Academia.eduAcademia.edu

2018 - O Museu e seus saberes_ Obra coletiva.pdf

2018, O Museu e seus saberes

O MUSEU E SEUS SABERES ALBA TÂNIA ROSAURA MACEDO MANUELINA DUARTE CÂNDIDO TÂNIA MENDONÇA YUSSEF DAIBERT SALOMÃO DE CAMPOS ORGANIZAÇÃO: SHEILA ELIAS VILELA O MUSEU E SEUS SABERES Goiânia SEE Goiás 2018 Márcia Pires Sheila Elias Vilela Edição Sheila Elias Vilela Revisão, Coordenação do “Ciclo de estudos: O Museu e seus Saberes” e Organização da publicação “O Museu e seus Saberes” Bruno César Ramos de Souza Concepção de logo e projeto gráfico “Ciclo de estudos: O Museu e seus Saberes” Isabella Brito Capa, projeto gráfico e diagramação do livro O Museu e seus Saberes Fotos: Equipe MAC/GO Dados internacionais de catalogação-na-publicação (CIP) (Henrique Araújo - Bibliotecário Documentalista - CRB Nº 3233) M113m O Museu e seus saberes / Manuelina Duarte Cândido... [et al.]; Organização de Sheila Elias Vilela; Direção de Márcia Pires - Goiânia; Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte de Goiás (SEDUCE), 2018. 72p.: p&b - 20x26cm ISBN: 978-85-61298-01-2 Nota Explicativa: essa coleção de artigos é resultado do ciclo de estudos “O Museu e seus saberes” idealizado pelo Museu de Arte Contemporânea de Goiás (MAC) 1. Museologia. 2. Museus. 3. Educação. 4. Sociedade. 5. Museu de Arte Contemporânea de Goiás (MAC). I. Macedo, Alba Tânia Rousaura. II. Mendonça, Tânia. III. Campos, Yussef Daibert Salomão. IV. Vilela, Sheila Elias (Org). V. Título. CDU: 069.01 CDD: 069 Índice para catálogo sistemático: Museus – Multidisciplinaridade – Ação Educativa; Museus – Comunidade -Produção – Disseminação – Conhecimento; Museus – Saberes – Interdisciplinaridade; Museus – Gestão – Sec. XXI; Museus – Políticas Públicas – Patrimônio Cultural – Goiás; Museus – Responsabilidade Social – Ecomuseus – Museus Comunitários; Museu de Arte Contemporânea de Goiás (MAC). CENTRO CULTURAL OSCAR NIEMEYER MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE GOIÁS GUARACIABA ROSA DE OLIVEIRA Chefe do Gabinete de Gestão MÁRCIA PIRES Diretoria JOSÉ EDUARDO SIQUEIRA DE MORAIS Superintendente de Atividades Culturais WERYDIANNA MARQUES Museologia LUCIANE RODRIGUES DUTRA Chefe de Núcleo Administrativo Operacional SILVANA RINCON MARI LÚCIA DE FREITAS LUCENA Setor de Preservação do Acervo MARCO AURÉLIO VIGÁRIO Assessor de Imprensa GILSON ANDRADE SHEILA ELIAS VILELA Setor Educativo CLEANDRO ELIAS JORGE ISABELLA BRITO Montagem MARIA ELÍZIA BORGES PABLO FABIÃO LISBOA SEBASTIÃO AYRES ABREU VÂNIA SUELENE ABRÃO FERNANDO COSTA FILHO Conselho Consultivo 4 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Apresentação O cenário político-econômico brasileiro sempre trouxe desafios a cultura, e em especial ao museu, instituição que demanda recursos financeiros e administrativos, equipe e espaço diferenciados para sua existência. O setor museal requer adaptação contínua para o enfrentamento das adversidades e, necessita cada vez mais da formação e preparo de profissionais aptos a lidar com a demanda dos setores multidisciplinares que compõem o corpo da museografia - as técnicas e práticas de responsabilidade do museu. Ademais, algumas mentalidades do setor público brasileiro, resistem em assumir a missão primordial que é pertencer ao público sem discriminação, configurando-se como um patrimônio público e democrático que viabiliza o acesso, a apropriação e a participação de todos que a ele têm direito. Diante de tantos avanços tecnológicos que marcam nossa vivência, ainda são as relações humanas que transmitem sentido à existência do museu e às suas práticas. Em fevereiro de 2017, o MAC – Museu de Arte Contemporânea de Goiás e o Centro Cultural Oscar Niemeyer (CCON) apresentaram à comunidade o Ciclo de Estudos “O Museu e Seus Saberes”. O projeto teve como objetivo discutir, difundir e valorizar a atuação multidisciplinar da instituição e sua aproximação com o público. No hiato da interdição de espaços expositivos e outras dependências do CCON para reforma, o desejo da gestão e da ação educativa foi, sobretudo, manter contato com o público, ensejo esse para fortalecer o museu como espaço comunitário, fonte de produção e disseminação de pensamento formador. Apresentação 5 De fevereiro a junho de 2017, com a participação de professores do curso de Museologia da Universidade Federal de Goiás, o MAC estabeleceu um fórum de discussão onde acadêmicos e profissionais de museus de todo estado puderam trocar experiências, informações, dividir frustrações e, opinar sobre aspectos de práticas museológicas do MAC. As temáticas dos encontros abordaram alguns dos saberes interdisciplinares exercidos cotidianamente no fazer museológico, como gestão, conservação, políticas públicas, responsabilidade social, desafios e soluções no cenário político-econômico brasileiro. Aos palestrantes do Ciclo de Estudos “O Museu e Seus Saberes”, Prof. Dra. Manuelina Cândido, Prof. Dr. Yussef Campos, Ms. Ana Cristina Santoro, Prof. Dra. Camila Moraes Wichers e à Dra. Tânia Mendonça, nossos sinceros agradecimentos pela participação. Nossa gratidão também à conservadora e restauradora Alba Tânia Rosaura Macedo pelo valioso apoio para esta publicação, uma compilação de pensamentos abordados no ciclo e além. Ofertamos à “todxs”, com modéstia e alegria este registro de comunicação, informação e interação ponderada como ferramenta de educação, uma das funções centrais do museu. Sheila Elias Vilela Setor Educativo Museu de Arte Contemporânea de Goiás Centro Cultural Oscar Niemeyer Márcia Pires Diretora do Museu de Arte Contemporânea de Goiás Centro Cultural Oscar Niemeyer Este QR code leva ao canal do Núcleo de Ação Educativa do MAC no Youtube. Nele você encontra as palestras do Ciclo de studos e mais Confira 6 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Palestra de Manuelina Cândido “Gestão de Museus: O Museu do Século XXI”. Foto: Equipe MAC - GO. Apresentação Palestra de Yussef Campos: “Patrimônio e Políticas Públicas”. Foto: Equipe MAC - GO. 7 4 10 Apresentação Gestão de Museus: O Museu do Século XXI Manuelina Maria Duarte Cândido 20 Coleções Museológicas e sua Conservação Alba Tânia Rosaura Macedo 31 Museus - desafios e possibilidades: Políticas públicas para a Musealização do Patrimônio Cultural de Goiás Tânia Mendonça 49 Apontamentos sobre a responsabilidade social dos museus: ecomuseus e museus comunitários Manuelina Maria Duarte Cândido 61 Patrimônio e Políticas Públicas Yussef Daibert Salomão de Campos 68 Sobre a Gestão do MAC - GO Márcia Pires 69 Sobre os autores 10 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Gestão de Museus: O Museu do Século XXI Manuelina Maria Duarte Cândido1 “We need small and cheap Museums to create humanity” Orhan Pamuk, Prêmio Nobel da Literatura Os museus possuem uma longa trajetória em que já foram identificados com diferentes funções, passando de museu-templo ou teatro da memória, museu-laboratório, museu-fórum. Aspira-se hoje a um ideal que combine estas várias facetas, com destaque para a representação de um papel de fórum, espaço de encontros, trocas e sociabilidade, mas sem desprezar o encantamento, a fruição, a sensibilidade e o deleite, ou o aprendizado, a curiosidade saciada, o espanto e a re exão, tudo isto envolvido pela marca de uma experiência singular. Para falar de museus no século XXI e daí acercar-me da temática da gestão neste contexto, gostaria de abordar algumas tendências, quatro revoluções, uma grande constatação e alguns desafios. Toda esta re exão está permeada pelo reconhecimento de que os museus sempre foram instituições conectadas com o seu tempo e, portanto, é esperado que se transformem e se atualizem pelas demandas sociais. Neste momento, os principais fatores que impulsionam a renovação são os fatores demográficos (crescimento numérico, envelhecimento e trânsitos populacionais), as demandas por participação, o desenvolvimento das tecnologias, os novos paradigmas educacionais e a redução das subvenções públicas. Tendências e tensões As tendências serão apresentadas a partir de duas obras que pretenderam reuni-las sob diferentes miradas geopolíticas: o canadense Yves Bergeron, que contribuiu com um artigo para a obra Nouvelles tendences de la muséologie, de François Mairesse (2016), e os holandeses Peter van Mensch e Léontine Meijer-van Mensch, que dividem a autoria do livro New trends in museology (2011). De acordo com Bergeron (2016), são quatro as principais tendências do mundo dos museus hoje, e que os obrigam a um grande processo de transformação: 1- A fragmentação do “nós”, com a passagem de um discurso coletivo ao discurso individualista; 2- O “presenteísmo”, favorecendo uma concepção contemporânea da cultura mas colocando passado e futuro em segundo plano, o que explica, nos museus, a obsessão 1 Licenciada em História (UECE, 1997), especialista em Museologia (USP, 2000), mestre em Arqueologia (USP, 2004), doutora em Museologia (ULHT, 2012), Pós-doutora em Museologia (Sorbonne Nouvelle, 2015). Professora de Museologia da FCS/UFG. Manuelina Maria Duarte Cândido pela arte contemporânea, cada vez mais presente e integrada a museus de História, de Arqueologia e de Ciências; 3- A cultura digital e a desmaterialização da cultura; 4- A eventualidade, ou a cultura do evento: o museu é espaço cada vez mais de sociabilidade (museu-fórum) e isto ganha espaço em relação ao seu papel no encontro com a cultura. O autor está, portanto, re etindo sobre tendências mais amplas, que atingem a cultura de uma maneira geral, e como afetam os museus em particular. Já Peter van Mensch e Léontine Meijer-van Mensch estruturam sua obra em capítulos que indicam as seguintes tendências sob sua análise: 1- Desenvolvimento de coleções e o conceito de “coleções dinâmicas”; 2- Design da aprendizagem e da experiência 3- Participação; 4- Avaliação de performance; 5- Perspectivas integradas de patrimônio; 6- Ética museal. Neste caso, os autores estão apresentando tendências intrínsecas ao campo dos museus e como elas se realizam em seus fazeres. Ambos textos estão de acordo em que os museus sempre viveram mutações e adaptações às novas demandas sociais. Peter van Mensch já se referia a duas revoluções no mundo dos museus em sua tese de doutorado, em 1992: 1) A primeira, ligada à profissionalização do campo, ocorreu no final do século XIX, e traz junto a criação das primeiras associações de profissionais e o início das publicações de periódicos especializados. 2) A segunda, ligada ao reconhecimento Gestão de Museus: O Museu do Século XXI 11 do papel social e educativo dos museus, marca a origem da chamada Nova Museologia em torno dos anos 1960, cujo ponto de virada o autor situa na Conferência Geral do ICOM de 1971 em Grenoble, e outros atribuem à Mesa-redonda de Santiago do Chile, de 1972. A estas duas revoluções, Bergeron acrescenta o reconhecimento de mais duas: 3) Uma revolução neoliberal situada nos anos 1990, com a entrada dos museus na engrenagem de mercantilização da cultura e da indústria cultural, que redireciona seu olhar dos cidadãos mais próximos para os turistas, e ao associar sua manutenção ao mecenato e outras formas de captação de recursos privados, torna-os mais dependentes da in uência dos investidores na definição de sua programação e prioridades. Não é mais a cultura, mas a economia da cultura que está na base do projeto museal, e o perfil pretendido dos gestores passa a ter consonância com estas novas demandas, aproximando-se de um contorno empresarial. 4) Segundo Bergeron (2016, p. 240), estamos ainda mergulhados na quarta revolução, digital. Ela diz respeito não somente à inserção de novas tecnologias nos museus, mas à redefinição de patrimônio, com os novos desafios decorrentes do reconhecimento do patrimônio intangível, ao mesmo tempo em que a mundialização gerou um re exo de proteção da diversidade e cada vez mais são realçadas as diferenças locais e outras referências patrimoniais como as línguas, as paisagens, etc. É um momento de realce de patrimônios antes negligenciados e os recursos tecnológicos permitem então que sujeitos plurais possam participar de diversas etapas do processo de musealização. Por outro lado, o presente momento indica também uma opção de muitos governos 12 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes pelo reagrupamento de bibliotecas, arquivos e museus nacionais, o que originou a sigla em inglês LAM (Library, Archive and Museum Collaboration), um modelo que rompe fronteiras entre as instituições tradicionais e que o autor não deixa de sublinhar como retorno às origens das coleções reais do século XVII, que tinham entre suas características esta abordagem global das coleções, inspirada pelo mito da biblioteca de Alexandria. Do ponto de vista dos discursos, os museus estão mais cientes de que não devem evitar as controvérsias e de que são arenas de poder que devem ser ocupadas por outras parcelas da população que aquelas ligadas à sua origem de instituição de elite. Não por acaso, o tema do Dia Internacional dos Museus de 2017, evidencia as disputas inerentes aos discursos: “Museus e histórias controversas: dizer o indizível em museus”. Mesmo sendo uma escolha de uma instituição tradicional e muitas vezes conservadora, como o Conselho Internacional de Museus (ICOM), o tema se abre para uma perspectiva mais próxima da Museologia Crítica, corrente emergente de origem espanhola. Os discursos controversos e a expografia crítica, entretanto, remontam a momentos anteriores, ancorados em experiências como as dos museus de sociedade, entre eles, o emblemático Museu de Etnografia de Neuchâtel, na Suíça, que esteve sob direção do provocativo Jacques Hainard entre 1980 e 2006, ou ainda o Museu Dauphinois de Grenoble, na França, e o Museu da Civilização em Québec, no Canadá. Dois mundos cada vez mais distantes A grande constatação, para além de todas estas tendências e transformações, é de uma profunda clivagem entre grandes e pequenos museus. É nela que gostaria de me deter mais, por ser uma preocupação que me move há bastante tempo, e finalmente poder compartilhar este pensamento agora com a certeza de que mais e mais pensadores e trabalhadores de museus estão se apercebendo do mesmo e querendo re etir sobre isto. Os grandes museus participam da circulação das exposições bloc busters e têm acesso a montantes financeiros excepcionais, provenientes de toda uma rede de financiamento diversificada, combinando recursos públicos e privados. Os museus pequenos e comunitários possuem pouco apoio financeiro, mas se baseiam largamente no engajamento das comunidades e no trabalho voluntário. Ao mesmo tempo que identificam um afastamento cada vez maior destas duas realidades, diversos autores estão de acordo em afirmar que os museus mais ameaçados são aqueles que se situam entre estas duas categorias (Bergeron, 2016, p. 234; Roigé, 2016, p. 88), os de porte intermediário. Desta forma, os autores se preocupam em apresentar questões provocativas como: precisamos de tantos museus? Como os pequenos municípios podem sustentar todas estas infraestruturas? Até que ponto todos estes museus podem sobreviver? (Roigé, in Mairesse, 2016, p. 83) Além disto, indicam alguns caminhos explicativos para problemas dos museus: criação sem participação da comunidade; intervenções sem planejamento adequado; falta de planejamento da manutenção, ausência de estratégia de atração do público. Laura Steen e Baptiste Marsal em artigo de 16 de maio de 2015 publicado em diferentes veículos a internet fizeram clara referência à abissal distância que separa cada vez mais Manuelina Maria Duarte Cândido pequenos e grandes museus. Naquele dia ocorria a 11a edição da Noite dos Museus na Europa e, como é sabido, a aposta deste tipo de programação especial envolvendo grandes e pequenos museus é que embalados pelo chamariz das instituições mais renomadas, as menores, por estarem na mesma programação, ganhem mais visibilidade. Este é o princípio de ações realizadas também no Brasil, sendo a mais famosa a Semana Nacional de Museus, em que o IBRAM reúne e divulga em um catálogo organizado por cidades e regiões as programações de museus de todo o Brasil, mas também do Passaporte de Museus, iniciativa de São Paulo e do Rio de Janeiro. Ocorre que também já está claro que neste tipo de programação os museus que já são muitíssimo visitados ficam cada vez mais assoberbados pelas multidões, e nos menores o impacto não é o mesmo, e nem duradouro. O título do artigo de Steen e Marsal é emblemático: “Museus: a grande fratura entre grandes e pequenos”. Trata da queda das dotações orçamentárias e das novas dificuldades enfrentadas pelos pequenos museus, que buscam se associar para enfrentá-las, tentando caminhos como o compartilhamento de projetos especialmente de comunicação, como exposições e organização de eventos. Com o intuito de aproximar novos pontos de vista para esta discussão, aproximo o consagrado escritor turco Ohran Pamu , laureado com o Prêmio Nobel da Literatura em 2006, que escreveu dois anos depois o romance O Museu da Inocência, lançado no mesmo dia em que abriu o Museu ao público. O Museu foi organizado com o mesmo número de partes que os capítulos do livro, e com cada objeto Gestão de Museus: O Museu do Século XXI 13 que os personagens da ficção tocam. ocalizado em Istambul, que não possui um museu municipal, ele se tornou um dos mais visitados da cidade e ganhou o prêmio de Melhor Museu da Europa em 2014 (EMYA). O autor vem re etindo sobre museus a partir de sua própria experiência, inclusive a partir do fato que atentados terroristas em Istambul impactaram a visitação de todos os museus da cidade, mas o seu museu não foi tão atingido quanto os maiores e mais monumentais, ou seja, os mais visados. Seguindo a tradição do Conselho Internacional de Museus (ICOM) de convidar pessoas de outras áreas para re etirem e provocarem novos olhares sobre museus, Ohran Pamu foi um dos principais conferencistas da Conferência Geral do ICOM em Milão, 2016. Sua fala incluiu a apresentação de um Manifesto para Museus em que defende com afinco os pequenos museus. Ele declara que não subestima a importância dos grandes museus do mundo, verdadeiros tesouros da humanidade, mas é contra estes museus monumentais serem tomados como modelos especialmente pelos países emergentes não ocidentais. Estas instituições sempre privilegiaram a narrativa da história da nação em relação às histórias das pessoas, muito mais ricas e plenas de humanidade e vivacidade. Para Pamu , o grande desafio posto aos museus é representar estas histórias com o mesmo brilho, profundidade e força dedicadas às histórias das nações. Assim, a medida do sucesso do museu deveria ser sua capacidade de revelar a humanidade dos indivíduos2 e, para tal, é sugerida a menor escala: museus menores e mais baratos. 2 O autor usa, em inglês, a palavra individuals. Mas claramente, rejeita as narrativas heroicas e épicas, está interessado em pessoas comuns. Por isto, usarei preferencialmente pessoas ou anônimos, para evitar que o uso de indivíduos pareça querer destacar trajetórias que se sobressaíram. É uma defesa do realce da singularidade presente em cada pessoa. 14 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Os grandes museus nos fariam esquecer a nossa humanidade, transformando-nos em massas. As histórias precisam ser contadas em escala humana. Enquanto isto os recursos (e o autor se refere, especialmente, à explosão de museus no mundo “oriental”) estão sendo canalizados para museus monumentais mas eles deveriam ser usados para encorajar as pessoas comuns a preservarem e exibirem suas histórias singulares, suas casas. Edifícios monumentais que dominam cidades (e aqui podemos pensar no Guggenheim de Bilbao, no Museu do Amanhã no Rio de Janeiro, tão alheio às histórias de escravidão do vizinho Cais do Valongo) não revelam nossa humanidade, ao contrário, tratam de anulá-la. Nós precisamos de pequenos museus que se relacionem com o entorno, com os moradores e com o comércio local. Em resumo, seus argumentos são expressos nos seguintes pares: WE HAD WE NEED EPICS REPRESENTATION MONUMENTS HISTORIES NATIONS GROUPS AND TEAMS LARGE AND EXPENSIVE NOVELS EXPRESSION HOMES STORIES PERSONS INDIVIDUALS SMALL AND CHEAP (Ohran Pamu , 201 ) Manuelina Maria Duarte Cândido Apresentada como um desejo, esta possibilidade de expansão dos pequenos museus parece sinalizar que estamos mergulhados em uma realidade de grandes museus. Entretanto, estes museus são excepcionais não somente por seu perfil monumental, altas cifras envolvidas, marca e renome dos arquitetos envolvidos, mas inclusive porque quantitativamente não são tão expressivos, embora a mídia e o senso comum os tenha como referência. No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Museus, a vinculação administrativa mais frequente é de museus municipais, que representam 41,1% do total (IBRAM, 2011). Nos Estados Unidos a realidade não é diferente e levou a American Association of Museums (AAM) a criar um Comitê de Administradores de Pequenos Museus (SMAC). Em uma classificação segundo o número de membros da equipe do museu, 57% dos museus norte-americanos possuem entre 0 e 3 pessoas. Figura 1: Museus membros da AAM segundo o número de pessoas no sta (AAM, s.d.) Gestão de Museus: O Museu do Século XXI 15 A American Association of Museums organiza e divulga, por meio deste Comitê, uma série de publicações com diretrizes e orientações para boas práticas na gestão de pequenos museus envolvendo diferentes aspectos como planejamento institucional, armazenamento de coleções, criação de conexões com a comunidade, busca de financiamento e muitos outros. Desafios incontornáveis Em sua jornada os museus se deparam com muitos desafios: um deles, implícito ao que já foi aqui apresentado, é sensibilizar os políticos ao modelo “pequeno e barato”. Sabe-se que não é esta versão dos museus que será capaz de “encher os olhos” da maior parte dos dirigentes. Cada um de nós tem histórias para contar que levam exatamente para o lado oposto. O segundo desafio é a falta de recursos humanos, que provoca o chamado “hiato geracional”, dificultando a passagem dos saberes de uma geração a outra de trabalhadores, em uma área em que somente o conhecimento acadêmico não completa a formação. Mas eu gostaria de centrar a discussão sobre desafios em dois pontos: o reencontro com as coleções, fazendo os museus falarem sobre o presente e resistir à sedução do imediatismo e do uso esvaziado das tecnologias. Vamos ao que eu chamo de reencontro com as coleções. Qual o seu espaço nos museus do século XXI Refiro-me aqui tanto a acervos institucionais, aqueles realmente incorporados pelas instituições museológicas, quanto a acervos operacionais. Noções, aliás, usadas por Mathilde Bellaigue no Ecomuseu du Creusot desde a década de 1970, e depois muito secundarizadas, mas tão relevantes que 16 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes tivemos no ano de 2016 como tema do Dia Internacional de Museus, Museus e Paisagens Culturais. Tudo o que se refere a acervos ou coleções tem ficado mais rarefeito nas últimas décadas, e é positivo imaginar que com a criação de um comitê do ICOM para coleções (COMCOL) estas discussões possam ser atualizadas, inclusive sobre políticas de aquisição de acervos, que são, ao meu ver, uma matéria ainda bastante lacunar na produção do campo da Museologia. Esta ausência talvez re ita o fato de que após o período de profissionalização da área, em que ocorreu a criação das pioneiras associações profissionais e disseminação maior do conhecimento produzido pelos primeiros periódicos especializados (Van Mensch, 2004), mas ainda sem uma generalização dos saberes museológicos para dentro das práticas museais, veio aquela segunda revolução da Museologia que foi chamada, nos anos 1960, de Nova Museologia. Nela, uma das principais características foi a abertura do museu para a sociedade e a integração de diferentes vertentes patrimoniais, com o museu tendendo a sair da especialização por tipologias de outrora para uma abordagem interdisciplinar, centrada não em coleções mas em temas, ou mesmo em problemas. Houve então o entendimento de que as coleções não seriam somente de objetos materiais móveis (acervos institucionais) e herdados, mas objetos construídos e também perseguindo uma noção de acervo operacional, conjunto de referências patrimoniais formado igualmente por elementos da paisagem, do entorno do museu, dos saberes e fazeres da comunidade em que está inserido3. Ao meu ver, neste movimento de busca de superação da centralidade das coleções, ou pelo menos de sua concepção mais conservadora, e com a chegada de muitas novas discussões ao mundo dos museus, sua profissionalização que ainda estava em curso, não foi aprofundada em um aspecto crucial que é a definição de parâmetros de aquisição e descarte de acervos, inclusive porque durante algum tempo re etir ou publicar sobre coleções era se associar a um pensamento muito conservador diante dos novos desafios postos para o mundo museal. Enquanto isto, alguns muitos museus afastados da discussão do campo continuavam adquirindo acervos indiscriminadamente, recebendo objetos especialmente por doações que lhes pareciam não oferecer nenhum elemento de controvérsia, tornando-se instituições absolutamente acumuladoras e passivas, afastadas da re exão sobre finalidade dos bens adquiridos e capacidade de gestão de coleções. Somente agora, diante de pressões reguladoras do campo e ainda mais da ampliação dos debates sobre a escassez de recursos para a cultura, os museus foram premidos a pensar em sistematização e racionalização, e verificou-se a quase total ausência de orientações sobre parâmetros para aquisição e descarte de acervos, com equivalente fragilidade da produção acadêmica em torno da matéria. Os museus em geral não possuem recursos próprios e, especialmente, verbas específicas para aquisição de acervos. Adquirem, à exceção dos que são ligados a campos científicos marcados pela coleta de campo (Arqueologia e, Ciências Naturais, por exemplo), por meio do recebimento de 3 Patrimônio natural, patrimônio imaterial ou melhor dizendo, um patrimônio integrado como preconizado na Mesa Redonda de Santiago do Chile, 1972. Manuelina Maria Duarte Cândido doações. A coleta ativa, portanto, é práxis mais dos colecionadores do que dos museus. O colecionador desenvolve o “olho bom” (Gomes, 2017). O museu desenvolve uma área de conforto, não precisa lapidar este “olho”, fazer escolhas, lidar com con itos, quase como se conseguisse escapar das tensões inerentes às escolhas, que envolvem disputas de poder (Chagas, 2002). É necessário ter em conta que o que foi colecionado e chegou aos museus não decorre de coleta ativa e escolhas dos museus, mas de critérios de escolha privados que foram posteriormente incorporados pelos acervos dos museus, instituições que assumiram, portanto, uma atitude passiva na constituição de suas coleções e inclusive se afastaram, ao longo de muito tempo, da responsabilidade de desenvolver critérios e argumentar criticamente sobre acervos em oferta. Se houvesse recursos para aquisição, o museu teria desenvolvido massa crítica para fazer as seleções necessárias? A prática da aquisição de acervos ter sido afastada da monetarização contribuiu para que se consolidasse como irre exiva e assistemática Por outro lado, as práticas museais mais preocupadas com renovação, atentas aos debates e demandas contemporâneos, correram para o extremo oposto, que é a elaboração de projetos participativos, envolvidos com a experiência, os saberes e a memória dos seus diferentes públicos, mas muitas vezes desconectados dos acervos já existentes nas instituições. Os projetos costumam até gerar novos acervos para os museus e podem estar preenchendo importantes lacunas, mas nem sempre incluem uma reinterpretação do que já existe, raramente lançam luz sobre a herança patrimonial que já faz parte da instituição. Para os dois últimos pontos, é muito inspiradora uma entrevista recém-publicada Gestão de Museus: O Museu do Século XXI 17 pelo Público, jornal de Portugal, de Chris Whitehead, professor de Museologia em New Castle, Reino Unido, a Lucinda Canelas: “É preciso pôr os museus a falar do presente e explicar por que não se pode caçar po émons em Auschwitz”. Trazendo para nosso contexto, lembro que os museus falarem sobre o presente, não fugirem tanto das controvérsias e abrirem discussões mais densas vai ser cada vez mais difícil com um público que não cultiva a leitura, a re exão, e talvez, daqui a uns anos, não terá sequer tido aula de História no ensino médio. Whitehead, ao abordar a maneira como diferentes países lidam com as feridas do passado, ressalta as grandes diferenças de postura entre eles em relação à revisão histórica de genocídios e opressão, e à necessidade de reconciliação: “E os museus podem ser esse lugar onde se pede desculpa pelo passado, algo que os países não fazem oficialmente com facilidade. O que os políticos precisam de perceber é que os museus podem servir para estabelecer um compromisso com a representação do passado tal como ele é e não como preferíamos que fosse.” (Whitehead, 2016) Eles também têm grande potencial e responsabilidade para contar as histórias a partir de muitas perspectivas e reconhecer que há muitas leituras possíveis sobre qualquer acontecimento. Na mesma entrevista, o professor reconhece que os museus se tornaram pouco desafiadores do ponto de vista crítico, meio preguiçosos ou pensando somente na experiência de lazer que podem oferecer o visitante: “Muitos acham que as pessoas não querem ir a um museu para serem confrontadas com as 18 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes coisas terríveis que vêem nas notícias.” Vamos lembrar que há uma profunda distorção no senso comum do que seja um museu interativo, que se confundia sempre com um sucessivo apertar de botões, e agora evoluiu para toques em telas e sensores de movimentos corporais. Tudo isto, entretanto, não ultrapassa um nível muito básico de interatividade, o hands-on. Na interatividade minds-on há engajamento intelectual suscitando questionamentos e dúvidas, e as ideias e pensamentos do visitante podem se modificar durante ou depois da visita. Finalmente, na hearts-on há estímulo emocional, já que a ideia é atingir a sensibilidade do visitante (Wagensberg, 1998). O museu querer se tornar o espaço privilegiado da selfie, da caça ao po emon, etc, atrai um bom público, e eles sabem que são avaliados por estes números também. Mas como espaço de conhecimento, de formação, o que ganham os museus quando se deixam dominar pelo império do efêmero, do espetacular, do re exo, e não da re exão Considerações finais Este texto buscou apresentar re exões sobre a gestão de museus no século XXI com enfoque principal nas tendências e desafios postos para estas instituições, especialmente os museus de pequeno e médio porte. Com ele, pretendo apresentar alguns pontos de vista segundo os quais os museus de médio porte são os mais ameaçados por se encontrarem em uma posição dificilmente sustentável e que tende, apesar de seus esforços para se tornarem grandes museus, identificá-los com os mesmos problemas dos pequenos museus, mas talvez sem tanta aderência com os desejos das comunidades do entorno como os pequenos podem ter. Assim, é recomendável que os museus de médio porte façam o quanto antes uma opção pela atuação mais próxima da comunidade, em que possam buscar respaldo e defesa nos momentos de crise que venha a atravessar. Os pequenos museus têm sido abordados cada vez mais em suas especificidades por instituições como a American Association of Museums, entre outras, e pela bibliografia especializada. Entre estas posso sugerir a leitura não somente dos documentos todos disponíveis no site da AAM na página do Comitê de Administradores de Pequenos Museus (http://www.aam-us.org/about-us/ what-we-do/small-museums) mas também de publicações como a série organizada pela American Associationfor State and Local istory (AAS ): The Small Museum Tool it. Trata-se de uma série de 6 livros voltados especialmente para pequenos museus, em torno de temas como Governança, Recursos financeiros, Gestão, Públicos, Interpretação (Educação e Exposições) e Coleções. Como esta produção ainda não está disponível em português, tem pouca ressonância nos pequenos museus brasileiros, e um esforço de tradução, adaptação à nossa realidade e ampla difusão aqui se faz vivamente necessário. Manuelina Maria Duarte Cândido Gestão de Museus: O Museu do Século XXI 19 Referências: American Association of Museums [AAM]. Small museums. Disponível online em http://www.aam-us.org/about-us/what-we-do/small-museums acesso em 02 de julho de 2017. BERGERON, Yves. “Musées et muséologie: entre cryogenisation, ruptures et transformations”. In: MAIRESSE, François (Dir.). Nouvelles tendances de la Muséologie. Paris: La Documentation Française, 2016. p. 229-246. CHAGAS, Mário de Souza. “Memória e poder: dois movimentos”. In: CHAGAS, Mário de Souza; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museu e políticas de Memória. Lisboa: ULHT, 2002, p. 35-67. (Cadernos de Sociomuseologia, 19) GOMES, Lilian Alves. A peregrinação das coisas: trajetórias de imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017. (Tese de Doutorado em Antropologia) Instituto Brasileiro de Museus [Ibram]. Museus em Números. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2011. PAMUK, Ohran. ICOM Milano 2016: Orhan Pamuk’s video on museums, July 4, 2016 Disponível online em https:// www.youtube.com/watch?v=BCdwSBepnSU. Acesso em 12 de fevereiro de 2017. PAMUK, Ohran. A modest manifesto for museums. Disponível online em http://en.masumiyetmuzesi.org/ page/a-modest-manifesto-for-museums Acesso em 12 de fevereiro de 2017. ROIGÉ, Xavier. “Les musées face à la crise économique ou les musées en crise? Défis et stratégies dans l ecas de l’Espagne.” In: MAIRESSE, François (Dir.). Nouvelles tendances de la Muséologie. Paris: La Documentation Française, 2016. p. 81-94. STEEN, Laura; MARSAL, Baptiste. “Musées : la grande fracture entre gros et petits” In: Le Progrèss.fr. Disponível online em: http://www.leprogres.fr/france-monde/2015/05/16/musees-la-grande-fracture-entre-gros-et-petits Acesso em 09 de outubro de 2015. VAN MENSCH, Peter; MEIJER-VAN MENSCH, Léontine. New trends in museology. Celje, Slovenia: Musej Novejse Zgodovine (Museumms of Recent History), 2011. VAN MENSCH, Peter. Towards a methodology of museology. Zagreb, Croacia: University of Zagreb,1992. (PhD Thesis) WAGENSBERG, Jorge. “A favor del conocimiento científico (Los nuevos museos)” In: Revista Valenciana D’ Estudis Autonômics, n. 23, Segundo Trimestre, 1998, p. 295-309. WHITEHEAD, Chris em entrevista a CANELAS, Lucinda. “É preciso pôr os museus a falar do presente e explicar por que não se pode caçar pokémons em Auschwitz”. In: Público, 6 de dezembro de 2016. Disponível online em https://www.publico.pt/2016/12/06/culturaipsilon/noticia/e-preciso-por-os-museus-a-falar-do-presente-e-explicar-por-que-nao-se-pode-cacar-pokemons-em-auschwitz-1753719 acesso em 16 de fevereiro de 2017. 20 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Coleções Museológicas e sua Conservação Alba Tânia Rosaura Macedo1 A primeira Instituição Museal surgiu no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro em 6 de junho de 1818 por Decreto Real de D. João VI, inicialmente instalado no Campo de Santana. Somente em 1892 o Museu Nacional foi acomodado no Paço de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista, foi concebido para propagar os conhecimentos científicos das riquezas do Brasil, a cerca da natureza e da riqueza antropológica entre outros. Hoje o Museu também dedica-se a preservação da memória científica e social no que diz respeito a sua atuação baseada na investigação científica. O Instituto Arqueológico istórico e Geográfico Pernambucano (Pernambuco), também foi organizado em 1892. As demais instituições são datadas do século XX, com destaque para o MASP em São Paulo, Capital, no ano de 1947 por seu acervo. O Brasil é jovem em relação à conservação de sua história e cultura. O início do movimento de preservação deu-se pelo Decreto-Lei nº 25, de novembro de 1937, organizando e protegendo o patrimônio histórico e artístico nacional. Somente na Constituição Federal de 1988 foi consolidada esta proteção com a legislação Magna nesse sentido. O conceito de museu, já vastamente difundido pelo estudo museológico, e segundo a definição dada pelo ICOM (Conselho Internacional de Museus): “O museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao p blico, que adquire, conserva, investi a, comunica e e p e o patrim nio material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite.”( O isponível em http icom portu al.or museu , cesso definicao . Para o nosso estudo é preciso enfatizar conceitos essenciais, para o desenvolvimento desse artigo, as coleções propriamente ditas e as várias formas de proteção destas. Faz-se necessário também, compreender o conceito de acervo, que é o conjunto de obras que fazem parte de um patrimônio e patrimônio cultural é o conjunto de todos os bens - materiais ou imateriais, que, pelo seu valor próprio, devam ser considerados de interesse relevante para a permanência e a identidade da cultura de um povo. 1 Especialização em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis – CECOR/EBA -UFMG- MG; Especialização em Cultura Material e Museus - Museu Antropológico - UFG; Licenciatura em Desenho e Plástica - Universidade Federal de Goiás /UFG. Alba Tânia Rosaura Macedo A denominação de acervo é sempre utilizada para indicar coleções de obras e bens materiais, que compõem um patrimônio, não importando se é um patrimônio público ou privado. Há uma variedade de bens que são denominados patrimônios, como: arquivísticos, arqueológicos, bibliográficos, artísticos, históricos, documentais entre outros. Existem também Museus em que o acervo é composto por várias coleções heterogêneas, sendo eles denominados como um Museu eclético, o que indica que os objetos são estruturados em variedades de suportes, assim como: a madeira, tela, tecidos, cobre, papéis, plumarias, cerâmicas entre outros. Entre os vários cuidados para a preservação das coleções de acervos museológicos, estão a conservação preventiva2 e conservação curativa (restauração). A conservação preventiva, dá-se de forma indireta, identificando os agentes de degradação adequando o local onde o bem cultural se encontra, para prolongar a vida dessas obras, desacelerando o seu processo natural de degradação. Para isso, busca-se o controle da luminosidade, da umidade relativa do ar, e da temperatura para que o acervo mantenha - se estabilizado. A conservação preventiva é de responsabilidade do proprietário do acervo, sendo ele institucional ou privado, requerendo tão somente a orientação de especialistas. Um bom exemplo a ser citado são os efeitos da umidade relativa do ar, que em excesso faz com que os materiais se movimentem, promovendo o empenamento da madeira, formação de mofo, apodrecimento da madeira e tecidos, Coleções Museológicas e sua Conservação 21 proliferação de bactérias, amolecimento das colas de maneira geral. Quando a umidade é abaixo dos índices ideais, ocorre o ressecamento dos materiais, ocasionando rachaduras, substâncias adesivas tornam-se quebradiças, acelerando o processo de degradação das obras, exigindo intervenção profunda. Quando se trata de iluminação excessiva, o dano provocado é cumulativo e irreversível, para a proteção desses objetos, alguns cuidados devem ser obedecidos, como: a redução da luminosidade da edificação, sem interferir na aparência do prédio, utilizando-se, de persianas ou películas protetoras chamada de insufilm, que tem validade de proteção definida pelo fabricante; também utiliza-se placas sustentáveis de policarbonato com espessura de 3 a 6 mm que limitarão a incidência de luz solar sobre as coleções; ainda sobre as conservação preventiva são os cuidados com a segurança das peças: controle de acesso pessoal, câmeras de segurança para vigília em tempo integral, restrição rigorosa à reserva técnica, com identificação, acompanhamento e responsabilização dos autorizados a acessar esse acervo acondicionado em local de alta segurança. A conservação do acervo, envolve a limpeza das peças, que pode ser feita por meios mecânicos e químicos dependendo do estado de sujidade da obra, por pessoal designado, treinado e supervisionado por um conservador, observando sempre que cada peça representa parte insubstituível da história da coleção. A conservação de cada peça exige procedimentos específicos e adequados para que a obra não seja danificada. A base do trabalho de conservação e 2 Conjunto de medidas que visam conter a deteriorações de um objeto ou resguardá-lo de danos, através de levantamento, identificação, estudo, diagnostico e controle de ameaças. Identifica-se com os trabalhos de intervenções técnicas e científicas, periódicas ou permanentes, repetidos ou continuados, aplicados diretamente sobre uma obra ou seu entorno, com o objetivo de prolongar sua vida útil e sua integridade. (C AGAS, Mário de Souza e NASCIMENTO UNIOR, osé do, 200 p. 0). 22 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes restauro de acervos inicia-se com a observação da obra analisando o processo de degradação do objeto, bem como a aplicação de metodologias adequadas a intervenção quando necessário. A peça analisada, contará com uma ficha de conservação/restauro3, para o desenvolvimento de estudo com a finalidade de identificar as características da obra, tais como o suporte, a técnica artística, estado de conservação, autoria, datação, elaborando um diagnóstico para a proposta de tratamento do objeto, as técnicas da época em que foi concebida, evidenciando eventuais intervenções e possibilitando formalizar uma melhor proposta de preservação. Assim, quando todas as medidas e procedimentos para deter ou evitar o processo de deterioração não alcançaram êxito para preservar o bem cultural vem a intervenção restaurativa, necessária para o salvamento da obra, defendendo o princípio geral da mínima intervenção. A restauração segundo Cesare randi, (...) restauração constitui o momento meto dol ico do reconhecimento da obra de arte na sua consist ncia física e na sua d plice polaridade estética e hist rica, com vistas para o futuro. ( ( , sua transmissão ,p. ” Defende randi, que: restauração deve visar ao restabele cimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso se a possível sem cometer um falso artístico ou um falso hist rico, e sem cancelar nenhum traço da passa em da obra de arte no tempo”.( , , p. . Desde que concebeu tais axiomas, a teoria de Brandi, é atual, respeitada e utilizada no mundo todo. A intervenção de restauro está implícito no exame e no reconhecimento da necessidade, exige um campo específico de conhecimento multidisciplinar, quando se trata de limpeza em nível de restauro, os produtos químicos a serem utilizados, devem ter proporções adequadas e precisas, sob pena de danificar irreversivelmente a superfície da obra. Logo, somente o especialista em conservação e restauro, com conhecimento aprofundado em química, é autorizado a aplicar o procedimento. Coleções ateria tno ráfico As coleções etnográficas são constituídas por uma variedade de objetos, resultantes da cultura material e imaterial e de diferentes manifestações de caráter local ou regional, do ambiente, das atividades doméstica, artísticas de grupos de indivíduos. É grande a variedade de materiais que compõe os objetos, exigindo um estudo aprofundado de cada peça de forma a não apagar, nos tratamentos de conservação ou restauro, a informação que estes contem. Os materiais empregados na confecção desses objetos são de origem animal (couro, penas, ossos) origem vegetal (palha, madeira bambu, sementes). Esses materiais se degradam com facilidade necessitando de atenção especial para serem preservados. 3 A restauração é uma intervenção física que altera a matéria do bem cultural. É feita nas ocasiões em que o bem está em risco de perder sua integridade – sua unidade histórica ou estética – mas ainda mantém uma legibilidade suficiente (pois quando não resta ao bem legibilidade suficiente, este já é considerado como uma ruína). (C AGAS, Mário de Souza e NASCIMENTO UNIOR, osé do,200 . p.1 ). Coleções Museológicas e sua Conservação Alba Tânia Rosaura Macedo A conservação de materiais etnográficos é fundamental, são fontes de informação, investigação e estudo para antropologia e outras áreas. Plumária No Brasil, parte importante da expressão artística é a arte plumária, que se manifesta de formas diferentes, de acordo com a região do país onde ela é desenvolvida. Especialmente os índios brasileiros usam essa arte com frequência, tanto para indumentária de ornamentação, quanto para fins ritualísticos. rte lum ria desi na um tipo de arte feita e clusivamente com penas e plumas de aves. ssa arte e tica, repleta de simbolismo, foi e continua sendo uma das criaç es estéticas mais desenvolvidas pelas culturas indí enas, sobretudo no rasil.”( odamateria, rte lum ria. https cesso em isponível .todamateria.com.br arte plumaria . de a osto de . A matéria prima da arte plumária é orgânica, sendo assim destacadas: Penas: são retiradas das asas e da cauda do pássaro Plumas: se localiza na costa e no peito da ave Plumagem: encontra-se no pescoço, nas costas e no peito das aves. As principais fontes de degradação da arte plumária estão relacionadas à sua condição orgânica, como ataques de roedores, insetos, fungos, bactérias, poeira, fuligem, manuseio inadequado. Sua manutenção depende de meio apropriado (controle da luminosidade, temperatura, umidade relativa do ar), além de acondicionamento adequado. Quando a obra estiver fora da exposição, deve permanecer em reserva técnica, acondicionada com material apro 23 priado, com inspeção regular para verificação de eventuais degradações também se for necessário, utiliza-se pincel para (porcelana) destinado a este fim exclusivamente, com extrema delicadeza e com a atenção e cuidado que o trabalho exige, uma vez que trata-se de material extremamente frágil. Madeira Grande parte da conservação de acervos, ancora-se na higienização adequada das obras, por exemplo, a madeira, observe-se que ao manusear uma escultura em madeira, na realidade, não é somente uma obra em madeira. Ela é uma escultura, policromada e dourada, portanto, exige tratamento adequado de higienização, tanto mecânica (trinchas macias), em movimentos leves, cuidadosos, com exclusiva atenção para a obra, observando sempre se há alguma perda da policromia ou fragmento, quanto química, sempre que a obra exigir. Os intervalos de limpeza devem ser adequados à preservação da integridade da peça. Já a madeira de mobiliário, como uma escrivaninha de época, deve ser limpa com anela e recomenda-se encerada com cera micro - cristalina. Couro O couro é um material utilizado tanto em mobiliário cadeiras, poltronas, lombada de livros, partes de vestuário, como sapatos. Mas, para a higienização segue-se uma premissa de cuidados especiais, como limpeza mecânica, utilizando trinchas largas, médias ou pequenas, dependendo da estrutura, limpeza química feita por conservador. 24 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Têxtil Os têxteis são constituídos de materiais base, como, por exemplo, linho, algodão, seda e os sintéticos entre outros. Cada um exige uma proposta de tratamento, mas, todos devem ser acondicionados em local adequado, com proteção específica, controlando a luminosidade, umidade e temperatura. A limpeza integral da estrutura têxtil, vestuário, indumentária, deve ser precedida de análise de estado de degradação; a remoção da poeira e sujidades em geral pode ser realizada usando aspirador de pó portátil, quando em bom estado; trincha macia, adequada em tamanho à estrutura a ser limpa e intervenção com química, quando necessário. Quanto ao manuseio e acondicionamento, como em qualquer outra fase do trabalho deve haver prudência principalmente com as peças mais frágeis. Embalar a peça em papel de seda especial sem coloração e alcalino, guardar em caixas e gaveta com folga ou mapoteca. Os têxteis nunca devem ser guardados em sacos plásticos é recomendado que sejam acondicionados na horizontal. Para as peças de vestuário, utilizar suportes apropriados como manequins com ombreiras e cabides acolchoados e forrados com tecido de algodão ou TNT. Cada peça têxtil é um caso específico devendo ser estudado isoladamente. Causas prováveis da degradação é a luz, que afeta não só os corantes e pigmentos, mas também desencadeia o processo de degradação estrutural das fibras, umidade relativa, temperatura, poluição atmosférica, micro-organismos e manuseio. Cer ica e idro Cerâmica e vidro sua fragilidade é uma característica bem conhecida. As quebras ou danos significativos geralmente são manuseio inadequado, descuido, limpeza ou transporte dos objetos sem o apoio necessário. Normalmente os objetos devem ser organizados em prateleiras sem amontoá-los. A primeira ação pela qual as obras devem passar é a higienização mecânica, o processo consiste na retirada da poeira e de partículas sólidas, realizado com pincéis de cerdas macias. Muitos objetos de coleção, tem base em vidro, mas, ao contrário do que parece, o vidro é uma substância em movimento, que mais se parece com líquido super frio. Com o passar dos anos, ele acumula-se na parte mais baixa da obra, deixando a parte superior muito mais fina e sujeita a acidentes. Basta observar, por exemplo, vasos, taças, copos, espelhos, luminárias e arandelas. O manuseio deve ser com luvas de algodão, sempre com foco dobrado no trabalho realizado, seja de limpeza, seja conservação. Normalmente a limpeza do vidro com água não é necessária. A limpeza é feita em pequenas áreas, com algodão hidrófilo, removendo os resíduos eventualmente impregnados. A higienização dessas peças deve ocorrer em intervalos de 2 a 3 anos, sempre seguindo os procedimentos de transporte, manuseio e segurança. Notadamente, não se higieniza mais que uma obra por vez. Alba Tânia Rosaura Macedo Prata Objetos em prata envolvem cuidado em sua movimentação, tanto para movê-la, quanto para erguê-la, devendo ser suspensa, sempre em seu perímetro de maior dimensão, evitando-se erguer pelas alças, ou partes frágeis, já que tem liga mole e passível de avaria tanto podendo ser amassada, quanto entortada. Obras em prata não devem ser tocados com a mão livre, uma vez que a pele tem sal e oleosidade naturais, que, quando em contato com a prata, aceleram a formação de corrosão e oxidação na superfície acelerando, também, a degradação da peça. Para manuseio usam-se luvas de algodão como protocolo. Normalmente, analisando a peça, opta-se pelo material mais adequado à sua higienização, levando-se em consideração a sujidade e a fragilidade da peça. Pintura A pintura de cavalete dado à magnitude de sua abrangência, e expressividade, demanda desdobramento próprio, com um trabalho aprofundado. Em uma abordagem superficial, sobre a composição estrutural de uma obra tela, qual seja, o chassi, o tecido, a base de preparação da tela, e a camada pictórica que é a expressão artística do autor. A vida útil da obra artística está atrelada à sua conservação. Caso ela, embora antiga, tenha sido preservada de vandalismo, agentes externos de degradação, intervenção inadequada ela acaba chegando aos tempos atuais em bom estado de conservação. Mas, se pelo contrário, ela sofrer as ações de degradação, além da temporal, ela alcança a atualidade em condições diferentes das primeiras, deman- Coleções Museológicas e sua Conservação 25 dando cuidados especiais para sua preservação e prolongar a sua vida. Caso não receba esses cuidados especializados, ela pode vir a se perder. Dentre as várias formas de expressão artística, existem diferentes técnicas de pintura, entre elas, destacam-se aquarela, guache, sintética, óleo entre outros. As tintas a óleo têm sido usadas principalmente, na Europa desde o século XVII, constituída de uma mistura de pigmentos em suspensão em um óleo secante e sua viscosidade é alterada pela adição de solvente, como a Terebentina, largamente adotada a partir do século XIV como meio de expressão artística, sua secagem lenta permite misturar as diversas cores, obtendo inúmeras tonalidades diferentes. Os pigmentos mais comuns incluem sais minerais como certos óxidos brancos, de zinco e titânio, óxidos vermelhos, ferro ou cádmio; outra classe de pigmentos incluem os pigmentos de argilas naturais como o ocre ou terra de siena. Muitas experiências ao longo do tempo foram feitas para melhorar a tinta a óleo. As mais modernas são feitas de óleos vegetais das plantas: Vernonia, Calêndula, Euphorbia cujos óleos ou aumentam a resistência ou diminuem do tempo de secagem. Nesse período surgem alguns dos maiores artistas conhecidos da pintura clássica. Citando alguns: otticelli, Leonardo da Vinci, Rafael e Michelangelo. No Século XIX, com as grandes transformações da indústria (Revolução Industrial) nos laboratórios, foram desenvolvidas variedades de resinas fenólicas, esses novos materiais ofereciam, menor tempo de secagem, maior resistência à água, maior durabilidade e maior resistência à radiação ultravioleta, gerando novas opções de tintas, momento em que aparecem as tintas acrílicas no mercado. 26 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes A obra de arte em tela, assim como as demais, sofre as ações do tempo, bem como as ações humanas e ambientais, sua preservação está intimamente ligada à sua conservação. A limpeza de uma obra artística pode ser superficial ou profunda, a limpeza superficial utiliza-se de meios mecânicos, geralmente se inicia com pinceis ou trincha bem macios, secos e limpos, todas as sujidades, tais como poeira, teias de aranhas, material particulado, excrementos de insetos, traças encontradas nas superfícies e no verso da obra, tudo isso após exame de estabilidade da camada pictórica. Jamais deve-se utilizar materiais abrasivos ou espanadores, enquanto que a limpeza profunda trata-se da remoção de materiais gordurosos, ceras antigas, goma laca, vernizes oxidados entre outros, exigindo conhecimentos e critérios para esse procedimento que é de competência de profissional qualificado. amoreira, c nhamo, restos de roupas, e outros produtos que contivesse fonte de fibras ve etais. ateu a massa até formar uma pasta, peneirou a e obteve uma fina camada que foi dei ada para secar ao sol. bastante lucrativo. omente palavra papel vem do latim pap rus e faz refer ncia ao papiro, uma planta que cresce nas mar ens do rio ilo no ito, da qual se e traia fibras para a fabricação de cordas, barcos e as folhas feitas de papiro para a escrita. uando a escrita sur iu, h mais de mil anos atr s, as palavras eram inscritas em tabuletas de pedras ou ar ila. forma mais primitiva de escrita era a cuneiforme. or volta de a. ., os e ípcios inventaram o papiro. (... inalmente, o papel seria inventado na hina anos depois de risto (d. . , por sai un. le fez uma mistura umedecida de casca de uar anos depois de o papel ter sido inventado, os aponeses conhe ceram o papel raças aos mon es budistas core anos que l estiveram. (... fibra ve etal que nos referimos antes é celulose, um dos principais constituintes da plantas e um polímero formado de pequenas moléculas de carboidratos, e licose. celulose pode também ser usada para a fabricação de tecidos quando e traída do al odão, c nhamo, chita ou do linho. otencialmente, qualquer planta produtora de celulose é fonte de matéria prima para a produção de papel.” (http Ori ami Outra forma marcante de expressão humana, é o papel. Capítulo a parte do cenário cultural, merece estudo aprofundado, mas, em linhas gerais, técnica, no entanto, foi dada a sete chaves, pois o comércio de papel era unesp.br Papel epois de seca, a folha de papel estava pronta useu scola nsino .ibb. undamental ocumentos indice ori ami papel.htm O papel é material extremamente frágil e sensível, merecendo cuidado redobrado quanto à sua guarda, exigindo reserva técnica. Mais que outros suportes, o papel exige cuidado especial dentro da conservação preventiva, já explicada anteriormente, sob pena de desaparecimento. São exemplos de estágios de degradação do papel: ressecamento, manchas, pontos escuros (foxing), causados por fungos que decompõem a celulose produzindo pigmentos que mancham profundamente o papel, ataques biológicos, amarelecimento e ação humana, por manuseio inadequado. Ao receber uma obra em papel, após os protocolos de recebimento e registro, o museu, através da área técnica em conservação, faz uma análise do estado de conservação do objeto e quando necessário, fazer a higienização superficial mecânica, como: retirada Alba Tânia Rosaura Macedo de partículas sólidas, poeira, com o auxílio de trincha 1 ½” e pinceis de cerdas macias. Qualquer outra intervenção, exige pessoal qualificado. A proteção da obra em papel é feita acondicionando-as, em papéis especiais que envolvem a obra de forma a protegê-la do meio em que se encontra, sendo, depois, guardadas em mapotecas, em caixas especiais ou em pastas especiais. Alguns materiais utilizados em obras de papel são: os papéis neutros ou alcalinos de várias gramaturas; papel japonês, apropriado para interfolhamento e restauração filme de poliéster transparente – papel vegetal fino, (melinex) transparente, utilizado para a proteção de fotos, gravuras, ilustrações de originais que se deterioram pelo manuseio; folhas de poliéster (Mylar) pastas de poliondas (branca ou transparente) TNT branco fitas adesivas neutras, adesivo: acetato de polivinila, carboximetilcelulose (CMC) Fornecedores importantes para a área de conservação e restauro de papel são, entre outros, World Paper, e Casa do Restaurador. Entre as formas de proteção das obras de arte em papel, destaca-se o passepartout, que é o apoio de papel cartão, que fica entre uma gravura e a moldura, consistente em uma “janela” que distância a obra de arte do vidro de exposição em uma distância entre 3 a 5mm. Ele vai dar a distância entre o vidro e a obra de arte, já que o papel não se adere à obra (gravura, fotografia etc), ainda que sob altas temperaturas e em condições de umidade inadequada, diferente do vidro que se cola à obra removendo a camada pictórica à qual se aderiu. Coleções Museológicas e sua Conservação 27 Conservador / Restaurador O Conservador Restaurador é o profissional que atua na preservação e salvaguarda dos bens culturais, da sociedade respeitando os valores artístico, histórico, estético, científico, espiritual, documental e religioso, exigindo desses profissionais responsabilidade moral e legal em relação à sua profissão, ao público e a posteridade. A sua atuação são sempre norteadas, pelos princípios técnicos e éticos da profissão. A sua formação é multidisciplinar nas áreas de pesquisa científica, história, química, biologia, fotografia e técnicas artísticas entre outros. Assim, concluindo que cada obra é única em sua representatividade, cabe aos profissionais de conservação, tanto os museólogos, engenheiros, arquitetos, arqueólogos, historiadores, pessoal de apoio, químicos, biólogos, quanto os conservadores e restauradores assim como o poder público a responsabilidade de garantir a transcendentalidade da expressão artística entre as gerações passadas e futuras, tudo para garantir a memória de um povo, de uma época, de uma nação. Não se pode conhecer o futuro, se o passado e o presente perderem-se no tempo, deixando órfãos os futuros habitantes que herdarão tão somente o pó da arte produzida anteriormente. 28 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Figura 1 - Papel com manchas denominadas “foxing” Imagem retirada da Internet. Acesso: 2 0 201 . Coleções Museológicas e sua Conservação Alba Tânia Rosaura Macedo 29 Referências: BURKE, Robert B. - Manual de Segurança básica em museus - Rio de Janeiro, Agir, 1996; MARABILI, Antônio - A reserva técnica também é museu - Boletim Eletrônico ABRACOR, nº1, junho 2010, pág. 4 a 9; MELLO, Vinícios - As formulações de tintas expressivas através da história (Revista virtual de química - 2012 ) DORNELLES, Kelen Almeida - Absortância solar de superfícier opadas: Métodos de determinação e base de dados para tintas látex acrílica e pva - 2008; BA ANN, onstan e e Rus field, conserva o, conceitos e r ticas Rio de Janeiro Ed. RJ BRANDI, Cesare - Teoria da restauração - Ateliê Editorial, 2004; Museums, Libraries and Archives Counsil. Tradução: Maurício O. Santos e Patrícia Souza - São Paulo - Ed. USP unda o Vitae, volume The Council for Museum, Archives And Libraries – Paramêtros para a conservação de acervos. Maurício O. Santos e atrícia Sou a S o aulo Ed. S unda o Vitae, volume CALABRESE, Omar - Arte e Percepção visual - São Paulo, Pioneira, 1994. 30 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Conservadora e restauradora Alba Macedo ministrando a “Oficina de Conservação em Acervos de Museus” no MUZA - Museu Goiano Professor oroastro Artiaga. Foto: Equipe MAC - GO. Tânia Mendonça useus esafios e ossibilidades políticas p blicas para a 31 usealização do atrim nio ultural de oi s Museus - desafios e possibilidades: Políticas públicas para a Museali a ão do Patrimônio Cultural de Goi s Tânia Mendonça1 Resumo Este artigo pretende contribuir para a compreensão de que a (re)construção e (re) implantação de políticas públicas para as instituições museológicas, desde que fundamentadas nos princípios e técnicas da museologia, fortalecem os museus, os habilitam e habilitam seus profissionais a romper desafios financeiros e burocráticos e lhes fortalecem para combater os males da vulnerabilidade, da acomodação e do determinismo. A partir da experiência profissional, da formação acadêmica e do projeto Circuito Cultural Praça Doutor Pedro Ludovico Teixeira (Praça Cívica), a autora apresenta os caminhos percorridos para a construção da proposta de uma política pública para os museus estaduais goianos. Palavras-chave: circuito cultural, gestão, projetos museológicos. Introdução O Centro da questão: Circuito Cultural Praça Cívica é adiado por falta de recursos. Integrante de projeto de ocupação da região central de Goiânia projeto ambicioso previa a transformação de prédios históricos em museus e unidades culturais.” (FERREIRA, Clenon. O Centro da questão. O POPULAR. Goiânia Goiás, 24 jun. 2018. Magazine, p.M6-M7.) A matéria de capa do Jornal o Popular do dia 24 de junho de 2018 foi incisiva: não só remetia para o passado o Circuito Cultural Praça Cívica de Goiânia como arremessava sobre o projeto um balde de água fria, como diria o ditado popular. No entanto, na mesma matéria, quatro dos cinco candidatos às eleições de 2018 ao governo do Estado ouvidos pelo jornalista sinalizaram a possibilidade de viabilizar o projeto. 1 Tânia Mendonça é doutora em Museologia pela Universidade Lúsofona de Humanidades e Tecnologias (2012). Possui graduação em Jornalismo (1977) e Especialização em Museologia pela Universidade Federal de Goiás (2001). 32 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes E é aí, o ponto crucial: o projeto se ajusta à conjuntura política, social e econômica que os novos governantes terão à sua frente em 2019? E, se for implantado o Circuito, o Estado terá como realizar a manutenção sistemática dos espaços Como se justifica a criação de novos espaços museais na Praça Cívica, sendo que os museus públicos já existentes apresentam carências de toda a ordem, especialmente do ponto de vista museológico? Todas essas questões já haviam sido formuladas em junho de 2017, na conferência proferida durante o Ciclo de Estudos O Museu e seus saberes, organizado pelo Museu de Arte Contemporânea de Goiás. E naquele momento já havíamos caminhado na re exão de que o Circuito Cultural Praça Cívica não é um espetáculo que inebria com o abrir das cortinas e que nostalgia com o fechar das mesmas. Nem é somente um projeto arquitetônico de restauração e de requalificação de prédios históricos. Embora reconheçamos a importância dos espetáculos de arte e das obras de restauro para o patrimônio edificado, o Circuito Cultural é muito mais do que isso. Entendemos o Circuito como um projeto que abrange a musealização dos espaços físicos e dos acervos materiais e imateriais existentes sob a guarda do Estado. É uma conjunção de práticas, de forma que as instituições se tornem espaços museais vivos, acessíveis e compatíveis para o exercício compartilhado da pesquisa, da preservação e da comunicação, espaços participativos, de interação do público com o museu, promovendo o diálogo entre a edificação, os acervos e as novas exigências museológicas. Nesse contexto, a musealização do patrimônio cultural constitui-se através de processos que estimulam o conhecimento, a emoção, os sentidos e a memória de quem com ele é confrontado. O discurso do museu se liberta das amarras das coleções em favor do entendimento das pessoas que as envolvem e dos espaços que as abrigam. Os estudos de M. C. T. M. Santos (1993), sobre os conceitos de patrimônio, museu e museologia foram fundamentais no processo Figuras 1 e 2 - Circuito Cultural Praça Cívica em debate no Ciclo de Estudos O Museu e seus saberes, organizado pelo MAC|Goiás em 23 de junho de 2017. Foto: Divulgação MAC|Go. Tânia Mendonça useus esafios e ossibilidades políticas p blicas para a construção do Circuito Cultural Praça Cívica. Santos (1993) alerta sobre a importância da nova compreensão e relação do museu com a sociedade e destaca que de sujeito contemplativo e passivo diante das coleções intocáveis, o visitante do museu contemporâneo é instigado a definir, junto com a instituição, o que preservar e como preservar, num processo dialógico permanente. Para isso, é necessário que os responsáveis pelos museus estejam dispostos a serem mais sensíveis, mais criativos e menos burocráticos; mais ousados, mais destemidos e menos enquadrados e passivos. Alguns aspectos levantados por Santos (1996b), a partir de projetos desenvolvidos no Curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia [UFBA] contribuíram para o entendimento de como e em que condições acontecem as aplicações das ações museológicas: usealização do atrim nio ultural de oi s de que é necessária uma nova postura museológica, comprometida com a transformação e com o desenvolvimento social; h) o incentivo para que o cidadão, desde sua formação básica, possa: ver a realidade; expressar a realidade, expressar-se e transformar a realidade.” (M. C. T. M. Santos, 1996, p. 113). Santos (1996) ainda alerta sobre a grande responsabilidade dos profissionais de museus no sentido de promover ações de participação do indivíduo na preservação de seus bens culturais aproveitando as oportunidades oferecidas mesmo que venham da hegemonia do Estado. Sugere ainda a revisão dos currículos dos cursos de Museologia de forma a se voltarem para a formação de profissionais comprometidos: (...) não com a burocracia das instituições e com a preservação de coleções para serem a) o entendimento de que a cultura é um simplesmente armazenadas, como se os museus processo social de produção, ao invés de um “ato fossem grandes “silos”, mas, formando o técnico espiritual”, expressivo ou criativo; b) a utilização a comprometido com os diversos segmentos da memória coletiva como referencial básico para o sociedade, principalmente os que até o presente entendimento e transformação da realidade; c) o momento foram alijados e não usam as produções incentivo à apropriação e reapropriação do patri- culturais.” (M. C. T. M. Santos, 1993, p. 60). mônio e para que a identidade seja vivida, na pluralidade e na ruptura; d) a utilização da memória preservada, testemunho da História, entendida como forma de existência social, nos seus diversos aspectos: social, político, econômico e cultural, bem como o seu processo de transformação, contribuindo para a formação do cidadão; e) o desenvolvimento de ações museológicas, considerando como ponto de partida a prática social e não as coleções. Estamos nos afastando dos objetos e nos aproximando da vida; f) a execução de atividades nas quais a relação homem-natureza se dá de forma integrada. Homem e natureza se completam, reciprocamente; g) a consciência 33 Nesse raciocínio, entendemos que o Circuito Cultural Praça Cívica é resultado da junção de dois fatores: das oportunidades para a formulação de políticas públicas para a musealização do patrimônio que foram oferecidas pelo governo estadual na gestão 20152019 e das oportunidades aproveitadas pelos gestores e profissionais dos setores da cultura e do patrimônio do Estado. O exercício para a musealização do Circuito Cultural foi então construído a partir do entendimento de que a preservação do patrimônio deve ser orientada a partir da construção 34 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes e da reconstrução de valores do passado, da participação da comunidade nas decisões, da interferência dela na realidade e no presente. O Circuito pretende que a comunidade não fique passiva, sem sequer entender o que está acontecendo. Para que isso não aconteça, tomou-se o cuidado de chamá-la para analisar, questionar e contribuir para o que o Estado propõe. A equipe passou o primeiro ano de trabalho apresentando a ideia, através de publicações, participações em seminários, matérias na imprensa local, produção de revista, exposição, vídeo, visitas a possíveis instituições parceiras, etc. Dessa forma, mesmo que este ou aquele governo não o coloque em prática ou o coloque no todo ou em partes, o Circuito Cultural é uma proposta de política pública construída (e ainda em construção) em bases museológicas estruturadas em diagnósticos, estudos, pesquisas e projetos compartilhados. E por isso, consideramos que ele veio para ficar. Cabe à comunidade museológica dar prosseguimento às análises e fundamentações, cabe ao Estado fomentar os ajustes e buscar a melhor forma de viabilização financeira e sustentável. Experiência bem-sucedida nesse processo de reunir diferentes instituições num mesmo propósito cultural aconteceu em Belo Horizonte: inaugurado em 2010, o Circuito Cultural Praça da Liberdade conta com 14 instituições, entre museus, centros de cultura e de formação, sendo que sete são geridas diretamente pelo Governo do Estado e as demais funcionam por meio de parcerias público-privadas ou parcerias com instituições públicas federais. Foi criado com o objetivo de explorar a diversidade cultural em uma área de grande valor simbólico, histórico e arquitetônico da capital mineira. Embora tenha enfrentado problemas de gestão e de falta de recursos, o que impediu que todos os edifícios e acervos fossem musealizados, o Circuito tem conseguido se firmar como centro de referência cultural da cidade. A questão que deve ser encaminhada com cuidado é o envolvimento da comunidade. No caso do Circuito Liberdade, três anos depois de inaugurado, uma pesquisa revelou que a cidade ainda desconhecia o espaço. A pesquisa realizada pelo Instituto Vox Populi ouviu mil pessoas. O objetivo foi avaliar o conhecimento, as percepções e opiniões da população sobre o projeto do Circuito Cultural da Praça da Liberdade. Além disso, foram investigadas a importância da ação para Belo Horizonte, o reconhecimento da marca e o que as pessoas esperam de um circuito com aquelas características. Somente um terço dos entrevistados acertou o nome do lugar e 67% dos pesquisados só o estavam ouvindo no momento da entrevista. Não é difícil encontrar, na própria Praça da Liberdade, quem desconheça a proposta, tampouco quem reclame da falta de divulgação e da sinalização adequada das atividades dos museus e centros culturais. (REIS, Sérgio R. Título: Pesquisa revela que Circuito Cultural da Praça da Liberdade ainda é pouco conhecido em BH. Apenas um terço dos entrevistados acertou o nome do local. Público cobra maior divulgação sobre as atividades desenvolvidas nos espaços. 27 fev.2013. Disponível em https://www.uai.com.br/app/noticia/e-mais/2013/02/27/noticia-e-mais,140699/ pesquisa-revela-que-circuito-cultural-da-praca-da-liberdade-ainda-e-po.shtmlos. Acesso em: 14 agos.2018). O desconhecimento por parte da comunidade re ete a ineficácia ou a inexistência do diálogo no processo de comunicação. No caso do Circuito Liberdade, houveram várias Tânia Mendonça useus esafios e ossibilidades políticas p blicas para a ações de divulgação desde o início de sua construção. Mas para além da divulgação, o diálogo foi exercitado? Será que a comunidade foi ouvida quanto ao que gostaria de ver instalado no Circuito? A pesquisa de 2013 re ete que os jovens, por exemplo, não foram ouvidos. A ausência de ações musicais era a maior reclamação deles. Ausência que as instituições trataram de suprir ao longo dos anos. Atualmente, a programação musical abrange semanalmente diversos edifícios da Praça ao mesmo tempo. 35 usealização do atrim nio ultural de oi s Além das experiências bem e mal sucedidas do Circuito Liberdade de Belo Horizonte e de outros processos museais pesquisados em outras cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador, o Circuito Cultural Praça Cívica re ete também o aprendizado adquirido nos quatro anos de doutoramento na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa e a experiência da autora na área de gestão museal adquirida ao longo de vinte anos à frente de dois museus Figura 3 . Em busca de novas experiências: equipe do Circuito Praça Cívica realiza visitas técnicas aos museus e outras instituições integrantes do Circuito Liberdade de Belo Horizonte e ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, o Iepha (mai. 2016). Foto: divulgação Circuito. Figuras 4 e 5 - visita técnica ao Circuito Cultural São Paulo (fev.2016) e reunião com diretor do Museu do Amanhã do Rio de Janeiro, Ricardo Piquet . Foto: divulgação Circuito. 36 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes públicos goianos – o Museu da Imagem e do Som e o Museu de Arte Contemporânea, de 1998 a 2014 – e da Superintendência de Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, nos anos de 2008 a 2010 e 2015 a 2017. O propósito de apresentar aqui o processo de construção de uma política pública para os museus estaduais goianos é relevante diante da constatação de que embora esses museus tenham sob sua guarda coleções representativas sobre a história de Goiás, essas ainda estão silenciadas nas reservas técnicas e/ou integram de forma inadequada os espaços expositivos. Outra constatação é que as novas tecnologias propostas para o Circuito Cultural, se utilizadas na medida certa, estimularão o diálogo das coleções com o público. Programas e Projetos Construídos As re exões sobre o Circuito começaram em 2015, após o convite do secretário de cultura Aguinaldo Caiado Aquino Coelho e, posteriormente, reforçado pela secretária Raquel Teixeira (quando da fusão das secretarias de Educação, Cultura e Esporte) para que a autora assumisse a Superintendência de Patrimônio Histórico e Artístico da Secretaria de Educação Cultura e Esporte (SEDUCE). A proposta trabalhada inicialmente era a formulação de um projeto de requalificação para os museus estaduais goianos. Convidado para integrar a equipe, o arquiteto Marcílio Lemos ampliou a abrangência do projeto, sugerindo e idealizando a criação de um Circuito. A sugestão foi acatada transformando o projeto em Circuito Cultural Praça Dr. Pedro Ludovico Teixeira (Praça Cívica). Fundamentada pelo doutorado, pelos desafios trilhados nos museus estaduais, pela parceria bem sucedida desde 2010 com o arquiteto Marcílio Lemos2, nos projetos de musealização e de revitalização dos museus estaduais e de outros projetos realizados em conjunto no Museu de Arte Contemporânea, a autora, juntamente com Lemos e os arquitetos Solange Santana e Renata Barros, os historiadores Keith Tito e Lucas Fonseca, o engenheiro Carlos Eduardo Dantas e a jornalista Virgínia Daumas (técnicos da Superintendência e do Núcleo de Obras) iniciaram o processo de estudos para formulação do Circuito. Em março de 2016, a educadora e jornalista Cecy Aparecida Curado Moraes3 foi convidada e passou a integrar a equipe. Em maio de 2016 com o projeto delineado, era o momento de apresentá-lo ao governador. Entusiasmado com a ideia de transformar a Praça em espaço exclusivo de preservação e comunicação do patrimônio cultural, o governador aprovou a proposta do Circuito e o integrou a dois programas do 2 Marcílio Lemos é arquiteto pela PUC-Goiás (1992). É Superintendente de Preservação do Patrimônio Cultural do Estado de Goiás. Atua na área de projetos residenciais, comerciais, patrimoniais e expográficos. Foi responsável pelos projetos arquitetônicos do Grupo de Revitalização de Museus do Estado de Goiás (2009-2010), pela readequação do espaço expositivo do Parthenon Center do MAC|Goiás, pela revitalização do Palácio das Esmeralda. Elaborou e coordenou os projetos de restauro do Palácio Conde dos Arcos da Cidade de Goiás, do Museu Ferroviário de Pires do Rio na cidade de Pires do Rio. Atuou no desenvolvimento e execução dos projetos do Centro Cultural Oscar Niemeyer desde sua criação. De 2011 a 201 , atuou como arquiteto responsável pelos projetos de expografia e museografia do Museu de Arte Contemporânea de Goiás. De 2015-2017 foi chefe do Núcleo de Obras e Recuperação do Patrimônio. Cecy Aparecida Curado Moraes é graduada em Filosofia da Educação (PUC Go), Comunicação Social – Publicidade e Jornalismo (UFG|Go) e Arte Educação (EBA|Rio de Janeiro). É especialista em Psicologia da Educação do pre-adolescente (UFG|Go), organizadora e primeira diretora da Escola de Arte Veiga Vale (ITEGO\Basileu França) Tânia Mendonça useus esafios e ossibilidades políticas p blicas para a Plano Plurianual (PPA) do Governo do Estado de Goiás: o Programa de Preservação do Patrimônio Histórico e Artístico Material e Imaterial e o Programa de Reformas, Restaurações, Construções, adequações e aquisições de mobiliário e equipamentos (identificados pelas numerações 2189 e 2382 respectivamente)4. O Circuito Cultural foi criado com o objetivo de promover e garantir a preservação, a musealização e a fruição do patrimônio cultural da Praça Cívica e despertar a comunidade para o sentido de pertencimento daquele espaço, que está na memória do goianiense e que foi, no passado, palco de entretenimento, lazer e sonhos dos que ali viveram e conviveram. Os objetivos específicos são: a) promover a preservação, a pesquisa e a comunicação dos acervos e dos edifícios instalados na Praça Cívica; b) promover a modernização dos espaços expográficos com instrumentais de tecnologia e interatividade; c) promover a informatização do acervo, com a aquisição de equipamentos e implantação de sistema de gestão de acervo e de site para consulta; d) promover a integração das outras instituições culturais privadas, estaduais e municipais localizadas no entorno da Praça Cívica, tais como, o Museu Pedro Ludovico, o Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, a Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, o Instituto Bariani Ortencio, a Academia Goiana de Letras, a Casa Altamiro de Moura Pacheco, a União Brasileira de Escritores; e) promover ações educativas compartilhadas entre os espaços museológicos da Praça Cívica, as escolas públicas e privadas, universidades, associações repre- 37 usealização do atrim nio ultural de oi s sentativas da comunidade; f) promover ações educativas e de comunicação, envolvendo a comunidade acadêmica, técnica e o público em geral, desde o restauro dos edifícios, até a instalação dos espaços expositivos e a conservação dos acervos sob a guarda dos museus localizados na Praça; g) implantar o projeto Canteiro Cultural que prevê visitas mediadas ao canteiro de obras dos edifícios durante todo o processo de construção do Circuito Cultural. Interrompido em junho de 2018 por falta de recursos, o Circuito já se encontrava na fase de licitação dos projetos de musealização e de licitação das obras dos projetos arquitetônicos. Foram quase dois anos dedicados aos estudos, re exões compartilhadas, aos processos de diagnóstico, criação, contato com empresas especializadas, orçamentos, seleção de propostas e formulação dos termos de referência. Os recursos financeiros, autorizados pelo governador em maio de 2016, também já estavam definidos que viriam através do Fundo de Arte e Cultura de Goiás, da Lei Goyazes de Incentivo a Cultura, além de parcerias com a iniciativa privada e com instituições públicas nacionais como o Ministério da Cultura, através do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), dentre outras. O Circuito prevê quatro linhas de ação: a) a musealização (pesquisa, preservação e comunicação) dos acervos e das edificações localizados na Praça, b) o restauro e requalificação de seis edifícios, c) a constituição de corpo técnico efetivo e qualificado e d) a 4 Os programas estão estabelecidos no Plano Plurianual (PPA) 2015-2019. O PPA previsto no artigo 165 da Constituição Federal e regulamentado pelo Decreto 2.829, de 29 de outubro de 1998 é um plano de médio prazo, que estabelece as diretrizes, objetivos e metas a serem seguidos pelo governos federal, estadual e municipal ao longo de um período de quatro anos. 38 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes sustentabilidade/fonte de recursos. Os seis edifícios compreendem a antiga Chefatura de Polícia, previsto para ser ocupada pelo Museu da Cidade; a Procuradoria Geral do Estado, que abrigará o Museu Casa Goyaz; o Palácio das Esmeraldas, que terá o piso térreo musealizado; o Centro Cultural Marieta Telles Machado que abrigará o Museu da Imagem e do Som, o Cine Cultura, o Festival de Cinema e Vídeo Ambiental, o FICA, auditório e sala de espetáculos; o Tribunal de Contas do Estado, que será ocupado pelo Arquivo Histórico Estadual e o Museu Estadual Professor Zoroastro Artiaga que será revitalizado. Os espaços serão interligados pela Alameda Cultural, uma via para o percurso dos visitantes, que perpassará por todos os edifícios. Re etindo sobre a precariedade das ações museológicas dos outros museus estaduais, a equipe do Circuito Cultural analisou uma forma de envolver todos os museus estaduais, mesmo os não localizados na Praça. Dessa re exão, decidiu-se que os projetos museológicos de pesquisa, de documentação, de higienização, de desinfestação e de restauração dos acervos, de exposição, e de comunicação envolvam, não somente os museus, arquivo e bibliotecas situados na Praça Cívica, mas os museus estaduais localizados no entorno da Praça (Museu Pedro Ludovico) e fora dela (Museu de Arte Contemporânea), e ainda os museus estaduais das cidades de Pires do Rio (Museu Ferroviário) e de Goiás (Museu Palácio Conde dos Arcos). A estratégia garantirá que a aplicação de recursos beneficie todas as instituições museológicas estaduais de forma mais racional e mais articulada. Ações de pesquisa, preservação e comunicação No processo de construção do projeto, a equipe assumiu o comprometimento de que os desafios que se depararia pela frente seriam tratados com técnica e profissionalismo, mas, acima de tudo, com sensibilidade para perceber, ouvir, compartilhar e agir com equilíbrio para as tomadas de decisões necessárias. E foi com esse comprometimento que, em outubro de 2015, deu-se início às ações de pesquisa e comunicação sobre a origem dos edifícios e suas ocupações, e o uso da Praça pelos moradores da cidade no decorrer das décadas. O propósito era apresentar a ideia à comunidade para instigá-la à re exão e ao debate, de forma que contribuísse no processo de transformação daquele espaço. Os levantamentos preliminares resultaram na produção de diferentes processos de comunicação, tais como, painéis, exposição, vídeo documentário e uma revista. Foram produzidos grandes painéis, cada um apresentando um edifício e as propostas de transformação, e colocados na Praça Cívica, de frente ao Palácio das Esmeraldas, para sensibilizar e informar as pessoas que por ali circulam sobre o projeto. Reforçando o conteúdo dos painéis, foi também produzida uma revista impressa e um vídeo documentário com os resultados da pesquisa historiográfica. O Museu da Imagem e do Som organizou a exposição Praça Dr. Pedro Ludovico Teixeira Através da Imagem com catálogo sobre o tema. Foram mais de quarenta imagens da Praça no período de 1930 a 1980 registradas por fotógrafos pioneiros. Além da exposição, o MIS|GO, através do Núcleo de Ação Educativa, programou uma série de atividades, entre palestras, visitas mediadas à exposição e oficinas para envolver o visitante com o diálogo e a prática da fotografia. Tânia Mendonça useus esafios e ossibilidades políticas p blicas para a 39 usealização do atrim nio ultural de oi s Fotos 6,7,8 e 9: painéis explicativos instalados na Praça Cívica e no hall do Museu Palácio Conde dos Arcos na cidade de Goiás e capa da Revista Cultural Praça Dr. Pedro Ludovico Teixeira. Fotos: Marcílio Lemos. 40 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes A exposição foi tão bem recebida, que foi transformada em exposição de longa duração e permanece até hoje na sala de exposição do museu. Esse conjunto de ações de pesquisa e de comunicação foi lançado durante um sarau ao ar livre na Praça. Um momento de poesia, música, lembranças e nostalgia que envolveu a todos que ali estiveram. Os depoimentos dos goianienses que viveram a Praça nas diferentes décadas estimulou a equipe a promover novos encontros como aquele. O projeto foi debatido em reuniões na Universidade Federal de Goiás, na Caixa Econômica Federal, na Secretaria de Meio Ambiente, Recursos Hídricos, Infraestrutura, Cidades e Assuntos Metropolitanos (SECIMA), no Ministério da Cultura, no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e no Conselho Estadual de Cultura. O Circuito foi apresentado também para arquitetos e empresários do Fórum Empresarial de Goiás durante seminário promovido pela SECIMA. A agenda previa até o final de 201 que fossem realizadas rodas de conversa com os diferentes segmentos representativos da comunidade. Com o adiamento do projeto, a agenda foi interrompida. Compreendendo as ações de comunicação como as diferentes formas de diálogo com o público e o usuário dos espaços museológicos e compreendendo que de nada adianta as instituições preservarem as riquezas e preciosidades do patrimônio cultural mantendo-as distantes da comunidade, o Circuito Cultural prevê outras formas de diálogo, a saber: exposições Itinerantes nos bairros de Figura 10 - exposição Praça Dr. Pedro Ludovico Teixeira Através da Imagem. Foto: divulgação Circuito. Tânia Mendonça useus esafios e ossibilidades políticas p blicas para a Goiânia e entorno e diferentes regiões do Estado; programas de ação educativa; publicações sistemáticas requalificação da exposição de longa duração do Museu Goiano Professor Zoroastro Artiaga; criação, produção e implantação de uma exposição de longa duração e uma exposição temporária para os museus, garantindo o acesso da comunidade às coleções e aos espaços públicos, de forma que eles se transformem não somente em espaços de guarda, mas, também, de educação, de interação, de construção do conhecimento e de cidadania. Integrados às ações de pesquisa e comunicação, foram desenvolvidos projetos específicos para atender às necessidades de gestão e de preservação dos acervos sob a guarda dos museus – conservação, pesquisa, documentação, informatização e gestão. Nesse sentido, foram delineados os projetos: a) Desinfestação dos acervos e dos edifícios; b) Conservação dos acervos dos museus- higienização, documentação informatizada e digitalização; c) Construção dos Planos Museológicos dos museus; c) Digitalização e informatização em banco de dados do acervo do Arquivo Histórico Estadual; d) Aquisição e instalação de arquivos deslizantes para as reservas técnicas dos museus, das bibliotecas Braille e Pio Vargas e do Arquivo Histórico Estadual. Esses projetos resultaram em termos de referência que, até o início deste ano, encontravam-se em andamento na Superintendência Financeira da Secretaria de Educação, Cultura e Esporte. O Circuito ainda prevê a elaboração da proposta de realização de concurso público para o setor de cultura e patrimônio, 41 usealização do atrim nio ultural de oi s abrangendo as áreas da museologia, conservação e restauro, artes visuais, história, arte-educação, arquivologia, biblioteconomia, arqueologia, antropologia, cargos administrativos, dentre outros; formação e capacitação de profissionais que trabalham nos museus estaduais. uanto ao restauro e requalificação dos edifícios (novo uso), os projetos se encontravam em fase de licitação das obras quando o Circuito foi adiado. Foram elaborados pelo Núcleo de Obras e Recuperação do Patrimônio (hoje Superintendência de Preservação do Patrimônio Cultural) atentando-se para o retorno às características originais do estilo art déco; a requalificação das áreas externas, incluindo anexos e elevadores externos e acoplados ao edifício original para atender à demanda de salas mais amplas e à funcionalidade e modernidade dos espaços museológicos contemporâneos; introdução de elementos internos e externos para atender a todos os parâmetros de acessibilidade e segurança dos edifícios, tais como, rampas de acesso, elevadores internos, portas contra incêndios, dentre outros. Desde o início de 2016, arquitetos e engenheiros do Núcleo de Obras e Recuperação do Patrimônio trabalharam ouvindo os profissionais dos museus e da Superintendência de Patrimônio de forma a atender às necessidades específicas das instituições museológicas cujos edifícios vão ser requalificados: a sede da antiga Chefatura de Polícia, a Procuradoria Geral do Estado de Goiás, o Palácio das Esmeraldas, o Centro Cultural Marieta Telles Machado, o Tribunal de Contas do Estado e o Museu Estadual Professor Zoroastro Artiaga. 42 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Figura 11: Palácio das Esmeraldas terá o piso térreo musealizado. Foto: Mundim. Figura 12: Museu Estadual Professor Zoroastro Artiaga: reserva técnica, laboratório, biblioteca e exposição de longa duração serão revitalizados. Foto: Marcílio Lemos. Tânia Mendonça useus esafios e ossibilidades políticas p blicas para a 43 usealização do atrim nio ultural de oi s Figura 13: Centro Audiovisual Marieta Telles Machado: o espaço abrigará o Museu da Imagem e do Som, o Festival de Cinema e Vídeo Ambiental e o Cine Cultura ampliados e revitalizados. Foto: Marcílio Lemos. Figura 14: sede atual da Procuradoria Geral do Estado será transformada na futura sede do Museu Casa Goyaz e das Bibliotecas Pio Vargas e Braille. Foto: Marcílio Lemos. 44 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Figura 15: antiga sede do Tribunal de Contas do Estado será a futura sede do Centro de Documentação do Estado. Foto: Marcílio Lemos. Figura 16 antiga sede da Chefatura de Polícia abrigará o novo Museu da Cidade. Foto: Marcílio Lemos. Tânia Mendonça useus esafios e ossibilidades políticas p blicas para a Considerações Finais As novas práticas museológicas de pesquisa, de preservação e de comunicação nos levam a considerar que o Circuito Cultural Praça Cívica poderá vir a ser um projeto desafiador para os novos governantes a partir de 2019. Isso porque o conjunto da Praça com os seus edifícios e os acervos musealizados atenderão a uma cidade carente de espaços públicos culturais e ansiosa por ver a sua memória estampada nos acervos musealizados nas salas de exposições, nos seminários, nas apresentações de qualidade e nos jardins oridos da Praça Cívica, que ficaram por décadas silenciados e ofuscados por um caótico estacionamento. E pedimos licença para reproduzir aqui a mesma re exão sobre a musealização dos espaços públicos, baseada nos estudos do museólogo Mário Chagas com a qual concluímos a tese de doutorado. De acordo com Chagas, precisamos entender os museus como espaço de con ito, como campo de tradição e contradição, enfim, como espaço de vida. Chagas (1998), ainda vai mais longe: ele se utiliza da frase há uma gota de sangue em cada poema do escritor modernista Mário de Andrade e traz o mesmo significado para Figura 17 - Praça Cívica antes da retirada do estacionamento. 45 usealização do atrim nio ultural de oi s o museu, parafraseando Andrade e afirmando que há uma gota de sangue em cada museu, pois entende que tanto no poema quanto no museu há um sinal de sangue a lhes conferir uma dimensão especificamente humana. “Admitir a presença de sangue no museu si nifica também aceit lo como arena, como espaço de con ito, como campo de tradição e contradição. Toda a instituição museal apresenta um determinado discurso sobre a realidade. Este discurso, como é natural, não é natural e compõe-se de som e de silêncio, de cheio e de vazio, de presença e de ausência, de lembrança e de esquecimento. A aceitação do museu como arena e campo de luta está bastante distante da ideia de espaço neutro e apolítico de celebração da memória daqueles que prematura e temporariamente alardeiam os louros da vitória.“ (Chagas, 1998, p. 19). Entender o museu como espaço de luta, onde as veias pulsam e o sangue corre é também entender que esse campo de atuação e essa nova realidade contemporânea exige um fazer museológico em constante processo de transformação e centrado na relação homem-patrimônio integral como o referencial para o 46 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes exercício da cidadania e do desenvolvimento social. Se a relação homem-patrimônio integral está em toda a parte, então, as veias pulsam e o sangue corre não somente no restrito espaço dos museus, mas também fora deles. As ações museológicas de pesquisa, preservação e comunicação acontecem hoje em locais os mais variados e inusitados, seja nos bairros, nas ruas, nas escolas e nas praças. E dessa forma, a instituição museu está sendo permanentemente repensada, avaliada e reconstruída. Nesse contexto, o papel do museólogo precisa também ser repensado, pois o seu campo de atuação não está restrito ao espaço físico museu. Segundo M. C. T. M. Santos (1999a), ele se faz necessário em qualquer contexto social: “Mais do que nunca, a presença desse profissional se faz necess ria, em qualquer contexto social, sobretudo se considerarmos a necessidade urgente de buscar um desenvolvimento que não deve ser sustentado em um modelo pautado na racionalização tecnológica, tomando como um objetivo que se esgota nele mesmo e por ele mesmo.” (M. C. T. M. Santos, 1999a, p. 13). Durante os vinte anos de vivência profissional na área da museologia e, especialmente, nos estudos de doutoramento em busca de respostas para a construção/reconstrução de museus na contemporaneidade, uma coisa está clara: temos a certeza do museu que não queremos e com quem não queremos trabalhar. E temos a alegria de constatar, que existem dezenas de profissionais em Goiás, no Brasil e no mundo que querem fazer um museu de acordo com as nossas - minha e dos outros - aspirações. Um museu de questionamentos, concebido sobre os princípios da sociomuseologia – crítico, interdisciplinar, com conotação social, com princípios e compromissos de ação e de transformação. Um museu como fator de promoção à integração e à coesão social, conforme destacado na Recomendação da UNESCO referente à Proteção e Promoção dos Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade nos parágrafos 16 e 17, documento aprovado em 17 de novembro de 2015 pela Conferência Geral em sua 38ª sessão: 16. Os Estados-membros são encorajados a apoiar a função social dos museus, conforme destacado pela Declaração de Santiago do Chile de 1972. Os museus são cada vez mais vistos, em todos os países, como tendo um papel-chave na sociedade e como fator de promoção à integração e à coesão social. Nesse sentido, podem ajudar as comunidades a enfrentar mudanças profundas na sociedade, incluindo aquelas que levam ao crescimento da desigualdade e à quebra de laços sociais. 17. Museus são espaços públicos vitais que devem abordar o conjunto da sociedade e podem, portanto, desempenhar um importante papel no desenvolvimento de laços sociais e de coesão social, na construção da cidadania e na re e ão sobre identidades coletivas. Os museus devem ser lugares abertos a todos e comprometidos com o acesso físico e o acesso à cultura para todos, incluindo os grupos vulneráveis. Eles podem constituir espaços para a re e ão e o debate sobre temas históricos, sociais, culturais e científicos. Os museus também devem promover o respeito aos direitos humanos e à igualdade de gênero. Os Estados-membros devem encorajar os museus a cumprir todos esses papéis.” (UNESCO, 17 nov.2015.) Considerando o compromisso social e político do museólogo no interior do museu e fora dele, e considerando que as ações museológicas se processam na relação homem-patrimônio integral, encerramos nossa re exão na expectativa de estimular os profissionais goianos a suscitar o debate, a reorientar o percurso, a (re)construir o Circuito Cultural e a dar sentido à vida. Tânia Mendonça useus esafios e ossibilidades políticas p blicas para a 47 usealização do atrim nio ultural de oi s Referências CHAGAS, M. de S. (2002). Memória e poder: dois movimentos. In: Cadernos de Sociomuseologia (nº 19, pp. 35-67). Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. CHAGAS, M. (1998). Há uma gota de sangue em cada museu: a ótica museológica de Mário de Andrade. In: Caderno de Sociomuseologia nº 13. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias [Versão Eletrônica]. Disponível em: http://pt.scribd.com/rcantarelli_2/d/60858485-CHAGAS-Mario-Ha-uma-gota-de-Sangue-em-cada-museu-Cadernos-13-1998. Acesso em: 10 agos. 2018. DAMÁZIO, Malu. Novo espaço: Circuito Liberdade terá museu focado na convergência cultural. 4 jul 2018. Disponível em: http://hojeemdia.com.br/almanaque/novo-espa%C3%A7o-circuito-liberdade-ter%C3%A1-museu-focado-na-converg%C3%AAncia-cultural-1.636871.Acesso em 12agos.2018. ENDON A, nia . .A de. useus da Imagem e do Som: o desafio do rocesso de museali a o dos acervos audiovisuais no Brasil, . Acesso em agos. . Dis onível em: tt : .museologia ortugal.net files upload/doutoramentos/tania_mendonca.pdf REIS, Sérgio R. Pesquisa revela que Circuito Cultural da Praça da Liberdade ainda é pouco conhecido em BH. Apenas um terço dos entrevistados acertou o nome do local. Público cobra maior divulgação sobre as atividades desenvolvidas nos espaços. 27 fev.2013. Disponível em https://www.uai.com.br/app/noticia/e-mais/2013/02/27/noticia mais,140699/pesquisa-revela-que-circuito-cultural-da-praca-da-liberdade-ainda-e-po.shtmlos. Acesso em: 14 agos.2018. SAN OS, . . . . ( ). Re e es museol gicas: camin os de vida. Lis oa: Ismag. Sociomuseologia. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. SAN OS, . . . . ( a). A forma o do muse logo e o seu cam o de atua Congresso Nacional de Museus, Rio de Janeiro, Brasil. entro de Estudos de o. e to a resentado no XV SANTOS, M. C. T. M. (1999b). Estratégias museais e patrimoniais contribuindo para a qualidade de vida dos cidad os: diversas formas de museali a o. e to a resentado no VIII Atelier do ovimento Internacional da Nova useologia, atrim nio e Juventude desafios ara o século XXI, Salvador, Brasil. SAN OS, . . . . ( c). rocesso museol gico: critérios de e clus o. e to a resentado na II Semana de Museus da USP, São Paulo, Brasil. SAN OS, . . . . ( d). Re e es so re a Nova useologia. e to a resentado no urso de Es eciali a em Museologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo, Brasil. o NES O. Recomenda o referente à rote o e romo o dos useus e ole es, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade Aprovada em 17 de novembro de 2015 pela Conferência Geral da UNESCO em sua 38ª sessão. Disponívelemhttps://ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/1097_arecomenda%E7%E3ounesco2015.pdf, acessado em 01 set.2018. 48 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Abertura do “Ciclo de Estudos: O Museu e seus Saberes” Foto: Equipe MAC - GO. Manuelina Maria Duarte Cândido Apontamentos sobre a responsabilidade social dos museus: ecomuseus e museus comunitários 49 Apontamentos sobre a responsabilidade social dos museus: ecomuseus e museus comunitários Manuelina Maria Duarte Cândido1 Introdução Os ecomuseus nascem na França em paralelo ao surgimento da Nova Museologia, a partir do final da 2a Guerra Mundial, sendo considerado marco fundamental o anúncio público na Conferência do Conselho Internacional de Museus (ICOM) de 1971, em Paris e Grenoble, do termo cunhado por Hugues de Varine. Esta proclamação pioneira, feita por Robert Poujade, então Ministro do Meio Ambiente da França, não denota, segundo Rosemarie Lucas (in Duarte Cândido e Ruoso, 2015), o início da experimentação. A autora propõe recuá-lo aos encontros em Lurs-en-Provence, em 1966, que marcaram o aparecimento dos parques naturais regionais, nos quais Georges Henri Rivière impulsionou a preservação do patrimônio rural por meio de museus ao ar livre, em conexão com a existência dos parques naturais regionais: “Foi então que teve a visão de uma museografia dinâmica, orientada para o futuro, colocando uma comunidade em relação com o seu território” (Lucas, idem, p. 23). Diversos autores identificam na iniciativa de G R uma referência às experiências escandinavas que ele havia visitado (Gorgus, 2003; Davis, 1999; Lucas, 2015), especialmente o Skansen, museu ao ar livre de Estocolmo, Suécia, que tambémse preocupava com a reconstituição dos modos de vida, especialmente do trabalho rural e doméstico. Ecomuseus pioneiros como o de Ouessant e o de Le Creusot-Monceau in uenciaram o surgimento de outros, hoje espraiados em todo o território francês, que conta com cerca de seis dezenas deles, organizados em uma Federação dos Ecomuseus e dos Museus de Sociedade. Estes modelos e ideias tiveram grande circulação nas décadas de 1960 e 1970, ganhando maior acento social na América Latina, a partir da Mesa Redonda de Santiago do Chile, de 1972, sobre “O Papel do Museu na América Latina”, de que Varine foi organizador. Além de ser cunhado neste momento o conceito de museu integrado, toda a formatação do evento, o primeiro da UNESCO a ser realizado na língua local, espanhol, em detrimento das línguas oficiais do organismo, teve também caráter inovador por colocar os 1 Licenciada em História (UECE, 1997), especialista em Museologia (USP, 2000), mestre em Arqueologia (USP, 2004), doutora em Museologia (ULHT, 2012), Pós-doutora em Museologia (Sorbonne Nouvelle, 2015). Professora de Museologia da FCS/UFG. 50 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes próprios latino-americanos como protagonistas e trazer para as conferências principais profissionais de áreas externas aos museus, como o urbanismo. Desta forma, a Mesa de Santiago pode levar os profissionais de museus ali reunidos a olharem para fora de suas instituições, pensando os museus em seus contextos sociais, políticos, demográficos e econômicos (Duarte Cândido, 2003), de tal forma que ganhou notoriedade como o momento seminal de discussão da função social dos museus. Responsabilidades sociais e ambientais: novos embates para os museus De acordo com Vial (2015, p. 88), o primeiro encontro sobre museus e meio ambiente foi realizado no mesmo ano da Declaração sobre Ambiente Humano, mais conhecida como Declaração de Estocolmo (1972)2 e já no segundo encontro, no Zâmbia, Peter van Mensch, conferencista da abertura, problematizou o objeto museológico e seu alcance, indicando a possibilidade de que ele abrangesse não somente coleções mas toda a extensão do patrimônio cultural e natural. Neste caso, a relação entre paisagem e museu extrapola a possibilidade de tomá-la como tema de um museu, chegando à própria paisagem como museu. Esta abordagem demonstra como a paisagem cultural é de alguma forma uma categoria já com largo histórico no campo da Museologia, mesmo que ainda não assim denominada (vide Duarte Cândido, 2016). Vial (2015, p 08) assinala que os ecomuseus “são um instrumento de gestão do patrimônio integrado que só se realiza de fato, ao ser apropriado por movimentos sociais previa- mente organizados que veem na identificação e gestão do patrimônio um instrumento a mais de ação política, de reforço de identidades e de luta.” Neste sentido, assim como a autora, realçamos o papel da América Latina e do Brasil, especialmente após a Constituição Federal de 1988, que valorizou a diversidade da cultura brasileira e a cidadania, e à (mesmo que tardia) forte disseminação aqui dos princípios da Mesa Redonda de Santiago do Chile, no fortalecimento do modelo e da realização de experimentações que ajudam ainda hoje e cada vez mais a problematizar a transformar o modo de pensar e fazer museus. Mas já no começo da década de 1980 as experiências da Nova Museologia realizaram seus embates e demarcações de espaços. Uma tentativa rechaçada foi a criação, na Conferência Geral do ICOM em Londres, 1983, de um Comitê para abrigar as novas tipologias de museus. Mas o Conselho não reconheceu as tipologias propostas como museus e uma dissidência só bem mais tarde conciliada fez surgir o Movimento Internacional para uma Nova Museologia (MINOM), incialmente em um workshop em Quebéc (Canadá) em 1984, com presença de 15 países, predominantemente de franceses, canadenses e portugueses, e mais tarde com a fundação formalizada em Lisboa, 1985. Anos depois o ICOM acolheria o MINOM como uma organização afiliada. Momentos como os já mencionados (1972, 1984, 1985) e mesmo a Declaração de Caracas (1992), que foi basicamente uma celebração dos 20 anos de Santiago e não trouxe grandes transformações além de uma qualificação do desenvolvimento pretendido pelos museus como desenvolvimento sustentável e a afirmação dos museus como canais de comunicação, são reiteradamente lembrados por diversos autores como Araújo e Bruno (1995). 2 A revista Museum dedicou ao tema Museums and environment seu volume XXV, de 1973, disponível online em http:// unesdoc.unesco.org/images/0012/001273/127361eo.pdf Manuelina Maria Duarte Cândido Apontamentos sobre a responsabilidade social dos museus: ecomuseus e museus comunitários Participantes do encontro do MINOM em Québéc, 1984. Fonte: http://www.minom-icom.net/about-us4 Divulgação do encontro do MINOM em Québéc, 1984. Fonte: http://www.minom-icom.net/about-us 51 52 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Para o Brasil, particularmente, é necessário destacar a realização, durante a ECO-92, no Rio de Janeiro, do I Encontro Internacional de Ecomuseus em 1992, que inclusive vai culminar, no que tange à então chamada Nova Museologia, em uma intensificação do “trânsito entre portugueses e brasileiros, com intercâmbio de exposições, curadorias partilhadas, eventos comuns e outras iniciativas bilaterais” (Duarte Cândido e Ruoso, 2012, p. 45) Figura 3: Anais do 1o Encontro Internacional de Ecomuseus, realizado em 1992 que viriam a culminar na construção das bases da Museologia Social e da Sociomuseologia (ver sobre isto Moutinho e Primo, 2012; Chagas e Gouveia, 2015; Tolentino, 2016, entre outros) e no reconhecimento do primeiro ecomuseu brasileiro originário de um processo de base comunitária, hoje denominado Ecomuseu do Quarteirão Cultural do Matadouro3. Esta série de encontros chegou, em Juiz de Fora, 2015, à quinta edição, tendo juntado aos ecomuseus os museus comunitários desde 20044, o que assinala uma reorientação programática, com ênfase em um aspecto (as pessoas), ou ainda, um desuso por interesse político do termo ecomuseu, sempre muito associado à origem francesa. Cabe lembrar que apesar da confusão ocorrer muitas vezes entre ecomuseu e um museu do meio ambiente, em sua concepção ele nunca prescindiu de uma população que viva naquele território e produza seu patrimônio, inclusive entendendo o elemento humano como parte desta ecologia. Os ecomuseus, museus de território e outros tipos de museus locais demonstram grande potencial para aproveitamento dos recursos de um território tais como estruturas, pessoas, saberes, bens materiais e virtuais (Varine, 2008) para seu desenvolvimento. Sublinho o alerta de Vial (2015, p. 56) “O perigo reside na tentação de transformar esses museus em locais de compensações de determinadas perdas, simbolicamente ‘recuperando’ unidades ou se transformando em ‘espelhos’ nos quais são projetados autoimagens já atribuídas a si e re etidas de forma sedutora.” 3 Há uma controvérsia em relação à instituição criada pela Prefeitura do Rio de Janeiro no ano 2000 à revelia do grupo comunitário à frente do Núcleo Orientação e Pesquisa Histórica (NOPH) e do ecomuseu comunitário desde os anos 1990. Ver http://www.ecomuseusantacruz.com.br e http://www.quarteirao.com.br/oquee.html 4 Neste ano é realizado o III Encontro Internacional de Ecomuseus e Museus Comunitários juntamente com o X Atelier Internacional do MINOM, em setembro de 2004, em Santa Cruz, no Rio de Janeiro, em que ocorre a fundação da ABREMC – Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitário. Manuelina Maria Duarte Cândido Apontamentos sobre a responsabilidade social dos museus: ecomuseus e museus comunitários No caso do Ecomuseu do Creusot, Varine afirma que a contrário do perfil dos ecomuseus que o seguiriam, sua criação não ocorreu em um momento de falência econômica, mas quando ainda eram exportados produtos e importada mão-de-obra. Mas o desejo de percorrer um caminho não convencional para a implantação do museu solicitada pelo gestor local. As ideias e a decisão de não partir da formação de uma coleção, levaram o grupo inicial formado por ele mesmo, Marcel Evrard e Joseph (Jo) Lyonnet a estabelecer novas práticas e estratégias, como as “enquetes-expositions”5 e “exposições evolutivas” que privilegiavam o diálogo com os detentores das memórias locais e reuniam temporariamente objetos representativos destas memórias que eram documentados, expostos, e devolvidos após a exposição (Varine, 2015, p. 30 e p. 34). Na sequência, muitas iniciativas e experimentações foram constituindo os ecomuseus e museus comunitários por todo o mundo, notadamente no México, Canadá, Portugal, Brasil e, mais recentemente, Itália e Japão. Panorama atual da matéria Aos conceitos e práticas já presentes nas primeiras experiências, tais como caminhadas de descoberta, percursos de interpretação do território, organização de bancos de dados 53 sobre referências patrimoniais, exposições evolutivas, animação cultural, juntaram-se outras temáticas como turismo comunitário, mapa de comunidade6 e outras formas de cartografias, inventário participativo, constituição de redes de colaboração, etc. No caso brasileiro há ainda a inventiva modalidade dos Pontos de Memória: constituídos a partir da experiência pioneira de 12 comunidades e identificados pelo Instituto Brasileiro de Museus a partir de 2009, estes pontos já chegaram a pelo menos três centenas premiados e cerca de 600 mapeados, inclusive alguns pontos de memórias de comunidades brasileiras habitando no exterior. Uma característica marcante dos ecomuseus e especialmente dos museus comunitários no Brasil, bem como dos Pontos de Memória, é a inserção das ações pela via da memória em um campo de lutas contra desigualdade social e intolerância que traz singularidades a estas práticas frente a algumas experiências estrangeiras. Por outro lado, os Pontos de Memória não necessariamente se institucionalizam como museus. Nossas comunidades organizadas em torno de ecomuseus, museus comunitários e Pontos de Memória têm clareza dos benefícios de se articularem e fortalecerem suas atuações por meio de redes e associações. A Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários (ABREMC), já mencionada, ocupa inclusive 5 Que eram, segundo Varine (2015, p. 63), sua maneira de fazer o inventários das gentes e dos patrimônios do território. 6Trata-se duma ferramenta através da qual os habitantes dum determinado lugar têm a possibilidade de representar o seu património, a paisagem, os saberes em que se reconhecem e querem transmitir às novas gerações. (www.mappadicomunita.it). Nele se evidência como a comunidade local se vê, se entende, com atribui valor ao seu próprio território, às suas lembranças, as suas transformações, à sua realidade atual e de que forma ela quer converter no futuro. Construída através de uma cartografia ou qualquer outro meio de representação, é produzida e elaborada para que a população nela se possa reconhecer. Em Puglia, os mapas converteram-se em instrumentos de produção social de paisagem, previstos no novo Plano Paisagístico Territorial Regional (PPTR). Em áreas territoriais homogéneas eles converteram-se em instrumentos para a planificação e o desenvolvimento local ( ).” (vide: Documento estratégico dos ecomuseus italianos disponível online em português no link https://globalherit.hypotheses.org/5124) 54 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes o assento no Comitê Gestor do Sistema Brasileiro de Museus reservado a entidade representativa dos ecomuseus e museus comunitários. As redes territoriais ou temáticas organizadas em torno da memória e da Museologia Social carregam as vantagens e desvantagens da informalidade e eventualmente recorrem ao já denominado “CNPJ amigo” para participarem de alguns editais que o exigem. No V Encontro Internacional de Ecomuseus e Museus Comunitários (V EIEMC), realizado em 2015 em Juiz de Fora, foi possível perceber a pujança do movimento, com a presença de grupos de norte a sul do Brasil envolvidos com processos de musealização de base comunitária, e ainda visitar in loco comunidades que se inspiram nestas experiências com vista a constituírem novos museus comunitários. Além disso estiveram presentes representantes de Moçambique interessados em constituir museus comunitários naquele país.Com a presença de Alberto Garlandini, ex-Presidente do Comitê Italiano do Conselho Internacional de Museus (ICOM) e coordenador da 24a Conferência Geral do ICOM em Milão, foi possível conhecer um pouco da experiência italiana dos ecomuseus e a pioneira iniciativa de proteção legal para ecomuseus e museus comunitários. Vale lembrar que a Itália representa um contexto singular na atualidade, de multiplicação do número de ecomuseus, que já ultrapassa uma centena e está em vias de se constituírem em uma rede nacional. Garlandini esteve no V EIEMC também com uma missão específica de convidar os ecomuseus, museus comunitários e Pontos de Memória brasileiros a se fazerem presentes no Fórum dos Ecomuseus e Museus Comunitários, a realizar-se durante a Conferência Geral do ICOM, em julho de 2016. Participantes do V Encontro Internacional de Ecomuseus e Museus Comunitários (2015), visitando comunidade nos arredores de Juiz de Fora com potencial para museu comunitário. Fonte: arquivo da autora Manuelina Maria Duarte Cândido Apontamentos sobre a responsabilidade social dos museus: ecomuseus e museus comunitários Este ano, tendo como tema para a Conferência Geral do ICOM e também para o Dia Internacional dos Museus “Museus e paisagens culturais”, suscita para alguns, como para nós, uma retomada da noção de patrimônio integrado, visto que o conceito de paisagem cultural pretende superar as dicotomias entre tangível e intangível, natural e cultural, envolvendo estes diferentes aspectos do patrimônio. Desta forma, quem maneja os conceitos da Museologia compreende que há um espelhamento aí do que o mundo dos museus vem discutindo pelo menos desde a década de 1970, especialmente a partir das experiências dos ecomuseus, que representam processos de musealização das diferentes referências patrimoniais identificadas em um território de uma maneira integrada, incluída a própria preservação da população, dos seus saberes e fazeres. Mesmo que com outras nomenclaturas, as práticas de musealização nos ecomuseus e museus comunitários sempre recorreram a mecanismos participativos de identificação e gestão do patrimônio nestes territórios, adotando de maneira marcante nos últimos anos a denominação Inventários Participativos. Cabe lembrar que no Brasil, embora por razões institucionais e políticas tenha havido separação entre os órgãos federais responsáveis pelo patrimônio (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN) e pelos museus (Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM), ambos têm buscado aparar arestas e sombreamentos por meio do trabalho conjunto em aspectos indissociáveis, e uma das frentes de colaboração é justamente na unificação de glossários e metodologias para a realização 55 dos Inventários Participativos. Outra iniciativa que merece realce no âmbito dos ecomuseus e museus comunitários brasileiros é a realização de seu mapeamento pela ABREMC, de maneira colaborativa. Em paralelo, o Instituto Brasileiro de Museus investe no mapeamento dos Pontos de Memória, além de ter realizado a publicação de um livro originado a partir da produção dos próprios Pontos de Memória pioneiros sobre as metodologias que envolvem suas práticas na Museologia Social (Ibram, 2016). Registramos ainda que o Brasil sedia, em agosto de 2016, a XXVII Conferência Internacional do MINOM, na comunidade ribeirinha de Nazaré, em Rondônia. O Fórum dos Ecomuseus e Museus Comunitários e o roteiro pré-Conferência do ICOM: conhecendo ecomuseus italianos O Fórum dos Ecomuseus e Museus Comunitários ocorreu dias 6 e 8 de julho durante a Conferência Geral do ICOM, em Milão. Reuniu inúmeros países, sendo aberto a todos os participantes do ICOM interessados pela Nova Museologia e pela Museologia Comunitária. Houve a apresentação dos ecomuseus italianos e da nova rede nacional de ecomuseus e, em paralelo, exposição de pôsteres dos participantes estrangeiros. Na programação o Brasil esteve representado com vários pôsteres e uma fala feita por Yara Mattos em nome da ABREMC. Além disso, Bruno Brulon, na qualidade de Vice-Presidente do Comitê para Museologia do ICOM (ICOFOM)7, foi convidado para uma fala. Hugues de Varine apresentou ainda o estado das articulações de uma rede inte- 7 Nesta Conferência do ICOM o MINOM realizou suas sessões em conjunto com dois Comitês Internacionais, o ICOFOM e o CAMOC, Comitê para Museus de Cidade. Desta forma, questões comuns aos três conjuntos de profissionais puderam ser discutidas. 56 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes ramericana de museus indígenas que, malgrado as barreiras linguísticas, tem buscado associar experiências especialmente do Brasil, Canadá e México, com pelo menos meia dúzia de encontros já realizados em meio digital. No dia 8 de julho os participantes do Fórum realizaram juntos visita aos ecomuseus da área metropolitana de Milão e da zona dos lagos sub-alpinos. A programação pretendeu também criar possibilidades de colaboração bilaterais ou multilaterais e intercâmbio entre os profissionais, ecomuseus e museus comunitários ali presentes. Além disso, antes e após a Conferência foi organizada uma gama de oferta de visitas a ecomuseus italianos considerados como boas práticas ecomuseais, que podia ser agendada com aqueles manifestamente integrados ao roteiro pré-Conferência no período de 7 de junho a 2 de julho ou após, de 11 de julho a 15 de julho. Entre as diversas possibilidades de visitas propostas, tivemos a oportunidade de fazer contato e visitar o Ecomuseo del Sale e del Mare di Cervia e o Ecomuseo Valli Oglio-Chies Figura 5: Museu do Sal. Fonte: arquivo da autora Ecomuseo del Sale e del Mare di Cervia O Ecomuseu do Sal e do Mar, na cidade de Cervia, região da Emilia Romagna, está integrado ao turismo local, por meio da abordagem de descoberta do território em diferentes percursos que valorizam arte, história, natureza, personagens e tradições. São particularmente indicados os roteiros ciclísticos, havendo ainda opções a pé, a cavalo, entre outros. A partir da Torre San Michele, mirante para cidade e em que se encontra o centro de orientação aos turistas (no qual trabalha a coordenadora do ecomuseu, Giorgia Cecchi), passa-se à visitação que inclui um espaço mantido pela associação de salineiros: o Museu do Sal. Seu funcionamento é inteiramente a cargo de voluntários, salineiros aposentados e seus familiares, pessoas inteiramente devotadas à preservação da história de seus saberes e fazeres tradicionais. A associação conta com cerca de 90 pessoas em regime de voluntariado e a visita ao museu é gratuita. A prefeitura colaborou com a Manuelina Maria Duarte Cândido Apontamentos sobre a responsabilidade social dos museus: ecomuseus e museus comunitários cessão da edificação, um antigo armazém de sal bem localizado no centro de Cervia, e com a entrega da exposição de longa duração. Seguindo o roteiro programado pela coordenação do ecomuseu, no segundo dia visitamos em sua companhia a marina, no local de chegada das embarcações de pesca e mercado dos pescadores, onde é possível também disfrutar a gastronomia local no restaurante dos pescadores. Esta visita à marina permitiu o diálogo com «facilitadores» do ecomuseu, que são voluntários que passaram por uma capacitação oferecida pelo ecomuseu e que estão aptos a fazerem esta mediação com o púbico em nome do ecomuseu. Em geral são pessoas com ligação afetiva com a cidade, interessadas em manter vivas memórias locais, como é o caso do pescador proprietário da última embarcação tradicional. A atuação dos facilitadores é diferenciada dos voluntários da associação que mantém o Museu do Sal, pois estes não passaram necessariamente pelo curso de facilitadores e fazem a mediação Figura 6: Salina de Cervia. Fonte: arquivo da autora 57 somente no espaço do museu, assim como do trabalho dos técnicos das áreas de Biologia e de Ecologia contratados por temporada para receber o público no Centro de Interpretação e leva-lo à salina. No terceiro dia realizamos a visita à Casa das Borboletas e à área denominada Pineta, uma vasta área verde adequada para a prática de ciclismo e caminhadas, além de circular pela área denominada Milano Marittma, com suas edificações no estilo iberty. O ecomuseu é recente, com pouco mais de quatro anos de existência, e partiu da iniciativa da administração municipal. Como desafio principal foi indicada a integração dos diferentes roteiros de forma que ecomuseu comunique melhor ao público e ao morador local que é constituído pelos diferentes espaços e percursos no território. Além deste, como é comum em todos os processos desta natureza, a dificuldade de aproximar novos facilitadores e voluntários para o trabalho de valorização do território. 58 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Ecomuseo Valli Oglio-Chiese Ao contrário do anterior, este ecomuseu existe há mais de três décadas. Sua criação está ligada à Associazione Ecologica Museo Oglio Chiese, presidida inicialmente por Fausto Scalvini e neste momento por Franco Testa. Seu objetivo está ligado ao reconhecimento regional, notadamente dedicado aos dois rios que delimitam o vale onde se assenta a região: Oglio e Chiese. Diante do processo de industrialização e aceleração das transformações dos meios de produção e estrutura social, a associação se interessou em trabalhar com as questões identitárias, memórias e tradições, de onde surgiu a ideia do ecomuseu. Sediado na cidade de Canneto Sull’Oglio, sua caracterização envolve um patrimônio espalhado pelo território organizado em torno de percursos temáticos com ênfase seja em aspectos ambientais, produtivos ou etnográficos, além de uma forte programação didática. Mais recentemente, para adequar-se à legislação que reconhece os ecomuseus a partir da existência de um Centro de Documentação, foi criado o Centro di Documentazione dell’Ecomuseo delle Valli Oglio-Chiese. Aos poucos o ecomuseu constituiu uma coleção expressiva que vai de animais taxidermizados a material arqueológico, passando por instrumentos de trabalho agrícola e doméstico, indumentária, além de brinquedos, coleção esta iniciada a partir de um núcleo de bonecas de porcelana que registram uma produção tradicional da Figura 7: Centro di Documentazione dell’Ecomuseo delle Valli Oglio-Chiese. Fonte: arquivo da autora Manuelina Maria Duarte Cândido Apontamentos sobre a responsabilidade social dos museus: ecomuseus e museus comunitários região já abandonada. Uma especificidade é que os objetos expostos e apresentados pelos voluntários que compõem a associação, são completamente disponíveis para manipulação e demonstração de seus usos. Este ecomuseu possui uma impressionante produção bibliográfica, articulando a publicação de pelo menos um livro temático sobre cada uma das salas da exposição de longa duração, além de outras resultantes de pesquisas com a população local sobre gastronomia, brincadeiras tradicionais, ervas comestíveis, entre outros temas. As publicações também abordam diversos aspectos do “vivaismo”, o cultivo em viveiros de plantas ornamentais que são depois comercializadas 59 para as casas do setor, atividade fundamental na economia local. O Ecomuseu faz parte de uma rede regional de ecomuseus da Lombardia. Somente esta região reúne 24 ecomuseus, como se pode verificar em http: .ecomuseoogliochiese. it/pag_presentazioni2.htm. Há um forte componente de nostalgia entre os integrantes da associação que criou e mantém o ecomuseu. Neste caso, compreende-se que as motivações que levaram à sua criação difere da maior parte dos museus comunitários brasileiros, pois o componente do empoderamento da comunidade diante de enfrentamentos políticos não é elemento fundamental. Figura 8: Viveiros do Vale Oglio-Chiese. Fonte: arquivo da autora 60 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Referências i io ráficas: ARAUJO, Marcelo Mattos e BRUNO, Cristina (Orgs.). A memória do pensamento museológico contemporâneo: documentos e depoimentos. São Paulo: ICOM Brasil, 1995. Disponível online em http://www.icom.org.br/ mem%C3%B3ria%20do%20pensamento%20museol%C3%B3gico4.pdf Acesso em 08 de abril de 2011. BARBUY, Heloísa. “A conformação dos ecomuseus : elementos para a compreensão e análise” in: Anais do Museu Paulista – História e cultura material. Nova Série, v. 3. São Paulo, jan./dez. 1995. p. 209-236. CHAGAS, Mário e GOUVEIA, Inês (orgs.). Cadernos do Ceom, ano 27, n. 41, dezembro de 2014 DAVIS, Peter. Ecomuseums – A sense of place. London, New York: Leicester University Press, 1999. (Leicester Museum Studies) DUARTE C NDIDO, Manuelina Maria. Ondas do pensamento museológico brasileiro. Lisboa: ULHT, 2003. (Cadernos de Sociomuseologia, 20) D AR E NDIDO, anuelina aria. “O desafio de museali ar a aisagem cultural”. In: Revista useu. Rio de Janeiro: Clube de Ideias. Publicado em 18 de maio de 2016. Disponível online em http://www.revistamuseu.com. r site inde . r artigos de maio o desafio de museali ar a aisagem cultural. DUARTE C NDIDO, Manuelina Maria e RUOSO, Carolina. Museologia no Brasil e em Portugal: alguns atores e ideias em circulação. In: Anais do Museu Histórico Nacional. V. 44. Rio de Janeiro: MHN, 2012. p. 33-52. ENCONTRO INTERNACIONAL DE ECOMUSEUS, 1. Anais. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura: Printel, 1992. GORGUS, Nina. Le magicien des vitrines. Paris: Fondation Maison des Sciences de l’Homme, 2003. HAUENSCHILD, Andrea. Claims and reality of New Museology: case studies in Canada, the United States and Mexico. Hamburgo: s. ed., 1988. (Tese de doutorado) Disponível online em http://museumstudies.si.edu/ claims2000.htm, acesso em 11/07/2014 INSTITUTO Brasileiro de Museus [IBRAM]. Pontos de Memória: metodologias e práticas em Museologia Social. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2016. LUCAS, Rosemarie. “A origem do ecomuseu nos parques naturais” in: DUARTE C NDIDO, Manuelina Duarte e RUOSO, Carolina. Museus e patrimônio: experiências e devires. Recife: Editora Massangana, 2015. MOUTINHO, Mário; PRIMO, Judite. “O ensino da museologia na perspectiva da sociomuseologia” in: COMISSÃO Nacional Portuguesa do ICOM. Atas do VI Encontro de Museus de Países e comunidades de Lingua Portuguesa. Lisboa, 2002. p. 283-287 TOLENTINO, Átila Bezerra. “Museologia social: apontamentos históricos e conceituais” in: Cardernos de Sociomuseologia, Nova Série, n. 8, 2016. p. 21-44. TRAMPE JUNIOR, Alan; DOS SANTOS, Paula Assunção (Orgs.) Mesa Redonda sobre la Importancia e el Desarrollo de los Museos en el Mundo Contemporáneo: Mesa Redonda de Santiago de Chile, 1972. Brasília: Ibram/ MinC; Programa Ibermuseos, 2012. VARINE, Hugues de. “Património e educação popular”. In: O direito de aprender, 2008. Disponível online em http://www.direitodeaprender.com.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=194&Itemid=30, acesso em 02/05/2009. VARINE, Hugues. Petites histoires vécues: mes aventures à l’Ecomusée de la Communauté urbaine Le Creusot-Montceau (1971-2014). S.l.: s.ed., 2015. VIAL, Andrea. atrim nio integrado e a r tica museol gica. S o aulo: niversidade de S o aulo, aculdade de ilosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, 2015. (Tese de doutorado) Yussef Daibert Salomão de Campos Patrimônio e Políticas Públicas 61 Patrimônio e Políticas Públicas Yussef Daibert Salomão de Campos1 Introdução No dia 24 de março de 2017 proferi uma palestra, com o título acima, no “Ciclo de Estudos: o Museu e seus saberes”, a convite do Núcleo de Ação Educativa do Museu de Arte Contemporânea de Goiás – MAC, a quem agradeço. E é sobre ele que passo a tratar agora. A partir do tema “patrimônio e políticas públicas”, dividi minha fala em três partes: patrimônio como expressão política da memória, como introdução; abrangências do patrimônio: local, regional, nacional e mundial; e a perversidade do patrimônio, em conclusão. A primeira delas me possibilitou demonstrar, com o auxílio das perspectivas teóricas da professora Dra. Maria Letícia Mazzuchi Ferreira, como é imponderável pensar patrimônio sem pensar em gestão, por parte do Estado, da/e pela memória coletiva. Na segunda, intentei propor como essa gestão atrela-se às diversas ressonâncias das demandas por reconhecimento da identidade social; e, por último, elaborei questionamentos e problematizações para apresentar o patrimônio como causa de consequências que podem ter efeitos deletérios em uma determinada comunidade, até mesmo em uma nação. Então, vejamos. Patrimônio como expressão política da memória A Memória, encarnada na mitologia grega por Mnemósine, possui íntima relação com o poder e a História. Em uma ação movida por vingança, Zeus destrona Cronos (tempo), seu pai, e torna-se a suprema divindade. E à Mnemósine se une, tendo como fruto dessa relação, as nove musas, dentre elas Clio, a História. 1 Professor Adjunto-A da Faculdade de História e dos Programas de Pós-Graduação em História e em Projeto e Cidade (Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Goiás. Doutor em História (Universidade Federal de Juiz de Fora); Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas-RS. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Especialista em Gestão do Patrimônio Cultural (Granbery e PERMEAR, Juiz de Fora-MG). 62 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Com essa resumida trama mitológica podemos fazer a seguinte indagação, ao sabor dessa conversa: em uma disputa do tempo contra o poder e a memória, surge a História? Ao que parece, sim. Ainda que memória e História muitas vezes sejam incoerentes, ambas possuem um vínculo inexorável. A História, tomando a memória como matéria prima, perfaz um caminho repleto de interesses, de interferências, de obstáculos e de percalços, que a podem torná-la imprecisa e defectível. Mas assim também ocorre à memória. Se há con itos em torno da história, é porque os há, todavia, em torno da memória. Os con itos em torno da memória podem levar a situações que, por um lado, tornam mais lúcidas a história; ou, por outro, obscurecem os fatos, tornando-os incoerentes. Vejamos um exemplo. A historiografia nacional argentina, por muito tempo, manteve no rol dos heróis nacionais o capitão de fragata Edgardo Giachino, morto em combate em 02 de abril de 1982, na guerra das Malvinas. Protagonista de narrativas heroicas, transmutou-se em monumento no cemitério La Roma, em Mar del Plata, bem como fazia jus, para alguns, de estar ao lado de excombatentes marplatenses e outros 436 desaparecidos de Mar del Plata, na lista de heróis locais. Contudo, a versão heroica dele se esvaiu, após a denúncia judicial de um ex-subordinado do capitão, Alfredo Molinari, que afirmou que o capitão de fragata havia mandado matar, em 1977, durante a ditadura militar argentina, um detento que se encontrava encapuzado, algemado e ajoelhado. Edgardo Giachino (El Pais, 2011). Monumento presente no cemitério La Roma (El Pais, 2011). Figura 1: Edgardo Giachino. Foto: El Pais, 2011. Patrimônio e Políticas Públicas Yussef Daibert Salomão de Campos Essa memória, envolta em permanente con ito, exprime-se politicamente quando torna-se patrimônio. Esse processo de institucionalização da memória, tão con ituoso quanto a própria memória, constitui-se como uma maneira que a modernidade encontrou para erigir as identidades nacionais, e que a pós-modernidade (será que ela existe? Ou será a modernidade em seu crepúsculo?) lança mão para reconhecer as diversidades culturais que se apresentam em substituição à homogeneização cultural resultante da globalização. Seja no primeiro ou no segundo momento, a lei surge como meio de viabilização desse patrimônio, seja ao constituí-lo e conceitua-lo, como o artigo 216 da Constituição Federal brasileira de 1988 pretende, seja enumerando instrumentos e procedimentos para que a patrimonialização 63 e a consequente gestão se concretizem, como o decreto-Lei 25 de 1937, que institui o tombamento, ou o decreto 3551 de 2000 que trata e regulamenta o registro de bens imateriais. Por isso trato a lei, partindo de Benedict Anderson, como um dos meios de edificação de comunidades imaginadas. Abrangências do patrimônio: local, regional, nacional e mundial Aloísio Magalhães, na década de 1970, já alertava para a legitimação do patrimônio cultural através do que chamou de referência cultural. Para que o patrimônio valha como tal, é preciso não só que haja envolvimento da comunidade produtora e/ou que vive o bem cultural a ser patrimonializado em sua inventariação Figura 2: Monumento presente no cemitério La Roma. Foto: El Pais, 2011. 64 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes é necessário, antes disso, que as reivindicações pelo e para o patrimônio se deem verticalmente, de baixo para cima, e não o contrário. Assim como reconhecer Olinda, Ouro Preto, Recife ou Goiás é válido e legítimo; a arquitetura vernacular, os modos de expressão, os ofícios, as celebrações também o são. Deve-se reconhecer também Triunfo, Piacatuba, Leopoldina, Quirinópolis. Façamos um exercício sobre referências. O que a imagem abaixo provoca em sua memória, ou o que ela alimenta em sua identidade? Se você não conhece a pequena cidade mineira de Leopoldina; ou se ainda conhece, mas não faz parte do círculo de amizade de minha família, você não reconhecerá o jardim da casa na qual cresci. Logo, essa imagem é referência para mim, mas não o é para a maioria das pessoas que aqui debatem patrimônio. Outros exemplos: Figura 3: Foto do autor, 2009 Figura 4: Catedral de Leopoldina/MG. Foto: R. Lacerda, 2013. Disponível em: http://migre.me/wKMAG. Acesso em março de 2017 Figura 5: Cine Theatro Central. Foto: Cine Theatro Central Disponível em http://www.theatrocentral.com.br/. Acesso em março de 2017 Yussef Daibert Salomão de Campos Patrimônio e Políticas Públicas 65 A primeira imagem ilustra a Catedral de Leopoldina, que é referência cultural para aquela população, apesar de não contar com instrumentos de proteção específicos. á a segunda trata-se do interior do Cine Theatro Central, de Juiz de Fora, também em Minas Gerais, alvo de proteção por tombamento tanto na esfera municipal quanto na federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Embora a segunda seja alvo de políticas públicas de preservação e proteção, e a primeira não, o que quero demonstrar é que, embora quem visualize essas imagens possam atribuir valor estético-estilístico, a referência cultural estará presente nas comunidades locais, ou para quem, em algum momento tenha feito parte dessas comunidades. Ou seja: torna-se imprescindível identificar a ressonância de tais bens culturais, em dois aspectos: a apropriação local e a dimensão da política pública envolvida, quais sejam, local, regional, nacional ou até mundial. O mesmo acontece em Goiânia. É claro que a imagem a seguir é notória e referencial para os goianienses, sendo alvo de tombamento do IPHAN. Mas será que outros indivíduos que não conhecem a cidade ou sua história reconhecerão o monumento às três raças? Se reconhecerem, sentirão afinidade ou pertencimento? Será referência cultural nacional o Teatro Goiânia, parte da narrativa de uma cidade Art Déco, e assim como o monumento, inserido no tombamento do conjunto urbano? Quanto ao patrimônio imaterial, reconhecido pelo mesmo IPHAN, qual a dimensão do registro da Festa do Divino Espirito Santo de Pirenópolis? Ou o Ritxoko, o saber fazer que envolve as bonecas Karajá, ou a Romaria de Carros de Boi da Festa do Divino Pai Eterno de Trindade, patrimônios culturais imateriais do Brasil? Essas são questões relevantes para se pensar a construção da identidade não mais pela homogeneidade, mas sim pela diversidade. Figura 6: Monumento às três raças. Foto: Guia da Semana. Disponível em: http://migre.me/wKMPJ. Acesso em março de 2017. Figura 7: Cavalhada, parte da Festa do Divino de Pirenópolis. Foto: IPHAN, 2010. Disponível em: http://migre.me/ wKMWh. Acesso em março de 2017 66 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Notas conclusivas: Perversidade do Patrimônio Algumas questões podem ser suscitadas como perversas na gestão do patrimônio, como seus efeitos e consequências, que podem mostrar-se danosos e aviltantes à determinada parcela da sociedade. Basta pensar, por exemplo, nos efeitos desastrosos da revitalização do Pelourinho, em Salvador, ou da Lapa, no rio de aneiro. A gentrificação causada por uma “higienização social” do primeiro caso, ou a alta imobiliária que tornou inviável a vida dos moradores do segundo, apresenta-se, aqui, como uma das facetas perversas do patrimônio. Ou então, se forem avaliados os erros da administração pública em sua atuação na seara do patrimônio, encontraremos inúmeros casos que nomeio de “fogo-amigo”: inobservância da lei em processos de tombamento, que acabam por torna-los inválidos, procedimentos equivocados na notificação dos proprietários, omissão na aplicação de penalidades, são alguns moldes perversos do patrimônio. A exclusão social, o turismo predatório, os esquecimentos convenientes, são outros espectros da perversão patrimonial. Mas nada me assusta mais que o desrespeito à memória coletiva traumática. Vejamos um caso, para concluir essa breve exposição. O artista israelense Shahak Shapira, em projeto denominado “Yolocausto”, chama atenção do turista inconveniente e desrespeitoso que visita o Memorial às vítimas do Holocausto, em Berlim. As “selfies” e fotos produzidas e postadas pelos próprios turistas, disponibilizadas em redes sociais, foram “readaptadas” pelo artista, advertindo a todos como a insensibilidade, e até mesmo a desonestidade, reabrem feridas em uma memória que se remete a cerca de 6 milhões de mortos (as imagens que se seguem estão disponíveis no site http://demilked.com/ holocaust-memorial-selfies-yolocaust -shahak-shapira/). Portanto, esse projeto nos ensina que é preciso também ética no patrimônio cultural. Figura : “Yolocaust” Disponível em: http: demil ed.com holocaust-memorial-selfies-yolocaust-shaha -shapira Patrimônio e Políticas Públicas Yussef Daibert Salomão de Campos 67 Referências ANDERSON, Benedict. omunidades imaginadas: re e aulo: om an ia das Letras, A es so re a origem e a difus o do nacionalismo. S o . OS, ussef Dai ert Salom o de. erce o do Intangível: entre genealogias e a ro ria cultural imaterial. Belo ori onte: Arraes Editores Goi nia: EGRA ANDA , Joel. G, es do atrim nio . émoire collective et mémoire individuelle fonctionnentelles selon le m me mod le? Arc ives, . Demil ed. tt : demil ed.com El ais. Domingo, ERREIRA, aria Letícia Dis onível em: AGAL unda de ulio de olocaust memorial selfies olocaust s a a s a ira . Dis onível em: tt s: el ais.com . Acesso em: ? Acesso em: ? a uc i. olíticas da mem ria e olíticas do esquecimento. Aurora, : , . . ucs . r revistaaurora Acesso em: ? ES, Aloísio. E riunfo? A quest o dos ens culturais no Brasil. Rio de Janeiro Brasília: Nova ronteira o Nacional r em ria, . . 68 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Sobre a Gestão do MAC - GO Márcia Pires Márcia Pires é Diretora e do Museu de Arte Contemporânea de Goiás do Centro Cultural Oscar Niemeyer. Especialista em Liderança e Master Coach, com Graduação em Gestão em Serviços Executivos pela Faculdade Cambury. Co- Autora do livro Cartas Para o Sucesso. Analista Comportamental com Formação em Eneagrama Training Program pelo Instituto Treinare. Certificada como íder Coach pela (SEGP AN). Certificada como Facilitadora da Aprendizagem pela Escola Nacional de Administração Pública. Atuação como Master Coach e Palestrante com ênfase em desenvolvimento humano. É produtora Executiva de Ações Culturais. Atuou como Secretária Executiva no Governo de Goiás por mais de 15 anos. E por 5 anos a frente da Gerência de Atendimento por Meritocracia na Secretaria da Segurança Pública de Goiás. Site: www.coachmarciapires.com.br @coachmarciapires 68 Sobre os Autores 69 Prof. Dra. Manuelina Cândido Manuelina Maria Duarte Cândido é licenciada em História pela Universidade Estadual do Ceará, Especialista em Museologia e Mestre em Arqueologia pela Universidade de São Paulo, Doutora em Museologia pela Universidade usófona de umanidades e Tecnologias e realizou estágio Pós-Doutoral em Museologia com supervisão do prof. François Mairesse, na Universidade Paris III, Sorbonne Nouvelle (França). Coordenou o Núcleo de Ação Educativa do Centro Cultural São Paulo, dirigiu o Museu da Imagem e do Som do Ceará e o Departamento de Processos Museais do IBRAM. É Professora Adjunta da Universidade Federal de Goiás - Bacharelado em Museologia (licenciada) e Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. Professora convidada de Museologia na Universidade de W rzburg, Alemanha e da Universidade d Artois, na França. Chargé de Cours de Museologia da Universidade de i ge ( élgica) para o período 201 -2021, onde ministra disciplinas na graduação e na pós-graduação, orienta teses, dissertações e estágios. Como parte de suas atribuições, coordena o Embarcadère du Savoir, uma rede de museus de ciências que pertencem à Universidade e a outros organismos. Lidera o Grupo de Estudo e Pesquisa Museologia e Interdisciplinaridade - GEMINTER. Tem livros e artigos publicados nas áreas mencionadas, atua como docente, pesquisadora e consultora. É membro do Conselho Internacional de Museus (ICOM). Integrou a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), bancada de Patrimônio, assessorando o Ministério da Cultura (mandato 2017 201 ). Participa do oard do ICOFOM- AM de 201 -2020. 70 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Prof. Dr. Yussef Campos Yussef Daibert Salomão de Campos é professor Adjunto da Faculdade de História e permanente dos Programas de Pós-Graduação em História e em Projeto e Cidade (Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Goiás. Doutor em istória (Universidade Federal de uiz de Fora); Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas-RS. Graduado em Direito pela Universidade Federal de uiz de Fora Especialista em Gestão do Patrimônio Cultural (Granbery e PERMEAR, uiz de Fora-MG). Pesquisa o patrimônio cultural a partir da relação entre História, Memória e Identidade, além de suas nuances jurídicas. Durante o mestrado participou, como bolsista CAPES, do projeto Perspectivas Teóricas sobre el Patrimonio Material e Inmaterial en Sudamerica (Brasil y Argentina), do Programa de Cooperación Internacional Asociado para el Fortalecimiento de la Posgrado, rasil Argentina (CAFP A), que resultou da cooperação acadêmica entre os programas de pós-graduação em Economia Política de la Cultura, Estudios sobre Producciones Culturales y Patrimonio de la Facultad de Filosofia y etras (ICA FFy ), de la Universidad de uenos Aires (U A), e em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas rasil. É membro do ICOMOS-Brasil (International Council of Monuments and Sites). Colaborou, como co-organizador e autor, nas edições e da Revista do Patrimônio, em comemoração aos 0 anos do IP AN. Sobre os Autores Dra. Tânia Mendonça Tânia Mara Quinta Aguiar de Mendonça é doutora em Museologia pela Universidade Lúsofona de umanidades e Tecnologias (2012). Possui graduação em ornalismo (1 77) e Especialização em Museologia pela Universidade Federal de Goiás (2001). Foi Superintendente de Patrimônio istórico e Artístico da Secretaria de Educação, Cultura e Esporte de Goiás (SEDUCE) (de 200 a 2010 e 201 a 2017). Foi Gerente de Museus e Centros Culturais do Centro Cultural Oscar Niemeyer e Diretora do Museu de Arte Contemporânea (2011201 ). Foi diretora do Museu da Imagem e do Som de Goiás e responsável pela criação do Grupo de Revitalização dos Museus Estaduais Goianos (1 -2010). Foi diretora de telejornalismo, produtora, roteirista e editora de programas educativos e vídeos institucionais nas T s Manchete e rasil Central (1 7 -1 7). Endereço eletrônico: taniaqmendonca hotmail.com 71 72 Ciclo de Estudos O Museu e seus Saberes Alba Macedo Alba Tânia Rosaura Macedo nasceu na cidade de Anicuns – Goiás em 1 . Graduada em istória da Arte e Desenho e Plástica em 1 7 pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Pintura de Cavalete e Escultura Policromada) – 1 . E A – CECOR UFMG. Especialista em Estudos da Cultura Material e Museus – Museu Antropológico UFG – 1 . Coordenadora do evantamento descritivo dos ens Móveis da Casa de Goiandira do Couto para Inventário – 201 . Autora do Artigo: Resgate de Pintura Mural de Grande Dimensão: Ipameri – Go, pela Revista rasileira de Arqueometria Restauração Conservação. Olinda – PE. III Simpósio de Técnicas Avançadas em Conservação de Bens Culturais. SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO, CULTURA E ESPORTE