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A FILOSOFIA DA PAISAGEM

✐ ✐ ✐ ✐ A FILOSOFIA DA PAISAGEM Georg Simmel Tradutor: Artur Morão www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ Covilhã, 2009 F ICHA T ÉCNICA Título: A Filosofia da Paisagem Autor: Georg Simmel Tradutor: Artur Morão Colecção: Textos Clássicos de Filosofia Direcção: José M. S. Rosa & Artur Morão Design da Capa: António Rodrigues Tomé Composição & Paginação: José M. S. Rosa Universidade da Beira Interior Covilhã, 2009 ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ A Filosofia da Paisagem∗ Georg Simmel Inúmeras vezes deambulamos pela natureza livre e avistamos, com os mais variados graus de atenção, árvores, cursos de água, prados e searas, colinas e casas e outras mil alterações da luz e das nuvens - mas, lá por atendermos a um pormenor ou contemplarmos isto ou aquilo, ainda não estamos conscientes de ver uma "paisagem". Pelo contrário, semelhante conteúdo particular do campo visual não há-de acorrentar o nosso espírito. A nossa consciência, para além dos elementos, deve usufruir de uma totalidade nova, de algo uno, não ligado às suas significações particulares nem delas mecanicamente composto - só isso é a paisagem. Se não me engano, raramente nos demos conta de que ainda não há paisagem quando muitas e diversas coisas se encontram lado a lado numa parcela de solo e são directamente contempladas. Tentarei, a partir de alguns dos seus pressupostos e das suas formas, interpretar o peculiar processo espiritual que, de tudo isso, compõe a paisagem. Antes de mais, que os elementos visíveis num local da terra sejam "natureza- porventura com obras humanas que nele se enquadram - e não arruamentos com armazéns e automóveis - tudo isso ainda não faz desse lugar uma paisagem. Por natureza entendemos o nexo infindo das coisas, a ininterrupta parturição e aniquilação das formas, a unidade ondeante do acontecer, que se expressa na continuidade da existência espacial e temporal. Se designarmos [Philosophie der Landschaft] ex: Die Güldenkammer. Eine bremische Monatsschrift, herausgegeben von Sophie Dorothea Gallwitz, Gustav Friedrich Hartlaub und Hermann Smidt, 3. Jg., 1913, Heft II, S.635-644 (Bremen) ∗ 5 ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ 6 Georg Simmel algo de real como natureza, pretendemos então mencionar ou uma qualidade interna, a sua diferença frente à arte e ao factício, frente a algo de ideal e histórico; ou que ele deve figurar como representante e símbolo daquele ser conjunto, que nele ouvimos o marulhar da sua corrente. "Um pedaço de natureza"é, em rigor, uma contradição em si; a natureza não tem fracções; é a unidade de um todo, e no momento em que dela algo se aparta deixará inteiramente de ser natureza, porque ele só pode existir justamente no seio dessa unidade sem fronteiras, só pode existir como uma onda da torrente conjunta que é a "natureza". Mas, para a paisagem, é justamente essencial a demarcação, o ser-abarcada num horizonte momentâneo ou duradouro; a sua base material ou os seus fragmentos singulares podem, sem mais, surgir como natureza - mas, apresentada como "paisagem", exige um ser-para-si talvez óptico, talvez estético, talvez impressionista, um esquivar-se singular e característico a essa unidade impartível da natureza, em que cada porção só pode ser um ponto de passagem para as forças totais da existência. Ver como paisagem uma parcela de chão com o que ele comporta significa então, por seu turno, considerar um excerto da natureza como unidade - o que se afasta inteiramente do conceito de natureza. Afigura-se-me ser este o acto espiritual com que o homem modela um âmbito de fenómenos e o insere na categoria de "paisagem": uma contemplação em si reclusa, apercebida como unidade auto-suficiente, entrançada, porém, numa extensão infinitamente ampla, numa torrente vasta, e guarnecida de limites que não existem para o sentimento do Uno divino e do todo da natureza, o qual reside em baixo, noutro estrato. Incessantemente são por este reactivados e dissolvidos os limites autodelineados da paisagem respectiva que, avulsa e autónoma, é sublimada pelo saber obscuro acerca deste nexo infindo - tal como a obra de um homem está ali qual criação objectiva, auto-responsável e, no entanto, permanece num entrelaçamento dificilmente expressável com a alma inteira, www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ A Filosofia da Paisagem 7 com a vitalidade integral do seu criador, por ela sustentada, e todavia ainda ondeia, sempre perceptível. A natureza, que no seu ser e no seu sentido profundos nada sabe da individualidade, graças ao olhar humano que a divide e das partes constitui unidades particulares, é reorganizada para ser a individualidade respectiva que apelidamos de "paisagem". Muitas vezes se afirmou que o verdadeiro "sentimento da natureza"só se desenvolveu na época moderna e se derivou do seu lirismo, do seu romantismo, etc.; segundo creio, de um modo algo superficial. As religiões das épocas mais primitivas parecem-me revelar justamente um sentimento muito profundo da "natureza". Só a sensibilidade pela configuração particular "paisagem"é que surgiu tardiamente e, decerto, porque a sua criação exigiu um afastamento desse sentimento unitário da natureza no seu conjunto. A individualização das formas interiores e exteriores da existência, a dissolução dos liames e dos vínculos originais em entidades autónomas diferenciadas - esta grande fórmula do mundo pós-medieval é que nos permitiu também ver a paisagem como ressaindo da natureza. Não admira que a Antiguidade e a Idade Média não tivessem nenhum sentimento da paisagem; o próprio objecto ainda não existia nessa decisão psíquica e nessa transformação autónoma, cujo provento final confirmou e, por assim dizer, capitalizou em seguida o aparecimento da paisagem na pintura. Que a parte de um todo se torne um outro todo independente, que dele se emancipe e, frente ao mesmo, reivindique um direito próprio - eis, porventura, a tragédia fundamental do espírito em geral, que na época moderna chegou à sua plena consequência e estorvou em si o rumo do processo cultural. A partir da multiplicidade das relações em que os homens, os grupos e as criações se enredam contrapõe-se-nos rigidamente, por toda a parte, o dualismo, de tal modo que o indivíduo aspira a ser um todo e a sua pertença a um todo mais amplo pretende conceder-lhe apenas o papel de membro. Sabemos que o nosso centro está, ao mesmo tempo, fora de www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ 8 Georg Simmel nós e dentro de nós, pois nós próprios e a nossa obra somos simples elementos de totalidades, que nos reclamam como unilateralidades sujeitas à divisão do trabalho - e, no entanto, queremos nisso ser algo de torneado, algo que se apoia em si mesmo, queremos criar algo de comparável. Enquanto daí redundam incontáveis conflitos e cisões no campo social e técnico, na esfera espiritual e moral, a mesma forma, frente à natureza, engendra a riqueza harmónica da paisagem, que é algo de individual, coeso, pacífico em si, e permanece vinculada, sem contradição, ao todo da natureza e à sua unidade. Mas não se há-de negar que a "paisagem"só surge quando a vida pulsando na intuição e no sentimento é em geral arrancada à unicidade da natureza e o produto particular assim criado, transferido para um estrato inteiramente novo, se reabre então, por assim dizer, de per si à vida universal, acolhendo o ilimitado nos seus limites inviolados. Mas, perguntaremos ainda, que lei determina esta selecção e esta composição? Pois o que porventura abrangemos com um olhar ou dentro do nosso horizonte momentâneo não é ainda a paisagem, mas, quando muito, o material para ela - tal como um montão de livros, postos uns ao lado dos outros, ainda não é uma "biblioteca"; pelo contrário, eles só se tornam tal, sem acrescentar ou retirar algum, quando um certo conceito unificador os abarca e lhes dá uma forma. Só que a fórmula inconscientemente activa, que engendra a paisagem enquanto tal, não se apresentará de modo tão simples, e até talvez se não deva, em princípio, apresentar. O material da paisagem, tal como a simples natureza o fornece, é tão infindamente variado, tão mutável de caso para caso, que os pontos de vista e as formas, que aglutinam estes elementos naquela unidade de impressão, serão igualmente muito variáveis. O caminho para chegar aqui, pelo menos, a um valor aproximado parece-me passar pela paisagem como obra de arte pictórica. De facto, a compreensão de todo o nosso problema atém-se ao motivo seguinte: a obra de arte ’paisagem’ surge como a gradual con- www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ A Filosofia da Paisagem 9 tinuação e purificação do processo em que a paisagem - na acepção do uso linguístico comum - sobressai da pura impressão das coisas naturais singulares. O que o artista faz - extrair da torrente e da infinidade caóticas do mundo imediatamente dado um fragmento, apreendê-lo e formá-lo como uma unidade, que agora encontra em si mesma o seu sentido e intercepta os fios que a ligam ao universo e os reata de novo no ponto central que lhe é peculiar - eis o que também nós fazemos de um modo mais chão, com menos princípios, mais incerto nos seus limites, logo que contemplamos uma "paisagem"em vez de um prado, de uma casa, de um riacho e de um séquito de nuvens. Transparece aqui uma das mais profundas determinações de toda a vida espiritual e produtiva. O que chamamos cultura contém uma série de formações com leis próprias que, numa limpidez auto-suficiente, se situaram para lá da vida quotidiana, muito emaranhada, que decorre na práxis e na subjectividade: são elas a ciência, a religião e a arte. Podem estas, decerto, exigir ser cultivadas e compreendidas segundo as ideias e as normas que lhes são consentâneas, libertas de todas as opacidades da vida contingente. Todavia, um outro caminho leva ainda à sua compreensão, ou mais exactamente, um caminho leva ainda a compreendê-las de outro modo. A vida empírica, por assim dizer destituída de princípios, contém indícios e elementos incessantes dessas formações que, a partir dela, contendem pelo desenvolvimento que lhes é inerente e que se cristaliza apenas em torno da ideia própria. Não como se todos estes complexos criativos do espírito subsistissem e a nossa vida, decorrendo sob quaisquer impulsos e objectivos, se apoderasse de certos segmentos daquelas e em si os integrasse. Não se aponta aqui este acontecer, naturalmente duradouro, mas a tendência inversa. A vida, no seu decurso incessante, gera porventura sentimentos e modos de conduta que se devem dizer religiosos, embora eles se não se experimentem de forma alguma sob o conceito de religião www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ 10 Georg Simmel nem a ele sejam inerentes: o amor, as impressões da natureza, os enlevos ideais e a dedicação às comunidades humanas mais amplas ou mais restritas têm, assaz frequentemente, esta coloração, mas que não irradia sobre elas a partir da "religião"já autonomamente estabelecida. A religião, por seu lado, desponta, quando este elemento particular, congénito a todas estas vivências, codeterminando o padrão do seu experienciar, se eleva a uma existência própria, deixa atrás de si o seu conteúdo e se condensa, de modo autocriativo, nas formações puras que são expressões suas: as divindades - independentemente da verdade e da significação que esta criação possui na sua vida própria e apartada de todas aquelas formas precedentes. A religiosidade, em cuja tonalidade vivenciamos inúmeros sentimentos e destinos, não deriva - ou, por assim dizer, só ulteriormente provém - da religião como um particular domínio transcendente; pelo contrário, a religião brota dessa religiosidade, na medida em que esta cria e extrai de si própria conteúdos, em lugar de formar e colorir os que são dados pela vida e, depois, na vida se entremeiam. As coisas não se passam de modo diferente na ciência. Os seus métodos e as suas normas, em toda a sua intangível altura e soberania, são, porém, as formas do conhecer de todos os dias, feitas autónomas, que alcançaram a hegemonia. Estas são, sem dúvida, simples meios da práxis, elementos úteis e de certo modo contingentes, entrelaçados com tantos outros para a totalidade empírica da vida; mas, na ciência, o conhecimento tornou-se fim em si, um domínio do espírito administrado de acordo com uma legislação própria - todavia, com esta ingente deslocação do centro e do sentido, ela é tão-só a limpidez e a estruturação em princípios do saber disseminado na vida e no mundo quotidiano. Em vez da banalidade iluminista, que pretende aglutinar as províncias ideais do valor a partir das baixezas da vida, a religião a partir do medo, da esperança e da incerteza, o conhecimento a partir das casualidades sensíveis e tão-só ao serviço do sensível - vale www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ A Filosofia da Paisagem 11 mais reconhecer que essas regiões ideais se inserem de antemão nas energias que determinam a vida; e só quando elas, em vez de se ajustarem a um material estranho, se tornam legisladoras do seu reino particular, criadoras dos seus próprios conteúdos, é que os nossos recintos de valor crescem em torno da pureza de uma ideia. E é também esta a fórmula essencial da arte. É uma tolice rematada derivá-la do impulso mimético, do instinto lúdico ou de outras fontes psicológicas estranhas, que se mesclam decerto com a sua fonte genuína e podem codeterminar a sua expressão; mas a arte enquanto arte só pode provir da dinâmica artística. Não como se ela começasse com a obra de arte já pronta. Provém da vida - mas só porque e na medida em que a vida, tal como é vivida em cada dia e por toda parte, contém as energias formadoras, o seu efeito puro, tornado autónomo, determinando para si o seu objecto, se chama então arte. Sem dúvida, nenhum conceito de "arte"está em acção, quando o homem diariamente fala ou se exprime em gestos, ou quando a sua contemplação modela os seus materiais de acordo com o sentido e a unidade. Mas em tudo actuam tipos de configuração que devemos, por assim dizer só depois, chamar de artísticos; de facto, quando estes, na sua legalidade própria e fora do envolvimento útil na vida, formam para si um objecto, que é tão-só o seu produto - é que se trata justamente de uma "obra de arte". Só neste meio mais amplo se justifica a nossa interpretação da paisagem a partir dos derradeiros fundamentos configuradores da nossa imagem do mundo. Quando realmente vemos uma paisagem, e já não uma soma de objectos naturais, temos uma obra de arte in statu nascendi. E se, muitíssimas vezes, perante as impressões de uma paisagem, ouvimos os leigos dizer que gostariam de ser pintores para reter essa imagem, isso significa decerto não só o desejo de fixar uma reminiscência - desejo que seria igualmente provável frente a muitas outras impressões de outro género -, mas também que em nós, já nessa contemplação, está viva e se tornou operante, por embrionária que seja, a forma artística; e, incapaz de www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ 12 Georg Simmel chegar à criatividade própria, insinua-se pelo menos no desejo e na sua antecipação interior. Que a capacidade plástica e artística de cada um se realize mais na paisagem do que, porventura, na contemplação dos indivíduos humanos, deve-se a razões várias. Em primeiro lugar, a paisagem está diante de nós numa distância de objectividade que é favorável ao comportamento artístico, mas que se não alcança de modo fácil e imediato no conspecto dos outros homens. O obstáculo reside aqui nas digressões subjectivas entre a simpatia e a antipatia, nas complicações práticas e, sobretudo, nos pressentimentos ainda mal determinados - que significaria para nós este homem, se ele fosse um factor da nossa vida - sentimentos, sem dúvida, muito obscuros e complexos, mas que me parecem decidir toda a nossa consideração, mesmo do indivíduo mais estranho. À dificuldade de um distanciamento sereno perante a imagem dos seres humanos, comparada com a imagem da paisagem, juntase o que se há-de chamar a resistência da primeira perante a conformação artística. O nosso olhar pode jungir os elementos paisagísticos ora neste ora naquele agrupamento, deslocá-los entre si de múltiplas maneiras, deixar variar o centro e os limites. Mas a imagem humana determina tudo isto a partir de si, realizou pelas suas próprias forças a síntese à volta do seu centro e, deste modo, delimita-se a si mesma, sem ambiguidade. Por isso, na sua configuração natural, aproxima-se já de qualquer modo da obra de arte, e esta pode ser a razão por que é sempre mais fácil, para o olhar menos exercitado, confundir a fotografia de uma pessoa com a reprodução do seu retrato do que uma fotografia da paisagem com a reprodução de uma pintura paisagística. A reconfiguração da aparência humana na obra de arte é inquestionável; só que ela resulta, por assim dizer, imediatamente do dado desta aparência, ao passo que frente ao quadro paisagístico existe ainda uma fase intermediária: a modelação dos elementos naturais na "paisagem"em sentido habitual, para a qual tiveram de concorrer já categorias estéticas, e www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ A Filosofia da Paisagem 13 que, por isso, ao situar-se no caminho para a obra de arte, representa a sua forma antecipada. As normas da sua realização podem, pois, compreender-se a partir da obra artística, que é a consequência pura, tornada autónoma, destas normas. O estado actual da nossa estética dificilmente nos permite ir além desta enunciação de princípios. De facto, as regras que a pintura paisagística elaborou para a escolha do objecto e do ponto visual, para a iluminação e a ilusão espacial, para a composição e a harmonia das cores, seriam fáceis de aduzir, mas concernem, por assim dizer, à porção do movimento que vai da primeira e singular impressão das coisas até ao quadro paisagístico, e que se situa por cima do estádio da contemplação geral da paisagem. O que a ele conduz é inocentemente aceite e pressuposto por tais regras; e, por isso, embora se encontre na mesma direcção da configuração artística, não deve ler-se a partir delas, que regulam o elemento artístico em sentido estrito. Um destes elementos configuradores impõe, de modo imperceptível, a profundidade da sua problemática. A paisagem, dizemos, nasce quando, no solo, uma ampla dispersão de fenómenos naturais converge para um tipo particular de unidade, diferente daquele com que o sábio no seu pensamento causal, o adorador da natureza com o seu sentimento religioso, o agricultor com o seu propósito teleológico ou o estrategista apreendem justamente este campo visual. O suporte mais relevante desta unidade é, sem dúvida, o que se rotula de disposição anímica (Stimmung) da paisagem. Pois, assim como por disposição anímica de um homem entendemos o elemento unitário que colora constantemente ou só no momento presente a totalidade dos seus conteúdos psíquicos singulares, em si mesmo nada de individual, muitas vezes nem sequer apenso a um elemento particular referível, mas é todavia o universal onde agora se reúnem todas estas singularidades - assim também a disposição anímica da paisagem penetra todos os seus elementos particulares, sem que, muitas vezes, nela se consiga fa- www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ 14 Georg Simmel zer sobressair um só; cada qual, de um modo dificilmente designável, tem nela parte - mas ela nem subsiste fora destes contributos nem deles é composta. Esta peculiar dificuldade em localizar a disposição anímica de uma paisagem prolonga-se num estrato mais profundo com a questão: em que medida essa disposição da paisagem se funda objectivamente nela própria, já que é um estado psíquico e, por isso, só pode habitar no reflexo afectivo do observador, e não nas coisas exteriores desprovidas de consciência? E estes problemas cruzam-se naquele que aqui nos ocupa: se a disposição anímica é um factor essencial ou, porventura, o factor essencial que coaduna os fragmentos na paisagem enquanto unidade apercebida - como é possível ter ela uma "disposição anímica", já que a paisagem só existe quando é enxergada como unidade, e não antes, na simples soma dos fragmentos dissemelhantes? Estas dificuldades nada têm de artificial, antes são inevitáveis, como inúmeras outras do mesmo género, logo que a vivência simples, em si indivisa, é decomposta em elementos pelo pensamento e deve então ser compreendida mediante as relações e as articulações destes elementos. Mas talvez esta ideia nos ajude a ir mais longe. Não deveriam, efectivamente, a disposição anímica da paisagem e a unidade nela perceptível ser uma só e mesma coisa, só que considerada sob duas vertentes? Não são ambas o mesmo meio, apenas duplamente expressável, graças ao qual a alma contemplativa, a partir da dispersão dos fragmentos, instaura a paisagem, justamente esta paisagem determinada? Este comportamento não é totalmente destituído de analogias. Quando amamos um ser humano, começamos por ter dele, aparentemente, uma imagem mais ou menos coesa, para a qual, em seguida, o sentimento se orienta. Mas, na realidade, o apercebido inicialmente de forma objectiva é de todo diferente do que amamos; a imagem deste só surge ao mesmo tempo com o amor, e justamente quem deveras sente não saberia dizer se a imagem que www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ A Filosofia da Paisagem 15 se alterou acendeu o amor ou se este suscitou a transformação da imagem. O caso não é diferente quando recriamos em nós o sentimento contido num poema lírico. Se este sentimento não nos estivesse imediatamente presente nas palavras que captamos, elas não representariam para nós poema algum, mas uma simples comunicação - por outro lado, se interiormente não as acolhêssemos como um poema, jamais poderíamos avivar em nós esse sentimento. Perante tudo isto, está, evidentemente, mal formulada a questão de se primeiro, ou só depois, vem a nossa representação unitária da coisa ou o sentimento que a acompanha. Entre eles não existe a relação de causa e efeito e, quando muito, ambos poderiam figurar quer como causa quer como efeito. Por isso, a unidade que a paisagem enquanto tal suscita e a disposição anímica que a partir dela em nós retumba e com a qual a envolvemos, são apenas desmembramentos ulteriores de um só e mesmo acto psíquico. E assim uma luz incide na obscuridade do problema anteriormente indicado: com que direito a disposição anímica, um processo afectivo exclusivamente humano, surge como qualidade da paisagem, ou seja, de um complexo de coisas naturais inanimadas? Este direito seria ilusório se, de facto, a paisagem consistisse apenas em semelhante dispersão de árvores e colinas, de cursos de água e de pedras. Mas ela é já em si uma produção espiritual, em nenhum lugar se pode tocar ou trilhar de um modo puramente extrínseco; vive tão-só pela força unificadora da alma, como um entrelaçamento do dado com a nossa criação, e que nenhuma comparação mecânica consegue expressar. Ao ter, pois, enquanto paisagem, toda a sua objectividade no recinto possante do nosso configurar, a disposição anímica, expressão ou dinâmica particular deste configurar, encontra nela a plena objectividade. Não será, então, o sentimento, dentro do poema lírico, uma realidade indubitável, tão independente de toda a arbitrariedade e de todo o capricho subjectivo como o ritmo e a rima - embora nas palavras singulares, que o processo natural da formação linguística www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ 16 Georg Simmel gerou, como quem diz, sem saber, e em cuja sequência consiste externamente o poema, se não encontre nenhum vestígio de tal sentimento? Mas, porque o poema, justamente enquanto criação objectiva, é já um produto do espírito, o sentimento é também algo de verdadeiramente objectivo e tão pouco separável daquela realidade como das vibrações do ar, quando nos chegaram ao ouvido, se deve separar o som com que elas, em nós, se tornam realidade. Ora, por disposição anímica não há-de entender-se aqui nenhum dos conceitos abstractos em que, por mor da possibilidade de classificação, subsumimos o elemento geral de muitíssimas disposições: dizemos que uma paisagem é serena ou séria, heróica ou monótona, comovente ou melancólica, e deixamos assim que a sua própria e imediata disposição afectiva conflua para um estrato que, na verdade, é psiquicamente secundário e que, da vida originária, preserva apenas as ressonâncias não específicas. Pelo contrário, a disposição anímica, aqui referida, de uma paisagem é tão-só a disposição justamente desta paisagem e nunca pode ser a de qualquer outra, embora ambas se possam, porventura, abranger no conceito geral, por exemplo de melancólico. Tais disposições anímicas, conceptualmente típicas, podem decerto asserir-se acerca da paisagem já antes realizada; mas a disposição psicológica que lhe é imediatamente própria, e que se tornaria outra com a modificação de cada linha, essa é-lhe inata, está indissoluvelmente ligada ao despontar da sua unidade formal. Um dos erros comuns que delongam a compreensão da arte plástica, e até da plasticidade em geral, consiste em buscar a disposição anímica da paisagem apenas nos conceitos gerais da sensibilidade lírico-literária. A disposição real, individual e peculiar de uma paisagem não se há-de caracterizar com tais abstracções, tal como a sua plasticidade se não pode descrever com conceitos. Se a disposição anímica fosse tão-só o sentimento que a paisagem desencadeia no espectador, então também este sentimento, na sua real determinidade, estaria exclusiva e rigorosamente associado a esta www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ A Filosofia da Paisagem 17 paisagem, sem permuta possível, e só quando eu extingo o que há de imediato e de real no seu carácter consigo incluí-lo no conceito geral de melancólico ou de alegre, de sério ou de comovente. Quando, pois, a disposição anímica significa o geral, ou seja, o que não está incluso em nenhum elemento singular justamente desta paisagem, mas não o geral de muitas paisagens, pode ela designar-se, e também o evolver desta paisagem, isto é, a configuração unitária de todos os seus elementos individuais, como um só e mesmo acto, como se as múltiplas energias da nossa alma, as contemplativas e as afectivas, cada qual na sua tonalidade, proferissem em uníssono uma só e mesma palavra. Quando a unidade da existência natural se esforça, como acontece diante da paisagem, por nos enredar em si, revela-se como duplamente errónea a cisão entre um eu que vê e um eu que sente. Como seres humanos integrais, estamos perante a paisagem, natural ou artística, e o acto que para nós a suscita é, de forma imediata, contemplativo e afectivo, que só na reflexão ulterior se cinde nestas particularidades. Artista é tão-só aquele que realiza este acto plasmador do ver e do sentir com tal limpidez e força que absorve integralmente em si o material fornecido pela natureza e o recria como que a partir de si; enquanto nós, os outros, permanecemos mais atados a este material e, por isso, costumamos sempre percepcionar este ou aquele elemento particular, onde o artista efectivamente apenas vê e modela uma “paisagem". www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ ✐ 18 Georg Simmel *** [Nota do Tradutor] Agradeço ao editor, Joaquim Soares da Costa, da Texto e Grafia, a amável autorização para, desde já, se proporcionar aos cultores e apreciadores da filosofia, portugueses e outros, a ocasião de saborear este texto de Georg Simmel sobre a paisagem e o seu significado. Este escrito faz parte do pequeno volume, Psicologia da paisagem e outros estudos, que sairá ao longo do ano de 2010; além do presente, que data de 1913, contém ainda os seguintes ensaios: O problema do naturalismo; Ponte e porta; As paisagens de Böcklin; Viagens pelos Alpes; Roma. Uma análise estética; Florença; Veneza; As ruínas. Um ensaio estético A versão aqui proposta baseou-se no texto alemão da Gesamtausgabe [Edição integral] em 24 volumes, levada a efeito pela Suhrkamp, e que figura hoje como a referência mais fidedigna dos escritos do filósofo. www.lusosofia.net ✐ ✐ ✐ ✐