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A identidade tranfeminista através da rede

São diversos os espaços de militância feminista, mas um em especial tem despontado como locus do transfeminismo no Brasil: o ciberespaço. O transfeminismo.com, site surgido em 2011, tornou-se um coletivo e uma fonte de informações sobre o feminismo direcionado às questões trans. Nesta plataforma produz-se identidade coletiva por meio de investimentos emocionais, uma rede ativa de relacionamentos e a criação de definições cognitivas do conflito e do " nós ". Articulam-se conceitos como "cisgeneridade" e demandas como a despatologização das identidades trans numa intrincada elaboração sobre a opressão específica sofrida pelas pessoas trans (transfobia) e os caminhos feministas para sua resolução, que perpassam por um enfrentamento dos sistemas médico e jurídico. Aliando-se e afastando-se de outros expoentes do ciberfeminsmo brasileiro, o transfeminismo tece sua rede de relações. E num grupo do Facebook podem ser observadas as interações entre as militantes. Com esse trabalho que apresenta os resultados de uma pesquisa de mestrado pretende-se utilizar o conceito de identidade coletiva, advindo da sociologia dos movimentos sociais, para aplicação no estudo do ciberativismo e, neste caso, do ciberfeminismo.

A IDENTIDADE TRANSFEMINISTA ATRAVÉS DA REDE Raul Nunes1 Resumo: São diversos os espaços de militância feminista, mas um em especial tem despontado como locus do transfeminismo no Brasil: o ciberespaço. O transfeminismo.com, site surgido em 2011, tornou-se um coletivo e uma fonte de informações sobre o feminismo direcionado às questões trans. Nesta plataforma produz-se identidade coletiva por meio de investimentos emocionais, uma rede ativa de relacionamentos e a criação de definições cognitivas do conflito e do “nós”. Articulam-se conceitos como "cisgeneridade" e demandas como a despatologização das identidades trans numa intrincada elaboração sobre a opressão específica sofrida pelas pessoas trans (transfobia) e os caminhos feministas para sua resolução, que perpassam por um enfrentamento dos sistemas médico e jurídico. Aliando-se e afastando-se de outros expoentes do ciberfeminsmo brasileiro, o transfeminismo tece sua rede de relações. E num grupo do Facebook podem ser observadas as interações entre as militantes. Com esse trabalho que apresenta os resultados de uma pesquisa de mestrado pretende-se utilizar o conceito de identidade coletiva, advindo da sociologia dos movimentos sociais, para aplicação no estudo do ciberativismo e, neste caso, do ciberfeminismo. Palavras-chave: transfeminismo. ciberativismo. ciberfeminismo. Introdução O feminismo se consolidou ao longo de seus dois séculos de existência como um dos movimentos sociais mais consistentes, plurais e aguerridos que se tem conhecimento na história da humanidade. O caso das mulheres tans é um dos grandes pontos de debate atualmente. Ao reivindicarem sua inclusão no feminismo encontram apoios e enfrentamentos. Essas fricções começam com um deslocamento militante das pessoas trans confinadas ao movimento LGBT em direção ao feminismo. No Brasil, “as primeiras iniciativas provavelmente se localizam entre o final da década de 1990 e início dos anos 2000” (COACCI, 2014, p. 150). Fato é que existe uma relação muito íntima entre transfeminismo e ativismo interconectado, haja vista que “a internet é o canal por excelência de produção, difusão e crítica de informações sobre o pensamento-ação transfeminista” (JESUS, 2014, p. 9). No Brasil a principal força do movimento é o site Transfeminismo.com. Criado por Hailey Kaas em 2011, tornou-se um coletivo, possuindo, além do endereço virtual, uma página no Facebook e um grupo de discussões “que serve como um misto de espaço de sociabilidade e solidariedade e também como um espaço de autoformação e discussão sobre pautas transfeministas” (idem, p. 151). Sendo o Transfeminismo.com polo aglutinador de diversas militantes transfeministas brasileiras, apresenta-se como profícuo aparato para a investigação de desenvolvimento de 1 Doutorando em Sociologia pelo IESP-UERJ, Rio de Janeiro, Brasil. 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X identidade coletiva no ciberativismo. Três serão os objetos da análise que se segue: 1) a publicação de textos no site como produção de definições cognitivas do “nós” e do conflito; 2) as discussões no grupo do Facebook como investimento emocional; 3) as interações em/com outros sites/blogs como rede ativa de relacionamentos. Com isso, espera-se poder compreender o que seria uma identidade coletiva (MELUCCI, 1996a) transfeminista e, mais do que isso, como ela é fabricada na internet. 1 - O site Transfeminismo.com Ao longo de 6 anos de existência o site Transfeminismo.com acumulou 167 postagens, dividas da seguinte maneira: 10 em 2011, 19 em 2012, 34 em 2013, 32 em 2014, 27 em 2015 e 45 em 2016. O primeiro texto, publicado em 27 de junho de 2011 e denominado “APOLGBT Virou As Costas Para @S Feministas”, tratava-se de uma mensagem de repúdio à homenagem da 15ª Parada do orgulho LGBT a Marcelo Tas, apresentador do CQC acusado de ser conivente com a misoginia de seus colegas de programa. O tom da crítica é de que os militantes LGBT teriam virado as costas para as feministas, que sempre estiveram ao seu lado - o que evidenciaria o machismo do meio LGBT. Esse padrão permanece no decorrer dos anos, com o público-alvo constituído sobretudo por: LGBTs, feministas, ativistas, militantes dos direitos humanos, esquerda, aliadas. Outro padrão das postagens observa-se na desaprovação da mídia, bem como no enfrentamento de temas que ganharam demasiada atenção nas discussões nas redes sociais. Novelas, filmes, notícias, livros, textos, eventos, acontecimentos, leis; tudo vira objeto do escrutínio transfeminista. O terceiro padrão consiste em explicações sobre o funcionamento da sociedade e das relações de poder, assim como das questões transfeministas. Em verdade, as duas coisas não podem ser separadas, pois a visão de mundo e o entendimento sobre a opressão das pessoas trans estão diretamente relacionados. O modo de tratar os assuntos, sempre reintroduzindo o “discurso”, diz muito da formação de Hailey e Bia (análise de discurso), moderadoras e principais autoras do site, e dos referenciais teóricos geralmente adotados (Bakhtin, Althusser, Foucault, Butler, Pecheux). No início do site os temas discutidos fugiam às questões trans, apenas com pinceladas aqui e ali. É só no 5º post2 que se menciona “transexual” e no 7º3 que a temática trans começa a ganhar centralidade, a partir de textos mais educativos. Note-se que a ponte ocorre por meio de um debate sobre intersexualidade, em que se alude à despatologização, uma pauta comum à transexualidade. Realizadas essas colocações preliminares, vale a pena aprofundar-se nas definições cognitivas de meios, fins e campo de ação fornecidas pelos escritos do site. A ideia de que o que se apresenta como verdade é, antes de mais nada, uma afirmação vitoriosa do poder é o ponto central 2 3 https://transfeminismo.com/fixed/ https://transfeminismo.com/0811aniversrio-de-herculine-barbin-dia-internacional-da-memria-intersexual/ 2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X do transfeminismo. Com isso, o movimento pode denunciar o que é ideológico, logo falso, na cristalização de fatos derrogatórios às pessoas trans. Porque a ideologia se perfaz através da ciência e da produção de verdades pavimentando o caminho para a dominação, os poderes não se concentram num único inimigo, estando dispersos em reiterações cotidianas da realidade. Passa-se agora à análise do enquadramento transfeminista. “Usa-se transgênero para se referir especificamente à questão de identidades de gênero que não cumprem os critérios de inteligibilidade e normatividade cisgêneros”4. Transgênero, reduzido em “trans”, passa a designar um guarda-chuva de identidades de gênero abjetas: travestis, transexuais, transgêneros. Se o sexismo é o inimigo natural do feminismo, o cissexismo é o do transfeminismo. Uma revisão dos conceitos é feita no sentido de politizar as categorias identitárias: "Uma pessoa cis é aquela que politicamente mantém um status de privilégio em detrimentos das pessoas trans*, dentro da cisnorma. Ou seja, ela é politicamente vista como ‘alinhada’ dentro de seu corpo e de seu gênero”5. O cissexismo seria uma forma mais sutil de transfobia (essa aparecendo como violência explícita e, no limite, física contra pessoas trans), que estaria incorporado na própria percepção dos sujeitos sobre o mundo. A força do cissexismo estaria na sua suposta naturalidade. Corpos e subjetividades trans seriam alvo de constante escrutínio. Isso começaria com o desígnio de gênero, que consiste no “conjunto de práticas que envolvem a generificação de sujeitos por meio da nomeação de morfologias e a expectativa de gênero atrelada ao nascituro”6. A noção de patologia é muito importante, e mais ainda a concepção de que a transexualidade, enquanto categoria abjeta, é expressão de um ímpeto de normalização (neste caso: inclusão num sistema de classificações) que se deflagra na distinção entre normal e patológico. A tensão entre natureza e cultura é constante na produção do esquema interpretativo do movimento. Não é por menos que o sistema médico e suas fundamentações na biologia são alusões recorrentes nos enunciados. Como muitos movimentos identitários, o transfeminismo também vê com preocupação a naturalização de determinadas características. Dois seriam os caminhos para as pessoas trans: tornarem-se cis ou viverem como indivíduos patológicos7. As principais responsáveis pelo diagnóstico de validade do “transexualismo” de um indivíduo são as “ciências psi”: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Os profissionais dessa área 4 https://transfeminismo.com/identidade-de-genero-modulo-para-uma-sequencia-didatica/ https://transfeminismo.com/o-que-e-cissexismo/ 6 Idem. 7 ฀“Ainda hoje a condição transexual é considerada um transtorno de identidade sexual” (JESUS; ALVES, 2010, p. 11). 5 3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X podem determinar se uma experiência de transgeneridade é falsa ou verdadeira e, neste último caso, podem encaminhar aos tratamentos necessários - notadamente: hormonização e cirurgia de readequação sexual (CRS). Esse contato tutelado com as ciências psi é aspecto singular da vida de inúmeras pessoas trans, que muitas vezem reproduzem esses discursos, ainda que estrategicamente. Antes de mais nada, essas definições para enquadrar a transição de gênero numa nosologia patológica, além de sexistas são heterossexistas (homofóbicas), uma vez que esperam que mulheres trans devam gostar de homens e homens trans devam gostar de mulheres, isto é, essas pessoas necessitam ser heterossexuais. Somado ao sexismo e ao heterossexismo das narrativas a serem legitimadas, um elemento crucial para a verdade trans é a presença de disforia de gênero. A disforia consistiria numa repulsa irreversível ao próprio corpo e sobretudo à própria genitália, que faria com que a pessoa se encontrasse numa incongruência entre o gênero no qual “nasceu” e o gênero a que “desejaria” pertencer. A vontade natural de toda pessoa trans, acreditam, seria extirpar todas as características do gênero com o qual aquela pessoa não se identifica, readequando seu órgão genital em especial. Para o transfeminismo nem essa é a única narrativa válida, nem a disforia é natural. Recapitulando: ao nascer, ou mesmo antes, às pessoas é designado um gênero a partir do que se entende como sendo seu sexo biológico. Se essa pessoa desenvolve uma identidade de gênero correspondente ao gênero que lhe foi designado, tem seu gênero legitimado: é cisgênera. Se essa pessoa desenvolve uma identidade de gênero diferente do que lhe foi designado, terá seu gênero deslegitimado e será transgênera. Enquanto pessoa trans, será considerada patológica e portadora de uma disforia, que precisa ser resolvida - panorama (re)produzido pelos discursos médico e legal. De fato, o cissexismo é o adversário totalizante do transfeminismo. As lutas concretas, todavia, chocam-se contra outros atores, quais sejam: conservadores e liberais, profissionais psi, burocracia, acadêmicos, militâncias LGBT e de esquerda e feministas radicais. “Conservador” e “liberal” são adjetivos empregados para aludir a pessoas comuns que incorrem em cissexismo e/ou transfobia, pessoas cujo pensamento e prática impedem a emancipação trans, notadamente pessoas de direita. “Profissionais psi” são psicólogos, psiquiatras e psicanalistas que reforçam o cissexismo em suas consultas e laudos diagnósticos, contribuindo para a patologização das identidades trans. Acadêmicos são sobretudo pessoas das ciências humanas que se propõem a falar sobre gênero e/ou transgeneridade. Seja pretendendo analisar a existência ou as experiências de pessoas trans, seja procurando “dar voz” a essas pessoas, o que ocorre na academia frequentemente é a exotificação dos sujeitos trans e enquadramentos taxativos. 4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A burocracia é representada usualmente como juízes, demais agentes da lei, o Estado e diversas instituições. O enfrentamento face-a-face se dá basicamente na batalha para conseguir acesso à retificação de nome e sexo nos documentos oficiais. Ainda, as tratativas com instituições infra-estatais são também espaços de litígio (quando do requerimento da utilização do nome social em universidades, hospitais, presídios etc). Por outro lado, o Estado e os órgãos administrativos constituem interlocutor premente, afinal abrigam a possibilidade de promulgação de leis e demais regulamentações normativas em benefício (e malefício) da população trans. Por fim, o inimigo mora ao lado. Como adota uma perspectiva de poder descentralizada e que perdura por meio da reiteração discursiva, o transfeminismo vê como potenciais adversários mesmo aqueles que estão mais próximos teórica e praticamente. O que se combate é menos o indivíduo e mais o discurso por ele reproduzido. Neste contexto, a militância de esquerda como um todo converte-se em alvo de observação. Destaca-se a militância LGBT, constantemente referida GGGG, por silenciar demandas de lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais ao priorizar as pautas e vozes de homens gays cisgêneros. Um adversário íntimo que se converte crescentemente como interlocutor principal do transfeminismo é o feminismo radical, citado numa miríade de postagens. A rivalidade entre transfeminismo e femininismo radical é tão grande que existe uma sigla para denotar essas feministas: TERF (Trans-Exclusionary Radical Feminist, ou seja, Feminista radical que exclui pessoas trans). Em certo sentido, o transfeminismo nasce de uma querela com feminismo radical, que até hoje não terminou. Essas feministas entendem gênero como dominação patriarcal e advogam por sua abolição. Para elas, pessoas trans reforçariam esteriótipos de gênero ao reivindicá-lo como autonomia, uma vez que, sendo o gênero determinado coercitivamente, ninguém poderia ser de outro gênero (uma vez que o gênero é tão somente o ser-percebido). Logo, quando mulheres trans descrevem sua existência pela transgeneridade através de atributos femininos estariam contribuindo para a persistência do gênero como jaula de ferro. Essa visão de mundo deixaria de lado as diferenças e desigualdades entre as mulheres. Comentando o desempoderamento irreversível operado pela teoria feminista radical, Bia cita a cena do Barão de Münchhausen, contador de histórias fantásticas, que relata ter conseguido safar-se da submersão num pântano ao puxar-se pelos próprios cabelos. Assim, o efeito Münchhausen consiste num “efeito de ilusão subjetiva a partir do assujeitamento ideológico: ao mesmo tempo em que o sujeito é efeito deste assujeitamento, o sujeito se esquece (trata-se de um esquecimento necessário) deste processo”8. 8 https://transfeminismo.com/o-feminismo-radical-e-o-barao-de-munchhausen/ 5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X Esses seriam alguns pontos para uma agenda transfeminista: 1) Combate à violência cissexista/transfóbica; 2) Direitos reprodutivos para todxs; 3) Agência; 4) Desconstrução das identidades binárias; 5) Corpo-positividade e/ou empoderamento; 6) Da(s) sexualidade(s) das pessoas trans*; 7) Terminologia9. O que querem transfeministas é autonomia, respeito e igualdade. “Precisamos sair da patologia. Lutar contra a patologização do gênero e tirarmos da posição infantilizante de sujeitos sem agência que seriam determinados pela doença da transexualidade. Pensar o impensado da patologia de gênero (travestilidade) irá nos ajudar a desconstruí-la”10. A despatologização das identidades trans talvez seja a demanda prioritária do transfeminismo, afinal a presença dessas experiências como desvios nos manuais médicos e a necessidade de uma laudo de avaliação nosológica para a validação dessas identidades fere de morte o princípio da auto-determinação. Dentro da própria militância T, há divergências sobre o assunto, sobretudo uma preocupação de que os tratamentos médicos requeridos por algumas pessoas trans possam deixar de ser oferecidos de forma gratuita pelo Estado. As transfeministas argumentam que condições como a gravidez, que necessitam de acompanhamento e tratamento médico, constam nos manuais, embora não como patologias. Quer dizer, advoga-se por uma presença da transexualidade nos manuais, agora não como transtorno, mas como condição em que a pessoa necessita ou pode necessitar de tratamentos médicos. Como o CID e o DSM são classificações internacionais, a luta pela despatologização das identidades trans se dá em nível transnacional. Somado a isso, há um outro patamar do ativismo, em âmbito nacional, que enseja a possibilidade de reconhecimento legal das identidades trans sem necessitar de aprovação judicial para decidir no caso-a-caso. Nesses sentido, a aprovação do Projeto de Lei João W. Nery parece um “um dos caminhos para a plena cidadania trans, uma cidadania que não começa outorgada por alguém, dada gentilmente por um ‘outro’ generoso (comumente um poderoso cisgênero)” 11. Os vários esforços para a garantia da adoção do nome social em diversas instituições seiam paliativos. Também de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), o PL 4.211/2012, denominado Gabriela Leite, propõe a regulamentação da prostituição. Essa passa a ser uma reivindicação do movimento no instante em que transexuais e, especialmente, travestis são excluídas do mercado de trabalho formal e relegadas a trabalhos informais de baixa remuneração, ou, em cerca de 90% dos casos, à prostituição. Assim, políticas para a população trans devem levar 9 10 11 https://transfeminismo.com/introducao-ao-transfeminismo/ https://transfeminismo.com/disforia-bonecas-matrioshkas-ou-fita-de-mobius/ https://transfeminismo.com/quais-caminhos-para-a-cidadania-trans/ 6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X em conta que a prostituição é profissão-destino para a maioria. A regulamentação seria uma forma de colocar a prostituição sob proteção do Estado e evitar sua criminalização. Para além das pautas tópicas, disputas mais amplas são travadas, tanto materiais como simbólicas. No plano material, reclama-se o acesso de pessoas trans a espaços de poder e de construção da cidadania. O objetivo aqui é o combate à desigualdade de oportunidades, que impede que pessoas trans sejam incluídas no ensino e no mercado de trabalho formais - a saída decorre mormente por meio de ações afirmativas. Por outro lado, apontando menos para a igualdade e mais para a diferença, o reconhecimento da diversidade representa um passo inescapável para a superação do cissexismo e da transfobia. Faz-se necessária, então, uma profunda transformação cultural que leve em conta as singularidades das experiências trans e o respeito a essa população. O pleito transfeminista é levado a cabo por uma série de esforços multi-situados. Tratandose do site em específico, o empenho é depositado na reconstrução de aparatos interpretativos de uma sociedade que funciona sob uma lógica cissexista. Em que pesem confusões ocasionadas pela proliferação de termos e conceitos, tenciona-se produzir sentido sobre o mundo desde uma abordagem transfeminista. Destarte, relações e emoções confluem para a criação de solidariedade. Essa fabricação manufatureira de identidade coletiva assume contornos dramáticos relativamente à dinâmica dentro/fora que se produz na consolidação de um “nós” uno. Embora procurem fugir do discurso categórico da verdade científica, as transfeministas incorrem em inclusões/exclusões a cada postagem. A realização de uma coletividade é sempre uma agregação parcial dos sujeitos e suas demandas (identidades) num todo universalizante (MOUFFE, 1993), isso é um princípio ontológico, incontornável. O intento de uma representação total que dê conta de todas as especifidades de uma só vez é um trabalho de Sísifo. Os homens trans ficam perdidos no limbo entre “pessoas trans” e “mulheres trans”. O transfeminismo.com é declaradamente a favor de homens trans em espaços transfeministas e traz vários textos sobre o assunto no site. No entanto, não é acerca de uma exclusão frontal que se argue aqui, mas uma exclusão simbólica. Malgrado os recorrentes esforços na direção de ressaltar a condição ainda mais precária de existência das travestis, estas geralmente aparecem como anexos das questões das mulheres trans. A não-binaridade também permanece sub-teorizada. Um dos modos de feitura da identidade coletiva transfeminista é pela construção imagéticovisual. Por esse ângulo, dois são os caminhos adotados. Primeiramente, a bandeira trans, listrada nas cores azul, branco e rosa é tomada como a bandeira do transfeminismo, resgatando a memória da militância T. Por vezes a esta imagem é adicionado o símbolo do transfeminismo, geralmente em 7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X preto, que consiste no símbolo do feminismo (símbolo de vênus com o punho em riste) incluindo, além do feminino, a representação do masculino (símbolo de marte) e uma mistura entre os dois. Roxo é outra cor bastante presente na simbologia do site. 2 - O grupo no Facebook O grupo de discussões “Transfeminismo <3“ foi criado no Facebook em 7 de janeiro de 2015 por Hailey Kaas e conta com 419 membros, entre pessoas trans e aliadas. Deriva de outro, agora excluído. O grupo é fechado, sendo a entrada dependente de aprovação da moderação. A descrição diz: “Grupo sobre Transfeminismo associado ao site/coletivo transfeminismo www.transfeminismo.com”, sem explicitar objetivos. Procurando observar como se dá o investimento emocional no transfeminismo, foram analisadas todas as postagens de 22 de novembro de 2015 a 21 de novembro de 2016, totalizando 366 dias. Ao todo, foram coletadas manualmente 576 postagens, o que dá uma média de mais de uma postagem por dia (1,57). Como o objetivo deste empreendimento é estritamente qualitativo, os passos seguidos foram: 1) distinguir os tipos de postagens; 2) captar as discussões; 3) caracterizar as emoções mobilizadas. As publicações dividem-se em seis tipos: notícias, denúncias, relatos, pedidos, divulgações e anúncios. As notícias ocupam a maior parte do conteúdo, muitas vezes sendo postadas sem qualquer comentário, ou com frases pontuais. Elas podem ser separadas em duas categorias: negativas e positivas. As notícias negativas compreendem acontecimentos particulares de desrespeito a pessoas trans, como violências físicas, assassinatos e aprovação ou tramitação de projetos de leis transfóbicos. As notícias positivas retratam pessoas trans alcançando status individual ou coletivamente, com a aprovação de leis e regulamentações, eleição de candidata trans e chegada de mulheres trans a cargos de poder, empregos ou espaços universitários. O polo negativo induz a reações de indignação e o positivo a reações de esperança. No âmbito da indignação, as denúncias tem papel central, afinal expõem fatos (eventos, falas, postagens, programas, filmes, livros) transfóbicos ao exame do grupo, muitas vezes através de prints ou descrições dos casos. A querela com feministas radicais é frequente, bem como com a militância LGBT. Também são apontados embates com os sistemas jurídico e médico. Os relatos assumem cunho mais íntimo, funcionando como desabafo de experiências pessoais ruins relacionadas ao fato de ser trans ou com alguma descoberta específica sobre transfobia. Na maioria das vezes os relatos desencadeiam solidariedade, com comentários sobre vivências similares, mensagens de apoio ou indignação. Em muitos aspectos esse registro narrativo serve como forma de validação coletiva sobre o sentimento de desrespeito em questão. 8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X Os pedidos podem ser de caráter mais impessoal, como o pedido de referências bibliográficas, textos, links, informações, ou mais pessoais, como pedidos de socorro ou como as vaquinhas. Os pedidos de socorro são concernentes à mobilização em torno de casos de violência e/ou cissexismo que atingem de modo frontal alguma(s) pessoa(s) trans e devem ser logo solucionados (procura de abrigo para pessoa expulsa de casa, por exemplo). Vaquinhas são maneiras de arrecadação financeira através de plataformas virtuais específicas em que se pede ajuda para atingir uma meta e beneficiar uma causa, podendo ou não ter recompensas implicadas. O transfeminismo.com tem uma campanha constante de arrecadação para a manutenção do site (domínio, hospedagem, design). Entretanto, as vaquinhas mais comuns e características do grupo são para auxiliar no processo de transição das pessoas trans, notadamente medidas cirúrgicas. Outra espécie de publicação bastante recorrente são as divulgações, que podem ser de eventos, mesas, debates, artigos, encontros, livros, protestos. No geral essas divulgações são relativas a acontecimentos que envolvem as próprias pessoas trans partícipes do grupo. Elas despertam o interesse pela participação/aquisição das/os expectadoras/es e funcionam como autoafirmação das pessoas que nelas estão envolvidas, promovendo um reconhecimento coletivo das capacidades individuais desses sujeitos e a disseminação do transfeminismo na sociedade. Por fim, outro gênero de postagem consta no que se refere a anúncios de oportunidades. Estão envolvidos aqui anúncios de emprego, de trabalhos temporários, de editais públicos (de cunho trabalhista, acadêmico e/ou artístico), de vestibulares inclusivos. Essas informações visam contribuir de forma imediata para sanar o quadro de falta de oportunidades (em suas mais variadas expressões) que acomete pessoas trans. Neste sentido, o grupo opera como uma rede de contatos. No textos do site transfeminsmo.com não são raras as menções ao grupo: "Agradeço às pessoas da comunidade Transfeminismo do Facebook pelas ótimas discussões acerca do tema” 12. E ainda: "Ontem eu vi uma imagem que, segundo a discussão que seguiu na comunidade do TF, [...] era para ser subversiva. Mas tudo naquela imagem para mim era triggering, me despertava disforia* e me deixou bastante para baixo”13. Todavia, apesar do aviso de que “[...] a maioria dos assuntos expostos no blog (administrativos ou teórico-ativistas) são colocados para debate na comunidade do Transfeminismo no Facebook”14, no período analisado pouquíssimas discussões foram encontradas, nenhuma delas diretamente referida a publicações do site. 12 13 14 https://transfeminismo.com/o-que-e-cissexismo/ https://transfeminismo.com/um-pouco-sobre-sexo-e-sexualidade/ https://transfeminismo.com/algumas-modificacoes-e-avisos/ 9 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X Exceto em casos muito pontuais, as tensões intra-grupo tornam-se imperceptíveis. Seja porque há um elevado nível de consenso entre os membros, seja porque assuntos polêmicos são evitados, ou ainda por causa da convivência prolongada (no ciberespaço e nos eventos presenciais), as animosidades estão dirimidas. Decerto o grupo se caracteriza como um espaço de ajuda mútua e de empoderamento coletivo, mas não de elaboração criativa intermediada pelo conflito de ideias. A competição, em todas as suas facetas, parece dar lugar à colaboração. Os episódios de indignação compartilhada, a canalização conjunta da raiva em adversários comuns, são um importante mecanismo de identificação coletiva, opondo um “nós” ainda amorfo a esse “eles”, por meio da negação. Negativamente, também, produz-se o repúdio coletivo, a oposição coletiva, a repreensão coletiva. Uma negação que se volta aos objetivos, às estratégias, aos sentimentos e aos agrupamentos do “eles”, ou seja, a essa outra identidade coletiva. Definindo o que definitivamente o “nós” não é, define-se também seus contornos. Positivamente, a identificação coletiva começa com a percepção do “eu” no “outro”: nós somos porque eu sou e o outro também é. A narração das experiências comuns aproxima numa categoria determinada indivíduos dissimilares. Em grande medida, o sofrimento é o parteiro do “nós”. Por outro lado, a coincidência de preocupações pode reunir sujeitos díspares: nós somos porque eu estou e você também está. Enfim, há uma qualidade de identificação que não está no plano do atual, mas do virtual. O carisma, a crença quase mágica na capacidade de determinados atores, leva a um estado de admiração afetiva, projetando uma identidade que não se localiza no “sou” ou “estou”, mas no “quero ser”: você é e eu também quero ser. 3 - Adversárias e aliadas “Deve haver pelo menos um nível mínimo de reciprocidade no reconhecimento social entre os atores (movimento, autoridades, outros movimentos, terceiros) mesmo que tome forma de negação, desafio ou oposição” (MELUCCI, 1996b, p. 73). Parte fundamental da constituição de uma identidade coletiva tem a ver com a rede ativa de relacionamentos, a negociação e a disputa de sentido entre os atores. Faz-se mister, portanto, observar com quem e como os movimentos se relacionam. Para tanto foram selecionados três sites/blogs que estabelecem diferentes tipos de interações com o transfeminismo: Blogueiras Feministas, Geledés e o Escreva Lola Escreva. Blogueiras Feministas é um blog criado em 2010 e gerido coletivamente por um grupo de feministas. É alimentado por textos inéditos tanto das autoras como de convidadas. O Geledés instituto da mulher negra, por sua vez, é uma organização da sociedade civil fundada em 1988 para a defesa de mulheres e negros e contra o sexismo e o racismo. Tem como pilar a luta na área dos 10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X direitos humanos, da educação, comunicação, saúde e políticas públicas. O portal virtual existe desde 1999 e aglutina conteúdo de diversas fontes. Criado por Lola Aronovich em 1998 e com média de 260 mil acessos mensais, Escreva Lola Escreva é um produtivo blog feminista, característico por tratar dos temas mais diversos com uma linguagem acessível, alternando entre textos autorais e de convidadas. O blog da Lola alcança um público tão diverso que acaba por abrigar desde tensionamentos intra-feminismo a discurso de ódio contra seu ativismo. Blogueiras Feministas são referenciadas pelo menos uma dezena de vezes no Transfeminismo.com e o blog conta com 45 postagens na categoria “Mulheres Trans”, muitas das quais escritas por pessoas que também escrevem no site. Outras tantas são expressões de solidariedade de feministas cisgêneras a suas companheiras transgêneras, engajando-se em suas agendas de lutas. Uma tradução coletiva denominada “Não há lugar para a transfobia no feminismo” demarca de maneira assertiva a posição das blogueiras em relação ao transfeminismo. O portal Geledés é um oceano de conteúdo, por isso ressaltam-se aqui apenas alguns elementos de sua interface transfeminista. A busca por “transfeminismo” dá origem a 12 resultados, “transexuais”, 530, “travesti”, 659, e “cisgênero”, 51. Embora esses textos sejam todos prótransfeministas, até onde se pôde constatar, é num comentário exatamente sobre o texto “Alguns privilégios CIS”, reproduzido do blog da Lola, que uma rusga corriqueira aparece. No Escreva Lola Escreva a rivalidade entre transfeministas e feministas radicais é incessante. Para se ter uma ideia, dois dos seis posts que trazem a palavra “transfeminismo” são “FLA-FLU IDEOLÓGICO: RADS VS TRANS” e “RADFEMS, TRANSFEMS, E MINHA POSIÇÃO CÔMODA”. Um outro, sobre o mesmo tema, chama-se “RADFEMS E TRANSATIVISTAS DEFLAGRAM A TERCEIRA GUERRA MUNDIAL. DE NOVO”. A posição da Lola é conciliatória, considerando inaceitável a transfobia no feminismo, mas repudiando reações agressivas a mulheres (cis) advindas de pessoas trans. Para a autora essa guerra só traz malefícios. Nesta postagem Lola se refere a outra, em que recomenda uma variedade de livros, desde a transfeminista Julia Serano até a transfóbica Germaine Greer. Essa última menção é alvo de uma longa cizânia, que chega ao exorbitante número de 217 comentários. As posturas variam entre uma defesa total das transfeministas, um repúdio total a elas e um meio termo (a postura cômoda, como diz Lola). Trazer esses embates é relevante na medida em que a posição adotada nas redes de relações dos movimentos feministas é definida, entre outras coisas, por uma tomada de posição: você está ao lado das feministas radicais ou das transfeministas? Poucas são as situações em que se pode estar em posições intermediárias, haja vista o grau de 11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X virulência dessa guerra particular. Lola relata as dificuldades de ficar no meio do fogo cruzado. As Blogueiras Feministas ficam do lado transfeminista da força. No Geledés, apesar de comportar posicionamentos diversos, o feminismo radical está escamoteado. Considerações finais Pode-se dizer que o site/coletivo transfeminismo.com desponta como elemento crucial para o ciberativismo transfeminista no Brasil. É ali que se encontra boa parte dos enquadramentos sobre a realidade social no que se refere às pessoas trans, do seu martírio à sua emancipação. Além disso, é dali que emergem muitas das personagens que atuarão em outros locais na internet. Essa produção de conteúdo funciona como uma cartilha militante, a despeito das sucessivas reformulações e tensionamentos internos. Visão de mundo, concepção de mudança social, elementos éticos, escolhas estratégicas, adversários, demandas; tudo está presente. O ciberativismo é uma forma de ação. Referências COACCI, Thiago. Encontrando o transfeminismo brasileiro: um mapeamento preliminar de uma corrente em ascensão. História Agora, v. 1, p. 134-161, 2014. JESUS, Jaqueline Gomes; ALVES, Hailey. Feminismo transgênero e movimentos de mulheres transexuais. In: Cronos: Revista do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais da UFRN, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 2010. Disponível em: <http://www.periodicos.ufrn.br/index.php/cronos/article/view/2150/pdf>. Acesso em: 21 ago. 2013. _____. Interlocuções teóricas do pensamento transfeminista. In: Jesus, J. G. et al (orgs) Transfeminismo: Teorias e Práticas. 1. ed. Rio de Janeiro: Metanoia, 2014. MELUCCI, Alberto. Challenging Codes: Collective Action in the Information Age. Cambridge University Press, 1996a. _____. The Playing Self: Person and Meaning in the Planetary Society. Cambridge University Press, 1996b. MOUFFE, Chantal. Feminism, Citizenship and Radical Democratic Politics. In: MOUFFE, C. The return of the political. Nova Iorque: Verso, 1993. A transfeminist identity through the web Astract: There are varied spaces in which feminist activism takes place, but one in special has emerged as a locus of transfeminism in Brazil: the cyberspace. Transfeminism.com, a website created in 2011, has become a collective and a source of informations concerning the feminism strand oriented to trans issues. In this platform collective identity is produced through emotional investments, an active web of relationships and the creation of cognitive definitions of conflict and a "we". Concepts such as "cisgender" and demands like depatologization of trans identities are articulated in an intricated elaboration on the specific oppression trans people suffer (transfobia) 12 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X and the feminist pathway to overcome it, which includes facing the medical and legal systems. Allying itself with and departing from other exponents from brazillian cyberfeminism, transfeminism weaves its web of relations. And the interactions between the activists can be seen in a Facebook group. With this work, that presents the results of a masters research, what is intended is to utilize the concept of collective identity, from the sociology of social movements, to the application to the studies on cyberactivism and, in this case, on cyberfeminism. Keywords: transfeminism, cyberactivism, cyberfeminism. 13 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X