TEATRALIDADES
12 PERCURSOS
PELO TERRITáRI0 DO EsPECTAcuLO
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
ANUELUS NOVUS
FERNANDO MATOS
OLIVE IRA
(n. 1968)
Docente da Facudade de Letras da Univers:dade de
Coimbra. Vem pubicando artigos sabre literatura e
teatro em diversas revistas.
E autor do Iivro 0 Destino
da Mirnese e a Voz do Pa/co: 0 Teatro Português
Moderno (1997), editor ae unia 4ntoIogia Poet,ca
de Antonio Pedro (1998), do voIme Tearro: Odio
de Raça/0 Cedro VermeTho, de Gornes de Amorirn
(2000, em col. corn Maria Aparecida Ribeiro), e
organizador dos Escritos sobre Teatro, de AntOnio
Pedro (2001).
Ensalo Teatro
*Urnnc4ad.flt
TEATRALIDADES
12 PERCURSOS
PELO TERRITORI0 DO EsPEcTACuLO
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
ANGELIJS NOVUS
© Fernando Matos Oliveira e Angelus Novus (2003)
Capa (maquetagem c grafismo): Francisco Rornäo
Impressao: GC. Grafica de Coimbra, Lda.
producao@graficadecoimbra.pt
ISBN: 972-8115-88-1
Depósito Legal: 195690/03
—
Editora: Angelus Novus, Lda.
Rua do Peneireiro, 10
Quinta da Madalena
3040-716 Coimbra
e-mail: angelusnovus@mail.telepac.pt
Reservatlos todos os direitos de acodo corn a legislacno em vigor
INDICE
Introduçao
1
2
3
4
5
—
—
—
—
—
.
7
Simbolismo e teatro
Teatro da alma
Ocaso Wagner
Mistério
Naufrigio com espectador
13
16
20
24
Estética e marioneta
Objectos animados
A tentação da infancia
Regresso ao coração
29
33
38
Hollywood no Chiado
Mecanismo elecrrico
Cinema como habitus
Sonoro teatricida
47
52
56
0 drama da opera
Musicologia
Opera e emancipação
o genial em Wagner
61
64
70
Moderno pos-moderno
A nova constelaçao
Epica e modernidade
Recepçao e contingência
73
74
77
105
100
98
97
171
FERNANDO MATOS OLIVE]PA
6
6
7
8
9
—
—
—
—
Conversaçao & colagem
A geração da Garagem
Historias, interferencias
Terapia de grupo
0 teatro como festival
Festivalitis
Atenas
Avignon
Portugal
A arte das imitaçôes
A condiço do actor
0 paradoxo de Diderot
Ser natural
No principio era o jogo
Jogo C cultura
Da raposa a bola
Ethos amador
.
10— Cenas da rua
0 festivo em Maio de68
Dramatis personae.
Parábase
11
12
—
—
85
89
94
Encenar os clássicos
0 uso dos classicos
Gil Vicente nosso contemporâneo
As Barcas segundo Corsetri
113
114
120
125
127
130
135
137
139
143
148
152
0 teatro e a escola
Texto dramatico
Texto pos-dramatico
logo e interpretação
Estudos reatrais
Bibliografia
157
159
163
166
INTR0DuçA0
Os cern anos do seculo XX dao a justa para o nómero de rnovi
memos, de escolas de encenação, de vanguardas e de neo-vanguar
das que preencheram urn perlodo marcado pelo triunfo de uma
nova econornia da representacão. A era da rep rodutibilidade ticnica
que em Walter Benjamin permitia ainda uma saida emancipada pan
a arte acabou pot confrontar o teatro corn o fluir intermináveL das
imagens, sujeitando-o ao desinvestimento critico imposto pelas
novas condiçoes historicas e sociais. A erosão da esfera publica e o
ascendente consurnista do espectaculo global pressionam a ancestra
lidade expressiva do teatro, comprometida corn uma comunicabili
dade presencial dernasiado estranha as simulaçoes virtuais da pos
rnodernidade. Deste rnodo, o teatro tende hoje a negociar corn o
mundo da técnica e da imagem sob a pressào de um irnperativo
identitario. A própria hegernonia tradicional do teatro em matéria
de representacão foi progessivamente disputada pela ascensäo do
cinema, depois pela televisão, finairnenre tambern pela emergéncia
internpestiva da Internet.
Curiosamente, a medida que o aumenro da informacao recalca
urn défice evidente de participaco, as metaforizaçoes teatrais tern
invadido o discurso de inómeros terrirórios disciplinares. 0 poder
descritivo do referente teatral, o modo como a sua conceptualidade
responde a diversas formas de interaccâo social, confere aos concei
tos de teasralidade e de performatividade uma enorrne latitude expo
siriva. Da teoria antropologica a investigaçio sociologica, da psica
nálise social a psicologia historica, a rnetafora do teatro rnostra-se
disponIvel para mediar a relaçao entre o individual e o colectivo,
corn a vantagern suplernentar de traduzir a arnbiguidade que carac
teriza a gestäo do quotidiano, divididaentre modalidades auténticas
8
FERNANDO MATOS OUVEIRA
de expressio do ‘eu’ e a adesao a padroes comportamentais alta
mente ritualizados. Por esta razão, as ciências sociais e humanas
beneficiam de uma convergéncia singular corn o campo teatral,
francarnente acelerada a partir dos anos setenta. Os trabaihos plo
neiros de A. van Gennep, N. Evreinoff, de J. Huizinga, de E. Goff
man ou de R. Caillois convertern-se por esta altura nurn projecto
assumido de cruzarnentos disciplinares, particularmente produtivos
no caso do binornio teatro-antropologia, corno provarn os trabaihos
de Victor Turner e de Richard Schechner. Neste contexto, a própria
cultura devern urn espaco perforrnativo e dinarnico, não apenas a
procissão estavel das tradiçoes herdadas.
Enquanto percurso pelo território do espectaculo sob o signo
de Novecentos, este volume reóne precisarnente urn conjunto de
ensaios nos quais o teatro se enuncia em rnóltiplas interacçöes dis
cursivas e sociais. Teatralidades inscreve-se, assirn, no território das
metaforizaçoes teatrais que vêm caracterizando a agenda contempo
rânea. A amplitude crItica de tais associaçöes acolhe o prograrna de
alternâncias e de contiguidades que nele se estabelecem entre o
drama social e o drarna estético. Como observou R. Schechner, o
conceito ocidental de texto dramatico é uma derivaçao algo tardia
no ârnbito das rnanifestaçoes performativas dos seres hurnanos.
Após a invenção da escrita, o texto dramatico define-se como urna
forma cada vez mais especializada e abstracta do guiäo [script], esse
conjunto codificado de comportarnentos e de acçOes que subjaz ao
evento teatral desde tempos imemoriais. 0 privilégio moderno da
escrita foi subtraindo o teatro da constelaçao aberta e activa da per
formatividade, ligada a mecanismos de transmissão oral. A consa
gração de uma escrita dramático-teatral, especialmente validada em
determinados contextos historicos, procedeu a sublirnaçao discur
siva das formas de agir e de actuar que definiam as representacOes
primitivas. Mas o facto de a comunicação intelectualizada dos
modernos ter elidido o que corneçou pot ser manifestaçao e ‘fisica
lidade’ não significa que o reprirnido näo possa reemergir na con
temporaneidade. Corn efeito, o teatro de Novecentos e atravessado
por uma ansiedade performativa, visIvel num conjunto lato de
manifestaçoes estéticas, sociais, desportivas etc.
9
TEATRALI DAD ES
Teatralidades invesre, pois, nas transacçOes ernie o drama social
e o drama estético, ainda quando o dorninio exciusivo do estético
aparenta eximir-se ao social e ao histOrico, como sucede no capitulo
inicial, centrado na leitura do drama simbolista. A fenomenologia
teatral rnostrou ja que nern as acçOes nem os objectos em cena
renunciam cornpletarnente ao real. 0 condicionamento perceptivo
activado pelas diversas formas de contratualizaçao cénica não é cull
ciente para elidir a latencia do historico. A teatralidade que nomeia
a presente volume é, portanto, um espaço que assume a natureza
binaria do evento performativo, mesmo quando elevado a textuali
dade intransitiva dos simbolistas, ainda assim, versão Ionginqua e
assaz sofisticada das inquietacOes que a narrativa antropologico-tea
tral de R. Schechner fez remontar ao Homem das Cavernas. A argu
mentação adoptada tende a juntar em sede crItica razôes históricas e
razOes teóricas. Compete a ambas a revisitação daquele passado que
nas artes performativas poucas vezes ascende ao estatuto de coisa
tangivel.
Tratando de textos, de eventos, de encenaçöes, de autores pot
tugueses ott estrangeiros, o presente volume procura resistir a analise
excessivamente territorializada do universo espectacular, sem deixar
pot isso de ter em conta a especificidade constitutiva de cada urn dos
seus objectos. Abre com a subjectivaçao simbolista do dramatico,
através da qual Antonio PatrIcio excluiu aquilo que não fosse
pensemos na teoria dos
drarna em mirn’>. A performatividade
e tambem urna operação passIve1 de traduçao no
actos de fala
pIano da linguagem. Ora, a escrita de PatrIcio somatiza linguistica
rnente a cena intima de urn ‘naufragio corn espectador’ (H. Blu
rnenberg). 0 segundo capItulo introduz na escrita dramatica de
Alrnada Negreiros o regressivo infanril das marionetas, estratégia a
que o autor recorre para compensar um defice moderno de <<cora
çio” com a perforrnatividade sensivel dos bonecos. A rnarioneta
recupera ern Almada uma teologia teatral posterior a ordenaçao
secular. 0 terceiro e o quarto capitulos confrontam o universo tea
tral corn duas expressöes artIsticas concorrentes: o cinema e a opera.
No prirneiro caso, analisa-se ern contexto português a historia do
encontro entre o teatro e o cinerna, justarnente quando a emergén
—
—
10
FERNANDO MATOS OLIVEERA
da sétirna arte se apropria do mercado de entretenimento. A che
gada do cinema ao espaço püblico provocará urn reordenarnento
conceptual do estético que o texto procura captar no mornento
informe da sua fundaçao. No segundo caso, partindo de urn livro
fundamental de Mario Viejra de Carvaiho sobre o Teatro Nacional
de S. Carlos, procede-se a urna analise do discurso critico do rnusi
cologo português e discute-se a própria viabilidade emancipatória de
urn objecto corno a opera. A defesa de urn ((vmnculo dramarico>> na
comunicação operática parece conflituar corn a debilidade discur
siva do libreto e corn a prOpria inscrição hiscOrica do género, o qua!
viu o seu desenvolvirnento e ate a sua legitimacao policica depende
rem do capital ládico que Ihe era atribuldo.
0 quinto e o sexto capItulos convergern na questão critica da
textualidade drarnática em regime pos-moderno. Neste sentido, a
representatividade da obra brechtiana corneça pot ilustrar as aporias
flindamentais de urna escrita para teatro que hoje se pretenda mini
marnente sintonizada corn a histOria de c<progressosn e de <<procago
nistas” que persistern no pensamento do autor de Mie Coragem.
Mas a releitura recente das suas peças da juventude parece antecipar
uma resposta a H. Muller, seu herdeiro mais distinto, quando este
afirmava que a rede da dramaturgia de Brecht seria <dernasiado larga
face a microestrutura dos novos problemas”. 0 segundo texto trata
precisamente das respostas a estes <<nov05 problemas>>, agora no
ambiro do Portugal europeu. Se uma fenornenologia dos
noventa tern de gerir a entropia do tempo hisrOrico português, o
teatro da década de noventa oscilou entre o <<oporrunismo drama
tárgico pOs-rnodernoo Q.-P. Sarrazac) e o comprometimento vago
de Abril, aqui direccionado para o inconformismo do <<suburbio”
proposto pelo Teatro da Caragern. nurna das peças do seu repertO
rio, intitulada Deserros.
A arnbiguidade conternporânea dos festivais de teatro e a evo
luçao do estatuto do actor constituern o assunto dos textos que se
seguem, ambos moldados pela faceta institucional e societária das
artes perforrnativas. 0 festival de teatro aparece hoje dividido encre
a fidelidade ao tearrai e a abertura a rnediatizaçao, entre a vivência
cIvica da festa e a adiçao do capital cukura! de cada espectador.
cia
TEATRALIDADES
11
A representação desta deriva histórica do festival fica a cargo de Ate
nas, de Avignon e, corn ênfase especial, dos festivais que a recérn
descoberta ‘polItica cultural’ trouxe ao Portugal da óltima decada.
Ao Parisdoxo sobre o Actor de Denis Diderot é atribuido a ordena
rnento moderno de uma figura sujeita a seculos de preconceito e
esconjuraçao. 0 debate setecentista em torno do actor ilurnina hoje
ainda o fundarnento estético e a soberania técnica sobre urn corpo
que na cidade de Diderot, ao contrário da Cenebra de Rousseau, era
‘<talvez major do que o poeta”.
0 nono e o decimo capItulos anexarn a metafora teatral res
pectivarnente ao jogo e ao festivo vivido nas ruas de Maio de 68.
o jogo instintivo e pre-racional proposto por J. Huizinga, pese
apelo vitalista do desporto moderno, é relativarnente estranbo ao
mundo pos-industrial. Enquanto confrontação fIsica de tipo não
violento, a institucionalizacao do futebol moderno cresceu a par do
comércio do espectaculo. Ora, o declinio do ethos amador parece ter
condenado o jogo de futebol a exibição intermitente do ludico.
A vivéncia auténtica e desinteressada do jogo, entendido como pro
duçao perforrnativa de presenca, misrura-se no estadio corn a per
formance do capital. A teatralidade das ruas de Majo, por seu lado,
enuncia já urn mornenro utópico de resisténcia a conlormaçao
administrativa. A rua torna-se lugar de iniciação, espaco percorrido
por forrnas diversas daquele ‘liminar’ que na categorização de Victor
Turner veicula modalidades de resisthncia cultural e de subversio
social. Os eventos de Maio procurarn uma sintese improvavel entre
acontecimento singular de Artaud e a dernonstraçao didactica da
‘cena de rita’, descrita por B. Brecht corno urn modelo ‘natural’ de
teatro épico.
o Iivro termina corn dois institutos de rnediaçao teatral, a
saber: a encenação e a escola. 0 caso especifico da encenação dos
clássicos solicita urna negociacão particuLarmente cornplexa entre
diferentes ordens temporais e estéticas. Esboçada a história rnoderna
da abordagern dos clássicos no teatro europeu, a pulsao contradito
na que subjaz a actividade do encenador e cornentada a propósito
das Barcas de Cit Vicente, colocadas no palco do Teatro Nacional de
São Join, por Giorgio Barberio Corsetti, em 2000. A conduit, urn
FERNANDO MATOS OLIVETRA
12
da relaçao controversa que o teatro mantérn corn a
escola. A resistência crescente do teatro moderno e contemporâneo
ao conceito de ‘texto dramatico’ constitul urn desaflo para as opera
çöes didactjcas da escola, mas tambem para a legitimaçao acadernica
de urn saber que transgride o quadro disciplinar das instiruiçöes de
ensino superior, sejam elas as Escolas Profissionais de Teatro, as
Escolas Superiores de Educaçao ou as Universidades. 0 condiciona
rnento do reatro aos protocolos herrnenêuticos das Belas Letras, a
emergéncia de ama textualidade pOs-dramatica, a adrninistraçao
escolar do teatro-formacao e do teatro-produçao, eis alguns dos
aspectos discutidos que definern a presença do teatro no ensino.
Corn a excepcão do segundo, do terceiro e do quarto capItulos,
ainda ineditos, os restantes constituern versôes, por vezes proftmnda
rnence aiteradas, de ensaios previarnente publicados, em revistas
corno a Coloquio/Letras (Cap. 1), Zentralpark (Cap. 5), Tearro/Escri
tos (Cap. 7), JA Jamal Arquitectos (Cap. 1]), Ciberkiosk (Cap. 6,
8, 9 e 10), além das actas das I Jornadas Cientzfico-Pedagogicas tie
Portugues, realizadas em Coimbra, no ano de 1999 (Cap. 12).
ensaio que tiara
—
1
SIMBOLISMO F TEATRO
Teatro da alma
0 teatro preferiu historicamente o alegórico ao simbolico.
A escoiha nao é sequer surpreendente. Quando foi além da precep
tiva e do didactico, a alegoria revelou a apeténcia secular do palco
para se afirmar mediance ml figuraçao derivada do mundo. Tera sido
esta, porventura, uma razão decisiva pam a atitude de alguma crItica
teatral em face do demerito espectacular do movimento simbolista’.
E cent que a ambicionada privarização estética do simbolo dificul
tou a plateia o habito aprazivel do re-conhecirnento. Contudo, é
justo observar que o balanço final dos simbolos em cena se revelou
empresa amplamente favoravel ao devir da teatralidade. Bastaria,
para tanto, juntar a Maeterlinck e a Hofmannsthal a teorizaçäo
cénica de Adoiphe Appia e de Gordon Craig. Pela accio sobre estas
duas areas, a do texto e a da cena, o teatro associado ao simbolismo
näo teria um caminho marginal a historia do teatro moderno.
A fragilidade dramatica vulgarmente apontada aos textos sim
bolistas haveria de contribuir para a superacão de urn paradigma
teatral e espectacular que, ainda em Oitocentos, estendia o proto
cob da verosimilliança aos dramas da psicologia burguesa. Contra a
I Logo em Outubro de 890, na Revue d’Art Dramatique, Lucien Muhfeld,
no seu artigo <<L.a fin dun art, conclusions esthetiques sur Ic theane, considerava
mairo escassas as possibdidades reatrais do drama no pLano geral do movimento
simbolista. Como sabido, a cr1 rica académica rapidamente o confirmaria, ao tea
gir negativamente desrruicao dos principios dramatárgicos da Foetica.
e
a
14
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
lei seven das poéticas, o texto simbolista afrontou a estabilidade das
categorias dramaticas dominances, adiantando: I) a imobilidade
actancial da personagem; 2) a indefiniçao espacial e temporal; 3) a
dinamica particular de uma acção reduzida aos ecos simbolicos e
estáticos de siruaçöes mais ou menos sucessivas; 4) a monologacao
progressiva do discurso, entre outros recursos aparentetnente con
trários a sociologia do fenorneno teatral. Por outro lado, a revoluçao
formal e estilIstica operada pelo teatro simbolista e pos-simbolista ja
deixava de algum modo antever a desconfiança das geracOes artIsti
cas posteriores perante a <4mentira,’ das ideologias, hem longe da tn
buna moral que tinba caracrerizado o espectaculo burguês. Ha,
então, razöes suficientes para se ir afirmando que o drama da gera
ção de Maeterlinck apenas é ((antiteatral no mesmo sentido em que
o poema em verso Iivre e antiversificaçaon (Balakian, 1969:162). E
no espaco do teatro, pela acção que sobre ele exerceu, que agora pre
tendo ver a sucessäo de tais diferenças.
Apesar de a questão se colocar em contexto teatral, é tambm
pouco legItimo continuar a julgar este novo drama apenas no piano
estrito da conquista mais ou menos numerosa dos espectadores,
tarefa para que obviamente não estava predestinado. Como aconte
ceu corn a arte moderna em geral, o teatno limitou-se aqui a partici
par de urn amplo e progressivo recolhimento. Apelando a metaforo
logia que Blumenberg vern praricando desde os anos 60 e, muito em
particular, ao seu Naufrdgio corn Espectatlor, que reencontraremos
mais adiante nalguns ‘naufragios’ de Antonio PatrIcio, o espectador
que se perscruta no referido recolhirnento também já nâo se situa
numa exterionidade teórica, nessa rocha soiida que, da margem, sus
tentaria o olhar distante Iançado aos naufragos da vida: porque,
entretanto, deixou de existir essa posição firme”, e ainda porque, ao
tempo de Patnicio, o sujeito chegou igualmente ao ponro de usar da
razão para se tornar ((espectador daquilo que ele próprio so&e* (ci
Blumenberg, 1990). Neste instante histonico, o recolhimento apre
senta-se, então, como consequência da relaçao cada vez mais
mediada entre a ante e a vida.
A interiorização, ernbora tambem vinda do drama de Tchekov
e de Strindberg, terá agora ama traduçao fisica, ate pela intimidade
TEAT RAt! DADES
15
que passa a marcar alguns espacos ceatrais na Europa entre 1890 a
1910: espacos corno os do Intima Teatern de Strindberg, do Théâtre
de l’€Euvrc de Lugné-Poe, do Theatre d’Art de Paul Fort, do Irish
Literary Theatre de Yeats, do Schall and Rauch e Kammerspiele de
Max Reinhardt, do Kunsder-Theater de Georg Fuchs, do Vieux
Columbier de Jacques Coupeau, ou do Teatro Dramatico de Meye
rhold, entre outros. Estamos perante urn vasto movirnento que, sus
pendendo certa tradiçao de sociabilidade do teatro, se apresenta
como recusa radical da rnassificaçao e do carácter popular da cena
prolixa do seu tempo e aponta já para o esteticismo modernista.
Em lugar da aceitação do divertirnento e do exibicionismo rei
names, entre o excesso historicista dos Meininger e o ilusionismo
naturalista de Antoine, a campanha que parte dos sImbolos afasta
se da adesao mercanril que pautou o curso rnaioritário das artes do
espectaculo. Provavelmente, nenhurn livro expressa de modo tao
exacto a geografia do ternpo, como Le theatre tie l’dme, de Edouard
Schure. Em 1900, esta obra permite já a distância suficiente para
uma legitimaçao tripartida das tendncias do teatro, numa espécie
de consagracio cia arte dramarica do fururo, segundo note-se-the
“classes sociaisn. Assim, depois do ((teatro popular>>,
a motivação
de ama ruralidade a Rousseau, e, em segunda instância, do “teatro
de conflito>>, a Ibsen, a parte mais nobre da escala teatral seria ocu
pada por urn “teatro da alma” ou dos <<sonhos>’, o ónico capaz de
tocar a intemporalidade desejada (Carlson, 1993:3 16). Ora, a nudez
esquernática da graduacao de Schure, ja pela sua negatividade, foi a
prirneira a mostrar notavel capacidade de sobrevivéncia
que o
digam Rornain Roland ou Bertolt Brecht, para quern a alma e o
sonho eram ames para provar na acção terrena.
Urn dos aspectos que mais sobressaiu na obra dos autores e
encenadores acirna citados
estamos sornente a falar daquela his
tOria que partiu do simbolismo e que foi urna das origens da ence
naçâo moderna, frequentemente designada como simbolisra por
manifestas afinidades estéticas foi a vontade de impor a sociedade
rnecanizada um espaco reatral marcado por urn deliberado anacro
nismo, assente em virtualidades adequadamente antigas, como a
adesao/criaçáo de ambientes de cariz religioso ou a recuperacão de
—
—
—
—
—
16
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
uma vivência, entre o sensual e o experiencial, da arte enquanto
acontecimento a carninho do mIstico. Aqui se compreendern quer a
atracção pelo gmistério,, medieval, quer a imposição do espectaculo
corno cerimonial. Seria assim que este teatro resistiria meihor a assi
rnilaçao, de modo a evitar a vertigem da mediaçao que brevemente
haveria de dornjnar, pot exemplo, a representaçäo cinematografica.
Naturalmente a epopeia da arte e da técnica acabon pot fazer
entrar o gas e, sobretudo, a electricidade pela porn da retaguarda. A
possibilidade de encenação do drama simbolista passaria mesmo
pela exploraçao artIstica dos efeitos revolucionarios da electricidade.
Disto mesmo trata já A Encenaçao do Drama Wagneriano, publicado
por Appia em 1895, corn o objectivo determinado de corrigir a trai
ção infeliz que as representacöes de Bayreuth (necessariamente)
corneteram a rndsica do mestre.
o caso Wagner
A posição de Wagner serve-nos agora precisarnente para pensar
a atitude do simbolismo em relaçao a dualidade do teatro e a base
incerta” dessa enorme vontade estética. Os sirnbolistas partilharam
o interesse do teatro moderno pela obra de Wagner. Logo em 1885,
sob a direccao de Dujardin, e fundada em Paris a Revue Wagne
rienne, orgo que acoihe algu.ns dos protagonistas da teorização sirn
bolista no campo teatral, como Teodor de Wyzewa e Stephane Ma!
larrné. A representatividade do compositor alernao havia ja
fornentado urna acesa polemica corn o autor de outra ilustre diag
nose histórica. A controvérsia que levou Friedrich Nietzsche a subs
tituir Wagner por Bizet (Nietzsche, 1973:87) tern igualmente que
vet corn os avanços e recuos das posiçóes simbolistas relativamente
a cena. A revolucao de 1848 empurra Wagner para a redacçao simul
tânea do ensaio A Arre e a Revoluçao e de OAneldos Nibelungos. Nao
se trata de uma fortuita coincidéncia de datas. 0 Anelvinha recorn
pensar uma época em que, segundo a Ant e a Revoluçdo, a antiga
comunhao da arte helenica corn a colectividade se viu suplantada
pela rnercantilizaçao e extrerna individualizacao. Perante a arte-rner
17
TEATRALIDADES
cadoria e o artista-assalariado, Wagner, que segundo Nietzsche acre
ditava estranhamente na revoluçao corno so urn frances era capaz,
näo se lirnita a espera-la da sociedade, pensa tambern que pode nas
cer na arte: a responsabilidade do edifIcio de teatro era para ele evi
dente. Aproveitando a capacidade do palco para quebrar aquele pro
cesso de apropriação, ma! adivinhando o sen próprio destino
rnusica!, Wagner ensaia no Anel urn regresso as forças rnIticas pela
mao soberana da arte. E neste terreno que Nietzsche e os sirnbolis
tas se encontram corn ele.
Bayreuth será, então, a partir da sessão rnernoravel de 1876
além, rnesrno, do irOnico apareiho de rnuseificaçao que Wagner a
todo o custo tentou evitar
urn lugar da revivescéncia de urn
rnito: o rnito de urna nova redençao, pela qual o Homern se liberta
da cu!pa dos Deuses. Wagner apenas interessa a Nietzsche ate ao
ponto ern que encarna a actualizaçao do dionisiaco. E o que AntO
nio Patricio, aqui urn nietzschiano reincidente, vai desejar para si,
no ((Drama nas Nuvens>’:
—
—,
Jormavarn-se relevos pouco a pouco,
cariatides heroicas, grandes frisos,
e posso-Ihes jurar (nao esrou louco)
era o teatro rnesmo de Dyonisos.’> (Patrfcio, 1989:137)
No entanto, a partir de Parsifah Bayreuth so podia receber o
desprezo de quern se negou a aceitar corno so!uçao para o pessi
.
2
mismo do Homern rnoderno urna ((arte de consoiaçao rnetafIsican
A resposta de Nietzsche é clara: <<Não, trés vezes nao! C) jovens
rornânticos: isso näo devera acontecer necessariamente! Mas é muito
verosImil que isso acabe assim, que vOs acabeis assim, quero dizer
‘consolados’ (...) cal corno acabam todos os rornânticos, cristd
mente...’> (Nietzsche, 1988:29). Ora, não acontece exactamente o
Mesmo a excepção do Anel e apenas relativa. Notem-se as suas palavras:
“Eu conto a historia do Anel’. Ela tern aqui o sea lugar. Também cia é uma his
tória de redençao: so que desta vez é ‘Wagner quem é redimido>> (Nietzsche,
1973:95).
2
FERNANDO MATOS OL]VB]RA
18
mesmo corn a interpretaçáo voluntariosa dos Sirnbolistas, pan
quem Wagner parece prosseguir para alem da eleiçao rnItica da Vida
no Anti: a metaffsica guardava demasiadas virtudes estéticas.
De novo junto do teatro, Ortega y Gasset segue tambem esta
cririca ao especráculo burguês quando defende que o homem
moderno necessita de urn regresso a <rnaravilhosa fantasrnagoria.
Num artigo sobre o teatro e a mascara refere-se, ao modo de Nietzs
che, a urn retorno as origens do ternpo pré-teatra1n, de ((misticisrno
note-se que para Ortega y Gasser <Dio
dionisIaco> e de ofesran
niso é, scm düvida, o deus rnais deus que os gregos tiverarn>’ (Ortega
definindo a opopularidade” da religiäo grega
y Gasset, 1982:113)
em termos que Wagner não rejeitaria: ela é-o oporque se origina na
impessoalidade colectiva dos diferentes ‘povos’ ou ‘naçôes’ helenicas
L.1 porque o seu contcüdo tern urn carácter difuso, atmosferico,
diriarnos respiratório” (idem:100).
As óltimas palavras de Ortega são quase uma reproducao das
diversas afirrnaçöes programáticas dos autores da Revue Wagné
rienne. Mas as reflexoes que o filosofo espanho] produz a propósito
basta lembrar as rnarionetas de Kleist ou as posi
da ornáscaran
adquirern o torn de diagnostico hisrorico.
çöes de Gordon Craig
Ern relaçao aos maleficios da superespecializaçao moderna, o modo
de ser prirnitivo apresentava duas vantagens, que hoje terlamos per
dido: a) a capacidade positiva de ocon-frna’ir as coisas, reunindo-as
em identificaçoes prirnárias e rnuito arnplasn, que esquecemos tece
rem a actual realidade fragmentária; b) a capacidade de objectificar
os sonhos corno hoje 56 as crianças sabern later.
E a ansiedade historica ern cumprir este <<destino metafóricon
do hornern (idem:129) que os sirnbolistas procurarn concretizar nas
. Contudo, no sentido em que para o autor da Origem da
3
suas obras
Tragedia todos, incluindo ele próprio, estavarn perante o problerna
comum da ‘decadncia”, a rnetafIsica e a analogia universal dos sim
—
—
—
—
A defesa do reatro passa pela sua fidelidade s origens. no tempo em que
ovimos, como o mais natural do mundo, brotar desse profundo hzmus religioso
dionisfaco, mistico, visionário, fanrasmagórico, como a sua for mais próxima: o
Teatron (Ortega y Gasset, 1982:121).
3
TEATPALIDADES
19
bolistas, como o barco em que Nietzsche fez ‘Wagner seguir, enca
iharam nurn recife: nem mais nem menos que na filosofia de Scho
penhauer (Nietzsche, 1973:96). A verdade é que a leitura da dra
maturgia simbolista da alguma razão a Nietzsche. Também Antonio
PatrIcio se viria a prender neste recife, como verernos; aqui, ate os
primeiros apOstolos do Simbolismo se lirnitaram a um optimismo
((envergonhado>>. Parece-rne que so na elevaçao extraordinaria da
condiçao da arte, PatrIcio, decadentistas e sirnbolistas se encontram
corn Wagner e Nietzsche.
Quanto a relaçao com a obra de arte total>>, não foi bern a que
o sucesso crItico deixaria antever. A cruzada rnistica e espiritual da
mósica e dos libretos de Wagner não teve correspondéncia nas ence
naçöes de Bayreuth
. De modo similar, a teorizaçio teatral sirnbo
4
lista
nas propostas de Mallarrné, A. Mockel, Lucien Muhfeld,
Gustave Kahn, Maeterlinck, Schuré e de wagnerianos como Hous
ton S. Chamberlain, este óltimo amigo de Appia
não se posicio
voz
perante
a
realizaçao
nou a uma sO
cénica do drama novo (cf.
Robichez, 1957 e Michaud, 1947). A apropriação simbolista do
imaginário metafisico e fantascico de Wagner, assente no poder con
junto da palavra e da mOsica, não evita que as posiçöes simbolistas
sobre a articulaçao da cena com a palavra se tornern problematica
e e precisamente deste ‘problerna’ que vai nascer algum do teatro
rnoderno. Jtichard Wagner, reverie d’un poéte français>’, o célebre
artigo que Mallarme fez aparecer na Revue Wagnérienne, a 8 de
Agosto de 1885, apesar de transrnitir a adesäo do autor, como a de
outros, a expressividade rnIstica do alemão, substitula o lugar pri
rnordial da másica pelo da poesia e, o que e rnais importante, des
cria da possibilidade de o drama encontrar, como os de Wagner,
uma concretização tridimensional. A presença fIsica da multidão
deveria antes ceder o lugar a liberdade da irnaginação.
Esta contrariedade, logo no caso do autor germanico, dificul
tou o objectivo da união das artes. A acreditar na terceira secção de
—
—
4 Ele mesmo o terá reconhecido, ao afirmar: Ah, j’ai horreur de ces costu
mes et de ces fards (...) J’ai créé I’orchestre invisible, si je pouvais tnaintenant
inventer Ic theatre invisible” (apudBablet, 1975:65).
20
FERNANDO MATOS OLIVE?RA
Oper unit Drama, tal união deveria ser uma resposta a especializacão
comercial, que fez as artes seguirem, de modo egoIsta, caminhos
divergentes. Ainda assim, o desejado regresso ao convfvio primordial
foi mais uma utopia a que nem os colaboradores de Wagner conse
guiram dar resposta (cf. Bablet, 1975:62). 0 facto de Appia, n’A
Obra deAne Viva, ter substituldo a conjugacão wagneriana das artes
, corresponde a soluçilo
5
por urna conjugacão de elementos artIsticos
final pan aquilo que alguns julgavarn irrealizavel: uma arte nova e
autOnorna, capaz de evitar a <monstruosidade da construçào de urn
edifIcio gOtico em cartäo 1...] pois a vitOria da gravidade não seria
mais expressa pela matéria da construçâo” (Appia, s/d. :43). A pa.rtir
deste mornento, a palavra, ainda quando em registo simbolista,
encontra na própria matéria da construção a hipOtese de uma cor
respondencia. Nao me ocorre meihor metáfora que a conhecida
nudez de uma figura feminina em Appia: ...dir-se-á, uma muiher,
corn as vantagens do seu sexo e instalada corn elegancia num sofa,
tern uma expressão deliciosa. Sern ddvida: mas se se despir e se sen
tar numa cadeira...? [...] o corpo nu parece, antecipada e implicita
mente, presente e posto em valor estético>> (Appia, s/d:86). Wagner
optou sempre pelo sofa, que nern sequer era pequeno. Por isso
Nietzsche o acusava directamente de corrupcão (Nietzsche,
1973:93).
Mistério
0 Fim
Tem-se dito da dramaturgia de Antonio PatrIcio
(1909),PedrooCru(1918),Diniselsabel(1919)eD.JoaoeaMdscara (1924) — que represenra a mais feliz realizaçao nacional do
—
Dal a ironia de Appia: Um aforismo dos math perigosos induziu-nos e
continua a induzir-nos em erro. 1-lomens dignos de Fe afirmaram-nos que a arte
dramática era a reunião harmónica de todas as artes; e que, Se ainda não foi pos
sivel conseguir-se, deverta tender para a criaçào, no futuro, da obra de arte inte
gral. Chamaram, ate, provisoriarnente, a esta arte: a obra de arte do futuro,,
(Appia, s/d:22).
21
TEATR&LIDADES
Simbolisrno. Na verdade, o seu drama adopta pane significativa das
alteraçöes introduzidas pelos protagonistas desse estilo novo. Sern
se ficar pela reproduçao macerada dos gestos de escola, estäo nele
os Icones da sua geração artistica: a esteticização do divino no <ar
pascal>’ que corre em Dinis e Isabel, a ternatizaçâo de urn inefável
que pode ser o mistério, o milagre, a morte
ela própria vista
corno a uMaja do mistério>’
o <óleo da saudade> que inunda
Pedro o Cru, ou ainda tópicos como as sombras, os siléncios, o exo
tisrno das cores, o perfume das fibres (lIrios, biases e rosas umisti
cas>>), a premonição de uma Cega. No entanto, ainda ha poucos
anos, Oscar Lopes dizia que PatrIcio era urn ((escritor particular
mente difIcil de classificar” (Lopes, 1994:145), e não é vulgar esta
hesitaçao perante urn dramaturgo português. Pondo em segundo
piano tao incornoda tarefa taxinómica, you apenas tornar os seus
textos como urna concretização do Drarna das nuvensn, tItulo de
—
—
poema a que ja aludi e ern que PatrIcio da ainda razão a Appia e a
austeridade da cadeira contra a pornografia do sofa. Adiante volta
rei ao problema da decadéncia.
Um aspecto ern que o drama de Patricio insiste e o uso de
materiais da História e da mitologia nacionais. Mais do que inserir
o autor numa lusitanidade de tradiçoes pouco heroicas, a saudosista
acima de todas, esta escoiha tern vantagens que qualquer müsico
saberia explicar ao seu libretista favorito. A simplicidade esquemá
rica da trama e o conhecirnento prévio das personagens permitem a
PatrIcio a mesma liberdade expressiva a que o müsico aspira para a
sua composição. Sobre a lenda de Pedro e Inês, de Dinis e Isabel ou
da figura de D. Joáo, como sobre as rulnas da rnonarquia de 0 Fim,
o drarnaturgo pode abandonar-se a ((lntençao toda lIrican. Urn
pequeno prefacio, antecedendo significativarnente o rnais imaterial
dos seus drarnas, denominado o (‘conto de vitrab>, consegue sinteti
zar o espIrito de uma dramaturgia (cf. Patricio, 1919). Ha nele aigo
que nos é ja farniliar: a) o abandono da intriga burguesa, (Nada de
historia e quase nada de lenda>’; b) o recolhimento a que acima rne
referia: <<E urna pequenina tragedia, toda Intirna>’; c) a ausência da
notação reabsta, ((sem indicaçoes de costumes ou cenários>’; d) final
mente, toda a irrealidade de ((um drama de consciências”, onde so
22
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
existe ao milagre das rosas em motivo”. 0 triunfo deste teatro
implica a recusa de urn outro, corno o Lana o carácter aristocrático
de Suze. Segundo o narrador, Suze era uma fIgura ‘4que não se flu
dia nuncan: oPosta em teatro, nâo farias uivar as galerias nessa paró
Wa de circo ião grotesca que e um quinto acto para burguesas e
povinho; eras prés raros apenas como o matoidismo poético da
rninha terra>’ (PatrIcio, 1995:82). Trata-se al do cumprirnento do
Drama nas Nuvens, poema que reivindica, em verso, o visionarismo
de urn drama muito particular:
juro, juro
Nao quero outro tearro:
que mesmo os pobres dramas que escrever,
—
quando os não vir dentro de mim, no escuro,
e sO nas nuvens que os desejo yen.” (Patricio, 1989:139)
Estes versos colocarn PatrIcio no centro da veiha discussao a
propOsito da natureza rnais ou menos poética do drama simbolista.
Nao é ocasião própnia para o fazer, mac havenia que integrar esta
poetização do drarna no contexto mais evidente da reputaçio que,
por razOes conhecidas, a lIrica atinge no simbolismo e ainda numa
tradiçao silenciosa que vinha crescendo desde o inIcio do século
XIX. 0 drama lIrico, aparentemente escrito para a leitura, desen
volve-se corn Byron (ManfreeL 1817), corn Shelley (Prometheus
Unbouna 1820), Robert Browning (Praracelsus, 1835) ou Swin
burne (Atlanta in Calydon, 1852), entre outros. Mas a possiblidade
da poetizacão do drama foi tambem aberta, na sua origern, por
aquela sensibilidade que Hegel dizia estar a rnatar a tragedia.
Seguiu-se-lhe, naturalrnente, o ascendente pOs-romântico da perso
nagem sobre a fabula dramatica, entre outras transfiguracoes mais
actuais da subjecrividade.
Recorde-se que AntOnio Patnicio dizia, no poema ha pouco
citado, que escreveria dramas quando os visse <<dentro de mirn”. De
facto, o registo poético domina as intervençöes das personagens: ora
se transforma em tendência para a rnonologaçao ora sustenta o irrea
lismo procurado. Em D. Jodo e a Mdscara, pot exernplo, a estrutura
versificada surge sernpre que a personagem Morte se aproxirna. Ate
TEATRALIDADES
23
as didascalias se integram neste discurso. Assim, em Pedro o Cru,
COS vitrais dormitam na penumbra” e (cO vale é imenso, povoado
de formas floconosas: São as nüpcias das árvores e das nuvens”.
Mesmo quando algo impottante acontece não o sabemos imediata
mente, através da acção e do dialogo directo em palco, mas pela
melopeia de narradores que a ela nos conduzem, difhsamente. Esses
narradores são em grande nómero, incluindo o Desconhecido (0
Fim), Octávio (D. Joao), o escudeiro (Pedro o Cru) ou Péro Coelho
relatando a morte de Inés: oBranca... como o espectro de uma rosa
branca, como urn rosto de morn na memória, como uma lua de
gelo nurn crepósculo”.
A escoiha da narração favorece ciararnente a manutenção desta
estratégia de priviléglo do verbal, embora se deva admitir que a
superioridade desta e relativa, pois teve de se debater corn a estética
da sugestão, a qual <não defende apenas a pureza da poesia: ela e
uma necessidade da sua grandeza, isto é, da sua natureza cognosci
tiva e trans-racionalo (Pereira, 1975:77). A nova linguagem, longe
das suas realizaçoes rnais cornuns, eta somente o caminho que a cena
tardou a acornpanhar em Portugal. Quando o fez, a cena simbolisra
mostrou poder chegar mais perto desse indizivel. Assim se pode
entender a seguinte afirmacão do protagonista de D. Joao e a Miii
cara, verdadeira smntese crItica de uma difIcil relaçao historica entre
o texto simbolista e a cena sua contemporânea: <Há coisas que a
minha alma já conhece, e o meu corpo, coitado, aprende aindan.
Urn verdadeiro teatro do irnaginário está por consequéncia pre
sente nos sonhos e nas visOes fantásticas de várias das personagens.
Nele percebe-se melhor a utopia que, em correspondência privada,
Mallarmé confessava ter buscado para um dos seus poernas drama
ticos: 4e le fais absolument scénique, non possible au theatre, mais
exigeant le théâtre (Mallarmé, apudSzondi, 1975:119). Esta aRt
mação ilustra toda a censão que atravessa o drarna simbolista: denota
simultaneamente o rnodo inusitado através do qual a própria lin
guagem se apropria de tdpicos teatrais, encenando-se na irnaginacão
do leitor, e o risco de isolamento ulterior do texto nas páginas do
livro. A homogeneidade do drama depende rnais das imagens do
que da acção, e é quase o seu desenvolvimento rnetaforico e sirnbo
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
24
lico que comanda o devir do texto e das personagens. Na ëtica par
ticular de D. João, “Actos são mascaras. So a vida da nossa alma é
tudo’>.
Quando solicitado, o encenador, como que em posicão de
manifesta excrescência, trabaiha sempre sob a pressão de tornar o
drama püblico, e não exciusivamente verbal. Ora, jamais o conse
guirá sem usar, no mInimo, a cadeira de Appia, cujo material de
construção compreende trés elementos, decisivos e realmente fun
dadores do teatro moderno: movimento, luz e abstracçao. A pers
pectiva e a seduçao do trompe-l’oeildo teatro realista anterior cedem
o lugar a imaginação do espectador, náo já espectador das ilusoes
mas tendo pam Lz suggestion thins l’art, parafraseando a obra homo
nima de Paul Souriau, de 1909.
Naufragio corn espectador
Contudo, o que a dramaturgia de Antonio Patricio encena tra
gicamente, por derras dos sImbolos, das sombras e dos cristais, é a
atitude do poem perante a torrente reificante do tempo. No seu
estilo arredondado, Adorno dizia num texto célebre que toda a
<ilirica moderna encerra em si um momento de ruptura’ e que esta
óltima se encontraria precisamente na linguagem. Seria portanto
justo obriga-Ia a falar a sua duplicidade. Ha-de, então, saber-se se
em algum memento do drama de Antonio Patricio se vislumbra o
cfilosofema dialéctico” que o poema é: pois, ainda quando aparenta
ser insociavel, nessa mesma qualidade residiria a sua natureza social
e historica (cf. Adorno, 1975).
Escamos, pela segunda vcz, com Wagner, perante o problema da
decadéncia, e a cotter o risco de encailtar no recife que Nietzsche Ihe
oferecia a vida também era para Schopenhauer ((um mar cheio de
recifes e remoinhos (Blumenberg, 1990:85). 0 reMgio geracional
no mistério perpassa por todos os textos de PatrIcio. Em Dinis e Isa6th as faces expressam aIegria mistica’, <alegria alucinada, a voz
adquire <(tom misterioso” e a pose adopta <ar de cisma”. Contudo, Ia
bem para o final, toda e qualquer hipótese de quietude mIstica é per—
TEATRALIDADES
25
turbada pela consciência de que a sua época secular resiste a tans
cendéncia. PatrIcio sabe que S6 se vive na consciência’ (PatrIcio,
1972:11), ou como diria o seu D. Joao, sabe que tern sernpren ra20.
Note-se que estamos agora num mornento em que é a orazao que
pode tornar o homem espectador daquilo que ele próprio sofre”
(idein:81). No poema O camarada” podern ler-se os seguinles versos:
uHoje o rnistério
(dobrarn Os sinos)
já näo tern signos,
signos divinos.” (PatrIcio, 1989:124)
F,sta constatação obriga-o a reconhecer que qualquer esperança
no SIrnbolo apenas se sustenta nusn acto dernasiado voluntarista: o
estético, precisamente. Deste modo, a resolucao de tal ‘problema’
através da escrita dos dramas representa para PatrIcio urna sublima
ção estética do confronto que originalmente a rnerafora (existencial)
do naufragio
a de Lucrécio colocava no piano de urn enfren
tamento real do historico. Como para o abade Galiani, a situaçäo
artificiaL’ do teatro e mais poderosa do que a metafora do naufragio,
mas ((corn a passagem da beira-mar para o teatro, o espectador de
Lucrécio é privado da dirnensao moral, ele torna-se ‘estético” (Blu
menberg, 1990:58). Abeirando-se da condiçao do especrador
transcendental”, o homern de PatrIcio cone o risco de abandonar ate
a própria luta pela sobrevivência. E de urna fantastica ilusdo que se
trata, espécie de antevisão desse instante breve, mas seguro, que o
mItico pode oferecer ao naufrago. Veja-se tudo isto nurna interven
ção do Desconhecido, n’ 0 Finz
—
—
((E o prestIgio de urn preconceito milenário, a ilusao que ele da de
estabilidade, que eu preciso agitar nas minhas rnäos, corno urn trapo hip
notizante, urn espantaiho. E a hora estranha de erguer rnais os Ido1os.
(PatrIcio, 1990:46)
Neste contexto, julgo que os espaços dos dramas se podern
tomar como a imagem exacta de urna geopatologia global que
26
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
ensombra as várias verrenres em que o referido problema se torna
mais visIvel. A humanidade do tearro de Antonio PatrIcio habita,
em 0 Fim, num “Paço VeIho, em <<escombros”, a rainha mori
s
bunda <<mascara-se de simbolo” para que se tenha, nas paiavra do
tearral
ao
Desconhecido, ‘aim sirnulacro de realeza>>, pok tal <<Ficç
o
[...] ainda fascina>> (idem:47). Pedro o Cru cuitiva urn turism
necrofilo na cornpanhia de um <<cadaver esburgado>’. Dinis e Isabel
começa na leprosaria e termina nurna aicova de <<penumbra espessa’>.
Pot Gm, D. Joao e a Mascara, que o autor apelida de <<amoral mIs
e
tico ou ulnsunnvo religioso>’, arrasta-se por urn palácio outonai
por <<uma sala num solar ern luto”.
Nem sO o espaço e sintoma de mai-estar. Aiém de 0 Fim, a
diversidade do percurso individual dos trés protagonisras dos dra
não chega a corn
Isabel, D. Pedro e D. Joao
mas seguinces
ibilidade coetâ
imposs
pensar, num piano historico, a ausência ou a
e, e
nea de criar verdadeiros signos divinos>’. Muito provavelment
con
<<não
autor
o
esta indecisao que leva Oscar Lopes a afirmar que
seguiu nunca [...J explicar-se sobre o sentido profundo que o ilgava
codo,
ao verso de Shakespeare, segundo o quai nada nos pertence de
a näo set a morte pessoal” (Lopes, 1994:155). Pan o crItico, PatrI
s cedencias importantes:
do tern de acumuiar uma arte corn aiguma
<<certa concepçäo ou intuiçio da Saudade portuguesa com traços
decadentes, simbolistas e nietzschianos>> (idem:1 51).
Se se pode atribuir alguma autoridade especial a D. Joac e a
Mdscara apenas pelo facto de ser o ültimo dos dramas, gostaria de
terminar com ele. Peia segunda vez, é o prOprio PatrIcio quem se vai
sentar no dm0 do recife a que Nietzsche condenou a felicidade do
,
percurso de Wagner. Mas, se este al se rnantém nesse estado incerto
ja antes do sonho do naufragio>> se enamorar da <<vela”, o prefacio
a D. Joao e a Mdscara apresenta-nos PatrIcio a afundar-se ienta
mence: <<Quer isco dizer que toda a vida consciente é vida morta?
Nao, de certo: mas lento e lento, urn naufragar contInuo, naufragio
de marujo-poeta, em que se prolongam sempre os horizontes.”
(PatrIcio, 1972:11)
Se a metafora do naufragio pode ser uma <<fenomenologia das
siruaçôes hisróricas de crise” (Blumenberg, 1990:92), então, a situa
—
TEATRALIDADES
27
ção de PatrIclo e dos seus herois é a de urn tempo que não pode
aprender no naufrágio a libertaçao lucreciana do receio, olhando em
seguranca o infortünio dos outros. Cabe ao Duque confrontar a sua
ânsia rnIstica e a vertigem carnal de D. Joao com o tedio>’ do
tempo, esse Algo, maiusculado, que vern <dos confins da fadiga’>,
quando o acusa terriveirnente: E
5 o espectador do teu naufragio’>.
Antonio PatrIcio quase vence Wagner, quando as mascaras de
D. Joao ja se abeiram do travestismo. A afirmaçao do Duque apenas
da prova de mais um dilema de quem não pode deixar de ser pri
sioneiro da consciéncia: E
5 o actor que faz o teu papeb>, diz-lhe.
2
ESTETICA E MARIONETA
Objectos animados
0 modernismo e as vanguardas historicas do inicio de Nove
centos manifestaram uma aproximação ao objecto animado que
percorreu diversamente o espaco europeu. Espécies como a mario
neta, o boneco e o fantoche participaram numa complexa negocia
ção entre o erudito e o popular. Este trânsito entre a ‘alta’ e a ‘baixa’
cultura deu origem a apropriação culta de formas de entretenimento
popular como a pantomima, o circo C OS espectaculos de sombras,
nurn percurso que nos levaria ate aos saltimbancos de Picasso e a
assernbleia nocturna digna de qualquer grande
cultura de cabaret
urbe que pelo inIcio do século se pretendesse moderna. Recordem
se versöes do ‘cabaret artistique’ como o Chat Noir (Paris), o Elf
Scharfrichter (Zurique), o Theater Munchner Kunsder (Munique),
o Fledermaus (Viena) ou ainda o Quatre Cats (Barcelona). Por esta
altura, a apeténcia ocasional do modernismo cosmopolita por for
mas populares ou serni-populares originou deslocaçoes radicais na
economia social e literaria da representacão.
No caso especIfico do teatro, a escala destas deslocaçoes foi
suficiente para reconfigurar o espaco da teatralidade e a sobreviven
cia dos diversos estilos historicos. A convocação da marioneta e do
boneco animado deve, pois, ser lida no contexto da emergência de
urn teatro novo, no reverso da tradiçao realista e naturalista dorni
nante. A sua presença convene-a nurn território propIcio ao ques
tionamento da representacão e da linguagem, pois a percepçäo
humanoide dos bonecos artificiais instala a ambiguidade no campo
—
30
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
pacificado do mimetismo naturalism, pondo tambem em causa a
pertinência do psicologismo que atravessou todo o seculo XIX. A
rnarioneta näo confIgura uma tradiçao estabilizada quanto ao seu
aparato narrativo ou técnico. Historicarnente, este faao disponibili
iou-a para apropriaçOes divergenres. Vejarnos urnas quantas: a) a sua
actuaçäo em inürneros espaços cuiturais denota cornportarnentos e
intençöes subversivas, rnas também a reproduçao conservadora de
linguagens e tipologias sociais próprias da cultura popular; b) o
pequeno teatro de rnarionetas solicita urna audiência lirnitada, mas
tern corno requisiro a bondade imaginativa de cada urn dos especra
dores; c) o espectáculo exige ao marionetista capacidades de impro
visação, rnas a própria construção e manipulaçao deterrnina-lhe o
domInio de urn saber minimarnente formalizado. Por ourro lado, a
escala reduzida do espectáculo de rnarionetas traduziu-se numa
resisténcia notavel a escéticas e ideologias autocráricas, estivessem
elas comprornetidas corn o poder ou corn o rnercado. Por todas esras
razôes, a (<radicaildade,, potencial da rnarioneta conferiu-lhe urna
visibilidade inedita no discurso do rnodernisrno europeu (cf. Schu
rnann, 1994:95).
No piano estrito da teoria teatral, ela fez parte da argumenta
ção de urn dos protagonistas da encenaçäo rnoderna. Ern ‘0 Actor
e a Supermarioneta’, ensaio central do volume A Arte do Teatro, o
teatroiogo inglês Gordon Craig perspectiva a rnarioneta a partir da
representação deficiente do actor cornurn e radicaliza os terrnos da
ceiebre oposição Ideistiana entre bonecos e hurnanos, a ponto de
despejar o actor vivente do palco. Apesar de reconhecer que a mario
neta vivia por 1907 urn dos seus <‘perlodos mais aforrunados>>, Craig
pratica algurnas disrinçoes que convém considerar desde já. A super
rnarioneta proposta em A Arte do Teatro não se compromete corn a
baixa cornédia ou corn o espectáculo popular; eia fiLia-se sobretudo
na cuitura de impassibiiidade que exigirá ao actor rnoderno. Consi
derando os espeaaculos das feiras, Craig dirige-se ao actor ern ter
rnos explIcitos: <(Ainda assirn, as rnarionetas actuais são urna coisa
extraordinaria. Os aplausos podern troar ou ser entusiasrnantes que
o seu coração näo bate rnais depressa, nern rnais lentamente, os seus
gestos não se tornarn precipitados ou confusos’ (Craig, 1990:60).
TEATRALIDADES
31
Esta obra consagra no terreno da representacão teatral o imperativo
estético que repetidarnente veremos associado a marioneta.
A historia desta associaçäo tern na textualidade drarnatica urn
desenvolvimento exemplar. Tornando o caso espanhol, antes mesrno
dos titeres de Lorca, passou pela obra de Jacinto Benavente. El
encanto ek una hora, o primeiro texto da colecçao Teatro fantthtico
(1905), e talvez o que rnelhor ilustra a tendencia para a anirnação de
objectos na passagern do secujo, uma decada ames das animaçôes
radicais dos futuristas italianos. Neste texto singular, duas figuras de
porcelana aproveitarn o toque da meia-noite para se descobrirem
vivas a custa de uma força sobrenatural. A vertigern animada alastrou
a outros autores europeus. Alérn de Pinocchio (1883), de Carlo Col
lodi, o simbolismo e a abulia civilizacional das personagens de M.
Maeterlinck deram origem a ‘trés pequenas peças para marionetas’,
datadas de 1894: Alladine et Palomides, L’Intérieur, La Mon tie Tinta
giles. A rnarioneta devérn aqui uma rnetafora que caracteriza o corn
portarnento distanciado e onIrico das suas personagens, pois Maeter
linck nâo chegou a resolver, no piano da representacao teatral, a
impropriedade que via nos actores de came e osso. Este conflito
avançará mais tarde para o interior da textualidade dramática, por
exernplo, na peça Esfinge e Espantalho (1907), de Oskar Kokoschka.
A flgura da marioneta atrairá expressionistas, dadaistas e futu
ristas, nurn arnplexo criativo que adquire matizes diferentes, osci
lando entre a visão aparentemente redentora de Kleist (Sobre o Tea
tro tie Marionetas, 1810), o antipsicologismo da supermarioneta de
Gordon Craig e a utopia futurista posta na esteticização generalizada
da máquina. A geração de Marinetti, ele próprio autor de Poupées
Electriques (Paris, 1909), explora esta conceptualidade, seja no que
vern a charnar ‘sinteses teatrais’, seja no experimentaiismo dos Bal
lets Piasticos de Vittorio Podrecca e de Fortunato Depero. A geo
metria das construçOes cénicas e mecânicas de Podrecca e Depero,
hoje visiveis nos quadros e nas peças escultoricas deste aitimo, pres
sionarn a teatralidade da rnarioneta ate aos iirnites da sugestäo do
autómato moderno. Corn Marionette, che passione! (1918) de Rosso
di San Secondo, e Quella che t’assomiglia (1920) de Enrico Cavac
chioli, o Teatro Grotesco italiano acaba rnesrno por sintonizar a
32
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
marioneta corn a denüncia antiburguesa, praticada tambern pelos
expressionistas germânicos, segundo os quais o antIdoto para o vazio
quotidiano deveria set extraido de uma estética do excesso.
Esta curta passagern pelo terrirório rnoderno da marioneta
serve aqui de introduçao a urn tipo de apropriaçäo do objecto ani
mado que de seguida pretendo individualizar e reconstituir, corn
base nurn trajecto sucessivo pot trés textos. São estes, respectiva
mente, o controverso ensaio So/ire o Teatro de Marionetas (1810) de
Heinrich Kleist, corn o quai se inaugura a vinculaçao do absoluto
estético a uigura da marioneta, a ‘Quarta elegia’ (1915)6 de R. M.
Rilke, na quai a retórica da plenitude investe igualmente no rnotivo
do fantoche, e, finalmente, a peça Arn’es tie Começar (1919) de
Almada Negreiros. 0 elenco desta óltirna resurne-se a dois bonecos
anirnados que dialogarn nurn tempo anterior a temporalidade do
espectaculo propriamente dito. 0 debate centra-se na oposicäo
entre o ser boneco e o ser hurnano.
A selecçao dos trés textos supöe urn minimo de narracivização
argumentativa. Resurnindo e antecipando urn pouco da historia que
se pretende contar, poder-se-ia alinhar desde ja o seguinte raciocI
nio: 1) a marioneta começa por set em Kleist o efeito da tentação
idealista a que o Romantisrno foi sensivel; 2) em Rilice, a retórica do
fantoche é pot sua vez reactivada num contexto tardio’, pela voz de
urn sujeito que, cern anos depois de Kleist, é mais certo do carácter
ilusOrio contido na promessa da uhora da infancia; 3) finalrnente,
no Airnada de 1919, os bonecos representam inesperadamente urn
regresso autoral s margens do ja se designou por ‘teatro teologico’
(cf. Derrida, 1989). A demora na analise do texto de Almada visa
entender a natureza deste refluxo cornpensatório, simultaneamente
pensavel no devir do rnodernisrno e na evoluçao da obra do autor
portugués.
6 Apesar de a publicaçao do volume original datar de 1922, a ‘Quarta dc
gia’ terá sido escrita originalmenre em 1915.
33
TEATRALIDADES
A tentação da infância
0 texto responsavel pela consagracão crItica da marioneta, pelo
menos no sentido em que a oposição humano vs. boneco denota a
dramatizaçao de uma crise moderna do primeiro elemento do par
opositivo, é o referido ensaio de Heinrich von Kleist. Neste pequeno
texto, publicado originalmente nas Berliner Abendblitter, em 1810,
a marioneta personifica uma ontologia artistica que a acompanhara
como objecto ate ao instante modernism. Em Kleist, diga-se, a raiz
popular desta figura participava ainda da autenticidade que a
divisão romântica atribuiu a cultura indIgena. 0 seu universo legi
dma urn projecto nacional cujo corpus teórico se ficou a dever igual
mente ao romantismo teutónico. Neste sentido, o investimento
autêntico posto na marioneta e pane do desIgnio mitificador do
romantismo. Mas a marioneta de Kleist, dizendo-se inventada pelo
vulga> (Kleist, 1988:30), evidencia qualidades que a habilitam para
a leitura de algumas das principais tensöes suscitadas pelas constri
çOes sensIveis da modernidade, sobretudo após o irnpério racional
daquela <<consciência” que o mesmo texto se propöe questionar
desde o inicio.
Adoptando os termos da interpretacão mais canónica do texto
ideistiano
para todos os efeitos, foi esta tradiçao hermenêutica a
vencer a bataiha pela reproduçao cultural
a narrativa de Kleist
descreve na primeira pessoa urn encontro entre o narrador e o pri
meiro bailarino da ópera local. 0 dialogo entre ambos visa a
demonstraçao das qualidades das marionetas observadas no parque
da cidade. 0 bailarino reconhece e defende a superioridade dos
movimentos artificiais, corn base numa série de atributos que o
texto convoca sucessivamente. A marioneta começa por se movi
mentar sem a afectividade perturbadora do bailarino, pois o seu
gesto e mecanicamente seguido pelo corpo como urn todo, de
acordo corn uma força artificial que aproxima a representacão do
boneco da perfeicao absoluta. Deste modo, a marioneta desconhe
ceria Os <(transtornos que a consciência causa na graciosidade natu
ral do ser hurnana’ (idem:33). No segundo mornento do texto, os
interlocutores alternam-se na narração de dois episodios destinados
—
—
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
34
a exemplificar retoricamente a precariedade da inocência e da espon
raneidade nos humanos. No primeiro caso, urn jovem procura em
vão reencontrar a beleza entrevista ao acaso, aquando da mirada for
tuita num espeiho. Face a intangibilidade do belo, concedido aos
humanos em fracçoes minirnas e ocasionais, a marioneta rena a van
tagem de persistir num acaso eterno e inconsciente, próximo do
<<puro acontecern, mais tarde invocado por Rilke. Apesar dos esfor
ços, o jovem da historia foi <<incapaz de reproduzir o movirnento”
que na mirada Unica julgou identico ao ideal da esratuária. Urna
‘<misteriosa transforrnaçao>> afecta-o a partir desse momenta
Enquanco regressão da beleza, esta mudanca é conrudo progressâo
aniquiladora da razão e da consciência. A conclusão a que o baila
na
rino conduz o interlocutor, no final de uma segunda histonia
qual conhecernos o triunfo de urn urso sobre o saber esgrimisra do
situa o belo para além da reflexao>’, num mundo
narrador
sublimado esteticamente: oa medida que o mundo orgânico se debi
lita e a reflexao obscurece, urna graca cada vez mais radiante e sobe
rana faz a sua aparicão>> (idem:36).
A marioneta tex-ide, assirn, a assurnir a crença românrica no
poder criativo do inconsciente. 0 seu artifIcio material é dupla
mente re-autenticado: enquanto genulno popular-nacional e
enquanto estética pura. Pot esta segunda razão, a marioneta comuta
corn o Anjo que a manipula, emancipando-se da <<gravidade>’ dema
siado pesada para o corpo do bailarino: <<Os bonecos necessitam do
solo apenas para o roçarem, corno os elfosn (idem:32). A simpatia
metafisica inscrita no ensaio revela-se na intervençào final do baila
rino. Uma vez que o corpo humano parece surgir já definitivamente
contaminado pela degradaçao moderna, a preferéncia aurora) pelo
titere surge-nos em contiguidade corn o infinito. So Deus e a mario
neta são passiveis de infinirizaçao, ambos no exterior da pauca cons
ciente que escraviza os hurnanos. Corner de novo a árvore do conhe
cimento é a derradeira sugestão do bailarino, para através de uma
espécie de reversão original c<retornar ao estado de inocência
(idem.33). 0 ensaio de Kleist definirá para o fururo os contornos
discursivos da apropriacão rnoderna do objecto animado, apesar das
contradiçoes que Paul de Man ihe apontou, no que é ainda hoje a
—
—,
TEATRALIDADES
35
rneihor analise da retérica estética contida no enigrnático ensaio de
Kleist (cf. De Man, 1984)7. Ainda assim, a bern do débito absoluto
do texto de Kieist, De Man admite e implica a marioneta de Kleist
no idealismo estético schilleriano
.
8
Urn século depois de Kleist, R. M. Rilke retorna a oposicão
entre o fantoche e urn bailarino que lhe parece tarnbérn insuficienre.
Os dois textos revelam, no entanto, uma diferença que nos permite
aferir os danos provocados pelo século de corrosâo sensIvel que os
separa. Em Kieist, o narrador discute com o bailarino no rnesrno
piano. Aquando do dialogo no parque da cidade, perante a figura do
narrador, o bailarino é a voz responsavel pela argurnentação a favor
das virtudes da marioneta. Ern Riike, peio contrário, o bailarino e
ficcionalizado e deixa de possuir voz autónoma ou positividade
argurnentativa. A economia retórica da Quarta Elegian representa
o ja cornprornetido corn o universo fihisteu, fazendo-o entrar peia
((porta da cozinha”. A teatralidade da cena expöe urn coraçãon que
arnplifica o corte moderno corn o mundo sensIvel:
Quem de angüstia näo se rnina ao ver do coração a cortina?
Ela descerrou-se: a cena era de despedida.
Fácil de entender. 0 ja conhecido jardirn
ievernente baiançando: 56 então apareceu o bailarino.
Nao o bailarino. Basra! E, per muito leve que se faça,
é apenas urn disfarce e ele torna-se urn burgués
e entra ern casa pela porra da cozinha.
Apesar da desconstrucao retdrica aplicada ao ensaio de Kleist, Paul de Man
reconhece o triunfo historico de urna determinada tese sobre o texto. Esta tese
identifica a marioneta corn a <noção de infinito>> (De Man, 1984:264). Nestas cir
cunstâncias, a selectividade que os cornentadores tradicionaimente manifestaram
na leitura de Kieist reflecte o idealismo rornântico que desde 18W vern sendo
investido no texto. No piano da histOria cultural, corno dizia acirna, o predomi
nio desta ieitura do senso cornurn tern sobrevivido ao trabaiho intempestivo da
leitura tropológica.
0 seu ensaio abre inclusive corn urn excerto de uma rnjssiva de Schiiler a
Kroner, na quai o autor das Canas Sobre a Educaçio Estética Si Humanidade
exernplifica a sociedade estética perfeita corn urna dança quase tao espontânea e
graciosa corno a rnovimentacão da rnarioneta no ensaio ern causa (idem:263).
7
36
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
Recuso estas miscaras sâ rneio preenchidas,
prefiro urn fantoche. E pleno. Quero
ficar ao pé do corpo do boneco e do cordel e do seu
rosto de aparéncit Aqui. Diante de tudo. (Rilke, 1993:51-53)
o defice do bailarino radica, urna vez mais, no seu compro
misso corn urn corpo dernasiado hurnano. Apesar da graciosidade
representada ern palco, o bailarino esconde urn vinculo burgues que
Rilke Ihe antecipa POE detras do disfarce da mascara. A cozinha que
no fInal da dança o aguarda näo e, definitivarnenre, urn lugar no
qual o poeta se possa reconhecer. Segue-se a recusa consequente das
“rnáscaras 56 meio preenchidas>, ou seja, a recusa do bailarino que
apenas consegue levitar falsamente, ao contrário do fantoche. A pre
feréncia que rnanifesta pelo boneco pressupãe urna via de acesso a
forrnas de levitaçao mais genumnas. Este carninho, por seu lado, mdicia urn absoluto que corneça por se cumprir urn pouco adiante,
ainda na mesma elegia:
<[...} quando me disponho
a esperar diante do teatro de fantoches, ou antes,
a olhar para de tao inregramente, que, por fim,
para recotnpensa do meu olhar, um Anjo
aparece, actor que os bonecos puxa para o Alto.
Anjo e fantoche: finalrnenre corneça o especraculo.
Entao se unifica o que continuamente
dividimos, ao existirrnos. (idem:55)
o universo dos fantoches aparece aos olhos do poeta
recornpensa’> capaz de o resgatar momentaneamente do estado ele
gIaco que no inIcio do texto solicitava as <<árvores da vida”, sob a
forma de urna sintonia invernosa. No curso “tardio da sua existên
cia, a cena dos fantoches abre-se como a prornessa de urn espectá
cub que <<finairnente começa>. Atraves da rnanipulaçao dos bone
cos, a mao angelical do actor de Kleist retorna agora para induzir no
observador de tab teatro urn sentirnento inedito de unidade: “Entao
se unifica o que continuamente I dividirnos, ao existirrnos”. Ate ao
TEATRAUDADES
37
final do poema, Rilke fara o encómio da ((hon da infancia>,, tempo
da vida que surge ao adulto como instância capaz da suspensão pro
visória do real divergente:
Porem, no nosso solitário andar, alegravarno-nos
corn tudo o que dura, no espaço intervalar entre o mundo
e os brinquedos,
nurn lugar que desde o inIcio
fora criado para o pure acontecet’ (idem:55)
0 sujeito histérico que fala na ‘Quarta elegia’ indicia urn
Jundo contraditório’ que e justarnenre o principal responsavel pela
instituiçâo da retórica da temporalidade que atravessa a apropriação
do objecto anirnado nos três textos em analise. Vê-la-emos tambern
nos bonecos de Aimada Negreiros. No caso de Rilke, a contradiçao
e a disjuncao do sujeito relativarnente ao tempo presente condenarn
ate a promessa infantil da criança que encerra a elegia. A marioneta,
o anjo e a criança concedem juntos urn instante de plenitude, a
custa da eternização irnaginária do presente. Nestas condiçoes
ideais, latamente coincidentes corn o idealismo estético, o passado
não seria trauma e o futuro simples possibilidade inconsciente.
Estas, enfim, as condiçoes (im)possIveis da felicidade em Rillce:
O horas da infancia,
em que detras das figuras havia mais do que somente
passado e em que o futuro não estava ainda a nossa frente.’> (idem:55)
E este tempo estático que a irnaginação do poeta não consegue
impor a inconstância que percepciona no contacto corn a realidade.
o anjo que actua por cirna dos bonecos não vitaliza os Homens, ja
que a própria criança convocada por Rilke contém em poténcia a
morte futura, suscitando urna incornpreensão absoluta, mais ainda
do que o absoluto de urna qualquer estética. A conclusao do texto
interdita definitivamente o transcendente infantil:
FERNANDO MATOS OL]VEJRA
38
<Fntendemos facilmente
urn assassjno. Mas nao isto: eta conter
assim tao suavemente a morte, a morte por inteiro,
ainda antes da vida, e não set rná,
e indescritive1., (i&m:55)
Regresso ao coraçio
A obra de Airnada Negreiros representa em contexto português
o dialogo mais intenso corn o objecto animado e as forrnas da cut
tura que o envolveram nas primeiras decadas do seculo X. 0
cabaret, para referir urn exemplo, e tItulo de urn poerna almadiano
que tipifica a sociabilidade participativa que por esta altura o carac
terizou como espaço nocturno:
((Pra quê teatro?
Els-nos aqui.
Pusemos o palco entre as rnesas
e sornos flóS Os actores
Os personagens C OS autores.
Banirnos o publico.
Agora, protagonistas todos! (Almada, 1990:239)
A pulsao da noite, cpro1ongamento do dia / que não satisfez,
as girls e as bailarinas preenchem os versos do poema. A sintaxe do
todo é medida pela liberalidade gramatical do jazz, o quai <<liga todas
as passagens>. A mósica, o whisky, o saxofone e as luzes tern como
efeito fazer <esquecer o dia>> e subverter as rnedidas do <sistema,i.
Pode obter-se uma imagem mais completa da escala deste envolvimento a
partir do volume Almada Negreiros e o Espectdculo, Lisboa, Fundaçao Galouste
Gulbenkian, Ljsboa, 1984. A leitura do manifesto O Music-Hall>>, de Marinetti,
publicado em traduçao no Portugal Futurista (1917), traduz o investimento van
guardista nun teatro de acção e de velocidade, adoptado pelo Aimada da Ease
fliturista, quando a máquina estava ainda pelo coraçäo dos bonecos anunciados
em 1919, apenas dois anos mais tarde.
9
39
TEATR4LIDADES
0 cabaret de Almada apresenta-se, assirn, como jogo onde é possi
vet expenmentar 0 mesmo sem as regrasn. Quando no final a bai
larina da urn tiro f1ngido no rnilionario, acaba por encenar o incons
ciente politico do texto: a fraternidade participativa de todas as
classeso não deixa de reescrever corno ‘mentira’ o que a polIcia do
poerna descobre como verdade”.
As rnarcas da pariicipacão do autor no universo cultural e artis
rico do cabaret prolongam-se noutros textos e noutros motivos,
corno sucede corn o clown da ((americana viciosamente esguia de
music-hal&, em K4 0 Quadrado Azuh ou corn a Vampa, persona
gern central da peca Deseja-se Mulber. Presente em Ames tie Come
car, o irnaginário vizinho dos bonecos retorna dramaticamente a
escrira de Almada corn Pierrot eArlequim (1924), e sobrevive ainda
nalguns autores seus conternporâneos. Recordern-se A Continuação
eta Comedia (1931) de Joao Pedro de Andrade e Tres Mdscaras
(1934) de José Régio. Mo por acaso, o movimento da Presença
tematizou frequenternente a figura tradicional de Pierrot, como
forrna de problernatizar a relaçao entre a vida e o sentido. Identica
rnorivação esteve na base de inümeras representaçöes populates da
marioneta, assurnida corno materializaçao do divino ou modalidade
de acesso ao sagrado. A versão mitologica da marioneta ha-de ter-se
em conta nos bonecos de Almada, a que passo ja de seguida.
Datado de 1919, Ames tie Começar consiste, rnuito sumaria
rnente, num dialogo entre duas ünicas personagens: o Boneco e a
Boneca adquirem vida e conversam no rnomento que medeia entre
a partida e a chegada da trupe, pan o inIcio de mais uma sessão de
tearro. 0 tItulo, por si 50, é urn enunciado que convoca a tempora
lidade do espectáculo. Na econornia da peca, ((antes), é o tempo que
começa corn o afastamento de um tarnbor, corno se le na primeira
didascalia: Depois de subir o pano, ouve-se urn tarnbor que se vai
afastando. Quando já mal se ouve o tambor, o Boneco levanta-se, e
vai espreitar ao fundo para loran (Negreiros, 1993:29). A reivindi
cação de anterioridade supôe a existéncia de dois tempos disrintos,
cuja oposicão reproduz a dualidade ontologica entre o rnundo dos
bonecos e o mundo dos hornens que se afastam. Desde o inicio da
duas personagens absolutizadas atra
peca, o Boneco e a Boneca
—
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
40
yes desta definiçao nominal
apenas se revelam animados quando
o tambor do Homem se afasta. A distinçao entre ambos os univer
sos uma fronteira no totalmente impermeavel, como veremos.
A presenca do Homem surge precisamente como obstaculo a
condiçao do boneco: ele afasta-se ao som de urn adereço temporal
mente insidioso como o (<tambor)). Por esta razão, o Boneco avisa
que sO se levanta quando estão reunidas as circunstâncias propicia
doras: <Pois eu, todas as noites, quando o tambor do Homern ja vai
muito longe, levanro-me e you espreitar para fora...n (Idem:29).
Perante o receio da Boneca, o sen interlocutor insiste na aferiçao da
distancia que se estabelece entre o interior e o exterior ao mundo
dos bonecos: <<Nao esta ninguém Ia fora! Eu nunca me levanro sern
ter pensado primeiro se está alguém Ia fora!... So depois ter pensado
bern eu me levanto... e ate hoje, ainda ninguém deu por nada...n
(idem:30). Quando a Boneca se manifesta excessivamenre timida no
inIcio da peça, o Boneco não deixa de a acusar de conivéncia corn
urn regime comportarnental associado a ferninilidade tipica dos
hurnanos, rebaixando episodicamente a bonecan a condiçao de
uma (‘menina,’:
O Boneco
que uma boneca!
—
—
OIha! Digo-te outra vez: pareces mais uma menina do
A Boneca E nao dizes nada rnal!... pois quantas e quantas vezes eu
me esqueço de pie sou boneca e me ponho a pensar exactamente como se
fosse uma menina! (idem:30)
—
A oposição entre bonecos e hurnanos e assunto que subjaz a
totalidade do diálogo. Ser boneco ou ser como os hurnanos e uma
condiçao dramarizada no discurso das personagens, corno marca da
sua diferença constitutiva: “Todas as noites puxo por ii e en és scm
pre uma boneca!U>’ (id.em:29).
Antes tie Começar apresenta contudo duas possibilidades de
mediaçao entre o mundo humano e o mundo dos bonecos. A pri
meira assenta no retorno do elemenco infancil, investido de todo o
capital critico antirnoderno. Instalada nas rnargens da razäo
TEATRALIDADES
41
adulta — força que expropria o ser do contacro corn a verdade
internporal
a criança tende a partilhar as virtudes sinceras dos
bonecos. Aquela criança quase rnortuária que vimos encerrar a pas
sagem elegIaca de Rilke pelo universo dos fantoches tern agora urn
regresso mais prometedor na peca de Alrnada. Ao notar ((as pessoas
pequenas que vérn codas as noites vet o espectaculo>’, a Boneca
regisra, desde logo, uma afinidade topográfIca corn o espaço infan
dl. 0 Boneco explica-Ihe que cal se deve ao facto de as pessoas gran
des se afastarern do espectaculo, deixando o mundo animado ernie
gue aos mais pequenos: ((56 as crianças é que gostarn de bonecos>>
(idem:34). A sintonia ernie arnbos é expressa de rnodo claro, urn
pouco adiante, sob a forma de urna pulsao identitaria: ((Do que as
crianças gostavam rnais era de chegar a ser bonecos!!!” (idem:34).
A segunda forma de rnediaçao entre bonecos e hurnanos chega
nos da actividade desenvolvida por urna hurnanidade excepcional: a
trupe do espectaculo. Apesar de adultos, corno os dernais, a gente do
teatro tern na peca de Almada a capacidade de pressentir a faculdade
rnotora dos bonecos, corno se percebe do dialogo ernie estes óltimos:
—,
((A Boneca — ChiuL.. E pot causa do Homem... coitado, se ele sou
besse que nos nos rnexIarnos! Tu já pensaste a s&io a este respeito? Urn dia,
scm querer, tu julgas que o Homem näo está aqui e dc está a ver-te! Que
horror!!! Nern quero pensar!
o
Boneco — Ora Mesmo que o Hornern me visse a mexer, julgava
que era urn sonho... Nao acreditava...
A Boneca — Não é unto assirn!... Tu é que não sabes o que se passa! Ha
dias, o Homern estava rodo bern disposto, chamou a mulher dde e disse-lhe
a apontar para mirn: Nao achas que cia — era eu tern cara de quem está a
espera de que a genre não esteja a ver para se per a sua vonrade?
—
[. .
o Boneco
—
E a muiher do Homern o que é que disse?
A Boneca — A mulher do Hornern disse assim (Devagar.) Olha que
estás para af a dizer urna coisa que ja inc rem vindo a ideia muitas vezes e
scm eu querer.” (idem:32)
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
42
A predisposicao infantil da trupe de tearro radica na sua bon
dade artIstica. A iconoclastia do Almada fliturista e despejada do
programa de felicidade pela esrética, representado nesta cornunidade
do teatro. A muiher do Homem, parricipante corno ele no mundo
do espectaculo, manifesta sinromaticamente uma predisposiçao onI
rica para antever a qualidade vivente dos bonecos, apenas quando cal
the vern a ideia “sem” ela querer. Nio ha, portanto, acesso adulto ao
sonho infantil sem abrandamento da vigilancia racional. 0 carninho
da arte e aqui o modo mais seguro de aceder a utopia. Esta excep
cionalidade do adulto-artista que inregra a trupe e passivel de trans
missão aos descendentes. Segundo afirma a Boneca, os filhos do
Homem poem-se tambem a urn canto, “a espera de que qualquer
urn de nós se rnexa...>’ (idem:32). A premonição estética da crupe
compensa pelo espeaáculo teatral uma vivéncia ausente da realidade
dos outros adultos.
Mas o que realmente define os bonecos e a ontologia superior
neles investida. Esta consiste principalmente na sua fidelidade sen
sivel, na sua lealdade fundamental as coisas do coraçAo. Entre o
coração e a cabeça gera-se urn antagonismo que reproduz a oposição
entre bonecos e hurnanos nu entre esres e as crianças. Enquanto
argumento central da peça, o coraçäo e lugar passIvel de resgatar a
integridade do sujeito arneaçado pela modernidade. 0 Boneco di-lo
corn a linguagem possessiva de urn coração intransmissIvel e dnico,
ja nos arredores da rnistificaçao individualista que em 1932 Almada
ensaio que e ele prOprio urna reac
exporá na uDirecçao Unica
cáo individual ao mundo que al se dizia progressivarnente sem
((nenhum mistérion. Leia-se, pois, a intervençäo do Boneco em prol
do individuo corn coração:
—
(<0 Boneco Por mais depressa que passes, o teu coraçäo espera
pot ii... o teu coração náo espera mais ninguérn... Se tv náo vieres, o teu
coraçäo não espera rnais ninguém... Se tu não vieres nunca, o teu coração
não conta, näo ouve. E corno se Mo tivesse havido o teu coração. Por mais
depressa que passes, dá-re inteira ao teu coraçáo... Porque so sabe do
tempo quem Mo traz coraçio... o tempo é pecado de quern Mo sabe
—
amarll! (idem.39)
TEATRALIDADES
43
Recordo, antes de prosseguir, que o ‘teatro teologico’ se define
em Derrida como representando sobretudo urn encenador subme
tido a força da voz autoral (Derrida, 1989:322). Ora os bonecos de
Airnada verbalizarn o prograrna sensivel que emana de urn logos
autoral, por vezes de forrna tao afirrnativa como a que se segue:
<Acredita no coraçao! Ele sabe de cor o que quer!... Nao foi neces
sário ao coração it aprender o que queria... A nossa cabeça é que pre
cisa de aprender o que quer o coração!... (idem:39). A tradiçao do
objecto animado reverte aqui a favor de um boneco idealizado, pre
figurando uma pedagogia do coração que visa actuar contra os des
mandos da cabeça. Se em Rillce o fantoche apenas assegurava um
reencontro ilusorio do sujeito consigo rnesmo, em Almada, pelo
contrário, os bonecos são detentores e transmissores da verdade que
vem do coração: <As pessoas é que se enganam! Nós os bonecos,
nunca nos enganamosU!n (ielem:30).
0 coração tende a set o lugar a que o sujeito moderno retorna
em união. Nas palavras da Boneca, a unidade procurada estaria no
coração que não separa o interior e o exterior, tal como sucederia nas
pessoas autênticas, iguais de ambos os lados da pele: <<0 que urna
pessoa e pr’a fora é igual ao que e pr’a dentro! E uma coisa sob’
(idem:37). Quando conta a historia exemplar da sua construção
pedacinhos, a Boneca começa por dizer que foi “muito pensada”;
mas no final da curta narrativa declara ter sido feita na unicidade de
um coração: Fui feita corn o coraçao!... Se o que sai do coração
fosse igual ao que está por dentro... não era uma simples boneca yes
tida de seda... era outra coisa! Era o próprio coração por dentro!
(idem:36). A Boneca testemunha, pois, a projecção unificadora de
quem a construiu. Fá-lo, acrescente-se, corn a linguagem de
Almada, mas tambern corn a linguagem peculiar que P. Bogatyrev
reconhecia nos estudos pioneiros sobre o teatro de marionetas, tea
lizados pela segunda década do século )Q(l A Boneca adopta essa
Na analise formalism do teatro de marionetas checo e do teatro popular
russo, P. Bogatyrev fez o elenco de algumas das particularidades linguisticas e
estruturais desse reportório tradicional (cf. Bogatyrev, 1999). A importância que
Bogatyrev confere a estes elementos antecipa de facto a atenção que o teatro vem
10
44
FERNANDO MATOS OLIVETRA
licença expressiva, pot exemplo, quando concede a projecção rever
sIvel da sua origern corn dererrninadas liberalidades ao nIvel da sin
taxe pronominal e verbal: <<Ela copiou-se exactarnente em mim
(idem:35) ou <<Ela nunca pensou mostrar-me a mim’> (idem:36).
Pelo que temos vindo a ver, o dialogo entre os bonecos reactiva
uma nova versâo da transcendéncia que Kleist e Rilke investirarn de
modos diversos na estética do objecco animado. No caso de Almada,
este refluxo pré-crItico em direcçao a verdade do coração coincide
sintomaticamente com o arranque da segunda fase da sua obra,
orientada para a invenção da Ingenuidade’’. Ames tie Comecarsurge
no infcio de uma etapa que antecedeu os textos responsáveis pela
instituição do programa <ungenuon. Refiro-me, em particular, ao
poema em prosa inritulado A Jnvençao do Dia Claro, texto que con
fere pertinéncia conceptual a Ingenuidade. Set ingénuo corneca al
pela recusa infantil do saber concido nos livros e pela adesao a uma
certeza que so o dominio da crença devolveria tal e qual: <<Imaginava
eu que havia urn livro pan as pessoas, corno ha hOstias para cuidar
da febre. Um livro corn tanta certeza como urna hOstia (Almada,
1990:153). Pela mesma altura, os bonecos de Almada promovem o
coração com uma linguagern que faz igualmente apelo ao léxico
sagrado: E a fé! E o coração que nunca se engana>> (Airnada,
1993:38). Estamos agora bern Longe das <<minuciosidades estupidas
dos sentimentos>’, lirninarmente recusadas no manifesto de Man
netti, inserto no Portugal Futurism, em 1917. 0 teatro de acção van
guardista que atraiu Almada na segunda decada do seculo reverte
subitamente ao teatro da solenidade.
A ingenuidade e, pois, contIgua ao coração dos bonecos que
animam Ames tie C’omeçar. A justificacao desta contiguidade chega
nos do prOpnio autor, num excerto do ensaio 0 Elogio hi Ingenu:
dade <<Ponque na ingenuidade tudo e de ordem emocional. Tudo.
a merecer nos seus trabaihos no ambito do Circulo LinguIstico de Praga e terá
depois urn papel decisivo na ernergéncia posterior cia semiótica teatral.
0 cronograrna desta operaçäo pode let-se no ordenarnento que Celina
Silva confere aos tItulos do autor, no periodo de 1919 a W24 (cf. Silva,
1994: 107).
TEAIRALIDADES
45
0 que nao acontece corn as outras espécies do conhecirnento onde
tudo e de ordern intelectualn (Alrnada, 1992:151). Ern época secu
lar, a verdade absoluta do coração sO poderia ser construida sobre as
rulnas da “ordern intelectual>>. 0 Boneco di-lo-á explicitamente, ao
mesmo tempo que inscreve e legitirna a emoção no alibi da Natu
reza: <<So nao entende o coraçâo quern näo sabe escutá-lo... Ele está
sempre a contar aquela hora que existe p’ralém da sabedoria... e
que tern a forrna sirnplicIssirna de urn coração natural!... (idem:39).
A reactivação do conhecirnento emocional, nucleo da cognicäo
rornântica, representa urna inversão significativa no percurso esté
tico de Alrnada. Mas ao avançar assim para a naturalizaçao simp1icissirna>> da ernoçáo
<<coração natural,) será o sintagrna que fecha
a peça
o trajecto do autor reforça uma intencionalidade impu
tavel a ideologia do estético. Partindo da ternatização do elemento
corporal, Osvaldo M. Silvestre ja se referiu a narrativa ideolOgica
que sustenta a inversâo estética verificada no jovem Almada, sobre
tudo quanto a deslocaçao da sua estética para urn universo pré
rnoderno (cf. Silvestre, 1998). 0 que gostaria aqui frnalrnente de
destacar é o rnodo como o objecto anirnado responde a urna tradi
cáo que problernatiza a condiçao rnoderna do sujeito, ao ponto de
interrogar a prOpria saturação sIgnica do corpo humano. Nos três
autores que tenho vindo a cornentar, a apropriacáo moderna do
boneco, da marioneta ou do fantoche visa reinstalar uma teologia
teatral que anteriormente havia sido contarninada pelo seu próprio
suporte representativo: o corpo humano, precisarnente. Em Ames tie
Começar, a tentativa de reaver a hurnanidade perdida irnplica o exer
cicio desurnano do esquecirnento e da elisao do passado. A Boneca
de Alrnada pode, assirn, produzir afirmaçoes corno <<não tenho his
tOria” ou <<so sei o que aconteceu cornigo>> (idem:35 e 37).
0 poder deste coraçáo magnânirno, inventado para os bonecos,
anula a própria consciência da historicidade <<tardia> que atorrnen
tava Rilke, o qual havia iniciado a ‘Quarta elegia’ corn o descerra
rnento da <<cortina’> do coraçäo. Por este rnotivo, o Boneco de
Alrnada pode concluir, de rnodo suuicienternente aforIstico, que “o
ternpo é pecado de quern não sabe arnar” (idem:39). Neste sentido,
Ames tie Começar deve ser levado tarnbérn a letra. 0 que decorre em
—
—,
46
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
palco antecipa o começo da representaçio, configurando uma tern
poralidade exterior ao tempo de facto. A nota didascalica final diz
nos que os elernentos da trupe Se fazern anunciar, juntarnente corn
((muitas vozes de crianças’>. 0 texto finaliza insinuando urna cena de
teatro dentro do teatro: <Abre-se a cortina do fundo e do lado de
fora estâo sentadas nos bancos muitas crianças corn as pessoas que
as acornpanham. Quando ja está quase a começar a representaçâo,
desce o pano (40). Nesre mornento, em verdade jI [Depois] tie
Começar, Os bonecos apenas podern propor urn dialogo mediado
corn as crianças; sobretudo corn estas, pois os adultos que ali se posi
cionarn fazern-no na qualidade episodica de acompanhantes, sern
acesso directo Iquele tempo que Rilke rnelancolicarnente procurava
resgatar no presente eterno dos seus fantoches.
3
HOLLYWOOD NO CHIADO
0. AsIan
Je voulais vous demander comment
les acteurs jouent sur le plan vocal dans le film par
rapport a cc qu’ils faisaient dans Ia representation
thCatrale.
—
Peter Brook
—
Moms fort.
Mecanismo eléctrico
0 lugar do teatro no espaço póblico é profundamente marcado
pelo aparecimento do cinema. Quando as imagens animadas aban
donam as manobras de bombeiros e se Iançam no campo da ficçao,
o mundo do teatro inquietou-se. Esta chegada da ficçao ao cinema
constitula uma ameaça imensamente superior a que era proposta,
por exemplo, por objectos como a Salda do Pessoal Operdrio Si
Camisaria Confianca ou a Feira de Gado na Corujeira, ambos filma
dos por Paz dos Reis, nos ultimos anos do seculo XIX. Nesses pri
meiros anos de ‘animatographo’, aquilo que viria a ser cinema não
chegou verdadeiramente a disputar o mercado de entretenimento
com o teatro, sobretudo em Portugal’
. Tudo seria diferente, algu
2
Sobre o ritmo da produçao cinematografica nacional, leia-se a sintese de
Benard da Costa: “Do prodigioso desenvolvimento que caracterizou o cinemató
12
grafo nos primeiros dez anos, pouco ou nada transpareceu nos fumes portugueses
coevos, ou nos fumes rodados em Portugal. 0 pals manteve-se quase por
48
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
mas decadas depois. A 3 de Abril de 1929, a Didrio tIe I’votzCras ja
apresentava aos leitores uma ‘foto de familia’ corn o enfatico subti
tub de ‘Tempos que não voltam’. Alinhavarn nela algumas figuras
venerandas da cena teatral, incluindo E. Schwalbach, B. Brazao,
Robles Monteiro, Lopes de Mendonça, entre outros. 0 que a seguir
se propóe é uma revisitação da natureza desse confronto, conslde
rando sobretudo o momento em que o imaginário de Hollywood
avança pelas ruas do Chiado, progredindo sempre ate as Avenidas
Novas. 0 que começou por parecer urna disputa meramente publi
citária entre o cinerna e o teatro, revelou-se tambem urn processo de
redefiniçao estética, corn irnplicaçoes no estatuto e na distribuiçao
do capital cultural de cada uma das expressOes artisticas.
Contrastando corn a ancestralidade da expressäo teatral e corn
certa paralisia temática que caracterizava 0 teatro regular português
pelas decadas iniciais do seculo )O(, o cinema irrompeu corno fcone
de uma nova era, traduzindo esteticamente a aceleraçao tecnologica
que o quotidiano das massas ia incorporando a custa de urna série
de adereços caseiros. Apesar de então se viver o esterror do Natura
lismo, a major parte dos actores nacionais rnantinha um excesso his
triónico que abusava de urna dicçao algo estafada. A tradiçao do
verismo teacral sofre urn embate significacivo a partir do momento
em que o cinema avança sobre ela corn o seu enorme aparato rnirné
tico. Por essa altura, o teatro de Arte que rnodernistas e vanguardis
tas anunciavam pela Europa chegava a Portugal corno eco distante.
Os agentes e produtores reatrais estavarn mais ocupados com as
jogadas de monopolio da indóstria de entrerenirnento, ji por si con
finada a exigua geografia da capital.
Antes de mais, o cinema apresentava-se corno uma extraordi
nária invençäo tecnológica. Em lugar da marerialidade do palco,
corn as seus protagonistas de came e osso, era já urna irnagem vim
tualmente fantasrnacica aquela que o especrador do animarégrafo
observava nas projecçOes memoráveis do ültimo decenio de Oito
centos. Nao surpreende, portanto, que o nascimento do cinema
pleto alheio ao primeiro ‘boom’ do cinema. Passados as anos da ‘novidade’, nem
Portugal descobnu a cinema, nem o cinema descobriu Portugal” (Costa, 1991:23).
TEATRALIDADES
49
tenha provocado acesa polémica na opinião püblica e, muito parti
cularmente, nos rneios intelectuais da época. Enquanto forma de
expressäo, o cinema suscitava interrogaçôes quanto a natureza e aos
limites do artIstico, quanto a relaçao entre a arte e a técnica (a foto
grafia acabara de adquirir movimento), enfim, suscitava interroga
çOes quanto ao futuro do próprio teatro, uma arte com estatuto
milenar. Ao escrever sobre essa novidade historica e sobre o impacto
das tecnologias reprodutoras, Waiter Benjamin arribui urn estatuto
especificamente ontologico a diferença entre a tela e a cena. Para este
crItico, o teatro possula ainda uma <(vantagem>) relativamente ao
cinernático, porque persistiria nele urn derradeiro vinculo aurático:
A representação mais Iamentavel do Fausto, apresentada pot urn tea
trinho de provincia, tern, relativarnente a urn flume sobre o Fausto, a van
tagern de estar em concorréncia ideal corn a estreia em Weirnar. E o que
dos conteüdos tradicionais pode ser recordado no palco, deixa de ser
explorado na tela, como o facto de o Mefistofeles de Goethe ser a repre
sentação do seu amigo da juventude, Johann Heinrich Merck, e outros,
similares.> (Benjamin, 1992:79)
0 facto de o cinema arneaçar o irnpério do teatro era para Ben
jamin uma prova adicional da perda definitiva do auténtico nas
sociedades modernas. A projecção na tela vinha massificar a despe
dida do historico, pois ela tambem contribula para colocar “no lugar
de ocorrência dnica a ocorrência em massa>’ (id.:ibid.). Por esta
razão, apesar de o cinema ser (via montagem) urn gerador potencial
de efeitos de <<choquen, aparecia tambem como o <<agente mais pode
fOStfl) do processo de liquidaçao da experiência historica, radicali
zando um princIpio inerente a própria experiência da reproducao:
Este fenorneno e mais evidenre nos grandes flumes historicos. Cada
vez engloba mais posicöes no seu dominio. E quando, em 1927, Abel Gance
exclamou entusiasticamente ‘Shakespeare, Rernbrandt, Beethoven, farao flu
mes... todas as lendas, as mitologias e os rnitos... esperam a sua ressurreiçâo
pela luz do fume e os heróis acotovelarn-se as portas’, estava, provaveirnente
scm querer, a dirigir urn convite para a liquidacao total.n (idem:79-80)
50
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
A dimensao da fractura simbolica que o cinema vinha introdu
zir no campo artIstico originou posiçOes de grande radicalismo entre
os diversos crIticos. Os incondicionais do cinema surgiam apoiados
pelo námero crescente de espectadores; os detractores profetizavam
a dissoluçao moral da sociedade através do artificialismo perverso da
comunicação cinematografica, como sucedeu em IDa Sugestao do
Animatografo (1921), do jovem Gonçalves Viana. Eduardo Scarlatti,
figura relevante no ambito da reflexao teorico-dramatica em Portu
gal
mais tarde participará no Teatro Estádio do Salitre
alertava
para as diferenças entre o (<mecanismo electricon, dominante na
sucessividade cinematografica, e o que designava por <mecanismo
intelectual>> do teatro (Scarlatti, 1927:13-14). 0 léxico é cultural
mente contrastivo: opor 0 ((eléctrico>) ao ointelectualn era uma forma
de assinalar a superioridade estética do teatro em relaçao ao cinema,
com base no prestIgio de um suposto estatuto de ancestralidade
artIstica.
A vertigem desta arte nova levou o jovem Antonio Lopes
Ribeiro a assinar a sua página no periodico Kino (1931) com o
sugestivo pseudOnimo de <Retardador>>’
. 0 termo é particular
3
mente feliz, pois coloca o cinema, muito exactamente, no contexto
de uma revoluçao perceptiva e sensorial. 0 mesmo W. Benjamin
referiu-se explicitamente as consequências estéticas da velocidade
mecânica trazida pelo cinema. Neste sentido, o cinema dava mais
urn passo no caminho da simulaçao, inaugurado anteriormente com
o nascimento da fotografia. Assim era, com uma restrição ‘teOrica,
certamente por via de um conhecimento prévio das congeminaçOes
de Arnheim:
—
—
13 A imprensa cinernatografica rapidamente ultrapassa a que Se dedicava ao
acompanharnento da vida teatral portuguesa. SO nos anos 20 e 30 surge uma
enorme quantidade de tftulos, tendo em coma a dimensao do pals: C’ine-Revista
(Lisboa, 1917-24); Porto Cinematograjico (Porto, 1919-26); Invicta Film (Porto,
1923-32); Cjne Jamal (Porto, 1926); Cinema (Lisboa, 1921); Cine-Lisboa (Lis
boa, 1923); Cinema (Lisboa, 1924); Cinelandia (Lisboa, 1928); Cinegrajia (Lis
boa, 1929-30); CineJilo (suplemento d’O Seculo, 1928-38); Kino (Lisboa, 1930,
corn 5 nürneros) eA Inwgem (Lisboa, 1930-36, corn 124 nümeros).
51
TEATRALIDADES
Mas as dificuldades que a forografia tinha levantado relativamence
a
esthica rradicional, eram urna brincadeira de crianças comparadas corn as
que foram provocadas pelo cinema. Dai a violéncia cega que caracteriza a
teoria do cinema nos seus primérdios.. (op. cit.:89)
A figura do realizador levava mais longe o trabaiho suplemen
tar do encenador. A montagem viria mesmo a ser o zénite estilIstico
da tecnologia reprodutora proposta pelo cinema. Descendenre tar
dio da modetnidade, o cinema parecia desligar-se em definitivo da
arqueologia perceptiva que caracterizava o teatro. Se o cinema era o
Novo, o teatro mantinha-se na linhagem do Amigo. 0 actor de
cinema já não representava sequer pan urn póblico, mac para urn
equipamento, para urn mecanismo corn a fianção de mediar o
hurnano. Dal a referencia de Benjarnin, assaz sugestiva, a crItica
cinernatografica de Pirandello. Em FE/ma-se, o drarnaturgo italiano
entendia o cinema corno urn “exiiio do actor”, obrigado agora a
. Para ‘W. Benjamin, o resultado
14
representar perante urna máquina
e isso e obra do
era algo exrraordinario: Pe1a primeira vez
o homem ye-se na situaçäo de actuar com a sua totali
cinema
dade de pessoa viva, mac cern a sua aura.)) (ia’em.92). 0 publico não
existe corno tal no <aqui e agora” do reatro, apenas se insinua como
mercado, a distância. A revoluçao do rneio fica bem patente na simi
litude que Benjamin estabelece entre os pares teatro/cinema
rnago/cirurgiäo. Se o rnago apenas poe a mao na cabeça do paciente,
mantendo a distância que “exisre entre ci prOprio e o doente”, o
cirurgião inrervém no seu interior: <c.o cirurgiäo prescinde, no
mornento decisivo, de se defrontar, enquanro hornern, corn o seu
paciente, intervindo nele de uma forma operanre. 0 mago e o cirur
gião cornporrarn-se como o pintor e o operador de cârnaran
(idem.99-100).
—
—
Tal no impediu L. Pirandello de acompanhar pessoalmente a adaptaçao
cinematografica de novelas e dramas de sua autoria, chegando mesmo a deslocar
cc a Hollywood a propóslto da adaptaçao de Como Cu rn mso na decada de cnnta.
52
FERNANDO MATOS OL!VEIRA
Cinema como habitus
Sendo urna arte particularrnente comprometida corn o codigo
sensIvel das massas, o cinema contou de facto corn a adesao pro
gressiva do pdblico. 0 cinema era revolucionario tambem no sen
tido em que se dernocratizava corno arte e se afirmava como instru
mento de urn novIssirno processo de ‘recepção in diversao’. Para
Rick Altman, urn critico que tem vindo a reler a historiografia cine
matografica, dever-se-ia ter ern conta o facto de a invenção social
do cinema”, o seu estabelecimento como prática cultural”, nos contar uma histOria paralela, por vezes, não exactarnente coincidente
corn a histOria da sua <dnvenção tecnolOgica” (Altman, 1996:12).
Na verdade, o processo de institucionalização do cinema como prá
tica cultural foi rnais instavel que o curso estrito dos seus meihora
rnentos técnicos. So algurnas decadas depois das sessOes experimen
tais do inIcio de século, mais prOximas do happening, vet urn film
passou realmente a integrar os rituais daquela sociabilidade alfaci
nha que alastrava a partir das Avenidas Novas. A alteração dos veihos
costumes encontra eco na narrativa da época, em tItulos como A
Leviana de Antonio Ferro (1921), a farsa 0 Maluco c/as Avenia!as
Novas, representada pelos actores do Nacional em 1927. Um tal
caminho poder-nos-ia conduzir ate as girls do Nome de Guerra, pas
sando pelo encOmio ao Music-hall assinado por Marinetti no
nümero ünico do Portugal Futurista, em 1917. São testemunhos da
agitacão dos costumes nas primeiras decadas do século XX, a que
poderIamos juntar o universo ficcional d’As Criminosas do Chiaclo,
um policial rudimentar de J. Ameal e de L. Cuimaraes (1925). A
censura moral dirigia-se inclusive a umas “fitas de alta poténciao,
exibidas pelo Salon Rouge do Bairro Alto. Mais do que o ténis, o
foot-balh a moda, a cocaIna ou a distinçao dos salöes de cha, o
cinema tinha a vantagem de se apresentar como um convite irresis
tIvel ao convIvio entre os sexos, tao importante numa época de rude
austeridade relacional.
Com o final da Primeira Guerra, personalidades de algum
modo ligadas ao teatro escrevem tambem sobre o confronto entre as
duas artes, numa disputa que se iria prolongar, já num registo
TEATRALIDADES
53
redundante, ate aos anos trinta. Urn desses autores foi Alberto de
Lacerda. Em 1924, publica Teatro Futuro. Visao tie uma Nova Dra
maturgia, onde o cinema aparece ainda como uma forma de expres
são arredada da condição artIstica: <(A cinernatografia não satisfaz ao
conjunto de requisitos que ihe dariam legitimamente a classificaçao
de pura Arte. Está para o Teatro como a vulgar fotografla está para
a pintura.” (L.acerda, 1924:115). Grande pane da argumentação a
favor da superioriclade do reatro assentava na <ausência de sons aid
culados ou inarticulados’> que caracterizava o cinema no inIclo dos
anos vinte. A “arte do silêncio” era para este Lacerda, afinal, urna
espécie de ((Natureza morta”. Foi exactamente esta argumentação
que o sonora fez caducar.
Quando publica Ler e Tresler, nesse mesmo ano de 1924, Agos
tinho de Campos inclui no volume urn capItulo intitulado “Teatro
e Cinema>>. Escrevendo a partir de Rorna, em 1917, recusa a ideia
de que a vulgaridade do tinerna liquidaria a prazo a seriedade do
teatro, optando por colocar o problerna na perspectiva de urna dis
puta de <<freguesia”. Haveria, pois, que repensar a significado da pre
tensa uexpansão teatricida do drama e da comedia em celuloide’>
(Campos, 1924:95). No fundo, corn todas as diferenças ‘mediais’,
ambas as artes pretenderiam a sucesso póblico: A coisa é outra, e a
luta da-se, não entre uma pobre e sirnpática arte aristocrática e uma
indiistria insolente ou grosseira, mas verdadeiramerite entre duas
indüstrias por igual sequiosas de mero lucro (idem:89). Dal que a
articulista entenda como regressivo o charo dos actores italianos
sabre as ruInas do teatro. Segundo ele, a solucao não poderia buscar-se no isolarnento do teatro na torre de marfIrn ou na instituição
de um sistema de subsIdios.
Nesta fase, o rnercado das opiniOes sobre o teatro e o cinema
alarga-se exponencialmente. Mesmo uma figura corno Almada
Negreiros navega ainda pela ambiguidade estatutária do cinema,
quando publica na revista Sucloeste <<0 cinema é uma coisa e o teaira autra”, em 1935. A sua concepção ‘privada’ de teatro apöe-se
a exposição predominantemente <püblica’ do cinema. A opasição
decorre, coma se ye, entre uma ideia de teatra e uma outra de
cinema, reduzindo este ultimo a condiçao de <c;ornal do mundon.
54
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
Quando muito, Almada assume corn tal oposição o favorecimento
esteticista do teatro que o Modernismo imaginou. 0 privilégio ‘pri
vado’ do teatro era, alias, uma ideia comum ao tempo, mesmo em
Portugal. Poder-se-ia encontrar, por exemplo, na prirneira ediçao de
A Religiao €L Teatro, de Eduardo Scarlatti, cm 1928. A ‘religiao’ do
titulo é efectjvamente teatralizada, a custa de Bergson, de Nietzsche
e da falta de dnterioridade’ que apontava ao cinema.
A expansão do cinema afectou o funcionamento dos agentes e
das instituiçães teatrais. Pot volta de 1910, ainda no tempo do
mudo, Lisboa oferecia já urn ndmero considerável de animatógra
fos, do Rossio a Alcântara, e, em uinais dos anos vinte, estima-se em
cerca de 300 o nómero de salas no pals. Nomes como Valentino,
Douglas Fairbanks, Greta Garbo e Mary Pickford rivalizavam em
popularidade corn as rnaiores vedetas nacionais da revista e do tea
tro ‘regular’.Os meios de que dispunham os estódios da Paramount
e da UFA superavam de longe o apertado empresariado teatral lusi—
tano.
E neste ambiente de franca concorréncia que, em 1928, algo de
simbolico aconrece na capital portuguesa. Corn a participação de
Leitao de Barros, o antigo Teatro S. Luis transforma-se em cinema e
apresenta na sua abertura (Metropolis)), de Fritz Lang. ‘five-se nesse
momento o apogeu do (lIme mudo, imediatarnente antes de o
sonoro acrescentar o panico. Em 1929, Paulo Brito Aranha, crltico
no “Noticias Teatral”, suplemento do Didrio de Noticias, escreve na
sua crónica: Quadra estiraçante, 1925-29, o desaparecimento do
rneio teatral (...) quatro anos so. E que diferença. Nem primeiras,
sensacionais, nern festas de confraternizaçao, nern companhias
estrangeiras! Uma desolaçao. Acabou ate o ‘rneio teatral’>>. As revis
tas de critica e de divulgacao teatral aderem tarnbem a ordern cine
matográfica. Em 1921, a revista Comoedia (sobrevivera apenas urn
rnês) abre com a imagem de urn (lime, considerando que uurna sec
çào de cinema era inevitavel em um jornal de ceatro>’.
De facto, sobravam razOes ao articulista do Didrio tie NotIcias.
Veja-se urn exemplo, tirado ao acaso deste mesmo jornal. A 3 de
Abril de 1929, para um total de 6 espectáculos de <teatro/revistan
(não havia urn drama sério em exibiçao), a cidade de Lisboa apre
55
TEATRALIDADES
sentava pelo menos 18 salas de cinema em actividade. A listagem
permitiu a reconstrução desse dia 3 de Abril de 1929, nos seguintes
termos:
1) Espectáculos de teatro/revista:
Trindade
“P6 de Maio (super-revista)
Apolo
<Os Vareiros” (opereta)
Politeama
O Batoque (comédia burlesca)
Avenida
Três contra urn” (revista)
Coliseu
<Tosca (Companhia de ópera italiana)
Variedades
<<E siga a dança (revista)
—
—
—
—
—
—
:
15
2) Salas de cinema com fumes em exibiçao
Olimpia
Asas
<Volga-Volga
S. Luis
Central
“Harry Pen contra Arsene Dupin
Odeon
Ben-Hur
<Serenata
Tivoli
Condes
O Romance da Duquesa”
Chiado-Terrasse
O Pirata Negro))
5 e Dom.
Cine Praia (Cruz Quebrada)
Musical Cinema Parque
Variedades e cinema
Pathe Cinema (R. Francisco Sanches)
Cine Patria
<<Bento
Casino Internacional (Monte Estoril)
2.a, 3 e Dom.
Cine Esperanca
Joaquim de Almeida (Praça do Estoril)
Salao Lisboa (Mouraria)
Salao Ideal (Rua do Loreto)
Salao do Rossio (R. Arco da Bandeira)
Cine Paris (R. Ferreira Borges)
—
—
—
—
—
—
—
—
—
—
—
Indicam-se apenas os tItulos de filmes adiantados pelo próprio jornal.
restantes
casos apenas se acrescentava o horario e/ou dias de projecçäo.
Nos
56
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
Cine Belgica (R. da Beneficéncia)
Jred, o rico mexicano>>
Palais Cinema (Poço do Bispo)
Eden Cinema (R. do Alvito, Alcintara)
Salao Portugal (Travessa da Meméria, Ajuda)
Cine Promotora (L. do Ca]vário)
Alga Cinema
—
Corn este volume de transferência de püblicos, toda a conjun
tura do espectaculo e do lazer e profundarnente reconfigurada em
escassos anos. A “opereta” e a revista começarn a sentir dificuldades,
especialmente esta ultirna, devido a consolidaçao do regime censó
rio. 0 cinema vinha juntar-se a concorrência movida pelo sallo de
chá, pelo jazz e pelo cabaret. 0 teatro teve ainda de compecir corn a
vulgarizacao progressiva do music-haI4 género mais erótico e conve
nientemente menos politico.
Sonoro teatricida
A 22 de Setembro de 1929, urn crItico escrevia no Didrio de
NotIcia.r Parece que não vem longe a hora do grande perigo, do
perigo máximo para o teatro (...) Quem viu o cinema falado achara
mesmo que o surdo e insuportáveb’. A afirmaçao de Antonio Ferro,
segundo a quai o cinema seria o “teatro do futuro>’, parecia confir
mar-se ames do previsto. Apesar das dificuldades criadas pela pro
pria narureza do sonoro, quanto as novas barreiras linguisticas e a
formaçao de actores capazes de suportar o som, o cinema sonoro
impöese. Os ecos da devastaçao anunciada pelo sonoro descem ao
povo da revista, em protesros tao singelos como Abaixo o Cinema
(1929). N’OMexilhdo Q931), a acrriz Corina fez circular um céle
bre refrao pela capital: “Theodoro / Nao vas ao sonoron.
Corn a chegada do sonoro, o cinema pede ao teatro todo urn apa
raw produtivo que não detinha. Em Porrugai, diga-se, dificilmente o
poderia vir a susrentar, face a pequenez da audiência. Na década de
trinra, como não tinha criado ainda os seus prOprios actores, o cinema
recruta-os no terreno do teatro. E quase premonitOrio o facto de um
TEATRALIDADES
57
dos primeiros flumes de flccao portuguesa ter por tItulo 0 Rapto de
isma Actriz (Lino Ferreira, 1907). 0 cinema pagou o resgate corn os
vIcios imporrados do elenco, próximo de uma dicçao excessivarnente
teatralizada que Lana (ma) escola. 0 intercambio ‘logistico’ entre os
dois meios vinha já do tempo da Invicta Film, de George Pallu,
quando se realizaram diversas adaptaçoes de conhecidos episódios da
História e da literatura portuguesas. Actores de teatro como Enico
Braga, Amelia Re>’ Colaço ou Angela Pinto ejpprestaram o seu estilo
de representação a pelIculas como 0 Primo BasIlio ou 0 Amor tie Per
diçao. Are o eterno E. Brazao participará n’As Pupi/sis do Senhor Reitor
(1922), de Maurice Mariaud. A adaptacao deste capital narrativo
vinha supnir o défice de textualidade que o cinema vive no seu inIcio.
Estas produçóes são a meihor fonte de informaçao sobre o tipo de dic
ção, de rnirnica e de gestualidade vigentes no teatro da época.
Urn dos episodios rnais sintornáticos das transferéncias ernie o
teatro e o cinema vinha jade 1917, data de uma adaptacao Iivre de
urn curioso texto italiano, realizada por Acácio Antunes. A peça inti
tulava-se 0 Cinematógrafo e havia sido representada “corn grande
sucesson no Teatro do Ginasio. A comedia em trés acros contava urn
episodio na vida de Martinho, urn marido que se viu num flume exi
bido nas salas da sua cidade. A pelIcula revelava as primicias de uma
aventura extra-matrimonial passada em Ostende. 0 encontro corn
urna apaixonada>’ ocasional não tinha passado da <<prirneira entre
visra’, mas como a sua esposa decide inesperadarnente experirnentar
a <<photographia animada, o infeliz acaba por ser apanhado corn a
dama de Ostende. Depois de se yen “exposro no cinernatographo>>,
Martinho so se reabilita quando o arnigo Boris esciarece que o
encontro não passou de urna sessão dissirnulada para uma ernpresa
das fltas’>. Nao ha como não yen aqui a prernonicão de W. Benja
min, quando se referia a questäo da autenticidade: <<Deste modo, em
deterrninadas circunstâncias, quaiquer urn pode ser pane de urna
obra de arre (...) Qualquer homem, actualmente, pode ten a preten
são de ser filrnado” (op. cit.:96). Maninho e urna vitirna deste irnpe
rativo paisagIstico e lamenra-o explicitarnente quando se refere aos
maleficios pnivados do “rnaldito cinernarographon, corn a prornessa
de nio se aventurar rnais senão durante a noite (Antunes, 19 17:24).
58
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
Mas este Cinematografo teatralizado suscita outras questôes.
o drama coloca em evidencia os problemas de linguagem criados
corn a chegada do cinema, ja muito evidentes em noticias e crIticas
nos periodicos da época. A instabilidade terminológica foi uma
marca das primeiras décadas do cinema. So por volta de 1930,
quando a articulaçao técnica entre e sorn e imagem se define, a un
guagem estabiliza e o cinema realmente se liberta da refer8ncia tea
tral e fotografica (cf. Altman, 1996:16). Em 1917, as personagens
da peca não sabem ainda como nomear a acção da máquina res
ponsavel pelas <<fins’>. Por essa altura, esta máquina ainda näo flu
maya propriamente, como se percebe das palavras de Martinho: <(Eu
nunca mais terei entrevistas, mas se as river ha-de ser a meia-noite e
completamente as escuras! Ao menos assim, poderei ter a certeza de
que nâo serei photografado!” (Antunes, 1917:24).
Foi tambem por ter vindo clarificar o territOrio conceptual das
artes que 6 sonoro desempenhou um papel decisivo. 0 som vinha
acabar de vez corn os argumentos dos que, acantonados no lado tea
tral, se definiam pela posse exciusiva da palavra, desde o tempo em
que o mudo era visto (e identificado) como uma arte do silêncio.
0 confronto näo tardaria a acalmar, sobrevivendo talvez como
sentimento da cena face ao sucesso publico das pelIculas. Com
efeito, Fidelino de Figueiredo escreveria pouco tempo depois, num
texto intitulado Dc regresso tie Hollywooac que a histOria do juízo
pablico sobre o cinema pode ser quase tao atractiva como a histOria
dos seus processos técnicos>>, acrescentando o seguinte: asuponho
que tenhamos chegado já a uma fase de serenidade a respeito do
cinema>) (Figueiredo, 1966:121). Publicado pela primeira vez em
1933, a ufase de serenidade>’ referida por Fidelino traduzia já a saw
ração da controvérsia em torno do cinema, passado o tempo das
jeremiadas anticinematograficas>’. Era algo que já se vinha perce
bendo noutros autores, como no volume acima citado de E. Scar
latti, onde se inclula o capItulo Variaçoes ligeiras sobre urn tema
gasto: artes estáticas e cinemáticas...>’. Por entre as ruInas do debate
entre cinéfilos e teatrofilos, ambos estariam destinados a expansão:
<sobre o desejo de absorçao e o desaparecimento de ambos, vinga
uma lei fatal de crescimento” (Scarlatti, 1945:25).
TEATRALIDADES
59
Contra a expectativa dos espiritos mais reticentes, Scarlatu diz
nos que a convivéncia entre “as duas organizaçOes artIsticas>> havia
wvolucionado pan a fixaçao dos seus caracteres própriosn
(idem:25). Fidelino de Figueiredo antevia mesmo uma simbiose
utópica entre as duas artes. Numa série de cinco inferéncias, espe
cula sobre o futuro do teatro e do cinema sonoro. Depois de o
cinema sonoro <<reteatralizar o cinema>>, o regresso das imagens em
movirnento a casa do teatro poderia promover a reconciliação defi
nitiva, mutuamente ernancipadora: O teatro, reconciliando—se corn
o cinema, adquire ama grande potencialidade de rneios e retoma
liberdades veihas>’ (op. cii.: 131). As inferencias normalizadoras de
Fidetino contêm um tanto de retórica, talvez resolvendo o melindre
do intelectual face ao império de Holiywoodn.
Duas outras razOes, endernicamente desprezadas pelo meio tea
isa!, contribuirarn para o sucesso do cinema. Em 1929, Brito Ara
nha chamava a atenção para as condiçoes duma casa de espectácu
los moderna>,. Espacos dedicados ao cinema, como o Tivoli, vinham
desde meados dos anos vinte impondo um novo padrao de conforto
e distinçao, apurando a animação do póblico antes, durante e depois
das exibiçoes. A mesma casa abre corn a designacão sintomácica de
‘cinerna music-hall>’. Os teatros que ao tempo existiam não podiam
responder a tais comodidades. Na sua rnaioria, as salas eram já antigas e modestamente equipadas. A lista reivindicativa que o critico
apresenta reulecte as exigências da nova sociabilidade. 0 que pede
equivale a uma nova concepcão de espaço teatral, contemplando
atributos como <pessoas decorativas>’, “aquecimento no inverno;
conforto nos lugares; ambiente agradável a sensibilidade e a vista;
movimento mundano convenientemente regulado, inclusive corn
distribuiçao gratuita de bilhetes; intervalos animados e bern preen
chidos, fora e dentro da sala>> (DNde 5-2-1929). A devastaçao cau
sada pela inferioridade material do teatro reaparecerá no espaço
publico ate meados do século, altura em que, numa série de artigos
, Antonio Pedro o retoma
6
intitulada 0 Quo do Teatro em Portugafl
em termos aparentemente definitivos:
16
In Didrio de Lisboa, 17/09/1949.
60
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
(<Numa noricia publicada recentemente, dizia-se que, segundo as
comas publicas do MunicIpio de Lisboa, no ano de 1948 houvera 21.233
espectaculos de cinema e 1.043 de teatro, o nümero mais baixo desde ha
cinco anos. Se nos lembrarrnos de que, salvo no Nacional, foram quase
todos espectaculos pot sessóes, reduziremos ainda este nümero para cerca
de rnetade: 700 a 800 especcáculos tearrais pot arto. Em media dois por
dia! Nao é verdade senhores empresários do Parque Mayer? Nos meses em
que pára o Nacional abrem os cinemas obrigados a ser teatros. 0 resto são
meteoros. A estatfstica sublinha a evidéncia da própria observaçao e torna
a superficial. A realidade ainda e pior. Esrarnos em plena bancarrota.>>
(Pedro, 1949)
Pelo final dos anos vinte, esta <<bancarrota>’ traduzia-se, nos ter
mos do critico do mesmo Didrio tie Noilcias, nurna crise instirucio
nal de bilheteira”: <Os teatros lutarn corn falta de recursos regula
res. 0 pOblico não encoraja nunca iniciativas de real valor artIstico,
abandonando-as sistematicamente e sO acorrendo regularrnenre aos
espectaculos digestivos e ao cinema” (21 -4- 1929). 17 Juntando a
coricorréncia rnovida pelo cinema as condiçoes adversas da vida tea
isa! portuguesa sob o Estado Novo, chegamos directarnente ao torn
apocaliptico das palavras de Antonio Pedro, no ano de 1949, justa
rnente quando Hollywood consagra a sua simbOlica por toda a
Europa:
“Tudo isro leva a crer que se preocupa uma nação civilizada corn a
ameaça de se ver reduzida a colonia cinemarográfica de Hollywood corn
urn pequeno entre-paréntesis de grosseria original situado no Parque
Mayer, e todas as contribuiçoes de boa vonrade sejam neste momento de
pedir. (Pedro, 1949)
Os preços do reatro jamais viriam a poder concorrer corn os do cinema.
Na vizinha Espanha, Angel Carvajal descreveu a peregrinação triunfante do
cinema pela Iberia como uma concorréncia entre uma novidade barata e urn
arcalsmo dispendioso (Vilches, 1997:33).
17
4
0 DRAMA DA OPERA
Musicologia
Entre os vários tItulos da já vasta obra de Mario Vieira de Car
vaiho (MVC), J2ensar éMorrer ou o Teatro de São Cia-los na Mudança
de Sistemas Sociocornunicativos desde Fins do sec. XVIII aos nossos Dias
(Carvalho, 1993) e talvez aquela que meihor nos reconduz aos has
tidores da sua crItica, fundada aqui definitivamente em duas refe
réncias maiores: a) a crItica frankfurtiana da razão moderna e da
apropriacão fetichista dos bens simbolicos, corn destaque para a
importância central do ensaio Dialdctica do Iluminismo, de Theodor
Adorno e Max Horkheimer; b) a sociologia musical de Christian
Kaden e dos Beitrage zur Musikwissenschafi. Integrando o conceito
de “sisternas sociocomunicativos>, 0 musicologo português mostra
se em condiçOes de acoiher categorias tao diversas como a funçao
institucional do espectaculo, a análise do repertório, o aparato un
guIstico, o desempenho cénico, a configuracao dos póblicos, os
mecanisrnos da recepção espectacular, entre outros aspectos. A per
manéncia deste quadro conceptual pode efectivamente rastrear-se
ate a colectanea rnais recente, intitulada Razao e Sentimento na
Comunicaçao Musical. Estudos sobre a Diale’ctica do Iluminismo (cf.
Carvalho, 1999).
Para o autor de A Másica ca Luta Ideologica (1976), urn livro
que a data exibia no tftulo o pathos pos-revolucionario, este trabalho
sobre o Teatro de São Carlos (TSC) representou, ainda assirn, a con
tinuidade de urna tradiçao hermeneutica que herdou o vInculo
FERNANDO MATOS OLTVEIRA
62
materialism dos tempos da critica jornalIstica, praticada no Didria
de Lisboa e na Seara Nova (cf. Carvalho, 1978). Era urn vinculo
naturalmente estranho ao programa musical do regime fascista, para
quern um <rni bemol>> de Lopes Graça podia set mais “perigoso do
que mu panfletos subversivos (idem;200). Nessa altura, a voraci
dade ideologica de tal vInculo colocava ainda sérios entraves a dia
léctica que o Iluminismo cerrado de MVC pedia: “Hoje como
ontem, continuo a entender que tambem na másica não se pode ser
neutro: não se pode estar ao mesmo tempo de ambos os lados da
barricada.>> (Carvalho, 1976:21). Em 1984, nurn tempo de barrica
das esvanecidas, a marca teórica de MVC persiste sob a forma de urn
aforisrno wagneriano: Assirn a arte do poeta se converteu em poll
tica, ninguérn pode fazer poesia sem fazer poiltica”. Fica-nos o aviso,
mas fica tambem o pretexto para se pensar, a par do comentario que
o livro solicita, a) a teleologia que o fundarnenta, b) o ascendente
wagneriano que o atravessa c) e a própria viabilidade emancipatória
de urn objecto corno a opera.
Publicado em 1993, no aim em que se comemorou o bicentena
rio do Teatro de São Carlos (TSC), o lastro crItico do volume dedi
cado ao nosso ñnico e muito intermitente Teatro de Opera urn
baiho académico originalmente concluldo em 1984, na Universidade
mostrou na devida altura estar para além de
Humboldt de Berlim
qualquer pretexto celebratOrio. Corn efeito, o que o autor nos apre
senta consiste num balanço rigoroso da actividade do TSC, apoiado
numa recoiha documental exaustiva e na reconstrução possIvel dos
repertOrios ao longo desses duzentos anos, aqui divididos em varios
ciclos ternporais, ordenados de acordo corn a alternancia dos referidos
<(sistemas sociocornunicativos>>. Em apendice temos quase duas cente
nas de páginas de quadros e estatIsticas que, além de fundamentarem
a tese defendida, são urn invulgar contributo pan a preservação da
memória do TSC. Neste particular, o objecto escolhido não podia
mais adequado: pelas suas caracterIsticas e face ao rnalogro precoce da
Opera do Tejo. o TSC possui urna representatividade dificil de igua
lar por qualquer outra casa de especticulos na exiguidade do nosso
meio operático. Trata-se, pois, de uma obra destinada a rnarcar o
futuro dos estudos de rnusicologia em Portugal.
—
—
63
TEATRALIDADES
0 contexto germânico que presidiu a escrita do livro terá, favo
recido a persisténcia do compromisso reactivado pelos debates de
1976. No campo da crItica de arte, dc reflecte a proximidade de
MVC relativamente a escola dos fundadores da Zeitschrrji. Recor
dem-se, a este proposito, os numerosos artigos ali pubiicados sabre
as mecanismos de reificaçao cultural e as investigacOes na area da
sociologia musical
o de Adorno, para a primeiro nómero, intitu
lava-se sintornaticamente ((A situação social da rndsican. Mas a
angüstia do silêncio que ameaçou as Luzes introversivas do grande
fliósofo e musicologo de Frankfurt comunicam em MVC com
outros herdeiros da Teoria CrItica. Esta comunicação, apesar de o
disponibilizar para as tarefas de coleccionista que a investigacão tea
tral exige no nosso pals, jamais chega a bloquear totalmente o
impeto adorniano que vem pondo seus trabalhos. Num piano estri
tamente nacional, MVC também reñne ‘factos’, como vem fazendo
José-Augusto Franca em volumes fundamentais coma 0 Roman
tismo em Portugal ou Os Anos Vinte em Portuga4 mas os ‘factos’ de
MVC são mais do ambito da ‘matéria’ que exphcitamente alimenta
o pensamento dialectico. Par esta razão, a introduçaa ao livro inciui
urn aviso metodoiogico: <<em vão se procurará neste iivro algo de
parecido com a historia do TSC> (op. cit.: 14). São sobretudo Os
temas de comunicação e interacção’, bem coma o (<postuiado da
unidade de concepçãa, praxis, inscituição e recepção que constituem
o fundamento da historiografia do reatro (ia’em:l 5). A questão a
resolver consiste, assim, em saber “quando, como e porqué a acção
que decorre sobre a palco musical é, no processo de producao e
recepção, esvaziada de sentido?>’ (idem:13). Insistindo na razão pro
priamente critica deste sentidon, MVC experimenra aqui a mesma
angásria de Adorno, quando este afirmava que nenhuma estátua
grega, na sua nudez, seria uma ‘pin-up’. MVC tambem pane para a
leitura da historia do TSC cam a flrrne convicção de que a opera não
se pode reduzir aa estaturo do <<mais sofisticado dos divertimenros”,
seja de burguesias ou de novas aristocracias (cf. Carvaiho,
1976: 148).
—
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
64
Opera e ernancipaçâo
E no âmbito da narrativa franthrtiana do desvirtuamento fun
cional da arte que o TSC emerge no livro de MYC como campo pri
vilegiado de analise, traduzido nurn acompanhamento sisternático
das variaçOes nas estruturas de comunicação artIstica, ao longo de
dois seculos. E claro que a tarefa de procurar urn pensamento critico
num género corno a opera, sobretudo nurn pals tao latino como
Portugal, é rnissão espinhosa. Assirn é, sobretudo quando o referente
musical e o referente critico nos chegarn ambos da .Alernanha, urna
nação musical ‘super-ilurninada’. Apesar disso, MYC investiga no
TSC o curso sinuoso que fez a Opera oscilar entre o sentido, o seu
esvaziamento, e as outras ocasiães em que deste sentido apenas res
tou o bel canto transmudado em fetiche burguês. E nesta perspectiva
que o autor se revela urn rnusicOlogo ‘negativo’, pois a historicidade
das lutas de setenta converte-se, no contexto da sua critica posterior,
na valorizaçao decisiva de urn “vinculo drarnático>’ na Opera, como
o prOprio escreverá em Raz.Jo e Sentimento (Carvalho, 1999:53).
Nao ha como ignorar aqui a figura de Wagner e o ascendente teO
rico exercido pelo volume Opera e Drama. A persisténcia desse “yin
cub dramatico’> é o porno ideolOgico da cricica de MVC, e e nele
que o autor concentra todo o capital ernancipatório deste género
musical.
E evidente que urn prograrna de ernancipaçao através do
cdrarna da opera é urn projecto que encontra serbs obstacubos, a
vários nIveis. Ames de prosseguir, vejamos brevemente trés deles.
Em primeiro lugar, corno se pode comprovar pela interpreracäo
orninosa que MVC tende a fazer de todo o divertimento, a Opera é
urn género que viu o seu desenvolvirnento e ate a sua Jegitimaçio
politica dependerem do capital hidico que lhe foi atribuldo. Como
o prOprio reconhece, o arranque do processo da racionalizaçao ilu
minista trouxe consigo urn paradoxal <modelo de recepção da arte
do quai era banida a racionalidadaden (Carvalho, 1999:62). Ora,
esta e urna daquelas aporias de Frankfurt que resisre ma! ao argu
memo lódico: fob este mesmo que concedeu a Opera os avultados
rneios materiais que ela historicamente pediu. Mas o prOprio diver-
65
TEATRALIDADES
timento näo teria que ser necessariarnente urn mal em si mesrno.
sendo certo
Apesar do anáterna alienante que Adorno the iançou
que se vivia na aitura o rescaido de uma campanha de esteticização
do politico —J. Huizinga defendia longamente, pela mesma época,
que divertimento era coisa mais antiga do que mero epifenOmeno
do ((aburguesamenton ocidental.
Em segundo lugar, a emancipação pelo drama da Opera tern de
se haver corn a histOria de compromissos que sempre caracterizou a
textuaiidade do libreto. Suspendendo agora as origens, logo
autores da Camerata a permanência do recitativo já era entrecortada
pela inten’enção coral. Entre o bel canto e o dramma per musica, o
propOsito dramatico do libretista esbarrou com frequencia (natural)
na propensão italianizante para o virtuosisrno vocal, como veio a
suceder em Portugal. Contra esca inflaçao Sonora SC moveram fibre
tistas importantes, como A. Zeno, Metastasio ou próprio Gluck
(pan quern a másica se anunciava serva” do drama), alérn da revo
luçao wagneriana, é clara
Em terceiro lugar, o destino musical do libreto obriga-o natu
ralmente a certos preceitos forrnais: a) ser conciso, como um drarna
cornprimido, e deixar espaco para a acção musical; b) apresentar
uma estruturação simples e clara que permita ao espectador seguir
Os acontecirnentos no contexto do defice verbal que caracteriza a
expressividade da Opera. Tera sido este o quadro dominante desde
que Sttiggio levou o texto a Monteverdi para a composição de
Orfeu. Como defendeu J. Kerrnan, no classico A Opera
Drama, no inIcio o libreto é a inspiração, no final a limitaçao. 0
librero (e o prestigio algo degradado do libretista) restringiu-se corn
frequencia a urn drama conhecido, a adopçao de rnateriais mirolO
gicos ou lendarios. Tal opção facilitava ao espectador o entendi
memo cia acço e das personagens, interessando-se por elas. 0 des
prestlgio que ocasionalmente contaminou o libretista relaciona-se
com esta pilhagem narrativa, sobretudo na época em que coincidiu
com a banalizaçao operática italianizante.
No livro de MVC, a analise da Opera surge com mais detaihe a
partir no sec. XVIII, especialrnente desde a fundaçao do TSC, em
1793. Este é o momento que coincide com a generalizacao das con—
66
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
diçoes socioeconómicas que viriam a definir o estatuto da arte sob a
égide da burguesia e do mercado. Entre a investigacão positiva e a
hermenêutica historica, MVC parre então da realidade do TSC pan
o estudo da <mudança de sistemas sociocomunicativos desde fins do
sec. XVIII aos nosso dias>>, como se anuncia no subtItulo. 0 pri
meiro capItulo do volume reconstitui a pre-historia do TSC, num
perlodo que vai do sec. XVI ate a sua fundaçao, momento que o
autor aproveita para investigar as raIzes de um teatro musical entre
nós. Insiste no carácter retrogrado do drama neolatino-jesultico,
onde nunca se poderia ver um antecedente da opera ou do dramma
per musica em Portugal. Pelo contrário, o que ressalta deste patri
mOnio é a sujeiçào do teatro a imperativos de ordem moral ou ideo
lOgica, apoiado em técnicas de representaçâo que se <<limitaram a
utilizar formas preexistentes da rnásica religiosa, popular e militar e
a aurnentar a sua quantidade nas tragicomédias.n (op. cit.:23).
Ha pelo menos dims histOrias que se destacarn nesta pre-histO
na: a de Gil Vicente e a de Antonio José da Silva. Por coincidéncia,
dois nomes que se enquadram num estudo apto para a inversão cr1tica. Pelas razöes aduzidas, a introduçao da Opera italiana no reinado
de D. Joao V e julgada sob o estigma do divertimento: ela ter-nos
ia afastado definitivamente da herança vicentina. No peniodo ante
rior a 1793, e ao teatro de bonifnates que MVC vai buscar a ünica
réstia ‘iluminista’ nos palcos portugueses. A referéncia aos fenome
nos de epicizacão no teatro d’ 0 Jut/eu e particularmente produtiva,
além de se distanciar das teses ilusionistas, tanto de Diderot como
de Lessing. Destaque ainda para o paralelo que estabelece entre a
obra de A. José da Silva e o Singspiel, teorizado por Wieland apenas
em 1775, quando afirma que ele <impöe uma espécie de Singspiel
português contra a opera italiana>> (idem:35).
SO corn D. José I a Opera viria a adquirir uma funçao similar a
que ja detinha nas outras cortes europeias, nas quais o Iluminismo
‘dominavá’. Em Portugal, este papel esboçou-se no tempo do Mar
quês de Pombal e com o processo que levaria a construção da Opera
do Tejo. Foi isto poucos meses antes do dia fatal de 1755, para mais
quando escreve que o terramoto aniquila o ediflcio e a estrutura
sociocomunicativa que nele se exprimia, que nunca mais será recu
TEATRALIDADES
67
2). MVC demonstra
4
perada em todos os seus elementos>> (ielem:
como, apesar de tudo, as contradiçoes do Iluminismo português
fizeram corn que a uma certa prática politica esciarecida, posta na
nova urbanizaçao lisboeta e nas medidas sociais tomadas pelo Mar
quês, por exemplo, nao tenha correspondido uma aposta deliberada
nas funçoes didacticas do teatro e da opera na fase pOs-terramoto.
Numa perspectiva critico-comparativa, os efeitos do terramoto
em Portugal e noutros paises europeus, corno na Franca e na Me
4
manha, foram muito diferentes. MVC refere a recepcäo. nacional,
acentuando as profundas mutaçOes sociais, econOmicas e mentais
deste trágico acontecimento, fazendo dele urn verdadeiro motor do
Iluminismo português. No entanto, na Europa, onde o espIrito das
Luzes tinha mais raIzes, o terramoto contraditou a razão ilumi
. A fundaçio do TSC e vista pelo autor como teatro da cone
8
nada’
para a burguesia (idein:50). Tal ambiguidade estatutária passou pela
prOpria concepcão arquitectOnica do edifIcio e ilustra igualmente o
carácter mitigado do desenvolvimento da nossa burguesia. Tudo se
combina para que este novo espaco se limite então a ((exaltaçao do
poder>>, a urn nivel mais refinado de sociabilidade>’, de <peraltice>>,
enquanto, seguindo as palavras de MVC, ((0 teatro portugu& era
abandonado a pequena burguesia e as classes mais baixas da socie
dade>> (i&m.60).
Toda a segunda pane do Iivro incide sobre o sec. )UX,
incluindo a reapreciação da actividade programática e criadora de
18 A este propósito. Harald Weinrich, film Iivro intitulado Literaturfiir
Leser ( 986), acompanha o irnpacto do terramoto no autor do Poèrne sin 1€ dEsas
tre de Lisbonne e chega a demonstrar as provaçOes por que passaram tanto as Luzes
como a teodiceia leibniziana. A comédia intitulada Teatro Novo, de Correia Car
cáo, constitui urn exemplo paradigmático das transformaçoes a que MVC se
refere. Nela decorre uma discussao acerca do repertdrio para urn futuro teatro a
construir corn dinheiro de urn cbrasileiro,, urn dos efeitos da descoberta e extrac
cáo do ouro no Brasil. Teatro Novo coloca-nos em palco as virias sensibilidades
artisticas do tempo e encena a Ian entre o projecto arcade e as ddeias barbaras”
que. nos termos exactos de MVC, começariam exactamente neste momento o seu
triunfo em versáo <espectáculo para os olhos>>, pura exibicao do eu” ou corrida
ao canto da prirna-dona Zamperini no TSC, o que vai dar ao mesmo.
68
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
Airneida Garrett. Contra as expectativas de MVC, a revoluçao libe
ral de 1820 acaba por consolidar a opera corn a flsnçao de prestIgio
e de divertimento>>. 0 TSC rnantinha-se sobretudo corno <arrnazérn
da ilusao, onde a classe dominante se abastecia quotidianarnenten e,
corno passeio póblico do rornantismo”, cornpetia directarnente
corn o Campo Pequeno, o Marrare e are corn o Parlarnento (idem.94).
Esta epopeia conta-se tambern corn Garrett e corn Eça. Sern menos
prezar a dirnensao da reforma patrocinada por Almeida Garrett,
MVC aponta algumas das suas fraquezas e contradiçoes: a) ao esco
Iher o TSC para rnodelo e alvo de rnuita.s das suas reflexoes, é o pro
prio Teatro Nacional que virá a sucurnbir e a ser absorvido na estru
tura da opera italiana>>; b) a tao proclarnada vertente popular
termina, na prática, por ser urn <cpatrirnónio popular para a elites; c)
linalrnente, Garrert não viu o teatro rnusical corno parte integrante
de urn teatro nacional”, ja que ele rnesmo se terá sentido atraido
pelo rnodelo instituldo, alern de secretarnente propenso ao exibiclo
nisrno geral e a onda italianizante que ihe teria afectado inclusive o
final do Fr. Lids de Sousa (idem:101). No final, conclui MVC que o
Teatro Nacional nunca recebeu urn terço do subsIdio do TSC, ape
sar de Garrett, ou por causa dele. Contudo, rnerece urn reparo esta
sustentaçâo das convicçOes estéticas de Garrett no arnbito das con
tingéncias autorais que caracterizararn urn projecto corno o Touca
dor. No Toucador Shakespeare ainda era pouco rnais do que urn
.
9
“barbaro’
0 modo corno MVC descreve a relaçao paico-sala nestas pági
nas, a cornparaçâo do virtuoso ao toureiro, reactiva a celebre ffistó
na Natural do Teaüo ao estilo das parabolas brechtianas, Adorno
afIrrnava ser o aplauso a óltima forma de cornunicação objectiva
entre a rnósica e o ouvinte, antes de avançar para a sirnbologia das
Ha outros episodios dignos de nota. como o retrato do ambienre cultu
ml mesquinho das personagens queirostanas ‘je 0 Primo Basilio, A Cid,adee as Ser
Tar, A RelIquia, A Capital. Os Maias. Ficamos a conhece-las aqui no seu habitat
musical. Em Eça, a aproximação entre a mdsica e as letras ocorre por via OfTen
bach, apesar de a hipótese de Eça poder representar urn entreacto de <<milsica
absoluras, no estrito piano da crftica musical, estar condicionada pelo contexto
eminentemente iiterario que suporta a sua enunciaçäo.
TEATRALIDADES
69
galerias, das poltronas, dos carnarotes e da cüpula nos modernos tea
tros. Que me lembre, além de Eça, foi Fialho de Almeida quem
meihor escreveu sobre a sirnbolica espaciai no S. Carlos. Fe-jo num
texto escrito cern anos antes do bicentenário que o livro de MVC
assinala. Vale a pena trazer aqui o passo no qual Fialho antecipa a
dinârnica ascensional de Adorno:
A ünica ernoçáo palpitante está no galinheiro, lugar pobre, esconso
e recôndito, onde algum melomano extático, de olhos fechados, deixa
livrar a fantasia ao sabor da inspiração que a másica espirala. DaI para
baixo, quanto mais se descer, menos se encontra; uma ou outra câinara
escura mental repintando aqui e além pedaços melódicos, em coloridos
pessoais, poetizados; alguma prima-dona de terceiro andar, inédita e
furiosa, fingindo as futuras glorias da sua estreia sobre os fiascos dos can
tores de profissao, e o resto admiraçoes e êxtases sea> alma..>’ (Aimeida,
1992:198)
Mantendo sempre a opera em primeiro piano, MVC entende
na nossa subrnissao ao timbre italiano, visivel no desprezo pela
rnósica de Wagner, urna das causas para que opera não tivesse sido
mais do que <müsica de Opera”, em vez de <drarna como fim da
musica”. Por cá, a Opera era urna arte para os olhos>> que, no seu
meihor, funcionava corno evasão, decor contarninador do espaco pri
vado, linguagem do arnor, reaiização pessoal do amador no artista”,
enfirn, pura reificaçao. 0 bel-canto ter-se-ia tornado necessidade
cultural”, sern espaço para a producao nacional. Entre “cantar”, por
urn lado, e ganirn em português, por outro, a nação optava alegre
mente pela primeira modalidade.
MVC insiste no ((carninho faihado para o ‘drama-de-paiavra-e
som’: das vésperas da Repóblica ao advento do fascismo>’
(idem:131). Recorrendo a recepcão de Wagner, exemplifica os
desenvolvimentos ocorridos neste lapso de tempo. De necessidade
de civilizaçao>’, corn a concorréncia do Coliseu dos Recreios (1890),
visto corno reproducao <tosca” do TSC para as rnassas, acaba o TSC
corno sinai do triunfo do ((snobismo>>, face a ralé italiana do Coliseu.
Mas, corno afirmava urn crItico da época, no TSC continuava a ser
70
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
valida a formula Pensar é Morrern e Wagner chegava a set repre
sentado ao modo italiano. Scm atingir as dimensöes que tomou no
seu pals de origern, a controversa repercussão de Wagner em Portu
gal e a politizaçao de que foi alvo nos anos vinte mostra-nos as dill
culdades lusitanas no processo de aprendizagem da <másica abso
luta’>, que MVC procurou no espaço nacional.
A metodologia seguida por MVC e particularmenre produtiva
quando passa ao perlodo do fascismo português. E uma ocasião para
abordar a “esteticizaçâo da polItica>> operada pelo Estado Novo,
fixada <nurn modelo de teatro popular”, e ilustrar a concepcão sala
zarista do TSC como ((sala de visitas de Portugal>> (idem:213-254).
Aproveitando algumas das recentes conclusoes da investigacão his
toriográflca, descreve finalmente as motivaçoes da politica musical
(e cultural) da época, numa comparaçâo pertinente corn a máquina
propagandistica do Terceiro Reich. 0 trabalho do musicOlogo não
termina corn a Revoluçao, pois o livro avança ainda corn urn curto
cornentário a actividade pos 25 de Abril. Pot todas as razöes, os anos
que o TSC leva de vida não Ihe suscitam urna narrativa herOica. Pelo
contrário, porque a uma bicentenaria <aparência de cultura’> suce
deu uma (<aparencia de democracia>’, MVC termina corn a proposta
de urn modelo para urn verdadeiro teatro musical nacional.
0 genial em Wagner
Chegados a este ponto, o leitor terá percebido que a figura de
Wagner emerge como a grande referencia musical do livro de MVC.
Pot ser decisiva, a questão merece urn cornentário adicional. Para
tanto, começo pot transcrever a que é talvez a afirmaçao rnais enfa
rica desse ascendente wagneriano:
<O palco ilusionista de Wagner está efectivamente no póio oposto a
esse conceito de ilusao, assim corno a sua alternativa teatral se situa gb
balmente nos antipodas da praxis italiana: em Wagner não se tratava da
müsica, mas sim do drama; näo de uma estrutura de exibiçdo do nt, mas
sim de uma estrutura de rep resentacao ou separaçJo de competências, não de
TEATRALIDADES
71
estreitas relaçoes, mas sim de urna separacão radical entre o palco e a sala,
náo do palco como oferta de mercadoria, mas sirn corno instrurnento
didactico’ e de esciarecimento, näo de urna relaçao autoritária da sala para
corn o palco, mas sirn do palco para corn a sala, não de urna recepcão frag
mentária, mas sirn de urna recepçáo do todo como Gesamtkunstwerb
(Carvalho, 1993:89-90)
0 que aqui se lé é simultaneamente urna apresentação e uma
interpretaçäo (brechtiana) de Wagner. E certo que Wagner, corno
MVC nos prova docurnentalmente, terá exigido tambern ao meio
musical portugués major detençao nos aspectos do conteüdo. A cen
tralidade da fabula dramatica constituIa urn entrave a nossa tradiçao
da <(opera degradada a mdsica de operas (idem:85). Apesar disso, nao
é exactarnente urn modelo de teatro épico o que resulta da leitura
dos vários volumes de Dichtungen und SchrzjIen. MVC ja escreveu
argutamente sobre a teoria wagneriana, corno sucedeu no ensaio <0
rasto de Rousseau na teoria e dramaturgia wagnerianas” (cf. Carva
Iho, 1999). Pela minha parte, julgo que Wagner pode coincidir corn
a Teoria Critica apenas no momento inaugural da analise. E neste
ambito que o maestro germânico efectua uma critica cerrada aos
rituais da sociabilidade burguesa e se manifesta contra o mercado e
a luxória do puro divertimento. Esta crItica, note-se, e contudo feita
a partir de uma perspectiva genial. Quando escreve sobre <<o artista
e o póblicon, Wagner concede que o <dmpulso do génio>> {Drang des
Genies] coloca o artista perante urn dever de publicitaçao, a bern da
humanidade (cf. Wagner, 1 983,V: 186-193). Nos escritos da fase
revolucionaria, sob a influencia do ideario socialista (cf. <<Sobre o
Principio Cornunista>’, op. cit.:242-254), mantém a negacäo bur
guesa e especula sobre urn futuro estado dos artistas. Note-se que a
ususpensão do egoIsmo’> [Aufhebung des Egoisrnusl que al defende
não se traduz linearmente num estado politico de tipo colectivista,
mas sirn no forjar de uma idealidade cornunitária que pudesse con
duzir a urn estado artIstico superior. Ainda de acordo corn Wagner,
curnprido o curso da desumanizaçao burguesa, a separacáo das artes
teria facilitado a mercantilizaçao do estético, atribuindo-ihe urn
mero valor de uso. Mas o ((reencontro’) do estético corn o povo per-
72
FERNANDO MATOS OLIVETRA
manece sempre num trajecto genial, pois, sempre segundo Wagner,
a modernidade destruiu o espfrito da colectividade e individualizou
definitivarnente o génio. 0 artista que Wagner desenha nestas pági
nas não é exactamente o intelectual progressista, mas urn indivIduo
distinguido pela sorte do génio, que deveria procurar no passado o
ethos que a modernidade desurnanizadora tornou definitivamente
inacessIvel ao povo simples. Este jarnais o poderia reencontrar por si
so. E esta figura do másico (e da másica) que Wagner perseguirá
longo da sua vida.
E realmente notavel corno os escritos de Wagner antecipam em
quase rneio século os termos da analise que a tradiçao marxista virá
a consagrar, na prirneira metade do século XX. No entanto, o que o
rnobiliza e ainda a encontro inexoravel que o alto Romantismo ale
mao desejou marcar corn urn mItico Volksgeist. E em Wagner Voiks
geist permuta corn Volkslied. Em nenhurn lugar esta reversibilidade
e tao nitida como nas páginas que dedica ao conceito de melodia, a
expressão mais completa da substancia profunda da rndsica>’ (op.
cit., VII:107). Ames dos efeitos perversos da modernidade, ja o dua
lismo cristão havia aniquilado a comunhão do ser hurnano corn o
seu ser integral, sufocando a criatividade natural do povo. Corn isso,
a melodia separou-se da origern orgânica e passou a sustentar isola
darnente o prazer e a <<luxáriao do povo perdido. Ora, este povo, não
o esqueçamos, era urn rebanho a conduzir através da hei1e deutsche
Kunst, a <<santa arte alernan. Wagner aspirou a urn retorno vitalista a
essa melodia orgânica. Por isso, as conclusoes a que chega não são as
mesrnas a que chegara a africa mancista. 0 seu programa era mais
nacionalista (neste estrito sentido) do que racionalista, mais espiri
tual do que material. 0 mósico e, assirn, alguem a quern compete o
gesto da dadiva genial, porque dar é mais espiritual do que tirar>>
(op. cit., V:252). Este Wagner diverge do intelectual esclarecido e,
pot alguns graus, diverge também da emancipacão que MVC perse
gue neste excelente volume sobre o Teatro de São Carlos.
5
MODERNO POS-MODERNO
Shlink
A sua opiniáo também näo me inte
ressa. So que eu estou disposto a compra-la.
Garga A rninha opinião é o ünico luxo que eu
tenho.
—
—
B. Brecht, Na<’Selva Las Cidades
A nova constelaçao
A especie de negociantes de rnadeira que ao tempo do Senhor
Shlink tinha por regra trucidar opiniOes fortes a troco de um dIzimo
rentavel tern sofrido notaveis transfiguracoes nestas ditirnas décadas.
A fronteira da se1va,’ de Chicago, a rnesma que na cidade de Ber
urn terá despertado o jovem Bertolt Brecht da sociabilidade bavara,
parece hoje sern delirnitaçoes exteriores. Na auséncia de uma topo
grafia reconhecIvel, o interesse da pedagogia brechtiana nesta aber
tura ilirnitada das fronteiras da cidade conternporânea residira nal
gurnas opiniOes <Iuxuosasn que o debate em torno do pos-rnoderno
continua a suscitar. Contrariarnente ao que os sinais da progressiva
amnesia histórica deixariarn antever, este constructo teórico, tendo
cornecado por se insinuar corno apolitico, ou rnesrno conservador,
vem rnotivando urna discussao bern empenhada. A situaçâo é con
venienternente paradoxal: a cextualizaçao inforrne do real corres
pondeu o regresso da polItica a agenda acadérnica. Segundo o £116sofo arnericano Richard Bernstein, para quern os contornos desta
New Constellation se colocarn meihor ern termos da Stimmung hei
74
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
deggeriana, foram os protagonistas da reflexao pos-moderna que
desde cedo se virarn confrontados corn as consequências etico-polI
ticas do seu próprio pensarnento>’ (Bernstein, 1991:11).
Consequéncia evidente da referida indeIiniçao parece set o des
tino da obra de Brecht nos anos mais recentes, sobrerudo no que diz
respeito a sua relaçao corn a questão do pos-moderno e corn as p05sibilidades do politico no tearro. As ültirnas décadas fizerarn
ihecer estratégias de confrontaçao vanguardistas e neo-vanguardis
tas, rnas tambern a viabilidade de urna versâo actualizada da celebre
Verfremdung. 0 porno fixo a partir do qua! o autor se lançava
cruzada critica encontra—se hoje disperso e sobejarnente arneacado
pela indistinçao entre as esferas cultural e económica. A conjuntura
critica pode adrnitir o problema do pos-rnoderno como sendo oao
mesmo tempo escécico e politico” (Jarneson, 1993:55), mas a
audiência (burguesa ou proletaria) que Brecht julgava poder esrra
nba? perdeu progressivamente a sua condiçao hornogénea de classe,
bern como a sua autonomia decisoria, tao enredada se encontra ins
teias econórnicas e ideo!ógicas do mercado g!oba!.
Epica e modernidade
A controvérsia em tomb da obra de Brecht tern longa tradiçao.
A sua herança continua a despertar divergencias assinaláveis: a)
temos o grupo dos mais ortodoxos, a que voltarei, para quern a
düvida sobre a pertinéncia do teatro épico e inadmissivel, ainda que
para tal tenharn de contradizer a pane dialéctica do seu rnateria
lisrno; b) ternos depois o grupo dos que Ihe ap!icarn instrurnentos e
revelaçoes teóricas actualissirnas, vendo no autor de Mdc (‘oragem
atitudes e qua!idades pré-marxistas, anti-didacticas ou pos-moder
nas; c) ternos no panorama critico internacional vozes que avisada
mente admitern o peso dos anos, mas reconhecem a resisténcia da
obra ou, pe!o menos, de alguns dos seus gestos rnais fundarnentais.
Tratarei aqui brevernente de todos urn pouco. 0 que parece nunca
se ter confirrnado, a propósito de Brecht, foi a universalidade opi
nativa que T. S. E!iot exigia ao autor classico. Apesar de possuir a
TEATRALIDADES
75
maturidade estilistica exigivel ao poeta forte e de estar perfeitarnente
consciente das geraçoes que o precederam, Brecht dificilmente
encarnaria o perfil adequado a representatividade consensual do
clássico. Nem sequer a estatuto mais modesto do ‘classico relativon
o deveria sequer enquadrar.
Vejamos entretanto urn aspecto que pode tornar visIvel a tern
poralidade e o élan critico do teatro epico. Nos seus ajustes auto
biograficos, Heiner Muller refere-se a importincia de Hitler na obra
de Brecht, da qua! seria o inirnigo ideal” (Muller, 1994:227). A
presenca simbolica deste Grande Inimigo e a motivação criadora
que dele ernana tern que ver corn urn posicionarnento estético e teo
rico no qua! a ideia central de progresso e de superação permanecem
validos. Ja instalado na Repóblica Democratica Alerna, a naturali
dade corn que Brecht produz a seguinte comentário a propósito das
obras de arte antigas e prova dessa persisténcia ‘progfessista’:
((Marx aponta para a extraordinaria capacidade do ser humano em se
deixar ainda impressionar par antigas obras de arte. A sua admiraçao é
justa, pok a formula simplisca da eternidade da arte não o satisfaz [...]
Pode-se antes pensar que gostarernos de cuidar da memória das nossas
lutas e virórias, que pot elas estrernecemos sempre que nos recordamos dos
novos esforços, invençôes e descobertas. As grandes obras de arte tern a sua
origem nestes tempos de luta. E o progresso é urn conj unto de passos a
partir do progresson (GW vol. 19:550-551).
A auirmaçao e categórica, e pessoal. 0 que em Brecht vai per
rnanecer ate ao fim da vida e a adesao a urn ideal de arte que não
abdica de uma postura judicativa de tipo ascensional. Reclamando
se historica, contrária a ((formula simplism da eternidade da arte”,
esta atitude anseia por apreender e segurar a arbitrariedade aparente
da Historia. Os conceitos em que se apoia são retirados de uma tra
diçao cuja grandeza analItica acornpanhou o destino que Vattirno
traçou pan as rnetanarrativas. Como consequência, rnesmo para as
seus sucessores rnais distintos, a “rede da sua dramaturgia era dema
siado larga face a rnicroestrutura dos novos problernasn (Muller,
1980:135). Este, enfirn, o ponto decisivo ern qualquer perspecriva
76
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
ção historica do opus brechtiano. Na verdade, o fervor que perpassa
nalguns dos textos de reflexão aparece-nos hoje melancolicarnente
corno entusiasmo excessivo e distante. A vivéncia das decadas de
vinte e de trinta, a Segunda Guerra, e a experiéncia utópica do socia
lismo na Republica Dernocrática Alernã, sugeriarn-Ihe o futuro
corno urna escolha excessivarnente dual: entre o empenharnento
colectivo e a continuação da barbarie individualista e burguesa. 0
facto de Brecht se ter decidido pela D.D.R. prolonga no seu pensa
mento a miragern do operariado, destinatario de urn projecto cul
tural que o apoio conjuntural do Estado iludia quanto ao isola
rnento internacional. Esta visão atinge o seu ponto alto nas
parabolas das grandes pecas do exilio, mosaico das grandes escoihas,
através das quais as personagens assurnern a exemplaridade dos pro
tagonistas das veihas fábulas.
0 gosto rninirnalista de parte do teatro contemporâneo, a insis
téncia na performatividade, no éxtase visual e na alteridade, são no
seu conjunto estratégias que se desviarn do tipo de intervençio soli
citada pelo Pequeno Organon. Este terminava, recorde-se, corn o
reconhecirnento da autoridade de Lenine. A debilidade impositiva
das actuais linguagens cénicas e a lingua franca dos espectaculos
multirnédia neutralizarn a acção esciarecedora do ‘estranharnento’. E
esta acção que se rnanifesta na rnaioria das estratégias épicas: nos
cartazes, nos cornentadores e nos sabios. Heiner Muller distancia-se
neste preciso porno. A sua escrita refere a necessidade de o novo tea
tro se desviar do cais ‘didactico’ rnais estreitamente brechtiano.
Note-se que é Muller quem, apesar de tudo, mais declaradarnente
continua a viagem que Brecht protagonizou ate 1956:
<<Ele [Brecht] não irnaginava o drama sern protagonistas. Ate o seu
conceito de fábula estava preso a presença de um protagonista. As pecas
decorrem todas corn base ern protagonistas e, neste sentido, era afinal
ainda urna dramaturgia burguesa.n (op. cit.: 230)
A severidade da observaçao, corn o seu qué de edipiano, aliada
a recusa do Brecht <agrárion, <<pré-industrial” ou classico>>, acaba
por colocar peças corno a Mae C’oragem na galeria das obras de arte
TEATRALIDADES
77
amiga, aproxirnando-a perigosarnente da consensualidade mole,
prOpria do estaturo de fIgura póblica inerenre aos classicos. Consta,
alias, que tambern Max Frisch lamentava o perigo de urn Brechr
reduzido a inefIcacia de urn auror clássico. Convem norar, no
enranro, que a cririca de Muller cumpre urn desfgnio avançado fre
quentemenre pelo próprio objecto. Logo num pequeno texto de
1926, sobre a encenação dos classicos, Brecht relernbra as palavras
de Piscator acerca de uma segunda encenação do drama Die Rauber,
de F. Schiller. 0 autor do Teatro Politico rerá afirmado, na sua pre
sença, ter desejado que “as pessoas ao abandonarern o tearro tives
sern notado que 150 anos não erarn uma ninharia>> (GW 15:112).
A acrualizaçao das obras do passado depara-se corn obstáculos
consideraveis. Ao tempo dos Escritos sobre o Teatro, Os clássicos já
reriam deixado de constituir urn problerna essencialrnente espiri
rual, para se tornarern cada vez rnais nurn problerna de ((culinariza
ção>> (GW 15:177). Sabendo nOs que a culinaria não se disringue
pela intelecrualizaçao do ternpo, numa consratação notavel, o inter
locutor de Brechr, nesse <Diálogo sobre os Clássicos>>, reclarna para
a prática teatral a recuperação do senrido histOrico, pois a tradiçao
havia sido trocada pelo <consumon (idem:178). A soluçao proposra
consisria ern deixar de trarar os classicos ‘corno urn parque natural>>,
onde rodo o toque era proibido. Apenas se deveria respeitar o sin
gular critério de validaçao avançado: saber se dererminada obra,
represenrada nurna sala de aulas, teria ou não algum valor para os
alunos (idem:182). Aqui rernos o forum em que a questão do pós
rnoderno necessariarnenre se situa no contexto da obra brechtiana.
Recepçao e conting&ncia
Aparenternente, portanro, Brecht assegurou-se teoricamente a
si rnesrno urn futuro que esraria longe da invesrida contingente da
conrernporaneidade. 0 lastro urOpico, o empenho reórico e o cré
dito que atribui a arte quanro a sua capacidade de influir na praxis
social, fazern dele urn discIpulo tardio da razäo. Por variados mod
vos, esta prática ilurninada não Ihe tern sido sempre reconhecida.
78
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
A irnagem do Brecht humanista tern vindo a ceder o espaco privile
giado que ocupava anteriormente. Ao tribunal da critica tern che
gado entretanto novas versöes do mesrno autor.
Em prirneiro lugar, é justo reconhecé-lo, o Brecht rnediatico é
somente urna parte sancionada da obra total. A percepção dogma
tica do autor politico associou-o pot vezes a urna ideia popular
esquerdista de empenha.mento. A sua escrita nern sempre o admite.
No piano interno, pot sua vez, o autor canonizado é frequentemente
o Brecht autorizado por Brecht: um conjunto de textos que respeita
as ideias mais ‘definitivas’ do perlodo posterior ao ensinarnento
materialista. Nao e raro, alias, encontrarern-se nos Escritos sobre Tea
tro referencias pouco favoraveis as peças da juventude. Sobre Bad
previne: Admito (e aviso) que a peça faIn sabedoria>’ (GW 17:948).
Mesmo a propésito dos textos da rnaturidade lamenta a faIn de
uniformidade:
“Quando observo e comparo as minhas ültimas peças, Ga1ileu Mae
Coragem Terror e Misdria do Terceiro Reich, A Boa Pessoa tie Che-Chuao,
Senhor Puntitri e o seu Sobrinho Maui, Ascensac de Ui, ache-as muito desi
guais em todos os aspectos. Mesmo os géneros mudam constantemente,
as
biografia, gestarium, parabola, comédia de tipos ao gosto popular
pecas divergem umas das outras como as estrelas no novo universe da
FIsica, come se tambem aqui qualquer centro dramatico tivesse explo
dido (Brecht, 1973, 1:274)
—
A auséncia de urn centro Mo significa, corno se viu, arbitrarie
dade absolura, já que ml funcionaria corno impedimento didáctico.
A diversidade dos mejos e das formas e ames o rnodo de conferir ao
seu rnetodo uma abertura cornpatIvel corn o espirito da época. A
questão do percurso formal e ideologico da obra contagiou igual
rnente a tradiçao critica. As abordagens mais relacivinas integram-se
nestes exercicios de selecçao, embora a tendencia venha de longe. Já
em 1962, nas conhecidas ((Notes sur un theatre rnaterialiste, L.
Aithusser escoihia apenas as grandes peças de Brecht. Muller, etpour
cause, sernpre manifestou a sua preferéncia pelas peças do Elm dos
anos vinte e inicios de trinta.
TEATRALIDADES
79
Em segundo lugar, a relaçao possIvel de Brecht corn o pós
modernismo corneça nalgurnas afinidades que, a fain de meihor,
diria constituirem afinidades processuais. Brecht vern a ser o autor
moderno pos-moderno por excelencia. Entre as qualidades associá
veis ao catálogo dos procedirnentos pos-rnodernos, destacaria a
natureza auto-reulexiva dos textos. Esta caracteristica faz de Brecht
urn autor assurnidamente metaficcional. As suas historias são urna
encenação revisionista da História; as situaçôes e as personagens são
projecçOes re-contextualizadas de outras mais antigas. Cornpreende
se aqui a enorme receptividade épica ao trabaiho da citação, a paró
dia e a outras formas de reconversão textual. A própria restrição con
temporânea do telos autoral era já assurnida directarnente nos
Escritos sobre Literatura e Arte, onde a noção burguesa de proprie
dade é desaconseihada:
<Mas abandonemos o jogo de azar favorito da burguesia: a luta pelo
tftulo da posse. Esqueçamos a generosidade corn que Shakespeare
corn o seu nome tudo o que no palco e dito durante a representação de
uma peça. 0 drama Mo precisa de detaihes rigorosamente sujeitos a
patente, Mo precisa de todo o prego assinado, de uma qualquer expressão
especialmente produzida...” (GW, 18:101)
Esta atitude é consentânea corn a ideia do encenador moderno
que Brecht ajudou a solidificar e corn a vontade, acirna expressa, de
legitirnar urna liberdade produtiva que perrnitisse a actualizaçao
urgente dos clássicos. 0 sentido da citação e da cópia deixa de ser o
da antiga sujeição a urna auctoritas ou o do reconhecirnento da per
tença a uma tradiçao; passa a significar, precisamente, a negação da
ideologia da tradiçao. 0 rnétodo, diga-se, foi uma vez rnais aplicado
ao proprio, em inámeras revisöes das suas produçoes dramatárgico
-teatrais. São os casos de Eduardo 11(1924), de A Mae (1932), das
adaptacoes radiofonicas de Macbeth (1927), de Hamlet (1931),
AntIgona (1948), entre outras. A aplicaçao desta logica revisionista
generaliza-se a toda a obra. No caso dos textos fragrnentarios, a resis
téncia continua do rnaterial a rnodelação historica motivaria o seu
abandono puro e simples. Ao adrnitir a componente fetichista da
FERNANDO MATOS OL]VEIRA
80
originalidade e ao actuar segundo urna lógica de produtividade rela
tivamente ousada, Brecht antecipa mais uma liturgia contemporâ
flea. A aftrrnaçao que se segue, pot exemplo, nada deve ao credo her
menêutico dos ültimos manuais sobre o pos-modernismo, ou a uma
teoria dos géneros afim:
<Como escritor dramatico eu copiei pecas japonesas, helénicas, isa
belinas; como encenador copiel arranjos de cémicos populates coma Karl
Valenrin, as propostas cénicas de Caspar Nehers, e nunca me send menos
line por isso.’> (GW, 16:714)
0 ntlmero e a actuajidade destas antecipaçOes pés-modernas tern
dado origem a reposiçöes crIticas consenrâneas corn a abertura da sua
obra. Além dos trabaihos de Muller, ames e depois de G’ermania Tod
in Berlin, livros coma os de Elizabeth Wright (Wright, 1989) e de
David Roberts (Roberts, 1991) questionam explicitamente a herança
contemporânea de Brecht. Para o dltimo, a re-escrita brechtiana,
enquanto prova da existéncia da rradicao ‘conly as material to be reu
sed and recombined>>, proragonizaria a mudança de paradigmas. Uma
mudança que assinalaria, no pIano dramatico, a recusa da tradiçao
vinda da Renascença. A figura do auror, precisamente, aparece corno
representanre privilegiado desse rnomenro de inversão:
“Our example for the change of paradigms is Brecht, not only
because, as has often been noted, his work is a limiting case for Adornos’s
and Lukacs’s aesthetics, but also because, by expressly seeking to articulate
and master contingency, he places himself on the other side of Adorno’s
indifference. ‘Brecht and Contingency’ is thus our reply to ‘Schoenberg
and Progress’ 1...] This ‘nihilistic intention the assault on all hierarchies
and boundaries opens the era of postmodern art. Henceforth art enters
into an alienating relation to tradition, The emancipation of the poszmo
dern work manifests itself in the sovereign disposition over the materials
of tradition.,> (Roberts, 1991:184 e 191)
—
Estamos perante um exemplo claro cIa possibilidade de inte
gração historica e estilIstica de Brecht no campo argumentativo pos
TEATRALIDADES
SI
moderno, pelo menos no sentido amplo que Roberts atribui ao
termo. Ao leitor de hoje, curiosamente, esta tentativa de responder
a Adorno corn Brecht cone o risco de iludir o facto de Adorno cer
recusado Brecht contemporaneamente. A escoiha de Roberts, ao
privilegiar o teatro épico, e ainda e so uma opçâo ‘interpretativa’,
avalizada pela atitude pluralista que o move. Adorno teria preferido
urn cânone organizado em torno da obra de Samuel Beckert, como
sabemos.
Dois outros aspectos parecem justificar a sintonia pOs-moderna
de Brecht: a) a dinamica que nele se estabelece entre a teoria e a prá
tica; b) a dramatizaçao do corpo como lugar e material investido de
urna nova legibilidade. Em pecas como Urn 1-lornem é urn Homern e
A Peça Dida’ctica de Baden sobre o Entendirnento, o corpo aparece
numa relaçao com os sistemas de poder que se acentua ccnsidera
velmente no reatro pOs-brechtinano. A marginalidade das persona
gens manifesta-se em tOpicos concretos como a dor, a mutilaçao ou
a fome. Na pnimeira daquelas peças, Fairchild evita ser vItima social
e profissional da sua virilidade, praticando a auto-castração. Quanto
a posiçâo da teoria, na sin geração, Brecht é porventura urn caso
exemplar de uma produçao literaria e drarnatica a flincionar ja em
pleno regime metaficcional. A admiraçao de Roberts e sintomatica,
quando declara que Brecht e sirnultaneamente (<the critical enligh
tenment of ‘dramatic tradition and the self-critical union of ‘epic’
theory and practice>’ (op. cit.: 194). Tram-se aqui de tornar a letra
caminho aberto pelas intençöes mais nobres da teoria brechtiana,
pois a sua prática efectiva sujeitou-se a contingéncias várias.
Em Post-modern Brecht, Elizabeth Wright, por seu turno, vai
além do que em Roberts ficou delineado topologicamente. 0 seu
pOs-modernismo ‘estilIstico’ não conternpla o mesrno tipo de acção
crItica que Muller e Roberts registaram. A autora segue uma linha
interpretativa, mais popularizada, que aproxima Brecht do pós
estruturalismo pela via das pecas de juventude: a escrita que vai de
Baal ate Urn Hornern é urn Hornem, passando por Na Selva das Cida
des. Nestas obras concentrar-se-ia o máximo de <<antinarratividade>’
e de uperformatividade>>. A analise de Wright é um catalogo de epi
tetos. Em Baal ternos &agmentação, jogos de linguagern, acção do
82
FERNANDO MATOS OL)VEIRA
principio do prazer, desfiles libidinais, operaçôes rizomáricas, apro
fundamento da subjectividade, experimentaçäo, entre outras actua
lidades (Wright, 1989:98-104). Na Se/va das Cidadesquedarno-nos
pela arbitrariedade, pelo acaso e pela acção imotivada, pela relaçao
da marginalidade corn o capital, enfim, pela escrucuração paranóica
e ainda pelo narcisirno. E verdade que o protagonista de Urn Hornern
d urn Hornern produz afirmaçoes como <<Talvez eu seja dois>’ ou <<Eu
sou urna pessoa que não sabe quern 6>, mas desta desintegracao do
sujeito as conclusoes da autora vai certa distancia. F,nfim, nestas cur
tas páginas Brecht admite Freud, Lacan, Deleuze, Lyotard, Fou
cauh, algum Habermas e, esporadicamente, Jameson. Para voltar
mos a expressividade da Se/va, deve norar-se que neste livro de
Wright as ideias mais conhecidas de Brecht remanescem como ver
dadeiro <<luxon. Aquilo que pan uns foi coisa menor, <<expressio
nismo bavaron (H. Muller), transforma-se aqui em vertigem experi
mental e recusa referencial.
Exemplos como estes acabam por nos fazer repensar o primeiro
Brecht e tornam evidenre a sobrevivéncia de certo conservadorismo
crItico nos estudos brechtianos. Apenas para que se avalie o grau a
que a indüstria cririca chegou, mesmo no campo alinhado, vale a
pena referir o empreendimento inédito de Heinz Hirdina, numa
tentativa derradeira de ilibar Brecht da conexão pós-moderna. Este
professor de Bedim determinou uma investigação ao interior da casa
de Brecht, na ChausseestraRe, sob a perspectiva pos-moderna. Cen
trando a análise numa das ireas dilectas da producao teórica pós
rnoderna, a arquitectura, Hirdina passa a descrição dos espaços
habitados por Brecht. Corn base na disposiçao da sala conservada
em Berlim e apelando a outros testemunhos relativos, quase exclu
sivarnente, a dimensao e ao tamanho das secretarias, o critico
defende que em Brecht o espaco se caracreriza pelo princIpio dorni
nante da flincionalidade. <<Funçao’> significaria que o formalismo e
a desurnanidade da construção e design actuais estão ausentes do
lugar assim intocavel do pai do <<pensamento interventivo>’ (cf. Hit
dma, 1989).
Brecht encontra finalmente eco no campo da encenação con
temporânea. Seguindo a lógica da apropriação aberta pelo autor,
TEATRALIDADES
83
agora é Brecht quem se oferece a conringéncia. Porque neste tempo
tudo se transforma e nada se perde, a procissão segue de Muller a
Eugenio Barba, este ültirno corn Brecht’s Ashes 2 (1982). No piano
das técnicas de representação teatral, o Brecht que resiste e o fre
quentador do Oriente, ainda que o pretenso rnuiticulturalisrno sirva
na fonte para resolver problemas europeus. 0 paradigma autoritário
que orientava a sua percepção do papel do encenador, por seu lado,
acoihe poucos aplausos na dispersao autoral que o espectaculo con
ternporâneo acentua. Ao lado do merodo de Stanislavski, foram
ainda as suas ideias sobre a actuação que criaram espaco para novas
estratégias comunicacionais, versôes rudimentares da indóstria da
publicidade. Neste porno, a historia do Berliner Ensemble, a partir
de 1949, pese a peregrinacão que durante décadas alimentou, tor
nar-se-ia tao reprodutora quanto a publicidade. Foi Peter Brook
quem afirrnou (e abusou), um dia, dizendo que o ünico <Teatro da
Crueldade” de que tinha conhecirnento estava sediado no Berliner
Ensemble.
Peio que venho escrevendo, o pós-rnoderno em Brecht pode
andar para trás e para a frente, ora aparece no artista enquanto jovern,
ora no drarnaturgo da rnaturidade. 0 leitor cornurn podera ainda
fazer a opção de compromisso, escolhendo o Brecht intermédio. No
caso de acreditar na figura Autor, pode ate recorrer ao sentido da sua
evoiuçao: tudo indica que esta reafirrna a faceta do rnoderno e que o
texto pende al visivelmente para urn gesto de progresso.
Que conduit, pois? No auditorio universal, a recepcão da obra
de Brecht confirma plenarnente a predisposiçao para o desacerto
cronológico. Analisar a sua recepçäo nos palses da Asia, da America
Latina e nalguns da Europa, corno Portugal, é reconstruir uma espé
cie de cronómetro das velocidades historicas, no quai o estranha
memo acontece a todos em ternpos diversos. A actualidade da per
suasão épica tern nesta realidade a sua maior fraqueza e a sua major
qualidade em sirnultaneo. Enquanto na <sala de auiasn, acima refe
rida, o valor de uma obra é urn acontecirnento contingente, a casa
europeia afasta-se dos pressupostos dos textos concretos que Brecht
nos legou. Contudo, deve recordar-se que a fideiidade de Brecht as
entre a
épocas de lurn tinha nele originado urna terceira via
—
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
entrega esteticista do modernismo e a mimetismo do realismo socia
a que nunca recusou condiçao histórica. Pelos anos vinte,
lista
pot exemplo, aconseiha as praticanres da arte literaria a escreverem
romances policiais, a ünica literatura que a época a comovia (GW
18:3 1).
0 seu projecto era o mesmo do prirneiro Lukács e o da reden
ção benjaminiana: a urgência de urn teatro não-trágico, de um novo
drama adequado ao tempo do desencantarnento, sern corn isso ter
de regressar ao irracionalismo dionislaco aberto pelas ideias de
Nietzsche, ou, em airernativa, subrneter-se ao entretenimento da
arte burguesa. Em Nietzsche, a drama musical de Wagner, ern pleno
século XIX, criou a ilusao da sobrevivéncia do espIrito trágico, após
um rnergulho historico de quase dois milénios. 0 teatro épico e a
peca didactica pretendiam que o restabelecimento produtivo do con
tacto entre a plateia e a cena se deveria efectuar pot rneios cornpatI
veis corn os da própria modernidade. Tal consisria, sobretudo, em
obrigar a arte a abdicar da sua cega autonomia, sem corn isso se
reduzir as profecias pie ihe desrinavarn o palco demasiado intransi
tivo da teoria.
Para terrninar corn Muller, a obra de Brecht pertence aos gran
des textos deste seculo, portanto, àqueles que utrabaihararn na liqui
daçao da sua autonomia>. Tat situação nasceu da incapacidade em se
relacionarern corn a ‘propriedade privada>, a mesma que os levaria
a expropriação e an risco de desaparecimenro final do autor. Nesra
perspectiva, a sua dramaturgia nasce da condiçao do <ftigitivon,
como Rirnbaud ou Kafka, rnas de urna fiaga em direcçao ao centro
do mundo. No de hoje sabemos que apenas o que está em fuga
permanece>> (cf. Muller, 1979). 0 que sobra é urn Brecht residual,
outrora materialista e modernista, hoje, porventura, destinado a
sobreviver como moderno pos-rnoderno.
—
6
coNvERsAçAo & COLAGEM
A geração da Garagem
0 teatro português conternporâneo vem assistindo ao trânsito
da geraçäo que definiu as coordenadas do espectáculo no periodo
pos-revolucionario. A conjuntura mostra-se receptiva ao balanço
crltico, corno parece indiciar a publicaçao recente de algurnas
monografias sobre grupos e personalidades corn urn papel de relevo
no teatro das Ultirnas decadas. Na0 e de todo surpreendente este
ajuste de contas corn o passado. E a própria fisiologia das geracöes
que pede hoje aos protagonistas do teatro independente urna orde
naçâo historica do seu trabaiho criativo. 0 balanço justifica-se ainda
pela cornplexidade do trajecto entretanto percorrido, desde a dita
dura ate ao Portugal dernocratico, passando pela norrnalizaçao euro
peia dos anos oitenta e noventa. 0 ano 2000 acrescentou a estas
razOes o pathos rnilenarista da experiência de fIrn-de-seculo, justa
mente após o vigésirno quinto aniversário da cornunhão festiva
vivida ern Abril de 1974.
A ernergéncia dos novos ocorreu já corn a descentralizaçao em
curso, corn o aparecirnento de grupos profissionais (ou serni-profis
sionais) ern ntlcieos urbanos de rnédia escala, corn a multiplicacao
de iniciativas regionais e a inauguração de novos espaços, apesar de
retracçöes mais ou rnenos conjunturais, ditadas pela oscilaçao ende
rnica da polItica cultural. Mas os novos devern igualrnente a geracão
do pos-Abril o trajecto de urn pals que ha duas decadas se pretende
ir reconhecendo na geografia econórnica, social e cultural da Euro
pa. Depois de 1974, passada a avehtura politico-revolucionaria,
86
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
consolidado o teatro independente, as décadas de oitenta e de
noventa coincidiram corn a consagraçäo dos grupos maiores, corno
0 Bando, a CornucOpia, o TEC, a Cornuna, entre outros. Foi urn
perIodo também marcado pelo aparecimento de estruturas produti
vas polivalentes, como o CENDREV
o primeiro centro regional
e, numa fase poste
de
em
Evora
cultural
curnprir
a
utopia
74
a
rior, os Artistas Unidos e o singular aglomerado intermunicipal cha
mado Amascultura. Estes colectivos assurniram de modos diversos a
negociacão intergeracional que e devida a iniciativas culturais desti
nadas a sobreviver aos rnéritos de cada criador individualmente.
A evoluçao do edifIcio teatral português durante os óltimos 25
anos não resolveu, contudo, a dependéncia externa no campo da
escrita dramatica. Esta dependéncia tern vindo a ser pontualrnente
contrariada por autores pertencentes a ambas as geraçOes. Reliro
me, por exemplo, aos titulos de Jairne Salazar Sampaio, Luisa Costa
Comes, Hélder Costa, Jorge Silva Melo, Abel Neves, Carlos. J. Pes
soa ou Jaime Rocha. Mérn destes nornes, a prática teatral de ence
nadores como Lucia Sigaiho, Luls Castro ou Joao Garcia Pereira,
para referir trés casos, propOe-se questionar o lugar do texto
rnediante a construção de espectaculos nos quais a dimensao per
formativa modera a presença da letra e, corn isso, a estrita funçao
tnediadora tradicionalmente atribuida a figura do encenador. Nas
rnargens da tradiçao textualista, alguns jovens autores-encenadores,
saldos dos cursos de teatro, tém avançado para trabalhos de perfor
mance/instalaçao que são hoje a colaboraçao mais visIvel do teatro
porrugués corn as tecnologias multimedia. Estes criadores investem
certa disponibilidade arcaudiana sob a forrna de urna mediatizaçao
ritualista que associa o corporal-presente ao virtual-ausente. Esta
mos, pois, perante duas linhagens artIsticas que actualizam os ter
mos da disputa entre o teatro como evento celebratório ou choque
cruel e urn teatro que se mantém como rransposicão medial de um
texto, centro crItico da prática teatral.
A diversidade da paisagem teatral contemporânea responde
também a nova realidade económica e social do pals. A fenorneno
logia dos anos 90 que vern sendo testada in leitura de algurnas areas
vejam-se os casos das artes plásticas, da
da cultura portuguesa
—
—
—
87
TEATRALIDADES
20
tern por daras urna materialidade histó
poesia c da narrativa
rica intirnarnente ligada ao aprofundarnento da integracão europeia
e a participacão de urn nómero cada vez mais vasto de portugueses
no devir consurnista do cidadão global. A riqueza acurnulada
anos noventa despoletou urn processo sociai e cultural semelhante a
inflaçao sornática que atravessou a Europa do bern-estar pelos arms
sessenta. Nessa altura, adoptando a definiçao feliz de Jorge Silva
Melo, uma testemunha privilegiada do espectaculo da rua e do tea
tro, verifica-se urna conjuracão inedita entre dinheiro e Mria: A
Cultura do Hornem Born não sabia resistir a fória de absoluto que
a sübita riqueza da juventude dos anos 60 agora exigia>’ (Melo,
1998:300).
Devido a eniropia endernica do ternk lusirano, o nosso
Hornem Born não confraternizou corn o Hornern Born europeu. A
nação portuguesa, por consequéncia, viveu ao longe a Segunda
Guerra e, corn isso, perdeu tarnbern a experiência heroica da sua
cicatrização mental e econórnica no pós-Guerra. A versão portu
.
4
guesa mais próxima desse Homern seria ralvez a do periodo pós-7
De igual rnodo, os nossos anos novenca parecern rnirnar a saturaçäo
europeia de sessenta, obviarnente corn aquele grau de distorçao que
é devido a repeticão dos factos historicos: prirneiro corno tragedia,
agora como cornedia. Fenornenos corno a urbanizaçao, a moda, a
rnediatização da intirnidade, a desterrirorializaçao inerente a cultura
de rnassas, tiverarn no carnpo teatral português tarnbém o efeito
geral de urn ((zapping pos-moderno das forrnaso, tornando empres
tado o termo feliz de Jean-Pierre Sarrazac (Sarrazac, 2002:235). Por
seu lado, cextos corno Antonio, urn Rapaz tie Lisboa, de Jorge Silva
Melo, ou espectaculos como os que constitufram o ‘Ciclo das Gera
çöes’, de LuIs Assis, convocarn para o palco portugués a geracão
‘individualism e dispersa’ a que faltaram as referencias dos seus
ascendentes irnediatos.
—
20
Ainda recentemente a narrativa fbi objecto de uma conceprualização
deste teor, no volume desigual de Miguel Real, explicitamente intitulado Geraçdo
de 90. Romance e SoczedeIe no Portugal Contempordneo, Porto, Campo das Ietras,
2001.
FEPNANDO MATOS OLIVEIRA
88
Ao cornentar de seguida a peça Desertos, escrita e encenada em
1997 pot Carlos J. Pessoa, no Teatro da Garagem, pretendo manter
o contacto corn esta deriva geracional. Desertos tende a deslocar a
escrita pan 0 território pos-dramático, urn espaco que aqui oscila
entre a reciclagem da matéria formal disponibilizada pela tradiçao e
o <<oportunismo drarnatargico pós-rnoderno (idem:235). A Detrac
tora, personagem da peça em causa, antecipa justamente os termos
da critica ao estatuto autoral da nova geracão, numa replica que
parodia o seu julgamento apriorIstico. A referencia a pretensa <<pro
lixidade irritante supôe o (necessario) confronto estético corn os
autores do passado:
<<Detractora 0 autor e de uma prolixidade irritante, falta-Ihe eco
nornia dramatürgica, o rapazote quer falar de tudo! Corno se atreve a
escrever, acto sagrado, destinado a alguns, não a todos; quem é que ele se
julga para nos torrurar corn a sua lavra tosca e incompreensfve1? (Pessoa,
—
1998:98)
C) autor de Desertos tern vindo a conciliar a escrita de textos
pan teatro corn a actividade de encenação na sua cornpanhia. 0
Teatro da Garagem define-se por urn estilo e por uma linguagem
reconheciveis no panorama contemporâneo. Nao rnerecendo o con
senso da crItica, pelo contrário, a actividade do agrupamento mantern uma continuidade invulgar entre as iniciativas nascidas sob o
signo da decada de noventa, sobretudo se considerarmos a escassez
de rneios e urna existéncia que começou ern 1990, arredada da nossa
disputadIssima poiltica de subsIdios ao teatro. 0 trabalho do grupo
tern vivido quase exclusivamente da producao textual de Carlos
J. Pessoa.
Num pequeno texto que acompanhou a apresentacão de alguns
dos espectaculos, o autor/encenador destaca precisamente a impor
tância do argumento geracional que acirna referia. Al se pode let que
o <<Teatro ela Garagem é, antes de mais, urn projecto geracional, e que
surge na sequência de encontros e desencontros entre pessoas que
tern em cornum urna vivência singular do pós25 de Abril de 1974>
(Pessoa, 1997). As singularidades deste pos-25 de Abril serão tantas
TEATRALIDADES
89
quantas as experiências dos que, corno o proprio, nasceram em
finais da decada de sessenta: tarde de mais para a vivência adulta da
Revoluçao, mas justarnente a tempo para dela terem uma memória
vaga.
0 resultado desta exisrência intervalar parece reflectir-se nas
declaraçoes que se seguern nesse rnesrno texto de apresentacão. 0
grupo e sirnultaneamente urn efeito das particularidades da Revolu
cáo e urn esforço de questionarnento do status quo a que a mesma
conduziu o pals. Assirn, este teatro corneça por ((nascer>’ na garagem
e corn cia partilhar o espaco da cultura suburbanan. Estarnos
perante cspaços colaterais, territórios de fronteira, próp?ios da euro
peizacáo a porcuguesa, e dos seus incontaveis excedenres suburba
nos: ((flOS nossos passeios, rropecávarnos em ferro veiho, dormiamos
a sesta em searas cercadas de fabricas, encontrfrvamos vestIgios
rornanos e diziamos etpluribus unurn, o lerna do Benfica farnos a
praia e falavarn-nos da vocaçäo do rnar, das giorias passadas, de
Africa, Brash, e India>’ (id:ibid). Tera sido precisamente o desacerro
social e historico do subürbio, textualmente apropriado como
<cnosso subórbio>’, que conduziu o projecto do Teatro da Garagem a
ref1exao sobre uma jovern dernocracia num pals veiho de oito sécu
los>’, mantendo sernpre nesse pensamento o espirito da garagem as
costas>’ (id.:ibid.). Desertos compreende-se fiesta reflexao a que se
propôem os elementos do grupo. Uma reflexao que, pela sua natu
reza, necessariamente repete a dualidade do tempo da geracão ern
causa: a) neia surge o comprometirnento vago de Abril, transrnu
dado no inconforrnismo do subdrbio ou da garagem; b) nela se con
firma, por outro lado, que o tempo pós-Abril náo admite já urn con
fronto directo e sustencavei corn a História. 0 deserto que intitula a
peça e essa paisagern vazia, acravessada pela humanidade nornada
que sobra da mernória europeia.
Historias, interferéncias
Desertos. Evento did4ctico seguielo de urn poema grdtis conscitui a
1 2 produçao do Teatro da Garagern. E a segunda de urn ciclo de
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
90
cinco peças, corn o tItulo colectivo de Pentateuco. Manual de Sobre
vivênciapara o Ano 2000. 0 ciclo organiza-se por temas, respectiva
Epifania em 20 Estaçoes;
mente: a Fe (0 Homem que Ressuscitou
a Europa (Desertos); Portugal (PeregrinacJo. 0 Fio de Ariadne); a
No Rasto tie Medeia); o futuro (A Menina
farnIlia (Escrita a!a Agua
Peça Teatral em frito tie Conic de Faais). Das cinco
quefoi So
peças, cuja autonomia e de facto suficiente para o espectaculo a que
cada uma deu origem, Desenos destaca-se das restantes. Tal nao se
deve a qualquer especificidade linguIstica ou estrutural, tão-só a
major consisténcia do texto e a uma escrita que parece ter merecido
da parte do autor a acenção que fragilidades drarnaticas negam as
indiferenciado
.
restantes, mais devedoras do seu debito inclusivo e 21
Desertos não expOe propriamente urn drama ern paJco. Se para
urn certo B. Brecht uma boa peça de tearro teria de corneçar inva
riavelmente pot urna boa hisréria, para Carlos J. Pessoa, a <didác
tica’> não implica subrnissao a urn logos narrativo. Esta diferença e
mais que o salto de várias geracöes, e talvez já a distancia que vai
entre a reflexao brechtiana sobre urn jovern autoritarisrno alernao e
esta ((reflexao sobre urna jovern dernocracia”. 0 titulo acaba por fun
cionar corno paradigma destas distinçoes politico-narrativas. Sendo
a peca de Carlos J. Pessoa urn oEvento Didáctico seguido de urn
Poerna Grátisn, ela torna visivel o carácter assurnidamente eventual
desta didactica e, pot isso mesrno, a aparente irnpossibilidade con
ternporânea ern oferecer a plateia mais do que a troca ocasional de
palavras ernie as personagens, no instante passageiro do espectaculo
(cf. Rabillard, 1991). A ordern do local e do presente dornina o
curso verbal do texto. Tram-se de urn presente que so a pulsao nar
rativa poderia pretender transforrnar em exernplo, enfirn, em didac
—
—
—
21 o leitor não deixara de notar as oscilaçöes ernie as cinco peças que cons
tituem Pentateuco. A relaçao difIcil que entre nés o teatro rnantérn corn a litera
tura dramática tern merecido resposcas diversas pot parte da cornunidade tearral.
A década de noventa fot clararnente rnarcada pela multiplicaçio das autorias,
como atesta a vulgarizaçäo de espectáculos escritos pot encenadores e/ou actores
de diversas cornpanhias. Contudo, e frequente a escrita resultar numa inflaçao
expressivista que corre o risco de confundir o referente artaudiano corn o corner
do clas ernocoes e do choque.
TEATRALIDADES
91
tica reflexiva. Mas a leveza progressiva dos mareriais narrativos, cada
vez mais desprovidos de sintaxe historica, dever-se-a por certo a ero
são rnetaforica dos Desertos da Europa e do pals do nosso autor.
A peca coloca em cena urn conjunto ambicioslssimo de perso
nagens a representar fragmentos da rnemória europeia: Carlos
Magno, D. Quixote, Madame Curie, Joana D’Arc, além de Maria
Callas, urn Senhor K, urn Bombeiro, urn Espectador e uma Detrac
tora. A acção, se assim se pode dizer, consiste na intervenção suces
siva, por vezes em registo monologado, das personagens menEiona
das. Quando a figura do Espectador, na 5 cena, resume inocente e
ironicamente o que acontece a sua frente, salvaguardando o anüncio
da redenção, enuncia cambém a qualidade civihzacional do deserto
em causa: “Algumas personagens da História europeia reónem-se
para saivar a Europa de um mal que designaram por ma consciên
cia, crise moral e cultural...! Estao num deserto” (Pessoa, 1998:94).
Na verdade, em Desertos, os fragmentos sem estória são de tal modo
insistentes que a Detractora, verdadeiro alter-ego (e autodefesa) do
autor, protesta corn Carlos Magno, pedindo a conclusao que tardava
ao fluir interminavet da palavra: <Não estás a avançar nada, isto é
petfeitamente inconclusivon (idemJ 47).
Sen conclusao ou avanço a peça (des)estrutura-se corno colagem de discursos. A colagern, alias, parece ser urn procedirnento téc
nico da eleiçao do autor. Deterrninados fragrnentos e sequências ora
emergem, ora desaparecern ao longo do texto. A cadência entrecor
tada dos discursos suscita urn mecanismo de reconhecimento inter
rnitente. Este processo val ao ponto de justificar o larnento desespe
rado por parte da personagern Espectador, a qual verbaliza a
ansiedade dramatica e narrativa a que a peça, por sua vez, sujeita a
plateia como urn todo: ((Queremos histórias, historias, histórias!>
(idem:l 33).
A colagern serve ainda outros propósitos, corno seja a reescrita
parodica de uma série de tópicos da linguagem polltica:
(Detractora
Eu queria agradecer a todos os que me ajudararn a
estar aqui hoje. Quero agradecer aos jovens, a sua energia, e sobretudo a
juventude. Portugal está mais forte, a Europa esrá connosco, estarnos
—
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
92
no born camjnho. 0 mundo reconhece-nos, e nós reconhecemos o mun
do. I love Portuga1! (idem:132)
Em Desertos, o espectador depara-se, então, com uma deriva de
vozes no tempo e no espaço. A sequencialidade do dialogo, no sen
cido convencional, não detem a posicão dominante que ocupa na
tradiçao dramatica. Por vezes, a fala de uma personagem nao motiva
sequer a <Ic urna outra, como a uma pergunta pode não suceder uma
resposta. 0 dialogo que as regras da pragmática aconseiham a dois
e aqui urn dialogo a trés ou a quarro, porranto, troca o dialogisrno
por certo <espanto de incornunicabilidade:
<‘Especcador
Urna peça didactica mais urn poerna gratis...
Estou magoado, extremamente magoado, os sapatos
D. Quixote
rnagoam-rne Os pés.
Maria Callas Ainda não me arrarijaram carnarirn
Deserto: lugar de todas as provaçOes, lugar de dci
Espectador
ção onde os chamadosmostrarao que merecem ser escoihidos...
A rninha joieuse não tern gurne!
Carlos Magno
Senhor K
Nao me estrague o espectaculo, hornem!
Parern corn esse baruiho! Urn poema gratis porquc...
Espectadot
parem Ia corn esse baruiho! Cararnba!
Derractora Vocés são ridIculos, urn espanto de incornunicabili
dade.>’ (idenr96)
—
—
—
—
—
—
—
—
A frequéncia corn que as personagens intercalam o discurso cria
urna espécie de ruldo larvar que se mantém pot toda a peça. Em cci
tos mornentos, tal ruido dá lugar ao absurdo ou ao puro nonsense. A
insinuação do absurdo, depois do anáncio da Eurolandia colectiva
pela voz da Callas, produz urn curioso efeito expansivo: <Na Jutlan
dia encontrei urn crocodilo / Na Jutlandia fui inoculada corn urn
bacilo I Na jutlandia fiz a hipoteca de urn marnilo / Na Jutlandia fiz
dueto corn urn grilo!’> (idem:1 09). A mesma Callas simula pelo
canto a construção de castelos na areia, enquanto enuncia urn dis
curso entrecortado, repleto das mais inauditas referéncias ao quoti
diane (i&m:140). Desce rnodo, Desertos surge decisivarnente atra
93
TEATRALIDADES
vessado por urn rnagno mecanismo de interferéncias, de vozes, de
registos e de distorçOes. A interferencia passa realrnente a flincionar
como elemento fundamental na constituição do(s) sentido(s). E urn
desaflo que o leitor/espectador ou aceita ou e obrigado a abandonar.
Na verdade, o ruIdo e tarnbérn o efeito da inflaçao indiferen
ciada de discursos em palco. Em lugar da voz grave da tragedia,
Desertos opta pelo estilo rnultiplo e aberto da farsa e da cornédia. 0
privilégio do córnico sobre o trágico rnostra quanto a cena,
esta
constrói-se realmenre sobre a superfIcie instavel da areia, que depois
cobrira literalrnente o espaco da encenação
22
é urn efeito da
logica que regula a vida na Euro1ândia” contemporânea. 0 córnico
é urn gesto de autodefesa, sublirnaçao pelo risIvel, aqui talvez apenas
o ataque minirnalista que o mornento histórico admite: se o pre
sente da escrita e já posterior ao da tragédia, ele rnostra querer tarnbern despedir-se do pathos dramatico que nasceu corn a moderni
dade. A despedida equivale naruralmente a dernissao de urn certa
ideia (moderna) de teatro. Pot isso não ocorre sern o larnento do
Espectador; no texto, e ele que frequenternente verbaliza os sinais da
passagem de geracOes, vista do lado de dentro do teatro. 0 ames e
o depois deste teatro ficarn bern patentes na seguinte intervenção,
onde a duvida sobre o alcance da voz das personagens faz supor que
ao <<falar> antigo apenas pode suceder a <dingua” ruidosa de urna
conversação interrninavel (e inütil):
—
—,
22 A resisténcia de parte da critica relativamente ao Teatro da Garagem passa
tambem pela questão especIfica da encenação. 0 programa do grupo insiste na
criação de territórios cénicos e, efectivamente, estes conferiram certas semelhanças
de famulia as peças do ciclo Pentateuco. Contudo, ate nas suas mais recentes cria
çOes (Saga Press, 999), ha opcôes de encenação que se revelam frageis, apesar das
virtudes no manuseamento do material sonoro: a insistência em estratégias de
abjeccao parece mais uma cedencia facil a plateia (contradizendo os fundamentos
territoriais do ml “espIrito da Garagem’). Verificamos nalguns trabaihos uma
sobre-ocupaçao objectual da cena, com um nümero excessivo de materiais, mas
também uma escoiha apressada de figurinos. Ha toda uma inflaçao gestual nas
encenaçöes de Carlos J. Pessoa.
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
94
Passamos bons mornentos juntos, embora o teatro ja
c<Espectador
não seja o que era; ou se caihar fiji cu que tnudei e entretanro, algurna
coisa ficou para isis, irremediavel... corno se quiséssemos explicar, con
vencer que ternos a soluçao... e que, por isso, falassemos, falassemos, con
vencidos de que falar adianta... não vos reconheço, e terrivel... sinto-me a
falar a Lingua errada, sinto-me urn estranho.>> (idem:1 14)
—
Terapia de grupo
0 dialogo não conduz as personagens de Desertos a urn pro
gresso cornunicativo. Ao inverso, a rnultipiicaçao das vozes instala
no deserto o ruldo de uma conversação que nao anuncia oasis
algum. Pese a vontade de Carlos Magno, segundo o qual o objeccivo
da reunião seria <<construir uma nova Europa”, a conversação parece
alirnentar-se do sirnples facto de a cena não poder persistir eterna
rnente num vazio verbal, apenas preenchido pelo silêncio. As pro
prias personagens sustentam esta interpretaçäo, quando usam
expressOes corno ufalern da Europa)) ou <<digam coisas”, por exemplo.
Nestes casos, o b1a-b1ao quotidiano, sendo a causa irnediata do que
alguérn chama <<terapia de grupw (idem:1O1), invade a cabeça das
mesmas personagens que supostarnente nos deveriam garantir
aquele vestIgio didáctico que prornetem. Nas palavras do Senhor K,
ate esta didactica surge marcada pelo fantasma da oredundância” e
da <<repetiçaon:
<<Senhor K. Esca foi a hiscoria sen principio, meio ou fim, de urna
epopela pessimism, mas muito optimism, a que charnamos evento didác
tico C..) Segue-se urn poema gratis que procura sintetizar a parabola
subentendida no evento didactico. Todos os dias nos perguntarnos se o
poerna gritis não sen redundante; todos os dias conciulmos que sin... (...)
No entanro, interessa-nos a repetiçäo, a redundância, o deserto instalou
nos nossos coraçôes o sentido poético da monotonia...>’ (idem:147)
—
Avaliada pelo catalogo extenso das caregorias drarnaticas,
Desenos instala-se nos arredores da indiferenciaçao pOs-moderna
TEATRALIDADES
95
que vem caracterizando parte significativa da textualidade dramatica
das ultimas decadas. A (des)esrruturaçao genológica de Desertos leva
a personagem da Detractora a hesitar, na hora de classificar o jogo
em que participa, num claro indicio de que, a luz da tradiçao tex
tual, este é em parte coisa inclassifIcavel: Isto e uma farsa, uma
farsa! Nao, uma comedia... Nao uma tragicomédia>> (idem:1 01).
Drama sem estória, Desertos é tambem a versão conversacional do
tearro ou a dramaticidade possIvel.
As próprias personagens não chegam a possuir densidade sufi
ciente para se distinguirem pela acção. Na perspectiva da fenome
nologia teatral, urna personagem dramática define-4e em palco
enquanto portadora de urna voz e de uma identidade, cumpridas na
acção pot ela protagonizada. Em Desertos, a sintaxe correlativa entre
nome-identidade-acçao claudica neste porno. 0 nome que o dra
rnarurgo pretensamente ihes atribui e urn alibi da escrita. A celebri
dade e a simbolica que cada uma veicula no contexto da cultura
europeia é parte importante da recórica do texto. Em vez de as apre
senrar como figuras hurnanas individualizadas, o autor joga corn a
memória que delas rernos. 0 nome è alibi, porque esta apenas pelos
valores que o senso comum ihes atribui. Por isso elas não têm que se
definir enquanto personagens. A memória do espectador reconhece
as e, fazendo-o, confere ao dramaturgo a liberdade de que necessita
para as usar como joguetes de uma ((didacrica,, pos-histOrica. Atra
yes delas despede-se o passado europeu da ciéncia, da aventura, do
misticismo, da coragem.
Na sintaxe aurora!, o abrandamento actancial das personagens
reproduz a paralisia da Europa em Elm de milenio. Assim, o que
parece decisivo na auséncia de identidade e avançon é o modo
como a aridez do deserto se projecta na visão da Europa: <<esta
Europa museu a que pertence Portugal ruina” (idem:133). Talvez a
meihor defmnicao de Desertos esteja na expressão que Joana d’Arc
deixa no ar, em jeito de resposta a narureza do tempo que se vive:
afruta da época”, nem rnais. E realmente de frura da época” que
aqui se tram, ranto no que diz respeiro ao quadro que se desenha ao
longo das 22 cenas, como a espécie de critica que a geraçäo do autor
pode fazer a geracão do autor. Da Europa mitolOgica resca no texto
96
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
a mernória do estigma monstruoso. Essa bela Europa que Zeus rap
tou intempestivamente, disfarçado de monstro, prenuncia no texto
o que ha de maiefico na seduçao iiusoria de urn animal camaleónico.
<A comunidade morreu>>, diz Madame Curie a certa altura
(idem:131). No piano desta agonia cornunitária, a resposta de Deser
tos aiinha ainda peia iogica minimalista da garagem rerirada. Tram
se de urn espaço de trânsito e ocupaçäo ocasionais, ml como o que
actualmenre caracteriza os usos do tearro. Estarnos tao longe do
anfiteatro aberto do cidadao grego corno dos jogos de sociabiiidade
nos grandes palcos oitocentistas. A garagem propôe urn espaço
rnInimo para a grandeza passada da Europa. 0 desencontro de esca
Las anda próximo do que se produz entre a amplificacao do especcá
cub antigo na polis e o teatro como prática reconduzida as rnargens
do social na actuaiidade. Corno a Europa, a cena assiste ao movi
mento de urna coisa da qual faz parte:
“Espectador — Tenho o privilégio de ser urn espectador do espectá
e
cub
de ao mesmo tempo fazer pane dde; o rneu papel é tipicamente
europeu, faço pane de uma coisa de que sou espectador (...) rnantenho
me seguro no meu papel, é certo, mas apenas isso... hoje em dia a Europa
joga urn ténis amavel, rendo por adversário a parede irredurivel da Hiscâ
na.” (idem:89)
7
0 TEATRO COMO FESTIVAL
Fesrivalitis
No nórnero relativo aos meses de Setembro-Outubro de 1997,
o periodico espanhoi Primer Acto, urna revista que conta ja perto de
300 nürneros, fazia o balanço editorial dos festivais de teatro, inter
rogando-se sobre o seu sentido e oportunidade. De facto, a acumu
laçao estival ou outonal de festivais tern-se tornado comum em
diversos palses europeus. Entre mis, a ufesuva1itis, é igualrnente uma
propriedade da anatomia ceatral da naçio, sendo ainda uma rnarca
muito visivel do curso estratégico do teatro português no periodo
posterior a 1974. 0 editor da Primer Acto acrescentava nessa curta
nota que, sendo os rnotivos para urn festival rnuito variados, des ser
viriarn ate para que alguns dos responsáveis pelas artes do palco
pudessern gozar a ilusao de campanhas periodicas de boa consciên
cia”. Ora, se as razOes para urn festival de teatro são tantas quantas
as opiniôes, o que aqui temos é, pelo rnenos, urna opinião sobre a
qual vale a pena reflectir. Vejamos, ja agora, o resurno da genealogia
dos festivais que al se apresentava:
cPestivais, festivais, corn personalidade e sern cia, integrados na vida
da cidade ou tangenciais, protegidos ou menosprezados pelas administra
çOes püblicas, rotineiros ou anirnados pelo desejo de oferecer espectáculos
que alargam os horizontes do pubiico, limitados a actividade cénica ou
corn prograrnas abertos ao debate e a reflexao, corn filosofia ou corn espi
rito de agenda de espectacuios, corn o olhar posto no rnundo ou no censo
dos éxitos internacionais, necessários ou ornamentais, para gloria do tea
to ou dos seus patrocinadores...n
98
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
A afirmaçao levanta demasiadas questOes em sirnultaneo, mas
tern a vantagem de nos introduzir a ambiguidade que caracteriza a
logica do festival de teatro nas sociedades conternporâneas. A oca
sião do festival aparece-nos hoje dividida entre a fIdelidade ao tea
tral e a abertura a mediatizaço, entre a vivéncia cIvica da festa e a
adiçao aburguesada da carteira cultural de cada urn, numa tensão
que tern sido diversamente negociada pelos muitos festivais que so a
Iberia leva a sua coma.
Arenas
Olhando a historia milenar do palco, a ocorréncia periódica
dos festivals tern assumido formas muito diversas. Ames de mais,
pelo seu carácter exernplar, ha dois festivais que poderao ilustrar
modos fundadores de reiacionarnento corn o pdblico: o festival de
teatro na Grécia Amiga e o decano dos festivais modernos, o Festi
val de Avignon. Arnbos esciveram na origem de duas tradiçoes neste
campo.
o nümero de festivais na Grecia Amiga era muito elevado (cf.
Pereira, 1979:286-3 1 1). Entre Os grandes festivais, os que honravam
Dioniso detinham a primazia, quer pela sua magnitude, quer pela
qualidade dos nomes que neles participaram. Nesse tempo, o festi
val de teatro mantém corn o social uma relaçao estreita e intima
mente ligada as práticas simbólicas de todo um povo. Para Francisco
R. Adrados, autor que escreveu urn volume fundamental sobre este
assunto, o tempo do festival grego é urn ((tempo fora do tempcm, urn
perIodo durante o quai a hornern experimenta comunicar-se corn os
Deuses (Adrados, 1975:255). Mas já nessa época o intemporal
divino sofre o inflwco das leis humanas. A retórica forense de rnui
tos dos textos que nos chegaram sugere que o agon competitivo exer
cia o seu domInio sobre o espirito desses festivais. E conhecida a
afirmaçio d’As Aver, segundo a qual as atenienses, ao contrário das
cigarras, não passariam o ano ernpoleirados nas árvores, a cantar,
mas empoleirados em processos. Ainda assim, sabemos que a saóde
do teatro grego dependeu da existéncia dessa democracia partici
99
TEATRALIDADES
pada (esquecarnos, por urna brevissima cegueira, os trabalhos C 05
dias dos escravos). Ora, os dados da Historia permitern que se esta
beleça uma conexão entre os tenitórios forense e teatra], situando o
teatro grego no âmago da democracia ateniense, nurna cornpetição
eis urn con
desinteressada que idealmenie visava apenas a honra
ceito apto para muitas distinçoes.
A relaçao do palco corn o publico dos festivais era estreita e
inclula inómeras formas de comunicação extracénica, corno o
recurso a parábase, frequente nas cornédias de Arisféfanes. N’Os
Pdssaros, por exemplo, o coro arneaça a audiencia caso esta não ihe
atribua o prirneiro prérnio. Peter Arnott investigou genericarnente a
relaçao do püblico corn o palco e a sIntese a que chegou faz eco de
uma série de indIcios presentes nos textos da época (cf. Arnort,
1989). Arnort insiste na delimitaçao territorial destes festivais, afir
mando que eles eram €virtualrnenre acontecimentos fechadoso, em
pane, devido a geografia introversiva da nação e da sociedade gregas. A época, recorde-se, a viagem era mais coisa do espIrito: o exte
rior era o bárbaro. A rerritorialidade que marca o festival de teatro
na Grecia e urna caracteristica que, no seculo XX, verernos Avignon
reactivar. 0 que em Arenas era ropografia sagrada seculariza-se par
cialmente na sirnbolica dos lugares que o colectivo interiorizou ao
longo dos 50 anos de Avignon. As contingências do festival ate
niense acabarn, pois, pot ir definindo algurnas das qualidades histo
ricas do evento. Corn efeiro, na Grécia temos já urn conjunro de
princIpios basicos que definirao o futuro do festival de reatro: perle
dicidade, terrirorialidade; cornpetiçao/confrontaçao.
0 efeito agregador produzido pelo festival é outro aspecro que
neste perlodo fundador, sendo tarnbérn argurnento da
caracteriza
o
sua iegitimacao póbiica. 0 festival partiiha corn a festa o impeto gre
gário que une a tribo no lugar da comunidade. Neste estrito piano,
não ha diferenças significativas entre as Grandes Panateneias, os
Jogos OlImpicos e os Festivals Dionislacos. A grande vantagem dos
fesrivais dramaticos estava precisamente no suplernento argurnenta
rivo que a retórica textual ihes conferia, contrariarnenre ao ‘fisica
iismo’ dos jogos, por rnais rnerirórios que fossern os seus propósitos.
No entanto, é signifIcativo que o teatro nos surja corno urna entre
—
100
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
as várias actividades desenvolvidas nas celebraçoes helenicas. Além
dessa diversidade transrnigrar para o próprio conceito de festival, ele
mesmo decorria (e isso e importante) no contexto mais lair das fes
tas cIvicas. Em Atenas, o festival era urn meio e urn urn, pedagogia
e cartarse.
Tal sintonia entre a plateia e o cidadao dificilmente voltaria a
repetir-se. As afinidades entre o teatral e o civico corneçavarn nos
condicionalismos espaciais do anuiteatro grego. A arena do teatro
rnrnetiza realmente a arena poiltica, já que a cena representa uma
das quatro tipologias assumidas pelo espaco póblico grego, ao quai
sc juntavarn o debate’, o <‘riwal>> e os jogos>> (cf. Redfeld, 1990:322).
0 pdblico/comunidade partllha o acontecimento exibido no anfi
teatro enquanto dialoga corn as determinaçoes da polis. A assistén
cia do festival grego é ünica na sua constituição, porque a cena era
sua pot delegaçao coral. 0 coro actua como <metáfora encenada da
comunidaden (cf. Longo, 1990). Esta conjuntura singular morreu
corn a sociedade grega, O5 os desfiles medievais derivam ja para a
exibiçao sensualisca da narrativa biblica.
A origern do reatro grego tern sido associada a migracão urbana
de ritos dramaticos de âmbito rural. Estes rituais primitivos nasce
ram em contextos estritamente cornunitários e, corn o tempo, ter
se-ão deslocado para a cidade que então se consolidava. A medida
que a sociedade grega se urbaniza e se estratifica, os festivais que
mais tarde acoihem os nomes dos grandes drarnaturgos acabarn por
se assumir como rnomentos ünicos da concertação catártica. Lida
por este prisma, a Poetica de Aristóteles é de facto urn livro sobre a
tragedia e os mecanismos da identificaçao. Por rnuito que isso custe
aos adeptos rnais ortodoxos do teatro épico, o fascInio dos festivals
atenienses não pedia a cabeça aos cidadaos: a sua razio era a razâo
dos espectáculos e a fabula do palco era urna fabula sobre a vida.
Avignon
Urn amplo arco temporal liga as representaçöes de Tespis, yen
cedor da competicao inaugural de poetas trágicos, ao magno
TEATPALIDADES
101
tro do teatro que a partir de 1947 se foi instituindo no lugar de
Avignon, em Franca. Sob a direcçao de Jean Vilar, o Festival de
Avignon nasce corn o pós-guerra e inaugura nova época na historia
deste género de eventos. Em vez do patronato civico da Grecia, a
maioria dos festivais modernos nasceu sob a tutela de urna figura
emblernatica. Avignon foi durante muitos anos sinénirno de Jean
Vilar. Este facto näo surpreende, pois o festival moderno ocorre
nurn tempo em que a autonomia do estético exige legitirnaçao acres
cida, contrariarnente ao enraizarnento cIvico e mItico do modelo
ateniense.
Uma das grandes diferenças do festival moderno deriva deste
desfasarnento conjuntural. A plateia deixa de coincidir com a polis.
Pelo meio meteram-se questöes de gosto e distinçoes de toda a espé
cie. Antes de Avignon set Avignon, o primeiro cartaz, ainda so corn
o Palais des Papes em vista, anuncia sintornaticamente Une
semaine d’Art en Avignon> (cf. David, 1997). Esta Arte anunciada
pela letra do cartaz nao estava para os franceses corno as comédias
de Aristofanes para os seus concidadaos. A nomeação manter-se-á
corn esta forma entre 1947 e 1954, altura em que o habito e a ins
titucionalizaçao do acontecimento dispensarn a redundancia. A par
tir de 1957 passa-se simplesmente a fase do Festival d’Avignon.
Como lembrava o editor de Primer Acto, os festivais thrn hoje
cores e motivaçöes diversas. 0 próprio Festival de Avignon evoluiu
da austeridade classica de Jean Vilar para a abertura ao contemporâ
neo e a progressiva internacionalização, a partir de 1980, já sob a
direcçao de Bernard Faivre d’Arcier. Mas a espécie de festival que
por uns anos se viveu em Avignon é relativamente rninoritária na
cidade contemporânea. Em 1947, a osemana de arte’> principiou
duplamente apoiada numa estética e numa ética. Este compromisso,
historicamente regressivo, resukara do idealisrno geracional prota
gonizado pelos sobreviventes da Segunda Guerra. As palavras de J.
Vilar são elucidativas quanto a pertinéncia deste fi.indarnento hurna
nista na origem do festival. A sua fundaçao traduzia o desejo de
remodeIar uma fraternidade nacional>> e ainda o desejo de <procu
rar urn publico unido>> (ickm:75). Tais afirmaçoes pressupOern urna
crença schilleriana nas virtudes cIvicas do estético. No caso, estas
102
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
serão acompanhadas pela busca utópica e ecurnénica de urn teatro
que fosse a uma so voz popular, nacional e universal. 0 R. Rolland
do ensaio Le tbedtre dupeuple (1903) é assirn recuperado por j. Vilar
urn gesto reconhecivel noutros projectos teatrais,
e R. Planchon
como a Freic Vo/ksbuhne (Bedim) ou o Volkitheater (Viena). Nurna
carta dirigida aos espectadores, em 1951, Vilar chega a confessar que
os pretendia receber a todos na qualidade de ((participantes))
(idem66). E Obvia a herança Amiga destas palavras, assim corno
vInculo utOpico que as sustenta. Ao escrever sobre Avignon dos anos
50, Georges Banu deixava escapar a sensação vivida ao entrar na
cidade: “on se prend pour un Grec” (idem:22).
Jorge Silva Melo descreveu com enorrne engenho cinernatográ
fico a épica cIvica que levou Jean ‘S/lIar a amplificaçao festiva da refe
rida Jraternidade nacionalo. Na narração do autor português, este
desejo surge naturalmente corno corolario da fase em que o ceatro
sintonizou corn os c1ássicos universais’>, após a supressão da barba
ne hitleriana. Vale a pena char o excerro em causa:
—
e o bern. 0 paico,
teatro
pico pedagOgico do iceberg cultural
o insrrumenro de darificaço do passado. A irnagern cénica destes anos e
espantosamerite iluimnadora: a rotunda ha-dc ser branca, o ciclorama
branco, a luz hi-de ser clara, a rnarcaçäo ha-dc ser a definiçao das oposiçôes
dramaticas. 0 teatro pode set a italiana, mas a pouco e pouco a platcia hie
rarquizada em ferradura cede o lugar a bancada ‘simplesmente democratica’.
Porque o teatro faz bern: a safda do espectaculo o espectador, que ja entrou
num acm de cIvica bondade, sal melhor: mais culto, mais bondoso, rnais
atento ao mundo, mais clarividente, mais dono do sen prOprio patrirnOnio.
foi urn passo
de grande Festa Popular
Daqui a ideia de Festa
—
—
—
—
dado logo quase por Jean Vilar no encantat6rio lugar do Palicio dos Papas
de Avignon [...]
Esre o desejo de todo urn generoso, amplo movirnento de pessoas
que encontrou no espantoso e ünico quadro do ensino laico frances [...] o
campo fertil onde cirnentar este desejo novo,> (Melo, 1998:299)
Esre rernpo de urn teatro para todos os hornens de boa von
tade ha-de ser passado em 1968. A possibilidade didactica do “con-
TEATRALIDADES
103
vIvio corn a História’>, ja porque o conforto material das decadas
seguintes eternizou o gozo do presente, desvaneceu-se como coisa
distante. 0 Festival de Avignon cresceu; os dez rnil espectadores dos
primeiros anos são hoje várias centenas de milhar. 0 processo de
institucionalização pesou e fez nascer espaços e estéticas alternativas
sabre a paisagern unifIcada dos primeiros anos. Ultirnarnente, o
denominado in, se e certo que ainda não chegou a pacatez burguesa
de Salzburg, abriu espaco para o off Depois de 1971, es:e era já urn
festival diferente, em lugares e linguagens alternativos. Urn tern o
seu centro simbolico no Palais des Papes, outro na Place de l’Hor
loge. 0 primeiro tenta a renovação corn base no talento dos grandes
nornes, corno fez P. Brook, ao colocar Mahdbhdrata (1985) em
plena Carrière, em Boulbon; o segundo pratica o que Georges Banu
chamou a Mguerrilha espacial>>, procurando abrigos (mais do que
edificios) nas ruas, nas praças e nos becos rnais reconditos da cidade.
A co-habitaçao dos teatros de Avignon decorre a sombra agre
gadora da muralha. Apesar das rnudanças, a natureza da agitação
que ciclicarnente assalta a povoação mantérn uns ares de farnIlia corn
urna repdblica italiana do Renascirnento. 0 que distingue a reali
dade do festival em Avignon, contrariamente aos festivais realizados
ern centros urbanos de major dirnensao, é essa mobilizaçao da urbe.
A escala reduzida confere-Ihe urna orgânica rnuito tipica dos festi
vais de provincia (que não provincianos). E a cidade que recolhe al
mornentaneamente a escala da vila. 0 rnesrno sucede com a Fira de
Tarraga, na Catalunha, tambern no perlodo estival, embora virada
para as linguagens rnarginais e para o teatro de rua. A pequena loca
lidade, a urna escassa centena de quilornetros de Barcelona, acolhe
quase exclusivarnente o teatro nao convencional. Corn mais de vinte
ediçoes no activo, Tarraga ja passou as 400 representaçöes e os 125
mu visitantes. Tal coma Vular se deslocava a Avignon em busca
daquilo que Paris não podia oferecer, tambem os espectadores de
Barcelona se deslocarn a Tarraga, para cornungarem de uma festa
que o brilho dos reatros das Rarnblas não ihes da.
0 próprio território tem em Avignon urna delimitacao fIsica na
muralha circundante. A fronteira de pedra cria um interior e um
exterior a comunidade central. Aliado a escala rnodesta do povoado,
104
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
esse corte sirnbolico contribuiu para que Avignon se entronasse na
mitologia do teatro moderno. 0 próprio ritual do espectador
adquire urn sentido circular e processional. A visita aos lugares é
sucessiva e obriga-o a abandonar os sItios do quotidiano, para se des
locar ao lugar possessivo do festival. Do porno de vista dos produ
tores e dos criadores, o festival não deixa de ser uma ocasião ánica
para viver corn benevolência a face societária do mundo do teatro.
0 pdblico do festival ultrapassa em nómero o trabalho anual de
uma grande cornpanhia regular.
A linhagern de Avignon tern vindo a softer sérias transfigura
çôes nos ternpos mais recentes. Os protocolos que regern a cena con
ternporânea estão para além da ética e da estética que levou Vilar a
<Sernana de Arte” de 1947. 0 hurnanisrno dos ternpos da fundaçao
ter-se-á quebrado definitivamente ern 1968 e a ernergéncia posterior
dos espectaculos offconsagrou no terreno as divisöes da cornunidade
ünica de 47. A expulsio simbólica do Living Theatre é para o
mesmo J. Silva Melo o sinaI da morte irreversIvel de uma ideia de
teatro, rnelhor ainda, o sinai da substituiçao irninente do teatro-arte
pelo teatro-festa, o antepassado directo do nosso teatro-festival:
Podemos situar nesse ano a morte dessa ideia boa de urn teatro para
toda a sociedade, interclassista, inter-etário, ultrapassando os tempos e
apelando a boa vontade individual e colectiva. Mas podemos também per
ceber que foi nesse mesmo ano, nessa sübita alteraçao dos espectadores
que corneçou a morrer a própria e simples ideia de teatro: e a impor-se a
ideia de ‘festival’, a ganhar a irnagem da rnaratona cultural e a morrer a da
prática artIstica. Contestando o Festival de Avignon, será o seu próprio
formato o que vamos ver repetir-se incessanremente de Edimburgo a
Cadis, de Barcelona a Bona. A criaçäo, näo de uma prática teatral, mas de
urn trajecto (cultural) de acontecimentos dnicos e irrepetIveis> (Melo, op.
cit.:301)
A profissionalizaçao e a mediatizaçao da esfera cultural, aliada
a polIticas publicas de subsIdio que privilegiarn critérios quantitati
vos, fizeram do festival urn evento que näo se cornpadece corn lógi
cas artIsticas, quase sernpre ruinosas. A globalizacao turIstica das
TEATRALIDADES
105
<‘maratonas culturais>’ trouxe consigo a publicitaçao e a cornerciali
zação da cultura, logo, tambem a especializaçao e a internacionali
zação dos festivals de teatro. Corno é natural, a torrente rnediatica
também passou pelas pontes de Avignon. A questão e complexa e
resta saber se nurn tempo como o nosso é sequer possivel (e em que
condicoes) conceber para o póblico urn teatro-arte scm indemniza
ção festiva.
Portugal
Ernie as experiências episodicas do Antonio Ferro na sua fase
modernista e os encontros folclorico-amadores que o mesmo viria a
patrocinar, ernie a Primeira Repdblica e o Estado Novo, o festival de
teatro, no sentido em que aqui venho usando o termo, não teve
entre nOs urn passado glorioso. Aquilo que havia para celebrar
pouco importou ao curso do teatro português, pelo menos aquele
que fez alguma diferença. Por culpa das restriçôes politicas, o regime
preferia tolerar aglomeracoes apenas aos domingos. 0 efernero Fes
tival Internacional de Lisboa não foi por essas decadas suficiente
para marcar terreno ou criar habitos.
Por todas as razöes, o festival de teatro surge na paisagem por
tuguesa corno urn facto posterior a 1974. São duas as condiçoes
rnInimas para a realizaçao de urn festival que por essa altura se tor
nam viaveis, embora a ritrnos diversos: a liberdade de expressão e o
orçarnento. E obvio que estes pressuposros basicos são, pot si sO,
recorde-se que
insuficientes para urn festival sério e consequente
a aprendizagem da programação cultural foi tardia ernie nOs,
rnesrno na fase dernocratica. Se a liberdade necessária ao trânsito
nacional e internacional de grupos e repertórios veio logo corn
Abril, o orçamento chegou verdadeiramente nos anos noventa,
quando os apoios a irea da cultura, disponibilizados por instituiçoes
locais e nacionais, se reforçarn rnutuarnente. A conjuntura econó
mica e social dos anos noventa favoreceu claramente o estilo <mara
tona cultural>’, legitirnando-a corn a sua participacão em eventos
culturais de grande escala, corno a Expo de Sevilha (1992), Lisboa
106
FERNANDO vt4TOS OLIVEIRA
Capital Europeia da Cultura (1994) ou a Expo 98. Nestes casos, a
generosidade dos orçamentos foi tambern uma resposta do pals ao
aurnento da concorrência internacional no ambito das polIticas da
identidade, urna area de negOcios que confinava directamente corn
o turismo, a mais poderosa indüstria nacional.
0 aproveitamento politico da espectacularizacao da cultura
explica a presenca recorrente do festival nos recentes jogos de afir
mação local e regional. A sua multiplicacao neste contexto prova all—
nal que a competitividade pub(icitária do festival de teatro (em
major grau, a do festival de cinema) tern urna relaçao cusro-benefi
cio satisFatoria. Ha uns anos aconteceu algo semeihante em Espanha
e Moises P Coterillo afirmava no El Pub/icc que a razão Ilindamen
tal para essa proliferacao se devia precisamente a tencação do lucro
imediaro. Corno <<assunto de escaparate e de prestigio”, o festival
leva a marca do patrocinador as primeiras páginas, criando a ilusao
de trabalho feito, para gáudio de autarquias e oligarquias (cf. Cote
rub, 1986:3). A inulaçao sirnulada do cultural despreza o facto de a
melhor via para o desenvolvirnento do teatro consistir no apoio sus
tentado. A verdade é pie hoje continua a ser mais fácil convencer
uma autarquia a financiar urn qualquer festival do que a subsidiar
urn grupo corn continuidade minima.
o processo de decisan orçamental na area da cultura deveria,
pois, considerar previamente algumas opçöes fundarnentais. Have
na que discutir a legitimidade do dispéndio de fundos püblicos con
sideraveis neste género de festivais, sew que antes se invista na regu
larizaçao da vida teatral do pals, tao deficitania em matéria de
descentralizaçao e de equiparnento. Cu haverá na multiplicaçao e na
rnediatizaçao de festivais algo de inexoravel quanto a relaçao do teano corn o social contemporâneo? A resposta a estas interrogaçöes
não é univoca, ja que urna parte dos festivais tern surgido como
extensäo das actividades de certos grupos convencionados. Contra
riarnente, areas mais pobres e menos visiveis, como as da ediçao de
textos dramaticos on peniodicos da especialidade, não tern merecido
a mesma atenção. Sem pretender pôr em causa a intenção da gene
ralidade dos seus promotores, o tipo de festival nascido de urn grupo
e naturalmente parte da sua afirrnaçao estratégica perante a regiio
Q7
TEATRALIDADES
que o acoihe ou perante a instituição fInanciadora que o sustenta. 0
recente Fest-Eixo
Festival tie Teatro do Eixo Atldntico, organizado
pelo Teatro do Noroeste, em Viana do Castelo, rev.cla os seus pro
pósitos regionalistas e afirmativos na nomeação adoptada. 0 pro
grarna marca o terreno vital corn urna forte componente portuguesa
e galega. Este tipo de eventos tende a procurar urn compromisso
(improvavel) entre o Festival de Avignon nas suas origens e o impeto
maratonista que o caracterizou nas óltirnas decadas.
A época da reprodutibilidade do festival manifesta-se de mo
meras formas na paisagem portuguesa. Ternos festivais alternativos,
a cruzar a linguagem do teatro, do video e do cinema, como o Fes
Associação Teatral e pelo grupo
tival X, organizado pelo Olho
VisOes Uteis. Ha festivais destinados a pOblicos especlilcos, corno o
Percursos, do Centro de Pedagogia e Anirnaçao, integrado no Cen
tro Cultural de Belém. Este visa urn pOblico jovem, tal como o Fes
tival International tie Marionetas, no Porto, dinamizado por Isabel
dos Santos Costa. Existem festivais temáticos, corno o Festival Inter
national de Teatro Cdmico da Maia, fundado pelo Teatro Art’Ima
gem, a partir de 1995. Temos ainda os festivais da interioridade, em
lugares como a Guarda, pela mao de Arnérico Rodrigues, em Ton
dela (FINTA-Festival International tie Teatro Acert, organizado pelo
Trigo Limpo) ou o Festival Altitudes, organizado pelo Teatro Regio
nal da Serra de Montemuro. Este Oltimo nasceu de urna estrutura
com certa tradiçao itinerante, em concelhos afastados dos grandes
jornais nacionais, como S. Joao da Pesqueira e Castro Daire. Mais
perto da capital, as oito ediçoes dos Encontros tie Teatro do Seixal
cumprern idêntica funcao: trazer as comunidades locais o teatro que
se faz no resto do pals e insinuar a descentralizaçao a custa da capa
cidade dos festivals para gerarem dispersao orçamental. Corn urn
passado que rernonta as origens do charnado teatro independente, o
próprio teatro universitário não deixou de pontualmente criar os
seus festivais. A Semana International de Teatro Universita’rio foi
durante anos urn projecto do TEUC (Teatro dos Estudantes da Uni
versidade de Coirnbra).
Urn nOrnero crescente de festivais vern sendo patrocinado
por entidades corn responsabilidades na area do mecenato cultural.
—
—
FERJANDO MATOS OUVEIRA
108
o Festival Extremos do Mundo pretendeu afirmar-se como
o festival
da cidade de Lisboa. Existem ainda encontros corn claros intuitos
Fazer a Festa,
formativos, corno o Festival Internacional tie Teatro
organizado pelo Teatro Art’Imagern, no Porto. 0 Festival Sete .SOis e
Sete Luas. por seu lado, apostou em geografias rnáltiplas, num
regime de co-produçao que desde o inicio pretendeu cruzar culturas
e experiências da area italo-iberica, corn abertura eventual aos paises
africanos de lingua ofIcial portuguesa. Notavel iniciativa lançada por
Marco Abbondanza e Renzo Barsotti, a partir do Alentejo recém
descoberto, a aventura deste festival colocou questOes muito perti
nentes quanto as possibilidades do teatro na periferia. Desde a
meira ediçao, em 1993, os promotores partiram da forte 4igacao
territoriab, estabelecida corn dois lugares fundadores: Pontedera
(lralia) e Montemor-o-Novo (Portugal). A leitura do volume corn o
balanço de sete anos da experiência (1993-1999) constitui urn repto
a sobreylvencia cia diversidade cultural e teatral no ambiente hostil
da norrna1izaço europeia (cf. Sacco, 2000).
o conjunto dos festivals abarca iniciativas rnunicipalizadas,
corno o Festival tie Gil Vicente, em Guirnarães, ou a Festival eta Pri
mavera, em Viseu; e ainda festivais de dirnensao internacional, resul
tantes de acçöes devidarnente programadas, corno a que Joaquim
Benite estabeleceu a partir do Festival tie Alrnada. Este festival está
integrado num projecto teatral mais vasto, corn base na Companhia
de Teatro de Airnada, onde se patrocina a ediçao suplementar de
urna revista. A resisténcia deste festival a rnercantilizacao pura das
artes do espectáculo rnotivou urn apoio sustentado por parte do
IPAE. 0 evento tern sabido renovar-se e atrair grupos de reconhe
cido rnérito, alem de rnanter uma acção pedagogica através de semi
nários e colóquios. A falta de espacos em Alrnada tern beneficiado
Lisboa; o Teatro da Trindade recebeu algurnas das produçoes vindas
da outra rnargem.
o FlTEl Festival International tie Expressdo Ibdrica está entre
os decanos do moderno festival de teatto. Corn residência no Porto,
a irregularidade de algurnas ediçoes não deve obscurecer o trabaiho
e a persisténcia de urn projecto que ernie nós inaugurou a agenda
multicultural. Nas ü!timas ediçoes, o FITEI tern-se redimensio
—
—
109
TEATRALIDADES
nado, mediante a reduçao de espectaculos e elevaçao da qualidade
media dos participantes. Houve anos em que o FITEIfoi a montra
anzológica dos espaços culturais que se propôs representar. E já urn
dos poucos festivals que ten idade para ter urn póblico, como acon
Festivl tie Montenwr
tece com o de Aimada ou corn o Citemor
-o- Veiho.
0 Citemor é talvez o que rernos fisicamente mais próximo de
Avignon, ate pela sua longevidade (começou em 1974 e vai na
XXIII ediçao). Trata-se de urn festival que tern lugar nurna pequena
povoação, cujo castelo murado proporciona urn clima humano sin
gular. 0 castelo será o nosso Palais des Papes, embora mais étnico
(está sujeito aos mosquitos do Baixo Mondego). No Verao, o cue
mor disputa com as praias da zona da Figueira da Foz um püblico
que tem conseguido tIdelizar, cal como vern fazendo corn algumas
companhias nacionais ou internacionais. Nas ültimas ediçoes temos
visio criaçOes do Teatro da Garagem, de Lócia Sigalho, dos Artistas
Unidos e de La Carnicerla Teatro, corn o qual Rodrigo Garcia nos
deu a conhecer uma estimulante História tie Ronald, o Palhaço do Mc
Donalds, em 2002. 0 contexto da muraiha perrnite activar um
comunitarismo residual que proporcionou ja momentos ánicos
como o desfile d’ Os Bichos, adaptacao do texto de Torga, pelo
Bando. Os condicionalismos do castelo tern levado o Citemor para
fora do cIrculo de pedra, explorando alternativas espaciais. Este e
urn movimento que a devida escala Avignon tambem viveu. Seja
pelas leis da óptica ou pelas necessidades técnicas, grande parte do
teatro moderno não é companvel com espaços abertos, sobretudo
quando despidos de próteses espectaculares e de conforto para o
Festival tie Cultura na
pablico. A excepçäo será talvez o Frestas
Rua, replica portuense do Streets Abeach realizado em Manchester.
A casa do teatro sofre aqui amplificaçao maxima e a rua e literal
mente assaltada pelo quotidiano irreal.
o FONTI. Porto Natal Teatro Internacional nasceu no seio de
urna estrurura corn peso crItico no meio teatral, beneficiando do
dinamismo de Ricardo Pals e de urn impressionante catalogo de
apoios institucionais (Ministério da Cultura; Teatro Nacional de
São Joao, Camara Municipal do Porto e, na devida altura, a organi
—
—
110
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
zação Porto 2001). 0 sucesso irnediato do PONTI e o modo como
conseguiu marcar o território portuense fazern-nos pensar seria
mente no futuro das artes do teatro. A eficacia da proposta deve-se
ao modo como se enfrentou o póblico corn as armas do mercado:
aposta decisiva no nome de cartaz e marketing agressivo. 0 festival
soube controlar o sucursalismo que pende sobre muitas das mega
producOes estrangeiras, fatalmente destinadas a peregrinação inter
nacional. Em 1999 conseguiu juntar nornes corn obras tao signifi
cativos corno os de Bob Wilson e Peter Stein. Mas já foi possIvel
perceber os riscos que comporta o ritrno de tal ernpresa. Veja-se a
participação de Bob Wilson, ern 2001, autor que tern andado ern
fase redundante. Nas voltas ao circo internacional, B. Wilson des
curou os porrnenores da rnontagern do espectaculo, justarnente
quando o seu ültimo teatro não sobrevive an fascInio arrnadilhado
da técnica. Contudo, a qualidade dos participantes e a profIciencia
rnediatica posta na divulgaco do festival, fizeram do PONTI urn
tremendo sucesso de püblico. 0 PONTI partiu de uma escala dife
rente dos outros festivais, corn a vantagem de urn suporte a altura
do ünico Teatro Nacional que verdadeirarnenre tivernos nos óltirnos
anos. 0 PONTI mantém apenas a periodicidade corno marca der
radeira da mitologia amiga do festival ateniense.
Vern a propósito lernbrar que ate a sazonalidade e hoje urn cri
terio sern lugar ern cidades corno Londres, Nova Iorque ou Berlirn.
A indüstria do turisrno fez destas cidades urn festival perrnanenre. 0
repertório consiste maioritariarnente em rnusicais, para urn publico
que pode set japonês, arnericano ou português. Se Londres tern Cats
Chicago, Berlim teve urn Shakespeare and Rock & RolL Quanto a
Nova Iorque, a Broadway rnantérn o débito adequado a clientela do
costume. Trata-se de teatro-espectaculo para a sociedade do espectá
cub, tao universal quanto a World Music, feito a rnedida do gosto
desse püblico inesgotável e afluente que habita a Aldeia Global.
Que futuro nos reservarn, pois, o festival e o teatro? Nurna série
intitulada Predictions, a editora Phoenix convidou diferentes perso
nalidades a anteciparem o futuro das respectivas areas. Coube a
Benedict Nightingale, urn crftico teatral experiente, reflectir sobre
a luz da experiéncia inglesa e de uma
os descinos do palco. Fe-b
TEATRALIDADES
111
crença pessoal. 0 teatro possuiria algo que as dernais formas do
espectaculo pos-rnoderno desprezam: fidelidade a urn radical dis
cursivo e dialogico, traduzido nurn cornpromisso corn a textuali
dade prévia (Nightingale, 1998). Nightingale sustenta que os espa
ços do teatro do flituro serão progressivamente mais Intimos, rnais
informais e rnais pequenos. Como e born de vet, estamos perante
urn conjunro de prernoniçöes excessivarnente optimistas. Fosse o
enunciado urna descriçao exacta da realidade, o campo do teatro
estaria a salvo da caniba]izaçao pelo multimedia ou pelo realismo
televisivo.
Os póblicos tern crescido moderadamente, rnas não é certo que
a generalizacao corrente do regime do festival e do teatro-espectá
cub venha a sintonizar corn o frequentador dos espacos Intirnos.
A rnultiplicacao dos festivais integra-se antes numa logica de acele
ração informativa e de diversificaçao do gosto
. Os festivais explo
23
ram, fmnalmente, as novas condiçoes e oportunidades facultadas por
urna polItica cultural que nos anos noventa se reforçou como acção
dirigida. Neste contexto, o festival permanece dividido entre a
ampliflcacao da festa conternporânea e, na meihor das hipóteses, o
marketing da boa consciência tearral, referido pelo editor da Primer
Acto.
23
Nun estudo recente, Joao Teixeira Lopes referia-se a circularidade do
publico que frequenta os eventos cuiturais da cidade do Porto e a co-existência de
inümeras práticas e habitus culturais (ci Lopes, 2000).
8
A ARTE DAS IMITAcOEs
A condiçao do actor
Perdern-se no tempo as origens do preconceito social contra o
teatro e, muito em particular, contra o actor de teatro. Tespis, essa
personagem a quern a histOria do espectaculo atribuiu lugar prirno
génito na famIlia dos actores, terá sofrido já a incompreensio de
Solon, que o acusava de mentir ao representar a pessoa de outrem.
As irnitaçöes do palco foram tambérn urn obstaculo ontologico para
as utopias de Platao. Na cidade mais perfeita do que tudoo, pro
posta pelo autor d’A Repáblica, a exclusão de toda a <<poesia de carác
ter mimético’> inclula igualmente a recusa de urn lugar na polis para
o ilusionismo perverso dos actores. Na verdade, estes não irnitariam
mais do que a Ideia aparente e, nessa qualidade, apenas podiam aspi
rar a produzir <mediocridades>> (603b). Anda por aqui urna atitude
de reserva e negacão perante urn certo fantasrnatico associado aos
actores, o qual alimentou seculos de preconceito e esconjuração.
Entre a razão secular e a crença religiosa, a sobrevivéncia histó
rica deste ostracisrno face ao actor e a arte teatral Ficaria a dever-se a
rnotivos de toda a espécie. Herege, malfeitor, depravado ou crirni
noso, o actor foi rernetido aos estados rnais severos da exclusao
social. Na Antiguidade, na Idade Media, durante a Contra-reforma,
nas alusöes mundanas em que o seculo XIX foi prOdigo ou ainda no
atavisrno vigilante das ditaduras rnodernas, o actor so ocasional
mente encontrou urn lugar pacificado no concerto das naçôes. E
toda esta historia seria ainda mais negra se contada no feminino,
apesar de neste ponto o palco levar vantagem na consagracão de
114
FERNANDO MATOS OIJVEJRA
alguns imperativos dernocráticos. Em 1788, ao escrever sobre uns
Romanos que representavam papéis femininos, J. Wolfgang Goethe
ainda via no travestismo em palco urna dupla virória da arte sobre a
natureza, uma afirmacao prodigiosa de técnica e despersonalizaçao.
A benevoléncia do püblico anónirno e as muitas formas de
patrocinio de que o teatro historicamente beneuIciou forarn quase
sempre um tributo pago para satisfaçao hidica. Houve mornentos,
contudo, em que o teatro perrnitiu instantes de auténtica celebraçao
civica, e outros em que sintonizou corn urn largo espectro social.
Entre a aceitaçäo e a reserva, o aplauso e a crItica, foram os actores
de teatro quern rnais esperou para vet reconhecidos alguns direitos
elementares de cidadania. Ainda hoje, a rnediatizaçao e a progressiva
institucionalização das acrividades teatrais iludern o que continua a
set urna proulssao sujeita aos acasos politicos do capital e a liberali
dade casuIstica dos dernais agentes que directa ou indirectamente
controlarn a economia intermitente do mundo das artes.
o Paradoxo de Djderot
Ora, nesta hisrória a prero e branco, o Paradoxo sobre a Actor
ocupa urn lugar de relevo. 0 texto de Denis Diderot nasce num
contexto especlilco e coma-se entre os mais polémicos escritos sobre
as artes do espectáculo. A forma dialogada do ensaio, entre urn Pri
meiro e urn Segundo interlocutores, segue a veiha tradiçao do dia
logo filosofico, rnas o próprio mirnetismo da opção acaba pot vir
encontro da questão central que ocupa os dois intervenientes: a de
saber quais os atributos do born actor. Urn tal propósito levari o
autor a questionar a natureza da representacão em teatro e a inter
rogar-se tarnbem sobre os universais da re-presentação nas artes em
geral. Talvez possarnos corneçar pot lembrar aqui um episOdio
antigo, contado por Francesco Riccoboni, num Livro inritulado L’art
du theatre (Paris, 1750). Diderot té-lo-a certamente lido, antes da
redacçao do Paradoxo. 0 assunto e sério, pois versa urna morre ern
cena. Consta que na Antiguidade, ao representar o papel de Ores
tes. certo actor atingiu uma tai fória ern palco que rnatou literal-
TEATRALIDADES
115
mente urn escravo que por acaso atravessava o estrado. Este infeliz
sucesso serve a F Riccoboni para nos fazer algurnas perguntas perti
nentes sobre as emoçöes em palco. Por que matou o actor precisa
mente o escravo e não urn dos seus cornpanheiros de ofIcio na peça
que estava a ser representada? Se a fória era verdadeira, absoluta,
como pode ele escolher o escravo? A conclusao e obvia: a vida de urn
escravo não tinha nesse ternpo mais valor do que qualquer urna das
nossas modernas próteses dornesticas. Se isto é verdadeiro, como
parece evidente, então a tese ernocionalista, longamente defendida
corno a explicaçao correcta para o acto da interpretação teatral, não
se confirrnaria integralrnente. La no fundo, o actor perrnaneceria
acordado para o mundo extra-teatral. So esta consciência larvar con
denou a rnorte o escravo irnprevidente e salvou a pele de urn outro
actor.
0 texto de Diderot move-se neste terreno argurnentativo, mas
fa-lo ainda no arnbito de urna acesa discussao que os filOsofos ilu
ministas travararn a propOsito da pretensa utilidade do teatro na
sociedade. A cena das Luzes apenas admitia duas rnodalidades de
utilizaçao da maquinaria espectacular, fosse corn vista a rnorigeração
dos costumes através do exercIcio da pedagogia cIvica ou a satisfaçao
daquele impulso hidico que o born cidadao deveria canalizar corn a
decencia possIvel. Ha, pois, que recordar brevernente os terrnos
dessa discussao, lugar oride se inscrevem as posiçOes do Paradoxo.
A polernica atinge proporcOes agigantadas quando d’Alernbert
publica o artigo sobre a cidade de Genebra, no sétirno volume da
Encyclopedie (1757). Alérn das observaçoes sobre a cidade e os seus
habitos religiosos, d’Alernbert critica a proibicao oficial do teatro, a
auséncia de uma companhia residente e a consequente interdiçao da
urbe a presenca dos actores. Corn esta exclusao, segundo o autor,
descurava-se um instrurnento de elevado potencial cIvico, mistifi
cando as culpas que o prOprio rneio social tinha na saóde moral do
rnundo do teatro. 0 artigo provoca urna reacção violenta em Jean
Jacques Rousseau, na altura a viver na cidade. 0 preceptor de Emile
via na acusação de d’Alernbert sobretudo o dedo perfido de Voltaire,
mas veria tambem avolurnar-se corn ela o espectro dos divertirnen
tos degradantes vindos de Paris. A resposta surge em 1758, sob a
116
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
forma de urna extensa Letzre a M. DAlemben sur son article Genève.
Genebra aparece-nos al como urna reencarnação espartana e regres
siva d’A Repüblica platónica. Os artistas quase so indiciam a cor
rupcão e a luxüria a que o Discours sur It’s sciences et les artsjá os asso
ciava. Favoravel a urna Esparta mitica e depurada, Rousseau marcha
sern perdao contra a expansão daquele a!ivertissement que urn pouco
depois Paris haveria de alirnentar ao ritmo do cancan.
A bondade e a sinceridade naturais do hornern teriarn sido der
rotadas pela dissimulaçao dos seculos que este leva de sociedade.
Ora, para Rousseau, o teatro radicaliza precisamente a dissirnulaçao
que corrói o ser social, devendo por isso set liminarrnente rejeitado.
Os argurnentos antiteatrais em pouco diferern dos que, tins cern
anos antes, outros autores tinharn aduzido, ou sequer dos que forarn
adiantados por Platao e pela tradicao escolastica cristã. Contudo, ao
reier toda esta tradiçao textual, o critico Jonas Barish distingue em
Rousseau a presenca de uma retórica cuja eloquência seculariza a
rejeição teologica, como jamais havia side feiw ace encão. Rousseau
não se ocupa da afronta ao divino, mas da própria inutilidade do
teatro para o homern comurn ou para o ser hurnano (Barish,
1985:260). Juntamente corn o seu ensaio De l’imitation thedtrale, a
carta a d’Alernbert repôe na agenda intelectual o libelo contra as
imitaçOes. Como divertimento, seria preferIvel adoptarmos a linha
gem das fesras populates ou dos combates ernie gladiadores, pois o
sangue seria nestes bern rnais verdadeiro. Por outro lado, Rousseau
menoriza a capacidade pedagOgica do teatro em termos definitivos.
As imaginaçOes do palco pouco poderiam perante os factos concre
tes da vida de cada urn dos espectadores. Se as lagrirnas dos actores
näo são reais, seria inaceitavel que os espectadores as deixassern cot
rer perante eventos fantasistas.
0 texto de Rousseau suscitou forte reacção no mundo intelec
tual da altura, rnerecendo resposta de figuras tao ilustres corno
Marmontel, d’Alernbert e Dancourt, entre outros. Em 1769, o
Paradoxo de Diderot responde em primeira instância a este debate
ternpestivo. Historicamente, o sirnples facto de o actor ser o seu
centro argurnentativo constitui novidade. 0 Paradoxo e urn dos
primeiros rextos modernos a trabaihar para a dignifIcacao da arte
TEATRALIDADES
117
do teatro e para a apreciação social do papel do actor.
Neste
a
a
institucionalização%que
profissionalizaçao e
a modernidade vinha
aspecto, ele vem responder positivarnente, no carnpo das artes,
prornovendo nos mais diferentes sectores da Europa de Setecentos.
As actividades nascidas no tecido social corneçam a ter de encon
trar urna nova relaçao corn o poder, agora que este se centraliza corn
a ernergência do rnoderno Estado-Naçao. A legislaçao referente as
actividades artIsticas corneça realrnente aqui, quando o universo da
legalidade cIvica sucede ao ascendente religioso e ao preconceito
obscurantista. Dos actores recrutados ciclicarnente entre os cida
daos gregos ao sucesso singular do actor inglés Garrick, no ternpo
de Diderot, vai a diferença entre o amadorisrno e os alvores da pro
fissao, já sob a egide daquele vedetismo que os novos rnecanisrnos
de publicitaçao permitiriam.
Ainda assirn, nos interstIcios do Paradoxo, nota-se a ambigui
dade do juizo autoral sobre a condiçao do actor. Veja-se a reserva nas
palavras enunciadas pelo Prirneiro interlocutor, ao perguntar pelos
rnotivos da escoiha de tal proflssao. A explicaçao é urn docurnento
historico sobre a sociabilidade do actor:
que podera leva-los a calçar socos ou coturnos? Urna educacao
defeituosa, a miséria e a libertinagem. 0 teatro é urn recurso, nunca uma
escoiha. Nunca ninguérn se fez actor por gosto da virtude, por desejo de
ser ütil a sociedade e servir os pais e a farnilia, por nenhurn dos motivos
honestos que poderiarn levar urn espIrito recto, urn coração quenre, uma
airna sensivel a tao bela profissao.>> (Diderot, 1993:68)
Este era o estado de coisas no presente do discurso. 0 que con
vérn sublinhar no texto é a novidade da beleza>’ associada a ((profis
são)> que despontava. A ideia do <teatro corno recurso, de urn tea
tro corno suplernento da sopa dos pobres, era urna constatação
natural nurna profissao que ha rnuito recrutava entre os rnarginali
zados. Ern tais condiçoes, os actores jamais se livrariam dos vIcios de
forrnaçao, pois se acaso o actor fosse pessoa de bern e honrada a sua
profissão>, corno declara ainda o Prirneiro, talvez ate ele próprio
tivesse
escolhido de outro rnodo na
sua juventude: 4overn, eu pro-
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
118
prio hesitava entre a Sorbonne e a Comedie. No Inverno, na mais
rigorosa das estaçOes, Ia recitar em voz alta os papéis de Moliere e
Corneille nos caminhos solitarios do jardirn do Luxemburgon
(ia!em:69).
0 Paradoxo surge a par deste aprofundamento da consciência
oficinal do actor e culmina toda uma literatura que então se multi
plicava. Vejamos, em registo telegrafico, alguns factos que são a sua
pré-historia. Luigi Riccoboni havia incluldo, nurn livro publicado
em 1738, urn capIrulo intitulado <<Pensées sur Ia declamation>>.
o sen fllho, o ja referido Francesco Riccoboni, antecipa algumas das
teses desenvolvidas no Paracloxo, em L’art dii thédtre. Saint-Albine
torna páblico urn extenso tratado sobre a arte do actor (Le comedien,
1749). De todos, a deriva internacional deste tiltimo leva-lo-ia as
mãos de Dideror edt G. E. Lessing. Corn efeito, o original de Saint
Albine e traduzido livremente para ingles, pot John Hill (The Actor,
1750), e de volta a lingua francesa, corn redobrada liberalidade, por
acteurs angtais, 1769). Instado a
AntOnio Sticorti (Garrick ou
comentar este óltimo texto para a Correspondance littdraire, é corn
ele que Diderot inicia a escrita do Paradoxo, que o ocupará pot
.
24
quase uma decada, ate a ediçao definitiva, já no século seguinte
Ha algo de novo em toda esta literatura: ye-se al que o pensamento
do critico faz uso orientado da sua experiência de espectador e que
parte da observaçao concreta do trabaiho do actor, não ja de urn
quaiquer a priori moral. Clairon, Garrick ou Ekhof, para referir
alguns notáveis, são actores que motivam direcrarnente os escritos
de D. Diderot e de C. E. Lessing.
o Paradoxo é ainda parte de urn exercicio mais geral de racio
nalização do artIstico que ocorre por esta airura. Este discurso for
jado pelos fiLosofos da Luzes levara em breve o norne de Estética e,
24
o prâprio Thderot dl conta desca licerarura no Paradoxo. Julga ce-la apro
fundado: <Dc resto, o problema que tenho estado aprofundar foi outrora abor
dado entre Rérnond de Sainte-Albine, urn literato medIocre, e Riccoboni, urn
grande actor. 0 literato defendia a causa da sensibilidade, o actor defendia a
minha causa. Eu ignorava este episodio que so recentemente me chegou ao conhe
cimenro (idem:82).
TEATRALIDADES
119
a custa de A.
Baurngarten e I. Kant, a academia acolhera uma nova
ciência da sensibilidade. A polernica em torno do rexto de Diderot
parte precisarnente do radicalismo posto na racionalizaçao das erno
çöes do actor. Torna-se nele uma posicão forte no que diz respeito
ao debate entre as duas caracterizaçOes que historicarnente vinharn
definindo o desempenho do actor. A ‘tese ernocional’ era urn facto
do senso comurn. A identificaçao do actor corn a sua personagem
tinha servido toda a pletora antiteatrai. A ‘tese racional’, por seu
lado, irnplicava antes urn corte umbilical corn a rnistica identifica
dora e a consequente ernancipação do actor pelo dominio da téc
nica. Na prirneira tradiçao, o condicionarnento fisico é atingido
pela rnirnese espiritual e elecriva. Na segunda, o corpo responde ao
treino cienelfico dos seus musculos, sob o comando determinado do
intelecto.
Da parte dos actores havia urn interesse quase estratégico em
sustentar o pathos rnirnético-ernocional, bern mais prestigiante
aurático. Diderot ja previra a animosidade de ral dessacralizaçao, ao
alertar para as resisténcias que o abandono de urn tao precioso
segredo poderia gerar. A posse dele era a posse de urn conheci
mento identitario. Dal a desconfiança e o choque que a leitura do
Faraa’oxo suscitou em grandes nomes da certa, corno Sara Bernhardt.
A explicacao que esta grande actriz dá para justifIcar a sua recusa em
representar CorneiHe é sintornática de zal divergéncia, colocando-a,
apesar do equiibrio das suas posiçöes, ao lado dos ernocionalistas.
Aos seus olhos, Corneille tinha o defeito de ter passado o coraçäo
das rnulheres do peito para a cabeça. Bernhardt preferia-o rnenos
racional, mais sensivel, portanto. Vejarnos corno ela reivindica o
ferninino:
A razão C simples: a rneu ver, Corneille, o sublime Corneille, não
sabe fazer falar a muiher. Nenhuma das suas herolnas (excepçio feita a
Psyche) e na verdade urna muiher. Mo falam, perorarn; não tern
çio no peito, rnas na cabeça. 0 seu arnor C subtil e complicado e, sobre
rudo, egâtico.’> (Bernhardt, 1994:87)
120
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
A negacão da actriz é rnais urn facto do gosto do que uma
rnanifescaçao fria e eficaz de profissionalisrno, como aconseiha
.
25
Diderot
Ser natural
0 Paradaxe, e nosso conternporâneo porque compreende a
61 psicologico
irnportância de urn dornInio récnico do corpo. 0 per
desenhado pelo Prirneiro interlocutor é clarissirno. Partindo do
principio basico de que o actor anao é a personagern>>, diz-nos ainda
que este deveria possuir penetracão e nenhuma sensibilidade”, alérn
de cnterprerar por reflexão’>. Sern estar a ((mercê do diafragrna>’,
corno 0 CStO aqueles que representam apenas corn 0 coração,
rnesmo as [ágrirnas ihes “descem do cerebro’>. Este é urn verdadeiro
heroi sern carácter, o quai deveria usar da experiência para aumnar o
corpo corno convérn. A noçäo do actor corno <rnaravilhoso fanto
che>’ antecipa a soberania artistica que o célebre texto de Heinrich
Kleist viria a fundar algurnas decadas depois (Sobre o Teatro de
Marionetas, 1810). Diderot avança aqui já para urna rnoderna bio
tecnia do actor, capaz de o adaptar as exigéncias de qualquer papel.
Legitima igualrnente as rnetodologias que rnais tarde se desenvolve
rao na area da representaçäo, em escolas de actores cia Rássia e dos
Estados Unidos. Representar e sobretudo urn aprendizado técnico
que exige a mesma distanciaçao que Bertolt Brecht pedira a Helene
Weigel e ao Berliner Ensemble. Corno técnica e autodorninio, o
born actor consegue-se depois de urn trabaiho insistente nos ensaios,
após urna Jonga experiéncia>>. A excepcionalidade do grande actor
25 Posse sempre assim opinativa, Sara Bernhardt näo teria por certo gozado
favores
de várias geraçöes, nem a album de fotografias que a dinastia Nadar ihe
os
Quando
se refere ao papel da sensibilidade, não deixa de Se aproximar
ofereccu.
convenientemente de Diderot: A naruralidade no carece de urn verdadeiro
poder do anista para eneriorizar a sua personaiidade. E preciso de algurn modo
que Se esqueça de si rnesmo, que se desvbta das suas pràprias particularidades para
re-vestir as do seu papel” (idem:70).
TEATRALIDADES
e uma consequência de tudo isco.
121
Quando o consegue, rivaliza corn
o poeta:
<Urn grande actor nâo é urn pianoforte, nern urna harpa, nern urn cia
vicordio, nem urn violino, nern urn violoncelo; não ha nenhurna afinaçao que
ihe seja própria; rnas adquire a afInaçao e o torn que convérn a sua partitura,
e a todas sabe adaptar-se. Tenho urna elevada ideia do talento de urn grande
actor: esse hornern é raro, tao raro e talvez rnaior do que o poen. (ident65)
Mas não se julgue que a sensibilidade não tern lugar no actor
proposto pot Diderot. Tern-no, corno o viria a ter no teatro brech
tiano: <cE que ser sensIvel é urna coisa, e sentir é outra. A primeira é
urna questão de airna, a outra urna questâo de discernirnentoo
(idem:89). Admita-se que ha aqui rnais retórica do que paradoxo.
Sendo importante na representaçâo, a sensibilidade não é contudo a
(<base)> do carácter do actor. Dotado de boa rnernória, de cabeça fria
e de urn belo corpo, o actor emerge corno urna poderosa rnáquina
de irnitaçOes, apta para distinguir perfeitamente a sensibilidade
“verdadeira e a representadan. So assirn o actor se assurniria corno o
<<pregador laico>> dos tempos modernos e o teatro poderia aspirar a
ser a <arrna cortanten do génio humano.
Ha, finairnente, urn rnimetisrno aristotelico que sobrevive
neste J’aradoxo. Repare-se que o realrnente paradoxal se centra tanto
na ideia de um actor capaz de ser toda a gente e ninguérn ao mesmo
tempo, como na arnbiguidade estatutária que caracteriza a reversibi
lidade existente entre a voz do Primeiro interlocutor e a intromissão
autoral. Lacoue-Labarthe já se referiu sagazrnente a esta enunciaçäo
do paradoxo corno urn <paradoxo da enunciação” (Lacoue-Labar
the, 1980:270). Ao posicionar o actor acirna das paixôes naturais,
Diderot reinveste naquele aristotelismo que via a arte corno um
suplernento das irnperfeicoes da natureza. A noção de <modelo
ideal>> aparece no Paradoxo repetidas vezes, corno urna instância a
que sO o artIstico tern acesso. Leia-se o seguinte:
<Reflicta por urn rnornento naquilo que ern teatro se chama ser natu
raL Será rnostrar as coisas corno säo na fiatureza? Dc forrna nenhuma.
122
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
Neste sentido, o natural apenas seria o vulgar. 0 que será, entäo o natural
no palco? E a conformidade dos acres, dos discursos, da figura, da voz, do
movirnento, do gesto, corn urn rnodelo ideal irnaginado pelo poeta e rnut
tas vezes exagerado pelo actor.’ (idem:35)
Set natural irnplica ainda, agora de urn modo rnais definitivo,
certa historicidade estilIsrica. A convicção de ter feiro corn Fib natu
ret urn drama entre a comedia e a tragedia, espécie de passagem
paradigrnatica do ((coup du théatreo ao ((tableau),, juntamente corn
os elogios a Richardson e a preferéncia pela sua dornesticidade bur
guesa, são afinal marcas historicas de urn novo gdnero sdrio que viria
accualizar estilisricamente o amigo preceito aristotélico da verosimi
lhança. Set natural, na época do dialogo inscrito no Paradoxo, não
era portanto o rnesrno que set natural na época do ve1hon Esquilo,
segundo ((urn protocolo corn trés md anos’, quando a palavra era
pomposan e o gesto exagerado (idem:33-34).
A natureza apenas da ao actor maiores ou rnenores qualidades
fIsicas. Tudo o resto e efeito do estudo e do treino. A ant reclama
igualrnente a imaginacão e a natureza, ernbora esra ijltirna não asse
gure por si so a felicidade das imitaçöes. Logo, o tearro define-se no
Parazioxo corno o protétipo da irnitação artIstica, corno bern assina
). 0 teatro exibe rnaterialrnente as
4
lou Lacoue-Labarthe (op. cit.:27
evidéncias do suplernento mirnético que toda a grande arte apöe ao
rnerarnente natural. Daqui vai urn passo a tópica desencadeada pelo
aforismo de Novalis, segundo o qual nada seria mais verdadeiro do
que o artIstico. Na verdade, anada se passa no palco corno na naru
rezan, dji-nos a lerra de Dideror, que haveria de pot o norne de
((genio ao afortunado que tivesse esse dorn. Por consequéncia, o
born actor não se refugia nos acasos da vontade, nern arrasta para a
cena as lagrirnas que deveras sente. 0 actor a sério teria de ser sirn
plesrnente genial, porque uaquzlo que a própria paixão não conse
guiu, executa-o a paixao bern irnicada>’, acrescenta. A arte eleva-se
acima da vida as imiraçôes da cena acima da prOpria natureza, o
actor acima do homem cornurn.
Sern irniraçöes, sern actores, sern uma casa para o teatro, a
Genebra idealizada por Rousseau seria certarnente urna cidade mais
TEATRALIDADES
123
pobre. Rousseau não acreditava que o teatro pudesse purgar a ma
consciência da sociedade ou sequer reforçar 0 sentimento nacional,
como afirmavarn os seus defensores. Aparenternente, a Historia deu
razão a Diderot, porque a sociedade das naçöes que entao nascia
pela Europa näo 56 trazia consigo a cidade dos actores, como ihes
oferecia urn espaco póblico nobilitador. A instituição de urn edificio
consagrado ao Teatro Nacional vinha secularizar os riruais identitá
rios oferecidos pela religiosidade e pela aristocracia do Amigo
Regirne. Paradoxal (ou sintomático?) e tambem o facto de 0 nosso
Teatro Nacional ter sido desenhado por urn arquitecto estrangeiro.
o ((agr:ao”, corno então charnavarn os criticos a obra que nascia corn
os pés metidos na irnensa água do Tejo, cresceu tao lentarnente
corno a <be1a profissaon entre os nossos actores, mais dados as arti
culaçoes do diafragrna do que as abstracçoes da cabeça.
9
NO PRINCIPIO EPA 0 JOGO
logo c cultura
corn esta frase lapi
<O jogo e mais amigo do que a cultura>
dar se inicia Homo Ludens, urn conhecido ensaio de Johan Huizinga,
publicado originairnente em 1938. A afirrnaçao suscita comentário,
pois a escala das precedencias parece contradizer o adepto das rnui
tas coisas que neste inIcio de milenio supomos parte do jogo. Hui
zinga explica que a civilizaçao humana não ihe acrescentou nada de
essencial. De certo rnodo, este seria ja absoluto nas brincadeiras dos
anirnais na floresta, por três razöes complernentares: a) os bichos res
peitarn a regra que deterrnina o rnirnetisrno inconsequente da den
tada, b) gozam de urn prazer intenso, c) e rnovem-se por urna von
tade que ultrapassa o puro instinto de conservação. E certo que
Huizinga detecta nos jogos humanos urna rnaior complexidade do
que na diversao dos anirnais, mas o facto de coincidirern nos seus
aspectos nucleares obriga-nos a reconhecer no lódico a permanéncia
de urn elo prirnário que, por isso mesrno, reenvia o jogo para urn
espaco anterior as distinçoes culturais. Este jogo instintivo e cada
vez rnais estranho ao rnundo pos-industrial. Ern 1938, o historiador
holandés ja o distinguia clararnente da sisternatização e da disciplina
dos seus contemporâneos, acentuando o espIrito agonIstico que se
vivia nas vésperas da Segunda Guerra (cf. Huizinga, 1988:3 15).
Nesta passagern para o terceiro milénio, o destino do jogo de
futebol enfatiza de um rnodo singular a evoluçao geral do universo
performativo. 0 futebol tem sido alvo de rnetaforizaçoes teatrais
que o associarn a espectacularizacao da cultura conternporânea. No
126
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
da cena, esta deriva tern sustentado o sucesso póblico
de iniciativas contIguas a visualidade do espectaculo. No case do
futebol, o jogo de mais vasta expressâo em toda a histéria da huma
piano estrito
nidade, estaremos perante urn caso de transição do ludismo genuino
de Huizinga para a cornercializaçao rnediatiiada do lazer. A sua
os elementos
pré e pos-culturais do jogo, e aferir o impeto transformador que cer
ros facros da cuirura conternporânea podem rer seine os jogos.
o futeboi parricipa num processo geral de produçao de ‘presenca’,
segurarnente destinado a indernnizar desportivarnente as mediaçoes
conremporâneas. Mas o aparato técnico que a produçao desta
mesma ‘presença’ requer coma hoje muito ténue a linha que divide
o jogo do comércio do jogo.
No seu rnomento ideal, o ternpo absoluto do jogo distingue-se
da temporalidade infindavei do histOrico. Esse devir autêntico con
feriu-lhe uma <durée muiro própria (ia!em:29). 0 tempo branco do
jogo aparece-nos despojado da moldura que rege o quotidiano.
A parricipaçao Judica de cada sujeiro representou, por isso, urn acto
de liberdade, a margem das obrigacoes vitais. Ao suspender o quo
tidiano, o jogo congeia a referenciaiidade familiar e disponibiliza o
jogador para a alucinação mimética: o jogador inteirarnente sedu
zido tende a viver o tempo como constructo psico-cronologico. No
contexto do furebol, é muito frequente, sobretudo nos instantes de
grande investimento tensional, o adepto-jogador ser surpreendido
peio firn abrupro do jogo. Mas é justamente por ter urn final que eie
pode aspirar a ser urna totalidade acabada.
A perfeicao auro-suficiente do jogo justifica a sua associação
eventual ao campo da arte. 0 carácter gratuito faz deie um ente corn
caracterjsticas kantianas. Nos rnomentos auténticos, essa ‘finalidade
sern Am’ coincidiu corn a fruiçao desinteressada do estético. Em
Huizinga, a ordern superior do jogo pode ainda uaspirar” a catego
na do beio:
deriva permite confrontar, nurn terriiorio especIfico,
‘<AS expressOes que podernos usar para designar os elementos do jego
pertencern em grande pane a esfera do estético e rarnbém servern para isa
duzirmos as irnpressôes de beleza: tensäo, equiifbrio, oscilaçao, alternan
TEATRAL[DADES
127
cia, contraste, variaçio, Iigacao e desfecho, soLuçao. 0 jogo compromete e
liberta. Ele absorve. Ele cativa, duo de outro modo, ne seduzj’ (id.em:30)
Da raposa
a bola
o arbItrio da cultura, sendo responsavel pela restriçâo instintiva
do jogo, foi contudo a instâricia que marcou decisivamente a posreri
dade hidica do futebol. Em Jiomo Ludens, recorderno-lo, o autor pro
punha-se tratar da funçao social do jogo e analisar a sua evoluçao nas
sociedades hurnanas. Descreve-o com grande detaihe nas sociedades
prirnirivas, para terminar com uma referência, notavelmente prerno
nitória, as alteraçoes profundas que na época os jogos estavarn a sofrer.
Escrevia pelo ano de 1938, demasiado próximo da usura a que o
Nacional-Socialismo submeteu o território desportivo, já então niti
dai-nente a carninho do desporto-espectaculo.
o desporto moderno e, pois, uma criança de tenra idade. En
quanto forma institucionalizada do jogo, o desporto nasceu corn a Re
voluçao Industrial e o Estado-naçao. Por isso inicia a invasão do planeta
a partir da Inglaterra. Ninguérn descreveu os mecanismos deste pro
cesso de institucionalizaçao, a parrir do jogo de futebol, de urn modo
tao convincente como Norbert Elias (cf. Elias, 1992). juntamente com
O discipulo Eric Dunning, Elias eleva o jogo da bola a condiçao de
objecto cientifico, abrindo-Ihe desde então as portas da academia.
A origern inglesa do desporto é um facto da cultura geral. E
tambern sabido que a sua generalizaçao corno habitus cultural se
ficou a dever as profundas transformaçoes sociais ocorridas corn a
industrializaçao. Mas a Inglaterra, um pouco antes de set o berço da
inddstria, ja pelos idos do sec. XVIII, detinha uma estruturação do
poder que terá facilitado o aparecirnento e a consolidaçao de passa
tempos com as caracteristicas do desporto moderno. Estas activida
des, praticadas pelas classes altas, teräo surgido corn a pacificacao
progressiva da sociedade e corn o fin dos ciclos de violência
.
26
-
26
martha,
Instaurado o parlamentarismo, estando a democratizaçao funcionaI em
ahriu-se espaço para uma “pequena nobreza autogovernada” a quem era
128
FERNANDO &L4TOS OLIVEIRA
Livre-associaçao, pacificaçao, ligaçao permanence da cidade ao
campo, autonomia econórnica; tudo se conjugou para que urna con
frontaçao fIsica de tipo não-violento pudesse ser a medida exacta
para a sublirnaçao da agressividade natural e da repressâo libidinal
pedida pelo progresso da civilidade. Corn a constituição de clubes e
associaçöes, a sociedade do lazer acentua a codificaçao dos jogos e
aproxima-os do seu padrao sensIvel. 0 desporto estava agora em
condiçOes de dar os prirneiros passos nas Ilbas Britânicas, ames de
partir para a missäo redentora pelo mundo barbaro do Sul.
N. Elias defende que a caça a raposa o antepassado directo do
moderno Integrou-a no todo social e analisou a quali
.
desporto 27
dade das configuracOesn (relaçoes de interdependencia entre os
individuos) que estiveram na base do processo de fixacao de regras
aims as do futuro desporto. 0 sociologo sustenta que a definiçao das
regras se efectua empiricamente corn a evoluçao da caça a raposa.
Esta era apenas praricada por cavalheiros e foi-se especializando
através de urn nürnero cada vez rnais elevado de restriçöes especifi
cas (op. cit.:223-256). Anteriormente, o processo da caça visava uni
camente o prazer fInal: marar e corner. Contudo, a morte da raposa
sofre urna ‘criminalizaçao’ progressiva, a ponto de se tornar urn acto
socialmente reprovavel. Em vez de se precipitar sobre a raposa, o
cavaleiro passa então a expandir o momento de prazer pot todo o
periodo da caçada. Nu.ma ilirirna fase, o cavaleiro delega a morte nos
des; so estes poderao matar a raposa e, ainda assim, sO aquela que
perseguiram em primeiro lugar. Elias conclui que se assistiu neste
processo ao <des1ocarnento do prazer experirnentado em praticar a
violência para o prazer de vet a violéncia cumprir-se> (idem:241).
não
permitida a iniciativa que o centralismo autocrático de paises como a Franca
.
n
65)
(i&
O
permitia 6
27 polemica em torno dos especraculos tauromáquicos é passive! de 5cr inte
grada no esquema sócio-genético proposto per Elias. 0 confute resulta de urn con
fronto entre diversas modalidades de acuhuração. Esta dinâmica exp!ica a pressão
via
que o pensamenro ecolégico vem exercendo sobre a esfera legal. Dc facto, e per
lde
aciona
Civiliz
Processo
o
que
e*
.sensibi1idad
’
tie
e
uraçao
cia a]teraçáo de config
Elias se tern consagrado na lei (cE Elias, 1989).
TEATRALIDADES
129
Tal facto constiruiria urn avanço civilizacional. pois traduziria urna
reduçao no lirniar da sensibilidade.
A caça a raposa revela urn conjunto de traços que o desporto
preservaria: major autocontrole, urn codigo comportamental está
vel, vigilancia e doscarnento crescentes da violência. Erarn valores
integráveis nurna sociedade onde crescia a monopolizaçao da força,
contrariarnente ao que Sc verificara ern manifestaçoes lOdicas prece
dentes, corno no uso da bola na Inglaterra rnedieval. Deste modo,
em fmnais do seculo XVIII, a caça a raposa aproxirna-se de exercIcio
de prazer, motivado por uma confrontaçao rnirnética que oferecia
uma escapatória de grande consumo libidinal, francamente aceitavel
para a sociedade e para o ripo de consciência que o individuo
moderno desenvolvia. Estarnos aqui num terreno vizinho ao da
catarse aristotelica. a qual se poderia emender corno uma teoria das
virtualidades psico-sociais do lazer, sendo a mirnese do palco solici
tada pela polis, a bern da rnesma pacificaçao.
0 futebol-desporto que conhecemos e descendenre tardio da
aristocracia. 0 flaturo garantido dos filhos-de-farnilia favoreceu a
progresslo das actividades fIsicas nos prirneiros clubes dos colegios
ingleses. E neste rneio que o futebol se desenvolve. A cornpetiçäo
corneça por decorrer dentro de urn espIrito de fair-psay, a
propriamente aristocrata do jogo. Playing fair ligava bern corn
desinteresse posto no jogo e corn urn quadro de regras suficiente
rnente equilibrado e flexIvel. As regras do futebol rnodcrno forarn
se defrnindo por todo esse século XIX, celebrando corn sangue azul
o ascendente sirnbolico e a lenra dernocratizaçao do jogo. 0 ritual
do pontape-de-salda é praticarnente o mesrno desde essa altura, mas
a fixaçao das regras nem sempre foi pacifica. A interdiçao da cane
lada, por excrnplo, foi urn dos seus episódios rnais significativos. Em
meados do século XIX, a discussao em torno do assunto pratica
rnente originou a divisao ernie o futebol e o ragucbi
a negocia
polemizava-se
das
sempre
regras
cáo
quc tocava a irnagern de mas
culinidade que o futebol rnantinha desde o inIcio.
—
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
130
Ethos amador
A pressão administrativa sobre o futebol tornou intermitente o
pacto do jogo corn a excepcionalidade do seu mornento constitu
tivo. A historia do futebol moderno demonstra o carácter intermi
tente do lódico, desde logo, pot no-jo apresentar topograficarnente
condicionado ao estadio. Fora deste espaço de alucinaçao arregi
mentada, o adepto vive urna realidade de trabalho e de sujeição.
0 estadio opera segundo o princIpio da transfiguracao do banal, ao
rnodo do rnuseu de arte moderna. No seu interior predorninam as
cores jdentjtirjas do clube. 0 estadio-catedral mantém urna derra
deira vinculaçao tribal, ja que possui o poder extraordinario de
8l Nao é
ocasiona
2
transforruar a mulcidan anónima em irmandade .
al
necessário conhecer cada membro da multidao, que é urn corpo
ünico, para cornpartilhar as emoçöes do jogo. Somente na fória con
tingente do estadio podemos abraçar sern risco excessivo urn desco
nhecido. A soberania rnomentânea da ernoção dispensa a linguagern
das apresentaçöes protocolares, pois no estadio é o grim que liga
directamente ao idolo. No final, a rua restaura a dialogo nurn con
texto de pertenca colecuva: 40] desporto, como o tempo, é urn
assunto que o motorista de taxi pode discutir corn o passageiro nurn
casaco de caxerniran, escrevia Janet Lever, uma socióloga americana
convertida a rnagia do drible brasileiro (cf. Lever, sld). Peregrina-se
ao estadio. 0 adepto conremporâneo lernbra-se disto a distancia. Se
o flitebol ainda fosse o jogo orgânico dos primordios, o estádio
deveria reflecrir direccamente a irnagern da cornunidade, albergando
o jogo num espaço singular, rerritório exterior a moralidade, para
alem do bern e do rnab’ (Huizinga, op. cit.:31).
0 grau de fidelidade e ml que acontece esta fária transitar de pals para
comum o
filbos, coma delegaçao de urn património simbolico. Em Inglaterra é
do seu
cores
das
o
exibiça
a
com
dade
paterni
adepto fazer coincidir o momento da
dnica
ação
autoriz
uma
de
gozar
a
ua
clube an recérn-nascido. 0 estadio contin
da
rermos
Nos
e.
permit
the
näo
cidade
pal-a oferecer an especrador algo que a
r
‘primo
os
vincul
poucos
dos
urn
antropologia geerrziana, o futebol constituiria
açöes
vincul
por
ado
domin
urbano
diais’ a que o adepto pode aspirar no deserto
28
clv’s
TEATPALIDADES
13
No futebol, a restrição da violéncia so ultirnamente vern in
cluindo a linguagern dos adeptos. A linguagern permanece urn born
rneio para a sublirnaçao: reproduz o prazer da raposa, sern conse
quéncias rnortais. Poder-se-ia vet na rribalizacao cia linguagem das
claques urn rnovimento idêntico ao que levou o cavaleiro a pedir a
rnediaçao do cão na morte efectiva da raposa. A linguagern arnplifica
virtualrnente o que no carnpo de futebol tern de respeitar urn con
tram. Este principio parece adequar-se aos protocolos da sensibili
dade contemporânea, a qual tende para a rejeicão absoluta da agres
são fIsica. Apropriada pelo adepto de flitebol, a linguagern dos novos
caçadores manifesta a simbologia guerreira que os clubes rnantêrn
, de forrna emb1cnzdtic leöes, aguias, diabos, enfirn,
29
residualrnente
dragoes. No esrádio, a linguagern pode tarnbern chegar por via do
canto. Ocasionalrnente, a voz rem nos esradios urna realizaçao coral.
Ainda assirn, a dicçao e constancemenre distorcida, produzindo rugi
dos vitals: o ruldo retroactiva a impoténcia do verbal.
Nas origens, o futebol tinha como protagonistas e destinarários
os jogadores. Era o ternpo pleno do arnadorismo. A condiçao de
amador estava ao alcance de qualquer urn. 0 amadorisrno foi o
estado ‘natural’ do desporto. Depois da dernocratizaçao do futebol,
houve urn momento durante o quai este se lirnitou a crescer,
adiando aquela seriedade mortal que Huizinga dizia rnarcar o
perfodo agónico do jogo. Quem teve a felicidade de viver o ethos
amador desse futebol das origens não deixa de o lernbrar corn
rnelancolia. 0 drarnaturgo brasileiro Nelson Rodrigues elevou este
rnornento a escala do mito, irnortalizando-o ern sucessivas crónicas,
primeiro na Manchete Esportiva, mais tarde, n’ 0 Globo. Nessas pági
nas memoráveis, o jogo regressa ocasionairnente a casa. Ele é
upãnico>>, trágico” ou <<bestial>>. A mao que escreve recorda o mo
mento anterior a transição profissional, tempo de uma sensibilidade
29
Juntando a ascensão publica do jogo ao desejo crescente das massas em
prolongar o tempo de caca, o jorrialisrno desportivo assume-se como a áltima ins
tância dilatOria da contemporaneidade. Sendo a excitação urn imperativo do
nosso tempo. o jornalismo desportivo parece garantir a infinitizaçao dos prelimi
flares.
FERNANDO
132
que o entusiasmo de Nelson
pre-historico da ‘canelada’:
MATOS OLIVEIRA
faz deliberadarnente regredir
20
esrado
Ah, Os jogadores! A bola
Corria o ano de 1911. Vejam vocés (...)
Quantas vezes o craque esquece a
tinha uma importância relativa ou nula.
, assassinando canelas, rins,
pelota e sala em frente, ceifando, dizimando
desvirilizado ejá não
térax e baços adversaries? Hoje, o homem está muito
s, 1993:10)
aceita a ferocidade dos veihos tempos.’> (Rodrigue
s mostra-nos que a
A cronistica desportiva de Nelson Rodrigue
hidico sob a forma de
historia do ftnebol acelerou a intermiténcia do
alismo contemporaneo.
uma passagem do amadorismo 20 profission
o relato desta transiçào e sisternaticamente reactivado pelo
incha, urn craque
brasileiro. Nurna das crónicas, escreve sobre Garr
menre corn PeW e
que acompanhou o Brasil em 1958 e 1962, junta
improviso desse
Didi. 0 texto é urn hino ao instintivo, ao festivo e ao
rn o protesto de
futebol. 0 tItulo, <<Garrincha náo pensa>’, e tamb
. Num jogo ernie
urn resistente face a arneaça do racional rnoderno
campo corn urna
Botafogo e Flurninense, Garrincha <‘apareceu em
pensar. Garrin
disposicao vital esrnagadora [...} nunca precisou de
pelo jaw puro e
cha não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto,
re antes, scm
irresistivel do instinto. F, por isso rnesrno, chega semp
o terá a veloci
pre na frente, porque jamais 0 raciocinio do adversari
ocasião escreve sobre
dade genial do seu instinro” (idemX53). Noutra
irnenso do
as vanragens do campo pequeno em relaçao ao betao
sto amigos: a
Maracanã. Desenha a nossa frente a arena antiga: “Insi
criaturas rodo o seu con
distancia desurnaniza os fatos, retira das
s os carninhos
teñdo poético e drarnatico. Ja no campo pequeno, todo
4:9). Neste,
abertos para a ernoção directa e integral” (idem,199
estão
o jogador revela-se em toda a sua ‘animalidade’:
exemplo: vi, em dado
Descobrimos coisas do arco-da-veiha. Por
e. Pendia-Ihe do
momento, que um dos jogadot-es näo suava como gent
a come nos
pescoço uma espécie de gosma, de visco, de espurna elástic
a camisa’, em
cavalos cansados. Nos sempre ouvimos falar em ‘moihar
e é algo de
‘suar a camisa. No Maracana a transpiração mais abundant
TEATRALIDADES
133
remoto, de platdnico. Nas Laranjeiras [o estádio pequeno] é suor mesmo,
grosso e irrefliravel como óleo ou como apavorante espurna Nós percebe
mos o esforço dos jogadores ate pelo olfaton (idem:1O).
0 futebol arnador parece ter durado urn instante. Os tempos
heróicos de Huizinga (e de Nelson Rodrigues) são urna rnemória
longInqua que a evoluçao do jogo reprime. 0 prazer e o desinteresse
postos no jogo prirnogénito deram lugar a cornpetição cega e a luta
pelos resultados. A irnportância do resultado e externa a ordern do
jogo. Ora, o futebol-espectaculo da actualidade orienta-se precisa
mente para a subrnissão progressiva a conringência exterior. 0 pro
prio prazer que o jogador extrai do lüdico reduz-se a uma Iicao tác
tica que nos relvados de Futebol consta de enunciados corno ‘ganhar
o jogo’ ou ‘humildade e espIriro de sacrifIcio’. A notação moralista
deste programa comprornete perversarnente o jogo corn a ética do
trabaiho. A profissionalizacao seria ja previsIvel, pois a mercantiliza
ção do futebol teria necessariamente de conduzir a proletarização
dos seus activos. Mas não era exactamente este o ethos que anirnava
o desporto nascido corn a Revoluçao: uo ethos dos desportos não era
o género de ethos das classes medias operárias ao qua! se aplicarn ter
mos corno ‘moral’ ou ‘mora1idade’ (Bias, op. cir,:247).
A historia do futebol expressa-se no destino singular do drible.
Corn a mediatizaçao televisiva, responsavel pela crescente expro
priacão dos va!ores auténticos do jogo, rnuito do que no estádio era
Intimo da bondade arnadora tern vindo a ser reprimido. Ora, a
racionalidade que enredou a existência rnoderna do futebol aniqui
lou tambérn o drib!e, esse Icone derradeiro do indivIduo total em
jogo. 0 drib!e é a rnarca e a assinatura do sujeito em carnpo. 0 seu
desrino negro vinha sendo anunciado ha rnuito. Pelos anos de 186070, segundo Elias, o drible era ainda urn (celernento fulcra!>> do Rite
bo! e o equilIbrio de tensão dinarnico entre os interesses ern jogo
era ainda articulado a favor dos indivIduos’> (op. .
30 Escrevia
)
4
cit:29
30 A questäo do drible aparece integrada numa cbs oito polaridades
que
Elias e Eric Dunning identificain no jogo de furebol. A polaridade inerente ao
jogo garante-ihe a rnanutenção de urn nivel adequado de tensäo-excitação, clara-
134
FERNANDO MATOS OLIVEERA
em 1966, justamente quando o seu declinio era quase total na Ingla
terra. A eficacja concabilIsrica do futebol moderno interditou as
contingèncias do drible. Sem este gesto, o jogo expressa defIcitaria
mente o individuo. 0 fiituro deste movimento de génio, ao mesmo
tempo supremo e hunijihante, passa pela guerra surda que decorre
ainda ernie o jogo latino e o jogo nordico. 0 ascendente nordico
pode comprar literalmente o drible, para o matar na fonte. Impor
tado como mercadoria, o jogador do Sul sujeita-se a táctica do
None europeu. Já nem o Brasil joga exactamente como nos tempos
do Garrincha imortalizado nas crónicas de Nelson Rodrigues. Note
se que a plateia parece ainda apreciar o drible, mas esta popularidade
ja sé é aparente. Quando o risco que ele pede näo compensa, no
final, o jogador é literalmente castigado por ‘brincar em serviço’.
0 jogo nunca de facto foi tao sério como na actualidade.
A ascendéncia do creinador tern vindo a contribthr para a ocul
tação da magia do craque. Para progredir na economia do jogo, o
treinador aceitou set escravo dos resultados. Os mecodos de treino
sofi-em hoje de uma sobredosagem técnica. Ser treinador ou jogador
é, por isso, uma actividade mais ascética do que nunca. 0 olhar do
espectador é também vitima da interferência sistemática da publici
dade. Esta simula e disputa a própria producao de ‘presença’.
A audiometria manda no tempo e nas regras do jogo, nas cores do
clube e, em ültimo caso, na sobrevivéncia do jogo tal como Pele e
Eusébio o conheceram. A época do virtuosismo acabou no flatebol e
no teatro. Tanto o actor como o jogador tém vindo a ser treinados
para a repetição sem faihas do mesmo papel. Para R. Schechner, este
actor hiper-profissionalizado do teatro mimetiza a reprodutibilidade
da máquina de impressão moderna (Schechner, 1994:172). A repe
tição infailvel do gesto equivale a reproduçio igual do foiheto
volante. Como tal, a reproduçao mecanizada acrofia na casa do tea
tro a ‘presença’ inerente a singularidade performativa. 0 mesmo
sucede no estádio. Razao tinha Nelson Rodrigues em convocar
Freud para o futebol. A alma do jogo está doente.
mente vantajoso para o seu desenvolvimento dinamico e interessante (cf. Elias,
1992:279-297).
10
CENAS DA RUA
o festivo em Maio de 68
Maio de 68 foi tempo de urna teatralidade multiforme. Os
flihos dilectos da sociedade do bern-estar, arduarnente edificada pela
geracão que havia feito a Segunda Guerra, respondiarn a duas ddca
das de lei e de ordem exteriorizando anarquia e protesto. A antro
pologia teatral, medida pelo quadro teórico de Victor Turner, defI
nm estes mornentos de sublevaçao como rnanifestaçoes ‘lirninares’
urn determinado grupo de indivIduos desafia a norrnatividade
social, de acordo corn urna sucessividade que o autor descreve corn
a apareihagem conceptual dos ritos de passagem. 0 escalonamento
ternporal conternplaria três fases principals: separaçio, transição e
. Os acontecirnentos singulares de Maio de 68 per
31
reintegracão
tencern de facto a excepcionalidade lirninar, rnas o ârnago crItico do
evento foi publicarnente colocado na arnbiguidade da reintegracão
‘pos-liminar’: o que rnudou e o que foi reintegrado após Maio de
68? 0 choque violento provocado pelo retorno ao real não deixa de
nos colocar perante outras interrogaçOes prearnbulares. Maio podera
ter sido a imaginacão utópica e criativa de urna transição interrorn
pida, ou rnesrno ter ficado pela erupção separatista, vivida corno
festa destinada a terminar.
—
31 A teorizaçäo do ‘liminar’ levada a cabo por Victor Turner partiu da aná
use dos rims de passagem efectuada por Arnold van Gennep, film livro flinda
cional, exactamente intitulado Rites tie Passage, publicado originalmente em 1908
(cf.Turner, 982).
FERNANDO MATOS OL]VEIRA
136
Revisitar a agitacão cIvica de 68 solicitaria mais do que a prova
material da irnagern. A apropriacão cenica da espacialidade urbana
traduzia uma agenda intelectual que agrupava interesses divergentes,
näo irnediatamente discernIveis na mole humana que por essa altura
aflui as ruas. Estudances, proletariado e intelectualidade cruzam-se
em diversas modalidades representativas. Por esta razão, o testemu
nho vivo surge corno urn suplemento aconselhavel para a aferiçao do
pluralismo participado que a utopia juvenil (sobretudo esta) julgou
poder realizar a partir do asfalto de Paris. Como diria Daniel Cohn
Bendit, em entrevista, Maio <<foi uma espécie de festa>’. Ora, o fes
tivo resiste a efabulaçao hisrorica, tal come Artaud, então redesco
bent e sobejamente rnitificado, se propunha resistir a verborreia
conformada do teatro burgués. A dramacizaçao da consciéncia ceve
em Maio de 68 a ousadia de cruzar na rua o Impeto vitalista do tea
tro da crueldade com a pedagogia historica do teatro epico.
A performatividade dos anos sessenta hiposrasiou a veiha rnetá
.
32
fora do mundo como teatro, celebrizada pot Calderon de Ia Barca
Na conjuntura de Maio, a denóncia ‘ante-liminar’ do conluio entre
o mercado e o mundo Ficou evidenternente cargo das páginas de A
Sociedade do Espectdculo (cf. Debord, 1991). A feira anciga do texto
de Calderón, na qua] o exercIcio da troca era ainda concertado a
dois, sofrera mutaçöes em grande escala. A economia da representa
çäo social tende agora a emancipar-se do sujeito e a troca-lo pela
sirnbolica de urn cornércio mais autoritário:
especializaçao das imagens do mundo encontra-se realizada no
rnundo da imagern autonomizada, onde o rnentiroso rnentiu a si próprio.
o espectáculo em geral, como inversäo concreta da vida, e o movimento
autónomo do não-vivo [...j A linguagem do espectaculo é constituida por
<<A
Neste ciclo de metáforas, Calderón testemunha a arqueologia do espec
taculo global, em dois autos que flxam o comércio entre o tmercado,, e
<mundo: El ran mercash, del ,nundo e El ran teatro dcl mundo. W neles urn
0 autor não elide. Nos anos seguintes a
Impeto reflexivo que a divida metafIsica d
Male de 68, o poder descricivo do reference teatral penerraria os dominios da Psi
cologia Social, da História e da Antropologia, a custa de autores como Peter
Burke, Alan Read, Victor Turner, entre outros.
32
TEATRALIDADES
137
signos da producao reinante [...] A origern do especticulo é a perda da
unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espectaculo rnoderno
exprime a totalidade desta perdai’ (iaem:2, 11 e 21)
Nos anos sessenta, o espectáculo do macado aponta para urn
desenlace perverso, pois a sua erotica apenas admite a existência da
propedêutica filosOfica corno pensarnento separado’> (idem:16). 0
efeito repressivo desta separação confere aos acontecirnentos a dic
çäo caótica do conternporaneo e irnpôe ao individuo urna ((segunda
natureza>’ que o incapacita para a acçäo perforrnante:
<<0 espectaculo e o discurso ininterrupto que a ordem presente faz
sobre si própria, o seu monologo elogioso [...] A aparéncia fetichista de
pura objectividade nas relaçoes espectaculares esconde o seu carácter de
relaçao entre hornens e entre classes: urna segunda narureza parece domi
nar o nosso rneio ambiente corn as suas leis fatais. (idem:22)
A ‘sociedade do espectáculo’ recorre, pois, ao aparato cenográ
fico para se naturalizar no palco universal, onde simula autentici
dade. Aos olhos do póblico, a subrnissão do indivIduo, lirnitado ao
espaco da cena e a autoridade do seu papel, aparece como urna afir
mação gregária de pertenca. Mas este espectaculo, enquanto <<guar
dião do sono>, instrumentaliza em massa urn ml efeito de ilusão:
aquilo que dentro do edificio de teatro seria urna estética da suges
tao, aparenta ser no campo social a ánica verdade, reproduzindo-se
indefinidamente.
Dramatis personae
A ‘separacão’ liminar ocorre quando urn grupo resiste ao con
dicionarnento colectivo, e é normalrnente protagonizada por uma
facçao rninoritária do corpo social. 0 próprio estado de conforrna
ção social pressupôe, alias, urna equivalencia pacificadora entre o
indivIduo e o seu papel. Como escreveu E. Goffrnan, em sociedade
“espera-se de urn rnodo geral que cada urn dos participantes supri
FERNANDO MAY05 OL[VEIRA
138
ma os seus sentirnentos imediatarnente vividos, transmitindo em
vez deles uma imagem da situação que sinta que Os outros poderao
pelo menos temporariamente considerar aceitável, (Goffrnan,
1993:20). A existência normalizada do sujeito, sendo determinada
pelo anuimento passivo, pode ter consequências indesejaveis. Corn
efeito, a magnitude do trabaiho repressivo implicito na <‘apresenta
cáo do eu na vida de todos os dias>> pode avaliar-se pela explosao
libertadora que percorreu Paris. Contra o paraiso possIvel, Maio
respondera corn o Paradise Now, icone teatral que sintetiza o espi
rito do tempo.
Os protagonistas da ‘separaçáo’ liminar forarn os estudantes e,
lateralmente, os trabalhadores. Estarnos perante representacOes
divergentes da periferia do rnercado. Os estudantes começarn pot
ocupar o campus universitário, curiosarnente já então uma zona
cornprometida apenas corn uma versão mitológica do separatisrno.
Sintomaticamenre, Sartre perguntava a Cohn-Bendit se os estudan
tes se fIcariarn pelo ‘Queremos
so
reformisrno’: <Pensa poder obter
reformas que introduzam realmenre elementos revolucionarios na
que façam, por exernplo, corn que o
Universidade burguesa
—
ensino dado na Universidade esteja ern contradiçao corn a funçao
principal desta no regime actual: a forrnaçao de quadros bem inte
grados no sistema?” (Sartre, 1979:32). Foi realmente a partir deste
espaco ‘reprodutor’ que os estudantes procuraram inverter o fluxo
de energia social: a passagem da universidade para a urbe simula o
trânsito do pensarnento para a acçáo, portanto, do guiäo dramatico
para a sua realização performativa. Ffesicantes no inicio, os traba
ihadores acabam por perceber no momento urna oportunidade
estratégica para reclamarern melbor acesso as vantagens da cena
rnercantil. Mas a sua restrição liminar teve uma natureza contra
revolucionária. Os trabaihadores aproveitararn sobretudo as vanta
gens negociais de uma forma adequada a rnediatizaçao espectacular.
No seu conjunto, a acção dos estudantes e dos trabalhadores
reactivou o grito que Artaud dizia estar em declinio, mesrno entre a
tribo do teatro, tradicionairnente responsavel pela arnplifIcacao do
ritual da separacáo:
TEATRALIDADES
139
Ninguém mais sabe gritar na Europa, e especialmente os actores em
transe não sabern mais dar gritos. Quanto as pessoas que 56 sabem falar e
que se esqueceram de que tinham urn corpo no teatro, tarnbém se esque
cerarn de usar a garganta. Reduzidas a gargantas anormais, não é nem
rnesmo urn órgão, mas sim tima monstruosa abstracçao que fala: Os acto
res, na Franca, agora sé sabem faIar. (Arcaud, 1993:137)
Cohn-Bendit inscreve os estudantes neste <grito>> contra a con
sensualidade falada, quando se refere especiuIcamente a ((palavra
libertada de repente em Paris>> (op. cit.:31). 0 que se seguiu trazia a
marca do vivo e do espontâneo, justamente as propriedades que soil
citarn urna leitura performativa de Maio de 68:
A força do nosso movimento e precisamente o facto de se apoiar
nurna espontaneidade ‘incontrolavel’ [.. .1 A construção das barricadas, ate
ao ataque dos poilcias, foi uma espCcie de festa. Reinava uma atmosfera
extraordinaria. Se a poilcia tivesse recirado, haveria uma formidavel explo
são de alegria [.1 Depois, os estudantes reagiram espontaneamente e já
não era possIvel deter o movimento, ainda que o rivéssemos querido.
(Cohn-Bendit, apudSartre, 1979:30-47)
Parabase
Nas fotografias de Paris dorninarn os estudantes e o turbilhao
Percurso do homem comum, a rua revela-se nestas irnagens
rua.
da
um lugar de iniciação onde toda a objectualidade da cena burguesa
e recusada: os automóveis são incendiados, as lojas destruidas e o
mobiliario urbano transformado em arma de arremesso. A pulsao
separatista dos estudantes traduz-se no carácrer elementar dos mate
riais. Contra o gas, percebe-se que os manifestantes opOem pedras,
árvores e fogo. Aqui e alem, a regularidade plana cia calçada da lugar
a um chao esventrado. Corn a terra mais próxima, a pedra aplainada
regressa a selva pela mao de urn estudante-caçador. 0 confronto é
desigual, pois as pedras da calçada so delimitam o territOrio ate a
chegada das escavadoras. A temporalidade desta rua conftrnde o
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
140
tempo ritrnado da universidade e da fabrica, enquanto o crornático
do desfile parece suspender a vinculaçao consensual da tricolor, suja
a
pelo negro e pelo vermelbo. Nas fotos nocturnas, drarnatiza-se
resisténcia ao sono, ate a exaustáo.
Urn cartaz corn a frase “Le pouvoir est dans Ia rue>> reactiva a
ocasiäo revolucionaria que, décadas antes, Bertolt Brecht tarnbérn
investiu na ‘cena de rua’, o seu rnodelo particular de teatro épico
‘natural’ (cf. Brecht, 1967,16:546). No exempio que deixou nos
Escritos sobre Teatro, urn homem assiste a urn acidente que mais
tarde contaria aos demais. Ao narrar, este homern deveria proceder
rigorosamente a uma (<dernonstraçao>’, não tanto a encenaçäo iluso
na de urn <(acontecirnento’> [Ereignisj. Repetindo quando necessá
rio, ilustrando corn urn gesto tosco, o actor evita set conflindido
corn as personagens que sucessivamente encarna. A plateia julgaria
os factos a distancia da explicaçao recebida. E born de ver que as was
.
de Paris não tiverarn a ciareza épica desta distancia dernonstrativa A
uma
revoluçao que Brecht pretendia extrair da rua riecessitava de
razão mais fria do que a razão festiva. Maio dc 68 foi sobretudo urn
acontecirnento. Cohn-Bendit percebeu hem a resisréncia dos estu
dantes a dernonstraçao épica. Viu também que a negauvidade de
quaiquer gestus dependia do que nele pudesse permanecer intern
ente, oque
pestivo, já que Os marxiscas-Ieninistas pensavarn, epicam
deverlarnos principiar por ir aos bairros populates discutir corn
trabaihadores, explicando-ihes as nossas posicOes e convencé-los a
agir connosco’> (apuci Sane: 1968:47).
Maio incerdirou, portanro, a repeticão inerente ao ensinarnento
da ‘cena de rua’. Os actores näo participarn num guião pré-definido:
cornando unifi
ccnao houve qualquer piano, não existia qualquer
cado, qualquer piano pre-escabeiecido das ‘barricadas’n (idem:39). 0
guiäo foi inventado pelos actores, sern rnediaçao autoral. Maio
afirma-se, pois, libertariarnenre, propondo urna reieitura da ‘cena de
rua’, digarnos, através de Augusto Boal. 0 espectador pode aqui
ensaiar a revoluçao como protagonista da própria acção:
do oprimido concentra-se na própria acção: o especra
dot nao deiega poderes na personagern (ou no actor), nem para agir, nan
.a poética
TEATRALIDADES
141
para pensar em seu lugar; pelo contrário, dc mesmo assume o papel de
protagonista, muda a acção dramarica [. •1 Neste caso, o teatro pode näo
ser revolucionario Of Si 56, mas e seguramente urn ensaio para a revolu
çao’ (Boal, 1979:122)
-
Na verdade, Maio de 68 ficaria associado ao estado transitório
do ensaio teatral. A memória dos eventos move-se facilmente do fes
tivo para a frustraçao perante o inacabado. 0 espectador libertado
de A. Boal foi congelado numa cena intervalar. Sobrou o gesto de
resistência a autoridade hipnotica do espectaculo. 0 mimetismo
liminar desencadeado pela euforia da festa, razâo do <<ethos da per
formance” mencionado por H. Blau, teve eco no activismo da época
(cf. Blau, 1987). Conhecemos o futuro das celebraçoes desta aura
performativa: o happening, o concerto de rock, as comunidades
alternativas que do outro lado do Atlantico produzirao imagens tao
emblematicas com as de Easy Rider (1969).
Na paisagem das multidoes solitarias que acaba por sobreviver
mais ou menos intacta a reintegracäo pos-liminar, a bondade comu
nitária dos movimentos alternativos foi uma experiência singular. A
utopia desenhou os contornos da contestação permanente que o
voluntarismo de Maio sonhou manter viva pot tempo indetermi
. Ao contrapor a performance akernativa (acçao) ao teatro
33
nado
institucional (representacao), Maio enfatiza uma desconfiança me
dita relativamente aos apareihos institucionais: o carácter libertario
de Maio teve a particularidade de surgir num momento crItico de
saturação material. A dramatizaçao da liberdade em contexto demo
crático e, por isso, a sua herança mais inquietante. Ate al, o veiho
motor das revoluçoes tinha sido a necessidade nua e crua, como
disse Sartre. Desta vez, o sujeito pedia liberdade contra a manha do
Estado moderno. Mas a teatralizaçao da polItica pedia também uma
33 A este propósito, o espectador portugués que tenha tido a oportunidade
de testemunhar o regresso do Living Theatre a Portugal, em 1997, pode constant
o terrivel enveihecimento da acçäo proposta pelo grupo, afim ao esgotamento
pragmático de alguns grupos de teatro experimental, nascidos em 60 e principios
de 70.
142
FERNANDO MATOS OLIVEJRk
politizaçao da rua que Maio so pode assegurar como avencura. Aqui
mesmo se origina a persisténcia do sentimento melancolico perante
Os acontecimentos de 68, ainda quando irnperfeitamente aferidos
pela imagem e pela letra, trinta arms depois.
11
ENCENAR Os CLASSICOS
0 iiso dos clAssicos
A 11 de Novembro de 1909, Max Reinhardt apresentava ao
publico de Berlim uma encenação do Don Carlos, de F. Schiller, corn
a duraçao de seis horas, das 18:00 as 24:00. Apesar dos dois inter
valos, contra todas as expectativas, consta que a peça foi urn sucesso,
a ponto de ter sido frequentemente interrornpida pelos aplausos do
publico. 0 autor germânico assinalava assim urna importante vitagem na encenação dos clássicos, afastando-se das versöes historicis
tas que dominaram o ültimo terço do seculo )UX. Corn efeito, desde
a primeira encenação da peça de Schiller, em 1787, ate ao tempo de
Reinhardt, o espectaculo de teatro manteve urn contrato incipiente
entre a ordem do texto e a ordern do encenador. Ora, esta maratona
teatral é justarnente urn marco no percurso do encenador rnoderno
rumo a autonomia artIstica. 0 texto clássico começa a sua lenta con
versão em material disponIvel para a apropriaçäo estética, e a figura
do encenador aproxima-se definitivamente do artista, sujeito como
os demais ao julgarnento do gosto póblico e ao escrutInio da crItica.
Em 1922, quando Leopold Jessner estreia cia inesma cidade a sua
versão de Don Qzrlos, a figura do encenador está já em posicão de
efectuar cones proflindos no original, destacar certas personagens e
alterar o final. Em vez da reproducao fiel do universo do texto, Jess
ner propóe a concentracão no essencial, e reduz os seis mil versos a
menos de metade. 0 mimetismo cenografico de tipo realista da
também lugar a conceptualizacao simbólica do espaco, em vários
144
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
. Estamos
34
pianos, respeitando apenas a ‘<ideia’> profunda do todo
Urn aspecro
classicos.
tratar
os
ores
de
perante dois modos fundad
decisi’vo une ambas as produçaes: a necessidade de integrar os clas
sicos na contemporaneidade, de os fazer falar corn a modernidade.
Os exemplos referidos mostram como o problema da encena
çäo dos ciássicos acompanhou de muito perto a construcão histórica
da autonomia do encenador. A extraordinaria experiéncia protago
nizada pela companhia dos Meininger, criada e dirigida pelo próprio
Georg II no seu pequeno principado de Sachsen-Meiningen, a par
tir de 1870, desempenhou urn papel exemplar neste processo.
0 rasto de polémica que deixou a cada encenação revela a impor
tância desse trabaiho. em areas que vão do tratamento dispensado
aos classicos ate a deuinicao do perfil da moderna companhia de tea
tro. Convérn lembrar que o teatro oitocentista foi geralmente mar
cado pelo vedetismo do actor e pela secundarizaçao do texto dra
mático, tratado corn deferencia minima. A sinronia do palco corn a
sensibilidade burguesa e o papel dominante que ao tempo o reatro
desernpenhava na gestão do ócio, colocava-o perante a pressão ges
tionária do quotidiano empresarial. 0 texto está então ao scrviço do
sucesso imediato, em regime de puro entretenimento. A autoria é
frequenternente mascarada por traduçoes e adaptacoes scm outro
crirério que nio a cartilha segura do êxito. 0 dramalhão vive o seu
apogeu histórico; a demanda das plateias acoihe corn entusiasmo
qualquer produto informe, desde que perrencente ao magma melo
dramatico. E o tempo áureo do virtuoso e das grandes figuras da
cena, cuja presença dominadora anula os restantes elementos da
companhia. Vibra-se corn a deciamaçao prodigiosa de Sarah Bet
nardt, Eleonora Duse, Frederick Lemaitre, Edmund Kean ou Tom
maso Salvini.
o contriburo dos Meininger deve Icr-se nesre pano de fundo.
A sua prática rearral antecipou a rnoderna profissionalizaçao da
3’ Os escritos de L Jessner manifestam uma consciência clara do conteildo
revolucionirie das sun propostas cénicas. A encenaçáo assume-se como trabaiho
de actualização do original, por via de uma esténca da simbolizaçao que visava
apreender apenas o essencial (cf. Brauneck, 1993:123-125).
TEATR4LTDADES
145
companhia e a definiçao de urn repertório classico. Podemos resu
mir o espectro dessa acçäo, levada corn sucesso a inámeros palses da
Europa central, a trés dornInios principais: a) respeito pela integri
dade do texto original, reduzindo eventuais cones a aspectos estrita
mente secundários; b) sujeição absoluta do actor individual ao tra
baiho estético do colectivo; c) adopçao fiel das indicaçoes cénicas
constantes no original (ci Fischer-Lichte, 1993: 217-234). Esre
prograrna despertou naturalmente discussoes vigorosas, motivadas
sobretudo pela sua resisténcia ao entendimento convivial do teatro
na sociedade da época. A soberania estética do projecto dos Mei
35 propunha o teatro como instituiçäo artIstica dedicada a
ninger
encenação das obras do passado. Consequencia do seu feroz rca
lismo histOrico, o espectador era literairnente transponado pan urna
outra época, e o próprio texto renascia na sua plenitude estranha
amiga. So após este passo, pontualmente anunciado pot autores e
drarnaturgos desde o periodo ilurninisra, o teatro podia ‘drarnatizar’
o problerna da encenação dos classicos. Tal problema resultou, por
ranto, de urna conjuntura que havia cumprido duas prernissas essen
dais: a consciéncia da hisroricidade do sujeito rnoderno e a progres
siva legitirnaçao estética do trabaiho do encenador. A ernpresa dos
Meininger, antes rnesrno das encenaçOes de Antoine ou de Otto
Brahrn, ajudou a instiruir as ‘condiçoes de possibilidade’ para urna
tal transição.
Curnprida a etapa filologica protagonizada pelo metodo histori
cista dos Meininger e a Ease de emancipação ‘esterica’ Levada a cabo
pelo modernismo, o tratarnento dos classicos entrou finalmente num
periodo a que chamarta teOnco
ou pos-reorico, para as versoes
mais rardias. A historia da encenação dos clássicos ao longo do seculo
—
35
0 excessivo rigor histOrico da encenaçáo deu origem a situaçOes que o
hiper-realismo de Antoine haveria de replicar. noutro registo estético, pouco
tempo depois. Aquando da encenação dejulius Caesar, pot exemplo, a companhta
solicitou precisas informaçoes a Pietro Visconti, director do Instituto de Arqueo
logia em Roma, sobre a arquitectura e o vestuário da época. A representaçäo
implicava deslocaçoes aos lugares originais, em busca do espIrito do tempo e da
prova restemunhal dos vestigios recuperados.
FERNANDO MAr05 OLIVEIRk
146
vinte tern oscilado entre a apropriacão global e complexa de Reinhardt
e a apropriação essencial e simbólica de Jessner (Ruhle, 1982:101).
Entre urna e outra, o desaflo da encenação dos classicos permanece
come exercIcio paradoxai. Vejamo-lo em Bernard Don, recente
mente: <Le temps du théâtre est le present [...) Mettre dans Ia bouche
de comediens des textes écrits, leur faire executer des movements pies
crits ii y a, parfois plusieurs siecles, a quelque chose de paradoxain
(Dort, 1988:51). 0 paradoxal é pane da controvérsia que no campo
do teatro periodicamente se levanta a propósito do uso dos classicos;
uma discussão que tern ocupado um espaco privilegiado na reflexão
sobre teacro e encenação. Este terreno tern acoihido Os mais variados
debates: sobre estética, teoria dramatica, poiltica teatral, práticas de
ericenação e de actuação, entre outras derivaçoes que o lastro identi
tário do patrirnónio dim classico sempre arrasta consigo. Por este
motive, a questão dos clássicos mantém-se desde ha muito no centre
da agenda teatral, no pIano estrito da criação, mas tambem no pIano
institucional, lugar onde hoje se joga a sobrevivência de boa pane da
produçao num pals como Portugal.
A encenação ja não é a dos classicos, porque o presente da cena
os historicizou em termos definitivos. Em rigor, a versão mederna
do classico definiu-se com o romantismo, quando a modernidade
cavou urn fosso sensivel entre antigos e modernos. A encenaçào terá
sido verdadeirarnente dos clássicos uma vez apenas: no teatro con
temporâneo, o que já se chamou “escola da intemporalidaden apre
senta-se come viagem sem regresso (ci Brook, 1989). Pot isso, a ins
tauração do paradoxo e inevitavel. Ao encenador contemporâneo
está vedado o acesso a ontologia dessa internpora1idade>. A herança
dos dássicos decide-se de inümeras formas na actualidade, corn des
taque para as incontáveis replicas do ‘método’ brechtiano: os clássi
cos servem ao teatro moderno enquanto porradores de cerro <Mare
rialwern, ou seja, enquanto matéria-prirna, válida para a agenda
(estética e polItica) da escrita dramatica (ci Brecht, 1967/Vol.
5:1O5). Neste sentido, dos antigos importaria o elemento progres
ao dramaturgo e ao encenador caberia a tarefa de nos mos
sivo
trarem a Iiçao das continuidades e das diferenças do passado em
relaçao ao presente. Por outro lade, temos assistido a transformaçao
—
TEATRALIDADES
147
dos classicos ou em pura rextualidade, destinada a alirnentar espec
raculos de vária mndole; ou a sua transforrnaçao em peças de urn jogo
corn a memória cultural, quase reduzidos a objectos de urna rnuseo
logia cultural: de modo mais ou menos ousado, a encenação do clas
sico serve corn frequência a ceiebraçao da nacionalidade, sob a
forma de preservação patrimonial. E neste ultimo piano que se situa
a rnaioria das Companhias Nacionais de teatro, hem corno a defesa
estatai do património dramatico da nação. 0 que hoje parece
irnprovável, em qualquer dos casos, é a possibilidade de o classico
deixar o livro ou o rnuseu, para se reinstalar de novo no centro da
praça publica. 0 anfiteatro grego encontra-se seriarnente reduzido
nos ternpos que corrern. Ouvir a voz do passado e urna oportuni
dade limitada pelo défIce cIvico do teatro nas sociedades contempo
râneas.
Apesar das restriçôes tempestivas do auditorio actual, os classi
cos tern sido, desde o inicio do século XX, o lugar estratégico para
expressão da criatividade do encenador. A própria antiguidade do
clássico cria urn campo contrastivo que potencia a visibiiidade das
opçöes tornadas pelo encenador. Nestes jogos afirmativos, o amigo
acrua exemplarmente como matéria disponIvel para a canibalizaçao
dos modernos. Em Franca, depois da conservação a Jean Vilar, os
classicos tambérn serviram para a afirrnaçao programática de uma
nova geracão de encenadores, muitos deies apoiogistas de urna écri
ture scénique que vinha reconhecer os argurnentos esteticistas e pias
ticos de G. Craig, décadas ames. 0 encenador rnoderno instalava-se
urn nIvei acirna da ontologia do texto dramatico.
Entre nOs, os ciássicos nacionais não tern a presenca de que
beneficiarn no repertório teatrai de outros palses. Nem tudo se
deverá ao célebre defice da literatura dramática. Gil Vicente, o nosso
auror que meihor poderia encarnar o papel do classico teatrai, não
chega a ter a representatividade cénica de urn Moliere, em Franca,
ou de urn Caideron de ia Barca, em Espanha. Shakespeare é um caso
a pane, pois trata-se do classico internacional por exceléncia, sujeito
aos desrnandos da indüstria cultural, incluindo os clarnores de
Hollywood. Ja em 1948, num texto intirulado ((Shakespeare er Jes
français>’, Jean-Louis Barraulr conclula que, depois da segunda
FERNANDO MAY05 OUVEIRA
148
metade do sdculo Xviii, as encenaçôes do dramaturgo ingles forarn
uma constante em solo frances e que, em certos momentos, rivali
zaram corn os autores nacionais: Voila le fair qui se passe de preuve:
Shakespeare pour les Français est un besoin; Shakespeare en France
est presque autani joué que Moliere, et plus june que Racinen. Em
relaçao a Shakespeare, apesar de tudo, os portugueses tern mantido
a isençäo que aplicam no trato corn os autores nacionais. Alérn das
importaçôes ocasionais do texto, o publico tern mostrado major
bonomia para corn certos anexos metateatrais, corno se pode ver
pelo sucesso alcançado pela peça que Adam Long, Jess Borgeson e
Daniel Singer escreveram sobre As Obras Completas tie William Sha
kespeare em 97Minutos. Mas e verdade que Shakespeare vem sendo
o grande terreno de experimenracão corn o clássjco, na sequência de
urn livro muito influence que, no espirito dos anus sessenta, apre
sentava o autor inglês corno Shakespeare our Contemporary. Passado
o brevIssimo interregno do pós-guerra, duranre o qua! os classicos
reactjvaram a humanjdade (intemporal) dos Amigos, a declaraçao
explicitada pelo tItulo de Jan Kott traduzia a irreveréncia temporal
de 68.
Gil Vicente nosso contemporâneo
Discutir aqui uma das óltirnas producoes do Teatro Nacional
deS. Joao (TNSJ), a encenação das Barcasde Gil Vicente, pot Gior
Corsetti implica, pois, ter em conta a debil presenca
,
gio Barberio 36
dos classicos no teatro português. Por nao terem propriamente uma
tradiçao de encenaçäo, no caso especIfico de Gil Vicente, e restrita a
o especrácuio, levado a cena em 2000, contou ainda corn dramaturgia
de Joao Grosso, figurinos de Giorgio Barberio Corserti e Crisrian Taraborelli,
mdsica de Stefano Zurzanello e ilurninaçio de Daniel Worm d’A.ssumpçao. Do
elenco faziam pane Joao Grosso e Alberto Magassela, permarientes nas figuras do
Dtabo e do Companheiro do Diabo, e actores que assumiram diversos papéis no
curso da trilogia: Nuno M. Cardoso, joäo Reis, Rute Pimenta, Paulo Castro, Ivo
Alexandre, Martinho da Silva, Iufsa Crus, Antonio Duräes, José Airosa, Jorge
Vasques, Nicolau Pais, Joao Pedro ¼z, Ligia Roque e Hugo Torres.
36
TEATRALIDADES
149
galeria dos actores/encenadores portugueses que corn ele convive
numa base regular. 0 elenco incluiria latamente as encenaçóes situa
das entre a abordagern escolarizada de Paulo Quintela, no TEUC, e
a frequência vicentina de grupos como a Cornucopia, o CENDREV
ou a Escola da Noite. No prograrna do espectaculo ern análise,
Ricardo Pais destaca justarnente os nomes de Rogério de Carvalho e
de Luis Miguel Cintra, ahonrosas excepçöes num rneio teatral que,
segundo o director do TNSJ, tern em Gil Vicerice o “maior
factor de mistificaçao e de desentendirnento (cf. Ak VV., 2000).
São palavras severas, rnas compreensIveis, se por ((rnistif1caçao e
((desentendimento,, entendermos o conjunto de aproximaçöes a Gil
Vicente apenas interessado na celebraçao patrimonial dos autores
tidos corno indiscutIveis. A beira do seculo XXI, encenar é mais do
que nunca ler e interpretar, não apenas amplificaçao rnedial da letra
silenciosa do texto. 0 magro passado da cena vicentina é urn aspecto
de irnportância capital para quem pretenda encenar hoje Gil
Vicente ou Almeida Garrett. Em 1946, nurna entrevista, alguérn
questionava Jean Vilar sobre o lugar que conferia aos classicos no seu
repertório. Na resposta, o encenador corneça precisarnente por lern
brar a importância rnetodolOgica dessa aprática quotidianan: aIls
reclament autre chose qu’un générewc temperament de cornedien
ou de tragédien; il faut avoir assimilé, avoir fait siens cette syntaxe et
ce rythme ala fois multiples et strictso (Vilar, 1955:44).
Perante isto, a tarefa a que Giorgio Barberio Corsetti se propôs
nas Barcas era duplarnente arriscada: urn estrangeiro encena o dra
rnaturgo da nação, ern pleno Teatro Nacionai, nurn pals sem urn
passado consistente na encenação vicenrina. 0 contraste corn o caso
ingles não podia ser mais nItido: actualmente convivem ern torno de
Shakespeare cornpanhias profissionais corno a Royal Shakespeare
Company, a English Shakespeare Company, a The New Shakes
peare Cornpany; sern esquecer a Shakespeare for Kids e, ern versão
rnuseografica, o Globe, reproduzido a escala. Sern o capital reflexivo
que a prática consistente da encenação sempre suscita entre os
nacionais, sem urn elenco repetente nas personagens de Gil \
icence,
1
sern urna prática continua na dicçao vicentina, o encenador, estran
geiro ou não, e sempre obrigado a corneçar do (quase) nada.
FERtQNO0 MAY05 OLIVEIR4
150
0 que acabo de dizer e igualmente válido para o trabaiho de
drarnaturgia, a cargo de joao Grosso. 0 espectaculo a que se assistiu
no TSJ deve ser avaliado corno urn produto cuja responsabilidade
assenta na draznaturgia e na encenação, pois a posiçáo que possarnos
assurnir face ao classico situa-se simultanearnente ao nIvel do texto
e da cena. Perante o texto, generalizando os estilos, as opçöes pode
no campo estrito
riam set de tipo moderno ou de tipo filologico
da encenação, os clássicos estariam sujeiros a outros tantos progra
mas de leitura. A afirmaçao disciplinar da dramaturgia no âmbito
do teatro moderno é, por si 56, uma evidéncia da rnediaçao que o
contemporâneo solicita ao passado. 0 labor do dramaturgista exibe
o conflito entre as ordens temporais do texto e do encenador. A con
tingéncia estatutária do seu tcrritório vital compreende acçöcs tao
diversas como o restabelecimento da legibilidade do texto ou a sua
eventual adaptaçao a publicos especIficos, como sucede no caso do
teatro infanto-juvenil. Ora, é no arnbito destas opçOes que é justo
começar pot reconhecer certas diferenças de torn entre a linguagem
da drarnaturgia e a linguagem da encenação.
Ao escrever oAlgurnas notas de encenação para o prograrna do
espectaculo, Corsetti interroga-se sobre a possibilidade de 4cr as
Barcas como se tivessern acabado de ser escritas”. A este propósito,
pergunta: <Como pode prender-nos, a nós laicos e rnodernos, a
componente devota e Iitárgica que é fundamental na poesia de
Vicente?”. A questão é decisiva a vários titulos, pois tern que vet com
Gil Vicente nosso contempordneo. Dela dependem as escoihas dos
responsáveis pelo espectáculo. Em parte, a própria existéncia histó
rica dos conceitos de dramaturgia e de encenação assentarn neste
pressuposto, como vimos. Neste aspecto, a proposta de joao Grosso
e digarnos isto corn sirnples intuito descritivo, mais conservadora
guardo para depois a elisao do final do Auto
do que a de Corsetti
Si Barca di Gidria. Joao Grosso, um dos nossos actores mais dota
dos, retorna o caminho pessoal que ha anos vem percorrendo, na
cornpanhia de dramaturgos e de poetas, sempre próxirno de uma
ética textual que passa pela preservação da linguagern, do ritmo e cia
sonoridade originais. Nos seus trabalhos corno actor e encenador,
Joao Grosso tern-se rnantido na vizinhança da ‘intençäo’ autoral,
—
—
TEATRALTDADES
151
assumindo conscienternente o papel complernentar que ihe caberia
nurna econornia tradicional do teatro. Ao contrário do que possa
parecer, este gesto contérri uma posicão crItica relativamente ao des
tino da coisa teatral no ocaso do século XX. Grosso recusa partici
par na torrente de actuahzaçoes arbitrarias dos classicos, por vezes
reduzidas a modernizaçao quixotesca de figurinos e adereços de
cena. Mas recusa sobretudo as actualizaçoes legitimadas pelo Irnpeto
textualizador do pos-modernismo. Em mãos inexperientes, estas
versôes dos classicos resultarn em produtos dnicos que se esgotam
em exibicionismo afirmativo. Atraida pela ideia fIsica e nao-verbal
do teatro artaudiano, entusiasmada pela sua recusa fundamental da
autoridade logocéntrica, a cena conremporanea ou nega o classico
ou se apropria dde para <dizer o que foi dito de urn rnodo que seja
nosso” (cf. Artaud, 1993:71). A ideia de tearro que move o drama
turgista destas Barcas prefere confrontar o contemporâneo corn a
integridade da fabula aurora!, sern levar aos limites, longe disso, as
prerrogativas estéricas recenremente conquistadas pelo encenador.
Corsetti, pot seu lado, dialoga corn o logos do texto preservado,
Ihe contrapor, no piano da encenação, o fechamento de urn
logos inrerpretarivo. A forma fragrnentada e interrogativa das <notas
de encenação>> e eloquente quanto a esta diferença. Pot entre alega
çöes relativas a cenografia e aos figurinos, a abertura do seu pro
grama de encenação multiplica os sentidos para alern dos contidos
na pauta drarnanirgica. A autoridade enunciativa de Gil Vicenre
sofre um abrandamento estratégico, rnais consentâneo corn duvida
metodica, própria dos que hoje são descendentes <4aicos e moder
nos’> do autor quinhentisra. A disjuncao que se insinua entre dra
rnaturgia e encenação aparece-nos retoricarnente ‘prevista’ na argu
rnentação das notas de encenaçäo, ern afirmaçoes corno: <Andar
em direcçao a sonoridade do português original e aproximar as per
sonagens de nos;>. Estamos no centro do paradoxo temporal que
caracteriza toda a encenação do classico.
152
FERNANDO MATOS OLIVE! PA
As Barcas segundo Corsetti
Vejamos, brevemente, alguns aspectos da re-presentação que o
espeaador pode ver na sala do TSJ. A ideia de encenar conjunta
mente as trés Barcas foi segurarnente uma escoiha arriscada. A rela
ção entre os textos esta para alem das semelhanças de famIlia. As Bar
cas ocupam na producao vicentina urn lugar central, temporairnente
próximo, e funcionarn realmente corno unidade singular no macro
texto vicentino. As vantagens em as juntar eram evidentes. Percebi
das como triade, as Barcas permitem urna leitura serial da situaçäo do
ser humano quando confiontado corn urn julgamento post-mortem.
Além de ilustrarem cerras coordenadas mentais e culturais vigentes
no seu tempo, confrontarn-nas diversamente corn o leitor/espectador
contemporâneo. A isso se junta uma estrutura retórica paralela, corn
manifestas virtudes espectaculares, através da qual o corpo social da
época e sujeito ao juizo crItico do autor. A trilogia colocava urn Obvio
problema de extensão. Neste ponro, a preservacão textual praticada
pelo espectaculo do TSJ não hesitou ern colocar a prova a sensibili
dade do especrador contemporâneo, mais habituado a brevidade
publicitaria e a ficçao ern fatias, do que a dernora de urn serâo corn
pleto. Digamos que foi urna escolha épica que o encenador conse
guiu habilmente fazer esquecer, pelo rnenos, ate a Barca cbs Gloria.
Sem ceder a compressão antologica, julgo que a redundancia
estrurural das trés peças teria perrnitido um qualquer exercIcio de
concentração da trIade, sern que a dignidade do texto original (o
juIzo terá sido claramente patrimonial, talvez rnais do que escrita
mente estético) fosse prejudicada. E claro que podemos discutir a
legirimidade de urna hipotética concentração. Regressando a Brook,
haveria aqui que considerar toda uma dialéctica do respeito que o
encenador conrernporâneo deve rnanter na sua apropriação do clas
sico. Ha passa pela consciência do encenador relativarnente aos dife
rentes “degree of finish>> que as peças de um drarnarurgo podem
conter. Passa ainda pot sabermos que nada se altera sern perdas e,
finaimente, pela aceitaçio plena das consequéncias do juIzo da ence
naçäo. No seu conjunto, podernos dizer que Corsetti e Grosso exer
ceram moderadarnente o juIzo da encenação.
TEATRALIDADES
153
A adopcao de urna linguagern quc procura recuperar certos isa
ços foneticos do português da primeira metade do seculo XVI é urn
aspecto que merece atenção. Como memória viva da lingua, nos
seus mais diversos registos, é evidente que urn teatro a sério se deve
assurnir sempre como o lugar da diferença, espaço de resisténcia ao
grim unidirnensional da tribo. Verifica-se inclusive urna forte ten
déncia no teatro conternporâneo para os jogos de linguagern, para o
estranharnento e a distensao sonoras, para o muLtilinguismo e a
abertura ao étnico. E neste porno que a lingua plural de Gil Vicente
e diferença que (nos) valoriza. 0 latim, o castelhano, o português de
então, os registos populares e eruditos, seculares e sacrarnentais, pro
saicos e liricos, tudo junto faz das Barcas urn acontecimento no
piano da linguagern. Urna festa da lingua que a drarnaturgia e a
encenação justarnente näo abandonararn, resistindo ao apelo da
norrnalizaçao que, em norne daquela abstracçao rnaioritária que tan
tas vezes decide aprioristicarnente, nos oferece rnais e mais do
mesmo. Ainda assirn, o pormenor do uso do s beirao, sobretudo
este, não da tanto a irnpressão de arcaismo, rnas de provincianismo,
que é o que ele hoje representa. Sendo urn preciosismo linguistico,
cérnico que suscita (nos risos equivocos da piateia, logo a abrir)
encerra, reconheça-se, urna razão espectacuiar que a razäo de Gil
Vicente desconheceria. Alias, a pretensa reproducao da fonetica his
tórica nem sequer foi exaustiva. A crer nas palavras de Esperanca
Cardeira, conseiheira linguistica do projecto, a par de Ivo de Castro,
“não foram respeitados todos os traços que pensamos serem carac
teristicos da pronüncia do seculo XVI; alguns soariarn ásperos e
estranhos ao ouvinte moderno e ao enfatizar a forrna correriamos o
risco de distrair a atenção do espectador, que se quer centrada no
conteüdo”. 0 critério adoptado deveu-se certamente ao impeto de
preservação patrimonial que norrnalmente regula o trato corn
ciassicos. 0 esforço dos actores na dicçao foi homenagern suficiente
a linguagern de Gil Vicente.
A encenaçao resolveu corn inteligencia urn conjunto de difi
culdades levancadas peia série das Barcas. Desraque para a cenogra
fia, para a rnarcação (a variaçäo na forma como as personagens che
gam ao lugar do juizo final foi eficaz) e ainda para a mdsica notavel
354
FERNANDO MATOS OL]VEIRA
de Stefano Zorzanello, em soios que tornaram invisiveis as mudan
ças de auto para auto. Os figurinos, de Corsetti e C. Taraborelli,
apresenraram uma sobriedade que resistiu hem âquele maneirismo
Luxuoso que Barthes lamentava em muito teatro burgues. As perso
nagens chegavam ao palco com uma caracterizaçâo suficiente para a
identificaçao do seu estatuto e profissao, de acordo corn a logica do
texto original e com uma deterrninaçao prévia do encenador: “Figu
rinos modernos, estilizados, para as duas primeiras barcas, dao conta
do quotidiano; figurinos de época para a Barca hz Gloria, que afirma
a vanidade da história face a eternidade’>.
Em vez da topografia fisica das barcas, Corsetti preferiu focar o
palco no simbOlico ascensional de duas montanhas, a lembrar os
mastros das embarcaçoes. Deste modo, em vez de materializar os
lugares do prémio e da punicäo, o encenador escolheu acentuar o
processual e o iniervalar dessa situação extrema que é a despedida da
vida e o enfrentamento da rnorce. Como coisa fisica, as barcas estão
pretensarnente colocadas em segundo piano, simuitaneamente
escondidas e reveladas pelo mastro insinuado. A do anjo é ingreme
e de dificil acesso. A do diabo é levemente inferior e mais plana,
como convérn ao volume de trafego que atrairá. No cimo de uma,
dominam os mastros retorcidos; noutra, o sossego da cadeira de urn
Anjo que o encenador obrigou a dernorar-se reclinado. 0 cenário
instaura urna tensão no espaço dividido pela água que em Gil
Vicenre era “urn braço de mar>’, onde estariam “dois bateis>>. Mas a
água tambem serve ao longo do espectaculo como elemento que
lava os mortais da sujidade que trazem do mundo terreno: e fre
quente as personagens ajoelharem na água e levarem as rnãos moiha
das a cara. Na Barca eta GlOria, depois do despir igualitário dos gran
des (que poderia ter ido are a pele), e na água que vivern o drama
final da consciência: para todos os efeitos, os grandes do mundo
possuem-na em major grau do que os peöes da Barca do Inferno e do
PurgatOrio.
Num rrabalho difIcil como este, o espectaculo depende do
ritmo que a encenação lhe consiga empresrar. Muito se jogou, a meu
ver, no modo feliz como o encenador alternou a entrada das perso
nagens. Na Barca do Inferno, o sübito da rnorte atira as figuras des-
TEATRALIDA DES
155
prevenidas por uma caiha infernal que as faz cair abruptamente na
cena do julgamento. Na Barca eta GlOria, pelo contrário, a majestade
dos represenrantes da Igreja e da Corte é acompanhada pela queda
estrondosa de uma passadeira mortal, feita de urn enorme madeiro
piano, sobre o quai a Morte-hospedeira as conduz, conscientes, a
presença do Diabo. Este mesmo evoiui de auto para auto. Começa
insinuante, trôpego e disforrne, próximo do irnaginario popular,
pan terminar negro e corn discurso serio, irnplacavei. 0 crescendo
final responde bern ao libelo acusatório que C. Vicente plasrnou no
iultimo auto.
E precisamente na Barca eta GlOria que a ausência inesperada
da redençao final desperta a memória do espectador. Contudo, na
conjuntura historica do texto vicentino, a salvaçao estava longe de
apagar a tremenda esconjuração a que o auto sujeita os grandes da
sociedade. A retórica da puniçâo foi cumprida pelo simples facto de
ter sido enunciada. No óltimo instante, quando os maiores se abei
ram da condenaçao definitiva, no texto original ie-se que
Cristo da ressurreição, e repartiu por eies os rernos das chagas, e os
levou consigo>. Desde ha muito que a critica se interroga sobre os
condicionamentos deste gesto do autor. Que poderia fazer o ence
nador da cone, perante o nobre’ Rei D. Manuel, nesse ano de
1519? 0 próprio Corsetti se interroga, nas suas notas avuisas, sobre
O sentido de tal resgate: Porque se saivam, no firn da Gloria, os
grandes da Terra?”.
0 espectador sabe do valor reiativo da encenação como regres
so historico-fiiologico a cena primordial, segundo a conhecida teo
na das camadas de pó, adoptada pela Cornedie Française
. 0 espec
37
tador medio tambern não se desloca ao TNSJ em busca de urn
objecto intocavel, situado por debaixo do p6 dos seculos, a espera de
ser descoberto e exibido tal corno foi. Apesar disso, a eiisao do final
constitui urna inflexão sénia no registo de preservação textual que
dornina globalmente o espectáculo. Ate este mornento, o contern
57
Urn ml prograrna de re-constituiçäo tern o seu lugar na democracia tea
ate (him no contexto da encenaçäo dos clássicos nacionais, corno vimos:
para criar lastro, fomentar rnassa crItica, treinar actores, pühlicos etc.
tra] e faz
156
FERNANPO MATOS OLIVEIRA
porâneo vinha negociando a autoridade do passado sobretudo num
piano nao-verbal: marcação, figurinos, elenco etc. A julgar peia elisão da cena, para Corsetti/Crosso, o seculo XX nao estaria em con
diçoes de se redimir pela ressurreição de Cristo. 0 espectáculo
encarrega-se assim de engendrar a sua resposta a pergunta mais
urgente dos trés autos vicentinos.
Como se posiciona este espectaculo perante uma obra que não
está al <(acabada de escrever? Obriga-a a mostrar, corno defenderia
E. Piscator, que Gil Vicente tern quase 500 anos, e a fazer desse re
conhecimento a ma verdade? Posta de lado a reescrita do clássico,
que opçöes restarn ao concemporâneo? Parece-me que as Barcas do
TSJ fIcarao na memória como urna dramatizaçao particularmente
enfatica da pulsao contraditoria que subjaz a estas questöes.
12
0 TEATRO E A ESCOLA
Texto drarnático
A relaçao do teatro corn a escola e a universidade so ocasional
rnente decorreu em territOrio pacificado. Os mornentos de tréguas
nesta guerra surda entre as Jetras e o espectaculo forarn mais o resul
tado da autoridade provisória de urn campo sobre o outro do que
consequência de urn entendirnento que pusesse urn as hostilidades.
Sinai deste convivio difici( parece ser a generalizacao da estratégia de
demarcaçao territorial. Corn poucas excepçOes, tal dernarcaçao tern
recebido a aprovacio rácita de ambas as facçoes, mediante urna dlvi
são sobejarnente conhecida: de urn lado, as letras encontrarn acoihi
rnento na grande farnIlia titerária, sob a forma de estudo do texto
drarnático; do outro lado, a materialidade dos demais componentes
do espectaculo, bern corno o treino dos seus incérpretes, são objecto
do investirnenco das escolas profissionais de teatro, sob a forma de
cursos para encenadores e actores. A persisténcia deste quadro con
tinua hoje a sustentar urna fractura evidente no estudo do fenorneno
teatral. Contudo, alguns desenvolvirnentos recentes vêrn condicio
nando a própria gestão escolar do universo teatral, por duas razOes
principals: (a) a resisténcia crescente do teatro moderno e contern
porâneo ao conceito de ‘texto drarnatico’ (b) e as consequéncias pta
ticas e teóricas da ascensão do chamado teatro na educaçao.
Nos manuals escolares, por razöes de rodos conhecidas, o
estudo do teatro é latarnente coincidente corn o estudo do texto dra
rnático. Deste rnodo, o discurso crItico adoptado tern corno objec
tivo primordial a descricao e a analise de urn texto cuja identidade a
158
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
escola se encarregou de definir aprioristicarnenre. Este congela
mento conceptual contradiz a tremenda evoluçao da escrita teatral
na contemporaneidade, alérn de ignorar a evoluçao do próprio esta
ruto do texto drarnarico, justamente nun teatro que e, afinal, aquele
a que pertencern os alunos em causa. Esta conservação propedêurica
nan e, admita-se, menos voluntarista do que aquela que orienta o
estudo da narrativa ou da Utica. Mas a projecção historica desce
princIpio, o qual tern a vantagern de proporcionar a professores e
alunos urn constructo objectual passIvel de didactizaçao, teve como
consequéncia urna leitura demasiado selectiva do passado e do pre
sente do teatro. Nesre sentido, somos levados a crer que o tearro
acontece Ia onde o texto o auroriza e legitirna, crescendo a qualidade
deste na proporcão directa das suas afinidades estatutárias e discur
sivas corn os demais modos e géneros literarios. Ta! sucede porque a
escola, voluntaria ou involuntariamente, apenas tende a resgatar
aquela pane do passado teatral que Ihe assegura a sobrevivéncia de
urn texto e de uma autoria concretas. Apoiando-se em categorias tao
poderosas na cultura ocidental, não ha como negar a escola a sujei
cáo quase exciusiva do ‘texto drarnácico’ a condiçao familiar das
Belas Letras e ao dornInio dos seus protocolos herrnenêuticos.
A questão torna-se mais séria quando nos debruçamos sobre a
historia do teatro no século XX. Neste caso, a rnanutenção fechada
do conceito de texto dramárico, ao nIvel do ensino, irnplica quase
autornaticarnenre a negacão de uma pane cada vez mais significariva
do nosso século teatral. A cristalizaçao compreensIvel da didactica
do texto dramatico ern tomb de definiçoes, de descriçoes e de urn
certo corpus conceptual, visIvel ern manuais, cornpêndios e historias
da literarura e do teatro, vem ainda contradizer o impulso de acrua
Iizaçao caregomial que ernana da própria criação no campo teatral.
No caso portugués, ainda que os prograrnas de lingua e litera
tura venharn rnostrando urna major abertura relativarnente as con
tingências que regularn a existéncia do texto dramatico, norneada
mente quanro a sua inscriçáo espectacular, predornina igualmente
este ripo de abordagern. Assirn, o que irnporta ao regirne dramatico
que orienta o estudo do drarna na aula de Portugues passa sempre
pot urna operação de me-conhecirnento de certos traços distintivos:
TEATRALIDADES
159
texto primário vs. texto secundario, estruturação dialógica, concen
tração da acção, constriçöes espácio-temporais, etc. Ainda que este
estudo insistisse na analise das ‘condiçoes de representabilidade’ de
urn determinado texto, para usar as palavras de Anne Ubersfeld, a
questäo incontornável do futuro do texto dramatico não deixara de
se colocar no contexto do ensino do teatro, tanto em escolas do
ensino secundario corno em departarnentos universitários.
Texto pos-dramatico
Vale a pena começar pot lembrar Peter Szondi, crItico a quem
devernos urn dos prirneiros grandes ensaios de conjunto sobre a evo
luçao do teatro moderno (cf. Szondi, 1992). Recorde-se, em parti
cular, a prernissa central do seu livro, segundo a quai a crise con
ternporânea do drama se deveria ao facto dessa drarnaticidade ser
urna categoria historica e, por 1550 rnesmo, depender do curso tem
poral do projecto estético da rnodernidade. 0 dialogo, por exemplo,
reflectiria uma cultura de intercâmbio discursivo que Szondi via
decair na época contemporânea. Dal a ascensão de urn Eu cuja
impoténcia se poderia traduzir reatralmente através do uso de for
mas monologadas ou de estratégias de inspiração poética. Sern o
dizer explicitamente, Szondi pre-anunciava a inevitabilidade de urn
ternpo pos-dramatico, quando se referia ao teatro épico, ao teatro
lIrico ou a outras modalidades antiteatrais. E a reflexão sobre este
conjunto de alteraçoes na substancia drarnatica do teatro ocidental
que levou tambern Jean-Pierre Sarrazac a referir-se ao domInio de
uma pulsao rapsodica’> por toda a segunda metade do século XX
(cf. Sarrazac, 2002). 0 conceito de rapsodia devem na linguagern do
autor frances o lugar onde se inscreve toda a subversão do referente
aristotélico, forçando-o a assumir as mais diversas configuracoes for
rnais. Esse <transbordamento do drarnatico” é aqui urn rnodo de dat
conta da existéncia contemporânea do indivIduo sob o capitalismo
tardio: ‘<0 devir rapsodico no teatro aparece, assim, como a resposta
acertada a esta explosao do próprio mundo>’ (ickm:230). 0 teatro
confirma desde entáo as antevisöes de uma crise fundamental do
160
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
modo dramatico, mais ainda quando o conceito de performance se
vem instalando como paradigma espectacular da pos-modernidade.
A fabula dramatica espera hoje urn Vim que tarda em chegar, pelo
menos desde Godot.
Estamos, pois, perante uma transformaçao profunda da textua
lidade associada ao teatro contemporâneo, ou a pane significativa
deste, a qual vem pondo em causa a existéncia do texto dramatico
que a escola tende a estabilizar didacticamente. 0 percurso desta
deriva textual corre paralelo ao Simbolismo, ao Modernismo e aos
movimentos experimentais das primeiras decadas deste seculo, ames
de se acelerar com a enfase corporal e a deriva performativa do pós
68. A afirmaçao da figura do encenador veio quebrar em definitivo
o ascendente autoral-textual, forçando o teatro ao regime dramatür
gico que hoje o define, j mais democraticamente distribuIdo pelos
restantes co-produtores do espectáculo. Mas foi realmente a entrada
historica do encenador em cena que originou apropriaçôes de toda
a espécie de materiais. Garantida a superioridade do encenador na
hierarquia teatral, o teatro evoluiu para tim novo modelo criativo.
Nas palavras de um conhecido pwfessor de teatro, a moderna
<escrita teatral ganhou em liberdade o que perdeu em identidade
(Ryngaert, 1992:29). Ora, se a identidade discursiva tern sido o
campo de batalha da didactica do texto dramatico, vai sendo tempo
de admitirmos que a consequente sub-representaçao da escrita tea
tral contemporânea, além de set cientifica e pedagogicamente insus
tentavel, retira a escola e aos alunos a possibilidade de mediarem a
teatralidade do seu próprio tempo historico.
Chegados aqui, julgo que estamos em condiçoes de alargar ao
ensino uma formulaçao metodologica que distinga texto dramatico,
por um lado, e texto teatral, por outro (ci. Poschmann, 1997:8). 0
texto dramatico seria simplesmente uma das formas histéricas do
texto teatral. Este óltimo pode talvez entender-se como nome colec
tivo: a sua nomeaçao resulca simultaneamente de um compromisso
de ordern semantica e de ordem pragmática, pois o nome teria de
agregar o vasto conjunto de textos que actualmente se oferecem aos
mecanismos de apropriaçäo teatral. Como o provam os inümeros
espectaculos do nosso quotidiano anistico, a destinaço cénica já
TEATRALIDADES
161
nao obriga este texto a condiçao dramatica, pois o dominic, da tea
tralidade está para alérn do estrito domInio do drarnatico. Como
mostrou Elizabeth Burns, em estudo pioneiro, o berço socialmente
convencionado da teatralidade é suficientemente generoso para aco
Iher textos das mais diversas proveniências (cf. Burns, 1972).
São inárneras as formas não-dramaticas que o texto teatral con
temporâneo pode assumir. A maquinaria do teatro garante-Ihe urna
existéncia espectacular, já sob a forma de condicionamento institu
cional. Pressionado pelo seu tempo, o texto teatral libertou-se do
contrato dramatico a que um momento particular da Historia o
tinha obrigado. Por esta razão, os géneros dramaticos tradicionais
revelam a nao-contemporaneidade do seu fechamento organicista.
Quando Heiner Muller, por exemplo, pretendeu reactivar uma
forma dramatica, o salto temporal tornou irreconhecIvel a estrutu
ração do texto de partida. Hamlamachine, teve de falar outra lin
guagem. A máquina é aqui a do próprio texto, enquanto metafora
de um sentido que se constrói em processo. Por isso Muller intitula
os volumes que recoihem algumas das suas traduçoes isabelinas de
Fdbricas Shakespearianas. Os textos destes volumes avançam para
além do dramatico convencionado: incluem discursos ocasionais,
explorarn a materialidade do texto em soluçöes graficas ineditas, a
acção e atravessada por recorrências, monologos, e o ritmo do verso
alterna corn o registo prosódico.
Quando recorre a estratégias metateatrais, o texto teatral
encena no seu interior a própria crise contemporânea do dramatico.
Veja-se o caso de Richard Foreman
a par de Robert Wilson, o
nome que mais tem concentrado a atenção da critica actual. Em
Eddie goes to poetry city, as quatro primeiras intervençôes iniciam-se
com a repetição constante de uma sintomática premissa: <df there is
a play”. Cada urna ironiza corn outras tantas qualidades drarnaticas.
A saber: ((If there is a play, a curtain would be drawn. And the
audience would be in darkness>’; df there is a play, a room would be
visible...>’; If there is a play, a line of dialogue would suddently
emerge from the silence of a dimly illuminated space’>; df there is a
play, the room would be crowded with men and women in evening
dress’> (ci Foreman, 1995:3-4). A traduçao crItica deste programa
—
162
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
questiona, de uma vez, categorias drarnaticas tao importantes como
o espaco, o dialogo ou a personagem. A prirneira das prernissas,
note-se, ao interrogar a separação entre a plateia e o pübiico, intro
duz-nos a urn dos atributos rnais visiveis do moderno texco teatral:
o seu carácter performativo. 0 texto pede o leitor nurn grau diverso
do que era solicitado pelo drama. Mais do que isso, ele deixa de se
apresentar como sujeito passivo de uma encenação unIvoca que os
alunos da escola poderiarn depois adivinhar ou experimentar. Por
vezes, coloca-se mesmo para alérn da distincao classica entre texto
prirnário e texto secundario. Esta ambiguidade e o efeito da passa
gem decisiva de urn regime de representacáo (Dar-stellung) para urn
).
46
outro de proeluçao (Her-scellung) (Poschmann, op. cit.:
pane nesta
tornado
tem
eo
0 teatro português conternporân
deriva, ora praticando urna escrita de inspiracâo pos-drarnacica, era
aproxirnando-se de criaçöes de teor performativo, corno sucede
corn Lucia Sigaiho ou corn os trabaihos mais visionarios d’O
Bando, por exernplo. Urn sintorna desta participaçâo pode encon
trar-se nos cartazes e nos anóncios que semanairnente aparecern
publicados nos jornais: jovens criadores assumem a adapzaçao tea
tral de textos de proveniéncia dIspar; encenadores menos jovens,
veja-se o caso de Jorge Silva Melo, produzern textos para teatro a
partir de serninários de escrita criativa. Frometeu, do citado Jorge
Silva Melo, é urn caso exemplar desta tendéncia. Na versão impres
sa, o texto surge corn o subtItulo de Rascunhos. 0 termo e particu
larmente feliz quanto a ilustraçao das alteraçöes que tenho vindo a
descrever. A referida passagern da representacáo para a produçao é
assumida em termos expilcitos. Frometeu chega ser, nas palavras do
próprio autor, urn rexto em que ele ((gostava de partilhar a produ
cáo do próprio pensarnento (Melo, 1997:182, itilico meu). Serao
peças, serão notas?’>, pergunta-se o autor. 56 a proposta ecuménica
de uma textualidade teatral podera livrar a pedagogia do texto dra
mático de encaihar na dnvida sobre as questOes relacionadas corn a
identidade discursiva que o teatro actual ihe suscita. Permito-me
char, a este propósito, a opinião de J. Veltruski, urn semioticista da
primeira geração, para quem a <querela sern fim acerca da natureza
do drama, isto é, se é urn género literario ou urna peca teatral, é
TEATRALIDADES
163
inteirarnente fütil (...) uma coisa não exclui a outra (apud Gums
bourg, 1988:164). Esres Rascunhos são-no pacificamenre e sem
trauma, apesar da resisréncia de Silva Melo aos ((pudins’> da escrita
colectiva, tao cm yoga: Quem quisesse escrevia rextos que cram
discutidos. Cenas, variantcs, parafrases, contrapropostas>’ (Melo,
1997:183). 0 menu é rigorosamente intertextual: entre o Prometeu
Agrilhoado, excertos da acta do julgamento de Boukharine, o Mani
festo do Panido C’omunista, a pocsia de Comes Leal e os Dialoghi de
Cesare Pavese. Abertura, performatividadc, intertexrualidade: cstes
Rascunhos são certamenre uma courada para trés dos mais celebres
cavaleiros da pos-modernidadc.
logo e interpretação
Urn segundo factor tern vindo a influenciar a relaçao do teatro
corn a escola, na sequéncia do reconhecimento das virrudes pedago
gicas da cena. Modernidade, escolarizaçao e pedagogia foram trés
vecrores que deflniram o capital educativo do rearro, apesar dos mu
meros preconceitos que hisroricarnente o acornpanharam
a
recusa do reatro sempre escondcu uma resisréncia geral aos meca
nismos da seduçao. Ainda antes do aparecimento da moderna peda
gogia, instituiçôes seculares e religiosas exploraram as vanragens do
contrato corn a cena. Recorde-se o projecto jesultico de urn tearro
retorico-moral, Lie! ao ‘cxercIcio espiritual’ de Loyola. Recordem-se
ainda o cenário didactico do reatro iluminista e a utopia da escola
republicana, lentarnente encenada por varios palses ao longo de
Novecentos. A própria máquina de propaganda toralitaria colocara
o tearro ao serviço da cararse ideológica.
Corn o advento das pedagogias centradas no aluno, o teatro
surgiu na escola como elemento potenciador do desenvolvirnento e
da sociabilizaçao do indivIduo (cf. Redington, 1983). Esre rnovi
mento alargou-se de forrna diversa enrre os vários palses europeus,
segundo urn calendario que espelhava certa diferença de rirmos
nacionais. A entrada do teatro verificou-se desde os prirneiros anos
de escolarização. Corno se podc let no (<Preârnbulo), a urn rccente
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
164
manual de Expressao Drarnatica, <<as actividades teatrais tern agora
direito de cidadania nos estabelecirnentos escolares>’ (cf. Landier,
1993). Entre os metodos activos, o teatro de marionetas tornou-se
urn clássico. Em 0 Fantoche Ajuda a Crescer, Isabel Silva Costa sin
tetiza a força emancipadora que a psicologia da infancia percepciona
cia arte dos bonecos. Como nas sessOes de expressäo dramatica, a
palavra-chave é aqui o jogo. E o jogo que no processo educativo res
ponde aos impulsos lüdico, social on cognitivo.
Na Europa, o teatro ia educaçao institucionalizou-se a partir
dos anos 60 e 70. Integrou-se noutros nIveis de ensino e beneficiou
do apoio de prograrnas especIficos, virados para o incremento de
contactos entre a escola C OS agentes do mundo teatral, sobretudo ao
nIvel de actores e de encenadores. De urn modo geral, o teatro pas
sou a ocupar urn espaço extracurricular, préxirno daquele que a
escola dedicava as artes. Em certos paises, a Expressao Drarnatica
aparece corno urna disciplina de opção, podendo <<ajudar a conscruir
rnóltiplas pontes entre a arte e o ensino’> (Landier, op. cit.: 12). Sen
tindo a presenca do teatro na escola, encorajada ainda pelos desen
volvimencos mais recentes no estudo do teacro, a pedagogia do rexto
dramatico viu facilitado o salto, frequenternente mortal, da pagina
para a cezza. Limiro-me, por agora, a produzir aqul algumas obser
vaçöes a propósito da natureza e da legitimidade deste salto. 0 para
digrna do jogo cénico, cujo ludismo era originalmente destinado a
emancipação de alunos nos primeiros anos de escolaridade, através
de exercicios destinados a afirrnaçao e a expressão do individuo, che
gou entretanto aos ültimos programas da disciplina de Português:
<<A especificidade do texto dramatico ieva-o a set encarado como jogo,
corisiderados os objectivos e as exigências da cena. A relaçao entre a multi
plicidade de linguagens que o especticulo teatral implica (cenário, ilumina
çio, sorn, objectos, vestuirio, caracterização, marcaçio, gesto....) pode servir
para desencadear a criatividade de maneira a manifestar-se o entendimento
do texto ou da situação de que se partiu, fazendo-se dde uma recriaçäo na
perspectiva do encenador. Neste sentido, é recomendavel que o aluno dra
matize cenas ou construa pequenas peças de teatro e mesmo guiöes destina
dos a televisio>’ (Portugués A e B Prograrnas do 10.0, 11°c 12.° anos).
—
TEATRALIDADES
165
Atenda-se nas graves implicaçoes destas propostas. Dispenso
me de comentar as vantagens do treino precoce em scrzpt televisivo.
Em primeiro lugar, ao insistir apenas na especificidade do texto dra
mático, corno virnos acima, este argumento pressupöe a marginali
zação de parte importante do património textual do teatro contern
porâneo. Em segundo lugar, a set levado a letra, uma tal concepção
reduziria a interpretação do texto a urn jogo ou a urn exercicio de
adivinhaçao: ao aluno e pedido para imaginar, mentalmente ou no
teatro da sua escola, a encenação do texto que tern pela frente.
0 equIvoco está em pensarmos que a encenaçäo de urn texto dis
pensa o acto interpretativo, corno se o trabaiho critico fosse redutI
vel a urna sirnples transposiçâo medial. Pelo contrário, tanto o texto
corno a cena exigern ambos a disponibilidade crItica do leitor e do
espectador
a não ser que a escola pretenda subsidiar gratuita
rnente a dormencia da sociedade do espectaculo. Ideias corno esta
resultarn da pressão de uma nova vulgata que, em lugar do texto,
julga agora a cena como a justificaçao ültima para a existência da
letra. A fetichizaçao pedagogica da representacão do texto dramatico
não pode rasurar o confronto necessário do leitor corn o texto,
sobretudo quando o encontro ocorre na sala de aula. A representa
ção do texto dramatico equivale sernpre, em terrnos sernióticos, a
urna segunda escrita. Ora, é na prirneira escrita que a escola se
encontra corn Gil Vicente ou corn Alrneida Garrett: <(‘When a dra
rnatist writes a play, he is not writing a story which others can adapt
for perfornance: he is writing a literary work in such a rnanner that
it can be directly performed>’ (‘Williams, 1970:170). Na prática
escolar, o texto drarnatico parece por vezes 56 existir corno pretexto
para urn jogo algo excéntrico na ada de Portugues.
0 teatro legitirnou a sua presença na escola ao contribuir para
a reconciliaçao dos alunos corn os textos do passado. Esta reconci
liaçao, apesar de forçar o teatro a urna sintonia instrumental corn os
conteudos curriculares, só podera acontecer se souber integrar a
dernora e o esforço inerentes a leitura e interpretacão dessa rnesrna
herança textual. Unia condiçao para se atingir ml objectivo passa
certarnente pela capacidade da escola em resolver a oposição entre o
teatro-forrnaçao e o teatro-produçao. Se o prirneiro cornpreende o
—
166
FERNANDO MATOS OL[VEIRA
treino da leitura, da escrita e o encontro ético corn os valores do
património textual, a produçao de teatro ern contexto escolar, por
seu lado, tern sido objecto de aiguns equivocos. A própria escola
cede frequenternente a urn uso publicitário das suas incursöes tea
trais, a bern do reconhecirnento cornunitário. Os encontros de tea
no escolar contribuern muitas vezes para a pacificaçao do tecido
social envolvente e para a celebraçao de projectos educativos, sosse
gando assirn as instituiçöes e os pais dos alunos. Mas a encenaçáo de
urna peca na escola, mesrno quando se traduz na existéncia de urn
atelier de teatro, deveria gent corn especial cuidado as consequên
cias da selecçao do elenco, pot exemplo, alargando as actividades de
produçao ao major nórnero de alunos e maxirnizando a multiplici
dade de competências a solicitar ao longo do processo de encenação.
0 risco de exclusão, causado pot urn rnimetismo profissional que a
escola quase nunca comporta rnateria]rnente, pode bloquear o
acesso dos alunos ao rnelhor que o teatro Ihes pode dan: induçao ao
colectivo, contra a sociabilidade fragmentada da contemporanei
dade; criação de urn espaço simbólico capaz de organizar as referen
cias e de semantizar a experiéncia; contacto vivo corn a palavra tex
tual; potenciar a irnaginaçäo e a sensibilidade.
Estudos Teatrais
A arnbiguidade que caracteriza a presença do teatro ern con
texto escolar verifica-se também no modo corno os esrudos teatrais
se apresentam nos nIveis supeniores de ensino. Dividido entre a uni
versidade, as Escolas Superiores de Educaçao e as instituiçOes dedi
cadas ao ensino profissional do teatro, a ante do especraculo vive
urna realidade diversa em cada urn destes instirutos: na universi
dade, mantérn-se simultaneamente dentro e fora das letras; nas esco
las profissionais de teatro, a urgéncia da profissao parece ter claro
ascendente sobre a dernora que os Iivros pedern; finalmente, em
Escolas Superiores de Educaçao como a de Coimbra, os estudos tea
trais orientarn-se para a animaçäo drarnatica e para a educacao.
TEATRALIDADES
167
0 trajecto do teatro pelos corredores da universidade, a mais
antiga das instituiçôes mencionadas, ilustra as dificuldades de inte
gracão curricular das artes da cena. 0 estudo universitário do texto
drarnatico procurou desde cedo expressão (e legitimaçao) teórica
para a ansiedade especracular que parecia conraminar o seu trabaiho
textual. Perante os obstaculos que a filologia levantava a qualquer
incursão interdisciplinar, a partir de meados dos anos 60, o estudo
do drama encontrou nas promessas da serniórica uma hipotese de
redençao teórica. Na verdade, a serniótica vinha dar resposta ao
de signiflcacao que segundo U. Eco exigiria urn esforço
suplernentar a analise do teatro (apud Guinsburg, 1988:17). Se o
surgirnento da semiótica tearral vinha conferir ao esrudo do drama
pane da cerrificaçao teórica que este necessitava para se afirrnar
perante a acadernia, a nova ciência da significacao oferecia-ihe igual
mente urn metodo cuja produrividade rapidamente se traduziu em
inórneros ensaios e manuais. Após a investigação pioneira do CIr
cub LinguIstico de Praga, nornes corno os de Tadeusz Kowzan, Keir
Elam, Marco de Marinis, Erika Fischer-Lichce, Patrice Pavis ou
Anne Ubersfeld, entre outros, puderam construir urn programa de
leitura do fenorneno reatral que ainda hoje se mantém activo. E
muito significativo, alem de indicador do sucesso estratégico deste
curso teórico, que os protagonistas da serniótica teatral estejarn
actualrnenre integrados em departamentos universitários ocidentais,
sejam eles intitulados Theatre Studies ou Etudes Théatrales.
Curiosarnente, os motivos da negacão da cidadania acadernica
ao teatro são os rnesrnos que recenternente vêm mostrando o seu
ascendenre metaforico sobre vários campos disciplinares. A perfor
matividade invadiu os estudos culturais, ern todas as suas variantes.
As questôes da identidade que ocupam a agenda culturalista, pos
colonial, ferninista, gay ou lesbica, tern sido apresentadas e descritas
corn o auxIlio de urn léxico que sintoniza corn Os estudos teatrais.
0 alcance critico da ‘performance’ tern interessado a todos as incur
sOes antiessencialistas. Mas os estudos teatrais nao parecem ter bene
ficiado com tais ernpréstirnos, pelo contrário. Nern mesrno a afini
dade suplernentar entre a imagem popular da arte do teatro e a
actualidade que as rnanifesraçoes arrIsticas lowbrow gozam entre as
162
FERNANDO MATOS OLIVEIR4
novas geraçOes academicas parecem ter contribuldo para o reconhe
cirnenro dos departamentos de eseudos teatrais. A conceptualidade
forjada pelos dos estudos teatrais continua, ainda assirn, prolife
rante. Dc algum modo, o teatro e objecto arnputado na universi
dade, no ensino secundario, nas escolas de teatro e ate nas escolas
superiores de educaçao, onde transrnigra para o universo da expres
são dramática. Mas, como afIrmou urn professor experiente, é sina
deste tempo termos (proliferaçao em todo o lado e integracio em
lado algurnn (Barker, 1995:102).
Os programas universitários continuam centrados no estudo
do drarna. Este rrabalho decorre segundo a agenda dominanre dos
estudos lirerarios. Sucede assim, porque o carnpo teatral não chega
sequer a ter oportunidade de responder corn os seus argumentos, no
terreno universitário, a epistemologia literária que o circunda. 0
próprio estudo do drama recalca frequentemente a reoria reatral;
quando muito, concede a teoria dramatica que meihor serve a sua
poiltica herrneneutica. E rnuito improvavel que urna aula sobre
drama apresente A. Appia seja a quem for. E claro que o inverso
também não é defensavel: a teoria tearral não pode divorciar-se do
texto so para se afirrnar perante a teoria literaria. No entanto, este
esquecimento por pane da universidade, apenas faz parecer malor a
debilidade de uma epistemologia teatral que, de facto, rnenoriza os
estudos teatrais perante as outras disciplinas (Marranca, 1996:158).
Parte do problema rem que ver corn o lugar das arres, ou da falta
dde, no nosso horizonte universitário. Como prova a histOria do
modernismo e das vanguardas, a predisposicao interdisciplinar do
teatro 56 teria a ganhar com a proxirnidade das arres, não fossem
estas vItimas de identico oscracisrno.
Em Portugal, a bondade da actual Lei de Bases do Sisrerna
Educativo propöe para o terceiro ciclo, no seu Artigo 8°, a aquisi
cáo sisternática e diferenciada da cultura moderna, nas suas dimen
söes humanIstica, lireraria, artIstica, fIsica e desportiva, cientifica e
tecnolOgica”, rnas a realidade material e curricular das escolas ante
cipa, logo nos estudos secundarios, a exclusao das aries que a uni
versidade rnais tarde cauciona. 0 Artigo 48.° trata de as rerneter
para urn estatuto complementar que visa sobretudo a ocupaçáo dos
TEATRALIDADES
169
tempos livres: ((Estas actividades de complemento curricular visam,
nomeadarnente, o enriquecirnento cultural e cIvico, a educaçao
fIsica e desportiva, a educaçao artIstica e a inserção dos educandos
na cornunidade>>. A universidade tern, ela própria, urn passado rela
cionado corn a gestão complernentar do teatro: náo foi exactamence
por representar a funçao tradicional de cornplernento cultural que o
teatro universitário adquiriu estatuto departarnental.
0 caso frances traduz a relaçao Intima entre a institucionaliza
ção dos estudos teatrais e abertura progressiva as artes e ao contem
porâneo. Quando Jacques Scherer cria na Sorbonne o prirneiro ins
tituto de estudos teatrais, esse ano de 1959 coincidia corn o auge do
Teatro Popular, corn a inIcio cia descentralizaçao cultural-teatral
ainda corn a vaga brechtiana que haveria de rnobilizar autores e cr1tAcos corno R. Barthes. Em 1965, Denis Bablet está já em condiçoes
de associar o CNRS a projectos fundadores da rnoderna investiga
cáo teatral, ern areas como a cenografia e a encenaçáo. Os aconteci
rnentos de 1968 tern neste processo uma irnporcmncia decisiva, ao
abrirem a universidade a cultura contemporânea e ao estabelecerern
conriguidades entre os campos da investigação e da criaçáo. Actual
rnente, a Franca possui cerca de quinze universidades corn departa
rnentos de estudos teatrais. 0 quotidiano dents centros, rnascados
por diferenças curriculares rnais ou rnenos profundas, continua con
tudo condicionado por urna existéncia rnaterialrnente deficitária,
corn debilidades no equiparnento e na constituição do corpo
docente. Urn traço que caracteriza a quase generalidade dos depar
tarnentos europeus, contrariarnente a (alguns) congéneres none
arnericanos, é precisamente a contingéncia que preside a forrnaçao
das equipas docentes.
Nao é exactarnente este o caso em Portugal, onde a rarefacçao
dos estudos teatrais pouco contribui para a sua visibilidade. No ano
de 2002, apenas as Universidades de Lisboa, de Evora e de Coimbra
dispunharn de cursos diversarnente cornpromeridos corn os estudos
teatrais. De urn rnodo geral, a presença do teatro nas resrantes uni
versidades rnantém o vinculo subsidiario relativamente aos departa
mentos de literatura. Os rnotivos deste despovoarnento da paisagern
teatral são variados e, por certo, academicamente defensaveis,
7O
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
cenharn des origem na politica curricular ou na politica financeira.
Entre nos, item o rastilho da semiótica teatral, nem a chegada tardia
do teatro a educaçao, a partir da Revoluçao de 74, logrararn urn
movimento de institucionalizaçao dos estudos teatrais. Pot outro
lado, a cooperação entre as instiruiçöes nacionais empeni-tadas nos
escudos teacrais é praticarnente inexistente, apesar de a troca de sabe
res e de experiências set francamente aconselhavel entre as escolas
profissionais e as universidades. Estas ültirnas desconhecem a inclu
são de artistas nos seus projectos educativos, bloqueando o estabele
cirnento de mediaçoes como a permitida pela figura do artista-resi
dente, por exemplo. Mas a vocação da universidade para a
investigacão constitui tambem urn capital que beneficiaria toda as
organizacóes corn urn papel activo no campo do teatro. As acçOes
desenvolvidas pela secção educativa do Teatro Nacional de São Joao
e o cruzamento prornovido pelo CENDREV encre a encenação e a
reflexão conscituem dois bons exernplos das vanragens das parcerias
crIticas e/ou criativas.
BIBLIOGRAFIA
AA. VV., (s/d) Os Cartazes de Paris (Revoluçao & Maio de 68), Lisboa, Dellos.
(1981) ((Filmer le theatre>>, in C’ahiers theatre Louvain, N.° 46.
(1987) Distancing Brecht>’, in Theatre Journal, Vol. 39, N.° 4.
(1991) Puck
‘El titerey las otras artes Bilbao, Centro de Documenta
cion de Titeres.
(1996) 0 Cinema Vai ao Teatro, Lisboa, Cinamateca Portuguesa/Museu
Nacional do Teatro.
(2000) Barcas, Porto, Teatro Nacional S. Joao.
ADolaio, Theodor, (1975)Rede uber Lyrik und Gesellschaft, in Noten
zur Literatur I, Frankfurt am Main, Suhrkamp, pp. 73-104.
ADRADOS, Francisco R., (1975) Festival, Comedy and Tragedy The Greek
Origins of Theatre, Leiden, E. J. Brill.
ALMAGRO, Juan Manuel Azpitarte, (1975) (<La ‘ilusión’ escénica en el siglo
XVIII,>, in Cuadernos Hispanoamericanos, N.° 303, pp. 657-676.
ALMEIDA, Fialho, (1992) Centenario doTeatro deS. Carlos>, in Os Gatos,
Vol. VI, Lisboa, Circulo de Leitores, pp. 196-201.
ALTMAN, Rick, (1996) ((Otra forma de pensar la historia del cine: urn
modelo de crisis”, in Archivos de Li Filmoteca, N.° 22, pp. 6-19.
ANTUNES, Acácio, (1917) 0 Cinematographo, Lisboa, Arnaldo Bordalo
Editor.
APPIA, Adolphe, (sld)A Obra de Arte ThtaL Lisboa, Arcadia.
Arnott, Peter D., (1989) Public and Performance in the Greek Theatre, Lon
don and New York, Routledge.
ARTAUD, Antonin, (1993) 0 Teatro e o seu Duplo, São Paulo, Martins Fontes.
AUSL4NDER, Philip, (1 987)<Towar& a Concept of the Political in Postrnodern
Theatre>>, in Theatre JournaL N.° 39, pp. 20-34.
—
FERNANPO MAiDS OLIVEIRA
172
4 decor de theatre. De 1870 a
BABLET, Denis, (1975) Esthdtique generate u
1914, Paris, CNRS.
BALAKIAN, Anna, (1969) El movirniento simbolista, Madrid, Guadarrama.
BMUSH, Jonas, (1985) The Anti-theatrical Prejudice, Berkeley, University
of California Press.
BARRAULT, Jean-Louis, (1959) Nouvelles reflexions sur te theatre, Paris, FLmarion.
BARTHES, Roland, (1964) Essais critiques, Paris, Seuil.
for What Theatre?” in New
BARKER, Clive, (1995) What Training
Theatre Quarterly, Vol. XI, N.° 42, pp. 99-108.
BARTOLI, Francesco, (1991) La Supermarioneta de Craig. Preámbulo del
teatro abstracto>, in AA.VV., 1991, pp. 16-21.
BENjIN, Walter, (1992) cA Obra de Ant na Era da sua Reprodutibili
dade Tecnica’, in Sobre Arte, Ticnica, Lingrtagem e Politica, Lisboa,
Relogio d’Agua.
BERNHARDT, Sara, (1994) ElArte del Teatro, Barcelona, Parsifal Editores.
BERNSTEIN, Richard J., (1991) The New Consteliation. The Ethical-Politi
cal Horizons of Modern it-ylPostinodernity, Cambridge, Polity Press.
BtRJUNGER, Johannes, (1991) Theatre, Theory Posnnodernism, Blooming
ton and Indianapolis, Indiana University Press.
Bzsv, Herbert, (1987) The Eye ofPrey. Subversions ofthe Postrnodern, Bloo
mington, Indiana University Press.
BWMENBERG, Hans, (1990) Naufrdgio corn Espectador, Lisboa, Vega.
BOAI, Augusto, (1979) Theatre ofthe Opressed London, Pluto Press.
BOGATYREV, Piotr, (1999) Czech Puppet Theatre and Russian Folk Thea
tre”, in The Drarna Review, Vol. 43, N° 3, pp. 97-114.
BRADBY, David; SpARKs, Annie, (1997) Mite en Scene. French Theatre Now,
London, Methuen.
segmentos duma
BMIqcO, joao de Freitas, (1978) <<Mósica e Literatura
42,
Lisboa,
tras,
pp. 21-35.
relaçao inesgotavel”, in ColdquiolLe
BRAUNECK, Manfred, (1993) Theater irn 20. Jahrhundert. Prograrnrnschrrf
ten, Stilperioden, Refbrrnrnodelle, Hamburg, Rowohir Verlag.
BRECHT, Bertolt, (1967) Gesamrnelte Werke, 20 vols., Frankfurt am Main,
Suhrkamp Verlag.
(1973) Arbeitsjournah 2 vols., Frankfurt am Main, Suhrkamp \èrlag.
—
—
TEATRALIDADES
173
BIuTO, Manuel Carlos de, (1989) Opera in Portugal in the Eighteenth Cen
tiny, Cambridge, Cambridge University Press.
(1 989a) Estudos de Historia k Müszca em PortugaL Lisboa, Editorial
Estam p a
BROOK, Peter, (1989) The Shfiing Point. 40 Years ofTheatrical Exploration.
1946-1987, London, Methuen.
BURNS, Elizabeth, (1972) Theatricality. A Study ofConvention in the Thea
tre and in Social Lfr, London, Longman.
Cwpos, Agostinho de (1924) Ler e Tresler, Lisboa.
CAJusON, Marvin, (1993) Theories of the Theatre, Ithaca/London, Cornell
University Press
CARVALHO, Mario Vieira de, (1976) A Misica e a baa Ideologica, Lisboa,
Editorial Estampa.
(1978) Ectes Sons, Faa Linguagem, Lisboa, Editorial Estampa
(1983) <(Do teatro de Gil Vicente ao teatro de Wagnen’, in l7ertice,
No 454, pp. 29-39.
(1993) Pensar 6 Morrer ou a Teatro de São Carlos, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
(1999) Razao e Sentimento na Comunicaçao MusicaL Lisboa, Relogio
d’Agua.
CoSTA, Alves, (1954) Breve I-Iisiória eLi Imprensa Cinematograjica Portu
guesa, Porto, Cineclube do Porto.
COSTA, Isabel Alves; Baganha, Filipa, (1991) 0 Fantoche queAjuda a Cres
cer, Porto, Ediçoes Ma.
COSTA, Joao Benard da Costa, (1991) Histórias do Cinema, Lisboa, INCM.
COTERILLO, (1986) <<Festivaliris, in El Publico, N038, p. 3.
CRAIG, Eward Gordon, (1990) LArtael Teatre, Barcelona, Institut del Tea
tre.
Claire (dir.), (1997) Avignon. 50 Festivals, Paris, Actes Sud.
MAN, Paul, (1984) ‘<Aesthetic Formalization: Klejst’s Uber eLis Mario
nertentheater’, in The Rhetoric of Romanticism, New York, Columbia
University Press, pp. 263-290.
DAVID,
DE
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
174
Guy, (1991) A Sociedacle do Ecpectdculo, Lisboa, Mobilis in
Mobile.
DERRIDA, Jacques, (1989) <<El teatro de Ia crueldad y Ia clausura de Ia
representaci6n, in La Escritura y La Difrrencia, Barcelona, Editorial
Anthropos, pp. 318-343.
DE T0R0, Alfonso, (1990) Semiosis teatral postmoderna: intento de un
modelo, in Genus, Vol.9, pp. 25-5 1.
Didrio etc Noricias, Lisboa, 1920-1935.
DIDEROT, Denis, (1959) Oevres Esthetiques, Paris Editions Gamier.
(1993) Paradoxo sobre o Actor, Lisboa, Hiena Editora.
DORT, Bernard, (1988) La representation emanctpl, Paris, Actes du Sud.
DEBORD,
Norbert, (1992) A Busca dci Excitaçao, Lisboa, Difel.
(1989) 0 Processo Civilizacion4 Lisboa, Ediçoes Dom Quixote.
FEHER, Ferenc, (1985)<<Lukács, Benjamin, Theatre”, in Theatre Journal,
Vol. 37, N.° 4.
Friuni, António J., (1986) A Fotografia Animada em Portugal, Lisboa,
Ediçao da Cinemateca Portitguesa.
von ihm
von Brecht aus
FIEBACH, Joachim, (1989)<<Nach Brecht
fort?”, in Heise, 1989, pp. 171-188.
FIGuEIRED0, Fidelino de, (1966) De Regresso de Hollywood...”, in Ideias
dePa4 Lisboa, Portugália Editora, pp. 121-133.
FIScHER-LEcHTE, E., (1993) Kurze Geschichte des deutschen Theaters,
Tubingen und Basel, Francke Verlag.
FOREMAN, Richard, (1995) My Head was a Sledgehammer, New York,
Overlook Press.
)”Ir ao cinema nos anos 30”, in LerHistdria
4
FRANç& José-Augusto, (199
No 26, pp. 117-130.
(1995) <<A cultura cinematografica portuguesa em anos passados>’, in
Senso, N.° 1, pp. 33-47.
ELIAS,
—
—
Ron, (1995) (Con)Fusing Theory and Prac
tice: Bridging Scholarship and Performance in Theatre Pedagogy, in
Theatre Thpics, Vol. 5, N.° 1, pp. 69-80.
GOFFMAN, Erving, (1993) A Apresentaçao do Eu na Vida etc Todos as Dias,
Lisboa, Relógio d’Agua.
GAINOR,
J. Ellen;
WtLsoN,
TEATRALIDADES
GUINSBURG,
175
J. et at. (org.), (1988) Semiologia do Teatro, São Paulo, Edi
tora Perspectiva.
HEISE, Wolfgang (ed.), (1989) Breeht 88. Anregungen zum Dialog uber die
VernunfiamJahrtausende, Berlin, Henschelverlag Kunst und Gesells
chaft.
HERDINA, Heinz, (1989) <Postmodernes Interieur>, in Heise, 1989:246255.
HUIZINGA, Johan, (1988) Homo Ludens. Essai sur lafonction .cociale dujeu,
Paris, Gallimard.
(1993)Postmodernism, or the Cultural Logic of Late
Capitalism, London, Verso.
JAMESON, Fredric,
(1988) <(Bilder der Trostlosigkeit und Zeichen des Mangels. Zum deutschen Drama der Postmoderne, in Tenaenzen des
Gegenwartstheaters, Wilfried Fleck (ed.), Tubingen, A. Francke Ver
lag, pp. 157-176.
KERMAN, Joseph, (1990) A Opera como Drama, Rio deJaneiro, Zahar Edi
tor.
KLEIST, Heinrich von, (1988) Sobre el teatro ek marionetasy otros ensayos de
arteyfilosofia, Madrid, Hiperión.
KRUGER, Hans-Peter, (1989) (4Postmodernes beim jungen Brecht ?‘>, in
Heise, 1989, pp. 147-170.
KAFITZ, Dieter,
de, (1924) Teatro Futuro. Visno de uma Nova Drama
ttagia, Coimbra, Imprensa da Universidade.
LACOUE-LABARTI-iE, Philippe, (1980) Diderot, Ic paradox de Ia mimésis”,
in Poetique, N.° 43, pp. 267-281.
LANDIER, Jean-Claude; BARRET, Gisèle, (1993) Expressão Dramatica e Tea
tro, Porto, EdiçOes Asa.
LAZARO’ØCrICZ, Klaus; BALME, Christopher (eds.), (1991) Texte zur Theorie
des Theaters, Stuttgart, Reclam.
LEvsR, Janet, (sid) A Loucura do Futeboh Rio de Janeiro, Editora Record.
LONGO, Oddone, (1990) The Theater of the Polisn, in Winkler, 1990:1219.
LACERDA, Augusto
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
76
A Cidade e a Cultura. Urn Estudo sobre Fr4tjcat Cu/turais, Porte, Ediçoes Afrontamento.
e nietzs
LOPES, Oscar, (1994)Ant6nio Patricio: urna Saudade decadente
145-158.
Caminho,
pp.
chiana’, in A Busca do Sentido, Lisboa,
Heritage
symboliste.
drame
le
et
do
Pessoa
(1977)Fernan
LovEs, Teresa Rita,
et creation, Paris, Centro Cultural Portugués.
LorEs, Joao Teixeira, (2000)
Bonnie, (1996) Ecologies of Theater, Baltimore and London,
The Johns Hopkins University Press.
Mao, Jorge Silva, (1997) Prometeu. Rascunhos, Lisbea, &etc.
(1998) <Teatro para os novos reis, religiao dos novos papas>’, in Essas
Outrat Histdrias que hapara Contar, Lisboa, Ediçoes Salarnandra, pp.
29 8-308.
MEmj.How, Vsevolod, (1986) Teoria Teatrah Madrid, Editorial Funda
mentos.
(1991) El ceacro de lena”, in AA.VV, 1991, p. 27.
MICHAUD, Guy, (1947) Message poétique du symbolisme, Paris, Nizet.
MONLEON, José, (1997) oArgentaria: un festival para los teatros espanö
les, in Primer Ado, N.D 270, pp. 29-30.
MORIN, E.; LEFORT, Cl.; Coundray, J.-M. (1969) Maio 68: Inventdrio de
zima Rebelino, Lisboa, Moraes Editores.
MouRA, Gisella de Araüjo, (1998) 0 Rio Correpara o Maracana, Rio de
Janeiro, Fundaçao Getulio Vargas.
MULLER, Heiner, (1979) oDer Schrecken, die erste Erscheinung des
Neuen, in Theater Heute, N.° 25.
(1980) Heiner Muller: Brecht zu gebrauchen, ohne ihn zu kritisie
ten, ist Verrat”, in Theater 1980. Jarhhuch von ‘Theater Heute pp.
134-135.
(1985) Shakespeare Factory 1, Berlin, Rotbuch Verlag.
(1989) Shakespeare Factory 2, Berlin, Rotbuch Verlag.
(1994) Krieg ohne Schlacht. Leben in Zwei Dikiaduren. Eine Auto bio
graphie, Koln, Kiepenheuer & Witsch.
MARRANCJ4,
Almada, (1990) Poesia Lisboa, IN-CM.
(1992) Ensaios, Lisboa, IN-CM.
(1993) Teatro, Lisboa, IN-CM.
NEGREIROS,
TE&TRALIDADES
177
NIETZSCHE, Friedrich, (1973) Richard Wagner in Bayreuth. Der Fall Wag
ner. Nietzsche contra Wagner, Stuttgart, Reclam.
(1988) A Origern da Tragedia Lisboa, Guimaraes Editores.
NIGHTINGALE, Benedict, (1998) The Future ofTheatre, London, Phoenix.
Fernando Matos, (1997) 0 Destino di Mimese e a Voz do Palco.
0 Teatro Por:ugues Modern,,, Braga/Coimbra, Angelus Novus.
ORTEGA Y GASSET, (1982) Ideas sabre el teatro y La novela, Madrid, Alianza
Editorial.
OLIvEIRA,
Antonio, (1919) Dinis e lsabe4 Lisboa, Livrarias Aillaud e Ber
trand.
(1972) D. Joao e a Mascara, Lisboa, Livraria Sam Caries.
(1989) Poesia Completas, Lisboa, Relogio d’Agua.
(1990) 0 Fim. Pedro o Cru, Lisboa, ReiOgio d’Agua.
(1995) Serao Inquieto, Lisboa, Reiogio d’Agua.
PAvIS, Patrice, (1992) Theatre on the Crossroads of Culture, London, Rou
tiedge.
PEDRO, AntOnio, (1949) O Caso do Teatro em Portugals, in Di4rio de
Lisboa, 13 a 27 de Juiho.
PErtEIRA, José Carlos Seabra Pereira, (1975) Decadentisrno e Simbolinno na
Poesia Portuguesa, Coimbra.
PEgEIR, Maria Helena da Rocha, (1979) Estudos €4’ Historia di Cultura
Cl4ssica, Lisboa, Fundaçao Calouste Guibenkian.
PESSOA, Carios J., (1997) <Quem é o Teatro da Garagem?’, in Peregrina
çño. 0 Fin de Ariadne, Lisboa, Teatro da Garagem.
(1998) Pentateuco. Manual etc Sobrevivenciapara o Ano 2000, Lisboa,
Cocovia.
PLATAO, (1990) A Repdblica trad. de Maria Helena da Rocha Peteira, Lis
boa, F.C.C.
P0RTO, Caries, (1997) Fl TEL Pdrria & Teasro de Expressao IbErica, Porto,
Fundaçao Eng. Antonio de Mmeida.
Programas (10.0, 11.0 e 12.0 anos), Ministerio da Edu
Porruguês A e B
PATRICIO,
—
cação, Departamento do Ensino Secundario, 1997.
PROUST, Serge, (1993) Theatre et modernitt; Avignon 1947-1987, Bor
deaux, DEA-Sociologie.
178
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
RAB1LLARD, Sheila, (1991) oDestabilizing Plot, Displacing the Status of
Narrative: Local Order in the plays of Pinter and Sheparth, in Thea
tre JournaL Vol. 43, Pp. 4 1-58.
Por
REBELO, Luiz Francisco, (1979) 0 Teatro Simbolista e Modernista em
tugah Lisboa, IN-CM.
REDFELD, James, (1990) <<Drama and Community: Aristophanes and
Some of His Rivals>, in Winkler, 1990:314-335.
REDINGTON, Christine, (1983) Can Theatre Teach?An Historical and Eva
luative Analysis of TIE, Oxford, Pergamon Press.
RJBEIRO, Manuel Felix, (1983) Figuras e Factos cii flistdria to Cinema Por
tuguês (1896-1949), Lisboa, Ed. Cinemateca Portuguesa.
RaKE, Rainer Maria, (1993) As Elegias de Dulno, Trad. Maria Teresa Dias
Furtado, Lisboa, AssIrlo & Alvim.
ROBERTS, David, (1991) Brecht and Contingency’>, in Art and Enlight
ment, Lincoln/London, University of Nebraska Press, Pp. 183-194.
ROBICHEz, Jacques, (1957) Le symbolisme au theatre, Paris, l’Arche.
RODRIGUES, Nelson, (1993) A Sombra this Chuteiras Imortais, São Paulo,
Companhia das Letras.
(1994) A Pdtria em Chuteiras, São Paulo, Companhia das Letras
RODRIGUES, Urbano Tavares, (1989) <António Patricio et Ic theatre
symbolist français, in Acta.s to Primeiro Congresso to Associaçao For
tuguesa St Literatura Comparada, Vol. I, pp 289-296.
Roussw, Jean-Jacques, (1967) Lenre a M D’Alembert cur son article
Geneve, Paris, Flammarion.
Gunther, (1982) Anarchie in 5cr Regie?, Frankfurt am Main, Suhr
kamp Verlag.
(1996) Theater im Zeitalter der Talk-Shows, in Die Neue Runds
chau, No 104, pp. 143-162.
R7’qGRT, Jean-Pierre, (1992) Introduçdo a Andlise do Teatro, Porto, Edi
çôes Asa.
RUHLE,
Marcello (org.), (2000) Sete Sois Sete Luas. 1993-1999, Pisa, Edi
zioni ETS.
SADIE, Stanley (ed.), (1992) The New Grove Dictionary ofOpera; London,
Macmillan Press.
SACCO,
TEATRALIDADES
179
Jean-Pierre, (2002) 0 Futuro ,149 Drama; Porto, Campo das
Letras.
SARRAzAC,
Jean-Paul; C0HN-BENDIT, DanieL; LEFEBvRE, Henri, (1979) A
Revoba tie Maio em Fran ça; Lisboa, D. Quixote.
Sc&ai&’rrx, Eduardo, (1927) Ja!eias tie Ounos, Lisboa.
(1945) A Religido do Teatro, 2a ediçao, Lisboa, Editorial Atica.
SCHECHNER, Richard, (1985) Between Theater & Antropology, Philadel
phia, The University of Pennsylvania Press.
(1994) Performance Theory, New York and London, Routledge.
SCHERSHOW, Scott Cutler, (1995) Puppets & PopuLir’ Culture, Ithaca and
London, Cornell University Press,
SCHUMANN, Peter, (1994-95) <<La radicalidad del teatro de marionetas”, in
Malic, N.° 3, pp. 58-61.
SERODI0, Maria Helena, (1994) <<0 teatro em Portugal hoje: breve carac
terização”, in Vertice, Ila Serie, N.° 59, pp. 58-66.
SILVA, Celina, (1994) Almada Negreiros. A Busca tie uma Poética da Inge
nuidade, Porto, Fundaçao Eng. António de Almeida.
SILVESTRE, Osvaldo Manuel, (1998) <A ideologia do estético em Almada
(1917-1933) in Almada Negreiros. A Descobersa como Necessidade,
Coord. Celina Silva, Porto, Fundaçao Erig. Antonio de Almeida,
Porto, 1998, pp. 401-415.
SOEIRO, Aifredo Correia, (1990) 0 Instinto Lz Plateia, Porto, Ediçoes
Afrontamento.
SZONDI, Peter, (1974) Das lyrische Drama des Fin tie Siecle, Frankfurt am
Main, Suhrkamp Verlag.
(1992) Theorie des modernen Dramas (1880-1950), Frankfurt am
Main, Suhrkamp Verlag.
SARTE,
TURNER, Victor, (1982) From Ritual to Theatre. The Human Seriousness of
Play, New York, Performing Arts Journal Press.
(1995) The Ritual Process. Structure anti Anti-structure, Berlin/New
York, Aldine de Gruyter.
180
FERNANDO MATOS OLIVEIRA
VELTRUSKI, Jiri, (1988) <‘0 texto dramatico como componence do reatro”,
in Guinsburg, J. et al. (org.), Semiologia do Teatro, São Paulo, Editora
Perspectiva, pp.l
3-189.
6
VL4NA, Mario Gonçalves, (1921) Da Sugessac do Animatografo, Lisboa.
VICENTh, Gil, (1983) Compilacarn tie todalas Obras tie Gil Vicente, Intr.
Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, IN-CM.
VILCHES, Francisca Maria; DOUGHERTY, Dru, (1997) La escena madrileña
entre y
26 1931. Un lustro tie transición, Madrid, Editorial Funda
9
1
mentos.
VIL&R, Jean, (1955) De Ia tradition theAira/c, Paris, L’Arche.
Richard, (1983) Dichtungen und Schrzjien. Frankfurt am Main,
lnsel Verlag.
WWLIAMS, Raymond, (1970) Drama in Performance, London, Penguin
Books.
WINKLER, John J.; ZrrLIN, Froma 1. (edsj, (1990) Nothing to Do with
Dionysos?, Princeton/New Jersey, Princeton University Press.
Wooz.iy, Grange, (1931) Richard Wagner a le symbolisme francais. Les
rapports principaux entre Is wagnIrisme a lvolution tie l’ide’e symboliste,
Paris, PUF.
WRIGHT, Elizabeth, (1989) Postmodern Brecht. A Re-presentation, London,
Routledge.
WAGNER,
EDt TA DO S
O DestTho da Mimese e a Voz do Pa/cc:
o Teatro Português Moderno
Fernando Mates Oliveira
ISBN 972-8115-68-1
DI I I I IflI I I I
9 789728 115883
o
aparato cenico de Novecertos corle’kj
a
veha
rnetalora do teatro urna latitude inesperada A
saturação espectacu!ar da contemporan&daae
ir-tirna o teatro a neqociar a mortaldade do real
ou a dobrar o sono das imagers. Teatralidades
propOe ao leitor doze percursos pelo territOr a do
espectáculo, de acordo corn urn programa de
contiguidades e de alternâncias entre o drama
social e o drama estético. Os seus contextos de
ocorrOncia são, entre outros, Os do jogo, do
cinema, da marioneta, da Opera, da encenaçao,
da
imitaçao,
da
escola
e
da
textualidade
dramatica. A argumentação tende a juntar em
sede
critica
razOes
histOricas
e
teOricas,
drarnatzando ainda o ‘festivo’ que medeia entre a
celebraçao de Avignon e a protesto das ruas de
Maio de 68.
Corn o patrocinio de
cUIMBRA
_
Urna cidade viva.
MIr,STER, 0
04
Cis,,rve,