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Revista GeoSertões Ed. 2016, v. 1, n. 1

2016, Revista GeoSertões Ed. 2016, v. 1, n. 1

A Revista GeoSertões (ISSN 2525-5703) é um periódico eletrônico de publicação semestral da Unidade Acadêmica de Geografia (Unageo), Centro de Formação de Professores (CFP), Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Campus Cajazeiras. A GeoSertões acolhe artigos inéditos de cunho teórico-metodológicos e resultados de pesquisas referentes à Geografia e áreas afins. Sumário Editorial Santiago Andrade Vasconcelos [05-07] Cultura e política em diálogo na Geografia Humana: comentário sobre as possibilidades de se pensar os espaços da interculturalidade Caio Augusto Amorim Maciel [08-21] Multinacionais e neocolonialismo: a atuação da United Fruit Company na América Latina no século XX Gleydson Pinheiro Albano [22-38] Modernizações, o período da globalização e algumas de suas feições geográficas do meio técnico-científico-informacional Santiago Andrade Vasconcelos [39-56] Os limites e as possibilidades do ensino da Cartografia Escolar nas primeiras séries do Ensino Fundamental Paulo Sérgio Cunha Farias [57-73] A importância da área central e suas contribuições para a compreensão e análise da cidade: em discussão o processo de segregação socioespacial João Manoel de Vasconcelos Filho [74-89] Examinando questões do livro didático e da prática docente na geografia escolar do ensino médio: levantamento empírico realizado em Juazeiro do Norte/CE Maria Soares Cunha, Tiago Eurico Sousa Dias Lisboa, Rafael França da Silva [90-100] Meio ambiente na contemporaneidade: significados e sentidos Maria do Socorro Pereira de Almeida e Sérgio Luiz Malta de Azevedo

A GeoSertões é uma revista acadêmica com publicação semestral em meio eletrônico da Unidade Acadêmica de Geografia do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal de Campina Grande. Seu objetivo principal é oportunizar a divulgação de conhecimentos da Ciência Geográfica e áreas afins. EXPEDIENTE EDITOR-GERENTE, EDITOR E EDITOR DE SEÇÕES Dr. Santiago Andrade Vasconcelos, Universidade Federal de Campina Grande (CFPUFCG), Brasil. CONSELHO EDITORIAL Dr. Aloysio Rodrigues de Sousa, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-UFCG), Brasil. Dra. Ivanalda Dantas Nóbrega Di Lorenzo, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-UFCG), Brasil. Dra. Cícera Cecília Esmeraldo Alves, Universidade Federal de Campina Grande (CFPUFCG), Brasil. Dr. Marcelo Brandão, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-UFCG), Brasil. Dra. Jacqueline Pires Gonçalves Lustosa, Universidade Federal de Campina Grande (CFPUFCG), Brasil. Dr. Santiago Andrade Vasconcelos, Universidade Federal de Campina Grande (CFPUFCG), Brasil. CONSELHO CIENTÍFICO Dr. Paulo Sérgio Cunha Farias, Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Brasil. Dr. Gleydson Pinheiro Albano, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES/UFRN), Brasil. Dra. Firmiana Fonseca Siebra, Universidade Regional do Cariri (URCA), Brasil Dra. Emilia de Rodat Fernandes Moreira, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil Dr. Marco Antonio Mitidiero Jr., Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil Dr. Caio Augusto Amorim Maciel, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil APOIO TÉCNICO OPERACIONAL Antônio Lourenço Filho FICHA CATALOGRÁFICA Revista GeoSertões – Unidade Acadêmica de Geografia do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal de Campina Grande. – n. 1 (2016). Cajazeiras: Universidade Federal de Campina Grande, 2016 Semestral: 2016 I Ensino superior – Periódicos. II. Universidade Federal de Campina Grande. III. Título Revista GeoSertões Unidade Acadêmica de Geografia (Unageo) Centro de Formação de Professores, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-UFCG) Rua Sérgio Moreira de Figueiredo s/n - Casas Populares - CEP 58900-000 - Cajazeiras - PB Tel.: (83) 3532-2000 Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index SUMÁRIO Editorial Santiago Andrade Vasconcelos [05-07] Cultura e política em diálogo na Geografia Humana: comentário sobre as possibilidades de se pensar os espaços da interculturalidade Caio Augusto Amorim Maciel [08-21] Multinacionais e neocolonialismo: a atuação da United Fruit Company na América Latina no século XX Gleydson Pinheiro Albano [22-38] Modernizações, o período da globalização e algumas de suas feições geográficas do meio técnico-científico-informacional Santiago Andrade Vasconcelos [39-56] Os limites e as possibilidades do ensino da Cartografia Escolar nas primeiras séries do Ensino Fundamental Paulo Sérgio Cunha Farias [57-73] A importância da área central e suas contribuições para a compreensão e análise da cidade: em discussão o processo de segregação socioespacial João Manoel de Vasconcelos Filho [74-89] Examinando questões do livro didático e da prática docente na geografia escolar do ensino médio: levantamento empírico realizado em Juazeiro do Norte/CE Maria Soares Cunha, Tiago Eurico Sousa Dias Lisboa, Rafael França da Silva [90-100] Meio ambiente na contemporaneidade: significados e sentidos Maria do Socorro Pereira de Almeida e Sérgio Luiz Malta de Azevedo Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index [101-119] EDITORIAL É com satisfação que oferecemos ao público em geral o número inaugural da Revista GeoSertões. Ele surge da vontade da Unidade Acadêmica de Geografia (Unageo), Centro de Formação de Professores (CFP), Campus Cajazeiras, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), em oportunizar mais uma maneira de disponibilizar livremente a produção de conhecimentos sobre a Ciência Geográfica e áreas afins. O curso de Geografia do Centro de Formação de Professores (CFP) foi criado em 1978, quando tornou-se parte da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), posteriormente desmembrado para fazer parte da UFCG. Portanto é um curso com considerável tempo, já tendo formado gerações de profissionais da Geografia, o que o dota de maturidade mais que suficiente para assumir com competência o periódico semestral GeoSertões. Quiçá seja necessário esclarecer a denominação da Revista. A nomenclatura GeoSertões pode gerar controvérsias ao se pensar que seu conteúdo é restrito a trabalhos que tenham como objeto de estudo apenas a temática “Sertão”, o que não é o caso. O nome da Revista refere-se à junção da palavra Geografia com a de Sertão. Por obviedade, o “geo” de Geografia dispensa explicações. Porém, vale esclarecer que a palavra Sertão aqui empregada é apenas uma referência geográfica ao local onde está o campus de Cajazeiras da UFCG (segundo divisão regional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a cidade de Cajazeiras faz parte da Mesorregião do Sertão paraibano). Adotamos a palavra no plural como alusão a variedade de significados que a mesma permite, visando com isso transpor para a política editorial da GeoSertões o aceite a pluralidade teórica e de método e o respeito a diversidade de ideias. Isso significa dizer que aceitamos contribuições que tenham como objeto de reflexão ou pesquisas empíricas de qualquer lugar do Planeta, seja o litoral ou seja o “Sertão”, a grande EDITORIAL Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 5 metrópole litorânea ou a pequena cidade interiorana, os campos úmidos ou os campos “secos” do semiárido; seja ainda o domínio equatorial amazônico ou as monções asiáticas. Enfim, estamos abertos a publicar contribuições sem qualquer restrição geográfica. Na presente Edição inaugural, contamos com prestigiosas colaborações de autores que solidariamente ofereceram suas contribuições para nosso projeto se tornar realidade. Os diferentes artigos deste número, com perspectivas teóricas e metodológicas variadas, são uma amostra da pluralidade que dever ser o norte perseguido pela Revista GeoSertões. O primeiro artigo da GeoSertões é uma contribuição de Caio Augusto Amorim Maciel, intitulado de “Cultura e política em diálogo na Geografia Humana: comentário sobre as possibilidades de se pensar os espaços da interculturalidade”. No artigo o autor explora as possibilidades de diálogo entre cultura e política, baseado principalmente em autores como Iná Elias de Castro e Jean Gottman. Caio Maciel aposta na contribuição dos estudos interculturais como possibilidades de melhor entender a Geografia Política e a organização do espaço, o que seria mais que coerente diante do mundo globalizado. Gleydson Pinheiro Albano oferece-nos um estudo sobre as “Multinacionais e neocolonialismo: a atuação da United Fruit Company na América Latina no século XX”. O autor traz a lume como a multinacional United Fruit Company conseguiu impor suas vontades sobre os Estados latino-americanos durante o século XX, destacando os resultados de uma agressiva interferência externa nas relações de trabalho e no mercado de terras nos países de atuação. É dado maior enfoque sobre alguns pequenos países da América Central, a exemplo de Honduras e Costa Rica, e outros de médio porte da América do Sul como Equador e Colômbia. No artigo “Modernizações, o período da globalização e algumas de suas feições geográficas do meio técnico-científico-informacional” a preocupação de Santiago Vasconcelos, ainda que de maneira preliminar, é compreender as modernizações do período da globalização e algumas de suas feições geográficas, chamando atenção para o fato da necessidade de entender as modernizações territoriais próprias do tempo-presente, este caracterizado pelo meio técnico-científico-informacional enquanto expressão geográfica da globalização. Paulo Sérgio Cunha Farias, com base em suas experiências de ensino, pesquisa e extensão com foco na formação de professores para ensinar Geografia na Educação Básica, principalmente na fase de Fundamental I, oferece-nos suas reflexões sobre “Os limites e as possibilidades do ensino da cartografia escolar nas primeiras séries do ensino fundamental”, enfatizando que as representações cartográficas são de fundamental importância para a EDITORIAL Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 6 construção do raciocínio sobre o espaço geográfico. O autor destaca ainda os limites do ensino da Cartografia Escolar, mas também aponta possibilidades de organizá-lo e realizá-lo, de forma que seja possível alcançar o objetivo almejado. No artigo “A importância da área central e suas contribuições para a compreensão e análise da cidade: em discussão o processo de segregação socioespacial”, de João Manoel de Vasconcelos Filho, a discussão gira em torno da área central como possibilidade de ser um instrumento teórico-metodológico relevante na construção de reflexões, olhares e leituras sobre a cidade. Nas reflexões do autor, ele encaminha suas conclusões afirmando que a elite dominante na cidade conduz, via direcionamento de políticas públicas, a produção e reprodução do espaço urbano, bem como cria seus próprios centros de negócios e serviços. Maria Soares Cunha, Tiago Eurico Sousa Dias Lisboa, Rafael França da Silva lançam suas preocupações “Examinando questões do livro didático e da prática docente na Geografia Escolar do Ensino Médio”, tendo o cuidado de realizar uma pesquisa empírica na cidade de Juazeiro do Norte – CE. No estudo os autores concluem ser necessário uma maior interligação dos assuntos nas obras estudadas, uma vez que os temas aparecem de forma fragmentada ao longo dos livros. Recomendam que os estudos dos conteúdos sejam associados a atividades de pesquisas capazes de gerar discussão sobre o contexto social vivido por docentes e estudantes. Além do mais, defendem uma maior aproximação dos docentes com o mundo acadêmico, já que este pode contribuir com a avaliação e uso crítico do livro didático. Fechando a presente edição, em “Meio ambiente na contemporaneidade: significados e sentidos”, Maria do Socorro Pereira de Almeida e Sérgio Luiz Malta de Azevedo debatem, num primeiro momento, sobre conceitos ligados à ideia de Natureza, Ecologia e Meio ambiente e como estes aparecem com sentidos e significados relacionados à questão ambiental. Num segundo momento é pensado a respeito do sentido político sobre a educação e da atuação da mídia no trato da temática da natureza. Finalizando, vale reforçar que a linha editorial seguida pela GeoSertões prima pela pluralidade das múltiplas “Geografias”, sem puritanismo ideológico, prezando pelo respeito a liberdade de pensar e fazer Ciência, contudo exigindo responsabilidade e rigor. Com esforços e novas aprendizagens, estamos concretizando nosso projeto. Agora, daqui para frente, conclamamos toda à comunidade acadêmica para ler, debater, colaborar e divulgar a Revista GeoSertões. Santiago Andrade Vasconcelos Editor-Gerente da Revista GeoSertões Cajazeiras – PB, primeiro semestre de 2016. EDITORIAL Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 7 CULTURA E POLÍTICA EM DIÁLOGO NA GEOGRAFIA HUMANA: COMENTÁRIO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE SE PENSAR OS ESPAÇOS DA INTERCULTURALIDADE CULTURE AND POLICY DIALOGUE IN HUMAN GEOGRAPHY: COMMENTARY ON THE POSSIBILITIES OF THINK IF THE SPACES OF INTERCULTURALISM Caio Augusto Amorim Maciel1 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Resumo O artigo busca problematizar a assertiva segundo a qual a centralidade territorial do Estado moderno deva ser o foco de uma geografia cultural e política cuja finalidade última estaria em entender a questão da adesão coletiva a um projeto de Nação. Para realizar tal reflexão, propõe o conceito antropológico de interculturalidade, apoiando-se nas ideias de Gunther Dietz (2012) de modo a evidenciar os desafios colocados ao Estado-nação face à diversidade cultural contemporânea, dialogando com os aportes de Jean Gottman (1952) à geografia política, segundo Iná Elias de Castro (2012). Assim, são debatidos os sentidos dos “sistemas de movimento” e dos “sistemas de resistência ao movimento” que organizariam o espaço, cotejando como tais noções – há muito apropriadas pela geografia política – poderiam ser enriquecidas pelos temas trazidos por estudos interculturais recentes. Palavras-chave: Geografia cultural. Geografia política. Estudos interculturais. Abstract The article discusses the assertive according to which the centrality of the modern territorial state should be the main focus of a cultural and political geography concerned to understand the issue of the collective adherence to a national project. To accomplish such reflection, it is proposed the use of the anthropological concept of interculturalism, relying on the ideas of Gunther Dietz (2012) to highlight the challenges placed to the nation state in the face of the contemporary cultural diversity. Allied to this perspective, the paper conducts a dialogue with contributions by Jean Gottman (1952) to the political geography, accordingly to Ina Elias Castro (2012). Thus the senses of "systems of movement" and "systems of resistance to movement" that organize the space are reconsidered, in order to compare how such notions – previously used by political geography – could be enriched by themes brought by recent intercultural studies. Keywords: Cultural geography. Political geography. Intercultural studies. Resumen Este artículo trata de problematizar la afirmación según la cual la centralidad del Estado territorial moderno debe ser el foco de una geografía cultural y política, cuyo objetivo final equivaldría a entender la cuestión de la adhesión colectiva a un proyecto nacional. Para llevar a cabo esta reflexión, propone el concepto antropológico de la interculturalidad, basándose en las ideas de Gunther Dietz (2012) para poner de relieve los desafíos que enfrenta el Estado-nación en frente a la diversidad cultural contemporánea. También lleva a cabo un diálogo con las contribuciones de Jean Gottman (1952) a la geografía política, segunda Ina Elias de Castro (2012). de esta manera, se analizan los significados de "sistemas de movimiento" y "sistemas de movimiento de resistencia" que organizan el espacio, tratando de entender cómo tales ideas - siempre utilizados por la geografía política - podría añadirse a los temas presentados por los estudios interculturales recientes. Palabras-clave: Geografía cultural. Geografía política. Estudios interculturales. 1 Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Coordenador do LECgeo/UFPE - Laboratório de estudos sobre Espaço, Cultura e Política. E-mail: caio.maciel@ufpe.br. MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 8 1. Introdução Este artigo parte das considerações de Iná Castro (2012) acerca das possibilidades de se pensar geograficamente cultura e política, compartilhando o pressuposto da indissociável relação entre essas duas dimensões da vida coletiva. Por outro lado, busca problematizar e atualizar a assertiva segundo a qual a centralidade territorial do Estado moderno deva ser o foco de uma geografia cultural e política cuja finalidade última estaria em entender a questão da adesão coletiva a um projeto de Nação. Para realizar tal releitura, lança mão do conceito de interculturalidade advindo da antropologia, apoiando-se nas ideias de Gunther Dietz (2012) para evidenciar os desafios colocados ao Estado-nação face à diversidade cultural contemporânea. Em primeiro lugar, cabe ressaltar a concepção de Agnew e Muscarà (2012) para quem a geografia política investiga e decifra as maneiras pelas quais considerações geográficas fazem parte de toda sorte de política. Por outro lado, acrescenta-se que a geografia cultural deve integrar o âmbito dos debates sobre “políticas de identidade” características de grupos que conformam a plêiade social em Estados pós-coloniais, em que se perfilam fenômenos recorrentes tais que o surgimento de culturas híbridas, a essencialização de territorialidades étnicas ou a patrimonialização (muitas vezes arrogante) da natureza. Configura-se, assim, um ambiente de turbulências identitárias no qual os sujeitos concernidos vivenciam significativos rearranjos na tríade espaço, cultura e política, cuja base está em processos territoriais que naturalizam, mascararam ou reafirmam certos interesses, ao mesmo tempo em que legitimam novas e velhas formas de poder político. Tal é quadro maior das relações entre geografia política e cultural que emoldura o raciocínio aqui proposto. Sem embargo, cultura continua uma questão de Estado, porém de maneira diferente das situações clássicas a que estivemos acostumados até tão pouco tempo atrás. Para ressaltar tal mudança, o artigo segue a trilha proposta por Castro ao revisitar as ideias do geógrafo Jean Gottmann (1952) sobre sistemas de movimento e sistemas de resistência ao movimento que organizariam o espaço, iluminando o caminho com os temas trazidos pelos estudos interculturais mais recentes. Deste modo, pretende-se aqui refletir de maneira sucinta sobre as consequências do surgimento de conjunturas e estruturas intergrupais de integração/diferenciação que vêm desafiando os pressupostos geográficos das sociedades, pondo à prova o postulado segundo o qual haveria congruência entre sujeitos, identidades, culturas e comunidades – ou seja, uma harmonia expressa em fronteiras nítidas e estáveis entre pessoas, etnias, nações e assim por diante. MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 9 2. Geografia cultural, Geografia política e Estudos interculturais Antes, porém, de relembrar a proposta de Gottmann e definir minimamente interculturalidade, cabe abrir um breve parêntesis para afirmar que uma geografia cultural que não coloca o Estado nacional enquanto problema central pode ser perfeitamente política, apenas apontando fenômenos e problemas que, de imediato, escapam à coesão moral, linguística ou territorial de crenças e valores notoriamente concatenados pelo poder estatal. No dizer de Paul Claval (1999, p.22) a geografia fundamentada na abordagem cultural é, em essência, política, uma vez que ela evidencia os instrumentos e as maneiras pelas quais os indivíduos e as sociedades se constroem, buscam afirmação e se transformam em um jogo de competição e cooperação. Tal maneira de encarar a geografia tem privilegiando outras escalas que não o recorte nacional, da mesma forma que busca compreender a ação dos sujeitos sociais em seus espaços de vida, voltando-se mais para os indivíduos, as sociedades e seus conflitos do que para questões inerentes à apropriação da cultura pela política, embora não despreze tal aspecto. Mas esta é outra polêmica, cujo enfrentamento não será feito de pronto. Voltando aos pressupostos do debate acima anunciado, parte-se de uma concepção mínima de estudos interculturais, termo que segundo Dietz (2012, p. 78) foi alcunhado para designar um campo emergente de preocupações transdisciplinares em termos de contatos e relações entre culturas que, tanto no plano individual quanto no coletivo, se articulam em contextos de diversidade e heterogeneidade social. Esse autor acolhe a máxima de Néstor García Canclini segundo a qual nos dias de hoje, todas as culturas são de fronteira. Em seus desdobramentos pragmáticos, a interculturalidade é uma noção amiúde convocada pelos antropólogos em ambientes escolares que expõem situações de discriminação, xenofobia e racismo, ou seja, reação contra o Outro, onde há conflitos entre pessoas de diferentes origens, sobretudo étnicas. A constatação da existência de desacordos entre sujeitos vivenciando as mesmas práticas sócio-espaciais, aliada às tentativas de contê-los via educação, como sempre, mantém-nos sob o domo da geografia política. Várias disciplinas encontram-se, contudo, implicadas no desafio da interculturalidade, daí ser mais comum a referência a “estudos interculturais”. Campos clássicos da ciência vêm encampando essa temática, inclusive economia, filosofia, pedagogia e ciência política. Para a antropologia, isto implicou na perda definitiva do monopólio sobre o conceito de cultura (Idem). Dietz critica ainda o “essencialismo” atribuído ao conceito de cultura por diversas tradições teóricas interessadas no caráter intercultural das sociedades e apresenta um panorama dos MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 10 desafios e respostas que os diferentes Estados nacionais experimentaram ante a diversidade cultural, sobretudo no campo educativo (NASCIMENTO, 2013). No que concerne à geografia, talvez a demanda mais flagrante consista em rever nossas próprias conotações do universo cultural. De modo específico, a própria geografia política passa a ser acionada enquanto... [...] um conjunto de ideias acadêmicas e políticas sobre a relação entre a geografia e a política e vice-versa, possuindo raízes em certo número de disciplinas, particularmente geografia e ciência política, mas também sociologia, antropologia, estudos étnicos e relações internacionais (AGNEW e MUSCARÀ, 2012, p. 2, tradução nossa). A questão da superação do medo e do ódio ao Outro, bem como das possibilidades de integração, relação e convivência com a diferença abarca desde circunstâncias pessoais, sociais até políticas de Estado, aproximando geografia e antropologia. Pergunta-se então: como o diálogo entre essas disciplinas pode contribuir para o desafio de compreender as transformações espaciais das sociedades contemporâneas? Constata-se uma vasta expansão de redes culturais que, segundo Edensor (2012, p. 27), coloca em questão noções antigas sobre identidades corporificadas em um lugar específico ou a sentimentos auto evidentes de pertença a culturas e sociedades (nacionais) particulares. Assim, identificações grupais e individuais perpassam lugares diante da proliferação de diásporas, tramas políticas e redes cibernéticas. 3. Revisitando Gottmann e Castro Um exercício instigante consiste na recolocação em exame da contribuição gottmanniana sobre as necessidades de proteção e movimento na formação territorial das sociedades modernas (vide CASTRO, 2012, p. 163-175), pois resguardar e transformar são questões paradoxalmente intrínsecas à interculturalidade em geral, bem como caras à geografia cultural e política, abarcando identidades territoriais, nacionalismos, regionalismos. Em resumo, o pensamento do autor sustenta que processo de divisão do mundo habitado em nações e Estados, poderia ser explicado... [...] pela dialética existente entre as forças da circulação, responsáveis pelas mudanças que se impõem de fora e a iconografia que são as forças da resistência a essas mudanças, encontradas na cultura, ou seja, nos símbolos e crenças de grupos territorialmente definidos (GOTTMANN, 1952, p. 223 apud CASTRO, op. cit., p. 168). Constata-se, nessa teoria, que os sistemas de movimento são aqueles da circulação e da troca de pessoas, informações, mercadorias e demais elementos no espaço, enquanto que os MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 11 sistemas de resistência ao movimento aparecem na qualidade de “cercas do espírito”, isto é, símbolos e crenças de grupos plantados no espaço (iconografia), correspondentes a uma cultura, a qual é contestada, confrontada ou desprezada por outras comunidades. Neste momento abre-se uma reflexão de fundo: o que o autor chama de iconografia possui certa conotação negativa (ou pelo menos de negação), posto que a cultura resumir-se-ia a “oferecer resistência” enquanto um cimento simbólico ou simulacro de uma unidade mais ou menos estável, coincidente com os interesses de um estado nacional? O papel dos sujeitos sociais também não é muito claro, posto que pouco concernidos no esquema de análise em pauta, parecendo adotar posturas de autômatos diante de um poder demiurgo. Por outro lado, a circulação brota como algo pró-ativo, portador de mudança e dinamicidade, criação e deslocamento. Mesmo que o autor chame atenção para o fato de que pode haver circuitos de troca em mão dupla ou simplesmente rotas de transferência unidirecional, resta a dicotomia ação-ativa/reação-passiva no conjunto de sua proposta teórica. Com o avanço tecnológico dos últimos cinquenta anos e, em especial, com a conectividade e convergência midiática propiciada pelo aparato técnico-científico da globalização, resta-nos indagar sobre os novos significados e a potência da circulação, inclusive nas repercussões de uma alucinante produção e trânsito de informações. Se “localizar no espaço os fenômenos consiste em colocá-los nos sistemas de relações que a circulação anima”, considera-se que tais sistemas estão se tornando crescentemente complexos e, ao mesmo tempo, seletivos, intensivos e instantâneos, porém hierarquizados. Conduzem tanto a energia para mudar, como também constituem sólidas máquinas ou lógicas de padronização e manutenção de modelos e valores que podem ser intranacionais, supranacionais ou transnacionais. Insere-se, então, a necessidade de uma nova ética territorial e de uma hermenêutica intercultural, no sentido de refletir sobre as novas condições que possibilitam a compreensão e a comunicação entre seres humanos num mundo ao mesmo tempo uno e fragmentado, pois “o Estado-nação e sua identidade estão porosos à investida de outras identidades” (SÁ, 2012, p. 24). Ainda quanto ao sistema de forças contrárias, ou seja, de contenção, podemos pensar de saída que a ideia de iconografia conduz a algumas confusões, pela sua parcialidade em relação ao emprego de termo, muito difundido no universo das artes. Para um melhor entendimento, reforça-se a conotação de marcadores geossimbólicos (por analogia aos marcadores étnicos da antropologia), de modo a envolver todas as manifestações da cultura que se inscrevem no espaço, em busca de contrabalançar forças que tenderiam a dissolver a organização preestabelecida. Talvez a paisagem enquanto uma retórica possa ser considerada um dos MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 12 elementos mais contundentes do que Gottmann chama de iconografia, assunto ao qual retornaremos adiante. Originalmente o autor estabelece que as “cercas espirituais” (símbolos, códigos) que sustentam os nacionalismos são o exemplo mais bem-acabado do papel de estabilidade política acionado pelos sistemas de resistência. Somente através dessa contraposição à mobilidade seria possível cimentar os membros de uma comunidade de modo a fazê-los aceitar a coabitação sob um mesmo comando político (Idem, apud CASTRO, p. 167). Castro, por sua vez, inclui tal horizonte em escalas abaixo do Estado nacional, assumindo que a mesma lógica é passível de aproveitamento na compreensão dos regionalismos, bairrismos e outras representações sociais. Todavia, a ênfase prossegue recaindo no recorte nacional. Na geografia humana contemporânea, a permanência dos recortes e invólucros nacionais é reconhecida, mesmo aceitando o avanço de processos inerentes à “matriz cultural da globalização”: A nação continua a ser a principal construção espacial em um mundo em que o espaço é dividido em porções nacionais. A nação distingue-se espacialmente como uma entidade delimitada, possuindo fronteiras que a marcam como separada de outras nações. Fronteiras encerram uma certa população sujeita a uma administração hegemônica sob a forma de um sistema político discreto dominando todo este espaço, mas que, em um mundo de nações, deverá respeitar a soberania de outras nações. Essas fronteiras também são imaginadas para incluir uma cultura particular e independente, uma noção que é articulada por formas hegemônicas de diferenciar e classificar as singularidades culturais. Não é que as diferentes culturas não possam existir dentro de qualquer nação, mas elas são subordinadas à nação, e concebidas como parte da diversidade cultural nacional (EDENSOR, 2002, p. 37, tradução nossa). Ao se considerar tais fenômenos caros à geografia política e cultural, torna-se manifesto que suas iconografias não brotam espontaneamente do espírito ou da vida material e simbólica dos povos em cotejo. A própria condição de surgimento, expressão e manutenção das iconografias é circunstanciada por relações de poder, ainda mediadas pela centralidade do Estado ou de uma identidade nacional, mesmo se a estabilidade espacial dos sentimentos de pertença esteja ameaçada por outros tipos de identificações. Aceitando todos os predicados deste raciocínio, deve-se, contudo, levar em conta que cada vez mais as argamassas simbólicas são perpassadas pela interculturalidade, inclusive pelo concurso de identidades deslizantes, para usar a expressão de Stuart Hall (2007), que desafiam as unidades de berço. Cabe, por conseguinte, colocar que o maior desafio à escala do Estadonação é decidir se a multiplicação de iconografias na globalização é ou não um problema – e, em caso afirmativo, como lidar com ele. MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 13 Neste sentido, é interessante aprofundar a averiguação: num mundo de contatos crescentes e hibridez cultural, caberia ainda tomar como princípio que política tenderia mais ao movimento/mudança enquanto que cultura tenderia mais à inércia/manutenção? Apesar do recurso de Castro à concepção de cultura de Raymond Williams (enquanto processo), a ideia de iconografia de Gottmann parece de fato reservar à cultura um papel mais estável enquanto conjunto de símbolos chancelados pelas relações de poder e autoridades políticas. Relembrando, cultura seria um conjunto de conteúdos simbólicos que aglutinariam solidamente os membros de uma comunidade, os quais aceitariam e legitimariam a coabitação sob um dado comando político. Caberia às forças de movimento deslocar a cultura, pois a circulação seria naturalmente criadora de mudanças na ordem estabelecida no espaço. Isto é, a circulação, do ponto de vista da ordem cultural, “desconjuntaria” as ideias, recomporia os homens. A ordem cultural constituiria um conjunto concatenado de ideias e valores, melhor dizendo, uma dada relação ao mundo, comum aos membros de uma comunidade, que o movimento inerente à política tenderia a colocar em cheque, mexer, torcer, arrastar... Quer dizer, os marcadores geossimbólicos refletiriam “as cercas mais importantes [que] se encontram nos espíritos” cujo exemplo maior encontrar-se-ia no nacionalismo. Todavia, tal raciocínio aplica-se de maneira menos plausível a situações de insegurança ontológica das identidades nacionais características da pós-modernidade. 4. Desafios da interculturalidade à geografia cultural e política Neste sentido, a noção de interculturalidade elenca alguns desafios à geografia política e cultural hodierna. Gunther Dietz, ao examinar as fontes das atuais “turbulências identitárias” de que padecem os Estados nacionais confrontados à diversidade cultural, elenca três dimensões que parecem ser encruzilhadas postas a todas as ciências humanas: Sustento que é a combinação de três processos diferentes, mas interligados, que gera respostas específicas pelo projeto dominante de ‘política de identidade’ para cada contexto nacional e regional – a crescente integração supranacional, a (re)aparição de identidades subnacionais, assim como o estabelecimento de redes e comunidades transnacionais (DIETZ, 2012, p. 132, grifos nossos, tradução nossa). Devido ao seu evidente aporte à reconsideração das relações entre fixação e influxo na teoria gottmaniana, vale a pena determo-nos, em resumo, na problematização do nacionalismo e da etnogênese apresentada pelo supracitado antropólogo. Longe de esgotar o tema, são apresentadas algumas balizas que possam interessar aos novos estudos de cultura e política na MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 14 geografia. Embora repartidas em três grandes famílias, representam processos interligados que apontam para uma crescente hibridização das pautas reivindicativas e dos arranjos de valores em sociedades que vivenciam a confluência de diversas identidades territorializadas e/ou desterritorializadas. Inicialmente, os desafios supranacionais, talvez os mais debatidos pelos geógrafos. A globalização ou mundialização, em sua dimensão comunicativa, suportada por fluxos de informação, capital e pessoas, configura interações num mundo pós-colonial e estrutura redes que perpassam antigas fronteiras cognitivas e de mercado. O movimento vertiginoso da era atual sacode certezas acerca da estreita relação entre Estado, nação e economia, paradigma dominante até meados do século passado, quando foi estabelecida a teoria geográfica dos sistemas de circulação e contenção. Uma definição radical e provocativa do momento que vivemos pode ser encontrada de novo em Canclini: [...] uma nação, por exemplo, se define pouco a essa altura pelos limites territoriais ou por sua história política. Sobrevive melhor como uma comunidade interpretativa de consumidores, cujos hábitos tradicionais – alimentares; linguísticos – os levam a relacionar-se de modo peculiar com os objetos e a informação circulante nas redes internacionais (CANCLINI, 1995, p. 49-50 apud DIETZ op. cit. p. 134, tradução nossa). A metáfora cibernética da internet aparece como modelo futuro de sociedade globalizada, interconectada sob a égide da convergência midiática e do consumismo. Por outro lado, a exacerbação dos fluxos internacionais desperta a explosão de estereótipos de todo tipo em recortes os mais diversos: localismos, nacionalismos, regionalismos e toda uma gama de essencialismos novos e/ou recauchutados (SÁ, 2012, p. 20-21). Em todo caso, a circulação acelerada põe à prova a capacidade mobilizadora e congregadora do nacionalismo e sua iconografia enquanto um contrato identitário estável, o que nos leva à dimensão interna do problema. Ou seja, os desafios subnacionais, aqueles que colocam face a face os poderes nacionais e os poderes dissidentes, muitas vezes empoderados por uma visibilidade mundial. Em paralelo aos fenômenos acima esboçados, o Estado e a nação são confrontados pelo “despertar étnicoregional” (Idem), no bojo do qual são questionados os êxitos das políticas de homogeneização cultural e construídas agendas alternativas ao destino nacional – ou mesmo contrahegemônicas. O tema do regionalismo, paradoxalmente, ganha novas cores e contornos estimulados pela globalização, que passa a ser considerada enquanto ameaça ou oportunidade para as sociabilidades autóctones. MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 15 O argumento da centralidade territorial é reforçado, não importando em que nível da mancha nacional (local ou regional), enquanto a exacerbação de retóricas chauvinistas conduz frequentemente a guerras identitárias, resvalando muitas vezes para os preconceitos – inclusos aí os de origem geográfica. Dietz ressalta a construção de afinidades e antipatias linguísticas, as quais conduzem a formas de distinção preconceituosas a que ela chama de “linguicismo”, cujas manifestações afins são racismo, sexismo e estratégias separatistas que podem atestar fraqueza ou fracasso do projeto nacionalista. Nesse sentido, a africanidade pode transformar-se em um imaginário geográfico atuante no plano pragmático: exemplos como o reconhecimento de comunidades quilombolas no Brasil podem ser aqui evocados; ou ainda, diante de uma campesinidade latente em áreas de plantation crescem os movimentos por uma re-campesinização em terras de assentamento, muito embora os pequenos produtores possam ter outros planos para si – isto é, os desafios se multiplicam. Por outro lado, como afirma Edensor (2002, p. 26 e 27) a proliferação de reivindicações numa agenda de direitos e cidadania cultural pelos mais diferentes grupos (deficientes, gays, lésbicas, etnias, mulheres, organizações da terceira idade e jovens) “ressoa com os avanços feitos através de políticas de identidade que desafiam a centralidade das identidades nacionais exclusivas” (idem). Como quer que seja, aqui estão temas caros à geografia política e cultural, uma vez que muitas dessas repartições acabam por se constituir em motivos práticos e “objetivos” que embasam ações políticas em determinados territórios, como compensação por assimetrias históricas de recursos ou de poder. A reação dos Estados-nacionais a este tipo de contraposição/fragmentação tem sido a de fomentar a descentralização e conceder direitos históricos a grupos subnacionais, mas sem realmente resolver os conflitos subjacentes (vide os impasses da educação intercultural e bilíngue dos indígenas brasileiros em Nascimento, 2014). Se não chegam a efetivar rupturas e separações, tais questões recolocam os termos dos acordos em torno dos significados de uma cultura nacional. Enfim, a terceira e última dimensão, os desafios transnacionais. No caso, o tema mais candente são as migrações de pessoas entre países, levando os Estados-nação a elegerem a mobilidade humana como um grave problema, posto que esta desafiaria “não apenas a capacidade do Estado de controlar, disciplinar e sedentarizar a cidadania”, mas ainda “o princípio mesmo da territorialidade, eixo da ‘soberania nacional’ e da ‘inviolabilidade’ de suas fronteiras” (DIETZ, op. cit., p. 143). Os geógrafos têm insistido nos atritos gerados, mormente, pela imigração estrangeira para grandes metrópoles, constituindo-se um tema quente da geografia cultural o estudo da visibilidade e confronto entre culturas diferentes convivendo nos MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 16 espaços públicos (CASTRO, op. cit. p. 173). Por outro lado, a ênfase das abordagens antropológicas prefere deslindar os caminhos da superação dos confrontos, sem, contudo, negálos. O que está em jogo são os vínculos de caráter trans-fronteiriço, fomentando, por exemplo, redes migratórias, laços de parentesco e formação de grupos de vizinhança que passam a ser combatidos pelas forças hegemônicas sob a égide da “ilegalização” ou da formação de guetos. Colônias étnicas em processo de desterritorialização e reterritorialização com repercussões para as nações em que se instalam já são estudadas pelos geógrafos (HAESBAERT, 2006); por outro lado, antropólogos, como Arjun Appadurai, falam na formação de ethnoscapes: Por “ethnoscape”, quero dizer a paisagem de pessoas que constituem o mundo mutante em que vivemos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores temporários e outros grupos em movimento, pessoas que constituem uma característica essencial do mundo e que parecem afetar a política das nações e entre as nações, em um grau até então sem precedentes (APPADURAI, 2003, s/p., tradução nossa). No caso de países continentais como o Brasil, acredito que os movimentos de pessoas e ideias em escala intranacional também contribuem para complexificar o cenário, haja vista a considerável heterogeneidade cultural entre as suas diferentes regiões. O caso dos migrantes nordestinos de retorno e sua influência na transformação/consolidação de um imaginário geográfico de Nordeste tem sido objeto de reflexões recentes que ajudam a corroborar tal hipótese (SOUZA, 2015). Como quer que seja, a maior porosidade das fronteiras para a circulação de indivíduos em territórios e civilizações diversas dá margem a novos processos de hibridização cultural, interações passíveis de compreensão pelas lentes da interculturalidade. Até que ponto comunidades transnacionais ou fruto de diásporas podem diminuir a força domesticadora dos Estados? A transnacionalização de migrantes, ao provocar o transplante de “cercas mentais” (iconografias) teria o poder de abalar lealdades nacionais e identidades coletivas nos locais de recepção? Questão abertas para a geografia humana, estreitando a reciprocidade entre sistemas de circulação e sistemas de resistência. Percebe-se aqui um sistema de movimento das resistências ao movimento (iconografias) – algo não tão explícito na formulação original de Gottmann. Para completar esse breve apanhado de indagações e preocupações compartilhadas com os antropólogos, deve-se lembrar da advertência de Dietz (idem), para quem o transnacional não deve confundir-se com o ‘transcultural’ – falha recorrente de pensadores fascinados com a MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 17 multiplicidade virtualmente ilimitada de identificações pós-nacionais. Num mundo em que mover-se e permanecer mostram-se cada vez mais enlaçados, os estudos interculturais (incluindo os da geografia política e cultural) devem, por conseguinte, rever com cuidado suas metodologias de recorte territorial e temporal, de modo a abarcar os sujeitos sociais híbridos que geram, encenam e codificam culturalmente seus espaços. A sobrecodificação do espaço, por sinal, é uma seara preciosa para os geógrafos, posto que as iconografias contemporâneas se tornam cada vez mais polissêmicas, e as possibilidades de interpretação dos marcadores geossimbólicos exigem um olhar intercultural. 5. A reafirmação da paisagem iconografias interculturais como elemento-chave das É por este motivo que, para fechar esse breve exercício, retorno à paisagem enquanto um conceito geográfico que compartilha explicitamente preocupações a propósito da relação da cultura e da política com o espaço. Ora, a paisagem é uma peça-chave da iconografia quando se trata de identidades espaciais. No momento, é factível perguntar: quais as paisagens da interculturalidade? Como dito, a paisagem quando usada na qualidade de retórica aproxima-se de uma poderosa iconografia no sentido gottmaniano do termo: uma cerca do pensamento. Por conseguinte, defende-se aqui que é nas paisagens emblemáticas que o conceito de marcadores geossimbólicos se faz mais integralmente geográfico. A paisagem é o grande teatro dos discursos, imagens e narrativas fundadoras de diversos recortes: cidades, lugares, espaços públicos, regiões, nações. Ou seja, o conjunto de imagens representativo dessas porções territoriais pode ser sintetizado e concatenado em uma retórica espacial. Inclusive de tal forma que tanto paisagens culturais quanto paisagens políticas tornamse, a rigor, pleonasmos. Isto é, não há possibilidade de se falar em paisagem separadamente de seus conteúdos e condicionantes culturais e políticos – pelo menos no âmbito da geografia humana. Em outros momentos (MACIEL, 2009; 2010; 2012) já procurei ressaltar que a cultura, quando se expressa num lugar geossimbólico (sobretudo no espaço público), caracteriza-se por conter ao mesmo tempo debate, confronto e negociação, quer dizer, abarca a adaptabilidade e a variabilidade, sendo fundada em uma práxis que pode assim ser concebida: a ação de persuadir ou de convencer o outro mediante a palavra – definição básica de retórica. Portanto, pode-se entender retórica enquanto parte indissociável da política, pois ambas incluem “a negociação da distância de opinião das pessoas a propósito de uma questão ou problema” (MEYER, 1993, MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 18 p. 22). Na paisagem, a palavra é simbioticamente associada à imagem. E a imagem/paisagem tem o poder comunicativo de uma metonímia. Portanto, seja na negociação das distâncias ou na hibridização das afinidades culturais, as metonímias geográficas participarão ativamente dos processos de identificação dos povos em contato. Assim, a definição de retórica de Meyer vem a ser entendida como um princípio essencial para a política, abarcando negociação em seu sentido lato (para além de trocar e ceder, incluindo coagir, trapacear e iludir). A tradução de pensamentos, ideias, valores, crenças e intenções em imagens e narrativas territorialmente circunscritas coloca a paisagem no teatro de uma geografia humana tout court (cultural e política), uma vez que a busca de consensos/críticas sobre um lugar e suas iconografias implicará em disputas e tensões ideológicas com base em diferentes convicções relacionadas a comunidades reais ou imaginárias, corporificadas em imagens e modos de colocar o espaço em imagens. Por isso o estudo dos fundamentos imaginários da sociedade (isto é, suas metonímias espaciais prediletas, suas paisagens icônicas, politicamente eficazes) deve levar em conta que os valores simbólicos e estéticos são um produto social e supõem, portanto, diferentes interesses e escolhas políticas (CASTRO, 2002, p. 123) em diferentes escalas. O estudo da retórica ligada ao espaço permite, por conseguinte, compreender por um viés geográfico como as identidades são forjadas no (e através do) território, evidenciando as paisagens enquanto fontes de símbolos e, ao mesmo tempo, meios de expressão privilegiada destas identificações politicamente circunstanciadas – que sejam nacionais, mas sempre desafiadas pelas três conexões apontadas por Dietz (integração supranacional/reaparição de identidades subnacionais/redes transnacionais). 6. Considerações finais O campo dos processos interculturais, apenas esboçado no presente ensaio, sugere que integremos outras variáveis à compreensão das maneiras como vemos os Estados nacionais e suas geografias, em um mundo onde sistemas de circulação e sistemas de resistência se imbricam de maneiras inéditas – e, até agora, não previstas pela geografia humana, seja em sua vertente cultural ou política. Mesmo que a centralidade territorial do Estado moderno permaneça um dado incontornável na arena da globalização, os estudos culturais têm demonstrado que o entendimento da adesão coletiva a um projeto de Nação é, nos dias de hoje, bastante MACIEL, Caio Augusto Amorim Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 19 influenciado por escalas supra e trans nacionais, as quais também influenciam a dinâmica de fenômenos internos, como os regionalismos. No âmbito da geografia brasileira, os trabalhos de Iná Castro (2002; 2012) têm dialogado proficuamente com a clássica contribuição de Jean Gottmann (1952), ressaltando a necessidade de se considerar de modo prudente a fragmentação da era global e o enfraquecimento do papel do Estado e dos recortes nacionais. Na perspectiva inversa, os aportes de estudos interculturais recentes colocam em questão os desígnios dos invólucros e cercas do pensamento baseados exclusivamente em solidariedades organizadas por ideias de Nação. Como o próprio Gottmann adiantou, “enquanto a circulação se estende e se intensifica e derruba as fronteiras, as mentes dos homens se reagrupam segundo a lealdade aos sistemas de signos. As fronteiras mais duras atualmente são aquelas da lealdade à fé ou à doutrina. A era aberta 500 anos atrás pode estar se fechando” (GOTTMANN, 2012, p. 543). 7. Referências AGNEW, J. & MUSCARÀ, L. (2012). Making Political Geography. 2 ed. 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O objetivo deste trabalho é compreender como esta grande empresa multinacional privada conseguiu impor suas vontades sobre os Estados latino-americanos durante o século XX, e quais os resultados desta agressiva interferência externa nas relações de trabalho e no mercado de terras. Para isso se fez necessário entender o modo de operação desta empresa multinacional que atua se utilizando muitas vezes de um processo agressivo de verticalização e o contexto de inserção dessa multinacional na política externa dos Estados Unidos para a América Latina. Em um segundo momento foi analisada a atuação da multinacional em dois conjuntos de países produtores com características distintas: O primeiro conjunto são os pequenos países da América Central e o segundo os países de porte médio América do Sul. Palavras-chave: Multinacionais. United Fruit Company. América Latina. Neocolonialismo. Abstract During the twentieth century, the multinational United Fruit Company was a symbol of power and neocolonial practices throughout Latin America. The objective of this study is to understand how this large multinational company private could impose their will on the Latin American states during the twentieth century, and what the results of this aggressive foreign interference in labor relations and the land market. For it was necessary to understand the mode of operation of this multinational company that operates using it often in an aggressive process of vertical integration and the context of this multinational company in the United States foreign policy for Latin America. In a second step we analyzed the role of the multinational in two sets of producer countries with different characteristics: The first set are the small Central American countries and the second medium-sized South American. Keywords: Multinationals. United Fruit Company. LatinAmerica. Neo-Colonialism. 1 Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES-UFRN). E-mail: gleydson_albano@hotmail.com ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 22 1. Introdução No decorrer do século XX, a United Fruit Company era conhecida como símbolo maior de poder e de práticas neocolonialistas na América Latina. Esse texto visa analisar o poder dessa empresa na América Latina dentro de um quadro de referência que envolve um agressivo processo de verticalização e a inserção da mesma na política externa dos Estados Unidos para a América Latina. Para analisar o poder dessa empresa na América Latina levou-se em conta sua interferência nas relações de trabalho e no mercado de terras. Além disso, a analise diferenciou dois blocos de países, com vulnerabilidade diferenciada. O primeiro bloco de países analisados, foram os principais países produtores da América Central (Costa Rica, Honduras, Guatemala e Panamá). Esses países têm pequena área territorial e uma economia modesta que faz com que a multinacional em questão se torne a principal empresa do país. Os mesmos foram vítimas historicamente da agressiva política externa americana de intervenção na América Central e Caribe que considerava essa área como estratégica. O segundo bloco de países analisados, os principais produtores da América do Sul (Colômbia e Equador), são países tem uma área territorial considerável, tem um porte econômico maior e não foram vítimas de uma política externa tão agressiva, mantendo certa autonomia econômica e política. 2. Multinacionais e neocolonialismo: o início da United Fruit Company na América Latina As empresas multinacionais têm surgimento que remonta ao século XVII, com a fundação da Companhia das Índias Ocidentais e Orientais, na Holanda. Naquele século, se tinha como ator principal o Estado, que centralizava o comércio por intermédio das suas Colônias Ultramarinas e do Pacto Colonial. Na segunda metade do século XIX, tem-se uma rápida concentração de capitais nas mãos de grandes grupos multinacionais, graças a uma intensa acumulação de capitais e um intenso processo de fusão, incorporação e associação de várias pequenas empresas. Esse período sinaliza uma nova fase, a fase do capital monopolista. “Os empresários mais hábeis e mais articulados com o setor bancário e com o Estado, que incorporaram o progresso técnico à produção industrial, tiveram enormes ganhos de produtividade e passaram a concorrer em posição de força com outros capitalistas” (COSTA, 2008, p. 81). Com enormes ganhos de produtividade, se fazem enormes empresas monopolistas multinacionais, que já se destacam em nível global no início do século XX. Essas empresas, ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 23 elemento fundamental da vida das grandes potências capitalistas, já nessa época detinham o controle da cadeia produtiva, muitas vezes com a formação de cartéis e trustes (COSTA, 2008). Durante esse período, entre a segunda metade do século XIX e início do século XX foram formadas boa parte dos grandes grupos multinacionais que existem hoje no mundo, como a Nestlé (1867), Coca-Cola (1886), General Electric (1890), dentre outros. Em 1914, só as multinacionais dos Estados Unidos já investiam mais de 2,5 bilhões em outros países. Nesse ano, um grupo de quatro países – EUA, França, Alemanha e Reino Unido – detinham 87% do Investimento Estrangeiro Direto mundial. Nessa época existiam em voga duas estratégias de investimentos das multinacionais: a primeira estratégia era o investimento voltado para adquirir matérias-primas e alimentos ao mercado doméstico, geralmente feito em colônias de potências europeias; a segunda estratégia era o investimento nos mercados consumidores dos países desenvolvidos. Como exemplo da segunda estratégia, pode-se citar a existência de firmas americanas na Europa, como a Ford, General Motors e a General Electric, da montadora italiana Fiat que já tinha aberto fábricas da Áustria em 1907, nos Estados Unidos em 1909 e na Rússia em 1912, e da indústria farmacêutica Merck, considerada a empresa farmacêutica e química mais antiga do mundo, que fundada originalmente em Frankfurt (Alemanha), no ano de 1654, já tinha afiliada nos Estados Unidos em 1887 (WRIGHT, 2002). A multinacional americana United Fruit Company nasce nesse contexto, buscando frutas (principalmente a banana) para o mercado doméstico americano e se inserindo preferencialmente na principal área de hegemonia dos Estados Unidos, a América Central. A multinacional vai se aproveitar das práticas neocolonilistas americanas na região para expandir suas atividades reproduzindo as mesmas práticas e se transformando na maior empresa exportadora de bananas do mundo, sob a proteção do governo americano (BUCHELI, 2006b). Nessa época os Estados Unidos detinham um domínio esmagador na América Central, impondo a entrada dos investimentos americanos, cooptando governos e praticando a intervenção militar direta em praticamente todos os países do istmo americano quando os interesses americanos estavam em perigo. Antes de 1945, os Estados Unidos já tinham invadido Honduras (1903, 1907, 1912, 1919, 1924), República Dominicana (1903, 1914, 1916), Haiti (1914, 1915), Nicarágua (1907, 1909, 1915), Cuba (1906, 1912, 1917), Panamá (1912, 1918, 1925), Guatemala (1920), e El Salvador (1932). O Caribe se tornou um autêntico Mare Nostrum americano que dava as companhias desse país, como a United Fruit a confiança para expandir seus negócios pela região (BUCHELI, 2006b). A história da United Fruit na América Latina começa com o início do transporte de bananas entre a América Central e os Estados Unidos. O primeiro a trazer as bananas do Caribe ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 24 para o mercado americano foi um americano capitão de navio chamado Lorenzo Dow Barker, que por acaso estava consertando o navio na Jamaica e teve a ideia de trazer as bananas para vender nos Estados Unidos em 1870. Um ano depois, o mesmo compra muitas terras na Jamaica e se torna o maior exportador do Caribe. Barker se une a Preston em 1885, o inventor dos navios refrigerados (que inicialmente funcionavam com milhares de blocos de gelo) que viabilizaram a distribuição das bananas para os lugares mais distantes dos Estados Unidos, e fundam a primeira multinacional de exportação de bananas, chamada de Boston Fruit (KOEPPEL, 2008). Nessa época, principalmente entre os anos 1870 e 1899, havia o predomínio de fazendeiros independentes na América Central vendendo frutas para empresas norte americanas de navegação. Mas, por causa da logística complexa do mercado bananeiro, a tendência com o tempo foi a da concentração da produção e comércio em poucas empresas (WILEY, 2008). Em 1889, Minor Keith, que construiu várias estradas de ferro na Costa Rica 2 que serviram para escoar sua produção de bananas se une a Boston Fruit criando a United Fruit Company. Com esse fato, já se observam as características básicas de uma multinacional de banana presentes na primeira empresa criada. Características essas que serão empregadas por todos os conglomerados de banana: produção em larga escala, o controle do transporte e da distribuição (através de trens e navios refrigerados próprios) e o domínio agressivo da terra e do trabalho (terras próprias e trabalhadores assalariados) (KOEPPEL, 2008; CHIQUITA, 2009). É relevante notar também a estreita dependência entre o comércio internacional de bananas e o processo de inovação tecnológica. A multinacional United Fruit vai desenvolver uma série de tecnologias para viabilizar o transporte e logística do comércio bananeiro, entre elas podemos citar: navios refrigerados, trens modernos interligados com portos e navios e um moderno sistema de comunicação wireless entre os Estados Unidos e a América do Sul para aperfeiçoar a logística de transporte (CHIQUITA, 2009; WILKINS, 1998). Friedland (1994) destaca no lado da produção, que com a tecnologia de refrigeração se melhora a vida útil dos vegetais e frutas frescas, além de melhorar a qualidade. No lado do consumo, ressalta a combinação de urbanização, processo de proletarização nas grandes cidades da Europa e dos Estados Unidos e o desenvolvimento tecnológico dão as bases para o consumo Acordo Costa Rica- Minor Keith (1884) – O acordo tinha como objeto a construção de estrada de ferro ligando a capital ao porto caribenho, inicialmente para escoar as exportações de café. O acordo incluía para Keith 7% do território da Costa Rica, 20 anos sem pagar taxas de terras, uso da estrada por 99 anos e Duty Free para materiais usados na construção da estrada de ferro. Keith, começa a plantar bananas nas suas terras perto da estrada de ferro e a mesma passa a servir para o comercio de bananas. Keith também fez acordos similares para a construção de estradas de ferro na Guatemala onde ganhou mais de 168.000 acres e 10 anos para operar a estrada, 35 duty free e o controle das docas (WILEY, 2008). 2 ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 25 de massa dos produtos frescos. Nos anos iniciais do século XX, um punhado de capitalistas puxados pela United Fruit, com ambíguos relacionamentos com trabalhadores, camponeses, organizações do trabalho, governos nacionais e consumidores, transformaram efetivamente a banana em uma completa commoditie global. Dentro desse processo, esses empreendedores não só transformaram eles mesmos em grandes corporações multinacionais, mas dramaticamente alteraram as paisagens políticas, econômicas, culturais e naturais de numerosos países Latino Americanos e regiões caribenhas (STRIFFLER; MOBERG, 2003). Segundo Wiley (2008), um dos fatores da concentração do comercio bananeiro em poucas empresas, será a impossibilidade para fazendeiros independentes, que operam sozinhos, exercer controle suficiente para assegurar o tempo necessário de chegada da fruta ao mercado consumidor. A título de informação, só a United Fruit, na década de 1920 já valia mais de 100 milhões de dólares, tinha mais de 67.000 empregados e era dona de mais de 650.000 hectares, tendo negócios em mais de 32 países. A mesma empresa tinha mais de 3.500 milhas de cabos telegráficos e telefônicos, além de terminais portuários (KOEPPEL, 2008). Nesse período, a banana já era consumida largamente nos Estados Unidos. De produto exótico, caro e quase inacessível na segunda metade do século XIX, passou por um rápido processo de massificação e nos primeiros anos do século XX a banana já se encontrava nas mochilas e lancheiras de milhões de americanos e era objeto de inovações culinárias como a “banana split” e de novos hábitos como a banana machucada que era dada por algumas mães para seus bebês e que foi amplamente difundida pela United Fruit através de grande campanha de marketing com a utilização de médicos que endossavam a prática. A United Fruit inclusive firmou uma “parceria” com a Associação Médica Americana para a divulgação das qualidades da banana. Em 1900 a banana se tornava mais barata que a maçã nos Estados Unidos e era considerada uma fruta de pobre, acessível a todas as classes sociais (KOEPPEL, 2008; CHIQUITA, 2009; SOLURI, 2003). As multinacionais bananeiras americanas, eram as grandes favorecidas pela massificação da banana, como se pode observar no Quadro 1, que relata o crescimento do comercio mundial de banana nas primeiras décadas do século XX e sua concentração nas mãos da United Fruit. ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 26 Quadro 1 – Crescimento do Comercio Mundial de Banana e do Monopólio Multinacional, 1900-1932 Ano Total exportado em cachos 1900 19.848.692 1913 50.111.764 1929 97.233.972 1932 87.888.200 United Fruit: 51.600.000 Standard Fruit: 15.559.887 Fonte: Kepner e Foothill apud Striffler e Moberg (2003). Essa banana barata que chegava à mesa dos americanos tinha um custo muito alto para os países produtores e suas populações, principalmente para os países que se subordinavam às companhias de frutas e ao governo americano, que eram chamados de “Repúblicas das Bananas”. A banana chegava muito barata nos Estados Unidos, porque havia uma economia de escala, um controle total da multinacional que ia desde a produção, com fazendas próprias muitas vezes com terras roubadas de comunidades indígenas, além do trabalho extremamente mal remunerado e em péssimas condições nessas fazendas, passando pelo controle dos meios de transporte da banana, com estradas de ferro próprias, navios refrigerados próprios e tecnologia de comunicação wireless para comunicação terra-navio, até a distribuição na rede varejista americana (UNCTAD, 2009; KOEPPEL, 2008; CHIQUITA; 2009; STRIFFLER; MOBERG, 2003). Florestas impenetráveis foram abaixo para a criação de toda uma infra-estrutura industrial para a produção e transporte de uma commoditie altamente perecível em formato de monocultura. Muitos viam as infra-estruturas de suporte para a monocultura de banana – estradas de ferro, modernos portos, eletrificação – como um processo de modernização econômica e social para esses países (STRIFFLER; MOBERG, 2003). Mas de fato, não se tinha uma intenção em integrar o país com estradas de ferro e eletrificação, essa modernização econômica e social era somente dirigida para as zonas de produção e comercialização de banana. Tinha-se na verdade uma destruição sem precedentes dos ecossistemas e danos para a população local, principalmente pelo caráter migratório da produção de banana. Esse caráter era resultante das estratégias das multinacionais de abandonar as terras infectadas pelo Mal do Panamá (doença que destrói a produtividade das bananas). Em função da doença, as empresas compravam sempre mais e mais terras que serviam de reserva, ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 27 já que por ano podiam ser abandonadas de 10 a 15% das terras produtivas, gerando um grande impacto ambiental e migrações (SOLURI, 2003; WILEY, 2008). Todos esses fatores, principalmente o roubo de terras e as péssimas relações de trabalho geravam desestabilização para toda a região produtora de banana, com inúmeras greves e levantes que foram massacrados pelos governos autoritários apoiados pelos Estados Unidos ou pelo próprio exército americano que intervinha militarmente para manter a produção e o comércio bananeiro. Para se ter uma idéia da proporção dessas intervenções, seguiremos com alguns dados. Só nas primeiras três décadas do século XX, o governo americano interveio militarmente na América Latina 28 vezes. A maioria das intervenções aconteceu na área da atuação das empresas bananeiras para garantir o comércio bananeiro (KOEPPEL, 2008). Podemos citar abaixo alguns exemplos das intervenções militares americanas com o claro objetivo de proteger as empresas bananeiras americanas. As principais intervenções foram: - 1912 – Invasão americana em Honduras para garantir direitos de compras de estradas e crescimento do mercado bananeiro para a United Fruit; - 1918 – Intervenção militar americana no Panamá, Colômbia e Guatemala para pôr abaixo as greves dos trabalhadores das empresas de bananas; - 1928 – Massacre da banana em 1928 na Colômbia, com a morte de mais de mil trabalhadores de banana quando se reuniam em uma praça pelo exército colombiano, sob o patrocínio dos Estados Unidos e da empresa bananeira United Fruit (KOEPPEL, 2008). 3. United Fruit Company e diferenças entre América Central e América do Sul A United Fruit Company chegava à metade do século XX como sendo a principal companhia multinacional de exportação de banana do mundo. A referida companhia tinha nessa época mais de 561.000 acres3 de terras próprias em uso, sendo distribuídas por vários países da América Latina, como a Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, Guatemala, Honduras, Jamaica, Panamá dentre outros (veja Quadro 2). 3 O acre é a unidade de medida usada nos Estados Unidos. Um acre equivale a 0,40 hectares. ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 28 Quadro 2 – United Fruit: terras e ferrovias - 1955 País Acres Ferrovias Bondes Óleo de Milhas Milhas Outros Banana Cana Cacau Abacá Palma Colômbia 6.815 - - - 500 9.180 16.495 17.06 1.08 Costa Rica 34.636 - 23.851 5.006 9.836 33.333 106.662 309.88 92.73 Cuba - 91.521 - - - 49.934 141.455 327.10 Dominicana 4.067 - - - - 6.490 10.557 34.57 -- Equador 9.090 - 3.328 - - 6.786 19.204 - 56.48 Guatemala 20.617 - - 4.372 651 25.534 51.174 181.59 35.93 Honduras 34.071 - - 4.913 5.108 80.494 124.586 369.34 4.68 Jamaica 1.863 3.869 - - - 909 6.641 11.24 - Panamá 26.600 - 3.000 - - 67.761 67.761 196.24 8.91 Outros 8.087 - - 1.389 7.807 17.283 - 65.33 Total 145.846 95.390 30.179 17.484 258.628 561.818 1447.00 265.14 Total República 14.291 Fonte: MAY, PLAZA, 1958. No referido quadro também se nota o caráter verticalizador da companhia, com a posse de ferrovias para o transporte de suas comodities em praticamente todos os países em que a referida multinacional dispõe de terras em uso (veja Quadro 2). Além de representar ganho de escala, a integração vertical é explicada pela companhia como necessária frente aos inúmeros condicionantes e riscos inerentes a atividade de exportação de bananas, como as doenças, desastres naturais e a demanda de uma logística de distribuição excepcional devido ao caráter perecível da fruta (MAY, PLAZA, 1958). A United Fruit, através da sua operação na América Latina traz uma série de mudanças para os países em que está alojada. Dentre as mudanças mais significativas, temos o processo de modernização com o avanço tecnológico e a implantação de novas técnicas se estabelecendo com isso, um novo patamar de infraestrutura e tecnologia para os referidos países. Entre as mudanças técnicas, tem-se: a chegada de tratores nas suas áreas de produção; instalação e operação de linhas de trens que ajudam a levar a produção no tempo certo para os portos; chegada do rádio e serviço telegráfico para facilitar a comunicação entre os portos, navios e fazendas da multinacional a partir de 1903 (a primeira rádio comercial é inaugurada pela companhia em 1904 e em 1910 já se tem comunicação por rádio entre os EUA e a América ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 29 Central de forma ininterrupta. A Tropical Radio Telegraph Company é incorporada como subsidiária da United Fruit e passa a operar como empresa de utilidade pública); melhoramento de portos e inclusão de tecnologias em vários portos na América Latina; formação de mão-deobra com novas habilidades para operar sistemas tecnológicos modernos implantados pela referida multinacional, como tratores e outros processos mecânicos; fundação da Escola Pan Americana de Agricultura pela United Fruit em Honduras, para gerar funcionários especializados para a multinacional em vários aspectos da agricultura e gerência agrícola e dissemina conhecimentos e técnicas por toda a América Latina (MAY, PLAZA, 1958). A partir da emergência desses novos conhecimentos técnicos com a escola de agricultura da multinacional e com a oportunidade aberta de preencher as terras descartadas pelas pragas da banana, a United Fruit insere novos plantios de forma inédita na América Latina. Dentre os novos plantios se destacam a monocultura de óleo de palma, abacá e cacau. O Óleo de Palma foi implantado principalmente na Costa Rica e Honduras e veio para suprir uma importante demanda local por óleos e sabões, livrando os referidos países de trocas externas para atender a sua indústria (veja Quadro 2). O Abacá foi introduzido pela companhia durante a Segunda Guerra Mundial devido à dificuldade de obtenção da comodittie do sudeste asiático. A referida mercadoria proporciona uma das fibras mais resistentes do mundo para amarrar navios em portos, além de muitos usos no setor têxtil. O referido produto foi produzido com um contrato de exclusividade com o Governo dos EUA, no Panamá, Costa Rica, Honduras e Guatemala (veja Quadro 2). O Cacau e sua implantação ganharam destaque como resultado da pesquisa feita pela multinacional para aumentar a produtividade por acre e beneficiar a companhia e os produtores locais associados. Tem destaque a referida produção na Costa Rica, Equador e Panamá (veja Quadro 2). A companhia ainda trabalha com a pecuária, fornecendo carne, leite e derivados, além de outros produtos agrícolas que são vendidos exclusivamente para seus funcionários (May, Plaza, 1958). 4. United Fruit Company: Diferenças entre áreas produtoras da América Central e América do Sul Quando se observa mais detalhadamente a inclusão da multinacional na América Latina, chega-se a dois blocos (onde estão os principais produtores de bananas) com diferenças significativas de inserção pela referida empresa: bloco de países da América Central e o bloco ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 30 de países da América do Sul. O primeiro bloco, de países da América Central (Costa Rica, Guatemala, Honduras e Panamá), é composto por países pequenos, em que a presença da multinacional tem um peso enorme na economia desses países. Na Costa Rica, Guatemala e Honduras a multinacional era em 1955 a maior empregadora do país e a que mais contribuía para o pagamento de impostos. De acordo com o Quadro 3, observa-se claramente o peso das exportações da multinacional para a balança comercial dos países da América Central em 1955, principalmente a Costa Rica (onde a multinacional é responsável por 99% das exportações de bananas que representam 41% das exportações nacionais), Honduras (onde a multinacional é responsável por 69% das exportações de bananas que representam 50% das exportações nacionais) e o Panamá (onde a multinacional é responsável por 93% das exportações de bananas que representavam 74% das exportações nacionais) (MAY, PLAZA, 1958). Além disso, como já falado anteriormente, esse bloco de países da América Central, foi vitimado durante boa parte do século XX por intervenções militares dos Estados Unidos que visavam muitas vezes garantir os bens e as propriedades da multinacional americana United Fruit. Como exemplo disso, cita-se o desembarque americano na região do Panamá durante a Guerra dos Mil dias. O desembarque dos marines ocorreu exatamente na província de Chiriqui, onde a multinacional tinha suas operações com terras, linhas férreas e embarcações (VEGA, 2004). Quadro 3: Importância relativa do total das exportações de bananas e das exportações da United Fruit nos seis principais países - 1955 (em mil dólares) País Valor total Valor das Porcentagem das Exportações de banana da das exportações exportações de United Fruit exportações de bananas bananas sobre o Valor Porcentagem valor total das sobre o total exportações das exportações de bananas Colômbia Costa Rica Equador Guatemala Honduras Panamá Total 579.600 80.900 113.900 109.200 50.500 30.300 970.400 Fonte: MAY, PLAZA, 1958 24.200 33.210 62.300 19.900 25.500 27.000 192.110 4 41 55 18 50 74 20 13.073 32.843 11.594 14.043 17.577 25.194 116.124 58 99 19 75 69 93 60 O segundo bloco, de países da América do Sul (Colômbia e Equador), é composto por ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 31 países de médio porte, em que a presença da multinacional tinha uma importância pequena na economia deles. Na Colômbia, as exportações de bananas representavam em 1955 apenas 4% do total, sendo que a multinacional detinha apenas parte das exportações, pois, trabalhava com subcontratos. No Equador, apesar das exportações de bananas representarem 55% da sua pauta de exportações, apenas 19% era controlada pela multinacional e desses, boa parte, era comprada pela multinacional de fornecedores locais ou no mercado local, não se configurando uma ação monopolística (veja Quadro 3). 4.1 Mercado Fundiário A United Fruit Company para produzir bananas e outros produtos agrícolas detinha uma quantidade considerável de terras nos seis principais produtores e exportadores de bananas da companhia, se tornando uma das maiores latifundiárias de terras dos países exportadores de bananas. A multinacional dispunha de 1.726.000 acres em terras próprias para a produção em 1955, muitas delas sem uso agrícola, servindo como área de reserva. Vale lembrar que em 1929, a United Fruit chegou ao pico de quase dois milhões e meio de acres, quase a totalidade em terras próprias, quando foi atingida pela Crise de 1929. Muitas das terras da multinacional eram em áreas de florestas tropicais virgens. A explicação da companhia para tamanha quantidade de terras, muito superior a produção bananeira, está em manter comunidades de 30 a 40 mil pessoas associadas ao trabalho da banana, em usar parte dessas terras para a dragagem, engenharia hidráulica para suprir a irrigação e principalmente em ter muitas terras virgens em substituição às terras infectadas pela Sigatoka e principalmente o Mal do Panamá que invade o solo e se multiplica, ocasionando muitas vezes o abandono da terra (ROCA, 1998; MAY, PLAZA, 1958). De acordo com o Quadro 4, nota-se que existe uma alta porcentagem de terras nas mãos da multinacional no que se refere aos países da América Central, principalmente, no caso da Costa Rica, Honduras e Guatemala. Nesses países a multinacional é a principal proprietária de terras do país e controla a maior parte da área de produção de banana nacional, além de possuir grande quantidade de terras com outros produtos (como o cacau, abacá e óleo de palma) e ter grande soma de terras de reserva e sem uso para futura exploração econômica. Já no caso dos países da América do Sul (Colômbia e Equador), nota-se nitidamente a pequena representatividade das terras da multinacional em relação à área total da produção de banana nos referidos países. Além disso, a terra de reserva da multinacional nesses países é ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 32 muito menor que a dos países da América Central já referidos acima, apesar da Colômbia e do Equador disporem de uma área territorial muito mais ampla (veja Quadro 4). Quadro 4: Terras disponíveis nos seis países e uso das terras pela United Fruit - 1955 (em milhares de acres) País Área total Guatemala Honduras Costa Rica Panamá Colômbia Equador Total Seis Países Terras Área cultiváveis plantada totais de banana 27.000 28.000 13.000 18.000 256.000 72.000 414.000 Fonte: MAY, PLAZA, 1958 3.683 1.815 875 650 7.200 2.344 16.567 40 70 60 42 112 284 608 Área total proprietária 461 325 497 151 100 192 1.726 United Fruit Company Terras Plantações próprias maduras próprias ou controladas 21 34 35 27 7 9 133 28 28 39 23 20 7 145 Outras plantações 31 91 72 41 10 10 255 Na América Central, a maior parte das terras da multinacional são próprias, pouco se remetendo a contratos com os produtores locais. Honduras é um exemplo dessa política de terras da companhia. Dos 34.000 acres de plantação de bananas em 1955, somente 6.400 eram utilizados de produtores rurais independentes, menos de 20% do total de terras. Na Costa Rica, a mesma política se repete, dos 35.000 acres de plantação de bananas em 1955, somente 4.600 eram utilizados de produtores rurais independentes, menos de 15% do total de terras. Tal regime de concentração de terras nos principais países exportadores de bananas do istmo americano pela multinacional United Fruit é gerado pela compra com subsídio dado pelos referidos países, que muitas vezes vendem a terra a ‘preço de banana’, com isenção de taxas, impostos e flexibilização das leis de terras. Isso gera descontentamento e protestos de camadas da população e às vezes um governo de oposição a multinacional é eleito nesses países. Acontecendo isso, os interesses latifundiários da multinacional têm de ser resguardados pelo dito ‘suporte moral do Departamento de Estado dos Estados Unidos (MAY, PLAZA, 1958). Um exemplo de tensão criada pelo monopólio de terras da United Fruit na América Central foi a reforma agrária posta em prática pelo governo de esquerda de Jacobo Arbenz Guzman (1951-54) na Guatemala. O referido governo em 1952 aprovou uma reforma agrária que expropriou 178.000 acres da United Fruit Company e ofereceu um pagamento de 525.000,00 dólares americanos (valor declarado pela companhia no imposto de renda), que foi rejeitado pela companhia que exigia 15 milhões pela terra desapropriada. Essa exigência teve o suporte do Departamento de Estado dos EUA (KOEPPEL, 2008; MAY, PLAZA, 1958). A ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 33 multinacional então fez uma ampla propaganda vinculando as ações do presidente da Guatemala a União Soviética e chamando a atenção do Governo Americano e da CIA para o referido país. Com a ajuda do Governo Americano, da CIA e com o financiamento da United Fruit, foi executado um golpe de estado que retirou o presidente Arbenz em 1954 (KOEPPEL, 2008). Na América do Sul (Equador e Colômbia) existia uma diferença em relação à posse e ao uso das terras da América Central na metade do século XX. A maioria das terras que eram utilizadas pela multinacional na América do Sul eram terras contratadas de produtores locais independentes. No Equador, a multinacional produzia apenas 5% da exportação de bananas em 1955. A quase totalidade das bananas vinha de produtores independentes que vendiam sua produção para a United Fruit. Na Colômbia, se teve uma realidade similar. Cerca de 70% de todas as bananas exportadas em 1955 eram fornecidas por produtores locais que tinha contratos com a multinacional. Em 1955 eram 225 produtores locais operando 12.900 acres de terras, porcentagem de terras muito maior que as terras em produção próprias da companhia que representavam nesse ano apenas 18% das terras que produziam bananas para a multinacional. Vale lembrar que a multinacional nas primeiras décadas do século XX chegou a ter uma grande produção na região do Caribe Colombiano, que representou mais de 17% de toda a área de produção de bananas da United Fruit em 1928. Essa produção não se manteve pelo aumento dos custos de produção com o aceite de reivindicações trabalhistas em greves que o governo central colombiano se alinhava aos trabalhadores, forçando a multinacional a aceitar as reivindicações. A Colômbia era um país com território mais de 10 vezes maior que a Guatemala, sendo muito complicado exercer o mesmo poder que a multinacional exercia nos países da América Central (ROCA, 1998, MARQUETTO, 2010). 4.2 Relações de Trabalho 4.2.1 Política de assistência ao trabalhador A United Fruit tinha, na metade do século XX, uma política de assistência ao trabalhador robusta que visava trazer uma infraestrutura básica para as fazendas que muitas vezes ficavam nas florestas, longe das cidades, e evitar a transmissão de doenças, além de difundir os ideais americanos por meio da sua cultura de massa. A política de assistência ao trabalhador incluía: a oferta de uma casa, oferecida aos trabalhadores e seus dependentes de forma gratuita (as casas se tornavam melhores, mais modernas e espaçosas quando se subia na hierarquia da empresa); clube para os trabalhadores, ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 34 com pelo menos um filme (na maioria das vezes americano) sendo exibido por semana para os trabalhadores e seus dependentes; atendimento a saúde por meio de hospitais próprios, enfermeiras e consultas e unidades de saúde móvel, para os empregados, mulheres e crianças com a contrapartida de 2% de contribuição no salário do trabalhador; escolas de ensino básico eram disponibilizadas de graça para os filhos dos empregados, com o oferecimento de seis anos de estudo; era disponibilizado treinamento para os funcionários na Escola Agrícola Panamericana; além do fornecimento de alimentos e gêneros de primeira necessidade a partir de lojas da United Fruit que ficavam nas fazendas e que vendiam produtos a preços mais baixos que o comércio local, pois a empresa muitas vezes fabricava os referidos produtos que eram direcionados a seus funcionários, como leite, carne e seus derivados. Essas lojas implantavam uma noção de modernidade na população local, acostumada com as feiras e com o comércio itinerante característico das comunidades tradicionais (MAY, PLAZA, 1958). 4.2.2 Relações de Trabalho As relações de trabalho da United Fruit nos principais países produtores variavam sensivelmente, principalmente de acordo com o poder dos trabalhadores/sindicados e das leis trabalhistas de cada país. Nos principais países produtores da América Central, a multinacional se deparava com uma gigantesca massa de trabalhadores, já que era a principal empregadora desses países. Na Costa Rica, por exemplo, seus funcionários representavam em 1955 cerca de 10% do total da mão de obra empregada no campo. Já nessa época, a multinacional incentivava o aumento de salário baseado no aumento da produtividade (MAY, PLAZA, 1958). O ambiente sindical nas unidades da multinacional da América Central variava muito de país para país, estando mais forte na Guatemala e Costa Rica. Na Guatemala, existiam leis trabalhistas que fixavam a contribuição sindical em 1% e cinco membros do sindicato tinham seus empregos e estabilidade resguardados. Na Costa Rica, existiam na década de 1950, três sindicatos representando os trabalhadores, um dos tais com influência comunista (MAY, PLAZA, 1958). Na década de 1950 (assim como nas décadas passadas), ocorreram uma série de greves em várias unidades produtoras da United Fruit na Guatemala, Honduras e Costa Rica. Só em 1954 uma série de greves e problemas com trabalhadores ocorreram em várias propriedades da multinacional na Guatemala. Nesse mesmo ano, uma longa e cara greve tomou forma em Honduras, onde os sindicatos eram proibidos oficialmente até então. E na Costa Rica, em 1955, ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 35 uma gigantesca greve ocorreu na unidade de Laurel que só teve fim com importantes concessões por parte da multinacional (May, Plaza, 1958). Vale ressaltar que inúmeras greves na América Central, durante a primeira metade do século XX, foram abaixo pela intervenção americana alinhada muitas vezes com as ditaduras que estavam a serviço da United Fruit, como falado anteriormente (KOEPPEL, 2008). Essas greves na América Central trouxeram para a companhia severos danos a seus interesses, devido em grande parte a cadeia produtiva da banana ser toda coordenada em função do tempo e da logística de comunicação e transportes. Uma vez que ocorrem problemas com trabalhadores na produção, toda a cadeia de transporte e distribuição é comprometida. Em relação aos principais países produtores da América do Sul, a representatividade dos trabalhadores próprios da United Fruit era muito pequena na década de 1950, devido ao processo de subcontratação de produtores locais, que ocorreram de forma mais intensiva na Colômbia e no Equador. No Equador, se tinha apenas 3.000 funcionários, tendo apenas 1% destes trabalhando diretamente na agricultura (MAY, PLAZA, 1958). Em relação a sindicalização, os dois países tinham sindicatos legalizados em negociações constantes com a multinacional. Essa pouca relevância na produção da Colômbia, com baixo nível de funcionários e prestadores de serviço, aconteceu devido a problemas pretéritos com os trabalhadores e fornecedores na Colômbia. Grandes greves aconteceram na principal região de atuação da multinacional na Colômbia (Magdalena) em 1918, 1919, que fazia à essa época uma pressão para a compra monopolística a preços baixos e usava sua rede ferroviária como mais um fator de pressão monopolística contra os trabalhadores e os produtores rurais, forçando os mesmos a só venderem sua produção para a multinacional. O poder local age no sentido de defender os interesses dos produtores locais e na década de 1930, o governo central resolve encampar a defesa de direitos trabalhistas reivindicados historicamente pelos trabalhadores (muitos mortos no massacre de Ciénaga na Colômbia em 1928, com a participação da United Fruit, exército colombiano e patrocínio indireto dos Estados Unidos) enfraquecendo a empresa na região (BUCHELI, 2006A; KOEPPEL, 2008). 5. Considerações Finais Por fim se observa que a atuação da United Fruit Company na América Latina estava em consonância com a política externa americana e com a característica comum das empresas multinacionais durante o neocolonialismo, que era de atuar em áreas que a potência tinha grande ALBANO, Gleydson Pinheiro Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 36 influência e poder, muitas vezes aproveitando-se do seu poder para impor suas práticas, de inspiração neocolonialista. No caso da multinacional em questão, nota-se uma forma de atuação diferenciada entre os países da América Central e os países da América do Sul. Esse fato ocorre pela importância da atividade econômica da companhia em relação ao tamanho do país e a economia do país em questão. Na América Central, em muitos países em que a multinacional atuava, ela era a principal empregadora do país, a principal latifundiária e em muitos casos a principal gestora de infraestrutura, ganhando assim um papel de destaque e uma influência gigantesca nos destinos dos referidos países. Sem falar do poder dos Estados Unidos que era mais intenso nesses países, chegando a invadir a região dezenas de vezes para consolidar seu poder político e econômico e as vezes prestar assistência as multinacionais americanas. Já na América do Sul, a multinacional se deparava com países maiores em que suas operações não chegavam a influir de forma intensa na economia do país, já que os referidos países tinham economias mais solidas e grupos econômicos diversos. Os Estados Unidos também não invadiam a região, nem exerciam o poder na mesma escala que era exercido na América Central. 6. Referências BUCHELI, Marcelo. 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O empreendimento deste ensaio busca também chamar atenção para uma interpretação da realidade que use conceitos casados com o tempo atual, ou seja, com a realidade empírica presidida por sistemas de objetos e por sistemas de ações do tempo presente. As modernizações da atualidade são expressas em diferentes dimensões, quais sejam: sociais, econômicas, políticas, técnico-científicas, culturais etc. Seguindo o encaminhamento metodológico do pensamento miltoniano, a interpretação geográfica da atualidade dar-se levando em conta as mudanças que se expressam com mais relevo em feições técnicas, científicas e informacionais que configuram o meio técnico-científicoinformacional, a face geográfica da globalização. Palavras-chave: Modernizações. Período da Globalização. Meio TécnicoCientífico-Informacional. Abstract Each season includes a number of unique features that differentiate it from other. If it were not so, we would not exactly an array of features with possibilities able to group them as it can set up and define as a historical period. The aim is therefore to understand the modernization of the globalization period and some of its geographical features. The development of this paper also seeks to draw attention to an interpretation of reality that use married concepts with the current time, i.e., the empirical reality chaired by systems of objects and actions of the present time systems. The modernizations of today are expressed in different dimensions, namely: social, economic, political, scientific and technical, cultural etc. Following the methodological routing of “miltoniano” thought, the present geographical interpretation to be taking into account changes that are expressed with more emphasis on technical features, scientific and informational that form the technicalscientific-informational milieu, the geographic face of globalization. Keywords: Modernizations. Period of Globalization. Technical-ScientificInformational environment. 1 Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco e professor adjunto da Unidade Acadêmica de Geografia, Campus Cajazeiras da UFCG. Líder do Lauter – Laboratório de Análise do Uso do Território. E-mail: santiagovasconcelos@yahoo.com.br VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 39 1. Introdução Cada época guarda suas características peculiares que o diferencia das demais. Se não fosse assim, não teríamos propriamente um conjunto de características com possibilidades capazes de agrupá-las no que se pode configurar como período. Isso significa dizer que o período reúne os dados explicativos de sua existência a partir das coisas e ideias que o formam. Contudo, um período não surge do nada, não se gesta por si próprio ou de si mesmo. Ele é o conjunto de sucessões dos períodos anteriores que gradativamente caducam à medida que modernizações vão surgindo, se espraiando, ganhando densidade e transitando para formar um novo período. As modernizações por meio dos eventos são o veículo do novo (período) em seu processo de difusão, reprodução e materialização no território e nas ações da sociedade. As modernizações que representam o novo não se fazem desprezando as heranças deixadas por modernizações anteriores. Elas são fruto do ato constante da própria modernização se fazendo enquanto novo passado-presente. É oportuno dizer que “objetos, ações e normas constituem eventos (ora em incessante movimento, ora cristalizados), e esses eventos ocorrem no tempo e no espaço” (GÓMEZ LENDE, 2006, p. 140), demarcando, portanto, um lugar preciso no uso do território e na história. O período atual surge com a difusão de um novo conjunto de modernizações que não mais guardavam características intrínsecas com o passado-presente (anterior a Segunda Guerra Mundial), resultando assim, em um período novo que começou a ganhar forma e se estender espacialmente, resultando no período hoje vigente: a globalização. Empreender análise do uso do território na atualidade requer entender as lógicas, as normas, as intencionalidades e as tendências que presidem as ações no período atual. Este, enquanto totalidade em processo de totalização guarda novas feições sociogeográficas que requerem interpretações à luz de conceitos esposados com nosso tempo, com a realidade empírica. Daí a necessidade do presente ensaio que objetiva compreender as modernizações do período da globalização e suas feições geográficas. O que chamamos de período da globalização, com suas modernizações, ganhou status de período graças ao conjunto de mudanças que ocorreram no mundo: sociais, econômicas, políticas, técnico-científicas, culturais etc. No que diz respeito especificamente à geografia, as mudanças se expressam com mais relevo em feições técnicas, científicas e informacionais que, para Santos (2002, p. 239), configuram o meio técnico-científico-informacional, o rosto geográfico da globalização. Assim, o encaminhamento metodológico segue a linha de pensamento miltoniana, ou seja, do geógrafo Milton Santos. VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 40 2. Modernizações numa perspectiva geográfica Tratar de modernizações e de periodização na perspectiva da Geografia implica olharmos pelas lentes do seu objeto de estudo: o espaço. Período e modernizações podem ser encarados sob diversas perspectivas, portanto, cabe a cada qual, de acordo com seus interesses, fazer as escolhas demandadas por sua área do saber. Falar em modernizações numa perspectiva geográfica corresponde, conforme Gómez Lende (2006, p. 143), rechaçar as conceituações associadas às noções de “era moderna”, ou que sugerem somente a ocidentalização ou a difusão de um padrão cultural de civilização. Para esse autor, “a modernização é um processo graças ao qual cada país (a formação socioespacial) incorpora diferencial e seletivamente os dados centrais de um período histórico” (GÓMEZ LENDE, 2006, p. 143). Nessa perspectiva geográfica, Elias (2002) extrai do pensamento de Milton Santos algumas ideias sobre modernizações e período, quais sejam: Por modernização entende-se a generalização de uma inovação vinda de um período anterior ou da fase imediatamente precedente. Considerando que cada período é caracterizado pela existência de um conjunto coerente de elementos de ordem econômica, social, política e moral, que constituem um verdadeiro sistema, sugere que devemos realizar uma divisão do tempo em períodos para reconhecer a existência da sucessão de modernizações, que seria a própria história das modernizações. Assim, o “conjunto coerente de elementos” constitui e caracteriza o período que expressa às modernizações. Do ponto de vista geográfico, as modernizações efetuam-se por intermédio de sistemas de ações e se manifestarão em sistemas de objetos, indissociavelmente, ou seja, o espaço será uma espécie de síntese. A síntese será dada por elementos e ações do passado mais o que é novo. Aliás, as modernizações que traduzem o novo período não ignoram as heranças socioespaciais, mas o novo período se faz com elas, a partir delas; elas exercem, de certa forma, um poder coercitivo sobre o novo, e o novo não ignora o passado, pois, como bem aponta Ortega y Gasset (2007, p. 19), o passado não é para ser negado e sim integrado, e é justamente isso que ocorre com as modernizações que ganham existência no espaço. Posto de outra maneira: “em todos os momentos as formas criadas no passado têm um papel ativo na elaboração do presente e do futuro” (SANTOS, 2008a, p. 68). As modernidades enquanto tempo-presente característico do período, expressam “contexto e conjuntura” (SOJA, 1993, p. 34). São justamente esses contextos e conjunturas que marcam as épocas, que demarcam períodos e diferenciam os lugares. Conforme o autor VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 41 supracitado, a modernidade “pode ser entendida como a especificidade de se estar vivo, no mundo, num momento e lugar particulares; como um sentimento individual e coletivo vital de contemporaneidade”. Sendo assim, prossegue: “[...] a experiência da modernidade capta uma ampla mescla de sensibilidades, que reflete os sentidos específicos e mutáveis das três dimensões mais básicas e formadoras da existência humana: o espaço, o tempo e o ser” (SOJA, 1993, p. 34). Essas dimensões se derivam em três ordens empíricas correlatas, indissociáveis e simultâneas assim descritas: A ordem espacial da existência humana provém da produção (social) do espaço, da construção de geografias humanas que refletem e configuram o ser no mundo. Similarmente, a ordem temporal se concretiza na construção da história, simultaneamente cerceada e cerceadora, numa dialética evolutiva [...]. Para completar a tríade existencial necessária, a ordem social do ser-nomundo pode ser vista como algo que gira em torno da constituição da sociedade, da produção e reprodução das relações, das instituições e das práticas sociais (SOJA, 1993, p. 35, grifos nosso). Essas três ordens da existência tratadas por E. Soja (1993), são frutos e concomitantemente, a personificação de cada período, pois essas três ordens também encarnam as modernizações que as caracterizam em cada momento do mundo. Então, essas modernizações seriam “um processo contínuo de reestruturação societária, periodicamente acelerado para produzir uma recomposição significativa do espaço-tempo-ser em suas formas concretas”, o que representa, acrescenta Soja, “uma mudança da natureza e da experiência da modernidade que decorre, primordialmente, da dinâmica histórica e geográfica dos modos de produção” (SOJA, 1993, p. 37). As modernizações mais recentes da história da humanidade têm como principais motores-propulsores a emergência e o desenrolar do modo capitalista de produção que inexoravelmente afeta e se faz ao mesmo tempo com as três ordens da existência (espacial, temporal e social). Assim, o capitalismo constitui-se como a grande energia que move mais rapidamente a contínua busca por novas modernidades que rapidamente se defasam requerendo ciclos inovadores contínuos e com ritmos mais rápidos de novas modernizações sucessivas “que forma e desmancham períodos” (SANTOS, 2008a. p. 68). Portanto, geograficamente é relevante buscar entender as modernidades no território, dadas sobre a forma de objetos e ações (SILVEIRA, 1999, p. 22). A evolução do modo de fazer/viver o espaço-tempo é a construção/sucessão dos meios geográficos nos territórios. Cada meio geográfico é o resultado dos usos das técnicas intermediado por relações sociais de produção. Assim, ao dividir a evolução do modo de fazer/viver tendo como parâmetro e síntese, as técnicas, é possível realizar uma periodização VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 42 geográfica, identificando seus meios, ou seja, períodos que revelam a sucessão exponencial de artificialização da natureza. Por conseguinte, “cada período vê nascer uma nova geração de técnicas que o caracteriza” (SANTOS, 2002, p. 192). Realizar uma periodização geográfica levando em conta o processo de artificialização dos meios, tendo as técnicas como síntese, foi uma tarefa perseguida durante quase toda a vida de Milton Santos. Em sua obra “A natureza do Espaço”, esse autor aprofunda a sua ideia de periodização mostrando como ocorre a sucessão dos meios geográficos. Para ele, teríamos então, o meio natural, o meio técnico e o meio técnico-científico-informacional (2002, p. 233259). O meio natural seria o anterior a invenção e uso da máquina. Trata-se de um meio sem grandes transformações em que “as técnicas e o trabalho se casavam com as dádivas da natureza, com a qual se relacionavam sem outra mediação” (SANTOS, 2002, p. 235). Os sistemas técnicos, que eram locais, não tinham existência autônoma, mas uma simbiose com a natureza que determinava ritmos e usos territoriais, isto é, “a sociedade local era, ao mesmo tempo, criadora das técnicas utilizadas, comandante dos tempos sociais e dos limites de sua utilização” (SANTOS, 2002, p. 236). O meio técnico tem a invenção e uso da máquina como marco inicial diferenciador do anterior. Nesse estágio, o espaço é mecanizado, tendo como constituinte os objetos culturais e técnicos. Os objetos técnicos maquínicos têm sua própria razão baseada na lógica instrumental que desafia as lógicas naturais. Rompem-se as distâncias, estendem-se próteses no território para possibilitar os deslocamentos e impõem-se um tempo social aos tempos naturais. A energia imperativa para a presença de sistemas técnicos eficazes é a do comércio e não mais a da natureza com seus ciclos e a simples busca pelas condições de sobrevivência e reprodução biológica humana. Entretanto, esse ainda é um sistema que foi se instalando pontualmente em poucos países e regiões, e, mesmo onde ele se fez presente, os sistemas técnicos vigentes eram geograficamente circunscritos (SANTOS, 2002, p. 236-238). A medida que os resultados da Revolução Industrial avançam e seus inventos se espraiam sobre parte do espaço mundial, incorporam-se novas próteses e novos usos aos territórios, normando-os conforme os desígnios das inovações técnicas e suas intencionalidades. Ao adentrar o século XX com inovações técnicas-científicas mais intensas, constroem-se as bases para ter início a efetivação no meio geográfico do presente. O meio atual é o técnico-científico-informacional, resultado da união entre técnica e ciência sob o comando do mercado que, graças às possibilidades técnicas do período, torna-se mercado global. Esquematicamente, pode-se admitir que o pós-Segunda Guerra Mundial seria VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 43 o marco da materialização desse meio, primeiramente nos “Países Centrais” e posteriormente a 1970 nos países do chamado “Terceiro Mundo”. Esse é o período em que os objetos tendem a serem repletos de informações, ou seja, serem técnicos e informacionais. Esse meio se diferencia dos anteriores em vários aspectos, um deles é que sua lógica e funcionamento são globais e se impõem a todos os territórios, perfazendo-se num meio geográfico que tende a ser universal. Seus objetos técnicos-informacionais são difundidos mais rapidamente e sua abrangência mais generalizada. Contudo, sua efetivação ocorre de maneira seletiva nos territórios, configurando geografias particulares nos lugares (SANTOS, 2002, p. 238-241). O período atual tem como modernidade territorial o meio técnico-científicoinformacional, uma vez que, “a modernidade é o resultado de um processo pelo qual um território incorpora dados centrais do período histórico vigente que importam em transformações nos objetos, nas ações, enfim, no modo de produção” (SILVEIRA, 1999, p. 22). Vale ressaltar que as modernidades tecnológicas do presente passam gradativamente a caracterizar a sociedade já que “o sistema tecnológico de uma sociedade não pode ser separado, idealmente ou realmente, daquilo que essa sociedade é” (CASTORIADIS, 1987, p. 152, grifo no original). Nesse sentido, para entender a atualidade, em específico a lógica espacial das sociedades contemporâneas, é imprescindível levar em conta o papel e conteúdo das técnicas, da ciência e da informação (SANTOS, 2008b, p. 69), conteúdos esses que, entre outros, marcam o período da globalização, “alicerce explicativo do real” para entender os dias atuais (VASCONCELOS e SÁ, 2007, p. 116). Isso quer dizer que, em síntese, “cada época é definida pelas respectivas modernizações” (SILVEIRA, 1999, p. 22). As modernizações reinantes no período atual da globalização, como são engendradas nas engrenagens da reprodução do capital, têm suas concreções materiais nos territórios de forma que reproduzem as próprias desigualdades imanentes da reprodução do capital. Sua distribuição espacial no mundo e em outras escalas segue a lógica do desenvolvimento desigual e combinado em termos espaciais e temporais. Neste sentido, “a modernização [ou modernizações], como todos os processos sociais, desenvolve-se desigualmente no tempo e no espaço e, desse modo, inscreve geografias e histórias bem diferentes nas diferentes formações sociais regionais” (SOJA, 1993, p. 37). O mundo é formado por um mosaico de modernizações descompassadas temporalmente e distribuídas desigualmente nos territórios, mas que, por força das características do período atual, em termos gerais, a tendência pressiona para alinhá-las temporalmente e melhor equacionar a distribuição, visto que, essas são exigências da própria reprodução do capital. Porém, na realidade da lógica contraditória imanente do capitalismo e do movimento do capital VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 44 nos usos diferenciados dos territórios pelo mundo, produzem descompassos temporais e desigualdades geográficas no que diz respeito à presença e às densidades das modernizações. Neste sentido, enquanto realidade objetiva, assistimos a expressão espaço-temporais que ontologicamente são passíveis de divisões regionais, essas que podem mudar de acordo com as variáveis eleitas epistemologicamente. As densidades das variáveis-chaves de cada período presentes no território podem ser uma escolha de método a ser seguida. Por fim, pode-se afunilar a compreensão sobre as modernidades numa perspectiva espaço-tempo da seguinte maneira: A modernidade é um modo de ser da totalidade e o período é uma manifestação existencial ou corpórea do tempo, enquanto meio e região constituem a objetivação, no primeiro caso, e a individualização, no segundo, das possibilidades e existências concretas do processo de modernização (GÓMEZ LENDE, 2006, p. 148). Assim, a totalidade em movimento com suas modernizações sendo objetivadas e individualizadas resulta em geografias múltiplas, porém, participantes do mesmo processo da totalidade em sua totalização. É nesse sentido que o período da globalização se apresenta com diferentes feições espaciais. 3. O período da globalização e algumas de suas feições geográficas A globalização em curso, inegavelmente vem ocasionando diversas transformações socioespaciais pelo mundo. Como bem diz Costa (2008, p. 11), “concordemos ou não, gostemos ou não, a globalização é um fato cotidiano que permeia nossa realidade [...], é um fenômeno típico do capitalismo contemporâneo”. Para Santos e Arroyo (1997, p. 57), “o global, a globalização são [...] expressões que logram sintetizar o processo de mudanças que o período atual contém”. Sem se preocupar em delimitar marco no tempo cronológico do surgimento do processo de globalização, mas indicar quando as suas mudanças passaram a ser expressivas, teríamos que “a partir dos anos 1970, observa-se um fenômeno de globalização intenso. Isto se expressa através das trocas de diferentes tipos: informações, capitais, bens e serviços, mas também pelo deslocamento de pessoas. Os fluxos são mundiais” (BENKO e PECQUEUR, 2001. p. 33). Do ponto de vista econômico “quando se fala em globalização, está-se querendo ressaltar a maturidade de uma tendência antiga, que vai superpondo à internacionalização do capital e dos fluxos mercantis, a internacionalização produtiva e, especialmente, a financeira” (ARAÚJO, 1999, p. 9). A globalização vista enquanto processo tem mostrado que a medida que se aproxima dos dias atuais, sua manifestação real tem aparecido em forma de crises de toda sorte, com VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 45 tendências intensificadoras e de ciclos mais curtos e abrangentes. Por isso, umas das características do período atual é a profunda crise estrutural do capitalismo, implicando em graus diversos de consequências nas diferentes regiões do Planeta, mas não deixando nenhuma de fora, devido à crise ser sistêmica e global. Para Mészáros (2007, p. 55, grifos do autor) “vivemos uma época de crise histórica sem precedentes, cuja severidade pode ser dimensionada pelo fato de que não estamos enfrentando uma crise cíclica mais ou menos ampla do capitalismo, tal como experimentamos no passado, mas a crise estrutural cada vez mais profunda do próprio sistema do capital”. Essa crise é diferente das outras, pois, pela primeira vez na história, afeta praticamente a totalidade da humanidade num único processo. Estamos vivendo, ao mesmo tempo, um período e uma crise global (MÉSZÁROS, 2007, p. 55; SANTOS, 2001, p. 33-36). O período-crise atual conseguiu abrangência e difusão tão rápida graças aos avanços e ao grau de interdependência atingindo pela ciência e pela técnica que, enquanto realidade empírica, tornaram o mundo um só sistema, o “sistema-mundo”, ou seja, a fase histórica atual entendida como globalização. Segundo Milton Santos a época atual é diferente das anteriores, pois o “Mundo está marcado por novos signos”, quais sejam: Multinacionalização das firmas e a internacionalização da produção e do produto; a generalização do fenômeno do crédito, que reforça as características da economização da vida social; os novos papéis do Estado em uma sociedade e uma economia mundializadas; o frenesi de uma circulação tornada fator essencial da acumulação; a grande revolução da informação que liga instantaneamente os lugares, graças aos progressos da informática (SANTOS, 2008a. p. 117). Os novos “signos” da atualidade e a afirmação do período só foram possíveis com a concretude de um novo meio geográfico, o meio técnico-científico-informacional, a “cara geográfica da globalização” (SANTOS, 2002, p. 239). Vivemos na época da integração planetária, com a unicidade da técnica, do tempo e da mais-valia, além do conhecimento extensivo e profundo do planeta já ser uma realidade (SANTOS, 2001, p. 23-32). Para Santos (2005, p. 145) “a globalização constitui o estádio supremo da internacionalização, a ampliação em ‘sistema-mundo’ de todos os lugares e de todos os indivíduos, embora em graus diversos”. Daí porque a importância de entender as modernizações do tempo presente se fazendo nos usos dos territórios enquanto expressão geográfica da globalização. Contudo, como já advertido, não são todos os lugares que recebem a mesma carga técnica-científica e informacional, isto é, nem todos os territórios são usados e artificializados homogeneamente, muito pelo contrário. Se o processo de globalização tem como característica ser o mais abrangente possível, principalmente em sua faceta do mercado VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 46 e enquanto ideologia (notadamente neoliberal), por outro lado a sua materialidade enquanto constituição espacial máxima dada pela densa presença do meio técnico-científicoinformacional não tem sua distribuição homogêneo, o que interfere no grau de globalização dos lugares. Contudo, vale mencionar que “a constituição e emergência do meio técnico-científicoinformacional ocorrem concomitantes com o estádio supremo da globalização, pois ambos são processos indissociáveis e condicionantes um do outro” (VASCONCELOS e SÁ, 2007, p. 118). Assim, conclui-se que o meio geográfico é condicionante para o grau de globalização dos lugares. Costa (2008, p. 62) advoga que a globalização é um fenômeno novo no modo de produção capitalista. Na sua ótica, o novo consiste que, após a internacionalização da produção e a disseminação de filiais de empresas transnacionais no centro e também na periferia do sistema, a burguesia passa a extrair mais-valia na escala mundial, explorando diretamente o conjunto do proletariado mundial. De acordo ainda com o autor, o capitalismo tornou-se maduro e um sistema completo na medida em que “ao produzir internacionalmente e internacionalizar as finanças, [...] ele amadureceu efetivamente o ciclo de reprodução do capital em escala internacional, possibilitando a constituição de um ciclo único na economia mundial e transformando-se assim num sistema mundial completo” (COSTA, 2008, p. 62). Porém, como já se advertiu, existem particularidades regionais dadas pelo meio geográfico que negam a homogeneidade de sua efetivação por igual no espaço-mundo, garantindo a persistência do desenvolvimento desigual no espaço, mas combinado enquanto parte do sistema do capital. Enquanto tendência do tempo presente fica evidente cada vez mais que a globalização e a gradativa realidade do meio técnico-científico-informacional trazem mudanças de várias ordens, não mais restrita a poucos locais, mas mundiais. Todos os lugares, com maior ou menor grau de participação econômica e presença de densidades técnicas, são arrastados pela globalização que se difunde rapidamente e faz com que eventos apareçam nos territórios sob a forma de modernizações. Por força do novo período, transformações territoriais e relacionais entram em vigor na escala do Planeta. Resumindo, pode-se constatar que rompem-se os equilíbrios preexistentes e novos equilíbrios mais fugazes se impõem: do ponto de vista da quantidade e da qualidade da população e do emprego, dos capitais utilizados, das formas de organização das relações sociais etc. Consequência mais estritamente geográfica, diminui a arena da produção, enquanto a respectiva área se amplia. Restringe-se o espaço reservado ao processo direto da produção, enquanto se alarga o espaço das outras instâncias da produção, circulação, distribuição e consumo. Essa redução da área necessária à produção das mesmas quantidades havia sido prevista por Marx, que a esse fenômeno chamou de "redução da arena". Graças aos avanços da biotecnologia, da química, da organização, é possível VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 47 produzir muito mais, por unidade de tempo e de superfície (SANTOS, 2002, p. 240). No período atual, outro dado importante é a globalização financeira. A órbita das finanças hoje hegemoniza toda a dinâmica do sistema capitalista, tornando o mercado financeiro internacional no grande protagonista para o funcionamento do restante da economia. O mercado financeiro, através do capital especulativo estende suas ações especulativas sobre praticamente tudo, com grande poder de mobilidade temporal e espacial, circulando quantias financeiras bem acima da base material de produção. Assim, temos a passagem do capitalismo fordista para o capitalismo financeiro globalizado. Assim, a globalização da produção e a globalização financeira são realidades que estão presentes na nossa vida cotidiana através de produtos, serviços etc. Costa (2008, p. 64-65), afirma que “em função da concentração e da centralização do capital, a grande maioria dos produtos que utilizamos no dia-a-dia ou das operações financeiras realizadas cotidianamente são feitas por grandes corporações transnacionais financeiras ou produtivas”. Finanças e informação são imperativos do nosso tempo. A globalização financeira tornada realidade tem seu funcionamento assentado, sobretudo na informação, por isso ela ganha tamanha importância na atualidade. Para Santos (2002), a informação constitui-se como o motor da divisão internacional do trabalho, passando a ser segredo, instrumento de poder, e junto com o consumo, denominador comum universal. Ela passa a ser a substância de funcionamento do sistema como um todo. Aliada à revolução da informática e das redes de interligação (infovias), bem como à disseminação dos meios de comunicação tradicionais e das novas mídias e sistemas de transmissão, a informação e suas intencionalidades portadas passam a estarem presentes em todos os lugares de interesse. Isso significa, conforme Milton Santos, que a “informação ganhou a possibilidade de fluir instantaneamente, comunicando a todos os lugares, sem nenhuma defasagem, o acontecer de cada qual”, daí sua importância, pois, “sem isso, não haveria um sistema técnico universalmente integrado, nem sistemas produtivos e financeiros transnacionais, nem informação geral mundializada, e o processo atual de globalização seria impossível” (SANTOS, 2002, p. 198-199). Milton Santos evidencia também a existência de um mercado da informação que é controlado, concentrado e manipulado em favor dos agentes hegemônicos. Hoje, a informação emerge enquanto imperativo do período, mudando o espaço-tempo, as relações entre lugares e pessoas. Assim, a instantaneidade da informação globalizada aproxima os lugares, torna possível uma tomada de conhecimento imediata de acontecimentos simultâneos e cria entre lugares e acontecimentos uma relação unitária à escala do mundo. Hoje, cada momento compreende, em todos os lugares, eventos VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 48 que são interdependentes, incluídos em um mesmo sistema global de relações (SANTOS, 2002, p. 203). Seguindo o corolário da globalização, o consumo também é uma de suas marcas. Graças à grande oferta em quantidade e tipos de produtos e de serviços, junto com a necessidade de criar demandas para absorvê-los, concebe-se uma verdadeira engenharia para produzir consumidores sempre ávidos por novidades. O novo, para o atual mundo do consumo, torna-se de maneira açodada em anacrônico devido à capacidade do mercado de reinventar e inovar mais rapidamente, acelerando a solvência da vida das mercadorias. Marketing e propaganda são as engenharias que tentam sempre atender à criação de necessidades e assim tentar manter uma demanda sempre crescente. Entretanto, para assegurar a capacidade de compra é preciso que a classe consumidora tenha provimento financeiro para tanto. Daí emerge uma das maiores contradições e desafios da atualidade, considerando que a aliança da ciência com as forças produtivas atinge um estágio de desenvolvimento técnico que resulta numa enorme capacidade produtiva poupadora de mão de obra. Em consequência, por outro lado, cria-se uma massa de desempregados vítimas das novas tecnologias poupadoras de mão de obra que, por ficarem destituídos de salários, tornam-se impedidos de se inserirem efetivamente no mundo do consumo. Esse desequilíbrio e contradição do sistema, segundo Costa (2008, p. 65-67), faz com que o capital tenha suas ações limitadas, ou seja, suas forças produtivas potenciais não podem se desenvolver plenamente em função da insuficiência global da demanda, que barra o sistema produtivo. Outra grande contradição da globalização capitalista reside na constatação de que há uma maior facilidade na mobilidade do capital, enquanto que um contingente expressivo da população mundial continua preso à sua localidade. Doreen Massey enfatiza que o tipo de globalização atual tem como uma das mais notáveis características da desigualdade: aquela entre o capital e o trabalho. Em suas palavras: Não há mercado mundial para o trabalho como há para o capital. Enquanto que o capital – na forma de transações financeiras, investimentos, e comércio de bens – realmente têm, em épocas recentes, se movido mais livremente ao redor do mundo, e tem sido encorajado a fazê-lo sob o signo de “livrecomércio”, as pessoas não são de jeito nenhum encorajadas a mover-se. O capital pode mover-se em busca das melhores oportunidades de investimento, e quando assim o faz é elogiado por sua flexibilidade e sensibilidade. O trabalho, as pessoas que desejam vagar pelo mundo em busca de trabalho, são castigadas como “somente” migrantes econômicos. Barreiras são criadas contra elas entre as grandes áreas do mundo para que sejam mantidas em seus lugares. Obviamente a migração internacional continua, mas é reduzida, cercada e controlada. Muito diferente da exuberância com que o movimento livre do capital é festejado. Além disso, a migração internacional que permanece é claramente segregada entre os ricos, aqueles com formação, e/ou VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 49 dinheiro para investir e que podem locomover-se com relativa facilidade, e do outro lado, os pobres e sem formação, contra os quais barreiras são constantemente levantadas (MASSEY, 2007, p. 150). O braço forte para facilitar a circulação e exploração planetária pelo capital é o Estado em sua versão neoliberal. O Estado é o grande facilitador para a efetivação da globalização neoliberal, com implicações territoriais bem nítidas em geografias desiguais. A novidade do tempo-presente advém do fato de que, conforme destaca Santos e Silveira (2003, p. 254-255), antes da globalização a participação produtiva de cada país na divisão internacional do trabalho tinha haver com relações privilegiadas estabelecidas entre Estados, portanto, limitadas a um grupo de países. Nessa relação é a instância política que se sobressaia sobre a instância econômica, sendo esta regulada pela política interna de cada país bem como a política econômica internacional. Quanto ao meio geográfico antes do período da globalização, ainda de acordo com os autores, “as localizações eram ditadas pela presença de recursos naturais, ou infraestruturas, ou sociopolíticas, quando estes apareciam como vantagens comparativas”. Assim, teríamos no estágio anterior ao neoliberalismo que “em todos os casos as normas estabelecidas pelo Estado, relativamente a tarifas, impostos, financiamentos, créditos, salários etc., acabavam tendo um papel de regulação ao qual as empresas interessadas deveriam adaptarse” (SANTOS e SILVEIRA, 2003, p. 255). Agora, no período da globalização neoliberal, outros imperativos ganham proeminência e o protagonismo do Estado assume outros papeis na vida econômica. No atual período “a divisão internacional do trabalho ganha novos dinamismos, sobretudo nos países subdesenvolvidos. A lógica das grandes empresas, internacionais ou nacionais, constituem um dado da produção da política interna e da política internacional de cada país” (SANTOS e SILVEIRA, 2003, p. 255). Na fase atual, “com a globalização, confunde-se a lógica do chamado mercado global com a lógica individual das empresas candidatas a permanecer ou a se instalar num dado país”, o que força o Estado mudar de rumo uma vez que o novo cenário “exige a adoção de um conjunto de medidas que acabam assumindo um papel de condução geral da política econômica e social” (SANTOS e SILVEIRA, 2003, p. 255). De acordo com Vasconcelos e Sá (2007, p. 121) no período atual reina “uma ordem global” que implica numa “ordem geográfica” imposta aos lugares, que devem se adequar às demandas em voga para se tornarem atrativos e acolhedores ao uso dos “agentes hegemônicos globais”. Porém, na realidade, nem todos conseguem inserção no seletivo circuito espacial dos lugares competitivos, reatando uma situação de marginalidade, dando o tom desafinado frente à pretensa harmonia orquestrada pelos que defendem a afinação perfeita da globalização, produtora de “maravilhas sonoras” induzidas aos diferentes povos nos mais diferentes lugares. Ora, na prática VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 50 temos como resultado da globalização uma fragmentação territorial, acompanhada por perversidades com implicações em diferentes sentidos e consequências nas relações sociais e na condição humana. Ainda conforme os autores supracitados (p. 121), deve-se lembrar que “inicialmente a globalização apareceu com forte componente ideológico enquanto panaceia para os males e aflições sofridas pela maior parte da humanidade”. Ora, não se pode perder de vista que “globalização rima com integração e homogeneização, da mesma forma que com diferenciação e fragmentação” (IANNI, 2001, p. 30). Portanto, anunciar a globalização como panaceia foi uma estratégia implementada via principalmente organismos internacionais (FMI, Banco Mundial) para que a globalização neoliberal rompesse as fronteiras estatais e se instalasse no seio político dos Estados Nacionais. Assim, gradativamente muitos países foram realizando a abertura de suas economias nacionais a sanha da competitividade do mercado internacional. Mas, abrir as fronteiras nacionais não significa simplesmente operar no campo da norma fiscal, monetária e financeira. Para que possa haver interações espaciais típicas da economia e do mercado global, o que é próprio da globalização, há a necessidade de equipar o território, dotálo de fluidez e adequar as forças produtivas para que atendam aos cânones do período. Assim, vários Estados Nacionais aliados ao mercado promoveram ações normativas e melhoramentos ou mesmo novos sistemas de engenharia foram construídos para tornar frações territoriais capazes de se integrar ao mercado internacional globalizado. Contudo, só alguns recortes territoriais precisos foram eleitos como competitivos e receberam grande densidades técnicas, científicas e informacionais típicas do período. Assim permanece a lógica onde aqueles espaços com maior capacidade de oferecer maior retorno da taxa de lucro são os espaços que recebem as modernizações da globalização. Geralmente esses espaços são ocupados pelas grandes firmas internacionais ou nacionais que, por força de vários mecanismos, eliminam quaisquer empecilhos às suas ações. Nesse processo, é comum o Estado ser complacente e facilitador/promovedor através de políticas “neoliberais” que incluem adequações no arcabouço normativo. O outro dos espaços da globalização, isto é, sua outra face, são espaços marginalizados, mas que fazem parte da mesma lógica global capitalista e não escapam do processo de mercantilização das relações e de exploração, apenas não são o “filé” para o grande capital, situação que pode mudar (ou não) em curto espaço de tempo, dependendo do que é do interesse da lógica do sistema do capital. Essa contradição vista sob o ângulo propriamente geográfico se expressa espacialmente sob a forma de seletividades e marginalidades espaciais, duas faces do mesmo processo de desenvolvimento geográfico desigual e combinado, portanto, contraditório; não que isso seja VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 51 uma novidade, o que é novidade é a sua difusão intensificada em menor espaço de tempo e em todos os lugares, graças ao meio técnico-científico-informacional com realidade geográfica do período da globalização. Com a efetivação do processo de globalização enquanto realidade, inicialmente surgiram interpretações apressadas acabando com o papel do Estado na vida econômica, decretando o fim da história, matando a existência de regiões por meio da homogeneidade. Com o passar dos anos comprovou-se que esses prognósticos não passaram de falácias de cunho ideológico em favor da globalização neoliberal. Houve uma reorientação nas políticas estatais em favor do mercado e em detrimento da população mais necessitada de bens e de serviços elementares; da mesma forma atestou-se que a história não se converteu numa mesmice sem sentido; e que a organização do espaço mundial e da economia reforça a existência do fenômeno regional por meio da heterogeneidade de como ocorre a territorialização do capitalismo. As crises mundiais permanentes que estão marcando esses primeiros anos do presente século provam que o papel do Estado ainda é muito importante na economia e que a reprodução capitalista não se faz por meio de homogeneidades espaciais, mas sim com heterogeneidades configuradas em formas regionais e locais das mais diversas. Essas formas particulares são percebidas pelos diferentes graus de modernizações, pela densidade diferencial da presença do meio técnico-científico-informacional. As regiões ou lugares que mais se articulam a economia global o faz por meio de internalizações de modernizações territoriais que permitem a conexão do local com o global ao tempo em que permite que o global se faça presente no lugar. Entender as modernizações do tempo presente pressupõe entender os sistemas de ações e as mediações das normas. A atual modernização territorial expressa na tecnoesfera técnicacientífica-informacional tem que ser entendida junto com a psicoesfera neoliberal. A rápida difusão das modernizações territoriais ocorreu calcadas no neoliberalismo que ampliou sua influência na escala do mundo, trazendo consigo a lógica do capital a todos os lugares e a todas as relações sociais, implicando numa dialética da razão global e da razão local ambas em uníssono com o sistema do capital. Mesmo que a tecnoesfera apresente-se com grandes hiatos de densidades territorial, ela tende a se fazer presente em todos os lugares para que assim possa inseri-los no sistema do capital. Nos lugares em que a rarefação da tecnoesfera é maior (no caso específico da tecnoesfera produtiva), tem-se presente o mínimo que for de uma tecnoesfera de meios de comunicação que permita a psicoesfera neoliberal, para que a mesma cumpra sua função em alterar as subjetividades, naturalizando a ideologia consumista, do endividamento e do reino da mercantilização para todas as relações sociais e toda a esfera da vida. VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 52 A existência de uma tecnoesfera mínima enquanto sistema de engenharia nos territórios marginalizados é imprescindível para que assim garanta a operação da infoesfera em seu trabalho de formação da psicoesfera neoliberal. A infoesfera é justamente a esfera da informação e da informatização típica das diferentes formas de comunicação imaterial do nosso tempo simbolizada pela rede mundial de computadores. Daí, no mundo globalizado, não só os “espaços da globalização” merecem nossa atenção, mas também seus outros, aqueles mais a margem, já que todos fazem parte de um mesmo sistema, de um mesmo movimento. Ambos, os espaços da densa globalização e aquelas de menor densidade, são indissociáveis, da mesma forma que riqueza e pobreza no sistema do capital. 4. Considerações Finais O tempo presente é o da fluidez que serve principalmente ao capital. Os imperativos geográficos são dados pela densidade da presença do meio técnico-científico-informacional enquanto fixos territoriais essenciais para os fluxos. Sem esses imperativos a globalização era uma falácia. Buscar compreender a ordem espacial do meio técnico-científico-informacional é tarefa dos geógrafos se se quiser realmente realizar estudos válidos para o presente. Isso significa entender a distribuição e o grau de densidade desses imperativos geográficos da globalização presentes nos territórios, sem esquecer de revelar a gama de relações sociais e normativas, as imbricações harmônicos e conflitantes dos interesses globais e locais aí presentes, as intermediações políticas etc. Mais do que nunca, é necessário entender as partes enquanto participes do mesmo movimento da totalidade em seu processo incessante de totalização. Para interpretar a realidade geográfica em suas múltiplas manifestações territoriais, não se pode negligenciar aqueles lugares em que os imperativos técnicos-científicos e informacionais são rarefeitos. Estes, enquanto o outro dos espaços das modernizações são parte de um mesmo processo global do sistema do capital. Na realidade atual do mundo cada vez mais fluido, registra-se um surpreendente desenvolvimento e integração entre as diversas formas de circulação, entretanto, vale salientar que não estão ao alcance de todos, mas sim, para uma pequena fração hegemônica que controla o capital. Devemos acrescentar que nem todos os lugares estão equipados com sistemas de engenharia que permitam essa circulação desenfreada e frenética, uma vez que a distribuição territorial do meio técnico-científico-informacional é desigual. Harvey (2004, p. 84) salientou VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 53 muito bem que “reduções do custo e do tempo de deslocamento no espaço têm sido um foco contínuo de inovações tecnológicas”. Ora, é notório que a construção de sistemas de engenharias destinados à fluidez material e imaterial torna o território mais fluido, diminui a fricção da distância, porém deve entrar em conta a distribuição dessas próteses territoriais, pois é fato que apenas algumas manchas espaciais apresentam densidades consideráveis de tais próteses. Muito embora, reconhece-se que equipamentos para fluidez sejam gradativamente acrescentados a todos os lugares por ser uma das características do próprio período, daí serem imperativos. A não homogeneidade territorial desses sistemas de engenharia, própria da lógica contraditória do capitalismo, trabalha para reforçar a importância da geografia, ou seja, do espaço. A construção desses sistemas de engenharia destinados a facilitar os deslocamentos que dão suporte às atividades produtivas “exerce uma força bem distinta sobre a paisagem geográfica”, sendo que esses “capitais embutidos” no espaço formam “uma estrutura de recursos geograficamente organizada que inibe cada vez mais a trajetória do desenvolvimento capitalista” (HARVEY, 2004, p. 87), isto é, cada vez mais o espaço exerce força coercitiva enquanto capital fixo. O poder coercitivo do espaço se exerce e se impõe imperiosamente com a globalização. Portanto, é nesta nova circunstância histórica que desponta uma nova dialética; uma nova contradição: se o mundo do capital tem demandado cada vez mais fluidez, flexibilidade, velocidade, trabalho desmaterializado, o virtual, este mundo talvez não requeira o espaço, mas é forçado a encará-lo como resistência, campo de força de embate social, assim como ente imprescindível aos seus investimentos em diversos setores. Afinal, para mim, é uma tremenda tautologia argumentar que o capitalismo valoriza certos espaços e passa a comandá-los nos seus processos inclusivos e exclusivos, sem se ater às suas concretudes “sócio-naturais”, sócio-geográficas (SÁ, 2005, p. 46-47). Nessas circunstâncias, conforme Benko (2001, p. 7), o fim da geografia pregado por O'Brien não se confirma. Ao contrário, a geografia ganha mais vida e continua mais do que nunca a exercer importância no atual período da globalização. Nesse sentido, Benko (2001, p. 8) enfatiza que “o encolhimento do mundo revitaliza a geografia. Os efeitos de distância exercem uma influência considerável sobre as estruturações das relações econômicas e sociais”. Assim, não há razão para análises apressadas que pregam, de certa forma, a “morte do espaço”. É inegável o papel que a diferenciação espacial desempenha sobre as atividades de produção, de troca, de distribuição e de consumo, assim como enquanto espaço vivido, lugar da existência do acontecer solidário no mundo globalizado. VASCONCELOS, Santiago Andrade Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 54 A perplexidade atual, a falta de rumo e as conclusões apressadas são fruto das próprias transformações advindas do período da globalização que, enquanto novo, se caracteriza pelas rápidas transformações por que passa o mundo e pela crise permanente instalada nesse momento de transição. Assim, o espaço-tempo do presente, ou seja, o período da globalização e o meio técnicocientífico-informacional carregam consigo um conjunto de modernizações que se impõem imperiosamente aos territórios, mas que não chegam ou se distribuem homogeneamente. Dessa forma, do ponto geográfico, as regiões expressam a heterogeneidade das modernizações que se corporificam no espaço. Cabe aos geógrafos entender essa geografia do presente, do período da globalização e do meio técnico-científico-informacional. 4. Referências ARAÚJO, Tânia Bacelar de. Brasil nos anos noventa: Opções estratégicas e dinâmica regional. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 2, v. 11, p. 9-24, 1999. BENKO, Gerges. A recomposição dos espaços. Interações - Revista Internacional de Desenvolvimento Local. Campo Grande. n. 1, v. 2, p. 7-12, 2001. ______. PECQUEUR, Bernard. Os recursos de territórios e os territórios de recursos. Geosul, Florianópolis, n. 16, v. 32, p. 31-50, 2001. CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto II – domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. COSTA, Edimilson. A Globalização e o capitalismo contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2008. ELIAS, Denise. Milton Santos: a construção da geografia cidadã. 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Levando isso em conta, propomos aqui discutir os limites e as possibilidades da Cartografia Escolar no ensino, notadamente nos anos iniciais do Fundamental I, atentando para o fato de ser para esse nível da Educação Básica que temos atuado na formação de professores para lecionar a Geografia. Portanto, nossas preocupações em práticas de pesquisa, ensino e extensão, nessa disciplina, têm se enveredado para esse estágio do ensino. Dito assim, partiremos, primeiramente, de uma breve análise sobre a importância de se ensinar a Cartografia Escolar nos anos escolares iniciais da Educação Básica, mais especificamente nos do Ensino Fundamental I; posteriormente, discutiremos os limites do seu ensino e as possibilidades de organizá-lo e realizá-lo para se alcançar o objetivo desejado, ou seja, possibilitar ao aluno ser um leitor e elaborador consciente de representações cartográficas do espaço; finalmente, teceremos breves considerações finais acerca da temática proposta nessa reflexão. Palavras-chave: Limites; possibilidades; cartografia escolar; Ensino Fundamental. Abstract In the geography teaching, cartographic representations has a fundamental importance for the construction of reasoning about the geographic space. Therefore, prepare the student to the domain of this own language representation that should be one of the goals of this subject in all Basic Education scholar levels. Considering this, we suggest here to discuss the limits and possibilities of the School Cartography in teaching, especially in the elementary earliest years - equivalent to the Ensino Fundamental 1in Brazilian educational system. Giving heed to the fact that this level of Basic Education we have worked in Geography teacher training. Thus, our concerns in: research practices, teaching and extension in this school subject has been going for this stage of education. Thereby, we set out, first, a brief analysis of the importance of teaching the School Cartography in the early school years of basic education, more specifically in the elementary school; later, we are going to discuss the limits of their teaching and the possibilities to organize it and carry it to achieve the desired goal. That is, enable the student to be a reader and winemaker conscious of cartographic representations of space; finally, we are going to make brief final comments about the proposed theme in this reflection. Keywords: Limits; possibilities; school cartography; Elementary School. 1 Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor adjunto III da Unidade Acadêmica de Educação do Campus I da UFCG. E-mail: pscfarias@bol.com.br FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 57 1. Introdução No ensino da Geografia, as representações cartográficas são de fundamental importância para a construção do raciocínio sobre o espaço geográfico. Assim, preparar o aluno para o domínio da linguagem própria dessa representação deve ser um dos objetivos dessa disciplina em todos os níveis de escolarização da Educação Básica. Levando isso em conta, propomos aqui discutir os limites e as possibilidades da Cartografia Escolar no ensino, notadamente nos anos iniciais do Fundamental I, atentando para o fato de ser para esse nível da Educação Básica que temos atuado na formação de professores para lecionar a Geografia. Portanto, nossas preocupações em práticas de pesquisa, ensino e extensão, nessa disciplina, têm se enveredado para esse estágio do ensino. Dito assim, partiremos, primeiramente, de uma breve análise sobre a importância de se ensinar a Cartografia Escolar nos anos escolares iniciais da Educação Básica, mais especificamente nos do Ensino Fundamental I; posteriormente, discutiremos os limites do seu ensino e as possibilidades de organizá-lo e realizá-lo para se alcançar o objetivo desejado, ou seja, possibilitar ao aluno ser um leitor e elaborador consciente de representações cartográficas do espaço; finalmente, teceremos breves considerações finais acerca da temática proposta nessa reflexão. 2. Por que ensinar cartografia escolar desde as primeiras séries do ensino fundamental O ensino de Geografia deve possibilitar a leitura do mundo pelo educando. Esta deve contemplar o desenvolvimento do raciocínio espacial. Para isso, a construção dos conceitos fundamentais dessa ciência, quais sejam: espaço geográfico, região, território, paisagem, lugar, natureza, sociedade, entre outros, permeia a aprendizagem significativa para a construção da cidadania socioespacial. Diante disso, Perez (2001, p. 108) assim se expressa: O ensino de Geografia nas séries iniciais deve ter como fundamento a alfabetização da criança na leitura do mundo por meio da leitura do espaço: fazer Geografia é dialogar com o mundo, possibilitando à criança ampliar os significados construídos (pelo uso de novas e diferentes linguagens), transformando sua observação em discurso (é dizendo o mundo que significamos o mundo), de modo que possa compreender o conjunto de movimentos que dá sentido ao mundo. FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 58 Como afirmamos em outra análise, ler o mundo é ler o espaço geográfico, as paisagens, as lógicas políticas, econômicas e culturais que dão formas aos territórios em suas diversas escalas, as estruturas e diferenças dos lugares e das regiões. Portanto, para ler o mundo conscientemente é preciso construir esses conceitos que o nomeiam geograficamente, a partir da concretude espacial experienciada pelas nossas crianças. Assim, o mundo e os conceitos que o nomeiam geograficamente são explicados. Por outro lado, constrói-se, à luz da Geografia, a ponte dialética entre a palavra e o mundo, a palavramundo. (FARIAS, 2014, p. 83). Mas, como a Geografia Escolar pode contribuir para a criança ler o mundo, articulandoo com a palavra ou com a linguagem gráfica presente nos mapas nos anos iniciais do Ensino Fundamental I? Para Castellar e Vilhena (2011, p. 23), “Ensinar a ler o mundo é um processo que se inicia quando a criança reconhece os lugares e os símbolos dos mapas, conseguindo identificar as paisagens e os fenômenos cartografados e atribuir sentido ao que está escrito”. Assim sendo, no ensino da Geografia Escolar, já nos anos iniciais, deve ser levado em consideração, juntamente com a observação, descrição, análise, explicação, compreensão e extensão dos fenômenos estudados, uma habilidade essencial e específica para os estudos dessa disciplina: o domínio da linguagem cartográfica. Esta se completa e se articula com as habilidades anteriores, além disso, corrobora para a formação dos conceitos próprios da Geografia. Essa linguagem pode ser definida como a expressão de fatos e fenômenos da organização do espaço através do uso de escala, projeções e convenções cartográficas. Segundo Castellar e Vilhena (op. cit., p. 29-30), a linguagem cartográfica se estrutura em símbolos e signos e é considerada um produto da comunicação visual que dissemina a informação espacial. Os símbolos precisam ser apreendidos como se fossem palavras, por isso a denominação linguagem cartográfica. Dai a relevância da Cartografia Escolar no ensino para que o aluno possa se apropriar dessa linguagem. Para as referidas autoras (op. cit., p. 38), a Cartografia Escolar “[...] é uma opção metodológica, o que implica utilizá-la em todos os conteúdos da geografia, para não apenas identificar e conhecer a localização, mas entender as relações entre países, os conflitos e a ocupação do espaço, a partir da interpretação e leitura de códigos específicos da cartografia”. Isso implica afirmar que o ensino da Cartografia Escolar deve proporcionar aos sujeitos do processo ensino-aprendizagem dominar a elaboração de gráficos, mapas, cartas, plantas, maquetes, croquis, além disso, entender o que essas formas de representação gráfica expressam. No entanto, aqui nos remeteremos, primordialmente, a questão da aprendizagem da linguagem dos mapas. FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 59 De acordo com Oliveira (2007, p. 23), “o mapa é uma representação gráfica da Terra ou de parte dela, em superfície plana”. A elaboração dessa representação envolve ações de muita complexidade que necessitam ser compreendidas pelos sujeitos, especialmente nas escolas, ou seja, envolve a simbolização, redução, projeção de uma superfície tridimensional no plano bidimensional, domínio das noções de orientação e localização etc. Enfim, exige como requisito para a sua elaboração e leitura o domínio de um complexo sistema semiótico, que se denomina de linguagem cartográfica. Assim sendo, é papel da escola, especialmente nas aulas de Geografia, já nos primeiros anos da vida escolar do alunado, possibilitar o domínio dessa linguagem, ou seja, promover, através da Cartografia Escolar, a alfabetização ou o letramento cartográfico desde os primeiro ciclos da vida escolar do educando. Refletindo sobre a importância da aprendizagem dessa linguagem na escola, Lacoste (1997, p. 55) assim se colocou: [...] vai-se à escola para aprender a ler, a escrever e a contar. Por que não para aprender a ler uma carta? Por que não para compreender a diferença entre uma carta em grande escala e uma outra em pequena escala e se perceber que não há nisso apenas uma diferença de relação matemática com a realidade, mas que elas não mostram as mesmas coisas? Por que não aprender a esboçar o plano da aldeia ou do bairro? Por que não representam sobre o plano de sua cidade os diferentes bairros que conhecem, aquele onde vivem, aquele onde os pais das crianças trabalham etc. Por que não aprender a se orientar, a passear na floresta, na montanha, a escolher determinado itinerário para evitar uma rodovia que está congestionada? Portanto, o domínio da linguagem dos mapas é fundamental porque com ele é possível se fazer a leitura de uma escala e saber que, dependendo do tamanho dela, os fenômenos espaciais naturais ou humanos podem aparecer ou não na representação. Assim, o sujeito aprendiz se apropria também da dimensão qualitativa da grandeza escalar, indo além da mera apreensão matemática desse elemento da representação cartográfica. Por outro lado, esse domínio possibilita ao educando se apropriar do seu espaço topológico ou vivido através da sua representação, isso lhe permite fazer escolhas não aleatórias e que facilitam à sua vida, enfim, a organizar as suas práticas espaciais cotidianas, o que explicita a importância de se ensinar a Cartografia Escolar já nos anos iniciais do ensino. Além disso, esse domínio permite ao cidadão a apropriação de espaços que não carrega na memória. Por fim, dominar a linguagem cartográfica já nas primeiras séries do Fundamental I permite o aprofundamento da leitura do mundo do aluno através da observação e da reflexão dos espaços percebido e concebido, leitura essa que deve ser aprofundada nos níveis posteriores da escolaridade. Em outras palavras, para o cidadão se apropriar do espaço precisa saber fazer uma leitura consciente do mesmo. Essa leitura depende também da sua capacidade de ler mapas, FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 60 notadamente quando se trata de espaços concebidos. Portanto, o mapa tem uma função social relevante. Por isso, ensinar a elaborá-lo e lê-lo são funções que a escola não pode se furtar desde os primeiros anos da vida escolar do educando. Isso porque, de acordo com Callai (2005, p. 243), “Para ler o espaço, torna-se necessário um outro processo de alfabetização. Ou talvez seja melhor considerar que, dentro do processo alfabetizador, além das letras, das palavras e dos números, existe uma outra linguagem, que é a linguagem cartográfica”. Ainda segundo a supracitada geógrafa (op. cit., p. 244), Estudiosos do ensino/aprendizagem da cartografia consideram que, para o sujeito ser capaz de ler de forma crítica o espaço, é necessário tanto que ele saiba fazer a leitura do espaço real/concreto como que ele seja capaz de fazer a leitura de sua representação, o mapa. Sendo assim, conforme nos expõe Castellar e Vilhena (op. cit.), ao ensinar Geografia, o professor mediador deve dar prioridade à construção dos conceitos pela ação da criança, tomando como referência as suas observações do lugar de vivência para que se possa formalizar conceitos geográficos por meio da linguagem cartográfica. Refletindo sobre essa assertiva, Callai (op. cit., p. 243) questiona se isso seria possível e se seria no início da escolaridade ou é uma questão que pode permear todo o ensino da Geografia, concluindo que, Independentemente da resposta que encontrarmos, parece-nos claro que a alfabetização cartográfica é base para a aprendizagem da geografia. Se ela não ocorrer no início da escolaridade, deverá acontecer em algum outro momento. Nas aulas de geografia é preciso estar atento a isso. (CALLAI, op. cit., p. 243). Em suma, nas primeiras séries do Fundamental I o ensino da Cartografia Escolar deve propiciar ao aluno a capacidade de representação do espaço vivido. Para Callai (op. cit., p. 244), se isso for desenvolvido assentado na realidade concreta da criança, pode contribuir em muito para que ela seja alfabetizada para saber ler o mundo. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Castellar e Vilhena (op. cit.) afirmam que quando parte do processo de alfabetização se faz utilizando a linguagem cartográfica, o ensino de Geografia se torna mais significativo, pois se criam condições para a leitura das representações gráficas que a criança faz do mundo. Como fica explícito, se ler o mundo é ler o espaço geográfico, “uma das formas possíveis de se ler o espaço é por meio de mapas” (CALLAI, op. cit., p. 244). Mas como alcançar isso a partir de princípios metodológicos claros e que evitem a espontaneidade e o improviso que permeiam, por vezes, essa ação na sala de aula? FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 61 Segundo Oliveira (op. cit., p. 26), em estudo pioneiro elaborado no final da década de 1970, o enfoque piagetiano pode contribuir e muito para resolver o problema didático do mapa, principalmente em sala de aula. É na sala de aula que se pode começar a investigar experimentalmente como as crianças manipulam os mapas e quais os mecanismos por elas utilizados para trabalhar com eles. Para Jean Piaget todo conhecimento é construído pelos seres humanos através de suas interações como o meio. O pensamento é uma “ação” que transforma as coisas do meio, a fim de construí-las em objetos do próprio pensamento. Através da interação entre sujeito e objeto o conhecimento é abstraído do real e transformado em algo humano, interiorizando-se (CASTROGIOVANNI, 1999, p. 35). Desse modo, a ação para que o aluno possa compreender a linguagem cartográfica não está em colorir ou copiar contornos, mas em construir representações a partir do real próximo ou distante. Somente acompanhando e executando cada passo do processo de elaboração da representação espacial, o sujeito aprendiz pode se familiarizar com a linguagem cartográfica (op. cit., p. 35). Assim sendo, é de entendimento comum entre os estudiosos que se debruçam sobre o problema didático do ensino do mapa que terá melhor condições de lê-lo aquele que sabe fazêlo (CALLAI, op. cit., p. 244). Essa constatação se baseia no pressuposto segundo o qual para que o sujeito seja um leitor consciente de mapas (decodificador) precisa antes ser um bom construtor deles (codificador). Isso porque, segundo Almeida (2001), fundamentada na ideia piagetiana de que a criança aprende na interação com o objeto, a construção do pensamento da criança dá-se pela ação. Portanto, para que o aluno possa dar significados aos significantes deve viver o papel de codificador antes de ser decodificador, habilidade que os mapas mudos dos cadernos de mapas por si só não propiciam. Privilegiar a condição de mapeador para formar o leitor consciente de mapas deve levar em conta a prerrogativa de Castellar e Vilhena (op. cit., p. 23) segundo a qual “Ensinar e ler em geografia significa criar condições para que a criança leia o espaço vivido, utilizando a cartografia como linguagem para que haja o letramento cartográfico”. No entanto, segundo Castrogiovanni (1999, p. 35-36), [...] três elementos são necessários para que a criança domine a linguagem dos mapas: a função simbólica, o conhecimento da utilização do símbolo e vivenciar e abstrair o espaço representado. A função simbólica surge na criança por volta dos 2 anos de idade com o aparecimento da linguagem. No caso da Cartografia, é fundamental a compreensão do símbolo como representação gráfica, ou seja, dos símbolos que a criança constrói e que representam uma ideia dos objetos. Tal trabalho deve ser indicado na préFARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 62 escola e/ou séries iniciais, considerando o espaço de ação cotidiana da criança como sendo o espaço a ser representado. Ela perceberá o seu espaço vivido, antes de representá-lo empregando símbolos, codificando-os. Ao reverter o processo (reversibilidade) estará lendo mapas; primeiro do seu espaço de ação, onde mais claramente está inserida, para construir aos poucos, estabelecendo interações, abstrair espaços mais distantes, através das generalizações e transferências de conhecimentos, isto empregando deduções lógicomatemáticas, já na idade do pensamento formal, por volta dos 12 anos de idade. Portanto, existe uma evolução pela qual a criança passa para compreender a noção de espaço e sua representação. Primeiro, ela apreende o espaço vivido, ou seja, o espaço que vivencia explorado por meio do movimento e do deslocamento. Esse é o espaço primeiro a ser cartografado. Em seguida, ela se apropria do espaço percebido através do uso dos sentidos, por exemplo, da observação. Neste, já não precisa experimentar o espaço fisicamente. Por fim, a criança começa a compreender o espaço concebido, isto é, torna-se capaz de pensar sobre uma área retratada em um mapa, mesmo que não a conheça. Assim, concordamos com Oliveira (op. cit., p, 17), ao afirmar que “O processo de mapear não pode se desenvolver isoladamente, mas deve, sim, ser solidário com o desenvolvimento mental do indivíduo”. Isso pressupõe a complexificação dos desafios a serem colocados para que o aluno dos anos iniciais do Ensino Fundamental amplie a sua leitura de mundo por meio dos mapas. Em outras palavras, considerando o desenvolvimento cognitivo da criança, o ensino de Geografia deve partir do mapeamento do espaço vivido, mas sem preterir o mapeamento do espaço percebido (trajetos, percurso casa-escola, por exemplo) e a leitura do espaço concebido através dos mapas. Por outro lado, ao problematizar a metodologia do mapa dos professores em sala de aula, Oliveira (op. cit., p. 17) procurou examinar a teoria de Piaget em relação à construção do espaço pela criança, incluindo a percepção e a representação espaciais. Baseada nos estudos do pensador suíço preconiza que a noção de espaço e sua representação gráfica não derivam simplesmente da percepção. Para a autora, é o sujeito, mediante a inteligência, que atribui significado aos objetos percebidos, enriquecendo e desenvolvendo a atividade perceptiva. Da mesma forma, a autora aceita a explicação piagetiana do desenvolvimento intelectual do espaço em três tipos de relações espaciais: as topológicas, as projetivas e as euclidianas. As relações espaciais topológicas são as relações espaciais que se estabelecem no espaço próximo, usando referenciais elementares como: dentro, fora, ao lado, na frente, atrás, perto, longe etc. Não são consideradas distâncias, medidas e ângulos. Desde o nascimento da criança as relações topológicas elementares são estabelecidas. São importantes quando consideramos a FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 63 percepção espacial no início da atividade escolar (aproximadamente 6-7 anos) (ALMEIDA e PASSINI, 2008). As relações espaciais topológicas caracterizam o espaço perceptivo e podem ser de vizinhança, separação, ordem ou sucessão, envolvimento ou fechamento e continuidade. (CASTROGIOVANNI, 2000; ALMEIDA, 2001; ALMEIDA e PASSINI, 2008). Já as relações espaciais projetivas, segundo Castrogiovanni (2000, p. 18), são as que permitem a coordenação dos objetos entre si num sistema de referência móvel, dado pelo ponto de vista do observador. Tais relações ampliam e enriquecem o sistema de relações topológicas. Essas relações têm seu fundamento na noção de reta, ou seja, os pontos alinhados ou ordenados numa direção, segundo o ponto de vista do observador. O espaço projetivo acrescenta ao topológico a necessidade de situar os objetos ou os elementos de um objeto. São aprendidas pela criança através da atividade perceptiva e da inteligência sensório-motora. Porém, são necessários muitos anos até que sejam organizadas e assegurem a coordenação perfeita da perspectiva e da reversibilidade dos pontos de vista pela criança. As noções fundamentais que envolvem as relações projetivas são: direita e esquerda, frente e trás, em cima e em baixo e ao lado de. As relações euclidianas explicam a manifestação da noção de coordenadas – construção da conservação de distância, comprimento e superfície – que localiza objetos que interagem uns com os outros. Essas relações espaciais euclidianas ocorrem simultâneas às relações espaciais projetivas. (ALMEIDA e PASSINI, 2008). Essas relações são representadas pelas noções de distância, em que, a partir de um sistema fixo de referência, é possível situar os objetos no espaço, a exemplo do sistema de coordenadas geográficas (CASTROGIOVANNI, 2000). Para Oliveira (op. cit., p. 17), as relações espaciais topológicas são as primeiras estabelecidas pela criança, tanto no plano perceptivo2 como no plano representativo3. A partir dessas relações são elaboradas as relações projetivas e euclidianas. Com base na afirmação da autora, podemos dizer que são as representações espaciais topológicas as primeiras a serem construídas pela criança nos anos iniciais do Ensino Fundamental I. Assim, para a autora acima referida (op. cit., p. 17), “uma metodologia do mapa não pode se prender unicamente ao processo perceptivo; também é preciso compreender e explicar o processo representativo”. Em outras palavras, “é necessário que o mapa, que é uma 2 O espaço perceptivo ou da ação - constrói-se em contato direto com o objeto, ou seja, através dos sentidos. O espaço representativo - é construído na ausência do objeto, portanto é reflexivo. É formado por dois momentos: o intuitivo (manifestado por representações estáticas e irreversíveis) e o operatório (que operacionaliza os elementos espaciais, possibilitando a ordenação e a reversibilidade das relações). 3 FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 64 representação espacial, seja abordado de um ângulo que se permita explicar a percepção e a representação da realidade geográfica como parte de um conjunto maior, que é o próprio pensamento do sujeito”. Passini (1994), considerando a evolução da construção da noção do espaço pela criança, incluído a percepção e a representação espaciais, como parte de um conjunto maior, que é o próprio desenvolvimento do sujeito, esboça as aprendizagens de apreensão e representação espaciais da forma que se apresenta no quadro abaixo. Seguindo essa linha de raciocínio, o gráfico mostra como em cada etapa do desenvolvimento cognitivo da criança são elaboradas as operações mentais e, por conseguinte, as relações espaciais e as aprendizagens da representação cartográfica. É evidente que, para se concretizar essa evolução, a criança precisa ser estimulada, na escola, com atividades significativas nas aulas de Geografia. Quadro 1 – Desenvolvimento e evolução da apreensão e representação do espaço pela criança Período de desenvolvimento Estágio intermediário do Operações mentais Relações construídas Elementos cartográficos proporcionalidade relações Escalas operatório para o formal horizontalidade euclidianas (12 anos) verticalidade conservação de forma relações coordenação de pontos de projetivas espaciais Coordenadas geográficas espaciais projeções cartográficas orientação geográfica vista descentralização espacial orientação do corpo Operatório (7-10 anos) inclusão/exclusão relações interioridade/exterioridade topológicas espaciais limites e fronteiras proximidade ordem vizinhança Pré-operatório (2-7 anos) função simbólica relação símbolos/legenda significante/significado Fonte: Passini (1994) Em resumo, quando a criança compreende o espaço e avança no processo de sua apreensão e representação, pode-se dizer que teve início para ela o estudo da Geografia, daí a importância do professor propor atividades que auxiliem no desenvolvimento das noções espaciais. FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 65 No entanto, por vezes, a escola trabalha com a representação do espaço de modo abstrato e como um conhecimento pronto e acabado. Por isso, faz-se necessário que o aluno construa o conceito de mapa, para o que é fundamental o domínio das relações espaciais topológicas, projetivas e euclidianas. Dessa maneira, para que haja o desenvolvimento do domínio dessas relações espaciais pelo educando, é necessário considerar que “os procedimentos usados no ensino podem ou não favorecer o desenvolvimento do pensamento, a construção de conceitos e a aquisição de habilidades.” (ALMEIDA, 2001, p. 67). Para Simieli (2009, p. 98), no processo de ensino/aprendizagem com a Cartografia Escolar nos anos iniciais do Ensino Fundamental I, cujo objetivo deve ser a alfabetização cartográfica do educando, supõe-se o desenvolvimento das seguintes noções: visão oblíqua e visão vertical; imagem tridimensional e imagem bidimensional; alfabeto cartográfico (ponto, linha e área); construção da noção de legenda; proporcionalidade e escala; lateralidade/referências e orientação. Segundo essa autora, o desenvolvimento destas noções contribui para a desmistificação da Cartografia como apresentadora de mapas prontos e acabados. Assim, o objetivo das representações dos mapas e dos desenhos é o de transmitir informações e não ser simples objeto de reprodução. Dai a importância de atividades como desenhar trajetos, percursos, maquetes e plantas da sala de aula, da casa, do pátio da escola, que se constituem em exercícios que podem iniciar o trabalho do aluno com as formas de representação do espaço, possibilitando-lhe se apropriar da linguagem cartográfica. Essas atividades são, de um modo geral, realizadas pelas crianças dos anos iniciais da escolarização, inclusive se encontram propostas em muitos manuais didáticos de Geografia para esse nível de ensino. No entanto, não devem ser realizadas de maneira espontânea ou improvisada, sem o devido rigor teórico-metodológico que implica considerar as etapas da apreensão e representação do espaço pela criança e as do seu desenvolvimento cognitivo. Para Callai (op. cit., p. 244), nunca é demais lembrar que o interessante é que essas atividades sejam apoiadas nos dados concretos e reais e não imaginando/fantasiando, ou seja, tentar representar o que existe de fato. Isso posto, concordamos com Callai (op. cit.), quando afirma que não basta saber ler o espaço, é importante também saber representá-lo, o que exige determinadas regras. No entanto, ainda nos reportando a geógrafa citada, para se fazer um mapa, por mais elementar que ele seja, a criança precisa executar atividades de observação e de representação. Mesmo quando se trata do desenho ou mapa mental do seu espaço vivido ou do espaço percebido, estará ela fazendo FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 66 escolhas e tornando mais rigorosa a sua observação. Nesse conjunto de ação, dará conta de aspectos que não eram percebidos, levantará hipóteses para explicar a manifestação dos fenômenos em sua espacialidade, poderá fazer críticas sobre as características do espaço representado e até propor soluções de melhorias para o arranjo espacial cartografado. Ainda segundo a autora, a capacidade de o aluno fazer a representação de um espaço significa muito mais do que estar aprendendo Geografia porque permite a construção do seu conhecimento para além da realidade representada, sendo isso significativo para a sua própria vida. Por outro lado, ainda segundo Callai (op. cit.), para saber ler o mapa, ou seja, exercer reversivelmente o papel de decodificador, são necessárias algumas habilidades fundamentais, como: reconhecer escalas, saber decodificar legendas, ter senso de orientação. Para desenvolver essas habilidades é necessária a exercitação continuada, o que pressupõe a importância das atividades que desenvolvam a lateralidade, a orientação, o sentido de referência em relação a si próprio e em relação aos outros, o significado de distância e de tamanhos. Os exercícios escolares devem procurar alcançar o domínio dessas habilidades. Por fim, ainda segundo Callai (op. cit.), o fundamental de tudo isso é capacitar a criança a viver no mundo, a poder aprender a ler e viver no mundo, a pensar e reconhecer o espaço vivido. Por isso, fundamentados nas palavras da supracitada autora, defendemos a alfabetização geográfica que contemple a Cartografia Escolar no Ensino Fundamental I, para que, assim, a criança se aproprie e use esse instrumento de comunicação que difunde a informação espacial. No entanto, quais os limites para que o ensino da Cartografia Escolar possibilite uma alfabetização geográfica amparada na construção de conceitos e que tenha na alfabetização cartográfica uma forma de possibilitar a leitura e a intervenção consciente da criança no mundo? 3. Os limites da Cartografia Escolar no Ensino Fundamental I Pelas nossas experiências na formação de professores para o ensino de Geografia nas primeiras séries do Fundamental I podemos aferir que o trabalho com a Cartografia Escolar, nesse estágio de escolarização, ainda se apresenta bastante problemático, portanto, envolto de algumas limitações. Essa constatação também se baseia em nossa vivência com a extensão universitária, no projeto desenvolvido no ano de 2014, denominado “Cartografia escolar e as Territorialidades dos Populares”, desenvolvido junto ao PROEXT, em uma escola da Rede Pública Municipal de Campina Grande-PB, cujo objetivo foi o de propiciar os fundamentos teórico-metodológicos e didáticos da alfabetização cartográfica aos professores que lecionam nas primeiras séries. O referido projeto foi realizado no âmbito do curso de Licenciatura Plena FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 67 em Pedagogia do Campus I da Universidade Federal de Campina Grande. Além disso, esses limites foram percebidos em orientação de trabalho monográfico de especialização no curso de Licenciatura Plena em Geografia, da mesma Universidade, que focalizou também a problemática do ensino do mapa nesse estágio da formação escolar. Seguramente, podemos afirmar que nossas constatações quanto às limitações do ensino da Cartografia Escolar no Fundamental I não diferem do que muitos autores, com larga experiência na temática, constataram em seus trabalhos de ensino, pesquisa e extensão. Por isso, também nos fundamentaremos neles para discutirmos a questão. As limitações presentes no trabalho com a Cartografia Escolar nos primeiros anos de ensino são variadas e elencá-las demandaria uma maior investigação sobre o tema. Contudo, podemos classificá-las como sendo de ordem estrutural e as relacionadas ao desenvolvimento do trabalho pedagógico nas escolas. No que tange às limitações estruturais, conforme constatou Oliveira (op. cit., p. 24) no Estado de São Paulo, há uma grande carência de materiais didáticos nas escolas públicas, especialmente de mapas. Quando as escolas dispõem de coleções de mapas, nem sempre os professores as utilizam em suas aulas. Podemos delinear que este problema, diferentemente do livro didático, relaciona-se à falta de programas, por parte da gestão pública, que permitam a aquisição permanente de coleções de mapas. Assim, para os administradores dos sistemas de ensino público a questão de fornecer mapas atualizados para mediar à aprendizagem cartográfica das crianças não se constitui em uma questão importante. Por outro lado, conforme constatamos na execução do nosso projeto de extensão, a escola onde atuamos até dispunha de um laboratório de Cartografia, no entanto, o mesmo era de uso exclusivo do professor de Geografia do Fundamental II, assim, os professores do Fundamental I não tinham acesso a ele. Mesmo a abundância de mapas disponíveis na rede mundial de computadores, que poderiam ser utilizados, não podem ser acessados porque os laboratórios de informática, quando existem, não são utilizados para essa finalidade, ficam a maioria do tempo fechados e, por vezes, não estão conectados a referida rede. Sobre a escassez do uso de mapas nas escolas, Oliveira (op. cit., p, 24) sugere que: As razões pelas quais não se usam os mapas se prendem a fatores de várias ordens: a) econômica (a escola não conta com recursos financeiros suficientes); b) material (a sala de aula não oferece condições para a exposição dos mapas e os alunos não têm meios para adquirir atlas); c) tempo (o professor não dispõe de tempo para retirar o material a ser usado, pois esse se encontra guardado em lugares de difícil acesso); d) administrativo (o diretor FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 68 não permite o uso porque danifica o mapa, e proíbe colocar pregos nas paredes); e outros semelhantes. As razões devem ser verificadas em cada caso específico, ou seja, em cada sistema de ensino em particular ou em cada escola. O que podemos assegurar é que sem a disponibilidade de mapas o processo de ensino/aprendizagem da Cartografia Escolar terá dificuldades para ocorrer, isso porque não se poderá executar uma das suas práticas mais importantes, qual seja, a do professor, na sala de aula, começar a investigar experimentalmente como as crianças manipulam os mapas e quais os mecanismos por elas utilizados para trabalhar com eles. No que toca às limitações da Cartografia Escolar no processo pedagógico cotidiano das escolas, podem ser explicadas pela falta de preparação teórico-metodológica e didática e pela concepção limitada de alfabetização dos professores, esta, por vezes, restrita ao ensinar a ler, escrever e contar, deixando em segundo plano a alfabetização cartográfica como procedimento para a construção dos conceitos da Geografia. Assim sendo, concordamos com Oliveira (op. cit., p. 16), quando afirma que os professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental I não são preparados para “alfabetizar” as crianças no que se refere ao mapeamento. Para a autora, não há uma metodologia do mapa, por isso esse instrumento de comunicação da informação espacial não tem sido aproveitado como um modo de expressão e comunicação, como poderia ou deveria ser. Para a supracitada geógrafa (op. cit., p. 18), quando o mapa é utilizado, na maioria das vezes, observa-se o emprego direto desse material cartográfico usado pelo geógrafo, ou o extremo oposto, o uso de mapas excessivamente simplificados para a criança. Afirma que a utilização de mapas inadequados para o estágio em que o aluno se encontra nas séries iniciais do ensino cria uma situação em que “os pequenos “lêem” (sic!) os mapas dos grandes, os quais são generalizações da realidade que implicam uma escala, uma projeção e uma simbologia espaciais e que não tem significações para as crianças”. A questão da limitação metodológica ou do problema didático, como afirma Oliveira (op. cit., p. 18), refere-se ao uso do mapa pelo professor e pelo aluno. Essa limitação reside no fato de o professor utilizá-lo como um recurso visual objetivando ilustrar ou “concretizar” a realidade. Assim, o professor, ao fazer isso, recorre ao mapa, que já é uma representação e uma abstração da realidade espacial. Agindo assim em suas aulas de Geografia, o docente desconsidera, na maioria das vezes, o desenvolvimento mental da criança, especialmente em termos de construção e representação da noção de espaço. Ainda segundo as análises de Oliveira (op. cit., p. 19), em educação, o mapa é definido como um recurso visual a que o professor deve recorrer para ensinar a Geografia e que o aluno FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 69 deve manipular para aprender essa matéria. Isso representa um fator limitante do ensino da Cartografia Escolar porque assim utilizado, ainda nos reportando as palavras da referida geógrafa, o mapa deixa de ser considerado como um instrumento de comunicação e como uma linguagem que possibilita ao aluno representar espacialmente os fenômenos Desse modo, “o mapa não é apresentado ao aluno como uma solução alternativa de representação espacial de variáveis que possam ser manipuladas na tomada de decisões e na resolução de problemas”. Em suma, “o mapa é usado de maneira empírica para alcançar objetivos imediatos”. Esse caráter de “uso empírico se refere ao mapa como um recurso visual, quando ele poderia ser usado pelo professor de maneira racional, como forma de comunicação e expressão”. Dessa maneira “é o ensino pelo mapa e não o ensino do mapa” (OLIVEIRA, op. cit., p. 27), o que limita a aprendizagem da Cartografia Escolar nas primeiras séries do Ensino Fundamental I. Ainda nessa digressão, Castellar e Vilhena (op. cit., p. 28) salientam que uma das questões limitantes do Ensino da Cartografia Escolar é que ela ainda continua sendo entendida como uma técnica e um conjunto de conteúdos que devem ser trabalhados pelo professor nas suas aulas de Geografia, a saber: escala, fuso horário, coordenadas geográficas, projeções cartográficas e tipos de mapas. Salientam que esses conteúdos são considerados complementares, mas que não tem relação. Por outro lado, afirmam que a Cartografia tem uma técnica de representar os lugares e que todos os conteúdos são importantes. Contudo, é fundamental compreendê-la como uma linguagem e como uma metodologia na educação geográfica. Por vezes, esse equívoco se materializa perfeitamente nos livros didáticos de Geografia para os anos iniciais do Ensino Fundamental I, ou seja, temas da Cartografia são tratados como assunto em alguns capítulos, como se a representação pudesse ser separada dos conteúdos representados. A guisa do exposto, urge a superação dessas limitações no ensino da Cartografia Escolar nos anos iniciais da escolarização fundamental I. No entanto, quais são as possibilidades para se alcançar isso? Trataremos disso logo a seguir. 4. As Possibilidades Fundamental I da Cartografia Escolar no Ensino No que toca às limitações materiais relacionadas ao um trabalho profícuo com a Cartografia Escolar nos anos iniciais do Ensino Fundamental I as possibilidades de superá-las seriam melhorar a disponibilidades de coleções de mapas para os alunos nas escolas, construir FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 70 ambientes de ensino/aprendizagem que pudessem dispor dos mapas continuadamente e ao alcance dos professores e, principalmente, dos alunos e dotar as escolas de laboratórios de informática com computadores ligados à internet e que, assim, facilitassem o acesso ao amplo material cartográfico nela disponibilizado. Entretanto, nada disso adianta sem que o professor esteja bem formado para dominar os meandros teórico-metodológicos e didáticos do ensino da Cartografia Escolar. Além disso, essa formação deve contemplar uma concepção de alfabetização que transcenda o seu sentido etimológico comum (ler, escrever e contar) e que insira a alfabetização geográfica calcada na alfabetização cartográfica. Assim, para se superar o problema metodológico do mapa, concordando com Oliveira (op. cit., p. 24-25), é necessário que se inclua no currículo de formação dos professores para os anos iniciais do Ensino Fundamental I, que acontece normalmente nas Licenciaturas Plenas em Pedagogia, a disciplina Cartografia Escolar que, segundo a referida autora, “deverá ser mais voltada para a Geografia do que para a Matemática”. Além disso, “paralelamente, deverá o professor receber uma formação profissional com conhecimento sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente”. Assim sendo, essa formação deverá possibilitar a ampla interação e o diálogo entre a Cartografia Escolar, a Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem e as Linguagens para dotar o professor de competência teórico-metodológica e didática e, assim, desenvolver a aprendizagem da linguagem cartográfica como uma comunicação da informação espacial, que avança atrelada ao desenvolvimento mental da criança. Seguindo essa prerrogativa para a formação de professores que lecionam nos anos iniciais do Ensino Fundamental I, Oliveira (op. cit.) defende que essa formação deve ser mais cuidadosa e que deve possibilitar a construção de uma metodologia para o ensino do mapa junto com a Metodologia Geral, criando, dessa forma, as possibilidades para que esse instrumento de representação seja tratado como uma forma de comunicação e expressão da espacialidade dos fenômenos naturais e humanos. Por outro lado, é fundamental que a formação do professor se assente na construção de uma concepção de alfabetização mais ampla que, além do ler, do escrever e do contar, contemple a leitura do mundo por meio da leitura das representações cartográficas. Só assim, pensamos, para finalizar essas reflexões, que a Cartografia Escolar será considerada como algo importante para a vida dos educandos dos anos iniciais do Ensino Fundamental I. FARIAS, Paulo Sérgio Cunha Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 71 5. Considerações Finais Ensinar e aprender a Cartografia Escolar são de extrema relevância no Ensino Fundamental I, como em qualquer outro nível de ensino da Educação Básica, porque se constrói, com ela, a alternativa de alfabetização geográfica através da alfabetização cartográfica, para que, assim, a criança construa os conceitos da Geografia e domine as representações gráficas fundamentais para a sua leitura consciente e cidadã do mundo. Para isso, os professores devem dispor de fundamentos teórico-metodológicos e princípios didático-pedagógicos que lhes assegurem elaborar uma metodologia do mapa. Por isso, é fundamental que a formação lhes preparem para conhecer as etapas de construção e de representação espacial como condicionadas ao desenvolvimento mental ou cognitivo da criança. No entanto, nos sistemas escolares o pleno desenvolvimento do ensino/aprendizagem da Cartografia Escolar se encontra limitado pela escassez material (falta de atlas, por exemplo) e pelas práticas pedagógicas e de alfabetização restritivas que não lhe reservam a devida importância como instrumento de leitura do mundo. Para superar essas limitações, a Cartografia Escolar deveria ser incluída nos currículos de formação de professores, dotando-os da competência teórico-metodológica e didática, além da política, que lhes permitam propor uma metodologia para o ensino do mapa nos primeiros anos da vida escolar do educando, considerando as etapas do desenvolvimento cognitivo da criança como fundamental para se compreender a evolução da apreensão e representação espaciais. 6. Referências ALMEIDA, Rosângela Doin de; PASSINI, Elza Yasuko. O Espaço Geográfico: ensino e representação. São Paulo: Contexto, 1989. ______. Do Desenho ao Mapa: iniciação cartográfica na escola. 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Nesse sentido, o estudo do processo de segregação socioespacial tomou uma direção referenciada pela presença de atividades comerciais e de serviços, bem como seus usos e localizações distintas atendendo em primeiro plano a uma camada social privilegiada. Mostrou-se que a elite dominante na cidade cria seus próprios centros de negócios e serviços, institui o direcionamento das políticas públicas urbanas, conduzindo assim, de maneira a lhe interessar, o processo de produção e de reprodução do espaço urbano. Buscou-se com isto trazer à tona uma discussão sobre a cidade projetada nos diferentes níveis sociais na perspectiva do exercício de poder que a classe dominante mantém e que se expressa, principalmente, na sua capacidade de consumo, de domínio e de articulação que constrói com o espaço urbano e por seu turno com a cidade. Palavras-chave: Área central, segregação, espaço, comércio e serviços. Abstract This work has for objective discussion of the Central Area in the perspective to analyze it as an instrument of theoretical and methodological relevant in the construction of reflections, looks and readings on the city. In this sense, the study of the process of social and spatial segregation took a direction referenced by the presence of commercial activities and services, as well as its uses and different locations given in the foreground to a privileged social layer. It was shown that the ruling elite in the city creates its own business centers and services, establishing the direction of urban public policies, thus leading, so that interest you, the process of production and reproduction of urban space. Sought with this bring up a discussion about the city designed in the different social levels in the exercise of power perspective that the ruling class maintains and which is expressed mainly in its ability to consumption, domain and link building with urban space and in turn with the city. Keywords: Central area. Segregation. Space. Trade and services. 1 Professor Doutor Adjunto vasconfilho@gmail.com do Departamento de Geografia (CERES/CAICÓ/UFRN). VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 74 E-mail: 1. Introdução A importância da Área Central da cidade é um tema já bastante discutido por vários geógrafos e outros pensadores que se preocupam em estudar a sociedade no espaço urbano. Entretanto, isto não significa dizer que não há lacunas ou possibilidades de se construir novas análises, novos pensares e leituras sobre a cidade e seu espaço imediato. Entende-se, portanto, que a sociedade não sendo estanque, não permanecendo na inércia, requer constantes análises. Com efeito, a produção do conhecimento cientifico, na perspectiva das complexas relações existentes entre as atividades de comércio e serviços e o movimento traçado pela sociedade, tornou-se uma necessidade constante. É nessa perspectiva que esse estudo se preocupou em trabalhar o processo de segregação socioespacial tomando como referência a produção contraditória do espaço urbano que se manifesta em diferentes níveis de atividades de comércio e serviços, evidenciando que a camada social dominante cria seus próprios espaços, seletivizando o consumo e o uso da cidade. Assim, a cidade é produzida em fragmentos, uma espécie de estratificação socioespacial, gerando conflitos e lutas pelo espaço. Viu-se assim que o poder de mando e domínio sobre o espaço é uma condição ímpar para o controle da sociedade, estabelecida pelas elites dominantes, em seu movimento de articulação com o Estado e com os promotores imobiliários, que juntos atendem às necessidades dessa parcela privilegiada, deixando de fora uma ampla maioria. É assim que se a cidade é produzida, é pensada, é idealizada. Num primeiro momento a preocupação pauta-se em demonstrar a importância da Área Central para a análise e compreensão da cidade levando em consideração, principalmente, as determinações da sociedade, se propondo ir além da visão do mercado. E no segundo momento, buscou-se estudar e analisar o processo de segregação socioespacial a luz das atividades de comercio e serviços. Nesse sentido, a discussão enfatizou o papel das elites urbanas no comando das direções da expansão urbana e no controle do espaço urbano exercido pelo seu consumo, pelo seu poder, em criar e recriar espaços e assim produzir novas lógicas na cidade. 2. A importância da área central e suas contribuições para a compreensão e análise da cidade O final do século XIX pode ser considerado um referencial importante no que diz respeito às mudanças ocorridas no núcleo central das cidades. Segundo Corrêa (2005), tais mudanças estão associadas a uma série de fatores de ordem econômica, demográfica, espacial, VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 75 social, política e cultural. Ocorreram de forma simultânea sendo consideradas, portanto, o reflexo e o condicionamento do modo de produção capitalista em desenvolvimento. Com o avanço da sociedade capitalista no espaço urbano, gerando adensamentos e concentrações, não só de pessoas, mas também de atividades de comércio e serviços, somandose aos sinais de modernização no sistema de transportes ferroviários, como também de trocas comerciais mais intensas nas zonas portuárias, a partir de uma maior tecnificação dos portos, constataram-se profundas mudanças no uso, valores e significados dos antigos centros. Ele deixa de ser um lócus de moradia para as classes alta e média e ao invés das casas suntuosas, agora se registram atividades comerciais e de serviços, bem como moradias de baixo status social, a exemplo dos cortiços. É interessante observar que as mudanças ocorridas na Área Central da cidade são a um tempo estrutural e conjuntural. Projeta-se na sociedade de forma distinta, respondendo também as diferenças de classes sociais que, por seu turno, cria formas e funções espaciais desiguais. Sendo, portanto, o espaço urbano reflexo e condicionante de tais mudanças. Com efeito, as classes sociais distintas assimilam e são atingidas diferencialmente a cada mudança observada. Buscar entender a cidade a partir dessas reflexões e considerações, ou seja, tomando como referencial a Área Central da cidade e sua centralidade exercida, demonstra na leitura de Spósito (1991), um avanço nas discussões de base teórica-metodológica na geografia, notadamente na década de 1970, influenciada pela tradição francesa. No caso brasileiro, tais estudos ganham mais visibilidade no começo dos anos de 1980. Entende-se, portanto, que a relevância pauta-se na superação de estudos de caráter estruturalista-funcionalista para se desdobrar, a posteriori, em pesquisas que atribuíssem um conhecimento mais profícuo acerca das especificidades e totalidades que permeiam as categorias espaciais. É também por alcançar questões de natureza social, discutindo e procurando entender a sociedade em seu contexto, extrapolando a circunscrição ou os limites impostos pela lógica, que se respalda os estudos relacionados à Área Central da cidade. Desse modo, procura-se compreender a sociedade em seu conjunto quando o capital atua sobre o espaço, aqui especificamente sobre a Área Central, e como seus desdobramentos e/ou resultantes se manifestam sobre o espaço urbano, bem como a cidade como um todo. Logo, se entende esse mesmo espaço como algo articulado, embora existam as descontinuidades que nesse caso, não promove uma ruptura dos acontecimentos e causas sociais. Os estudos pós anos de 1980, procuram enfatizar a sociedade, em seus diferentes grupos sociais. Como agem, e como cada um desses grupos atua sobre o espaço, ou seja, como cada VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 76 um recebe ou criam ordens para cada grupo? Como se submetem a esses comandos? Como se revoltam? Ou como, de uma maneira geral, atuam um sobre outro, sem se esquecer que o espaço é por seu turno, produto e produtor de complexas relações sociais. Em tais estudos, o espaço deixa de ser apenas palco, ele é também participante ativo de um conjunto de relações complexas que envolvem a sociedade, o capital e o Estado. É por essa perspectiva que a Área Central participa do movimento cotidiano da cidade em seu conjunto, se manifestando em cada lugar, através de seus comandos exercidos, ou seja, pela sua centralidade. A constatação do processo de descentralização que muitos vêem e entendem como perda de importância do centro e da Área Central, pode também ser vista como uma reprodução da influência da Área Central na cidade em sua totalidade, embora sob uma nova roupagem. Isto significa dizer que de alguma forma o centro exerce alguma influência sobre o espaço, como também, sobre a sociedade, ainda que de forma mais ou menos tênue. A importância desse setor da cidade permanece, ultrapassa o tempo, reconfigura-se, projeta-se sobre novas formas, funções, simbolismos, valores, estruturas, criando-se, portanto, novas imagens, novos estilos, novas maneiras de viver e conceber o urbano, mas tudo partiu do centro. [...] Não existe cidade, nem realidade urbana, sem um centro[...] O centro só pode, pois, dispersar-se em centralidades parciais e móveis (policentralidade), cujas relações concretas determinam-se conjunturalmente [...]. Não existem lugares de lazer, de festa, de saber de transmissão oral ou escrita, de invenção, de criação, sem centralidade [...] (LEFEBVRE, 1999, p. 93). Mas poderíamos questionar e refletir porque o centro? E porque no centro? É evidente que aqui, não estamos nos remetendo apenas ao sítio original da cidade, pois que o centro pode ou não coincidir com o seu sítio precedente. Mas porque se irradiam a partir do centro, do núcleo central, da Área Central, o conjunto de ações da sociedade que resultam num frenesi cotidiano da reprodução do espaço, e produzir espaço é produzir vida, como relata Santos (1991). Essas e outras tantas questões, efetivamente, deverão ser profundamente estudadas e analisadas se queremos exaustivamente compreender a vida nas cidades, seja na perspectiva do intra-urbano ou do urbano em sua totalidade seria, pois, uma espécie de condição sine qua non, para quem de fato busca entender os novos nexos, as lógicas e não-lógicas da vida urbana, e, portanto, dessa sociedade que se considera urbana. A construção epistemológica dos estudos urbanos na década de 1980 sinaliza assim a trilha de um longo e intrigante caminho a ser percorrido e que toma a direção ou direções VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 77 sinuosas da acepção dos conflitos e contradições sociais existentes e enraizados na sociedade capitalista, logo é preciso compreender o modo de produção em seus diversos estágios, principalmente este do momento atual. Mas é também salutar investigar a sociedade desse momento e a precedente sob um olhar não da produção, mas de suas intrínsecas e complexas relações entre si e com seu espaço. Deve-se superar a ideia de que a sociedade só pode ser pensada a partir do mercado como se ela não tivesse existência própria, é preciso ir além das imposições do mercado para melhor compreendê-la, e assim também entender mais profundamente seu espaço de vivência, que hoje está mais do que nunca adensado na cidade. É sob esta perspectiva que Sposito (1991), procura explicar, portanto, como a estruturação da cidade ocorre levando em consideração as determinações do modo de produção capitalista vigente em cada período. Mas também enfatiza a importância dos traços culturais e sociais de cada grupo social. Estabelece ainda uma concepção dialética no entendimento dos processos sócio-econômico-espaciais que produzem e reproduzem cotidianamente de forma seletiva o espaço da cidade como um todo – o intra-urbano e o inter-urbano. Entretanto, tomando como respaldo as análises elaboradas por Santos (2008), vê-se que a compreensão e análise do espaço urbano e também da cidade, de forma mais ampla, requer um incursionamento nas categorias espaciais, quais sejam: forma, função, estrutura e processo. Este autor ressalta que existe uma sinergia, uma espécie de relação indissociável entre tais categorias que deverão ser compreendidas a um só tempo, de forma específica, considerando a contribuição de cada uma, mas também de forma geral. Ou seja, é preciso compreender as especificidades, particularidades da forma, função, estrutura e processo, mas também como elas estão articuladas entre si, e como estas articulações, moldam, organizam, projetam, criam e (re)criam o espaço e, portanto, a cidade em seu movimento cotidiano. Considerando ainda, suas relações íntimas com a sociedade. Se considerarmos tais elementos isoladamente, alcançaremos, portanto, realidades superficiais. Como a classe dominante tem um maior poder de mando, certamente, esta promove, se articula e determina juntamente com o Estado e com os promotores imobiliários, as mudanças necessárias a satisfazer suas necessidades, em um espaço-tempo quase sincrônico com as exigências desta pequena parcela da população. As demais classes operam também sobre o espaço e criam suas determinações, embora com menos intensidade. Daí a geração de conflitos, pois as mudanças que atendem os interesses de uma determinada classe poderão acarretar em graves consequências para outra camada social. VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 78 É também nesta direção que no próximo item tratar-se-á de estudar as segregações socioespaciais. É preciso compreender como as distintas classes sociais promovem novos direcionamentos de crescimento urbano e, com estes, a instalação de novos equipamentos de serviços e comércio que atendam com maior fluidez suas necessidades. 3. Um debate sobre o processo de segregação socioespacial e suas articulações com as atividades de comércio e serviços O estudo da cidade capitalista leva-nos a perceber que ela é extremamente desigual, ou seja, é constituída de segregações e estratificações que se materializam em sua paisagem urbana. Espaços diferenciados abrigam classes sociais distintas. As classes dominantes, por sua vez, possuem maior poder de mobilidade no espaço urbano, o que leva a transformar de maneira mais intensa esse espaço, enquanto os grupos sociais excluídos vão se organizando de acordo com as articulações que possuem representadas, principalmente, nas organizações civis de direitos do cidadão. Desse modo, as associações de moradores, e outras modalidades de organizações lutam por uma melhoria da qualidade de vida na cidade. Buscam, assim, um modelo de cidade onde a justiça social se realize. A discussão que trata do processo de segregação residencial, ou seja, das diferenças do padrão de habitação, que por sua vez, está relacionado à divisão de classes e de trabalho, conceitualmente surge com a “Escola de Chicago”, primeiramente com Robert Park e a seguir com Mackenzie, que define como uma concentração de tipos de população dentro de um dado território (CORRÊA, 1999, p. 59). Equivalente à segregação residencial existem as áreas sociais que se distribuem em três níveis, quais sejam: o socioeconômico, o da urbanização, e o étnico. Juntas, estas características originam uma tendência á homogeneização dos bairros, caminhando, desse modo, para uma segregação. Diante do exposto, percebemos que a segregação residencial da cidade capitalista está relacionada às diferenças de classes e à localização destas no espaço urbano. É neste espaço que se verifica como as classes utilizam e se apropriam de espaços localmente diferenciados. Quem pode pagar mais escolhe onde e como morar. Tudo isto está, primordialmente, fundamentado no direito de propriedade. Nesse sentido, os grupos que detêm o poder na cidade podem escolher o padrão da residência que deseja ocupar, bem como a área onde fixará sua moradia (RODRIGUES, 1994, p. 12). Compreende-se que as transformações ocorridas no espaço urbano estão historicamente ligadas as estruturas de poder instituídas pelas classes sociais dominantes. Nesse sentido, essas classes ao instituir a terra como mercadoria descobre mais uma maneira de perpetuar seu poder VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 79 de mando, ampliando e concentrando mais capital, aprofundando a subserviência das classes menos favorecidas. No caso do Brasil, a terra, a partir de 1850, tornou-se mercadoria. Ao longo do tempo ela vem ganhando valores elevados, e quanto mais escassa mais cara. No momento atual, falase em escassez de imóveis urbanos. Este é outro dado extremamente importante para o comércio de imóveis na cidade. Aliás, de uma maneira muito geral, vem se observando que morar na cidade é cada vez mais caro. É desse modo que os grupos sociais mais favorecidos vão produzindo e reproduzindo o processo de segregação socioespacial na cidade. Estes grupos, através do poder que lhes é conferido e pelo status socioeconômico que ocupa na escala social, detêm o controle do espaço, através da apropriação ou da propriedade privada da terra urbana. Outra questão, que aprofunda o processo de segregação espacial é que, nem sempre quem compra um imóvel em uma área valorizada faz dele sua morada. Pelo contrário, percebe-se que tanto a construção como o comércio de imóveis se realizam muito mais pelo fato de ser o setor imobiliário um investimento de lucros altos, logo, um retorno rápido de investimento, segurança, com baixas taxas de riscos, quando comparados, por exemplo, a outros setores da economia. Assim, as classes privilegiadas conduzem o processo de expansão urbana da cidade. O Estado por seu turno é seu grande aliado. “A segregação assim redimensionada aparece com um duplo papel, o de ser um meio de manutenção dos privilégios por parte da classe dominante e o de um meio de controle social por esta mesma classe sobre os outros grupos sociais (...)” (CORRÊA, 1997, p. 64). Por fim, tem-se que compreender a dinâmica socioespacial da segregação. Há uma rotatividade acentuada de mudanças locacionais de certos grupos sociais. Os grupos de status social elevado criam condições para o surgimento de novas áreas valorizadas na cidade. Há também os casos de substituição de um grupo social por outro. Há momentos em que uma determinada área abriga um grupo de baixo status social e num outro momento, essa mesma área passa a ser habitada por um grupo social de poder aquisitivo mais elevado, processo denominado gentrificação. Ocorre também o movimento contrário, o que evidencia e reafirma a dinâmica socioespacial da segregação. Pode-se, talvez, afirmar que todo espaço urbano guarda em seu interior os processos de segregação e fragmentação. Estes se apresentam de forma diferenciada, uma vez que cada sociedade à sua maneira e de acordo com o sistema produtivo se reproduz diferencialmente, ou seja, cada espaço urbano possui singularidades que devem ser consideradas. Ao que parece, os processos de segregação e fragmentação, nos remetem a questões oportunamente criadas nas VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 80 relações socioespaciais e que também passam a caracterizar na origem o que se entende por espaço urbano. Nesse contexto, estamos nos referindo aos processos de desigualdade e exclusão. Estes compõem igualmente o conteúdo do espaço urbano e são, todavia, reproduzidos constantemente. Desse modo, a palavra segregação é entendida como ato ou ação de por à margem, marginalizar ou ainda afastar-se de algo. Já o processo de fragmentação estaria relacionado a dividir, fragmentar. Como se pode observar, os dois conceitos são muito parecidos, guardando estreitas relações. O processo de segregação surge segundo Corrêa (1997), como parte constituinte dos processos espaciais. Ao falar de segregação, o autor remete especificamente à questão residencial, que por seu turno, estaria correlacionada com a reprodução da força de trabalho. A segregação seria um processo em que ocorre uma organização espacial baseada no surgimento de áreas homogeneizadas em seu conteúdo interno e áreas díspares em relação ao conjunto da cidade (VASCONCELOS FILHO, 2003). As diferenças sociais entre estas áreas uniformes devem-se essencialmente ao diferencial da capacidade que cada grupo social tem em pagar pela residência que ocupa. Em outros termos, as áreas uniformes refletem, de um lado, a distribuição da renda da população, e de outro, o tipo de residência e a localização da mesma em termos de acessibilidade e amenidades. Em realidade, a segregação parece constituir-se em uma projeção espacial do processo de estruturação de classes, sua reprodução, e a produção de residências na sociedade capitalista (CORRÊA, 1997, p. 131-132). Desta forma, é através da segregação socioespacial que a divisão de classes ganha materialidade no espaço. É preciso, contudo, reconhecer que a formação ou estruturação de classes em países como o Brasil, perpassa pela altíssima concentração de rendas, mantida sob a guarda de uma elite, que nos primeiros momentos da formação territorial brasileira era aristocrata e campesina, passando posteriormente a ser uma elite fundamentalmente industrial e, portanto, urbana. O quadro da segregação socioespacial brasileira é ainda aprofundado, notadamente, pelo nível de qualificação de nossos profissionais que tem como característica uma mão-de-obra desqualificada. Tais diferenças entre os grupos sociais são também projetadas no espaço urbano, no momento em que os grupos sociais dominantes têm direito de escolha de como e onde morar e o residual fica para àqueles que não têm acesso à terra urbana e nem à habitação, dois produtos extremamente caros no âmbito do modo capitalista. As áreas segregadas podem ser também consideradas como aquelas que reúnem grupos sociais que possuem certa homogeneidade no tocante ao consumo, às expectativas de vida, às concepções e idealizações de mundo, a valores construídos e que são compartilhados entre si. VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 81 Há, portanto, uma reprodução contínua das relações sociais que distingue os grupos sociais que residem em áreas que possuem localização privilegiada na cidade, acesso fácil aos serviços, equipamentos de uso coletivo e infra-estrutura urbanos, amenidades e outros componentes que dão mais conforto e facilitam a vida urbana. Eles se diferenciam também por adquirir e manter o hábito de frequentar as melhores escolas, os melhores serviços privados de saúde, as grandes redes de hipermercados, as lojas de produtos de luxo e outros serviços especialmente destinados a um público mais seleto, do ponto de vista da condição socioeconômica. Talvez o processo mais notável de produção do espaço sob o comando das camadas de mais alta renda seja a inter-relação que elas e seus bairros residenciais mantêm com os centros principais. Quanto mais essas camadas se concentram em determinada região da cidade, mais elas procuram trazer para essa mesma região importantes equipamentos urbanos. Quanto mais conseguem, mais vantajosa essa região se torna para aquelas camadas e mais difícil se torna, para elas abandonar essa direção de crescimento (VILLAÇA, 2001, p. 321). Este comportamento, apresentado por um grupo social dominante, indica que cada vez mais se busca selecionar e eleger alguns espaços da cidade construídos para satisfazer os desejos deste grupo e que, por seu turno, atende em última instância aos desígnios do capital num insistente movimento de acumulação. Tudo o que é construído no espaço urbano está relativamente afeto a uma demanda de um determinado setor da sociedade. Esse movimento, traçado pelas classes privilegiadas, constrói uma espacialidade segregada que é reproduzida no cotidiano da cidade. Essa maneira de viver faz com que a cidade e seu espaço urbano reproduzam o comportamento de um determinado grupo. O capital, sabendo disso, transforma a cidade em um grande negócio. Ao discutir a segregação socioespacial Villaça (2001) respalda-se nas áreas da cidade que abrigam atividades de comércio e serviços, bem como da infra-estrutura projetada para atender a demanda das classes dominantes, observando a estreita relação que esta classe mantém com o centro principal. Demonstra assim que a partir do domínio que mantém sobre o espaço, a burguesia cria as condições estruturantes para que a implantação de vias de acesso possam dar maior fluidez no que diz respeito à circulação de mercadoria e, pessoas, como também uma celeridade na oferta de serviços, este, principalmente, permeado pela ótica das modernas tecnologias. Nesses casos elas procuram trazer para perto de si seu comércio, seus serviços e o centro que reúne os equipamentos de comando da sociedade – e isso não por razões simbólicas ou de status, mas pela razão muito prática de que elas o frequentam intensamente e nele exercem muitos de seus empregos. VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 82 Revolucionam o centro principal, produzem “centros expandidos”, o “seu” centro e o centro “dos outros” (VILLAÇA, 2001, p. 329). Sendo assim, o domínio sobre o espaço exercido pela burguesia vai proporcionar a esta classe um poder de mando que extrapola os limites de suas áreas homogeneizadas socialmente, alcançando a cidade como um todo. É por este viés também que as políticas públicas dirigidas à cidade submetem-se, em primeira instância, a apenas uma parcela da cidade, privilegiando os interesses dessa classe em detrimento de uma ampla maioria. A burguesia na verdade cria dentro da cidade uma outra cidade que acredita ser apenas sua, embora a outra cidade (real), também esteja submetida aos comandos da burguesia. Um importante referencial para o estudo dessa espacialidade segregada na cidade seria tomá-la também a partir do surgimento dos subcentros. Sabe-se que estas áreas estão relacionadas à saturação dos centros antigos e a outros problemas de deslocamentos, observados com a expansão da cidade. De acordo com Villaça (2001), os subcentros podem ser considerados aglomerações diversas e equilibradas de comércio e serviços que se encontram localizados fora do centro principal de negócios. Tais atividades passam a se localizar em bairros que há algum tempo possuíam e/ou eram marcados por uma função residencial. Estes espaços se caracterizam por abrigar bancos, escolas, clínicas, cinemas, consultórios, restaurantes e bares que no passado só eram registrados no centro principal. Tais serviços se transferem para os bairros formando um subcentro para atender a população local, que já não necessita, com tanta freqüência, de se deslocar até o centro da cidade. Este por sua vez, serve de complemento as atividades desenvolvidas no centro. Representa em tamanho reduzido uma parte do centro e concorre com este, mas não se iguala. O subcentro se diferencia por atender apenas uma parcela da cidade já o centro cumpre o papel de atender a demanda de toda a cidade e também uma área de influência de sua região imediata. Há também subcentros que se especializam, por exemplo: material elétrico, hidráulico, óticas, produtos eletrônicos, dentre outros. Percebe-se assim, que a participação das atividades de comércio e serviços no processo de reprodução do espaço urbano tem se manifestado na paisagem da cidade de diversas formas com conteúdos sócio-espaciais distintos, que se expressa nas contradições sociais, ou seja, numa espacialidade segregada. Os autores são acordes em afirmar que esse processo de ampliação, portanto, de reprodução do espaço urbano tem sido motivado, dinamizado por empresas que lidam com as várias atividades que compõem o quadro econômico urbano, notadamente, comércio e serviço. Os subcentros se inserem nesse aspecto a partir do momento VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 83 que seu surgimento evidencia, dentre outros aspectos, a ampliação do espaço urbano e a importância que os setores econômicos apresentam para a análise e compreensão da reestruturação do intra-urbano bem como de sua reprodução desigual. Nesse sentido, (SPOSITO, 1991, p. 4), questiona, a partir do trabalho de Cordeiro: Podemos designar como expansão do centro a forma como as atividades consideradas tipicamente centrais(comércio e serviços), vem se relocalizando no interior das cidades, tanto a partir da dimensão que as atividades têm atingido no processo de metropolização, como a partir da dimensão/nível de capitalização e expansão da área de atuação das grandes empresas dos setores comercial e de serviços? (SPOSITO, 1991, p. 4). Em outro momento pode-se constatar os vários indícios de que assim como os subcentros o desdobramento do núcleo central de negócios é também um indicador desse processo de expansão do urbano, gerando uma poli(multi)centralidade. Logo, evidencia uma espacialidade socioeconômica segregada onde surgem. Com efeito, tem-se, por um lado, os subcentros, que em sua maioria, abrigam atividades que são utilizadas pelas classes populares, enquanto o desdobramento do núcleo central responde muito mais aos interesses da burguesia dominante. É também por essa perspectiva que se atesta os distintos usos determinados pelas classes sociais, que também vão ocupar distintamente o intra-urbano e o espaço como todo. “[..]À medida que há distintas atividades e distintos níveis sociais ligados a estas atividades, esta divisão se espacializa e, ao espacializar-se, tem a um só tempo, elementos de diferenciação, tanto a nível social como espacial”. (SPOSITO, 1991, p7) Esta autora reafirma ainda, por diversas vezes, que o crescimento populacional das cidades provocava uma expansão das áreas centrais, sendo assim, nas cidades grandes e metrópoles o processo de expansão do centro foi acompanhado do surgimento dos subcentros, em função de um crescimento territorial da cidade que não foi acompanhado de um sistema de vias de acesso e de transporte com a realidade que se avultava. A título de exemplo Bezerra e Araujo (2007), ao trabalhar o processo de reestruturação do espaço intra-urbano culminando numa poli e multi centralidade na cidade de João Pessoa, comentam que a feição multicêntrica está associada “ao aumento do número de áreas centrais, em função do aparecimento e multiplicação de subcentros (já que as cidades estão mais extensas e descontínuas territorialmente), de eixos comerciais e de serviços especializados ou não e de shopping centers” (SPOSITO, 2004, p.375 apud BEZERRA E ARAUJO) Do mesmo modo, Alves e Ribeiro Filho (2009), enfatizam a reestruturação do espaço urbano de Uberlândia, a partir dos processos de centralização e descentralização. VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 84 No caso de João Pessoa, um dos exemplos mais emblemáticos de subcentros seria o conjunto residencial Mangabeira, que abriga uma sólida estrutura de comércio e serviços que atende não apenas seus moradores, mas uma quantidade significativa de conjuntos residenciais que surgiram em suas adjacências, a exemplo de: Valentina Figueiredo, José Américo, Cidade Verde, Água Fria, Cidade do Sol, dentre outros. Ou seja, atende a demanda de uma população de mais 150 mil habitantes. Finalmente se faz necessário considerar a importância dessas novas centralidades. Assim, é preciso avaliar esta descentralização, porque não revela dispersão ou distribuição das atividades tradicionalmente centrais pela cidade, mas, ao contrário, revela novas formas de centralidade. Ao negar a concepção de centro único e monopolizador, recria a centralidade, multiplicando-se através da produção de novas estruturas que permitem novas formas de monopólios, porque (re)especializam e (re)espacializam as atividades comerciais e de serviços, reproduzindo em outras áreas da cidade as condições e qualidades centrais. (SPOSITO, 1991, p. 13) Como foi visto o processo de segregação socioespacial se manifesta de diversas formas, desde o padrão residencial até as estruturas de comércio e serviços, sem esquecer do direcionamento da implantação das políticas públicas que obedece a determinação da classe dominante, aquela que de fato exerce o poder sobre a cidade. A segregação vai desse modo, ganhando dimensões que alcançam a vida urbana como um todo. Isso ocorre não apenas nas residências de alto padrão e nos prédios luxuosos, mas está presente também nas ações e nos objetos construídos que aqui já foram relatados. Nos corredores da cidade, em cada lugar, a segregação é cotidianamente reproduzida. O entendimento da construção da sociedade brasileira desde os primeiros momentos de sua institucionalização se faz necessário, para compreendermos os processos de degradação socioespaciais aqui elencados. No Brasil o processo de segregação socioespacial manifesta-se nas discrepâncias gigantescas existentes entre as mais altas classes sociais desse país e aqueles que vivem em níveis de miséria, principalmente na cidade. Essa forma de dominação de uma classe sobre a outra é uma maneira de manter o processo de subordinação entre as classes sociais, resultando em um aprofundamento do desequilíbrio social. O problema da exclusão na sociedade brasileira trabalhada por José de Souza Martins (1997) toma um caminho diferente, pois para o autor, a princípio, não existiria exclusão propriamente dita, mas sim a inclusão marginal de um determinado grupo nas relações sociais e no processo produtivo, gerando contradições e diferenciações entre grupos. Não existe exclusão: existe contradição, existem vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes; existe o conflito pelo qual a vítima dos processos excludentes proclama seu inconformismo, seu mal-estar, sua VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 85 revolta, sua esperança, sua força reivindicativa e sua reivindicação corrosiva (MARTINS, 1997, p. 14). De acordo com a análise do autor, a exclusão seria um termo vago que ofusca a realidade. Ao falar de exclusão, perde-se o horizonte e as origens dos problemas gerados pelas relações sociais desiguais. É um rótulo que mascara a realidade e desvirtua as especificidades de cada problema social. Por isso o autor aconselha que seria melhor discutir o problema a partir da apreensão da “ideia sociológica dos processos de exclusão” (Ibid., p. 16). Ao afirmar que a exclusão é um processo que deixa de fora os grupos sociais de menor poder aquisitivo, comete-se um equívoco. Para Martins (1997, p. 17), estes grupos se inserem no movimento de produção sob uma condição submissa de “reprodutores mecânicos do sistema econômico, reprodutores que não reivindiquem nem protestem em face de privações, injustiças, carências”. Este processo pode ser considerado também apenas um recorte da percepção do que nos é apropriado e/ou negado. Desse modo, tomando por referência a visão de José de Souza Martins, a exclusão se realizaria concretamente na privação de um conteúdo voltado para o desenvolvimento social, como emprego, liberdade, direitos do homem, bem-estar, participação no mercado de consumo, as esperanças. O autor completa seu modo de perceber a exclusão dizendo, em trocadilho, que a “privação hoje é mais do que econômica. Há nela, portanto, certa dimensão moral” (Ibid., p. 18). Assim, é forjada também uma nova concepção de homem moderno que segue o caminho determinado pelas elites que comandam esse país. Imitar torna-se assim uma obrigação para aquelas classes que querem ingressar no fantasioso mundo proposto pelos que detém o poder. Assim, é através do consumo dirigido que esse fato se torna realidade na cidade. Faz parte do cotidiano do espaço urbano e da vida urbana no momento atual a tendência de copiar modelos que é ensejado pelo consumo dirigido cujas normas são ditadas e prontamente obedecidas. A imitação busca mascarar a desigualdade, quando cria no outro uma falsa expectativa de chegar a ser alguém que ocupa um lugar privilegiado na escala social. A desigualdade continua quando se percebe que as oportunidades e possibilidades são verdadeiramente distintas em relação às classes. O que representa a contínua reprodução no espaço urbano, da desigualdade, do processo de exclusão social, - ou inclusão precária -, da segregação e da fragmentação, definindo por seu turno o caráter do espaço urbano, essencialmente das cidades da periferia do capitalismo. VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 86 Esses processos que se manifestam nos grupos sociais respondem, em última instância, aos movimentos desejantes do capital. Contraditoriamente os grupos acabam referendando e consolidando as estratégias capitalistas de manutenção de uma ordem estabelecida. Isso converge para o esfacelamento das relações de um determinado grupo com o seu entorno, o lugar. Perde-se com isso a identidade, as raízes, o reconhecimento. Este não é mais o lugar onde se reproduzem os desejos interiores do grupo. As modificações ocorrem segundo uma ordem externa pré-estabelecida, e indiferente ao grupo. Na verdade Martins (1997) nos ensina que o sistema capitalista não poupa ninguém. O capitalismo na verdade desenraiza e brutaliza a todos, exclui a todos. Na sociedade capitalista essa é uma regra estruturante: todos nós, em vários momentos de nossa vida, e de diferentes modos, dolorosos ou não, fomos desenraizados e excluídos. É próprio dessa lógica de exclusão a inclusão. A sociedade capitalista desenraiza, exclui para incluir, incluir de outro modo, segundo suas próprias regras, segundo sua própria lógica. O problema está nessa inclusão (MARTINS, op. cit., p. 32). Percebe-se, dessa forma que, esse tipo de inclusão possui um efeito desintegrador, que não é apenas unilateralmente econômico, mas principalmente por ter o poder de esfumar a dignidade e a moral humanas. Este processo tem se firmado na vida de grande parte da sociedade brasileira e tem contribuído para acentuar e perpetuar a dominação de uma determinada classe social em detrimento de outra. Nesse contexto, é interessante observar ainda, como o sistema capitalista interfere em todas as instâncias da vida social, se apropriando e invadindo os mais variados sentimentos, atos e desejos da sociedade, transformando as relações entre as pessoas e estas com os lugares. 4. Considerações Finais É oportuno salientar o nível de complexidade no estudo da cidade a partir das atividades de comércio e serviços, partindo da importância, da representatividade, de sua área central em relação ao conjunto da cidade. Como é perfeitamente possível discutir os vários problemas e questionamentos que compõem o quadro urbano, a vida urbana, tomando como referência as intensas articulações existentes entre o processo de segregação socioespacial que se cria e recria constantemente, com os setores de comércio e serviços. Percebe-se assim, como foi salutar as transformações de ordem teórica-metodológica que se preocupou e se propôs a um avanço, a um aprofundamento das discussões e análises que permeiam a cidade, tendo como base de sustentação a sociedade e seu espaço. E como estas VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 87 categorias estão e deverão permanecer articuladas para quem se propõe estudar o urbano e com ele a cidade. Assistiu-se, portanto, que os estudos pós anos de 1980, culminando no momento atual deram um salto no sentido qualitativo de suas análises, tornando-as muito mais profícua, no instante que se propõe ultrapassar os limites impostos pelo mercado, embora não se desconsidere aqui sua relevância, pois isto seria uma negligência. Mas antes de tudo o avanço de tais estudos pauta-se no próprio movimento que a sociedade traça em seu cotidiano, produzindo espaços e lugares. Construindo e reconstruindo suas lógicas, suas subordinações. O consumo seletivo das camadas de alta renda, a partir deste poder que é préestabelecido é digno de nota, pois que promovem profundas mudanças na expansão desse espaço, cada vez mais urbano, mas também cada vez mais problemático. Viu-se assim, a extrema relevância da área central da cidade, pois que é a partir dela que se dá os desdobramentos da cidade. Tais desdobramentos são sempre coordenados por uma teia de relações que envolvem o poder das elites dominantes, o Estado, o Capital e os promotores imobiliários. Assim, a proposta de buscar evidenciar o processo de segregação socioespacial, tomando como sustentação teórica-metodológica a importância da área central e suas continuidades e descontinuidades se mostrou profundamente relevante na análise e reconhecimento dos diversos problemas, questionamentos e reflexões que se fez sobre a cidade e a sociedade considerada urbana. 5. Referências ALVES, Lidiane Aparecida; RIBEIRO FILHO, Vitor. A (re)estruturação do espaço urbano de Uberlândia – MG: uma análise a partir dos processos de centralização e descentralização. Observatorium: Revista Eletrônica de Geografia, v.1, n.1, p. 170-184, jan. 2009. BEZERRA. Josineide da Silva; ARAÚJO, Luciana Medeiros de. Reestruturação e Centralidade: Breves notas sobre a cidade de João Pessoa. Revista Urbana. CIEC/UNICAMP Ano 2, nº 2, 2007. CORRÊA, Roberto Lobato. Área Central – mudanças e permanências: uma retrospectiva. In: Anais – IX Simpósio Nacional de Geografia Urbana. Cidades: Territorialidade, sustentabilidade e demandas sociais. Manaus-AM, 18 a 21 de outubro de 2005. (Disponível em CD-ROM) ______. O espaço urbano. 3ª edição. São Paulo: Ática, 1999. ______. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 88 LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. (Trad. Sérgio Martins). Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997. RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras. 5ª edição. São Paulo: Contexto, 1994. SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: Edusp, 2008. SPOSITO, Maria E. Beltrão. O centro e as formas de expressão da centralidade urbana. In: Revista de Geografia, São Paulo, vl10, p. 1-18. 1991. VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. 2ª edição São Paulo: Studio Nobel/FAPESP/Lincoln Institute, 2001. VASCONCELOS FILHO, J. M. de. A produção e reprodução do espaço urbano no litoral norte de João Pessoa: a atuação dos agentes imobiliários. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Federal de Pernambuco, Recife – PE, 2003. VASCONCELOS FILHO, João Manoel de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 89 EXAMINANDO QUESTÕES DO LIVRO DIDÁTICO E DA PRÁTICA DOCENTE NA GEOGRAFIA ESCOLAR DO ENSINO MÉDIO: LEVANTAMENTO EMPÍRICO REALIZADO EM JUAZEIRO DO NORTE/CE EXAMINING TEXTBOOK ISSUES AND TEACHING PRACTICES IN GEOGRAPHY SCHOOL OF SECONDARY EDUCATION: EMPIRICAL SURVEY CONDUCTED IN JUAZEIRO / CE Maria Soares Cunha1 Universidade Regional do Cariri (URCA) Tiago Eurico Sousa Dias Lisboa2 Universidade Regional do Cariri (URCA) Rafael França da Silva3 Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Resumo O livro didático é um material curricular ligado intimamente à seleção e veiculação de informações, como também um instrumento de (re) produção de saberes. É o principal - ou até o único – instrumento utilizado em sala para atividades de leitura, organização de aula, de exercícios, avaliações, entre outros componentes da rotina escolar. Por outro lado, para as editoras, que rivalizam o controle e seleção do seu “produto”, o livro é uma mercadoria. Procurando colaborar no campo de pesquisa que elege o livro didático como alvo de problematização, o presente trabalho pretende apresentar contribuições de pesquisadores sobre esse recurso didático e explorar aspectos de obras escolares adotadas em escolas da rede pública de Ensino Médio da cidade de Juazeiro do Norte/CE. Foram entrevistados professores visando realizar diagnóstico da Geografia escolar do Ensino Médio e verificar a percepção dos docentes sobre os temas urbanos conforme aparecem em livros adotados. Na pesquisa, problematiza-se: o livro didático constitui um aliado e elemento norteador de temas e recursos metodológicos para o estudo das cidades ou colabora para afastar das aulas a discussão da cidadania dos alunos no próprio lugar de vivência? Que fontes de informação são conhecidas e exploradas para trabalhar e estudar cidades e o urbano nas aulas de Geografia? Foi trabalhada a coleção “Território e Sociedade” para o 1º, 2º, e 3º anos do Ensino Médio, da Editora Saraiva. Um parâmetro importante foi a ficha de avaliação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Verificamos a necessidade de maior interligação dos assuntos nas obras estudadas. Os temas aparecem de forma fragmentada, em diferentes unidades e capítulos. A abordagem do urbano - e de outros conteúdos - deve associar-se a atividades de pesquisa e gerar discussão sobre o contexto social vivido por docentes e estudantes. A aproximação dos docentes ao mundo acadêmico deverá ser mais instigada, de maneira a contribuir com a avaliação e uso crítico do livro didático. Palavras-chave: Livro didático. Ensino Médio. Geografia Urbana. Juazeiro do Norte/CE. Abstract The textbook is a curricular material closely linked to the selection and placement of information, as well as, an instrument of (re) production of knowledge. It is the main - or even the only - instrument used in the classroom for reading activities, class organization, exercises, assessments, and other components of the school routine. On the other hand, for publishers, that rivalry the control and selection of their "product", the book is a commodity. Looking to collaborate in the search field that selects the textbook as target questioning, this paper aims to present research contributions on this teaching resource and explore aspects of literary works of High School adopted in the public network of the city of Juazeiro North/CE. Teachers were interviewed to perform diagnosis of School Geography and verify the perception of teachers on urban issues in the adopted book. In the research, it is questioned: the textbook is an ally and guiding element of themes and methodological resources for the study of cities or contributes to away school discussion of citizenship of students in their own place of living? What sources of information are known and exploited to work and study cities and urban in Geography class? It was crafted the collection "Territory and Society" for the 1st, 2nd, and 3rd years of High school, Saraiva publisher. An important parameter was the assessment form the National Textbook Program (PNLD). We found the need for greater integration of the subjects of the literary works studied. The issues appear in a fragmented way, in different units and chapters. The approach to urban - and other content - should be associated with research activities and generate discussion about the social context lived by teachers and students. The approach of teachers to the academic world should be instigated in order to contribute to the evaluation and critical use of the textbook. Keywords: textbook. High School. Urban Geography. Juazeiro do Norte/CE. 1 Professora Doutora do Departamento de Geociências da Universidade Regional do Cariri - URCA. E-mail: maria.soares@urca.br 2 Graduando em Geografia na Universidade Regional do Cariri (URCA). E-mail: tiagolisbo@gmail.com 3 Mestrando em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: francarfs@hotmail.com CUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 90 1. Introdução O livro didático é um material curricular, ligado intimamente à seleção eveiculação deinformações, como também um instrumento de (re)produção de saberes. Vincula discursos, imagens, propaga mensagens e ideias. É o principal – ou até o único – instrumento utilizado em sala para atividades de leitura, organização de aula, de exercícios, avaliações, entre outros componentes da rotina escolar. Por outro lado, para as editoras, que rivalizam o controle e seleção do seu “produto”, o livro é uma mercadoria. Pesquisadores, dedicados ao estudo do papel desse material demonstram que o livro deve ser examinado como recurso didático e como mercadoria. Procurando colaborar nesse campo de pesquisa foi elaborado em 2014 o projeto de pesquisa intitulado “Abordagens do espaço urbano no livro didático de Geografia do Ensino Médio: estudos iniciais em escolas públicas do município de Juazeiro do Norte/CE, 2014/15”, que desencadeou no presente trabalho. Busca-se enunciar e discutir os principais passos e resultados dessa investigação realizada como exercício de iniciação científica por dois bolsistas do curso de Licenciatura em Geografia da URCA. O município de Juazeiro do Norte está localizado no sul do Ceará e compõe o aglomerado urbano chamado Crajubar. Conforme Queiroz e Cunha (2015), esse arranjo urbanoregional, conforme sugere o vocábulo que o identifica, é fruto de um histórico processo de integração territorial das vizinhas cidades de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. Juazeiro do Norte também compõe a Região Metropolitana do Cariri- RMCariri, criada pela Lei Complementar Estadual N. 78 (29/06/2009). O Censo de 2010 (IBGE) contabiliza para Juazeiro o total de 249.939 habitantes, sendo 96,07% registrados como população urbana. A dinâmica da cidade de Juazeiro do Norte fomenta debates e estudos de diversos campos do conhecimento. Problematizamos aspectos didático-pedagógicos e conceituais do estudo geográfico da cidade no Ensino Médio, explorando contribuições de pesquisadores e os limites e potencialidades dos livros didáticos adotados nessa fase da Educação Básica. Focalizamos brevemente a percepção de docentes que atuam em duas escolas públicas de Juazeiro do Norte/CE sobre essa questão. O trabalho se volta a desenvolver levantamento teórico e empírico a respeito do livro didático no Ensino Médio, buscando focalizar ainda discussões relacionadas à exploração de temas/conceitos da realidade urbana na Geografia escolar. Os objetivos específicos que norteiam os procedimentos metodológicos são: identificar os principais livros didáticos adotados nas escolas selecionadas da rede pública de Ensino Médio da cidade de Juazeiro do CUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 91 Norte; examinar amostra de coleção de obras de Geografia, realizando exercício baseado na ficha de avaliação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD); identificar conceitos ligados à discussão da realidade urbana em livros escolares. Este trabalho iniciou-se realizando aproximação com artigos de pesquisadores que examinam o livro didático e discutem o seu papel como recurso de ensino-aprendizagem, buscando ainda, fazer revisão bibliográfica de temas da Geografia escolar. Para a construção do referencial teórico contribuíram a leitura sistemática e a elaboração de fichamento. Estudar trabalho de campo e pesquisa, no processo de estudo mais ativo e crítico dos temas geográficos, fez parte da revisão bibliográfica. Produção textual e realização de levantamento empírico (contato com sujeitos sociais das escolas estudadas) também foram etapas fundamentais da pesquisa. A análise documental das orientações curriculares para o Ensino Médio foi realizada com base na consulta aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNEM), Orientações Curriculares para o Ensino Médio, e ainda documentos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Nesse último material buscou-se identificar os parâmetros de avaliação de obras didáticas, sobretudo a ficha oficial. A primeira fase de contato com professores do Ensino Médio se iniciou após a elaboração de um plano de questões (tipo entrevista semiestruturada). Em outubro de 2014 foi aplicado o pré-teste com a professora Leila da Escola Liceu de Crato. O roteiro foi corrigido, iniciando-se posteriormente a etapa de campo em Juazeiro do Norte. Também foi feito exercício com o livro didático “Geografia Geral do Brasil - espaço geográfico e globalização”4. Tratavase de manejar uma amostra de obra escolar. Realizaram-se a partir de novembro de 2014, as entrevistas semiestruturadas com quatro professores de Geografia das duas maiores escolas da cidade, a EEFM Presidente Geisel (conhecida como Polivalente) e EEM Governador Adauto Bezerra, situadas respectivamente no bairro Santa Tereza e Romeirão. Dos livros adotados para o triênio 2012 a 2014 pelas escolas do levantamento empírico escolhemos, para estudo, a coleção: “Território e Sociedade no mundo globalizado”5 da editora Saraiva por se tratar do livro didático mais adotado pelas escolas do município. 4 SENE, Eustáquio de; MOREIRA, João Carlos. Geografia Geral do Brasil - espaço geográfico e globalização. Volume 3, Unidade 4. São Paulo: Scipione, 2010. 5 LUCCI, Elian Alabi; BRANCO, Anselmo L; MENDONÇA, Cláudio. Território e Sociedade: no mundo globalizado. 3 Volumes. São Paulo: Saraiva, 2010. CUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 92 2. Referências do estudo de obras escolares na Geografia do Ensino Médio Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs (BRASIL, 2000) e os critérios do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD são orientadores e relevantes quando se trata da avaliação de obras didáticas. No que concerne aos conhecimentos de Geografia, os PCNs indicam os objetivos desta disciplina na Educação Básica: No Ensino Fundamental o papel da Geografia é ‘alfabetizar’ o aluno espacialmente em suas diversas escalas e configurações, dando-lhe suficiente capacitação para manipular noções de paisagem, espaço, natureza, estado e sociedade. No Ensino Médio, o aluno deve construir competências que permitam a análise do real, revelando as causas e efeitos, a intensidade, a heterogeneidade, e o contexto espacial dos fenômenos que configuram cada sociedade (BRASIL, 2000, p. 30). Os PCNs se remetem ainda a quatro princípios gerais norteadores do ensino: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver; e aprender a ser. Conforme descrito no documento (BRASIL, 2000): A estética da sensibilidade, que supera a padronização e estimula criatividade e o espírito inventivo, está presente no aprender a conhecer e no aprender a fazer, como dois momentos da mesma experiência humana superando-se a falsa divisão entre teoria e prática. A política da igualdade, que consagram Estado de Direito e a democracia, está corporificada no aprender a conviver, na construção de uma sociedade solidária através da ação coorporativa e nãoindividualista. A ética da identidade, exigida pelo desafio de uma educação voltada para a constituição de identidades responsáveis e solidárias, compromissadas com a inserção em seu tempo e em seu espaço, pressupõe o aprender a ser, objetivo máximo da ação que educa e não se limita apenas a transmitir conhecimentos prontos (BRASIL, 2000, p. 8). Quanto às competências básicas e específicas da área das Ciências Humanas na escola básica, o documento apresenta: “[...] as competências de representação e comunicação; as competências de investigação e compreensão; e as competências de contextualização sociocultural” (BRASIL, 2000, p. 17-18). As primeiras apontam as linguagens como instrumentos de produção de sentido e, ainda de acesso ao próprio conhecimento, de sua organização e sistematização. As segundas apontam os conhecimentos científicos, seus diferentes procedimentos, métodos e conceitos, como instrumentos de intervenção no real e de solução de problemas; por fim, as últimas apontam a relação da sociedade e da cultura, em sua diversidade na constituição do significado para os diferentes saberes. E o livro didático, como um recurso presente nas salas da etapa de Ensino Médio, deve ser examinado de forma cuidadosa para que possa colaborar na relação professor-alunoCUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 93 conteúdo e na consecução dos objetivos e competências supramencionados. Circe Bittencourt (1997) alerta para a necessidade de examinar atentamente as obras escolares, pois “[...] o livro didático é, antes de tudo, uma mercadoria, um produto do mundo da edição que obedece à evolução das técnicas de fabricação e comercialização pertencentes à lógica de mercado. [...]” (BITTENCOURT, 1997, p. 71). Tonini complementa “[...] o livro didático de Geografia ao chegar às nossas mãos como um produto pronto e acabado, já foi submetido a regras, a restrições e regulamentos próprios das políticas educacionais e editoriais”. (TONINI, 2003, p. 36). Para se estudar o livro e sua relação com o exame de conteúdos específicos, vale conceber esse material curricular em ampla perspectiva: como mercadoria e como recurso didático. E também aproximar das políticas educacionais ligadas a esse instrumento tão presente nas salas de aula. O texto de Schaffer (1998) ajuda ao pesquisador iniciante a entender a história de produção das obras escolares e a trajetória das políticas públicas em relação ao processo de produção, controle e avaliação das obras didáticas. O livro didático em geral, deve, segundo um dos editais do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD, BRASIL, 2013), veicular informação correta, precisa, adequada e atualizada. Espera-se deste, que viabilize o acesso de professores, alunos e famílias a fatos, conceitos, saberes, práticas, valores e possibilidades de compreender, transformar e ampliar o modo de ver e fazer a ciência, a sociedade e a educação. Na Geografia, especificamente, o PNLD (BRASIL, 2013) afirma: o livro didático deve conter explicações sobre a produção do espaço pelas sociedades ao longo da história, a partir de referências teórico-metodológicas, que têm por base os conceitos e as categorias de natureza, paisagem, espaço, território, região e lugar, congregando dimensões de análise que abordam tempo, cultura, sociedade, poder e relações econômicas e sociais, tendo como variáveis a localização, a distância, as semelhanças e diferenças, a ordenação, as atividades e sistemas de relações, de maneira a articular forma, conteúdos, processos e funções, observando tanto as interações como as contradições da realidade. Castrogiovanni e Goulart (1998) sugerem cinco aspetos fundamentais que devem caracterizar um bom livro didático: 1) a fidedignidade das afirmações; 2) o estímulo à criatividade; 3) uma correta representação cartográfica; 4) uma abordagem que valorize a realidade; e 5) que enfoque o espaço como uma totalidade. Como tal, para estes autores, “[...] o livro didático deverá ser o reflexo do trabalho elaborado na Universidade, tanto do ponto de vista de sua escolha quanto da sua confecção” (CASTROGIOVANNI, 1998, p. 127). CUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 94 Tonini ao eleger as obras escolares como foco de suas pesquisas afirma: “Eles funcionam proliferando o real. Os livros didáticos são produtores de uma dada sensibilidade e instauradores de uma dada forma de ver e dizer a realidade. São máquinas históricas de saber” (TONINI, 2016). A pesquisadora complementa que o saber que está registrado no livro escolar, é também o conhecimento oficial e geralmente é o que “[...] está sendo trabalhado na escola”. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais, os objetivos oficiais da Geografia, está em o estudante do Ensino Médio “identificar, analisar e avaliar o impacto das transformações naturais, sociais, econômicas, culturais, e políticas no seu ‘lugar-mundo’, comparando, analisando, e sintetizando a densidade das relações e transformações que tornam concreta e vivida a realidade” (PCN, 2000, p. 35). Para Cavalcanti, o conhecimento crítico do mundo e da realidade é uma habilidadepotencialidade que o ensino de Geografia muito tem a contribuir, sobretudo para os sujeitos que ajudam a produzir a cidade. Como afirma Cavalcanti (2008) “a geografia é uma das ciências que se tem dedicado à análise da cidade e da vida urbana. Como consciência social, ela o faz pela perspectiva social, porém com um determinado enfoque. A Geografia é uma leitura, uma determinada leitura da realidade. É a leitura do ponto de vista da espacialidade”. Em sua obra “A Geografia escolar e a Cidade: ensaios sobre o ensino de Geografia para a vida urbana cotidiana”, Lana Cavalcanti ressalta a ideia de que a cidade e o espaço urbano são conteúdos do ensino de Geografia. A autora estimula a seguinte reflexão: como os diferentes conhecimentos e experiências da cidade se cruzam na sala de aula de Geografia? Partindo do pressuposto de que os indivíduos sociais que vivem e compartilham suas experiências em cidades e espaços urbanos distintos, cada qual com suas especificidades, vale problematizar: como esses agentes produzem seu espaço e constroem sua própria realidade? A escola é um lugar de encontro e confronto entre as diferentes formas de conceber e praticar a cidade (CAVALCANTI, 2008). Assim, vale investigar como o estudo das cidades é feito e como o livro didático adotado colabora nesse processo. A seguir breves reflexões do trabalho empírico, no qual a questão do estudo das cidades via livro didático foi o ponto de partida. 3. Levantamento empírico: professores do Ensino Médio, obras escolares e estudo das cidades A etapa do trabalho empírico foi desenvolvida por dois bolsistas: Rafael França e Tiago Lisboa em duas instituições: a Escola Presidente Geisel e a Escola Governador Adauto Bezerra, localizadas no bairro Santa Teresa e Romeirão, na cidade de Juazeiro do Norte. Foram CUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 95 entrevistados quatro professores dessas instituições visando realizar diagnóstico da Geografia escolar do Ensino Médio e verificar a percepção dos docentes sobre os temas urbanos no livro adotado. A escolha das duas escolas se deve ao número representativo de alunos e docentes. No Quadro 01, constam informações organizadas a respeito da formação, tempo de experiência, número de turmas, carga horária semanal e alunos em 2014. Quadro 01 – Professores de Geografia das Escolas Presidente Geisel e Governador Adauto Bezerra PROFISSIONAIS Graduação Formação No. No. Turmas Alunos T. E.P.* (ano) C. H. S. ** Edivânia Ferreira História 2012 6/meses 3 120 18/horas Alano Hellery Geografia 1991 15/anos 16 640 40/horas José Roberto Geografia 1994 17/anos 6 240 13/horas Marcolino Alves Geografia 2013 1/ano 12 480 40/horas Fonte: Informantes/2014*T.E.P.- Tempo de Exercício Profissional **C.H.S. - Carga Horária Semanal Os professores de Geografia entrevistados vivem diferentes relações com o ensino dessa matéria. Um dos professores, que leciona Geografia há pouco mais de três anos (2015) e teve oportunidade de se especializar em Geopolítica e História, afirma: “O livro didático tem suas limitações. Tem boas dicas, mas a informação em parte é ultrapassada por a Geografia ser uma ciência dinâmica, e os conteúdos se apresenta de forma fragmentada, tendo eu que contextualizar os conceitos fora do livro”. Quanto aos conteúdos da Geografia Urbana no livro didático, os docentes consideram que satisfazem em parte as necessidades de aprendizagem. Um dos entrevistados justificou que no livro não há distinção das abordagens de cidades menores e cidades maiores. Além do conteúdo constante do livro didático, um dos docentes destacou o estudo da obra de Milton Santos e de Raquel Rolnik (“O que é cidade”). Este professor gostaria também de ver contempladas questões relacionadas à cultura urbana. Durante o ano ele une, a outros assuntos do livro, questões do espaço urbano. Opinou que com base nos livros, as aulas sobre a cidade são poucas. Para ele, deveriam termais debates. No que se refere aos conceitos trabalhados no Ensino Médio o professor salientou os seguintes: conurbação; urbanização; rurbanização; êxodo rural; região metropolitana; cidades globais; mega cidades e macrocefalia urbana. Quanto ao estudo do espaço urbano e formação de conceitos geográficos, vale indicar orientações feitas por Cavalcanti (2013). A pesquisadora orienta os professores a desenvolver o estudo do espaço urbano subdividindo o tema em três secções: 1) Espaço urbano e Região Metropolitana (e a cidade); 2) O transporte coletivo na Região Metropolitana (na cidade); e por CUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 96 fim 3) Consumo e consumismo na Região Metropolitana (na cidade). (CAVALCANTI, 2009, p. 06). Outro aspecto interessante é quando um dos professores entrevistados afirma as experiências que desenvolve com músicas, exploração de vídeos e aulas de campo para trabalhar problemáticas do espaço vivido pelos estudantes. Por fim, diz introduzir pesquisa nas aulas através de temas como a urbanização, o ambiente, a produção cultural (grafite), movimentos de favelas e a violência. O docente desenvolve para isso um trabalho em que os alunos são convidados a fotografar o quotidiano da cidade e descrever suas percepções. A exploração de temas abordando a cultura urbana local advém do fato de que “[...] é preciso continuar a lutar pelas políticas de identidades das minorias inscritas no livro didático de Geografia, mesmo que nossas concepções do ou sobre elas sejam apenas de uma prática de alertas [...]” (TONINI, 2013, p. 184). O professor estimula ao final da experiência, a produção de um pequeno livro sobre vários temas estudados incluindo sobre o espaço urbano. Essa experiência é valiosa para ampliar a produção de material didático produzido pelos próprios sujeitos da educação. É uma forma de ampliar a qualidade de ensino da Geografia, para a qual, um dos seus empecilhos está na “[...] relação de distanciamento ou exterioridade que professores de Geografia mantêm com o conhecimento acadêmico em sua prática e a falta de material didático temático sobre o local [...]” (CAVALCANTI, 2009, p. 02). Essas experiências do professor são interessantes iniciativas que demonstram a possibilidade de no Ensino Médio desenvolver a perspectiva de professores e alunos pesquisadores, produtores do conhecimento. São práticas que reduzem o papel da obra escolar como protagonista nas salas de aula. É possível verificar, em pesquisas e nas conversas com professores da educação básica, como o livro didático funciona como a diretriz para docentes selecionarem e organizarem o conteúdo, as sequências didáticas, o desenrolar de atividades e das avaliações. Podemos constatar este fato na análise iniciada da coleção “Território e Sociedade no mundo globalizado”. O tema da Geografia Urbana surge especificamente no último ano do Ensino Médio, no penúltimo capítulo do livro. Os conteúdos aparecem de forma fragmentada, espalhados pelos três volumes da coleção. Nos respetivos capítulos há poucas referências ao conceito de espaço urbano, e poucas indicações de ligação entre os diversos capítulos da coleção. Mas, vale destacar no Manual de Apoio ao Professor a sugestão de aulas de campo que favorecem o estudo das cidades e a produção de informações sobre a geografia local. CUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 97 Quanto aos conteúdos relacionados à realidade urbana, um dos professores indicou a necessidade de constante articulação entre os três volumes da coleção em discussão, onde aparecem os seguintes conteúdos: Dinâmica climática; Geopolítica atual: um mundo em construção; Globalização e redes da economia mundial; Globalização, comércio mundial e blocos econômicos; O Brasil no mundo globalizado; A indústria no mundo atual; A indústria no Brasil; A urbanização mundial; A urbanização no Brasil; O crescimento populacional no mundo e no Brasil; Sociedade e economia; Povos em movimento; e Migrações no Brasil. Os docentes que colaboraram na pesquisa mostram-nos que procuram minimizar lacunas dos livros didáticos através de diferentes abordagens articuladas multidisciplinarmente, com destaque para aulas de campo e pesquisa sobre problemas urbanos locais. A abordagem dos conteúdos nas salas de aula ocorre de forma diversa e diferenciada. Isso se deve ao fato desses profissionais manterem um grau de relacionamento distinto com os temas propostos pelos livros didáticos, e pela própria diversidade da prática de ensino. Os docentes que demonstram maior comprometimento com a mudança na educação e na realidade dos alunos são aqueles que buscam diversificar as atividades e ampliar o que encontram nas obras escolares. Por isso devemos sempre lembrar que, para “[...] ser professor não basta simplesmente transmitir o conhecimento: o ser docente é o agente provocador de transformações. [...]” (LAMPERT, 2013, p. 134). 4. Considerações Finais O docente, ao trabalhar com a Geografia deve refletir sobre o que pretende com os conteúdos geográficos no Ensino Médio. Quem são os seus alunos? Que local produzem? Esse é um passo fundamental para relacionar os estudantes e a sua realidade, desenvolver atividades com o livro, tomando seus textos como ponto de partida e alvo de questionamento dos saberes já apreendidos e em construção. Cavalcanti (2013) enfatiza a necessidade de se atingir um grau de autonomia das escolas que lhes permita construir um currículo independente e sem interferências cotidianas de programas políticos dos governos de Estado ou Federal. A autonomia é uma construção gradual. Nas escolas, o que predomina é o livro escolar servir como referência para o docente definir o que ensinar, em que momento do ano e até o tipo de atividade a ser trabalhada conforme os temas em exploração. Como aponta Tonini (2013), o livro didático é uma poderosa ferramenta de ensinoaprendizagem que carrega significação, portanto “[...] não é somente um ‘depósito’ de CUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 98 conteúdos, [...] mas também, e principalmente, [é] um lugar de produção de significados, como um artefato cultural no qual as verdades são fabricadas e postas em circulação [...]” (TONINI, 2003, p. 36). Os diversos tipos de textos constantes de obras/didáticas podem servir para difundir conteúdos, significações e também escamotear questões fundamentais do processo de construção da cidadania. Não podemos desconsiderar o potencial educativo do livro didático e nem deixar de avaliar os riscos que seus diversos tipos de textos e imagens carregam, quanto a reprodução de preconceitos, de falhas conceituais, de estereótipos etc. O processo de produção de livros didáticos deve ir de encontro aos interesses mais dos sujeitos da educação, sobretudo os alunos, visualizando sua faixa etária, contexto socioeconômico e cultural, afastando-se da perspectiva mercadológica que muitas vezes dominava a indústria de produção de obras escolares. É muito difícil trabalhar com o aluno contextualizações socioculturais sem contar com o auxílio comprometido do professor e sem informações disponibilizadas de forma bem orientada. Como relembra Schaffer, muitos livros não encaminham para discussões, interpretações e sugestões de interferência nos rumos da sociedade. Ao mesmo tempo a pesquisadora alerta: “[...] a qualidade do processo de ensino aprendizagem depende muito mais do desempenho do professor do que da qualidade do livro didático”. (SCHAFFER, 1998, p. 138). Lampert ajuda a pensar sobre o grande desafio que todos nós temos pela frente: “[...] pensar uma Geografia que não abandona o currículo estabelecido, mas que possa fazer parte do cotidiano dos alunos, atribuindo então significados aos termos geográficos” (LAMPERT, 2013, p. 139). O livro didático continua a desempenhar um serviço importante em sala de aula, ele é um elo entre aluno e professor. Para o aluno, este permite diversificar “[...] a forma como é explorada a realidade vivida e [...] ampliar a dimensão espaço-temporal do aluno [...]” (SCHAFFER, 1998, p. 137-138). A aproximação dos professores de produções acadêmicas e seu comprometimento com a qualidade do ensino ajudam a esse sujeito ficar atento e usar da criticidade e criatividade para trabalhar com o livro e sem o livro, mas de forma a ensinar aos alunos conhecimentos significativos para a sua aprendizagem. Deve-se fomentar as possibilidades de produção local de material didático por professores e alunos, ampliando a autonomia intelectual e a transmissão e promoção de saberes, seja da realidade vivida, articulando com os contextos e objetivos mais amplos do estudo do espaço geográfico. CUNHA, Maria Soares; LISBOA, Tiago Eurico S. Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 99 5. Referências BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens. In: ______. (Org.) O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997. p. 69-90. BRASIL. Ministério da Educação. 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Dias; SILVA, Rafael França da Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 100 MEIO AMBIENTE NA CONTEMPORANEIDADE: SIGNIFICADOS E SENTIDOS CONTEMPORANEOUS ENVIRONMENT: MEANINGS AND SUBJECTIVITIES Maria do Socorro Pereira de Almeida1 Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Sérgio Luiz Malta de Azevedo2 Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) Resumo Este artigo tem como objetivo principal, refletir sobre os significados e sentidos que vem sendo atribuídos ao meio ambiente. No texto, discutemse inicialmente alguns conceitos ligados à ideia de Natureza, Ecologia e Meio ambiente, para em seguida incidir sobre os sentidos e significados relacionados à questão ambiental. Discutem-se ainda, a visão política, da educação e da atuação midiática em relação à natureza, buscando identificar os elementos que sustentam tais visões. Palavras-chave: Natureza. Meio ambiente. Contemporaneidade. Abstract This paper aims to reflect on the significance and meanings that have been attributed to the environment. Initially discuss some concepts related to the idea of Nature, Ecology and Environment, then to focus on the meanings related to environmental issues. We discuss also the political vision of education and print media in order to identify the elements that support such views. Keywords: Nature. Environment. Contemporaneity Resumen Ese artículo tiene como principal propósito reflexionar sobre los significados y sentidos que hoy son atribuidos al medioambiente. En el texto, se argumenta inicialmente algunos conceptos con relación a la idea de la Naturaleza, Ecologia y Medioambiente, para incurrir enseguida sobre los sentidos y significados relacionados con los contenidos ambientales. Se debate todavía la visión política, de la educación y de los medios de comunicación, relacionados a la naturaleza, buscando indentificar a los elementos que apoyan aquellos dictámenes. Palabras claves: Naturaleza. Medioambiente. Actualidad. 1 Doutora em literatura e cultura (UFRPE), professora da UFRPE - UAST - Unidade Acadêmica de Serra Talhada. E-mail: socorroliteratura@hotmail.com. 2 Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco, professor adjunto da Unidade Acadêmica de Geografia (UFCG) e do Programa de Pós-graduação em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental da Universidade do Estado da Bahia -UNEB. E-mail: maltaslma@gmail.com ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 101 1. Introdução Uma das preocupações com as quais a ciência tem se deparado nos últimos anos é a de construção e reconstrução de suas bases epistemológicas e teórico-conceituais. Nesse sentido, os conceitos de natureza, meio ambiente e ecologia vêm recebendo inúmeros contributos, principalmente das ciências, que têm se afirmado a partir da integração de conhecimento na perspectiva interdisciplinar, cujos constructos se inserem nos processos que sofrem transformações importantes no contexto das relações sociais, econômicos e artístico-culturais contemporâneas. Isto ocorre, principalmente com relação à uniformização de padrões socioeconômicos, nos quais se verifica um alto grau de vinculação de conhecimentos técnicos à rápida difusão desses conhecimentos, naquilo que se convencionou chamar de globalização. Tal fato é demonstrado por Malta (2006) quando se refere à invenção de artefatos técnicos, a exemplo dos celulares computadores, smartphones, iphones, tablets, entre tantos outros produtos que constituem inovações, que são rapidamente difundidas pela mídia, como objetos de consumo de massa, demonstrando claramente a tendência dominante da aceleração do tempo decorrido entre a descoberta de um processo tecnológico e a sua transformação em produto para o mercado. Nesse artigo pretendemos, portanto, refletir sobre os significados e sentidos atribuídos ao meio ambiente na contemporaneidade, a começar por uma apreciação conceitual das abordagens, em geral, ligadas ao meio ambiente, tais como natureza e ecologia, buscando-se a dialeticidade dos contextos em que tais termos são adotados e as simetrias e assimetrias das transversalidades que lhe são atribuídas. No segundo momento, o qual consideramos o cerne desse trabalho, buscamos refletir sobre os sentidos e significados atribuídos ao meio ambiente, inclusive no campo dos debates políticos e da seara da educação ambiental. Ressaltamos ainda, a forma como a mídia vem atuando sobre o contexto ambiental, sobretudo a televisiva, sendo um dos principais impulsionadores de sentidos e significados, que lhe são atribuídos. Na conclusão fazemos uma síntese das principais constatações do artigo. 2. Apreciação dos significados atribuídos ao meio ambiente O homem, como ser racional, procura sempre mais do que necessita para sua sobrevivência e existência como sujeito social. Atribuímos tal contexto, ao caráter egocêntrico de suas atitudes, transformando-se, em meio a lógica contraditória e desigual do capitalismo, em objeto reificado. Influenciado pela retórica midiática, ele tem sido guiado por aquilo que ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 102 denominamos de onda consumista, que em muito vem comprometendo o uso dos estoques de recursos naturais, em escala planetária. Por isso é interessante observar a visão de natureza nos dias atuais, as ações e reações que afetam o mundo e o homem como um todo. Marcos Carvalho, em O que é Natureza (2003), usando o senso comum e questionando sobre a dificuldade de se conceituar a natureza observa que “todos sabemos e usamos as expressões natural e natureza como contraponto àquilo que consideramos artificial” (p. 9). No entanto, ele mostra que não há realmente um conceito, mas perspectivas que levam a deduções sobre processos naturais e não naturais: Importante é compreender que entre os seres humanos e os outros seres que compõem a nossa realidade as diferenças não se devem ao fato de uns serem naturais e outros não. As diferenças encontraremos nas dinâmicas, nos ritmos, nas finalidades, nas formas, na reprodução, na recriação que cada um ou conjunto de seres que compõem o planeta apresenta (p. 11). Percebemos que, diante de tantas possibilidades de assunção de sentidos e significados de natureza, é importante ressaltar pelo menos um ponto em comum a quase todos os elementos que caracterizam semanticamente a ideia para o termo, que existe uma natureza interna e uma externa, ou seja, existe aquilo que é a aparência, que pode ser diretamente abarcado pelos os nossos aparelhos sensitivos; e a essência, que só pode ser compreendida sublimando-se o nosso pensamento e elevando-o pela reflexão virtuosa. É nesse sentido que o corpo visível e a essência fazem o homem “ser” o que é. Isso quer dizer que, além daquilo que o anima, tem também a forma como se dá essa animação e a especificidade dela em relação à dos outros sujeitos, que forma o caráter, a identidade enquanto ser, e a alma, de modo que ela se faça perceber pelas as ações. Para muitos, refletir sobre a natureza pode parecer redundante, haja vista que todos já ouviram falar sobre essa questão, daí porque a impressão de que o assunto já se encontra, por demais discutido. Assim, é importante ao nos deparamos sobre essa questão, nos esforçar para pensá-lo globalmente, integralmente, de modo que possamos ver o que está invisível, ou seja, aquilo que o nosso aparelho cognitivo não consegue apreender, a primeira vista. Nesse caso, devemos pensar que a compreensão integral só pode ser alcançada com um olhar que vai além dos limites da área em questão. Como se vê nas assertivas de Vasconcelos (2002, p. 33): [Libertando-nos da nossa unicidade] “na forma de pensar, de ver e de fazer as coisas [evitamos o que se denomina] de paralisia de certeza”. Ao nos debruçarmos sobre as vertentes que ramificam os estudos sobre a natureza, geralmente levamos em conta os reinos animal, vegetal e mineral, nesse contexto vamos acrescentar o humano. Não queremos, com isso, tirar o homem da condição animal, mas tentar ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 103 imaginar dialeticamente a natureza interna (humana) e a externa (meio ambiente) o que se pode fazer também em relação ao animal. Por outro lado, observamos outros elementos que compõem o grande número das manifestações da natureza e que, muitas vezes, devido à velocidade com que nos impulsionamos rumo aos nossos objetivos esquecemo-nos de considerar. A natureza primitiva como imaginamos é o que concebemos como intocado pelo homem, mas a visão de natureza, especialmente pelo homem moderno, se torna ainda mais complexa, porque geralmente a vemos como o físico externo e não paramos para pensar sobre quais elementos se encontram compostos nesse todo enigmático a que chamamos de natureza. Nela se entrelaçam os quatro macros elementos: terra, água ar e fogo, assim como os elementos que evidenciam a dualidade universal, como luz e escuridão, frio e calor, vida e morte, entre outros. Para Marcos Carvalho (2003), talvez as dificuldades de entender e conceituar a natureza se devam a própria condição e tempo de existência da terra e do homem, já que aquela possui aproximadamente 5 bilhões de anos, enquanto que a espécie humana conta apenas com mais ou menos 100 mil anos. Dessa forma, a história da humanidade seria insignificante perante a história da natureza, apesar de a capacidade humana de raciocínio e de aprender a contar o tempo e racionalizar o espaço e o tempo permitam ao homem, pelo menos em tese, saber que é fruto dessa mesma natureza e notar que há uma interdependência entre as histórias da terra e a humana. A espécie humana conseguiu chegar a um nível de evolução que, de certa forma, vem conduzindo-a em sentido contrário, por isso se pode afirmar que a presunção e o egoísmo humano têm orientado o homem para a falsa ideia de que a natureza existe para exploração e destruição. Nesse sentido, a racionalidade, como diferencial exclusivo do ser humano contribui mais para destruição do que para a conservação e preservação sustentável da relação entre sociedade e natureza. Na ânsia de explicar a natureza, o homem busca de forma racional e imaginária fundamentos que promovam, a cada instante, mais um passo em direção, não só ao conhecimento mais aprofundado de sua existência cósmica, como também a relação de tudo que está na terra. Um bom exemplo disso, tem sido dado pela ciência geológica, cujos fundadores propagaram suas ideias sobre a terra, ainda no século XVIII, a exemplo do pioneirismo do francês James Huton, perspectivas que também fazem surgir, no século XIX, homens como Charles Darwin. ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 104 É importante perceber que, embora algumas dessas iniciativas pioneiras sejam, hoje, refutadas em alguns aspectos, a exemplo da teoria darwiniana sobre a origem das espécies, são, ao mesmo tempo, paradigmáticas para as novas descobertas no processo progressivo do desenvolvimento da ciência. É notório, por exemplo, que no final do século XIX a descoberta da radioatividade, pelos franceses Henri Becquerel, Pierre e Marie Curie, é que vai possibilitar que a Geologia estabeleça uma cronologia (eras geológicas), chegando-se a estabelecer a contagem do tempo de existência da terra. Durante muito tempo a terra foi uma incógnita, foi o centro de muitas especulações, formando-se inúmeras controversas entre os observadores do universo, em particular, sobre a mecânica de entendimentos de outros planetas. Em oposição a esse pensamento, no Oriente a natureza sempre foi tida como Deus, ou seja, não seria Deus o criador da natureza, mas a própria natureza, a quem o homem deve respeito, obediência e adoração. Para os gregos antigos a natureza era vista de forma sistêmica e interacional, em que todas as partes da natureza e, também, a natureza humana formavam um todo complexo em que partes se acomodavam para assumir sua função no todo universal. Esse todo seria a physis, ou seja, o fundamento que confere a unidade universal e o princípio de tudo que existe. Com o advento do Cristianismo alguns conflitos ganham vida e, por ser a Igreja detentora de poder na Idade Média, prevalecia a sua percepção sobre o mundo, sendo Deus, nesse contexto, um ser nímio e poderoso que criou a terra, o homem e os outros seres. Vê-se, portanto, que a terra e a natureza em geral, são concebidas de acordo com os costumes, hábitos e tradições societários. Assim, a natureza é um todo sistêmico, no qual os indivíduos, consoantes os contextos históricos, participaram e participam segundo sua concepção de mundo. No Renascimento, com a ascensão do eurocentrismo, o homem começa a perceber que podia dominar o mundo, uma vez que se colocava como superior às outras dimensões da natureza, isto por ser o único ser pensante na terra. É interessante notar que a Educação Ambiental, ensinada na maioria das escolas no ensino básico brasileiro, ainda hoje assume uma concepção fragmentária de natureza, sendo, o homem, concebido como um elemento que se posiciona de fora das conexões vitais da natureza, de onde comanda com “mão de ferro” o conjunto das forças que operam no mundo, quando na verdade, rigorosamente, não se deve estruturar separadamente a história do homem da história da natureza. Nesse sentido, Dakir Lara Machado (2004), observa que a paisagem natural é idealizada, uma vez que os mapas temáticos, por exemplo, trazem a natureza intocada ignorando assim os ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 105 processos de transformação e degradação dos espaços pela ação humana, minimizando a importância histórica desses processos, a exemplo das revoluções industriais, nas quais os prejuízos não são evidenciados. Dessa forma, é difícil a conscientização do valor da natureza e do homem como um elemento endógeno. A autora faz um estudo minucioso sobre os livros didáticos e observa, ao longo da pesquisa, que a natureza é concebida sempre do ponto de vista do ambiente físico e o homem como um corpo exógeno, ou seja, como elemento de fora que coloca a natureza à sua disposição. Com a revolução industrial em meados do século XIX e no período atual, com advento do desenvolvimento técnico e científico torna-se irrefutável a preservação da natureza. A partir dessa assertiva, nascem os lugares de contenção, por assim dizer, criados pelas relações capitalistas, como forma de proteger pedaços de áreas no ideário de uma vida que se supõe ser ecologicamente correta. Assim, criam-se parques florestais na tentativa de preservar algumas espécies, no qual são confinados vegetais e animais em zoológicos, parques botânicos e outras áreas de preservação em que curiosos visitantes deixam-se explorar pela especulação capitalista, vendendo seu “tempo livre” para ver um pedaço de natureza “privatizada”. A parte desses pequenos “Oasis” o resto dos espaços são tomados pelo “desenvolvimento” que está sempre criando meios para estimular o consumismo, mantendo a distância entre homem e natureza. Dessa forma, a natureza é um “bem de consumo” apropriada pelo homem, não qualquer um, mas aqueles que controlam visceralmente o poder capitalista, o que nos leva a questionar se realmente existe ainda o primitivismo natural. Veja-se que é em meio a esse emaranho de concepções e desprezo com a natureza que surgem a educação ambiental como tabua de salvação e que por meio de ações benquistas lançam mão das inovações técnico-científicas para retroagir a sua condição de “ser natural” ao procurar, de alguma forma, o contato com o mundo natural. Assim, ainda que fragmentadamente cria meios e desenvolve-se campanhas de educação, cujo objetivo é conscientizar as pessoas da importância da conservação e preservação do meio em que vive, como afirma Carvalho: A visão socioambiental orienta-se por uma racionalidade complexa e interdisciplinar e [deve] pensa [r] o meio ambiente, não como sinônimo de natureza, mas como um campo de interações entre a cultura, a sociedade e a base física e biológica dos processos vitais, no qual todos os termos dessa relação se modificam dinâmica e mutuamente (2008, p. 37). As palavras e as ideias são criadas conforme a necessidade humana e com o tempo elas podem desaparecer e reaparecer ou mesmo se fortalecerem, sempre para suprir a necessidade primária do existencial humano. Na atual situação em que se encontra a relação ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 106 homem-natureza algumas palavras e ideias criaram força. Certamente esse é um dos motivos pelo qual o tema mais debatido em Academias de um modo geral, congressos, e encontros de autoridades governamentais é a ecologia e o meio ambiente. 3. Ecologia e meio ambiente: sentidos e significados Neste tópico tentamos analisar os sentidos e significados atribuídos às principais expressões vinculadas à ideia de meio ambiente, a começar pelo vocábulo Ecologia, termo criado por Ernest Haeckel, a partir da palavra grega iokos (casa), para denominar uma disciplina da área da Biologia, que tem como função estudar as relações entre as espécies animais e seu ambiente orgânico e inorgânico. Na prática Haeckel foi um difusor das ideias evolucionistas de Darwin e deu ao termo Ecologia o sentido de Ciência das relações dos organismos com o mundo exterior, com esse sentido o termo alcançou um significado mais amplo, ou seja, houve uma soltura do vocábulo (Ecologia) da condição apenas biológica, abrindo-se a possibilidade de, através dele, se ver as ações socioambientais que caracterizam as chamadas lutas ecológicas. No plano dos debates políticos há quem atribua relações muito próximas entre ecologia e socialismo. Essa convergência teve início, segundo Michael Lowy (2005), através da figura de Chico Mendes que, segundo o autor, se transformou em um verdadeiro herói brasileiro por defender “com mãos nuas” os povos tradicionais da floresta amazônica, a exemplo dos seringueiros e suas mulheres, os trabalhadores rurais, e os índios, fato que Lowy expõe da seguinte forma: “Algumas vezes os trabalhadores são derrotados, mas frequentemente conseguem parar, com suas mãos nuas, os tratores, buldôzeres e motosserras dos destruidores da floresta, ganhando, às vezes, a adesão dos peões, encarregados do desmatamento” (p. 10). Dessa forma, vemos que não podemos separar natureza, ecologia e meio ambiente, uma vez que tudo converge para a vida em sociedade e trata-se de ações e reações do homem enquanto ser natural e social, perspectivas que ganham um contexto ecossocial e dialético. O humanismo seria uma das questões da perspectiva de Marx, no sentido de que o homem é um ser natural e precisa se conscientizar de que a natureza, bem como todo ser humano precisa ser respeitado e preservado. Assim, a visão da integrada da relação sociedade-natureza é fundamental para sustentabilidade do homem, enquanto sujeito imbricado nessa relação. Nessa perspectiva Lowy afirma: A crise ecológica, ao ameaçar o equilíbrio natural do meio ambiente, põe em perigo não apenas a fauna e a flora, mas também e, sobretudo, a saúde, as condições de vida, a própria sobrevivência de nossa espécie. [...] o combate ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 107 para salvar o meio ambiente, que é necessariamente o combate por uma mudança de civilização, é um imperativo humanista, que diz respeito não apenas a esta ou aquela classe social, mas ao conjunto dos indivíduos (2005, p. 73). Vê-se que não se trata de uma ação sobre a “natureza”, mas sobre o homem, pois é da consciência ecológica e humanista dele que irá se desencadear suas ações, interações com o meio ambiente e com ele próprio, a partir do momento em que ele se veja no outro. Daí a necessidade apriorista da educação ambiental, ainda que muitas vezes, seja ensinada de forma equivocada, no sentido de mostrar para o estudante uma visão dicotomizada da relação homemnatureza, na qual a natureza aparece como vitimizada, “coitadinha”, frágil e que precisa ser cuidada, quando deveria ser apresentada de forma que o aluno se veja como sujeito imerso na teia de relações do contexto natural. Atualmente, a discussão ecológico-ambiental tomou corpo e é discutida em todo mundo. A relação capitalista, aliada aos meios de comunicação, se colocou ao lado de ambientalistas, mas nos resta analisar como é possível conviver com as contradições dessa relação, uma vez que o consumo é incitado a cada segundo, pelos mesmos meios de comunicação que são “manipulados” pela lógica contraditória e desigual das relações capitalistas. Nessa perspectiva, Miguel Grinberg, no livro Ecofalacias, El poder transnacional y la expropriacíon del discurso “verde” (2012) observa essas atitudes, criticando a omissão com a preocupação ambiental, perpetrada pelas grandes empresas e pelos meios de comunicação, sendo necessário que a questão ambiental assumisse foro mundial para que tal omissão começasse a ser revista, é preciso observar, no entanto, que há uma hipocrisia e um simulacro por parte das citadas partes. Desse modo ele diz que: Ahora, el discurso predominante corre por cuenta de poderosos consórcios transnacionales que promoven – para sobrellevar la transicíon hacia uma era de “desarrolho sustentable” – uma panacea universal: el capitalismo verde. Que trata de maquilar um acumulo de falácias a fin de dissimular uma antiga plaga corporativa: la dependência de los pueblos excluídos de los privilégios de uma supuesta “sociedade de consumo” disenada para minorias privilegiadas (p. 11). Vê-se que há uma manipulação discursiva intencional para que o humano se mantenha num mundo ilusório, no qual o sujeito é levado a pensar que está inserido virtuosamente no mundo “sustentável” quando, na verdade, não passa de massa de manobra, em que são criadas mimeses da natureza para a obtenção, exclusivamente, de lucro. Do mesmo modo, o discurso utilizado em prol do meio ambiente não condiz com a prática cotidiana, pois se compromete com uma falsa aliança, um disfarce, para esconder a depredação da natureza pela transformação massiva de recursos naturais, em bens de consumo. ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 108 Segundo o citado autor, o que se evidencia é um acúmulo de falácias que não se sustentam nas ações. Ele questiona as estruturas capitalistas e as transformações ambientais, ao passo em que mostra como o crescimento econômico pregado, na prática, provoca, por outro lado, um subdesenvolvimento, em virtude do esgotamento dos recursos naturais, a exemplo dos minerais e do solo. Neste processo está inserido, também, a contaminação biológica, representada pelos diversos agentes de veiculação de enfermidades, seja do homem, dos animais e dos vegetais. O argentino, como um dos estudiosos dos impulsos evolutivos da consciência humana, usa uma linguagem objetiva e direta e “ataca”, enfaticamente a falsidade ideológica debitada como ônus para a sociedade, pela espúria aliança constituída pelos grandes conglomerados capitalistas, por parte de alguns setores da mídia e pelo estado que se associam em torno de interesses “menores”, frente às desigualdades e contradições das relações capitalistas. Em consonância com o pensamento de Grinberg, a ecofeminista russa, Charlene Spretnak, entre outros questionamentos, pergunta: “Como pudimos, durante tanto tiempo prestar tan poca atencíon a la continua degradacíon de nuestro hábitat”? (1992, p. 17) A autora, no livro Estados de Gracia – como recuperar o sentido para uma modernidade ecológica, mostra, de forma crítica e com uma linguagem, muitas vezes, mordaz, os enganos cometidos por todos os povos e, ao mesmo tempo, as falsas promessas de uma modernidade equivocada, como se evidencia no trecho, a saber: La creencia “natural” de la era moderna, aquella que otorga a la economia el lugar de fuerza rectora subyacente a todas las demás actividasdes humanas, puede llevarnos a suponer que el materialismo es el credo de la modernidad. Sin embargo los Estados Modernos, tanto capitalistas como socialistas, han com petido entre sí por imponer un industrialismo depredadorde la base matéria de la vida: el aire, el suelo y el agua (1992, p. 18). Vemos que a opinião da autora sobre a união majoritária do capitalismo, do Estado e da mídia, se coaduna com o pensamento de Grinberg, assim como também a visão da autora sobre a hipocrisia dos países ditos socialistas, a exemplo da China, que têm se firmado através de promessas de prosperidade, em geral, alcançadas com a exploração de mão de obra barata, advinda das classes sócias de menor status econômico. A autora também questiona o olhar desconstrutivista que tende a fragmentar tudo, levando a uma concepção divisionista de homem e mundo. Ela observa o homem pós-moderno que, ao tempo em que prega a defesa da natureza, a qual ele concebe fora de si, através de atitudes emblemáticas, esse homem parece não perceber que é formado por cada componente da natureza. Alguns jovens, em particular os universitários, muitas vezes seguem movimentos ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 109 e fazem discursos no intuito de permanecerem em pretensamente atualizados, especialmente naquilo que estiver em evidência, seja na perspectiva cientificista, ou no puro modismo alienante, ou seja, vale o que é massivo nas práticas pós-moderna, de tempos efêmeros. Em pouco tempo, esses mesmos jovens podem desenvolver atitudes vulneráveis, porque não estão sendo preparados de forma consciente, enraizados em sistemas culturais perenais, apenas são levados cegamente pela “maré” do modismo pós-moderno. Nesse contexto, Charlene incita uma visão cósmica em que o indivíduo seja visto como aquele que é formado por elementos naturais. Assim ela coloca que: Toda la experiência y el conocimiento de la humanidade se insertan dentro de las manifestaciones evolutivas del universo, uma comunidade de seres, interactiva y geneticamente vinculada. Nuestro clan, que incluye todo lo que abarca nuestro sistema solar, descende de uma bola de fuego. Los elementos que componen nuestro cuerpo son los miesmos que se encuentram em los áboles, rocas, zorrinos y riachos [...] (1992, p. 23). A autora reconhece que existem dois tipos de pós-modernismo: o da desintegração, que consiste na degradação de valores e forma numa cultura autodestrutiva; e o ecológico que em que ocorre a vinculação de todos os seres em uma linhagem cosmológica. Dessa forma, ela observa, que ao se aproximar da consciência de unidade em que percebemos não só a nós, mas também ao outro e tudo que está ao redor nós entramos em um estado de Graça. A visão social é abissal e, segundo Boa Ventura de Souza Santos (2010), o mundo pode ser dividido em duas partes: a hegemônica sociedade dominante e os espaços de horror e de morte como os lixões, as favelas, as condições insalubres dos moradores de rua. Dessa forma, esses espaços se tornam espaços de resistência, abrindo uma heteronímia, compactuando aqui com a visão Foucaultiana (2001), pois são essas complexas relações que estabelecem as desigualdades que acabam socializando para todos os deveres e obrigações, restando, apenas para alguns os direitos benquistos. Dividem-se assim diferentes mundos que coexistem em um mesmo espaço, porém, separados por fronteiras, representadas por relações de poder disforme, em suas complexas formas de atuação. Em um contexto mundial, Luc Ferry, em A nova ordem ecológica (2009), mostra o comportamento da humanidade através dos tempos, com relação aos elementos naturais. Comunidades cristãs que acreditam serem, estes seres, criação de Deus e sua estada na terra, permissível por ele. O autor relembra histórias em que comunidades buscam ajuda dos representantes da Igreja para o afastamento de pragas. Isso mostra que o respeito à natureza vinha de uma crença de que ela pertencia a Deus, ou seja, Deus domina a natureza e se ela for molestada poderá, o molestador, ser punido por ele. Vê-se que não era a consciência de não ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 110 maltratar outros seres que levavam as pessoas a não atentarem contra outros elementos naturais, mas o temor ao castigo de divinos. O autor observa que, na contemporaneidade, criaram-se leis para assegurar os direitos do homem, da criança, da mulher, do negro e do índio. Assim, quem sabe haja a possibilidade de se criar leis, mas efetivas, que possam defender os direitos de outros elementos, (nos referimos aos vegetais e minerais), só que agora para a proteção contra as ações do próprio homem que, como uma praga, vem dilapidando incessantemente tais elementos. Assim, não só o homem teria direitos jurídicos efetivos. Daí porque a questão: se o homem que tem em seu favor a voz da razão para lhe garantir defesa, como o restante da natureza poderia se defender do próprio homem? Uma boa alternativa seria o homem encontrar no alto de sua razão, algum refinamento no seu senso de justiça, se voltando para colaborar com o equilíbrio natural, não pelo interesse próprio (humano), mas pela própria condição holística que é intrínseco as relações naturais, ou seja, na perspectiva da proteção da diversidade biológica e criação de um estatuto da natureza. Como argumento, Ferry usa as palavras de Marie Angeles Hermite (1988), quando ela diz: Se faz de uma zona, escolhida de seu interesse como ecossistema, um sujeito de direito, representado por um comitê ou uma associação encarregada de fazer valer seus direitos sobre si mesma, ou seja, seu direito de permanecer como estava ou seu direito de passar para uma condição superior (FERRY, 2009, p. 23). Ferry coloca o humanismo “entre parênteses” quando questiona onde termina o direito de um e começa o direito do outro, entre o humano e o não-humano, ou seja, “trata-se de saber se o homem é o único sujeito de direito ou ao contrário, se o que chamamos hoje de “biosfera” ou “ecosfera” e que no passado chamávamos de Cosmos também o é” (p. 24). Para o citado filósofo, em se tratando de modernidade, em que o homem está imerso nos aparatos tecnológicos, fica difícil para ele renunciar a condição de superioridade, por mais artificial e desnaturado que seja. Por isso se torna tão difícil refletir sobre ecologia contemporaneamente, pois as diversas filosofias que embasam essas discussões encaram-na de formas diferentes, porque se juntam construções do passado e do presente, criando, muitas vezes, adversários fictícios. Nesse sentido, Ferry afirma que existem hoje três direcionamentos sobre o pensamento ecológico atual. O primeiro tem como princípio a proteção da natureza para que o humano possa viver sem degradar o ambiente, no entanto, esse princípio deixa evidente a visão fragmenta. O segundo direcionamento é o utilitarista, ou seja, o uso pela necessidade, mas ao mesmo tempo vê que é necessário também o bem-estar de tudo que está no mundo em que, segundo ele: “todos ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 111 os seres suscetíveis de prazer e dor devem ser tidos como sujeitos de direitos e tratados como tais” (2009, p. 30). Desta forma, o animal passa a se incluir na seara das discussões ético-moral, assim como os homens. Porém, ao analisar essa questão encontramos um paradoxo: se o animal tem direito a vida, porque continuamos a criar algumas espécies em larga escala com o fim único de alimentar o humano? O que nos faz escolher entre o bovino e o canino, o felino e um ovino, porque uns são eleitos para preservação e outros para alimentação? Sendo assim, até onde se estende a ética e a moral nas relações entre o homem e o animal, inconsciente de ser? Seria apenas uma questão cultural? Deixemos que o nosso leitor reflita sobre essas questões e chegue as suas próprias conclusões. A terceira ecologia colocada por Ferry é a Ecologia profunda, que defende, por exemplo, o direito da árvore, ou seja, que o ambiente natural não pode ser sacrificado em prol de um humanismo egoísta e cego. Tal princípio é sustentado por movimentos “alternativos”, na Alemanha e EUA e tem defensores como Aldo Leopold nos EUA, considerado o pai da Ecologia profunda; Hans Jonas, na Alemanha, que tem trabalhos como Principe responsabilitê (1979) e o Frances Michel Serres. Essa concepção ecológica defende que o homem deve ser protegido de si mesmo e que o universo como um todo deve se tornar sujeito de direito. Ferry observa o contexto da ecologia profunda da seguinte forma: “Precisamos dar um passo suplementar, levar finalmente a sério a natureza e considerá-la dotada de um valor intrínseco que exige respeito” (2009, p. 122). Isso não deve acontecer somente porque somos racionais e a natureza, ao contrário, um ente irracional e frágil. A questão é outra: como proteger a natureza como tal, pois descobrimos que ela não é uma simples matéria bruta, maleável e sujeita a exploração incomensurável do homem. Na verdade, trata-se de um sistema complexo, cujo equilíbrio depende da manutenção da biodiversidade dos ecossistemas, em que pese o excessivo uso dos estoques de recursos naturais que tem tendido a exaustão, numa “situação limite”, como diria o filósofo da antiguidade grega, Heráclito. Os Postulados de Ferry, em defesa da questão ecológica, nos reporta a Felix Guatarri e à obra As Três ecologias, (2005), na qual ele sugere três aspectos que precisam ser (re)vistos nos estudos ecológicos, por acreditar que há distorções no pensamento político e nos processos em que o homem opera as relações ambientais. Para ele, tratam o problema numa perspectiva parcializada e tecnocrata, o que impede uma visão mais completa, em benefício, do entendimento e resolução dos problemas fundamentais da ecologia. Nessa perspectiva, Guatarri afirma que há três direções a serem seguidas pela perspectiva ecológica: “o meio ambiente, as ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 112 relações sociais e a subjetividade humana”. Dentro da perspectiva da “Ecosofia” proposta por ele o meio ambiente segue outro rumo, o da reciprocidade de relações, opondo-se, dessa forma, as contradições das relações capitalistas. Percebe-se assim que, enquanto Guatarri propõe um olhar heterotópico, que veja a ecologia globalmente, num mundo em que todos os seres possam viver bem como ele mesmo afirma: “Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica, a não ser em escala planetária e com a convicção de que se opere uma autêntica política social e cultural, reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais” (2005, p. 9); Ferry segue os passos do seu conterrâneo, (uma vez que a primeira edição de As Três ecologias é de 1990), observando os direcionamentos dos pensamentos ecológicos existentes na contemporaneidade e discutindo sobre eles. Guatarri observa ainda que a subjetividade humana não se estrutura separadamente das relações sociais, assim como todo contexto tecnológico e econômico fazem parte da vida humana, influenciando os outros dois aspectos. A natureza é o homem assim como ele é a natureza por isso: Mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura [e da Literatura] e precisamos aprender a pensar “transversalmente” as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referências sociais e individuais e [Simbólicos]. Tanto quanto algas mutantes e monstruosas invadem as águas de Veneza, as telas de televisão estão saturadas de uma população de imagens e de enunciados “degenerados” (GUATARRI, 2005, p. 25). Esse autor comunga também com a ideia de que a mutação técnico-científica e o exacerbado crescimento demográfico podem acarretar a degradação da humanidade, através do desemprego, da marginalidade, da ociosidade, da solidão, da angustia e da neurose que é a síntese da degeneração mundana, trazendo a sensação de que o mundo desmorona celeremente. Levando a discussão para o campo da educação ambiental hoje, Marcos Reigota, um dos precursores dessas ideias, ainda nos anos 70, mostra a importância da educação para o meio ambiente, diante da ameaça do desequilíbrio ambiental. Para o autor, a educação, nesse sentido, dará, ao sujeito, uma nova concepção de mundo e de ser. Assim ele afirma que: A educação ambiental deve procurar estabelecer uma “nova aliança” entre a humanidade e a natureza, uma “nova razão” que não seja sinônimo de autodestruição e estimular a ética nas relações econômicas, políticas e sociais. Ela deve se basear no diálogo entre as gerações e culturas em busca da tripla cidadania: local, continental e planetária e da liberdade na sua mais completa tradução, tendo implícita a perspectiva de uma sociedade mais justa, tanto no nível nacional quanto internacional (2002, p. 11). ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 113 Acrescentamos nesse leque de relações citados por Reigota, as formas de pensar e de agir estimulados pela educação ambiental, pois essa apresenta grande potencial operativo e interpretativo no sentido de pensar e agir sobre os problemas das relações entre sociedade e natureza, em todas as escalas e situações, indo do particular ao universal. Em Almeida (2008) vemos que esse processo é mediado pela altercação dos processos formativos, de vez que, segundo a autora, a natureza em si deve ser uma prioridade, principalmente, nesse período de conturbadas dissociações de valores. Assim, o nosso olhar se restringe ao próprio egoísmo, de ver apenas o que está diretamente ao alcance dos olhos. Nesse sentido, a educação amplia a lente do nosso olhar através dos recursos formativos, na perspectiva da forma, estrutura, processo e função no processo de construção de conhecimentos. Assim, encurta-se esse espaço de tempo, permitindo-nos ver o mundo ontem, hoje e amanhã, observar a atualidade de problemas pretéritos que ainda se fazem presentes e problemas futuros que dependem do presente e outros que nos servirão de exemplo para possíveis soluções. Para Felix Guatarri é necessária uma visão holística do universo que leve o homem a conscientização de si em relação ao mundo e o aguçamento da criticidade de jovens e adultos em relação à indústria do consumo, que nos cerca por todos os lados. Em Caosmose (2000) o filósofo leva o leitor para dentro do supermercado, e mostra a miserabilidade em que se encontram as relações sociais de consumo. Para ele, esse ambiente, além de ser um símbolo do consumismo, é também um lugar onde se impede as aproximações humanas. Nesse espaço o consumidor tem um único objetivo: consumir, e não deve ser “atrapalhado”, não pode sair do foco e por isso ele é isolado do contato oral com as pessoas, como ele bem o mostra: No supermercado não há mais tempo de tagarelar para apreciar qualidade de um produto, nem de pechinchar para fixar seu justo preço. A informação necessária e suficiente evacuou as dimensões existenciais de expressão. Não estamos mais lá para existir, mas para realizar nosso dever de consumidor (p. 115). Percebe-se um espaço em que tudo é programado para um determinado objetivo: o consumo. O simulacro criado com a ideia de que o cliente é bem atendido quando tem ao seu alcance visual todas as informações que precisa desde que saiba ler. É uma maneira de evitar o contato, ou melhor, a distração. É como se o consumidor fosse um boneco que age exatamente como está previsto pelos articuladores do consumo. As pessoas não se comunicam, há sempre uma intermediação através de placas, rótulos, quadro de avisos, panfletos, entre outros. Atualmente o humano, negando a si mesmo e, portanto, ao outro vai se cercando cada vez mais de aparatos técnicos, informacionais e maquinarias. Isola-se em pequenos cubículos ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 114 urbanos, limitando-se a uma espécie de ostracismo involuntário, sendo que sequer conhecem outras realidades, inclusive as relações sociais que se dão no campo, sendo, dessa forma, reificado aos poucos. Assim, para se pensar o homem nesse contexto de “Caosmose” é preciso pensá-lo em suas necessidades e individualidades psíquicas, culturais, sociais juntamente com as suas experiências pessoais a jusante de suas vivências e percepções, já que hoje, não só a natureza, mas também o homem é visto cartesianamente. Vale ressaltar ainda, a forma como a mídia vem atuando sobre o contexto ambiental, sendo um dos principais impulsionadores de sentidos e significados, que lhe são atribuídos. Assim, a vida das pessoas pode se transformar em questão de minutos, seja para o bem ou para o mal, consoante o interesse econômicos e ideológicos dos que estão por trás do contexto midiático. A televisão entra em nossas casas e em nossas vidas e influencia o nosso modo de pensar e agir, dita o que e como consumir e influencia diretamente na vida de crianças, adolescentes, jovens e adultos, fatos que nos levam a observar como alguns programas têm contemplado a temática da natureza, ecologia e meio ambiente em suas reportagens. Ressalta-se aqui que não nos comprometemos com uma análise profunda sobre estes programas, mas em fomentar uma discussão a respeito do que a TV aberta brasileira apresenta sobre a natureza em seus programas. Marilena Chauí em Simulacro e poder, uma análise da mídia (2006) esclarece alguns pontos escusos que ficam entre a realidade e a representação da realidade que é levada ao telespectador pela TV. Ela mostra o que é o simulacro e como é criado para atingir aos interesses de quem o leva ao público, interesses que refletem as intencionalidades daqueles que se escondem por trás das câmeras. Chauí diz que isso ocorre em tudo que é mostrado pela TV, desde o comercial, passando pela novela até o programa jornalístico e eventos em geral. Seguindo essa linha de raciocínio, percebe-se que em alguns programas ligados à natureza, a impressão que se tem é de estarmos assistindo a um grande espetáculo em que os elementos naturais (animais principalmente) são os atores. Em programas como Globo repórter e SBT repórter, por exemplo, não se vê a devastação nem as matanças de animais. A maioria dos programas apresenta uma natureza linda, preservada, maravilhosa e para ser admirada, contemplada, uma vez que é, primeiramente, através dos olhos que se prende a atenção do telespectador. Assim, tudo é mostrado como se a natureza estivesse em um quadro em movimento para ser apreciado a distância. As formas como as várias espécies de animais são mostradas retiram do indivíduo qualquer possibilidade de aproximação, são pontos de natureza intocada mostrada ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 115 como realidades, fatos que compactuam com o que Diegues (1998) chama de “Mito moderno da natureza intocada” que, segundo ele, são lugares fechados pelas autoridades ambientais para preservação e mostrados como naturais quando na verdade o fato de fechá-la já tira a naturalidade, tal é o caso dos parques ou reservas florestais já modificadas pelo homem. Neste contexto, os programas mantêm um discurso estático, que enseja a percepção do telespectador de modo que ele seja receptor de algo que está fora de si. Ressalta-se que o mencionado programa, tanto o do SBT quanto os da Globo, são exibidos na sexta-feira à noite, depois de uma semana de trabalho e de stress e de uma jornada de aula, funcionando assim como um alento, um relaxamento. A natureza linda e sem problemas é ideal para que o indivíduo perceba todo o prazer e bem-estar que a televisão, especialmente esses programas, pode proporcionar. Quando esses programas se dispõem a mostrar a devastação ou a matança de animais direcionam a visão do telespectador a um indivíduo, camuflando a raiz do problema. Para apresentar a matança dos jacarés, marcam a crueldade da figura do caçador de jacarés, não mostram os verdadeiros beneficiados com a morte dos bichos: as indústrias de bolsas, casacos e calçados e também alguns consumidores endinheirados que pagam fortunas para ostentarem seus bens de consumo, sem se perguntar quantos animais tiveram que morrer para ele satisfação do ego. Percebe-se que esse processo de espetacularização da natureza, disseminado em grandes proporções pela TV, já havia sido iniciado antes pelas revistas fotojornalísticas como assevera Muniz Sodré: A imagem feita da natureza brasileira é quase sempre de um país a descobrir ou em vias de construção. A paisagem virgem é revelada a maneira do descobridor, como se sua simples penetração pelo repórter e a consequente cobertura fotográfica marcassem automaticamente um fato de grande importância para o Estado e para a nação [...] A geografia nacional que, conhecida através de uma viagem real pode se revelar bastante inóspita e miserável, é um espetáculo colorido nas páginas das revistas (1992, p. 49-50). Muniz Sodré diz sobre as revistas o que queremos expressar sobre o contexto televisivo. É só observar que até a vida do povo nordestino, quando afetado pela seca, aparece como um espetáculo para conhecimento de outros, como se aquilo fosse uma situação unicamente determinada pela natureza e ninguém pudesse fazer nada para resolver. São situações tratadas com paliativos, muitas vezes através de campanhas para arrecadação de dinheiro e mantimentos para os “pobrezinhos” e flagelados, tirando dessa gente, a dignidade e sua autonomia do trabalho e da própria subsistência e, isentando da responsabilidade, aqueles que “vampirizam” o povo, incluindo aí, tanto os entes públicos quanto as estruturas privativas do capitalismo. ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 116 Note-se que os jornalistas desses programas giram o mundo sempre com o papel de intermediário entre o homem (telespectador) e a natureza, enfatizando, mais uma vez, a dominância da mídia. Ela aparece como um narrador autônomo que possui “poder” sobre seus personagens e todos os outros elementos por ele apresentados, dando ao telespectador uma falsa comodidade, conforme interesses estéticos, ideológicos e econômicos, predeterminados. Nesse sentido, lembramos a fala de Walter Benjamim (1994, p. 63) quando diz: “A tendência dos narradores é começarem sua história com uma apresentação das circunstâncias em que eles mesmos tomaram conhecimento daquilo que segue, quando não as dão pura e simplesmente como experiência pessoal”. Tais artifícios são encontrados nas narrações nos programas de TV que, para dar mais dinâmica e veracidade ao que é dito e mostrado, torna-se essencial o papel do narrador e o repórter que acompanha as notícias in lócus e passa-as para o apresentador, que assume a atribuição de um narrador testemunha, acima de qualquer suspeita. Na verdade, esse tipo de apresentação jornalística já é de “praxe” em todas as notícias, por mais curtas que sejam, em qualquer emissora. É interessante perceber que, nesses programas, a relação homem natureza é estruturada separadamente. O homem vê o meio em que vive, em geral, como o lugar da prosperidade econômica. A conservação ambiental, quando ela é adotada como prática, é mostrada apenas para benefício do homem e não pela natureza em si. Esse aspecto comunga com o que diz Ferry (2009), citado anteriormente, sobre a primeira ecologia em que tudo que é feito e pregado em prol de uma preservação ambiental, é pensando exclusivamente no humano. Dessa forma, vêse que esses programas televisivos ainda estão muito longe da ecologia profunda, observada por Ferry, de pensar a preservação como respeito e irmandade aos outros elementos naturais: os não-humanos, ou seja, dos “direitos da árvore e dos animais e dos minerais”. 4. Considerações Finais Dado os limites a que se propõem esse artigo, não foi fundamental aqui desenvolver postulados que dessem conta da enorme gama de questões que entremeiam os sentidos e significados atribuídos ao meio ambiente, mas demonstrar como a natureza se apresenta à percepção humana, especialmente no contexto das influencias técnicas e científicas, que têm caracterizado a história do presente em uma sociedade internacionalizada. Observamos, a priori, que são muitas as possibilidades de entender os sentidos e significados que ensejam reflexões básicas que envolvem o meio ambiente, sendo importante ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 117 ressaltar pelo menos uma questão comum aos fundamentos que estabelece sentido semântico ao termo: uma perspectiva interna e outra externa, situando-se a primeira no âmbito da aparência, daquilo que as nossas sensações nos transmite, de imediato. A segunda, podemos denominar de essência, a qual é alcançada sublimando a nossa capacidade reflexiva, eivada pela reflexão virtuosa, capaz de perceber aquilo que se esconde por trás das atitudes, materializadas em nossas ações e intenções. Outra questão com a qual nos deparamos envolve o debate político. Nesse ponto, ressaltamos o papel de Chico Mendes pelo seu pioneirismo na defesa dos povos tradicionais da floresta. Concluímos esse tópico demonstrando que dificilmente se chega a um conceito acabado de meio ambiente, dada a inúmeras perspectivas que envolvem o debate ambiental, perspectivas essas, que nos levam geralmente a estabelecer deduções sobre processos naturais e não naturais. Refletimos também, sobre dinâmica ambiental, em sentido mais amplo, dado que ela não é composta apenas de matéria bruta, maleável e sujeita a exploração incomensurável do homem. Na verdade, trata-se de um sistema complexo, cujo equilíbrio depende da manutenção da biodiversidade dos ecossistemas, em que pese o excessivo uso dos estoques de recursos naturais que tende a se exaurir, ou seja, chegar numa “situação limite”. Discutimos ainda, o papel da educação ambiental, pois através dela ampliamos a lente do nosso olhar. Contando, para tal intento, com a mediação do educador ambiental que deve assumir a posição de orientador dos processos formativos, para que o estudante, seja ele próprio, o analista e/ou crítico dos processos interpretativos que lhe rodeia, tendo em vista que a aprendizagem não se dá diretivamente, mas também e através de exemplos, comportamentos e ações. Ressaltamos por fim, o influxo produzido pela mídia, sobretudo a televisiva, haja vista que ela tem exercido forte influência nos processos de aquisição de bens de consumo, principalmente através de alguns programas de TV, cuja programação contempla a temática de natureza, ecologia e meio ambiente em suas reportagens. Ressalta-se que não nos comprometemos com uma análise profunda sobre estes programas, mas em fomentar uma discussão a respeito do que a TV aberta brasileira apresenta sobre o meio ambiente. 5. Referências ALMEIDA, Maria do Socorro P. de. Literatura e Meio ambiente: Bichos de Miguel Torga e Vidas secas de Graciliano Ramos sob a visão ecocrítica. Dissertação (Mestrado) Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande – PB, 2008. ALMEIDA, Maria do Socorro Pereira de; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de Revista GeoSertões (Unageo/CFP-UFCG). n. 1, vol. 1, jan./jun. 2016 http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index 118 BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política, Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. CARVALHO, Isabel C. de Moura. Educação ambiental, a formação do sujeito ecológico. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. _____. Educação ambiental, a formação do sujeito ecológico. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2008. _____. A invenção ecológica, narrativas e trajetória da educação ambiental no Brasil. 2ª ed. Porto Alegre: UFRGS, 2002. CARVALHO, Marcos. O que é natureza. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2003. CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. 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