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SOBRE LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS Trad. A. Carone

1899, Sobre Lembranças Encobridoras (Sigmund Freud)

"Sobre Lembranças Encobridoras" (Sigmund Freud). Apresentação, Tradução e Notas de André Carone

Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) Sobre lembranças encobridoras (1899) Sigmund Freud Apresentação, tradução e notas de André Carone1 Maio de 2020 1 Professor do Departamento de Filosofia da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). 1 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) APRESENTAÇÃO Em setembro de 1899, dois meses antes que fosse lançada A interpretação dos sonhos, uma revista médica publicou este artigo no qual Sigmund Freud busca uma resposta para a pergunta: por que a nossa memória costuma registrar lembranças infantis que parecem ser banais e sem qualquer importância? Ao lado de algumas considerações gerais a respeito da psicologia da memória e do método psicanalítico que ele mesmo havia recém criado, Freud investiga em detalhe a lembrança infantil de um homem de trinta e oito anos de idade2, que recorda uma cena na qual ele colhia flores amarelas (“dentes-de-leão”) ao lado de um primo e de uma prima quando teria apenas dois ou três anos de idade, para formular a partir desta análise o conceito de “lembranças encobridoras”. Ao final deste texto encontra-se um conjunto de notas que podem ser consultadas por psicanalistas ou leitores que queiram algum esclarecimento a respeito desta versão para o português. Esta tradução é dedicada a Iray Carone. André Carone São Carlos, maio de 2020. Pesquisas biográficas revelaram mais tarde que este “homem de trinta e oito anos” era na verdade o próprio Freud, que encenava uma conversa consigo mesmo. 2 2 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) SOBRE LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS (1899)i Sigmund Freud No contexto de meus tratamentos psicanalíticos (de histeria, neurose obsessiva, entre outros) ocupei-me muitas vezes com fragmentos de lembranças dos primeiros anos de infância que permaneceram na memória de uma pessoa. Conforme indiquei em outra parte, deve-se atribuir um significado patógeno considerável às impressões deste período. Mas o interesse psicológico do tema das lembranças infantis está assegurado em todos os casos, pois a diferença fundamental entre a atitude psíquica da criança e do adulto aparece aqui de modo evidente. Ninguém duvida que as experiências dos nossos primeiros anos de infância deixaram traços inextinguíveis no interior de nossa alma; mas se consultarmos nossa memória a respeito das impressões que estão destinadas a nos influenciar até o final da vida, ela ou nos apresenta nada ou então um número bastante pequeno de lembranças isoladas, de valor muitas vezes questionável ou enigmático. A vida não começa a ser reproduzida pela memória como uma cadeia coerente de eventos antes do sexto ou sétimo ano, e para muitos somente após o décimo ano de idade. Mas a partir deste ponto também se estabelece uma relação constante entre o significado psíquico de uma experiência e sua retenção pela memória. Aquilo que parece importante, por seus efeitos imediatos ou subsequentes, é notado; aquilo que se considera dispensável é esquecido. Quando sou capaz de recordar um evento que se passou há muito tempo, encontro no fato desta preservação da memória uma prova de que ele provocou em mim uma forte impressão naquele momento. Costumo me surpreender se esqueço alguma coisa importante, e talvez mais ainda se recordo alguma coisa que parece indiferente. A relação entre a importância psíquica e o registro de uma impressão pela memória que vigora nas pessoas adultas normais só cessa novamente em estados anímicos patológicos. O histérico, por exemplo, apresenta regularmente uma amnésia em relação à totalidade ou a uma parcela das experiências que conduziram ao início do seu sofrimento e que podem tornar-se importantes para ele precisamente porque o desencadearam ou, desconsiderando este fato, por 3 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) seu próprio conteúdo. Gostaria de considerar a analogia entre a amnésia patológica e a amnésia normal dos nossos anos de infância como uma indicação valiosa a respeito das íntimas relações entre o conteúdo psíquico da neurose e nossa vida infantil. Estamos acostumados de uma tal maneira a essa ausência de lembranças do anos de infância que deixamos de perceber o problema que se esconde por trás dela, e preferimos relacioná-la ao estado rudimentar das atividades anímicas presentes na criança. Na realidade, uma criança de três ou quatro anos com desenvolvimento normal já exibe uma enorme quantidade de atividades anímicas de grande complexidade em suas comparações, raciocínios e na expressão de seus sentimentos, e não se pode simplesmente concluir que para estes atos psíquicos, de valor semelhante ao dos atos de uma época posterior, deva vigorar a amnésia. Uma condição indispensável para o estudo dos problemas psicológicos que se ligam às primeiras lembranças infantis seria naturalmente a coleta de materiais, para determinar por meio de uma consulta quais são os tipos de lembranças que a maior parte das pessoas adultas normais está em condições de informar. V. e C. Henriii deram um primeiro passo nesta direção ao divulgar em 1895 um questionário que eles próprios elaboraram; os resultados animadores desta consulta foram publicados em seguida pelos dois autores em 1897, em L’année psychologique, T. III (Enquête sur les souvenirs de l’enfance). Como não tenho neste momento qualquer intenção de abordar o tema em sua totalidade, contento-me em destacar os poucos pontos a partir dos quais irei avançar para introduzir aquelas que eu denomino como “lembranças encobridoras”. O período da vida no qual o conteúdo das lembranças infantis mais precoces será alocado iii corresponde geralmente à idade entre dois e quatro anos (de acordo com oitenta e oito pessoas na série observada pelos Henri). Mas para algumas a memória recua ainda mais, alcançando o período anterior ao primeiro ano completo, e de outro lado existem pessoas para quem a primeira lembrança é proveniente do sexto, sétimo ou até do oitavo ano. Por enquanto não é possível indicar outras conexões entre estas diferenças individuais; mas nota-se, afirmam os Henri, que uma pessoa cuja primeira lembrança pertence a uma idade muito precoce, como por exemplo o primeiro ano de vida, também possui lembranças isoladas de anos seguintes; e que a reprodução da experiência como uma cadeia sucessiva de lembranças se inicia para ela em um período 4 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) anterior – digamos, do quinto ano em diante – ao de outras pessoas cuja primeira lembrança incide em um período posterior. Portanto, é a função da memória individual no seu conjunto, e não apenas a época do surgimento da primeira lembrança que passa por uma antecipação ou um adiamento. Um interesse muito particular fica reservado à questão de saber qual costuma ser o conteúdo das lembranças infantis mais precoces. Deveríamos compartilhar com a psicologia dos adultos a expectativa de que, a partir da matéria vivida, seriam selecionadas aquelas impressões que provocaram um afeto intenso, ou cuja importância foi admitida em razão das consequências que logo se seguiram. Uma parte das experiências reunidas pelos Henri também parece confirmar esta expectativa, pois nelas se destacam como o conteúdo mais recorrente das primeiras lembranças infantis, por um lado, as situações de medo, vergonha, dores no corpo, etc.; e por outro, acontecimentos importantes como doenças, mortes, incêndios, nascimento de irmãos, etc. Ficaríamos assim inclinados a supor que o princípio de seleção da memória seria o mesmo para a alma infantil e para a pessoa adulta. Não escapa inteiramente à compreensão, mas merece ser expressamente indicado o fato de que as lembranças infantis que foram preservadas testemunham quais eram as impressões que orientavam o interesse da criança em comparação com o adulto. Deste modo explica-se com facilidade que uma pessoa informe recordar acidentes que envolviam as suas bonecas quando tinha dois anos de idade, mas apresente uma amnésia em relação a acontecimentos graves e tristes que ela poderia ter percebido à época. E agora deve nos causar uma justa estranheza escutar algo que representa o extremo oposto dessa expectativa: que o conteúdo das lembranças mais precoces da infância de certas pessoas é composto por impressões indiferentes que não tiveram a capacidade para despertar afeto nas crianças nem mesmo quando se deram as experiências, e que apesar disso foram percebidas com todos os detalhes – quase se diria: com uma acuidade extrema – enquanto acontecimentos do mesmo período não foram preservados pela memória, mesmo aqueles que, de acordo com o testemunho dos pais, afetaram fortemente a criança. Os Henri mencionam, por exemplo, um professor de filologia cuja lembrança mais precoce se situa no período entre três e quatro anos de idade e lhe mostra a imagem de uma mesa coberta, sobre a qual está uma travessa com gelo. 5 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) Neste mesmo período também acontece a morte da avó, que abalou muito a criança segundo o relato dos pais. Mas o professor de filologia de agora nada sabe a respeito desta morte; daquele período ele só recorda uma travessa com gelo. Um outro participante apresenta como sua primeira recordação de infância o episódio de um passeio no qual ele quebrava o galho de uma árvore. Ele acredita até hoje que pode indicar o local em que isso aconteceu. Diversas pessoas estavam ali e uma delas o ajudou. Os Henri identificam casos desse tipo como raros; nas minhas experiências – realizadas, na verdade, quase sempre com neuróticos – elas são bastante comuns. Para estas recordações que se tornam incompreensíveis por conta de sua inocência, um dos sujeitos da pesquisa dos Henri arriscou uma explicação que devo reconhecer como inteiramente precisa. Ele afirma que em tais casos a cena em questão talvez tenha sido preservada de uma maneira incompleta na memória, e justamente por isso ela parece não significar nada: nos componentes esquecidos estaria guardado tudo o que torna essa impressão merecedora de atenção. Posso confirmar que as coisas se passam realmente desse modo, mas talvez eu preferisse dizer “ocultos” no lugar de “elementos esquecidos da experiênciaiv”. Por meio do tratamento psicanalítico eu pude descobrir em diversas ocasiões as peças restantes da experiência infantil e apresentar assim a prova de que, depois que foi completada, a impressão da qual restava somente um torso na lembrança correspondia na verdade à condição para que o elemento mais importante permanecesse na memória. Mas não se chega dessa maneira a uma explicação para a escolha singular que a memória realiza entre os elementos de uma experiênciav. É necessário perguntar-se antes o que leva precisamente o elemento significativo a ser reprimidovi e o elemento indiferente a ser preservado. Só podemos alcançar uma explicação se penetrarmos mais a fundo no mecanismo de tais processos; e assim formamos a noção segundo a qual duas forças psíquicas participam do surgimento destas lembranças, uma delas com o propósito de recordar a importância dessa experiência, enquanto a outra – uma resistência – opõe-se a que ela seja destacada. As duas forças que atuam em oposição não cancelam uma a outra; não acontece a imposição de uma das intenções sobre a outra – com ou sem algum prejuízo – e sim uma ação de compromissovii, análoga em certo sentido à formação da resultante de um paralelogramo de forças. Na verdade, o compromisso consiste no fato de que 6 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) não será a experiência em questão que fornece a recordação – a resistência obtém aqui uma vitória – e sim um outro elemento psíquico, que se liga ao elemento que provoca repulsa por um curto trajeto de associações; e aqui se revela mais uma vez a força do primeiro princípio, que tentava fixar impressões significativas ao definir as recordaçõesviii que poderiam ser reproduzidas. O resultado do conflito é este: no lugar da recordação original e legítima produz-se uma outra, que deslocou-se na associação em relação à primeira por uma única peça. Como os componentes ix mais relevantes da impressão são precisamente aqueles que causaram repulsa, na lembrança substitutiva eles devem estar ausentes; por isso ela irá com facilidade parecer banal. Para nós ela parece ser incompreensível porque preferimos localizar no seu próprio conteúdo a razão para que ela fosse preservada pela memória, quando na verdade este motivo reside na relação entre este conteúdo e um outro, o conteúdo reprimido. Ou, servindo-me de um ditado popular, uma certa experiência da infância não brilha para a memória porque vale ouro, mas só porque está ao lado dele. Entre os vários casos possíveis de substituição de um conteúdo psíquico por outro que sucedem nas mais diferentes constelações psicológicas, o caso de lembranças infantis aqui observado, no qual os componentes secundários ocupam o lugar dos componentes fundamentais de uma mesma experiência, é evidentemente um dos mais simples. Trata-se de um deslocamento em uma associação por contiguidade ou, numa visão abrangente de todo o processo, um recalque com a substituição por um conteúdo que era próximo (no contexto temporal e espacial). Tive a oportunidade de comunicar certa vez um caso muito semelhante de substituição na análise de uma paranoia*3. Eu narrava ali as alucinações de uma senhora para quem as suas vozes repetiam longas passagens da “Heiterethei” de O. Ludwigx – precisamente os trechos mais inócuos e triviais da obra. A análise demonstrou que eram outros trechos dessa mesma história que haviam despertado na paciente os pensamentos mais dolorosos. O afeto doloroso era um motivo para a defesa, e não era possível recalcar os motivos para a persistência destes pensamentos; desse modo, estabeleceu-se como compromisso que os trechos inofensivos aparecessem na lembrança com nitidez e intensidade patológicas. O processo que foi identificado aqui – conflito, recalque, 3 * Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa. Neurologisches Zentralblatt, 1896, Nr. 10. (Nota do autor) 7 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) substituição sob formação de compromisso – reaparece em todos os sintomas psiconeuróticos, e nele encontra-se a chave para se compreender a formação do sintoma; sua demonstração a partir da vida psíquica do indivíduo normal não é, portanto, desprovida de significado; e a influência que este processo exerce precisamente sobre a escolha das lembranças infantis de pessoas normais parece ser mais um sinal das fortes ligações entre a vida anímica da criança e o material psíquico das neuroses que destacamos anteriormente. Até onde sei, os psicólogos sequer começaram a estudar os processos de defesa normal e patológica – cuja importância é evidente – e os efeitos de deslocamento que se seguem a eles, sendo que falta ainda determinar em quais camadas da atividade psíquica e sob quais condições eles se fazem valer. O motivo desse descuido pode muito bem ser o fato de que nossa vida psíquica, na medida em que se torna objeto de nossa percepção interna consciente, não deixa sinais destes processos, exceto em casos que classificamos como “erros de raciocínio” ou em operações psíquicas que visam um efeito cômico. A afirmação de que uma intensidade psíquica parte de uma ideia, que então é abandonada, e pode deslocar-se para uma outra que passa a desempenhar o papel psicológico da primeira, nos causa um estranhamento semelhante ao de certos aspectos da mitologia grega, como por exemplo quando os deuses vestem a beleza em uma criatura humana como se fosse um véu, enquanto nós reconhecemos a transfiguração apenas como uma mudança das expressões faciais. Mais adiante, novas investigações sobre as lembranças indiferentes da infância ensinaramme que o seu surgimento pode ocorrer ainda de uma outra maneira, e que por trás de sua inocência aparente costuma se esconder uma profusão insuspeita de significados. Mas quanto a isso não quero restringir-me simplesmente a afirmações, e sim explorar todo o alcance de um exemplo isolado que me parece ser o mais instrutivo entre vários semelhantes a ele, e que certamente possui um valor adicional por pertencer a um indivíduo que não sofre, ou que praticamente não sofre de uma neurose. Um homem de trinta e oito anos de idade e cultura acadêmica, que apesar de sua profissão distante conservou o interesse por questões psicológicas desde que eu o libertei de uma leve fobia por intermédio da psicanálise, chamou a minha atenção, no ano passado, para as lembranças 8 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) infantis que já haviam cumprido um determinado papel na sua análise. Depois que tomou conhecimento da investigação de V. e C. Henri, ele me apresentou este relato abreviado: “Eu disponho de uma quantidade considerável de lembranças precoces da infância, e posso datá-las com bastante segurança. Pois deixei o lugar onde nasci com três anos completos para viver em uma grande cidade; assim, todas as minhas lembranças se passam no local do meu nascimento e datam entre o segundo e o terceiro ano. Em sua maioria são cenas curtas, mas muito bem preservadas e compostas com todos os detalhes da percepção sensorial, em clara oposição às recordações dos anos de maturidade, nas quais o elemento visual está totalmente ausente. As lembranças se tornam mais escassas e perdem nitidez a partir do terceiro ano; aparecem lacunas que devem se estender por mais de um ano. O fluxo de lembranças só passa a ser contínuo, acredito, a partir do sexto ou sétimo ano. Divido as lembranças que antecedem a minha saída da primeira residência em três grupos. As cenas que mais tarde meus pais me contaram repetidas vezes formam o primeiro grupo; em relação a elas eu não sei ao certo se possuía a recordação desde o princípio ou se criei para mim uma composição depois de cada uma das histórias. Observo, além disso, a existência de incidentes que não correspondem a nenhuma recordação, apesar das inúmeras descrições dos meus pais. Atribuo um valor maior ao segundo grupo: são cenas que não foram contadas para mim – e que em parte também não poderiam ter sido contadas porque não voltei a encontrar as pessoas envolvidas: as amas-secas, os companheiros nas brincadeiras. Falarei mais adiante do terceiro grupo. A propósito do conteúdo destas cenas e, por consequência, de seu direito de ser preservado pela memória, quero declarar que não me falta por completo uma orientação sobre este ponto. Não posso dizer que as lembranças preservadas correspondam de fato aos acontecimentos mais importantes ou àqueles que hoje eu consideraria mais importantes. Do nascimento de uma irmã, dois anos e meio mais nova, eu nada sei; a partida, a vista da ferrovia, a longa viagem de carro que a antecedeu não deixaram nenhum vestígio na minha memóriaxi. Em contrapartida, registrei dois incidentes durante a viagem de trem; como o senhor lembra, eles compareciam na análise da minha fobia. Porém o que mais deveria ter me impressionado seria um ferimento no rosto, que me fez perder muito sangue e foi suturado por um cirurgião. Mesmo hoje eu ainda posso apalpar a cicatriz que comprova o acidente, mas não 9 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) sei de nenhuma impressão que aponte direta ou indiretamente para essa experiência. Além disso, talvez eu ainda não tivesse dois anos naquela época.” “Por isso, as cenas e imagens destes dois primeiros grupos não me surpreendem. São realmente lembranças deslocadas, nas quais o componente essencial na maioria das vezes permaneceu de fora; mas em algumas ele ao menos é aludido, em outras eu encontro o complemento com facilidade, e quando procedo dessa maneira forma-se para mim uma conexão satisfatória entre os pedaços isolados da lembrança e eu antecipo com clareza qual foi o interesse infantil que recomendou precisamente aquele evento para a memória. Mas no caso do terceiro grupo, que evitei discutir até esse momento, a situação é diferente. Trata-se aqui de um material – uma cena longa e várias imagens breves – sobre o qual eu simplesmente não sei dizer nada. A cena me parece bastante indiferente, e a sua fixação, incompreensível. Permita-me que eu a descreva para o senhor: eu vejo um prado retangular com um ligeiro declive, de vegetação verde e densa; em meio à relva várias flores amarelas, claramente o tão comum dente-de-leão. Na ponta mais alta do prado, uma casa de campo e duas mulheres que conversam com entusiasmo em frente à porta: a camponesa que usa um lenço sobre a cabeça e uma ama-seca. Três crianças estão brincando no prado, uma delas sou eu (entre dois e três anos de idade), as duas outras o primo um ano mais velho e a sua irmã, uma prima que tem quase a minha idade. Nós apanhamos as flores amarelas e cada um segura nas mãos as flores que recolheu. O ramo mais bonito está com a menina; nós, os meninos, nos atiramos em cima dela como se tivéssemos combinado e arrancamos as suas flores. Ela sai chorando pelo prado e lá no alto recebe da camponesa uma fatia de pão preto, como uma consolação. Logo que acabamos de ver isso nós atiramos as flores e também corremos até a casa para exigir o pão. Também recebemos o nosso, a camponesa serra a bengala com uma faca comprida. Na minha lembrança o sabor do pão é delicioso e aqui a cena se interrompe.” “Mas o que há nessa experiência que justifica o uso que fiz da memória por sua causa? Quebrei minha cabeça por causa disso sem chegar a nada; o acento deve cair sobre a nossa falta de civilidade em relação à menina? O amarelo do dente-de-leão, que eu naturalmente já não acho mais bonito, agradou tanto assim os meus olhos naquela vez? Ou será que depois das andanças 10 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) pelo prado o pão ficou tão mais saboroso que fez surgir uma impressão que não se extinguiu? Também não consigo encontrar ligações entre esta cena e os interesses infantis, que percebemos sem dificuldade e são comuns a todas as cenas de infância. Tenho a impressão geral de que alguma coisa não está certa nessa cena; o amarelo das flores se destaca em demasia do conjunto, e o sabor extraordinário do pão me parece um exagero, como se fosse uma alucinaçãoxii. E devo lembrarme aqui dos quadros que vi certa vez em uma exposição de paródias, nos quais certos elementos – evidentemente os mais impróprios – eram destacados em relevo em vez de serem pintados, como por exemplo os contornos das senhoras que eram retratadas. O senhor pode me indicar algum caminho que leve à explicação ou interpretação dessa lembrança dispensável da infância?” Achei que seria pertinente perguntar desde quando aquela lembrança infantil o ocupava, se ele acredita que ela retorna à sua memória depois de um período, ou se havia aparecido mais adiante, talvez por conta de alguma circunstância que a lembrasse. Esta pergunta foi a única contribuição que precisei fazer para dar fim à tarefa; meu parceiro, que não era mais um iniciante em trabalhos deste gênero, encontrou todo o resto por conta própria. Ele respondeu: “Não havia pensado nisso até hoje. Depois que o senhor me fez essa pergunta, tenho quase a certeza de que esta lembrança infantil não me ocupava de nenhum modo. Mas consigo pensar na circunstância que fez despertar essa e várias outras lembranças dos meus primeiros anos. Aos dezessete anos de idade, quando eu era um aluno de ginásio, voltei pela primeira vez ao lugar onde nasci, convidado por uma família com a qual possuíamos amizade desde aquele tempo. Sei bem quantas eram as agitações que me dominavam naquela época. Mas agora notei que preciso lhe contar um pedaço da minha história; isso é parte do trabalho, e além disso o senhor a fez ressurgir com a sua pergunta. Então, me escute: sou filho de pessoas que no princípio eram prósperas e, penso eu, viveriam suficientemente bem naquele pequeno recanto da província. Quando eu tinha aproximadamente três anos de idade, uma catástrofe abateu o ramo da indústria em que meu pai atuava. Ele perdeu suas posses e, premidos pela necessidade, deixamos a província para viver em uma cidade grande. Anos longos e difíceis vieram depois: não acredito que eles mereçam qualquer espécie de atenção. Na cidade eu nunca me senti bem; hoje eu penso que a nostalgia pelas belas florestas da minha terra, onde eu brincava de fugir do 11 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) meu pai quando ainda mal sabia andar, como atesta uma lembrança guardada daquele tempo, nunca me abandonou. Era a primeira vez que eu passava as férias no campo, aos dezessete anos, e como disse eu era o hóspede de uma família de amigos que tivera uma ascensão depois da nossa partida. Eu pude comparar o conforto que reinava entre eles com a vida que tínhamos na cidade. De nada mais serve continuar evitando o assunto: preciso admitir para o senhor que havia uma outra coisa que me agitava intensamente. Eu tinha dezessete anos, e na família que me hospedava havia uma filha de quinze anos de idade por quem eu me apaixonei imediatamente. Era a primeira vez que eu sentia o amor, com intensidade suficiente mas em absoluto segredo. A moça partiu alguns dias depois para o internato do qual ela havia igualmente saído de férias, e a separação logo após um encontro tão breve só fez crescer ainda mais a nostalgia. Eu saía em passeios solitários de longas horas pelas admiráveis florestas que eu reencontrava, ocupado em construir castelos de ar que, em vez de almejar o futuro, buscavam estranhamente corrigir o passado. Se não houvesse aquele colapso, se eu permanecesse na minha terra, crescesse no campo e me tornasse tão vigoroso quando os jovens daquela casa, os irmãos da amada, se eu seguisse a profissão do meu pai e casasse enfim com a moça que me conheceria intimamente depois de tantos anos! É claro que eu não duvidava por um só instante que nas circunstâncias criadas pela minha fantasia eu a teria amado com a mesma intensidade que eu realmente sentia naquele momento. É curioso: hoje em dia, quando por algum acaso eu a encontro – ela se casou aqui por perto – sinto uma indiferença extraordinária, e mesmo assim posso lembrar muito bem do efeito que continuava a me causar, ainda por muito tempo, a cor amarela do vestido que ela usava quando nos encontramos pela primeira vez, onde quer que eu visse novamente essa mesma cor.” Isso se parece muito com aquele seu breve comentário: que hoje o senhor já não gosta mais do dente-de-leão. O senhor não suspeita de uma ligação entre o amarelo do vestido da moça e o amarelo tão nítido das flores na cena da sua infância? “É possível, mas não era o mesmo amarelo. O vestido era de um amarelo castanho, como os goivos. Apesar disso, posso ao menos oferecer uma ideia intermediária que será útil para o senhor. Nos Alpes eu notei mais tarde que certas flores, cuja cor era mais clara na planície, revestiam-se de uma nuance mais escura nas regiões elevadas. Existe nas montanhas, se não estou 12 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) muito enganado, uma flor muito semelhante ao dente-de-leão, mas de um amarelo escuro que corresponderia muito bem ao vestido da moça que eu amava naquela época. Ainda não terminei: passo agora para um segundo evento, de um tempo muito próximo, que evocou as minhas impressões da infância. Eu havia retornado à região com dezessete anos; três anos depois eu visitei meu tio durante as férias e encontrei novamente as crianças que haviam sido os primeiros companheiros, o mesmo primo um ano mais velho e a prima da mesma idade, que apareciam na cena infantil do prado com os dentes-de-leão. Esta família havia partido junto conosco do lugar onde nasci e havia recuperado o bem-estar e o conforto na cidade. E ali o senhor apaixonou-se mais uma vez, agora pela prima, e construiu novas fantasias? “Não, desta vez foi diferente. Eu já estava na universidade e pertencia por inteiro aos livros; nada iria restar para a minha prima. Pelo que sei, daquela vez eu não criei fantasias do gênero. Mas acho que meu pai e meu tio haviam acertado um plano entre eles: eu trocaria o tema obscuro dos meus estudos por um outro de maior valor prático, iria me estabelecer na mesma região do tio após concluir os estudos e tomaria a prima como esposa. Eles certamente deixaram o plano de lado ao perceberem o quanto eu estava absorvido pelos meus projetos; mas acho que eu o adivinhei corretamente. Somente depois, quando eu era um jovem acadêmico, pressionado pelas necessidades da vida e obrigado a aguardar por uma posição nesta cidade, eu talvez pensasse que na verdade meu pai quisesse o melhor para mim ao planejar meu casamento como uma compensação para o dano que aquela primeira catástrofe trouxe para toda a minha vida.” Então eu posso situar o surgimento da cena infantil que estamos examinando neste período de sua luta para ganhar o próprio pão, caso o senhor me confirme que fez seu primeiro contato com os Alpes naquele ano. “Está correto: excursões pelas montanhas eram o único prazer que eu me permitia naquela época. Mas ainda não compreendo o senhor muito bem”. Aguarde um pouco. O senhor destaca o sabor do pão caseiro como o elemento de maior intensidade em sua cena infantil. O senhor não nota que esta ideia, percebida quase como uma alucinação, corresponde à concepção da sua fantasia – se o senhor permanecesse na terra natal e casasse com aquela moça, como seria confortável a sua vida e, dito de maneira simbólica, como 13 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) seria saboroso o pão pelo qual teve que lutar nos anos que ainda viriam? E o amarelo das flores também aponta para esta moça. Nesta cena infantil o senhor encontra, de resto, elementos que se relacionam somente com a segunda fantasia, na qual o senhor teria casado com a prima. Atirar as flores para trocá-las pelo pão não me parece um disfarce impreciso para o projeto que seu pai possuía para o senhor. O senhor deveria renunciar aos seus ideais excêntricos e escolher um ganha-pãoxiii, não é isso? “Então eu teria realizado uma fusão de duas séries de fantasias que mostram como a minha vida poderia ter sido mais confortável, extraindo de uma o “amarelo” e o “pão caseiro”, e de outra as flores que são atiradas e as pessoas que participavam dela?” Isso mesmo: projetou uma fantasia sobre a outra e formou com isso uma lembrança infantil. O detalhe das flores nos Alpes é uma espécie de selo que traz a data de fabricação. Posso lhe assegurar que coisas desse tipo são criadas com muita frequência de uma maneira inconsciente, como se fossem uma poesia. “Então na verdade não seria uma lembrança infantil, e sim uma fantasia que foi realocada na infância. Mas o meu sentimento me diz que a cena é autêntica. Como conciliar isso?” As informações da nossa memória não possuem nenhuma garantia. Mas posso lhe conceder que a cena é autêntica; e neste caso o senhor foi buscá-la em meio a inúmeras cenas, semelhantes ou não, porque o seu conteúdo – em si mesmo indiferente – era adequado para figurar ambas as fantasias, que possuíam importância suficiente para o senhor. Eu definiria este tipo de lembrança cujo valor deve-se ao fato de ocupar na memória o lugar de impressões e pensamentos de épocas posteriores, e cujo conteúdo está ligado ao seu próprio valor por meio de relações simbólicas ou similares, como uma lembrança encobridora. De toda maneira, o senhor não vai mais admirar-se do retorno frequente desta cena à sua memória. Não podemos mais dizer que a cena é inocente se, como descobrimos, ela se destina a ilustrar as forças propulsoras mais poderosas: a fome e o amor. “Sim, ela retratou bem a fome; mas e o amor?” Pelo amarelo das flores, eu creio. Aliás, não posso negar que a figuração do amor nesta cena da sua infância fica muito a dever em comparação com as minhas outras experiências. 14 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) “Não, de forma alguma. A figuração do amor é o principal. Pense bem: arrancar as flores de uma menina na verdade quer dizer: deflorar. Como é grande o contraste entre o atrevimento desta fantasia e a minha timidez na primeira situação, e a indiferença na segunda.” Eu posso lhe garantir que essas fantasias audaciosas são um complemento frequente à timidez juvenil. “Então isso quer dizer que não era uma fantasia consciente que eu tenho a capacidade de lembrar, e sim uma fantasia inconsciente que se transformou nestas lembranças infantis?” Pensamentos inconscientes, que continuam os pensamentos conscientes. O senhor pensa: se eu casasse com uma ou com a outra, e por trás disso surge o impulso de imaginar este casamento. “Agora eu posso continuar sozinho. Nestes assuntos, imaginar a noite de núpcias é o que mais atrai um jovem sem compromissos: o que vai acontecer depois não importa para ele. Mas essa ideia não corre o risco de vir à luz, a modéstia e o respeito pelas moças predominam e isso mantém a ideia reprimida. E então ela permanece inconsciente...” E desvia-se para uma lembrança infantil. O senhor tem razão, é precisamente por causa da brutalidade sensível da fantasia que ela não se transforma em uma fantasia consciente e precisa se contentar com a aparência florida de uma alusão no interior de uma cena da infância. “Mas eu pergunto: e por que uma cena da infância?” Talvez justamente por causa da inocência. O senhor consegue imaginar um contraponto para intenções sexuais agressivas que seja mais forte do que as brincadeiras de criança? De resto, as razões que determinam o desvio de pensamentos e desejos recalcados para lembranças infantis são mais abrangentes, pois o senhor pode comprovar com regularidade esta mesma atitude em pessoas histéricas. Além disso, um motivo prazeroso torna mais fácil o trabalho de lembrar o passado distante: “Forsan et haec olim meminisse juvabit”. ["quem sabe um dia será agradável recordar tais coisas no futuroxiv".] “Se for assim, então perdi toda a confiança nesta cena do dente-de-leão. Eu percebo que nas duas ocasiões mencionadas surge um pensamento que está amparado em motivos reais e palpáveis: se você tivesse se casado com esta ou com aquela moça, então a sua vida teria sido 15 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) muito mais confortável. Percebo em mim mesmo que a corrente sensual repete os pensamentos da oração condicional nas ideias que podem lhe proporcionar alguma satisfação; que esta segunda versão do mesmo pensamento, por ser incompatível com a predisposição xv sexual dominante, possui por este mesmo motivo as condições para continuar existindo na vida psíquica muito tempo depois que a versão consciente já foi superada pela realidade; que a oração que havia permanecido inconsciente realiza o esforço – de acordo com uma lei geral, como o senhor afirma – para transformar-se em uma cena infantil que terá permissão para se tornar consciente por causa da sua inocência; e que essa oração deverá passar por uma nova transformação, ou melhor, por duas: a primeira retira do antecedente o elemento escandaloso ao expressá-lo por imagens, e a segunda utiliza a ideia intermediária “pão/ganha-pão” para comprimir o consequente em uma forma que possui a capacidade da figuração visual. Entendo que ao produzir uma fantasia deste tipo eu preparei, em um certo sentido, a realização de ambos os desejos reprimidos: a defloração e o bem-estar material. Mas depois de expor para mim mesmo uma justificativa tão rigorosa para o surgimento da fantasia do dente-de-leão, eu devo supor que trata-se de alguma coisa que jamais aconteceu e que foi contrabandeada ilegalmente para as minhas lembranças infantis.” Mas desta vez eu preciso fazer a defesa da autenticidade. O senhor está indo longe demais. O senhor me acompanhou quando eu disse que todas estas fantasias reprimidas possuem a tendência de se desviar para uma cena infantil; acrescente então que isso não traz resultados se ali não houver um vestígio da lembrança, cujo conteúdo fornece pontos de contato com a fantasia que são uma espécie de contrapartida sua. Uma vez encontrado este ponto de contato – deflorar e arrancar as flores, neste caso – o conteúdo remanescente da fantasia passa então a ser remodelado por todas as ideias intermediárias que estão autorizadas (pense no exemplo do pão!) até que se estabeleçam novos pontos de contato com o conteúdo da cena infantil. É bem possível que a própria cena infantil passe por alterações neste processo; estou certo de que falsificações de lembranças podem ser criadas neste percurso. No seu caso a cena infantil parece apenas ter sido cinzelada; pense no destaque excessivo do amarelo e no sabor excelente do pão. Mas a matéria prima podia ser aproveitada. Se não fosse assim, então não teria sido justamente esta, entre todas as outras, a lembrança que conseguiu alcançar a consciência. O senhor não teria 16 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) encontrado uma cena deste tipo como uma lembrança infantil, ou talvez encontrasse alguma outra, pois o senhor sabe que para a nossa engenhosidadexvi é muito fácil criar pontes que levam de qualquer lugar para qualquer parte. Além do seu sentimento, que eu não quero subestimar, existe outra coisa que depõe a favor da autenticidade da sua lembrança do dente-de-leão. Ela tem particularidades que não podem ser esclarecidas pelas suas informações e também não se ajustam aos significados que a fantasia oferece: por exemplo, quando o seu primo lhe ajuda a roubar as flores da mocinha. O senhor tem como vincular essa ajuda no momento de deflorar com algum sentido? Ou com a camponesa e a ama-de-leite que estão lá no alto, diante da casa? “Acredito que não”. Então a fantasia não recobre inteiramente a cena da infância e apoia-se nela somente em alguns pontos. Isso depõe a favor da autenticidade da lembrança infantil. “O senhor acredita que esta costuma ser a interpretação adequada para as lembranças inocentes da infância?” “Na maioria das vezes, de acordo com a minha experiência. O senhor não quer avaliar, apenas por diversão, se os exemplos relatados pelos Henri nos autorizam a interpretá-los como lembranças encobridoras de experiências e desejos que só surgiram mais tarde? Eu me refiro à lembrança da mesa coberta sobre a qual está uma vasilha com gelo, o que teria alguma relação com a morte da avó; e a segunda, do galho que um garoto arranca com a ajuda de uma outra pessoa. Ele refletiu por um instante. “Não saberia dizer nada sobre o primeiro. É bem provável a ação de um deslocamento, mas não existe uma maneira de adivinhar as peças intermediárias. Para a segunda eu arriscaria uma interpretação, caso a pessoa que diz relatar uma lembrança sua não seja francesa.” Agora sou eu que não comprendo o senhor. O que isso pode mudar? “Muda muita coisa, pois a expressão verbal provavelmente faz a ligação entre a lembrança encobridora e a lembrança encoberta. Em alemão, “arrancar uma” [sich einen ausreissen] é uma alusão vulgar e muito conhecida para o onanismo. A cena reposicionaria na primeira infância a lembrança de uma sedução que está relacionada ao onanismo e só aconteceu mais adiante, pois 17 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) há uma pessoa que o ajuda. Mesmo assim alguma coisa não está certa, pois na cena da infância também aparecem várias outras pessoas.” Enquanto a incitação ao onanismo precisa ter ocorrido em segredo e na solidão. Mas, para mim, é precisamente esta oposição que favorece o seu entendimento; e ela também contribui para tornar inocente esta cena. O senhor sabe o que significa quando vemos no sonho “muitas pessoas estranhas”, como é tão comum nos sonhos de nudez que nos deixam terrivelmente incomodados? Nada além de um – segredo, que é expressado pelo seu oposto. Mas essa interpretação é apenas uma brincadeira: não sabemos realmente se os franceses reconheceriam uma alusão ao onanismo nas palavras casser une branche d’un arbre [cortar um galho de uma árvore] ou em uma frase ligeiramente modificada. * A análise precedente, que foi comunicada com a maior fidelidade possível, deve ter esclarecido em alguma medida o conceito de uma lembrança encobridora como aquela que não adquire um valor para a memória em função do seu próprio conteúdo, mas da relação que mantém com um outro conteúdo reprimido. É possível distinguir diferentes classes de lembranças encobridoras de acordo com a natureza desta relação. Entre as ditas lembranças mais precoces da infância nós localizamos exemplos de duas destas classes se incluirmos no conceito de lembrança encobridora as cenas incompletas que, por conta desta incompletude, se tornam inocentes. É de se esperar que lembranças encobridoras também se formem a partir dos restos de memória dos períodos posteriores. Quem tiver em vista a sua principal caracacterística - uma grande capacidade de memória para um conteúdo completamente indiferente - poderá encontrar inúmeros exemplos do mesmo tipo na sua memória. Uma parcela destas lembranças encobridoras que incluem conteúdos vividos mais tarde deve o seu significado à relação com experiências do início da juventude que permaneceram reprimidas, ou seja, o inverso do caso que analisei, no qual uma lembrança infantil é justificada por experiências vividas mais adiante. A depender da ocorrência de uma ou de outra relação temporal entre o elemento encobridor e o elemento encoberto pode-se designar a lembrança encobridora como retrospectiva ou prospectiva. A partir de uma outra relação faz-se a distinção entre as lembranças encobridoras positivas e as negativas 18 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) (ou lembranças refratárias), cujo conteúdo está em oposição ao conteúdo recalcado. O tema certamente ainda merece uma apreciação mais completa; contento-me aqui em em assinalar os complicados processos – por sinal, perfeitamente análogos à formação do sintoma histérico – que estão envolvidos na produção do nosso repertório de lembranças. Nossas lembranças mais precoces da infância sempre serão objeto de um interesse especial, pois o problema assinalado no início – como acontece que as impressões que exercem maior efeito sobre o futuro não precisem deixar atrás de si nenhuma recordação? – impõe uma reflexão a respeito do aparecimento de toda e qualquer lembrança consciente. A tendência imediata consiste em descartar as lembranças encobridoras aqui examinadas como componentes heterogêneos em meio aos restos da memória infantil e formar uma compreensão simples para as imagens restantes, segundo a qual elas surgem no instante em que aquilo foi vivido, como um resultado imediato da ação dessa experiência, e passam então a retornar periodicamente de acordo com as leis já conhecidas de reprodução. Mas uma observação mais apurada revela certos aspectos que não correspondem bem a esta concepção. O principal seria este: na maior parte das cenas infantis que possuem legitimidade e relevância a pessoa vê a si mesma na lembrança como uma criança, e sabe que aquela criança é ela própria; mas ela vê essa criança como a veria um observador que está fora da cena. Não escapa à atenção dos Henri que vários entre os sujeitos de sua pesquisa destacam expressamente esta característica. Ou seja, fica claro que esta recordação não pode ser a repetição fiel da impressão que foi recebida naquela época. A pessoa estava dentro da situação e não prestava atenção em si mesma, e sim no mundo exterior. Onde quer que uma pessoa apareça dentro de uma lembrança como um objeto em meio a outros objetos, essa contraposição entre o Eu da ação e o Eu da lembrança pode ser admitida como prova de que a impressão original passou por uma revisão. É como se um vestígio da lembrança infantil recebesse numa época posterior (na qual ela foi despertada) uma retradução em termos plásticos e visuais. Mas uma reprodução da impressão original jamais nos chegou à consciência. É preciso conceder uma credibilidade ainda maior a um segundo fato que favorece esta outra concepção das cenas de infância. Entre as lembranças infantis de acontecimentos 19 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) importantes, dotados de nitidez e precisão em igual medida, existe um certo número de cenas que provam ser falsas quando se faz uma verificação – por exemplo, pela lembrança dos adultos. Isso não quer dizer que elas teriam sido inventadas de forma livre; elas são falsas na medida em que posicionam uma situação em um local em que ela não aconteceu (como também se observa em um exemplo informado pelos Henri), fazem a fusão ou a troca de pessoas ou revelam ser a combinação de dois acontecimentos que estão separados. Aqui a infidelidade pura e simples da memória não assume um papel importante por conta da forte intensidade das imagens e do bom desempenho da função da memória na juventude; um exame mais apurado indica que na verdade essas falsificações da lembrança são tendenciosas, ou seja, que servem às finalidades do recalque e da substituição de impressões inconvenientes e desagradáveis. É necessário, portanto, que estas lembranças falsificadas tenham surgido durante um período de vida no qual estes conflitos e impulsos orientados para o recalque já estivessem presentes na vida anímica, ou seja, muito tempo depois do período lembrado por elas no seu conteúdo. Mas aqui a lembrança falsificada também é a primeira da qual temos notícia; para nós o material dos vestígios de lembrança a partir do qual ela foi talhada permanece desconhecido. Avaliamos que esta compreensão reduz a distância entre as lembranças encobridoras e o restante das lembranças infantis. Talvez seja questionável se de fato possuímos lembranças da infância, ou se na verdade não possuímos somente lembranças sobre a infância. Nossas lembranças infantis não nos mostram os primeiros anos de vida como eles aconteceram, e sim como eles surgem em um período posterior, no qual as lembranças foram despertadas. Neste período do seu despertar as lembranças infantis não apareceram, como se costuma dizer, e sim foram formadas, e uma série de motivos muito afastados das intenções da fidelidade histórica influenciou a formação e também a seleção das lembranças. 20 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) NOTAS DO TRADUTOR FREUD, S. “Über Deckerinnerungen”, em Gesammelte Werke in achtzen Bänden [Obras i Reunidas em Dezoito Volumes], Band I, Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554. Tradução de André Carone. Maio de 2020. Traduções estrangeiras consultadas: “Screen Memories”, em The Penguin Freud Reader (Edited by Adam Phillips), London, Penguin Books, 2006, p. 241-260 (tradução de David McLintock); “Screen Memories”, em Collected Papers (Volume 3), London, The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1953, p. 47-69 (Tradução de James Strachey); “De souvenirs-couverture”, em Oeuvres complètes (Volume 3), Paris, Presses Universitaires de France, 1989, p. 253 -276 (tradução de J. Doron e R. Doron) ii Victor e Catherine Henri, segundo informam os editores franceses. iii " O período da vida no qual o conteúdo das lembranças infantis mais precoces será alocado": Das Lebensalter, in welches der Inhalt der frühesten Kindheitserinnerung verlegt wird. O verbo "verlegen" pode servir à ideia de se localizar ou situar alguma coisa no espaço, mas também possui um outro emprego que merece ser destacado neste contexto: como o próprio Freud irá assinalar em A psicopatologia da vida cotidiana (1901), o prefixo alemão ver- denota uma ação mal-sucedida, que falha ao realizar o objetivo proposto. Em seu livro Freud irá empregar, por exemplo, o verbo "verlegen" como equivalente da ação de extraviar ou perder um objeto que não se sabe onde deixou. De maneira muito semelhante, o artigo sobre as lembranças encobridoras demonstra que temos o hábito de situar as nossas lembranças em um lugar errado da memória. Não por acaso, o quarto capítulo de A psicopatologia da vida cotidiana também é dedicado ao estudo das lembranças encobridoras. iv "ocultos", "esquecidos". Os destaques em itálico foram acrescentados às duas palavras nesta tradução e não constam do texto original. v "entre os elementos de uma experiência": unter den Elementen eines Erlebnisses. Os substantivos Erlebnis ("vivência") e Erfahrung ("experiência") aparecem nesta 21 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) tradução como "experiência" em quase todas as ocorrências. A distinção conceitual entre Erlebnis e Erfahrung, que possui importância para a fenomenologia alemã, não parece ter maior peso na psicanálise de Freud. vi "reprimido": unterdrückt. Adotamos aqui a terminologia que parece consolidada na psicanálise brasileira ao traduzirmos Verdrängung e verdrängen por “recalque” e “recalcar”, e Unterdrückung e unterdrücken por “repressão” e “reprimir”. Apesar das deficiências desta escolha, acredito que a polêmica merece ser deixada em segundo plano neste caso específico porque o uso que Freud faz destas palavras (especialmente de suas formas verbais) é menos rigoroso do que aquele postulado pela obra de referência da terminologia psicanalítica, o Vocabulário de Psicanálise de Jean Laplanche e J-B. Pontalis. vii "ação de compromisso". Kompromißwirkung, no original. Freud não emprega aqui a expressão "formação de compromisso" (Kompromißbildung), que irá surgir em outras passagens do texto. viii "recordação": Erinnerungsbild. Como o significado da palavra Bild não se limita ao aspecto sensorial da imagem, certas passagens do texto poderiam criar a impressão de um uso contraditório de conceitos (a "imagem da memória" nem sempre coincide com o registro visual da lembrança). O emprego da palavra “recordação” como equivalente para Erinnerungsbild pode servir, ao menos para a tradução deste texto específico, como uma solução que pode ser compreendida com facilildade, evitando a contradição. ix "componentes": Bestandteile. É importante distinguir esta palavra do termo “elemento” (Element), que possui um significado bastante específico na teoria freudiana do sonho. x Die Heiterethei und ihr Widerspiel (1857), romance de Otto Ludwig. xi "...não deixaram nenhum vestígio na minha memória": ...haben keine Spur in meinem Gedächtnis hinterlassen. Embora a tradução mais frequente para a palavra Spur seja "traço", optamos por "vestígio" para destacar o caráter fragmentário e incompleto da lembrança. A palavra "traço", especialmente no termo composto Erinnerungsspur (traduzido aqui como "vestígio de lembrança") pode transmitir mais a noção de um 22 Freud, Sigmund. Über Deckerinnerungen [Sobre lembranças encobridoras] (1899). Gesammelte Werke (Band I), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 529-554 .Apresentação, tradução e notas de André Carone. (Maio de 2020) engrama ou marca permanente do que a ideia de uma formação incompleta ou, para lembrar da analogia empregada pelo próprio Freud, de um torso que precisaria ser completado pelas partes restantes do corpo. xii "que esta ideia, percebida quase como uma alucinação, corresponde à concepção da sua fantasia... ": daß diese fast halluzinatorisch empfundene Vorstellung mit der Idee Ihrer Phantasie korrespondiert... Traduzimos a palavra Vorstellung por "ideia" e não por "representação". A escolha de um único equivalente para Vorstellung em uma língua estrangeira costuma criar dificuldades para os tradutores de Freud, e implica obrigatoriamente em algum prejuízo semântico e conceitual. Na mesma frase, o substantivo Idee foi traduzido como "concepção". xiii "ganha-pão": Brotstudium. O jogo de palavras, essencial para a compreensão do trabalho inconsciente da memória, não apareceria em uma longa paráfrase como, por exemplo, "um estudo que lhe garantisse o pão". O elemento comum entre os termos em alemão e em português corresponde, neste caso, à ideia de que uma pessoa deve "estudar para ganhar o seu próprio pão". xiv xv xvi Virgílio, Eneida, Livro 1 verso 203. “predisposição”: Disposition no original. “engenhosidade”: neste contexto, o equivalente mais adequado para o termo Witz, o mesmo que está presente no título do livro que Freud irá publicar em 1905, Der Witz und seine Beziehung zum Unbewußten ("O chiste e sua relação com o inconsciente"). 23