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FILOSOFIA DA PSICOLOGIA: UMA TAXONOMIA

2013, EDUFJF

A atividade historiográfica na Psicologia é bastante desenvolvida em nosso país e conhecida do meio acadêmico. Mas o mesmo não acontece com a investigação em Filosofia da Psicologia, um dos campos em maior expansão no mundo e que concentra grande parte da produção acadêmica filosófica e psicológica. Os objetivos deste artigo são três. O primeiro é oferecer uma descrição sistemática da investigação em Filosofia da Psicologia. O segundo é demonstrar que algumas das atividades ordinárias desta disciplina são condições de possibilidade da investigação científica experimental. O terceiro é elencar alguns problemas psicológicos importantes que parecem inabordáveis pelo método científico. Nas três últimas décadas temos assistido a uma retomada das discussões filosóficas sobre os fundamentos da psicologia e o significado de seus resultados empíricos. Ao mesmo tempo, a Filosofia da Mente emergiu como a principal área de interesse filosófico contemporâneo. Se definirmos a Filosofia da Psicologia como "o estudo de questões conceituais em Psicologia" que abarca desde o estudo dos fundamentos da disciplina até a Filosofia da Mente, podemos apontar quatro áreas, relativamente distintas, de intersecção entre a Psicologia e a Filosofia. Elas são a Epistemologia da Psicologia, a Psicologia Teórica, a Psicologia Filosófica e a Filosofia da Mente.

FILOSOFIA DA PSICOLOGIA: UMA TAXONOMIA Gustavo Arja Castañon No início do ano de 2011 foram iniciadas oficialmente as atividades de uma nova linha de pesquisa no recente Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora: a linha de História e Filosofia da Psicologia. A atividade historiográfica na Psicologia é bastante desenvolvida em nosso país e conhecida do meio acadêmico. Mas o mesmo não acontece com a investigação em Filosofia da Psicologia, um dos campos em maior expansão no mundo e que concentra grande parte da produção acadêmica filosófica e psicológica. Esse será apenas o segundo programa do Brasil com uma linha dedicada a sua investigação, sendo o primeiro em Psicologia a promovê-la. Esta carência de programas no país é um dos motivos pelos quais a imagem que aqui se faz deste campo é, geralmente, equivocada. Outro importante é a confusão que se faz entre ele e algumas das abordagens psicológicas comuns em nosso país. Os objetivos deste artigo são três. O primeiro é oferecer uma descrição sistemática da investigação em Filosofia da Psicologia. O segundo é demonstrar que algumas das atividades ordinárias desta disciplina são condições de possibilidade da investigação científica experimental. O terceiro é elencar alguns problemas psicológicos importantes que parecem inabordáveis pelo método científico. Nas três últimas décadas temos assistido a uma retomada das discussões filosóficas sobre os fundamentos da psicologia e o significado de seus resultados empíricos. Ao mesmo tempo, a Filosofia da Mente emergiu como a principal área de interesse filosófico contemporâneo. Se definirmos, de acordo com Ned Block (1981), a Filosofia da Psicologia como “o estudo de questões conceituais em Psicologia” (p.1) que abarca desde o estudo dos fundamentos da disciplina até a Filosofia da Mente, podemos apontar quatro áreas, relativamente distintas, de intersecção entre a Psicologia e a Filosofia. Elas são a Epistemologia da Psicologia, a Psicologia Teórica, a Psicologia Filosófica e a Filosofia da Mente. Na primeira, reconhecida plenamente por todos os psicólogos, temos a investigação filosófica sobre os fundamentos ontológicos e epistemológicos da Psicologia, assim como sobre seus limites de investigação. Ordinariamente chamamos esta disciplina de Epistemologia da Psicologia, ou, mais genericamente ainda, pode 1 levar o nome do campo inteiro: Filosofia da Psicologia. É uma filosofia da ciência regional, ou seja, uma área da Filosofia da Ciência. Na segunda, temos a Psicologia Teórica (correlato psicológico da Física Teórica), que, partindo do pressuposto da possibilidade do conhecimento científico psicológico, executa investigações que são ao mesmo tempo (a) indispensáveis para o avanço do conhecimento científico psicológico; (b) totalmente não empíricas. Podemos citar entre estas atividades a construção de teorias, a dedução de conseqüências empiricamente testáveis de corpos teóricos, a análise de consistência de teorias e a identificação de seus pressupostos. Na terceira, temos o difuso e nebuloso campo do que denominarei aqui Psicologia Filosófica, que se dedica, em sua forma geral, à investigação dos sistemas e abordagens teóricas em Psicologia; e em sua forma específica, ao estudo, efetuado por algumas destas abordagens, dos mesmos problemas gerais da psicologia científica (como desenvolvimento, memória, percepção, personalidade, emoção e motivação) sem o método científico. Ao fazer isso, estas abordagens não necessariamente renunciam à interpretação de alguns dados empíricos na construção de suas teorias, o que torna sua classificação como atividade filosófica problemática. É importante ressaltar que o que estou aqui denominando de Psicologia Filosófica não se preocupa em subsidiar a atividade científica, ao contrário, defende que alguns problemas psicológicos, ou mesmo todos estes problemas, são impenetráveis ao método científico. Na quarta, temos a Filosofia da Mente, que é a investigação filosófica pura sobre a natureza da mente em todos os aspectos, como eventos, funções, propriedades, consciência e principalmente sua relação com o cérebro. Eventualmente, a Filosofia da Mente pode se debruçar sobre o significado dos resultados empíricos da Psicologia e das Neurociências ou sugerir conseqüências de teorias a serem testadas por elas, tornando a fronteira entre ela e a Psicologia Teórica algo nebulosa. No entanto, podemos fundamentar esta fronteira na indiferença desta disciplina em fundamentar a atividade científica e na sua total autonomia em métodos e objetos. Ainda, a Filosofia da Mente está fundamentalmente interessada no que a mente é, não em leis preditivas de seu funcionamento. Começarei agora a exposição contextualizando historicamente de forma breve a questão, depois passarei a expor os problemas e atividades que constituem os quatro campos da disciplina. Durante esta taxonomia breve, tratarei dos dois outros objetivos citados. Ao descrever a Psicologia Teórica demonstrarei sua posição como parte 2 integrante da atividade científica psicológica. Ao descrever os problemas especiais investigados pela Psicologia Filosófica, área cuja legitimidade é bem mais controversa, defenderei que estes são inabordáveis experimentalmente. Assim, as investigações nãocientíficas destes problemas fundamentais seriam não só são legítimas como também de suma importância para a sobrevivência da Psicologia como ciência relevante. 1- Momento Atual da Área Como tratei em artigo anterior (Castañon, 2008), as últimas três décadas assistiram a um renascimento do intercâmbio entre a Filosofia e a Psicologia. Com o fim da utopia fisicalista do Positivismo Lógico e a derrocada do Operacionalismo como filosofia da ciência, ficou cada vez mais evidente para o conjunto dos psicólogos que suas pesquisas estavam mergulhadas em pressupostos ontológicos e epistemológicos. Essa compreensão se aprofundou com a progressiva disseminação das idéias de Karl Popper (1975), Thomas Kuhn (1990) e Willard Quine (1975). O’Dohonue e Kitchener (1996) citam que nos últimos anos surgiram nada menos que sete periódicos dedicados à Filosofia da Psicologia. Além do tradicional Journal of Theoretical and Philosophical Psychology, da APA, hoje temos o Behaviorism, o Journal of Mind and Behavior, o Journal for the Theory of Social Behavior, o New Ideas in Psychology, o Philosophical Psychology, o Psychological Inquiry e o Theory and Psychology. O fato é que, de uma forma ou de outra, hoje a Psicologia parece ter restabelecido as relações com seus pais. Temos na fronteira biológica da Psicologia a disciplina da Fisiologia (com o campo interdisciplinar da Neuropsicologia), e nas fronteiras teóricas, a Filosofia (com a disciplina da Filosofia da Mente e a base na Filosofia da Ciência e Ontologia). Bernard Baars (1986) oferece uma interessante metáfora sobre as relações da Psicologia com a Filosofia e a Fisiologia, comparando-as com uma crise de adolescência. Poderíamos reconstruir a metáfora da seguinte maneira. Em sua infância, a Psicologia procurava se moldar à imagem de seus pais, seguindo os métodos herdados da Fisiologia e os objetos herdados da Filosofia. Com o Behaviorismo, entrando em sua adolescência, a Psicologia, insegura de si mesmo, de sua identidade independente e de seu lugar no mundo, procurava enfatizar suas diferenças com a Fisiologia e a Filosofia, e buscar novos modelos, como a Física. Começando a sair de sua adolescência com a revolução cognitiva, um pouco mais confiante de seu lugar no mundo, de sua identidade, a Psicologia começa a reatar as 3 relações com os pais, voltando a ser influenciada por eles (assim como passa a influenciá-los). Há cada vez menos espaço para a ingênua utopia positivista de rejeição da reflexão filosófica em Psicologia. Hoje, o que é comum assistirmos são esforços como os do behaviorista William O’Dohonue (1996), que em colaboração com Richard Kitchener, lançou uma coletânea de trabalhos em Filosofia da Psicologia, na qual lista os pontos hoje generalizadamente aceitos na Psicologia como atribuições de uma filosofia da disciplina. Para os autores, primeiro, cabe à Filosofia a análise dos méritos das metodologias de pesquisa usadas pelos psicólogos. Segundo, cabe à Filosofia explicar e compreender as interconexões entre os campos do conhecimento científico. É trabalho filosófico igualmente identificar movimentos ilegítimos nos programas de pesquisa (Lakatos, 1984), como hipóteses ad hoc, para salvar teorias favoritas. Quarto, identificar e resolver problemas conceituais nos programas de pesquisa. Quinto, identificar ou estabelecer a ontologia pressuposta em afirmações e objetos de pesquisa selecionados por psicólogos. Por fim, cabe à Filosofia da Psicologia identificar ou formular as influências filosóficas que determinam a escolha do objeto de estudo por parte do Psicólogo. Observem que, para O’Dohonue e Kitchener, os papéis de uma Filosofia da Psicologia são predominantemente os de uma Filosofia da Ciência regional, ou seja, problemas epistemológicos e ontológicos da disciplina. Mostrarei aqui que o campo é, de fato, bem maior do que este. Todos os aspectos levantados acima valem, não somente para a Psicologia, mas para todas as ciências. Mas uma vez que a Psicologia é a mais fragmentada e multifronteiriça destas, é na Psicologia que a Filosofia tem o mais importante papel a cumprir. Como pontuou Arthur Staats (2004), se quisermos continuar a sonhar com uma unificação futura da Psicologia, precisaremos do remédio filosófico do trabalho de clarificação conceitual e uniformização terminológica, tarefa essa que, como sabemos, é mais urgente para a Psicologia do que para qualquer outra ciência. 2- Epistemologia da Psicologia Geralmente chamado com o nome da área, ‘Filosofia da Psicologia’, o campo da Epistemologia da Psicologia, que abrange igualmente a Ontologia da Psicologia, se concentra em alguns problemas fundamentais bem conhecidos (e que, portanto, não são o objetivo deste artigo). Mas antes de listá-los, gostaria de relembrar o âmbito de duas 4 disciplinas filosóficas básicas. O termo ‘Ontologia’, que pode ter seu significado estabelecido como “teoria do ser”, se refere a uma disciplina que, quando debruçada sobre a Psicologia, se concentra em problemas relativos à delimitação e à natureza do objeto da disciplina. Em outras palavras, se concentra em pressupostos ontológicos e definições e recortes conceituais. ‘Epistemologia’ é, por sua vez, a disciplina que investiga o processo de obtenção de conhecimento em todos os seus aspectos. A parte estritamente epistemológica do campo, portanto, se concentra no processo de obtenção de conhecimento válido sobre o objeto, ou seja, na questão do método geral de investigação na disciplina. No entanto, é impossível fazer análise epistemológica sem fundá-la em pressupostos ontológicos sobre o objeto que será conhecido. Podemos observar isso nas áreas do campo abaixo listadas: 1) Análise da Cientificidade da Psicologia: A análise das limitações ontológicas, epistemológicas e metodológicas da Psicologia Moderna é a questão fundamental desta epistemologia regional. Dados os pressupostos da atividade científica e uma determinada concepção do objeto da disciplina, podemos aplicar a primeira ao segundo? Aqui se analisa também a relação entre uma determinada concepção de objeto e as diferentes teorias em Filosofia da Ciência. 2) Análise da Natureza das Leis e Explicações Psicológicas: Pertence a este grupo de problemas a análise da natureza das leis psicológicas. Podem ser elas hipotéticodedutivas, ou são probabilísticas? Ou seja, elas podem ter a forma de dedução forte “se x, então necessariamente y”? Ou tem todas a forma probabilística “se x, então com uma probabilidade w seguirá y”? Outras formas possíveis de leis psicológicas e suas condições são avaliadas, e evidentemente, a própria possibilidade de existência de leis preditivas psicológicas. Problema necessariamente associado ao das leis, o da forma das explicações científicas para fenômenos psicológicos já ocorridos, avalia a forma, a possibilidade e as limitações de explicações na Psicologia. 3) Adequação das metodologias: O uso de métodos e delineamentos de pesquisa empírica na abordagem de problemas psicológicos é de avaliação exclusivamente filosófica, não sendo, ele próprio, um campo da pesquisa empírica. Devemos distinguir aqui dois níveis nesta investigação: o das metodologias em si em relação a tipos gerais de problemas, área da Filosofia da Ciência que citada aqui; e o da adequação de uma 5 metodologia ou desenho experimental específico a um problema testável específico, atividade da Psicologia Teórica que abordaremos à frente. 4) Integração multidisciplinar: É filosófico o trabalho de comparar e relacionar os resultados de disciplinas diferentes, que trabalham com estruturas conceituais e às vezes mesmo metodologias diferentes, como no caso típico das Ciências Cognitivas. Nestas, temos a Inteligência Artificial, que apesar da aparência é uma área eminentemente dedutiva e teórica; a Psicologia Cognitiva, experimental; a Neurociência, que trabalha com estudos de correlação e de caso; e a Filosofia da Mente, predominantemente dedutiva e teórica. Integrar e traduzir adequadamente a extensão dos significados destes trabalhos é tarefa teórica de natureza filosófica, e nada trivial. Embora na maioria das vezes este trabalho necessite do esforço de clarificação conceitual, ele está longe de se resumir a isso. Como podemos ver, em todas estas áreas as avaliações epistemológicas ou pressupõem ou se misturam com questões ontológicas, o que nos obriga a considerar esse campo de fundamentos todo em conjunto. 3- A Psicologia Teórica Um segundo campo, que tem áreas de conexão com o anterior, é o denominado ‘Theoretical Psychology’ na Psicologia de tradição de língua inglesa. A Psicologia Teórica, que corresponde na Psicologia ao papel da Física Teórica na Física, se distingue inicialmente da Epistemologia da Psicologia por não colocar mais em questão a possibilidade da aplicação da ciência moderna ao problema psicológico, assumindo de saída esta possibilidade. A Psicologia Teórica não se coloca nem como fundamento da Psicologia Científica (como a Epistemologia da Psicologia), nem como alternativa a ela (como a Psicologia Filosófica). Seu papel é o de atividade integrante do processo de investigação científica na Psicologia. Este campo, investigado detalhadamente em seus métodos por André Kukla (2001), pretende auxiliar a Psicologia científica efetuando investigações que são ao mesmo tempo (a) indispensáveis para o avanço do conhecimento científico psicológico e (b) totalmente não empíricas. Se direcionarmos a atenção para a totalidade do processo necessário à plena consecução de uma determinada pesquisa quantitativa (seja descritiva ou experimental), veremos que sete de suas nove etapas necessárias são, absolutamente, não empíricas. A primeira, a criação de uma teoria, é evidentemente filosófica. O segundo passo, a 6 formulação da hipótese ou dedução de consequência empiricamente testável de uma teoria, é também uma atividade puramente teórica. O trabalho de definição operacional das variáveis a serem testadas é, ele mesmo, uma atividade teórica difícil e sujeita a críticas teóricas. A quarta etapa, a da escolha do instrumento de recolhimento dos dados, é também totalmente não empírica, o que não acontece, no entanto, com a avaliação do instrumento escolhido, que é o primeiro momento do processo inteiro em que entram em cena dados empíricos. Quando, entretanto, se parte para o desenho da pesquisa, ou mesmo ainda para a escolha do tipo dela, voltamos a um processo totalmente teórico (e teórico em bom nível de sofisticação). Finalmente, então, somente sete passos depois do início da pesquisa científica, temos aquilo que os empiristas consideravam a única origem do conhecimento entrando em cena: dados empíricos sobre o fenômeno investigado. Ainda assim estes dados são recolhidos dentro de um enorme complexo de estruturas teóricas: teorias, que deduziram consequências empíricas, que criaram definições operacionais, que se valeram de instrumentos construídos com teoria (e empiria) para recolher dados muitas vezes provocados e recolhidos seletivamente dentro do recorte de uma teoria sobre um método de recolhimento de dados. E não pára por aí. Estes dados vão ser submetidos à análise estatística, um ramo da matemática que é, ela própria, uma disciplina científica formal, totalmente não empírica. Depois disso, os dados estatísticos terão que ser interpretados e analisados em suas implicações para a teoria testada e as teorias concorrentes. Desnecessário seria dizer, mas isso também é filosofia. De repente, ao considerar todos os passos de uma pesquisa empírica quantitativa, a Psicologia Moderna se revela como um amontoado de teoria testando com um pouco de empiria (na forma de observação direcionada e controlada por teorias) suas teses sobre o mundo. É claro, entretanto, que o detalhe de perguntar em algum momento ao mundo o que ele acha de nossas teorias sobre ele é mais do que fundamental. Mesmo que ele só possa nos responder sim ou não. 7 Figura 1 Modelo de processo geral de investigação científica psicológica Podemos classificar aqui, como áreas que tem um diferente caráter lógico, e portanto, diferentes relações com o trabalho empírico, ao menos dez: 1) Construção de Teorias: É a mais evidente das atividades não empíricas que são fundamentais à ciência. Explicar um conjunto de dados que são tomados como fatos significa oferecer uma série de princípios que, caso verdadeiros, teriam-no gerado necessariamente (ou ao menos gerado as condições de sua existência). A diferença da construção de teorias na Psicologia Teórica para a sua construção na Psicologia Filosófica, por exemplo, é que na primeira as teorias construídas devem apresentar consquências empiricamente testáveis, em outras palavras, devem ser teorias científicas. Como lembrou Kukla (1989), em comentário a artigo de Christensen-Szalanki & Beach (1983) que criticava a publicação de comentários teóricos a artigos em Psicologia, a necessidade de investigar novas questões de fato só surge quando nós já temos uma teoria bem articulada que nos direcione a atenção a detalhes específicos. E é por isso, diz Kukla, que apesar de exortações como as de Szalanki & Beach, “nós devemos resistir à tentação de publicar nossas contas de lavanderia e listas de mercado. Quando a teoria não exerce um papel seletivo, nossas atividades de coleta de dados pertencem antes ao domínio do jornalismo do que ao da ciência” (p. 792). 8 2) Clarificação conceitual: A identificação e resolução de problemas conceituais em abordagens psicológicas, assim como o trabalho de comparação entre conceitos correlatos em diferentes estruturas teóricas com vista à unificação do conhecimento psicológico, é um trabalho analítico eminentemente filosófico. Intimamente relacionado com o trabalho de clarificação conceitual está o trabalho de identificação dos pressupostos ontológicos que levaram à construção dos conceitos utilizados por cada abordagem no recorte dos objetos de investigação. Ainda, podemos colocar a atividade de descobrir os conceitos irredutíveis, o que Kukla (2001) chamou de “termos primitivos”, na conta da atividade de clarificação conceitual. Na tarefa filosófica de redução de conceitos a outros conceitos, em qualquer estrutura teórica, chegamos a conceitos primários que não podem mais ser definidos em termos de outros conceitos. O exemplo clássico disso são os conceitos de matéria e de energia em Física. Podemos definir matéria (massa) em termos de energia (E=mc2), mas como definir energia a não ser através do conceito de massa? Ao chegar a conceitos primitivos, temos a idéia clara das reais bases ontológicas de uma teoria. No caso da Psicologia, por exemplo, um conceito irredutível em relação à Física e à Biologia seria o de consciência (Chomsky, 1981). 3) Identificação de Pressupostos: Nem sempre todos os pressupostos (ou seja, aquelas teses assumidas sem prova ou teste como verdadeiras) nos quais uma teoria está fundada estão explícitos. Muitas vezes alguns pressupostos estão mascarados ou simplesmente não foram percebidos por aqueles que criaram a teoria. Um dos exemplos mais dramáticos dessa inconsciência usual é o principio da regularidade da natureza, pressuposto que está na base do raciocínio indutivo e da ciência moderna. Foi Hume quem tornou evidente que toda indução, e até o próprio princípio de causalidade, se baseiam nesse pressuposto que não tem, ele mesmo, fundamento lógico ou empírico. No caso da ciência, a demonstração de que um dos pressupostos de uma teoria é incompatível com os pressupostos fundamentais da ciência (realismo, otimismo epistemológico, lógica clássica, naturalismo, regularidade do objeto e representacionismo) exclui esta teoria do campo da ciência (embora de forma alguma prove sua falsidade). Ainda, podemos descobrir que alguns pressupostos de uma teoria são incompatíveis entre si, além de ajudar pesquisadores a avaliar o nível de sua adesão pessoal a determinado programa de pesquisa, por discordar ou concordar com seus pressupostos. 9 4) Inovação Conceitual: A criação de conceitos não é equivalente à construção de teorias. Como o próprio termo indica, quem constrói uma teoria pode construir um edifício teórico com tijolos já existentes, os conceitos. Coisa diferente de construir um castelo novo é extrair uma pedra nova para colocar neste castelo. Determinados recortes da realidade são mais úteis que outros para realizar algo. Assim, um castelo teórico pode ser completamente destruído, mas suas pedras conceituais podem ser usadas para construir um novo. Kukla (1989) usa dois exemplos para ilustrar a importância independente da inovação conceitual: Freud e Copérnico. Observa ele que mesmo que muitas alegações empíricas de Freud tenham sido falsificadas, seu lugar na história da Psicologia estaria assegurado unicamente com base em sua quantidade de inovações conceituais. Da mesma maneira, apesar de as hipóteses contingentes (as alegações testáveis) de Copérnico terem sido totalmente refutadas, o arcabouço conceitual usado para expressá-las prevaleceu por séculos. 5) Derivação de novas consequências testáveis de teorias existentes: Encontrar, numa teoria científica já existente, ou mesmo numa teoria até então puramente especulativa, novas consequências testáveis, é uma tarefa muito longe de ser trivial. De fato, pode-se resumir a genialidade em ciência empírica unicamente a dois tipos de atividade teórica: a criação de uma nova teoria testável e a criação de novas formas de se testar um aspecto de uma teoria até então puramente especulativo. A execução do experimento e tratamento dos dados é a parte da transpiração a qual se referiu Einstein. O um por cento de inspiração em ciência é filosofia. Expondo de outra forma, Kukla (1989) lembra que o processo de confirmação ou refutação de uma nova predição é matéria de pesquisa empírica, mas o processo de obtenção desta predição a ser testada não é, ela mesma, uma atividade empírica. Em Física, constata Kukla, a derivação de uma nova consequência de uma teoria é usualmente considerada um importante desenvolvimento científico, mesmo que naquele momento ninguém ainda saiba como operacionalizar a submissão daquela consequência a teste empírico. Como exemplo de um campo puramente teórico da Psicologia que está sempre derivando novas consequências testáveis, Kukla oferece nada menos que a Inteligência Artificial, que ele apresenta como um campo puramente teórico de construções de modelos sobre as aptidões cognitivas humanas. Mesmo que eventualmente estes modelos (programas) sejam implantados em máquinas, eles são 10 construídos de maneira puramente teórica, e precisam ser testados por experimentos com sujeitos humanos se querem se tornar de fato teorias científicas psicológicas. 6) Identificação de dados empíricos que refutam hipótese corroborada: Muitas vezes uma hipótese testada e corroborada já se encontra na verdade falsificada por dados que vem de outras disciplinas ou mesmo do conhecimento cotidiano ordinário. Mas assim como não é trivial a identificação de novas consequências empiricamente testáveis de uma teoria, às vezes não é trivial identificar que determinados fenômenos conhecidos refutam uma teoria estabelecida. Um exemplo clássico de trabalho de psicologia teórica desta natureza, de imenso impacto na história da ciência, é a famosa resenha de 1957 em que Chomsky (1967) argumenta que a criança emite sentenças inéditas ou nunca antes ouvidas perfeitamente adequadas às regras da língua materna, sem que nunca tenha sido reforçada para tal, o que refutaria a tese skinneriana de que o comportamento verbal é fruto de condicionamento operante. Outros dados empíricos identificados na experiência cotidiana que refutam esta tese de forma mais direta são os relatados fenômenos de superregularização, comportamentos nos quais a criança aplica as regras de flexão verbal (ou outros tipos de regras de transformação por sufixos e prefixos) a verbos irregulares, pronunciando insistentemente, apesar das punições, palavras que nunca ouviu e para as quais nunca recebeu reforço (como “eu ouvo a música” ou “o girafo casou com a girafa”). 7) Adequação da metodologia ao problema investigado: A adequação (e, portanto, decisão ou avaliação posterior) do tipo de método, delineamento, ou ainda técnica de coleta de dados a ser empregada na investigação de determinado problema psicológico é de base exclusivamente filosófica, e não é, ela própria, um campo da pesquisa empírica. Não é raro assistirmos à aplicação equivocada de métodos a determinados problemas, e o mais comum dos erros em Psicologia é o uso de métodos descritivos, e particularmente estudos de correlação de todo tipo, como testes de hipóteses causais. Como sabemos, a presença de uma correlação forte só indica a presença de uma relação entre as variáveis, mas não a direção dessa relação e nem a sua natureza. Se x está correlacionado com y, x pode causar y, y pode causar x, w pode causar x e y, e ainda x e y podem estar em relação retroalimentativa circular. Um exemplo bastante comum são as pesquisas de neuroimagem que indicam que na execução de determinada tarefa y a 11 área x está mais ativada. A conclusão de que o cérebro causou todo o processo é imediata, por conta dos pressupostos ontológicos assumidos. Mas a pesquisa não indica isso, ela pode significar tanto que x causou y quanto que a decisão de executar a tarefa y causou a ativação de x. Essa decisão pode se dar na área w, ou não. O processo todo, além de ter um início nebuloso, ainda é, muito provavelmente, retroalimentativo. Uma prova de relação de causa e efeito nesse caso deveria ser exclusivamente experimental: manipular a ativação específica de uma área cerebral para testar se ela provoca certo tipo de processo cognitivo. Uma questão, no entanto, restaria: como se dá a ativação quando não provocada artificialmente? Como podemos ver, a avaliação da adequação das metodologias para os diferentes problemas psicológicos é uma questão que está longe de ser trivial. 8) Análise dos dados: Os dados não falam sozinhos. Tão logo os cálculos estatísticos revelem que um experimento confirmou a hipótese num determinado nível de significância, ou que uma pesquisa descritiva revelou a existência de uma correlação forte entre variáveis, é necessária a interpretação do significado deste resultado em relação à teoria como um todo e também às teorias competidoras. Na verdade, a análise das implicações teóricas de um resultado empírico é totalmente não empírica, constituindo-se numa atividade evidente da Psicologia Teórica. Não é demais lembrar que, apesar de a análise estatística ser uma ciência, ela é uma ciência formal, e como tal, também se constitui numa atividade totalmente não empírica. 9) Análise de Coerência: Qualquer tese ou proposição isolada que afirma um estado de coisas empírico precisa satisfazer duas condições para ser verdadeira. Primeiro, ela não pode conter ou implicar contradição. Segundo, tem que corresponder ao aspecto do mundo a que se refere. A ciência muitas vezes se dedica a testar a segunda condição esquecendo a tarefa filosófica anterior de analisar a primeira. Portanto, antes de qualquer esforço empírico de teste de uma teoria, o teste ao qual uma teoria deve sobreviver é o da lógica. A Psicologia Teórica tem como uma de suas tarefas primárias a de investigar a coerência lógica de uma teoria. Ela investiga, por exemplo, se uma teoria é inconsistente, ou seja, se contém contradição. Se pudermos demonstrar que a teoria T implica tanto a proposição P quanto a ¬ P, então T está falsificada de forma mais segura que qualquer falsificação de natureza empírica. 12 Exemplificando da forma mais simples possível, se eu afirmo que tenho um livro completamente vermelho na minha pasta, esta afirmação não implica inconsistência, e alguém só pode, portanto, decidir sobre seu valor de verdade testando-a empiricamente (no caso, abrindo a pasta). Mas se eu afirmo que tenho um livro completamente vermelho e completamente azul (portanto completamente não-vermelho) na minha pasta, ninguém precisa gastar nem um segundo com o teste empírico desta afirmação, pois ela é, necessariamente, falsa. Mais do que isso, como a falsidade de uma teoria inconsistente é uma necessidade lógica, ela é definitiva e irrefutável. Já a falsificação empírica de uma teoria pode ser, ela mesma, por sua vez, falsificada (mostrando que houve fraude na investigação, que dados relevantes não foram considerados, que os objetos foram indevidamente mensurados, etc.) A falsificação empírica é provisória, mas a prova lógica de contradição é definitiva. Outras fragilidades formais, no entanto, podem ser reveladas pela análise da teoria. Como elenca Kukla (2001), uma teoria pode ser culpada de circularidade (um tipo de falácia conhecida também como “petição de princípio”), regresso infinito (problema que se reintroduz na própria “solução”), ambiguidade (uso do mesmo termo com significados variantes), non sequitur (conclusão que não segue das premissas) ou pressuposições fundamentais não independentes. Essas três últimas fragilidades teóricas não indicam necessariamente a falsidade das conclusões da teoria, mas a necessidade de reforma teórica. Um exemplo clássico de análise de coerência na Psicologia Teórica é o trabalho de Heinz Hartmann (1958) de critica à teoria freudiana do desenvolvimento do ego. Em suma, a posição de Freud seria a de que começamos a adquirir conhecimento sobre o mundo porque o conhecimento se revela instrumento eficiente de gratificação de nossos instintos ou pulsões. Hartmann argumenta que esta tese é incoerente porque nós não podemos descobrir o valor instrumental do conhecimento a menos que já tenhamos começado a adquiri-lo, portanto, tanto a capacidade para adquirir quanto a propensão para adquirir conhecimento tem que ser inatas. Em outras palavras: como estas são características do ego para Freud, este tem que ser inato. Assim, a teoria afirma que o ego não é inato e implica que ele deve ser inato. Hartmann demonstra então que é supérfluo o teste empírico da teoria do ego freudiana porque ela é, necessariamente, falsa em nível lógico. Mas, considerado tudo, sabemos que isso não decide o jogo científico. A princípio, como lembrava Popper, um número infinito de teorias competidoras pode 13 passar pelos rigores de uma análise de coerência. A partir daí, só a pesquisa empírica pode decidir entre as sobreviventes. 10) Verdades Logicamente Necessárias: Sempre existem proposições explícitas ou implícitas de uma teoria que só podem ser fundamentadas logicamente porque se referem a necessidades lógicas ou verdades analíticas. A afirmação de que solteiros são homens não casados não precisa ser testada empiricamente porque seu valor de verdade se deduz da definição dos conceitos componentes da proposição, ou seja, é uma verdade analítica. Se eu afirmasse, no entanto, que “os solteiros chineses são em sua maioria pobres”, teríamos uma proposição que não pode ser decidida analiticamente, pois é sintética, ou seja, pretende afirmar uma verdade contingente. Embora esse seja um exemplo evidente (não conseguimos imaginar uma pesquisa de levantamento de dados procurando homens solteiros para perguntar se são casados), outras situações onde os conceitos em questão são demasiadamente complexos não são tão evidentes assim, e podem resultar em esforços de pesquisa desnecessários. Contemporaneamente, se costuma definir “verdades logicamente necessárias” como aquelas proposições que são verdadeiras em todos os mundos possíveis (todos os conjuntos possíveis de estados de coisas). Existem duas tarefas relacionadas às proposições necessárias: sua distinção das contingentes e a descoberta original de novas verdades necessárias. 4- A Psicologia Filosófica Aquilo que estou denominando aqui ‘Psicologia Filosófica’, para caracterizar uma área da Filosofia da Psicologia, está longe de ser consensual, quer como campo, como termo ou como atividade legítima. Pretendo, no entanto, realizar um esforço de clarificação da área e paralelamente justificar sua legitimidade. Esta disciplina geralmente é reconhecida pelo estudo de sistemas em Psicologia, no qual as diferentes abordagens teóricas da disciplina são investigadas em seus pressupostos ontológicos e epistemológicos, e em suas teses básicas. É exemplo clássico deste tipo de estudo o livro de Marx & Hillix (1973). Entretanto, isto está longe de esgotar a área. Ao avaliar os problemas epistemológicos da Psicologia, um behaviorista chega à conclusão que ela é uma disciplina totalmente integrada à ciência moderna, e que todos os reais problemas psicológicos podem ser investigados cientificamente. Mas essa não é a única conclusão 14 possível. Pode-se concluir também que só alguns problemas psicológicos são passíveis de correta abordagem experimental (como conclui o cognitivismo), ou ainda, que nenhuma tese psicológica pode ser adequadamente testada experimentalmente (como conclui o construcionismo social). Quando a conclusão de um psicólogo é uma das duas últimas, um problema se levanta. Parafraseando Wittgenstein: sobre o que não se pode falar cientificamente, deve-se calar? Se a esta pergunta se responde ‘não’, geralmente o psicólogo em questão se engaja em algum tipo de investigação de Psicologia Filosófica, que nem se dedica à análise de fundamentos (Epistemologia da Psicologia) nem ao serviço da atividade científica (Psicologia Teórica). Esta acepção de Psicologia Filosófica, que se diferencia da Filosofia da Mente fundamentalmente por questão de ênfase de objeto e rigor de método de análise, se dedica aos mesmos problemas gerais da Psicologia científica, mas não através do método científico: desenvolvimento, memória, percepção, personalidade, emoção, motivação e assim por diante. No entanto, a grande dificuldade de se caracterizar determinadas abordagens psicológicas como “filosóficas” consiste em que algumas delas alegam ser uma “outra ciência” que também faz uso de dados empíricos. Um exemplo de abordagem em psicologia completamente aderida a uma metodologia exclusivamente filosófica é a Fenomenologia. Note que estou me referindo a trabalhos de autores como Husserl, Merleau-Ponty e Scheler. Mas autores como Karl Jaspers ou Viktor Frankl, a despeito de recorrerem a dados empíricos, também aplicam o método filosófico a problemas psicológicos com resultados de qualidade teórica evidente. Esse exemplo simples torna, no entanto, evidente a fragilidade da Psicologia Filosófica. Ao rejeitar a ciência, ela também rejeita o método de decisão entre teorias concorrentes sobre o mundo mais bem sucedido da história. O leitor deve estar pensando agora que a maior parte do que se faz sob o nome de Psicologia no Brasil se enquadraria na categoria de Psicologia Filosófica. Bem, é o que eu quero dizer. Ao rejeitar o método científico, abordagens como a Fenomenologia, a Psicologia Fenomenológica, a Psicanálise, a maior parte da Psicologia Humanista e o Construcionismo Social (sócio-histórica) se inserem, por motivos e com pressupostos muito distintos entre si, neste campo. É claro que, eventualmente, alguma consequência derivada destes corpos teóricos pode ser testada experimentalmente. O mais evidente caso de psicologia filosófica hoje em dia, que tem todo um conjunto de alegações 15 totalmente intratáveis e intestáveis pelo método científico, é a Psicologia Evolucionista, tão festejada pelo mainstream científico e totalmente não-científica. No entanto, não creio que esteja justificada a legitimidade de uma psicologia filosófica particular se os problemas que ela aborda são passíveis de teste científico. Isso porque quase quatrocentos anos de ciência moderna mostraram que ela é (até agora) o método mais eficiente de decisão entre teorias sobre o mundo. Afirmar que podemos desenvolver um novo modelo de “ciência”, e eventualmente até desenvolver algum, não é o suficiente: seria necessário provar que este novo modelo é mais eficiente que o modelo experimental de teste de hipóteses. Portanto, torna-se difícil justificar a legitimidade de uma investigação sobre aspecto psicológico abordável experimentalmente por outro método que não o experimental. Como ilustração desta questão, lembro que grande parte da Psicologia Humanista norte-americana desapareceu quando a Psicologia Cognitiva começou a investigar experimentalmente temas antes excluídos da ciência. No entanto, existem alguns problemas centrais para a Psicologia que não parecem ser passíveis de investigação experimental, e são estes problemas que justificam a existência de teorias não-científicas convivendo em nossa disciplina. Mais do que isso, quando se trata do Ser Humano, não estamos interessados somente em saber como ele funciona cognitivamente ou comportamentalmente, mas também em saber o que ele é. E o método científico não é metafísico, ele não tem aptidão para investigar a essência dos fenômenos, ele só revela as relações invariáveis de suas manifestações. Julgo, portanto, que há um aspecto ainda mais profundo da interdependência entre Psicologia e Filosofia. A Psicologia é uma disciplina constitutivamente dividida entre problemas científicos (e filosóficos) e problemas exclusivamente filosóficos, pois seu objeto de estudo apresenta aspectos abordáveis, aspectos inabordáveis, e aspectos apenas parcialmente abordáveis pelo método científico. Alguns dos aspectos inabordáveis exemplificarei aqui, tendo como base artigo meu anterior (CASTAÑON, 2008): 1) Intencionalidade: O primeiro destes aspectos inabordáveis é a pura atividade da consciência. Tal coisa, como tem como característica central a intencionalidade, sendo sempre a relação com algo diferente dela própria (conceito central da Fenomenologia), não pode ser objeto de investigação empírica objetiva (como fenômeno de terceira 16 pessoa), uma vez que é a própria condição de possibilidade da experiência (um fenômeno de primeira-pessoa). A investigação das propriedades da consciência é uma tarefa filosófica, e tem hoje no filósofo John Searle (1993) uma de suas maiores expressões. Quando investigada como fenômeno de terceira-pessoa, só podemos inferir da atividade da consciência alguns de seus aspetos funcionais e estruturais, mas nunca sua dimensão qualitativa e subjetiva. 2) Criatividade: Não podemos pensar em nada como uma lei explicativa do ato criativo, nem em uma predição de um ato de criação. Tão pouco a criatividade está circunscrita a atos de grandes descobertas. De fato a criação é uma condição permanente da vida psicológica: desde elaborar a estratégia que seguiremos para realizar uma meta a decidir como interpretar um estímulo ambíguo. Talvez pudéssemos pensar em algo como a descoberta de condições necessárias para a emergência de atos criativos, mas até o momento não temos avanços significativos na área. 3) Qualia: O terceiro domínio é o domínio dos qualia. Este termo se refere às qualidades vividas dos eventos mentais (a experiência subjetiva de um vermelho, de uma dor). Refere-se às qualidades particulares da vivência consciente de fenômenos, mas não à essência destes fenômenos: se refere a sua experiência singular, não aos aspectos universais (essências) através dos quais você os reconhece como pertencentes a uma determinada categoria de fenômenos. Não estamos falando, portanto, do sentir dor, mas da experiência única de sentir uma determinada, singular e irrepetível dor. Ninguém jamais saberá como é realmente experimentar um determinado fenômeno como outra pessoa. Não podemos descrever sequer aspectos efetivamente singulares da experiência ou do mundo através de palavras, porque estas sempre se referem a universais. Portanto, o estudo de um quale particular é impossível cientificamente, mas também impossível filosoficamente. Podemos assistir a esta confusão hoje em parte da Psicologia latino-americana, onde ouvimos continuamente a afirmação de que o objeto de estudo da Psicologia seria algo que denominam ‘subjetividade’, e que, apesar de receber as mais diversas definições, geralmente designa a forma única e irrepetível de um sujeito experimentar o mundo. Definida desta forma, como qualia, ela é um objeto impossível para qualquer tipo de investigação. De fato, não podemos conhecer nada sobre os aspectos vivenciais que só são experimentados por uma consciência particular, a não ser que se trate da nossa própria. E se é dessa forma, nossa consciência não tem 17 palavras que possam transmitir essa vivência, só alguns aspectos universais dela (não a dor em si, mas que está com alguma dor em algum lugar). A Filosofia, por usar a linguagem (que só expressa universais), só pode teorizar sobre aspectos universais de seus objetos. Assim, uma pessoa só pode abordar as qualidades subjetivas e vivenciais da experiência em sua existência ou não existência e em sua distinção de outros conceitos universais. Nada mais. 4) Significado: O significado que as pessoas dão aos fenômenos e informações só é abordável pela Psicologia indiretamente, por inferências a partir de reações comportamentais que as pessoas apresentam a determinada informação. O domínio semântico da experiência – o significado vivido – é, entretanto, impenetrável à ciência. Jerry Fodor (1991) ilustrou este limite com seu princípio do ‘solipsismo metodológico’, que defende que só o aspecto sintático da mente é abordável cientificamente. Podemos estudar cientificamente regras e representações, não o significado destas últimas. Tanto a referência de uma representação como o sentido que este referente tem para o sujeito são inabordáveis pela ciência e dispensáveis para se investigar o processamento de representações. Como abordei em trabalhos anteriores (Castañon 2006, 2006b), temos muito a dizer sobre como se dá o processamento de informação pelo ser humano, mas a informação é cega para questões semânticas: é naquele que codifica ou decodifica a informação que se encontra seu significado, não no meio que a transmite nem em seu padrão específico. Não temos muito a dizer sobre como representações podem se referir a algo distinto delas próprias, e quantitativamente, não temos nada a testar sobre isso. Assim, o significado das ações e experiências só é investigado por derivação de terceira ordem: um comportamento, que indica uma representação, que se refere a um significado. Em virtude disso, julgo que uma abordagem filosófica como a Fenomenologia, conforme estabelecida por Husserl (1976), se mostra adequada para lidar com questões de significado, usando, no entanto, metodologia completamente filosófica. 5) Sentido: Segundo Frege (1996/1892), o sentido é uma das dimensões do significado (a outra é a referência). Assim, podemos ainda distinguir questões de significado de questões de sentido, que se revelariam um quinto domínio somente marginalmente abordável pelo método científico. A palavra ‘significado’ geralmente é 18 utilizada representando somente um de seus dois componentes: O primeiro é a referência. O significado da palavra ‘árvore’ usada neste momento é aquele objeto concreto à sua frente que tem uma coluna de madeira que se abre em vários ramos que possuem folhas verdes. Referi-me no item anterior a questões de significado neste primeiro sentido, de referência. O segundo, que abordamos neste parágrafo, é sobre como este referente se relaciona com o conjunto de sua vida, ou seja, sobre o sentido deste: aquela árvore pode ser também o lugar onde você, caindo, quebrou um braço, o fruto da muda plantada por seu avô, a futura coluna de seu novo chalé, etc. De fato, aqui também só podemos ter acesso ao sentido atribuído por uma pessoa a uma informação de maneira indireta: ou pelo comportamento verbal da pessoa ou pela reação comportamental em face de determinado estímulo. Mas o processo de atribuição de sentido é um ato criativo impenetrável ao conhecimento científico. Um caso especial de atribuição de sentido (ou descoberta de sentido) fundamental para a psicologia é a questão do sentido da vida. Novamente aqui, temos um domínio da Psicologia que já foi abordado com maestria por psicólogos fenomenológicos como Viktor Frankl (1973), no que também constitui um domínio exclusivo da Psicologia Filosófica. 6) Valor: Domínio psicológico inacessível à investigação científica é o valor, intimamente ligado à questão do sentido. Os valores são fins em si mesmos, geralmente inúteis para provocar ou conseguir qualquer coisa necessária biologicamente para o indivíduo (não para a espécie), mas ainda assim perseguidos por nós. A verdade, a beleza, o sagrado, o amor, a justiça, o prazer são todos exemplos de valores que geram impulsos motivacionais que diferem profundamente daqueles que podem ser provocados ou manipulados (e, portanto, estudáveis de modo indireto em laboratório), como dor, fome, sede, sono, frio e calor. A Fenomenologia, particularmente com a obra de Max Scheler (2001), e mais uma vez com a de Viktor Frankl, parece o método filosófico mais adequado para a abordagem deste tipo de aspecto da vida psicológica. 7) Agency: Por fim, temos um sétimo domínio apenas parcialmente acessível à investigação científica, que é o da causação final, ou vontade, ou agency. Só podemos investigar motivos e razões do comportamento indiretamente, depois que estes se transformaram em metas, que podem ser inferidas do padrão geral do comportamento. Mas não podemos sequer estabelecer cientificamente o que seriam motivos e razões: se ações diretas livres da consciência ou se as razões são causadas eficientemente, como 19 alegou o filósofo da Psicologia Donald Davidson (1963). De toda maneira, pensar em causas finais como causas últimas do comportamento tem o inconveniente de sempre resultar em teorias infalsificáveis. O caso da teoria do raciocínio dialético, conforme definida por Rychlak (1994) (como o processo de decisão entre duas ou mais interpretações possíveis das informações do ambiente ou duas alternativas igualmente plausíveis de curso de ação), é exemplo da natureza irrefutável destas alegações. Uma vez alegada que a causa de um comportamento foi a vontade, ou a decisão entre duas alternativas igualmente plausíveis de interpretação da informação, ou ainda a criação de uma nova estratégia de ação como resultado de um processo dialético de raciocínio, a investigação científica está interditada, pois a alegação é infalsificável. A afirmação de que um ser humano possui determinada meta em determinada situação é indiretamente falsificável por seu curso de ação, mas a de que ele “mudou” sua meta como resultado de um ato de criatividade e vontade é absolutamente infalsificável. Isto não significa que esta afirmação seja falsa, somente significa que tal afirmação pertence ao campo da especulação filosófica, não ao campo do conhecimento de base empírica. Enfim, se algum destes sete domínios de problemas psicológicos fundamentais que apresentei aqui for realmente impenetrável ao método científico (e estou convencido de que os sete são), está plenamente justificada a necessidade de um campo puramente filosófico de investigação psicológica. 5- A Filosofia da Mente A Filosofia da Mente é a investigação filosófica pura sobre a natureza da mente em todos os aspectos, como propriedades, funções, eventos, consciência e principalmente sua relação com o cérebro. Eventualmente, filósofos da mente podem criar conceitos que se revelam altamente profícuos para a ciência – como os conceitos de linguagem do pensamento e de modularidade da mente (Fodor, 1975; 1983) –, se debruçar sobre o significado dos resultados empíricos da Psicologia e das Neurociências (como, por exemplo, Araujo, 2011), ou sugerir conseqüências de teorias a serem testadas por elas, tornando a fronteira entre ela e a Psicologia Teórica algo nebulosa. Como expõe Kim (2006), tópicos como representação mental, imagética, racionalidade e tomada de decisão, linguagem, crença e desejo, inteligência artificial e conexionismo são contíguos com o trabalho científico, o que torna a maior parte da produção filosófica em alguns destes tópicos melhor classificada como Psicologia Teórica. No 20 entanto, podemos fundamentar esta fronteira na ênfase ontológica da Filosofia da Mente, na forma exclusivamente dedutiva de seu inquérito, além de em sua abordagem de objetos não tratados pelo resto das ciências cognitivas. Já em relação à Psicologia Filosófica este limite pode ser estabelecido em relação a objeto e método. Em relação ao método, a Filosofia da Mente rejeita totalmente qualquer pretensão de disciplina empírica (o que não acontece com abordagens psicológicas como a Psicologia Humanista ou a Psicanálise). Em relação ao objeto, ela não se importa com o ser humano como um todo, como por exemplo, por questões de comportamento, personalidade ou interação social. Ela se concentra fundamentalmente na mente e sua relação com o cérebro. É generalizada entre cientistas a impressão de que a filosofia é um território de livre especulação e discurso sem método, sobre o qual não cabe qualquer limite ou avaliação objetiva possível. Mas esta impressão é falsa. Ela é somente aplicável àqueles filósofos que assim encaram a filosofia, e nos apresentam como produção nada mais do que um obscuro e maçante gênero de literatura. Para a maioria dos filósofos e da produção internacional da área, no entanto, a filosofia tem um método muito evidente, que são as regras necessárias do argumento válido: a lógica. Temos sim um método de eliminação de teorias, e é o da análise de coerência. Teorias que apresentam contradições ou consequências contraditórias, em outras palavras, teorias que acabam gerando consequências que as fazem negarem a si mesmas, são, necessariamente, falsas. E elimina-se uma série de teorias desta forma, o tempo todo. É claro que no fim das contas, apesar dos esforços lógicos da razão, geralmente sobrarão algumas teorias bem construídas, não contraditórias e incompatíveis entre si sobre a mesma coisa. Ao menos, durante este caminho, a filosofia é capaz de eliminar várias teorias inconsistentes e apontar algumas possíveis, legando àqueles que dela se servem ainda uma consciência ampliada dos fundamentos e consequências das teses que defendem. Mas não é só isso. Exatamente porque existe um critério de eliminação de teorias, existe um método para sua construção e apresentação. O método filosófico pode ser definido como um grande exercício lógico de “se, então”. Se tomarmos como verdade tal coisa, definida desta forma, então as consequências logicamente necessárias são estas. Assim, o produto da filosofia são argumentos. Uma teoria é um argumento, e críticas a teorias são igualmente argumentos. Um argumento é uma série de proposições 21 organizada de acordo com regras dedutivas, nas quais as primeiras proposições da série são as premissas e a última proposição é a conclusão. Um argumento não é verdadeiro ou falso (suas proposições, individualmente, é que o são). Ele é válido ou inválido. O que um argumento válido garante é que, se suas premissas forem verdadeiras, então sua conclusão também o é, necessariamente. É claro que, na maioria das vezes, quando possível, a tarefa de testar o valor de verdade de premissas acerca do mundo cabe à ciência empírica. Podemos distinguir em Filosofia cinco utilizações do método dedutivo: 1) Construção de argumentos dedutivos em lógica proposicional É o processo de deduzir as consequências de premissas que são proposições comuns através das regras de inferência. Em última análise, todas as regras de inferência são derivadas dos três princípios básicos da lógica clássica: os princípios da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído. Destes derivamos algumas outras regras de inferência simples, como o modus ponens (se P então Q, P, logo, Q), o modus tollens (se P então Q, não Q, logo, não P), a simplificação (P e Q, logo, Q), a conjunção (P, Q, logo, P e Q), a adição (P, logo, P ou Q), a disjunção (ou P ou Q, não P, logo, Q), a cadeia (se P então Q, se Q então R, logo, se P então R), a transposição (se P então Q, logo, se não Q então não P), a dupla negação (P, logo, não não P) e a lei de DeMorgan (não é fato que P e Q, logo, é fato que ou não P ou não Q). Um argumento bem construído, embora geralmente não traga explícitas todas as etapas da inferência de sua conclusão a partir das premissas aceitas, deve em tese ser suficientemente claro para que possa ser formalizado de modo a demonstrar que, em todas as suas etapas, a aplicação de uma regra de inferência foi a responsável pela passagem a próxima etapa. Se ao tentar formalizar um argumento não conseguimos determinar que regra de inferência foi usada para passar de uma premissa a uma conclusão (intermediária ou final), descobrimos que o discurso em questão não é um argumento estrito senso, não tem valor lógico. Se, no entanto, determinamos que uma conclusão P é uma consequência necessária das premissas assumidas, temos uma prova direta (de que se as premissas são verdadeiras, P é verdadeiro). 2) Construção de argumentos dedutivos em lógica quantificacional 22 Existem muitos argumentos válidos que, no entanto, não podem ser justificados pelas regras de inferência que citei acima. Estes são formados por proposições que relacionam uma determinada quantidade de elementos de duas categorias. São proposições do tipo das leis científicas, como “Todas as aves tem penas”, que considerada em conjunto com uma segunda premissa como “Alguns animais nesta sala são aves” implicaria a conclusão de que “há penas nesta sala”. O campo da lógica que determina as propriedades lógicas de proposições sobre nenhuma, todas ou algumas entidades que caem sob determinado conceito é a lógica quantificacional. Foi começada há dois mil e quinhentos anos com a investigação de Aristóteles sobre os silogismos, mas somente a partir de Frege conheceu novos avanços significativos. Sua natureza, no entanto, continua a mesma. 3) Prova Condicional Um tipo de argumento muito mais simples de ser obtido sobre um problema é a prova condicional. Nesse, mostramos que uma determinada relação condicional (se I então R) está implicada nas premissas. Para isso usamos as regras de inferência citadas no item sobre os argumentos em lógica proposicional. Esta forma de argumento é particularmente importante para a ciência, pois são desta forma todas as predições empíricas derivadas de uma teoria. Ou seja, uma predição empírica derivada é um argumento que prova que, se aquela teoria é verdadeira (conjunto de premissas P e Q), então dadas as condições iniciais I, o resultado R é necessário (ou seja, “se I então R” é consequência das premissas). 4) Prova Indireta (reductio ad absurdum) A redução ao absurdo ou prova indireta consiste em um tipo de argumento onde assumimos como premissa o contrário daquilo que queremos provar e demonstramos que esta premissa (a negação do que acreditamos) leva a uma contradição (ou seja, afirma Q e ¬Q), portanto, é falsa. O exemplo mais curto e simples de redução ao absurdo que pode ser dado é o da tese relativista de que “não existe verdade universal”. Ora, se assumimos que a proposição ¬P (não existe verdade universal) é verdadeira (ou seja, é uma verdade universal), isto implica que P (existe verdade universal) é verdadeira (ou seja, ao menos ¬P é verdade para todos). Logo temos ¬P e P com o mesmo valor de verdade: contradição. A incrível simplicidade desta prova indireta da necessidade da existência 23 da verdade torna surpreendente a defesa de teses relativistas, ainda que, sempre mascarando essa consequência necessária de qualquer tipo de relativismo. 5) Experimentos mentais Além do método dedutivo, a Filosofia se utiliza de outro método eventualmente poderoso, usado por Einstein em suas principais descobertas, o experimento mental (thought experiment). Este consiste geralmente em imaginar consequências empíricas de uma tese em uma situação geralmente bastante peculiar, derivando logicamente as consequências desta situação (com a mesma estrutura de um experimento real). É geralmente realizado com consequências empíricas deduzidas de uma teoria testável em essência, mas não na prática, pois no estado atual de nosso conhecimento e tecnologia o experimento em questão não pode ser realizado. No entanto, em um experimento mental, o que já conhecemos do mundo aliado ao processo dedutivo parece mostrar de forma evidente qual seria seu resultado se executado (são exemplos disso a viagem na velocidade da luz de Einstein e o Gato de Schrödinger). Na Filosofia da Mente, o exemplo mais conhecido de experimento mental é o do quarto chinês (Searle, 1980), que a despeito da discordância de alguns funcionalistas radicais, marcou o início do declínio da tese da IA forte (ver CASTAÑON, 2006b) e se tornou um dos artigos mais citados da história. Alguém pode objetar que nem todos são convencidos pelo experimento mental de Searle. Mas o fato é que, igualmente, nem todos são convencidos por experimentos convencionais. Enumerei os métodos de que se serve a Filosofia da Mente para construir e avaliar teorias. Outra forma de apresentar o campo é apresentar os problemas aos quais o método é aplicado. Aqui elencarei algumas perguntas que têm dominado os esforços de criação de hipóteses e argumentos, assim como suas análises contemporâneas em Filosofia da Mente, e que normalmente se encontram em livros-texto e coletâneas atuais e fundamentais da área (como o de Jaegwon Kim, 2006, e a de David Chalmers, 2002). 1) Natureza da Mente: O primeiro destes problemas é o da natureza da mente. O que é a mente? É a mente uma substância? Deste problema evidentemente central e fundante se derivam todos os secundários. 24 2) Relação Mente-corpo: O mais importante destes talvez seja o da relação mente-corpo. São questões relacionadas a este a de saber se a mente é o mesmo que o cérebro, e para aquelas respostas negativas, o problema de como ela se relaciona com o corpo. As posições tradicionais acerca deste problema são o dualismo cartesiano, o ocasionalismo, o pluralismo monadológico, o behaviorismo ontológico, o funcionalismo, o interacionismo, a teoria da identidade e o epifenomenalismo. 3) Causação Mental: Se a mente não é o mesmo que o cérebro, como pode provocar alterações nele? Se ela é algo imaterial, como eventos mentais podem causar eventos físicos, como meus toques no teclado agora escrevendo este texto? Este problema tradicional da Filosofia da Mente é o da causação mental, também central na disciplina. Também envolve a direção oposta: como é possível que um espectro da radiação eletromagnética do ambiente cause em minha consciência a vivência da vermelhidão? Ainda outro problema examinado nesse tópico é a cadeia de causalidade entre eventos mentais, como por exemplo, o fato da crença em que o campo da Filosofia da Psicologia não é bem conhecido no Brasil gerando outra crença em mim de que devo concluir um artigo sobre isso. Teríamos neste caso uma crença causando outra crença, mas pode causar também desejos ou repulsas específicas. Como se pode depreender, o problema da causação mental engloba, em uma de suas direções, o problema dos motivos ou causas, ou agency, que por sua vez leva ao problema da possibilidade de leis hipotético-dedutivas (universais) na Psicologia. Lembramos novamente que Davidson (1963) alegou que o que chamamos de motivos ou razões para fazer algo também foram, a seu turno, causadas eficientemente (de forma determinista). É natural, portanto, que o tópico englobe problemas relacionados a “folk psychology”, como crença e desejo. Perguntas sobre a natureza da crença e do desejo, sobre a necessidade de pensar essas categorias como naturais, sobre a diferença (ou existência) entre ações governadas ou determinadas por regras são decorrências naturais do inquérito sobre a causação mental. 4) Consciência e Qualia: Igualmente central, talvez o mais difícil dos problemas filosóficos depois da existência do ser, é o problema da consciência. David Chalmers (1995) o recolocou contemporaneamente distinguindo entre problemas fáceis e o problema difícil da consciência (the hard problem of consciousness). O problema 25 insolúvel da consciência seria o de porque e como nós temos experiências subjetivas qualitativas de fenômenos. Alguns dos problemas “fáceis” seriam os da integração dos diferentes tipos de informação em um todo coerente, da focalização da atenção em estímulos ou idéias, do controle voluntário de comportamentos, da diferenciação entre o estado desperto e o sonho e da habilidade de discriminação e categorização. Estes problemas seriam “fáceis” porque sua solução científica se resumiria a especificação de um mecanismo e programa que pudesse realizar a específica função cognitiva. Ou seja, por mais que se possa achar inverossímil tal coisa, ela seria em tese possível a teorias compatíveis com o materialismo. No entanto, a questão dos qualia é intratável à ciência porque a compreensão de uma ou todas as funções da consciência sequer tocariam o problema da qualidade da experiência subjetiva. Explicado de outra maneira, à moda de filósofos, podemos expor o hard problem perguntando: porque é necessário (ou como é possível) que o processamento da informação sensorial resulte em uma experiência qualitativa vivida? Um telefone pode processar informação acústica sem isso. 5) Inteligência Artificial: Outro campo de problemas na Filosofia da Mente diretamente ligado à psicologia cognitiva é o da Inteligência Artificial, que se ocupa da questão da possibilidade de sistemas físicos não-biológicos simularem ou reproduzirem propriedades e funções da mente humana. Dividido fundamentalmente entre aqueles que consideram que algumas funções são simuláveis, mas executadas de modo diferente da do ser humano, a IA fraca, e aqueles que consideram que é possível em tese reproduzir exatamente todas as funções e capacidades da mente humana com a máquina e o programa certos, a IA forte. Grande parte da atividade em inteligência artificial pode ser considerada, segundo Kukla (1989), psicologia teórica, uma vez que consiste em propor modelos formalizados de funções cognitivas humanas. 6) Representação Mental: Nós usamos determinados sons e sinais gráficos para nos comunicarmos com outros seres humanos porque eles são capazes de re-presentar para nossos interlocutores objetos que não estão presentes (e representá-los como sendo ou estando de um certo modo). Como isso é possível? Podemos derivar isso da intencionalidade da mente. Por ser intencional, a mente é capaz de atribuir intencionalidade a um conjunto de símbolos que, após esta operação, passam a referir o objeto Torre Eifel. Mas o que é isso? Como é possível representarmos o mundo através das mais variadas formas sensoriais? Somos capazes de representar a sala de nossa casa 26 de forma visual com imagens mentais, auditiva com uma descrição linguística de sua disposição e objetos, olfativa com o cheiro de alguma planta que lá está, cinestésica com os movimentos que temos que fazer ao entrar nela. Nós re-apresentamos à nossa mente a sala que se apresenta a ela quando lá estamos. Há uma disciplina da Psicologia Cognitiva, a imagética, que começou a invadir esta seara antes totalmente filosófica do problema da mente. Mas seu impacto e capacidade explicativa ainda são muito limitados. O problema complexo da representação mental e da intencionalidade ainda é um problema predominantemente filosófico, e teses produzidas sobre o problema foram tão importantes para o desenvolvimento da ciência contemporânea que foram capazes de propiciar o surgimento de novas técnicas ou mesmo disciplinas. Entre estas, podemos citar os casos principais das duas teses de Jerry Fodor que mudaram a face das Ciências Cognitivas. A que propiciou o boom da inteligência artificial, a tese da linguagem do pensamento (Fodor, 1975), e a que é pressuposta em todos os estudos de neuroimagem e neurociência cognitiva, a da modularidade da mente (Fodor, 1983). Se não postulamos que a mente é constituída de vários módulos ou processadores cognitivos de relativa independência, que executam funções distintas e processam informações diferentes, não faz sentido a busca por ativações diferentes em regiões distintas do cérebro diante da execução de tarefas distintas. Os problemas acima são somente os fundamentais e ainda mais estritamente filosóficos, mas outros grupos de problemas são investigados igualmente pela Psicologia Teórica e a Filosofia da Mente. O problema do Inatismo é um deles. Em que medida as regras que usamos para processar as informações são inatas ou construídas? Essa é hoje uma decisão submetível a testes empíricos em psicologia do desenvolvimento, mas ainda há questões relacionadas a este problema que podem ser consideradas somente em termos de necessidades a priori da aquisição de conhecimento. De igual maneira, o problema da natureza psicológica dos conceitos é investigada pela psicologia do pensamento, mas se a pergunta se volta para a natureza dos conceitos em si, precisa ser investigada filosoficamente. Assim, as fronteiras entre a Filosofia da Mente e a Psicologia Teórica vão se borrando na medida em que a ciência avança sobre territórios antes inacessíveis a ela. O aumento da dificuldade de distinção entre as duas disciplinas é, portanto, um motivo de regozijo. É um sinal inequívoco de que o trabalho filosófico pode propiciar o avanço da ciência e o crescimento de seus domínios. 27 6- Conclusão Acredito que este artigo foi suficiente para realizar três coisas. Primeiro, para dar uma visão geral da vastidão do campo da Filosofia da Psicologia. Segundo, para evidenciar a vital importância da Psicologia Teórica para a Psicologia Científica, da mesma forma que a Física Teórica é vital para a Física experimental. Terceiro, e essa é a parte menos consensual e mais sensível do trabalho, para justificar a tese de que a Psicologia é ela própria uma disciplina que para oferecer uma abordagem completa de seu objeto de estudo precisa se dividir entre uma abordagem científica e uma abordagem filosófica. Em artigos anteriores (CASTAÑON, 2006, 2008), apresentei outros argumentos em defesa desta tese, como a divisão entre explicações dedutivo-nomológicas (que seriam impossíveis à ciência psicológica e, portanto, nada mais que argumentos teóricos) e explicações condicionais (possíveis à ciência psicológica). Muitos filósofos da psicologia contemporâneos defendem a tese da dupla abordagem em nossa disciplina. André Kukla (2001) publicou uma taxonomia da metodologia da Psicologia Teórica, Sigmund Koch (1985, 1993) defendeu a tese de que a Psicologia não era um campo passível de unificação nem teórica nem metodológica, em virtude do que ele acreditava que se deveria mudar sua denominação de Psicologia para Psychological Studies, dos quais alguns (estudos) eram científicos, outros não. O cognitivista Howard Gardner (1992) adere à tese de Koch e defende que grande parte dos tópicos de investigação psicológica não é passível de adequada abordagem científica, sendo de natureza filosófica. Ele acredita que a investigação na Ciência Cognitiva é científicofilosófica, e que psicólogos devem investigar alguns problemas sempre em colaboração com filósofos, lingüistas, neurocientistas e engenheiros de computação. Joseph Rychlak (1993) é outro expressivo psicólogo e filósofo da psicologia contemporâneo que não vê mais como se pensar uma disciplina psicológica científica isolada da Filosofia. Ele propõe para o campo a importação do princípio da complementaridade, de Niels Bohr. Para ele, uma vez que o fenômeno psicológico é multicausado, não existe possibilidade de reduzi-lo a uma única esfera de causalidade, a um único nível de explicação (físico, biológico, lógico ou social). Mas mesmo que muitos pesquisadores não estejam convencidos desta necessidade intrínseca da disciplina, não parece passível de questionamento a existência de uma grande quantidade de funções cumpridas (que a descrição oferecida aqui ilustra) 28 e problemas enfrentados pela Psicologia Teórica. Um olhar atento para a Psicologia Moderna revela uma atividade que não é muito mais que um barquinho de empiria navegando num oceano de atividade teórica. É claro, entretanto, que este barquinho é fundamental, porque seres humanos se perdem e se afogam, e o oceano metafísico é um ambiente muito vasto e hostil para nós. REFERÊNCIAS Araujo, S. (2011). 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