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eISSN 1807-5762
Artigos
Formação médica e assistência aos processos de
abortamento: a perspectiva de residentes de duas
universidades públicas em São Paulo, Brasil
Medical training and abortion care from the perspective of residents from
two public universities in São Paulo, Brazil (abstract: p. 15)
Formación médica y asistencia a los procesos de aborto: la perspectiva de
residentes de dos universidades públicas en São Paulo, Brasil (resumen: p. 15)
Rosana Machin(a)
(a, b, c)
<rmachin@usp.br>
Márcia Thereza Couto(b)
<marthet@usp.br>
Ana Luísa Smith Rocha(c)
(d)
Departamento de Medicina
Preventiva, Faculdade de Medicina
(FM), Universidade de São Paulo
(USP). Avenida Doutor Arnaldo,
455, sala 2177, Cerqueira Cesar.
São Paulo, SP, Brasil 01246-903.
Graduanda do Curso de Medicina,
Departamento de Medicina
Preventiva, FM, USP.
<ana.smith@fm.usp.br>
Maria Renata Mencacci Costa(d)
<maria.renata.costa@usp.br>
O aborto é um importante tema sob a perspectiva da saúde pública e permeia a prática de diversas
especialidades. Enfocamos a assistência a processos de abortamento e sua relação com a formação
recebida em Ginecologia e Obstetrícia (GO) e Medicina de Família e Comunidade (MFC) por residentes
de duas faculdades públicas paulistas. A pesquisa seguiu a metodologia qualitativa, e a produção dos
dados empíricos se norteou pela técnica de entrevista em profundidade (13 residentes). Os residentes
em GO relatam pautar-se nas experiências práticas para condução dos casos de abortamento. Os
residentes em MFC relatam discussões sobre o tema e suas conexões com questões de gênero. O
conhecimento clínico, o desenvolvimento de habilidades e técnicas e a maior inserção da abordagem
de gênero na formação se revelam fundamentais para o exercício do cuidado integral às mulheres em
processo de abortamento.
Palavras-chave: Formação médica. Abortamento. Ginecologia e obstetrícia. Medicina de familia e
comunidade. Gênero.
Machin R, Couto MT, Rocha ALS, Costa MRM. Formação médica e assistência aos processos de abortamento:
a perspectiva de residentes de duas universidades públicas em São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu).
2019; 23: e180370 https://doi.org/10.1590/Interface.180370
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Introdução
O abortamento é definido como a interrupção da gravidez ou expulsão do feto
da concepção antes que seja viável (22º semana) ou com o produto da concepção
pesando menos de quinhentos gramas ou com menos de 16 centímetros1, sendo
classificado como espontâneo ou provocado. Nesta segunda categoria, aborto induzido
ou interrupção voluntária da gravidez são termos correlatos, usados como sinônimos
neste trabalho. Além destas somam-se as interrupções de gestações decorrentes de risco
de vida para a mãe portadora de patologia grave e em razão de: malformações fetais,
as interrupções de gravidezes resultantes de violência sexual e os abortos provocados.
Como algumas das interrupções envolvem ilegalidade e julgamentos de caráter moral,
há dificuldade em se dimensionar o fenômeno. O abortamento inseguro, por sua vez,
é definido como procedimento para interromper uma gravidez não desejada realizado
por pessoas sem as devidas habilidades ou em ambiente sem os mínimos padrões
médicos, ou ambos2. Foi estimada a ocorrência global de 56 milhões de abortamentos
induzidos entre 2010 e 2014, sendo 54,9% destes em situações inseguras. Análise
de padrões mundiais demonstrou que, proporcionalmente, o número de abortos
induzidos inseguros aumentou de 44% em 1995 para 49% em 2008, e que esta taxa foi
menor em países com leis liberais em relação ao abortamento. As taxas de abortamento
não foram menores em países com legislação restritiva entre 2010-20143, mas foi
percebido que medidas de planejamento familiar e acesso seguro ao abortamento são
essenciais para atingir as metas de desenvolvimento do milênio.
No Brasil, a legislação que trata de aborto induzido data de 1940, e prevê realização
de abortamento legal em casos de: risco para a vida da mãe, gravidez decorrente
de estupro e, desde 2012, casos de fetos que apresentem anencefalia. Embora haja
subnotificação dos casos de abortamento, este é considerado como uma das quatro
principais causas de morte materna2, e a curetagem manual pós abortamento o
terceiro procedimento obstétrico mais realizado no país1. Segundo análise sistemática
conduzida pela OMS, o abortamento induzido figura como causa relacionada a 7,9%
das causas de mortalidade materna mundial, elevando-se esse percentual para 9,9% na
América Latina e na África2.
Houve declínio nas mortes por complicações de abortamento induzido, o que
se considera influência de maior uso do medicamento Misoprostol3, em relação a
métodos caseiros (chás, manipulação uterina perfurante, etc.). Contudo, complicações
ainda ocorrem em cerca de 50% dos casos de aborto medicamentoso, devido,
sobretudo, a falta de orientação em relação ao uso do medicamento ou, mesmo, uso
de medicamentos inseguros4. Mesmo em situações em que as mulheres dispõem de
recursos financeiros para proceder abortamentos em clínicas particulares (considerando
legislação restritiva), a percepção de maus- tratos e atendimento violento (por vezes,
com realização de curetagem sem anestesia) é relatada5.
No Brasil, no ano de 2013, registraram-se 205.855 internações decorrentes de
abortos, sendo 154.391 por interrupção induzida6. Houve, no período de 1995 e 2013,
uma diminuição de internação de mulheres de dez a 49 anos por complicações de
aborto (redução de 27%), e a estimativa do número anual de abortos induzidos recuou
26%. Esse fenômeno seria explicado por fatores como: o aumento da escolaridade
feminina, a redução da taxa de fecundidade total, a ampliação de cobertura das medidas
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anticoncepcionais e consequência do elevado percentual de mulheres em idade fértil
esterilizadas.
A Pesquisa Nacional de Aborto7 colaborou na desconstrução do estereótipo da
mulher que aborta: constatou-se que, em sua maioria, são mulheres entre vinte e
29 anos, em união estável, com até oito anos de estudo, trabalhadoras e católicas. O
abortamento é um evento reprodutivo comum na vida das mulheres brasileiras. Aos
quarenta anos, uma em cada cinco mulheres já fez ao menos um aborto. O evento está
distribuído: em todas as idades, entre mulheres casadas ou não, em todas as religiões,
níveis educacionais, classes sociais, grupos raciais, regiões do país e municípios de
tamanhos variados, o que indica uma permanência estrutural e disseminada da prática
na vida das mulheres.
Diante deste cenário, a formação de profissionais da saúde solicita atenção especial,
seja pela magnitude do fenômeno, à necessidade de habilidades ao cuidado das
mulheres em situação de abortamento e as consequências das ocorrências para a saúde
sexual, reprodutiva e mental das mulheres. Neste sentido, as Diretrizes Curriculares
Nacionais propostas pelo MEC em 20148 estabelecem que a formação do profissional
médico deve estar em consonância com as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS)
e o quadro epidemiológico vigente. Sendo assim, diante de uma questão de saúde
pública de tal magnitude, prevalência e complexidade, é relevante considerar qual
a formação que os estudantes de Medicina recebem sobre o tema, no contexto da
graduação e nas residências médicas.
Segundo Verdonk et al.9 e Bleakley10, as questões de gênero precisam ser abordadas
na formação dos futuros médicos e demais profissionais da saúde, especialmente pela
maneira como a cultura médica lida com problemas e tratamentos de saúde. Autores
como Bickel11 e Verdonk et al.9 propõem que escolas de medicina adotem visões mais
claras sobre a relevância da perspectiva de gênero na formação de seus alunos. Tomam
como exemplo: a abordagem clínica das doenças coronarianas, a farmacologia, temas
médico-sociais (como violência doméstica e sexual), tópicos como sexualidade e
problemas sexuais, domínios como a saúde mental. Além desta dimensão explícita do
conhecimento e manejo clínico referidos, as diferenças de gênero em assuntos como
a comunicação e a relação médico-paciente são especialmente relevantes e merecem
atenção destacada. Finalmente e igualmente importante, advogam que gênero deve
fazer parte da formação em “cuidados primários de saúde” por causa de seu caráter
multidisciplinar.
O presente estudo discute como a formação médica, em conjunto com as biografias
pessoais, experiências de vida e opiniões, influenciam na prática médica frente ao
dilema moral caracterizado pelo aborto e como a vivência do cotidiano da especialidade
pode contribuir para modificar ou solidificar posicionamentos dos profissionais.
Metodologia
Os dados empíricos que apoiam as análises e discussões propostas constituem
recorte de uma investigação mais ampla sobre a incorporação da perspectiva de gênero
na formação médica e na prática clínico-assistencial de residentes de Medicina de
Família e Comunidade e Ginecologia e Obstetrícia de duas universidades públicas
de São Paulo. O objetivo do estudo foi analisar a percepção sobre a formação em
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Ginecologia e Obstetrícia e Medicina de Família e Comunidade acerca da temática do
aborto. O estudo foi realizado após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da
instituição proponente (processo CEP. 1.912.088).
A pesquisa seguiu a metodologia qualitativa aplicada à saúde e a produção dos
dados empíricos se norteou pela técnica de entrevista em profundidade, devido a
sua potencialidade de captar, a partir de um roteiro predefinido flexível, os valores
e os sentidos que os sujeitos atribuem às suas experiências pessoais e profissionais12.
O roteiro construído abordou perguntas amplas sobre as vivências da formação em
medicina e as experiências no contexto da residência médica concernente às temáticas
de gênero e abortamento, buscando dar voz e liberdade aos participantes da pesquisa
na temática central do estudo.
As entrevistas foram realizadas no período de maio a setembro de 2017, após
esclarecimento e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) pelos participantes. A técnica para captação dos sujeitos foi a estratégia
de recrutamento em cadeia ou “bola de neve”, buscando-se uma amostra não
probabilística onde os participantes do estudo indicam outros participantes, até que se
atinja o ponto de saturação. A escolha desta estratégia se deveu ao seu custo-benefício
e praticidade13. Os primeiros participantes foram acessados no âmbito dos dois cursos
de Residência citados, por indicação dos coordenadores dos programas de residência
das universidades. Como critérios de inclusão, consideraram-se: homens e mulheres,
cursando Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade e Ginecologia e
Obstetrícia, que aceitassem participar do protocolo de investigação pela assinatura do
TCLE.
Foram realizadas 13 entrevistas, contando, entre essas, sete profissionais
especializados em Ginecologia e Obstetrícia (GO) e seis profissionais especializados
em Medicina de Família e Comunidade (MFC). As entrevistas foram realizadas
individualmente, em local definido pelos entrevistados, com média de duração de
cinquenta minutos e gravadas com permissão dos entrevistados e assinatura do
TCLE. Todas as entrevistas foram transcritas na íntegra e, na sequência, foi realizada
a verificação da acurácia das transcrições. O número final de entrevistados não foi
definido a priori e, sim, durante o trabalho de campo, usando o critério de saturação de
falas e significados atribuídos à experiência sobre conteúdos relacionados à perspectiva
de gênero na formação médica e ao abortamento no contexto da formação teóricoprática na residência médica14.
O quadro 1 mostra a caracterização dos entrevistados. Os nomes foram
substituídos pela letra “E” acompanhada de um número, com o intuito de preservar
suas identidades. O quadro não omite a faculdade de graduação, por considerarmos
importante demonstrar a diversidade entre os entrevistados quanto ao local de
formação e métodos de ensino. Conforme o ano de formação de cada um deles
expressa, são todos médicos jovens, que ainda vivenciam um processo de construção de
seu eu-médico e com lembranças recentes da graduação.
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Quadro 1. Caracterização dos entrevistados
Entrevistado
Sexo
Faculdade de
Graduação
Ano de
Formação
Faculdade de
Residência
Especialidade
E1
Feminino
FAMERP
2011
UP1
GO
E2
Feminino
FMUSP
2014
UP1
GO
E3
Feminino
UNILUSSANTOS
2013
UP1
GO
E4
Feminino
UNIFESP
2013
UP2
GO
E5
Masculino
UNIFESP
2014
UP2
GO
E6
Masculino
UNIFESP
2014
UP2
GO
E7
Feminino
UFBA
2015
UP1
GO
E8
Feminino
UFPR
2014
UP1
MFC
E9
Feminino
FMUSP
2014
UP1
MFC
E10
Feminino
Santa Casa - SP
2015
UP1
MFC
E11
Masculino
UEPA
2015
UP1
MFC
E12
Feminino
PUC Campinas
2015
UP1
MFC
E13
Masculino
PUC Sorocaba
2015
UP1
MFC
O processo analítico-interpretativo do material empírico foi realizado por meio
da análise de conteúdo temático15. Na análise, focalizamos tanto os temas previstos
no roteiro como os emergentes e, para ambos, seguimos quatro etapas no processo de
análise: 1. processo de impregnação dos relatos, 2. delimitação dos temas prioritários
para análise (temas previstos no roteiro e emergentes ), 3. síntese preliminar dos
principais achados; 4. confrontação dos achados empíricos primários com a literatura
relativa aos temas e a fundamentação teórica. Do processo de análise emergiram as
seguintes categorias de análise: abordagem da temática na graduação e vivências na
residência; diferenciação entre abortamento espontâneo ou induzido e acolhimento na
assistência ao processo de abortamento. Os resultados e a discussão destas categorias
serão apresentados a seguir.
Resultados e discussão
Abordagem da temática na graduação e vivências na residência
Historicamente, o campo médico se volta para a prática como principal meio de
transmissão dos saberes, muitas vezes desvalorizando o aprendizado teórico. Quando
o tema em questão é ligado ao relacionamento médico-paciente, a vivência prática
assume papel relevante e poucas diretrizes político-pedagógicas são formalmente
instituídas. Dada a relevância da temática aborto para o campo da saúde das mulheres,
as repercussões em termos da saúde física e psíquica, os preconceitos associados e o
tabu social envolvendo o tema do abortamento induzido se perpetua no ambiente
acadêmico. Em conjunto com diversos outros temas considerados polêmicos
(sexualidade, abuso de drogas, violência), a formação dos estudantes de Medicina
parece não possibilitar a construção de uma relação médico-paciente na qual haja
uma postura empática e um ambiente de acolhimento para abordagem do problema,
prejudicando, dessa forma, a visão do paciente como um ser além de sua condição e/ ou
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patologia no momento da consulta. Ao desvalorizar a percepção da inserção social do
paciente e desconsiderar suas vulnerabilidades, o cuidado médico deixa de ser centrado
na pessoa e valoriza o problema apresentado.
Estudo realizado com estudantes de Medicina de uma universidade particular do
estado da Bahia, em 201316, evidenciou que a formação relacionada ao tema parece
concentrar-se na segunda metade do curso médico, sugerindo uma importância das
vivências práticas na formação do graduando. Outro estudo conduzido em 2012 com
alunos do 6º ano do curso de Medicina17 obteve que 72,7% dos alunos consideram
insatisfatória a atenção recebida pelo tema durante a graduação, havendo pouca
abordagem dos procedimentos necessários para a realização de abortamento. Mesmo
para médicos ginecologistas e obstetras, há indicações na literatura de que existem
déficits no conhecimento dos procedimentos formais e legais. Assim, em pesquisa
realizada por Faúndes18, foram identificadas falhas com relação às informações relativas
aos documentos necessários para se realizarem os abortamentos legais.
A abordagem da temática do abortamento durante a graduação médica, que
sobressai das análises das entrevistas, permite delinear um panorama preocupante.
Embora a totalidade dos entrevistados refira presença de aulas sobre o tema, a
abordagem teórico-prática nas distintas faculdades onde se graduaram é voltada para
questões legais e biológicas, conduzindo para um momento de tensão durante a prática
clínica, de forma dissonante com o previsto na Norma Técnica - Atenção Humanizada
ao Abortamento1. Foi comentado que, por tratar-se de tema polêmico, poucos
docentes estariam dispostos a aprofundar-se no assunto, reconhecendo a dificuldade de
discuti-lo. Também foi destacado que a política institucional influencia a quantidade e
a qualidade das aulas, conforme observado no excerto de entrevista abaixo:
“Se chegasse uma paciente em risco de vida que precisava fazer um aborto,
ela tinha que ser mandada para outro hospital [...]. Porque era católico [a
instituição]. Então os residentes não aprendiam a fazer[...] as pessoas não
comentavam muito. Eu tive uma aula sobre isso, mas foi só na graduação e
ninguém falava sobre o assunto.” (E12, feminino, MFC)
É importante notar que os casos de abortamento legalizado previstos na legislação
atual foram corretamente referidos pela totalidade dos entrevistados, que chegaram a
mencionar não haver necessidade de registro de boletim de ocorrência para a realização
do aborto em casos de abuso sexual e procedimentos necessários para prosseguir
com o abortamento nos casos de anencefalia e risco iminente de morte materna. Tal
conhecimento pode ser reflexo da valorização do ensino do panorama legal em que toca
o tema abortamento e preocupações de ordem ético-profissional. Ainda foi levantada
a postura tomada pela equipe da saúde em geral quando confrontada com casos de
abortamentos induzidos no país:
“Existe um contrassenso entre a lei e o código de ética médico. Eu sigo o código
de ética, até porque eu também não quero me envolver, mas o que a gente
aprende é que pela lei você é obrigado a notificar um aborto provocado, e aí uma
vez notificado a promotoria poderia processar essa mulher, e você estaria indo
contra a lei se não notificar, sabendo que foi um aborto provocado. Mas isso é
completamente contra a privacidade da paciente, que te passou a informação em
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consulta, não é algo que ponha a vida de alguém em risco, não vai por a vida dela
nem de outros em risco iminente e só nessas situações que você pode quebrar
a privacidade, então segundo o código de ética médico, você está errado em
quebrar o sigilo. Então eu e a grande maioria dos GOs tomam essa abordagem.
Quando a pessoa admite, seja porque você achou algo ou porque elas chegam
contando, o que eu faço: explico as complicações, a implicação legal caso ela
queira contar para alguém e falo que eu não vou contar, mas eu também não
escrevo no prontuário. Porque daí eu me comprometo legalmente se eu escrevo
no prontuário, e depois alguém descobrir e processar ela.” (E4, feminino, GO)
Os médicos atuam no limite da legalidade, e podem estar sujeitos à judicialização
das suas práticas. O ato de omissão em prontuário, quando conhecida a indução do
abortamento, é encarado como meio de proteção própria e da paciente de possíveis
repercussões legais caso seja levantada a possibilidade de abortamento induzido.
Em relação à possibilidade de denúncia do abortamento ilegal por parte da equipe
de saúde, a totalidade dos entrevistados compreende que não é seu papel envolver
mecanismos judiciais nos casos de processos induzidos de abortamento.
Um aspecto importante refere-se ao fato de as situações de abortamento serem
rotineiras para os médicos e, portanto, ser necessário um cuidado para não banalizar o
ocorrido na comunicação com a paciente. O tempo e a prática são considerados fatores
determinantes para o desenvolvimento desse cuidado pelo residente.
Residentes de MFC, por outro lado, trouxeram o entendimento da autonomia que
as mulheres devem ter sobre o próprio corpo, relatando que, quando se deparam com
casos de mulheres com gestações indesejadas e que desejam o abortamento, acolhem e
informam no atendimento.
“Eu falei assim: ‘você tem algumas opções, tem opção disso, opção de clínica e
opção de falar que foi abuso’ […] Aí ela ‘nossa, nunca achei que iam me falar isso
no posto de saúde, se soubesse tinha vindo antes’ e eu peguei e falei ‘ó, a gente
não tá com muito tempo’, ela já tava com 16 semanas. ‘Vou te dar um tempo pra
você pensar e a gente segura o SIS [ficha de abertura de pré natal], […] se precisar
de alguma ajuda, se sangrar, se for fazer isso tenha alguém por perto’ aí foi isso,
ela usou três vezes Miso e não abortou.” (E8, feminino, MFC)
Os residentes em MFC que referiram esse tipo de atuação colocaram a informação
sobre métodos e serviços como um direito da pessoa, que optava por abortamento e
como parte do acolhimento, considerado parte essencial no método clínico utilizado na
Atenção Primária à Saúde (APS). Isso demonstra uma atuação cautelosa no contexto
da APS, utilizando-se do que a legislação brasileira sobre interrupção da gravidez
permite aos profissionais de saúde.
É possível reconhecer que a abordagem do tema aborto durante a graduação foi
bastante uniforme entre os residentes, segundo as diversas faculdades, com privilégio
dos temas biológicos e legais relacionados ao abortamento. A falta de discussões
com relação ao acolhimento dessas pacientes caracterizou o maior ponto de tensão
e divergência entre os residentes das especialidades: enquanto na GO valoriza-se a
prática como meio de aprendizado, sem relatos sobre discussões teóricas, a MFC
parece valorizar a discussão como forma de uniformizar a abordagem realizada por seus
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residentes. Disso decorrem momentos de dificuldade na prática clínica, nos quais a
falta de preparo específico dos residentes leva ao desconforto na abordagem do tema e
ao acolhimento das pacientes.
Diferenciação entre abortamento espontâneo ou induzido
Quando convidados a refletir sobre diferenças perceptíveis no trato de pacientes
que chegam em processos de abortamentos induzidos ou espontâneos, todos os
entrevistados afirmaram que tal diferenciação só é relevante em termos médicos
quando considerado que abortamentos induzidos podem cursar com maior gama de
complicações, como hemorragia e sepse e, consequentemente, requerer realização de
maior número de procedimentos. Esses achados são compatíveis com os de Barbosa,
Bobato e Mariuti19.
“Quando você pega um caso de abortamento provocado, é um pouco
complicado. A gente não gosta de pegar aborto provocado hoje em dia. [...] elas
se submetem a umas coisas que são muito danosas, e você pegar uma situação
dessas traz ansiedade porque você pensa nas mil coisas que podem acontecer,
complicações que podem levar e tal e a gente pega muita complicação, úlcera
vaginal, estenose da vagina, até histerectomia, que seria o pior de todos. Então
assim, é complicado pegar aborto provocado.” (E4, feminino, GO)
Giglio-Jacquemot20 e Machin21, em estudos sobre atendimentos em urgências e
emergências na perspectiva de profissionais de saúde e usuários, observam que algumas
categorias de pacientes são tratadas com indiferença ou agressividade, na medida em
que a situação que os leva a buscar o serviço é vista como resultado de uma escolha,
uma opção. Suas atitudes os levaram a uma situação socialmente reprovável. Ambos
os estudos revelam haver cumplicidade nessa desconsideração com algumas categorias
de usuários que realizaram atos autoinfligidos (tentativas de suicídio, aborto, abuso de
álcool), pois são compartilhados por médicos, enfermeiras, seguranças, usuários.
Embora os entrevistados relatem que não fazem diferenciação das pacientes com
base nisso, referem que é perceptível um trato diferenciado por parte da equipe de
Ginecologia e Obstetrícia em geral, tendo sido a equipe da enfermagem e médicos mais
velhos mencionados especificamente.
“Não é como uma paciente que chegou em abortamento espontâneo, e você
faz todo aquele acolhimento, explica tudo o que está acontecendo. Porque
realmente as causas são diferentes né. Uma estava esperando que aquela gestação
continuasse, e abortou, e a outra estava esperando que a gestação não continuasse
e interviu para que abortasse. Então as motivações e sentimentos das pacientes
são diferentes, não tem como tratar de forma igual.” (E6, masculino, GO)
Foi observado que, na maioria dos casos, as mulheres em processo de abortamento
ativo não detalham que tenham induzido22. Quando questionados sobre o que
imaginam que seria a causa desse modo de agir, muitos referem um possível medo de
julgamentos, receio de consequências judiciais, ou, ainda, arrependimento por parte
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das mulheres. Além disso, pudemos perceber uma distinção clara nos relatos acerca
dos entrevistados sobre os processos de acolhimento das mulheres que induziram o
abortamento, a partir do desconforto que os entrevistados referem para a abordagem
dessas mulheres.
A referência ao julgamento por parte da equipe de saúde levantou vários
relatos sobre os olhares acusadores e as conversas entre membros da equipe do que
propriamente interações desrespeitosas diretas da equipe com as pacientes. Mas,
houve também relatos de situações de exposição indireta da paciente a contextos
potencialmente causadores de sofrimento psicológico. As diferenças de tratamento
para com pacientes que induziram o abortamento e as que o tiveram espontaneamente
foi referida pelos residentes de MFC como percebida seja na graduação, seja durante
estágios específicos na residência.
“A pior possível. Eu acho que não se acolhe da maneira correta, não se trabalha
comunicação não violenta e a mulher é absolutamente revirada e não se
respeita o momento que ela tá passando. [...] Se há um indício de que isso seja
provocado, isso é ainda pior, porque aí é mais agressividade, mais violência.”
(E13, masculino, MFC)
Contudo, quando questionados sobre a própria equipe formada por médicos de
família e outros profissionais de saúde com atuação na APS, os residentes de MFC
relataram uma postura de acolhimento e maior empatia, que relacionaram com a
frequência de situações semelhantes atendidas nos serviços de sua especialidade.
Acolhimento na assistência ao processo de abortamento
Preconizado na Política Nacional de Humanização23, o processo de acolhimento
se baseia em uma escuta qualificada e acesso às tecnologias necessárias. É uma das
principais diretrizes das práticas de cuidado em saúde, e se processa segundo a
lógica denominada por Neves e Heckert22 como intersubjetiva-relacional, a qual
diz respeito à compreensão do acolhimento como relação com o outro, construção
de vínculos interpessoais a partir de uma escuta solidária e atenta aos sofrimentos
na/ e pela abertura do exercício clínico ao plano coletivo e relacional. As menções
dos entrevistados sobre o acolhimento das mulheres que abortam foram referidas
às relações que as pacientes e equipes estabelecem, e estas foram percebidas como
deficitárias, particularmente na equipe de GO. Fatores como grande fluxo de pacientes,
pouco tempo para atendimento e os próprios medos da mulher que busca ajuda após
abortamento autoinduzido interagem causando prejuízo ao relacionamento médicopaciente, além de possíveis constrangimentos para a mulher que busca o serviço. A
humanização do serviço também é contemplada nesse momento de pensar organização
de fluxo e gerenciamento de recursos, de modo a garantir o acesso de população
vulnerável e seu atendimento digno. A deficiência na comunicação perpassa desde a
organização estrutural do serviço ao preconceito dos profissionais no exercício dos
atendimentos.
O não estabelecimento de uma relação adequada com as pacientes é um fator
que limita o cuidado segundo os entrevistados. Foi referido que trabalhar nesse
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acolhimento das pacientes poderia ajudar no planejamento de assistência, para
entender o que levou a mulher a provocar o abortamento, os caminhos que foram
seguidos. Além disso, como forma de otimizar o relacionamento com as pacientes,
sugerem que poderiam ser feitas certas mudanças no fluxo dos atendimentos às
mulheres, com um acompanhamento longitudinal com um profissional que conheça a
história a fundo, em vez de a paciente estar repetidamente exposta a julgamentos pelos
novos profissionais com os quais entra em contato.
Considerando a estruturação do sistema de saúde e suas consequências para
o acolhimento dessas mulheres, foi discutido o papel deste na limitação do
estabelecimento de uma relação com as pacientes. Um sistema no qual o tempo
disponível para cada atendimento é reduzido torna difícil abordar questões delicadas
como o abortamento. Ademais, é raro que haja um acompanhamento da mulher por
um profissional fixo durante o trajeto pelo serviço, conforme previamente considerado
por entrevistados. A vulnerabilidade da mulher aos julgamentos de diversos
profissionais, repetidas vezes, afeta não só o cuidado dispensado no momento, mas
também a confiabilidade futura no serviço de saúde e disposição em contatá-lo quando
necessário.
De modo geral, todos os entrevistados compreendem a importância do acolhimento
adequado das pacientes, o que também é observado em outros estudos19. Entretanto,
houve diferenças entre os residentes da GO e MFC quanto a carga teórico-prática do
tema. Os residentes da MFC referem um acompanhamento dos casos de modo mais
próximo aos médicos assistentes, que abordam questões relacionadas ao tema no
contexto das aulas. Isso parece ajudar na constituição de uma orientação mais uniforme
quanto à abordagem das pacientes pelos médicos quando estes se deparam com
questões mais polêmicas quando surgem dúvidas sobre os procedimentos técnicos.
A abordagem de questões de gênero durante a formação também foi um dos fatores
que contribuíram para fazer com que os residentes em MFC se vissem mais preparados
para lidar com situações de abortamento autoinduzido comparativamente aos
profissionais de GO. Neste quesito, a visão do profissional sobre a mulher que abortou,
seus motivos e as possíveis consequências dessa ação também foram abordados.
“Eu sou uma pessoa que não consigo fazer, por restrições religiosas [...] eu não
tenho uma posição de achar que tenho uma verdade absoluta, acho que eu só
vou saber isso se eu estiver numa situação, por exemplo, uma cardiopata que
tem um filho e se ela abortar é uma chance de continuar sendo mãe do filho que
ela tem, se ela não abortar provavelmente vai morrer e deixar esse bebê órfão, o
que é certo? Eu não sei, nesse momento eu só sei que eu não consigo fazer esse
aborto terapêutico. Agora, se é errado essa mulher fazer, não sei [...] ela vai deixar
o menino dela órfão [...]. Principalmente isso de não querer, para mim é muito
complicado. Eu tenho dúvida sobre o aborto naquelas situações terapêuticas
que eu te falei, agora não consigo. Tem toda essa questão de o corpo é meu, mas
tem o corpo de outra pessoa aí dentro, eu acho que já é outra pessoa sabe, eu fico
pensando assim, a gente é contra a sentença de morte, mas tudo bem matar um
bebê? [...] Não é simples, eu não acho que é uma coisa que a pessoa acordou e
‘eu vou fazer um aborto hoje’ [...] nunca é simples.” (E1, feminino, GO)
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Os motivos que conduzem uma mulher a buscar abortamento são vários, e
se interceptam em âmbitos social, individual e econômico. As trajetórias dessas
mulheres24 envolvem: diversos agentes, possibilidade de acesso ao serviço de saúde,
e, ainda, aspectos relacionados à gênero e sexualidade que emergiram quando os
entrevistados se debruçaram em reflexões quanto às consequências da gravidez nos
relacionamentos da mulher e a presença, ou não, do parceiro no momento da decisão
pelo aborto: “Quem está grávida é a mulher, quem foi irresponsável foi a mulher, não
foi uma opção do homem. E é isso que a gente vê na prática. “Ah, e o companheiro?”
“não quer’’. E é simples, não quer” (E1, feminino, GO). Tal fala demonstra como o
enraizamento dos papéis de gênero na sociedade pode ter efeitos com repercussões
sociais e da saúde intensas, pois, no caso de uma mulher cujo companheiro a abandona
durante a gestação, num país em que o abortamento é ilegal e perigoso, a repercussão
dessa gravidez na vida futura de ambas, a mulher e a criança, pode ser significativa.
Foi importante perceber que os médicos também estão cientes do seu direito de
objeção de consciência, para casos em que não haja risco iminente de morte e que
outros profissionais capacitados possam realizar a assistência. Porém, há situações que
derivam de julgamento pela moral religiosa, trazendo à tona a necessidade de melhor
preparar os médicos, evitando que suas crenças pessoais interfiram de forma prejudicial
no relacionamento com as pacientes sob sua responsabilidade.
Contudo, mesmo com a legislação restritiva, a realidade da situação de
abortamentos induzidos no Brasil tem dimensão significativa para a saúde pública, e
o contato dos médicos com essa realidade, se não frequente, ocorrerá certamente em
algum momento. Sobre essa realidade, foi comentado:
“Porque a gente sabe que no Brasil quem quer abortar aborta, mas quem
complica o abortamento é quem é pobre, não tem dinheiro para pagar uma
clínica da abortamento, que a gente sabe que tem aos montes por aí. Quem não
tem esse dinheiro para fazer um abortamento um pouco mais seguro, apesar
de ainda ilegal, é quem aborta com agulha de crochê, quem aborta com sonda,
cabides, esses abortamentos são os que complicam. Abortamento em clínica
de aborto, com comprimido que se acha na Praça da Sé, esses se sucedem um
pouco mais tranquilamente, e aí não chega para nós.” (E6, masculino, GO)
Nesse sentido, os residentes de MFC adotaram uma postura ativa quando a
legislação foi mencionada, posicionando-se favoráveis à legalização do aborto. A
argumentação utilizada para embasar tal posicionamento perpassou tanto por
questões envolvendo o direito da mulher de decidir sobre seu próprio corpo, num
entendimento de que ela teria autonomia de decisão que se sobrepõe aos direitos
de qualquer outra pessoa sobre o concepto, e pelas evidências em saúde pública,
que indicam maiores taxas de morbimortalidade entre as mulheres que induzem o
abortamento.
“A questão do gênero, de não deixar a mulher ser dona do próprio corpo e achar
que ela temesse instinto natural de parir e que toda mulher tem que amar esse
período da gestação. E quando a gente começa a desconstruir esse conceito e
problematizar a questão de gênero, é muito mais fácil resolver. O que eu quero
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dizer é que assim eu acho que a Medicina de Família é diferente. Não é porque
a gente discute o abortamento, eu acho que é porque é trabalhada a questão
da autonomia da mulher, de ser dona do próprio corpo, das próprias decisões,
de modo que eu não preciso discutir qual que é a minha opinião sobre aborto,
porque é muito óbvio.” (E13, masculino, MFC)
Entre os médicos de ambas especialidades, há concordância em relação à questão
da percepção de que a ilegalidade do abortamento tem pouco impacto real sobre o
curso de ação quando uma paciente decide interromper uma gestação, agindo apenas
como fator de risco para aquelas mulheres que não dispõem de acesso a meios seguros
de realizá-lo. Embora não haja relação direta entre a legalização do aborto e acesso
ao procedimento seguro e redução de suas taxas, também não há com o aumento
explosivo comumente alegado. O grande impacto na redução das gravidezes indesejadas
advém de uma política de educação sexual e planejamento familiar, que permita evitar
gestações não planejadas25.
Considerações finais
A formação teórica durante a faculdade de Medicina no que tange ao tema
abortamento indica estar ainda pautada no âmbito biológico e legal, relegando ao
“bom senso” e “tato” pessoais a busca de um vínculo com a paciente que chega
fragilizada. Nas residências de GO e MFC, a presença de aulas teóricas e discussões
voltadas a gênero, sexualidade e feminilidade parecem contribuir para uniformizar a
prática clínica.
A partir dos relatos dos entrevistados, foi perceptível que os atendimentos prestados
às mulheres em abortamento privilegiam a dimensão técnica. A ênfase do cuidado,
de forma geral, parece concentrar-se na recuperação física e reprodutiva, mesmo
quando projetam que é importante considerar os aspectos psicológicos e de estímulo à
autonomia feminina sobre o próprio corpo. Os entrevistados se expressaram sobre os
sofrimentos acarretados pelo aborto, espontâneo ou induzido, e entendem o cuidado
e o acolhimento como o ato de proferir palavras de conforto às pacientes, mesmo que
sem questionamentos sobre a etiologia do aborto. A maioria demonstrou dificuldade
de considerar os aspectos legais nos casos de abortamento induzido, sobretudo por
estarem protegidos pelo código de ética profissional quanto ao sigilo das informações.
Ao refletirem sobre a formação teórica e as experiências práticas no contexto das
residências, se posicionaram, desde a perspectiva de saúde pública, em prol da mudança
na abordagem do aborto, o que poderia elucidar momentos de interferência que
evitassem a gravidez indesejada, em primeiro lugar, ou que habilitassem a mulher a
tomar decisões quanto ao futuro – ou não – da gestação.
Nesse sentido, o conhecimento clínico, o desenvolvimento de habilidades e técnicas,
especialmente a partir da maior inserção da abordagem conceitual de gênero na
formação na graduação e na residência, além do amadurecimento de atitudes pessoais,
éticas e profissionais, se revelam elementos fundamentais para a formação médica e o
exercício do cuidado integral às mulheres em processo de abortamento.
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Contribuições dos autores
Todas as autoras participaram ativamente de todas as etapas de elaboração do manuscrito.
Agradecimentos
As autoras agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) que, por meio das bolsas de iniciação científica das graduandas em
Medicina Ana Luísa Smith Rocha e Maria Renata Mencacci Costa, tornaram este estudo
possível.
Direitos autorais
Este artigo está licenciado sob a Licença Internacional Creative Commons 4.0, tipo BY
(https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR).
CC
BY
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Abortion is a major public health issue that cuts across various specialities. This study focused on
abortion care and its relatioship with the training received in Gynecology and Obstetrics and Family
and Community Medicine by residents of two public Colleges in Sao Paulo. A qualitative research
design was adopted consisting of the administration of in-depth interviews with 13 residents. The
obstetrics and gynaecology residents reported that they relied on practical experience to provide
abortion care, while the family and community medicine residents recounted that they discussed
the theme and its connection with gender isssues. Clinical knowledge, the devlopment of skills
and techniques, and adopting a gender-sensitive approach in training were revealed to be vital
components of comprehensive abortion care.
Keywords: Medical education. Abortion. Obstetrics and gynaecology. Family and community
medicine. Gender.
El aborto es un tema importante bajo la perspectiva de la salud pública y está presente en la práctica
de diversas especialidades. Enfocamos la asistencia a procesos de aborto y su relación con la
formación recibida en Ginecología y Obstetricia (GO) y Medicina de Familia y Comunidad (MFC),
de residentes de dos facultades públicas de São Paulo. El estudio siguió la metodología cualitativa
y la producción de los datos empíricos se rigió por la técnica de entrevista en profundidad (13
residentes). Los residentes de GO relatan que se rigen por las experiencias prácticas para la dirección
de los casos de aborto. Los residentes de MFC relatan discusiones sobre el tema y sus vínculos con
cuestiones de género. El conocimiento clínico, el desarrollo de habilidades y técnicas y la mayor
inserción del abordaje de género en la formación se revelan como fundamentales para el ejercicio del
cuidado integral a las mujeres en proceso de aborto.
Palabras claves Formación médica. Aborto. Ginecología y obstetricia. Medicina de familia y
comunidad. Género.
Submetido em 04/07/18.
Aprovado em 08/11/18.
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