experimentar dentro de uma realidade existente. Fomos ilmar Mueda sem sabermos
sequer o que era o espetáculo, como é que ele se exercia e sem termos nenhuma colocação a priori, nem de julgamento estético nem de político. Fomos sob
o ponto de vista inteiramente jornalístico.
Quando ilmamos pela primeira vez, nem sabíamos qual era a sequência
dos acontecimentos. Eu procurei saber com o responsável: “Como é que a
95
coisa se vai desenrolar?”. Ele começou a contar que era tão complicado que
não adiantava explicar. Então, o melhor é manter a surpresa diante do fato e
ilmamos uma vez, duas vezes, sem que houvesse da nossa parte uma única
interferência de ordem dramática. Não houve nenhuma mise en scène nem
intenção nenhuma de marcação. Apenas tentamos captar a estrutura própria
da peça, com todos os seus valores.
Viemos com o material, passamos esse material e demo-nos conta de
que tínhamos saltado alguns aspectos fundamentais da própria narrativa estrutural da peça.
Tínhamos também problemas de ordem técnica, como um risco no negativo. Então, voltamos para inalizar as ilmagens durante dois dias. Completamos o trabalho e viemos com o material.
Ao mesmo tempo sensibilizou-nos o processo desse tipo de abordagem,
um fato dramatúrgico como Mueda, que tem uma estrutura na qual existe uma
relação com o público, que já tem sua tradição de espetáculo exercido na localidade. Fomos elaborando uma forma simples de contar e então pareceunos que seria interessante a forma narrativa oral, tradicional, até pelo fato de
a própria cena ser uma memória, uma reminiscência.
Evidentemente havia também a importância política de Mueda como fator político, de mais tarde ter delagrado o processo da luta armada e, do nosso ponto de vista, achamos interessante fazer pequenas entrevistas aos participantes. Então, falávamos com os camponeses que estavam lá na altura,
com os quadros, e fomos fazer essas entrevistas. Eram entrevistas não dirigidas, nem sequer organizadas para integrarem um discurso narrativo, mas sim
uma acumulação de material na memória não só do espetáculo, mas das próprias pessoas que o assistiram ou presenciaram.
T — Depois desse processo, como surgiu então o ilme?
R.G. — Dessa amálgama de material, procuramos organizar-nos dentro
do fato especíico do ilme. Primeiro, vimos que tinha a duração de um longa-
96
97
metragem: no princípio, nós não sabíamos se duraria vinte minutos, quinze,
meia-hora ou quarenta. Então, concordamos com um longa-metragem, o que
nos satisfez muito porque nos obrigou a tomar posição diante desse fato.
Depois vimos a importância de ser uma icção, coisa que nunca tínhamos experimentado, o que também nos alegrou muito. Em terceiro lugar, nós
procuramos, a partir desta situação, um julgamento de ordem política e estética, aspectos absolutamente inseparáveis um do outro.
Para mim talvez fosse mais difícil do que para os camaradas do Instituto
que participavam do mesmo processo de trabalho, porque tenho uma herança
de hábito do cinema ocidental industrializado, de uma estética que, por mais
bruta que seja na sua matéria, tem hábitos de qualidade fotográica, de qualidade no sentido abstrato. Assim, para mim foi muito rico esse processo de
depuração de uma série de valores não fundamentais para tentar unicamente
voltar para o nível da linguagem.
Então, nós estruturamos esse ilme a partir da própria peça, entrecortada com as entrevistas para esclarecer e dar a dimensão da grande força da
peça, justamente na sua simplicidade e na sua eicácia, na sua durabilidade
em relação ao público. Ela parece uma coisa viva para os espectadores e, no
im, passa a ser uma coisa fechada na própria duração do ilme, na ausência
da participação do público, a não ser aquele público que participa também
como ator do ilme.
T — Houve certa imprensa, inclusive a brasileira, que se utilizando do fato
de o ilme ter estreado e só muito depois ter entrado em circuito comercial,
desenvolveu uma campanha no sentido de dizer que tinha havido pressões
sobre a tua obra etc. O que se passou realmente?
R.G. — O que aconteceu foi o seguinte: recolhemos informações e dados
que nos permitiram ter uma visão mais ampla, mais articulada e que nos serviu, dentro das deiciências do nosso próprio material, como uma coluna vertebral que permitia alinhavar, esclarecer e qualiicar esse discurso recolhido
de forma anárquica: montamos o ilme como pudemos, procuramos, então,
com essa coluna vertebral, estabelecer uma nova linguagem.
Depois disso, Mueda icou parado: houve uma exibição e não saiu mais,
mas acho que ninguém se abalou por isso. Não icamos afetados de maneira
nenhuma porque essa paragem foi resultante de uma análise política de certas declarações que tinham sido feitas.
Acontece que foram contados determinados aspectos sobre o ponto de vista histórico que são aspectos corretos, mas que ainda não foram retiicados dentro de um processo, ainda não estão suicientemente discutidos historicamente,
para serem abalizados. Então, diante desse fato, passaria o ilme a ter valor de
história oicializada de determinados acontecimentos que precisam ainda de ser
discutidos. Diante disso, dissemos que tínhamos que esperar um pouco porque há
coisas que não foram discutidas ainda. Para nós, pareceu-nos uma coisa muito
natural e simples. O que acontece é que pelo fato de o ilme ter saído e ter coincidido com uma necessidade de trabalho minha (que eu já tinha compromissos anteriores com a minha saída para o Brasil, saída essa que sempre foi temporária
porque eu continuei vinculado ao Instituto em termos não só afetivos, mas contratuais, apenas como um participante), isso permitiu toda uma área de indeinições,
reações, de começarem a vender essa imagem que havia de desentendimentos
políticos, estéticos, quando não havia nada disso! O que aconteceu, inclusive antes de eu sair, foi que quando eu ia fazer essas alterações que me parecem justas,
certas, cabidas e necessárias, coincidiu que o então Ministro da Informação chamasse-me juntamente com os quadros diretivos do Instituto, me desse essa exposição e perguntasse quais seriam as alterações possíveis. Não houve sequer um
autoritarismo no sentido de “tem que mudar” ou “não tem que mudar”. Foram levantadas objeções, dizendo que seria mais útil, mas que não seriam nem indispensáveis se houvesse uma impossibilidade técnica. Eu consideraria até não aceitar
se não fossem incorreções de ordem tão importante, mas de fato não havia nenhuma impossibilidade técnica, como não há, a não ser a morosidade de tempo e
a nossa capacidade operacional, além das nossas deiciências estruturais.
98
Então eu disse “Não, não há, vamos fazer”. Mas, como eu saí, os camaradas do Instituto icaram um pouco receosos de fazerem essas alterações
porque eu estava dirigindo o ilme, embora eu tenha repetidamente dito: “Façam essas alterações, não há problema nenhum”. Inclusive na última viagem
que dirigentes do Instituto Nacional de Cinema izeram ao Brasil e que estivemos juntos, falou-se de Mueda e eu disse-lhes: “Terminem o Mueda, não há
problema nenhum!”. Mas houve sempre uma espécie de pudor diante do fato
estético. Mas, importa ressaltar um lado extremamente positivo disso que é o
respeito diante de uma posição autoral de um fato estético. Esse cuidado que
os camaradas tiveram fez-me icar extremamente sensibilizado, sem dúvida
porque eu preferia assumir esse trabalho, mas como não havia nenhuma possibilidade de ser eu a fazê-lo, eles podiam fazê-lo à vontade. Mas isso abriu um
espaço especulativo que permitiu uma série de julgamentos e indeinições e
de tentar então colocar essas imagens repressivas dentro do processo autoral, do processo estético. Isso não só não houve, como não há. Inclusive, uma
das razões da minha vinda aqui é justamente para acabar o Mueda, dentro
dessa retiicação e continuando com todo o espaço de criatividade, de liberdade para fazer isso, simplesmente levando em consideração a responsabilidade
histórica. O que desejo ressaltar de tudo isso é que me parece que essa conotação repressiva que querem colocar é justamente contrária à verdade. é simplesmente uma relexão mais aprofundada feita por certos quadros dirigentes
e que têm conhecimentos históricos daquele processo que nenhum de nós tinha. Ora, essa relexão é de grande respeito à realidade política, histórica sobre a qual nós gostaríamos, inclusive, de basear todas as nossas pesquisas,
todos os nossos trabalhos. Foi exatamente o contrário daquilo que foi colocado ou que tentaram colocar para o público. é um grande respeito pela história
também porque as pequenas indeinições que seriam abalizadas davam a
Mueda uma dimensão nacional e que o fato, em si, não tinha. é justamente
uma posição de não mitiicar Mueda, de certa forma, colocando-o na sua devida e importante posição histórica.
99
T — Uma última questão. O teu contato com Moçambique durante catorze meses com certeza ultrapassou a simples realidade cinematográica. De
qualquer modo, como pessoa ligada à cultura, o que pensas do que viste?
R.G. — Há vários fatos que eu acho importante ressaltar. Por exemplo, eu
gostaria de realçar sempre, para todos os camaradas do Instituto, a situação extremamente privilegiada que nós temos aqui em termos de possibilidade e de capacidade de trabalho. Eu ressalto, por exemplo, que nestes catorze meses em
Moçambique, em termos de produtividade, o meu próprio processo de transformação é multiplicado, pelo menos, por um coeiciente cinco, em relação ao tempo
físico que tenho nos países capitalistas. Porque, com todas as deiciências de ordem técnica, com todas as deiciências de material, das condições que se têm
neste Instituto que é extremamente subdesenvolvido, sob o ponto de vista técnico, apesar disso pode-se estabelecer uma dinâmica de trabalho. Meu conceito de
trabalho, então, não é só vinculado à produtividade que conseguimos e que ainda
é pequena (devido a essas deiciências que podem ser ultrapassadas rapidamente com pequenos subsídios de ordem técnica), mas principalmente à velocidade
que se pode adquirir na linguagem, na expressão e no elemento audiovisual como
um processo de transformação criativo. Essa velocidade é enorme se comparada
com os países capitalistas. Vejamos um país com “liberdade de expressão” como
os Estados Unidos da América: na realidade, essa liberdade de expressão é mentirosa porque é tão fechada nos condicionamentos econômicos e no âmbito das
relações de trabalho e das hierarquias, que é reduzidíssima. Essa “velocidade”
ainda é mais reduzida, na medida em que os processos da rentabilidade, os esquemas do próprio sistema, determinam um aspecto relativo, de dirigismo, um aspecto de condicionalismo e uma vinculação tão direta com a ideologia capitalista que
passa a ser um elemento repressivo, difuso, mas tão presente, tão atuante e tão
percebido no dia a dia do trabalho. Por isso, eu sempre senti que nós aqui estamos
altamente privilegiados, até permitindo uma velocidade de produção que só não
adquirimos apenas porque ainda não estamos preparados para isso, mas que, a
curto prazo, acho que teremos possibilidades de adquirir.
100
Há uma coisa que eu gostaria de colocar, como um dado fundamental em
relação a mim. é o seguinte: eu nasci em Moçambique e sempre me considerei
moçambicano, nunca me considerei português, embora tenha um passaporte português. Fui para o Brasil porque era um país que tinha uma resposta cultural próxima das minhas origens. Se não estou na Suécia não é porque tenha medo de frio,
até porque suporto bem o frio. é porque, na realidade, é uma cultura diferente.
Mas, nessa cultura existente eu estava dentro de um sistema que sempre procurou esmagar esse tipo de cultura, porque evidentemente o conceito de cultura
não existe desvinculado de um conceito ideológico e eu acho que em qualquer
revolução, ela, a cultura, é um dos elementos dinâmicos desse processo. De modo
que no Brasil sempre estive num ambiente cultural em conlito com as áreas políticas, e esse conlito signiica que há uma política cultural reacionária. Na realidade, icamos remando contra a corrente e a corrente é muito forte porque ela está
institucionalizada, obedece a interesses econômicos multinacionais. Então, quando eu volto a Moçambique, considerando-me moçambicano e, quando eu estabeleço essa ponte pessoal de trinta anos de ausência física com o país, é uma reconversão à procura da identidade de uma ideologia com uma cultura. Isto eu gostaria
que icasse bem claro: responde a uma necessidade profunda, porque é evidente
que se eu estivesse atualmente num país, depois de trinta anos, que conseguisse
conciliar essa ideologia com essa cultura e com o meu trabalho especíico de
“mass media”, eu talvez viesse visitar Moçambique com a maior satisfação, com a
maior afetividade, mas sem uma proposta de enraizamento.
JOãO LUIS SOL DE CARVALHO nasceu em 1953, na Beira, Moçambique. Estudou no Conservatório Nacional de Cinema, em Lisboa, e trabalhou como jornalista, editor e fotógrafo. Depois da Independência, foi nomeado diretor do
Serviço Nacional da Rádio Moçambique. Trabalhou na revista Tempo com Mia
Couto e Albino Magaia. Realizou uma série de ilmes, entre os quais O jardim
do outro homem (2007) e Caminhos da paz (2012).
cinema e
conflito no
moçambique
pós-colonial:
imaGens de
arquivo como
ilustração e
evidência em
estas são as
armas (1978)
Por robert stock
Este texto é a tradução do artigo “Cinema and Conlict in Postcolonial Mozambique: Archival
Images as Illustration and Evidence in Estas são as armas (1978)” publicado em Mediations of
Disruption in Post-Conlict Cinema, editado por Martins, Adriana; Lopes, Alexandra; Dias, Mónica
(Palgrave, 2016), pp. 75-91. Reproduzido e modiicado com a permissão da Palgrave Macmillan.
102
103
q
uando o ilme Estas são as armas foi lançado, em 1978, apenas três anos tinham se passado da Independência de Moçambique. Dentro desse curto período, o jovem país governado pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) havia
fundado o Instituto Nacional de Cinema (INC). Durante as
duas décadas seguintes, o INC produziu uma série de longasmetragens de icção e documentários, assim como o jornal cinematográico
Kuxa Kanema, tornando-se um dos mais importantes centros de produção
de cinema na África Subsaariana dos anos 1970 e 1980. O INC também se
tornou um ponto de encontro para cineastas, técnicos, operadores de câmera e outros colaboradores vindos das Américas e da Europa. Estas são as
armas incorpora essa conexão transnacional na medida em que seu diretor,
o brasileiro Murilo Salles, colaborou com o roteirista e político Luís Bernardo
Honwana na produção do primeiro documentário de longa-metragem realizado pelo INC.
No entanto, após o desfecho da longa guerra colonial e do subsequente
im do governo português em 1975, outros conlitos emergiram devido à situação política na África Subsaariana. Nesse contexto, um Moçambique independente “era visto com alarme pelos regimes de minoria branca na Rodésia
e na África do Sul”, conforme airma William Finnegan.1 O governo moçambicano tomou uma posição manifestamente contra o regime de Ian Smith na
Rodésia adjacente ao fechar suas fronteiras e romper todas as conexões com
o país em 1976. Logo depois, a ofensiva rodesiana começou e tropas passaram a atacar alvos civis no território moçambicano. Essa ação e outras operações inauguraram uma das mais violentas guerras na história sul-africana:
um conlito complexo e prolongado que terminou somente com o Acordo Geral de Paz, em 1992.
Estas são as armas articula essa tensão esboçada acima no Moçambique do inal dos anos 1970 e trata das investidas rodesianas contra o país
depois de 1976. O ilme descreve a perda de vidas humanas e a destruição da
infraestrutura civil, incluindo pontes, hospitais e escolas, causadas por esses
ataques, com a história colonial e a luta por independência. Ele busca legitimar a Frelimo e defende a ideia de “libertação” e independência enquanto
acusa a Rodésia de colaborar com o Império português em sua guerra contra
os nacionalistas moçambicanos. Dessa forma, condena também o uso de excessiva violência militar contra alvos em Moçambique após 1976.
Para desenvolver seu argumento, o longa utiliza-se de diversas fontes
audiovisuais, incluindo ilmes sobre a Frelimo e a luta armada entre 1964 e
1974. Ao mesmo tempo, Estas são as armas se apoia sobre jornais cinematográicos coloniais e ilmes produzidos pela Rádio Televisão Portuguesa e pelo
Serviço Cinematográico do Exército. As imagens coloniais incluídas foram
originalmente produzidas por companhias que trabalhavam em Lourenço
Marques e levadas aos arquivos do INC depois da mudança política em 1975.
Ou seja, as extensas sequências que Estas são as armas retoma para tornar
sua argumentação plausível advêm de arquivos oiciais. O ilme, assim, emprega imagens em movimento feitas em um contexto em que o cinema pertencia às “políticas culturais de dominação colonial”,2 aplicadas “para justiicar a imposição da […] autoridade colonial”.3 Ele então lhes confere novo
signiicado. Como muitas outras produções cinematográicas nesse sentido,
Estas são as armas exerce uma própria política pós-colonial da memória.
Além do material anterior a 1975, também são utilizados trechos do documentário O massacre de Nyazônia (Fernando Silva, 1977). O ilme objetivava
“fornecer um equilíbrio às reportagens sobre os acontecimentos na Nyazônia
2
William Finnegan, A Complicated War: The Harrowing of Mozambique. Berkeley: University of California Press, 1992, p. 31.
1
Frederick Cooper e Ann Laura Stoler, “Introduction: Tensions of Empire: Colonial Control
and Visions of Rule”. American Ethnologist, v. 16, n. 4, 1989, p. 619.
3
Peter J. Bloom, French Colonial Documentary: Mythologies of Humanitarianism.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008, p. VII.
104
105
na imprensa ocidental, que apresentavam quase sempre o ponto de vista do
governo na Rodésia”.4
Esta breve análise de Estas são as armas destaca algumas das técnicas
particulares usadas no ilme. Começa-se com a premissa de que a estrutura
e a produção de documentários que abordam principalmente tópicos políticos e históricos não podem ser reduzidas a modelos em que o comentário em
voz over é concebido como aquilo que impera inquestionavelmente sobre as
imagens. Como será demonstrado, estratégias adicionais podem trazer à
tona características visuais do material fílmico colonial e transformar essas
imagens em evidências.
nicipal.6 O Estado Novo português, com seu discurso sobre a missão colonialista e evangelizadora, enfatizava o signiicado de iguras como Mouzinho, um
oicial militar de liderança nas campanhas de ocupação em torno de 1900.
Enquanto as imagens em movimento da estátua de Mouzinho feitas antes de
1974 foram usadas como parte do discurso oicial que ressaltava a presença
dos portugueses no leste da África, assim como seus méritos em desenvolver
uma colônia e construir centros urbanos similares aos europeus, no contexto
de Estas são as armas, elas oferecem um pano de fundo para um contra-discurso que acusa os poderes coloniais de “agressão”. A voz over apresenta-os:
IMAGENS COMO ILUSTRAçãO
Estas são as armas procura airmar cinematograicamente a posição de
um Moçambique independente na África Subsaariana, e foi planejado como
uma contribuição para um complexo processo de construção de uma nação
no interior de uma conjuntura geopolítica regulada por regimes de minorias
brancas. Portanto, ao analisar-se a perspectiva e o discurso do ilme, deve-se
considerá-lo como uma forma de política de identidade dependente da construção de uma história nacional própria conforme o “liberation script”.5 Nes-
te quinhentos anos, e, principalmente depois da chamada Guerra de Ocupação, nós aprendemos
se cenário, o primeiro passo desta análise consiste em perscrutar a voz over
como veículo de informação sobre a autoria e os argumentos expostos pelo
ilme. Segue então uma análise do emprego das imagens de arquivo como
uma forma de ilustração da retórica verbal através da informação visual.
Uma cena no começo do ilme demonstra bem essa técnica. Os créditos
iniciais são seguidos de imagens da estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque localizada no centro de Lourenço Marques, em frente à Câmara Mu-
ra e venera o líder militar (de baixo para cima), servem aqui para ilustrar a
dimensão violenta do processo de colonização em Moçambique em que a
prisão de Gungunhane por Mouzinho e suas tropas em 1895 ocupa um lugar
central. O material visual é subordinado ao comentário sem referência explícita ou explicação sobre as imagens.7 Sem especiicação, as ilmagens oferecem uma visualização não problemática do texto. Consequentemente, os
Moçambique foi dominado pelo colonialismo português durante quinhentos anos. Duranque o verdadeiro rosto do colonialismo é a agressão. Os exércitos coloniais são exércitos de
agressão. O colonialismo, ele próprio, é uma agressão permanente. Uma agressão que tem por
im manter a dominação para realizar a exploração.
A hierarquização dos elementos sonoros e visuais nessa cena é evidente. As imagens, reforçando a monumentalidade de Mouzinho e sua memorialização por meio do uso de contra-plongées que promovem o olhar que admi-
6
4
O massacre da Nyazônia foi um ataque das forças militares da Rodésia contra um campo
de refugiados no qual centenas de pessoas morreram.
5
Paolo Israel, “A Loosening Grip. The Liberation Script in Mozambican History”. Kronos, v.
39, n. 1, 2013, pp. 10-19.
O monumento foi removido em 1975. Hoje, a estátua de Mouzinho e os relevos que
mostram o aprisionamento de Gungunhane podem ser visitados no pátio interno do Forte
de Nossa Senhora da Conceição, em Maputo.
7
Judith Keilbach, Geschichtsbilder und Zeitzeugen: Zur Darstellung des Nationalsozialismus im bundesdeutschen Fernsehen. Münster: Lit, 2010, p. 100.
106
107
espectadores são levados a se concentrar mais na voz over dominante do que
na banda visual aparentemente óbvia. Com relação aos “quinhentos anos”
mencionados no comentário, ica claro que o ilme, com essa declaração,
simpliica a complexidade da realidade histórica. Quando vista em seu contexto sociopolítico, a airmação revela sua relação estreita com o discurso
oicial da Frelimo acerca do passado colonial, em que predominava uma visão
dicotômica do colonialismo como um regime opressor em oposição ao movimento independentista.
IMAGENS DE ARQUIVO COMO PROVA
Embora o ilme se apoie principalmente sobre um esquema no qual a
voz over predominante é ilustrada por imagens de arquivo, algumas cenas
empregam outras estratégias e colocam em evidência imagens particulares
para articular certos argumentos e direcionar a atenção do espectador ao
visual. A imagem é designada como “um valor argumentativo e visualmente
intrínseco”.8
Um tal momento ocorre na sequência sobre a presença das tropas rodesianas em Moçambique e sua implicação na guerra colonial/ luta armada.
Além de ter sido um vizinho importante e um parceiro para Moçambique colonial e Portugal, a Rodésia concedeu apoio militar para a construção da barragem de Cahora Bassa. Dessa forma, uma nova constelação (militar) surgiu
no norte de Moçambique, na qual a Rodésia e a África do Sul mobilizavam
tropas para a área das obras e comboios para o transporte de materiais.
No ilme, um contraste é estabelecido entre uma voz over masculina que
apresenta o contexto acerca de Cahora Bassa, incluindo imagens ilustrativas,
e uma voz feminina que oferece uma descrição detalhada de uma fotograia.
Diante de um primeiro plano fechado em que se vê somente as pernas de alguns soldados, os espectadores podem ser confundidos pelo enquadramento
8
Ibidem, p. 103
inicial até que o comentário informa: “Esses de calções, são rodesianos”. O
elemento de interesse nessa imagem é, de fato, o uniforme, por meio do qual
alguns dos soldados podem ser identiicados como membros das forças armadas rodesianas. Quando o ilme corta subsequentemente para mostrar a fotograia inteira, têm-se a impressão de que provavelmente ela fora tirada por um
dos soldados, uma vez que suas características denotam mais uma imagem
instantânea do que um retrato ordenado de grupo. Porém, a voz over feminina
continua a recontextualizar a imagem ixa: “Esta foi uma das muitas operações conjuntas que realizaram com o Exército colonial português”.
Ao invés de dominar a imagem, a voz over parece oferecer uma “legenda”
para conduzir o olhar do espectador. As instruções para observar detalhes
localizados no interior da fotograia aprofundam o isolamento de elementos
individuais, especiicamente os uniformes dos soldados, acentuando a “dimensão literal da imagem”. Por meio desse recurso, a fotograia é transformada em um tipo de prova visual, operando como instrumento de produção de
evidências na argumentação do ilme. Em consequência, a combinação da voz
over e da fotograia contribui para reforçar a deslegitimação da política rodesiana que visava enfraquecer e desestabilizar os esforços da Frelimo desde os
anos 1960. Visto assim, é preciso levar em conta que no ilme se produz uma
visão particular da guerra civil, conforme o discurso da Frelimo, enfatizando a
importância de inimigos externos.
CONSTRUINDO A VITóRIA ATRAVéS DO SOM E DA IMAGEM
As perspectivas políticas do ilme são claramente manifestadas na
apresentação da Frelimo. Ao longo de toda a narrativa, o movimento é caracterizado como uma força uniicada que combate com sucesso o poder colonial. Embora o ilme esboce uma versão um tanto simpliicada e parcial da
guerra colonial/ luta armada em Moçambique, algumas das sequências merecem ser analisadas pela aplicação de estratégicas fílmicas e técnicas persuasivas que utilizam imagens de arquivo.
108
109
Uma das sequências de Estas são as armas, que é central a esse respeito, desenvolve um argumento sobre a luta armada da Frelimo contra o regime
colonial em Moçambique. O combate é reconstruído por meio da justaposição
de imagens oriundas de ilmes da Frelimo com outras imagens de arquivos
produzidas pelas forças armadas portuguesas. A cena que mostra a ação militar precede um trecho do programa de televisão Conversas em Família, em
que nega a existência de um conlito armado em territórios ultramarinos. Sua
declaração, apresentada por Marcello Caetano sem comentário interferente,
é subsequentemente contradita: imagens mostrando soldados portugueses
em territórios africanos levantam questões quanto à situação do momento
em Moçambique. Além disso, planos de soldados portugueses feridos demonstram que o conlito estava longe de ser resolvido. No entanto, essas
imagens servem apenas como pano de fundo para a voz over feminina:
Marcello Caetano diz que não há guerra colonial. Ele queria que os soldados portugueses
viessem a Moçambique matar secretamente e também morrer secretamente. Caetano não sabia
que não se pode parar o vento com as mãos. Não se pode derrotar um povo determinado que
pega em armas para se libertar de dominação.
Para então mostrar que a luta pela independência foi bem-sucedida,
uma montagem usa diferentes imagens de veículos militares portugueses. As
cenas coloniais mostram uma parada militar em Lourenço Marques, em que
soldados portugueses marcham seguidos de artilharia e de veículos militares.
As imagens são entrecortadas com um plano que mostra soldados percorrendo um terreno rural em uma viatura, e são seguidas por imagens de um imenso ferro-velho com inúmeros veículos militares destruídos e enferrujados.
Enquanto as imagens da parada permanecem intactas, preservando inclusive
a marcha militar de sua banda sonora, as vistas do ferro-velho são acompanhadas por um silêncio completo. Essa confrontação entre uma máquina militar portuguesa móvel e sonora e um cemitério de veículos imóvel e silencioso
é repetida três vezes antes de ser sucedida por uma breve alusão visual à
Independência de Moçambique, em 1975. O silenciamento deliberado da trilha sonora obriga o espectador a perceber as implicações das imagens do
ferro-velho. A montagem sonora sustenta a criação de uma narrativa audiovisual propondo que as ações militares (vencedoras) da Frelimo conduziram
de fato Moçambique à Independência – uma perspectiva um tanto unilateral
que minimiza as diiculdades encontradas pelo movimento independentista
durante a luta armada, reproduzindo dessa forma o discurso oicial da Frelimo
sobre a “libertação” do país da opressão colonial.
CONCLUSãO
Esta análise mostrou como Estas são as armas utiliza diferentes estratégias para recontextualizar imagens de arquivo a partir de uma posição póscolonial. As imagens demonstram e sustentam os argumentos articulados
pela voz over; elas ilustram elementos particulares ou estão inseridas em
montagens em que o som e sua ausência e a banda visual constroem o discurso
por meio de justaposições divergentes. Contudo, uma perspectiva política
mantém-se onipresente ao longo do ilme, em que uma narrativa histórica
oicial – conformando-se ao “roteiro da libertação” – é produzida. Mas ao passo que Estas são as armas dá voz ao discurso de uma elite nacional engajada
na construção de um novo país, ele nega essa voz ao povo comum. No contexto de uma história nacional idealizada escrita pela Frelimo, questões internas
como o tratamento dos oponentes e antigos prisioneiros políticos, ou os desaios enfrentados pelo movimento na tentativa de construir o “Homem Novo”
são marginalizadas.9 Essa lógica não surpreende quando se leva em conta que
o ilme está estreitamente ligado ao período em que prevalecia certo tipo de
cinema: o “cinema de libertação”.
9
Victor Igreja, “Frelimo’s Political Ruling through Violence and Memory in Postcolonial
Mozambique”. Journal of Southern African Studies, v. 36, n. 4, 2010, pp. 781-99
110
Após as mudanças sociopolíticas de 1989, a produção cinematográica
foi reestruturada, e o livre mercado de produção da década de 1980 deu lugar
à produção do setor privado no início dos anos 1990. Apesar de um grande
número dos ilmes produzidos em Moçambique tratarem de problemas sociais e de saúde (por exemplo, de Aids), uma parte considerável também se
dedica à realidade contemporânea ou à história do país. Nesse aspecto, um
dos mais importantes cineastas é Licínio Azevedo, cujos ilmes buscam discutir o legado do passado colonial que continua a impactar a sociedade moçambicana. Todavia, considerando-se as recentes iniciativas de comemoração, oiciais do governo celebraram “o ano de Samora Machel” em 2011, e a
Frelimo comemorou seu quinquagésimo aniversário em 2012. Nos últimos
anos, estátuas de Samora Machel foram erguidas em várias praças centrais
de cidades moçambicanas. Contra o pano de fundo de uma paisagem memorial (urbana) moldada oicialmente e de intervenções fílmicas dispersas, permanece a questão se as diferentes tentativas cinematográicas de negociar o
passado de Moçambique – as oiciais e as experimentais – vão provavelmente contribuir para uma discussão e revisão daquilo a que Israel e outros chamam de “roteiro da libertação”.
ROBERT STOCK coordena o grupo de investigação “Participação e Mídia” na
Universidade de Konstanz, Alemanha. Ele estudou etnograia europeia e faz o
doutoramento em estudos culturais.
Traduzido do inglês por Beatriz Rodovalho.
miradas
anticoloniais
de santiaGo
Álvarez em
moçambique
Por cristina alvares beskow
112
113
Arma y combate son palabras que asustan, pero el problema es compenetrarse con la
realidad, con su pulso… y actuar (como cineasta).
Santiago Álvarez1
o
cinema cubano combateu nas trincheiras anticoloniais de
Moçambique. Durante a guerra contra o império português
e após a Independência do país, em 25 de junho de 1975,
muitos cineastas estrangeiros empunharam câmeras e
captaram imagens que viraram estatutos de prova da libertação. O cubano Santiago Álvarez projetou suas miradas, produzindo dois documentários que expressam o espírito revolucionário da recém-fundada República Popular de Moçambique. São eles Maputo, meridiano novo (1976) e
Nova sinfonia (1982), além de uma reportagem cinematográica no Noticiero
ICAIC Latinoamericano n. 836 (1977).2
Os ilmes são apenas uma pequena mostra da produção de Santiago
Álvarez sobre as lutas anti-imperialistas, que abordou desde a guerra anticolonial em Angola, também emblemática pelo forte apoio militar recebido
de Cuba,3 até a Guerra do Vietnã, que obteve intensa cobertura do documentarista e resultou em alguns ilmes, como Hanoi, martes 13 (1967) e 79
primaveras (1969). Esse caráter internacionalista marcou sua ilmograia,
trazendo à tona as urgências do Terceiro Mundo em mais de 90 países, em
96 ilmes, 3 vídeos e nas 1493 edições do Noticiero ICAIC Latinoamericano,
cinejornal semanal dirigido pelo documentarista desde sua criação, em
1960, até seu im, em 1991. No texto “Arte e compromisso” (1968), escreveu:
Santiago Álvarez, “Arte y compromiso”, in Edmundo Aray, Santiago Álvarez: cronista
del tercer mundo. Caracas: Cinemateca Nacional, 1983.
2
A reportagem aborda a visita de Samora Machel, líder da Frelimo e presidente da
recém-fundada República Popular de Moçambique, a Cuba.
3
Foram enviados dezenas de milhares de soldados cubanos para a guerra anticolonial em Angola.
1
“A urgência do Terceiro Mundo, essa impaciência criativa do artista, produzirá a arte desta época, a arte da vida de dois terços da população mundial”.4
Seus ilmes urgentes, como deinia, eram produzidos muitas vezes a toque
de caixa e de acordo com os recursos disponíveis, em que a forma experimental dava à luz às narrativas fílmicas projetadas como armas de combate.
Assim foi com Maputo, meridiano novo, produzido logo após a vitória da
Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). O documentário recorre a imagens de arquivo e voz over para abordar dados e fatos históricos, contextualizando o espectador sobre o momento político. Se por um lado há um tom triunfalista,
como nas imagens do líder e recém-empossado presidente Samora Machel, por
outro, reforça-se a necessidade da resistência contra o inimigo, como o general
português Kaúlza de Arriaga, apontado como “teórico da guerra colonial, do racismo e da africanização do conlito” e cabeça de um movimento de direita em Portugal, onde a Revolução dos Cravos havia derrotado o fascismo pouco tempo antes.
O tom de alerta, no entanto, não quebra o clima apoteótico, potencializado pela
paisagem sonora que já na abertura toca a música tema de 2001: uma odisseia no
espaço (Stanley Kubrick, 1968) para apresentar a capital Maputo. No entanto,
quem dá ritmo à vida na cidade é o tambor, marcando outra odisseia, a da construção de um novo país. O curta-metragem não deixa de homenagear seus mártires,
citando no epílogo a guerrilheira Josina Machel, morta na luta contra o colonialismo português. “Vemos no caminho amargas penalidades, mas também vemos
nossos ilhos correndo livres e nossa pátria que já não é mais saqueada”.
O tom heroico ainda é mais forte em Nova sinfonia, que traz diversas imagens de arquivo de Samora Machel. “Não vamos esquecer o tempo que passou.
Quem pode esquecer o que passou? O colonialismo vivia da nossa ignorância, da
nossa miséria, da nossa dor, do nosso sofrimento...”. Esse é um de seus versos, um
apelo para a memória das cicatrizes da violência colonial praticada pelos “civilizados europeus”, como caracteriza ironicamente a voz over do ilme. A sinfonia
1
Santiago Álvarez, op. cit., p. 57.
114
documental é estruturada a partir de seis intertítulos (“scherzo satírico”, “adágio
disciplinado”; “rendó tradicional”, “allegro internacionalista” e “andante hacia al
futuro”), os quais remetem a movimentos sinfônicos. O arranjo fílmico é composto
por imagens de arquivo do combate armado e do processo de organização popular
e pelas vozes dos heróis coletivo e individual, o povo de Moçambique e Samora,
por vezes entoando cantos em dialeto moçambicano. A “nova sinfonia”, portanto,
funciona como metáfora do novo momento político do país, reforçando símbolos
da cultura nacional, como na sequência que mostra corpos dançantes ao som de
tambores, num “esforço grandioso de uma coletividade para exorcizar-se, libertarse, expressar-se”, como poeticamente reletiu Frantz Fanon5 sobre a dança e o
colonizado. O ilme é uma ode à libertação em que as palavras de ordem “Abaixo à
opressão colonialista! Abaixo à exploração do homem pelo homem! A luta continua! Independência ou morte! Venceremos!” soam como estrofes de resistência.
Por im, os documentários de Santiago Álvarez sobre a guerra anticolonial em Moçambique são preciosas narrativas históricas do período, não
só pela intensidade dos arquivos que possibilitam sentir a pulsão de um processo revolucionário, mas também pelo lugar de fala do cineasta, assumidamente político. Se para alguns não passam de ilmes panletários, adjetivo
inclusive orgulhosamente utilizado pelo cineasta, para outros, funcionam
como dispositivos da memória social, lembrando que a luta também se faz
no âmbito simbólico das imagens em movimento.
CRISTINA ALVARES BESKOW é doutora em Meios e Processos Audiovisuais
pela ECA-USP, tendo defendido a tese O documentário no Nuevo Cine Lati-
noamericano: olhares e vozes de Geraldo Sarno (Brasil), Raymundo Gleyzer
(Argentina) e Santiago Álvarez (Cuba). Além de pesquisadora de cinema latino-americano, é documentarista.
5
Frantz Fanon, Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005, p. 74.
fazedores de
cinema em
inhaka e Xefina:
sobre o tempo
dos leopardos
(1985), de zdravko
velimirović e
camilo de sousa
Por camilo de sousa
Texto publicado originalmente no booklet que acompanha a edição em DVD de O tempo
dos leopardos, integrante da coleção O mundo em imagens – Filmes do arquivo do INAC,
resultado de uma colaboração entre a Universidade de Bayreuth, a Universidade Eduardo
Mondlane e o ICMA – Instituto Cultural Moçambique-Alemanha.
116
e
m 1975, à data da Independência de Moçambique, os produtores
e técnicos portugueses que detinham na totalidade a produção
de cinema em Moçambique abandonaram o país. O novo governo
saído da proclamação da Independência viu-se obrigado a um
esforço para que não fosse deixado um vazio na área do cinema, já que era imperativo o recurso à imagem em movimento para informar o
povo sobre os nobres princípios da Independência; a necessidade de todos os
moçambicanos sem qualquer distinção de raça, tribo ou etnia se unirem em
torno desses ideais. Recorde-se que a televisão só aparece em Moçambique,
e apenas na capital do país, em 1980.
é então criado o Instituto Nacional de Cinema (INC) a im de dedicarse à formação, produção, distribuição e exibição, tendo como principal vetor
a formação de quadros moçambicanos para assegurar uma produção contínua de jornais de atualidades (news reels) que pudessem ser distribuídos
por todas as salas convencionais e não convencionais de cinema do país e
pelas unidades de cinema móvel que haviam sido criadas para levar, por
meio da imagem em movimento, às aldeias mais recônditas do país, esta
mensagem de independência, de unidade dos moçambicanos em volta de
sua bandeira e iniciar um processo de desenvolvimento para o qual todos
eram chamados a contribuir.
Inicia-se, então, a seleção de moçambicanos para serem localmente
formados por produtores, realizadores e técnicos de cinema vindos de vários lugares do mundo (britânicos, franceses, canadenses, brasileiros, italianos, suecos, cubanos...). Paralelamente, o INC constrói os laboratórios e
se apetrecha com equipamentos, na altura considerados de ponta, para que
os seus formandos estivessem em contato com as melhores tecnologias da
produção de cinema. Adotou-se, então, a política de formar enquanto se
produziam os primeiros jornais de atualidade. Surge assim o Kuxa Kanema
que, apesar de não ser ainda regular, enchia as salas de espectadores em
todo o país.
117
Em 1978, é realizado o primeiro documentário de média-metragem Estas
são as armas, totalmente produzido nos laboratórios do INC e com técnicos
moçambicanos apoiados pelos seus formadores estrangeiros. No mesmo ano,
o realizador moçambicano-brasileiro Ruy Guerra realiza em Mueda, no norte
de Moçambique, o docudrama longa-metragem Mueda, memória e massacre
(1979-80), também com uma equipe moçambicana.
Estão, assim, dados os primeiros passos para uma produção regular de
documentários e do Kuxa Kanema, o que vem a acontecer em 1983. Este
jornal passa a ter uma regularidade semanal de dez minutos e é apresentado
aos sábados em todas as salas de Moçambique. Assim, a produção do INC1
passa para vinte horas anuais de documentários e Kuxa Kanemas, projetados nas telas do país inteiro. Estava, desse modo, consolidada a produção
documental sob um ponto de vista técnico, mas ainda carecia de uma discussão estética do que seria esse documentário moçambicano. é durante
essas discussões sobre a estética que alguns realizadores passam a utilizar
o docudrama no Kuxa Kanema, mesmo em situações de guerra. Naturalmente, o documentário inicia um processo de evolução por esse estilo ainda que
outros realizadores, como José Cardoso (o único no INC com grande experiência na icção dada a sua proveniência do cinema amador), insistissem na
necessidade de se avançar pela linha da icção pura, esboçando os primeiros passos nessa direção, como é o caso do curta-metragem Frutos da nossa colheita, por ele realizado em 1984.
Nessa altura, a escola de documentário no INC era já um dado praticamente adquirido. Jovens que éramos, queríamos avançar para outros voos. Mas
a aprendizagem técnica que até então tínhamos cingia-se ao documentário.
Durante os vários debates, e porque existiam inúmeras histórias ainda
recentes – umas ligadas à Luta Armada de Libertação Nacional, outras ligadas às guerras movidas contra Moçambique pelos regimes do Apartheid de
1
Hoje, denominado INAC – Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema [N. E.].
118
119
Ian Smith e da África do Sul –, a abordagem passou a incluir aquilo que seriam
as primeiras experiências de cinema iccional moçambicano. Iniciou-se, então, um debate sobre a possibilidade de iniciarmos a produção de ilmes de
icção no INC. Os jovens escritores não paravam de escrever histórias belíssimas sobre o dia a dia e nós, fazedores de cinema, tínhamos a obrigação de
passá-las para a tela.
Mas como fazer se não tínhamos formação técnica para a icção?
Como criar a história, passá-la para o roteiro fílmico e, principalmente, como
tratar todos os aspectos técnicos envolvidos (realização, fotograia, câmera, som, laboratório, cenograia, igurinos, casting, guarda-roupa, efeitos
especiais e produção executiva e no terreno)?
Porque tínhamos vontade de passar para outro estágio da nossa produção nacional e também porque havia alguns imperativos nacionais para
começarmos a apresentar as nossas histórias, o Ministério da Informação e
o INC decidiram fazer uma aproximação com a Iugoslávia – que, durante a
Luta de Libertação Nacional, realizara dois documentários: Nachingwea e
Do Rovuma ao Maputo (do documentarista iugoslavo Dragutin Popovic) –
para a produção do primeiro ilme de icção pós-Independência. O Ministério
da Informação de Moçambique e o Ministério da Cultura da Iugoslávia aceitaram, então, coproduzir o primeiro longa-metragem de icção, tendo indicado a parte iugoslava a produtora Avala Film e, Moçambique, o INC.
A história do ilme seria um ou vários episódios da Luta de Libertação
de Moçambique. A Avala Film indicou como roteirista e realizador Zdravko
Velimirović e o INC, Luís Carlos Patraquim e Licínio Azevedo, que se ocupariam do roteiro. Licínio já havia publicado o livro Relatos do povo armado,
sobre episódios da luta contados por guerrilheiros. Roteiristas e realizador
encontraram-se em Belgrado e iniciaram a escrita do roteiro a princípio com
muitas diiculdades, pois partiam de diferentes pontos de vista.
Terminada essa fase, foi montada uma grande equipe de produção envolvendo iugoslavos e moçambicanos, iniciando-se todo o trabalho de busca
de locações, criação de igurinos e casting. Moçambique não tinha na altura
qualquer ator proissional de cinema. Foi necessário buscá-los em grupos de
teatro de algumas empresas públicas e em pequenos grupos de teatro amador que começavam a emergir.
Todo este processo foi iniciado num momento em que Moçambique
atravessava uma guerra civil feroz e onde havia restrições a todos os níveis
(água, comida, fornecimento de energia elétrica, transportes, combustíveis)
e outros elementos básicos para a produção de um ilme dessa envergadura.
Dada a diiculdade de encontrar locações fora da cidade que oferecessem
condições de segurança e logística na situação de guerra generalizada que
o país vivia, optamos por ilmar grande parte do ilme na Ilha da Inhaka (três
meses), e na Ilha da Xeina (um mês), já que estas se situavam em frente à
cidade de Maputo, com acesso por via marítima.
Foi um processo interessante de formação e aprendizagem pois íamos
descobrindo que nós, moçambicanos, ainal tínhamos muito mais a dizer na
produção cinematográica do que nós próprios imaginávamos. Lembro-me
que a engenheira de som de origem polonesa, que tinha como assistente um
moçambicano, se despediu do ilme dez dias depois, por considerar que o seu
assistente era melhor conhecedor do que ela dos equipamentos que estavam
a ser utilizados e que, portanto, ela não traria qualquer mais-valia ao ilme.
Terminamos as ilmagens em Moçambique no dia 24 de dezembro de
1984 e, em janeiro de 1985, iniciou-se em Belgrado o processo de edição do
ilme, com a presença também de técnicos moçambicanos: Camilo de Sousa
(assistente de direção e realizador da segunda equipe), Henrique Caldeira
(assistente de montagem) e Gabriel Mondlane (assistente de som). O ilme
estreou em Maputo a 25 de junho de 1985 (dia da Independência) com a
presença do presidente Samora Machel.
Havia terminado um ciclo da nossa vida de cineastas moçambicanos:
tínhamos feito com os iugoslavos esse ilme épico da Luta de Libertação Nacional. Tínhamos aprendido e até, em alguns momentos, desaprendido com os
120
outros, mas queríamos fazer os nossos ilmes, à nossa maneira, sem mais ninguém: havíamos conquistado a nossa independência, também no cinema.
é então que José Cardoso aparece com a proposta, já roteirizada, de
fazermos um ilme sobre a resistência ao sistema colonial na perspectiva dos
jovens nacionalistas que viviam nas cidades colonizadas. Sugerimos, então,
o envolvimento de todos os técnicos que haviam trabalhado no O tempo dos
leopardos, para fazermos com José Cardoso o seu primeiro ilme, o primeiro
longa-metragem de icção moçambicano. E, juntos, conseguimos uma obra
bonita, um ilme de que até hoje nos orgulhamos, o primeiro totalmente moçambicano: O vento sopra do norte (1987).
Tudo isso partiu da sensação de independência que ganhamos ao fazer
O tempo dos leopardos.
CAMILO DE SOUSA é cineasta. Nascido em Lourenço Marques (atual Maputo),
em 1953, passa uma temporada em exílio político em Bruxelas antes de entrar em contato com a Frelimo, em 1973, e partir para Dar es Salaam, onde
faz o treino de guerrilha em Nachingwea. Em seguida, é deslocado para as
zonas libertadas de Cabo Delgado. Em 1979, chega a Maputo e passa a trabalhar como montador e realizador do Instituto Nacional do Cinema.
um olhar sobre
a libertação
(através do
cinema) de uma
nação a partir
da tabanca
de Xime
Por maria do carmo Piçarra
122
123
a
noitece e numa parede é inscrita a palavra independência.
O pincel, manuseado por um homem – com um sumbia1 na
cabeça como único elemento identiicativo – não se detém e
preenche, de branco, a objectiva da câmara de ilmar. Ao
branco que rompeu o lusco-fusco, segue-se a luz artiicial –
uma lâmpada acende-se. Ilumina sombras de homens que circulam num espaço
fechado, claustrofóbico – uma metáfora da câmara de tortura que foi a ditadura
portuguesa do Estado Novo (1933-74)? Ao centro, um homem cita Amílcar Cabral airmando que é hora de mobilizar a população. Questiona quem vai onde,
para iniciar o movimento de libertação. Quando pergunta a Raul (Justino Neto)
onde irá, este — é dele, a primeira cara que surge iluminada, em grande plano.
Pelo sumbia reconhece-se o homem que inscreveu a independência numa pare-
de, antecipando a luta pela libertação – diz que irá a Xime.
O genérico corre, inalmente.
O ilme (re)começa num cenário rural. Junto a uma poilão,2 vários homens idosos, os sábios de Xime, cumprem um ritual para assegurar, nesse ano
de 1962, uma boa colheita de arroz, que permita que a tabanca não passe fome.
Sucedem-se, depois, sequências que revelam a vida em Xime, a sua actividade agrícola, mas também uma história privada, a da família de Raul, com
as suas tragédias e os pequenos dramas amorosos. O irmão mais novo de Raul
cobiça uma jovem que está prometida ao pai, Iala (Aful Macka). Bedan é um
jovem impetuoso, desaiador, que, além disso, expõe o soldado que serve a
administração local e desaia todo tipo de autoridade.
Enquanto isso, o padre Vittorio prossegue o trabalho evangelizador. Foi
ele quem fez de Raul um “assimilado”, através da educação religiosa que deu
a este a autonomia para pensar por si e revoltar-se contra o colonialismo português – no ilme diz-se, a certo momento, que foram os padres que civilizaram
1
2
Chapéu como aquele usado correntemente por Amílcar Cabral.
Árvore da Guiné, considerada sagrada, junto à qual são realizados rituais e cerimônias.
Raul. Vittorio e Silva – um comerciante branco quase sempre bêbado, quase
sempre inconveniente – são os comensais do administrador colonial, Cunha
(Juan Carlos Tajes), espécie de variante mais boçal e menos perigosa do coronel Kurtz (Apocalipse Now, Francis Ford Coppola, 1979).
Em Xime a igura de Cunha, como, em geral, a dos brancos e dos servidores do colonialismo português, é caricaturada, fragilizando um pouco o
ilme. A estetização da vida na tabanca, que, paradoxalmente, resulta da
beleza da fotograia do ilme e do calor que lhe é dado pela película Kodak,
também afecta a verossimilhança. Nesta que é uma reconstituição do início
da luta anticolonial, a beleza das imagens da comunidade suaviza as diiculdades vividas pelas várias etnias guineenses. Se o racismo e o abuso de
autoridade são ixados justamente, e a obrigação de trabalhar para o Estado
português – pondo em causa, nesta intriga, a colheita de arroz, fundamental
para a sobrevivência da comunidade – é sublinhada, o certo é que não há
uma responsabilização enfática da administração colonial pela violência,
quase sempre extrema e fatal, e pela deiciência geral dos cuidados de saúde e educação.
Falado em crioulo da Guiné – que terá surgido como uma mistura de
línguas das várias etnias locais de modo a diicultar a compreensão pelos
colonizadores – e em português, Xime é, porém, uma obra notável, vibrante,
muito bem fotografada por Melle van Essen e com extraordinários apontamentos de autor.
Não obstante ser o primeiro longa-metragem de Sana Na N’Hada, ilustra
bem a maturidade deste como realizador. N’Hada – com Flora Gomes, Joseina Crato e José Bolama Cobumba – foi um dos quatro jovens guineenses que
Amílcar Cabral enviou para estudar cinema em Cuba, no Instituto Cubano del
Arte e Industria Cinematográicos (ICAIC), ciente que o intelectual tinha um
papel fundamental na cultura – e nos ilmes, em particular – para a criação da
nação guineense. Depois de ter sido aluno de Santiago Álvarez, na Guiné e já
após a morte de Cabral, partilha, com Flora Gomes, a realização de O regresso
124
de Amílcar Cabral (1976) e Anos no Oça Luta (1976), curtas-metragens pioneiros
do nascimento do cinema na Guiné. Segue-se a colaboração com Chris Marker
em Sans Soleil (1983), tendo assistido Flora Gomes na realização do primeiro
longa-metragem de icção do país: Morte negada (Mortu Nega, 1987).
Num país que acreditou sempre nas possibilidades do cinema para projectar a nação e consolidar a Independência, mas sem recursos para apoiar o
desenvolvimento da produção cinematográica ou uma política para o sector, só
em 1994 Sana Na N’Hada conseguiu ter pronto o seu primeiro longa-metragem.
Xime (1994) estreou na Holanda, em 1995, depois de ter sido apresentado na
secção Un Certain Regard do Festival de Cinema de Cannes do ano anterior.
MARIA DO CARMO PIçARRA é pesquisadora de pós-doutorado em cinema
no Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, na Universidade do Minho,
e no Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras, na Universidade de Lisboa. Publicou, entre outros, os livros Azuis ultramarinos. Propaganda colonial e censura no cinema do Estado Novo (2015), Salazar vai ao
cinema I e II (2006, 2011), além de ter organizado, com Jorge António, a trilogia Angola, o nascimento de uma nação.
as imaGens
de uma
revolução
cantada e
dançada:
sobre kuXa
kanema (2003),
de marGarida
cardoso
Por lilian solá santiago
126
o
documentário Kuxa Kanema. O nascimento do cinema
(2003), de Margarida Cardoso, inicia-se com uma cena
de arquivo. Numa noite chuvosa, em uma sessão solene,
em silêncio, uma bandeira é descerrada e outra é hasteada em seu lugar. Estamos no ano de 1975, em Moçambique, e estas são as primeiras imagens de um país – a República Popular de
Moçambique.
O im do domínio colonial português deixou uma grave herança de
abandono e enormes taxas de analfabetismo. O primeiro ato cultural do país
recém-nascido, de orientação marxista, é a criação do Instituto Nacional de
Cinema (INC). Nesse contexto, a produção e exibição do cinejornal Kuxa
Kanema passa a ser peça fundamental para a consolidação do novo governo
e a construção de uma identidade nacional.
As imagens criadas e distribuídas com inalidade social buscavam, basicamente, o empoderamento popular. As imagens do povo nesse cinejornal
revelam uma horizontalidade entre quem ilma e quem é ilmado muito diferente da relação estabelecida entre os cineastas brasileiros e as imagens do
povo nos documentários do mesmo período. A despeito das evidentes marcas de “Terceiro Mundo” que carregam – como a pele escura dos personagens, o cenário de choupanas simples, as crianças que correm atrás da câmera –, o que vemos são pessoas comuns com poder de voz e de ação para
transformar sua realidade, ao invés de serem retratadas como vítimas de
uma situação paralisante.
Em meados de 1970, o mundo ocidental já estava em plena era da televisão, mas a população moçambicana em geral não conhecia a ixação de
imagens através da fotograia ou do cinema. O que aparentemente era maléico, advindo do isolamento e da miséria imposta pelo sistema colonialista,
também era o seu contrário: o povo moçambicano encontrava-se em estado
puro em relação às imagens eurocêntricas. Livre, portanto, da propaganda
imperialista, da folclorização de seus costumes e modos de ser, da deslegiti-
127
mação de seus saberes, desejos e crenças. Livre da invisibilidade e da estereotipização. Esse privilegiado estado das coisas levou muitos artistas na
época a quererem colaborar com a experiência audiovisual moçambicana,
como Jean-Luc Godard, Jean Rouch, José Celso Martinez Corrêa, Ruy Guerra, Licínio Azevedo, entre outros.
O cinejornal Kuxa Kanema foi criado com suporte tecnológico advindo
principalmente da União Soviética e foi produzido semanalmente durante
onze anos consecutivos. Depois de pronto, era distribuído em 35mm nas
salas de cinema e exibido em cópias de 16mm nas unidades volantes que
circulavam por todo o país.
Ter contato com fragmentos dessa enorme produção moçambicana
também é acessar aspectos pouco visibilizados de nossa própria cultura.
União de duas palavras bantas de origens diferentes, Kuxa Kanema signiica
literalmente “o nascimento do cinema”. O grupo linguístico banto, que se
espalha por diversos países do centro-sul africano, inclusive Moçambique,
forneceu grande quantidade de pessoas escravizadas ao novo mundo, principalmente para o Brasil, inluenciando enormemente nossa cultura. Aspectos do nosso convívio em família, o que comemos e bebemos com mais frequência, nossa religiosidade inclusiva e nossa musicalidade, por exemplo,
são grandemente inluenciados pelos bantos que vieram em levas sucessivas por séculos durante o período colonial. Contudo, sua inluência e importância para nossa formação é praticamente invisibilizada.
Essa (des)construção imagética tem uma história, que remete ao nosso passado colonial e à necessidade que a elite tinha de controle social do
enorme contingente escravo. Negros brasileiros não eram retratados nas
imagens coloniais, a não ser por viajantes estrangeiros. Depois, com a política estatal de embranquecimento da população por meio da imigração, o
país vai clareando, o ancestral negro vai icando escondido em algum lugar,
sem nome nem rosto conhecido. Quanto mais escura a pele, mais naturalizado
o abandono social. O Cinema Novo vai atrás do nordestino, do rural, e pouco
128
coloca em pauta as questões raciais urbanas. Mais tarde, o cinema da Retomada, de maior repercussão, volta-se para a cidade e tira a população negra,
pobre e periférica da invisibilidade, criminalizando sua imagem e reforçando o
estereótipo do “criolo revoltado com uma arma”. Até quando a ideologia do
medo colonial vai ditar nossas formas de representação popular?
Os arquivos de Kuxa Kanema, pelo contrário, nos remetem a um universo totalmente diferente. Um dos grandes momentos do ilme, por exemplo, é um ponto cantado. Na umbanda, no jongo, no samba e em outras manifestações religioso-profanas bantas, o ponto cantado e dançado é um
elemento de destaque. Aos quase quinze minutos do ilme Kuxa Kanema,
vemos um grupo de pessoas de braços dados, dançando e cantando, uma
espécie de ponto de louvação revolucionário, conclamando todos a derrubar
o imperialismo e construir um mundo novo. é um lindo momento de manifestação de poder e autenticidade das imagens descolonializadas.
Mas na cena seguinte, ao som de bombas, vemos imagens já banalizadas do sofrimento africano. São cenas dos ataques sofridos através da fronteira com a África do Sul e da Rodésia, que se arrastam por anos até a morte
de Samora Machel e o trágico im da República Popular de Moçambique. Ao
inal, o que temos, são melancólicas imagens da Moçambique atual e seus
televisores onipresentes. Os aparelhos não retratam mais o povo, muito menos buscam devolver sua imagem de volta, como era a aspiração de Kuxa
Kanema. Longe vão os dias de uma revolução cantada, dançada e ilmada.
Haverão outros?
LILIAN SOLÁ SANTIAGO é cineasta, produtora cultural e professora, Mestre
em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (2005), com
graduação em História (1998) pela mesma Universidade. é professora-cineasta
do curso de cinema do CEUNSP desde 2010, em Salto/SP.
quando luanda
se esvazia.
sobre na
cidade vazia
(2004), de maria
João GanGa
Por jacqueline kaczorowski
130
n
a cidade vazia (2004), ilme dirigido por Maria João Ganga, é a primeira produção fílmica realizada por uma mulher em Angola e a segunda produzida após a guerra civil
que sucedeu o processo de Independência do país. Lançado no International Film Festival Rotterdam, na Holanda, o ilme recebeu o Prêmio Nacional de Cultura e Artes de Angola, na
categoria cinema e audiovisual, foi premiado no Festival de Cinema Africano,
em Milão, no Festival Internacional de Filmes de Mulheres, na França, e no
Festival de Paris, onde recebeu o Prêmio Especial do Júri. O sucesso alcançado em Angola fez com que a obra fosse lançada em DVD.
A narrativa começa ainda durante a passagem dos letreiros: enquanto
são apresentados ao espectador os apoiadores da produção e os nomes dos
atores que protagonizam a história, ouve-se um diálogo que parece introduzir um ilme de guerra. A ideia é reforçada pelos planos seguintes: é mostrada a hélice frontal de um avião girando para alçar voo, há um corte para o
título do ilme e, assim que se volta à imagem, a câmera já adentrou o interior
do avião, onde aparecem, sequencialmente, uma freira, algumas crianças ao
seu redor, militares fardados e um caixão bem no centro do espaço cênico.
Se a guerra impacta o receptor logo de início, será, no entanto, pouco
retomada como imagem ao longo da narrativa. Há referências à guerra na
fala do protagonista, o pequeno N’dala, mas o único momento que o espectador tem uma imagem dela é por meio de uma divagação do menino, que
rememora o ataque que queimou sua casa e matou seus familiares. A menção à guerra em um ilme que situa sua ação em 1991 parece evocar a memória recente de um país que esteve em guerra de 1961 a 1975 contra o colonizador português e, após a Independência, mergulhou em guerras civis
atravessadas por intervenções internacionais, reverberando o contexto
mais amplo das tensões que marcaram a Guerra Fria.
Enquanto o avião aterrissa em Luanda e a freira ordena as outras
crianças em um ônibus, N’dala foge. Há novamente um corte, para a dedica-
131
tória do ilme, e adentra-se a sala de aula de uma escola, onde os alunos se
organizam para encenar As aventuras de Ngunga, conhecida obra literária
do escritor angolano Pepetela. Escrito em 1972, o livro acompanha a trajetória do jovem rapaz que, ao transitar pelo território angolano, constitui-se
como sujeito no embate com as diversas situações com as quais é confrontado. O olhar crítico que norteia os questionamentos do menino não impede
a aposta nos valores que sustentam o trabalho coletivo de luta pela construção de um futuro mais digno para todos. A trajetória de Ngunga é também de
estruturação, de integridade e maturação de uma consciência política que
continua a depositar as esperanças na união daqueles que, se evidentemente não são infalíveis, “bons ou maus, todos tinham uma coisa boa: recusavam ser escravos”. A aposta é na coletividade de um “nós” que nos negamos
a viver no arame farpado, nós que recusamos o mundo dos patrões e dos
criados, nós que queremos o mel para todos.
Se Ngunga está em todos nós, que esperamos, então, para fazê-lo crescer?
A justaposição dos planos aponta para a intertextualidade que atravessará a caminhada do garoto N’dala pelas ruas de Luanda, enquanto é
procurado pela freira.
Se a caminhada do garoto pela “cidade vazia” parece irônica para
quem conhece o cenário superpopuloso de Luanda, justiica-se pelo momento em que decorre a trama, marcado ainda pelo toque de recolher na
capital. Inúmeras outras pistas são também capazes de situar historicamente a narrativa, signo de um momento em que a busca por abandonar as heranças de um contexto de violência colonial ainda é premente.
O pequeno garoto, em seu trânsito pela cidade, busca uma maneira de
“voltar no Bié” – ainal, seus familiares só poderão ser encontrados novamente naquele céu. Sua caminhada apresenta espaços e sons da cidade,
modos de ser e interagir, farras, danças, histórias; o próprio cinema. Aos
poucos, N’dala conhece e adentra a lógica urbana, faz amizades e consegue
abrigo por insistência de seu amigo Zé.
132
A realidade complexa de uma cidade que tem a precariedade e a informalidade como marcas evidencia-se por meio de tensões: Zé acolhe o menino
e se preocupa muito com ele. Por isso, insiste para que desista de se aventurar
sozinho, “como Ngunga”, e arruma um abrigo para o companheiro com a prima
Rosita. A prostituta, ao mesmo tempo em que acaba aceitando abrigá-lo, também obriga N’dala a vender cigarros, competindo por espaço com tantos outros garotos que exercem a mesma função. Joca, também chamado de primo,
acolhe o menino, presenteia-o, ensina-o a fundir latas de metal para construir
mais carrinhos de brinquedo como aquele que carregava desde o início do
ilme. A mesma lógica que considera todos “familiares”, balizada pela solidariedade em um contexto que apresenta poucas alternativas à sobrevivência
aceitável, no entanto, é aquela que também explora o trabalho infantil em troca de abrigo e comida, que coloca crianças em situação de vulnerabilidade e
risco, enquanto buscam contribuir com parcela do sustento. A ambiguidade
de um contexto espinhoso para todos os envolvidos acaba por enredar as personagens em situações de difícil resolução. A poderosa imagem encontrada
por Maria João Ganga para o fechamento da trama convida o espectador a
reletir sobre os rumos de uma nação que não cessa de ser continuamente
construída, alicerçada em profundas contradições.
JACQUELINE KACZOROWSKI é mestranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo, sob orientação de
Rita Chaves. Trabalha sobretudo com literaturas africanas, buscando investigar
as intrincadas relações entre produção artística e contexto histórico-social.
“aqui aonde
eu nunca vim”:
o reempreGo
de imaGens na
elaboração de
uma“contra-história” do
colonialismo
tardio
portuGuês
Por raquel schefer
Agradeço a Maria-Benedita Basto por me encorajar a escrever este texto e por
sua paciência. A versão original, em francês, será publicada no volume L’Archive
sensible, editado por Maria-Benedita Basto e David Marcilhacy (Paris: Université
Paris-Sorbonne, éditions Hispaniques, 2017).
134
o
nascimento do cinema está estreitamente ligado às profundas transformações da percepção e da experiência no século XIX no contexto histórico da expansão do capitalismo
e da instauração do colonialismo moderno. Esse medium
visual inaugura novos modos perceptivos e diferentes processos cognitivos, expressivos da fragmentação moderna da experiência. A
imagem em movimento oferece também outras modalidades de inscrição e de
produção da história. Mais de 120 anos depois da primeira projeção pública
dos irmãos Lumière, a história do projeto colonial moderno e a do anticolonialismo tornou-se um tema central da produção cinematográica atual. Este artigo desenvolve uma relexão teórica, centrada sobre meu próprio trabalho
como cineasta, acerca da função do reemprego de arquivos familiares e de
outros tipos de retomada de imagens na elaboração de uma “contra-história”
do colonialismo tardio português, assim como na desestruturação paralela do
cânone cinematográico.
Entre setembro e dezembro de 2008, no Curso de Vídeo Arte do programa
Criatividade e Criação Artística que ocorreu na Fundação Calouste Gulbenkian,
em Lisboa, realizei a primeira versão de Avó (Muidumbe). Esse ilme indeterminado do ponto de vista de gênero, inalizado na França em 2009, trata da “pós-memória” do colonialismo tardio português em Moçambique por meio da abertura de
um campo mnemônico. Nesse curta-metragem que conjuga o reemprego de arquivos familiares rodados em 8mm por meu avô, antigo administrador colonial, e
a aventura de sua reconstituição, essas imagens do passado tornam-se legíveis
no presente através de um movimento de rotação do olhar. Trata-se de imaginar
como o colonizado teria observado o colonizador e de escavar uma passagem
entre o Moçambique colonial enquanto espaço vivido e não vivido. O ilme tem
como objeto a perscrutação dos interstícios entre dois espaços-tempo (o Moçambique colonial de 1960 e o Portugal de 2008, à beira da crise do “projeto europeu”)
e o desdobramento das tensões entre o afeto e o saber. O ilme serve de io de
Ariadne a partir do qual se entrelaçam os conceitos expostos neste artigo.
135
Filme “pobre”, evocando a “pobreza” mimética e técnica como “princípio [e cerne] construtivo” do cinema, segundo a deinição de Iouri Tynianov1
reelaborada por Julio García Espinosa,2 Avó (Muidumbe) está longe de constituir um objeto isolado. Ao contrário, ele se inscreve em uma tendência
geral da arte e do cinema a (re)pensar a história contemporânea. A função
dos arquivos públicos e privados (incluindo os familiares) é fundamental
nessa afirmação do cinema como forma de pensamento da história. O percurso temporal, material e discursivo dos arquivos através de seus sucessivos horizontes históricos questiona, em efeito, a oposição canônica entre história e memória. Na obra de Filipa César e de Mathieu Kleyebe
Abonnenc, entre outros (Ângela Ferreira, Vincent Meessen, Patrizio Di
Massimo etc.), o pensamento histórico repousa sobre a exploração estrutural e crítica da memória sensível, discursiva e técnica do colonialismo e
do anticolonialismo – assim como sobre o cruzamento entre esses três tipos de memória –, particularmente de suas representações fotográficas e
cinematográficas.
Nesse sentido, os artistas parecem responder a João Paulo Borges Coelho,
que, a respeito da codiicação da história moçambicana depois da Independência
como um “script de Liberação”,3 um dispositivo epistêmico “situado na intersecção de relações de poder e relações de saber”,4 considera que é tempo “de abrir
a grande narrativa a uma pluralidade de formas sociais para o tratamento do passado, inclusive a uma historiograia que deve reinventar seu campo, e, é claro, a
Iouri Tynianov, “Les Fondements du ilm”, in François Albera (org.), Poétique du ilm.
Textes des formalistes russes sur le cinema. Lausanne: L’Âge d’Homme, 2008, pp. 75-76.
2
Julio García Espinosa, “Por un cine imperfecto” (1969). Cine Latinoamericano, 2013.
Disponível em: <http://www.cinelatinoamericano.org/biblioteca/fondo.aspx?cod=2333>.
Consultado em 15/03/2016.
3
João Paulo Borges Coelho, “Politics and Contemporary History in Mozambique: A Set
of Epistemological Notes”, in Rui Assubuji, Paolo Israel e Drew Thompson (orgs.), The
Liberation Script in Mozambican History. Kronos: Southern African Histories, n. 39,
nov. 2013, pp. 20-31.
4
Ibidem, p. 21, nossa tradução.
1
136
137
arte”.5 Colocando em dialética o vínculo entre história e memória (subjetiva, coletiva, cultural, técnica), o método desses dois artistas-cineastas dá origem a formas heterodoxas de “reemprego material” e, ao mesmo tempo, de “reemprego
intertextual”.6 Seu método de trabalho apresenta uma importante dimensão formal, que se funda principalmente sobre uma dinâmica de desestruturação e de
estruturação de modelos discursivos e formais do cinema anticolonial, sobre o
devir histórico das formas fílmicas. Por meio desses processos de ordem dialética,
a história do colonialismo e do anticolonialismo no espaço da língua portuguesa
encontra-se enim descristalizada no interior de um novo modelo discursivo e formal. A “operação historiográica” é deinida por Michel de Certeau seja como uma
narrativa, seja como uma prática de sentido sempre mediada pela técnica, colocada entre a linguagem do passado e a do presente, entre aquilo que é dito e aquilo
que é criado, entre o documento e sua construção, o real e sua produção discursiva. Além da posição intermediária e tensional do gesto historiográico, Certeau
insiste na distância temporal como uma fonte de projeção da subjetividade do
historiador. Transposta ao campo da arte e do cinema, a operação historiográica
reverbera esse sistema de intervalos. Trata-se, primeiro, de atravessar as brechas
entre o passado e o presente, de perambular ao longo dos lugares passados e dos
lugares presentes, dos espaços vividos e dos não vividos pelo observador, de percorrer os topoi da memória cultural e sensível. Deslocar-se por esse sistema de
lugares signiica também pensar as brechas entre o “eu” e o “outro”, o sujeito e o
objeto, o público e o privado, o “real” e o imaginário.
5
João Paulo Borges Coelho, “Memory, History, Fiction. A Note on the Politics of the Past in
Mozambique” [Conferência apresentada na école de Hautes études en Sciences Sociales,
21-22 de outubro de 2010, Paris], Estilhaços do Império, 2010, p. 10. Disponível em:
<http://www.ces.uc.pt/estilhacos_do_imperio/comprometidos/media/jp%20borges%20
coelho%20text.pdf>. Consultado em 15/03/2016, nossa tradução.
6
Utilizamos aqui as categorias de reemprego de imagens explicitadas por Nicole Brenez no
artigo “Montage intertextuel et formes contemporaines du remploi dans le cinéma expérimental”. Cinémas: revue d’études cinématographiques / Cinémas: Journal of Film Studies,
n. 1-2, v. 13, 2002, pp. 49-67.
A ritualização do cotidiano iniciada na primeira metade do século XX e
intensiicada a partir dos anos 1950 com o “ilme de família” em formato
8mm, depois em super-8 e, mais tarde, em vídeo analógico e digital, apoia a
operação historiográica no campo da arte e do cinema. Através da memória
artiicial constituída por esse vasto depósito visual, é possível percorrer as
“imagens-memória” alheias, os lugares passados não vividos, esses “aqui”
aonde “eu nunca vim”. Graças a essas obras historiográico-artísticas, essa
memória artiicial deixa de estar restrita à esfera privada para se tornar pública. A proliferação dessas obras parece de fato reclamar uma releitura das
relações dialéticas entre o público e o privado, de sua interpenetração, daquilo que releva concretamente da esfera privada e de seus efeitos sobre a
esfera pública. O que está em jogo nesse tipo de operação historiográica
não é somente uma revisão da história geral à luz da história familiar e, a
partir disso, a emergência de novos métodos historiográicos e de outros tipos de interferência entre o público e o privado; é também uma reescrita
simultânea da história geral e da história do cinema. Em outras palavras, a
retomada de arquivos fílmicos familiares e os processos intertextuais de memória permitem repensar conjuntamente a história geral, a história do cinema e o cânone cinematográico. O cinema inscreve e reinscreve os acontecimentos na história ao mesmo tempo que reescreve sua própria história,
especialmente por meio de cruzamentos entre o ilme de família, o ilme político e o ilme experimental. A virada historiográica da arte e do cinema é,
nesse sentido, acompanhada por uma virada estético-política, da qual a
concepção performática do arquivo, ligada fortemente a uma política da memória, constitui um dos elementos essenciais: trata-se de “fazer do deciframento (da interpretação) uma transformação que ‘muda o mundo’ [sic]”,7
nas palavras de Jacques Derrida.
7
Jacques Derrida, Spectres de Marx. L’état de la dette, le travail du deuil et la nouvelle
Internationale. Paris: Galilée, 1993, p. 61, nossa tradução.
138
O FILME DE FAMíLIA: UM “CONTRAPONTO à HISTóRIA OFICIAL”?
Em Mal de arquivo, Derrida lembra a etimologia grega da palavra
“arquivo”. “Arkhé” designa ao mesmo tempo o “começo” e o “mandamento”.
O arquivo é então esse lugar, esse “aqui”, onde a história familiar ou coletiva
começa, esse “aqui” onde o princípio do mandamento se ativa, esse “aqui”
onde se instauram as relações de poder e de saber. Para o ilósofo, esse
“aqui” remete a um lugar, a uma domiciliação do arquivo. Esse “aqui” dos
arquivos de Avó (Muidumbe) é também um lugar, um domicílio, uma casa. A
casa dos avós, lugar de autoridade por excelência: sua casa no Moçambique
colonial, espaço político cuja densidade sensível é restituída pela imagem.
Apropriar-se dos arquivos dos avós é, antes de mais nada, apreender sua
“competência” hermenêutica, estabelecer uma topologia alternativa da memória, princípio de uma “contra-história” “em contraponto com a história
oicial” do colonialismo tardio português.
O mundo colonial não se revela inteiramente nesses arquivos familiares. é preciso assim buscar esse mundo externo, circunscrevê-lo. Primeiro
examinando o limiar da imagem: os corpos africanos perilados, rígidos, parcialmente cortados, em contraste com o que se coloca no centro da imagem:
o movimento aparentemente livre e puro, renovado, de minha avó. As escolhas de enquadramento revelam então as tensões políticas presentes e determinam os jogos de desenquadramento como princípio formal do curtametragem. Procurar esse mundo externo explorando em seguida o “fora de
quadro” histórico que prolonga e expande extraordinariamente o que é representado no interior da imagem. A estrutura arquitetônica semiaberta da
sequência central do ilme constitui um espaço sem dentro nem fora. O exterior está presente no interior pelas janelas. Inversamente, o interior também se encontra no exterior através dos pilares e das aberturas. Desenha-se
uma continuidade sem dentro nem fora, que evidencia as separações de
toda ordem: de força, de raça, de sexo, de conhecimento, de visibilidade, de
domínio técnico.
139
Roger Odin deine o “ilme de família” como um “ilme (ou um vídeo)
realizado por um membro de uma família acerca dos personagens, dos acontecimentos ou dos objetos ligados de uma maneira ou outra à história dessa
família e destinado ao uso privilegiado dos membros dessa família”. Para o
teórico da semiopragmática, a deinição do ilme de família não leva em conta os conteúdos. Assim, o ilme de família pode abarcar conteúdos tão diversos quanto “a vida dos pescadores na Bretanha... [ou] o assassinato de Kennedy”. “A única coisa que importa”, escreve Odin, “é que o objeto, o
personagem ou o acontecimento em questão tenha sido considerado digno,
por aquele que detém a câmera, de igurar na coleção de lembranças familiares”. Nos arquivos retomados de Avó (Muidumbe), os limites entre o familiar e o político encontram-se confundidos. O colonial penetra a esfera privada através de iguras de empregados negros e da organização
determinante do espaço e das relações humanas. Nas sequências exteriores, a vastidão ininita do território torna-se um espaço sem saída no qual se
replicam as divisões operantes na esfera privada.
Para Patricia Zimmermann, os “ilmes amadores” – categoria que, para
a autora, contrariamente a Odin, equivale à categoria de “ilme de família” –
“não absorvem simplesmente a história. Ao invés disso, eles mobilizam um
processo histórico ativo de recriação e de reinvenção.”8 Nessa lógica, os
ilmes de família de meu avô constroem um espaço social imaginário por
meio dos signos da ascensão social e da modernidade (os empregados, as
belas casas, os carros, o próprio aparelho fotográico e a câmera cinematográica) desejados por esse ilho de um pequeno proprietário rural e conquistados em grande parte graças à “situação colonial”.9 Hoje, além de tornar
8
Patricia Zimmermann, “Morphing History into Histories”, in Karen L. Ishizuka e Patricia
Zimmermann (orgs.), Mining the Home Movie: Excavations in Histories and Memories.
Berkeley/ Los Angeles: University of California Press, 2008, p. 275, nossa tradução.
9
Georges Balandier, “La Situation coloniale: approche théorique”. Cahiers Internationaux
de Sociologie, v. 11, 1951, pp. 44-79.
140
141
sensível a total impregnação da vida familiar pela colonialidade durante esse
período histórico, essas imagens evidenciam um modelo de colonização
“orgânica” [e] “compensatória”,10 segundo a deinição de Eduardo Lourenço,
caracterizada por “uma ligação visceral” [com a] “pobreza [sic] metropolitana”.11 Em Avó (Muidumbe), o trabalho dos arquivos visa desequilibrar a
forma aparentemente ordenada dessas representações familiares, mas também tornar visível, por meio de um jogo de perspectivas, a “natureza quase
colonial [sic]”12 da própria “metrópole”.
DES-PENSAR13 A HISTóRIA COLONIAL
A PARTIR DE UM ESPAçO SUBJETIVO
Boaventura de Sousa Santos considera que Aquino de Bragança – pioneiro das “epistemologias do Sul” – assumiu “a tarefa de construir as ciências sociais [moçambicanas] para servir as sociedades liberais”14 por meio
da elaboração de “um conhecimento cientíico social capaz de des-pensar o
saber colonial”.15 Ainda que sem possuir uma ambição epistêmica, Avó (Muidumbe) atribui-se o objetivo de inverter uma história familiar ligada à história coletiva de Portugal – etapa essencial para “des-pensar” e pensar as
narrativas do colonialismo tardio do país – a partir de um espaço subjetivo
que dispensa ele mesmo uma força íntima.16 Essa disposição narrativa, ponEduardo Lourenço, Situação africana e consciência nacional. Venda Nova: Génese/
Bertrand, 1976, pp. 29, 34-35 e 39.
11
Ibidem, pp. 34-35.
12
Ibidem., p. 41.
13
Boaventura de Sousa Santos, “Aquino de Bragança: criador de futuros, mestre de heterodoxias, pioneiro das epistemologias do Sul”, in Teresa Cruz e Silva, João Paulo Borges
Coelho e Amélia Neves de Souto (orgs.), Como fazer ciências sociais e humanas em África:
questões epistemológicas, metodológicas, teorias e práticas. Dakar: Codesria, 2012, p. 24.
14
Ibidem, p. 21.
15
Ibidem, p. 24.
16
No texto original em francês, a autora sublinha ainda as ressonâncias do verbo
“des-pensar” com sua tradução (“dé-penser”). Em francês, a palavra evoca o verbo
“dépenser”, que signiica “gastar” e “dispensar prodigamente”. [N. T.].
10
tuada pela oposição entre a palavra e a imagem, uma das formas de des-pensar
a representação, está estreitamente ligada à pressuposição de um legado,
de uma herança.
“Nós somos herdeiros, o que não quer dizer que possuímos ou que recebemos isto ou aquilo, que tal herança nos enriquece um dia com isto ou
com aquilo, mas que o ser disso que somos é, primeiramente, herança, o
queiramos, o saibamos ou não”, diz Derrida em Espectros de Marx. O estado
da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional.17 A intenção inicial de
Avó (Muidumbe) era precisamente airmar e ler de maneira crítica uma herança colonial, assumindo-a em sua initude. Isso implicava em construir um
espaço enunciativo entre a “mesmidade” e a “ipseidade”,18 em experimentar
a distância como intimidade e a intimidade como distância, interpretando
meu próprio papel e o da minha avó em uma “unidade turva”.19
A RETOMADA DE ARQUIVOS E A AVENTURA DA
RECONSTITUIçãO: POR UMA ROTAçãO DO OLHAR
Avó (Muidumbe) articula arquivos familiares e sequências reconstituídas, ilmadas em formato super-8 no Jardim Botânico de Lisboa e em Trás
-os-Montes, região de Portugal em que meus avós se instalaram após o retorno de Moçambique, apenas alguns dias antes da Independência, em 25
de junho de 1975. Produto de uma interpretação crítica e fabulatória dos
arquivos da família, essa articulação busca fundamentalmente mostrar a
imagem como construção, impregná-la com uma teatralidade impura e mimética para completar a ausência das imagens deslumbrantes da experiência vivida, para também preencher as issuras da memória, tornadas visíveis
pelas disjunções entre a voz e a imagem. Na medida em que as sequências
Jacques Derrida, Spectres de Marx, op. cit., p. 94, nossa tradução.
Paul Ricœur, Soi-Même comme un Autre. Paris: Seuil, 1990, 424 p.
19
Raymond Bellour “Autoportraits”. Communications: vidéo, n. 48, 1988, p. 336.
17
18
142
143
reconstituídas retomam deliberadamente as convenções do ilme de família
(formato, panorâmica, olhar para a câmera, câmera na mão etc.), elas podem ser consideradas como uma variação do reemprego intertextual.
Fundado sobre uma relação signiicante entre o visível e o invisível, o
campo e o fora de campo, o que aparece e o que permanece oculto, o curtametragem estrutura-se pelas ações de contar e de redizer, no seio das quais
uma transformação dos elementos originais se opera implicitamente. A tensão entre o dizer e o ver e a fricção entre a palavra e a imagem ligam-se
profundamente à questão geracional. Isso ocorre porque, no ilme, proiro
novamente um texto escrito por minha avó, no qual ela rememora, 48 anos
depois, esse dia de setembro de 1960 que vemos na imagem. Trata-se também de reencarnar e de reconstituir corporalmente uma memória indireta e
herdada. Essa repetição produz diferenças, condição de inauguração da história.20 Como observa Jaimie Baron em sua análise de Avó (Muidumbe), a
“experiência da disparidade temporal não desaparece, mas... o ilme de
Schefer parece aproximar esses diferentes momentos históricos, estabelecendo uma conexão entre gerações que inclui os crimes coloniais contra os
colonizados”.21
A mímica e a repetição do gesto religam nossas gerações. Essa unidade gestual produz uma união (em termos de montagem, um raccord) entre
dois espaços-tempo, 1960 e 2008, Moçambique e Portugal. Mas a diferença
supõe uma ausência, um devir e, sobretudo, uma terceiridade: a invisibilidade de um itinerário – o do retorno, de Moçambique a Portugal em 1975, e
assim a existência de um trajeto, de escalas, de espaços intermediários; a
não presença de um devir temporal, de um tempo advindo entre 1960, 1975
e 2008, e as posições temporais médias. Essa ausência e esse devir suspendem minha presença, fraturam minha identidade de neta.
20
21
Jacques Derrida, L’écriture et la différence (1967). Paris: Points, 2014, 436 p.
Jaimie Baron, The Archive Effect: Found Footage and the Audiovisual Experience of
History. Nova York: Routledge, 2014, p. 88, nossa tradução.
Se Avó (Muidumbe) deixa impensados esses espaços imprevisíveis de
passagem e essas posições instáveis em devir, é “ali” talvez que a “contra-história” do colonialismo tardio português – enquanto processo conjunto de pensamento da história geral, da história do cinema e do cânone cinematográico —
pode se cumprir fora do quadro binário de relações de poder, de conhecimento
e de representação coloniais. Em todo caso, o curta-metragem visa imaginar, por meio da copresença sensível de momentos incongruentes, como o
colonizado teria visto o colonizador, seguindo o chamado de Jean-Paul Sartre
no prefácio de Os condenados da terra, de Frantz Fanon: “Olhemo-nos, se
tivermos coragem, e vejamos o que é feito de nós”.22 Este é um gesto urgente tanto ontem como hoje, quando, em pleno Mediterrâneo, não sabemos
mais o que é “a esperança do mar”.23
RAQUEL SCHEFER é doutora em Estudos Cinematográicos e Audiovisuais
pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Defendeu uma tese sobre o
cinema revolucionário moçambicano (1966-1987) e o cinema de Liberação
em outubro de 2015. Schefer lecionou na mesma universidade, assim como
na Universidade Paris-Est Marne-la-Vallée. Atualmente, ensina na Universidade de Grenoble. Cineasta e programadora de cinema, é coeditora da revista La Furia Umana. Em 2008, publicou na Argentina a obra El autorretrato
en el documental.
Traduzido do francês por Beatriz Rodovalho
Jean-Paul Sartre, “Préface à l’édition de 1961 des Damnés de la terre”, in Fanon Frantz,
Les Damnés de la terre (1961). Paris: La Découverte & Syros, 2002, p. 31, nossa tradução.
23
Maurice Blanchot, Le Livre à venir. Paris: Folio-Gallimard, 1999, p. 12.
22
144
impasses da
descolonização:
imaGens,
fantasmas
e detritos
imperiais na
obra de mathieu
kleyebe
abonnenc
Por emi koide
146
147
m
athieu Kleyebe Abonnenc lida com histórias pouco conhecidas, marginalizadas, esquecidas e silenciadas.
Artista, curador e pesquisador, seu trabalho é calcado
pela intensa pesquisa histórica, nas questões pós-coloniais e decoloniais. Nascido e criado na Guiana Francesa, até hoje território ultramarino francês no Caribe – denominação que substituiu a de colônia – Abonnenc realizou sua formação e estudos de arte na França,
onde vive e atua. Suas obras respondem e reletem sobre impasses na metrópole
e no continente europeu, cuja história colonial continua recalcada. Parte signiicativa de seu trabalho constituiu-se de videoinstalações ou dispositivos fotográicos em que recupera e retrabalha imagens, arquivos, narrativas e sons.
A ideia de descolonização perpassa suas obras de diferentes modos, seja
através da memória e do reexame crítico das lutas pela liberação, seja a implicação da própria arte, da pesquisa e dos espaços institucionais europeus com
histórias coloniais denegadas e abafadas. O desdobramento de ideias de Frantz
Fanon anima as narrativas de Abonnenc tecidas por fragmentos, ausências e
silêncios – como as diferentes manifestações simbólicas e materiais da violência. A colonização instaurou um mundo cindido e racializado através da linguagem e ação da pura violência. Para Fanon, escrevendo no início dos anos 1960,
período de intensa ebulição de lutas anticoloniais, o uso da violência pelos colonizados num mundo de contínua opressão em todas as esferas da vida – no
trabalho, na cultura e na psique – era a arma necessária para a descolonização.
Ainal, a promessa de independência no Terceiro Mundo, e sobretudo em África,
era vista nos anos 1960 e 70 como grande abertura para um novo horizonte
utópico, de uma outra humanidade, que poderia responder aos fracassos do
projeto moderno europeu, para inaugurar um novo mundo, através de uma “tabula rasa”.1 Se a descolonização implicava na participação ativa dos colonizados, esta mudança radical também deveria se estender aos colonos.
1
Franz Fanon. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002, p. 39.
A guerra pela liberação do Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) contra o Exército português e a participação das
mulheres e crianças é o eixo de Prefácio a Fuzis para Banta (Preface à des
fusils pour Banta, 2011). Propõe-se um ilme-hipótese, uma homenagem a
outro ilme desaparecido que sequer chegou a existir por ter sido apreendido pelo Exército argelino – Fuzis para Banta (Des Fusils pour Banta), ilmado em 1970, por Sarah Maldoror. Fragmentos da história perdida desse ilme,
aspectos não contados dessas lutas pela emancipação, na qual se depositavam tantas esperanças não realizadas, compõem este prefácio audiovisual.
Ao comentar o processo de realização do projeto abortado, suas inquietações, tanto Maldoror como a narradora trazem dimensões críticas à guerra,
suas contradições, idealizações e processos de iconização e suas relações
com a própria produção de imagens. Pois, se na guerra o PAIGC foi vencedor,
o projeto de criação de novos Estados-nações independentes fracassa, bem
como a descolonização.
Em Tudo bem, tudo bem, vamos continuar (ça va, ça va, on continue,
2013), relatos-encenações da atriz Bia Gomes, atriz ícone de ilmes do importante realizador guineense Flora Gomes, retoma a história da luta pela
liberação em Guiné-Bissau. A centralidade deste trabalho é a questão da voz
e do som, registros sonoros e seu aspecto fantasmal, voz encarnada entre
ausência e presença. Faz-se referência a Morte negada (Mortu Nega, 1988),
marco na ilmograia de Flora Gomes. Esta reencenação da guerra pela Independência destaca justamente a crucial participação das mulheres. De certa
forma, é como se este ilme pudesse ser uma espécie de encarnação daquele de Maldoror. A atriz-personagem Bia Gomes conta sobre sua personagem
Diminga em Morte negada, por vezes passa a encarná-la novamente, não se
sabe ao certo quem fala. Mais adiante, um embate entre o personagem artista branco e português com uma plateia majoritariamente negra ocorre num
auditório. Questões como apropriação da cultura e voz do outro, lugar da
fala, diferença, identidade e representação são colocadas. No embate, é o
148
149
público que requer ter voz, questiona lugares de privilégios, no qual o autor
encarna a autoridade colonizadora, para questionar se o subalterno pode
falar. Ao tratar do ato de falar no lugar do outro, a obra apresenta uma dimensão autocrítica, problematizando o próprio trabalho do artista. Acena
para os impasses do percurso por fazer da descolonização, num contexto
europeu de crises com comunidades de imigrantes, de violência e exclusão,
um mundo em que “detritos imperiais” de uma colonialidade continuam
agindo no presente.
Outra forma de violência (neo)colonial é a pilhagem de riquezas como
minerais, matérias-primas, mas também de objetos africanos que constituem
coleções etnográicas europeias, bem como a apropriação destes pelos artistas vanguardistas do modernismo ocidental. O vídeo Um ilme italiano. África,
adeus! (An Italian Film (Africa Addio), 2012) dá forma a este processo de
exploração e espoliação material e simbólica apresentando o processo de destruição e transformação de antigas cruzes de cobre da região de Katanga, no
Congo (RDC), que eram moedas locais carregadas de histórias, em barras
minimalistas num centro de fundição artesanal na Inglaterra. O Congo foi e
continua a ser palco de múltiplas guerras e conlitos relacionados à exploração de diferentes minérios. Pela violência da expropriação e exploração, passado e presente se conectam, bem como as metrópoles europeias e regiões de
conlito perene. Ainda, a obra remete a uma outra violência, a da fabricação de
imagens, ao aludir no título ao ilme Africa Addio (1966) dos italianos Gualtierro
Jacopetti e Franco Prosperi. Esta produção sensacionalista e racista, que
revela uma nostalgia colonial, saturada de imagens violentas, envolve a controvérsia em torno da participação dos cineastas dirigindo cenas de execução
por soldados mercenários justamente em Katanga, durante a Guerra de Secessão desta região repleta de cobre, principal riqueza na época da Independência. Narram-se histórias de milhões de mortes, de traumas que se repetem,
e nós, como espectadores, conhecemos e somos cúmplices, de “passados
mortos e futuros inimagináveis”.
Dando continuidade à problemática da pilhagem e da responsabilidade
de instituições ocidentais como o museu – que tem enfrentado nos últimos
anos uma crescente pressão para lidar com a origem e o signiicado de suas
coleções – em Sector IX B (Secteur IX B, 2015), o artista remonta à mítica
missão etnográica francesa Dakar-Djibouti e episódios embaraçosos da coleta de objetos que comporiam a coleção do Museu do Homem em Paris
(transferidas posteriormente para o Museu do Quai Branly) no contexto da
renovação controversa desta instituição. No célebre livro A África fantasma
(1934), Michel Leiris, participante da missão, relata como ele e Marcel
Griaule, um dos fundadores da etnograia francesa, sub-repticiamente se
apossaram de objetos sagrados, denominados boli, da sociedade Kono da
etnia Bambara no Mali. Dentre os objetos de “formas estranhas” furtados,
estaria “um tipo de leitão, sempre de pasta marrom (ou seja, de sangue coagulado)”.2 Objetos vivos com funções rituais e simbólicas que foram pirateados, violados, para serem classiicados, expostos no museu etnográico
colonial. No vídeo, a personagem etnógrafa expressa a decepção com seu
trabalho em torno de “objetos inertes e mortos”, dentre os quais um dos boli
furtados por Leiris e Griaule, com os quais ela só pode se engajar de outro
modo através da ingestão de substâncias que modiicam o estado de consciência e a percepção – medicamentos tomados pelos viajantes de expedições coloniais. Missões cientíicas pretensamente guiadas pela racionalidade ocidental, no entanto, realizadas por sujeitos “fora de si”. Tal obra se
insere num contexto de debates em torno de restituição de objetos etnográicos e ética das coleções.
As relexões levantadas por essas obras de Abonnenc nos remetem à
persistência dos efeitos imperiais, de restos coloniais recalcados que continuam a agir no presente em todos os espaços. Nas ex-colônias, estes detritos
2
Michel Leiris (1934). A África fantasma (tradução A. P. Pacheco). São Paulo: Cosac Naify,
2007, p. 141-145. Data: 6 e 7 de setembro de 1931.
150
imperiais arruínam,3 produzem vidas precarizadas, saques contínuos de riquezas materiais, imateriais e simbólicas, perpetuando conlitos. Nas metrópoles, tais sintomas se perpetuam com o retorno de histórias denegadas, do
fracasso do projeto moderno civilizacional com suas instituições, e da segregação contínua de imigrantes oriundos de ex-colônias. Assim, talvez se coloque a necessidade da descolonização como horizonte, como tarefa contínua,
cujos signiicados e ações devem ser recriados e reinventados.
EMI KOIDE é pesquisadora da Casa das Áfricas (Núcleo Amanar), com pósdoutorado em História da Arte pela Unifesp, onde desenvolveu o projeto de
pesquisa Imagens da África – Espectros da colonização no Congo (RDC)
(Fapesp, 2015).
testemunhos
cinematoGrÁficos
da luta armada
e do socialismo
em moçambique:
sobre vovós
Guerrilheiras
Por robert stock
3
Ann Laura Stoler, Imperial Debris: On Ruins and Ruination. Durham: Duke
University Press, 2013
Este texto foi originalmente publicado em inglês na Anthropology Review Database
(http://wings.buffalo.edu/ARD/cgi/showme.cgi?keycode=5663).
152
e
m 2010, o ilme Behind the Lines (1971), de Margaret Dickinson,
foi exibido no Festival do Filme Documentário Dockanema em
Maputo, Moçambique, e em 2010 no Festival Internacional de
Cinema Doclisboa, em Lisboa, Portugal. O ilme retrata a luta
pela independência da Frente de Libertação de Moçambique
(Frelimo) contra o domínio colonial português. Esse conlito chegou ao im em
1974, quando um golpe de Estado militar aboliu o regime autoritário em Lisboa.
Aconteceu a Revolução dos Cravos e as colônias africanas portuguesas subsequentemente ganharam independência. O que é surpreendente no documentário de Dickinson é o uso de testemunhos em vídeo nos quais guerrilheiros e guerrilheiras relatam sua participação na luta armada. Esses relatos são
tão impressionantes porque a maioria dos ilmes sobre os movimentos de “libertação” em Angola ou Guiné daquele período usam principalmente narração
em voice over com imagens ilustrativas. Dickinson, contudo, colocou os integrantes da Frelimo em frente à câmara para eles mesmos contarem suas experiências daquele conlito.
Em 2012, Vovós guerrilheiras: Como viver neste mundo (Guerrilla
Grannies: How to Live in This World) também foi exibido em Maputo no Festival do Filme Documentário Dockanema. O ilme de Ike Bertels deve muito
ao trabalho de Dickinson. Como revela a sequência de abertura do ilme,
Bertels assistiu a Behind the Lines nos anos 1970 e icou muito impressionada com uma cena mostrando três mulheres-soldados, sentadas perto de
uma base guerrilheira, limpando suas armas. As mulheres ilmadas e entrevistadas eram Maria, Amélia e Mónica, que mais tarde se tornariam amigas
da cineasta holandesa e futuras protagonistas de Vovós guerrilheiras.
O ilme de Bertels, portanto, conta a história de Maria, Amélia e Mónica. E faz isso utilizando materiais ilmados ao longo de várias décadas. Assim, o material inclui os trechos de Behind the Lines mencionados acima e
entrevistas mais recentes. Além disso, Bertels usa outras imagens produzidas por ela própria. Em 1984, a cineasta conseguiu encontrar as três mulhe-
153
res que ela tinha visto em Behind the Lines e fez um documentário sobre
elas intitulado Mulheres da guerra (Women of War). Em 1994, Bertels voltou
a Moçambique, encontrou Mónica, Amélia e Maria de novo e produziu Guerrilla Pension, que descreve como as três mulheres levavam suas vidas depois do im da guerra civil e diante da primeira eleição livre em 1994. Vovós
guerrilheiras trata do terceiro encontro com as mulheres, que agora estão
aposentadas e enfrentam diferentes problemas em suas vidas privadas. O
ilme incorpora uma relexão cuidadosa sobre a relação entre a cineasta e as
mulheres, que agora já dura quase três décadas.
Ao conceber Vovós guerrilheiras como uma contribuição para a história das mulheres na África, o ilme revela seu maior potencial. Ele gera um
saber especíico sobre a forma como as mulheres entraram na Frelimo e começaram a se tornar soldados lutando ao lado dos guerrilheiros. Além do
material ilmado de Behind the Lines, há Mónica falando sobre sua época de
luta armada, sentada em seu apartamento na Maputo de hoje. Em seguida, o
ilme explora como as mulheres queriam continuar estudando depois da Independência, algumas delas se tornaram quadros da alta hierarquia da Frelimo e se depararam com uma sociedade paternalista. A partir disso elas se
envolveram com temas como a poligamia. Este último aspecto deve ser visto
como parte da política dos “homens novos” defendida pela Frelimo, que na
época queria não só acabar com este tipo de modelo familiar como também
renunciar às práticas religiosas do Islã e das autoridades tradicionais locais.
Quanto aos anos 1990, Vovós guerrilheiras mostra Maria como modelo de
mulher. Ela trabalha em Adis Abeba e fala em inglês com a realizadora. Por
outro lado, Mónica fala sobre a situação depois da guerra civil e que, naquele momento, ambos os lados – Renamo e Frelimo – teriam que esquecer os
erros do passado e a violência cometida para construir o país do zero. Contudo, o ilme também é crítico em relação às melhorias e ao progresso social
que as mulheres esperavam durante os primeiros anos do regime socialista
em Moçambique. Por exemplo, Mónica reclama o fato de que, embora ela
154
155
fosse bastante respeitada durante a luta armada e tivesse conquistado a
patente de coronel, hoje em dia ninguém ligaria para ela ou para outros veteranos do conlito armado. O único reconhecimento por parte da Frelimo
que ela tem é sua pensão de veterana.
Outro aspecto importante sobre o qual o ilme relete é como o trabalho
dessas mulheres inluenciou a vida de suas famílias e parentes. Como as
três airmam no ilme, elas estão interessadas no bem-estar de suas famílias
e querem criar um futuro melhor para elas. Amélia, que ainda vive na zona
rural, é um bom exemplo disso. Embora ela receba uma pensão, continua
trabalhando em sua machamba1 para sustentar a família. Além disso, ela
compra material para construir casas em seu terreno para seus ilhos e netos. Ao mesmo tempo, o ilme mostra o descontentamento de Amélia e Mónica com as novas gerações, uma vez que alguns de seus ilhos e netos não
aproveitam as oportunidades educacionais e econômicas pelas quais essas
mulheres lutaram. No im, embora Maria, Amélia e Mónica quisessem ensinar seus descendentes “como viver nesse mundo”, seus esforços nem sempre foram bem-sucedidos.
Além da ênfase do ilme no papel das mulheres em diferentes períodos
políticos e contextos sociais, há outra dimensão em Vovós guerrilheiras sobre a qual eu gostaria de discorrer aqui. Considere as cenas nas quais o ilme mostra as mulheres enquanto elas assistem a um ilme no cinema ou na
televisão. é um momento autorrelexivo que aponta para o encontro de pessoas de Moçambique com a mídia audiovisual – poder-se-ia dizer que se
trata de um encontro entre o “nativo” e a “vida moderna”, o que por si só
apresenta um histórico problemático nos ilmes etnográicos e outros. Há,
por exemplo, a cena tirada do ilme de 1984 de Bertels que mostra as três
mulheres assistindo a Behind the Lines numa sala de cinema situada no Instituto Nacional de Cinema (INC), em Maputo. De acordo com a narração,
1
Terreno agrícola para produção familiar, terreno de cultivo. [N. E.]
elas nunca tinham visto o ilme de Dickinson antes. Na cena, viam inalmente os seus companheiros, amigos e maridos na tela e comentavam sobre os
sentimentos e memórias que vinham à tona enquanto estavam expostas a
essas imagens do início dos anos 1970. Em outra cena, Maria assiste a uma
reportagem na televisão sobre a campanha eleitoral da Frelimo em 1994,
junto com a ilha no seu apartamento em Maputo. Ao comentar sobre o
Acordo Geral de Paz, de 1992, e o conlito entre Renamo e Frelimo, ica óbvio
que Maria aprova a nova liberdade política depois do im da guerra civil – o
mesmo é evidente na proliferação de jornais como o Savana, um semanário
que informa, de maneira crítica e independente, sobre a situação do país. Há
ainda mais um encontro entre as mulheres e a televisão nas cenas da entrevista com Mónica, ilmadas recentemente em Maputo. Lá, Mónica está sentada em seu sofá em frente à televisão. O material mostrado na televisão não
é identiicado, mas parece uma telenovela. Pode-se argumentar que a cena
aborda a despolitização da programação televisiva e de outros meios de comunicação no Moçambique contemporâneo (que, na verdade, é problemática, uma vez que um dos principais canais de TV, o TVM, é de propriedade do
Estado). Ou que ela pelo menos simboliza o desaparecimento das imagens
relacionadas à guerra da Frelimo contra a dominação colonial, enquanto o
país enfrenta uma situação econômica globalizada em que a memória da
luta armada persiste em iguras como as mulheres retratadas pelo ilme.
Dito isto, também se pode compreender o ímpeto de Vovós guerrilheiras em
discutir as experiências de Maria, Amélia e Mónica. Mostrar suas imagens e
testemunhos signiica então celebrar a importância dessas e de outras mulheres envolvidas nas lutas pelas independências, questões de igualdade de
gênero e ains.
O trabalho mais recente de Bertels demonstra, assim, ser uma importante contribuição para a relexão cinematográica e um trabalho de memória cultural no contexto dos processos de descolonização da África Subsaariana. De
forma semelhante a longas-metragens de icção como Flame (1996), de Ingrid
156
Sinclair, ou Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo, Vovós guerrilheiras
enfatiza o papel das mulheres naquele processo histórico e discute a forma
como suas vidas continuaram depois da Independência, durante o período do
socialismo, da guerra civil e dos anos 1990 em diante. Embora às vezes apresente uma perspectiva que parece ser bastante informada pela história e política da Frelimo, este documentário consegue, contudo, criar um relato crítico
sobre a história dos ilmes relacionados a Moçambique bem como sobre as
veteranas do conlito armado que lutaram contra o regime colonial do Estado
Novo português. O ilme é recomendado para o uso em cursos universitários
que tratam da história de descolonização na África, da discussão de documentários históricos e do uso de métodos de história oral como o testemunho em
produções cinematográicas.
ROBERT STOCK coordena o grupo de investigação “Participação e Mídia” na Universidade de Konstanz, Alemanha. Ele estudou etnograia europeia
e faz o doutoramento em estudos culturais.
o passado
inabordÁvel
e a necessidade
de imaGinação:
sobre tabu
(2012), de
miGuel Gomes
Por mariana duccini
Traduzido do inglês por Eloyse de Vylder
Texto originalmente publicado na revista Novos olhares, v. 4, n. 2, 2015. São Paulo:
Programa de Pós Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) da
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
158
159
Pelo menos, se me fosse concedido tempo suiciente para terminar a minha obra, não deixaria eu,
primeiro, de nela descrever os homens, o que os faria se assemelharem a criaturas monstruosas,
como se ocupassem um lugar tão considerável, ao lado daquele tão restrito que lhes é reservado
no espaço, um lugar, ao contrário, prolongado sem medida – visto que atingem simultaneamente,
como gigantes mergulhados nos anos, épocas tão distantes vividas por eles, entre os quais tantos dias vieram se colocar – no Tempo (Marcel Proust, Em busca do tempo perdido).
a
inscrição da vida dos homens em um Tempo que se prolonga
indeinidamente, conforme a aventura literária de Proust, não
se perfaz senão como um arranjo especíico de experiências
memorialísticas que, em um presente enunciativo, precipitam-se na forma de uma narrativa. O presente é, assim, o tempo por excelência da memória: a única maneira de se contemplar o tempo perdido é incrustá-lo em um momento atual, eivando-o de sentidos que dão
compleição às próprias experiências dos sujeitos. Se no passado sempre resta
algo de inabordável, é porque o esquecimento é a força constitutiva da memória,
aquilo que a obriga à reelaboração do outrora vivido.
Uma recordação surge ao espírito sob a forma de uma imagem que, espontaneamente, se dá
como signo de qualquer coisa diferente, realmente ausente, mas que consideramos como tendo
existido no passado […]. O passado está, por assim dizer, presente na imagem como signo da sua
ausência, mas trata-se de uma ausência que, não estando mais, é tida como tendo estado.1
Em um esforço para reencontrar aquilo que só se materializa nos termos de uma ausência, o trabalho de memória (ou, mais especificamente,
de rememoração) tem de se haver com as lacunas próprias a toda ordenação narrativa, sempre da ordem da organização e da seleção. Se o acontecimento se instala no tempo, é como relato que se reveste de uma possibilidade, ainda que precária, de permanência. é assim que o próprio sentido
da história tem a memória como um de seus objetos privilegiados,2 contemplando o esquecimento constitutivo como força motriz para a ressignificação de eventos historicamente estabelecidos. Sobre o velho vigora, então,
o novo, o inédito possível. Por outras palavras, a construção dos sentidos
não é outra coisa que a revisitação – e frequentemente o deslocamento –
de versões já bem assentadas em um repertório coletivo: existe nessa dinâmica um “saber discursivo que faz com que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. [A memória] se constitui pelo já-dito que possibilita
todo dizer”.3
Tabu (2012), ilme do realizador português Miguel Gomes, assume expressividade artística pela articulação de um enredo iccional totalmente tecido por fragmentos de narrativas memorialísticas, em que esse arranjo se torna
o principal aspecto constituinte da obra. De maneira mais abrangente, porque
o dado histórico retorcido por uma operação de memória aparece como marca
de um posicionamento enunciativo. Aqui, coexistem tanto a rememoração de
um episódio sociopolítico capital da história portuguesa (o processo de neocolonialismo empreendido em terras africanas nos anos 1950-60) quanto a
própria memória do cinema como instituição cultural (em alusão ao período
clássico de Hollywood, sobretudo a partir dos anos 1930). De maneira mais
situada, porque a diegese fílmica traz as categorias de tempo, espaço e
2
1
Paul Ricœur, “Memória, história, esquecimento”. Palestra realizada na Conferência
Internacional Hauting Memories? History in Europe after authoritarianism. Budapeste:
Publicações Universidade de Coimbra, 2003. Disponível em: <http://www.uc.pt/luc/lif/
publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/memoria_historia>. Acesso em 11/11/2015.
Ricœur (ibidem) alude ao estabelecimento da história cultural nos termos de uma
reordenação do estatuto da memória, que passa, então, de matriz da história a objeto da
história; trata-se da inserção dessa disciplina no âmbito de outros fenômenos culturais
encarados como representações.
3
E. P. Orlandi, “Maio de 1968: os silêncios da memória”, in P. Achard et al. Papel da
memória. São Paulo: Pontes Editores, 2007, p. 64.
160
161
personagens imbricadas a uma estrutura narrativa díptica,4 que enlaça o presente e o passado, o aqui e o alhures, a velhice e a juventude – dualidades
dispostas em correspondência com as duas porções temáticas (à parte um
breve prólogo) em que o ilme se divide: “Paraíso perdido” e “Paraíso”.
Nosso intento analítico, entretanto, não se orienta aqui pelo “desembaraçamento” dos feixes de memória que sustentam o enredo fílmico (por um
lado, aqueles que se situam macroestruturalmente, em termos de processos
da história portuguesa e da história do cinema, que a seu modo se inscreveram na realidade social; por outro, aqueles mais circunscritos, componentes
da tessitura episódica de Tabu, em que o exercício iccional de rememoração
pelos personagens reelabora os dramas existenciais que vivenciaram). Tratase, ao contrário, de percorrer as estratégias pelas quais a obra, em chave poética, celebra o amplo domínio da memória, imiscuindo na “grande história” os
episódios particulares.
A esse respeito, sobrevém ainda a referida disposição iccional, como
gênero narrativo, que conforma a realização. Certa “romantização” de eventos
históricos especíicos, cremos, potencializa em nosso objeto a expressão máxima da dinâmica memorialística: o retorno ao “tempo perdido”, a um outrora
mítico, é uma empreitada falha por natureza, inextricável de um arranjo narrativo, mesmo quando tratar de episódios que tiveram lugar na realidade.
Isso porque não se reencontra o tempo perdido senão por meio de artifícios de lembrança, eles próprios lacunares. Se nenhum evento pode ser reconstituído em sua totalidade (suas temporalidades múltiplas, seus ditos e
interditos, suas certezas e suas esquivas), é entretanto sob a ordem das icções – e somente assim – que as vivências podem ser signiicadas e comuni-
4
Essa estruturação é bastante própria à obra cinematográica de longa-metragem de
Gomes, como atestam os ilmes anteriores: A cara que mereces (2004), em que a
dualidade se perfaz em termos metalinguísticos (um ilme que se engendra dentro do
próprio ilme), e Aquele querido mês de agosto (2008), no qual o contraste se faz entre o
regime iccional e o regime documental.
cadas. Por icção, em sentido amplo, entendemos as operações que tornam
inteligível uma “ordem do mundo”, um trabalho de construção que distribui os
modos pelos quais os sujeitos tomam parte em um universo sensível comum,
têm suas experiências compreendidas e valoradas.
No ilme de Gomes, a modulação patentemente iccional (em contraste
com uma disposição documentarizante, ainda que certo grau de ambivalência possa ser depreendido em Tabu)5 confere autossuiciência à narrativa,
que se torna tanto mais complexa na medida de sua ordenação por lashbacks
que vão desvendando o enigma da “queda”: a passagem do “Paraíso” ao
“Paraíso perdido”, que, no ilme, é disposta em ordem inversa. Há assim, no
interior da unidade iccional do enredo, uma espécie de gradiência da fantasia e da fabulação, parte-se de um presente sem atrativos rumo a um passado mágico que se esvaiu.
A primeira parte, “Paraíso perdido”, traz à cena o momento contemporâneo, marcado pelo vazio existencial de Pilar (Teresa Madruga) e pelos delírios
senis de Aurora (Laura Soveral). A segunda parte, “Paraíso”, estrutura-se por
meio da narração memorialística de Gianluca Ventura (Henrique Espírito Santo), que remete o espectador a um algures fausto e exótico, quando as vicissitudes da juventude e da inocência – dele e de Aurora – precipitam a ruína,
tornando inteligível ao espectador o sentido de renúncia e de decadência que
obseda o presente, preço a ser pago pela violação de um tabu.
5
Quanto a essa questão, já referimos a presença, em Tabu, de aspectos históricos
concretos do processo neocolonialista português na África e da alusão em paráfrase
estética a períodos especíicos do cinema industrial. Secundariamente, é possível
considerar o fato de que a segunda parte do ilme (“Paraíso”) conta com uma narração em
voz over, tão comumente associada à forma documentária, mas que se presta, na obra, à
diegese iccional: o narrador tem o sintomático nome de Gianluca Ventura, personagem
que, na velhice, rememora as aventuras e desventuras da juventude, dando coesão às
duas partes em que o ilme se divide. Lembremos ainda que a referida segunda parte
de Tabu foi prioritariamente realizada sob o improviso por parte dos atores e da equipe
técnica, visto que as restrições orçamentárias inviabilizavam a observância ao roteiro,
como refere Miguel Gomes em entrevista a Heitor Augusto.
162
163
DO PARAíSO AO PARAíSO PERDIDO:
A EXPECTATIVA QUE NãO SE CUMPRE
Logo de início, Tabu envolve a instância espectatorial em uma ambiência
que remonta à estética dos ilmes etnográicos clássicos, com a presença de um
explorador europeu que, “no coração do continente negro”, como sublinha a
narração em voz over, desenvolve seu trabalho de pesquisa entre os nativos. Um
efeito de objetivação da alteridade, nos termos da curiosidade e do exotismo,
não deixa de perpassar essas cenas, em alusão a uma característica candente
dos primeiros tempos da antropologia visual. Ao mesmo turno, um adensamento
subjetivo invade as imagens, mas não se refere às “singularidades do outro”,
senão ao páthos do próprio explorador. Por um confronto de pressuposições, a
posição do investigador é desestabilizada, visto ser ele quem sucumbe a certa
irracionalidade: atormentado pelas aparições do espírito da esposa, lança-se à
morte, devorado por um crocodilo. A voz over vem, então, relatar, após o episódio, a estranha presença naquelas terras longínquas de “um crocodilo triste,
melancólico” que vive “acompanhado por uma dama d’outros tempos”.
À guisa de prólogo, essa curta sequência não integra organicamente a
diegese de Tabu, ainda que anuncie articulações de sentido profícuas com a
unidade da obra: trata-se antes de “um ilme dentro do próprio ilme”, o que só
se revela a posteriori, com a imagem da personagem Pilar em uma sala de cinema. Ora no centro do quadro, Pilar representa a espectadora modelar às
ambições daquela primeira antropologia visual:
As sociedades descobertas pelo trabalho de exploração tornaram-se, nas imagens
fotográficas e depois nas cinematográficas, suscetíveis de serem transportadas, divididas, montadas, referidas e sobretudo comentadas em relação a um lugar espectatorial cuja centralidade, característica essencial da referencialidade, não é posta em
questão.6
6
M. H. Piault, Anthropologie et cinéma. Paris: Nathan/ HER, 2000, p. 9.
Assim interposto, entretanto, o plano da imagem de Pilar na sala de cinema desnaturaliza nossa própria fruição especular e instala a suspeita quanto a um espectador paradigmático: o que ele vê (ou ainda, o que vemos) não é
o mundo em sua referencialidade, mas um arranjo de imagens e sons que dão
compleição a um relato que aspira a ser “verdadeiro”. O caráter contingente
dessa verdade, natureza mesma de todo discurso (entre eles, o do cinema), se
abisma como um dos efeitos expressivos em Tabu, seja pela disposição iccional do ilme, seja pelo exercício memorialístico dos personagens, que nos obriga ao cotejo entre temporalidades a im de enlaçar as duas partes do enredo,
seja ainda pelo manejo do recurso da intertextualidade a partir dessa instância enunciativa.
Quanto a este último aspecto, o próprio título do ilme evoca a obra homô7
nima de F. W. Murnau e R. Flaherty, em que o caráter exótico da paisagem da
Polinésia Francesa é exaltado, servindo como pano de fundo à história de amor
proibido entre os jovens Matahi e Reri, virgem sagrada que, tendo se tornado ela
própria um “tabu”, é impedida de viver o romance, mas foge com o rapaz – motivo pelo qual uma série de maldições se abate sobre eles. Também dividida em
dois capítulos (“Paraíso” e “Paraíso perdido”), a obra de Murnau e Flaherty é
uma das últimas produções do período do cinema silencioso nos Estados Unidos. Os pontos de conexão evidentes, no ilme de Gomes, são ao mesmo tempo
invertidos ou transigurados, em um jogo de sentidos que, conforme referimos,
repõe a tradição e a desloca, volta ao primado do mesmo para enunciar o novo.
A ordenação díptica da narrativa no Tabu de 1931 vai da causa ao efeito
(ou do “Paraíso” ao “Paraíso perdido”), explicitando a punição como resultado
da violação do interdito, que só pode ser expiada por uma renúncia (no caso,
pela renúncia extrema: a morte de Matahi, o violador da interdição).
Também em díptico, mas com os “termos invertidos”, o Tabu de 2012
conigura o presente como o tempo por excelência da renúncia, das frustrações
7
Tabu, a Story of South Seas (1931), obra de F. W. Murnau e R. Flaherty.
164
e da decadência, em uma Lisboa contemporânea. é apenas pelo tortuoso caminho da memória que se pode retornar ao paraíso, tempo em que as interdições não eram mais do que um conjunto de abstrações de ordem moral, insuicientes, entretanto, para refrear os ímpetos de uma juventude colonial que,
na exuberância da África negra, dá forma a sonhos de poder, riqueza e sensualidade romântica.
“Paraíso perdido”, então, tem como mote os temas da velhice e da solidão. Pilar, senhora de meia-idade, é o esteio de uma relação que se triangula
com a vizinha Aurora e a empregada dela, Santa (Isabel Cardoso). A im de
preencher seus dias vazios, Pilar encarna a solicitude como principal marca
identitária: desvela-se em cuidados em relação a Aurora, acometida pelas fragilidades físicas e mentais da senilidade. Engajada no ativismo político, Pilar
não raro percebe as insuiciências de seu estar no mundo, e então reza, de
forma quase “protocolar”, por si e pelos seus (Aurora, em particular). Não há
indícios de romance em sua vida, embora exista um pretendente, que tampouco a entusiasma. A juventude se esquiva da presença de Pilar, como é o caso
da intercambista polonesa que dissimula não ser quem é para se livrar de sua
companhia. Até mesmo a disponibilidade da personagem em ajudar é vista
com desconiança por Santa, que encara as incursões de Pilar na vida de Aurora como excesso de intromissão.
A empregada, aliás, representa um contraponto a Pilar nesse sentido.
Cumpre seu dever e não se ocupa de cuidados suplementares em relação à
patroa. Torna-se simbólica na medida de sua origem: negra, advinda de uma
das antigas colônias portuguesas (cuja referência não é explícita), é acusada
por Aurora de praticar “macumbas malditas” – alusão que se torna mais compreensível na segunda parte de Tabu, em que a jovem Aurora (Ana Moreira),
herdeira de uma fazenda na África, convive de forma algo ambivalente com os
rituais mágicos dos nativos. Frequentando uma escola para adultos, Santa
mostra progressos nos estudos, o que a professora credita à leitura de Robinson Crusoe, romance setecentista de Daniel Defoe.
165
Assim como o herói do romance, visto por Watt como um dos mitos do
individualismo moderno, Santa apresenta uma “sensibilidade conectada às
coisas materiais”, sabendo como “fazer uma acurada avaliação de resultados”.8 Narrativa que celebra a tenacidade do indivíduo, em Robinson Crusoe a
expressão do coletivo não tem lugar. Santa, representando toda uma geração
de povos explorados que aluem à antiga metrópole em busca de uma vida
melhor, não faz fé (por motivos óbvios) em empreendimentos coletivos. Metódica e trabalhadora, não alimenta pretensões que exorbitem seu horizonte
cotidiano nem expressa emoções que ultrapassem a justa medida. Embora
não se insurja contra os eventuais maus modos da patroa, também não destina a ela algum gesto de compaixão, como faz Pilar.
Aurora é a personagem mais enigmática dessa primeira parte de Tabu. Viciada em jogos de azar, perde dinheiro nos cassinos e relata sonhos que prometem
bons augúrios, ao mesmo tempo que reconhece a inutilidade deles em sua realidade insossa: “Sou uma tola, porque a vida das pessoas não é como nos sonhos”.
Suas formas de expressão são muitas vezes ricas de um simbolismo que, no entanto, parece resultar da caduquice. Pede a Pilar que reze por ela, pois “tem as
mãos sujas de sangue”. Apenas à beira da morte, essa condenação começa a fazer sentido, quando, já sem poder falar, Aurora desenha nas mãos de Santa o
nome e a direção de um homem a quem Pilar deve procurar: Gianluca Ventura.
O tempo diegético do capítulo “Paraíso perdido” refere-se aos últimos
dias de dezembro, período que sucede o Natal. Essa temporalidade especíica,
somada ao abandono de Pilar pela jovem intercambista e à decrepitude de
Aurora, robustecem o sentido da solidão e do tédio. As sequências, em branco
e preto, deslizam em movimentos lentos e diálogos intimistas. Na última noite
do ano, Pilar vai ao cinema acompanhada do amigo-pretendente, que dorme
enquanto ela chora com o ilme – a banda sonora com a música “Be My Baby”,
8
Ian Watt, Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson
Crusoe. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 162.
166
167
das Ronettes, potencialmente remete a personagem à juventude e aos sonhos
românticos de outrora, sentido que se ampliica quando a canção é retomada
na segunda parte de Tabu, mas a essa altura identiicada à história de amor
entre Aurora e Gianluca ainda jovens, da qual Pilar também será uma espectadora, mas deslocada no tempo.
Nos delírios que antecedem sua morte, já ao inal de “Paraíso perdido”,
Aurora pede à empregada Santa que “vá espreitar o crocodilo”, porque ele
adora “se meter em casa do senhor Ventura”. Desse animal, o ilme já dava
indícios no prólogo.
Devorador do infeliz explorador que não encontra em vida alívio para
o sofrimento amoroso, o crocodilo reaparecerá ainda em “Paraíso”, o segundo capítulo. A igura do réptil é, assim, transversal à duração do ilme
– da mesma forma como pode ser considerada transversal ao próprio Tempo, posto que essa forma de vida, cuja origem remonta a mais de 200 milhões de anos, chega aos dias atuais. No ilme, o crocodilo metaforiza a
permanência e, portanto, a condição de testemunha privilegiada das desventuras humanas. é, entretanto, uma articulação ostensivamente irônica
em uma narrativa cuja chave é o domínio da memória: um crocodilo não
pode efetivamente comunicar seu testemunho. Mas, sendo sua presença
intransitiva o que perdura, explicita-se a condição frágil e perecível de todo
trabalho de memória subjetiva: o verdadeiro triunfo é o da memória da natureza em sua incomunicabilidade, ao menos como se aigura ao nosso renitente antropocentrismo.9
9
Pensamos, mais uma vez, em como essa condição é trabalhada ironicamente quanto ao
estatuto de que o crocodilo, simbolicamente, se reveste em Tabu. No prólogo, o narrador
alude à tristeza e à melancolia do animal, evidentemente motivadas por uma espécie
de “incorporação” do páthos de sua presa, o explorador europeu. A rigor, essa vontade
de mimetização entre os humores do homem e os do animal não é nova. Um mito da
Antiguidade identiica um ruído especíico emitido pelos crocodilos ao som dos soluços
humanos. A própria expressão “lágrimas de crocodilo”, que remete à condição de cinismo,
reforça tal disposição.
Quando Pilar consegue encontrar Gianluca em um asilo, Aurora acaba
de morrer. Após o enterro, ele, Pilar e Santa sentam-se em um café para rememorar a história da falecida, pelas palavras do outrora amante. “Ela tinha uma
fazenda no sopé do monte Tabu” é a frase que incorpora a conexão entre as
duas partes do ilme.
Tal efeito de passagem e liame, materializado na fala de Gianluca, é contíguo a outra transição, esta de ordem imagética. O ambiente do café tem uma
expressividade kitsch, com plantas e aves decorativas que compõem uma bizarra loresta tropical. Mas é sob o comando da memória que esse cenário
artiicial “magicamente” se torna vivo, quando um plano-sequência inalmente nos imiscui em “Paraíso” – espaço-tempo mítico, embora em conexão com
uma cronologia e uma geograia que identiicam uma colônia africana sob o
domínio português nos anos 1960.10
O recuo no tempo se inscreve tanto pela condução da narrativa com a
voz over de Gianluca “velho” (contemporâneo), que relembra o passado,
quanto por uma sensível modulação no registro das imagens.11 A banda sonora
se alterna entre a referida voz over do narrador, a música e alguns ruídos (estes dois últimos, diegéticos), mas diferentemente do que acontece no primeiro
capítulo, os diálogos não são audíveis. Há uma clara remissão estético-narrativa ao cinema clássico industrial de Hollywood,12 sobretudo em vista de dois
Por meio de informações extrafílmicas, sabemos que a segunda parte de Tabu foi rodada
em Moçambique. No enredo, entretanto, não há menção clara à especiicidade geográica
dessa colônia, o que potencializa um efeito de fábula.
11
Embora todas as imagens do ilme sejam em preto e branco, a diferença essencial está
no uso da bitola de 35mm para a primeira parte (“Paraíso perdido”) e na de 16mm para a
segunda (“Paraíso”), neste caso com uma textura granulada que potencializa a atmosfera
nostálgica, própria às reminiscências do personagem Gianluca Ventura.
12
Apenas para efeito de eventual desambiguação, assumimos com Bordwell (“O cinema
clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”, in F. Ramos (org.). Teoria
contemporânea do cinema – documentário e narratividade iccional, v. II. São Paulo: Senac,
2005, pp. 291-92) o período compreendido entre 1917 e 1960 quando nos referimos às
representações e às estruturas da narrativa no cinema hollywoodiano clássico.
10
168
169
aspectos: a combinação entre um segmento estilístico material e uma unidade
dramatúrgica (o que motivava, nesse período, certa indiferenciação entre as
noções de “plano” e “cena”); e a construção dos eventos segundo um princípio
de causalidade, de forma que as conigurações de tempo e espaço amalgamassem os efeitos de coerência e consistência.
Em conjunto, essas características mais evidentes conformam no interior da narrativa um lugar espectatorial que só pode se atualizar, ele mesmo,
em termos do reconhecimento: é a própria memória de um cinema clássico
que se erige, solicita correspondências, estimula formas de percepção e de
inteligibilidade. Contiguamente, e de maneira talvez mais situada, é também a
memória de toda uma geração colonial portuguesa que se mobiliza sob o signo
da promessa de um futuro grandioso que, a exemplo do trágico amor entre
Aurora e Ventura, não vinga.
O SENTIDO DO TABU: SINTOMA DA AMBIVALêNCIA
Se “Paraíso perdido” é o capítulo marcado pelos signos da velhice, da solidão e das expectativas frustradas, é porque “Paraíso” compõe com ele uma dualidade reversa. O arco narrativo da segunda parte acompanha os anos faustos de
Aurora, herdeira de uma fazenda na África, onde vive cercada por criados negros
cuja única justiicativa existencial é satisfazer-lhe os desejos. De arrebatadora
beleza, a personagem tem o caráter modulado pela força. Cultiva comportamento
e vestuário reinados, ao mesmo tempo em que vive em plenitude circundada pela
vida selvagem (adepta da caça a animais de grande porte, é conhecida em toda a
redondeza por uma pontaria infalível). O pai, que legou a ela a propriedade, os
animais e os empregados, está morto – e o apreço da ilha pelas caçadas é explicado como uma espécie de homenagem à memória dele. Ironicamente, a Aurora
da velhice, que conhecemos em primeiro lugar (“Paraíso perdido”), manifesta outro aspecto herdado do caráter do pai: o vício dos jogos de azar.
O casamento conjuga Aurora a um marido (Ivo Müller) que faz fortuna
com o plantio de chá na colônia – e partilha com a mulher uma existência
despreocupada e feliz, também ele um entusiasta daquela vida exótica. O segundo capítulo de Tabu trabalha um imaginário mitológico que propulsiona os
estereótipos eurocêntricos sobre a vida dos nativos, mas essa proposição de
leitura, claro está, se dá em chave crítica (recordemos sobretudo o papel simbólico de Santa, na primeira parte do ilme, como detalharemos adiante).
Quando a gravidez sobrevém, Aurora pela primeira vez erra a pontaria e
perde a presa durante uma caçada. Há qualquer coisa de premonitório nesse
fato, conectado a uma previsão mágica de um dos empregados da fazenda,
que costumava ler a sorte de seus senhores nas vísceras dos animais preparados para as refeições. O cozinheiro antevê a gravidez da jovem, mas com a
ressalva de que o futuro dela será desgraçado. Aurora, que até então condescendia com os rituais mágicos, acusa o empregado de heresia e o manda embora – o que ele anunciava, entretanto, era realmente a origem de sua ruína:
ela havia se tornado um tabu, cuja violação não tardaria.
Sintoma de uma ambivalência emocional, um tabu deriva em interdições
de origem remota e muitas vezes desconhecida, estendendo-se sobre uma coletividade na forma de sanções e castigos que frequentemente têm por princípio diversas modulações de banimento inligidas ao violador. Onde houver
proibição, haverá por princípio lógico um desejo subjacente – donde a ambivalência constitutiva desse estatuto. Frequente, mas não unicamente delimitada nas práticas sociais arcaicas, a característica extensiva de um tabu tem
como correlata a noção de mana: espécie de poder mágico inerente a certos
espíritos, indivíduos, animais, objetos ou mesmo estados que, creditado a uma
origem sagrada, também pode, por contágio, suscitar o perigo, a conspurcação e a ruína daqueles que entrarem em contato com o portador do tabu.
A presença magnética de Aurora, aliada à gravidez, é seu verdadeiro
mana, o que arrebata o então rapaz Gianluca (Carloto Cotto), que chega àquelas terras como um forasteiro, graças a “desventuras que o izeram deixar a
casa paterna em Gênova”, como refere o idoso Gianluca narrador. Na África,
ele é acompanhado por Mário (Manuel Mesquita), amigo de boemia cuja ligação
170
171
com a colônia remonta ao avô, que havia sido degredado muitos anos antes,
quando as terras dominadas eram o destino penal àqueles que caíam em desgraça na metrópole.
Mário e Gianluca encarnam o éthos de “playboys” em um cenário pródigo e, sobretudo, livre. Esse ideário se torna especialmente pregnante pois,
naquele período histórico, Portugal vivia sob o jugo do Estado Novo, quando a
ditadura salazarista restringia duramente as liberdades coletivas e individuais. Sem lei nem rei, a África tropical revestia-se assim do estereótipo de paraíso reencontrado.
Não parece fortuito o fato de a igura paradigmática da autoridade – o
pai – estar ausente da narrativa, cujo protagonismo é da juventude. O pai de
Aurora já não vive; o de Gianluca rompera com o ilho; de Mário, só temos remoto conhecimento do destino desonroso do avô. O próprio Mário, que acaba
por ter um ilho com uma das nativas, jamais assume essa responsabilidade e,
eventualmente, como explica o narrador, fazia um “programa de domingo” com
o menino – nas raras ocasiões em que se lembrava dele. O marido de Aurora é
aquele que mais se aproxima da igura paterna, pelo fato de ter salvado a vida
de Mário quando ele era ainda adolescente, o que estabeleceu um laço fraterno entre os dois.
Na companhia de outros colegas igualmente jovens, ricos e inconsequentes, as vidas desses personagens orbitam festas extravagantes, aventuras selvagens e sessões de tiro ao alvo que se tornam frequentes com os rumores de que os nativos estariam se armando para uma guerra colonial. Esses
eventos são comumente embalados pelas canções da banda de Mário e Gianluca, que enlouquece as meninas. Mas é Aurora quem toma o coração do rapaz e, enquanto o ilho cresce no ventre dela, os dois se envolvem em um romance secreto, de que somente Mário tem conhecimento – e se opõe, pelo
respeito que nutre pelo marido de Aurora.
O romance tem início quando um ilhote de crocodilo, que Aurora ganhara de presente do marido, vai se imiscuir na casa de Gianluca. O amor dos dois
é permeado pela simbologia da vida selvagem, dos instintos que não capitulam
nem mesmo quando a barriga crescente de Aurora nua se interpõe entre ela e
o amante durante o sexo. Uma breve separação dos dois, orquestrada por Mário, não resiste ao reencontro. Em adiantado estado de gravidez, Aurora foge
na garupa da motocicleta de Gianluca. Rumam a uma aldeia nas proximidades,
quando Mário os surpreende e entra em luta com o amigo. Aurora atira em
Mário e imediatamente entra em trabalho de parto.
Assim implicado na desonra da amada e, indiretamente, na morte do
melhor amigo, Gianluca tem remorsos, sentindo a visão da amada com
a filha nos braços tão insuportável quanto a do cadáver do amigo. Com a
chegada do marido de Aurora, assume-se como raptor dela e como assassino de Mário. Os amantes nunca mais se veem, apenas trocam cartas melancólicas, que minguam até cessarem de vez. Passam a viver, cada um, à
sombra de seus crimes, mas o principal deles parece ter sido uma certa
inocência, que dividem com toda a sua geração: a de não perceber que, a
exemplo do paraíso perdido, a aventura colonial no “Ultramar” rebentaria
em breve, como a própria barriga de Aurora, e só poderia resultar em sangue derramado. A morte de Mário serve, assim, de pretexto para a eclosão
da guerra.
As palavras de Aurora em sua última correspondência a Gianluca são
uma espécie de emblema do espírito do filme: “Se a memória dos homens é
limitada, já a do mundo é eterna – e a ela ninguém poderá escapar. Peço
que não revele em minha vida os monumentais crimes que vivemos”. O
crocodilo ressurge, então, no derradeiro plano de Tabu. Portador da memória do tempo, ele não pode, contudo, revelar os monumentais crimes
dos homens, suas paixões, suas fraquezas, suas vitórias e derrotas tão
situadas. Disso se incumbe o próprio cinema, mas este, na materialidade
de sons e imagens que perenizam as histórias dos homens, só pode inscrever uma ausência: a de um tempo perdido, irrecuperável à mesma medida
que é buscado.
172
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CONCLUSãO
Se a medida justa da violação de um tabu é frequentemente uma espécie
de banimento, torna-se compreensível por que Aurora, na velhice, pode ser
vista como uma exilada – e, não sem ironia, assim se converte justamente
quando retorna à origem: a pátria portuguesa. Sem lugar próprio, o exilado é
aquele que se perde de si e erra no tempo, tem de contornar uma fratura existencial para continuar vivendo.
A se considerar a dimensão sintomática dos tabus, é possível então
relacioná-lo (o sintoma) não exatamente com os eventos potencialmente
esquecidos (apartados do sujeito pela conformação de um trauma), mas
com as “sobras” do acontecimento crucial, com aquilo que é latente e eventualmente irrompe na experiência ordinária do sujeito, sem que possa ser
totalmente apagado. 13
é nessa dimensão que retomamos a ligação ambivalente entre Aurora
e Santa, na primeira porção narrativa do ilme. Nas emergências da violência
verbal da patroa contra a empregada, resiste algo a mais que a patente dissimetria de forças própria a esse tipo de relação ou mesmo à antiga memória
da relação metrópole-colônia, em termos de um vasto repertório de preconceitos. Santa é acusada por Aurora, sobretudo, de prática de bruxarias, o
que só pode ser bem compreendido pelo cotejo com a segunda parte de
Tabu. A “força mágica” que envolvia tudo o que dissesse respeito àquela
vida na colônia recaiu sobre Aurora, causando sua ruína, fato que, no presente, Santa não a deixa esquecer. Mas os signos do tabu já eram literalmente visíveis no contexto do passado, como materializações naturais de
uma advertência a que não se prestou atenção: o imponente monte de que
se acercava a fazenda, não fortuitamente denominado Tabu; a barriga crescente de Aurora durante sua gestação; as vísceras do animal em que se adivinhava o destino da protagonista.
13
Slavoj Žižek, Bem-vindo ao deserto do real! São Paulo: Boitempo, 2003, p. 37.
A inocência a que anteriormente aludimos como o mais sintomático dos
crimes de Aurora e Gianluca refere-se especiicamente a tal incapacidade de
ver, marca de uma “identidade trágica do saber e do não saber, da ação voluntária e do páthos sofrido” 14 –, análoga por certo àquela que obliterava a percepção quanto a um sistema colonial que gradualmente se esfacelava.
é também esse o “crime” que conduz diretamente ao paraíso perdido,
tempo de um presente límbico. Se há aí, em relação ao trabalho dramatúrgico
dos personagens, o imperativo moral do esquecimento, também há a nostalgia, bem expressa pelo sentido etimológico do termo: “dor do retorno”. Essa
ambivalência constitutiva pode ser pensada à luz da própria dinâmica da memória. Sempre há, no movimento de retorno, uma dor (ou mais extensivamente um páthos, algo que afeta o sujeito).
A lembrança não é o decalque de uma vivência pretérita, mas a precipitação de uma ausência, de um “isso foi”, a ser signiicada no presente. O caráter
conlituoso desse movimento inviabiliza o acesso imediato, literal, ao passado.
Em Tabu, a opacidade é exacerbada: à reminiscência que se impõe, sobrevém a
condição necessariamente oblíqua de toda rememoração. Para além de uma ordenação do enredo e da composição de personagens, essa estratégia se converte em marca autoral, já que reverbera na própria disposição enunciativa.
é assim que se enlaçam memórias que evocam realidades situadas no
tempo e no espaço sociais, mas que, justamente por seu caráter de construto,
deram forma a imaginários de toda uma época – e é nessa condição imaginária
que continuam a ressoar e a signiicar em nosso cotidiano.
De parte a parte, o ilme nos enreda nessas macronarrativas à medida
que se desenvolve. Explicita o quanto nossas identidades são maleáveis, mas
nunca indiferentes a todos esses repertórios que nos atravessam: a experiência como espectadores de cinema, leitores da história, cultores de maneiras e
maneirismos próprios ao amor romantizado. Mas é acima de tudo nossa sina
14
Jacques Rancière, O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 23.
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como seres de memória o que se faz sensível em Tabu: a mesma que, buscando obsessivamente a realidade de um passado inabordável, não tem como encontrar esse tempo senão materializando seus desejos de imaginação.
MARIANA DUCCINI é doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), mestre pela mesma instituição e graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Atualmente é professora no
Insper Instituto de Ensino e Pesquisa.
pobres poderes:
sobre redenção
(2013), de miGuel
Gomes
Por beatriz rodovalho
176
177
r
edenção (Redemption, Miguel Gomes, 2013) estrutura-se
sobre quatro epístolas fílmicas narradas em primeira pessoa.
A narrativa visual compõe-se a partir de imagens oriundas de
diversos arquivos e lugares de memória do cinema: ilmes
amadores, cinejornais, longas-metragens de icção, ilmes
cientíicos, entre outros. Essa profusão de imagens reapropriadas constrói um
espaço de enunciação imaginado entre o passado dos acontecimentos e o presente da narração, entre a icção íntima e a história coletiva, que se elaboram
por meio da montagem audiovisual.
é só nos créditos inais, porém, que os quatro narradores são nomeados:
Pedro Passos Coelho, Silvio Berlusconi, Nicolas Sarkozy e Angela Merkel, respectivamente. Quatro chefes de Estado à frente de seu país durante o desenvolvimento da crise econômica – e estrutural – da União Europeia. Quatro líderes políticos conservadores que conduziram reformas de austeridade
no início desta década. Figuras públicas ganham, desse modo, uma perspectiva íntima possível.
Este breve texto propõe uma relexão sobre a primeira epístola, que
coloca em questão o passado colonial português à luz de seu futuro. Estabelecemos também um breve diálogo com o artigo “Paraíso luso-tropical” de
Raquel Schefer.1
CARTAS DO EXíLIO
A carta de Pedro Passos Coelho, datada de 21 de janeiro de 1975, revela as impressões e inquietações de um garoto de Trás-os-Montes, separado
dos pais, que deixara em Angola. Gomes situa o segmento entre a Revolução
dos Cravos em abril do ano anterior e os subsequentes processos indepen-
1
Raquel Schefer, “‘Paraíso luso-tropical’: Redemption, de Miguel Gomes”. Comunicação
apresentada na ocasião do IV Encontro da Associação de Investigadores da Imagem em
Movimento (AIM), 2014.
dentistas de Moçambique e de Angola, por exemplo – um momento pregnante
da história portuguesa. Cria-se um curto-circuito entre as promessas do Portugal pós-revolucionário e o fracasso da austeridade. Evocando igualmente o
cinema desse tempo, Redenção reemprega ilmes de família e fragmentos de
importantes ilmes portugueses, como Esplendor selvagem (António de Souza, 1972), Falamos de rio Onor (António Campos, 1974) e Máscaras (Noémia
Delgado, 1976), ou O parto (1975-80) e 25 (1975-1977), ambos de José Celso
Martinez Corrêa e Celso Luccas.
Esses arquivos descontextualizados, animando visualmente a narração
do menino, constroem um território cinematográico e uma geograia imaginária em que o Portugal rural e a África colonial se confundem. Por meio de cortes secos e sucessivos, a montagem paralela une a paisagem agrária e arcaica
do interior da metrópole com a paisagem da savana angolana. Os tambores
africanos da banda sonora, por exemplo, invadem as imagens de brincadeiras
infantis em Portugal. Por sua vez, elas mostram um jogo de máscaras que
evoca as máscaras mágicas dos rituais africanos. Desse modo, as crianças
portuguesas e os dançarinos e guerreiros dos ilmes retomados percorrem um
único território geográico e memorial. As fronteiras entre colônia e metrópole
tornam-se porosas. Seria essa uma tentativa de construir um espaço-tempo
de outros possíveis – um devir utópico por meio dos sonhos do passado – ou
um apagamento da história de opressão do colonialismo?
A narração do menino também produz a inversão da perspectiva colonial.
Trata-se de um pequeno colono que não se considera nem português nem angolano. A ideia que ele faz da metrópole para os pais em terras ultramarinas, contrastando com o discurso oicial e o espírito de grandeza do Estado Novo português, é bastante pessimista: Portugal é “só gente pobre e feia”. O menino fala do
frio, da miséria e da tristeza: “Portugal é muito triste e vai ser sempre assim”.
O fado previsto pela criança nos anos 1970 evoca, nessa lógica, o destino português do tempo do adulto. Estaria no garoto o germe do primeiro
ministro – esta criança que espera que na colônia ainda exista “gente que é
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nossa amiga e que não quer saber de revoluções”? Como interpretar essa
posição individual e infantil à luz da responsabilidade que Passos Coelho
ganha na construção do destino nacional?
REDENçãO
Nesse sentido, quem busca a redenção? Quem confere a redenção?
O ilme apresenta um Passos Coelho “miúdo” no exílio, um Berlusconi
reminiscente de um passado pobre e antifascista e da dor de um amor irrealizado, um Sarkozy paternal que escreve a sua caçula às vésperas da eleição
de François Hollande, e uma Angela Merkel jovem que confessa suas dúvidas e desejos no dia de seu casamento.
Por que tentar restituir a face humana desses líderes políticos? Na manobra iccional do ilme, existiria algo de obsceno em oferecer acesso a sua
intimidade imaginada? Ou, ao contrário, a indecência está na vida política?
Haveria ironia na construção da narrativa (ou a ironia habitaria apenas o
título do ilme)?
No contracampo dos narradores está o povo. Essa entidade política
dilui-se, por exemplo, na imagem dos camponeses, das crianças que correm
e dos africanos que dançam (no caso português), dos operários e da multidão nas piazzas (no caso italiano) e nos desiles socialistas e na(s) festa(s)
de casamento (no caso alemão). O povo permanece, assim, anônimo, mas,
contrariamente às vozes enunciadoras, possui um corpo. Ganhariam essas
vozes desencarnadas uma imagem concreta nos corpos anônimos do povo?
Seriam esses chefes de Estado feitos, na realidade, à imagem e semelhança
de seu povo? Foram eles, um dia, feitos de carne, osso e sofrimento, merecendo redenção? Mas por que dar voz a quem já possui voz?
Em oposição ao que defende Jacques Rancière, o ilme não parece estabelecer uma “‘estética da política’”, que “consiste acima de tudo em uma
estruturação de um ‘nós’, um sujeito, uma demonstração coletiva da qual a
emergência é o elemento que rompe a distribuição dos papéis sociais, um ele-
mento que eu chamo de parte daqueles que não fazem parte – não os miseráveis, mas os anônimos”, que não ganham voz, mas se tornam parte de um
movimento que “reestrutura o mundo da experiência comum como o mundo
de uma experiência impessoal compartilhada”.2 Em Redenção, estabelece-se
uma fratura entre a enunciação e a experiência impessoal compartilhada.
Nesse jogo entre o passado e o presente, o íntimo e o coletivo, a icção e
o real, o Estado e o povo, o ilme instaura uma ambiguidade discursiva que
obriga o espectador, ao menos, a posicionar-se diante da história e do futuro.
BEATRIZ RODOVALHO é doutoranda na Université Paris 3 – Sorbonne
Nouvelle e desenvolve sua pesquisa sobre a reapropriação e recontextualização de ilmes amadores no documentário contemporâneo.
2
Jacques Rancière, “The Paradoxes of Political Art”, in Dissensus: On Politics and
Aesthetics. Trad. Steven Corcoran. Londres/ Nova York: Continuum International
Publising Group, 2010. Versão para Kindle, p. 141. Nossa tradução.
sinopses
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25
Celso Luccas e José Celso Martinez Corrêa
1975, Moçambique/Brasil, 140’, Blu-ray, livre
Depois do fechamento do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa e Celso Luccas, exilados, filmam
em 16mm a Independência de Moçambique, em 25 de junho de 1975. O filme pretende trazer o ponto de
vista do colonizado ao contar o processo de libertação do país e, com base em imagens de arquivo de
diferentes proveniências, mostra a história da resistência e luta do povo moçambicano contra quatrocentos anos de opressão e dominação colonialista. Foi exibido em 1977 no Festival de Cannes e na
primeira edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
junto com as crianças e, dessa forma, tornam-se uma espécie de alma dos habitantes. Ocorre que, dia após
dia e sem necessidade aparente, as pessoas também cortam árvores. Elas vão icando cada vez mais raras até
que um dia o local é tomado pela aridez. Fábula ecológica e relexão sobre o papel dos africanos no mundo.
assim estamos livres. cinema moçambicano 1975-2010
Silvia Vieira e Bruno Silva
2010, Portugal, 16’, DVD, 12 anos
Realizado por dois pesquisadores portugueses, o ilme reúne e analisa dados relativos aos ilmes produzidos em Moçambique entre 1975 e 2010, somando-os a entrevistas com principais cineastas e produtores
do país. O documentário oferece uma perspectiva acerca do percurso do cinema em Moçambique.
a colheita do diabo
Licínio Azevedo e Brigitte Bagnol
1988, Moçambique/França, 52’, DVD, livre
Nascido em Porto Alegre e radicado em Moçambique desde 1975, Licínio Azevedo realiza A colheita do
diabo em parceria com a antropóloga francesa Brigitte Bagnol. O filme trata da história de uma aldeia
em Moçambique, ameaçada pela seca e por bandidos e defendida por cinco veteranos da Guerra de
Independência. O título faz alusão às minas terrestres plantadas em solo moçambicano, que muito
tempo após a Independência continuavam a matar e mutilar pessoas.
a rePública dos meninos (rePública di mininus)
avó (muidumbe)
Raquel Schefer
2009, Portugal/França, 11’, blu-ray, livre
Moçambique, 1960, pouco antes da eclosão da guerra, retrato de uma família colonial. Uma sequência
de material de arquivo filmada pelo avô da cineasta, antigo administrador português em Moçambique,
é o ponto de partida de um documentário experimental sobre a história da descolonização portuguesa
e sua memória. Memória dupla ou desdobrada: a memória vivida e descritiva dos colonizadores (os
seus textos, as suas imagens) contra a memória fabricada dos seus descendentes. O filme encena as
lembranças indiretas da realizadora sobre Moçambique no período colonial.
Flora Gomes
2012, Portugal/França/Guiné-Bissau/Bélgica/Alemanha, 78’, DCP, 14 anos
Num país em guerra, os adultos desaparecem, abandonando as crianças à sua sorte. Surge, assim, a
República di Mininus, onde políticos, médicos, enfermeiros e professores são todos crianças – o único
adulto é Dubam (Danny Glover), uma espécie de guru. A nova organização social é abalada com a
chegada de cinco crianças-soldados, trazendo histórias de violência e perdas. Os meninos da nova
sociedade impõem aos recém-chegados uma prova: ou se aceitam uns aos outros como um grupo, ou
terão de partir novamente para um mundo sem esperança, onde a sobrevivência é algo que não existe.
Rodado em Moçambique e falado em inglês, o filme conta com trilha sonora de Youssou N’Dour.
emPoderadas
Renata Martins
2015-2016, Brasil, DVD, livre. Ana Koteban, 5’ / MC Sofia, 5’ / Thais Dias, 8’
Episódios da websérie Empoderadas, dedicada a mulheres negras que conquistaram expressão, realizada
pela diretora e roteirista Renata Martins, uma das autoras da série Pedro e Bianca, da TV Cultura.
estas são as armas
árvore de sangue (Po di sangui)
Flora Gomes
1996, Guiné-Bissau/França/Portugal/Tunísia, 95’, 35mm, 12 anos
No vilarejo de Amanha Lundgu, cada vez que uma criança nasce, uma árvore é plantada. As árvores crescem
Murilo Salles
1978, Moçambique, 60’, blu-ray, 16 anos
Documentário que conta trinta anos de história de Moçambique, do colonialismo português à Independência e ao conflito com a Rodésia, atual Zimbábue. Conforme o depoimento do diretor: “Estas são as
armas é o meu primeiro longa-metragem como diretor. Tive que sair do Brasil para realizar o rito de
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passagem da fotografia para a direção. Isso se deu com um filme militante. O presidente Samora Machel insistia ser necessário que se fizesse um filme para explicar aos moçambicanos o que era imperialismo. Assumi a tarefa. Tinha à minha disposição um precioso material de registro da luta armada da
Frelimo, além dos arquivos de centenas de cinejornais portugueses da época colonialista. O filme foi
montado para emocionar um povo que se esforçava para entender o que era uma revolução marxista
-leninista, mas estava muito orgulhoso de poder construir sua própria nação”.
maPuto, meridiano novo
Santiago Álvarez
1976, Moçambique/Cuba, 16’, DVD, livre
A partir de imagens de arquivo e filmagens da cidade de Maputo, o documentário aborda os principais
fatos históricos relacionados à luta anticolonial da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo)
contra o império português.
hósPedes da noite
monangambee
Licínio Azevedo
2007, Moçambique, 53’, DVD, 14 anos
Hóspedes da noite concentra-se em um dos grandes símbolos da colonização portuguesa em Moçam-
Sarah Maldoror
1968, Angola/França, 15’, DVD, 14 anos
bique: o Grande Hotel, na cidade da Beira, o maior hotel do país na época colonial, com 350 quartos e
uma piscina olímpica, cuja grandeza não durou muito mais do que uma década. No documentário, o
hotel aparece nas ruínas da sua condição presente, sem eletricidade ou água canalizada, habitado por
3500 pessoas.
kuXa kanema. o nascimento do cinema
Margarida Cardoso
2003, Portugal/Moçambique/França/Bélgica, 52’, blu-ray, livre
A primeira ação cultural do governo moçambicano logo após a Independência, em 1975, foi a criação do
Instituto Nacional de Cinema (INC). O novo presidente, Samora Machel, tinha especial consciência do
poder da imagem e de como utilizá-la para construir uma nova nação socialista. As unidades de Cinema
Móvel mostrariam por todo o país a mais popular produção do INC, o cinejornal Kuxa Kanema, cujo título significa “o nascimento do cinema”. O documentário da portuguesa Margarida Cardoso retraça o
percurso histórico desde o surgimento desse ambicioso projeto até a decadência do INC.
makwayela
Jean Rouch
1977, Moçambique/França, 19’, DVD, livre
Resultado de uma oicina com um grupo de estudantes em Moçambique, este ilme consiste numa visita do
realizador e etnólogo francês Jean Rouch à Companhia Vidreira de Moçambique. Ali, depois de uma breve
cena da fabricação de garrafas, o ilme mostra, com som direto, uma dezena de trabalhadores cantando e
dançando no pátio uma canção anti-imperialista, cuja origem e sentido eles explicam em seguida ao cineasta:
ela nasceu na dura experiência de trabalhar em minas, na África do Sul, sob o regime do Apartheid.
Filmado na Argélia em 1968 a partir de uma adaptação de um conto de José Luandino Vieira, “O fato
completo de Lucas Matesso” (1962), no momento em que o próprio Luandino Vieira encontrava-se
preso pelo poder colonial português, no campo de concentração de Tarrafal, Cabo Verde. O filme narra
um dia na vida de Matesso, preso em Angola, a quem a mulher prepara um “fato completo”. A expressão
inquieta os guardas da prisão, que o torturam, acreditando tratar-se de um plano de fuga. Puro desconhecimento: tratava-se de um prato a base de peixe, feijão e banana.
morte negada (mortu nega)
Flora Gomes
1988, Guiné-Bissau/França, 85’, DVD, 12 anos
Longa-metragem de estreia de Flora Gomes, esta etnoicção retrata, de modo expressivo e tocante, as vivências da Guerra de Independência da Guiné-Bissau, fundindo história contemporânea com mitologia. A
narrativa vai de 1973, quando Diminga acompanha um grupo de guerrilheiros que levavam abastecimentos
de Conacri para a frente de combate, até 1977, quando a guerra terminou, mas não chegou verdadeiramente a terminar: onde Diminga vive, a seca impera, o marido dela está doente e outra luta começa. Primeiro
ilme da Guiné-Bissau independente, com lançamento mundial no Festival de Veneza, em 1988.
mueda, memória e massacre
Ruy Guerra
1979-1980, Moçambique, 80’, DVD, 14 anos
Considerado o primeiro longa-metragem de ficção de Moçambique, Mueda, memória e massacre formaliza tardiamente os pressupostos do projeto revolucionário da Frelimo. Recriação histórica dos
acontecimentos do chamado Massacre de Mueda, ocorrido em 16 de junho de 1960, quando soldados
portugueses abriram fogo sobre uma manifestação, matando centenas de pessoas. Os sobreviventes
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do massacre reinterpretaram, em vários momentos, após a Independência nacional, este episódio da
história de Moçambique, ora desempenhando o papel de agressores, ora o de vítimas.
cionário, da organização popular e do líder Samora Machel, provenientes do Instituto Nacional do Cinema
(INC) de Moçambique.
mulheres da guerra (women of the war)
nshajo (o jogo)
Ike Bertels
1984, Holanda, 50’, DVD, livre
Raquel Schefer
2010, Portugal, 8’, blu-ray, livre
Ike Bertels vê na televisão um documentário sobre as mulheres-soldados que lutam pela independência
moçambicana e decide ir a Moçambique para encontrá-las. O resultado é este retrato documental de três
mulheres que lutaram dez anos para libertar seu país dos colonizadores portugueses. Após a Independência, em 1975, Mónica foi escolhida para ser membro do Comitê Central do Governo da Frelimo. Maria, mãe
de cinco ilhos, mudou-se para Maputo com o marido, para estudar. Amélia tornou-se costureira de uniformes do Exército na província de Niassa. As histórias das suas vidas acabam por se entrelaçar, mostrando
a importância política e pessoal da sua luta pela Independência.
Entre 1957 e 1961, o antropólogo Jorge Dias, etnógrafo português da corrente luso-tropicalista, realiza
estudos de campo no Planalto dos Macondes, ao norte de Moçambique. O material recolhido dará origem à extensa monografia Os Macondes de Moçambique (1964-70), uma das obras fundamentais da
antropologia portuguesa. Em 1960, Jorge Dias permanece durante alguns dias na residência da família
da cineasta no Mucojo, onde seu avô era então administrador de posto. Nshajo (O jogo) entrelaça o
relato de um episódio prosaico da estadia de Jorge Dias no Mucojo com uma tentativa de reflexão visual sobre os limites da representação antropológica e os processos de observação empírica, comparação, mimetismo e transculturação.
na cidade vazia
Maria João Ganga
2004, Angola/Portugal, 90’, blu-ray, livre
Um grupo de crianças refugiadas de guerra, acompanhadas por uma freira, segue num voo rumo a Luanda, capital de Angola. Ao chegarem no aeroporto, N’dala, um menino de doze anos, consegue fugir do grupo e parte para
descobrir a cidade.Enquanto a freira empreende uma investigação na tentativa de encontrá-lo, acompanhamos
N’dala em sua jornada pelas ruas movimentadas da capital. Primeiro ilme feito por uma mulher angolana, e o
segundo realizado na Angola do pós-guerra.
noticieros icaic n. 736 e n. 739
Daniel Diaz Torres e Miguel Torres
1975, Cuba, 4’ cada, DVD, 12 anos
A independência de Angola e a invasão do país por tropas do Zaire e da África do Sul retratadas em edições
do cinejornal cubano, que também abordam a situação política na Grécia, em Israel, no Vietnã e no Peru.
nova sinfonia
Santiago Álvarez
1982, Moçambique/Cuba, 39’, DVD, 12 anos
O documentário é uma sinfonia cinematográica sobre a luta anticolonial da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) contra o império português. É composto de imagens de arquivo do processo revolu-
o milagre da terra morena (el milagro de la tierra morena)
Santiago Álvarez
1975, Angola/Cuba, 20’, DVD, 12 anos
Imagens da luta armada conduzida pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)
são combinadas a uma entrevista com um português casado com uma guineense e pai de uma criança mestiça.
Quais são as implicações dessa união? Há uma relação de dominação? O que pensam sobre o racismo?
oPeração búfalo
Ruy Guerra
1978, Moçambique, 25’, DVD, 12 anos
Curta-metragem realizado por Ruy Guerra, que havia chegado a Moçambique em 1976. Trata do abate
ecológico de búfalos na região do Gorongoza, um enorme parque nacional moçambicano. Em meia hora o
ilme cobre o percurso do búfalo desde seu hábitat natural até as vitrines das lojas onde parte de seu
couro ou chifres são comercializados.
os comPrometidos – actas de um Processo de descolonização
Ruy Guerra
1982-1984, Moçambique, 42’, DVD, livre
O filme trata do julgamento dos chamados “comprometidos”, indivíduos que integraram os aparelhos
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coloniais. Na escola Josina Machel, em um anfiteatro com plateia e balcão cheios, há um palco onde
ficam Samora Machel e membros do comitê político da Frelimo. Registra Samora, ator político impecável, às vezes histriônico, no papel que se atribui de animador da cena no julgamento.
os comPrometidos (mozambique, or treatment for traitors)
Pensada originalmente como uma videoinstalação, a obra baseia-se nas fotografias de cena e nas anotações do roteiro de Fuzis para Banta (1970), primeiro filme de Sarah Maldoror, atualmente perdido.
Filmado na Guiné-Bissau, Fuzis para Banta acompanha a vida de Awa, uma camponesa engajada no
Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Como em um slide-show, Abonnenc coloca as fotografias de cena em movimento, e as acompanha de uma narração em off que ajuda a imaginar como seria esse filme se fosse possível vê-lo.
Ike Bertels
1983, Holanda, 51’, DVD, livre
Montagem da documentarista holandesa Ike Bertels a partir do material ilmado por Ruy Guerra durante o
interrogatório dos moçambicanos acusados de terem colaborado com o regime colonial português durante a Guerra de Independência. As sessões levaram uma semana. Samora Machel, primeiro presidente da
República de Moçambique, enfrenta-se com os colaboradores, em um embate de tirar o fôlego.
o temPo dos leoPardos (vreme leoParda)
Zdravko Velimorovic e Camilo de Sousa
1985, Moçambique/Iugoslávia, 91’, DVD, 14 anos
Drama político ambientado em 1971 e rodado em Moçambique em 1985, durante a Guerra Civil, um período
de extrema escassez no país. Quando criança, um moçambicano e um colonialista português são amigos.
Anos se passaram e Moçambique luta pela Independência. Os dois irão se reencontrar em lados opostos.
O longa é resultado de uma viagem de Samora Machel à Iugoslávia do Marechal Tito. O Instituto de Cinema
de Belgrado coproduziu o projeto, em comemoração ao décimo aniversário da Independência.
o vento soPra do norte
José Cardoso
1987, Moçambique, 90’, DVD, 14 anos
Uma das primeiras incursões da produção local pós-Independência no longa-metragem de ficção, uma
reconstituição da última fase do colonialismo português, na década de 1960. A cópia exibida é produto
do restauro feito no laboratório da Cinemateca Portuguesa, no âmbito do projeto de cooperação levado
a cabo em 2008 e 2009 com o Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema de Moçambique (INAC) e
com o suporte do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), visando a recuperação do
precioso acervo daquele instituto.
redenção (redemPtion)
Miguel Gomes
2013, Portugal/Alemanha/França/Itália, 27’, DCP, 12 anos
Imagens de arquivo em super-8 são remontadas em quatro narrativas ficcionais. No dia 21 de janeiro
de 1975, em uma aldeia no norte de Portugal, uma criança escreve aos pais em Angola para lhes dizer
como Portugal é triste. No dia 13 de julho de 2011, em Milão, um velho recorda o seu primeiro amor. No
dia 6 de maio de 2012, em Paris, um homem diz à filha bebê que nunca será um pai de verdade. Durante um casamento, no dia 3 de setembro de 1977, em Leipzig, a noiva luta contra uma ópera de Wagner
que não lhe sai da cabeça.
sambizanga
Sarah Maldoror
1972, Angola/França, 102’, DVD, 14 anos
Sambizanga toma o seu título do bairro operário homônimo, em Luanda, onde existia a prisão em que
muitos dos combatentes pela libertação foram torturados. O filme problematiza o começo da luta de
libertação em Angola, com enfoque nas ações do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA),
movimento político do qual o marido de Maldoror, Mário Pinto de Andrade, foi líder. Mário é também o
roteirista do filme, baseado no livro de José Luandino Vieira A vida verdadeira de Domingos Xavier.
Quando o filme foi mostrado em Angola, após a Independência, houve total identificação do público
com os acontecimentos de Sambizanga. Depois da exibição, o intérprete do agente da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide) correu o risco de ser linchado pelas ruas de Luanda.
tabu
Miguel Gomes
2012, Portugal/Alemanha/França/Brasil, 118’, 35mm, 14 anos
Prefácio a fuzis Para banta (Préface à des fusils Pour banta)
Mathieu Kleyebe Abonnenc
2011, França, 25’, blu-ray, livre
Uma idosa temperamental, sua empregada cabo-verdiana e uma vizinha dedicada a causas sociais compartilham o andar num prédio em Lisboa. Quando a primeira morre, as outras duas passam a conhecer um
episódio do seu passado: uma história de amor e crime passada numa África de ilme de aventuras.
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tudo bem, tudo bem, vamos continuar
(ça va, ça va, on continue)
vovós guerrilheiras – como viver neste mundo
(guerrilla grannies – how to live in this world)
Mathieu Kleyebe Abonnenc
2013, Portugal/França, 31’, blu-ray, livre
Ike Bertels
2012, Holanda, 80’, DVD, livre
Depois de Mulheres da guerra (1984) e de Pensão da guerrilha (1994), Ike Bertels re-
O vídeo retoma a história da luta pela Independência da Guiné-Bissau através de relatos
-encenações da atriz Bia Gomes, ícone dos filmes do realizador guineense Flora Gomes.
A atriz-personagem Bia Gomes fala de sua personagem Diminga, em Morte negada, por
vezes passando a encarná-la novamente. Em um embate entre o personagem-artista,
branco português, com uma plateia majoritariamente negra, surgem questões sobre a
apropriação da cultura e da voz do outro, o lugar da fala, da diferença e da identidade.
torna a Moçambique para encontrar-se com Mónica, Amélia e Maria, que haviam combatido na guerra pela Independência moçambicana e foram protagonistas dos dois outros filmes da realizadora. No novo encontro, Bertels as questiona sobre como os seus
ideais de revolução moldaram a nova sociedade moçambicana.
um filme italiano. áfrica, adeus! (an italian film.
africa addio)
Sana Na N’Hada
1994, Guiné-Bissau/Holanda/França, 95’, 35mm, livre
Mathieu Kleyebe Abonnenc
2012, França, 27’, blu-ray, livre
Tendo estudado cinema em Cuba, Sana Na N’Hada codirigiu, com Flora Gomes, José
Bolama e Josefina Crato Lopes, O regresso de Amílcar Cabral (1976), filme fundador do
cinema da Guiné-Bissau. Xime, seu primeiro longa-metragem, se passa no ano de 1962,
na Guiné-Bissau colonial, quando Iala, camponês que cuida de uma plantação de arroz,
é obrigado a lidar com a perda de autoridade sobre seus dois filhos. Raul, o mais velho,
havia sido enviado para o seminário na capital e se juntou ao movimento de libertação
contra o regime colonial português. Bedan, o caçula, permaneceu na aldeia e tem um
caso com a futura noiva mais nova de seu pai.
Neste vídeo, apresentado originalmente como uma instalação, o artista francês Mathieu
Kleyebe Abonnenc revisita o controverso documentário África, adeus! (Africa addio,
1966), filmado pelos italianos Gualtiero Jacopetti e Franco Prosperi em Angola e no
Congo. Realizado pelos mesmos diretores de Mundo cão (Mondo cane, 1962), o filme
descrevia o fim da era colonial na África, com cenas chocantes de violência e brutalidade. Para acessar essa história turbulenta, ligada à exportação de cobre pelo Congo,
então colônia da Bélgica, Abonnenc se concentra na história da chamada “cruz de Katanga”, moeda corrente na África em tempos passados, feita de cobre em forma de cruz
ou de “h”. O vídeo de Abonnenc acompanha, em Yorkshire, Inglaterra, o processo de
fundição dessas cruzes, que se transformam em barras de cobre.
um Povo nunca morre
Ruy Guerra
1980, Moçambique, 17’, DVD, livre
Segundo curta-metragem de Ruy Guerra realizado após a Independência moçambicana,
mostra a transladação da Tanzânia para Maputo dos restos mortais de combatentes da
Frelimo. Em um 3 de fevereiro, o Dia dos Heróis, Ruy filmou o regresso dos corpos dos
militantes mortos na luta pela Independência.
Xime
yvone kane
Margarida Cardoso
2014, Portugal/Brasil, 118’, DCP, 12 anos
Depois da morte de sua filha, Rita volta ao país africano onde viveu na infância para
investigar um mistério do passado: a verdade sobre a morte de Yvone Kane, uma exguerrilheira e ativista política. Nesse país, onde o progresso se constrói sobre as ruínas
de um passado violento, Rita reencontra sua velha mãe, Sara, uma mulher dura e solitária que vive ali há muitos anos. Enquanto Sara vive os últimos dias da sua vida procurando um sentido para os atos passados, Rita embrenha-se num território marcado pelas
cicatrizes da história e assombrado por fantasmas da guerra e do mal, procurando o
segredo de Yvone.
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