Academia.eduAcademia.edu

TEATRALIDADES 12 PERCURSOS PELO TERRITORI0 DO ESPECTACULO (2003)

2003

TEATRALIDADES 12 PERCURSOS PELO TERRITáRI0 DO EsPECTAcuLO FERNANDO MATOS OLIVEIRA ANUELUS NOVUS FERNANDO MATOS OLIVE IRA (n. 1968) Docente da Facudade de Letras da Univers:dade de Coimbra. Vem pubicando artigos sabre literatura e teatro em diversas revistas. E autor do Iivro 0 Destino da Mirnese e a Voz do Pa/co: 0 Teatro Português Moderno (1997), editor ae unia 4ntoIogia Poet,ca de Antonio Pedro (1998), do voIme Tearro: Odio de Raça/0 Cedro VermeTho, de Gornes de Amorirn (2000, em col. corn Maria Aparecida Ribeiro), e organizador dos Escritos sobre Teatro, de AntOnio Pedro (2001). Ensalo Teatro *Urnnc4ad.flt TEATRALIDADES 12 PERCURSOS PELO TERRITORI0 DO EsPEcTACuLO FERNANDO MATOS OLIVEIRA ANGELIJS NOVUS © Fernando Matos Oliveira e Angelus Novus (2003) Capa (maquetagem c grafismo): Francisco Rornäo Impressao: GC. Grafica de Coimbra, Lda. producao@graficadecoimbra.pt ISBN: 972-8115-88-1 Depósito Legal: 195690/03 — Editora: Angelus Novus, Lda. Rua do Peneireiro, 10 Quinta da Madalena 3040-716 Coimbra e-mail: angelusnovus@mail.telepac.pt Reservatlos todos os direitos de acodo corn a legislacno em vigor INDICE Introduçao 1 2 3 4 5 — — — — — . 7 Simbolismo e teatro Teatro da alma Ocaso Wagner Mistério Naufrigio com espectador 13 16 20 24 Estética e marioneta Objectos animados A tentação da infancia Regresso ao coração 29 33 38 Hollywood no Chiado Mecanismo elecrrico Cinema como habitus Sonoro teatricida 47 52 56 0 drama da opera Musicologia Opera e emancipação o genial em Wagner 61 64 70 Moderno pos-moderno A nova constelaçao Epica e modernidade Recepçao e contingência 73 74 77 105 100 98 97 171 FERNANDO MATOS OLIVE]PA 6 6 7 8 9 — — — — Conversaçao & colagem A geração da Garagem Historias, interferencias Terapia de grupo 0 teatro como festival Festivalitis Atenas Avignon Portugal A arte das imitaçôes A condiço do actor 0 paradoxo de Diderot Ser natural No principio era o jogo Jogo C cultura Da raposa a bola Ethos amador . 10— Cenas da rua 0 festivo em Maio de68 Dramatis personae. Parábase 11 12 — — 85 89 94 Encenar os clássicos 0 uso dos classicos Gil Vicente nosso contemporâneo As Barcas segundo Corsetri 113 114 120 125 127 130 135 137 139 143 148 152 0 teatro e a escola Texto dramatico Texto pos-dramatico logo e interpretação Estudos reatrais Bibliografia 157 159 163 166 INTR0DuçA0 Os cern anos do seculo XX dao a justa para o nómero de rnovi memos, de escolas de encenação, de vanguardas e de neo-vanguar das que preencheram urn perlodo marcado pelo triunfo de uma nova econornia da representacão. A era da rep rodutibilidade ticnica que em Walter Benjamin permitia ainda uma saida emancipada pan a arte acabou pot confrontar o teatro corn o fluir intermináveL das imagens, sujeitando-o ao desinvestimento critico imposto pelas novas condiçoes historicas e sociais. A erosão da esfera publica e o ascendente consurnista do espectaculo global pressionam a ancestra lidade expressiva do teatro, comprometida corn uma comunicabili dade presencial dernasiado estranha as simulaçoes virtuais da pos rnodernidade. Deste rnodo, o teatro tende hoje a negociar corn o mundo da técnica e da imagem sob a pressào de um irnperativo identitario. A própria hegernonia tradicional do teatro em matéria de representacão foi progessivamente disputada pela ascensäo do cinema, depois pela televisão, finairnenre tambern pela emergéncia internpestiva da Internet. Curiosamente, a medida que o aumenro da informacao recalca urn défice evidente de participaco, as metaforizaçoes teatrais tern invadido o discurso de inómeros terrirórios disciplinares. 0 poder descritivo do referente teatral, o modo como a sua conceptualidade responde a diversas formas de interaccâo social, confere aos concei tos de teasralidade e de performatividade uma enorrne latitude expo siriva. Da teoria antropologica a investigaçio sociologica, da psica nálise social a psicologia historica, a rnetafora do teatro rnostra-se disponIvel para mediar a relaçao entre o individual e o colectivo, corn a vantagern suplernentar de traduzir a arnbiguidade que carac teriza a gestäo do quotidiano, divididaentre modalidades auténticas 8 FERNANDO MATOS OUVEIRA de expressio do ‘eu’ e a adesao a padroes comportamentais alta mente ritualizados. Por esta razão, as ciências sociais e humanas beneficiam de uma convergéncia singular corn o campo teatral, francarnente acelerada a partir dos anos setenta. Os trabaihos plo neiros de A. van Gennep, N. Evreinoff, de J. Huizinga, de E. Goff man ou de R. Caillois convertern-se por esta altura nurn projecto assumido de cruzarnentos disciplinares, particularmente produtivos no caso do binornio teatro-antropologia, corno provarn os trabaihos de Victor Turner e de Richard Schechner. Neste contexto, a própria cultura devern urn espaco perforrnativo e dinarnico, não apenas a procissão estavel das tradiçoes herdadas. Enquanto percurso pelo território do espectaculo sob o signo de Novecentos, este volume reóne precisarnente urn conjunto de ensaios nos quais o teatro se enuncia em rnóltiplas interacçöes dis cursivas e sociais. Teatralidades inscreve-se, assirn, no território das metaforizaçoes teatrais que vêm caracterizando a agenda contempo rânea. A amplitude crItica de tais associaçöes acolhe o prograrna de alternâncias e de contiguidades que nele se estabelecem entre o drama social e o drarna estético. Como observou R. Schechner, o conceito ocidental de texto dramatico é uma derivaçao algo tardia no ârnbito das rnanifestaçoes performativas dos seres hurnanos. Após a invenção da escrita, o texto dramatico define-se como urna forma cada vez mais especializada e abstracta do guiäo [script], esse conjunto codificado de comportarnentos e de acçOes que subjaz ao evento teatral desde tempos imemoriais. 0 privilégio moderno da escrita foi subtraindo o teatro da constelaçao aberta e activa da per formatividade, ligada a mecanismos de transmissão oral. A consa gração de uma escrita dramático-teatral, especialmente validada em determinados contextos historicos, procedeu a sublirnaçao discur siva das formas de agir e de actuar que definiam as representacOes primitivas. Mas o facto de a comunicação intelectualizada dos modernos ter elidido o que corneçou pot ser manifestaçao e ‘fisica lidade’ não significa que o reprirnido näo possa reemergir na con temporaneidade. Corn efeito, o teatro de Novecentos e atravessado por uma ansiedade performativa, visIvel num conjunto lato de manifestaçoes estéticas, sociais, desportivas etc. 9 TEATRALI DAD ES Teatralidades invesre, pois, nas transacçOes ernie o drama social e o drama estético, ainda quando o dorninio exciusivo do estético aparenta eximir-se ao social e ao histOrico, como sucede no capitulo inicial, centrado na leitura do drama simbolista. A fenomenologia teatral rnostrou ja que nern as acçOes nem os objectos em cena renunciam cornpletarnente ao real. 0 condicionamento perceptivo activado pelas diversas formas de contratualizaçao cénica não é cull ciente para elidir a latencia do historico. A teatralidade que nomeia a presente volume é, portanto, um espaço que assume a natureza binaria do evento performativo, mesmo quando elevado a textuali dade intransitiva dos simbolistas, ainda assim, versão Ionginqua e assaz sofisticada das inquietacOes que a narrativa antropologico-tea tral de R. Schechner fez remontar ao Homem das Cavernas. A argu mentação adoptada tende a juntar em sede crItica razôes históricas e razOes teóricas. Compete a ambas a revisitação daquele passado que nas artes performativas poucas vezes ascende ao estatuto de coisa tangivel. Tratando de textos, de eventos, de encenaçöes, de autores pot tugueses ott estrangeiros, o presente volume procura resistir a analise excessivamente territorializada do universo espectacular, sem deixar pot isso de ter em conta a especificidade constitutiva de cada urn dos seus objectos. Abre com a subjectivaçao simbolista do dramatico, através da qual Antonio PatrIcio excluiu aquilo que não fosse pensemos na teoria dos drarna em mirn’>. A performatividade e tambem urna operação passIve1 de traduçao no actos de fala pIano da linguagem. Ora, a escrita de PatrIcio somatiza linguistica rnente a cena intima de urn ‘naufragio corn espectador’ (H. Blu rnenberg). 0 segundo capItulo introduz na escrita dramatica de Alrnada Negreiros o regressivo infanril das marionetas, estratégia a que o autor recorre para compensar um defice moderno de <<cora çio” com a perforrnatividade sensivel dos bonecos. A rnarioneta recupera ern Almada uma teologia teatral posterior a ordenaçao secular. 0 terceiro e o quarto capitulos confrontam o universo tea tral corn duas expressöes artIsticas concorrentes: o cinema e a opera. No prirneiro caso, analisa-se ern contexto português a historia do encontro entre o teatro e o cinerna, justarnente quando a emergén — — 10 FERNANDO MATOS OLIVEERA da sétirna arte se apropria do mercado de entretenimento. A che gada do cinema ao espaço püblico provocará urn reordenarnento conceptual do estético que o texto procura captar no mornento informe da sua fundaçao. No segundo caso, partindo de urn livro fundamental de Mario Viejra de Carvaiho sobre o Teatro Nacional de S. Carlos, procede-se a urna analise do discurso critico do rnusi cologo português e discute-se a própria viabilidade emancipatória de urn objecto corno a opera. A defesa de urn ((vmnculo dramarico>> na comunicação operática parece conflituar corn a debilidade discur siva do libreto e corn a prOpria inscrição hiscOrica do género, o qua! viu o seu desenvolvirnento e ate a sua legitimacao policica depende rem do capital ládico que Ihe era atribuldo. 0 quinto e o sexto capItulos convergern na questão critica da textualidade drarnática em regime pos-moderno. Neste sentido, a representatividade da obra brechtiana corneça pot ilustrar as aporias flindamentais de urna escrita para teatro que hoje se pretenda mini marnente sintonizada corn a histOria de c<progressosn e de <<procago nistas” que persistern no pensamento do autor de Mie Coragem. Mas a releitura recente das suas peças da juventude parece antecipar uma resposta a H. Muller, seu herdeiro mais distinto, quando este afirmava que a rede da dramaturgia de Brecht seria <dernasiado larga face a microestrutura dos novos problemas”. 0 segundo texto trata precisamente das respostas a estes <<nov05 problemas>>, agora no ambiro do Portugal europeu. Se uma fenornenologia dos noventa tern de gerir a entropia do tempo hisrOrico português, o teatro da década de noventa oscilou entre o <<oporrunismo drama tárgico pOs-rnodernoo Q.-P. Sarrazac) e o comprometimento vago de Abril, aqui direccionado para o inconformismo do <<suburbio” proposto pelo Teatro da Caragern. nurna das peças do seu repertO rio, intitulada Deserros. A arnbiguidade conternporânea dos festivais de teatro e a evo luçao do estatuto do actor constituern o assunto dos textos que se seguem, ambos moldados pela faceta institucional e societária das artes perforrnativas. 0 festival de teatro aparece hoje dividido encre a fidelidade ao tearrai e a abertura a rnediatizaçao, entre a vivência cIvica da festa e a adiçao do capital cukura! de cada espectador. cia TEATRALIDADES 11 A representação desta deriva histórica do festival fica a cargo de Ate nas, de Avignon e, corn ênfase especial, dos festivais que a recérn descoberta ‘polItica cultural’ trouxe ao Portugal da óltima decada. Ao Parisdoxo sobre o Actor de Denis Diderot é atribuido a ordena rnento moderno de uma figura sujeita a seculos de preconceito e esconjuraçao. 0 debate setecentista em torno do actor ilurnina hoje ainda o fundarnento estético e a soberania técnica sobre urn corpo que na cidade de Diderot, ao contrário da Cenebra de Rousseau, era ‘<talvez major do que o poeta”. 0 nono e o decimo capItulos anexarn a metafora teatral res pectivarnente ao jogo e ao festivo vivido nas ruas de Maio de 68. o jogo instintivo e pre-racional proposto por J. Huizinga, pese apelo vitalista do desporto moderno, é relativarnente estranbo ao mundo pos-industrial. Enquanto confrontação fIsica de tipo não violento, a institucionalizacao do futebol moderno cresceu a par do comércio do espectaculo. Ora, o declinio do ethos amador parece ter condenado o jogo de futebol a exibição intermitente do ludico. A vivéncia auténtica e desinteressada do jogo, entendido como pro duçao perforrnativa de presenca, misrura-se no estadio corn a per formance do capital. A teatralidade das ruas de Majo, por seu lado, enuncia já urn mornenro utópico de resisténcia a conlormaçao administrativa. A rua torna-se lugar de iniciação, espaco percorrido por forrnas diversas daquele ‘liminar’ que na categorização de Victor Turner veicula modalidades de resisthncia cultural e de subversio social. Os eventos de Maio procurarn uma sintese improvavel entre acontecimento singular de Artaud e a dernonstraçao didactica da ‘cena de rita’, descrita por B. Brecht corno urn modelo ‘natural’ de teatro épico. o Iivro termina corn dois institutos de rnediaçao teatral, a saber: a encenação e a escola. 0 caso especifico da encenação dos clássicos solicita urna negociacão particuLarmente cornplexa entre diferentes ordens temporais e estéticas. Esboçada a história rnoderna da abordagern dos clássicos no teatro europeu, a pulsao contradito na que subjaz a actividade do encenador e cornentada a propósito das Barcas de Cit Vicente, colocadas no palco do Teatro Nacional de São Join, por Giorgio Barberio Corsetti, em 2000. A conduit, urn FERNANDO MATOS OLIVETRA 12 da relaçao controversa que o teatro mantérn corn a escola. A resistência crescente do teatro moderno e contemporâneo ao conceito de ‘texto dramatico’ constitul urn desaflo para as opera çöes didactjcas da escola, mas tambem para a legitimaçao acadernica de urn saber que transgride o quadro disciplinar das instiruiçöes de ensino superior, sejam elas as Escolas Profissionais de Teatro, as Escolas Superiores de Educaçao ou as Universidades. 0 condiciona rnento do reatro aos protocolos herrnenêuticos das Belas Letras, a emergéncia de ama textualidade pOs-dramatica, a adrninistraçao escolar do teatro-formacao e do teatro-produçao, eis alguns dos aspectos discutidos que definern a presença do teatro no ensino. Corn a excepcão do segundo, do terceiro e do quarto capItulos, ainda ineditos, os restantes constituern versôes, por vezes proftmnda rnence aiteradas, de ensaios previarnente publicados, em revistas corno a Coloquio/Letras (Cap. 1), Zentralpark (Cap. 5), Tearro/Escri tos (Cap. 7), JA Jamal Arquitectos (Cap. 1]), Ciberkiosk (Cap. 6, 8, 9 e 10), além das actas das I Jornadas Cientzfico-Pedagogicas tie Portugues, realizadas em Coimbra, no ano de 1999 (Cap. 12). ensaio que tiara — 1 SIMBOLISMO F TEATRO Teatro da alma 0 teatro preferiu historicamente o alegórico ao simbolico. A escoiha nao é sequer surpreendente. Quando foi além da precep tiva e do didactico, a alegoria revelou a apeténcia secular do palco para se afirmar mediance ml figuraçao derivada do mundo. Tera sido esta, porventura, uma razão decisiva pam a atitude de alguma crItica teatral em face do demerito espectacular do movimento simbolista’. E cent que a ambicionada privarização estética do simbolo dificul tou a plateia o habito aprazivel do re-conhecirnento. Contudo, é justo observar que o balanço final dos simbolos em cena se revelou empresa amplamente favoravel ao devir da teatralidade. Bastaria, para tanto, juntar a Maeterlinck e a Hofmannsthal a teorizaçäo cénica de Adoiphe Appia e de Gordon Craig. Pela accio sobre estas duas areas, a do texto e a da cena, o teatro associado ao simbolismo näo teria um caminho marginal a historia do teatro moderno. A fragilidade dramatica vulgarmente apontada aos textos sim bolistas haveria de contribuir para a superacão de urn paradigma teatral e espectacular que, ainda em Oitocentos, estendia o proto cob da verosimilliança aos dramas da psicologia burguesa. Contra a I Logo em Outubro de 890, na Revue d’Art Dramatique, Lucien Muhfeld, no seu artigo <<L.a fin dun art, conclusions esthetiques sur Ic theane, considerava mairo escassas as possibdidades reatrais do drama no pLano geral do movimento simbolista. Como sabido, a cr1 rica académica rapidamente o confirmaria, ao tea gir negativamente desrruicao dos principios dramatárgicos da Foetica. e a 14 FERNANDO MATOS OLIVEIRA lei seven das poéticas, o texto simbolista afrontou a estabilidade das categorias dramaticas dominances, adiantando: I) a imobilidade actancial da personagem; 2) a indefiniçao espacial e temporal; 3) a dinamica particular de uma acção reduzida aos ecos simbolicos e estáticos de siruaçöes mais ou menos sucessivas; 4) a monologacao progressiva do discurso, entre outros recursos aparentetnente con trários a sociologia do fenorneno teatral. Por outro lado, a revoluçao formal e estilIstica operada pelo teatro simbolista e pos-simbolista ja deixava de algum modo antever a desconfiança das geracOes artIsti cas posteriores perante a <4mentira,’ das ideologias, hem longe da tn buna moral que tinba caracrerizado o espectaculo burguês. Ha, então, razöes suficientes para se ir afirmando que o drama da gera ção de Maeterlinck apenas é ((antiteatral no mesmo sentido em que o poema em verso Iivre e antiversificaçaon (Balakian, 1969:162). E no espaco do teatro, pela acção que sobre ele exerceu, que agora pre tendo ver a sucessäo de tais diferenças. Apesar de a questão se colocar em contexto teatral, é tambm pouco legItimo continuar a julgar este novo drama apenas no piano estrito da conquista mais ou menos numerosa dos espectadores, tarefa para que obviamente não estava predestinado. Como aconte ceu corn a arte moderna em geral, o teatno limitou-se aqui a partici par de urn amplo e progressivo recolhimento. Apelando a metaforo logia que Blumenberg vern praricando desde os anos 60 e, muito em particular, ao seu Naufrdgio corn Espectatlor, que reencontraremos mais adiante nalguns ‘naufragios’ de Antonio PatrIcio, o espectador que se perscruta no referido recolhirnento também já nâo se situa numa exterionidade teórica, nessa rocha soiida que, da margem, sus tentaria o olhar distante Iançado aos naufragos da vida: porque, entretanto, deixou de existir essa posição firme”, e ainda porque, ao tempo de Patnicio, o sujeito chegou igualmente ao ponro de usar da razão para se tornar ((espectador daquilo que ele próprio so&e* (ci Blumenberg, 1990). Neste instante histonico, o recolhimento apre senta-se, então, como consequência da relaçao cada vez mais mediada entre a ante e a vida. A interiorização, ernbora tambem vinda do drama de Tchekov e de Strindberg, terá agora ama traduçao fisica, ate pela intimidade TEAT RAt! DADES 15 que passa a marcar alguns espacos ceatrais na Europa entre 1890 a 1910: espacos corno os do Intima Teatern de Strindberg, do Théâtre de l’€Euvrc de Lugné-Poe, do Theatre d’Art de Paul Fort, do Irish Literary Theatre de Yeats, do Schall and Rauch e Kammerspiele de Max Reinhardt, do Kunsder-Theater de Georg Fuchs, do Vieux Columbier de Jacques Coupeau, ou do Teatro Dramatico de Meye rhold, entre outros. Estamos perante urn vasto movirnento que, sus pendendo certa tradiçao de sociabilidade do teatro, se apresenta como recusa radical da rnassificaçao e do carácter popular da cena prolixa do seu tempo e aponta já para o esteticismo modernista. Em lugar da aceitação do divertirnento e do exibicionismo rei names, entre o excesso historicista dos Meininger e o ilusionismo naturalista de Antoine, a campanha que parte dos sImbolos afasta se da adesao mercanril que pautou o curso rnaioritário das artes do espectaculo. Provavelmente, nenhurn livro expressa de modo tao exacto a geografia do ternpo, como Le theatre tie l’dme, de Edouard Schure. Em 1900, esta obra permite já a distância suficiente para uma legitimaçao tripartida das tendncias do teatro, numa espécie de consagracio cia arte dramarica do fururo, segundo note-se-the “classes sociaisn. Assim, depois do ((teatro popular>>, a motivação de ama ruralidade a Rousseau, e, em segunda instância, do “teatro de conflito>>, a Ibsen, a parte mais nobre da escala teatral seria ocu pada por urn “teatro da alma” ou dos <<sonhos>’, o ónico capaz de tocar a intemporalidade desejada (Carlson, 1993:3 16). Ora, a nudez esquernática da graduacao de Schure, ja pela sua negatividade, foi a prirneira a mostrar notavel capacidade de sobrevivéncia que o digam Rornain Roland ou Bertolt Brecht, para quern a alma e o sonho eram ames para provar na acção terrena. Urn dos aspectos que mais sobressaiu na obra dos autores e encenadores acirna citados estamos sornente a falar daquela his tOria que partiu do simbolismo e que foi urna das origens da ence naçâo moderna, frequentemente designada como simbolisra por manifestas afinidades estéticas foi a vontade de impor a sociedade rnecanizada um espaco reatral marcado por urn deliberado anacro nismo, assente em virtualidades adequadamente antigas, como a adesao/criaçáo de ambientes de cariz religioso ou a recuperacão de — — — — — 16 FERNANDO MATOS OLIVEIRA uma vivência, entre o sensual e o experiencial, da arte enquanto acontecimento a carninho do mIstico. Aqui se compreendern quer a atracção pelo gmistério,, medieval, quer a imposição do espectaculo corno cerimonial. Seria assim que este teatro resistiria meihor a assi rnilaçao, de modo a evitar a vertigem da mediaçao que brevemente haveria de dornjnar, pot exemplo, a representaçäo cinematografica. Naturalmente a epopeia da arte e da técnica acabon pot fazer entrar o gas e, sobretudo, a electricidade pela porn da retaguarda. A possibilidade de encenação do drama simbolista passaria mesmo pela exploraçao artIstica dos efeitos revolucionarios da electricidade. Disto mesmo trata já A Encenaçao do Drama Wagneriano, publicado por Appia em 1895, corn o objectivo determinado de corrigir a trai ção infeliz que as representacöes de Bayreuth (necessariamente) corneteram a rndsica do mestre. o caso Wagner A posição de Wagner serve-nos agora precisarnente para pensar a atitude do simbolismo em relaçao a dualidade do teatro e a base incerta” dessa enorme vontade estética. Os sirnbolistas partilharam o interesse do teatro moderno pela obra de Wagner. Logo em 1885, sob a direccao de Dujardin, e fundada em Paris a Revue Wagne rienne, orgo que acoihe algu.ns dos protagonistas da teorização sirn bolista no campo teatral, como Teodor de Wyzewa e Stephane Ma! larrné. A representatividade do compositor alernao havia ja fornentado urna acesa polemica corn o autor de outra ilustre diag nose histórica. A controvérsia que levou Friedrich Nietzsche a subs tituir Wagner por Bizet (Nietzsche, 1973:87) tern igualmente que vet corn os avanços e recuos das posiçóes simbolistas relativamente a cena. A revolucao de 1848 empurra Wagner para a redacçao simul tânea do ensaio A Arre e a Revoluçao e de OAneldos Nibelungos. Nao se trata de uma fortuita coincidéncia de datas. 0 Anelvinha recorn pensar uma época em que, segundo a Ant e a Revoluçdo, a antiga comunhao da arte helenica corn a colectividade se viu suplantada pela rnercantilizaçao e extrerna individualizacao. Perante a arte-rner 17 TEATRALIDADES cadoria e o artista-assalariado, Wagner, que segundo Nietzsche acre ditava estranhamente na revoluçao corno so urn frances era capaz, näo se lirnita a espera-la da sociedade, pensa tambern que pode nas cer na arte: a responsabilidade do edifIcio de teatro era para ele evi dente. Aproveitando a capacidade do palco para quebrar aquele pro cesso de apropriação, ma! adivinhando o sen próprio destino rnusica!, Wagner ensaia no Anel urn regresso as forças rnIticas pela mao soberana da arte. E neste terreno que Nietzsche e os sirnbolis tas se encontram corn ele. Bayreuth será, então, a partir da sessão rnernoravel de 1876 além, rnesrno, do irOnico apareiho de rnuseificaçao que Wagner a todo o custo tentou evitar urn lugar da revivescéncia de urn rnito: o rnito de urna nova redençao, pela qual o Homern se liberta da cu!pa dos Deuses. Wagner apenas interessa a Nietzsche ate ao ponto ern que encarna a actualizaçao do dionisiaco. E o que AntO nio Patricio, aqui urn nietzschiano reincidente, vai desejar para si, no ((Drama nas Nuvens>’: — —, Jormavarn-se relevos pouco a pouco, cariatides heroicas, grandes frisos, e posso-Ihes jurar (nao esrou louco) era o teatro rnesmo de Dyonisos.’> (Patrfcio, 1989:137) No entanto, a partir de Parsifah Bayreuth so podia receber o desprezo de quern se negou a aceitar corno so!uçao para o pessi . 2 mismo do Homern rnoderno urna ((arte de consoiaçao rnetafIsican A resposta de Nietzsche é clara: <<Não, trés vezes nao! C) jovens rornânticos: isso näo devera acontecer necessariamente! Mas é muito verosImil que isso acabe assim, que vOs acabeis assim, quero dizer ‘consolados’ (...) cal corno acabam todos os rornânticos, cristd mente...’> (Nietzsche, 1988:29). Ora, não acontece exactamente o Mesmo a excepção do Anel e apenas relativa. Notem-se as suas palavras: “Eu conto a historia do Anel’. Ela tern aqui o sea lugar. Também cia é uma his tória de redençao: so que desta vez é ‘Wagner quem é redimido>> (Nietzsche, 1973:95). 2 FERNANDO MATOS OL]VB]RA 18 mesmo corn a interpretaçáo voluntariosa dos Sirnbolistas, pan quem Wagner parece prosseguir para alem da eleiçao rnItica da Vida no Anti: a metaffsica guardava demasiadas virtudes estéticas. De novo junto do teatro, Ortega y Gasset segue tambem esta cririca ao especráculo burguês quando defende que o homem moderno necessita de urn regresso a <rnaravilhosa fantasrnagoria. Num artigo sobre o teatro e a mascara refere-se, ao modo de Nietzs che, a urn retorno as origens do ternpo pré-teatra1n, de ((misticisrno note-se que para Ortega y Gasser <Dio dionisIaco> e de ofesran niso é, scm düvida, o deus rnais deus que os gregos tiverarn>’ (Ortega definindo a opopularidade” da religiäo grega y Gasset, 1982:113) em termos que Wagner não rejeitaria: ela é-o oporque se origina na impessoalidade colectiva dos diferentes ‘povos’ ou ‘naçôes’ helenicas L.1 porque o seu contcüdo tern urn carácter difuso, atmosferico, diriarnos respiratório” (idem:100). As óltimas palavras de Ortega são quase uma reproducao das diversas afirrnaçöes programáticas dos autores da Revue Wagné rienne. Mas as reflexoes que o filosofo espanho] produz a propósito basta lembrar as rnarionetas de Kleist ou as posi da ornáscaran adquirern o torn de diagnostico hisrorico. çöes de Gordon Craig Ern relaçao aos maleficios da superespecializaçao moderna, o modo de ser prirnitivo apresentava duas vantagens, que hoje terlamos per dido: a) a capacidade positiva de ocon-frna’ir as coisas, reunindo-as em identificaçoes prirnárias e rnuito arnplasn, que esquecemos tece rem a actual realidade fragmentária; b) a capacidade de objectificar os sonhos corno hoje 56 as crianças sabern later. E a ansiedade historica ern cumprir este <<destino metafóricon do hornern (idem:129) que os sirnbolistas procurarn concretizar nas . Contudo, no sentido em que para o autor da Origem da 3 suas obras Tragedia todos, incluindo ele próprio, estavarn perante o problerna comum da ‘decadncia”, a rnetafIsica e a analogia universal dos sim — — — — A defesa do reatro passa pela sua fidelidade s origens. no tempo em que ovimos, como o mais natural do mundo, brotar desse profundo hzmus religioso dionisfaco, mistico, visionário, fanrasmagórico, como a sua for mais próxima: o Teatron (Ortega y Gasset, 1982:121). 3 TEATPALIDADES 19 bolistas, como o barco em que Nietzsche fez ‘Wagner seguir, enca iharam nurn recife: nem mais nem menos que na filosofia de Scho penhauer (Nietzsche, 1973:96). A verdade é que a leitura da dra maturgia simbolista da alguma razão a Nietzsche. Também Antonio PatrIcio se viria a prender neste recife, como verernos; aqui, ate os primeiros apOstolos do Simbolismo se lirnitaram a um optimismo ((envergonhado>>. Parece-rne que so na elevaçao extraordinaria da condiçao da arte, PatrIcio, decadentistas e sirnbolistas se encontram corn Wagner e Nietzsche. Quanto a relaçao com a obra de arte total>>, não foi bern a que o sucesso crItico deixaria antever. A cruzada rnistica e espiritual da mósica e dos libretos de Wagner não teve correspondéncia nas ence naçöes de Bayreuth . De modo similar, a teorizaçio teatral sirnbo 4 lista nas propostas de Mallarrné, A. Mockel, Lucien Muhfeld, Gustave Kahn, Maeterlinck, Schuré e de wagnerianos como Hous ton S. Chamberlain, este óltimo amigo de Appia não se posicio voz perante a realizaçao nou a uma sO cénica do drama novo (cf. Robichez, 1957 e Michaud, 1947). A apropriação simbolista do imaginário metafisico e fantascico de Wagner, assente no poder con junto da palavra e da mOsica, não evita que as posiçöes simbolistas sobre a articulaçao da cena com a palavra se tornern problematica e e precisamente deste ‘problerna’ que vai nascer algum do teatro rnoderno. Jtichard Wagner, reverie d’un poéte français>’, o célebre artigo que Mallarme fez aparecer na Revue Wagnérienne, a 8 de Agosto de 1885, apesar de transrnitir a adesäo do autor, como a de outros, a expressividade rnIstica do alemão, substitula o lugar pri rnordial da másica pelo da poesia e, o que e rnais importante, des cria da possibilidade de o drama encontrar, como os de Wagner, uma concretização tridimensional. A presença fIsica da multidão deveria antes ceder o lugar a liberdade da irnaginação. Esta contrariedade, logo no caso do autor germanico, dificul tou o objectivo da união das artes. A acreditar na terceira secção de — — 4 Ele mesmo o terá reconhecido, ao afirmar: Ah, j’ai horreur de ces costu mes et de ces fards (...) J’ai créé I’orchestre invisible, si je pouvais tnaintenant inventer Ic theatre invisible” (apudBablet, 1975:65). 20 FERNANDO MATOS OLIVE?RA Oper unit Drama, tal união deveria ser uma resposta a especializacão comercial, que fez as artes seguirem, de modo egoIsta, caminhos divergentes. Ainda assim, o desejado regresso ao convfvio primordial foi mais uma utopia a que nem os colaboradores de Wagner conse guiram dar resposta (cf. Bablet, 1975:62). 0 facto de Appia, n’A Obra deAne Viva, ter substituldo a conjugacão wagneriana das artes , corresponde a soluçilo 5 por urna conjugacão de elementos artIsticos final pan aquilo que alguns julgavarn irrealizavel: uma arte nova e autOnorna, capaz de evitar a <monstruosidade da construçào de urn edifIcio gOtico em cartäo 1...] pois a vitOria da gravidade não seria mais expressa pela matéria da construçâo” (Appia, s/d. :43). A pa.rtir deste mornento, a palavra, ainda quando em registo simbolista, encontra na própria matéria da construção a hipOtese de uma cor respondencia. Nao me ocorre meihor metáfora que a conhecida nudez de uma figura feminina em Appia: ...dir-se-á, uma muiher, corn as vantagens do seu sexo e instalada corn elegancia num sofa, tern uma expressão deliciosa. Sern ddvida: mas se se despir e se sen tar numa cadeira...? [...] o corpo nu parece, antecipada e implicita mente, presente e posto em valor estético>> (Appia, s/d:86). Wagner optou sempre pelo sofa, que nern sequer era pequeno. Por isso Nietzsche o acusava directamente de corrupcão (Nietzsche, 1973:93). Mistério 0 Fim Tem-se dito da dramaturgia de Antonio PatrIcio (1909),PedrooCru(1918),Diniselsabel(1919)eD.JoaoeaMdscara (1924) — que represenra a mais feliz realizaçao nacional do — Dal a ironia de Appia: Um aforismo dos math perigosos induziu-nos e continua a induzir-nos em erro. 1-lomens dignos de Fe afirmaram-nos que a arte dramática era a reunião harmónica de todas as artes; e que, Se ainda não foi pos sivel conseguir-se, deverta tender para a criaçào, no futuro, da obra de arte inte gral. Chamaram, ate, provisoriarnente, a esta arte: a obra de arte do futuro,, (Appia, s/d:22). 21 TEATR&LIDADES Simbolisrno. Na verdade, o seu drama adopta pane significativa das alteraçöes introduzidas pelos protagonistas desse estilo novo. Sern se ficar pela reproduçao macerada dos gestos de escola, estäo nele os Icones da sua geração artistica: a esteticização do divino no <ar pascal>’ que corre em Dinis e Isabel, a ternatizaçâo de urn inefável que pode ser o mistério, o milagre, a morte ela própria vista corno a uMaja do mistério>’ o <óleo da saudade> que inunda Pedro o Cru, ou ainda tópicos como as sombras, os siléncios, o exo tisrno das cores, o perfume das fibres (lIrios, biases e rosas umisti cas>>), a premonição de uma Cega. No entanto, ainda ha poucos anos, Oscar Lopes dizia que PatrIcio era urn ((escritor particular mente difIcil de classificar” (Lopes, 1994:145), e não é vulgar esta hesitaçao perante urn dramaturgo português. Pondo em segundo piano tao incornoda tarefa taxinómica, you apenas tornar os seus textos como urna concretização do Drarna das nuvensn, tItulo de — — poema a que ja aludi e ern que PatrIcio da ainda razão a Appia e a austeridade da cadeira contra a pornografia do sofa. Adiante volta rei ao problema da decadéncia. Um aspecto ern que o drama de Patricio insiste e o uso de materiais da História e da mitologia nacionais. Mais do que inserir o autor numa lusitanidade de tradiçoes pouco heroicas, a saudosista acima de todas, esta escoiha tern vantagens que qualquer müsico saberia explicar ao seu libretista favorito. A simplicidade esquemá rica da trama e o conhecirnento prévio das personagens permitem a PatrIcio a mesma liberdade expressiva a que o müsico aspira para a sua composição. Sobre a lenda de Pedro e Inês, de Dinis e Isabel ou da figura de D. Joáo, como sobre as rulnas da rnonarquia de 0 Fim, o drarnaturgo pode abandonar-se a ((lntençao toda lIrican. Urn pequeno prefacio, antecedendo significativarnente o rnais imaterial dos seus drarnas, denominado o (‘conto de vitrab>, consegue sinteti zar o espIrito de uma dramaturgia (cf. Patricio, 1919). Ha nele aigo que nos é ja farniliar: a) o abandono da intriga burguesa, (Nada de historia e quase nada de lenda>’; b) o recolhimento a que acima rne referia: <<E urna pequenina tragedia, toda Intirna>’; c) a ausência da notação reabsta, ((sem indicaçoes de costumes ou cenários>’; d) final mente, toda a irrealidade de ((um drama de consciências”, onde so 22 FERNANDO MATOS OLIVEIRA existe ao milagre das rosas em motivo”. 0 triunfo deste teatro implica a recusa de urn outro, corno o Lana o carácter aristocrático de Suze. Segundo o narrador, Suze era uma fIgura ‘4que não se flu dia nuncan: oPosta em teatro, nâo farias uivar as galerias nessa paró Wa de circo ião grotesca que e um quinto acto para burguesas e povinho; eras prés raros apenas como o matoidismo poético da rninha terra>’ (PatrIcio, 1995:82). Trata-se al do cumprirnento do Drama nas Nuvens, poema que reivindica, em verso, o visionarismo de urn drama muito particular: juro, juro Nao quero outro tearro: que mesmo os pobres dramas que escrever, — quando os não vir dentro de mim, no escuro, e sO nas nuvens que os desejo yen.” (Patricio, 1989:139) Estes versos colocarn PatrIcio no centro da veiha discussao a propOsito da natureza rnais ou menos poética do drama simbolista. Nao é ocasião própnia para o fazer, mac havenia que integrar esta poetização do drarna no contexto mais evidente da reputaçio que, por razOes conhecidas, a lIrica atinge no simbolismo e ainda numa tradiçao silenciosa que vinha crescendo desde o inIcio do século XIX. 0 drama lIrico, aparentemente escrito para a leitura, desen volve-se corn Byron (ManfreeL 1817), corn Shelley (Prometheus Unbouna 1820), Robert Browning (Praracelsus, 1835) ou Swin burne (Atlanta in Calydon, 1852), entre outros. Mas a possiblidade da poetizacão do drama foi tambem aberta, na sua origern, por aquela sensibilidade que Hegel dizia estar a rnatar a tragedia. Seguiu-se-lhe, naturalrnente, o ascendente pOs-romântico da perso nagem sobre a fabula dramatica, entre outras transfiguracoes mais actuais da subjecrividade. Recorde-se que AntOnio Patnicio dizia, no poema ha pouco citado, que escreveria dramas quando os visse <<dentro de mirn”. De facto, o registo poético domina as intervençöes das personagens: ora se transforma em tendência para a rnonologaçao ora sustenta o irrea lismo procurado. Em D. Jodo e a Mdscara, pot exernplo, a estrutura versificada surge sernpre que a personagem Morte se aproxirna. Ate TEATRALIDADES 23 as didascalias se integram neste discurso. Assim, em Pedro o Cru, COS vitrais dormitam na penumbra” e (cO vale é imenso, povoado de formas floconosas: São as nüpcias das árvores e das nuvens”. Mesmo quando algo impottante acontece não o sabemos imediata mente, através da acção e do dialogo directo em palco, mas pela melopeia de narradores que a ela nos conduzem, difhsamente. Esses narradores são em grande nómero, incluindo o Desconhecido (0 Fim), Octávio (D. Joao), o escudeiro (Pedro o Cru) ou Péro Coelho relatando a morte de Inés: oBranca... como o espectro de uma rosa branca, como urn rosto de morn na memória, como uma lua de gelo nurn crepósculo”. A escoiha da narração favorece ciararnente a manutenção desta estratégia de priviléglo do verbal, embora se deva admitir que a superioridade desta e relativa, pois teve de se debater corn a estética da sugestão, a qual <não defende apenas a pureza da poesia: ela e uma necessidade da sua grandeza, isto é, da sua natureza cognosci tiva e trans-racionalo (Pereira, 1975:77). A nova linguagem, longe das suas realizaçoes rnais cornuns, eta somente o caminho que a cena tardou a acornpanhar em Portugal. Quando o fez, a cena simbolisra mostrou poder chegar mais perto desse indizivel. Assim se pode entender a seguinte afirmacão do protagonista de D. Joao e a Miii cara, verdadeira smntese crItica de uma difIcil relaçao historica entre o texto simbolista e a cena sua contemporânea: <Há coisas que a minha alma já conhece, e o meu corpo, coitado, aprende aindan. Urn verdadeiro teatro do irnaginário está por consequéncia pre sente nos sonhos e nas visOes fantásticas de várias das personagens. Nele percebe-se melhor a utopia que, em correspondência privada, Mallarmé confessava ter buscado para um dos seus poernas drama ticos: 4e le fais absolument scénique, non possible au theatre, mais exigeant le théâtre (Mallarmé, apudSzondi, 1975:119). Esta aRt mação ilustra toda a censão que atravessa o drarna simbolista: denota simultaneamente o rnodo inusitado através do qual a própria lin guagem se apropria de tdpicos teatrais, encenando-se na irnaginacão do leitor, e o risco de isolamento ulterior do texto nas páginas do livro. A homogeneidade do drama depende rnais das imagens do que da acção, e é quase o seu desenvolvimento rnetaforico e sirnbo FERNANDO MATOS OLIVEIRA 24 lico que comanda o devir do texto e das personagens. Na ëtica par ticular de D. João, “Actos são mascaras. So a vida da nossa alma é tudo’>. Quando solicitado, o encenador, como que em posicão de manifesta excrescência, trabaiha sempre sob a pressão de tornar o drama püblico, e não exciusivamente verbal. Ora, jamais o conse guirá sem usar, no mInimo, a cadeira de Appia, cujo material de construção compreende trés elementos, decisivos e realmente fun dadores do teatro moderno: movimento, luz e abstracçao. A pers pectiva e a seduçao do trompe-l’oeildo teatro realista anterior cedem o lugar a imaginação do espectador, náo já espectador das ilusoes mas tendo pam Lz suggestion thins l’art, parafraseando a obra homo nima de Paul Souriau, de 1909. Naufragio corn espectador Contudo, o que a dramaturgia de Antonio Patricio encena tra gicamente, por derras dos sImbolos, das sombras e dos cristais, é a atitude do poem perante a torrente reificante do tempo. No seu estilo arredondado, Adorno dizia num texto célebre que toda a <ilirica moderna encerra em si um momento de ruptura’ e que esta óltima se encontraria precisamente na linguagem. Seria portanto justo obriga-Ia a falar a sua duplicidade. Ha-de, então, saber-se se em algum memento do drama de Antonio Patricio se vislumbra o cfilosofema dialéctico” que o poema é: pois, ainda quando aparenta ser insociavel, nessa mesma qualidade residiria a sua natureza social e historica (cf. Adorno, 1975). Escamos, pela segunda vcz, com Wagner, perante o problema da decadéncia, e a cotter o risco de encailtar no recife que Nietzsche Ihe oferecia a vida também era para Schopenhauer ((um mar cheio de recifes e remoinhos (Blumenberg, 1990:85). 0 reMgio geracional no mistério perpassa por todos os textos de PatrIcio. Em Dinis e Isa6th as faces expressam aIegria mistica’, <alegria alucinada, a voz adquire <(tom misterioso” e a pose adopta <ar de cisma”. Contudo, Ia bem para o final, toda e qualquer hipótese de quietude mIstica é per— TEATRALIDADES 25 turbada pela consciência de que a sua época secular resiste a tans cendéncia. PatrIcio sabe que S6 se vive na consciência’ (PatrIcio, 1972:11), ou como diria o seu D. Joao, sabe que tern sernpren ra20. Note-se que estamos agora num mornento em que é a orazao que pode tornar o homem espectador daquilo que ele próprio sofre” (idein:81). No poema O camarada” podern ler-se os seguinles versos: uHoje o rnistério (dobrarn Os sinos) já näo tern signos, signos divinos.” (PatrIcio, 1989:124) F,sta constatação obriga-o a reconhecer que qualquer esperança no SIrnbolo apenas se sustenta nusn acto dernasiado voluntarista: o estético, precisamente. Deste modo, a resolucao de tal ‘problema’ através da escrita dos dramas representa para PatrIcio urna sublima ção estética do confronto que originalmente a rnerafora (existencial) do naufragio a de Lucrécio colocava no piano de urn enfren tamento real do historico. Como para o abade Galiani, a situaçäo artificiaL’ do teatro e mais poderosa do que a metafora do naufragio, mas ((corn a passagem da beira-mar para o teatro, o espectador de Lucrécio é privado da dirnensao moral, ele torna-se ‘estético” (Blu menberg, 1990:58). Abeirando-se da condiçao do especrador transcendental”, o homern de PatrIcio cone o risco de abandonar ate a própria luta pela sobrevivência. E de urna fantastica ilusdo que se trata, espécie de antevisão desse instante breve, mas seguro, que o mItico pode oferecer ao naufrago. Veja-se tudo isto nurna interven ção do Desconhecido, n’ 0 Finz — — ((E o prestIgio de urn preconceito milenário, a ilusao que ele da de estabilidade, que eu preciso agitar nas minhas rnäos, corno urn trapo hip notizante, urn espantaiho. E a hora estranha de erguer rnais os Ido1os. (PatrIcio, 1990:46) Neste contexto, julgo que os espaços dos dramas se podern tomar como a imagem exacta de urna geopatologia global que 26 FERNANDO MATOS OLIVEIRA ensombra as várias verrenres em que o referido problema se torna mais visIvel. A humanidade do tearro de Antonio PatrIcio habita, em 0 Fim, num “Paço VeIho, em <<escombros”, a rainha mori s bunda <<mascara-se de simbolo” para que se tenha, nas paiavra do tearral ao Desconhecido, ‘aim sirnulacro de realeza>>, pok tal <<Ficç o [...] ainda fascina>> (idem:47). Pedro o Cru cuitiva urn turism necrofilo na cornpanhia de um <<cadaver esburgado>’. Dinis e Isabel começa na leprosaria e termina nurna aicova de <<penumbra espessa’>. Pot Gm, D. Joao e a Mascara, que o autor apelida de <<amoral mIs e tico ou ulnsunnvo religioso>’, arrasta-se por urn palácio outonai por <<uma sala num solar ern luto”. Nem sO o espaço e sintoma de mai-estar. Aiém de 0 Fim, a diversidade do percurso individual dos trés protagonisras dos dra não chega a corn Isabel, D. Pedro e D. Joao mas seguinces ibilidade coetâ imposs pensar, num piano historico, a ausência ou a e, e nea de criar verdadeiros signos divinos>’. Muito provavelment con <<não autor o esta indecisao que leva Oscar Lopes a afirmar que seguiu nunca [...J explicar-se sobre o sentido profundo que o ilgava codo, ao verso de Shakespeare, segundo o quai nada nos pertence de a näo set a morte pessoal” (Lopes, 1994:155). Pan o crItico, PatrI s cedencias importantes: do tern de acumuiar uma arte corn aiguma <<certa concepçäo ou intuiçio da Saudade portuguesa com traços decadentes, simbolistas e nietzschianos>> (idem:1 51). Se se pode atribuir alguma autoridade especial a D. Joac e a Mdscara apenas pelo facto de ser o ültimo dos dramas, gostaria de terminar com ele. Peia segunda vez, é o prOprio PatrIcio quem se vai sentar no dm0 do recife a que Nietzsche condenou a felicidade do , percurso de Wagner. Mas, se este al se rnantém nesse estado incerto ja antes do sonho do naufragio>> se enamorar da <<vela”, o prefacio a D. Joao e a Mdscara apresenta-nos PatrIcio a afundar-se ienta mence: <<Quer isco dizer que toda a vida consciente é vida morta? Nao, de certo: mas lento e lento, urn naufragar contInuo, naufragio de marujo-poeta, em que se prolongam sempre os horizontes.” (PatrIcio, 1972:11) Se a metafora do naufragio pode ser uma <<fenomenologia das siruaçôes hisróricas de crise” (Blumenberg, 1990:92), então, a situa — TEATRALIDADES 27 ção de PatrIclo e dos seus herois é a de urn tempo que não pode aprender no naufrágio a libertaçao lucreciana do receio, olhando em seguranca o infortünio dos outros. Cabe ao Duque confrontar a sua ânsia rnIstica e a vertigem carnal de D. Joao com o tedio>’ do tempo, esse Algo, maiusculado, que vern <dos confins da fadiga’>, quando o acusa terriveirnente: E 5 o espectador do teu naufragio’>. Antonio PatrIcio quase vence Wagner, quando as mascaras de D. Joao ja se abeiram do travestismo. A afirmaçao do Duque apenas da prova de mais um dilema de quem não pode deixar de ser pri sioneiro da consciéncia: E 5 o actor que faz o teu papeb>, diz-lhe. 2 ESTETICA E MARIONETA Objectos animados 0 modernismo e as vanguardas historicas do inicio de Nove centos manifestaram uma aproximação ao objecto animado que percorreu diversamente o espaco europeu. Espécies como a mario neta, o boneco e o fantoche participaram numa complexa negocia ção entre o erudito e o popular. Este trânsito entre a ‘alta’ e a ‘baixa’ cultura deu origem a apropriação culta de formas de entretenimento popular como a pantomima, o circo C OS espectaculos de sombras, nurn percurso que nos levaria ate aos saltimbancos de Picasso e a assernbleia nocturna digna de qualquer grande cultura de cabaret urbe que pelo inIcio do século se pretendesse moderna. Recordem se versöes do ‘cabaret artistique’ como o Chat Noir (Paris), o Elf Scharfrichter (Zurique), o Theater Munchner Kunsder (Munique), o Fledermaus (Viena) ou ainda o Quatre Cats (Barcelona). Por esta altura, a apeténcia ocasional do modernismo cosmopolita por for mas populares ou serni-populares originou deslocaçoes radicais na economia social e literaria da representacão. No caso especIfico do teatro, a escala destas deslocaçoes foi suficiente para reconfigurar o espaco da teatralidade e a sobreviven cia dos diversos estilos historicos. A convocação da marioneta e do boneco animado deve, pois, ser lida no contexto da emergência de urn teatro novo, no reverso da tradiçao realista e naturalista dorni nante. A sua presença convene-a nurn território propIcio ao ques tionamento da representacão e da linguagem, pois a percepçäo humanoide dos bonecos artificiais instala a ambiguidade no campo — 30 FERNANDO MATOS OLIVEIRA pacificado do mimetismo naturalism, pondo tambem em causa a pertinência do psicologismo que atravessou todo o seculo XIX. A rnarioneta näo confIgura uma tradiçao estabilizada quanto ao seu aparato narrativo ou técnico. Historicarnente, este faao disponibili iou-a para apropriaçOes divergenres. Vejarnos urnas quantas: a) a sua actuaçäo em inürneros espaços cuiturais denota cornportarnentos e intençöes subversivas, rnas também a reproduçao conservadora de linguagens e tipologias sociais próprias da cultura popular; b) o pequeno teatro de rnarionetas solicita urna audiência lirnitada, mas tern corno requisiro a bondade imaginativa de cada urn dos especra dores; c) o espectáculo exige ao marionetista capacidades de impro visação, rnas a própria construção e manipulaçao deterrnina-lhe o domInio de urn saber minimarnente formalizado. Por ourro lado, a escala reduzida do espectáculo de rnarionetas traduziu-se numa resisténcia notavel a escéticas e ideologias autocráricas, estivessem elas comprornetidas corn o poder ou corn o rnercado. Por todas esras razôes, a (<radicaildade,, potencial da rnarioneta conferiu-lhe urna visibilidade inedita no discurso do rnodernisrno europeu (cf. Schu rnann, 1994:95). No piano estrito da teoria teatral, ela fez parte da argumenta ção de urn dos protagonistas da encenaçäo rnoderna. Ern ‘0 Actor e a Supermarioneta’, ensaio central do volume A Arte do Teatro, o teatroiogo inglês Gordon Craig perspectiva a rnarioneta a partir da representação deficiente do actor cornurn e radicaliza os terrnos da ceiebre oposição Ideistiana entre bonecos e hurnanos, a ponto de despejar o actor vivente do palco. Apesar de reconhecer que a mario neta vivia por 1907 urn dos seus <‘perlodos mais aforrunados>>, Craig pratica algurnas disrinçoes que convém considerar desde já. A super rnarioneta proposta em A Arte do Teatro não se compromete corn a baixa cornédia ou corn o espectáculo popular; eia fiLia-se sobretudo na cuitura de impassibiiidade que exigirá ao actor rnoderno. Consi derando os espeaaculos das feiras, Craig dirige-se ao actor ern ter rnos explIcitos: <(Ainda assirn, as rnarionetas actuais são urna coisa extraordinaria. Os aplausos podern troar ou ser entusiasrnantes que o seu coração näo bate rnais depressa, nern rnais lentamente, os seus gestos não se tornarn precipitados ou confusos’ (Craig, 1990:60). TEATRALIDADES 31 Esta obra consagra no terreno da representacão teatral o imperativo estético que repetidarnente veremos associado a marioneta. A historia desta associaçäo tern na textualidade drarnatica urn desenvolvimento exemplar. Tornando o caso espanhol, antes mesrno dos titeres de Lorca, passou pela obra de Jacinto Benavente. El encanto ek una hora, o primeiro texto da colecçao Teatro fantthtico (1905), e talvez o que rnelhor ilustra a tendencia para a anirnação de objectos na passagern do secujo, uma decada ames das animaçôes radicais dos futuristas italianos. Neste texto singular, duas figuras de porcelana aproveitarn o toque da meia-noite para se descobrirem vivas a custa de uma força sobrenatural. A vertigern animada alastrou a outros autores europeus. Alérn de Pinocchio (1883), de Carlo Col lodi, o simbolismo e a abulia civilizacional das personagens de M. Maeterlinck deram origem a ‘trés pequenas peças para marionetas’, datadas de 1894: Alladine et Palomides, L’Intérieur, La Mon tie Tinta giles. A rnarioneta devérn aqui uma rnetafora que caracteriza o corn portarnento distanciado e onIrico das suas personagens, pois Maeter linck nâo chegou a resolver, no piano da representacao teatral, a impropriedade que via nos actores de came e osso. Este conflito avançará mais tarde para o interior da textualidade dramática, por exernplo, na peça Esfinge e Espantalho (1907), de Oskar Kokoschka. A flgura da marioneta atrairá expressionistas, dadaistas e futu ristas, nurn arnplexo criativo que adquire matizes diferentes, osci lando entre a visão aparentemente redentora de Kleist (Sobre o Tea tro tie Marionetas, 1810), o antipsicologismo da supermarioneta de Gordon Craig e a utopia futurista posta na esteticização generalizada da máquina. A geração de Marinetti, ele próprio autor de Poupées Electriques (Paris, 1909), explora esta conceptualidade, seja no que vern a charnar ‘sinteses teatrais’, seja no experimentaiismo dos Bal lets Piasticos de Vittorio Podrecca e de Fortunato Depero. A geo metria das construçOes cénicas e mecânicas de Podrecca e Depero, hoje visiveis nos quadros e nas peças escultoricas deste aitimo, pres sionarn a teatralidade da rnarioneta ate aos iirnites da sugestäo do autómato moderno. Corn Marionette, che passione! (1918) de Rosso di San Secondo, e Quella che t’assomiglia (1920) de Enrico Cavac chioli, o Teatro Grotesco italiano acaba rnesrno por sintonizar a 32 FERNANDO MATOS OLIVEIRA marioneta corn a denüncia antiburguesa, praticada tambern pelos expressionistas germânicos, segundo os quais o antIdoto para o vazio quotidiano deveria set extraido de uma estética do excesso. Esta curta passagern pelo terrirório rnoderno da marioneta serve aqui de introduçao a urn tipo de apropriaçäo do objecto ani mado que de seguida pretendo individualizar e reconstituir, corn base nurn trajecto sucessivo pot trés textos. São estes, respectiva mente, o controverso ensaio So/ire o Teatro de Marionetas (1810) de Heinrich Kleist, corn o quai se inaugura a vinculaçao do absoluto estético a uigura da marioneta, a ‘Quarta elegia’ (1915)6 de R. M. Rilke, na quai a retórica da plenitude investe igualmente no rnotivo do fantoche, e, finalmente, a peça Arn’es tie Começar (1919) de Almada Negreiros. 0 elenco desta óltirna resurne-se a dois bonecos anirnados que dialogarn nurn tempo anterior a temporalidade do espectaculo propriamente dito. 0 debate centra-se na oposicäo entre o ser boneco e o ser hurnano. A selecçao dos trés textos supöe urn minimo de narracivização argumentativa. Resurnindo e antecipando urn pouco da historia que se pretende contar, poder-se-ia alinhar desde ja o seguinte raciocI nio: 1) a marioneta começa por set em Kleist o efeito da tentação idealista a que o Romantisrno foi sensivel; 2) em Rilice, a retórica do fantoche é pot sua vez reactivada num contexto tardio’, pela voz de urn sujeito que, cern anos depois de Kleist, é mais certo do carácter ilusOrio contido na promessa da uhora da infancia; 3) finalrnente, no Airnada de 1919, os bonecos representam inesperadamente urn regresso autoral s margens do ja se designou por ‘teatro teologico’ (cf. Derrida, 1989). A demora na analise do texto de Almada visa entender a natureza deste refluxo cornpensatório, simultaneamente pensavel no devir do rnodernisrno e na evoluçao da obra do autor portugués. 6 Apesar de a publicaçao do volume original datar de 1922, a ‘Quarta dc gia’ terá sido escrita originalmenre em 1915. 33 TEATRALIDADES A tentação da infância 0 texto responsavel pela consagracão crItica da marioneta, pelo menos no sentido em que a oposição humano vs. boneco denota a dramatizaçao de uma crise moderna do primeiro elemento do par opositivo, é o referido ensaio de Heinrich von Kleist. Neste pequeno texto, publicado originalmente nas Berliner Abendblitter, em 1810, a marioneta personifica uma ontologia artistica que a acompanhara como objecto ate ao instante modernism. Em Kleist, diga-se, a raiz popular desta figura participava ainda da autenticidade que a divisão romântica atribuiu a cultura indIgena. 0 seu universo legi dma urn projecto nacional cujo corpus teórico se ficou a dever igual mente ao romantismo teutónico. Neste sentido, o investimento autêntico posto na marioneta e pane do desIgnio mitificador do romantismo. Mas a marioneta de Kleist, dizendo-se inventada pelo vulga> (Kleist, 1988:30), evidencia qualidades que a habilitam para a leitura de algumas das principais tensöes suscitadas pelas constri çOes sensIveis da modernidade, sobretudo após o irnpério racional daquela <<consciência” que o mesmo texto se propöe questionar desde o inicio. Adoptando os termos da interpretacão mais canónica do texto ideistiano para todos os efeitos, foi esta tradiçao hermenêutica a vencer a bataiha pela reproduçao cultural a narrativa de Kleist descreve na primeira pessoa urn encontro entre o narrador e o pri meiro bailarino da ópera local. 0 dialogo entre ambos visa a demonstraçao das qualidades das marionetas observadas no parque da cidade. 0 bailarino reconhece e defende a superioridade dos movimentos artificiais, corn base numa série de atributos que o texto convoca sucessivamente. A marioneta começa por se movi mentar sem a afectividade perturbadora do bailarino, pois o seu gesto e mecanicamente seguido pelo corpo como urn todo, de acordo corn uma força artificial que aproxima a representacão do boneco da perfeicao absoluta. Deste modo, a marioneta desconhe ceria Os <(transtornos que a consciência causa na graciosidade natu ral do ser hurnana’ (idem:33). No segundo mornento do texto, os interlocutores alternam-se na narração de dois episodios destinados — — FERNANDO MATOS OLIVEIRA 34 a exemplificar retoricamente a precariedade da inocência e da espon raneidade nos humanos. No primeiro caso, urn jovem procura em vão reencontrar a beleza entrevista ao acaso, aquando da mirada for tuita num espeiho. Face a intangibilidade do belo, concedido aos humanos em fracçoes minirnas e ocasionais, a marioneta rena a van tagem de persistir num acaso eterno e inconsciente, próximo do <<puro acontecern, mais tarde invocado por Rilke. Apesar dos esfor ços, o jovem da historia foi <<incapaz de reproduzir o movirnento” que na mirada Unica julgou identico ao ideal da esratuária. Urna ‘<misteriosa transforrnaçao>> afecta-o a partir desse momenta Enquanco regressão da beleza, esta mudanca é conrudo progressâo aniquiladora da razão e da consciência. A conclusão a que o baila na rino conduz o interlocutor, no final de uma segunda histonia qual conhecernos o triunfo de urn urso sobre o saber esgrimisra do situa o belo para além da reflexao>’, num mundo narrador sublimado esteticamente: oa medida que o mundo orgânico se debi lita e a reflexao obscurece, urna graca cada vez mais radiante e sobe rana faz a sua aparicão>> (idem:36). A marioneta tex-ide, assirn, a assurnir a crença românrica no poder criativo do inconsciente. 0 seu artifIcio material é dupla mente re-autenticado: enquanto genulno popular-nacional e enquanto estética pura. Pot esta segunda razão, a marioneta comuta corn o Anjo que a manipula, emancipando-se da <<gravidade>’ dema siado pesada para o corpo do bailarino: <<Os bonecos necessitam do solo apenas para o roçarem, corno os elfosn (idem:32). A simpatia metafisica inscrita no ensaio revela-se na intervençào final do baila rino. Uma vez que o corpo humano parece surgir já definitivamente contaminado pela degradaçao moderna, a preferéncia aurora) pelo titere surge-nos em contiguidade corn o infinito. So Deus e a mario neta são passiveis de infinirizaçao, ambos no exterior da pauca cons ciente que escraviza os hurnanos. Corner de novo a árvore do conhe cimento é a derradeira sugestão do bailarino, para através de uma espécie de reversão original c<retornar ao estado de inocência (idem.33). 0 ensaio de Kleist definirá para o fururo os contornos discursivos da apropriacão rnoderna do objecto animado, apesar das contradiçoes que Paul de Man ihe apontou, no que é ainda hoje a — —, TEATRALIDADES 35 rneihor analise da retérica estética contida no enigrnático ensaio de Kleist (cf. De Man, 1984)7. Ainda assim, a bern do débito absoluto do texto de Kieist, De Man admite e implica a marioneta de Kleist no idealismo estético schilleriano . 8 Urn século depois de Kleist, R. M. Rilke retorna a oposicão entre o fantoche e urn bailarino que lhe parece tarnbérn insuficienre. Os dois textos revelam, no entanto, uma diferença que nos permite aferir os danos provocados pelo século de corrosâo sensIvel que os separa. Em Kieist, o narrador discute com o bailarino no rnesrno piano. Aquando do dialogo no parque da cidade, perante a figura do narrador, o bailarino é a voz responsavel pela argurnentação a favor das virtudes da marioneta. Ern Riike, peio contrário, o bailarino e ficcionalizado e deixa de possuir voz autónoma ou positividade argurnentativa. A economia retórica da Quarta Elegian representa o ja cornprornetido corn o universo fihisteu, fazendo-o entrar peia ((porta da cozinha”. A teatralidade da cena expöe urn coraçãon que arnplifica o corte moderno corn o mundo sensIvel: Quem de angüstia näo se rnina ao ver do coração a cortina? Ela descerrou-se: a cena era de despedida. Fácil de entender. 0 ja conhecido jardirn ievernente baiançando: 56 então apareceu o bailarino. Nao o bailarino. Basra! E, per muito leve que se faça, é apenas urn disfarce e ele torna-se urn burgués e entra ern casa pela porra da cozinha. Apesar da desconstrucao retdrica aplicada ao ensaio de Kleist, Paul de Man reconhece o triunfo historico de urna determinada tese sobre o texto. Esta tese identifica a marioneta corn a <noção de infinito>> (De Man, 1984:264). Nestas cir cunstâncias, a selectividade que os cornentadores tradicionaimente manifestaram na leitura de Kieist reflecte o idealismo rornântico que desde 18W vern sendo investido no texto. No piano da histOria cultural, corno dizia acirna, o predomi nio desta ieitura do senso cornurn tern sobrevivido ao trabaiho intempestivo da leitura tropológica. 0 seu ensaio abre inclusive corn urn excerto de uma rnjssiva de Schiiler a Kroner, na quai o autor das Canas Sobre a Educaçio Estética Si Humanidade exernplifica a sociedade estética perfeita corn urna dança quase tao espontânea e graciosa corno a rnovimentacão da rnarioneta no ensaio ern causa (idem:263). 7 36 FERNANDO MATOS OLIVEIRA Recuso estas miscaras sâ rneio preenchidas, prefiro urn fantoche. E pleno. Quero ficar ao pé do corpo do boneco e do cordel e do seu rosto de aparéncit Aqui. Diante de tudo. (Rilke, 1993:51-53) o defice do bailarino radica, urna vez mais, no seu compro misso corn urn corpo dernasiado hurnano. Apesar da graciosidade representada ern palco, o bailarino esconde urn vinculo burgues que Rilke Ihe antecipa POE detras do disfarce da mascara. A cozinha que no fInal da dança o aguarda näo e, definitivarnenre, urn lugar no qual o poeta se possa reconhecer. Segue-se a recusa consequente das “rnáscaras 56 meio preenchidas>, ou seja, a recusa do bailarino que apenas consegue levitar falsamente, ao contrário do fantoche. A pre feréncia que rnanifesta pelo boneco pressupãe urna via de acesso a forrnas de levitaçao mais genumnas. Este carninho, por seu lado, mdicia urn absoluto que corneça por se cumprir urn pouco adiante, ainda na mesma elegia: <[...} quando me disponho a esperar diante do teatro de fantoches, ou antes, a olhar para de tao inregramente, que, por fim, para recotnpensa do meu olhar, um Anjo aparece, actor que os bonecos puxa para o Alto. Anjo e fantoche: finalrnenre corneça o especraculo. Entao se unifica o que continuamente dividimos, ao existirrnos. (idem:55) o universo dos fantoches aparece aos olhos do poeta recornpensa’> capaz de o resgatar momentaneamente do estado ele gIaco que no inIcio do texto solicitava as <<árvores da vida”, sob a forma de urna sintonia invernosa. No curso “tardio da sua existên cia, a cena dos fantoches abre-se como a prornessa de urn espectá cub que <<finairnente começa>. Atraves da rnanipulaçao dos bone cos, a mao angelical do actor de Kleist retorna agora para induzir no observador de tab teatro urn sentirnento inedito de unidade: “Entao se unifica o que continuamente I dividirnos, ao existirrnos”. Ate ao TEATRAUDADES 37 final do poema, Rilke fara o encómio da ((hon da infancia>,, tempo da vida que surge ao adulto como instância capaz da suspensão pro visória do real divergente: Porem, no nosso solitário andar, alegravarno-nos corn tudo o que dura, no espaço intervalar entre o mundo e os brinquedos, nurn lugar que desde o inIcio fora criado para o pure acontecet’ (idem:55) 0 sujeito histérico que fala na ‘Quarta elegia’ indicia urn Jundo contraditório’ que e justarnenre o principal responsavel pela instituiçâo da retórica da temporalidade que atravessa a apropriação do objecto anirnado nos três textos em analise. Vê-la-emos tambern nos bonecos de Aimada Negreiros. No caso de Rilke, a contradiçao e a disjuncao do sujeito relativarnente ao tempo presente condenarn ate a promessa infantil da criança que encerra a elegia. A marioneta, o anjo e a criança concedem juntos urn instante de plenitude, a custa da eternização irnaginária do presente. Nestas condiçoes ideais, latamente coincidentes corn o idealismo estético, o passado não seria trauma e o futuro simples possibilidade inconsciente. Estas, enfim, as condiçoes (im)possIveis da felicidade em Rillce: O horas da infancia, em que detras das figuras havia mais do que somente passado e em que o futuro não estava ainda a nossa frente.’> (idem:55) E este tempo estático que a irnaginação do poeta não consegue impor a inconstância que percepciona no contacto corn a realidade. o anjo que actua por cirna dos bonecos não vitaliza os Homens, ja que a própria criança convocada por Rilke contém em poténcia a morte futura, suscitando urna incornpreensão absoluta, mais ainda do que o absoluto de urna qualquer estética. A conclusao do texto interdita definitivamente o transcendente infantil: FERNANDO MATOS OL]VEJRA 38 <Fntendemos facilmente urn assassjno. Mas nao isto: eta conter assim tao suavemente a morte, a morte por inteiro, ainda antes da vida, e não set rná, e indescritive1., (i&m:55) Regresso ao coraçio A obra de Airnada Negreiros representa em contexto português o dialogo mais intenso corn o objecto animado e as forrnas da cut tura que o envolveram nas primeiras decadas do seculo X. 0 cabaret, para referir urn exemplo, e tItulo de urn poerna almadiano que tipifica a sociabilidade participativa que por esta altura o carac terizou como espaço nocturno: ((Pra quê teatro? Els-nos aqui. Pusemos o palco entre as rnesas e sornos flóS Os actores Os personagens C OS autores. Banirnos o publico. Agora, protagonistas todos! (Almada, 1990:239) A pulsao da noite, cpro1ongamento do dia / que não satisfez, as girls e as bailarinas preenchem os versos do poema. A sintaxe do todo é medida pela liberalidade gramatical do jazz, o quai <<liga todas as passagens>. A mósica, o whisky, o saxofone e as luzes tern como efeito fazer <esquecer o dia>> e subverter as rnedidas do <sistema,i. Pode obter-se uma imagem mais completa da escala deste envolvimento a partir do volume Almada Negreiros e o Espectdculo, Lisboa, Fundaçao Galouste Gulbenkian, Ljsboa, 1984. A leitura do manifesto O Music-Hall>>, de Marinetti, publicado em traduçao no Portugal Futurista (1917), traduz o investimento van guardista nun teatro de acção e de velocidade, adoptado pelo Aimada da Ease fliturista, quando a máquina estava ainda pelo coraçäo dos bonecos anunciados em 1919, apenas dois anos mais tarde. 9 39 TEATR4LIDADES 0 cabaret de Almada apresenta-se, assirn, como jogo onde é possi vet expenmentar 0 mesmo sem as regrasn. Quando no final a bai larina da urn tiro f1ngido no rnilionario, acaba por encenar o incons ciente politico do texto: a fraternidade participativa de todas as classeso não deixa de reescrever corno ‘mentira’ o que a polIcia do poerna descobre como verdade”. As rnarcas da pariicipacão do autor no universo cultural e artis rico do cabaret prolongam-se noutros textos e noutros motivos, corno sucede corn o clown da ((americana viciosamente esguia de music-hal&, em K4 0 Quadrado Azuh ou corn a Vampa, persona gern central da peca Deseja-se Mulber. Presente em Ames tie Come car, o irnaginário vizinho dos bonecos retorna dramaticamente a escrira de Almada corn Pierrot eArlequim (1924), e sobrevive ainda nalguns autores seus conternporâneos. Recordern-se A Continuação eta Comedia (1931) de Joao Pedro de Andrade e Tres Mdscaras (1934) de José Régio. Mo por acaso, o movimento da Presença tematizou frequenternente a figura tradicional de Pierrot, como forrna de problernatizar a relaçao entre a vida e o sentido. Identica rnorivação esteve na base de inümeras representaçöes populates da marioneta, assurnida corno materializaçao do divino ou modalidade de acesso ao sagrado. A versão mitologica da marioneta ha-de ter-se em conta nos bonecos de Almada, a que passo ja de seguida. Datado de 1919, Ames tie Começar consiste, rnuito sumaria rnente, num dialogo entre duas ünicas personagens: o Boneco e a Boneca adquirem vida e conversam no rnomento que medeia entre a partida e a chegada da trupe, pan o inIcio de mais uma sessão de tearro. 0 tItulo, por si 50, é urn enunciado que convoca a tempora lidade do espectáculo. Na econornia da peca, ((antes), é o tempo que começa corn o afastamento de um tarnbor, corno se le na primeira didascalia: Depois de subir o pano, ouve-se urn tarnbor que se vai afastando. Quando já mal se ouve o tambor, o Boneco levanta-se, e vai espreitar ao fundo para loran (Negreiros, 1993:29). A reivindi cação de anterioridade supôe a existéncia de dois tempos disrintos, cuja oposicão reproduz a dualidade ontologica entre o rnundo dos bonecos e o mundo dos hornens que se afastam. Desde o inicio da duas personagens absolutizadas atra peca, o Boneco e a Boneca — FERNANDO MATOS OLIVEIRA 40 yes desta definiçao nominal apenas se revelam animados quando o tambor do Homem se afasta. A distinçao entre ambos os univer sos uma fronteira no totalmente impermeavel, como veremos. A presenca do Homem surge precisamente como obstaculo a condiçao do boneco: ele afasta-se ao som de urn adereço temporal mente insidioso como o (<tambor)). Por esta razão, o Boneco avisa que sO se levanta quando estão reunidas as circunstâncias propicia doras: <Pois eu, todas as noites, quando o tambor do Homern ja vai muito longe, levanro-me e you espreitar para fora...n (Idem:29). Perante o receio da Boneca, o sen interlocutor insiste na aferiçao da distancia que se estabelece entre o interior e o exterior ao mundo dos bonecos: <<Nao esta ninguém Ia fora! Eu nunca me levanro sern ter pensado primeiro se está alguém Ia fora!... So depois ter pensado bern eu me levanto... e ate hoje, ainda ninguém deu por nada...n (idem:30). Quando a Boneca se manifesta excessivamenre timida no inIcio da peça, o Boneco não deixa de a acusar de conivéncia corn urn regime comportarnental associado a ferninilidade tipica dos hurnanos, rebaixando episodicamente a bonecan a condiçao de uma (‘menina,’: O Boneco que uma boneca! — — OIha! Digo-te outra vez: pareces mais uma menina do A Boneca E nao dizes nada rnal!... pois quantas e quantas vezes eu me esqueço de pie sou boneca e me ponho a pensar exactamente como se fosse uma menina! (idem:30) — A oposição entre bonecos e hurnanos e assunto que subjaz a totalidade do diálogo. Ser boneco ou ser como os hurnanos e uma condiçao dramarizada no discurso das personagens, corno marca da sua diferença constitutiva: “Todas as noites puxo por ii e en és scm pre uma boneca!U>’ (id.em:29). Antes tie Começar apresenta contudo duas possibilidades de mediaçao entre o mundo humano e o mundo dos bonecos. A pri meira assenta no retorno do elemenco infancil, investido de todo o capital critico antirnoderno. Instalada nas rnargens da razäo TEATRALIDADES 41 adulta — força que expropria o ser do contacro corn a verdade internporal a criança tende a partilhar as virtudes sinceras dos bonecos. Aquela criança quase rnortuária que vimos encerrar a pas sagem elegIaca de Rilke pelo universo dos fantoches tern agora urn regresso mais prometedor na peca de Alrnada. Ao notar ((as pessoas pequenas que vérn codas as noites vet o espectaculo>’, a Boneca regisra, desde logo, uma afinidade topográfIca corn o espaço infan dl. 0 Boneco explica-Ihe que cal se deve ao facto de as pessoas gran des se afastarern do espectaculo, deixando o mundo animado ernie gue aos mais pequenos: ((56 as crianças é que gostarn de bonecos>> (idem:34). A sintonia ernie arnbos é expressa de rnodo claro, urn pouco adiante, sob a forma de urna pulsao identitaria: ((Do que as crianças gostavam rnais era de chegar a ser bonecos!!!” (idem:34). A segunda forma de rnediaçao entre bonecos e hurnanos chega nos da actividade desenvolvida por urna hurnanidade excepcional: a trupe do espectaculo. Apesar de adultos, corno os dernais, a gente do teatro tern na peca de Almada a capacidade de pressentir a faculdade rnotora dos bonecos, corno se percebe do dialogo ernie estes óltimos: —, ((A Boneca — ChiuL.. E pot causa do Homem... coitado, se ele sou besse que nos nos rnexIarnos! Tu já pensaste a s&io a este respeito? Urn dia, scm querer, tu julgas que o Homem näo está aqui e dc está a ver-te! Que horror!!! Nern quero pensar! o Boneco — Ora Mesmo que o Hornern me visse a mexer, julgava que era urn sonho... Nao acreditava... A Boneca — Não é unto assirn!... Tu é que não sabes o que se passa! Ha dias, o Homern estava rodo bern disposto, chamou a mulher dde e disse-lhe a apontar para mirn: Nao achas que cia — era eu tern cara de quem está a espera de que a genre não esteja a ver para se per a sua vonrade? — [. . o Boneco — E a muiher do Homern o que é que disse? A Boneca — A mulher do Hornern disse assim (Devagar.) Olha que estás para af a dizer urna coisa que ja inc rem vindo a ideia muitas vezes e scm eu querer.” (idem:32) FERNANDO MATOS OLIVEIRA 42 A predisposicao infantil da trupe de tearro radica na sua bon dade artIstica. A iconoclastia do Almada fliturista e despejada do programa de felicidade pela esrética, representado nesta cornunidade do teatro. A muiher do Homem, parricipante corno ele no mundo do espectaculo, manifesta sinromaticamente uma predisposiçao onI rica para antever a qualidade vivente dos bonecos, apenas quando cal the vern a ideia “sem” ela querer. Nio ha, portanto, acesso adulto ao sonho infantil sem abrandamento da vigilancia racional. 0 carninho da arte e aqui o modo mais seguro de aceder a utopia. Esta excep cionalidade do adulto-artista que inregra a trupe e passivel de trans missão aos descendentes. Segundo afirma a Boneca, os filhos do Homem poem-se tambem a urn canto, “a espera de que qualquer urn de nós se rnexa...>’ (idem:32). A premonição estética da crupe compensa pelo espeaáculo teatral uma vivéncia ausente da realidade dos outros adultos. Mas o que realmente define os bonecos e a ontologia superior neles investida. Esta consiste principalmente na sua fidelidade sen sivel, na sua lealdade fundamental as coisas do coraçAo. Entre o coração e a cabeça gera-se urn antagonismo que reproduz a oposição entre bonecos e hurnanos nu entre esres e as crianças. Enquanto argumento central da peça, o coraçäo e lugar passIvel de resgatar a integridade do sujeito arneaçado pela modernidade. 0 Boneco di-lo corn a linguagem possessiva de urn coração intransmissIvel e dnico, ja nos arredores da rnistificaçao individualista que em 1932 Almada ensaio que e ele prOprio urna reac exporá na uDirecçao Unica cáo individual ao mundo que al se dizia progressivarnente sem ((nenhum mistérion. Leia-se, pois, a intervençäo do Boneco em prol do individuo corn coração: — (<0 Boneco Por mais depressa que passes, o teu coraçäo espera pot ii... o teu coração náo espera mais ninguérn... Se tv náo vieres, o teu coraçäo não espera rnais ninguém... Se tu não vieres nunca, o teu coração não conta, näo ouve. E corno se Mo tivesse havido o teu coração. Por mais depressa que passes, dá-re inteira ao teu coraçáo... Porque so sabe do tempo quem Mo traz coraçio... o tempo é pecado de quern Mo sabe — amarll! (idem.39) TEATRALIDADES 43 Recordo, antes de prosseguir, que o ‘teatro teologico’ se define em Derrida como representando sobretudo urn encenador subme tido a força da voz autoral (Derrida, 1989:322). Ora os bonecos de Airnada verbalizarn o prograrna sensivel que emana de urn logos autoral, por vezes de forrna tao afirrnativa como a que se segue: <Acredita no coraçao! Ele sabe de cor o que quer!... Nao foi neces sário ao coração it aprender o que queria... A nossa cabeça é que pre cisa de aprender o que quer o coração!... (idem:39). A tradiçao do objecto animado reverte aqui a favor de um boneco idealizado, pre figurando uma pedagogia do coração que visa actuar contra os des mandos da cabeça. Se em Rillce o fantoche apenas assegurava um reencontro ilusorio do sujeito consigo rnesmo, em Almada, pelo contrário, os bonecos são detentores e transmissores da verdade que vem do coração: <As pessoas é que se enganam! Nós os bonecos, nunca nos enganamosU!n (ielem:30). 0 coração tende a set o lugar a que o sujeito moderno retorna em união. Nas palavras da Boneca, a unidade procurada estaria no coração que não separa o interior e o exterior, tal como sucederia nas pessoas autênticas, iguais de ambos os lados da pele: <<0 que urna pessoa e pr’a fora é igual ao que e pr’a dentro! E uma coisa sob’ (idem:37). Quando conta a historia exemplar da sua construção pedacinhos, a Boneca começa por dizer que foi “muito pensada”; mas no final da curta narrativa declara ter sido feita na unicidade de um coração: Fui feita corn o coraçao!... Se o que sai do coração fosse igual ao que está por dentro... não era uma simples boneca yes tida de seda... era outra coisa! Era o próprio coração por dentro! (idem:36). A Boneca testemunha, pois, a projecção unificadora de quem a construiu. Fá-lo, acrescente-se, corn a linguagem de Almada, mas tambern corn a linguagem peculiar que P. Bogatyrev reconhecia nos estudos pioneiros sobre o teatro de marionetas, tea lizados pela segunda década do século )Q(l A Boneca adopta essa Na analise formalism do teatro de marionetas checo e do teatro popular russo, P. Bogatyrev fez o elenco de algumas das particularidades linguisticas e estruturais desse reportório tradicional (cf. Bogatyrev, 1999). A importância que Bogatyrev confere a estes elementos antecipa de facto a atenção que o teatro vem 10 44 FERNANDO MATOS OLIVETRA licença expressiva, pot exemplo, quando concede a projecção rever sIvel da sua origern corn dererrninadas liberalidades ao nIvel da sin taxe pronominal e verbal: <<Ela copiou-se exactarnente em mim (idem:35) ou <<Ela nunca pensou mostrar-me a mim’> (idem:36). Pelo que temos vindo a ver, o dialogo entre os bonecos reactiva uma nova versâo da transcendéncia que Kleist e Rilke investirarn de modos diversos na estética do objecco animado. No caso de Almada, este refluxo pré-crItico em direcçao a verdade do coração coincide sintomaticamente com o arranque da segunda fase da sua obra, orientada para a invenção da Ingenuidade’’. Ames tie Comecarsurge no infcio de uma etapa que antecedeu os textos responsáveis pela instituição do programa <ungenuon. Refiro-me, em particular, ao poema em prosa inritulado A Jnvençao do Dia Claro, texto que con fere pertinéncia conceptual a Ingenuidade. Set ingénuo corneca al pela recusa infantil do saber concido nos livros e pela adesao a uma certeza que so o dominio da crença devolveria tal e qual: <<Imaginava eu que havia urn livro pan as pessoas, corno ha hOstias para cuidar da febre. Um livro corn tanta certeza como urna hOstia (Almada, 1990:153). Pela mesma altura, os bonecos de Almada promovem o coração com uma linguagern que faz igualmente apelo ao léxico sagrado: E a fé! E o coração que nunca se engana>> (Airnada, 1993:38). Estamos agora bern Longe das <<minuciosidades estupidas dos sentimentos>’, lirninarmente recusadas no manifesto de Man netti, inserto no Portugal Futurism, em 1917. 0 teatro de acção van guardista que atraiu Almada na segunda decada do seculo reverte subitamente ao teatro da solenidade. A ingenuidade e, pois, contIgua ao coração dos bonecos que animam Ames tie C’omeçar. A justificacao desta contiguidade chega nos do prOpnio autor, num excerto do ensaio 0 Elogio hi Ingenu: dade <<Ponque na ingenuidade tudo e de ordem emocional. Tudo. a merecer nos seus trabaihos no ambito do Circulo LinguIstico de Praga e terá depois urn papel decisivo na ernergéncia posterior cia semiótica teatral. 0 cronograrna desta operaçäo pode let-se no ordenarnento que Celina Silva confere aos tItulos do autor, no periodo de 1919 a W24 (cf. Silva, 1994: 107). TEAIRALIDADES 45 0 que nao acontece corn as outras espécies do conhecirnento onde tudo e de ordern intelectualn (Alrnada, 1992:151). Ern época secu lar, a verdade absoluta do coração sO poderia ser construida sobre as rulnas da “ordern intelectual>>. 0 Boneco di-lo-á explicitamente, ao mesmo tempo que inscreve e legitirna a emoção no alibi da Natu reza: <<So nao entende o coraçâo quern näo sabe escutá-lo... Ele está sempre a contar aquela hora que existe p’ralém da sabedoria... e que tern a forrna sirnplicIssirna de urn coração natural!... (idem:39). A reactivação do conhecirnento emocional, nucleo da cognicäo rornântica, representa urna inversão significativa no percurso esté tico de Alrnada. Mas ao avançar assim para a naturalizaçao simp1icissirna>> da ernoçáo <<coração natural,) será o sintagrna que fecha a peça o trajecto do autor reforça uma intencionalidade impu tavel a ideologia do estético. Partindo da ternatização do elemento corporal, Osvaldo M. Silvestre ja se referiu a narrativa ideolOgica que sustenta a inversâo estética verificada no jovem Almada, sobre tudo quanto a deslocaçao da sua estética para urn universo pré rnoderno (cf. Silvestre, 1998). 0 que gostaria aqui frnalrnente de destacar é o rnodo como o objecto anirnado responde a urna tradi cáo que problernatiza a condiçao rnoderna do sujeito, ao ponto de interrogar a prOpria saturação sIgnica do corpo humano. Nos três autores que tenho vindo a cornentar, a apropriacáo moderna do boneco, da marioneta ou do fantoche visa reinstalar uma teologia teatral que anteriormente havia sido contarninada pelo seu próprio suporte representativo: o corpo humano, precisarnente. Em Ames tie Começar, a tentativa de reaver a hurnanidade perdida irnplica o exer cicio desurnano do esquecirnento e da elisao do passado. A Boneca de Alrnada pode, assirn, produzir afirmaçoes corno <<não tenho his tOria” ou <<so sei o que aconteceu cornigo>> (idem:35 e 37). 0 poder deste coraçáo magnânirno, inventado para os bonecos, anula a própria consciência da historicidade <<tardia> que atorrnen tava Rilke, o qual havia iniciado a ‘Quarta elegia’ corn o descerra rnento da <<cortina’> do coraçäo. Por este rnotivo, o Boneco de Alrnada pode concluir, de rnodo suuicienternente aforIstico, que “o ternpo é pecado de quern não sabe arnar” (idem:39). Neste sentido, Ames tie Começar deve ser levado tarnbérn a letra. 0 que decorre em — —, 46 FERNANDO MATOS OLIVEIRA palco antecipa o começo da representaçio, configurando uma tern poralidade exterior ao tempo de facto. A nota didascalica final diz nos que os elernentos da trupe Se fazern anunciar, juntarnente corn ((muitas vozes de crianças’>. 0 texto finaliza insinuando urna cena de teatro dentro do teatro: <Abre-se a cortina do fundo e do lado de fora estâo sentadas nos bancos muitas crianças corn as pessoas que as acornpanham. Quando ja está quase a começar a representaçâo, desce o pano (40). Nesre mornento, em verdade jI [Depois] tie Começar, Os bonecos apenas podern propor urn dialogo mediado corn as crianças; sobretudo corn estas, pois os adultos que ali se posi cionarn fazern-no na qualidade episodica de acompanhantes, sern acesso directo Iquele tempo que Rilke rnelancolicarnente procurava resgatar no presente eterno dos seus fantoches. 3 HOLLYWOOD NO CHIADO 0. AsIan Je voulais vous demander comment les acteurs jouent sur le plan vocal dans le film par rapport a cc qu’ils faisaient dans Ia representation thCatrale. — Peter Brook — Moms fort. Mecanismo eléctrico 0 lugar do teatro no espaço póblico é profundamente marcado pelo aparecimento do cinema. Quando as imagens animadas aban donam as manobras de bombeiros e se Iançam no campo da ficçao, o mundo do teatro inquietou-se. Esta chegada da ficçao ao cinema constitula uma ameaça imensamente superior a que era proposta, por exemplo, por objectos como a Salda do Pessoal Operdrio Si Camisaria Confianca ou a Feira de Gado na Corujeira, ambos filma dos por Paz dos Reis, nos ultimos anos do seculo XIX. Nesses pri meiros anos de ‘animatographo’, aquilo que viria a ser cinema não chegou verdadeiramente a disputar o mercado de entretenimento com o teatro, sobretudo em Portugal’ . Tudo seria diferente, algu 2 Sobre o ritmo da produçao cinematografica nacional, leia-se a sintese de Benard da Costa: “Do prodigioso desenvolvimento que caracterizou o cinemató 12 grafo nos primeiros dez anos, pouco ou nada transpareceu nos fumes portugueses coevos, ou nos fumes rodados em Portugal. 0 pals manteve-se quase por 48 FERNANDO MATOS OLIVEIRA mas decadas depois. A 3 de Abril de 1929, a Didrio tIe I’votzCras ja apresentava aos leitores uma ‘foto de familia’ corn o enfatico subti tub de ‘Tempos que não voltam’. Alinhavarn nela algumas figuras venerandas da cena teatral, incluindo E. Schwalbach, B. Brazao, Robles Monteiro, Lopes de Mendonça, entre outros. 0 que a seguir se propóe é uma revisitação da natureza desse confronto, conslde rando sobretudo o momento em que o imaginário de Hollywood avança pelas ruas do Chiado, progredindo sempre ate as Avenidas Novas. 0 que começou por parecer urna disputa meramente publi citária entre o cinerna e o teatro, revelou-se tambem urn processo de redefiniçao estética, corn irnplicaçoes no estatuto e na distribuiçao do capital cultural de cada uma das expressOes artisticas. Contrastando corn a ancestralidade da expressäo teatral e corn certa paralisia temática que caracterizava 0 teatro regular português pelas decadas iniciais do seculo )O(, o cinema irrompeu corno fcone de uma nova era, traduzindo esteticamente a aceleraçao tecnologica que o quotidiano das massas ia incorporando a custa de urna série de adereços caseiros. Apesar de então se viver o esterror do Natura lismo, a major parte dos actores nacionais rnantinha um excesso his triónico que abusava de urna dicçao algo estafada. A tradiçao do verismo teacral sofre urn embate significacivo a partir do momento em que o cinema avança sobre ela corn o seu enorme aparato rnirné tico. Por essa altura, o teatro de Arte que rnodernistas e vanguardis tas anunciavam pela Europa chegava a Portugal corno eco distante. Os agentes e produtores reatrais estavarn mais ocupados com as jogadas de monopolio da indóstria de entrerenirnento, ji por si con finada a exigua geografia da capital. Antes de mais, o cinema apresentava-se corno uma extraordi nária invençäo tecnológica. Em lugar da marerialidade do palco, corn as seus protagonistas de came e osso, era já urna irnagem vim tualmente fantasrnacica aquela que o especrador do animarégrafo observava nas projecçOes memoráveis do ültimo decenio de Oito centos. Nao surpreende, portanto, que o nascimento do cinema pleto alheio ao primeiro ‘boom’ do cinema. Passados as anos da ‘novidade’, nem Portugal descobnu a cinema, nem o cinema descobriu Portugal” (Costa, 1991:23). TEATRALIDADES 49 tenha provocado acesa polémica na opinião püblica e, muito parti cularmente, nos rneios intelectuais da época. Enquanto forma de expressäo, o cinema suscitava interrogaçôes quanto a natureza e aos limites do artIstico, quanto a relaçao entre a arte e a técnica (a foto grafia acabara de adquirir movimento), enfim, suscitava interroga çOes quanto ao futuro do próprio teatro, uma arte com estatuto milenar. Ao escrever sobre essa novidade historica e sobre o impacto das tecnologias reprodutoras, Waiter Benjamin arribui urn estatuto especificamente ontologico a diferença entre a tela e a cena. Para este crItico, o teatro possula ainda uma <(vantagem>) relativamente ao cinernático, porque persistiria nele urn derradeiro vinculo aurático: A representação mais Iamentavel do Fausto, apresentada pot urn tea trinho de provincia, tern, relativarnente a urn flume sobre o Fausto, a van tagern de estar em concorréncia ideal corn a estreia em Weirnar. E o que dos conteüdos tradicionais pode ser recordado no palco, deixa de ser explorado na tela, como o facto de o Mefistofeles de Goethe ser a repre sentação do seu amigo da juventude, Johann Heinrich Merck, e outros, similares.> (Benjamin, 1992:79) 0 facto de o cinema arneaçar o irnpério do teatro era para Ben jamin uma prova adicional da perda definitiva do auténtico nas sociedades modernas. A projecção na tela vinha massificar a despe dida do historico, pois ela tambem contribula para colocar “no lugar de ocorrência dnica a ocorrência em massa>’ (id.:ibid.). Por esta razão, apesar de o cinema ser (via montagem) urn gerador potencial de efeitos de <<choquen, aparecia tambem como o <<agente mais pode fOStfl) do processo de liquidaçao da experiência historica, radicali zando um princIpio inerente a própria experiência da reproducao: Este fenorneno e mais evidenre nos grandes flumes historicos. Cada vez engloba mais posicöes no seu dominio. E quando, em 1927, Abel Gance exclamou entusiasticamente ‘Shakespeare, Rernbrandt, Beethoven, farao flu mes... todas as lendas, as mitologias e os rnitos... esperam a sua ressurreiçâo pela luz do fume e os heróis acotovelarn-se as portas’, estava, provaveirnente scm querer, a dirigir urn convite para a liquidacao total.n (idem:79-80) 50 FERNANDO MATOS OLIVEIRA A dimensao da fractura simbolica que o cinema vinha introdu zir no campo artIstico originou posiçOes de grande radicalismo entre os diversos crIticos. Os incondicionais do cinema surgiam apoiados pelo námero crescente de espectadores; os detractores profetizavam a dissoluçao moral da sociedade através do artificialismo perverso da comunicação cinematografica, como sucedeu em IDa Sugestao do Animatografo (1921), do jovem Gonçalves Viana. Eduardo Scarlatti, figura relevante no ambito da reflexao teorico-dramatica em Portu gal mais tarde participará no Teatro Estádio do Salitre alertava para as diferenças entre o (<mecanismo electricon, dominante na sucessividade cinematografica, e o que designava por <mecanismo intelectual>> do teatro (Scarlatti, 1927:13-14). 0 léxico é cultural mente contrastivo: opor 0 ((eléctrico>) ao ointelectualn era uma forma de assinalar a superioridade estética do teatro em relaçao ao cinema, com base no prestIgio de um suposto estatuto de ancestralidade artIstica. A vertigem desta arte nova levou o jovem Antonio Lopes Ribeiro a assinar a sua página no periodico Kino (1931) com o sugestivo pseudOnimo de <Retardador>>’ . 0 termo é particular 3 mente feliz, pois coloca o cinema, muito exactamente, no contexto de uma revoluçao perceptiva e sensorial. 0 mesmo W. Benjamin referiu-se explicitamente as consequências estéticas da velocidade mecânica trazida pelo cinema. Neste sentido, o cinema dava mais urn passo no caminho da simulaçao, inaugurado anteriormente com o nascimento da fotografia. Assim era, com uma restrição ‘teOrica, certamente por via de um conhecimento prévio das congeminaçOes de Arnheim: — — 13 A imprensa cinernatografica rapidamente ultrapassa a que Se dedicava ao acompanharnento da vida teatral portuguesa. SO nos anos 20 e 30 surge uma enorme quantidade de tftulos, tendo em coma a dimensao do pals: C’ine-Revista (Lisboa, 1917-24); Porto Cinematograjico (Porto, 1919-26); Invicta Film (Porto, 1923-32); Cjne Jamal (Porto, 1926); Cinema (Lisboa, 1921); Cine-Lisboa (Lis boa, 1923); Cinema (Lisboa, 1924); Cinelandia (Lisboa, 1928); Cinegrajia (Lis boa, 1929-30); CineJilo (suplemento d’O Seculo, 1928-38); Kino (Lisboa, 1930, corn 5 nürneros) eA Inwgem (Lisboa, 1930-36, corn 124 nümeros). 51 TEATRALIDADES Mas as dificuldades que a forografia tinha levantado relativamence a esthica rradicional, eram urna brincadeira de crianças comparadas corn as que foram provocadas pelo cinema. Dai a violéncia cega que caracteriza a teoria do cinema nos seus primérdios.. (op. cit.:89) A figura do realizador levava mais longe o trabaiho suplemen tar do encenador. A montagem viria mesmo a ser o zénite estilIstico da tecnologia reprodutora proposta pelo cinema. Descendenre tar dio da modetnidade, o cinema parecia desligar-se em definitivo da arqueologia perceptiva que caracterizava o teatro. Se o cinema era o Novo, o teatro mantinha-se na linhagem do Amigo. 0 actor de cinema já não representava sequer pan urn póblico, mac para urn equipamento, para urn mecanismo corn a fianção de mediar o hurnano. Dal a referencia de Benjarnin, assaz sugestiva, a crItica cinernatografica de Pirandello. Em FE/ma-se, o drarnaturgo italiano entendia o cinema corno urn “exiiio do actor”, obrigado agora a . Para ‘W. Benjamin, o resultado 14 representar perante urna máquina e isso e obra do era algo exrraordinario: Pe1a primeira vez o homem ye-se na situaçäo de actuar com a sua totali cinema dade de pessoa viva, mac cern a sua aura.)) (ia’em.92). 0 publico não existe corno tal no <aqui e agora” do reatro, apenas se insinua como mercado, a distância. A revoluçao do rneio fica bem patente na simi litude que Benjamin estabelece entre os pares teatro/cinema rnago/cirurgiäo. Se o rnago apenas poe a mao na cabeça do paciente, mantendo a distância que “exisre entre ci prOprio e o doente”, o cirurgião inrervém no seu interior: <c.o cirurgiäo prescinde, no mornento decisivo, de se defrontar, enquanro hornern, corn o seu paciente, intervindo nele de uma forma operanre. 0 mago e o cirur gião cornporrarn-se como o pintor e o operador de cârnaran (idem.99-100). — — Tal no impediu L. Pirandello de acompanhar pessoalmente a adaptaçao cinematografica de novelas e dramas de sua autoria, chegando mesmo a deslocar cc a Hollywood a propóslto da adaptaçao de Como Cu rn mso na decada de cnnta. 52 FERNANDO MATOS OL!VEIRA Cinema como habitus Sendo urna arte particularrnente comprometida corn o codigo sensIvel das massas, o cinema contou de facto corn a adesao pro gressiva do pdblico. 0 cinema era revolucionario tambem no sen tido em que se dernocratizava corno arte e se afirmava como instru mento de urn novIssirno processo de ‘recepção in diversao’. Para Rick Altman, urn critico que tem vindo a reler a historiografia cine matografica, dever-se-ia ter ern conta o facto de a invenção social do cinema”, o seu estabelecimento como prática cultural”, nos contar uma histOria paralela, por vezes, não exactarnente coincidente corn a histOria da sua <dnvenção tecnolOgica” (Altman, 1996:12). Na verdade, o processo de institucionalização do cinema como prá tica cultural foi rnais instavel que o curso estrito dos seus meihora rnentos técnicos. So algurnas decadas depois das sessOes experimen tais do inIcio de século, mais prOximas do happening, vet urn film passou realmente a integrar os rituais daquela sociabilidade alfaci nha que alastrava a partir das Avenidas Novas. A alteração dos veihos costumes encontra eco na narrativa da época, em tItulos como A Leviana de Antonio Ferro (1921), a farsa 0 Maluco c/as Avenia!as Novas, representada pelos actores do Nacional em 1927. Um tal caminho poder-nos-ia conduzir ate as girls do Nome de Guerra, pas sando pelo encOmio ao Music-hall assinado por Marinetti no nümero ünico do Portugal Futurista, em 1917. São testemunhos da agitacão dos costumes nas primeiras decadas do século XX, a que poderIamos juntar o universo ficcional d’As Criminosas do Chiaclo, um policial rudimentar de J. Ameal e de L. Cuimaraes (1925). A censura moral dirigia-se inclusive a umas “fitas de alta poténciao, exibidas pelo Salon Rouge do Bairro Alto. Mais do que o ténis, o foot-balh a moda, a cocaIna ou a distinçao dos salöes de cha, o cinema tinha a vantagem de se apresentar como um convite irresis tIvel ao convIvio entre os sexos, tao importante numa época de rude austeridade relacional. Com o final da Primeira Guerra, personalidades de algum modo ligadas ao teatro escrevem tambem sobre o confronto entre as duas artes, numa disputa que se iria prolongar, já num registo TEATRALIDADES 53 redundante, ate aos anos trinta. Urn desses autores foi Alberto de Lacerda. Em 1924, publica Teatro Futuro. Visao tie uma Nova Dra maturgia, onde o cinema aparece ainda como uma forma de expres são arredada da condição artIstica: <(A cinernatografia não satisfaz ao conjunto de requisitos que ihe dariam legitimamente a classificaçao de pura Arte. Está para o Teatro como a vulgar fotografla está para a pintura.” (L.acerda, 1924:115). Grande pane da argumentação a favor da superioriclade do reatro assentava na <ausência de sons aid culados ou inarticulados’> que caracterizava o cinema no inIclo dos anos vinte. A “arte do silêncio” era para este Lacerda, afinal, urna espécie de ((Natureza morta”. Foi exactamente esta argumentação que o sonora fez caducar. Quando publica Ler e Tresler, nesse mesmo ano de 1924, Agos tinho de Campos inclui no volume urn capItulo intitulado “Teatro e Cinema>>. Escrevendo a partir de Rorna, em 1917, recusa a ideia de que a vulgaridade do tinerna liquidaria a prazo a seriedade do teatro, optando por colocar o problerna na perspectiva de urna dis puta de <<freguesia”. Haveria, pois, que repensar a significado da pre tensa uexpansão teatricida do drama e da comedia em celuloide’> (Campos, 1924:95). No fundo, corn todas as diferenças ‘mediais’, ambas as artes pretenderiam a sucesso póblico: A coisa é outra, e a luta da-se, não entre uma pobre e sirnpática arte aristocrática e uma indiistria insolente ou grosseira, mas verdadeiramerite entre duas indüstrias por igual sequiosas de mero lucro (idem:89). Dal que a articulista entenda como regressivo o charo dos actores italianos sabre as ruInas do teatro. Segundo ele, a solucao não poderia buscar-se no isolarnento do teatro na torre de marfIrn ou na instituição de um sistema de subsIdios. Nesta fase, o rnercado das opiniOes sobre o teatro e o cinema alarga-se exponencialmente. Mesmo uma figura corno Almada Negreiros navega ainda pela ambiguidade estatutária do cinema, quando publica na revista Sucloeste <<0 cinema é uma coisa e o teaira autra”, em 1935. A sua concepção ‘privada’ de teatro apöe-se a exposição predominantemente <püblica’ do cinema. A opasição decorre, coma se ye, entre uma ideia de teatra e uma outra de cinema, reduzindo este ultimo a condiçao de <c;ornal do mundon. 54 FERNANDO MATOS OLIVEIRA Quando muito, Almada assume corn tal oposição o favorecimento esteticista do teatro que o Modernismo imaginou. 0 privilégio ‘pri vado’ do teatro era, alias, uma ideia comum ao tempo, mesmo em Portugal. Poder-se-ia encontrar, por exemplo, na prirneira ediçao de A Religiao €L Teatro, de Eduardo Scarlatti, cm 1928. A ‘religiao’ do titulo é efectjvamente teatralizada, a custa de Bergson, de Nietzsche e da falta de dnterioridade’ que apontava ao cinema. A expansão do cinema afectou o funcionamento dos agentes e das instituiçães teatrais. Pot volta de 1910, ainda no tempo do mudo, Lisboa oferecia já urn ndmero considerável de animatógra fos, do Rossio a Alcântara, e, em uinais dos anos vinte, estima-se em cerca de 300 o nómero de salas no pals. Nomes como Valentino, Douglas Fairbanks, Greta Garbo e Mary Pickford rivalizavam em popularidade corn as rnaiores vedetas nacionais da revista e do tea tro ‘regular’.Os meios de que dispunham os estódios da Paramount e da UFA superavam de longe o apertado empresariado teatral lusi— tano. E neste ambiente de franca concorréncia que, em 1928, algo de simbolico aconrece na capital portuguesa. Corn a participação de Leitao de Barros, o antigo Teatro S. Luis transforma-se em cinema e apresenta na sua abertura (Metropolis)), de Fritz Lang. ‘five-se nesse momento o apogeu do (lIme mudo, imediatarnente antes de o sonoro acrescentar o panico. Em 1929, Paulo Brito Aranha, crltico no “Noticias Teatral”, suplemento do Didrio de Noticias, escreve na sua crónica: Quadra estiraçante, 1925-29, o desaparecimento do rneio teatral (...) quatro anos so. E que diferença. Nem primeiras, sensacionais, nern festas de confraternizaçao, nern companhias estrangeiras! Uma desolaçao. Acabou ate o ‘rneio teatral’>>. As revis tas de critica e de divulgacao teatral aderem tarnbem a ordern cine matográfica. Em 1921, a revista Comoedia (sobrevivera apenas urn rnês) abre com a imagem de urn (lime, considerando que uurna sec çào de cinema era inevitavel em um jornal de ceatro>’. De facto, sobravam razOes ao articulista do Didrio tie NotIcias. Veja-se urn exemplo, tirado ao acaso deste mesmo jornal. A 3 de Abril de 1929, para um total de 6 espectáculos de <teatro/revistan (não havia urn drama sério em exibiçao), a cidade de Lisboa apre 55 TEATRALIDADES sentava pelo menos 18 salas de cinema em actividade. A listagem permitiu a reconstrução desse dia 3 de Abril de 1929, nos seguintes termos: 1) Espectáculos de teatro/revista: Trindade “P6 de Maio (super-revista) Apolo <Os Vareiros” (opereta) Politeama O Batoque (comédia burlesca) Avenida Três contra urn” (revista) Coliseu <Tosca (Companhia de ópera italiana) Variedades <<E siga a dança (revista) — — — — — — : 15 2) Salas de cinema com fumes em exibiçao Olimpia Asas <Volga-Volga S. Luis Central “Harry Pen contra Arsene Dupin Odeon Ben-Hur <Serenata Tivoli Condes O Romance da Duquesa” Chiado-Terrasse O Pirata Negro)) 5 e Dom. Cine Praia (Cruz Quebrada) Musical Cinema Parque Variedades e cinema Pathe Cinema (R. Francisco Sanches) Cine Patria <<Bento Casino Internacional (Monte Estoril) 2.a, 3 e Dom. Cine Esperanca Joaquim de Almeida (Praça do Estoril) Salao Lisboa (Mouraria) Salao Ideal (Rua do Loreto) Salao do Rossio (R. Arco da Bandeira) Cine Paris (R. Ferreira Borges) — — — — — — — — — — — Indicam-se apenas os tItulos de filmes adiantados pelo próprio jornal. restantes casos apenas se acrescentava o horario e/ou dias de projecçäo. Nos 56 FERNANDO MATOS OLIVEIRA Cine Belgica (R. da Beneficéncia) Jred, o rico mexicano>> Palais Cinema (Poço do Bispo) Eden Cinema (R. do Alvito, Alcintara) Salao Portugal (Travessa da Meméria, Ajuda) Cine Promotora (L. do Ca]vário) Alga Cinema — Corn este volume de transferência de püblicos, toda a conjun tura do espectaculo e do lazer e profundarnente reconfigurada em escassos anos. A “opereta” e a revista começarn a sentir dificuldades, especialmente esta ultirna, devido a consolidaçao do regime censó rio. 0 cinema vinha juntar-se a concorrência movida pelo sallo de chá, pelo jazz e pelo cabaret. 0 teatro teve ainda de compecir corn a vulgarizacao progressiva do music-haI4 género mais erótico e conve nientemente menos politico. Sonoro teatricida A 22 de Setembro de 1929, urn crItico escrevia no Didrio de NotIcia.r Parece que não vem longe a hora do grande perigo, do perigo máximo para o teatro (...) Quem viu o cinema falado achara mesmo que o surdo e insuportáveb’. A afirmaçao de Antonio Ferro, segundo a quai o cinema seria o “teatro do futuro>’, parecia confir mar-se ames do previsto. Apesar das dificuldades criadas pela pro pria narureza do sonoro, quanto as novas barreiras linguisticas e a formaçao de actores capazes de suportar o som, o cinema sonoro impöese. Os ecos da devastaçao anunciada pelo sonoro descem ao povo da revista, em protesros tao singelos como Abaixo o Cinema (1929). N’OMexilhdo Q931), a acrriz Corina fez circular um céle bre refrao pela capital: “Theodoro / Nao vas ao sonoron. Corn a chegada do sonoro, o cinema pede ao teatro todo urn apa raw produtivo que não detinha. Em Porrugai, diga-se, dificilmente o poderia vir a susrentar, face a pequenez da audiência. Na década de trinra, como não tinha criado ainda os seus prOprios actores, o cinema recruta-os no terreno do teatro. E quase premonitOrio o facto de um TEATRALIDADES 57 dos primeiros flumes de flccao portuguesa ter por tItulo 0 Rapto de isma Actriz (Lino Ferreira, 1907). 0 cinema pagou o resgate corn os vIcios imporrados do elenco, próximo de uma dicçao excessivarnente teatralizada que Lana (ma) escola. 0 intercambio ‘logistico’ entre os dois meios vinha já do tempo da Invicta Film, de George Pallu, quando se realizaram diversas adaptaçoes de conhecidos episódios da História e da literatura portuguesas. Actores de teatro como Enico Braga, Amelia Re>’ Colaço ou Angela Pinto ejpprestaram o seu estilo de representação a pelIculas como 0 Primo BasIlio ou 0 Amor tie Per diçao. Are o eterno E. Brazao participará n’As Pupi/sis do Senhor Reitor (1922), de Maurice Mariaud. A adaptacao deste capital narrativo vinha supnir o défice de textualidade que o cinema vive no seu inIcio. Estas produçóes são a meihor fonte de informaçao sobre o tipo de dic ção, de rnirnica e de gestualidade vigentes no teatro da época. Urn dos episodios rnais sintornáticos das transferéncias ernie o teatro e o cinema vinha jade 1917, data de uma adaptacao Iivre de urn curioso texto italiano, realizada por Acácio Antunes. A peça inti tulava-se 0 Cinematógrafo e havia sido representada “corn grande sucesson no Teatro do Ginasio. A comedia em trés acros contava urn episodio na vida de Martinho, urn marido que se viu num flume exi bido nas salas da sua cidade. A pelIcula revelava as primicias de uma aventura extra-matrimonial passada em Ostende. 0 encontro corn urna apaixonada>’ ocasional não tinha passado da <<prirneira entre visra’, mas como a sua esposa decide inesperadarnente experirnentar a <<photographia animada, o infeliz acaba por ser apanhado corn a dama de Ostende. Depois de se yen “exposro no cinernatographo>>, Martinho so se reabilita quando o arnigo Boris esciarece que o encontro não passou de urna sessão dissirnulada para uma ernpresa das fltas’>. Nao ha como não yen aqui a prernonicão de W. Benja min, quando se referia a questäo da autenticidade: <<Deste modo, em deterrninadas circunstâncias, quaiquer urn pode ser pane de urna obra de arre (...) Qualquer homem, actualmente, pode ten a preten são de ser filrnado” (op. cit.:96). Maninho e urna vitirna deste irnpe rativo paisagIstico e lamenra-o explicitarnente quando se refere aos maleficios pnivados do “rnaldito cinernarographon, corn a prornessa de nio se aventurar rnais senão durante a noite (Antunes, 19 17:24). 58 FERNANDO MATOS OLIVEIRA Mas este Cinematografo teatralizado suscita outras questôes. o drama coloca em evidencia os problemas de linguagem criados corn a chegada do cinema, ja muito evidentes em noticias e crIticas nos periodicos da época. A instabilidade terminológica foi uma marca das primeiras décadas do cinema. So por volta de 1930, quando a articulaçao técnica entre e sorn e imagem se define, a un guagem estabiliza e o cinema realmente se liberta da refer8ncia tea tral e fotografica (cf. Altman, 1996:16). Em 1917, as personagens da peca não sabem ainda como nomear a acção da máquina res ponsavel pelas <<fins’>. Por essa altura, esta máquina ainda näo flu maya propriamente, como se percebe das palavras de Martinho: <(Eu nunca mais terei entrevistas, mas se as river ha-de ser a meia-noite e completamente as escuras! Ao menos assim, poderei ter a certeza de que nâo serei photografado!” (Antunes, 1917:24). Foi tambem por ter vindo clarificar o territOrio conceptual das artes que 6 sonoro desempenhou um papel decisivo. 0 som vinha acabar de vez corn os argumentos dos que, acantonados no lado tea tral, se definiam pela posse exciusiva da palavra, desde o tempo em que o mudo era visto (e identificado) como uma arte do silêncio. 0 confronto näo tardaria a acalmar, sobrevivendo talvez como sentimento da cena face ao sucesso publico das pelIculas. Com efeito, Fidelino de Figueiredo escreveria pouco tempo depois, num texto intitulado Dc regresso tie Hollywooac que a histOria do juízo pablico sobre o cinema pode ser quase tao atractiva como a histOria dos seus processos técnicos>>, acrescentando o seguinte: asuponho que tenhamos chegado já a uma fase de serenidade a respeito do cinema>) (Figueiredo, 1966:121). Publicado pela primeira vez em 1933, a ufase de serenidade>’ referida por Fidelino traduzia já a saw ração da controvérsia em torno do cinema, passado o tempo das jeremiadas anticinematograficas>’. Era algo que já se vinha perce bendo noutros autores, como no volume acima citado de E. Scar latti, onde se inclula o capItulo Variaçoes ligeiras sobre urn tema gasto: artes estáticas e cinemáticas...>’. Por entre as ruInas do debate entre cinéfilos e teatrofilos, ambos estariam destinados a expansão: <sobre o desejo de absorçao e o desaparecimento de ambos, vinga uma lei fatal de crescimento” (Scarlatti, 1945:25). TEATRALIDADES 59 Contra a expectativa dos espiritos mais reticentes, Scarlatu diz nos que a convivéncia entre “as duas organizaçOes artIsticas>> havia wvolucionado pan a fixaçao dos seus caracteres própriosn (idem:25). Fidelino de Figueiredo antevia mesmo uma simbiose utópica entre as duas artes. Numa série de cinco inferéncias, espe cula sobre o futuro do teatro e do cinema sonoro. Depois de o cinema sonoro <<reteatralizar o cinema>>, o regresso das imagens em movirnento a casa do teatro poderia promover a reconciliação defi nitiva, mutuamente ernancipadora: O teatro, reconciliando—se corn o cinema, adquire ama grande potencialidade de rneios e retoma liberdades veihas>’ (op. cii.: 131). As inferencias normalizadoras de Fidetino contêm um tanto de retórica, talvez resolvendo o melindre do intelectual face ao império de Holiywoodn. Duas outras razOes, endernicamente desprezadas pelo meio tea isa!, contribuirarn para o sucesso do cinema. Em 1929, Brito Ara nha chamava a atenção para as condiçoes duma casa de espectácu los moderna>,. Espacos dedicados ao cinema, como o Tivoli, vinham desde meados dos anos vinte impondo um novo padrao de conforto e distinçao, apurando a animação do póblico antes, durante e depois das exibiçoes. A mesma casa abre corn a designacão sintomácica de ‘cinerna music-hall>’. Os teatros que ao tempo existiam não podiam responder a tais comodidades. Na sua rnaioria, as salas eram já antigas e modestamente equipadas. A lista reivindicativa que o critico apresenta reulecte as exigências da nova sociabilidade. 0 que pede equivale a uma nova concepcão de espaço teatral, contemplando atributos como <pessoas decorativas>’, “aquecimento no inverno; conforto nos lugares; ambiente agradável a sensibilidade e a vista; movimento mundano convenientemente regulado, inclusive corn distribuiçao gratuita de bilhetes; intervalos animados e bern preen chidos, fora e dentro da sala>> (DNde 5-2-1929). A devastaçao cau sada pela inferioridade material do teatro reaparecerá no espaço publico ate meados do século, altura em que, numa série de artigos , Antonio Pedro o retoma 6 intitulada 0 Quo do Teatro em Portugafl em termos aparentemente definitivos: 16 In Didrio de Lisboa, 17/09/1949. 60 FERNANDO MATOS OLIVEIRA (<Numa noricia publicada recentemente, dizia-se que, segundo as comas publicas do MunicIpio de Lisboa, no ano de 1948 houvera 21.233 espectaculos de cinema e 1.043 de teatro, o nümero mais baixo desde ha cinco anos. Se nos lembrarrnos de que, salvo no Nacional, foram quase todos espectaculos pot sessóes, reduziremos ainda este nümero para cerca de rnetade: 700 a 800 especcáculos tearrais pot arto. Em media dois por dia! Nao é verdade senhores empresários do Parque Mayer? Nos meses em que pára o Nacional abrem os cinemas obrigados a ser teatros. 0 resto são meteoros. A estatfstica sublinha a evidéncia da própria observaçao e torna a superficial. A realidade ainda e pior. Esrarnos em plena bancarrota.>> (Pedro, 1949) Pelo final dos anos vinte, esta <<bancarrota>’ traduzia-se, nos ter mos do critico do mesmo Didrio tie Noilcias, nurna crise instirucio nal de bilheteira”: <Os teatros lutarn corn falta de recursos regula res. 0 pOblico não encoraja nunca iniciativas de real valor artIstico, abandonando-as sistematicamente e sO acorrendo regularrnenre aos espectaculos digestivos e ao cinema” (21 -4- 1929). 17 Juntando a coricorréncia rnovida pelo cinema as condiçoes adversas da vida tea isa! portuguesa sob o Estado Novo, chegamos directarnente ao torn apocaliptico das palavras de Antonio Pedro, no ano de 1949, justa rnente quando Hollywood consagra a sua simbOlica por toda a Europa: “Tudo isro leva a crer que se preocupa uma nação civilizada corn a ameaça de se ver reduzida a colonia cinemarográfica de Hollywood corn urn pequeno entre-paréntesis de grosseria original situado no Parque Mayer, e todas as contribuiçoes de boa vonrade sejam neste momento de pedir. (Pedro, 1949) Os preços do reatro jamais viriam a poder concorrer corn os do cinema. Na vizinha Espanha, Angel Carvajal descreveu a peregrinação triunfante do cinema pela Iberia como uma concorréncia entre uma novidade barata e urn arcalsmo dispendioso (Vilches, 1997:33). 17 4 0 DRAMA DA OPERA Musicologia Entre os vários tItulos da já vasta obra de Mario Vieira de Car vaiho (MVC), J2ensar éMorrer ou o Teatro de São Cia-los na Mudança de Sistemas Sociocornunicativos desde Fins do sec. XVIII aos nossos Dias (Carvalho, 1993) e talvez aquela que meihor nos reconduz aos has tidores da sua crItica, fundada aqui definitivamente em duas refe réncias maiores: a) a crItica frankfurtiana da razão moderna e da apropriacão fetichista dos bens simbolicos, corn destaque para a importância central do ensaio Dialdctica do Iluminismo, de Theodor Adorno e Max Horkheimer; b) a sociologia musical de Christian Kaden e dos Beitrage zur Musikwissenschafi. Integrando o conceito de “sisternas sociocomunicativos>, 0 musicologo português mostra se em condiçOes de acoiher categorias tao diversas como a funçao institucional do espectaculo, a análise do repertório, o aparato un guIstico, o desempenho cénico, a configuracao dos póblicos, os mecanisrnos da recepção espectacular, entre outros aspectos. A per manéncia deste quadro conceptual pode efectivamente rastrear-se ate a colectanea rnais recente, intitulada Razao e Sentimento na Comunicaçao Musical. Estudos sobre a Diale’ctica do Iluminismo (cf. Carvalho, 1999). Para o autor de A Másica ca Luta Ideologica (1976), urn livro que a data exibia no tftulo o pathos pos-revolucionario, este trabalho sobre o Teatro de São Carlos (TSC) representou, ainda assirn, a con tinuidade de urna tradiçao hermeneutica que herdou o vInculo FERNANDO MATOS OLTVEIRA 62 materialism dos tempos da critica jornalIstica, praticada no Didria de Lisboa e na Seara Nova (cf. Carvalho, 1978). Era urn vinculo naturalmente estranho ao programa musical do regime fascista, para quern um <rni bemol>> de Lopes Graça podia set mais “perigoso do que mu panfletos subversivos (idem;200). Nessa altura, a voraci dade ideologica de tal vInculo colocava ainda sérios entraves a dia léctica que o Iluminismo cerrado de MVC pedia: “Hoje como ontem, continuo a entender que tambem na másica não se pode ser neutro: não se pode estar ao mesmo tempo de ambos os lados da barricada.>> (Carvalho, 1976:21). Em 1984, nurn tempo de barrica das esvanecidas, a marca teórica de MVC persiste sob a forma de urn aforisrno wagneriano: Assirn a arte do poeta se converteu em poll tica, ninguérn pode fazer poesia sem fazer poiltica”. Fica-nos o aviso, mas fica tambem o pretexto para se pensar, a par do comentario que o livro solicita, a) a teleologia que o fundarnenta, b) o ascendente wagneriano que o atravessa c) e a própria viabilidade emancipatória de urn objecto corno a opera. Publicado em 1993, no aim em que se comemorou o bicentena rio do Teatro de São Carlos (TSC), o lastro crItico do volume dedi cado ao nosso ñnico e muito intermitente Teatro de Opera urn baiho académico originalmente concluldo em 1984, na Universidade mostrou na devida altura estar para além de Humboldt de Berlim qualquer pretexto celebratOrio. Corn efeito, o que o autor nos apre senta consiste num balanço rigoroso da actividade do TSC, apoiado numa recoiha documental exaustiva e na reconstrução possIvel dos repertOrios ao longo desses duzentos anos, aqui divididos em varios ciclos ternporais, ordenados de acordo corn a alternancia dos referidos <(sistemas sociocornunicativos>>. Em apendice temos quase duas cente nas de páginas de quadros e estatIsticas que, além de fundamentarem a tese defendida, são urn invulgar contributo pan a preservação da memória do TSC. Neste particular, o objecto escolhido não podia mais adequado: pelas suas caracterIsticas e face ao rnalogro precoce da Opera do Tejo. o TSC possui urna representatividade dificil de igua lar por qualquer outra casa de especticulos na exiguidade do nosso meio operático. Trata-se, pois, de uma obra destinada a rnarcar o futuro dos estudos de rnusicologia em Portugal. — — 63 TEATRALIDADES 0 contexto germânico que presidiu a escrita do livro terá, favo recido a persisténcia do compromisso reactivado pelos debates de 1976. No campo da crItica de arte, dc reflecte a proximidade de MVC relativamente a escola dos fundadores da Zeitschrrji. Recor dem-se, a este proposito, os numerosos artigos ali pubiicados sabre as mecanismos de reificaçao cultural e as investigacOes na area da sociologia musical o de Adorno, para a primeiro nómero, intitu lava-se sintornaticamente ((A situação social da rndsican. Mas a angüstia do silêncio que ameaçou as Luzes introversivas do grande fliósofo e musicologo de Frankfurt comunicam em MVC com outros herdeiros da Teoria CrItica. Esta comunicação, apesar de o disponibilizar para as tarefas de coleccionista que a investigacão tea tral exige no nosso pals, jamais chega a bloquear totalmente o impeto adorniano que vem pondo seus trabalhos. Num piano estri tamente nacional, MVC também reñne ‘factos’, como vem fazendo José-Augusto Franca em volumes fundamentais coma 0 Roman tismo em Portugal ou Os Anos Vinte em Portuga4 mas os ‘factos’ de MVC são mais do ambito da ‘matéria’ que exphcitamente alimenta o pensamento dialectico. Par esta razão, a introduçaa ao livro inciui urn aviso metodoiogico: <<em vão se procurará neste iivro algo de parecido com a historia do TSC> (op. cit.: 14). São sobretudo Os temas de comunicação e interacção’, bem coma o (<postuiado da unidade de concepçãa, praxis, inscituição e recepção que constituem o fundamento da historiografia do reatro (ia’em:l 5). A questão a resolver consiste, assim, em saber “quando, como e porqué a acção que decorre sobre a palco musical é, no processo de producao e recepção, esvaziada de sentido?>’ (idem:13). Insistindo na razão pro priamente critica deste sentidon, MVC experimenra aqui a mesma angásria de Adorno, quando este afirmava que nenhuma estátua grega, na sua nudez, seria uma ‘pin-up’. MVC tambem pane para a leitura da historia do TSC cam a flrrne convicção de que a opera não se pode reduzir aa estaturo do <<mais sofisticado dos divertimenros”, seja de burguesias ou de novas aristocracias (cf. Carvaiho, 1976: 148). — FERNANDO MATOS OLIVEIRA 64 Opera e ernancipaçâo E no âmbito da narrativa franthrtiana do desvirtuamento fun cional da arte que o TSC emerge no livro de MYC como campo pri vilegiado de analise, traduzido nurn acompanhamento sisternático das variaçOes nas estruturas de comunicação artIstica, ao longo de dois seculos. E claro que a tarefa de procurar urn pensamento critico num género corno a opera, sobretudo nurn pals tao latino como Portugal, é rnissão espinhosa. Assirn é, sobretudo quando o referente musical e o referente critico nos chegarn ambos da .Alernanha, urna nação musical ‘super-ilurninada’. Apesar disso, MYC investiga no TSC o curso sinuoso que fez a Opera oscilar entre o sentido, o seu esvaziamento, e as outras ocasiães em que deste sentido apenas res tou o bel canto transmudado em fetiche burguês. E nesta perspectiva que o autor se revela urn rnusicOlogo ‘negativo’, pois a historicidade das lutas de setenta converte-se, no contexto da sua critica posterior, na valorizaçao decisiva de urn “vinculo drarnático>’ na Opera, como o prOprio escreverá em Raz.Jo e Sentimento (Carvalho, 1999:53). Nao ha como ignorar aqui a figura de Wagner e o ascendente teO rico exercido pelo volume Opera e Drama. A persisténcia desse “yin cub dramatico’> é o porno ideolOgico da cricica de MVC, e e nele que o autor concentra todo o capital ernancipatório deste género musical. E evidente que urn prograrna de ernancipaçao através do cdrarna da opera é urn projecto que encontra serbs obstacubos, a vários nIveis. Ames de prosseguir, vejamos brevemente trés deles. Em primeiro lugar, corno se pode comprovar pela interpreracäo orninosa que MVC tende a fazer de todo o divertimento, a Opera é urn género que viu o seu desenvolvirnento e ate a sua Jegitimaçio politica dependerem do capital hidico que lhe foi atribuldo. Como o prOprio reconhece, o arranque do processo da racionalizaçao ilu minista trouxe consigo urn paradoxal <modelo de recepção da arte do quai era banida a racionalidadaden (Carvalho, 1999:62). Ora, esta e urna daquelas aporias de Frankfurt que resisre ma! ao argu memo lódico: fob este mesmo que concedeu a Opera os avultados rneios materiais que ela historicamente pediu. Mas o prOprio diver- 65 TEATRALIDADES timento näo teria que ser necessariarnente urn mal em si mesrno. sendo certo Apesar do anáterna alienante que Adorno the iançou que se vivia na aitura o rescaido de uma campanha de esteticização do politico —J. Huizinga defendia longamente, pela mesma época, que divertimento era coisa mais antiga do que mero epifenOmeno do ((aburguesamenton ocidental. Em segundo lugar, a emancipação pelo drama da Opera tern de se haver corn a histOria de compromissos que sempre caracterizou a textuaiidade do libreto. Suspendendo agora as origens, logo autores da Camerata a permanência do recitativo já era entrecortada pela inten’enção coral. Entre o bel canto e o dramma per musica, o propOsito dramatico do libretista esbarrou com frequencia (natural) na propensão italianizante para o virtuosisrno vocal, como veio a suceder em Portugal. Contra esca inflaçao Sonora SC moveram fibre tistas importantes, como A. Zeno, Metastasio ou próprio Gluck (pan quern a másica se anunciava serva” do drama), alérn da revo luçao wagneriana, é clara Em terceiro lugar, o destino musical do libreto obriga-o natu ralmente a certos preceitos forrnais: a) ser conciso, como um drarna cornprimido, e deixar espaco para a acção musical; b) apresentar uma estruturação simples e clara que permita ao espectador seguir Os acontecirnentos no contexto do defice verbal que caracteriza a expressividade da Opera. Tera sido este o quadro dominante desde que Sttiggio levou o texto a Monteverdi para a composição de Orfeu. Como defendeu J. Kerrnan, no classico A Opera Drama, no inIcio o libreto é a inspiração, no final a limitaçao. 0 librero (e o prestigio algo degradado do libretista) restringiu-se corn frequencia a urn drama conhecido, a adopçao de rnateriais mirolO gicos ou lendarios. Tal opção facilitava ao espectador o entendi memo cia acço e das personagens, interessando-se por elas. 0 des prestlgio que ocasionalmente contaminou o libretista relaciona-se com esta pilhagem narrativa, sobretudo na época em que coincidiu com a banalizaçao operática italianizante. No livro de MVC, a analise da Opera surge com mais detaihe a partir no sec. XVIII, especialrnente desde a fundaçao do TSC, em 1793. Este é o momento que coincide com a generalizacao das con— 66 FERNANDO MATOS OLIVEIRA diçoes socioeconómicas que viriam a definir o estatuto da arte sob a égide da burguesia e do mercado. Entre a investigacão positiva e a hermenêutica historica, MVC parre então da realidade do TSC pan o estudo da <mudança de sistemas sociocomunicativos desde fins do sec. XVIII aos nosso dias>>, como se anuncia no subtItulo. 0 pri meiro capItulo do volume reconstitui a pre-historia do TSC, num perlodo que vai do sec. XVI ate a sua fundaçao, momento que o autor aproveita para investigar as raIzes de um teatro musical entre nós. Insiste no carácter retrogrado do drama neolatino-jesultico, onde nunca se poderia ver um antecedente da opera ou do dramma per musica em Portugal. Pelo contrário, o que ressalta deste patri mOnio é a sujeiçào do teatro a imperativos de ordem moral ou ideo lOgica, apoiado em técnicas de representaçâo que se <<limitaram a utilizar formas preexistentes da rnásica religiosa, popular e militar e a aurnentar a sua quantidade nas tragicomédias.n (op. cit.:23). Ha pelo menos dims histOrias que se destacarn nesta pre-histO na: a de Gil Vicente e a de Antonio José da Silva. Por coincidéncia, dois nomes que se enquadram num estudo apto para a inversão cr1tica. Pelas razöes aduzidas, a introduçao da Opera italiana no reinado de D. Joao V e julgada sob o estigma do divertimento: ela ter-nos ia afastado definitivamente da herança vicentina. No peniodo ante rior a 1793, e ao teatro de bonifnates que MVC vai buscar a ünica réstia ‘iluminista’ nos palcos portugueses. A referéncia aos fenome nos de epicizacão no teatro d’ 0 Jut/eu e particularmente produtiva, além de se distanciar das teses ilusionistas, tanto de Diderot como de Lessing. Destaque ainda para o paralelo que estabelece entre a obra de A. José da Silva e o Singspiel, teorizado por Wieland apenas em 1775, quando afirma que ele <impöe uma espécie de Singspiel português contra a opera italiana>> (idem:35). SO corn D. José I a Opera viria a adquirir uma funçao similar a que ja detinha nas outras cortes europeias, nas quais o Iluminismo ‘dominavá’. Em Portugal, este papel esboçou-se no tempo do Mar quês de Pombal e com o processo que levaria a construção da Opera do Tejo. Foi isto poucos meses antes do dia fatal de 1755, para mais quando escreve que o terramoto aniquila o ediflcio e a estrutura sociocomunicativa que nele se exprimia, que nunca mais será recu TEATRALIDADES 67 2). MVC demonstra 4 perada em todos os seus elementos>> (ielem: como, apesar de tudo, as contradiçoes do Iluminismo português fizeram corn que a uma certa prática politica esciarecida, posta na nova urbanizaçao lisboeta e nas medidas sociais tomadas pelo Mar quês, por exemplo, nao tenha correspondido uma aposta deliberada nas funçoes didacticas do teatro e da opera na fase pOs-terramoto. Numa perspectiva critico-comparativa, os efeitos do terramoto em Portugal e noutros paises europeus, corno na Franca e na Me 4 manha, foram muito diferentes. MVC refere a recepcäo. nacional, acentuando as profundas mutaçOes sociais, econOmicas e mentais deste trágico acontecimento, fazendo dele urn verdadeiro motor do Iluminismo português. No entanto, na Europa, onde o espIrito das Luzes tinha mais raIzes, o terramoto contraditou a razão ilumi . A fundaçio do TSC e vista pelo autor como teatro da cone 8 nada’ para a burguesia (idein:50). Tal ambiguidade estatutária passou pela prOpria concepcão arquitectOnica do edifIcio e ilustra igualmente o carácter mitigado do desenvolvimento da nossa burguesia. Tudo se combina para que este novo espaco se limite então a ((exaltaçao do poder>>, a urn nivel mais refinado de sociabilidade>’, de <peraltice>>, enquanto, seguindo as palavras de MVC, ((0 teatro portugu& era abandonado a pequena burguesia e as classes mais baixas da socie dade>> (i&m.60). Toda a segunda pane do Iivro incide sobre o sec. )UX, incluindo a reapreciação da actividade programática e criadora de 18 A este propósito. Harald Weinrich, film Iivro intitulado Literaturfiir Leser ( 986), acompanha o irnpacto do terramoto no autor do Poèrne sin 1€ dEsas tre de Lisbonne e chega a demonstrar as provaçOes por que passaram tanto as Luzes como a teodiceia leibniziana. A comédia intitulada Teatro Novo, de Correia Car cáo, constitui urn exemplo paradigmático das transformaçoes a que MVC se refere. Nela decorre uma discussao acerca do repertdrio para urn futuro teatro a construir corn dinheiro de urn cbrasileiro,, urn dos efeitos da descoberta e extrac cáo do ouro no Brasil. Teatro Novo coloca-nos em palco as virias sensibilidades artisticas do tempo e encena a Ian entre o projecto arcade e as ddeias barbaras” que. nos termos exactos de MVC, começariam exactamente neste momento o seu triunfo em versáo <espectáculo para os olhos>>, pura exibicao do eu” ou corrida ao canto da prirna-dona Zamperini no TSC, o que vai dar ao mesmo. 68 FERNANDO MATOS OLIVEIRA Airneida Garrett. Contra as expectativas de MVC, a revoluçao libe ral de 1820 acaba por consolidar a opera corn a flsnçao de prestIgio e de divertimento>>. 0 TSC rnantinha-se sobretudo corno <arrnazérn da ilusao, onde a classe dominante se abastecia quotidianarnenten e, corno passeio póblico do rornantismo”, cornpetia directarnente corn o Campo Pequeno, o Marrare e are corn o Parlarnento (idem.94). Esta epopeia conta-se tambern corn Garrett e corn Eça. Sern menos prezar a dirnensao da reforma patrocinada por Almeida Garrett, MVC aponta algumas das suas fraquezas e contradiçoes: a) ao esco Iher o TSC para rnodelo e alvo de rnuita.s das suas reflexoes, é o pro prio Teatro Nacional que virá a sucurnbir e a ser absorvido na estru tura da opera italiana>>; b) a tao proclarnada vertente popular termina, na prática, por ser urn <cpatrirnónio popular para a elites; c) linalrnente, Garrert não viu o teatro rnusical corno parte integrante de urn teatro nacional”, ja que ele rnesmo se terá sentido atraido pelo rnodelo instituldo, alern de secretarnente propenso ao exibiclo nisrno geral e a onda italianizante que ihe teria afectado inclusive o final do Fr. Lids de Sousa (idem:101). No final, conclui MVC que o Teatro Nacional nunca recebeu urn terço do subsIdio do TSC, ape sar de Garrett, ou por causa dele. Contudo, rnerece urn reparo esta sustentaçâo das convicçOes estéticas de Garrett no arnbito das con tingéncias autorais que caracterizararn urn projecto corno o Touca dor. No Toucador Shakespeare ainda era pouco rnais do que urn . 9 “barbaro’ 0 modo corno MVC descreve a relaçao paico-sala nestas pági nas, a cornparaçâo do virtuoso ao toureiro, reactiva a celebre ffistó na Natural do Teaüo ao estilo das parabolas brechtianas, Adorno afIrrnava ser o aplauso a óltima forma de cornunicação objectiva entre a rnósica e o ouvinte, antes de avançar para a sirnbologia das Ha outros episodios dignos de nota. como o retrato do ambienre cultu ml mesquinho das personagens queirostanas ‘je 0 Primo Basilio, A Cid,adee as Ser Tar, A RelIquia, A Capital. Os Maias. Ficamos a conhece-las aqui no seu habitat musical. Em Eça, a aproximação entre a mdsica e as letras ocorre por via OfTen bach, apesar de a hipótese de Eça poder representar urn entreacto de <<milsica absoluras, no estrito piano da crftica musical, estar condicionada pelo contexto eminentemente iiterario que suporta a sua enunciaçäo. TEATRALIDADES 69 galerias, das poltronas, dos carnarotes e da cüpula nos modernos tea tros. Que me lembre, além de Eça, foi Fialho de Almeida quem meihor escreveu sobre a sirnbolica espaciai no S. Carlos. Fe-jo num texto escrito cern anos antes do bicentenário que o livro de MVC assinala. Vale a pena trazer aqui o passo no qual Fialho antecipa a dinârnica ascensional de Adorno: A ünica ernoçáo palpitante está no galinheiro, lugar pobre, esconso e recôndito, onde algum melomano extático, de olhos fechados, deixa livrar a fantasia ao sabor da inspiração que a másica espirala. DaI para baixo, quanto mais se descer, menos se encontra; uma ou outra câinara escura mental repintando aqui e além pedaços melódicos, em coloridos pessoais, poetizados; alguma prima-dona de terceiro andar, inédita e furiosa, fingindo as futuras glorias da sua estreia sobre os fiascos dos can tores de profissao, e o resto admiraçoes e êxtases sea> alma..>’ (Aimeida, 1992:198) Mantendo sempre a opera em primeiro piano, MVC entende na nossa subrnissao ao timbre italiano, visivel no desprezo pela rnósica de Wagner, urna das causas para que opera não tivesse sido mais do que <müsica de Opera”, em vez de <drarna como fim da musica”. Por cá, a Opera era urna arte para os olhos>> que, no seu meihor, funcionava corno evasão, decor contarninador do espaco pri vado, linguagem do arnor, reaiização pessoal do amador no artista”, enfirn, pura reificaçao. 0 bel-canto ter-se-ia tornado necessidade cultural”, sern espaço para a producao nacional. Entre “cantar”, por urn lado, e ganirn em português, por outro, a nação optava alegre mente pela primeira modalidade. MVC insiste no ((carninho faihado para o ‘drama-de-paiavra-e som’: das vésperas da Repóblica ao advento do fascismo>’ (idem:131). Recorrendo a recepcão de Wagner, exemplifica os desenvolvimentos ocorridos neste lapso de tempo. De necessidade de civilizaçao>’, corn a concorréncia do Coliseu dos Recreios (1890), visto corno reproducao <tosca” do TSC para as rnassas, acaba o TSC corno sinai do triunfo do ((snobismo>>, face a ralé italiana do Coliseu. Mas, corno afirmava urn crItico da época, no TSC continuava a ser 70 FERNANDO MATOS OLIVEIRA valida a formula Pensar é Morrern e Wagner chegava a set repre sentado ao modo italiano. Scm atingir as dimensöes que tomou no seu pals de origern, a controversa repercussão de Wagner em Portu gal e a politizaçao de que foi alvo nos anos vinte mostra-nos as dill culdades lusitanas no processo de aprendizagem da <másica abso luta’>, que MVC procurou no espaço nacional. A metodologia seguida por MVC e particularmenre produtiva quando passa ao perlodo do fascismo português. E uma ocasião para abordar a “esteticizaçâo da polItica>> operada pelo Estado Novo, fixada <nurn modelo de teatro popular”, e ilustrar a concepcão sala zarista do TSC como ((sala de visitas de Portugal>> (idem:213-254). Aproveitando algumas das recentes conclusoes da investigacão his toriográflca, descreve finalmente as motivaçoes da politica musical (e cultural) da época, numa comparaçâo pertinente corn a máquina propagandistica do Terceiro Reich. 0 trabalho do musicOlogo não termina corn a Revoluçao, pois o livro avança ainda corn urn curto cornentário a actividade pos 25 de Abril. Pot todas as razöes, os anos que o TSC leva de vida não Ihe suscitam urna narrativa herOica. Pelo contrário, porque a uma bicentenaria <aparência de cultura’> suce deu uma (<aparencia de democracia>’, MVC termina corn a proposta de urn modelo para urn verdadeiro teatro musical nacional. 0 genial em Wagner Chegados a este ponto, o leitor terá percebido que a figura de Wagner emerge como a grande referencia musical do livro de MVC. Pot ser decisiva, a questão merece urn cornentário adicional. Para tanto, começo pot transcrever a que é talvez a afirmaçao rnais enfa rica desse ascendente wagneriano: <O palco ilusionista de Wagner está efectivamente no póio oposto a esse conceito de ilusao, assim corno a sua alternativa teatral se situa gb balmente nos antipodas da praxis italiana: em Wagner não se tratava da müsica, mas sim do drama; näo de uma estrutura de exibiçdo do nt, mas sim de uma estrutura de rep resentacao ou separaçJo de competências, não de TEATRALIDADES 71 estreitas relaçoes, mas sim de urna separacão radical entre o palco e a sala, náo do palco como oferta de mercadoria, mas sirn corno instrurnento didactico’ e de esciarecimento, näo de urna relaçao autoritária da sala para corn o palco, mas sirn do palco para corn a sala, não de urna recepcão frag mentária, mas sirn de urna recepçáo do todo como Gesamtkunstwerb (Carvalho, 1993:89-90) 0 que aqui se lé é simultaneamente urna apresentação e uma interpretaçäo (brechtiana) de Wagner. E certo que Wagner, corno MVC nos prova docurnentalmente, terá exigido tambern ao meio musical portugués major detençao nos aspectos do conteüdo. A cen tralidade da fabula dramatica constituIa urn entrave a nossa tradiçao da <(opera degradada a mdsica de operas (idem:85). Apesar disso, nao é exactarnente urn modelo de teatro épico o que resulta da leitura dos vários volumes de Dichtungen und SchrzjIen. MVC ja escreveu argutamente sobre a teoria wagneriana, corno sucedeu no ensaio <0 rasto de Rousseau na teoria e dramaturgia wagnerianas” (cf. Carva Iho, 1999). Pela minha parte, julgo que Wagner pode coincidir corn a Teoria Critica apenas no momento inaugural da analise. E neste ambito que o maestro germânico efectua uma critica cerrada aos rituais da sociabilidade burguesa e se manifesta contra o mercado e a luxória do puro divertimento. Esta crItica, note-se, e contudo feita a partir de uma perspectiva genial. Quando escreve sobre <<o artista e o póblicon, Wagner concede que o <dmpulso do génio>> {Drang des Genies] coloca o artista perante urn dever de publicitaçao, a bern da humanidade (cf. Wagner, 1 983,V: 186-193). Nos escritos da fase revolucionaria, sob a influencia do ideario socialista (cf. <<Sobre o Principio Cornunista>’, op. cit.:242-254), mantém a negacäo bur guesa e especula sobre urn futuro estado dos artistas. Note-se que a ususpensão do egoIsmo’> [Aufhebung des Egoisrnusl que al defende não se traduz linearmente num estado politico de tipo colectivista, mas sirn no forjar de uma idealidade cornunitária que pudesse con duzir a urn estado artIstico superior. Ainda de acordo corn Wagner, curnprido o curso da desumanizaçao burguesa, a separacáo das artes teria facilitado a mercantilizaçao do estético, atribuindo-ihe urn mero valor de uso. Mas o ((reencontro’) do estético corn o povo per- 72 FERNANDO MATOS OLIVETRA manece sempre num trajecto genial, pois, sempre segundo Wagner, a modernidade destruiu o espfrito da colectividade e individualizou definitivarnente o génio. 0 artista que Wagner desenha nestas pági nas não é exactamente o intelectual progressista, mas urn indivIduo distinguido pela sorte do génio, que deveria procurar no passado o ethos que a modernidade desurnanizadora tornou definitivamente inacessIvel ao povo simples. Este jarnais o poderia reencontrar por si so. E esta figura do másico (e da másica) que Wagner perseguirá longo da sua vida. E realmente notavel corno os escritos de Wagner antecipam em quase rneio século os termos da analise que a tradiçao marxista virá a consagrar, na prirneira metade do século XX. No entanto, o que o rnobiliza e ainda a encontro inexoravel que o alto Romantismo ale mao desejou marcar corn urn mItico Volksgeist. E em Wagner Voiks geist permuta corn Volkslied. Em nenhurn lugar esta reversibilidade e tao nitida como nas páginas que dedica ao conceito de melodia, a expressão mais completa da substancia profunda da rndsica>’ (op. cit., VII:107). Ames dos efeitos perversos da modernidade, ja o dua lismo cristão havia aniquilado a comunhão do ser hurnano corn o seu ser integral, sufocando a criatividade natural do povo. Corn isso, a melodia separou-se da origern orgânica e passou a sustentar isola darnente o prazer e a <<luxáriao do povo perdido. Ora, este povo, não o esqueçamos, era urn rebanho a conduzir através da hei1e deutsche Kunst, a <<santa arte alernan. Wagner aspirou a urn retorno vitalista a essa melodia orgânica. Por isso, as conclusoes a que chega não são as mesrnas a que chegara a africa mancista. 0 seu programa era mais nacionalista (neste estrito sentido) do que racionalista, mais espiri tual do que material. 0 mósico e, assirn, alguem a quern compete o gesto da dadiva genial, porque dar é mais espiritual do que tirar>> (op. cit., V:252). Este Wagner diverge do intelectual esclarecido e, pot alguns graus, diverge também da emancipacão que MVC perse gue neste excelente volume sobre o Teatro de São Carlos. 5 MODERNO POS-MODERNO Shlink A sua opiniáo também näo me inte ressa. So que eu estou disposto a compra-la. Garga A rninha opinião é o ünico luxo que eu tenho. — — B. Brecht, Na<’Selva Las Cidades A nova constelaçao A especie de negociantes de rnadeira que ao tempo do Senhor Shlink tinha por regra trucidar opiniOes fortes a troco de um dIzimo rentavel tern sofrido notaveis transfiguracoes nestas ditirnas décadas. A fronteira da se1va,’ de Chicago, a rnesma que na cidade de Ber urn terá despertado o jovem Bertolt Brecht da sociabilidade bavara, parece hoje sern delirnitaçoes exteriores. Na auséncia de uma topo grafia reconhecIvel, o interesse da pedagogia brechtiana nesta aber tura ilirnitada das fronteiras da cidade conternporânea residira nal gurnas opiniOes <Iuxuosasn que o debate em torno do pos-rnoderno continua a suscitar. Contrariarnente ao que os sinais da progressiva amnesia histórica deixariarn antever, este constructo teórico, tendo cornecado por se insinuar corno apolitico, ou rnesrno conservador, vem rnotivando urna discussao bern empenhada. A situaçâo é con venienternente paradoxal: a cextualizaçao inforrne do real corres pondeu o regresso da polItica a agenda acadérnica. Segundo o £116sofo arnericano Richard Bernstein, para quern os contornos desta New Constellation se colocarn meihor ern termos da Stimmung hei 74 FERNANDO MATOS OLIVEIRA deggeriana, foram os protagonistas da reflexao pos-moderna que desde cedo se virarn confrontados corn as consequências etico-polI ticas do seu próprio pensarnento>’ (Bernstein, 1991:11). Consequéncia evidente da referida indeIiniçao parece set o des tino da obra de Brecht nos anos mais recentes, sobrerudo no que diz respeito a sua relaçao corn a questão do pos-moderno e corn as p05sibilidades do politico no tearro. As ültirnas décadas fizerarn ihecer estratégias de confrontaçao vanguardistas e neo-vanguardis tas, rnas tambern a viabilidade de urna versâo actualizada da celebre Verfremdung. 0 porno fixo a partir do qua! o autor se lançava cruzada critica encontra—se hoje disperso e sobejarnente arneacado pela indistinçao entre as esferas cultural e económica. A conjuntura critica pode adrnitir o problema do pos-rnoderno como sendo oao mesmo tempo escécico e politico” (Jarneson, 1993:55), mas a audiência (burguesa ou proletaria) que Brecht julgava poder esrra nba? perdeu progressivamente a sua condiçao hornogénea de classe, bern como a sua autonomia decisoria, tao enredada se encontra ins teias econórnicas e ideo!ógicas do mercado g!oba!. Epica e modernidade A controvérsia em tomb da obra de Brecht tern longa tradiçao. A sua herança continua a despertar divergencias assinaláveis: a) temos o grupo dos mais ortodoxos, a que voltarei, para quern a düvida sobre a pertinéncia do teatro épico e inadmissivel, ainda que para tal tenharn de contradizer a pane dialéctica do seu rnateria lisrno; b) ternos depois o grupo dos que Ihe ap!icarn instrurnentos e revelaçoes teóricas actualissirnas, vendo no autor de Mdc (‘oragem atitudes e qua!idades pré-marxistas, anti-didacticas ou pos-moder nas; c) ternos no panorama critico internacional vozes que avisada mente admitern o peso dos anos, mas reconhecem a resisténcia da obra ou, pe!o menos, de alguns dos seus gestos rnais fundarnentais. Tratarei aqui brevernente de todos urn pouco. 0 que parece nunca se ter confirrnado, a propósito de Brecht, foi a universalidade opi nativa que T. S. E!iot exigia ao autor classico. Apesar de possuir a TEATRALIDADES 75 maturidade estilistica exigivel ao poeta forte e de estar perfeitarnente consciente das geraçoes que o precederam, Brecht dificilmente encarnaria o perfil adequado a representatividade consensual do clássico. Nem sequer a estatuto mais modesto do ‘classico relativon o deveria sequer enquadrar. Vejamos entretanto urn aspecto que pode tornar visIvel a tern poralidade e o élan critico do teatro epico. Nos seus ajustes auto biograficos, Heiner Muller refere-se a importincia de Hitler na obra de Brecht, da qua! seria o inirnigo ideal” (Muller, 1994:227). A presenca simbolica deste Grande Inimigo e a motivação criadora que dele ernana tern que ver corn urn posicionarnento estético e teo rico no qua! a ideia central de progresso e de superação permanecem validos. Ja instalado na Repóblica Democratica Alerna, a naturali dade corn que Brecht produz a seguinte comentário a propósito das obras de arte antigas e prova dessa persisténcia ‘progfessista’: ((Marx aponta para a extraordinaria capacidade do ser humano em se deixar ainda impressionar par antigas obras de arte. A sua admiraçao é justa, pok a formula simplisca da eternidade da arte não o satisfaz [...] Pode-se antes pensar que gostarernos de cuidar da memória das nossas lutas e virórias, que pot elas estrernecemos sempre que nos recordamos dos novos esforços, invençôes e descobertas. As grandes obras de arte tern a sua origem nestes tempos de luta. E o progresso é urn conj unto de passos a partir do progresson (GW vol. 19:550-551). A auirmaçao e categórica, e pessoal. 0 que em Brecht vai per rnanecer ate ao fim da vida e a adesao a urn ideal de arte que não abdica de uma postura judicativa de tipo ascensional. Reclamando se historica, contrária a ((formula simplism da eternidade da arte”, esta atitude anseia por apreender e segurar a arbitrariedade aparente da Historia. Os conceitos em que se apoia são retirados de uma tra diçao cuja grandeza analItica acornpanhou o destino que Vattirno traçou pan as rnetanarrativas. Como consequência, rnesmo para as seus sucessores rnais distintos, a “rede da sua dramaturgia era dema siado larga face a rnicroestrutura dos novos problernasn (Muller, 1980:135). Este, enfirn, o ponto decisivo ern qualquer perspecriva 76 FERNANDO MATOS OLIVEIRA ção historica do opus brechtiano. Na verdade, o fervor que perpassa nalguns dos textos de reflexão aparece-nos hoje melancolicarnente corno entusiasmo excessivo e distante. A vivéncia das decadas de vinte e de trinta, a Segunda Guerra, e a experiéncia utópica do socia lismo na Republica Dernocrática Alernã, sugeriarn-Ihe o futuro corno urna escolha excessivarnente dual: entre o empenharnento colectivo e a continuação da barbarie individualista e burguesa. 0 facto de Brecht se ter decidido pela D.D.R. prolonga no seu pensa mento a miragern do operariado, destinatario de urn projecto cul tural que o apoio conjuntural do Estado iludia quanto ao isola rnento internacional. Esta visão atinge o seu ponto alto nas parabolas das grandes pecas do exilio, mosaico das grandes escoihas, através das quais as personagens assurnern a exemplaridade dos pro tagonistas das veihas fábulas. 0 gosto rninirnalista de parte do teatro contemporâneo, a insis téncia na performatividade, no éxtase visual e na alteridade, são no seu conjunto estratégias que se desviarn do tipo de intervençio soli citada pelo Pequeno Organon. Este terminava, recorde-se, corn o reconhecirnento da autoridade de Lenine. A debilidade impositiva das actuais linguagens cénicas e a lingua franca dos espectaculos multirnédia neutralizarn a acção esciarecedora do ‘estranharnento’. E esta acção que se rnanifesta na rnaioria das estratégias épicas: nos cartazes, nos cornentadores e nos sabios. Heiner Muller distancia-se neste preciso porno. A sua escrita refere a necessidade de o novo tea tro se desviar do cais ‘didactico’ rnais estreitamente brechtiano. Note-se que é Muller quem, apesar de tudo, mais declaradarnente continua a viagem que Brecht protagonizou ate 1956: <<Ele [Brecht] não irnaginava o drama sern protagonistas. Ate o seu conceito de fábula estava preso a presença de um protagonista. As pecas decorrem todas corn base ern protagonistas e, neste sentido, era afinal ainda urna dramaturgia burguesa.n (op. cit.: 230) A severidade da observaçao, corn o seu qué de edipiano, aliada a recusa do Brecht <agrárion, <<pré-industrial” ou classico>>, acaba por colocar peças corno a Mae C’oragem na galeria das obras de arte TEATRALIDADES 77 amiga, aproxirnando-a perigosarnente da consensualidade mole, prOpria do estaturo de fIgura póblica inerenre aos classicos. Consta, alias, que tambern Max Frisch lamentava o perigo de urn Brechr reduzido a inefIcacia de urn auror clássico. Convem norar, no enranro, que a cririca de Muller cumpre urn desfgnio avançado fre quentemenre pelo próprio objecto. Logo num pequeno texto de 1926, sobre a encenação dos classicos, Brecht relernbra as palavras de Piscator acerca de uma segunda encenação do drama Die Rauber, de F. Schiller. 0 autor do Teatro Politico rerá afirmado, na sua pre sença, ter desejado que “as pessoas ao abandonarern o tearro tives sern notado que 150 anos não erarn uma ninharia>> (GW 15:112). A acrualizaçao das obras do passado depara-se corn obstáculos consideraveis. Ao tempo dos Escritos sobre o Teatro, Os clássicos já reriam deixado de constituir urn problerna essencialrnente espiri rual, para se tornarern cada vez rnais nurn problerna de ((culinariza ção>> (GW 15:177). Sabendo nOs que a culinaria não se disringue pela intelecrualizaçao do ternpo, numa consratação notavel, o inter locutor de Brechr, nesse <Diálogo sobre os Clássicos>>, reclarna para a prática teatral a recuperação do senrido histOrico, pois a tradiçao havia sido trocada pelo <consumon (idem:178). A soluçao proposra consisria ern deixar de trarar os classicos ‘corno urn parque natural>>, onde rodo o toque era proibido. Apenas se deveria respeitar o sin gular critério de validaçao avançado: saber se dererminada obra, represenrada nurna sala de aulas, teria ou não algum valor para os alunos (idem:182). Aqui rernos o forum em que a questão do pós rnoderno necessariarnenre se situa no contexto da obra brechtiana. Recepçao e conting&ncia Aparenternente, portanro, Brecht assegurou-se teoricamente a si rnesrno urn futuro que esraria longe da invesrida contingente da conrernporaneidade. 0 lastro urOpico, o empenho reórico e o cré dito que atribui a arte quanro a sua capacidade de influir na praxis social, fazern dele urn discIpulo tardio da razäo. Por variados mod vos, esta prática ilurninada não Ihe tern sido sempre reconhecida. 78 FERNANDO MATOS OLIVEIRA A irnagem do Brecht humanista tern vindo a ceder o espaco privile giado que ocupava anteriormente. Ao tribunal da critica tern che gado entretanto novas versöes do mesrno autor. Em prirneiro lugar, é justo reconhecé-lo, o Brecht rnediatico é somente urna parte sancionada da obra total. A percepção dogma tica do autor politico associou-o pot vezes a urna ideia popular esquerdista de empenha.mento. A sua escrita nern sempre o admite. No piano interno, pot sua vez, o autor canonizado é frequentemente o Brecht autorizado por Brecht: um conjunto de textos que respeita as ideias mais ‘definitivas’ do perlodo posterior ao ensinarnento materialista. Nao e raro, alias, encontrarern-se nos Escritos sobre Tea tro referencias pouco favoraveis as peças da juventude. Sobre Bad previne: Admito (e aviso) que a peça faIn sabedoria>’ (GW 17:948). Mesmo a propésito dos textos da rnaturidade lamenta a faIn de uniformidade: “Quando observo e comparo as minhas ültimas peças, Ga1ileu Mae Coragem Terror e Misdria do Terceiro Reich, A Boa Pessoa tie Che-Chuao, Senhor Puntitri e o seu Sobrinho Maui, Ascensac de Ui, ache-as muito desi guais em todos os aspectos. Mesmo os géneros mudam constantemente, as biografia, gestarium, parabola, comédia de tipos ao gosto popular pecas divergem umas das outras como as estrelas no novo universe da FIsica, come se tambem aqui qualquer centro dramatico tivesse explo dido (Brecht, 1973, 1:274) — A auséncia de urn centro Mo significa, corno se viu, arbitrarie dade absolura, já que ml funcionaria corno impedimento didáctico. A diversidade dos mejos e das formas e ames o rnodo de conferir ao seu rnetodo uma abertura cornpatIvel corn o espirito da época. A questão do percurso formal e ideologico da obra contagiou igual rnente a tradiçao critica. As abordagens mais relacivinas integram-se nestes exercicios de selecçao, embora a tendencia venha de longe. Já em 1962, nas conhecidas ((Notes sur un theatre rnaterialiste, L. Aithusser escoihia apenas as grandes peças de Brecht. Muller, etpour cause, sernpre manifestou a sua preferéncia pelas peças do Elm dos anos vinte e inicios de trinta. TEATRALIDADES 79 Em segundo lugar, a relaçao possIvel de Brecht corn o pós modernismo corneça nalgurnas afinidades que, a fain de meihor, diria constituirem afinidades processuais. Brecht vern a ser o autor moderno pos-moderno por excelencia. Entre as qualidades associá veis ao catálogo dos procedirnentos pos-rnodernos, destacaria a natureza auto-reulexiva dos textos. Esta caracteristica faz de Brecht urn autor assurnidamente metaficcional. As suas historias são urna encenação revisionista da História; as situaçôes e as personagens são projecçOes re-contextualizadas de outras mais antigas. Cornpreende se aqui a enorme receptividade épica ao trabaiho da citação, a paró dia e a outras formas de reconversão textual. A própria restrição con temporânea do telos autoral era já assurnida directarnente nos Escritos sobre Literatura e Arte, onde a noção burguesa de proprie dade é desaconseihada: <Mas abandonemos o jogo de azar favorito da burguesia: a luta pelo tftulo da posse. Esqueçamos a generosidade corn que Shakespeare corn o seu nome tudo o que no palco e dito durante a representação de uma peça. 0 drama Mo precisa de detaihes rigorosamente sujeitos a patente, Mo precisa de todo o prego assinado, de uma qualquer expressão especialmente produzida...” (GW, 18:101) Esta atitude é consentânea corn a ideia do encenador moderno que Brecht ajudou a solidificar e corn a vontade, acirna expressa, de legitirnar urna liberdade produtiva que perrnitisse a actualizaçao urgente dos clássicos. 0 sentido da citação e da cópia deixa de ser o da antiga sujeição a urna auctoritas ou o do reconhecirnento da per tença a uma tradiçao; passa a significar, precisamente, a negação da ideologia da tradiçao. 0 rnétodo, diga-se, foi uma vez rnais aplicado ao proprio, em inámeras revisöes das suas produçoes dramatárgico -teatrais. São os casos de Eduardo 11(1924), de A Mae (1932), das adaptacoes radiofonicas de Macbeth (1927), de Hamlet (1931), AntIgona (1948), entre outras. A aplicaçao desta logica revisionista generaliza-se a toda a obra. No caso dos textos fragrnentarios, a resis téncia continua do rnaterial a rnodelação historica motivaria o seu abandono puro e simples. Ao adrnitir a componente fetichista da FERNANDO MATOS OL]VEIRA 80 originalidade e ao actuar segundo urna lógica de produtividade rela tivamente ousada, Brecht antecipa mais uma liturgia contemporâ flea. A aftrrnaçao que se segue, pot exemplo, nada deve ao credo her menêutico dos ültimos manuais sobre o pos-modernismo, ou a uma teoria dos géneros afim: <Como escritor dramatico eu copiei pecas japonesas, helénicas, isa belinas; como encenador copiel arranjos de cémicos populates coma Karl Valenrin, as propostas cénicas de Caspar Nehers, e nunca me send menos line por isso.’> (GW, 16:714) 0 ntlmero e a actuajidade destas antecipaçOes pés-modernas tern dado origem a reposiçöes crIticas consenrâneas corn a abertura da sua obra. Além dos trabaihos de Muller, ames e depois de G’ermania Tod in Berlin, livros coma os de Elizabeth Wright (Wright, 1989) e de David Roberts (Roberts, 1991) questionam explicitamente a herança contemporânea de Brecht. Para o dltimo, a re-escrita brechtiana, enquanto prova da existéncia da rradicao ‘conly as material to be reu sed and recombined>>, proragonizaria a mudança de paradigmas. Uma mudança que assinalaria, no pIano dramatico, a recusa da tradiçao vinda da Renascença. A figura do auror, precisamente, aparece corno representanre privilegiado desse rnomenro de inversão: “Our example for the change of paradigms is Brecht, not only because, as has often been noted, his work is a limiting case for Adornos’s and Lukacs’s aesthetics, but also because, by expressly seeking to articulate and master contingency, he places himself on the other side of Adorno’s indifference. ‘Brecht and Contingency’ is thus our reply to ‘Schoenberg and Progress’ 1...] This ‘nihilistic intention the assault on all hierarchies and boundaries opens the era of postmodern art. Henceforth art enters into an alienating relation to tradition, The emancipation of the poszmo dern work manifests itself in the sovereign disposition over the materials of tradition.,> (Roberts, 1991:184 e 191) — Estamos perante um exemplo claro cIa possibilidade de inte gração historica e estilIstica de Brecht no campo argumentativo pos TEATRALIDADES SI moderno, pelo menos no sentido amplo que Roberts atribui ao termo. Ao leitor de hoje, curiosamente, esta tentativa de responder a Adorno corn Brecht cone o risco de iludir o facto de Adorno cer recusado Brecht contemporaneamente. A escoiha de Roberts, ao privilegiar o teatro épico, e ainda e so uma opçâo ‘interpretativa’, avalizada pela atitude pluralista que o move. Adorno teria preferido urn cânone organizado em torno da obra de Samuel Beckert, como sabemos. Dois outros aspectos parecem justificar a sintonia pOs-moderna de Brecht: a) a dinamica que nele se estabelece entre a teoria e a prá tica; b) a dramatizaçao do corpo como lugar e material investido de urna nova legibilidade. Em pecas como Urn 1-lornem é urn Homern e A Peça Dida’ctica de Baden sobre o Entendirnento, o corpo aparece numa relaçao com os sistemas de poder que se acentua ccnsidera velmente no reatro pOs-brechtinano. A marginalidade das persona gens manifesta-se em tOpicos concretos como a dor, a mutilaçao ou a fome. Na pnimeira daquelas peças, Fairchild evita ser vItima social e profissional da sua virilidade, praticando a auto-castração. Quanto a posiçâo da teoria, na sin geração, Brecht é porventura urn caso exemplar de uma produçao literaria e drarnatica a flincionar ja em pleno regime metaficcional. A admiraçao de Roberts e sintomatica, quando declara que Brecht e sirnultaneamente (<the critical enligh tenment of ‘dramatic tradition and the self-critical union of ‘epic’ theory and practice>’ (op. cit.: 194). Tram-se aqui de tornar a letra caminho aberto pelas intençöes mais nobres da teoria brechtiana, pois a sua prática efectiva sujeitou-se a contingéncias várias. Em Post-modern Brecht, Elizabeth Wright, por seu turno, vai além do que em Roberts ficou delineado topologicamente. 0 seu pOs-modernismo ‘estilIstico’ não conternpla o mesrno tipo de acção crItica que Muller e Roberts registaram. A autora segue uma linha interpretativa, mais popularizada, que aproxima Brecht do pós estruturalismo pela via das pecas de juventude: a escrita que vai de Baal ate Urn Hornern é urn Hornem, passando por Na Selva das Cida des. Nestas obras concentrar-se-ia o máximo de <<antinarratividade>’ e de uperformatividade>>. A analise de Wright é um catalogo de epi tetos. Em Baal ternos &agmentação, jogos de linguagern, acção do 82 FERNANDO MATOS OL)VEIRA principio do prazer, desfiles libidinais, operaçôes rizomáricas, apro fundamento da subjectividade, experimentaçäo, entre outras actua lidades (Wright, 1989:98-104). Na Se/va das Cidadesquedarno-nos pela arbitrariedade, pelo acaso e pela acção imotivada, pela relaçao da marginalidade corn o capital, enfim, pela escrucuração paranóica e ainda pelo narcisirno. E verdade que o protagonista de Urn Hornern d urn Hornern produz afirmaçoes como <<Talvez eu seja dois>’ ou <<Eu sou urna pessoa que não sabe quern 6>, mas desta desintegracao do sujeito as conclusoes da autora vai certa distancia. F,nfim, nestas cur tas páginas Brecht admite Freud, Lacan, Deleuze, Lyotard, Fou cauh, algum Habermas e, esporadicamente, Jameson. Para voltar mos a expressividade da Se/va, deve norar-se que neste livro de Wright as ideias mais conhecidas de Brecht remanescem como ver dadeiro <<luxon. Aquilo que pan uns foi coisa menor, <<expressio nismo bavaron (H. Muller), transforma-se aqui em vertigem experi mental e recusa referencial. Exemplos como estes acabam por nos fazer repensar o primeiro Brecht e tornam evidenre a sobrevivéncia de certo conservadorismo crItico nos estudos brechtianos. Apenas para que se avalie o grau a que a indüstria cririca chegou, mesmo no campo alinhado, vale a pena referir o empreendimento inédito de Heinz Hirdina, numa tentativa derradeira de ilibar Brecht da conexão pós-moderna. Este professor de Bedim determinou uma investigação ao interior da casa de Brecht, na ChausseestraRe, sob a perspectiva pos-moderna. Cen trando a análise numa das ireas dilectas da producao teórica pós rnoderna, a arquitectura, Hirdina passa a descrição dos espaços habitados por Brecht. Corn base na disposiçao da sala conservada em Berlim e apelando a outros testemunhos relativos, quase exclu sivarnente, a dimensao e ao tamanho das secretarias, o critico defende que em Brecht o espaco se caracreriza pelo princIpio dorni nante da flincionalidade. <<Funçao’> significaria que o formalismo e a desurnanidade da construção e design actuais estão ausentes do lugar assim intocavel do pai do <<pensamento interventivo>’ (cf. Hit dma, 1989). Brecht encontra finalmente eco no campo da encenação con temporânea. Seguindo a lógica da apropriação aberta pelo autor, TEATRALIDADES 83 agora é Brecht quem se oferece a conringéncia. Porque neste tempo tudo se transforma e nada se perde, a procissão segue de Muller a Eugenio Barba, este ültirno corn Brecht’s Ashes 2 (1982). No piano das técnicas de representação teatral, o Brecht que resiste e o fre quentador do Oriente, ainda que o pretenso rnuiticulturalisrno sirva na fonte para resolver problemas europeus. 0 paradigma autoritário que orientava a sua percepção do papel do encenador, por seu lado, acoihe poucos aplausos na dispersao autoral que o espectaculo con ternporâneo acentua. Ao lado do merodo de Stanislavski, foram ainda as suas ideias sobre a actuação que criaram espaco para novas estratégias comunicacionais, versôes rudimentares da indóstria da publicidade. Neste porno, a historia do Berliner Ensemble, a partir de 1949, pese a peregrinacão que durante décadas alimentou, tor nar-se-ia tao reprodutora quanto a publicidade. Foi Peter Brook quem afirrnou (e abusou), um dia, dizendo que o ünico <Teatro da Crueldade” de que tinha conhecirnento estava sediado no Berliner Ensemble. Peio que venho escrevendo, o pós-rnoderno em Brecht pode andar para trás e para a frente, ora aparece no artista enquanto jovern, ora no drarnaturgo da rnaturidade. 0 leitor cornurn podera ainda fazer a opção de compromisso, escolhendo o Brecht intermédio. No caso de acreditar na figura Autor, pode ate recorrer ao sentido da sua evoiuçao: tudo indica que esta reafirrna a faceta do rnoderno e que o texto pende al visivelmente para urn gesto de progresso. Que conduit, pois? No auditorio universal, a recepcão da obra de Brecht confirma plenarnente a predisposiçao para o desacerto cronológico. Analisar a sua recepçäo nos palses da Asia, da America Latina e nalguns da Europa, corno Portugal, é reconstruir uma espé cie de cronómetro das velocidades historicas, no quai o estranha memo acontece a todos em ternpos diversos. A actualidade da per suasão épica tern nesta realidade a sua maior fraqueza e a sua major qualidade em sirnultaneo. Enquanto na <sala de auiasn, acima refe rida, o valor de uma obra é urn acontecirnento contingente, a casa europeia afasta-se dos pressupostos dos textos concretos que Brecht nos legou. Contudo, deve recordar-se que a fideiidade de Brecht as entre a épocas de lurn tinha nele originado urna terceira via — FERNANDO MATOS OLIVEIRA entrega esteticista do modernismo e a mimetismo do realismo socia a que nunca recusou condiçao histórica. Pelos anos vinte, lista pot exemplo, aconseiha as praticanres da arte literaria a escreverem romances policiais, a ünica literatura que a época a comovia (GW 18:3 1). 0 seu projecto era o mesmo do prirneiro Lukács e o da reden ção benjaminiana: a urgência de urn teatro não-trágico, de um novo drama adequado ao tempo do desencantarnento, sern corn isso ter de regressar ao irracionalismo dionislaco aberto pelas ideias de Nietzsche, ou, em airernativa, subrneter-se ao entretenimento da arte burguesa. Em Nietzsche, a drama musical de Wagner, ern pleno século XIX, criou a ilusao da sobrevivéncia do espIrito trágico, após um rnergulho historico de quase dois milénios. 0 teatro épico e a peca didactica pretendiam que o restabelecimento produtivo do con tacto entre a plateia e a cena se deveria efectuar pot rneios cornpatI veis corn os da própria modernidade. Tal consisria, sobretudo, em obrigar a arte a abdicar da sua cega autonomia, sem corn isso se reduzir as profecias pie ihe desrinavarn o palco demasiado intransi tivo da teoria. Para terrninar corn Muller, a obra de Brecht pertence aos gran des textos deste seculo, portanto, àqueles que utrabaihararn na liqui daçao da sua autonomia>. Tat situação nasceu da incapacidade em se relacionarern corn a ‘propriedade privada>, a mesma que os levaria a expropriação e an risco de desaparecimenro final do autor. Nesra perspectiva, a sua dramaturgia nasce da condiçao do <ftigitivon, como Rirnbaud ou Kafka, rnas de urna fiaga em direcçao ao centro do mundo. No de hoje sabemos que apenas o que está em fuga permanece>> (cf. Muller, 1979). 0 que sobra é urn Brecht residual, outrora materialista e modernista, hoje, porventura, destinado a sobreviver como moderno pos-rnoderno. — 6 coNvERsAçAo & COLAGEM A geração da Garagem 0 teatro português conternporâneo vem assistindo ao trânsito da geraçäo que definiu as coordenadas do espectáculo no periodo pos-revolucionario. A conjuntura mostra-se receptiva ao balanço crltico, corno parece indiciar a publicaçao recente de algurnas monografias sobre grupos e personalidades corn urn papel de relevo no teatro das Ultirnas decadas. Na0 e de todo surpreendente este ajuste de contas corn o passado. E a própria fisiologia das geracöes que pede hoje aos protagonistas do teatro independente urna orde naçâo historica do seu trabaiho criativo. 0 balanço justifica-se ainda pela cornplexidade do trajecto entretanto percorrido, desde a dita dura ate ao Portugal dernocratico, passando pela norrnalizaçao euro peia dos anos oitenta e noventa. 0 ano 2000 acrescentou a estas razOes o pathos rnilenarista da experiência de fIrn-de-seculo, justa mente após o vigésirno quinto aniversário da cornunhão festiva vivida ern Abril de 1974. A ernergéncia dos novos ocorreu já corn a descentralizaçao em curso, corn o aparecirnento de grupos profissionais (ou serni-profis sionais) ern ntlcieos urbanos de rnédia escala, corn a multiplicacao de iniciativas regionais e a inauguração de novos espaços, apesar de retracçöes mais ou rnenos conjunturais, ditadas pela oscilaçao ende rnica da polItica cultural. Mas os novos devern igualrnente a geracão do pos-Abril o trajecto de urn pals que ha duas decadas se pretende ir reconhecendo na geografia econórnica, social e cultural da Euro pa. Depois de 1974, passada a avehtura politico-revolucionaria, 86 FERNANDO MATOS OLIVEIRA consolidado o teatro independente, as décadas de oitenta e de noventa coincidiram corn a consagraçäo dos grupos maiores, corno 0 Bando, a CornucOpia, o TEC, a Cornuna, entre outros. Foi urn perIodo também marcado pelo aparecimento de estruturas produti vas polivalentes, como o CENDREV o primeiro centro regional e, numa fase poste de em Evora cultural curnprir a utopia 74 a rior, os Artistas Unidos e o singular aglomerado intermunicipal cha mado Amascultura. Estes colectivos assurniram de modos diversos a negociacão intergeracional que e devida a iniciativas culturais desti nadas a sobreviver aos rnéritos de cada criador individualmente. A evoluçao do edifIcio teatral português durante os óltimos 25 anos não resolveu, contudo, a dependéncia externa no campo da escrita dramatica. Esta dependéncia tern vindo a ser pontualrnente contrariada por autores pertencentes a ambas as geraçOes. Reliro me, por exemplo, aos titulos de Jairne Salazar Sampaio, Luisa Costa Comes, Hélder Costa, Jorge Silva Melo, Abel Neves, Carlos. J. Pes soa ou Jaime Rocha. Mérn destes nornes, a prática teatral de ence nadores como Lucia Sigaiho, Luls Castro ou Joao Garcia Pereira, para referir trés casos, propOe-se questionar o lugar do texto rnediante a construção de espectaculos nos quais a dimensao per formativa modera a presença da letra e, corn isso, a estrita funçao tnediadora tradicionalmente atribuida a figura do encenador. Nas rnargens da tradiçao textualista, alguns jovens autores-encenadores, saldos dos cursos de teatro, tém avançado para trabalhos de perfor mance/instalaçao que são hoje a colaboraçao mais visIvel do teatro porrugués corn as tecnologias multimedia. Estes criadores investem certa disponibilidade arcaudiana sob a forrna de urna mediatizaçao ritualista que associa o corporal-presente ao virtual-ausente. Esta mos, pois, perante duas linhagens artIsticas que actualizam os ter mos da disputa entre o teatro como evento celebratório ou choque cruel e urn teatro que se mantém como rransposicão medial de um texto, centro crItico da prática teatral. A diversidade da paisagem teatral contemporânea responde também a nova realidade económica e social do pals. A fenorneno logia dos anos 90 que vern sendo testada in leitura de algurnas areas vejam-se os casos das artes plásticas, da da cultura portuguesa — — — 87 TEATRALIDADES 20 tern por daras urna materialidade histó poesia c da narrativa rica intirnarnente ligada ao aprofundarnento da integracão europeia e a participacão de urn nómero cada vez mais vasto de portugueses no devir consurnista do cidadão global. A riqueza acurnulada anos noventa despoletou urn processo sociai e cultural semelhante a inflaçao sornática que atravessou a Europa do bern-estar pelos arms sessenta. Nessa altura, adoptando a definiçao feliz de Jorge Silva Melo, uma testemunha privilegiada do espectaculo da rua e do tea tro, verifica-se urna conjuracão inedita entre dinheiro e Mria: A Cultura do Hornem Born não sabia resistir a fória de absoluto que a sübita riqueza da juventude dos anos 60 agora exigia>’ (Melo, 1998:300). Devido a eniropia endernica do ternk lusirano, o nosso Hornem Born não confraternizou corn o Hornern Born europeu. A nação portuguesa, por consequéncia, viveu ao longe a Segunda Guerra e, corn isso, perdeu tarnbern a experiência heroica da sua cicatrização mental e econórnica no pós-Guerra. A versão portu . 4 guesa mais próxima desse Homern seria ralvez a do periodo pós-7 De igual rnodo, os nossos anos novenca parecern rnirnar a saturaçäo europeia de sessenta, obviarnente corn aquele grau de distorçao que é devido a repeticão dos factos historicos: prirneiro corno tragedia, agora como cornedia. Fenornenos corno a urbanizaçao, a moda, a rnediatização da intirnidade, a desterrirorializaçao inerente a cultura de rnassas, tiverarn no carnpo teatral português tarnbém o efeito geral de urn ((zapping pos-moderno das forrnaso, tornando empres tado o termo feliz de Jean-Pierre Sarrazac (Sarrazac, 2002:235). Por seu lado, cextos corno Antonio, urn Rapaz tie Lisboa, de Jorge Silva Melo, ou espectaculos como os que constitufram o ‘Ciclo das Gera çöes’, de LuIs Assis, convocarn para o palco portugués a geracão ‘individualism e dispersa’ a que faltaram as referencias dos seus ascendentes irnediatos. — 20 Ainda recentemente a narrativa fbi objecto de uma conceprualização deste teor, no volume desigual de Miguel Real, explicitamente intitulado Geraçdo de 90. Romance e SoczedeIe no Portugal Contempordneo, Porto, Campo das Ietras, 2001. FEPNANDO MATOS OLIVEIRA 88 Ao cornentar de seguida a peça Desertos, escrita e encenada em 1997 pot Carlos J. Pessoa, no Teatro da Garagem, pretendo manter o contacto corn esta deriva geracional. Desertos tende a deslocar a escrita pan 0 território pos-dramático, urn espaco que aqui oscila entre a reciclagem da matéria formal disponibilizada pela tradiçao e o <<oportunismo drarnatargico pós-rnoderno (idem:235). A Detrac tora, personagem da peça em causa, antecipa justamente os termos da critica ao estatuto autoral da nova geracão, numa replica que parodia o seu julgamento apriorIstico. A referencia a pretensa <<pro lixidade irritante supôe o (necessario) confronto estético corn os autores do passado: <<Detractora 0 autor e de uma prolixidade irritante, falta-Ihe eco nornia dramatürgica, o rapazote quer falar de tudo! Corno se atreve a escrever, acto sagrado, destinado a alguns, não a todos; quem é que ele se julga para nos torrurar corn a sua lavra tosca e incompreensfve1? (Pessoa, — 1998:98) C) autor de Desertos tern vindo a conciliar a escrita de textos pan teatro corn a actividade de encenação na sua cornpanhia. 0 Teatro da Garagem define-se por urn estilo e por uma linguagem reconheciveis no panorama contemporâneo. Nao rnerecendo o con senso da crItica, pelo contrário, a actividade do agrupamento mantern uma continuidade invulgar entre as iniciativas nascidas sob o signo da decada de noventa, sobretudo se considerarmos a escassez de rneios e urna existéncia que começou ern 1990, arredada da nossa disputadIssima poiltica de subsIdios ao teatro. 0 trabalho do grupo tern vivido quase exclusivamente da producao textual de Carlos J. Pessoa. Num pequeno texto que acompanhou a apresentacão de alguns dos espectaculos, o autor/encenador destaca precisamente a impor tância do argumento geracional que acirna referia. Al se pode let que o <<Teatro ela Garagem é, antes de mais, urn projecto geracional, e que surge na sequência de encontros e desencontros entre pessoas que tern em cornum urna vivência singular do pós25 de Abril de 1974> (Pessoa, 1997). As singularidades deste pos-25 de Abril serão tantas TEATRALIDADES 89 quantas as experiências dos que, corno o proprio, nasceram em finais da decada de sessenta: tarde de mais para a vivência adulta da Revoluçao, mas justarnente a tempo para dela terem uma memória vaga. 0 resultado desta exisrência intervalar parece reflectir-se nas declaraçoes que se seguern nesse rnesrno texto de apresentacão. 0 grupo e sirnultaneamente urn efeito das particularidades da Revolu cáo e urn esforço de questionarnento do status quo a que a mesma conduziu o pals. Assirn, este teatro corneça por ((nascer>’ na garagem e corn cia partilhar o espaco da cultura suburbanan. Estarnos perante cspaços colaterais, territórios de fronteira, próp?ios da euro peizacáo a porcuguesa, e dos seus incontaveis excedenres suburba nos: ((flOS nossos passeios, rropecávarnos em ferro veiho, dormiamos a sesta em searas cercadas de fabricas, encontrfrvamos vestIgios rornanos e diziamos etpluribus unurn, o lerna do Benfica farnos a praia e falavarn-nos da vocaçäo do rnar, das giorias passadas, de Africa, Brash, e India>’ (id:ibid). Tera sido precisamente o desacerro social e historico do subürbio, textualmente apropriado como <cnosso subórbio>’, que conduziu o projecto do Teatro da Garagem a ref1exao sobre uma jovern dernocracia num pals veiho de oito sécu los>’, mantendo sernpre nesse pensamento o espirito da garagem as costas>’ (id.:ibid.). Desertos compreende-se fiesta reflexao a que se propôem os elementos do grupo. Uma reflexao que, pela sua natu reza, necessariamente repete a dualidade do tempo da geracão ern causa: a) neia surge o comprometirnento vago de Abril, transrnu dado no inconforrnismo do subdrbio ou da garagem; b) nela se con firma, por outro lado, que o tempo pós-Abril náo admite já urn con fronto directo e sustencavei corn a História. 0 deserto que intitula a peça e essa paisagern vazia, acravessada pela humanidade nornada que sobra da mernória europeia. Historias, interferéncias Desertos. Evento did4ctico seguielo de urn poema grdtis conscitui a 1 2 produçao do Teatro da Garagern. E a segunda de urn ciclo de FERNANDO MATOS OLIVEIRA 90 cinco peças, corn o tItulo colectivo de Pentateuco. Manual de Sobre vivênciapara o Ano 2000. 0 ciclo organiza-se por temas, respectiva Epifania em 20 Estaçoes; mente: a Fe (0 Homem que Ressuscitou a Europa (Desertos); Portugal (PeregrinacJo. 0 Fio de Ariadne); a No Rasto tie Medeia); o futuro (A Menina farnIlia (Escrita a!a Agua Peça Teatral em frito tie Conic de Faais). Das cinco quefoi So peças, cuja autonomia e de facto suficiente para o espectaculo a que cada uma deu origem, Desenos destaca-se das restantes. Tal nao se deve a qualquer especificidade linguIstica ou estrutural, tão-só a major consisténcia do texto e a uma escrita que parece ter merecido da parte do autor a acenção que fragilidades drarnaticas negam as indiferenciado . restantes, mais devedoras do seu debito inclusivo e 21 Desertos não expOe propriamente urn drama ern paJco. Se para urn certo B. Brecht uma boa peça de tearro teria de corneçar inva riavelmente pot urna boa hisréria, para Carlos J. Pessoa, a <didác tica’> não implica subrnissao a urn logos narrativo. Esta diferença e mais que o salto de várias geracöes, e talvez já a distancia que vai entre a reflexao brechtiana sobre urn jovern autoritarisrno alernao e esta ((reflexao sobre urna jovern dernocracia”. 0 titulo acaba por fun cionar corno paradigma destas distinçoes politico-narrativas. Sendo a peca de Carlos J. Pessoa urn oEvento Didáctico seguido de urn Poerna Grátisn, ela torna visivel o carácter assurnidamente eventual desta didactica e, pot isso mesrno, a aparente irnpossibilidade con ternporânea ern oferecer a plateia mais do que a troca ocasional de palavras ernie as personagens, no instante passageiro do espectaculo (cf. Rabillard, 1991). A ordern do local e do presente dornina o curso verbal do texto. Tram-se de urn presente que so a pulsao nar rativa poderia pretender transforrnar em exernplo, enfirn, em didac — — — 21 o leitor não deixara de notar as oscilaçöes ernie as cinco peças que cons tituem Pentateuco. A relaçao difIcil que entre nés o teatro rnantérn corn a litera tura dramática tern merecido resposcas diversas pot parte da cornunidade tearral. A década de noventa fot clararnente rnarcada pela multiplicaçio das autorias, como atesta a vulgarizaçäo de espectáculos escritos pot encenadores e/ou actores de diversas cornpanhias. Contudo, e frequente a escrita resultar numa inflaçao expressivista que corre o risco de confundir o referente artaudiano corn o corner do clas ernocoes e do choque. TEATRALIDADES 91 tica reflexiva. Mas a leveza progressiva dos mareriais narrativos, cada vez mais desprovidos de sintaxe historica, dever-se-a por certo a ero são rnetaforica dos Desertos da Europa e do pals do nosso autor. A peca coloca em cena urn conjunto ambicioslssimo de perso nagens a representar fragmentos da rnemória europeia: Carlos Magno, D. Quixote, Madame Curie, Joana D’Arc, além de Maria Callas, urn Senhor K, urn Bombeiro, urn Espectador e uma Detrac tora. A acção, se assim se pode dizer, consiste na intervenção suces siva, por vezes em registo monologado, das personagens menEiona das. Quando a figura do Espectador, na 5 cena, resume inocente e ironicamente o que acontece a sua frente, salvaguardando o anüncio da redenção, enuncia cambém a qualidade civihzacional do deserto em causa: “Algumas personagens da História europeia reónem-se para saivar a Europa de um mal que designaram por ma consciên cia, crise moral e cultural...! Estao num deserto” (Pessoa, 1998:94). Na verdade, em Desertos, os fragmentos sem estória são de tal modo insistentes que a Detractora, verdadeiro alter-ego (e autodefesa) do autor, protesta corn Carlos Magno, pedindo a conclusao que tardava ao fluir interminavet da palavra: <Não estás a avançar nada, isto é petfeitamente inconclusivon (idemJ 47). Sen conclusao ou avanço a peça (des)estrutura-se corno colagem de discursos. A colagern, alias, parece ser urn procedirnento téc nico da eleiçao do autor. Deterrninados fragrnentos e sequências ora emergem, ora desaparecern ao longo do texto. A cadência entrecor tada dos discursos suscita urn mecanismo de reconhecimento inter rnitente. Este processo val ao ponto de justificar o larnento desespe rado por parte da personagern Espectador, a qual verbaliza a ansiedade dramatica e narrativa a que a peça, por sua vez, sujeita a plateia como urn todo: ((Queremos histórias, historias, histórias!> (idem:l 33). A colagern serve ainda outros propósitos, corno seja a reescrita parodica de uma série de tópicos da linguagem polltica: (Detractora Eu queria agradecer a todos os que me ajudararn a estar aqui hoje. Quero agradecer aos jovens, a sua energia, e sobretudo a juventude. Portugal está mais forte, a Europa esrá connosco, estarnos — FERNANDO MATOS OLIVEIRA 92 no born camjnho. 0 mundo reconhece-nos, e nós reconhecemos o mun do. I love Portuga1! (idem:132) Em Desertos, o espectador depara-se, então, com uma deriva de vozes no tempo e no espaço. A sequencialidade do dialogo, no sen cido convencional, não detem a posicão dominante que ocupa na tradiçao dramatica. Por vezes, a fala de uma personagem nao motiva sequer a <Ic urna outra, como a uma pergunta pode não suceder uma resposta. 0 dialogo que as regras da pragmática aconseiham a dois e aqui urn dialogo a trés ou a quarro, porranto, troca o dialogisrno por certo <espanto de incornunicabilidade: <‘Especcador Urna peça didactica mais urn poerna gratis... Estou magoado, extremamente magoado, os sapatos D. Quixote rnagoam-rne Os pés. Maria Callas Ainda não me arrarijaram carnarirn Deserto: lugar de todas as provaçOes, lugar de dci Espectador ção onde os chamadosmostrarao que merecem ser escoihidos... A rninha joieuse não tern gurne! Carlos Magno Senhor K Nao me estrague o espectaculo, hornem! Parern corn esse baruiho! Urn poema gratis porquc... Espectadot parem Ia corn esse baruiho! Cararnba! Derractora Vocés são ridIculos, urn espanto de incornunicabili dade.>’ (idenr96) — — — — — — — — A frequéncia corn que as personagens intercalam o discurso cria urna espécie de ruldo larvar que se mantém pot toda a peça. Em cci tos mornentos, tal ruido dá lugar ao absurdo ou ao puro nonsense. A insinuação do absurdo, depois do anáncio da Eurolandia colectiva pela voz da Callas, produz urn curioso efeito expansivo: <Na Jutlan dia encontrei urn crocodilo / Na Jutlandia fui inoculada corn urn bacilo I Na jutlandia fiz a hipoteca de urn marnilo / Na Jutlandia fiz dueto corn urn grilo!’> (idem:1 09). A mesma Callas simula pelo canto a construção de castelos na areia, enquanto enuncia urn dis curso entrecortado, repleto das mais inauditas referéncias ao quoti diane (i&m:140). Desce rnodo, Desertos surge decisivarnente atra 93 TEATRALIDADES vessado por urn rnagno mecanismo de interferéncias, de vozes, de registos e de distorçOes. A interferencia passa realrnente a flincionar como elemento fundamental na constituição do(s) sentido(s). E urn desaflo que o leitor/espectador ou aceita ou e obrigado a abandonar. Na verdade, o ruIdo e tarnbérn o efeito da inflaçao indiferen ciada de discursos em palco. Em lugar da voz grave da tragedia, Desertos opta pelo estilo rnultiplo e aberto da farsa e da cornédia. 0 privilégio do córnico sobre o trágico rnostra quanto a cena, esta constrói-se realmenre sobre a superfIcie instavel da areia, que depois cobrira literalrnente o espaco da encenação 22 é urn efeito da logica que regula a vida na Euro1ândia” contemporânea. 0 córnico é urn gesto de autodefesa, sublirnaçao pelo risIvel, aqui talvez apenas o ataque minirnalista que o mornento histórico admite: se o pre sente da escrita e já posterior ao da tragédia, ele rnostra querer tarnbern despedir-se do pathos dramatico que nasceu corn a moderni dade. A despedida equivale naruralmente a dernissao de urn certa ideia (moderna) de teatro. Pot isso não ocorre sern o larnento do Espectador; no texto, e ele que frequenternente verbaliza os sinais da passagem de geracOes, vista do lado de dentro do teatro. 0 ames e o depois deste teatro ficarn bern patentes na seguinte intervenção, onde a duvida sobre o alcance da voz das personagens faz supor que ao <<falar> antigo apenas pode suceder a <dingua” ruidosa de urna conversação interrninavel (e inütil): — —, 22 A resisténcia de parte da critica relativamente ao Teatro da Garagem passa tambem pela questão especIfica da encenação. 0 programa do grupo insiste na criação de territórios cénicos e, efectivamente, estes conferiram certas semelhanças de famulia as peças do ciclo Pentateuco. Contudo, ate nas suas mais recentes cria çOes (Saga Press, 999), ha opcôes de encenação que se revelam frageis, apesar das virtudes no manuseamento do material sonoro: a insistência em estratégias de abjeccao parece mais uma cedencia facil a plateia (contradizendo os fundamentos territoriais do ml “espIrito da Garagem’). Verificamos nalguns trabaihos uma sobre-ocupaçao objectual da cena, com um nümero excessivo de materiais, mas também uma escoiha apressada de figurinos. Ha toda uma inflaçao gestual nas encenaçöes de Carlos J. Pessoa. FERNANDO MATOS OLIVEIRA 94 Passamos bons mornentos juntos, embora o teatro ja c<Espectador não seja o que era; ou se caihar fiji cu que tnudei e entretanro, algurna coisa ficou para isis, irremediavel... corno se quiséssemos explicar, con vencer que ternos a soluçao... e que, por isso, falassemos, falassemos, con vencidos de que falar adianta... não vos reconheço, e terrivel... sinto-me a falar a Lingua errada, sinto-me urn estranho.>> (idem:1 14) — Terapia de grupo 0 dialogo não conduz as personagens de Desertos a urn pro gresso cornunicativo. Ao inverso, a rnultipiicaçao das vozes instala no deserto o ruldo de uma conversação que nao anuncia oasis algum. Pese a vontade de Carlos Magno, segundo o qual o objeccivo da reunião seria <<construir uma nova Europa”, a conversação parece alirnentar-se do sirnples facto de a cena não poder persistir eterna rnente num vazio verbal, apenas preenchido pelo silêncio. As pro prias personagens sustentam esta interpretaçäo, quando usam expressOes corno ufalern da Europa)) ou <<digam coisas”, por exemplo. Nestes casos, o b1a-b1ao quotidiano, sendo a causa irnediata do que alguérn chama <<terapia de grupw (idem:1O1), invade a cabeça das mesmas personagens que supostarnente nos deveriam garantir aquele vestIgio didáctico que prornetem. Nas palavras do Senhor K, ate esta didactica surge marcada pelo fantasma da oredundância” e da <<repetiçaon: <<Senhor K. Esca foi a hiscoria sen principio, meio ou fim, de urna epopela pessimism, mas muito optimism, a que charnamos evento didác tico C..) Segue-se urn poema gratis que procura sintetizar a parabola subentendida no evento didactico. Todos os dias nos perguntarnos se o poerna gritis não sen redundante; todos os dias conciulmos que sin... (...) No entanro, interessa-nos a repetiçäo, a redundância, o deserto instalou nos nossos coraçôes o sentido poético da monotonia...>’ (idem:147) — Avaliada pelo catalogo extenso das caregorias drarnaticas, Desenos instala-se nos arredores da indiferenciaçao pOs-moderna TEATRALIDADES 95 que vem caracterizando parte significativa da textualidade dramatica das ultimas decadas. A (des)esrruturaçao genológica de Desertos leva a personagem da Detractora a hesitar, na hora de classificar o jogo em que participa, num claro indicio de que, a luz da tradiçao tex tual, este é em parte coisa inclassifIcavel: Isto e uma farsa, uma farsa! Nao, uma comedia... Nao uma tragicomédia>> (idem:1 01). Drama sem estória, Desertos é tambem a versão conversacional do tearro ou a dramaticidade possIvel. As próprias personagens não chegam a possuir densidade sufi ciente para se distinguirem pela acção. Na perspectiva da fenome nologia teatral, urna personagem dramática define-4e em palco enquanto portadora de urna voz e de uma identidade, cumpridas na acção pot ela protagonizada. Em Desertos, a sintaxe correlativa entre nome-identidade-acçao claudica neste porno. 0 nome que o dra rnarurgo pretensamente ihes atribui e urn alibi da escrita. A celebri dade e a simbolica que cada uma veicula no contexto da cultura europeia é parte importante da recórica do texto. Em vez de as apre senrar como figuras hurnanas individualizadas, o autor joga corn a memória que delas rernos. 0 nome è alibi, porque esta apenas pelos valores que o senso comum ihes atribui. Por isso elas não têm que se definir enquanto personagens. A memória do espectador reconhece as e, fazendo-o, confere ao dramaturgo a liberdade de que necessita para as usar como joguetes de uma ((didacrica,, pos-histOrica. Atra yes delas despede-se o passado europeu da ciéncia, da aventura, do misticismo, da coragem. Na sintaxe aurora!, o abrandamento actancial das personagens reproduz a paralisia da Europa em Elm de milenio. Assim, o que parece decisivo na auséncia de identidade e avançon é o modo como a aridez do deserto se projecta na visão da Europa: <<esta Europa museu a que pertence Portugal ruina” (idem:133). Talvez a meihor defmnicao de Desertos esteja na expressão que Joana d’Arc deixa no ar, em jeito de resposta a narureza do tempo que se vive: afruta da época”, nem rnais. E realmente de frura da época” que aqui se tram, ranto no que diz respeiro ao quadro que se desenha ao longo das 22 cenas, como a espécie de critica que a geraçäo do autor pode fazer a geracão do autor. Da Europa mitolOgica resca no texto 96 FERNANDO MATOS OLIVEIRA a mernória do estigma monstruoso. Essa bela Europa que Zeus rap tou intempestivamente, disfarçado de monstro, prenuncia no texto o que ha de maiefico na seduçao iiusoria de urn animal camaleónico. <A comunidade morreu>>, diz Madame Curie a certa altura (idem:131). No piano desta agonia cornunitária, a resposta de Deser tos aiinha ainda peia iogica minimalista da garagem rerirada. Tram se de urn espaço de trânsito e ocupaçäo ocasionais, ml como o que actualmenre caracteriza os usos do tearro. Estarnos tao longe do anfiteatro aberto do cidadao grego corno dos jogos de sociabiiidade nos grandes palcos oitocentistas. A garagem propôe urn espaço rnInimo para a grandeza passada da Europa. 0 desencontro de esca Las anda próximo do que se produz entre a amplificacao do especcá cub antigo na polis e o teatro como prática reconduzida as rnargens do social na actuaiidade. Corno a Europa, a cena assiste ao movi mento de urna coisa da qual faz parte: “Espectador — Tenho o privilégio de ser urn espectador do espectá e cub de ao mesmo tempo fazer pane dde; o rneu papel é tipicamente europeu, faço pane de uma coisa de que sou espectador (...) rnantenho me seguro no meu papel, é certo, mas apenas isso... hoje em dia a Europa joga urn ténis amavel, rendo por adversário a parede irredurivel da Hiscâ na.” (idem:89) 7 0 TEATRO COMO FESTIVAL Fesrivalitis No nórnero relativo aos meses de Setembro-Outubro de 1997, o periodico espanhoi Primer Acto, urna revista que conta ja perto de 300 nürneros, fazia o balanço editorial dos festivais de teatro, inter rogando-se sobre o seu sentido e oportunidade. De facto, a acumu laçao estival ou outonal de festivais tern-se tornado comum em diversos palses europeus. Entre mis, a ufesuva1itis, é igualrnente uma propriedade da anatomia ceatral da naçio, sendo ainda uma rnarca muito visivel do curso estratégico do teatro português no periodo posterior a 1974. 0 editor da Primer Acto acrescentava nessa curta nota que, sendo os rnotivos para urn festival rnuito variados, des ser viriarn ate para que alguns dos responsáveis pelas artes do palco pudessern gozar a ilusao de campanhas periodicas de boa consciên cia”. Ora, se as razOes para urn festival de teatro são tantas quantas as opiniôes, o que aqui temos é, pelo rnenos, urna opinião sobre a qual vale a pena reflectir. Vejamos, ja agora, o resurno da genealogia dos festivais que al se apresentava: cPestivais, festivais, corn personalidade e sern cia, integrados na vida da cidade ou tangenciais, protegidos ou menosprezados pelas administra çOes püblicas, rotineiros ou anirnados pelo desejo de oferecer espectáculos que alargam os horizontes do pubiico, limitados a actividade cénica ou corn prograrnas abertos ao debate e a reflexao, corn filosofia ou corn espi rito de agenda de espectacuios, corn o olhar posto no rnundo ou no censo dos éxitos internacionais, necessários ou ornamentais, para gloria do tea to ou dos seus patrocinadores...n 98 FERNANDO MATOS OLIVEIRA A afirmaçao levanta demasiadas questOes em sirnultaneo, mas tern a vantagem de nos introduzir a ambiguidade que caracteriza a logica do festival de teatro nas sociedades conternporâneas. A oca sião do festival aparece-nos hoje dividida entre a fIdelidade ao tea tral e a abertura a mediatizaço, entre a vivéncia cIvica da festa e a adiçao aburguesada da carteira cultural de cada urn, numa tensão que tern sido diversamente negociada pelos muitos festivais que so a Iberia leva a sua coma. Arenas Olhando a historia milenar do palco, a ocorréncia periódica dos festivals tern assumido formas muito diversas. Ames de mais, pelo seu carácter exernplar, ha dois festivais que poderao ilustrar modos fundadores de reiacionarnento corn o pdblico: o festival de teatro na Grécia Amiga e o decano dos festivais modernos, o Festi val de Avignon. Arnbos esciveram na origem de duas tradiçoes neste campo. o nümero de festivais na Grecia Amiga era muito elevado (cf. Pereira, 1979:286-3 1 1). Entre Os grandes festivais, os que honravam Dioniso detinham a primazia, quer pela sua magnitude, quer pela qualidade dos nomes que neles participaram. Nesse tempo, o festi val de teatro mantém corn o social uma relaçao estreita e intima mente ligada as práticas simbólicas de todo um povo. Para Francisco R. Adrados, autor que escreveu urn volume fundamental sobre este assunto, o tempo do festival grego é urn ((tempo fora do tempcm, urn perIodo durante o quai a hornern experimenta comunicar-se corn os Deuses (Adrados, 1975:255). Mas já nessa época o intemporal divino sofre o inflwco das leis humanas. A retórica forense de rnui tos dos textos que nos chegaram sugere que o agon competitivo exer cia o seu domInio sobre o espirito desses festivais. E conhecida a afirmaçio d’As Aver, segundo a qual as atenienses, ao contrário das cigarras, não passariam o ano ernpoleirados nas árvores, a cantar, mas empoleirados em processos. Ainda assim, sabemos que a saóde do teatro grego dependeu da existéncia dessa democracia partici 99 TEATRALIDADES pada (esquecarnos, por urna brevissima cegueira, os trabalhos C 05 dias dos escravos). Ora, os dados da Historia permitern que se esta beleça uma conexão entre os tenitórios forense e teatra], situando o teatro grego no âmago da democracia ateniense, nurna cornpetição eis urn con desinteressada que idealmenie visava apenas a honra ceito apto para muitas distinçoes. A relaçao do palco corn o publico dos festivais era estreita e inclula inómeras formas de comunicação extracénica, corno o recurso a parábase, frequente nas cornédias de Arisféfanes. N’Os Pdssaros, por exemplo, o coro arneaça a audiencia caso esta não ihe atribua o prirneiro prérnio. Peter Arnott investigou genericarnente a relaçao do püblico corn o palco e a sIntese a que chegou faz eco de uma série de indIcios presentes nos textos da época (cf. Arnort, 1989). Arnort insiste na delimitaçao territorial destes festivais, afir mando que eles eram €virtualrnenre acontecimentos fechadoso, em pane, devido a geografia introversiva da nação e da sociedade gregas. A época, recorde-se, a viagem era mais coisa do espIrito: o exte rior era o bárbaro. A rerritorialidade que marca o festival de teatro na Grecia e urna caracteristica que, no seculo XX, verernos Avignon reactivar. 0 que em Arenas era ropografia sagrada seculariza-se par cialmente na sirnbolica dos lugares que o colectivo interiorizou ao longo dos 50 anos de Avignon. As contingências do festival ate niense acabarn, pois, pot ir definindo algurnas das qualidades histo ricas do evento. Corn efeiro, na Grécia temos já urn conjunro de princIpios basicos que definirao o futuro do festival de reatro: perle dicidade, terrirorialidade; cornpetiçao/confrontaçao. 0 efeito agregador produzido pelo festival é outro aspecro que neste perlodo fundador, sendo tarnbérn argurnento da caracteriza o sua iegitimacao póbiica. 0 festival partiiha corn a festa o impeto gre gário que une a tribo no lugar da comunidade. Neste estrito piano, não ha diferenças significativas entre as Grandes Panateneias, os Jogos OlImpicos e os Festivals Dionislacos. A grande vantagem dos fesrivais dramaticos estava precisamente no suplernento argurnenta rivo que a retórica textual ihes conferia, contrariarnenre ao ‘fisica iismo’ dos jogos, por rnais rnerirórios que fossern os seus propósitos. No entanto, é signifIcativo que o teatro nos surja corno urna entre — 100 FERNANDO MATOS OLIVEIRA as várias actividades desenvolvidas nas celebraçoes helenicas. Além dessa diversidade transrnigrar para o próprio conceito de festival, ele mesmo decorria (e isso e importante) no contexto mais lair das fes tas cIvicas. Em Atenas, o festival era urn meio e urn urn, pedagogia e cartarse. Tal sintonia entre a plateia e o cidadao dificilmente voltaria a repetir-se. As afinidades entre o teatral e o civico corneçavarn nos condicionalismos espaciais do anuiteatro grego. A arena do teatro rnrnetiza realmente a arena poiltica, já que a cena representa uma das quatro tipologias assumidas pelo espaco póblico grego, ao quai sc juntavarn o debate’, o <‘riwal>> e os jogos>> (cf. Redfeld, 1990:322). 0 pdblico/comunidade partllha o acontecimento exibido no anfi teatro enquanto dialoga corn as determinaçoes da polis. A assistén cia do festival grego é ünica na sua constituição, porque a cena era sua pot delegaçao coral. 0 coro actua como <metáfora encenada da comunidaden (cf. Longo, 1990). Esta conjuntura singular morreu corn a sociedade grega, O5 os desfiles medievais derivam ja para a exibiçao sensualisca da narrativa biblica. A origern do reatro grego tern sido associada a migracão urbana de ritos dramaticos de âmbito rural. Estes rituais primitivos nasce ram em contextos estritamente cornunitários e, corn o tempo, ter se-ão deslocado para a cidade que então se consolidava. A medida que a sociedade grega se urbaniza e se estratifica, os festivais que mais tarde acoihem os nomes dos grandes drarnaturgos acabarn por se assumir como rnomentos ünicos da concertação catártica. Lida por este prisma, a Poetica de Aristóteles é de facto urn livro sobre a tragedia e os mecanismos da identificaçao. Por rnuito que isso custe aos adeptos rnais ortodoxos do teatro épico, o fascInio dos festivals atenienses não pedia a cabeça aos cidadaos: a sua razio era a razâo dos espectáculos e a fabula do palco era urna fabula sobre a vida. Avignon Urn amplo arco temporal liga as representaçöes de Tespis, yen cedor da competicao inaugural de poetas trágicos, ao magno TEATPALIDADES 101 tro do teatro que a partir de 1947 se foi instituindo no lugar de Avignon, em Franca. Sob a direcçao de Jean Vilar, o Festival de Avignon nasce corn o pós-guerra e inaugura nova época na historia deste género de eventos. Em vez do patronato civico da Grecia, a maioria dos festivais modernos nasceu sob a tutela de urna figura emblernatica. Avignon foi durante muitos anos sinénirno de Jean Vilar. Este facto näo surpreende, pois o festival moderno ocorre nurn tempo em que a autonomia do estético exige legitirnaçao acres cida, contrariarnente ao enraizarnento cIvico e mItico do modelo ateniense. Uma das grandes diferenças do festival moderno deriva deste desfasarnento conjuntural. A plateia deixa de coincidir com a polis. Pelo meio meteram-se questöes de gosto e distinçoes de toda a espé cie. Antes de Avignon set Avignon, o primeiro cartaz, ainda so corn o Palais des Papes em vista, anuncia sintornaticamente Une semaine d’Art en Avignon> (cf. David, 1997). Esta Arte anunciada pela letra do cartaz nao estava para os franceses corno as comédias de Aristofanes para os seus concidadaos. A nomeação manter-se-á corn esta forma entre 1947 e 1954, altura em que o habito e a ins titucionalizaçao do acontecimento dispensarn a redundancia. A par tir de 1957 passa-se simplesmente a fase do Festival d’Avignon. Como lembrava o editor de Primer Acto, os festivais thrn hoje cores e motivaçöes diversas. 0 próprio Festival de Avignon evoluiu da austeridade classica de Jean Vilar para a abertura ao contemporâ neo e a progressiva internacionalização, a partir de 1980, já sob a direcçao de Bernard Faivre d’Arcier. Mas a espécie de festival que por uns anos se viveu em Avignon é relativamente rninoritária na cidade contemporânea. Em 1947, a osemana de arte’> principiou duplamente apoiada numa estética e numa ética. Este compromisso, historicamente regressivo, resukara do idealisrno geracional prota gonizado pelos sobreviventes da Segunda Guerra. As palavras de J. Vilar são elucidativas quanto a pertinéncia deste fi.indarnento hurna nista na origem do festival. A sua fundaçao traduzia o desejo de remodeIar uma fraternidade nacional>> e ainda o desejo de <procu rar urn publico unido>> (ickm:75). Tais afirmaçoes pressupOern urna crença schilleriana nas virtudes cIvicas do estético. No caso, estas 102 FERNANDO MATOS OLIVEIRA serão acompanhadas pela busca utópica e ecurnénica de urn teatro que fosse a uma so voz popular, nacional e universal. 0 R. Rolland do ensaio Le tbedtre dupeuple (1903) é assirn recuperado por j. Vilar urn gesto reconhecivel noutros projectos teatrais, e R. Planchon como a Freic Vo/ksbuhne (Bedim) ou o Volkitheater (Viena). Nurna carta dirigida aos espectadores, em 1951, Vilar chega a confessar que os pretendia receber a todos na qualidade de ((participantes)) (idem66). E Obvia a herança Amiga destas palavras, assim corno vInculo utOpico que as sustenta. Ao escrever sobre Avignon dos anos 50, Georges Banu deixava escapar a sensação vivida ao entrar na cidade: “on se prend pour un Grec” (idem:22). Jorge Silva Melo descreveu com enorrne engenho cinernatográ fico a épica cIvica que levou Jean ‘S/lIar a amplificaçao festiva da refe rida Jraternidade nacionalo. Na narração do autor português, este desejo surge naturalmente corno corolario da fase em que o ceatro sintonizou corn os c1ássicos universais’>, após a supressão da barba ne hitleriana. Vale a pena char o excerro em causa: — e o bern. 0 paico, teatro pico pedagOgico do iceberg cultural o insrrumenro de darificaço do passado. A irnagern cénica destes anos e espantosamerite iluimnadora: a rotunda ha-dc ser branca, o ciclorama branco, a luz hi-de ser clara, a rnarcaçäo ha-dc ser a definiçao das oposiçôes dramaticas. 0 teatro pode set a italiana, mas a pouco e pouco a platcia hie rarquizada em ferradura cede o lugar a bancada ‘simplesmente democratica’. Porque o teatro faz bern: a safda do espectaculo o espectador, que ja entrou num acm de cIvica bondade, sal melhor: mais culto, mais bondoso, rnais atento ao mundo, mais clarividente, mais dono do sen prOprio patrirnOnio. foi urn passo de grande Festa Popular Daqui a ideia de Festa — — — — dado logo quase por Jean Vilar no encantat6rio lugar do Palicio dos Papas de Avignon [...] Esre o desejo de todo urn generoso, amplo movirnento de pessoas que encontrou no espantoso e ünico quadro do ensino laico frances [...] o campo fertil onde cirnentar este desejo novo,> (Melo, 1998:299) Esre rernpo de urn teatro para todos os hornens de boa von tade ha-de ser passado em 1968. A possibilidade didactica do “con- TEATRALIDADES 103 vIvio corn a História’>, ja porque o conforto material das decadas seguintes eternizou o gozo do presente, desvaneceu-se como coisa distante. 0 Festival de Avignon cresceu; os dez rnil espectadores dos primeiros anos são hoje várias centenas de milhar. 0 processo de institucionalização pesou e fez nascer espaços e estéticas alternativas sabre a paisagern unifIcada dos primeiros anos. Ultirnarnente, o denominado in, se e certo que ainda não chegou a pacatez burguesa de Salzburg, abriu espaco para o off Depois de 1971, es:e era já urn festival diferente, em lugares e linguagens alternativos. Urn tern o seu centro simbolico no Palais des Papes, outro na Place de l’Hor loge. 0 primeiro tenta a renovação corn base no talento dos grandes nornes, corno fez P. Brook, ao colocar Mahdbhdrata (1985) em plena Carrière, em Boulbon; o segundo pratica o que Georges Banu chamou a Mguerrilha espacial>>, procurando abrigos (mais do que edificios) nas ruas, nas praças e nos becos rnais reconditos da cidade. A co-habitaçao dos teatros de Avignon decorre a sombra agre gadora da muralha. Apesar das rnudanças, a natureza da agitação que ciclicarnente assalta a povoação mantérn uns ares de farnIlia corn urna repdblica italiana do Renascirnento. 0 que distingue a reali dade do festival em Avignon, contrariamente aos festivais realizados ern centros urbanos de major dirnensao, é essa mobilizaçao da urbe. A escala reduzida confere-Ihe urna orgânica rnuito tipica dos festi vais de provincia (que não provincianos). E a cidade que recolhe al mornentaneamente a escala da vila. 0 rnesrno sucede com a Fira de Tarraga, na Catalunha, tambern no perlodo estival, embora virada para as linguagens rnarginais e para o teatro de rua. A pequena loca lidade, a urna escassa centena de quilornetros de Barcelona, acolhe quase exclusivarnente o teatro nao convencional. Corn mais de vinte ediçoes no activo, Tarraga ja passou as 400 representaçöes e os 125 mu visitantes. Tal coma Vular se deslocava a Avignon em busca daquilo que Paris não podia oferecer, tambem os espectadores de Barcelona se deslocarn a Tarraga, para cornungarem de uma festa que o brilho dos reatros das Rarnblas não ihes da. 0 próprio território tem em Avignon urna delimitacao fIsica na muralha circundante. A fronteira de pedra cria um interior e um exterior a comunidade central. Aliado a escala rnodesta do povoado, 104 FERNANDO MATOS OLIVEIRA esse corte sirnbolico contribuiu para que Avignon se entronasse na mitologia do teatro moderno. 0 próprio ritual do espectador adquire urn sentido circular e processional. A visita aos lugares é sucessiva e obriga-o a abandonar os sItios do quotidiano, para se des locar ao lugar possessivo do festival. Do porno de vista dos produ tores e dos criadores, o festival não deixa de ser uma ocasião ánica para viver corn benevolência a face societária do mundo do teatro. 0 pdblico do festival ultrapassa em nómero o trabalho anual de uma grande cornpanhia regular. A linhagern de Avignon tern vindo a softer sérias transfigura çôes nos ternpos mais recentes. Os protocolos que regern a cena con ternporânea estão para além da ética e da estética que levou Vilar a <Sernana de Arte” de 1947. 0 hurnanisrno dos ternpos da fundaçao ter-se-á quebrado definitivamente ern 1968 e a ernergéncia posterior dos espectaculos offconsagrou no terreno as divisöes da cornunidade ünica de 47. A expulsio simbólica do Living Theatre é para o mesmo J. Silva Melo o sinaI da morte irreversIvel de uma ideia de teatro, rnelhor ainda, o sinai da substituiçao irninente do teatro-arte pelo teatro-festa, o antepassado directo do nosso teatro-festival: Podemos situar nesse ano a morte dessa ideia boa de urn teatro para toda a sociedade, interclassista, inter-etário, ultrapassando os tempos e apelando a boa vontade individual e colectiva. Mas podemos também per ceber que foi nesse mesmo ano, nessa sübita alteraçao dos espectadores que corneçou a morrer a própria e simples ideia de teatro: e a impor-se a ideia de ‘festival’, a ganhar a irnagem da rnaratona cultural e a morrer a da prática artIstica. Contestando o Festival de Avignon, será o seu próprio formato o que vamos ver repetir-se incessanremente de Edimburgo a Cadis, de Barcelona a Bona. A criaçäo, näo de uma prática teatral, mas de urn trajecto (cultural) de acontecimentos dnicos e irrepetIveis> (Melo, op. cit.:301) A profissionalizaçao e a mediatizaçao da esfera cultural, aliada a polIticas publicas de subsIdio que privilegiarn critérios quantitati vos, fizeram do festival urn evento que näo se cornpadece corn lógi cas artIsticas, quase sernpre ruinosas. A globalizacao turIstica das TEATRALIDADES 105 <‘maratonas culturais>’ trouxe consigo a publicitaçao e a cornerciali zação da cultura, logo, tambem a especializaçao e a internacionali zação dos festivals de teatro. Corno é natural, a torrente rnediatica também passou pelas pontes de Avignon. A questão e complexa e resta saber se nurn tempo como o nosso é sequer possivel (e em que condicoes) conceber para o póblico urn teatro-arte scm indemniza ção festiva. Portugal Ernie as experiências episodicas do Antonio Ferro na sua fase modernista e os encontros folclorico-amadores que o mesmo viria a patrocinar, ernie a Primeira Repdblica e o Estado Novo, o festival de teatro, no sentido em que aqui venho usando o termo, não teve entre nOs urn passado glorioso. Aquilo que havia para celebrar pouco importou ao curso do teatro português, pelo menos aquele que fez alguma diferença. Por culpa das restriçôes politicas, o regime preferia tolerar aglomeracoes apenas aos domingos. 0 efernero Fes tival Internacional de Lisboa não foi por essas decadas suficiente para marcar terreno ou criar habitos. Por todas as razöes, o festival de teatro surge na paisagem por tuguesa corno urn facto posterior a 1974. São duas as condiçoes rnInimas para a realizaçao de urn festival que por essa altura se tor nam viaveis, embora a ritrnos diversos: a liberdade de expressão e o orçarnento. E obvio que estes pressuposros basicos são, pot si sO, recorde-se que insuficientes para urn festival sério e consequente a aprendizagem da programação cultural foi tardia ernie nOs, rnesrno na fase dernocratica. Se a liberdade necessária ao trânsito nacional e internacional de grupos e repertórios veio logo corn Abril, o orçamento chegou verdadeiramente nos anos noventa, quando os apoios a irea da cultura, disponibilizados por instituiçoes locais e nacionais, se reforçarn rnutuarnente. A conjuntura econó mica e social dos anos noventa favoreceu claramente o estilo <mara tona cultural>’, legitirnando-a corn a sua participacão em eventos culturais de grande escala, corno a Expo de Sevilha (1992), Lisboa 106 FERNANDO vt4TOS OLIVEIRA Capital Europeia da Cultura (1994) ou a Expo 98. Nestes casos, a generosidade dos orçamentos foi tambern uma resposta do pals ao aurnento da concorrência internacional no ambito das polIticas da identidade, urna area de negOcios que confinava directamente corn o turismo, a mais poderosa indüstria nacional. 0 aproveitamento politico da espectacularizacao da cultura explica a presenca recorrente do festival nos recentes jogos de afir mação local e regional. A sua multiplicacao neste contexto prova all— nal que a competitividade pub(icitária do festival de teatro (em major grau, a do festival de cinema) tern urna relaçao cusro-benefi cio satisFatoria. Ha uns anos aconteceu algo semeihante em Espanha e Moises P Coterillo afirmava no El Pub/icc que a razão Ilindamen tal para essa proliferacao se devia precisamente a tencação do lucro imediaro. Corno <<assunto de escaparate e de prestigio”, o festival leva a marca do patrocinador as primeiras páginas, criando a ilusao de trabalho feito, para gáudio de autarquias e oligarquias (cf. Cote rub, 1986:3). A inulaçao sirnulada do cultural despreza o facto de a melhor via para o desenvolvirnento do teatro consistir no apoio sus tentado. A verdade é pie hoje continua a ser mais fácil convencer uma autarquia a financiar urn qualquer festival do que a subsidiar urn grupo corn continuidade minima. o processo de decisan orçamental na area da cultura deveria, pois, considerar previamente algumas opçöes fundarnentais. Have na que discutir a legitimidade do dispéndio de fundos püblicos con sideraveis neste género de festivais, sew que antes se invista na regu larizaçao da vida teatral do pals, tao deficitania em matéria de descentralizaçao e de equiparnento. Cu haverá na multiplicaçao e na rnediatizaçao de festivais algo de inexoravel quanto a relaçao do teano corn o social contemporâneo? A resposta a estas interrogaçöes não é univoca, ja que urna parte dos festivais tern surgido como extensäo das actividades de certos grupos convencionados. Contra riarnente, areas mais pobres e menos visiveis, como as da ediçao de textos dramaticos on peniodicos da especialidade, não tern merecido a mesma atenção. Sem pretender pôr em causa a intenção da gene ralidade dos seus promotores, o tipo de festival nascido de urn grupo e naturalmente parte da sua afirrnaçao estratégica perante a regiio Q7 TEATRALIDADES que o acoihe ou perante a instituição fInanciadora que o sustenta. 0 recente Fest-Eixo Festival tie Teatro do Eixo Atldntico, organizado pelo Teatro do Noroeste, em Viana do Castelo, rev.cla os seus pro pósitos regionalistas e afirmativos na nomeação adoptada. 0 pro grarna marca o terreno vital corn urna forte componente portuguesa e galega. Este tipo de eventos tende a procurar urn compromisso (improvavel) entre o Festival de Avignon nas suas origens e o impeto maratonista que o caracterizou nas óltirnas decadas. A época da reprodutibilidade do festival manifesta-se de mo meras formas na paisagem portuguesa. Ternos festivais alternativos, a cruzar a linguagem do teatro, do video e do cinema, como o Fes Associação Teatral e pelo grupo tival X, organizado pelo Olho VisOes Uteis. Ha festivais destinados a pOblicos especlilcos, corno o Percursos, do Centro de Pedagogia e Anirnaçao, integrado no Cen tro Cultural de Belém. Este visa urn pOblico jovem, tal como o Fes tival International tie Marionetas, no Porto, dinamizado por Isabel dos Santos Costa. Existem festivais temáticos, corno o Festival Inter national de Teatro Cdmico da Maia, fundado pelo Teatro Art’Ima gem, a partir de 1995. Temos ainda os festivais da interioridade, em lugares como a Guarda, pela mao de Arnérico Rodrigues, em Ton dela (FINTA-Festival International tie Teatro Acert, organizado pelo Trigo Limpo) ou o Festival Altitudes, organizado pelo Teatro Regio nal da Serra de Montemuro. Este Oltimo nasceu de urna estrutura com certa tradiçao itinerante, em concelhos afastados dos grandes jornais nacionais, como S. Joao da Pesqueira e Castro Daire. Mais perto da capital, as oito ediçoes dos Encontros tie Teatro do Seixal cumprern idêntica funcao: trazer as comunidades locais o teatro que se faz no resto do pals e insinuar a descentralizaçao a custa da capa cidade dos festivals para gerarem dispersao orçamental. Corn urn passado que rernonta as origens do charnado teatro independente, o próprio teatro universitário não deixou de pontualmente criar os seus festivais. A Semana International de Teatro Universita’rio foi durante anos urn projecto do TEUC (Teatro dos Estudantes da Uni versidade de Coirnbra). Urn nOrnero crescente de festivais vern sendo patrocinado por entidades corn responsabilidades na area do mecenato cultural. — — FERJANDO MATOS OUVEIRA 108 o Festival Extremos do Mundo pretendeu afirmar-se como o festival da cidade de Lisboa. Existem ainda encontros corn claros intuitos Fazer a Festa, formativos, corno o Festival Internacional tie Teatro organizado pelo Teatro Art’Imagern, no Porto. 0 Festival Sete .SOis e Sete Luas. por seu lado, apostou em geografias rnáltiplas, num regime de co-produçao que desde o inicio pretendeu cruzar culturas e experiências da area italo-iberica, corn abertura eventual aos paises africanos de lingua ofIcial portuguesa. Notavel iniciativa lançada por Marco Abbondanza e Renzo Barsotti, a partir do Alentejo recém descoberto, a aventura deste festival colocou questOes muito perti nentes quanto as possibilidades do teatro na periferia. Desde a meira ediçao, em 1993, os promotores partiram da forte 4igacao territoriab, estabelecida corn dois lugares fundadores: Pontedera (lralia) e Montemor-o-Novo (Portugal). A leitura do volume corn o balanço de sete anos da experiência (1993-1999) constitui urn repto a sobreylvencia cia diversidade cultural e teatral no ambiente hostil da norrna1izaço europeia (cf. Sacco, 2000). o conjunto dos festivals abarca iniciativas rnunicipalizadas, corno o Festival tie Gil Vicente, em Guirnarães, ou a Festival eta Pri mavera, em Viseu; e ainda festivais de dirnensao internacional, resul tantes de acçöes devidarnente programadas, corno a que Joaquim Benite estabeleceu a partir do Festival tie Alrnada. Este festival está integrado num projecto teatral mais vasto, corn base na Companhia de Teatro de Airnada, onde se patrocina a ediçao suplementar de urna revista. A resisténcia deste festival a rnercantilizacao pura das artes do espectáculo rnotivou urn apoio sustentado por parte do IPAE. 0 evento tern sabido renovar-se e atrair grupos de reconhe cido rnérito, alem de rnanter uma acção pedagogica através de semi nários e colóquios. A falta de espacos em Alrnada tern beneficiado Lisboa; o Teatro da Trindade recebeu algurnas das produçoes vindas da outra rnargem. o FlTEl Festival International tie Expressdo Ibdrica está entre os decanos do moderno festival de teatto. Corn residência no Porto, a irregularidade de algurnas ediçoes não deve obscurecer o trabaiho e a persisténcia de urn projecto que ernie nós inaugurou a agenda multicultural. Nas ü!timas ediçoes, o FITEI tern-se redimensio — — 109 TEATRALIDADES nado, mediante a reduçao de espectaculos e elevaçao da qualidade media dos participantes. Houve anos em que o FITEIfoi a montra anzológica dos espaços culturais que se propôs representar. E já urn dos poucos festivals que ten idade para ter urn póblico, como acon Festivl tie Montenwr tece com o de Aimada ou corn o Citemor -o- Veiho. 0 Citemor é talvez o que rernos fisicamente mais próximo de Avignon, ate pela sua longevidade (começou em 1974 e vai na XXIII ediçao). Trata-se de urn festival que tern lugar nurna pequena povoação, cujo castelo murado proporciona urn clima humano sin gular. 0 castelo será o nosso Palais des Papes, embora mais étnico (está sujeito aos mosquitos do Baixo Mondego). No Verao, o cue mor disputa com as praias da zona da Figueira da Foz um püblico que tem conseguido tIdelizar, cal como vern fazendo corn algumas companhias nacionais ou internacionais. Nas ültimas ediçoes temos visio criaçOes do Teatro da Garagem, de Lócia Sigalho, dos Artistas Unidos e de La Carnicerla Teatro, corn o qual Rodrigo Garcia nos deu a conhecer uma estimulante História tie Ronald, o Palhaço do Mc Donalds, em 2002. 0 contexto da muraiha perrnite activar um comunitarismo residual que proporcionou ja momentos ánicos como o desfile d’ Os Bichos, adaptacao do texto de Torga, pelo Bando. Os condicionalismos do castelo tern levado o Citemor para fora do cIrculo de pedra, explorando alternativas espaciais. Este e urn movimento que a devida escala Avignon tambem viveu. Seja pelas leis da óptica ou pelas necessidades técnicas, grande parte do teatro moderno não é companvel com espaços abertos, sobretudo quando despidos de próteses espectaculares e de conforto para o Festival tie Cultura na pablico. A excepçäo será talvez o Frestas Rua, replica portuense do Streets Abeach realizado em Manchester. A casa do teatro sofre aqui amplificaçao maxima e a rua e literal mente assaltada pelo quotidiano irreal. o FONTI. Porto Natal Teatro Internacional nasceu no seio de urna estrurura corn peso crItico no meio teatral, beneficiando do dinamismo de Ricardo Pals e de urn impressionante catalogo de apoios institucionais (Ministério da Cultura; Teatro Nacional de São Joao, Camara Municipal do Porto e, na devida altura, a organi — — 110 FERNANDO MATOS OLIVEIRA zação Porto 2001). 0 sucesso irnediato do PONTI e o modo como conseguiu marcar o território portuense fazern-nos pensar seria mente no futuro das artes do teatro. A eficacia da proposta deve-se ao modo como se enfrentou o póblico corn as armas do mercado: aposta decisiva no nome de cartaz e marketing agressivo. 0 festival soube controlar o sucursalismo que pende sobre muitas das mega producOes estrangeiras, fatalmente destinadas a peregrinação inter nacional. Em 1999 conseguiu juntar nornes corn obras tao signifi cativos corno os de Bob Wilson e Peter Stein. Mas já foi possIvel perceber os riscos que comporta o ritrno de tal ernpresa. Veja-se a participação de Bob Wilson, ern 2001, autor que tern andado ern fase redundante. Nas voltas ao circo internacional, B. Wilson des curou os porrnenores da rnontagern do espectaculo, justarnente quando o seu ültimo teatro não sobrevive an fascInio arrnadilhado da técnica. Contudo, a qualidade dos participantes e a profIciencia rnediatica posta na divulgaco do festival, fizeram do PONTI urn tremendo sucesso de püblico. 0 PONTI partiu de uma escala dife rente dos outros festivais, corn a vantagem de urn suporte a altura do ünico Teatro Nacional que verdadeirarnenre tivernos nos óltirnos anos. 0 PONTI mantém apenas a periodicidade corno marca der radeira da mitologia amiga do festival ateniense. Vern a propósito lernbrar que ate a sazonalidade e hoje urn cri terio sern lugar ern cidades corno Londres, Nova Iorque ou Berlirn. A indüstria do turisrno fez destas cidades urn festival perrnanenre. 0 repertório consiste maioritariarnente em rnusicais, para urn publico que pode set japonês, arnericano ou português. Se Londres tern Cats Chicago, Berlim teve urn Shakespeare and Rock & RolL Quanto a Nova Iorque, a Broadway rnantérn o débito adequado a clientela do costume. Trata-se de teatro-espectaculo para a sociedade do espectá cub, tao universal quanto a World Music, feito a rnedida do gosto desse püblico inesgotável e afluente que habita a Aldeia Global. Que futuro nos reservarn, pois, o festival e o teatro? Nurna série intitulada Predictions, a editora Phoenix convidou diferentes perso nalidades a anteciparem o futuro das respectivas areas. Coube a Benedict Nightingale, urn crftico teatral experiente, reflectir sobre a luz da experiéncia inglesa e de uma os descinos do palco. Fe-b TEATRALIDADES 111 crença pessoal. 0 teatro possuiria algo que as dernais formas do espectaculo pos-rnoderno desprezam: fidelidade a urn radical dis cursivo e dialogico, traduzido nurn cornpromisso corn a textuali dade prévia (Nightingale, 1998). Nightingale sustenta que os espa ços do teatro do flituro serão progressivamente mais Intimos, rnais informais e rnais pequenos. Como e born de vet, estamos perante urn conjunro de prernoniçöes excessivarnente optimistas. Fosse o enunciado urna descriçao exacta da realidade, o campo do teatro estaria a salvo da caniba]izaçao pelo multimedia ou pelo realismo televisivo. Os póblicos tern crescido moderadamente, rnas não é certo que a generalizacao corrente do regime do festival e do teatro-espectá cub venha a sintonizar corn o frequentador dos espacos Intirnos. A rnultiplicacao dos festivais integra-se antes numa logica de acele ração informativa e de diversificaçao do gosto . Os festivais explo 23 ram, fmnalmente, as novas condiçoes e oportunidades facultadas por urna polItica cultural que nos anos noventa se reforçou como acção dirigida. Neste contexto, o festival permanece dividido entre a ampliflcacao da festa conternporânea e, na meihor das hipóteses, o marketing da boa consciência tearral, referido pelo editor da Primer Acto. 23 Nun estudo recente, Joao Teixeira Lopes referia-se a circularidade do publico que frequenta os eventos cuiturais da cidade do Porto e a co-existência de inümeras práticas e habitus culturais (ci Lopes, 2000). 8 A ARTE DAS IMITAcOEs A condiçao do actor Perdern-se no tempo as origens do preconceito social contra o teatro e, muito em particular, contra o actor de teatro. Tespis, essa personagem a quern a histOria do espectaculo atribuiu lugar prirno génito na famIlia dos actores, terá sofrido já a incompreensio de Solon, que o acusava de mentir ao representar a pessoa de outrem. As irnitaçöes do palco foram tambérn urn obstaculo ontologico para as utopias de Platao. Na cidade mais perfeita do que tudoo, pro posta pelo autor d’A Repáblica, a exclusão de toda a <<poesia de carác ter mimético’> inclula igualmente a recusa de urn lugar na polis para o ilusionismo perverso dos actores. Na verdade, estes não irnitariam mais do que a Ideia aparente e, nessa qualidade, apenas podiam aspi rar a produzir <mediocridades>> (603b). Anda por aqui urna atitude de reserva e negacão perante urn certo fantasrnatico associado aos actores, o qual alimentou seculos de preconceito e esconjuração. Entre a razão secular e a crença religiosa, a sobrevivéncia histó rica deste ostracisrno face ao actor e a arte teatral Ficaria a dever-se a rnotivos de toda a espécie. Herege, malfeitor, depravado ou crirni noso, o actor foi rernetido aos estados rnais severos da exclusao social. Na Antiguidade, na Idade Media, durante a Contra-reforma, nas alusöes mundanas em que o seculo XIX foi prOdigo ou ainda no atavisrno vigilante das ditaduras rnodernas, o actor so ocasional mente encontrou urn lugar pacificado no concerto das naçôes. E toda esta historia seria ainda mais negra se contada no feminino, apesar de neste ponto o palco levar vantagem na consagracão de 114 FERNANDO MATOS OIJVEJRA alguns imperativos dernocráticos. Em 1788, ao escrever sobre uns Romanos que representavam papéis femininos, J. Wolfgang Goethe ainda via no travestismo em palco urna dupla virória da arte sobre a natureza, uma afirmacao prodigiosa de técnica e despersonalizaçao. A benevoléncia do püblico anónirno e as muitas formas de patrocinio de que o teatro historicamente beneuIciou forarn quase sempre um tributo pago para satisfaçao hidica. Houve mornentos, contudo, em que o teatro perrnitiu instantes de auténtica celebraçao civica, e outros em que sintonizou corn urn largo espectro social. Entre a aceitaçäo e a reserva, o aplauso e a crItica, foram os actores de teatro quern rnais esperou para vet reconhecidos alguns direitos elementares de cidadania. Ainda hoje, a rnediatizaçao e a progressiva institucionalização das acrividades teatrais iludern o que continua a set urna proulssao sujeita aos acasos politicos do capital e a liberali dade casuIstica dos dernais agentes que directa ou indirectamente controlarn a economia intermitente do mundo das artes. o Paradoxo de Djderot Ora, nesta hisrória a prero e branco, o Paradoxo sobre a Actor ocupa urn lugar de relevo. 0 texto de Denis Diderot nasce num contexto especlilco e coma-se entre os mais polémicos escritos sobre as artes do espectáculo. A forma dialogada do ensaio, entre urn Pri meiro e urn Segundo interlocutores, segue a veiha tradiçao do dia logo filosofico, rnas o próprio mirnetismo da opção acaba pot vir encontro da questão central que ocupa os dois intervenientes: a de saber quais os atributos do born actor. Urn tal propósito levari o autor a questionar a natureza da representacão em teatro e a inter rogar-se tarnbem sobre os universais da re-presentação nas artes em geral. Talvez possarnos corneçar pot lembrar aqui um episOdio antigo, contado por Francesco Riccoboni, num Livro inritulado L’art du theatre (Paris, 1750). Diderot té-lo-a certamente lido, antes da redacçao do Paradoxo. 0 assunto e sério, pois versa urna morre ern cena. Consta que na Antiguidade, ao representar o papel de Ores tes. certo actor atingiu uma tai fória ern palco que rnatou literal- TEATRALIDADES 115 mente urn escravo que por acaso atravessava o estrado. Este infeliz sucesso serve a F Riccoboni para nos fazer algurnas perguntas perti nentes sobre as emoçöes em palco. Por que matou o actor precisa mente o escravo e não urn dos seus cornpanheiros de ofIcio na peça que estava a ser representada? Se a fória era verdadeira, absoluta, como pode ele escolher o escravo? A conclusao e obvia: a vida de urn escravo não tinha nesse ternpo mais valor do que qualquer urna das nossas modernas próteses dornesticas. Se isto é verdadeiro, como parece evidente, então a tese ernocionalista, longamente defendida corno a explicaçao correcta para o acto da interpretação teatral, não se confirrnaria integralrnente. La no fundo, o actor perrnaneceria acordado para o mundo extra-teatral. So esta consciência larvar con denou a rnorte o escravo irnprevidente e salvou a pele de urn outro actor. 0 texto de Diderot move-se neste terreno argurnentativo, mas fa-lo ainda no arnbito de urna acesa discussao que os filOsofos ilu ministas travararn a propOsito da pretensa utilidade do teatro na sociedade. A cena das Luzes apenas admitia duas rnodalidades de utilizaçao da maquinaria espectacular, fosse corn vista a rnorigeração dos costumes através do exercIcio da pedagogia cIvica ou a satisfaçao daquele impulso hidico que o born cidadao deveria canalizar corn a decencia possIvel. Ha, pois, que recordar brevernente os terrnos dessa discussao, lugar oride se inscrevem as posiçOes do Paradoxo. A polernica atinge proporcOes agigantadas quando d’Alernbert publica o artigo sobre a cidade de Genebra, no sétirno volume da Encyclopedie (1757). Alérn das observaçoes sobre a cidade e os seus habitos religiosos, d’Alernbert critica a proibicao oficial do teatro, a auséncia de uma companhia residente e a consequente interdiçao da urbe a presenca dos actores. Corn esta exclusao, segundo o autor, descurava-se um instrurnento de elevado potencial cIvico, mistifi cando as culpas que o prOprio rneio social tinha na saóde moral do rnundo do teatro. 0 artigo provoca urna reacção violenta em Jean Jacques Rousseau, na altura a viver na cidade. 0 preceptor de Emile via na acusação de d’Alernbert sobretudo o dedo perfido de Voltaire, mas veria tambem avolurnar-se corn ela o espectro dos divertirnen tos degradantes vindos de Paris. A resposta surge em 1758, sob a 116 FERNANDO MATOS OLIVEIRA forma de urna extensa Letzre a M. DAlemben sur son article Genève. Genebra aparece-nos al como urna reencarnação espartana e regres siva d’A Repüblica platónica. Os artistas quase so indiciam a cor rupcão e a luxüria a que o Discours sur It’s sciences et les artsjá os asso ciava. Favoravel a urna Esparta mitica e depurada, Rousseau marcha sern perdao contra a expansão daquele a!ivertissement que urn pouco depois Paris haveria de alirnentar ao ritmo do cancan. A bondade e a sinceridade naturais do hornern teriarn sido der rotadas pela dissimulaçao dos seculos que este leva de sociedade. Ora, para Rousseau, o teatro radicaliza precisamente a dissirnulaçao que corrói o ser social, devendo por isso set liminarrnente rejeitado. Os argurnentos antiteatrais em pouco diferern dos que, tins cern anos antes, outros autores tinharn aduzido, ou sequer dos que forarn adiantados por Platao e pela tradicao escolastica cristã. Contudo, ao reier toda esta tradiçao textual, o critico Jonas Barish distingue em Rousseau a presenca de uma retórica cuja eloquência seculariza a rejeição teologica, como jamais havia side feiw ace encão. Rousseau não se ocupa da afronta ao divino, mas da própria inutilidade do teatro para o homern comurn ou para o ser hurnano (Barish, 1985:260). Juntamente corn o seu ensaio De l’imitation thedtrale, a carta a d’Alernbert repôe na agenda intelectual o libelo contra as imitaçOes. Como divertimento, seria preferIvel adoptarmos a linha gem das fesras populates ou dos combates ernie gladiadores, pois o sangue seria nestes bern rnais verdadeiro. Por outro lado, Rousseau menoriza a capacidade pedagOgica do teatro em termos definitivos. As imaginaçOes do palco pouco poderiam perante os factos concre tes da vida de cada urn dos espectadores. Se as lagrirnas dos actores näo são reais, seria inaceitavel que os espectadores as deixassern cot rer perante eventos fantasistas. 0 texto de Rousseau suscitou forte reacção no mundo intelec tual da altura, rnerecendo resposta de figuras tao ilustres corno Marmontel, d’Alernbert e Dancourt, entre outros. Em 1769, o Paradoxo de Diderot responde em primeira instância a este debate ternpestivo. Historicamente, o sirnples facto de o actor ser o seu centro argurnentativo constitui novidade. 0 Paradoxo e urn dos primeiros rextos modernos a trabaihar para a dignifIcacao da arte TEATRALIDADES 117 do teatro e para a apreciação social do papel do actor. Neste a a institucionalização%que profissionalizaçao e a modernidade vinha aspecto, ele vem responder positivarnente, no carnpo das artes, prornovendo nos mais diferentes sectores da Europa de Setecentos. As actividades nascidas no tecido social corneçam a ter de encon trar urna nova relaçao corn o poder, agora que este se centraliza corn a ernergência do rnoderno Estado-Naçao. A legislaçao referente as actividades artIsticas corneça realrnente aqui, quando o universo da legalidade cIvica sucede ao ascendente religioso e ao preconceito obscurantista. Dos actores recrutados ciclicarnente entre os cida daos gregos ao sucesso singular do actor inglés Garrick, no ternpo de Diderot, vai a diferença entre o amadorisrno e os alvores da pro fissao, já sob a egide daquele vedetismo que os novos rnecanisrnos de publicitaçao permitiriam. Ainda assirn, nos interstIcios do Paradoxo, nota-se a ambigui dade do juizo autoral sobre a condiçao do actor. Veja-se a reserva nas palavras enunciadas pelo Prirneiro interlocutor, ao perguntar pelos rnotivos da escoiha de tal proflssao. A explicaçao é urn docurnento historico sobre a sociabilidade do actor: que podera leva-los a calçar socos ou coturnos? Urna educacao defeituosa, a miséria e a libertinagem. 0 teatro é urn recurso, nunca uma escoiha. Nunca ninguérn se fez actor por gosto da virtude, por desejo de ser ütil a sociedade e servir os pais e a farnilia, por nenhurn dos motivos honestos que poderiarn levar urn espIrito recto, urn coração quenre, uma airna sensivel a tao bela profissao.>> (Diderot, 1993:68) Este era o estado de coisas no presente do discurso. 0 que con vérn sublinhar no texto é a novidade da beleza>’ associada a ((profis são)> que despontava. A ideia do <teatro corno recurso, de urn tea tro corno suplernento da sopa dos pobres, era urna constatação natural nurna profissao que ha rnuito recrutava entre os rnarginali zados. Ern tais condiçoes, os actores jamais se livrariam dos vIcios de forrnaçao, pois se acaso o actor fosse pessoa de bern e honrada a sua profissão>, corno declara ainda o Prirneiro, talvez ate ele próprio tivesse escolhido de outro rnodo na sua juventude: 4overn, eu pro- FERNANDO MATOS OLIVEIRA 118 prio hesitava entre a Sorbonne e a Comedie. No Inverno, na mais rigorosa das estaçOes, Ia recitar em voz alta os papéis de Moliere e Corneille nos caminhos solitarios do jardirn do Luxemburgon (ia!em:69). 0 Paradoxo surge a par deste aprofundamento da consciência oficinal do actor e culmina toda uma literatura que então se multi plicava. Vejamos, em registo telegrafico, alguns factos que são a sua pré-historia. Luigi Riccoboni havia incluldo, nurn livro publicado em 1738, urn capIrulo intitulado <<Pensées sur Ia declamation>>. o sen fllho, o ja referido Francesco Riccoboni, antecipa algumas das teses desenvolvidas no Paracloxo, em L’art dii thédtre. Saint-Albine torna páblico urn extenso tratado sobre a arte do actor (Le comedien, 1749). De todos, a deriva internacional deste tiltimo leva-lo-ia as mãos de Dideror edt G. E. Lessing. Corn efeito, o original de Saint Albine e traduzido livremente para ingles, pot John Hill (The Actor, 1750), e de volta a lingua francesa, corn redobrada liberalidade, por acteurs angtais, 1769). Instado a AntOnio Sticorti (Garrick ou comentar este óltimo texto para a Correspondance littdraire, é corn ele que Diderot inicia a escrita do Paradoxo, que o ocupará pot . 24 quase uma decada, ate a ediçao definitiva, já no século seguinte Ha algo de novo em toda esta literatura: ye-se al que o pensamento do critico faz uso orientado da sua experiência de espectador e que parte da observaçao concreta do trabaiho do actor, não ja de urn quaiquer a priori moral. Clairon, Garrick ou Ekhof, para referir alguns notáveis, são actores que motivam direcrarnente os escritos de D. Diderot e de C. E. Lessing. o Paradoxo é ainda parte de urn exercicio mais geral de racio nalização do artIstico que ocorre por esta airura. Este discurso for jado pelos fiLosofos da Luzes levara em breve o norne de Estética e, 24 o prâprio Thderot dl conta desca licerarura no Paradoxo. Julga ce-la apro fundado: <Dc resto, o problema que tenho estado aprofundar foi outrora abor dado entre Rérnond de Sainte-Albine, urn literato medIocre, e Riccoboni, urn grande actor. 0 literato defendia a causa da sensibilidade, o actor defendia a minha causa. Eu ignorava este episodio que so recentemente me chegou ao conhe cimenro (idem:82). TEATRALIDADES 119 a custa de A. Baurngarten e I. Kant, a academia acolhera uma nova ciência da sensibilidade. A polernica em torno do rexto de Diderot parte precisarnente do radicalismo posto na racionalizaçao das erno çöes do actor. Torna-se nele uma posicão forte no que diz respeito ao debate entre as duas caracterizaçOes que historicarnente vinharn definindo o desempenho do actor. A ‘tese ernocional’ era urn facto do senso comurn. A identificaçao do actor corn a sua personagem tinha servido toda a pletora antiteatrai. A ‘tese racional’, por seu lado, irnplicava antes urn corte umbilical corn a rnistica identifica dora e a consequente ernancipação do actor pelo dominio da téc nica. Na prirneira tradiçao, o condicionarnento fisico é atingido pela rnirnese espiritual e elecriva. Na segunda, o corpo responde ao treino cienelfico dos seus musculos, sob o comando determinado do intelecto. Da parte dos actores havia urn interesse quase estratégico em sustentar o pathos rnirnético-ernocional, bern mais prestigiante aurático. Diderot ja previra a animosidade de ral dessacralizaçao, ao alertar para as resisténcias que o abandono de urn tao precioso segredo poderia gerar. A posse dele era a posse de urn conheci mento identitario. Dal a desconfiança e o choque que a leitura do Faraa’oxo suscitou em grandes nomes da certa, corno Sara Bernhardt. A explicacao que esta grande actriz dá para justifIcar a sua recusa em representar CorneiHe é sintornática de zal divergéncia, colocando-a, apesar do equiibrio das suas posiçöes, ao lado dos ernocionalistas. Aos seus olhos, Corneille tinha o defeito de ter passado o coraçäo das rnulheres do peito para a cabeça. Bernhardt preferia-o rnenos racional, mais sensivel, portanto. Vejarnos corno ela reivindica o ferninino: A razão C simples: a rneu ver, Corneille, o sublime Corneille, não sabe fazer falar a muiher. Nenhuma das suas herolnas (excepçio feita a Psyche) e na verdade urna muiher. Mo falam, perorarn; não tern çio no peito, rnas na cabeça. 0 seu arnor C subtil e complicado e, sobre rudo, egâtico.’> (Bernhardt, 1994:87) 120 FERNANDO MATOS OLIVEIRA A negacão da actriz é rnais urn facto do gosto do que uma rnanifescaçao fria e eficaz de profissionalisrno, como aconseiha . 25 Diderot Ser natural 0 Paradaxe, e nosso conternporâneo porque compreende a 61 psicologico irnportância de urn dornInio récnico do corpo. 0 per desenhado pelo Prirneiro interlocutor é clarissirno. Partindo do principio basico de que o actor anao é a personagern>>, diz-nos ainda que este deveria possuir penetracão e nenhuma sensibilidade”, alérn de cnterprerar por reflexão’>. Sern estar a ((mercê do diafragrna>’, corno 0 CStO aqueles que representam apenas corn 0 coração, rnesmo as [ágrirnas ihes “descem do cerebro’>. Este é urn verdadeiro heroi sern carácter, o quai deveria usar da experiência para aumnar o corpo corno convérn. A noçäo do actor corno <rnaravilhoso fanto che>’ antecipa a soberania artistica que o célebre texto de Heinrich Kleist viria a fundar algurnas decadas depois (Sobre o Teatro de Marionetas, 1810). Diderot avança aqui já para urna rnoderna bio tecnia do actor, capaz de o adaptar as exigéncias de qualquer papel. Legitima igualrnente as rnetodologias que rnais tarde se desenvolve rao na area da representaçäo, em escolas de actores cia Rássia e dos Estados Unidos. Representar e sobretudo urn aprendizado técnico que exige a mesma distanciaçao que Bertolt Brecht pedira a Helene Weigel e ao Berliner Ensemble. Corno técnica e autodorninio, o born actor consegue-se depois de urn trabaiho insistente nos ensaios, após urna Jonga experiéncia>>. A excepcionalidade do grande actor 25 Posse sempre assim opinativa, Sara Bernhardt näo teria por certo gozado favores de várias geraçöes, nem a album de fotografias que a dinastia Nadar ihe os Quando se refere ao papel da sensibilidade, não deixa de Se aproximar ofereccu. convenientemente de Diderot: A naruralidade no carece de urn verdadeiro poder do anista para eneriorizar a sua personaiidade. E preciso de algurn modo que Se esqueça de si rnesmo, que se desvbta das suas pràprias particularidades para re-vestir as do seu papel” (idem:70). TEATRALIDADES e uma consequência de tudo isco. 121 Quando o consegue, rivaliza corn o poeta: <Urn grande actor nâo é urn pianoforte, nern urna harpa, nern urn cia vicordio, nem urn violino, nern urn violoncelo; não ha nenhurna afinaçao que ihe seja própria; rnas adquire a afInaçao e o torn que convérn a sua partitura, e a todas sabe adaptar-se. Tenho urna elevada ideia do talento de urn grande actor: esse hornern é raro, tao raro e talvez rnaior do que o poen. (ident65) Mas não se julgue que a sensibilidade não tern lugar no actor proposto pot Diderot. Tern-no, corno o viria a ter no teatro brech tiano: <cE que ser sensIvel é urna coisa, e sentir é outra. A primeira é urna questão de airna, a outra urna questâo de discernirnentoo (idem:89). Admita-se que ha aqui rnais retórica do que paradoxo. Sendo importante na representaçâo, a sensibilidade não é contudo a (<base)> do carácter do actor. Dotado de boa rnernória, de cabeça fria e de urn belo corpo, o actor emerge corno urna poderosa rnáquina de irnitaçOes, apta para distinguir perfeitamente a sensibilidade “verdadeira e a representadan. So assirn o actor se assurniria corno o <<pregador laico>> dos tempos modernos e o teatro poderia aspirar a ser a <arrna cortanten do génio humano. Ha, finairnente, urn rnimetisrno aristotelico que sobrevive neste J’aradoxo. Repare-se que o realrnente paradoxal se centra tanto na ideia de um actor capaz de ser toda a gente e ninguérn ao mesmo tempo, como na arnbiguidade estatutária que caracteriza a reversibi lidade existente entre a voz do Primeiro interlocutor e a intromissão autoral. Lacoue-Labarthe já se referiu sagazrnente a esta enunciaçäo do paradoxo corno urn <paradoxo da enunciação” (Lacoue-Labar the, 1980:270). Ao posicionar o actor acirna das paixôes naturais, Diderot reinveste naquele aristotelismo que via a arte corno um suplernento das irnperfeicoes da natureza. A noção de <modelo ideal>> aparece no Paradoxo repetidas vezes, corno urna instância a que sO o artIstico tern acesso. Leia-se o seguinte: <Reflicta por urn rnornento naquilo que ern teatro se chama ser natu raL Será rnostrar as coisas corno säo na fiatureza? Dc forrna nenhuma. 122 FERNANDO MATOS OLIVEIRA Neste sentido, o natural apenas seria o vulgar. 0 que será, entäo o natural no palco? E a conformidade dos acres, dos discursos, da figura, da voz, do movirnento, do gesto, corn urn rnodelo ideal irnaginado pelo poeta e rnut tas vezes exagerado pelo actor.’ (idem:35) Set natural irnplica ainda, agora de urn modo rnais definitivo, certa historicidade estilIsrica. A convicção de ter feiro corn Fib natu ret urn drama entre a comedia e a tragedia, espécie de passagem paradigrnatica do ((coup du théatreo ao ((tableau),, juntamente corn os elogios a Richardson e a preferéncia pela sua dornesticidade bur guesa, são afinal marcas historicas de urn novo gdnero sdrio que viria accualizar estilisricamente o amigo preceito aristotélico da verosimi lhança. Set natural, na época do dialogo inscrito no Paradoxo, não era portanto o rnesrno que set natural na época do ve1hon Esquilo, segundo ((urn protocolo corn trés md anos’, quando a palavra era pomposan e o gesto exagerado (idem:33-34). A natureza apenas da ao actor maiores ou rnenores qualidades fIsicas. Tudo o resto e efeito do estudo e do treino. A ant reclama igualrnente a imaginacão e a natureza, ernbora esra ijltirna não asse gure por si so a felicidade das imitaçöes. Logo, o tearro define-se no Parazioxo corno o protétipo da irnitação artIstica, corno bern assina ). 0 teatro exibe rnaterialrnente as 4 lou Lacoue-Labarthe (op. cit.:27 evidéncias do suplernento mirnético que toda a grande arte apöe ao rnerarnente natural. Daqui vai urn passo a tópica desencadeada pelo aforismo de Novalis, segundo o qual nada seria mais verdadeiro do que o artIstico. Na verdade, anada se passa no palco corno na naru rezan, dji-nos a lerra de Dideror, que haveria de pot o norne de ((genio ao afortunado que tivesse esse dorn. Por consequéncia, o born actor não se refugia nos acasos da vontade, nern arrasta para a cena as lagrirnas que deveras sente. 0 actor a sério teria de ser sirn plesrnente genial, porque uaquzlo que a própria paixão não conse guiu, executa-o a paixao bern irnicada>’, acrescenta. A arte eleva-se acima da vida as imiraçôes da cena acima da prOpria natureza, o actor acima do homem cornurn. Sern irniraçöes, sern actores, sern uma casa para o teatro, a Genebra idealizada por Rousseau seria certarnente urna cidade mais TEATRALIDADES 123 pobre. Rousseau não acreditava que o teatro pudesse purgar a ma consciência da sociedade ou sequer reforçar 0 sentimento nacional, como afirmavarn os seus defensores. Aparenternente, a Historia deu razão a Diderot, porque a sociedade das naçöes que entao nascia pela Europa näo 56 trazia consigo a cidade dos actores, como ihes oferecia urn espaco póblico nobilitador. A instituição de urn edificio consagrado ao Teatro Nacional vinha secularizar os riruais identitá rios oferecidos pela religiosidade e pela aristocracia do Amigo Regirne. Paradoxal (ou sintomático?) e tambem o facto de 0 nosso Teatro Nacional ter sido desenhado por urn arquitecto estrangeiro. o ((agr:ao”, corno então charnavarn os criticos a obra que nascia corn os pés metidos na irnensa água do Tejo, cresceu tao lentarnente corno a <be1a profissaon entre os nossos actores, mais dados as arti culaçoes do diafragrna do que as abstracçoes da cabeça. 9 NO PRINCIPIO EPA 0 JOGO logo c cultura corn esta frase lapi <O jogo e mais amigo do que a cultura> dar se inicia Homo Ludens, urn conhecido ensaio de Johan Huizinga, publicado originairnente em 1938. A afirrnaçao suscita comentário, pois a escala das precedencias parece contradizer o adepto das rnui tas coisas que neste inIcio de milenio supomos parte do jogo. Hui zinga explica que a civilizaçao humana não ihe acrescentou nada de essencial. De certo rnodo, este seria ja absoluto nas brincadeiras dos anirnais na floresta, por três razöes complernentares: a) os bichos res peitarn a regra que deterrnina o rnirnetisrno inconsequente da den tada, b) gozam de urn prazer intenso, c) e rnovem-se por urna von tade que ultrapassa o puro instinto de conservação. E certo que Huizinga detecta nos jogos humanos urna rnaior complexidade do que na diversao dos anirnais, mas o facto de coincidirern nos seus aspectos nucleares obriga-nos a reconhecer no lódico a permanéncia de urn elo prirnário que, por isso mesrno, reenvia o jogo para urn espaco anterior as distinçoes culturais. Este jogo instintivo e cada vez rnais estranho ao rnundo pos-industrial. Ern 1938, o historiador holandés ja o distinguia clararnente da sisternatização e da disciplina dos seus contemporâneos, acentuando o espIrito agonIstico que se vivia nas vésperas da Segunda Guerra (cf. Huizinga, 1988:3 15). Nesta passagern para o terceiro milénio, o destino do jogo de futebol enfatiza de um rnodo singular a evoluçao geral do universo performativo. 0 futebol tem sido alvo de rnetaforizaçoes teatrais que o associarn a espectacularizacao da cultura conternporânea. No 126 FERNANDO MATOS OLIVEIRA da cena, esta deriva tern sustentado o sucesso póblico de iniciativas contIguas a visualidade do espectaculo. No case do futebol, o jogo de mais vasta expressâo em toda a histéria da huma piano estrito nidade, estaremos perante urn caso de transição do ludismo genuino de Huizinga para a cornercializaçao rnediatiiada do lazer. A sua os elementos pré e pos-culturais do jogo, e aferir o impeto transformador que cer ros facros da cuirura conternporânea podem rer seine os jogos. o futeboi parricipa num processo geral de produçao de ‘presenca’, segurarnente destinado a indernnizar desportivarnente as mediaçoes conremporâneas. Mas o aparato técnico que a produçao desta mesma ‘presença’ requer coma hoje muito ténue a linha que divide o jogo do comércio do jogo. No seu rnomento ideal, o ternpo absoluto do jogo distingue-se da temporalidade infindavei do histOrico. Esse devir autêntico con feriu-lhe uma <durée muiro própria (ia!em:29). 0 tempo branco do jogo aparece-nos despojado da moldura que rege o quotidiano. A parricipaçao Judica de cada sujeiro representou, por isso, urn acto de liberdade, a margem das obrigacoes vitais. Ao suspender o quo tidiano, o jogo congeia a referenciaiidade familiar e disponibiliza o jogador para a alucinação mimética: o jogador inteirarnente sedu zido tende a viver o tempo como constructo psico-cronologico. No contexto do furebol, é muito frequente, sobretudo nos instantes de grande investimento tensional, o adepto-jogador ser surpreendido peio firn abrupro do jogo. Mas é justamente por ter urn final que eie pode aspirar a ser urna totalidade acabada. A perfeicao auro-suficiente do jogo justifica a sua associação eventual ao campo da arte. 0 carácter gratuito faz deie um ente corn caracterjsticas kantianas. Nos rnomentos auténticos, essa ‘finalidade sern Am’ coincidiu corn a fruiçao desinteressada do estético. Em Huizinga, a ordern superior do jogo pode ainda uaspirar” a catego na do beio: deriva permite confrontar, nurn terriiorio especIfico, ‘<AS expressOes que podernos usar para designar os elementos do jego pertencern em grande pane a esfera do estético e rarnbém servern para isa duzirmos as irnpressôes de beleza: tensäo, equiifbrio, oscilaçao, alternan TEATRAL[DADES 127 cia, contraste, variaçio, Iigacao e desfecho, soLuçao. 0 jogo compromete e liberta. Ele absorve. Ele cativa, duo de outro modo, ne seduzj’ (id.em:30) Da raposa a bola o arbItrio da cultura, sendo responsavel pela restriçâo instintiva do jogo, foi contudo a instâricia que marcou decisivamente a posreri dade hidica do futebol. Em Jiomo Ludens, recorderno-lo, o autor pro punha-se tratar da funçao social do jogo e analisar a sua evoluçao nas sociedades hurnanas. Descreve-o com grande detaihe nas sociedades prirnirivas, para terminar com uma referência, notavelmente prerno nitória, as alteraçoes profundas que na época os jogos estavarn a sofrer. Escrevia pelo ano de 1938, demasiado próximo da usura a que o Nacional-Socialismo submeteu o território desportivo, já então niti dai-nente a carninho do desporto-espectaculo. o desporto moderno e, pois, uma criança de tenra idade. En quanto forma institucionalizada do jogo, o desporto nasceu corn a Re voluçao Industrial e o Estado-naçao. Por isso inicia a invasão do planeta a partir da Inglaterra. Ninguérn descreveu os mecanismos deste pro cesso de institucionalizaçao, a parrir do jogo de futebol, de urn modo tao convincente como Norbert Elias (cf. Elias, 1992). juntamente com O discipulo Eric Dunning, Elias eleva o jogo da bola a condiçao de objecto cientifico, abrindo-Ihe desde então as portas da academia. A origern inglesa do desporto é um facto da cultura geral. E tambern sabido que a sua generalizaçao corno habitus cultural se ficou a dever as profundas transformaçoes sociais ocorridas corn a industrializaçao. Mas a Inglaterra, um pouco antes de set o berço da inddstria, ja pelos idos do sec. XVIII, detinha uma estruturação do poder que terá facilitado o aparecirnento e a consolidaçao de passa tempos com as caracteristicas do desporto moderno. Estas activida des, praticadas pelas classes altas, teräo surgido corn a pacificacao progressiva da sociedade e corn o fin dos ciclos de violência . 26 - 26 martha, Instaurado o parlamentarismo, estando a democratizaçao funcionaI em ahriu-se espaço para uma “pequena nobreza autogovernada” a quem era 128 FERNANDO &L4TOS OLIVEIRA Livre-associaçao, pacificaçao, ligaçao permanence da cidade ao campo, autonomia econórnica; tudo se conjugou para que urna con frontaçao fIsica de tipo não-violento pudesse ser a medida exacta para a sublirnaçao da agressividade natural e da repressâo libidinal pedida pelo progresso da civilidade. Corn a constituição de clubes e associaçöes, a sociedade do lazer acentua a codificaçao dos jogos e aproxima-os do seu padrao sensIvel. 0 desporto estava agora em condiçOes de dar os prirneiros passos nas Ilbas Britânicas, ames de partir para a missäo redentora pelo mundo barbaro do Sul. N. Elias defende que a caça a raposa o antepassado directo do moderno Integrou-a no todo social e analisou a quali . desporto 27 dade das configuracOesn (relaçoes de interdependencia entre os individuos) que estiveram na base do processo de fixacao de regras aims as do futuro desporto. 0 sociologo sustenta que a definiçao das regras se efectua empiricamente corn a evoluçao da caça a raposa. Esta era apenas praricada por cavalheiros e foi-se especializando através de urn nürnero cada vez rnais elevado de restriçöes especifi cas (op. cit.:223-256). Anteriormente, o processo da caça visava uni camente o prazer fInal: marar e corner. Contudo, a morte da raposa sofre urna ‘criminalizaçao’ progressiva, a ponto de se tornar urn acto socialmente reprovavel. Em vez de se precipitar sobre a raposa, o cavaleiro passa então a expandir o momento de prazer pot todo o periodo da caçada. Nu.ma ilirirna fase, o cavaleiro delega a morte nos des; so estes poderao matar a raposa e, ainda assim, sO aquela que perseguiram em primeiro lugar. Elias conclui que se assistiu neste processo ao <des1ocarnento do prazer experirnentado em praticar a violência para o prazer de vet a violéncia cumprir-se> (idem:241). não permitida a iniciativa que o centralismo autocrático de paises como a Franca . n 65) (i& O permitia 6 27 polemica em torno dos especraculos tauromáquicos é passive! de 5cr inte grada no esquema sócio-genético proposto per Elias. 0 confute resulta de urn con fronto entre diversas modalidades de acuhuração. Esta dinâmica exp!ica a pressão via que o pensamenro ecolégico vem exercendo sobre a esfera legal. Dc facto, e per lde aciona Civiliz Processo o que e* .sensibi1idad ’ tie e uraçao cia a]teraçáo de config Elias se tern consagrado na lei (cE Elias, 1989). TEATRALIDADES 129 Tal facto constiruiria urn avanço civilizacional. pois traduziria urna reduçao no lirniar da sensibilidade. A caça a raposa revela urn conjunto de traços que o desporto preservaria: major autocontrole, urn codigo comportamental está vel, vigilancia e doscarnento crescentes da violência. Erarn valores integráveis nurna sociedade onde crescia a monopolizaçao da força, contrariarnente ao que Sc verificara ern manifestaçoes lOdicas prece dentes, corno no uso da bola na Inglaterra rnedieval. Deste modo, em fmnais do seculo XVIII, a caça a raposa aproxirna-se de exercIcio de prazer, motivado por uma confrontaçao rnirnética que oferecia uma escapatória de grande consumo libidinal, francamente aceitavel para a sociedade e para o ripo de consciência que o individuo moderno desenvolvia. Estarnos aqui num terreno vizinho ao da catarse aristotelica. a qual se poderia emender corno uma teoria das virtualidades psico-sociais do lazer, sendo a mirnese do palco solici tada pela polis, a bern da rnesma pacificaçao. 0 futebol-desporto que conhecemos e descendenre tardio da aristocracia. 0 flaturo garantido dos filhos-de-farnilia favoreceu a progresslo das actividades fIsicas nos prirneiros clubes dos colegios ingleses. E neste rneio que o futebol se desenvolve. A cornpetiçäo corneça por decorrer dentro de urn espIrito de fair-psay, a propriamente aristocrata do jogo. Playing fair ligava bern corn desinteresse posto no jogo e corn urn quadro de regras suficiente rnente equilibrado e flexIvel. As regras do futebol rnodcrno forarn se defrnindo por todo esse século XIX, celebrando corn sangue azul o ascendente sirnbolico e a lenra dernocratizaçao do jogo. 0 ritual do pontape-de-salda é praticarnente o mesrno desde essa altura, mas a fixaçao das regras nem sempre foi pacifica. A interdiçao da cane lada, por excrnplo, foi urn dos seus episódios rnais significativos. Em meados do século XIX, a discussao em torno do assunto pratica rnente originou a divisao ernie o futebol e o ragucbi a negocia polemizava-se das sempre regras cáo quc tocava a irnagern de mas culinidade que o futebol rnantinha desde o inIcio. — FERNANDO MATOS OLIVEIRA 130 Ethos amador A pressão administrativa sobre o futebol tornou intermitente o pacto do jogo corn a excepcionalidade do seu mornento constitu tivo. A historia do futebol moderno demonstra o carácter intermi tente do lódico, desde logo, pot no-jo apresentar topograficarnente condicionado ao estadio. Fora deste espaço de alucinaçao arregi mentada, o adepto vive urna realidade de trabalho e de sujeição. 0 estadio opera segundo o princIpio da transfiguracao do banal, ao rnodo do rnuseu de arte moderna. No seu interior predorninam as cores jdentjtirjas do clube. 0 estadio-catedral mantém urna derra deira vinculaçao tribal, ja que possui o poder extraordinario de 8l Nao é ocasiona 2 transforruar a mulcidan anónima em irmandade . al necessário conhecer cada membro da multidao, que é urn corpo ünico, para cornpartilhar as emoçöes do jogo. Somente na fória con tingente do estadio podemos abraçar sern risco excessivo urn desco nhecido. A soberania rnomentânea da ernoção dispensa a linguagern das apresentaçöes protocolares, pois no estadio é o grim que liga directamente ao idolo. No final, a rua restaura a dialogo nurn con texto de pertenca colecuva: 40] desporto, como o tempo, é urn assunto que o motorista de taxi pode discutir corn o passageiro nurn casaco de caxerniran, escrevia Janet Lever, uma socióloga americana convertida a rnagia do drible brasileiro (cf. Lever, sld). Peregrina-se ao estadio. 0 adepto conremporâneo lernbra-se disto a distancia. Se o flitebol ainda fosse o jogo orgânico dos primordios, o estádio deveria reflecrir direccamente a irnagern da cornunidade, albergando o jogo num espaço singular, rerritório exterior a moralidade, para alem do bern e do rnab’ (Huizinga, op. cit.:31). 0 grau de fidelidade e ml que acontece esta fária transitar de pals para comum o filbos, coma delegaçao de urn património simbolico. Em Inglaterra é do seu cores das o exibiça a com dade paterni adepto fazer coincidir o momento da dnica ação autoriz uma de gozar a ua clube an recérn-nascido. 0 estadio contin da rermos Nos e. permit the näo cidade pal-a oferecer an especrador algo que a r ‘primo os vincul poucos dos urn antropologia geerrziana, o futebol constituiria açöes vincul por ado domin urbano diais’ a que o adepto pode aspirar no deserto 28 clv’s TEATPALIDADES 13 No futebol, a restrição da violéncia so ultirnamente vern in cluindo a linguagern dos adeptos. A linguagern permanece urn born rneio para a sublirnaçao: reproduz o prazer da raposa, sern conse quéncias rnortais. Poder-se-ia vet na rribalizacao cia linguagem das claques urn rnovimento idêntico ao que levou o cavaleiro a pedir a rnediaçao do cão na morte efectiva da raposa. A linguagern arnplifica virtualrnente o que no carnpo de futebol tern de respeitar urn con tram. Este principio parece adequar-se aos protocolos da sensibili dade contemporânea, a qual tende para a rejeicão absoluta da agres são fIsica. Apropriada pelo adepto de flitebol, a linguagern dos novos caçadores manifesta a simbologia guerreira que os clubes rnantêrn , de forrna emb1cnzdtic leöes, aguias, diabos, enfirn, 29 residualrnente dragoes. No esrádio, a linguagern pode tarnbern chegar por via do canto. Ocasionalrnente, a voz rem nos esradios urna realizaçao coral. Ainda assirn, a dicçao e constancemenre distorcida, produzindo rugi dos vitals: o ruldo retroactiva a impoténcia do verbal. Nas origens, o futebol tinha como protagonistas e destinarários os jogadores. Era o ternpo pleno do arnadorismo. A condiçao de amador estava ao alcance de qualquer urn. 0 amadorisrno foi o estado ‘natural’ do desporto. Depois da dernocratizaçao do futebol, houve urn momento durante o quai este se lirnitou a crescer, adiando aquela seriedade mortal que Huizinga dizia rnarcar o perfodo agónico do jogo. Quem teve a felicidade de viver o ethos amador desse futebol das origens não deixa de o lernbrar corn rnelancolia. 0 drarnaturgo brasileiro Nelson Rodrigues elevou este rnornento a escala do mito, irnortalizando-o ern sucessivas crónicas, primeiro na Manchete Esportiva, mais tarde, n’ 0 Globo. Nessas pági nas memoráveis, o jogo regressa ocasionairnente a casa. Ele é upãnico>>, trágico” ou <<bestial>>. A mao que escreve recorda o mo mento anterior a transição profissional, tempo de uma sensibilidade 29 Juntando a ascensão publica do jogo ao desejo crescente das massas em prolongar o tempo de caca, o jorrialisrno desportivo assume-se como a áltima ins tância dilatOria da contemporaneidade. Sendo a excitação urn imperativo do nosso tempo. o jornalismo desportivo parece garantir a infinitizaçao dos prelimi flares. FERNANDO 132 que o entusiasmo de Nelson pre-historico da ‘canelada’: MATOS OLIVEIRA faz deliberadarnente regredir 20 esrado Ah, Os jogadores! A bola Corria o ano de 1911. Vejam vocés (...) Quantas vezes o craque esquece a tinha uma importância relativa ou nula. , assassinando canelas, rins, pelota e sala em frente, ceifando, dizimando desvirilizado ejá não térax e baços adversaries? Hoje, o homem está muito s, 1993:10) aceita a ferocidade dos veihos tempos.’> (Rodrigue s mostra-nos que a A cronistica desportiva de Nelson Rodrigue hidico sob a forma de historia do ftnebol acelerou a intermiténcia do alismo contemporaneo. uma passagem do amadorismo 20 profission o relato desta transiçào e sisternaticamente reactivado pelo incha, urn craque brasileiro. Nurna das crónicas, escreve sobre Garr menre corn PeW e que acompanhou o Brasil em 1958 e 1962, junta improviso desse Didi. 0 texto é urn hino ao instintivo, ao festivo e ao rn o protesto de futebol. 0 tItulo, <<Garrincha náo pensa>’, e tamb . Num jogo ernie urn resistente face a arneaça do racional rnoderno campo corn urna Botafogo e Flurninense, Garrincha <‘apareceu em pensar. Garrin disposicao vital esrnagadora [...} nunca precisou de pelo jaw puro e cha não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, re antes, scm irresistivel do instinto. F, por isso rnesrno, chega semp o terá a veloci pre na frente, porque jamais 0 raciocinio do adversari ocasião escreve sobre dade genial do seu instinro” (idemX53). Noutra irnenso do as vanragens do campo pequeno em relaçao ao betao sto amigos: a Maracanã. Desenha a nossa frente a arena antiga: “Insi criaturas rodo o seu con distancia desurnaniza os fatos, retira das s os carninhos teñdo poético e drarnatico. Ja no campo pequeno, todo 4:9). Neste, abertos para a ernoção directa e integral” (idem,199 estão o jogador revela-se em toda a sua ‘animalidade’: exemplo: vi, em dado Descobrimos coisas do arco-da-veiha. Por e. Pendia-Ihe do momento, que um dos jogadot-es näo suava como gent a come nos pescoço uma espécie de gosma, de visco, de espurna elástic a camisa’, em cavalos cansados. Nos sempre ouvimos falar em ‘moihar e é algo de ‘suar a camisa. No Maracana a transpiração mais abundant TEATRALIDADES 133 remoto, de platdnico. Nas Laranjeiras [o estádio pequeno] é suor mesmo, grosso e irrefliravel como óleo ou como apavorante espurna Nós percebe mos o esforço dos jogadores ate pelo olfaton (idem:1O). 0 futebol arnador parece ter durado urn instante. Os tempos heróicos de Huizinga (e de Nelson Rodrigues) são urna rnemória longInqua que a evoluçao do jogo reprime. 0 prazer e o desinteresse postos no jogo prirnogénito deram lugar a cornpetição cega e a luta pelos resultados. A irnportância do resultado e externa a ordern do jogo. Ora, o futebol-espectaculo da actualidade orienta-se precisa mente para a subrnissão progressiva a conringência exterior. 0 pro prio prazer que o jogador extrai do lüdico reduz-se a uma Iicao tác tica que nos relvados de Futebol consta de enunciados corno ‘ganhar o jogo’ ou ‘humildade e espIriro de sacrifIcio’. A notação moralista deste programa comprornete perversarnente o jogo corn a ética do trabaiho. A profissionalizacao seria ja previsIvel, pois a mercantiliza ção do futebol teria necessariamente de conduzir a proletarização dos seus activos. Mas não era exactamente este o ethos que anirnava o desporto nascido corn a Revoluçao: uo ethos dos desportos não era o género de ethos das classes medias operárias ao qua! se aplicarn ter mos corno ‘moral’ ou ‘mora1idade’ (Bias, op. cir,:247). A historia do futebol expressa-se no destino singular do drible. Corn a mediatizaçao televisiva, responsavel pela crescente expro priacão dos va!ores auténticos do jogo, rnuito do que no estádio era Intimo da bondade arnadora tern vindo a ser reprimido. Ora, a racionalidade que enredou a existência rnoderna do futebol aniqui lou tambérn o drib!e, esse Icone derradeiro do indivIduo total em jogo. 0 drib!e é a rnarca e a assinatura do sujeito em carnpo. 0 seu desrino negro vinha sendo anunciado ha rnuito. Pelos anos de 186070, segundo Elias, o drible era ainda urn (celernento fulcra!>> do Rite bo! e o equilIbrio de tensão dinarnico entre os interesses ern jogo era ainda articulado a favor dos indivIduos’> (op. . 30 Escrevia ) 4 cit:29 30 A questäo do drible aparece integrada numa cbs oito polaridades que Elias e Eric Dunning identificain no jogo de furebol. A polaridade inerente ao jogo garante-ihe a rnanutenção de urn nivel adequado de tensäo-excitação, clara- 134 FERNANDO MATOS OLIVEERA em 1966, justamente quando o seu declinio era quase total na Ingla terra. A eficacja concabilIsrica do futebol moderno interditou as contingèncias do drible. Sem este gesto, o jogo expressa defIcitaria mente o individuo. 0 fiituro deste movimento de génio, ao mesmo tempo supremo e hunijihante, passa pela guerra surda que decorre ainda ernie o jogo latino e o jogo nordico. 0 ascendente nordico pode comprar literalmente o drible, para o matar na fonte. Impor tado como mercadoria, o jogador do Sul sujeita-se a táctica do None europeu. Já nem o Brasil joga exactamente como nos tempos do Garrincha imortalizado nas crónicas de Nelson Rodrigues. Note se que a plateia parece ainda apreciar o drible, mas esta popularidade ja sé é aparente. Quando o risco que ele pede näo compensa, no final, o jogador é literalmente castigado por ‘brincar em serviço’. 0 jogo nunca de facto foi tao sério como na actualidade. A ascendéncia do creinador tern vindo a contribthr para a ocul tação da magia do craque. Para progredir na economia do jogo, o treinador aceitou set escravo dos resultados. Os mecodos de treino sofi-em hoje de uma sobredosagem técnica. Ser treinador ou jogador é, por isso, uma actividade mais ascética do que nunca. 0 olhar do espectador é também vitima da interferência sistemática da publici dade. Esta simula e disputa a própria producao de ‘presença’. A audiometria manda no tempo e nas regras do jogo, nas cores do clube e, em ültimo caso, na sobrevivéncia do jogo tal como Pele e Eusébio o conheceram. A época do virtuosismo acabou no flatebol e no teatro. Tanto o actor como o jogador tém vindo a ser treinados para a repetição sem faihas do mesmo papel. Para R. Schechner, este actor hiper-profissionalizado do teatro mimetiza a reprodutibilidade da máquina de impressão moderna (Schechner, 1994:172). A repe tição infailvel do gesto equivale a reproduçio igual do foiheto volante. Como tal, a reproduçao mecanizada acrofia na casa do tea tro a ‘presença’ inerente a singularidade performativa. 0 mesmo sucede no estádio. Razao tinha Nelson Rodrigues em convocar Freud para o futebol. A alma do jogo está doente. mente vantajoso para o seu desenvolvimento dinamico e interessante (cf. Elias, 1992:279-297). 10 CENAS DA RUA o festivo em Maio de 68 Maio de 68 foi tempo de urna teatralidade multiforme. Os flihos dilectos da sociedade do bern-estar, arduarnente edificada pela geracão que havia feito a Segunda Guerra, respondiarn a duas ddca das de lei e de ordem exteriorizando anarquia e protesto. A antro pologia teatral, medida pelo quadro teórico de Victor Turner, defI nm estes mornentos de sublevaçao como rnanifestaçoes ‘lirninares’ urn determinado grupo de indivIduos desafia a norrnatividade social, de acordo corn urna sucessividade que o autor descreve corn a apareihagem conceptual dos ritos de passagem. 0 escalonamento ternporal conternplaria três fases principals: separaçio, transição e . Os acontecirnentos singulares de Maio de 68 per 31 reintegracão tencern de facto a excepcionalidade lirninar, rnas o ârnago crItico do evento foi publicarnente colocado na arnbiguidade da reintegracão ‘pos-liminar’: o que rnudou e o que foi reintegrado após Maio de 68? 0 choque violento provocado pelo retorno ao real não deixa de nos colocar perante outras interrogaçOes prearnbulares. Maio podera ter sido a imaginacão utópica e criativa de urna transição interrorn pida, ou rnesrno ter ficado pela erupção separatista, vivida corno festa destinada a terminar. — 31 A teorizaçäo do ‘liminar’ levada a cabo por Victor Turner partiu da aná use dos rims de passagem efectuada por Arnold van Gennep, film livro flinda cional, exactamente intitulado Rites tie Passage, publicado originalmente em 1908 (cf.Turner, 982). FERNANDO MATOS OL]VEIRA 136 Revisitar a agitacão cIvica de 68 solicitaria mais do que a prova material da irnagern. A apropriacão cenica da espacialidade urbana traduzia uma agenda intelectual que agrupava interesses divergentes, näo irnediatamente discernIveis na mole humana que por essa altura aflui as ruas. Estudances, proletariado e intelectualidade cruzam-se em diversas modalidades representativas. Por esta razão, o testemu nho vivo surge corno urn suplemento aconselhavel para a aferiçao do pluralismo participado que a utopia juvenil (sobretudo esta) julgou poder realizar a partir do asfalto de Paris. Como diria Daniel Cohn Bendit, em entrevista, Maio <<foi uma espécie de festa>’. Ora, o fes tivo resiste a efabulaçao hisrorica, tal come Artaud, então redesco bent e sobejamente rnitificado, se propunha resistir a verborreia conformada do teatro burgués. A dramacizaçao da consciéncia ceve em Maio de 68 a ousadia de cruzar na rua o Impeto vitalista do tea tro da crueldade com a pedagogia historica do teatro epico. A performatividade dos anos sessenta hiposrasiou a veiha rnetá . 32 fora do mundo como teatro, celebrizada pot Calderon de Ia Barca Na conjuntura de Maio, a denóncia ‘ante-liminar’ do conluio entre o mercado e o mundo Ficou evidenternente cargo das páginas de A Sociedade do Espectdculo (cf. Debord, 1991). A feira anciga do texto de Calderón, na qua] o exercIcio da troca era ainda concertado a dois, sofrera mutaçöes em grande escala. A economia da representa çäo social tende agora a emancipar-se do sujeito e a troca-lo pela sirnbolica de urn cornércio mais autoritário: especializaçao das imagens do mundo encontra-se realizada no rnundo da imagern autonomizada, onde o rnentiroso rnentiu a si próprio. o espectáculo em geral, como inversäo concreta da vida, e o movimento autónomo do não-vivo [...j A linguagem do espectaculo é constituida por <<A Neste ciclo de metáforas, Calderón testemunha a arqueologia do espec taculo global, em dois autos que flxam o comércio entre o tmercado,, e <mundo: El ran mercash, del ,nundo e El ran teatro dcl mundo. W neles urn 0 autor não elide. Nos anos seguintes a Impeto reflexivo que a divida metafIsica d Male de 68, o poder descricivo do reference teatral penerraria os dominios da Psi cologia Social, da História e da Antropologia, a custa de autores como Peter Burke, Alan Read, Victor Turner, entre outros. 32 TEATRALIDADES 137 signos da producao reinante [...] A origern do especticulo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espectaculo rnoderno exprime a totalidade desta perdai’ (iaem:2, 11 e 21) Nos anos sessenta, o espectáculo do macado aponta para urn desenlace perverso, pois a sua erotica apenas admite a existência da propedêutica filosOfica corno pensarnento separado’> (idem:16). 0 efeito repressivo desta separação confere aos acontecirnentos a dic çäo caótica do conternporaneo e irnpôe ao individuo urna ((segunda natureza>’ que o incapacita para a acçäo perforrnante: <<0 espectaculo e o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monologo elogioso [...] A aparéncia fetichista de pura objectividade nas relaçoes espectaculares esconde o seu carácter de relaçao entre hornens e entre classes: urna segunda narureza parece domi nar o nosso rneio ambiente corn as suas leis fatais. (idem:22) A ‘sociedade do espectáculo’ recorre, pois, ao aparato cenográ fico para se naturalizar no palco universal, onde simula autentici dade. Aos olhos do póblico, a subrnissão do indivIduo, lirnitado ao espaco da cena e a autoridade do seu papel, aparece como urna afir mação gregária de pertenca. Mas este espectaculo, enquanto <<guar dião do sono>, instrumentaliza em massa urn ml efeito de ilusão: aquilo que dentro do edificio de teatro seria urna estética da suges tao, aparenta ser no campo social a ánica verdade, reproduzindo-se indefinidamente. Dramatis personae A ‘separacão’ liminar ocorre quando urn grupo resiste ao con dicionarnento colectivo, e é normalrnente protagonizada por uma facçao rninoritária do corpo social. 0 próprio estado de conforrna ção social pressupôe, alias, urna equivalencia pacificadora entre o indivIduo e o seu papel. Como escreveu E. Goffrnan, em sociedade “espera-se de urn rnodo geral que cada urn dos participantes supri FERNANDO MAY05 OL[VEIRA 138 ma os seus sentirnentos imediatarnente vividos, transmitindo em vez deles uma imagem da situação que sinta que Os outros poderao pelo menos temporariamente considerar aceitável, (Goffrnan, 1993:20). A existência normalizada do sujeito, sendo determinada pelo anuimento passivo, pode ter consequências indesejaveis. Corn efeito, a magnitude do trabaiho repressivo implicito na <‘apresenta cáo do eu na vida de todos os dias>> pode avaliar-se pela explosao libertadora que percorreu Paris. Contra o paraiso possIvel, Maio respondera corn o Paradise Now, icone teatral que sintetiza o espi rito do tempo. Os protagonistas da ‘separaçáo’ liminar forarn os estudantes e, lateralmente, os trabalhadores. Estarnos perante representacOes divergentes da periferia do rnercado. Os estudantes começarn pot ocupar o campus universitário, curiosarnente já então uma zona cornprometida apenas corn uma versão mitológica do separatisrno. Sintomaticamenre, Sartre perguntava a Cohn-Bendit se os estudan tes se fIcariarn pelo ‘Queremos so reformisrno’: <Pensa poder obter reformas que introduzam realmenre elementos revolucionarios na que façam, por exernplo, corn que o Universidade burguesa — ensino dado na Universidade esteja ern contradiçao corn a funçao principal desta no regime actual: a forrnaçao de quadros bem inte grados no sistema?” (Sartre, 1979:32). Foi realmente a partir deste espaco ‘reprodutor’ que os estudantes procuraram inverter o fluxo de energia social: a passagem da universidade para a urbe simula o trânsito do pensarnento para a acçáo, portanto, do guiäo dramatico para a sua realização performativa. Ffesicantes no inicio, os traba ihadores acabam por perceber no momento urna oportunidade estratégica para reclamarern melbor acesso as vantagens da cena rnercantil. Mas a sua restrição liminar teve uma natureza contra revolucionária. Os trabaihadores aproveitararn sobretudo as vanta gens negociais de uma forma adequada a rnediatizaçao espectacular. No seu conjunto, a acção dos estudantes e dos trabalhadores reactivou o grito que Artaud dizia estar em declinio, mesrno entre a tribo do teatro, tradicionairnente responsavel pela arnplifIcacao do ritual da separacáo: TEATRALIDADES 139 Ninguém mais sabe gritar na Europa, e especialmente os actores em transe não sabern mais dar gritos. Quanto as pessoas que 56 sabem falar e que se esqueceram de que tinham urn corpo no teatro, tarnbém se esque cerarn de usar a garganta. Reduzidas a gargantas anormais, não é nem rnesmo urn órgão, mas sim tima monstruosa abstracçao que fala: Os acto res, na Franca, agora sé sabem faIar. (Arcaud, 1993:137) Cohn-Bendit inscreve os estudantes neste <grito>> contra a con sensualidade falada, quando se refere especiuIcamente a ((palavra libertada de repente em Paris>> (op. cit.:31). 0 que se seguiu trazia a marca do vivo e do espontâneo, justamente as propriedades que soil citarn urna leitura performativa de Maio de 68: A força do nosso movimento e precisamente o facto de se apoiar nurna espontaneidade ‘incontrolavel’ [.. .1 A construção das barricadas, ate ao ataque dos poilcias, foi uma espCcie de festa. Reinava uma atmosfera extraordinaria. Se a poilcia tivesse recirado, haveria uma formidavel explo são de alegria [.1 Depois, os estudantes reagiram espontaneamente e já não era possIvel deter o movimento, ainda que o rivéssemos querido. (Cohn-Bendit, apudSartre, 1979:30-47) Parabase Nas fotografias de Paris dorninarn os estudantes e o turbilhao Percurso do homem comum, a rua revela-se nestas irnagens rua. da um lugar de iniciação onde toda a objectualidade da cena burguesa e recusada: os automóveis são incendiados, as lojas destruidas e o mobiliario urbano transformado em arma de arremesso. A pulsao separatista dos estudantes traduz-se no carácrer elementar dos mate riais. Contra o gas, percebe-se que os manifestantes opOem pedras, árvores e fogo. Aqui e alem, a regularidade plana cia calçada da lugar a um chao esventrado. Corn a terra mais próxima, a pedra aplainada regressa a selva pela mao de urn estudante-caçador. 0 confronto é desigual, pois as pedras da calçada so delimitam o territOrio ate a chegada das escavadoras. A temporalidade desta rua conftrnde o FERNANDO MATOS OLIVEIRA 140 tempo ritrnado da universidade e da fabrica, enquanto o crornático do desfile parece suspender a vinculaçao consensual da tricolor, suja a pelo negro e pelo vermelbo. Nas fotos nocturnas, drarnatiza-se resisténcia ao sono, ate a exaustáo. Urn cartaz corn a frase “Le pouvoir est dans Ia rue>> reactiva a ocasiäo revolucionaria que, décadas antes, Bertolt Brecht tarnbérn investiu na ‘cena de rua’, o seu rnodelo particular de teatro épico ‘natural’ (cf. Brecht, 1967,16:546). No exempio que deixou nos Escritos sobre Teatro, urn homem assiste a urn acidente que mais tarde contaria aos demais. Ao narrar, este homern deveria proceder rigorosamente a uma (<dernonstraçao>’, não tanto a encenaçäo iluso na de urn <(acontecirnento’> [Ereignisj. Repetindo quando necessá rio, ilustrando corn urn gesto tosco, o actor evita set conflindido corn as personagens que sucessivamente encarna. A plateia julgaria os factos a distancia da explicaçao recebida. E born de ver que as was . de Paris não tiverarn a ciareza épica desta distancia dernonstrativa A uma revoluçao que Brecht pretendia extrair da rua riecessitava de razão mais fria do que a razão festiva. Maio dc 68 foi sobretudo urn acontecirnento. Cohn-Bendit percebeu hem a resisréncia dos estu dantes a dernonstraçao épica. Viu também que a negauvidade de quaiquer gestus dependia do que nele pudesse permanecer intern ente, oque pestivo, já que Os marxiscas-Ieninistas pensavarn, epicam deverlarnos principiar por ir aos bairros populates discutir corn trabaihadores, explicando-ihes as nossas posicOes e convencé-los a agir connosco’> (apuci Sane: 1968:47). Maio incerdirou, portanro, a repeticão inerente ao ensinarnento da ‘cena de rua’. Os actores näo participarn num guião pré-definido: cornando unifi ccnao houve qualquer piano, não existia qualquer cado, qualquer piano pre-escabeiecido das ‘barricadas’n (idem:39). 0 guiäo foi inventado pelos actores, sern rnediaçao autoral. Maio afirma-se, pois, libertariarnenre, propondo urna reieitura da ‘cena de rua’, digarnos, através de Augusto Boal. 0 espectador pode aqui ensaiar a revoluçao como protagonista da própria acção: do oprimido concentra-se na própria acção: o especra dot nao deiega poderes na personagern (ou no actor), nem para agir, nan .a poética TEATRALIDADES 141 para pensar em seu lugar; pelo contrário, dc mesmo assume o papel de protagonista, muda a acção dramarica [. •1 Neste caso, o teatro pode näo ser revolucionario Of Si 56, mas e seguramente urn ensaio para a revolu çao’ (Boal, 1979:122) - Na verdade, Maio de 68 ficaria associado ao estado transitório do ensaio teatral. A memória dos eventos move-se facilmente do fes tivo para a frustraçao perante o inacabado. 0 espectador libertado de A. Boal foi congelado numa cena intervalar. Sobrou o gesto de resistência a autoridade hipnotica do espectaculo. 0 mimetismo liminar desencadeado pela euforia da festa, razâo do <<ethos da per formance” mencionado por H. Blau, teve eco no activismo da época (cf. Blau, 1987). Conhecemos o futuro das celebraçoes desta aura performativa: o happening, o concerto de rock, as comunidades alternativas que do outro lado do Atlantico produzirao imagens tao emblematicas com as de Easy Rider (1969). Na paisagem das multidoes solitarias que acaba por sobreviver mais ou menos intacta a reintegracäo pos-liminar, a bondade comu nitária dos movimentos alternativos foi uma experiência singular. A utopia desenhou os contornos da contestação permanente que o voluntarismo de Maio sonhou manter viva pot tempo indetermi . Ao contrapor a performance akernativa (acçao) ao teatro 33 nado institucional (representacao), Maio enfatiza uma desconfiança me dita relativamente aos apareihos institucionais: o carácter libertario de Maio teve a particularidade de surgir num momento crItico de saturação material. A dramatizaçao da liberdade em contexto demo crático e, por isso, a sua herança mais inquietante. Ate al, o veiho motor das revoluçoes tinha sido a necessidade nua e crua, como disse Sartre. Desta vez, o sujeito pedia liberdade contra a manha do Estado moderno. Mas a teatralizaçao da polItica pedia também uma 33 A este propósito, o espectador portugués que tenha tido a oportunidade de testemunhar o regresso do Living Theatre a Portugal, em 1997, pode constant o terrivel enveihecimento da acçäo proposta pelo grupo, afim ao esgotamento pragmático de alguns grupos de teatro experimental, nascidos em 60 e principios de 70. 142 FERNANDO MATOS OLIVEJRk politizaçao da rua que Maio so pode assegurar como avencura. Aqui mesmo se origina a persisténcia do sentimento melancolico perante Os acontecimentos de 68, ainda quando irnperfeitamente aferidos pela imagem e pela letra, trinta arms depois. 11 ENCENAR Os CLASSICOS 0 iiso dos clAssicos A 11 de Novembro de 1909, Max Reinhardt apresentava ao publico de Berlim uma encenação do Don Carlos, de F. Schiller, corn a duraçao de seis horas, das 18:00 as 24:00. Apesar dos dois inter valos, contra todas as expectativas, consta que a peça foi urn sucesso, a ponto de ter sido frequentemente interrornpida pelos aplausos do publico. 0 autor germânico assinalava assim urna importante vitagem na encenação dos clássicos, afastando-se das versöes historicis tas que dominaram o ültimo terço do seculo )UX. Corn efeito, desde a primeira encenação da peça de Schiller, em 1787, ate ao tempo de Reinhardt, o espectaculo de teatro manteve urn contrato incipiente entre a ordem do texto e a ordern do encenador. Ora, esta maratona teatral é justarnente urn marco no percurso do encenador rnoderno rumo a autonomia artIstica. 0 texto clássico começa a sua lenta con versão em material disponIvel para a apropriaçäo estética, e a figura do encenador aproxima-se definitivamente do artista, sujeito como os demais ao julgarnento do gosto póblico e ao escrutInio da crItica. Em 1922, quando Leopold Jessner estreia cia inesma cidade a sua versão de Don Qzrlos, a figura do encenador está já em posicão de efectuar cones proflindos no original, destacar certas personagens e alterar o final. Em vez da reproducao fiel do universo do texto, Jess ner propóe a concentracão no essencial, e reduz os seis mil versos a menos de metade. 0 mimetismo cenografico de tipo realista da também lugar a conceptualizacao simbólica do espaco, em vários 144 FERNANDO MATOS OLIVEIRA . Estamos 34 pianos, respeitando apenas a ‘<ideia’> profunda do todo Urn aspecro classicos. tratar os ores de perante dois modos fundad decisi’vo une ambas as produçaes: a necessidade de integrar os clas sicos na contemporaneidade, de os fazer falar corn a modernidade. Os exemplos referidos mostram como o problema da encena çäo dos ciássicos acompanhou de muito perto a construcão histórica da autonomia do encenador. A extraordinaria experiéncia protago nizada pela companhia dos Meininger, criada e dirigida pelo próprio Georg II no seu pequeno principado de Sachsen-Meiningen, a par tir de 1870, desempenhou urn papel exemplar neste processo. 0 rasto de polémica que deixou a cada encenação revela a impor tância desse trabaiho. em areas que vão do tratamento dispensado aos classicos ate a deuinicao do perfil da moderna companhia de tea tro. Convérn lembrar que o teatro oitocentista foi geralmente mar cado pelo vedetismo do actor e pela secundarizaçao do texto dra mático, tratado corn deferencia minima. A sinronia do palco corn a sensibilidade burguesa e o papel dominante que ao tempo o reatro desernpenhava na gestão do ócio, colocava-o perante a pressão ges tionária do quotidiano empresarial. 0 texto está então ao scrviço do sucesso imediato, em regime de puro entretenimento. A autoria é frequenternente mascarada por traduçoes e adaptacoes scm outro crirério que nio a cartilha segura do êxito. 0 dramalhão vive o seu apogeu histórico; a demanda das plateias acoihe corn entusiasmo qualquer produto informe, desde que perrencente ao magma melo dramatico. E o tempo áureo do virtuoso e das grandes figuras da cena, cuja presença dominadora anula os restantes elementos da companhia. Vibra-se corn a deciamaçao prodigiosa de Sarah Bet nardt, Eleonora Duse, Frederick Lemaitre, Edmund Kean ou Tom maso Salvini. o contriburo dos Meininger deve Icr-se nesre pano de fundo. A sua prática rearral antecipou a rnoderna profissionalizaçao da 3’ Os escritos de L Jessner manifestam uma consciência clara do conteildo revolucionirie das sun propostas cénicas. A encenaçáo assume-se como trabaiho de actualização do original, por via de uma esténca da simbolizaçao que visava apreender apenas o essencial (cf. Brauneck, 1993:123-125). TEATR4LTDADES 145 companhia e a definiçao de urn repertório classico. Podemos resu mir o espectro dessa acçäo, levada corn sucesso a inámeros palses da Europa central, a trés dornInios principais: a) respeito pela integri dade do texto original, reduzindo eventuais cones a aspectos estrita mente secundários; b) sujeição absoluta do actor individual ao tra baiho estético do colectivo; c) adopçao fiel das indicaçoes cénicas constantes no original (ci Fischer-Lichte, 1993: 217-234). Esre prograrna despertou naturalmente discussoes vigorosas, motivadas sobretudo pela sua resisténcia ao entendimento convivial do teatro na sociedade da época. A soberania estética do projecto dos Mei 35 propunha o teatro como instituiçäo artIstica dedicada a ninger encenação das obras do passado. Consequencia do seu feroz rca lismo histOrico, o espectador era literairnente transponado pan urna outra época, e o próprio texto renascia na sua plenitude estranha amiga. So após este passo, pontualmente anunciado pot autores e drarnaturgos desde o periodo ilurninisra, o teatro podia ‘drarnatizar’ o problerna da encenação dos classicos. Tal problema resultou, por ranto, de urna conjuntura que havia cumprido duas prernissas essen dais: a consciéncia da hisroricidade do sujeito rnoderno e a progres siva legitirnaçao estética do trabaiho do encenador. A ernpresa dos Meininger, antes rnesrno das encenaçOes de Antoine ou de Otto Brahrn, ajudou a instiruir as ‘condiçoes de possibilidade’ para urna tal transição. Curnprida a etapa filologica protagonizada pelo metodo histori cista dos Meininger e a Ease de emancipação ‘esterica’ Levada a cabo pelo modernismo, o tratarnento dos classicos entrou finalmente num periodo a que chamarta teOnco ou pos-reorico, para as versoes mais rardias. A historia da encenação dos clássicos ao longo do seculo — 35 0 excessivo rigor histOrico da encenaçáo deu origem a situaçOes que o hiper-realismo de Antoine haveria de replicar. noutro registo estético, pouco tempo depois. Aquando da encenação dejulius Caesar, pot exemplo, a companhta solicitou precisas informaçoes a Pietro Visconti, director do Instituto de Arqueo logia em Roma, sobre a arquitectura e o vestuário da época. A representaçäo implicava deslocaçoes aos lugares originais, em busca do espIrito do tempo e da prova restemunhal dos vestigios recuperados. FERNANDO MAr05 OLIVEIRk 146 vinte tern oscilado entre a apropriacão global e complexa de Reinhardt e a apropriação essencial e simbólica de Jessner (Ruhle, 1982:101). Entre urna e outra, o desaflo da encenação dos classicos permanece come exercIcio paradoxai. Vejamo-lo em Bernard Don, recente mente: <Le temps du théâtre est le present [...) Mettre dans Ia bouche de comediens des textes écrits, leur faire executer des movements pies crits ii y a, parfois plusieurs siecles, a quelque chose de paradoxain (Dort, 1988:51). 0 paradoxal é pane da controvérsia que no campo do teatro periodicamente se levanta a propósito do uso dos classicos; uma discussão que tern ocupado um espaco privilegiado na reflexão sobre teacro e encenação. Este terreno tern acoihido Os mais variados debates: sobre estética, teoria dramatica, poiltica teatral, práticas de ericenação e de actuação, entre outras derivaçoes que o lastro identi tário do patrirnónio dim classico sempre arrasta consigo. Por este motive, a questão dos clássicos mantém-se desde ha muito no centre da agenda teatral, no pIano estrito da criação, mas tambem no pIano institucional, lugar onde hoje se joga a sobrevivência de boa pane da produçao num pals como Portugal. A encenação ja não é a dos classicos, porque o presente da cena os historicizou em termos definitivos. Em rigor, a versão mederna do classico definiu-se com o romantismo, quando a modernidade cavou urn fosso sensivel entre antigos e modernos. A encenaçào terá sido verdadeirarnente dos clássicos uma vez apenas: no teatro con temporâneo, o que já se chamou “escola da intemporalidaden apre senta-se come viagem sem regresso (ci Brook, 1989). Pot isso, a ins tauração do paradoxo e inevitavel. Ao encenador contemporâneo está vedado o acesso a ontologia dessa internpora1idade>. A herança dos dássicos decide-se de inümeras formas na actualidade, corn des taque para as incontáveis replicas do ‘método’ brechtiano: os clássi cos servem ao teatro moderno enquanto porradores de cerro <Mare rialwern, ou seja, enquanto matéria-prirna, válida para a agenda (estética e polItica) da escrita dramatica (ci Brecht, 1967/Vol. 5:1O5). Neste sentido, dos antigos importaria o elemento progres ao dramaturgo e ao encenador caberia a tarefa de nos mos sivo trarem a Iiçao das continuidades e das diferenças do passado em relaçao ao presente. Por outro lade, temos assistido a transformaçao — TEATRALIDADES 147 dos classicos ou em pura rextualidade, destinada a alirnentar espec raculos de vária mndole; ou a sua transforrnaçao em peças de urn jogo corn a memória cultural, quase reduzidos a objectos de urna rnuseo logia cultural: de modo mais ou menos ousado, a encenação do clas sico serve corn frequência a ceiebraçao da nacionalidade, sob a forma de preservação patrimonial. E neste ultimo piano que se situa a rnaioria das Companhias Nacionais de teatro, hem corno a defesa estatai do património dramatico da nação. 0 que hoje parece irnprovável, em qualquer dos casos, é a possibilidade de o classico deixar o livro ou o rnuseu, para se reinstalar de novo no centro da praça publica. 0 anfiteatro grego encontra-se seriarnente reduzido nos ternpos que corrern. Ouvir a voz do passado e urna oportuni dade limitada pelo défIce cIvico do teatro nas sociedades contempo râneas. Apesar das restriçôes tempestivas do auditorio actual, os classi cos tern sido, desde o inicio do século XX, o lugar estratégico para expressão da criatividade do encenador. A própria antiguidade do clássico cria urn campo contrastivo que potencia a visibiiidade das opçöes tornadas pelo encenador. Nestes jogos afirmativos, o amigo acrua exemplarmente como matéria disponIvel para a canibalizaçao dos modernos. Em Franca, depois da conservação a Jean Vilar, os classicos tambérn serviram para a afirrnaçao programática de uma nova geracão de encenadores, muitos deies apoiogistas de urna écri ture scénique que vinha reconhecer os argurnentos esteticistas e pias ticos de G. Craig, décadas ames. 0 encenador rnoderno instalava-se urn nIvei acirna da ontologia do texto dramatico. Entre nOs, os ciássicos nacionais não tern a presenca de que beneficiarn no repertório teatrai de outros palses. Nem tudo se deverá ao célebre defice da literatura dramática. Gil Vicente, o nosso auror que meihor poderia encarnar o papel do classico teatrai, não chega a ter a representatividade cénica de urn Moliere, em Franca, ou de urn Caideron de ia Barca, em Espanha. Shakespeare é um caso a pane, pois trata-se do classico internacional por exceléncia, sujeito aos desrnandos da indüstria cultural, incluindo os clarnores de Hollywood. Ja em 1948, num texto intirulado ((Shakespeare er Jes français>’, Jean-Louis Barraulr conclula que, depois da segunda FERNANDO MAY05 OUVEIRA 148 metade do sdculo Xviii, as encenaçôes do dramaturgo ingles forarn uma constante em solo frances e que, em certos momentos, rivali zaram corn os autores nacionais: Voila le fair qui se passe de preuve: Shakespeare pour les Français est un besoin; Shakespeare en France est presque autani joué que Moliere, et plus june que Racinen. Em relaçao a Shakespeare, apesar de tudo, os portugueses tern mantido a isençäo que aplicam no trato corn os autores nacionais. Alérn das importaçôes ocasionais do texto, o publico tern mostrado major bonomia para corn certos anexos metateatrais, corno se pode ver pelo sucesso alcançado pela peça que Adam Long, Jess Borgeson e Daniel Singer escreveram sobre As Obras Completas tie William Sha kespeare em 97Minutos. Mas e verdade que Shakespeare vem sendo o grande terreno de experimenracão corn o clássjco, na sequência de urn livro muito influence que, no espirito dos anus sessenta, apre sentava o autor inglês corno Shakespeare our Contemporary. Passado o brevIssimo interregno do pós-guerra, duranre o qua! os classicos reactjvaram a humanjdade (intemporal) dos Amigos, a declaraçao explicitada pelo tItulo de Jan Kott traduzia a irreveréncia temporal de 68. Gil Vicente nosso contemporâneo Discutir aqui uma das óltirnas producoes do Teatro Nacional deS. Joao (TNSJ), a encenação das Barcasde Gil Vicente, pot Gior Corsetti implica, pois, ter em conta a debil presenca , gio Barberio 36 dos classicos no teatro português. Por nao terem propriamente uma tradiçao de encenaçäo, no caso especIfico de Gil Vicente, e restrita a o especrácuio, levado a cena em 2000, contou ainda corn dramaturgia de Joao Grosso, figurinos de Giorgio Barberio Corserti e Crisrian Taraborelli, mdsica de Stefano Zurzanello e ilurninaçio de Daniel Worm d’A.ssumpçao. Do elenco faziam pane Joao Grosso e Alberto Magassela, permarientes nas figuras do Dtabo e do Companheiro do Diabo, e actores que assumiram diversos papéis no curso da trilogia: Nuno M. Cardoso, joäo Reis, Rute Pimenta, Paulo Castro, Ivo Alexandre, Martinho da Silva, Iufsa Crus, Antonio Duräes, José Airosa, Jorge Vasques, Nicolau Pais, Joao Pedro ¼z, Ligia Roque e Hugo Torres. 36 TEATRALIDADES 149 galeria dos actores/encenadores portugueses que corn ele convive numa base regular. 0 elenco incluiria latamente as encenaçóes situa das entre a abordagern escolarizada de Paulo Quintela, no TEUC, e a frequência vicentina de grupos como a Cornucopia, o CENDREV ou a Escola da Noite. No prograrna do espectaculo ern análise, Ricardo Pais destaca justarnente os nomes de Rogério de Carvalho e de Luis Miguel Cintra, ahonrosas excepçöes num rneio teatral que, segundo o director do TNSJ, tern em Gil Vicerice o “maior factor de mistificaçao e de desentendirnento (cf. Ak VV., 2000). São palavras severas, rnas compreensIveis, se por ((rnistif1caçao e ((desentendimento,, entendermos o conjunto de aproximaçöes a Gil Vicente apenas interessado na celebraçao patrimonial dos autores tidos corno indiscutIveis. A beira do seculo XXI, encenar é mais do que nunca ler e interpretar, não apenas amplificaçao rnedial da letra silenciosa do texto. 0 magro passado da cena vicentina é urn aspecto de irnportância capital para quem pretenda encenar hoje Gil Vicente ou Almeida Garrett. Em 1946, nurna entrevista, alguérn questionava Jean Vilar sobre o lugar que conferia aos classicos no seu repertório. Na resposta, o encenador corneça precisarnente por lern brar a importância rnetodolOgica dessa aprática quotidianan: aIls reclament autre chose qu’un générewc temperament de cornedien ou de tragédien; il faut avoir assimilé, avoir fait siens cette syntaxe et ce rythme ala fois multiples et strictso (Vilar, 1955:44). Perante isto, a tarefa a que Giorgio Barberio Corsetti se propôs nas Barcas era duplarnente arriscada: urn estrangeiro encena o dra rnaturgo da nação, ern pleno Teatro Nacionai, nurn pals sem urn passado consistente na encenação vicenrina. 0 contraste corn o caso ingles não podia ser mais nItido: actualmente convivem ern torno de Shakespeare cornpanhias profissionais corno a Royal Shakespeare Company, a English Shakespeare Company, a The New Shakes peare Cornpany; sern esquecer a Shakespeare for Kids e, ern versão rnuseografica, o Globe, reproduzido a escala. Sern o capital reflexivo que a prática consistente da encenação sempre suscita entre os nacionais, sem urn elenco repetente nas personagens de Gil \ icence, 1 sern urna prática continua na dicçao vicentina, o encenador, estran geiro ou não, e sempre obrigado a corneçar do (quase) nada. FERtQNO0 MAY05 OLIVEIR4 150 0 que acabo de dizer e igualmente válido para o trabaiho de drarnaturgia, a cargo de joao Grosso. 0 espectaculo a que se assistiu no TSJ deve ser avaliado corno urn produto cuja responsabilidade assenta na draznaturgia e na encenação, pois a posiçáo que possarnos assurnir face ao classico situa-se simultanearnente ao nIvel do texto e da cena. Perante o texto, generalizando os estilos, as opçöes pode no campo estrito riam set de tipo moderno ou de tipo filologico da encenação, os clássicos estariam sujeiros a outros tantos progra mas de leitura. A afirmaçao disciplinar da dramaturgia no âmbito do teatro moderno é, por si 56, uma evidéncia da rnediaçao que o contemporâneo solicita ao passado. 0 labor do dramaturgista exibe o conflito entre as ordens temporais do texto e do encenador. A con tingéncia estatutária do seu tcrritório vital compreende acçöcs tao diversas como o restabelecimento da legibilidade do texto ou a sua eventual adaptaçao a publicos especIficos, como sucede no caso do teatro infanto-juvenil. Ora, é no arnbito destas opçOes que é justo começar pot reconhecer certas diferenças de torn entre a linguagem da drarnaturgia e a linguagem da encenação. Ao escrever oAlgurnas notas de encenação para o prograrna do espectaculo, Corsetti interroga-se sobre a possibilidade de 4cr as Barcas como se tivessern acabado de ser escritas”. A este propósito, pergunta: <Como pode prender-nos, a nós laicos e rnodernos, a componente devota e Iitárgica que é fundamental na poesia de Vicente?”. A questão é decisiva a vários titulos, pois tern que vet com Gil Vicente nosso contempordneo. Dela dependem as escoihas dos responsáveis pelo espectáculo. Em parte, a própria existéncia histó rica dos conceitos de dramaturgia e de encenação assentarn neste pressuposto, como vimos. Neste aspecto, a proposta de joao Grosso e digarnos isto corn sirnples intuito descritivo, mais conservadora guardo para depois a elisao do final do Auto do que a de Corsetti Si Barca di Gidria. Joao Grosso, um dos nossos actores mais dota dos, retorna o caminho pessoal que ha anos vem percorrendo, na cornpanhia de dramaturgos e de poetas, sempre próxirno de uma ética textual que passa pela preservação da linguagern, do ritmo e cia sonoridade originais. Nos seus trabalhos corno actor e encenador, Joao Grosso tern-se rnantido na vizinhança da ‘intençäo’ autoral, — — TEATRALTDADES 151 assumindo conscienternente o papel complernentar que ihe caberia nurna econornia tradicional do teatro. Ao contrário do que possa parecer, este gesto contérri uma posicão crItica relativamente ao des tino da coisa teatral no ocaso do século XX. Grosso recusa partici par na torrente de actuahzaçoes arbitrarias dos classicos, por vezes reduzidas a modernizaçao quixotesca de figurinos e adereços de cena. Mas recusa sobretudo as actualizaçoes legitimadas pelo Irnpeto textualizador do pos-modernismo. Em mãos inexperientes, estas versôes dos classicos resultarn em produtos dnicos que se esgotam em exibicionismo afirmativo. Atraida pela ideia fIsica e nao-verbal do teatro artaudiano, entusiasmada pela sua recusa fundamental da autoridade logocéntrica, a cena conremporanea ou nega o classico ou se apropria dde para <dizer o que foi dito de urn rnodo que seja nosso” (cf. Artaud, 1993:71). A ideia de tearro que move o drama turgista destas Barcas prefere confrontar o contemporâneo corn a integridade da fabula aurora!, sern levar aos limites, longe disso, as prerrogativas estéricas recenremente conquistadas pelo encenador. Corsetti, pot seu lado, dialoga corn o logos do texto preservado, Ihe contrapor, no piano da encenação, o fechamento de urn logos inrerpretarivo. A forma fragrnentada e interrogativa das <notas de encenação>> e eloquente quanto a esta diferença. Pot entre alega çöes relativas a cenografia e aos figurinos, a abertura do seu pro grama de encenação multiplica os sentidos para alern dos contidos na pauta drarnanirgica. A autoridade enunciativa de Gil Vicenre sofre um abrandamento estratégico, rnais consentâneo corn duvida metodica, própria dos que hoje são descendentes <4aicos e moder nos’> do autor quinhentisra. A disjuncao que se insinua entre dra rnaturgia e encenação aparece-nos retoricarnente ‘prevista’ na argu rnentação das notas de encenaçäo, ern afirmaçoes corno: <Andar em direcçao a sonoridade do português original e aproximar as per sonagens de nos;>. Estamos no centro do paradoxo temporal que caracteriza toda a encenação do classico. 152 FERNANDO MATOS OLIVE! PA As Barcas segundo Corsetti Vejamos, brevemente, alguns aspectos da re-presentação que o espeaador pode ver na sala do TSJ. A ideia de encenar conjunta mente as trés Barcas foi segurarnente uma escoiha arriscada. A rela ção entre os textos esta para alem das semelhanças de famIlia. As Bar cas ocupam na producao vicentina urn lugar central, temporairnente próximo, e funcionarn realmente corno unidade singular no macro texto vicentino. As vantagens em as juntar eram evidentes. Percebi das como triade, as Barcas permitem urna leitura serial da situaçäo do ser humano quando confiontado corn urn julgamento post-mortem. Além de ilustrarem cerras coordenadas mentais e culturais vigentes no seu tempo, confrontarn-nas diversamente corn o leitor/espectador contemporâneo. A isso se junta uma estrutura retórica paralela, corn manifestas virtudes espectaculares, através da qual o corpo social da época e sujeito ao juizo crItico do autor. A trilogia colocava urn Obvio problema de extensão. Neste ponro, a preservacão textual praticada pelo espectaculo do TSJ não hesitou ern colocar a prova a sensibili dade do especrador contemporâneo, mais habituado a brevidade publicitaria e a ficçao ern fatias, do que a dernora de urn serâo corn pleto. Digamos que foi urna escolha épica que o encenador conse guiu habilmente fazer esquecer, pelo rnenos, ate a Barca cbs Gloria. Sem ceder a compressão antologica, julgo que a redundancia estrurural das trés peças teria perrnitido um qualquer exercIcio de concentração da trIade, sern que a dignidade do texto original (o juIzo terá sido claramente patrimonial, talvez rnais do que escrita mente estético) fosse prejudicada. E claro que podemos discutir a legirimidade de urna hipotética concentração. Regressando a Brook, haveria aqui que considerar toda uma dialéctica do respeito que o encenador conrernporâneo deve rnanter na sua apropriação do clas sico. Ha passa pela consciência do encenador relativarnente aos dife rentes “degree of finish>> que as peças de um drarnarurgo podem conter. Passa ainda pot sabermos que nada se altera sern perdas e, finaimente, pela aceitaçio plena das consequéncias do juIzo da ence naçäo. No seu conjunto, podernos dizer que Corsetti e Grosso exer ceram moderadarnente o juIzo da encenação. TEATRALIDADES 153 A adopcao de urna linguagern quc procura recuperar certos isa ços foneticos do português da primeira metade do seculo XVI é urn aspecto que merece atenção. Como memória viva da lingua, nos seus mais diversos registos, é evidente que urn teatro a sério se deve assurnir sempre como o lugar da diferença, espaço de resisténcia ao grim unidirnensional da tribo. Verifica-se inclusive urna forte ten déncia no teatro conternporâneo para os jogos de linguagern, para o estranharnento e a distensao sonoras, para o muLtilinguismo e a abertura ao étnico. E neste porno que a lingua plural de Gil Vicente e diferença que (nos) valoriza. 0 latim, o castelhano, o português de então, os registos populares e eruditos, seculares e sacrarnentais, pro saicos e liricos, tudo junto faz das Barcas urn acontecimento no piano da linguagern. Urna festa da lingua que a drarnaturgia e a encenação justarnente näo abandonararn, resistindo ao apelo da norrnalizaçao que, em norne daquela abstracçao rnaioritária que tan tas vezes decide aprioristicarnente, nos oferece rnais e mais do mesmo. Ainda assirn, o pormenor do uso do s beirao, sobretudo este, não da tanto a irnpressão de arcaismo, rnas de provincianismo, que é o que ele hoje representa. Sendo urn preciosismo linguistico, cérnico que suscita (nos risos equivocos da piateia, logo a abrir) encerra, reconheça-se, urna razão espectacuiar que a razäo de Gil Vicente desconheceria. Alias, a pretensa reproducao da fonetica his tórica nem sequer foi exaustiva. A crer nas palavras de Esperanca Cardeira, conseiheira linguistica do projecto, a par de Ivo de Castro, “não foram respeitados todos os traços que pensamos serem carac teristicos da pronüncia do seculo XVI; alguns soariarn ásperos e estranhos ao ouvinte moderno e ao enfatizar a forrna correriamos o risco de distrair a atenção do espectador, que se quer centrada no conteüdo”. 0 critério adoptado deveu-se certamente ao impeto de preservação patrimonial que norrnalmente regula o trato corn ciassicos. 0 esforço dos actores na dicçao foi homenagern suficiente a linguagern de Gil Vicente. A encenaçao resolveu corn inteligencia urn conjunto de difi culdades levancadas peia série das Barcas. Desraque para a cenogra fia, para a rnarcação (a variaçäo na forma como as personagens che gam ao lugar do juizo final foi eficaz) e ainda para a mdsica notavel 354 FERNANDO MATOS OL]VEIRA de Stefano Zorzanello, em soios que tornaram invisiveis as mudan ças de auto para auto. Os figurinos, de Corsetti e C. Taraborelli, apresenraram uma sobriedade que resistiu hem âquele maneirismo Luxuoso que Barthes lamentava em muito teatro burgues. As perso nagens chegavam ao palco com uma caracterizaçâo suficiente para a identificaçao do seu estatuto e profissao, de acordo corn a logica do texto original e com uma deterrninaçao prévia do encenador: “Figu rinos modernos, estilizados, para as duas primeiras barcas, dao conta do quotidiano; figurinos de época para a Barca hz Gloria, que afirma a vanidade da história face a eternidade’>. Em vez da topografia fisica das barcas, Corsetti preferiu focar o palco no simbOlico ascensional de duas montanhas, a lembrar os mastros das embarcaçoes. Deste modo, em vez de materializar os lugares do prémio e da punicäo, o encenador escolheu acentuar o processual e o iniervalar dessa situação extrema que é a despedida da vida e o enfrentamento da rnorce. Como coisa fisica, as barcas estão pretensarnente colocadas em segundo piano, simuitaneamente escondidas e reveladas pelo mastro insinuado. A do anjo é ingreme e de dificil acesso. A do diabo é levemente inferior e mais plana, como convérn ao volume de trafego que atrairá. No cimo de uma, dominam os mastros retorcidos; noutra, o sossego da cadeira de urn Anjo que o encenador obrigou a dernorar-se reclinado. 0 cenário instaura urna tensão no espaço dividido pela água que em Gil Vicenre era “urn braço de mar>’, onde estariam “dois bateis>>. Mas a água tambem serve ao longo do espectaculo como elemento que lava os mortais da sujidade que trazem do mundo terreno: e fre quente as personagens ajoelharem na água e levarem as rnãos moiha das a cara. Na Barca eta GlOria, depois do despir igualitário dos gran des (que poderia ter ido are a pele), e na água que vivern o drama final da consciência: para todos os efeitos, os grandes do mundo possuem-na em major grau do que os peöes da Barca do Inferno e do PurgatOrio. Num rrabalho difIcil como este, o espectaculo depende do ritmo que a encenação lhe consiga empresrar. Muito se jogou, a meu ver, no modo feliz como o encenador alternou a entrada das perso nagens. Na Barca do Inferno, o sübito da rnorte atira as figuras des- TEATRALIDA DES 155 prevenidas por uma caiha infernal que as faz cair abruptamente na cena do julgamento. Na Barca eta GlOria, pelo contrário, a majestade dos represenrantes da Igreja e da Corte é acompanhada pela queda estrondosa de uma passadeira mortal, feita de urn enorme madeiro piano, sobre o quai a Morte-hospedeira as conduz, conscientes, a presença do Diabo. Este mesmo evoiui de auto para auto. Começa insinuante, trôpego e disforrne, próximo do irnaginario popular, pan terminar negro e corn discurso serio, irnplacavei. 0 crescendo final responde bern ao libelo acusatório que C. Vicente plasrnou no iultimo auto. E precisamente na Barca eta GlOria que a ausência inesperada da redençao final desperta a memória do espectador. Contudo, na conjuntura historica do texto vicentino, a salvaçao estava longe de apagar a tremenda esconjuração a que o auto sujeita os grandes da sociedade. A retórica da puniçâo foi cumprida pelo simples facto de ter sido enunciada. No óltimo instante, quando os maiores se abei ram da condenaçao definitiva, no texto original ie-se que Cristo da ressurreição, e repartiu por eies os rernos das chagas, e os levou consigo>. Desde ha muito que a critica se interroga sobre os condicionamentos deste gesto do autor. Que poderia fazer o ence nador da cone, perante o nobre’ Rei D. Manuel, nesse ano de 1519? 0 próprio Corsetti se interroga, nas suas notas avuisas, sobre O sentido de tal resgate: Porque se saivam, no firn da Gloria, os grandes da Terra?”. 0 espectador sabe do valor reiativo da encenação como regres so historico-fiiologico a cena primordial, segundo a conhecida teo na das camadas de pó, adoptada pela Cornedie Française . 0 espec 37 tador medio tambern não se desloca ao TNSJ em busca de urn objecto intocavel, situado por debaixo do p6 dos seculos, a espera de ser descoberto e exibido tal corno foi. Apesar disso, a eiisao do final constitui urna inflexão sénia no registo de preservação textual que dornina globalmente o espectáculo. Ate este mornento, o contern 57 Urn ml prograrna de re-constituiçäo tern o seu lugar na democracia tea ate (him no contexto da encenaçäo dos clássicos nacionais, corno vimos: para criar lastro, fomentar rnassa crItica, treinar actores, pühlicos etc. tra] e faz 156 FERNANPO MATOS OLIVEIRA porâneo vinha negociando a autoridade do passado sobretudo num piano nao-verbal: marcação, figurinos, elenco etc. A julgar peia elisão da cena, para Corsetti/Crosso, o seculo XX nao estaria em con diçoes de se redimir pela ressurreição de Cristo. 0 espectáculo encarrega-se assim de engendrar a sua resposta a pergunta mais urgente dos trés autos vicentinos. Como se posiciona este espectaculo perante uma obra que não está al <(acabada de escrever? Obriga-a a mostrar, corno defenderia E. Piscator, que Gil Vicente tern quase 500 anos, e a fazer desse re conhecimento a ma verdade? Posta de lado a reescrita do clássico, que opçöes restarn ao concemporâneo? Parece-me que as Barcas do TSJ fIcarao na memória como urna dramatizaçao particularmente enfatica da pulsao contraditoria que subjaz a estas questöes. 12 0 TEATRO E A ESCOLA Texto drarnático A relaçao do teatro corn a escola e a universidade so ocasional rnente decorreu em territOrio pacificado. Os mornentos de tréguas nesta guerra surda entre as Jetras e o espectaculo forarn mais o resul tado da autoridade provisória de urn campo sobre o outro do que consequência de urn entendirnento que pusesse urn as hostilidades. Sinai deste convivio difici( parece ser a generalizacao da estratégia de demarcaçao territorial. Corn poucas excepçOes, tal dernarcaçao tern recebido a aprovacio rácita de ambas as facçoes, mediante urna dlvi são sobejarnente conhecida: de urn lado, as letras encontrarn acoihi rnento na grande farnIlia titerária, sob a forma de estudo do texto drarnático; do outro lado, a materialidade dos demais componentes do espectaculo, bern corno o treino dos seus incérpretes, são objecto do investirnenco das escolas profissionais de teatro, sob a forma de cursos para encenadores e actores. A persisténcia deste quadro con tinua hoje a sustentar urna fractura evidente no estudo do fenorneno teatral. Contudo, alguns desenvolvirnentos recentes vêrn condicio nando a própria gestão escolar do universo teatral, por duas razOes principals: (a) a resisténcia crescente do teatro moderno e contern porâneo ao conceito de ‘texto drarnatico’ (b) e as consequéncias pta ticas e teóricas da ascensão do chamado teatro na educaçao. Nos manuals escolares, por razöes de rodos conhecidas, o estudo do teatro é latarnente coincidente corn o estudo do texto dra rnático. Deste rnodo, o discurso crItico adoptado tern corno objec tivo primordial a descricao e a analise de urn texto cuja identidade a 158 FERNANDO MATOS OLIVEIRA escola se encarregou de definir aprioristicarnenre. Este congela mento conceptual contradiz a tremenda evoluçao da escrita teatral na contemporaneidade, alérn de ignorar a evoluçao do próprio esta ruto do texto drarnarico, justamente nun teatro que e, afinal, aquele a que pertencern os alunos em causa. Esta conservação propedêurica nan e, admita-se, menos voluntarista do que aquela que orienta o estudo da narrativa ou da Utica. Mas a projecção historica desce princIpio, o qual tern a vantagern de proporcionar a professores e alunos urn constructo objectual passIvel de didactizaçao, teve como consequéncia urna leitura demasiado selectiva do passado e do pre sente do teatro. Nesre sentido, somos levados a crer que o tearro acontece Ia onde o texto o auroriza e legitirna, crescendo a qualidade deste na proporcão directa das suas afinidades estatutárias e discur sivas corn os demais modos e géneros literarios. Ta! sucede porque a escola, voluntaria ou involuntariamente, apenas tende a resgatar aquela pane do passado teatral que Ihe assegura a sobrevivéncia de urn texto e de uma autoria concretas. Apoiando-se em categorias tao poderosas na cultura ocidental, não ha como negar a escola a sujei cáo quase exciusiva do ‘texto drarnácico’ a condiçao familiar das Belas Letras e ao dornInio dos seus protocolos herrnenêuticos. A questão torna-se mais séria quando nos debruçamos sobre a historia do teatro no século XX. Neste caso, a rnanutenção fechada do conceito de texto dramárico, ao nIvel do ensino, irnplica quase autornaticarnenre a negacão de uma pane cada vez mais significariva do nosso século teatral. A cristalizaçao compreensIvel da didactica do texto dramatico ern tomb de definiçoes, de descriçoes e de urn certo corpus conceptual, visIvel ern manuais, cornpêndios e historias da literarura e do teatro, vem ainda contradizer o impulso de acrua Iizaçao caregomial que ernana da própria criação no campo teatral. No caso portugués, ainda que os prograrnas de lingua e litera tura venharn rnostrando urna major abertura relativarnente as con tingências que regularn a existéncia do texto dramatico, norneada mente quanro a sua inscriçáo espectacular, predornina igualmente este ripo de abordagern. Assirn, o que irnporta ao regirne dramatico que orienta o estudo do drarna na aula de Portugues passa sempre pot urna operação de me-conhecirnento de certos traços distintivos: TEATRALIDADES 159 texto primário vs. texto secundario, estruturação dialógica, concen tração da acção, constriçöes espácio-temporais, etc. Ainda que este estudo insistisse na analise das ‘condiçoes de representabilidade’ de urn determinado texto, para usar as palavras de Anne Ubersfeld, a questäo incontornável do futuro do texto dramatico não deixara de se colocar no contexto do ensino do teatro, tanto em escolas do ensino secundario corno em departarnentos universitários. Texto pos-dramatico Vale a pena começar pot lembrar Peter Szondi, crItico a quem devernos urn dos prirneiros grandes ensaios de conjunto sobre a evo luçao do teatro moderno (cf. Szondi, 1992). Recorde-se, em parti cular, a prernissa central do seu livro, segundo a quai a crise con ternporânea do drama se deveria ao facto dessa drarnaticidade ser urna categoria historica e, por 1550 rnesmo, depender do curso tem poral do projecto estético da rnodernidade. 0 dialogo, por exemplo, reflectiria uma cultura de intercâmbio discursivo que Szondi via decair na época contemporânea. Dal a ascensão de urn Eu cuja impoténcia se poderia traduzir reatralmente através do uso de for mas monologadas ou de estratégias de inspiração poética. Sern o dizer explicitamente, Szondi pre-anunciava a inevitabilidade de urn ternpo pos-dramatico, quando se referia ao teatro épico, ao teatro lIrico ou a outras modalidades antiteatrais. E a reflexão sobre este conjunto de alteraçoes na substancia drarnatica do teatro ocidental que levou tambern Jean-Pierre Sarrazac a referir-se ao domInio de uma pulsao rapsodica’> por toda a segunda metade do século XX (cf. Sarrazac, 2002). 0 conceito de rapsodia devem na linguagern do autor frances o lugar onde se inscreve toda a subversão do referente aristotélico, forçando-o a assumir as mais diversas configuracoes for rnais. Esse <transbordamento do drarnatico” é aqui urn rnodo de dat conta da existéncia contemporânea do indivIduo sob o capitalismo tardio: ‘<0 devir rapsodico no teatro aparece, assim, como a resposta acertada a esta explosao do próprio mundo>’ (ickm:230). 0 teatro confirma desde entáo as antevisöes de uma crise fundamental do 160 FERNANDO MATOS OLIVEIRA modo dramatico, mais ainda quando o conceito de performance se vem instalando como paradigma espectacular da pos-modernidade. A fabula dramatica espera hoje urn Vim que tarda em chegar, pelo menos desde Godot. Estamos, pois, perante uma transformaçao profunda da textua lidade associada ao teatro contemporâneo, ou a pane significativa deste, a qual vem pondo em causa a existéncia do texto dramatico que a escola tende a estabilizar didacticamente. 0 percurso desta deriva textual corre paralelo ao Simbolismo, ao Modernismo e aos movimentos experimentais das primeiras decadas deste seculo, ames de se acelerar com a enfase corporal e a deriva performativa do pós 68. A afirmaçao da figura do encenador veio quebrar em definitivo o ascendente autoral-textual, forçando o teatro ao regime dramatür gico que hoje o define, j mais democraticamente distribuIdo pelos restantes co-produtores do espectáculo. Mas foi realmente a entrada historica do encenador em cena que originou apropriaçôes de toda a espécie de materiais. Garantida a superioridade do encenador na hierarquia teatral, o teatro evoluiu para tim novo modelo criativo. Nas palavras de um conhecido pwfessor de teatro, a moderna <escrita teatral ganhou em liberdade o que perdeu em identidade (Ryngaert, 1992:29). Ora, se a identidade discursiva tern sido o campo de batalha da didactica do texto dramatico, vai sendo tempo de admitirmos que a consequente sub-representaçao da escrita tea tral contemporânea, além de set cientifica e pedagogicamente insus tentavel, retira a escola e aos alunos a possibilidade de mediarem a teatralidade do seu próprio tempo historico. Chegados aqui, julgo que estamos em condiçoes de alargar ao ensino uma formulaçao metodologica que distinga texto dramatico, por um lado, e texto teatral, por outro (ci. Poschmann, 1997:8). 0 texto dramatico seria simplesmente uma das formas histéricas do texto teatral. Este óltimo pode talvez entender-se como nome colec tivo: a sua nomeaçao resulca simultaneamente de um compromisso de ordern semantica e de ordem pragmática, pois o nome teria de agregar o vasto conjunto de textos que actualmente se oferecem aos mecanismos de apropriaçäo teatral. Como o provam os inümeros espectaculos do nosso quotidiano anistico, a destinaço cénica já TEATRALIDADES 161 nao obriga este texto a condiçao dramatica, pois o dominic, da tea tralidade está para alérn do estrito domInio do drarnatico. Como mostrou Elizabeth Burns, em estudo pioneiro, o berço socialmente convencionado da teatralidade é suficientemente generoso para aco Iher textos das mais diversas proveniências (cf. Burns, 1972). São inárneras as formas não-dramaticas que o texto teatral con temporâneo pode assumir. A maquinaria do teatro garante-Ihe urna existéncia espectacular, já sob a forma de condicionamento institu cional. Pressionado pelo seu tempo, o texto teatral libertou-se do contrato dramatico a que um momento particular da Historia o tinha obrigado. Por esta razão, os géneros dramaticos tradicionais revelam a nao-contemporaneidade do seu fechamento organicista. Quando Heiner Muller, por exemplo, pretendeu reactivar uma forma dramatica, o salto temporal tornou irreconhecIvel a estrutu ração do texto de partida. Hamlamachine, teve de falar outra lin guagem. A máquina é aqui a do próprio texto, enquanto metafora de um sentido que se constrói em processo. Por isso Muller intitula os volumes que recoihem algumas das suas traduçoes isabelinas de Fdbricas Shakespearianas. Os textos destes volumes avançam para além do dramatico convencionado: incluem discursos ocasionais, explorarn a materialidade do texto em soluçöes graficas ineditas, a acção e atravessada por recorrências, monologos, e o ritmo do verso alterna corn o registo prosódico. Quando recorre a estratégias metateatrais, o texto teatral encena no seu interior a própria crise contemporânea do dramatico. Veja-se o caso de Richard Foreman a par de Robert Wilson, o nome que mais tem concentrado a atenção da critica actual. Em Eddie goes to poetry city, as quatro primeiras intervençôes iniciam-se com a repetição constante de uma sintomática premissa: <df there is a play”. Cada urna ironiza corn outras tantas qualidades drarnaticas. A saber: ((If there is a play, a curtain would be drawn. And the audience would be in darkness>’; df there is a play, a room would be visible...>’; If there is a play, a line of dialogue would suddently emerge from the silence of a dimly illuminated space’>; df there is a play, the room would be crowded with men and women in evening dress’> (ci Foreman, 1995:3-4). A traduçao crItica deste programa — 162 FERNANDO MATOS OLIVEIRA questiona, de uma vez, categorias drarnaticas tao importantes como o espaco, o dialogo ou a personagem. A prirneira das prernissas, note-se, ao interrogar a separação entre a plateia e o pübiico, intro duz-nos a urn dos atributos rnais visiveis do moderno texco teatral: o seu carácter performativo. 0 texto pede o leitor nurn grau diverso do que era solicitado pelo drama. Mais do que isso, ele deixa de se apresentar como sujeito passivo de uma encenação unIvoca que os alunos da escola poderiarn depois adivinhar ou experimentar. Por vezes, coloca-se mesmo para alérn da distincao classica entre texto prirnário e texto secundario. Esta ambiguidade e o efeito da passa gem decisiva de urn regime de representacáo (Dar-stellung) para urn ). 46 outro de proeluçao (Her-scellung) (Poschmann, op. cit.: pane nesta tornado tem eo 0 teatro português conternporân deriva, ora praticando urna escrita de inspiracâo pos-drarnacica, era aproxirnando-se de criaçöes de teor performativo, corno sucede corn Lucia Sigaiho ou corn os trabaihos mais visionarios d’O Bando, por exernplo. Urn sintorna desta participaçâo pode encon trar-se nos cartazes e nos anóncios que semanairnente aparecern publicados nos jornais: jovens criadores assumem a adapzaçao tea tral de textos de proveniéncia dIspar; encenadores menos jovens, veja-se o caso de Jorge Silva Melo, produzern textos para teatro a partir de serninários de escrita criativa. Frometeu, do citado Jorge Silva Melo, é urn caso exemplar desta tendéncia. Na versão impres sa, o texto surge corn o subtItulo de Rascunhos. 0 termo e particu larmente feliz quanto a ilustraçao das alteraçöes que tenho vindo a descrever. A referida passagern da representacáo para a produçao é assumida em termos expilcitos. Frometeu chega ser, nas palavras do próprio autor, urn rexto em que ele ((gostava de partilhar a produ cáo do próprio pensarnento (Melo, 1997:182, itilico meu). Serao peças, serão notas?’>, pergunta-se o autor. 56 a proposta ecuménica de uma textualidade teatral podera livrar a pedagogia do texto dra mático de encaihar na dnvida sobre as questOes relacionadas corn a identidade discursiva que o teatro actual ihe suscita. Permito-me char, a este propósito, a opinião de J. Veltruski, urn semioticista da primeira geração, para quem a <querela sern fim acerca da natureza do drama, isto é, se é urn género literario ou urna peca teatral, é TEATRALIDADES 163 inteirarnente fütil (...) uma coisa não exclui a outra (apud Gums bourg, 1988:164). Esres Rascunhos são-no pacificamenre e sem trauma, apesar da resisréncia de Silva Melo aos ((pudins’> da escrita colectiva, tao cm yoga: Quem quisesse escrevia rextos que cram discutidos. Cenas, variantcs, parafrases, contrapropostas>’ (Melo, 1997:183). 0 menu é rigorosamente intertextual: entre o Prometeu Agrilhoado, excertos da acta do julgamento de Boukharine, o Mani festo do Panido C’omunista, a pocsia de Comes Leal e os Dialoghi de Cesare Pavese. Abertura, performatividadc, intertexrualidade: cstes Rascunhos são certamenre uma courada para trés dos mais celebres cavaleiros da pos-modernidadc. logo e interpretação Urn segundo factor tern vindo a influenciar a relaçao do teatro corn a escola, na sequéncia do reconhecimento das virrudes pedago gicas da cena. Modernidade, escolarizaçao e pedagogia foram trés vecrores que deflniram o capital educativo do rearro, apesar dos mu meros preconceitos que hisroricarnente o acornpanharam a recusa do reatro sempre escondcu uma resisréncia geral aos meca nismos da seduçao. Ainda antes do aparecimento da moderna peda gogia, instituiçôes seculares e religiosas exploraram as vanragens do contrato corn a cena. Recorde-se o projecto jesultico de urn tearro retorico-moral, Lie! ao ‘cxercIcio espiritual’ de Loyola. Recordem-se ainda o cenário didactico do reatro iluminista e a utopia da escola republicana, lentarnente encenada por varios palses ao longo de Novecentos. A própria máquina de propaganda toralitaria colocara o tearro ao serviço da cararse ideológica. Corn o advento das pedagogias centradas no aluno, o teatro surgiu na escola como elemento potenciador do desenvolvirnento e da sociabilizaçao do indivIduo (cf. Redington, 1983). Esre rnovi mento alargou-se de forrna diversa enrre os vários palses europeus, segundo urn calendario que espelhava certa diferença de rirmos nacionais. A entrada do teatro verificou-se desde os prirneiros anos de escolarização. Corno se podc let no (<Preârnbulo), a urn rccente FERNANDO MATOS OLIVEIRA 164 manual de Expressao Drarnatica, <<as actividades teatrais tern agora direito de cidadania nos estabelecirnentos escolares>’ (cf. Landier, 1993). Entre os metodos activos, o teatro de marionetas tornou-se urn clássico. Em 0 Fantoche Ajuda a Crescer, Isabel Silva Costa sin tetiza a força emancipadora que a psicologia da infancia percepciona cia arte dos bonecos. Como nas sessOes de expressäo dramatica, a palavra-chave é aqui o jogo. E o jogo que no processo educativo res ponde aos impulsos lüdico, social on cognitivo. Na Europa, o teatro ia educaçao institucionalizou-se a partir dos anos 60 e 70. Integrou-se noutros nIveis de ensino e beneficiou do apoio de prograrnas especIficos, virados para o incremento de contactos entre a escola C OS agentes do mundo teatral, sobretudo ao nIvel de actores e de encenadores. De urn modo geral, o teatro pas sou a ocupar urn espaço extracurricular, préxirno daquele que a escola dedicava as artes. Em certos paises, a Expressao Drarnatica aparece corno urna disciplina de opção, podendo <<ajudar a conscruir rnóltiplas pontes entre a arte e o ensino’> (Landier, op. cit.: 12). Sen tindo a presenca do teatro na escola, encorajada ainda pelos desen volvimencos mais recentes no estudo do teacro, a pedagogia do rexto dramatico viu facilitado o salto, frequenternente mortal, da pagina para a cezza. Limiro-me, por agora, a produzir aqul algumas obser vaçöes a propósito da natureza e da legitimidade deste salto. 0 para digrna do jogo cénico, cujo ludismo era originalmente destinado a emancipação de alunos nos primeiros anos de escolaridade, através de exercicios destinados a afirrnaçao e a expressão do individuo, che gou entretanto aos ültimos programas da disciplina de Português: <<A especificidade do texto dramatico ieva-o a set encarado como jogo, corisiderados os objectivos e as exigências da cena. A relaçao entre a multi plicidade de linguagens que o especticulo teatral implica (cenário, ilumina çio, sorn, objectos, vestuirio, caracterização, marcaçio, gesto....) pode servir para desencadear a criatividade de maneira a manifestar-se o entendimento do texto ou da situação de que se partiu, fazendo-se dde uma recriaçäo na perspectiva do encenador. Neste sentido, é recomendavel que o aluno dra matize cenas ou construa pequenas peças de teatro e mesmo guiöes destina dos a televisio>’ (Portugués A e B Prograrnas do 10.0, 11°c 12.° anos). — TEATRALIDADES 165 Atenda-se nas graves implicaçoes destas propostas. Dispenso me de comentar as vantagens do treino precoce em scrzpt televisivo. Em primeiro lugar, ao insistir apenas na especificidade do texto dra mático, corno virnos acima, este argumento pressupöe a marginali zação de parte importante do património textual do teatro contern porâneo. Em segundo lugar, a set levado a letra, uma tal concepção reduziria a interpretação do texto a urn jogo ou a urn exercicio de adivinhaçao: ao aluno e pedido para imaginar, mentalmente ou no teatro da sua escola, a encenação do texto que tern pela frente. 0 equIvoco está em pensarmos que a encenaçäo de urn texto dis pensa o acto interpretativo, corno se o trabaiho critico fosse redutI vel a urna sirnples transposiçâo medial. Pelo contrário, tanto o texto corno a cena exigern ambos a disponibilidade crItica do leitor e do espectador a não ser que a escola pretenda subsidiar gratuita rnente a dormencia da sociedade do espectaculo. Ideias corno esta resultarn da pressão de uma nova vulgata que, em lugar do texto, julga agora a cena como a justificaçao ültima para a existência da letra. A fetichizaçao pedagogica da representacão do texto dramatico não pode rasurar o confronto necessário do leitor corn o texto, sobretudo quando o encontro ocorre na sala de aula. A representa ção do texto dramatico equivale sernpre, em terrnos sernióticos, a urna segunda escrita. Ora, é na prirneira escrita que a escola se encontra corn Gil Vicente ou corn Alrneida Garrett: <(‘When a dra rnatist writes a play, he is not writing a story which others can adapt for perfornance: he is writing a literary work in such a rnanner that it can be directly performed>’ (‘Williams, 1970:170). Na prática escolar, o texto drarnatico parece por vezes 56 existir corno pretexto para urn jogo algo excéntrico na ada de Portugues. 0 teatro legitirnou a sua presença na escola ao contribuir para a reconciliaçao dos alunos corn os textos do passado. Esta reconci liaçao, apesar de forçar o teatro a urna sintonia instrumental corn os conteudos curriculares, só podera acontecer se souber integrar a dernora e o esforço inerentes a leitura e interpretacão dessa rnesrna herança textual. Unia condiçao para se atingir ml objectivo passa certarnente pela capacidade da escola em resolver a oposição entre o teatro-forrnaçao e o teatro-produçao. Se o prirneiro cornpreende o — 166 FERNANDO MATOS OL[VEIRA treino da leitura, da escrita e o encontro ético corn os valores do património textual, a produçao de teatro ern contexto escolar, por seu lado, tern sido objecto de aiguns equivocos. A própria escola cede frequenternente a urn uso publicitário das suas incursöes tea trais, a bern do reconhecirnento cornunitário. Os encontros de tea no escolar contribuern muitas vezes para a pacificaçao do tecido social envolvente e para a celebraçao de projectos educativos, sosse gando assirn as instituiçöes e os pais dos alunos. Mas a encenaçáo de urna peca na escola, mesrno quando se traduz na existéncia de urn atelier de teatro, deveria gent corn especial cuidado as consequên cias da selecçao do elenco, pot exemplo, alargando as actividades de produçao ao major nórnero de alunos e maxirnizando a multiplici dade de competências a solicitar ao longo do processo de encenação. 0 risco de exclusão, causado pot urn rnimetismo profissional que a escola quase nunca comporta rnateria]rnente, pode bloquear o acesso dos alunos ao rnelhor que o teatro Ihes pode dan: induçao ao colectivo, contra a sociabilidade fragmentada da contemporanei dade; criação de urn espaço simbólico capaz de organizar as referen cias e de semantizar a experiéncia; contacto vivo corn a palavra tex tual; potenciar a irnaginaçäo e a sensibilidade. Estudos Teatrais A arnbiguidade que caracteriza a presença do teatro ern con texto escolar verifica-se também no modo corno os esrudos teatrais se apresentam nos nIveis supeniores de ensino. Dividido entre a uni versidade, as Escolas Superiores de Educaçao e as instituiçOes dedi cadas ao ensino profissional do teatro, a ante do especraculo vive urna realidade diversa em cada urn destes instirutos: na universi dade, mantérn-se simultaneamente dentro e fora das letras; nas esco las profissionais de teatro, a urgéncia da profissao parece ter claro ascendente sobre a dernora que os Iivros pedern; finalmente, em Escolas Superiores de Educaçao como a de Coimbra, os estudos tea trais orientarn-se para a animaçäo drarnatica e para a educacao. TEATRALIDADES 167 0 trajecto do teatro pelos corredores da universidade, a mais antiga das instituiçôes mencionadas, ilustra as dificuldades de inte gracão curricular das artes da cena. 0 estudo universitário do texto drarnatico procurou desde cedo expressão (e legitimaçao) teórica para a ansiedade especracular que parecia conraminar o seu trabaiho textual. Perante os obstaculos que a filologia levantava a qualquer incursão interdisciplinar, a partir de meados dos anos 60, o estudo do drama encontrou nas promessas da serniórica uma hipotese de redençao teórica. Na verdade, a serniótica vinha dar resposta ao de signiflcacao que segundo U. Eco exigiria urn esforço suplernentar a analise do teatro (apud Guinsburg, 1988:17). Se o surgirnento da semiótica tearral vinha conferir ao esrudo do drama pane da cerrificaçao teórica que este necessitava para se afirrnar perante a acadernia, a nova ciência da significacao oferecia-ihe igual mente urn metodo cuja produrividade rapidamente se traduziu em inórneros ensaios e manuais. Após a investigação pioneira do CIr cub LinguIstico de Praga, nornes corno os de Tadeusz Kowzan, Keir Elam, Marco de Marinis, Erika Fischer-Lichce, Patrice Pavis ou Anne Ubersfeld, entre outros, puderam construir urn programa de leitura do fenorneno reatral que ainda hoje se mantém activo. E muito significativo, alem de indicador do sucesso estratégico deste curso teórico, que os protagonistas da serniótica teatral estejarn actualrnenre integrados em departamentos universitários ocidentais, sejam eles intitulados Theatre Studies ou Etudes Théatrales. Curiosarnente, os motivos da negacão da cidadania acadernica ao teatro são os rnesrnos que recenternente vêm mostrando o seu ascendenre metaforico sobre vários campos disciplinares. A perfor matividade invadiu os estudos culturais, ern todas as suas variantes. As questôes da identidade que ocupam a agenda culturalista, pos colonial, ferninista, gay ou lesbica, tern sido apresentadas e descritas corn o auxIlio de urn léxico que sintoniza corn Os estudos teatrais. 0 alcance critico da ‘performance’ tern interessado a todos as incur sOes antiessencialistas. Mas os estudos teatrais nao parecem ter bene ficiado com tais ernpréstirnos, pelo contrário. Nern mesrno a afini dade suplernentar entre a imagem popular da arte do teatro e a actualidade que as rnanifesraçoes arrIsticas lowbrow gozam entre as 162 FERNANDO MATOS OLIVEIR4 novas geraçOes academicas parecem ter contribuldo para o reconhe cirnenro dos departamentos de eseudos teatrais. A conceptualidade forjada pelos dos estudos teatrais continua, ainda assirn, prolife rante. Dc algum modo, o teatro e objecto arnputado na universi dade, no ensino secundario, nas escolas de teatro e ate nas escolas superiores de educaçao, onde transrnigra para o universo da expres são dramática. Mas, como afIrmou urn professor experiente, é sina deste tempo termos (proliferaçao em todo o lado e integracio em lado algurnn (Barker, 1995:102). Os programas universitários continuam centrados no estudo do drarna. Este rrabalho decorre segundo a agenda dominanre dos estudos lirerarios. Sucede assim, porque o carnpo teatral não chega sequer a ter oportunidade de responder corn os seus argumentos, no terreno universitário, a epistemologia literária que o circunda. 0 próprio estudo do drama recalca frequentemente a reoria reatral; quando muito, concede a teoria dramatica que meihor serve a sua poiltica herrneneutica. E rnuito improvavel que urna aula sobre drama apresente A. Appia seja a quem for. E claro que o inverso também não é defensavel: a teoria tearral não pode divorciar-se do texto so para se afirrnar perante a teoria literaria. No entanto, este esquecimento por pane da universidade, apenas faz parecer malor a debilidade de uma epistemologia teatral que, de facto, rnenoriza os estudos teatrais perante as outras disciplinas (Marranca, 1996:158). Parte do problema rem que ver corn o lugar das arres, ou da falta dde, no nosso horizonte universitário. Como prova a histOria do modernismo e das vanguardas, a predisposicao interdisciplinar do teatro 56 teria a ganhar com a proxirnidade das arres, não fossem estas vItimas de identico oscracisrno. Em Portugal, a bondade da actual Lei de Bases do Sisrerna Educativo propöe para o terceiro ciclo, no seu Artigo 8°, a aquisi cáo sisternática e diferenciada da cultura moderna, nas suas dimen söes humanIstica, lireraria, artIstica, fIsica e desportiva, cientifica e tecnolOgica”, rnas a realidade material e curricular das escolas ante cipa, logo nos estudos secundarios, a exclusao das aries que a uni versidade rnais tarde cauciona. 0 Artigo 48.° trata de as rerneter para urn estatuto complementar que visa sobretudo a ocupaçáo dos TEATRALIDADES 169 tempos livres: ((Estas actividades de complemento curricular visam, nomeadarnente, o enriquecirnento cultural e cIvico, a educaçao fIsica e desportiva, a educaçao artIstica e a inserção dos educandos na cornunidade>>. A universidade tern, ela própria, urn passado rela cionado corn a gestão complernentar do teatro: náo foi exactamence por representar a funçao tradicional de cornplernento cultural que o teatro universitário adquiriu estatuto departarnental. 0 caso frances traduz a relaçao Intima entre a institucionaliza ção dos estudos teatrais e abertura progressiva as artes e ao contem porâneo. Quando Jacques Scherer cria na Sorbonne o prirneiro ins tituto de estudos teatrais, esse ano de 1959 coincidia corn o auge do Teatro Popular, corn a inIcio cia descentralizaçao cultural-teatral ainda corn a vaga brechtiana que haveria de rnobilizar autores e cr1tAcos corno R. Barthes. Em 1965, Denis Bablet está já em condiçoes de associar o CNRS a projectos fundadores da rnoderna investiga cáo teatral, ern areas como a cenografia e a encenaçáo. Os aconteci rnentos de 1968 tern neste processo uma irnporcmncia decisiva, ao abrirem a universidade a cultura contemporânea e ao estabelecerern conriguidades entre os campos da investigação e da criaçáo. Actual rnente, a Franca possui cerca de quinze universidades corn departa rnentos de estudos teatrais. 0 quotidiano dents centros, rnascados por diferenças curriculares rnais ou rnenos profundas, continua con tudo condicionado por urna existéncia rnaterialrnente deficitária, corn debilidades no equiparnento e na constituição do corpo docente. Urn traço que caracteriza a quase generalidade dos depar tarnentos europeus, contrariarnente a (alguns) congéneres none arnericanos, é precisamente a contingéncia que preside a forrnaçao das equipas docentes. Nao é exactarnente este o caso em Portugal, onde a rarefacçao dos estudos teatrais pouco contribui para a sua visibilidade. No ano de 2002, apenas as Universidades de Lisboa, de Evora e de Coimbra dispunharn de cursos diversarnente cornpromeridos corn os estudos teatrais. De urn rnodo geral, a presença do teatro nas resrantes uni versidades rnantém o vinculo subsidiario relativamente aos departa mentos de literatura. Os rnotivos deste despovoarnento da paisagern teatral são variados e, por certo, academicamente defensaveis, 7O FERNANDO MATOS OLIVEIRA cenharn des origem na politica curricular ou na politica financeira. Entre nos, item o rastilho da semiótica teatral, nem a chegada tardia do teatro a educaçao, a partir da Revoluçao de 74, logrararn urn movimento de institucionalizaçao dos estudos teatrais. Pot outro lado, a cooperação entre as instiruiçöes nacionais empeni-tadas nos escudos teacrais é praticarnente inexistente, apesar de a troca de sabe res e de experiências set francamente aconselhavel entre as escolas profissionais e as universidades. Estas ültirnas desconhecem a inclu são de artistas nos seus projectos educativos, bloqueando o estabele cirnento de mediaçoes como a permitida pela figura do artista-resi dente, por exemplo. Mas a vocação da universidade para a investigacão constitui tambem urn capital que beneficiaria toda as organizacóes corn urn papel activo no campo do teatro. As acçOes desenvolvidas pela secção educativa do Teatro Nacional de São Joao e o cruzamento prornovido pelo CENDREV encre a encenação e a reflexão conscituem dois bons exernplos das vanragens das parcerias crIticas e/ou criativas. BIBLIOGRAFIA AA. VV., (s/d) Os Cartazes de Paris (Revoluçao & Maio de 68), Lisboa, Dellos. (1981) ((Filmer le theatre>>, in C’ahiers theatre Louvain, N.° 46. (1987) Distancing Brecht>’, in Theatre Journal, Vol. 39, N.° 4. (1991) Puck ‘El titerey las otras artes Bilbao, Centro de Documenta cion de Titeres. (1996) 0 Cinema Vai ao Teatro, Lisboa, Cinamateca Portuguesa/Museu Nacional do Teatro. (2000) Barcas, Porto, Teatro Nacional S. Joao. ADolaio, Theodor, (1975)Rede uber Lyrik und Gesellschaft, in Noten zur Literatur I, Frankfurt am Main, Suhrkamp, pp. 73-104. ADRADOS, Francisco R., (1975) Festival, Comedy and Tragedy The Greek Origins of Theatre, Leiden, E. J. Brill. ALMAGRO, Juan Manuel Azpitarte, (1975) (<La ‘ilusión’ escénica en el siglo XVIII,>, in Cuadernos Hispanoamericanos, N.° 303, pp. 657-676. ALMEIDA, Fialho, (1992) Centenario doTeatro deS. Carlos>, in Os Gatos, Vol. VI, Lisboa, Circulo de Leitores, pp. 196-201. ALTMAN, Rick, (1996) ((Otra forma de pensar la historia del cine: urn modelo de crisis”, in Archivos de Li Filmoteca, N.° 22, pp. 6-19. ANTUNES, Acácio, (1917) 0 Cinematographo, Lisboa, Arnaldo Bordalo Editor. APPIA, Adolphe, (sld)A Obra de Arte ThtaL Lisboa, Arcadia. Arnott, Peter D., (1989) Public and Performance in the Greek Theatre, Lon don and New York, Routledge. ARTAUD, Antonin, (1993) 0 Teatro e o seu Duplo, São Paulo, Martins Fontes. AUSL4NDER, Philip, (1 987)<Towar& a Concept of the Political in Postrnodern Theatre>>, in Theatre JournaL N.° 39, pp. 20-34. — FERNANPO MAiDS OLIVEIRA 172 4 decor de theatre. De 1870 a BABLET, Denis, (1975) Esthdtique generate u 1914, Paris, CNRS. BALAKIAN, Anna, (1969) El movirniento simbolista, Madrid, Guadarrama. BMUSH, Jonas, (1985) The Anti-theatrical Prejudice, Berkeley, University of California Press. BARRAULT, Jean-Louis, (1959) Nouvelles reflexions sur te theatre, Paris, FLmarion. BARTHES, Roland, (1964) Essais critiques, Paris, Seuil. for What Theatre?” in New BARKER, Clive, (1995) What Training Theatre Quarterly, Vol. XI, N.° 42, pp. 99-108. BARTOLI, Francesco, (1991) La Supermarioneta de Craig. Preámbulo del teatro abstracto>, in AA.VV., 1991, pp. 16-21. BENjIN, Walter, (1992) cA Obra de Ant na Era da sua Reprodutibili dade Tecnica’, in Sobre Arte, Ticnica, Lingrtagem e Politica, Lisboa, Relogio d’Agua. BERNHARDT, Sara, (1994) ElArte del Teatro, Barcelona, Parsifal Editores. BERNSTEIN, Richard J., (1991) The New Consteliation. The Ethical-Politi cal Horizons of Modern it-ylPostinodernity, Cambridge, Polity Press. BtRJUNGER, Johannes, (1991) Theatre, Theory Posnnodernism, Blooming ton and Indianapolis, Indiana University Press. Bzsv, Herbert, (1987) The Eye ofPrey. Subversions ofthe Postrnodern, Bloo mington, Indiana University Press. BWMENBERG, Hans, (1990) Naufrdgio corn Espectador, Lisboa, Vega. BOAI, Augusto, (1979) Theatre ofthe Opressed London, Pluto Press. BOGATYREV, Piotr, (1999) Czech Puppet Theatre and Russian Folk Thea tre”, in The Drarna Review, Vol. 43, N° 3, pp. 97-114. BRADBY, David; SpARKs, Annie, (1997) Mite en Scene. French Theatre Now, London, Methuen. segmentos duma BMIqcO, joao de Freitas, (1978) <<Mósica e Literatura 42, Lisboa, tras, pp. 21-35. relaçao inesgotavel”, in ColdquiolLe BRAUNECK, Manfred, (1993) Theater irn 20. Jahrhundert. Prograrnrnschrrf ten, Stilperioden, Refbrrnrnodelle, Hamburg, Rowohir Verlag. BRECHT, Bertolt, (1967) Gesamrnelte Werke, 20 vols., Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag. (1973) Arbeitsjournah 2 vols., Frankfurt am Main, Suhrkamp \èrlag. — — TEATRALIDADES 173 BIuTO, Manuel Carlos de, (1989) Opera in Portugal in the Eighteenth Cen tiny, Cambridge, Cambridge University Press. (1 989a) Estudos de Historia k Müszca em PortugaL Lisboa, Editorial Estam p a BROOK, Peter, (1989) The Shfiing Point. 40 Years ofTheatrical Exploration. 1946-1987, London, Methuen. BURNS, Elizabeth, (1972) Theatricality. A Study ofConvention in the Thea tre and in Social Lfr, London, Longman. Cwpos, Agostinho de (1924) Ler e Tresler, Lisboa. CAJusON, Marvin, (1993) Theories of the Theatre, Ithaca/London, Cornell University Press CARVALHO, Mario Vieira de, (1976) A Misica e a baa Ideologica, Lisboa, Editorial Estampa. (1978) Ectes Sons, Faa Linguagem, Lisboa, Editorial Estampa (1983) <(Do teatro de Gil Vicente ao teatro de Wagnen’, in l7ertice, No 454, pp. 29-39. (1993) Pensar 6 Morrer ou a Teatro de São Carlos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda. (1999) Razao e Sentimento na Comunicaçao MusicaL Lisboa, Relogio d’Agua. CoSTA, Alves, (1954) Breve I-Iisiória eLi Imprensa Cinematograjica Portu guesa, Porto, Cineclube do Porto. COSTA, Isabel Alves; Baganha, Filipa, (1991) 0 Fantoche queAjuda a Cres cer, Porto, Ediçoes Ma. COSTA, Joao Benard da Costa, (1991) Histórias do Cinema, Lisboa, INCM. COTERILLO, (1986) <<Festivaliris, in El Publico, N038, p. 3. CRAIG, Eward Gordon, (1990) LArtael Teatre, Barcelona, Institut del Tea tre. Claire (dir.), (1997) Avignon. 50 Festivals, Paris, Actes Sud. MAN, Paul, (1984) ‘<Aesthetic Formalization: Klejst’s Uber eLis Mario nertentheater’, in The Rhetoric of Romanticism, New York, Columbia University Press, pp. 263-290. DAVID, DE FERNANDO MATOS OLIVEIRA 174 Guy, (1991) A Sociedacle do Ecpectdculo, Lisboa, Mobilis in Mobile. DERRIDA, Jacques, (1989) <<El teatro de Ia crueldad y Ia clausura de Ia representaci6n, in La Escritura y La Difrrencia, Barcelona, Editorial Anthropos, pp. 318-343. DE T0R0, Alfonso, (1990) Semiosis teatral postmoderna: intento de un modelo, in Genus, Vol.9, pp. 25-5 1. Didrio etc Noricias, Lisboa, 1920-1935. DIDEROT, Denis, (1959) Oevres Esthetiques, Paris Editions Gamier. (1993) Paradoxo sobre o Actor, Lisboa, Hiena Editora. DORT, Bernard, (1988) La representation emanctpl, Paris, Actes du Sud. DEBORD, Norbert, (1992) A Busca dci Excitaçao, Lisboa, Difel. (1989) 0 Processo Civilizacion4 Lisboa, Ediçoes Dom Quixote. FEHER, Ferenc, (1985)<<Lukács, Benjamin, Theatre”, in Theatre Journal, Vol. 37, N.° 4. Friuni, António J., (1986) A Fotografia Animada em Portugal, Lisboa, Ediçao da Cinemateca Portitguesa. von ihm von Brecht aus FIEBACH, Joachim, (1989)<<Nach Brecht fort?”, in Heise, 1989, pp. 171-188. FIGuEIRED0, Fidelino de, (1966) De Regresso de Hollywood...”, in Ideias dePa4 Lisboa, Portugália Editora, pp. 121-133. FIScHER-LEcHTE, E., (1993) Kurze Geschichte des deutschen Theaters, Tubingen und Basel, Francke Verlag. FOREMAN, Richard, (1995) My Head was a Sledgehammer, New York, Overlook Press. )”Ir ao cinema nos anos 30”, in LerHistdria 4 FRANç& José-Augusto, (199 No 26, pp. 117-130. (1995) <<A cultura cinematografica portuguesa em anos passados>’, in Senso, N.° 1, pp. 33-47. ELIAS, — — Ron, (1995) (Con)Fusing Theory and Prac tice: Bridging Scholarship and Performance in Theatre Pedagogy, in Theatre Thpics, Vol. 5, N.° 1, pp. 69-80. GOFFMAN, Erving, (1993) A Apresentaçao do Eu na Vida etc Todos as Dias, Lisboa, Relógio d’Agua. GAINOR, J. Ellen; WtLsoN, TEATRALIDADES GUINSBURG, 175 J. et at. (org.), (1988) Semiologia do Teatro, São Paulo, Edi tora Perspectiva. HEISE, Wolfgang (ed.), (1989) Breeht 88. Anregungen zum Dialog uber die VernunfiamJahrtausende, Berlin, Henschelverlag Kunst und Gesells chaft. HERDINA, Heinz, (1989) <Postmodernes Interieur>, in Heise, 1989:246255. HUIZINGA, Johan, (1988) Homo Ludens. Essai sur lafonction .cociale dujeu, Paris, Gallimard. (1993)Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism, London, Verso. JAMESON, Fredric, (1988) <(Bilder der Trostlosigkeit und Zeichen des Mangels. Zum deutschen Drama der Postmoderne, in Tenaenzen des Gegenwartstheaters, Wilfried Fleck (ed.), Tubingen, A. Francke Ver lag, pp. 157-176. KERMAN, Joseph, (1990) A Opera como Drama, Rio deJaneiro, Zahar Edi tor. KLEIST, Heinrich von, (1988) Sobre el teatro ek marionetasy otros ensayos de arteyfilosofia, Madrid, Hiperión. KRUGER, Hans-Peter, (1989) (4Postmodernes beim jungen Brecht ?‘>, in Heise, 1989, pp. 147-170. KAFITZ, Dieter, de, (1924) Teatro Futuro. Visno de uma Nova Drama ttagia, Coimbra, Imprensa da Universidade. LACOUE-LABARTI-iE, Philippe, (1980) Diderot, Ic paradox de Ia mimésis”, in Poetique, N.° 43, pp. 267-281. LANDIER, Jean-Claude; BARRET, Gisèle, (1993) Expressão Dramatica e Tea tro, Porto, EdiçOes Asa. LAZARO’ØCrICZ, Klaus; BALME, Christopher (eds.), (1991) Texte zur Theorie des Theaters, Stuttgart, Reclam. LEvsR, Janet, (sid) A Loucura do Futeboh Rio de Janeiro, Editora Record. LONGO, Oddone, (1990) The Theater of the Polisn, in Winkler, 1990:1219. LACERDA, Augusto FERNANDO MATOS OLIVEIRA 76 A Cidade e a Cultura. Urn Estudo sobre Fr4tjcat Cu/turais, Porte, Ediçoes Afrontamento. e nietzs LOPES, Oscar, (1994)Ant6nio Patricio: urna Saudade decadente 145-158. Caminho, pp. chiana’, in A Busca do Sentido, Lisboa, Heritage symboliste. drame le et do Pessoa (1977)Fernan LovEs, Teresa Rita, et creation, Paris, Centro Cultural Portugués. LorEs, Joao Teixeira, (2000) Bonnie, (1996) Ecologies of Theater, Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press. Mao, Jorge Silva, (1997) Prometeu. Rascunhos, Lisbea, &etc. (1998) <Teatro para os novos reis, religiao dos novos papas>’, in Essas Outrat Histdrias que hapara Contar, Lisboa, Ediçoes Salarnandra, pp. 29 8-308. MEmj.How, Vsevolod, (1986) Teoria Teatrah Madrid, Editorial Funda mentos. (1991) El ceacro de lena”, in AA.VV, 1991, p. 27. MICHAUD, Guy, (1947) Message poétique du symbolisme, Paris, Nizet. MONLEON, José, (1997) oArgentaria: un festival para los teatros espanö les, in Primer Ado, N.D 270, pp. 29-30. MORIN, E.; LEFORT, Cl.; Coundray, J.-M. (1969) Maio 68: Inventdrio de zima Rebelino, Lisboa, Moraes Editores. MouRA, Gisella de Araüjo, (1998) 0 Rio Correpara o Maracana, Rio de Janeiro, Fundaçao Getulio Vargas. MULLER, Heiner, (1979) oDer Schrecken, die erste Erscheinung des Neuen, in Theater Heute, N.° 25. (1980) Heiner Muller: Brecht zu gebrauchen, ohne ihn zu kritisie ten, ist Verrat”, in Theater 1980. Jarhhuch von ‘Theater Heute pp. 134-135. (1985) Shakespeare Factory 1, Berlin, Rotbuch Verlag. (1989) Shakespeare Factory 2, Berlin, Rotbuch Verlag. (1994) Krieg ohne Schlacht. Leben in Zwei Dikiaduren. Eine Auto bio graphie, Koln, Kiepenheuer & Witsch. MARRANCJ4, Almada, (1990) Poesia Lisboa, IN-CM. (1992) Ensaios, Lisboa, IN-CM. (1993) Teatro, Lisboa, IN-CM. NEGREIROS, TE&TRALIDADES 177 NIETZSCHE, Friedrich, (1973) Richard Wagner in Bayreuth. Der Fall Wag ner. Nietzsche contra Wagner, Stuttgart, Reclam. (1988) A Origern da Tragedia Lisboa, Guimaraes Editores. NIGHTINGALE, Benedict, (1998) The Future ofTheatre, London, Phoenix. Fernando Matos, (1997) 0 Destino di Mimese e a Voz do Palco. 0 Teatro Por:ugues Modern,,, Braga/Coimbra, Angelus Novus. ORTEGA Y GASSET, (1982) Ideas sabre el teatro y La novela, Madrid, Alianza Editorial. OLIvEIRA, Antonio, (1919) Dinis e lsabe4 Lisboa, Livrarias Aillaud e Ber trand. (1972) D. Joao e a Mascara, Lisboa, Livraria Sam Caries. (1989) Poesia Completas, Lisboa, Relogio d’Agua. (1990) 0 Fim. Pedro o Cru, Lisboa, ReiOgio d’Agua. (1995) Serao Inquieto, Lisboa, Reiogio d’Agua. PAvIS, Patrice, (1992) Theatre on the Crossroads of Culture, London, Rou tiedge. PEDRO, AntOnio, (1949) O Caso do Teatro em Portugals, in Di4rio de Lisboa, 13 a 27 de Juiho. PErtEIRA, José Carlos Seabra Pereira, (1975) Decadentisrno e Simbolinno na Poesia Portuguesa, Coimbra. PEgEIR, Maria Helena da Rocha, (1979) Estudos €4’ Historia di Cultura Cl4ssica, Lisboa, Fundaçao Calouste Guibenkian. PESSOA, Carios J., (1997) <Quem é o Teatro da Garagem?’, in Peregrina çño. 0 Fin de Ariadne, Lisboa, Teatro da Garagem. (1998) Pentateuco. Manual etc Sobrevivenciapara o Ano 2000, Lisboa, Cocovia. PLATAO, (1990) A Repdblica trad. de Maria Helena da Rocha Peteira, Lis boa, F.C.C. P0RTO, Caries, (1997) Fl TEL Pdrria & Teasro de Expressao IbErica, Porto, Fundaçao Eng. Antonio de Mmeida. Programas (10.0, 11.0 e 12.0 anos), Ministerio da Edu Porruguês A e B PATRICIO, — cação, Departamento do Ensino Secundario, 1997. PROUST, Serge, (1993) Theatre et modernitt; Avignon 1947-1987, Bor deaux, DEA-Sociologie. 178 FERNANDO MATOS OLIVEIRA RAB1LLARD, Sheila, (1991) oDestabilizing Plot, Displacing the Status of Narrative: Local Order in the plays of Pinter and Sheparth, in Thea tre JournaL Vol. 43, Pp. 4 1-58. Por REBELO, Luiz Francisco, (1979) 0 Teatro Simbolista e Modernista em tugah Lisboa, IN-CM. REDFELD, James, (1990) <<Drama and Community: Aristophanes and Some of His Rivals>, in Winkler, 1990:314-335. REDINGTON, Christine, (1983) Can Theatre Teach?An Historical and Eva luative Analysis of TIE, Oxford, Pergamon Press. RJBEIRO, Manuel Felix, (1983) Figuras e Factos cii flistdria to Cinema Por tuguês (1896-1949), Lisboa, Ed. Cinemateca Portuguesa. RaKE, Rainer Maria, (1993) As Elegias de Dulno, Trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa, AssIrlo & Alvim. ROBERTS, David, (1991) Brecht and Contingency’>, in Art and Enlight ment, Lincoln/London, University of Nebraska Press, Pp. 183-194. ROBICHEz, Jacques, (1957) Le symbolisme au theatre, Paris, l’Arche. RODRIGUES, Nelson, (1993) A Sombra this Chuteiras Imortais, São Paulo, Companhia das Letras. (1994) A Pdtria em Chuteiras, São Paulo, Companhia das Letras RODRIGUES, Urbano Tavares, (1989) <António Patricio et Ic theatre symbolist français, in Acta.s to Primeiro Congresso to Associaçao For tuguesa St Literatura Comparada, Vol. I, pp 289-296. Roussw, Jean-Jacques, (1967) Lenre a M D’Alembert cur son article Geneve, Paris, Flammarion. Gunther, (1982) Anarchie in 5cr Regie?, Frankfurt am Main, Suhr kamp Verlag. (1996) Theater im Zeitalter der Talk-Shows, in Die Neue Runds chau, No 104, pp. 143-162. R7’qGRT, Jean-Pierre, (1992) Introduçdo a Andlise do Teatro, Porto, Edi çôes Asa. RUHLE, Marcello (org.), (2000) Sete Sois Sete Luas. 1993-1999, Pisa, Edi zioni ETS. SADIE, Stanley (ed.), (1992) The New Grove Dictionary ofOpera; London, Macmillan Press. SACCO, TEATRALIDADES 179 Jean-Pierre, (2002) 0 Futuro ,149 Drama; Porto, Campo das Letras. SARRAzAC, Jean-Paul; C0HN-BENDIT, DanieL; LEFEBvRE, Henri, (1979) A Revoba tie Maio em Fran ça; Lisboa, D. Quixote. Sc&ai&’rrx, Eduardo, (1927) Ja!eias tie Ounos, Lisboa. (1945) A Religido do Teatro, 2a ediçao, Lisboa, Editorial Atica. SCHECHNER, Richard, (1985) Between Theater & Antropology, Philadel phia, The University of Pennsylvania Press. (1994) Performance Theory, New York and London, Routledge. SCHERSHOW, Scott Cutler, (1995) Puppets & PopuLir’ Culture, Ithaca and London, Cornell University Press, SCHUMANN, Peter, (1994-95) <<La radicalidad del teatro de marionetas”, in Malic, N.° 3, pp. 58-61. SERODI0, Maria Helena, (1994) <<0 teatro em Portugal hoje: breve carac terização”, in Vertice, Ila Serie, N.° 59, pp. 58-66. SILVA, Celina, (1994) Almada Negreiros. A Busca tie uma Poética da Inge nuidade, Porto, Fundaçao Eng. António de Almeida. SILVESTRE, Osvaldo Manuel, (1998) <A ideologia do estético em Almada (1917-1933) in Almada Negreiros. A Descobersa como Necessidade, Coord. Celina Silva, Porto, Fundaçao Erig. Antonio de Almeida, Porto, 1998, pp. 401-415. SOEIRO, Aifredo Correia, (1990) 0 Instinto Lz Plateia, Porto, Ediçoes Afrontamento. SZONDI, Peter, (1974) Das lyrische Drama des Fin tie Siecle, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag. (1992) Theorie des modernen Dramas (1880-1950), Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag. SARTE, TURNER, Victor, (1982) From Ritual to Theatre. The Human Seriousness of Play, New York, Performing Arts Journal Press. (1995) The Ritual Process. Structure anti Anti-structure, Berlin/New York, Aldine de Gruyter. 180 FERNANDO MATOS OLIVEIRA VELTRUSKI, Jiri, (1988) <‘0 texto dramatico como componence do reatro”, in Guinsburg, J. et al. (org.), Semiologia do Teatro, São Paulo, Editora Perspectiva, pp.l 3-189. 6 VL4NA, Mario Gonçalves, (1921) Da Sugessac do Animatografo, Lisboa. VICENTh, Gil, (1983) Compilacarn tie todalas Obras tie Gil Vicente, Intr. Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, IN-CM. VILCHES, Francisca Maria; DOUGHERTY, Dru, (1997) La escena madrileña entre y 26 1931. Un lustro tie transición, Madrid, Editorial Funda 9 1 mentos. VIL&R, Jean, (1955) De Ia tradition theAira/c, Paris, L’Arche. Richard, (1983) Dichtungen und Schrzjien. Frankfurt am Main, lnsel Verlag. WWLIAMS, Raymond, (1970) Drama in Performance, London, Penguin Books. WINKLER, John J.; ZrrLIN, Froma 1. (edsj, (1990) Nothing to Do with Dionysos?, Princeton/New Jersey, Princeton University Press. Wooz.iy, Grange, (1931) Richard Wagner a le symbolisme francais. Les rapports principaux entre Is wagnIrisme a lvolution tie l’ide’e symboliste, Paris, PUF. WRIGHT, Elizabeth, (1989) Postmodern Brecht. A Re-presentation, London, Routledge. WAGNER, EDt TA DO S O DestTho da Mimese e a Voz do Pa/cc: o Teatro Português Moderno Fernando Mates Oliveira ISBN 972-8115-68-1 DI I I I IflI I I I 9 789728 115883 o aparato cenico de Novecertos corle’kj a veha rnetalora do teatro urna latitude inesperada A saturação espectacu!ar da contemporan&daae ir-tirna o teatro a neqociar a mortaldade do real ou a dobrar o sono das imagers. Teatralidades propOe ao leitor doze percursos pelo territOr a do espectáculo, de acordo corn urn programa de contiguidades e de alternâncias entre o drama social e o drama estético. Os seus contextos de ocorrOncia são, entre outros, Os do jogo, do cinema, da marioneta, da Opera, da encenaçao, da imitaçao, da escola e da textualidade dramatica. A argumentação tende a juntar em sede critica razOes histOricas e teOricas, drarnatzando ainda o ‘festivo’ que medeia entre a celebraçao de Avignon e a protesto das ruas de Maio de 68. Corn o patrocinio de cUIMBRA _ Urna cidade viva. MIr,STER, 0 04 Cis,,rve,