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A nova razão do mundo Resumo

A nova razão do mundo, Pierre Dardot e Christian Laval.

Resumo e anotações: A nova razão do mundo, Pierre Dardot e Christian Laval. No prefácio da edição brasileira os autores começam explicando na necessidade de uma análise detalhada e documentada do neoliberalismo para assim possibilitar as lutas e criar uma resistência à esse sistema. Desta forma, é necessário evidenciar que não estávamos lidando com o mesmo capitalismo opressor de sempre. “O capitalismo é indissociável da história de suas metamorfoses, de seus descarrilamentos, das lutas que o transformaram, das estratégias que o renovam. O neoliberalismo transformou profundamente o capitalismo, transformando profundamente as sociedades” (p.7) O neoliberalismo transformou não apenas o modo de produção e acumulação capitalista, mas também a subjetividade e os afetos dos indivíduos. Destruindo qualquer possibilidade de ação coletiva ou solidariedade. Introdução à edição inglesa Quando a crise de 2008 veio à tona e houve a quebra do Lehman Brothers, muito diziam que era o fim do neoliberalismo. Contudo, o tempo provou que a crise só serviu para engenhar novas políticas de austeridade. Não era o fim, mas o intensificamento do neoliberalismo. Um erro diagnóstico O conceito de neoliberalismo tende a uma interpretação de que ele constitui uma ideologia e uma política econômica guiada por essa ideologia. Contudo, há uma perspectiva naturalista dele, que o entende como algo natural, um organismo que naturalmente existe e se organiza rumo ao sucesso quando não impedido ou controlado pelo Estado. Assim, mesmo com os problemas de credibilidade trazidos pela crise de 2008, o neoliberalismo continuou forte, pois além de uma ideologia ele tem uma normatividade prática. Ou seja, ele já está inserido, nas políticas públicas, nos planos econômicos, nas subjetividades. Para além do sistema destrutivo, há uma série de construções. “O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades” (p. 16) O neoliberalismo como racionalidade O neoliberalismo é antes de tudo uma racionalidade, que estrutura todos os níveis da sociedade. Uma racionalidade política, uma série de procedimentos empregados pelo Estado para conduzir a conduta dos homens, desta forma, tem-se uma racionalidade governamental. É necessário ainda expandir o conceito de governo. Este, segundo Foucault, este pode ser caracterizado como um conjunto de atividades destinadas a conduzir a conduta dos homens. Foucault cunha o termo “governamentalidade” para traduzir as atividades dos homens de controlar a conduta de outros homens, mesmo não sendo o Estado. Posteriormente, ele amplia o conceito de governamentalidade para introduzir nele as técnicas de autogoverno. “Chamo de ‘governamentalidade’ o encontro entre as técnicas de exercício de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si” (p.18). Como esse conceito diz sobre controle de si, a liberdade e exigida pelos Estados, pois ela é uma maneira dos indivíduos conforma-se com as normas. Entender o conceito de governo permite nesse caso eliminar a ideia simplista de que o neoliberalismo consiste na retirada do Estado, na verdade, é a confirmação de que o mercado sempre se ampara no Estado. Os limites do marxismo O neoliberalismo é muito mais do que um grupo de políticas econômicas, portanto, seu método de aplicação e aceitação pelos países difere. Seja por uma ditadura ou por “reformas estruturais” o certo é que a um processo de ‘desdemocratização’ descrito por Wendy Brown, que consiste em esvaziar a democracia de sua essência, sem extingui-la formalmente. Muito por conta disso, o neoliberalismo tem uma série de características que diferenciam-no do sistema capitalista de exploração normal. Ele é um percurso diferente do descrito pelos marxistas, não se trata apenas de uma exploração econômica e política é um sistema que introduz sua lógica em todos os campos da existência. Ou seja, não estava previsto no marxismo. “O neoliberalismo emprega técnicas de poder inéditas sobre as condutas e as subjetividades. Ele não pode ser reduzido à expansão espontânea da esfera mercantil e do campo da acumulação do capital” (p.21) Diferentemente do que a compreendia a teoria marxista, não há “lei natural” de acumulação do capital no neoliberalismo e sim um conjunto de regras jurídicas. Como podemos constatar neste trecho “que a forma do capitalismo e os mecanismos da crise são efeitos contingentes de certas regas jurídicas, não consequência necessária das leis de acumulação capitalista” (p.26). Além disso, a análise marxista foi incapaz de notar que a crise que trouxe a propagação neoliberal na década de 70 não era unicamente uma crise econômica, mas também uma crise social. Era uma crise de governamentalidade, que refletia as aspirações de liberdade dos indivíduos. A crise generalizada de um modo de governar os homens O neoliberalismo tem um sistema de gestão pela crise, assim podemos entender a crise atual como uma forma do neoliberalismo de governar as sociedades. A governamentalidade neoliberal está em crise, ou seja, o modo de governo pela generalização dos mercados e da concorrência. Contudo, mesmo que esse novo sistema regido pelo capital financeiro, tenham inchado e dado autonomia a este ultimo, essa não é a única causa para a constante instabilidade do capital especulativo. É a constante competitividade entre os atores financeiros, que foi vendida como remédio, é na verdade a causa das crises, principalmente a do euro. O incentivo, até mesmo estatal, à competição “representa precisamente a extensão da norma neoliberal a todos os países, a todos os setores da ação pública, a todos os domínios da vida social, e é a implementação dessa norma que leva à diminuição da demanda por toda parte simultaneamente, sob o pretexto de tornar a oferta mais ‘competitiva’, e à concorrência entre assalariados dos países europeus e dos outros países do mundo, o que acarreta a deflação salarial e desigualdades crescentes” (p.29) Lembrando que o Estado tem um papel na administração desta crise e dessa lógica de imperativa competitivo. Liberalismo clássico e neoliberalismo O neoliberalismo trouxe consigo uma nova forma de governamentalidade, desta forma, fica evidente que há uma ruptura entre liberalismo e neoliberalismo, há uma mudança na racionalidade. Contudo, isso não é ponto comum entre os autores, como neste trecho: “neoliberalismo, que segundo Foucault, é uma nova feição do liberalismo, contudo o neoliberalismo busca saber como a economia de mercado pode servir de modelo e forma para o Estado. Assim, devemos compreender o neoliberalismo e seus métodos como uma nova programação da governamentalidade liberal, uma reorganização interna.” (Lorena, 2012, p. 22) Neste ponto, a autora do artigo diverge dos autores do livro que vem o neoliberalismo como uma restauração do liberalismo. Para eles “desde seu registro de nascimento, na grande crise dos anos 1930, o neoliberalismo introduziu uma distância ou até mesmo um claro rompimento, em relação à versão dogmática do liberalismo” (p.33). Os desafios enfrentados pelo liberalismo: ascensão de governos autoritários, socialismo exigiam uma reformulação de suas bases teóricas. Assim, ascendem o ordoliberalismo alemão, criado no Colóquio de Walter Lippmann em 1938 e a corrente austro- americana representada por Mises e Hayek. Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo Há vários motivos que ensejam a crise do liberalismo. As críticas sobre o simplificamento contratual que se faz do ser. Mas, além disso, o próprio movimento passou por crises internas, se dividindo entre aqueles que acreditavam na reforma social e aqueles que defendiam as liberdades individuais. Essa crise do liberalismo é, na verdade, uma crise da governamentalidade liberal. A necessidade de intervenção estatal para proteger os dispositivos do capital e a propriedade privada coloca em crise o dogmatismo liberal. Uma ideologia muito estreita Antes mesmo de 1930, o liberalismo (laissez-faire) já não era capaz de lidar com a nova forma de capitalismo que ascendia. E as grandes potências da época já desenhavam modelos diferentes com agentes econômicos diferentes, isolados e guiados pelo seu próprio interesse e sua posição frente à concorrência mundial. A lei da oferta e da procura já não guiava mais a economia. As indústria e empresas passavam por uma restruturação produtiva, e necessitavam uma gestão mais científica. Mas, além disso, havia a perda da credibilidade de certos grupos como os políticos e os empresários perante a população, fazendo desmanchar o mito neoliberal de autoregulação e prosperidade dos mercados. O liberalismo também se mostrou incompatível com as reformas sociais que pretendiam ser realizadas. Ademais, o movimento operário estava se consolidando e cada vez mais se fazia evidente a necessidade de uma intervenção estatal para a proteção dos trabalhadores. A lógica de relação harmoniosa entre empregadores e empregados, falácia liberal, ruiu. No plano internacional, a lógica liberal também se mostrava ineficaz, ou melhor, já era traída. Os liberais “se isolavam, parecendo conservadores obtusos e incapazes de compreender a sociedade de seu tempo, embora pretendessem encarnar seu movimento” (p.42) A preocupação precoce de Tocqueville e Mill Esses dois autores a muito estavam preocupados com a crise do liberalismo. Tocqueville em seus escritos analisava a relação existente entre democracia, centralização e uniformidade. Para ele, neste tipo de governo o Estado adquire um poder totalizador, se apoderando de todos os domínios da vida dos indivíduos. O Estado tem esse poder imenso de tutelar, pois há uma legitimidade popular. Tocqueville entende esse modelo como um novo despotismo. John Stuart Mill, por sua vez, faz algumas objeções sobre o modelo democrático que seu colega apresenta. Contudo, também afirma que se nesse novo modelo o Estado e tão expansivo, é necessário remediar a impotência do indivíduo. Para tanto, eles se unem em associações, no maior exemplo do ditado: a união faz a força, além disso, reforça-se a educação para que possam resistir à opinião de massas. Analisando a democracia eles chegaram à conclusão que os poderes governamentais aumentam com a sociedade mercantilizada, assim o liberalismo (laissez-faire) estava com os dias contados. O próprio Jonh Stuart Mill alega que uma vez que máxime a felicidade e o bem comum o direito a propriedade pode ser relativizado. A defesa do livre mercado É indubitável que essa declaração de Mill não passaria ilesa aos olhos dos liberais individualistas, como Herbert Spencer. Este criou um movimento chamado de spencerismo que representava a contrarreforma dos individualistas contra os sociais reformistas. Esse movimento buscava um superação do utilitarismo empírico, para tanto ele propunham mudar as bases teóricas do utilitarismo para se opor à tendência reformadora do benthamismo. O spencerismo acreditava que toda intervenção estatal é uma forma de coerção, assim se opunham ferrenhamente à qualquer lei de intervenção, até mesmo as assistenciais. É como se os liberais reformistas quisessem o bem do povo por um meio direto, ou seja, a coerção, ao invés, de buscar o bem da população de forma indireta por meio da diminuição da coerção. Para ele, “uma criatura que não é suficientemente enérgica para se bastar, deve parecer” (p.48). Esse é o grau de radicalismo desse movimento que acredita que a intervenção estatal para garantir o mínimo, como o que comer, é uma violação da lei natural que rege a sociedade. Contra a superstição do Estado Spencer acreditava que o utilitarismo empírico promovido por Jeremy Bentham estava fundado no direito divido, pois, não conseguiria fundar a soberania sobre si mesma, isto é, sobre a função que ela deveria cumprir. Esse autor acreditava em um direito natural já praticado pelos homens antes da positivação, assim o que o Estado faz “ele apenas garante qa execução de contratos livremente consentidos; não cria de modo alguém novos direitos ex nihilo” (p.49) O nascimento do concorrencialismo fin-de-siècle (fim do século) Mesmo que por vezes rejeitado, o spencerismo foi uma virada na doutrina liberal. Seu aspecto de evolucionismo biológico obedece a dois processos: a integração a um aglomerado e a diferenciação das partes mutuamente dependentes. Ele entende a teoria de Comte e de Durkheim sobre cooperação social e solidariedade como marca da evolução humana e as adapta para defender sua tese da desnecessidade de uma intervenção estatal. Logo, depois ele pega aspectos da teoria de Darwin sobre a origem das espécies para aperfeiçoar sua própria teoria da evolução biológica, pois, para ele, “a teoria darwiniana parecia corroborar na teoria do laissez-faire” (p.52). O equivoco desta teoria que cria um elo entre economia e condição biológica é que ela compara a herança biológica com as lutas entre raça e classe, uma espécie de ‘darwinismo social’. Ele assimilava a concorrência econômica a uma luta vital geral, que é precisa deixar que se desenvolva para que a evolução não seja interrompida. Esse novo modelo de liberalismo natural extremo serviu ao seu propósito e foi usado para justificar o sistema da época, comparando a evolução o processo fabril acelerado e voraz. O jogo da concorrência torna-se, no modelo evolucionista spenceriano, uma lei implacável da vida e o mecanismo do progresso por eliminação dos mais fracos. Desta forma, altera-se o método de troca pelo método de concorrência, esse evento marcou e influenciou em muito o neoliberalismo, sendo esse o novo motor para as sociedades. Mais tarde, nos Estados Unidos, um sociólogo chamado Willian Graham Sumner, publica uma obra que tratará melhor deste concorrestismo social, intitulado: O desafio dos fatos. Nele, aborda-se que a sociedade se guia naturalmente pela concorrência uma vez que não há recursos para todos, e assim a justiça nada mais é do que a justa recompensa do mérito e da habilidade de luta, justificando com isso as desigualdades. Um dos ensaios mais significativos de Sumner diz: “É preciso compreender que não podemos escapar da alternativa: liberdade, igualdade e sobrevivência dos mais aptos; não liberdade, igualdade e sobrevivência dos mais inaptos. O primeiro caminho leva a sociedade para frente e favorece seus melhores membros. O segundo caminho leva a sociedade para trás e favorece seus piores membros” (p.56). Este trecho representa, em partes, os moldes adquiridos pelo liberalismo para sair da crise. O “novo liberalismo” e o “progresso social” Mesmo com o aprofundamento do spencerismo, no final do séc. XIX, a melhora na qualidade de vida dos pobres começa a se tornar uma questão central, reivindicada até mesmo pelos liberais. “O que fazer com as velhas imagens idealizadas da livre troca, quando todo o equilíbrio social e econômico parece abalado? As repetidas crises econômicas, os fenômenos especulativos e as desordens sociais e políticas revelavam a fragilidade das democracias liberais. O período de crises múltiplas gerava uma ampla desconfiança em relação a uma doutrina econômica que pregava liberdade total aos atores no mercado. O laissez-faire foi considerado ultrapassado, até mesmo no campo dos que reivindicavam o liberalismo” (p.57) Assim, um novo liberalismo um pouco mais preocupado com as questões sociais emergia no cenário mundial, procurando não apenas reinventar o liberalismo, como salvar o capitalismo da Grande Depressão. Ascende em cena, assim, John Mayhard Keynes que entendeu de forma sólida que era necessário uma reformulação do liberalismo, mas nunca sua superação total. Para tanto, ele pensa uma forma de governamentalidade liberal que conseguisse vencer a crise. Para tanto, ele propõe uma reformulação do dogma Laissez-faire. “Esse novo liberalismo visava a controlar as forças econômicas para evitar a anarquia social e política, reapresentando a questão da agenda e da não agenda em sentido favorável à intervenção política. O Estado se vê encarregado de um papel regulador e redistribuidor fundamental naquilo que se apresenta também como um socialismo liberal” (p.59-60) Pode-se notar que esse novo liberalismo é um movimento fundamentalmente democrático, que deixa de lado a desconfiança que ainda se encontrava em Mill acerca da “tirania da maioria”. Mais próximo de Bentham nesse aspecto, ele tem mais receio da reconstituição das oligarquias do que do poder das massas. Desta forma, além de atacar o direito a propriedade e a liberdade como um fim em si mesmo, há uma valorização da organização social propiciando a criação de um circuitos de afetos. Ademais, cria-se legislações para equiparar as relações sociais, pois “Segundo Hobhouse, no século XIX pareceu necessário reequilibrar as trocas sociais em benefício dos mais fracos mediante uma intervenção da legislação” (p.61). É indubitável, que há uma preocupação com o reequilíbrio das relações sociais, protegendo-se assim aqueles que são mais fracos. O novo liberalismo do séc. XX não é um ‘desvirtuamento’ do liberalismo, mas uma retomada a suas bases mais sólidas, assim como um aprimoramento baseado nas previsões de Jeremy Bentham. A dupla ação do Estado segundo Karl Polanyi O Estado liberal do séc. XIX conduziu duas ações contrárias em relação ao mercado. “A Revolução Industrial teve como condição a constituição de um sistema mercantil em que os homens devem conceber-se, “sob o aguilhão da fome”, como vendedores de serviços para poder adquirir recursos vitais para a troca monetária. Para tanto, é necessário que a natureza e o trabalho se tornem mercadorias, que as relações que o homem mantém com seus semelhantes e com a natureza tomem a forma da relação mercantil.” (p.63) Para que todo esse organismo social funcione (mercado e homem mercantil) é necessária uma ação política deliberada, para tanto o Estado deve intervir, regular e organizar todos esses processos, para que haja um bom funcionamento. Polanyi defende essa tese em sua obra A grande transformação. Desta forma, há um duplo movimento dos Estados: o de estabelecimento de uma sociedade de mercado e o de resistência a ele, pois uma sociedade de mercado total seria impossível, o sofrimento causado por ela seria demasiado. “Todo desequilíbrio ligado ao funcionamento do mercado ameaça a sociedade submetida a ele. Inflação, desemprego, crise de crédito internacional, crash financeiro, todos esses fenômenos econômicos atingem diretamente a sociedade e, portanto, exigem defesas políticas” (p.65) A ‘grande transformação’ do liberalismo nos anos de 1930 e 1940 é o resultado de uma sociedade de mercado que não funcionava mais. A tentativa de estabelecer o mercado após a Primeira Guerra Mundial foi apostar na autorregulação, não sabendo sopesar a preservação da democracia e dos sistemas de proteção social com os imperativos da estabilidade monetária. A resposta foi altura, o fascismo. Desta forma, Polanyi prevê dois tipos de intervenção do Estado, uma é a criação e manutenção destes mercados e a outro é a proteção da sociedade. Contudo, ele se esquece de outro método que ele mesmo prevê que é a intervenção no funcionamento do mercado, este é uma peça chave, pois é “específica do neoliberalismo, que não é simplesmente uma nova reação à “grande transformação”, uma “redução do Estado” que precederia um “retorno do Estado”. Ele se define melhor como certo tipo de intervencionismo destinado a moldar politicamente relações econômicas e sociais regidas pela concorrência” (p.67/68). O neoliberalismo e as discordâncias do liberalismo Tanto o neoliberalismo quanto o novo liberalismo são respostas para os governos autoritários que ascenderam pós Primeira Guerra. Ambos são tentativas de salvar o capitalismo e a sociedade liberal e para isso se admitia a intervenção estatal no âmbito nacional e internacional. Mesmo que os nomes e as propostas sem parecidas essas são teorias distintas. O ‘novo liberalismo’ foi projetado por Keynes e tinha propostas em duas linhas gerais. Duas propostas poderiam resumi-lo: 1) as agendas do Estado devem ir além dos limites que o dogmatismo do laissez-faire impôs a elas, se se deseja salvaguardar o essencial dos benefícios de uma sociedade liberal; 2) essas novas agendas devem pôr em questão, na prática, a confiança que se depositou até então nos mecanismos autorreguladores do mercado e a fé na justiça dos contratos entre indivíduos supostos iguais. O neoliberalismo é posterior, contrariamente keynesiano. “Os neoliberais opõem-se a qualquer ação que entrave o jogo da concorrência entre interesses privados” (p.69). A intervenção estatal é aceita para ‘purificar o mercado concorrencial por um enquadramento jurídico cuidadosamente ajustado’. Ademais, ele reconhece que não há uma ordem natural, mas uma ação política. O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvenção do liberalismo Este evento é verdadeiramente o momento de criação do neoliberalismo, aconteceu em Paris em 1938. Neste momento se unem os liberais de algumas correntes como a norte-americana e a alemã para consolidar no plano teórico o neoliberalismo. Pretendia-se atacar o keynesianismo por meio de uma retomada do liberalismo. Contra o naturalismo liberal O organizador do evento era Louis Rougier que acreditava que poderia haver uma retomada liberal, contanto que houvesse uma mudança nas bases teóricas liberais. Para ele “não haverá “retorno do liberalismo” se não houver uma refundação teórica da doutrina liberal e se dela não se deduzir uma política liberal ativa, que evite os efeitos negativos da crença metafísica no laissez-faire” (p.72). Para o organizador do evento a refundação desse liberalismo era a única saída para lidar com os governos autoritários. Assim o que o Colóquio se propunha a fazer era apenas uma condensação dos pensamentos difusos, assim como a criação do Centro Interacional de Estudos para a Renovação do Liberalismo. O nome do evento foi inspirado em Walter Lippmann, um jornalista que defendia que a interferência estatal na economia era algo aceitável, mas deveria ser feita da forma correta. Em seu livro La cité livre ele critica o naturalismo liberal, pois “o regime liberal é resultado de uma ordem legal que pressupõe um intervencionismo jurídico” (p.75). Dentre aqueles que participavam do colóquio a maioria concordava neste aspecto, com exceção do neoaustríacos. Mas, na verdade, havia uma discordância entre os membros sobre como superar a crise do liberalismo. Em linhas gerais, havia dois eixos de interpretação: O primeiro deles acreditava que a doutrina do laissez-faire deve ser renovada. Pois, para eles não foi o liberalismo que entrou em crise, mas a intervenção do Estado no curso dos mercados gerou a crise. Portanto, os fatores principais do caos devem ser buscados na traição progressiva dos princípios do liberalismo clássico (Robbins, Rueff, Hayek, Von Mises). Seguindo essa lógica de pensamento, até mesmo as carências sociais são interpretadas como o resultado da intervenção do Estado, pois para eles em um cenário normal a ‘máquina’ funciona bem. Como visto neste trecho proferido no Colóquio: “O sistema liberal tende a assegurar às classes mais necessitadas o máximo de bem estar. Todas as intervenções do Estado no plano econômico tiveram o efeito de empobrecer os trabalhadores. Todas as intervenções dos governos pareceram melhorar as condições da maioria, mas para isso não há outro meio senão aumentar a massa dos produtos que devem ser partilhados” (p.78). Indubitavelmente, esse primeiro grupo é ainda muito ligado à ortodoxia liberal, um sentimento chamado por Foucault de ‘fobia do Estado’. Dentro desta visão, a origem de todos os males era a intervenção estatal, pois o mercado em condições de liberdade se regula. Em contraponto, o segundo grupo acreditava em uma espécie de intervencionismo liberal. Para eles as causas da crise são encontradas no próprio liberalismo clássico (Rougier, Lippmann e os teóricos alemães do ordoliberalismo). A originalidade do neoliberalismo O Colóquio impõe que o que imperaria seria a segunda visão. Assim, inicia-se uma construção do que eles entendem como ‘neoliberalismo’. Esse retorno ao liberalismo necessitava de uma reformulação de suas bases teóricas, era necessário negar a metafísica naturalista. E, sobretudo, admitir uma interferência estatal, nos termos pregados por Rougier “Esse intervencionismo jurídico do Estado contrapõe-se a um intervencionismo administrativo, que estorva ou impede a liberdade de ação das empresas” (p.80). Assim, fica claro que era permitido um tipo específico de intervenção. Rougier marca no Colóquio a ideologia que guiaria o neoliberalismo posteriormente, como visto no trecho a seguir: “Ser liberal não é, como o “manchesteriano”, deixar os automóveis circularem em todos os sentidos, seguindo seus caprichos, donde resultariam incessantes engarrafamentos e acidentes; não é, como o “planista”, estabelecer para cada automóvel uma hora de saída e um itinerário; é impor um código de trânsito, admitindo ao mesmo tempo que ele não é na época dos transportes rápidos o mesmo que era na época das diligências.” (p.80) O neoliberalismo é uma terceira via. Para isso, Rougier identificou os problemas que levaram à esses extremos. Para ele, o primeiro deles foi a ‘mística liberal’ uma crença no liberalismo naturalista, imutável, sendo a concorrência algo quase que sagrado, uma vez que é ‘uma obra de Deus’. O segundo erro é a primazia do econômico sobre o político, Rougier defendia que “O melhor legislador é aquele que sempre se abstém de intervir no jogo das forças econômicas e subordina a elas todos os problemas morais, sociais e políticos” (p.81). O neoliberalismo, não nega o Estado, ele o articula para a prosperidade do mercado. Diferentemente do liberalismo laissez-faire que era negativo e cheios de dogmas, a novidade neoliberal é construtiva e permite estabelecer um programa político que perdure, se adaptando as modificações das sociedades. Um dos problemas identificado como central na ruina do laissez-faire foi a crença no naturalismo. Ele diz “O título de propriedade é uma criação da lei. Os contratos são instrumentos jurídicos. As sociedades são criaturas do direito. Consequentemente, comete-se um erro quando se considera que elas possuem existência fora da lei e depois se pergunta se é lícito “intervir” nelas [...]. Toda propriedade, todo contrato e toda sociedade existem somente porque existem direitos e garantias cuja aplicação pode ser assegurada, quando são sancionados pela lei, apelando para o poder de coerção do Estado. Quando se fala em não mexer em nada, fala-se para não dizer nada” (p.84). Ademais, uma vez que as leis são compreendidas como naturais, elas não se modificam, não podem ser alteradas o que leva a um enrijecimento da dogmática liberal, que no final era conservadora. De igual maneira, uma lei natural não é passível de erros ou críticas, o que levou os liberais a defender esse dogma a qualquer custo. Foi assim que esse movimento parou de ser aplicado e aceito pelas nações, mas além disso, as desigualdade engenhadas por esse liberalismo, geraram movimento contra ele e contra a propriedade privada como o socialismo soviético. A agenda do liberalismo reinventado “Os “últimos liberais” não entenderam que, “longe de ser abstencionista, a economia liberal pressupõe uma ordem jurídica ativa e progressista” que visa à adaptação permanente do homem a condições sempre cambiantes” (p.85). Esse intervencionismo liberal é uma somatória de teorias como o concorrentismo social. “O dirigismo do Estado liberal implica que ele seja exercido de maneira que a liberdade seja protegida, não subjugada; de maneira que a conquista do benefício seja o resultado da vitória dos mais aptos numa competição leal, não o privilégio dos mais protegidos ou dos mais ricos, em consequência do apoio hipócrita do Estado” (p.86) Trata-se de privilegiar a economia por meio da concorrência e dar ao Estado autoridade suficiente para que esse novo intervencionismo seja promovido, até para que Estado resista as pressões. Contudo, Rougier tem duas visões sobre a intervenção. Na primeira, o intervencionismo do Estado deve ser essencialmente jurídico. Trata-se de impor regras universais a todos os agentes econômicos e resistir a todas as intervenções que deturpam a concorrência, dando vantagens ou concedendo privilégios e proteções a determinadas categorias. Assim, é necessário um Estado forte que consiga resistir às pressões do diferentes grupos. Em um segundo momento ele defende que Estado não deve proibir-se de intervir para fazer as engrenagens da economia funcionarem melhor. Em uma prática de intervencionismo construtor mais invasivo, contudo, mais eficaz. “Estado não terá como objetivo criar equilíbrios artificiais, mas restabelecer os equilíbrios naturais entre a poupança e os investimentos, a produção e o consumo, as exportações e as importações” (Loius Rougier, Les mystiques économiques p.87) Mesmo que os termos deste novo modelo não estejam claros, uma vez que esse novo intervencionismo é resultado de uma amalgama de teorias e práticas políticas, nem sempre condizentes. Entretanto, o que ficou estabelecido é que a lei da concorrência deve prevalecer, pois ela só sofrerá desregulação por ingerência do Estado, mesmo que para Rougier, o Estado seja a figura mais idônea para estabelecer a concorrência. O intervencionismo do Estado que é aclamado por Loius Rougier, não se trata de dirigir a economia, mas manter a máquina da concorrência funcionando. Para tanto, o Estado deve ter força, pois precisa exercer uma força contrária a todas aquelas que tentaram desregular a máquina da economia. O neoliberalismo e a revolução capitalista Lippnann, assim como Rougier, se propõem a formar uma agenda para o neoliberalismo. Ele entendia o liberalismo como a única filosofia que conseguiria conduzir a adaptação da sociedade e dos homens frente a um capitalismo muito dinâmico, adaptação esta negligenciada pelos liberais do laissez-faire. Assim, o neoliberalismo para ele tinha como palavra chave a adaptação. “ A agenda neoliberal é guiada pela necessidade de adaptação permanente dos homens e das instituições a uma ordem econômica intrinsecamente variável, baseada em uma concorrência generalizada e sem trégua” (p. 90) “À revolução permanente dos métodos e das estruturas de produção deve corresponder igualmente a adaptação permanente dos modos de vida e das mentalidades.” (p.90) Neste trecho repousa uma das teses fundamentais do neoliberalismo, para que ele venha a ser efetivo, um novo modo de vida teve que ser arquitetado, assim novas políticas foram engenhadas para visar a vida individual e social como um todo. Desde a revolução industrial, há um novo modo de produção, é necessário então que todo o quadro normativo, social, político e econômico sofra alterações. Assim, cabe ao neoliberalismo auxiliar o Estado na criação de um sistema de leis e normas que sejam adaptadas as novas trocas comerciais. Transpondo esta ideia, o texto traz o seguinte trecho que confirma a tese central do livro: o neoliberalismo é um sistema total que penetra todos os âmbitos da vida humana, “a política neoliberal deve mudar o próprio homem” (p.91) Criar uma nova subjetividade, adaptada entre o modo de vida e a divisão do trabalho, consequentemente, há uma perda de autonomia dos indivíduos, que estão a todo tempo sendo levados a agir de uma determinada forma. Assim, são necessárias políticas que consigam criar uma harmonia entre a maneira como os indivíduos vivem, pensam e se relacionam e as condicionantes econômicas às quais deve se submeter: “Pois todo conflito entre a herança social e a forma como os homens devem ganhar a vida acarreta necessariamente uma desordem em seus negócios e uma divisão em seus espíritos. Quando a herança social e a economia não formam um todo homogêneo, há necessariamente revolta contra o mundo ou renúncia ao mundo” (Walter Lippnann La cité libre p.91) Essa harmonia é promovida por uma série de ‘políticas da condição humana’, que tem dois mecanismos principais para que os homens consigam de adaptar a lógica concorrencial: a eugenia e a educação. A criação deste novo sujeito começa pelo melhoramento, para que os homens consigam viver e prosperar é necessário os educar. Como dito por Lippmann “Educar grandes massas, equipar os homens para uma vida em que devem especializar se, mas ao mesmo tempo ainda ser capazes de mudar de especialidade, eis o imenso problema ainda não resolvido. A economia da divisão do trabalho exige que esses problemas de eugenia e educação sejam efetivamente tratados, e a economia clássica supõe que eles o sejam.” (p.92). Pois, com educação é possível criar seres aptos para a brutal concorrência. Além disso, Lipmann tem uma preocupação que também é notada em figuras ordoliberais, que consiste em uma ressocialização dos homens em suas comunidades, como analisado no trecho: “Não há dúvida de que a Revolução Industrial descivilizou grandes massas de homens, tirando-os de seus lares ancestrais e juntando-os em grandes subúrbios sombrios e anônimos, repletos de casebres superpovoados” (p.92) Há ainda, uma hostilidade com o grande capital criador de monopólios, o motivo é claro: monopólios e oligopólios condensam o poder e prejudicam, quando não excluem, a competição. Em suma, é necessário compreender que o neoliberalismo precisa um arcabouço jurídico, institucional e social forte e estável para que funcione. O que o neoliberalismo fez foi deixar de isolar a economia do poder estatal e das regras sociais para tornar essa lógica inerente à esses dois processos. O império da lei Lipmann tem uma visão da economia muito vinculada ao conjunto normativo, como visto até aqui. Assim, compreender sua visão do direito, é parte fundamental para compreender como pretendia-se ser o neoliberalismo. Em contraponto à Bentham, Lipmann acreditava que a lei em uma sociedade dinâmica deve ser igualmente dinâmica, assim, ele demonstra sua preferia pelo Common Law, ou seja, o direito dos costumes e não das codificações legisladas. Pois, “Esses direitos não são copiados da natureza, tampouco deduzidos de um dogma proclamado de uma vez por todas, e menos ainda uma produção de um legislador onisciente. Eles são produto de uma evolução, de uma experiência coletiva das necessidades de regulamentação surgidas da multiplicação e da modificação das transações interindividuais.” (p.95) Lippmann considerava impossível governar por normas e decretos feitos por um legislador alheio aquela sociedade, para ele o direito só funcionaria se fosse assegurado um sistema de expectativas. Isto é, há direito e obrigações recíprocas “O sistema liberal se esforça para definir o que um homem pode esperar dos outros, inclusive dos funcionários do Estado, e assegurar a realização dessa expectativa.” (p.95). Sendo assim, a lei é um acordo geral aceito por todos, não uma norma natural ou emanada de uma autoridade, mas um construto daquela sociedade. Por conta disso “O conjunto de normas produzidas pelos costumes, pela interpretação dos juízes e pela legislação, com a garantia do Estado, evolui por um trabalho constante de adaptação, por uma reforma permanente que faz da política liberal uma função essencialmente judiciária” (p.96). Esse sistema construído de direito é capaz de alterar-se conforme as demandas daquela sociedade e do capital, além de ser uma lei acordada entre eles e não imposta por uma autoridade. Para ele, esse sistema é suficiente para gerir com sucesso a sociedade, e principalmente, a economia. Um governo das elites Walter Lipmann ainda definindo os termos do neoliberalismo, traz uma distinção entre ele e os neoliberais que precisam de um Estado forte e os coletivistas. “Quanto mais complexos os interesses que se devem dirigir, menos possível é dirigi-los mediante a coerção exercida por uma autoridade superior” (p.98) Contudo, não se trata de ter um poder fraco, mas sim, um Estado forte que consiga fazer cumprir a normal geral que deseja estabelecer. É preciso compreender que para essa tese neoliberal funcione, o sentido de democracia deve ser alterado, pois o Estado forte deve ser governado por uma elite: “É preciso que as democracias se reformulem constitucionalmente de maneira que aqueles aos quais elas confiam as responsabilidades do poder considerem-se não os representantes dos interesses econômicos e dos apetites populares, mas os garantidores do interesse geral contra os interesses particulares; não instigadores de promessas eleitorais, mas moderadores das reivindicações sindicais; atribuindo-se como tarefa fazer todos respeitarem as regras comuns da competição individual e das expectativas coletivas; impedindo que minorias ativas ou maiorias iluminadas desvirtuem a seu favor a lealdade do combate que deve assegurar, para o benefício de todos, a seleção das elites. É preciso que elas inculquem nas massas, pela voz dos novos professores, o respeito das competências, a honra de colaborar numa obra comum.” (Loius Rougier Les mystiques économiques p.98) Tanto para Lippmann quanto para Rougier as democracias eram sistemas incompatíveis com o Estado forte que instituiria o neoliberalismo, pois nas democracias o sistema de sufrágio universal influencia a tomada de decisões. Para ambos autores a participação constante das massas é nocivo ao sistema neoliberal, pois elas influenciariam as políticas, submetendo o Estado a sua vontade. “Esse dogma democrático considera que os governantes devem seguir a opinião majoritária, os interesses do maior número de indivíduos, o que é ir no sentido do que é mais agradável e menos penoso. É preciso, ao contrário, deixar os governantes governarem e limitar o poder do povo à nomeação dos governantes” (p.99) Por conta disso, o neoliberalismo desenvolve alguns mecanismos de redução da participação popular, para que o Estado não seja como um todo submetido à vontade dessa massa de pessoas, por isso a preferencia por sistemas representativos. O ordoliberalismo entre “política econômica” e “política social” É a forma alemã de neoliberalismo, o nome vem do ponto comum que os autores que à escrevem tem na ordem constitucional e procedural que eles concordam que existe na base da sociedade e da economia. A “ordem” (Ordo) como tarefa política Um dos teóricos deste neoliberalismo é Walter Eucken. Ele teoriza que a economia tem dois tipos de ordem, a ordem econômica que seria o grupo de princípios que organizam a economia e a ordem política, o conjunto de normas jurídicas que defendem a ordem econômica. Desta forma, como a ordem econômica não é natural , para que haja uma ordem da economia estável são necessárias políticas “O objeto próprio dessa política é o quadro institucional, que é o que pode assegurar o bom funcionamento dessa “ordem econômica” específica.” (p.102) O Ordoliberalismo nasceu em um contexto de pós segunda guerra mundial na Alemanha, ele é uma doutrina que acredita na responsabilidade social como forma de transformação, assim age buscando uma base histórica e social. Para eles, a ordem liberal é inseparável do estado de direito, pois o capitalismo não é algo natural, ele é um conjunto de ações jurídicas. Eles renegam a ideia de que o direito seria apenas um componente da superestrutura, como visto: “o ordoliberalismo rejeita com vigor toda forma de redução do jurídico a uma simples “superestrutura”, assim como a ideia correlativa da economia como “infraestrutura”” (p.103) Quanto os monopólios de poder econômico, Eucken diz que “Primeiro o Estado favorece a formação do poder econômico privado e depois se torna parcialmente dependente dele” (p.103). Pois, o Estado cria políticas que concentram poder, e depois esses grupos vão influenciar as políticas do Estado. Desta forma, fica claro que o sistema capitalista é feito, formado, construído pelo contexto econômico-institucional, ele não obedece um lógica única de acumulação, mas sim o contexto que esta inserido. É indubitável que os ordoliberais rompem com a lógica de naturalista e do laissez-faire, seu mérito foi ter conseguido sistematizar essa discordância com a ordem liberal clássica de forma mais eficaz. “A confiança na autorrealização da ordem natural era grande demais” (Walter Eucken “Das ordnungspolitische Problem”, p.105). Sendo Röpke vai ainda além, dizendo que a economia, assim como a democracia política pressupõe grande esforço, são artifícios da civilização, não dados naturais. Mesmo neste movimento havia dois grupos que tinham visões distintas. O primeiro grupo era dos economistas e dos juristas da Escola de Freiburg, entre os quais os mais importantes eram Walter Eucken e Franz Böhm. Para esse grupo o quadro jurídico e político era o principal fundamento da economia e então voltaram suas atenções para esse aspecto. O segundo grupo era o de um liberalismo de inspiração “sociológica”, cujos principais representantes foram Alfred Müller-Armack, Wilhelm Röpke e Alexander von Rüstow, este grupo dava mais atenção ao quadro social da sociedade em que a economia pretende se desenvolver, eles tentam elaborar uma política da sociedade e dão ao Estado o deve ser cuidar dos indivíduos para que eles venham a se inserir em suas comunidades. A legitimação do Estado pela economia e seu “suplemento social” O ordoliberalismo deu à Alemanha uma legitimação de seu Estado-liberal de direito democrático pela economia de mercado. Mesmo que a legitimidade de qualquer democracia esteja nos processos democráticos de participação/representação popular que ela comporta, em poucas palavras, a legitimidade da democracia esta no poder popular, quais são os efeitos de transmuta-la para o mercado? Crise de representatividade, é claro. O texto traz um ponto positivo e negativo deste processo. Antes, é necessário compreender que para o ordoliberais o nazismo é o resultado de uma economia protegida pelo Estado, pois, seria este último o responsável pela atomização dos indivíduos. “(...) do ponto de vista do ordoliberalismo, o nazismo apenas levou ao extremo a aplicação na economia e na sociedade do tipo de racionalidade que valia nas ciências da natureza. O coletivismo econômico aparece nessa perspectiva como a extensão da “eliminação cientística do homem” à prática econômica e política. Esse “napoleonismo econômico” somente pode prosperar “à sombra da corte marcial”, na medida em que busca o domínio total da sociedade por intermédio de um planejamento ao qual cada indivíduo é constrangido a obedecer” (p.107). Isto significa, que para os ordoliberais, o Estado que controla massivamente sua economia, precisa de sistemas de coerção de seus indivíduos, membros da sociedade, fato que, consequentemente, cerceia sua liberdade. Sendo assim, o ordoliberais operam em um ‘duplo circuito’: “Se o primeiro (Estado) fornece o quadro de um espaço de liberdade dentro do qual os indivíduos podem buscar seus interesses particulares, o livre jogo econômico criará e legitimará em outro sentido as regras de direito público do Estado. Em outras palavras, “a economia produz legitimidade para o Estado que é fiador dela”” (p.107) A saber, a política Alemã de 1947-1948 que mesmo após Segunda Guerra continua com um controle massivo de seus meios econômicos o que foi identificado pelos teóricos ordoliberais como causa da falência econômica da alemã. Como demonstra Eucker “a política aliada aparece como continuação direta da política nazista: controle de preços e distribuição, desmontes, confiscos etc.” (p.108). Mesmo que a tese de Foucault diga que a legitimidade do Estado vem pela econômica, para os ordoliberais, é preciso lembrar que uma corrente deste movimento marca uma responsabilidade social grande, que entende que o fundamento da ordem política não é somente econômico, mas social. Além disso, é sabido que apenas o mercado não é capaz de criar um quadro constitucional. “(...) para assegurar essa base moral e social do Estado, de modo que podemos falar, também nesse caso, em um “duplo circuito” entre a sociedade e o Estado. A descentralização é integrada aqui à doutrina liberal de limitação do poder do Estado” (p.110). Desta forma, o Estado aqui deve criar políticas em dois sentidos uma delas para integrar e colocar o indivíduo em uma lógica de economia de mercado e também integraliza-lo em suas comunidades. A ordem da concorrência e a “constituição econômica” Ordo em seu sentido basilar busca uma organização que seja economicamente efetiva e socialmente respeitosa, essa organização é a economia de mercado. Assim, é necessário um quadro social estável que permita desenvolver os processos econômicos como o da livre concorrência e do controle de preços. “Em consequência, ela faz da soberania do consumidor e da concorrência livre e não distorcida os princípios fundamentais de toda “constituição econômica”” (p.111). Os ordoliberais acreditam que a economia de mercado se mostra superior as outras, pois ela é capaz, ao mesmo tempo, de superar a escassez de bens, demonstrando sua capacidade de funcionamento e, ainda, deixar os indivíduos livres para que eles tomem suas próprias decisões, afirmando à dignidade humana. Como toda essa engrenagem é guiada pelo princípio da concorrência, ela seria, indubitavelmente, bem sucedida. E o sistema concorrencial era, para eles, capaz de satisfazer os desejos dos indivíduos sem submetê-los a coerção, possibilitando que cada um realize suas ambições individuais. OBS: é válido ressaltar aqui que quando os ordos falam de uma preocupação social, eles se preocupam em um quadro social estável que permita o bom desenvolvimento dos projetos econômicos. Mais uma vez, é necessária marcar a concretude dos ordoliberais quando optam pela economia de mercado e rejeitam o naturalismo liberal. Assim, “enquanto os velhos economistas liberais concluíram pela necessidade de uma não intervenção do Estado, os ordoliberais transformaram a livre concorrência em objeto de uma escolha política fundamental” (p.112), fica claro que os ordoliberais buscam comprovar sua tese em argumentos válidos e sólidos. A economia de mercado é tão um projeto político concreto e não natural que, para os ordoliberais, ela só seria instituída por meio de uma ‘constituição econômica’. Ou seja, a constituição do país deve institucionalizar a preservação a concorrência. Desta forma, “trata-se de institucionalizar a economia de mercado na forma de uma “constituição econômica”, ela própria parte integrante do direito constitucional positivo do Estado, de maneira a desenvolver a forma de mercado mais completa e mais coerente” (François Bilger La pensée économique libérale dans l’Allemagne contemporaine p.112) Em síntese, os pensadores ordoliberais alegam que para que haja uma economia de mercado deve haver uma constituição que permita, garanta, assegure uma concorrência perfeita, sem interferências. Para tanto, a constituição deve incorporar na sua estrutura formal, alguns princípios: princípio da estabilidade da política econômica, princípio da estabilidade monetária, princípio dos mercados abertos, princípio da propriedade privada, princípio da liberdade dos contratos e princípio da responsabilidade dos agentes econômicos. Política de “ordenação” e política “reguladora” O Estado deve instituir políticas que consigam conduzir de forma eficiente o mercado e a concorrência, assim deve-se ter uma política em dois sentidos: num primeiro nível, por um sólido enquadramento ou mesmo por uma educação da sociedade pela legislação e, num segundo nível, pela ação vigilante de uma “polícia dos mercados”. Institui-se assim políticas de organização e regulação. A política de “ordenação” visa a criar as condições jurídicas de uma ordem concorrencial que funcione com base em um sistema de preços livres. Para que o mercado venha a funcionar bem são necessários ‘dados’ (termo não conceituado). “Esses dados são as condições de existência do mercado nas quais o governo deve intervir” (p.114). Eles podem ser de dois tipos: dados de organização social e econômica e dados materiais. Os primeiros são as ‘regras do jogo’ que devem ser impostas aos agentes econômicos individuais, como a taxa de cambio e o condicionamento psicológico (?). Os dados materiais dizem sobre a infraestrutura, pesquisa e recursos humanos. Vale ressaltar ainda que um processo de organização completo e eficiente, reduz a necessidade de um processo regulador. “De fato, a política “reguladora” tem como função “regular” as estruturas existentes de maneira a fazê-las evoluir no sentido da ordem da concorrência ou garantir sua conformidade a essa ordem contra qualquer desvio” (p.115). Como o próprio nome já diz, essa política reguladora tem como objetivo regular os mecanismo criados pelas políticas de ordenação e pela constituição, assim qualquer mecanismo que vá contra a livre concorrência e coloque em risco o bom funcionamento deste sistema, será abordado por essa ‘polícia do mercado’ com o objetivo de preserva-la e faze-la perdurar. A saber, a lei contra os carteis, que garante a livre precificação. Entretanto, mesmo que não tenham a mesma fobia do Estado que os antigos liberais, os ordoliberais não são como os keynesianos e colocam limites ao controle estatal. A saber, o fato de que o Banco Central é independente e tem como objetivo salvaguardar a moeda, independente de qualquer ditame estatal. Mas, não só isso, “serão vedados todos os instrumentos aos quais recorre a planificação, como fixação de preços, apoio a dado setor do mercado, criação sistemática de empregos e investimento público” (p.115) Ademais, a constituição econômica deve, ainda, ser guiada por princípios chamados de reguladores, como a proteção contra carteis, controle dos efeitos não desejados susceptíveis de serem causados pela liberdade e planejamento concedida aos agentes econômicos e vigilância especial ao mercado de trabalho. “Para resumirmos, a política de ordenação intervém diretamente no “quadro” ou nas condições de existência do mercado de modo a realizar os princípios da constituição econômica; a política reguladora intervém não diretamente no “processo” em si, mas por intermédio de um controle e de uma vigilância cujo intuito é afastar todos os obstáculos ao livre jogo da concorrência e, assim, facilitar o “processo”.” (p.115) O cidadão consumidor e a “sociedade do direito privado” Como resultado de todo esse processo pensado pelo ordoliberalismo, teríamos como consequência uma sociedade de concorrência livre e leal entre os indivíduos que seriam soberanos de si. Pois qualquer desequilíbrio na concorrência levaria a uma tirania do Estado ou de grupos dominantes. Para os ordoliberais, tudo gira em torno do poder. Os indivíduos devem ter poder para dispor sobre sua própria vida, liberdade de escolha e de consumo, propriedade privada, enquanto isso não pode haver nas sociedades grupos que sejam contra esse poder e exerçam práticas anticoncorrenciais. Como dito neste trecho “a liberdade de consumo e a liberdade de produção são, no espírito do cidadão, direitos fundamentais intangíveis” ( Ludwing Erhard, La prospérité pour tours, p.116) Há, portanto, um culto ao consumidor que está ligado ao principio constitucional da concorrência. Pois, sempre há em uma sociedade, produtores e consumidores, contudo os ordoliberais afirmam que há uma distinção vital entre eles, há nos consumidores ‘interesses constitucionais comuns’, fato que não é verdade nos produtores que buscam um tratamento especial, ou privilegiado. Contudo, nos consumidores “os interesses dos indivíduos como consumidores são consensuais e comuns, mesmo que se concentrem em mercados diferentes: todos os consumidores têm, enquanto tais, o mesmo interesse pelo processo concorrencial e pelo respeito às regras da concorrência” (p.117). Assim, o Estado estabelece com o consumidor-eleitor um contrato de garantir seu poder de escolha sobre o seu consumo. Assim, o Estado deve começar combatendo os acumuladores e privilegiados, mantendo-se assim uma igualdade concorrencial. Logo, o Estado deve ser forte e conseguir se manter ininfluenciável frente as pressões de grupos externos. Isto foi bem descrito por Erhard “ele (Estado) é o protetor supremo da concorrência e da estabilidade monetária, considerada um “direito fundamental do cidadão” (...) A seu ver, a política consiste em ater-se a regras gerais, sem jamais privilegiar um grupo em particular, porque isso seria introduzir distorções graves na destinação dos rendimentos ou na alocação dos recursos no conjunto da economia” (p.117). Böhm discorre ainda sobre o motivo pelo qual a econômica de mercado incide no meio constitucional a concorrência. Para ele, a sociedade de direito privado é a prova de que o povo não está contra o Estado, mas dentro dele. “Essa ordem de direito privado não estabelece apenas as regras a que todos os membros da sociedade são submetidos quando contraem contratos entre si, adquirem bens e títulos uns dos outros, cooperam uns com os outros ou trocam serviços etc.; acima de tudo, ela outorga a todas as pessoas que se situam sob sua jurisdição uma enorme liberdade de movimento, uma competência para conceber planos e conduzir a própria vida em relação com os próximos, um status no interior da sociedade de direito privado que não é um “dom da natureza”, mas um “direito civil social”; não um “poder natural”, mas uma “permissão social”. A realidade do direito é, pois, não que o indivíduo enfrente diretamente o Estado, mas que se ligue a seu Estado “pela intermediação da sociedade de direito privado” (p.118) Entender a sociedade de direito privado é importante, pois aquelas nela é possível estabelecer uma economia de mercado. A “econômica social de mercado”: as ambiguidades do “social” O termo social é ambíguo, ele pode encarnar várias formas conforme o contexto, o ouvinte e o comunicador. Para o ordoliberais, o termo social refere-se a uma sociedade baseada na livre concorrência. Como afirmado no trecho “o termo “social” remete a uma forma de sociedade baseada na concorrência como um tipo de vínculo humano, uma forma de sociedade que se deve construir e defender pela ação deliberada de uma Gesellschaftspolitik (“política de sociedade”)” (p.119) Esse mesmo termo também diz sobre um conceito apresentado por Müller-Armack, a economia social de mercado. Ele usa esse termo, porque acredita que a economia de mercado uma vez incentivando a produtividade e a respeitando a liberdade de escolha do consumidor se constitua como social. Quando rebatido pelos socialistas ele afirma que a economia social de mercado busca um equilíbrio entre as regras de mercado e os interesses das massas. Ademais, ele também argumenta que a economia de mercado é um contrato social em que todos concordam, é uma escolha coletiva, em contraponto a economia liberal de mercado. Para os ordoliberais, o termo economia social de mercado é o oposto ao Estado de bem-estar. Pois para a economia social de mercado apenas a concorrência poderia ser capaz de gerar prosperidade para todos (Título sugestivo da obra de Erhard), ao passo que todo assistencialismo, longe de ajudar apenas desregularia os agentes econômicos. Como descrito, “A prosperidade para todos é uma consequência da economia de mercado e apenas dela, ao passo que os seguros sociais e as indenizações de todos os tipos pagos pelo Estado social – um mal necessário, sem dúvida, mas provisório, que tanto quanto possível deve ser limitado – podem desmoralizar os agentes econômicos” (p.121). Os ordoliberais vão além propondo que deveria haver ‘políticas sociais’ que assegurassem pelo menos o mínimo aos trabalhadores, até para eles conseguirem continuar participando do jogo. Assim, cabia ao intervencionismo liberal proteger “os mais fracos contra a dureza das mudanças econômicas e tecnológicas.” (p.122). Constitui-se assim um capitalismo popular, que pensa as questões sociais e a garantia de um progresso social. Como dito por Erhard “Os termos livre e social se sobrepõem [...]; quanto mais livre a economia, mais social ela é, e maior é o ganho para a economia nacional” (Ludwig Erhard, citado em Hans Tietmeyer, Économie sociale de marché et stabilité monétaire p.122). Parte de pensa, um processo social não baseado no assistencialismo, mas na responsabilidade individual. A “Política de sociedade” do ordoliberalismo O ordoliberalismo, diferentemente do liberalismo clássico, diminuiu as fronteiras entre Estado, sociedade e economia por meio da compreensão que a interdependência destes é o que promove o bom funcionamento da ‘maquina econômica’. Assim, fica claro que a economia de mercado só funciona em uma sociedade que tenha determinados valores e desejos, da mesma maneira que a lei e os costumes devem convergir no mesmo sentido. Só assim, com a harmonia entre essas três instituições a economia de mercado, como um todo, funcionaria. Estado Sociedade Economia Para o Ordoliberalismo há interdependência entre todas as relações sociais. A relação entre indivíduos também é marcada. O vínculo estabelecido entre eles é regulado pela concorrência “A concorrência é o modo de relação interindividual mais conforme com a eficácia econômica e, ao mesmo tempo, mais conforme com as exigências morais que se podem esperar do homem” (p.123) Assim, todas as relações interindividuais são reguladas pela concorrência, assim para que essa seja leal os indivíduos devem ser livres para exercer sua capacidade de escolha. Esta só é garantida por meio da política de sociedade, esta “significa que a sociedade é o objeto e o alvo da ação governamental” (p.123) Wilhelm Röpke, em seu livro Civitas humana descreve a política de sociedade. Em um movimento contra o coletivismo, ele alega que o capitalismo, mesmo que seja a base para a existência do liberalismo sofreu modificações e hoje é uma versão deturbado da economia de mercado. Assim é necessário reviver o conceito de humanismo econômico ou liberalismo sociológico que, ao contrário do liberalismo clássico que apenas esperava que a sociedade se adaptasse espontaneamente, o humanismo econômico se propõe a “definir, então, as condições sociais de funcionamento do sistema concorrencial e considerar as reformas que devem ser feitas para obtê-las. É isso que especificará essa “terceira via” como a via do “liberalismo construtor” e do “humanismo econômico”, tão estranho ao coletivismo como ao capitalismo monopolista” (p.124). Assim, inspirado neste ideal do humanismo econômico, o remédio para uma crise total na sociedade é a política de sociedade, isto é, “uma política que visa a uma transformação completa da sociedade, num sentido evidentemente muito diferente do coletivismo” (p.124). Entretanto, esse humanismo econômico tem complicações, pois assume um caráter quase que pastoril do capitalismo, assim ela não seria capaz de resolver os problemas e salvar o capitalismo que, quer queira, quer não é o objetivo principal deste sistema. Mas, além do aspecto econômico há, ainda, o aspecto social. Foucault diz que a política de sociedade “Ela deve evitar que a sociedade seja inteiramente tomada pela lógica de mercado (princípio de heterogeneidade da sociedade e da economia), mas deve fazer igualmente com que os indivíduos se identifiquem com microempresas, permitindo a realização de uma ordem concorrencial (princípio de homogeneidade da sociedade e da economia)” (p.125). A questão aqui é que a economia de mercado é distinta do quadro social e antropológico ao qual esta inserida, pois há lugares que uma vez inserida ela se torna nociva a existência humana. “Essa exigência de pluralidade das esferas sociais não está ligada a uma preocupação de eficácia ou justiça, mas, sim, à natureza plural do homem, coisa que o “velho liberalismo econômico” não compreendeu. O laço social não pode reduzir-se a uma relação comercial” (p.126) O liberalismo sociológico entende a necessidade que o homem tem de tratar das demais áreas da sua vida e não fazer da economia um fim em si mesmo. Esse “programa sociológico” compreende diversas vias – descentralização, desproletarização, desurbanização –, todas tendendo a um objetivo comum: uma sociedade de pequenas unidades familiares de habitação e produção, independentes e concorrendo umas com as outras. Cada indivíduo deve ser inserido profissionalmente num quadro de trabalho que lhe garanta independência e dignidade. A pequena empresa como remédio para a proletarização Röpke defende a desproletarização, pois o “nomadismo proletário ligado à destruição do campesinato e do artesanato pela grande exploração concentrada criou um grande vazio na existência de milhões de trabalhadores, privados de segurança e estabilidade, assalariados urbanizados, sem independência, sem propriedade, inseridos em explorações gigantescas da indústria e do comércio” (Civitas humanas p.128). Para ele o processo de industrialização e urbanização levou a proletarização dos trabalhadores e isso correspondia a uma perda de autonomia que o ordoliberalismo não poderia aceitar. Por conta disso, ele argumenta que devem ser criadas políticas que diminuam a desigualdade que existe entre proletariado e burguesia, para tanto ele propõe o desenvolvimento de uma pequena exploração familiar e a difusão da propriedade entre pequenos grupos como aldeias e vilas, já que assim haveria o reestabelecimento dos laços afetivos e da ligação do homem com sua comunidade. Ademias, o principal e mais perverso traço da proletarização é a perda de toda e qualquer propriedade o que reduz os membros à escravos ou dependentes eternos do assistencialismo estatal, e “a propriedade é o único meio de enraizar de novo os indivíduos em um meio, dar a eles a segurança que desejam, motivá-los para o trabalho” (p.129) Portanto, uma vez que se coloca contrario ao Estado de bem-estar, Röpke defende o fim do proletariado industrial. Desta forma, ele demonstra como a restauração da propriedade individual, “Trata-se antes de um modelo social, do qual cada indivíduo poderá aproximar-se e apreciar os benefícios morais e materiais, graças à propriedade de sua casa e ao cultivo de sua horta” (p.129). Uma vez que o homem conseguir obter seu sustento por seus próprios meios, ele será novamente apto para integrar a economia de mercado. A “terceira via” Chama-se terceira via, porque está situada entre o laissez-faire e o Estado social, pois ele esta fundado na responsabilidade social, pois “Quanto mais o Estado cuidar de nós, menos inclinação teremos para agir por nossas próprias forças” (p.130). Desta forma, fica claro que é uma doutrina que se propõe a respeitar a liberdade dos indivíduos e, mesmo assim, dar à eles uma possibilidade de propriedade individual para que eles tenham o mínimo para sua subsistência e sejam capazes a estabelecer relações sociais com seus familiares. O homem empresarial É indubitável a contribuição que os ordoliberais deram ao movimento liberal como um todo. Contudo, não devemos pensar que liberais como Mises ou Hayek que eles representam apenas o obsoleto Laissez-faire, é certo que eles trouxeram novos elementos à esse liberalismo, que mesmo que continuasse a abominar a intervenção Estatal na economia em nome da liberdade, tiveram uma mudança de argumentação, para incorporar um processo de “valorização da concorrência e da empresa como forma geral da sociedade” (p.134). Mesmo assim, não se pode ignorar a ajuda que esses dois autores deram para o neoliberalismo. O pensamento deles se apresenta por meio de dois polos opostos: um de destruição e outro de construção. O primeiro é promovido pelo Estado, é quando este por meio da ingerência leva a sociedade ao totalitarismo e repressão econômica. O segundo, construtivo, é proporcionado pela figura do empreendedor. Assim, os dois autores (Mises e Hayek) mostram como se constrói um indivíduo que tem a concorrência como dimensão do seu próprio ser, um empreendedor. Essa é, com certeza, a maior contribuição desses autores para o neoliberalismo, muito mais que a concepção ordoliberal ou neoclássica. “No programa neoclássico, a concorrência sempre remete a certo estado e, nesse sentido, tem muito mais a ver com uma estática do que com uma dinâmica. (...) Toda situação que não corresponde às condições da concorrência pura e perfeita é considerada uma anomalia que impossibilita a realização da harmonia preconcebida entre os agentes econômicos. Desse modo, a teoria neoclássica é levada a prescrever um “retorno” às condições da concorrência estabelecidas a priori como “normais”. Se é certo que o programa neoclássico deu ao discurso do livre mercado uma firme caução acadêmica, em particular sob a forma do “mercado eficiente” das finanças globais, é errado pensar que a racionalidade neoliberal repousa exclusiva ou principalmente sobre o programa walrasiano-paretiano do equilíbrio geral.” (p.135) Isso porque o conceito de concorrência para os neoclássicos é diferente do conceito de concorrência da racionalidade neoliberal. O que Hayek e Mises descobrem é que a racionalidade neoliberal leva a concorrência a outro patamar: o de rivalidade e de competição, na tentativa constante de superar o outro e aproveitar as oportunidades de lucro. “Embora se considere típica de uma política neoliberal a construção de uma situação econômica que a aproxime do cânone da concorrência pura e perfeita, há outra orientação, talvez mais disfarçada ou menos imediatamente perceptível, que visa a introduzir, restabelecer ou sustentar dimensões de rivalidade na ação e, mais fundamentalmente, moldar os sujeitos para torná-los empreendedores que saibam aproveitar as oportunidades de lucro e estejam dispostos a entrar no processo permanente da concorrência.” (p.136) Esta é a racionalidade neoliberal, a de um homem que tem a competição por lucro e por vantagens sempre em primeiro lugar, a cultura do empreendedorismo torna-se fundamental e a única possível, não trata-se apenas de criar um condição estatal propícia para a economia de mercado, trata-se de criar uma subjetividade propícia. Critica ao intervencionismo Ludwig Von Mises foi um dos participantes renegados no Colóquio de Lipmann pela sua depreciação à intervenção estatal e ao socialismo, sendo um a consequência do outro. Assim para ele o Estado começava regulando os preços e termina socialista. Além disso, “Essa cadeia de reações é facilitada pela ideologia da democracia ilimitada, baseada no mito da soberania do povo e da justiça social” (p.137). Desta forma, fica claro que mais do que antissocialista, Mises era antidemocrata, partindo de um conceito de democracia direta/participativa. Mises é radical quando fala em não acreditar em terceira via. Assim, critica os ordoliberais na medida em que acreditam no ‘intervencionismo liberal’, Mises dirá que não há como existir isso, pouco a pouco o Estado dominaria mais e mais até se torna totalitário. Assim, o caminho ou vai para o despotismo do governo ou para a soberania do consumidor, “o controle é indivisível” ou é todo privado ou todo estatal, não existe meio termo. Sobre a intervenção estatal: “É importante lembrar que a intervenção do governo significa sempre ação violenta ou ameaça de recorrer a ela. [...] Em última análise, governar é servir-se de homens armados, policiais, guardas, soldados, carcereiros e executores. O aspecto fundamental do poder é que ele pode impor suas vontades usando o cassetete, prendendo e matando. Os que exigem mais governo exigem, no fim das contas, mais coerção e menos liberdade.” (Ludwig Von Mises, L’action humaine p.138). Para Mises qualquer intervenção estatal desencadearia em violência, menos liberdade e diminuição do crescimento econômico. Contudo, além disso, Mises vê no Estado interventor uma perda de autonomia do indivíduo, pois o estado passa a decidir o que é melhor para ele, logo a perda de liberdade. Como descrito no trecho: “A sociedade não diz a alguém o que deve fazer. Não há necessidade de tornar a cooperação obrigatória por ordens e proibições. A não cooperação penaliza a si mesma. O ajustamento às exigências do esforço produtivo na sociedade e a busca dos objetivos próprios do indivíduo não conflitam. Isso, portanto, não requer arbitragem. O sistema pode funcionar e desempenhar seu papel sem intervenção de uma autoridade que emite ordens e interdições e pune os recalcitrantes” (p.139). Ele defende que a sociedade tem uma capacidade de autocontrole, uma vez que todos os indivíduos estariam buscando seus próprios interesses, não conflitantes entre si, a sociedade andaria bem, como uma engrenagem harmônica. Uma nova concepção de mercado É necessário fixar que o conceito de mercado, ainda que continue tendo um papel central, na teoria autro-americana (representada por Hayek e Mises) ele encarna outro significado. Essa nova concepção de mercado, diferente bastante da concebido por Adam Smith, para Mises, mercado “É um processo de descoberta e aprendizado que modifica os sujeitos, ajustando-os uns aos outros” (p.139). Assim, fica claro que mercado não é um conceito estático, mas um processo, ele está, a todo momento, sendo construído e ao mesmo tempo, construindo os seres que o compõem, modificando e adaptando-os para caberem nas relações econômicas. Entretanto, uma vez estabelecido o processo não há necessidade de interferências, essas apenas serviriam de entrave. Contudo, também não significa que o mercado se regularia por meio de uma lei natural ou um princípio misterioso de equilíbrio. Antes, “É um processo regulado que utiliza motivações psicológicas e competências específicas (...) E, se não necessita de poderes reguladores externos, é porque tem sua própria dinâmica” (p.139). O mercado para eles é construtivo, ele ensina e disciplina o sujeito econômico para que o indivíduo aprenda a se conduzir. Pois, uma vez que toda ação humana é orientada para uma situação melhor, “a partir do impulso para realizar essa finalidade, ele não vai trocar aquilo que por acaso tem a mais (...), como supunham os primeiros teóricos da ordem do mercado, mas vai empreender e, ao empreender, vai aprender. Vai estabelecer um plano individual de ação e se lançar em empresas, vai eleger objetivos e destinar recursos a eles, vai construir” (p.140). Como visto, neste conceito de mercado o empreendedor é o ator central, assim cabe ao processo de mercado a responsabilidade exclusiva por construir o sujeito empresarial. O indivíduo aprende e passa a se comportar conforme uma racionalidade pensada pelo mercado, introduz-se ainda uma ciência da escolha no lugar de uma teoria de mercado clássica. Pois, “A economia é mais questão de escolha do que de cálculo de maximização; mais especificamente, este último é apenas um momento, ou uma dimensão da ação, que não é capaz de resumi-la inteiramente. O cálculo pressupõe dados, e pode-se considerar até que é determinado pelos dados, como é o caso nas doutrinas do equilíbrio geral. A escolha é mais dinâmica, implica criatividade e indeterminação. É o elemento propriamente humano da conduta econômica.” (p.142) O mercado e o conhecimento Mises vai deixar bem claro que a não necessidade da intervenção estatal não se dá porque o mercado é guiado naturalmente, pelo contrario ele diz que o bom funcionamento da maquina econômica só é possível porque há uma convergência entre os interesses dos indivíduos e os interesses da sociedade. “O que assegura a integração das ações individuais no conjunto do sistema social de produção é a busca de cada indivíduo por seus próprios objetivos. Seguindo sua “avidez”, cada ator dá sua contribuição para o melhor arranjo possível das atividades de produção” (p.142) O mercado é um organismo que anda sozinho, por meio da livre condição de escolha de cada de um seus indivíduos. Contudo, Hayek fala sobre a formação desse indivíduo que apenas de livre, segue as regras de conduta que lhe são impostas. “É por isso, aliás, que existem regras que ele segue sem pensar. Ele sabe o que sabe por meio das regras, das normas de conduta, dos esquemas de percepção que a civilização desenvolveu progressivamente” (p.143). Para esses teóricos o conhecimento é uma questão central. Esse conhecimento não se trata do conhecimento cientifico em si, mas um conhecimento específico, utilizável no mercado. Um conhecimento adquirido pela prática que apenas o indivíduo pode avaliar e usa para vencer a competição. “Esse conhecimento específico e disperso, muito frequentemente desprezado e negligenciado, tem tanto valor quanto o conhecimento dos especialistas e dos administradores” (p.143). É por meio deste conhecimento que o indivíduo vai de adaptar ao mercado e ‘vencer’ de alguma forma na vida, é, também, uma forma de inteligência dispersa, já que Hayek era contra um controle do conhecimento. Assim, a forma de comunicação entre as informações e os fragmentos cognitivos dos indivíduos é o preço, “O preço é um meio de comunicação de informação pelo qual os indivíduos vão poder coordenar suas ações. A economia de mercado é uma economia de informação que permite prescindir do controle centralizado” (p.144). O empreendedorismo como modo de governo de si A escola autro-americana argumenta que a intervenção estatal não é necessária, pois os indivíduos são os únicos capazes de fazer cálculos a partir das informações que possuem. Assim, o sujeito tem a capacidade de governar a si próprio, para esta escola esse governo é empreendedor, “Todo indivíduo tem algo de empreendedorístico dentro dele, e é característica da economia de mercado liberar e estimular esse “empreendedorismo” humano” (p.145). Eles tratam o empreendedorismo como algo quase que inerente ao homem, que se deve ao fato dele buscar sempre uma forma de lucrar mais ou melhorar seu meio de vida. Desta forma, o empreendedor aqui não é produtor ou capitalista “é um ser dotado de espírito comercial, à procura de qualquer oportunidade de lucro que se apresente e ele possa aproveitar, graças às informações que ele tem e os outros não. Ele se define unicamente por sua intervenção específica na circulação dos bens” (p.145). Esse é um ser que tenta, erra e aprende, em um movimento caracterizado pela especulação. Ele é um construtor de situações das quais ira tirar proveito. Ele deve saber prever o futuro e guiar sua ação por essa informação, ele apenas conseguirá vantagens no jogo competitivo se conseguir tal proeza. “Somos todos empreendedores, ou melhor, todos aprendemos a ser empreendedores. Apenas pelo jogo do mercado nós nos educamos a nos governar como empreendedores. Isso significa também que, se o mercado é visto como um livre espaço para os empreendedores, todas as relações humanas podem ser afetadas por essa dimensão empresarial, constitutiva do humano”(Israel Kirzner, Concurrence et esprit d’entreprise, p.146). Assim, os homens vão pouco a pouco deixando a ignorância e aprendendo com os outros como aproveitar as oportunidades, é claro que não procuram a estabilização que aconteceria se todos soubessem tudo e tivessem a mesma quantidade de informações, não esse abandono progressivo da ignorância apenas levará os indivíduos para buscarem aprender mais e se adaptarem cada vez mais ao dinamismo do mercado, desenvolvendo mais seu espírito empreendedor. “O que importa nesse processo é a redução da ignorância, o learning by discovery, oposto tanto ao saber total do planejador como ao saber total do equilíbrio geral” (p.147) Apenas assim será possível que o indivíduo consiga lidar com a competição dentro do mercado, ou seja, saber como se posicionar frente a concorrência com outras empresas e demandas “O mercado define-se precisamente por seu caráter intrinsecamente concorrencial. Cada participante tenta superar os outros numa luta incessante para tornar-se líder e assim permanecer” (p.147). Portanto, é por meio do processo de mercado que os indivíduos terão experiência e aprendizados para deixar o estado de ignorância. Formar o novo empreendedor de massa “Não há consciência espontânea da natureza do espírito humano para Von Mises, assim como para Hayek não há consciência das regras a que obedecemos” (p.149). Esses dois autores autro-americanos deixam claro, “É fato que as massas não pensam, Mas é precisamente por essa razão que seguem os que pensam” (Ludwig Von Mises, Socialisme, p.149). Eles defendiam ferrenhamente que as massas não eram capazes de refletir, assim era necessário travar uma batalha ideológica entre socialismo e capitalismo, pois assim, a que ganhasse colonizaria a consciência do povo. Pois, “se as massas não pensam, como Von Mises gosta de dizer, cabe aos círculos estritos dos intelectuais travar frontalmente o combate contra todas as formas de progressismo e reforma social, germe do totalitarismo” (p.150) Desta forma, como os mecanismos do mercado podem ser aprendidos, os economistas devem se esforçar para conseguirem contribuir e acelerar o processo de autoformação do sujeito, assim, desde a escola a cultura da empresa deveriam ser inseridos nos meios sociais. A universalidade do homem empresa Von Mises tratará o papel do empreendedor de forma diferente “Trata-se menos da função específica do empreendedor dentro do funcionamento econômico do que da faculdade empresarial tal como existe em todo sujeito, da capacidade de se tornar empreendedor nos diversos aspectos de sua vida ou até mesmo de ser o empreendedor de sua vida” (p.151). Ele dá à figura do empreendedor outra perspectiva, mais que agente no jogo econômico ele é um aspecto intrínseco de cada indivíduo, uma força motriz dentro de cada um que o permite aproveitar as oportunidades do mercado. Essa ideia será desenvolvida por Jean-Baptiste Say que em seu livro Traité d’economie politique, de 1841, identifica o empreendedor como “a do especialista que produz os conhecimentos, a do empreendedor que põe os conhecimentos em prática para produzir novas utilidades e a do operário que executa a operação produtiva” (p.151). Desta forma, o empreendedor é responsável por colocar o conhecimento em prática, ser o meio termo entre teoria e aplicação, essa função é compete o sucesso da empresa, quiçá do país. “O empreendedor da indústria é o principal agente da produção. As outras operações são indispensáveis para a criação dos produtos, mas é o empreendedor que as implementa, que lhes dá um impulso útil e tira valor delas. É ele que julga as necessidades e, sobretudo, os meios de satisfazê-las e compara o objetivo com esses meios; assim, sua principal qualidade é o julgamento” (p.152). Neste trecho Jean-Baptiste demostra uma das qualidades que o empreendedor deve ter, sua capacidade de julgamento sobre os processos produtivos de uma empresa, ou a chance de sucesso de uma empreitada são oriundas única e exclusivamente da sua experiência, ou seja, mérito próprio. Mas é com Joseph Schumpeter que e sua Teoria do desenvolvimento econômico que a figura do empreendedor toma os moldes que vimos hoje. Para ele o empreendedor deve acompanhar o mercado e o capital como tudo, e uma vez que ambos são extremamente dinâmicos os empreendedores também haveriam de ser, está marcado na estrutura do processo de uma economia de mercado a concorrência e com ela outra palavra vem, inovação. “a empresa é o lugar da execução dessas novas combinações, do mesmo modo que o empreendedor é o personagem ativo e criativo cuja função é pô-las em prática. Por definição, o empreendedor schumpeteriano é um inovador que se opõe ao personagem rotineiro que se contenta em explorar os métodos tradicionais” (p.153) Posteriormente, Peter Drucker, um neoschumpeteriano, vai reviver o espírito do empreendedor-inovador e reivindicar uma nova sociedade empresarial, ou seja, sistematizar esse espírito para todos os domínios da ação coletiva. Em suma, é necessário compreender que a concepção de indivíduo como um empreendedor, assim como conhecemos atualmente, é o resultado dessa amalgama de teorias, autro-americanas e schumperitianas. Assim, com a ajuda da imprensa e da educação essa nova concepção de racionalidade humana foi e é difundida. Estado forte, guardião do direito privado É de conhecimento geral que Friedrich Hayek não tinha boa relação com o Colóquio de Lipmann, assim como não teve sua ‘fobia do Estado’ abraçada pelo colóquio e pelos ordoliberais. Isso se deve à ele tentar encobrir a descontinuidade que existe entre liberalismo e neoliberalismo. Entretanto, Hayek também não quer se vincular ao antigo liberalismo, assim começa a ponderar sobre a intervenção estatal, dizendo que não é mais uma questão de intervir ou não, mas sim, uma questão de compreender a natureza da intervenção, para assim diferenciar intervenções legítimas de não legítimas. No final, ele incorpora, mesmo que de forma implícita e oculta, as disposições do Colóquio. Nem laissez-faire... Nem “fins sociais” O fato que Hayek tenta se distanciar do laissez-faire e com isso da abominação que essa corrente tem da intervenção estatal, o deixa a mercê da outra ponta teórica, os ordoliberais alemãs e a economia social de mercado. Assim, ele precisa reafirmar sua posição frente a essa teoria. Por conta disso, ele escreve Des sortes de rationalisme dizendo: “a palavra “social” priva de qualquer conteúdo preciso os termos com os quais é combinada (como nas expressões alemãs “soziale Marktwirtschaft” ou “sozialer Rechtsstaat”) [...]. Em consequência, senti-me obrigado a tomar posição contra a palavra “social” e demonstrar, em particular, que o conceito de justiça social não possuía o menor significado e criava uma ilusão enganadora que pessoas de ideias claras devem evitar” (p.159) Com isso, é possível identificar o lugar teórico que Hayek se enquadra, ou melhor, os lugares que ele não se enquadra, como o liberalismo manchesterista e a economia social de mercado dos ordoliberais. A “ordem espontânea do mercado” ou a “catalaxia” Hayek, não se conformando com teoria das ações humanas, assim escapando da bifurcação obrigatória entre ação e vontade humana, o autor vai criar uma terceira lógica, categoria intermediária. Assim, a teoria da ação humana tem: taxis, que é uma ordem construída pelo homem, seguindo seus desígnios estabelecidos, Hayek chama essa ordem de ordem fabricada, artificial. Kosmos, a ordem independente da ação humana, ou seja natural, Hayek irá chama-la de ordem natural. E a terceira ordem que foi criada pelo teórico, a ordem espontânea “agrupa todos os fenômenos que resultam da ação humana, mas nem por isso são resultado de um desígnio (design) humano”(p.161). A criação dessa nova ordem foi necessária para pensar o mercado, que é de ordem espontânea. Esta ordem de mercado por sua vez é diferente de uma economia, que é uma organização fruto da ação deliberada do homem. Hayek diz que a ordem de mercado é diferente da economia, pois a ordem não segue nenhuma lógica individual permitindo que ela possa perseguir todos os objetivos. Outro motivo, seria que a ordem de mercado é regida por leis gerais que não tem um fim próprio, o que seria visar o benefício de alguém, pelo contrário, essas leis consistem “unicamente em interdições de invasão do domínio protegido do outro” (Friedrich Hayek, Essais de philosophie, de science politique et d’économie, p. 162). O que garante uma imparcialidade no tratamento que as leis têm para com os indivíduos e tornando possível que cada um percorra seus objetivos. Um terceiro motivo é que a ordem de mercado, mesmo que não seja a única ordem em uma sociedade, é a mais importante. Pois, esta possibilitou que a humanidade evoluísse de agricultores para a “Grande sociedade”. Hayek argumenta ainda que a sociedade da ordem de mercado é constituída por relações econômicas que se encontram na base do vínculo social. Essa teoria de Hayek tem muita relação com outra teoria central a da ‘divisão do conhecimento’. Para ele, os indivíduos possuem conhecimentos fragmentados e limitados. Mas o mercado consegue unificar esses conhecimentos “graças ao mecanismo do mercado, a combinação desses fragmentos espalhados gera resultados em toda a sociedade que não poderiam ser gerados de forma deliberada pela via de uma direção consciente” (p.163) Em síntese, Hayek chama essa terceira via de catalaxia, “vem do verbo grego antigo katalatein, que, significativamente, quer dizer não só “trocar” e “intercambiar”, como também “admitir na comunidade” e “fazer de um inimigo um amigo”” (p.164). Isso significa que a ordem de mercado é como a troca uma forma de estabelecer relações e vínculos sociais. “Esfera garantia de liberdade” e o direito dos indivíduos Entender o conceito de lei, que guia a ordem de mercado é vital. Hayek conceituará lei como “as regras impessoais e abstratas que se impõem a todo indivíduo, tanto independentemente da busca de um fim particular como independentemente de qualquer circunstância particular” (p.164). É indubitável que essas regras são do direito privado, que caracteriza a sociedade pensada pelo liberalismo ‘uma sociedade de direito privado’, assim é necessário que se distingue direito público e privado, pois o direito público usa regras de organização, e esta tem objetivos específicos, contudo, o direito privado usa regras de conduta aplicáveis a todos. É preciso então separar ambas as áreas, até porque o direito privado é de ordem espontânea e o direito público de ordem construída. Sendo assim, as leis que orientam o direito privado não são “vontade arbitrária de uns poucos homens, mas de um processo espontâneo de seleção que age em longo prazo” (p.165) É neste ponto que Hayek vai trazer a tona o “evolucionismo cultural”, usando a teoria darwiniana, ele dirá que essas regras do direito privado são como as regras da evolução biológicas, pois, a medida que evoluímos como sociedade elas também evoluem, uma vez que são frutos da ordem espontânea. Assim, essas regras do direito privado não são postas como as do direito público. “Assim como o mecanismo da seleção natural assegura a sobrevivência das espécies mais adaptadas a seu ambiente e a extinção das outras, a seleção inconsciente de regras de “conduta justa” (ou regras de direito privado) favorece a adaptação das sociedades a um ambiente com frequência hostil” (p.165) Desta forma, no direito privado as leis não são criadas pelos legisladores e sim, descobertas por eles, porque elas já incorporavam os costumes da sociedade. Neste ponto, Hayek se opõe ao direito positivado, ou melhor, ao positivismo jurídico que impõem regras de conduta humana. A tradição liberal afirma a anterioridade do direito sobre a legislação e por conta disso, Hayek discorda de Hobbes e Jeremy Bentham que acreditavam que a lei é o mandamento de um legislador. Porém, é válido salientar que isso não coloca Hayek como um jusnaturalista. Eludindo da dicotomia jusnaturalismo e juspositivismo, o autor dirá que leis são “produto da experiência prática da espécie humana”, ou seja, “resultado imprevisto de um processo de crescimento” (p.167) Esse autor dirá que há três regras fundamentais, “a liberdade de contrato, a inviolabilidade da propriedade e o dever de compensar o outro pelos danos que lhe são causados” (p.168). Por conta disso, é necessário pormenorizar o conceito de liberdade do homem, para Hayek a liberdade não é o poder de fazer o que quer e sim, a ausência de desse obstáculo preciso que é a coerção exercida por outrem. Na medida em que as “regras-leis” têm a função de proteger o indivíduo da coerção exercida por outro, ficará estabelecido que, num regime de liberdade, “a esfera livre do indivíduo compreende toda ação que não é explicitamente restringida por uma lei geral”” (p.169) Quanto aos direitos individuais, diz que haverá direito individuais se houver proteção de uma esfera privada, garantida nas regras gerais. “Portanto, as regras gerais são, em primeiro lugar e acima tudo, regras de composição das esferas protegidas e, como tais, garantem a cada indivíduo direitos cuja extensão é estritamente proporcional à de sua esfera própria” (p.170). Contudo, Hayek faz outro movimento no sentido de ampliar o conceito de propriedade, o levando para além de algo material. Desta forma, fica claro que o que deve ser protegido pelos direitos individuais é mais do que bens, ele incorpora um sentido lockeano de propriedade, ou seja: vida, liberdade e posses. O domínio legítimo das atividades governamentais e a regra do Estado de direito Para Hayek, a esfera protegida dos direitos pelas regras gerais podem ser usadas para mensurar onde é e onde não é legítima a intervenção estatal. Como dito, “toda intromissão deste último (Estado) nessa esfera constituirá um atentado arbitrário aos direitos do indivíduo, de modo que se teria aqui o critério que permite discriminar as intervenções legítimas das ilegítimas” (p.171). Enunciando então a teoria de John Stuart Mill. Para entender a teoria da legitimidade é necessário compreender que a esfera protegida só existe devido às regras gerais de conduta. Assim, se o Estado alterar mesmo que bem intencionadamente essas regras gerais, ele está atacando diretamente as liberdades individuais. “Por isso, é necessário que se estabeleça em princípio que nenhuma intervenção do Estado, por mais bem-intencionada que seja, deve eximir-se do respeito devido às regras gerais” (p.172). Por conta disso, o Estado deve aplicar a si mesmo as regras gerais, por isso, os liberais pensam em uma sociedade do direito privado, pois este deve ser aplicado a todos, inclusive as organizações. É dessa ideia de Estado submetido as leis do direito privado que conceitua a expressão “Estado de direito” que é, segundo o autor, uma distinção que se faz dos sistema que tem ou não liberdade. Dessa forma é salutar dar um conceito mais concreto de Estado de direito. “Segue-se disso uma dupla definição do Estado de direito: em primeiro lugar, ele enquadra os atos da potência pública por meio de leis que os limitam de antemão, de modo que não é a vontade do soberano, mas a forma da lei que constitui o princípio da obrigação; em segundo lugar, o Estado de direito faz uma distinção de princípio entre as leis, que valem por sua validade universal, e as decisões específicas ou medidas administrativas” (p.174). Assim, faz parte do conceito de Estado de direito, o direito de todo e qualquer cidadão processar o próprio Estado, uma vez que ele segue as mesmas leis que qualquer outra instituição. Ele é um Estado que oferece a cada cidadão um dispositivo de poder contra ele próprio. Hayek institui assim três níveis deste Estado de direito: primeiro, o nível metalegal, que é o da regra do Estado de direito; segundo, o nível propriamente legal, que é o da legislação entendida no sentido da determinação de novas regras gerais de conduta; terceiro e último, o nível governamental, que é o da promulgação dos decretos e regulamentos específicos. Uma vez que a regra do Estado de Direito é a principal, estabelece-se uma diretriz para as demais regras, em um movimento de limitação do poder estatal. E como ele esta no topo da hierarquia, ele determina um princípio para as demais leis, determinando até mesmo como o legislador deve fazer as leis. Cria-se assim uma distinção entre Estado de direito formal e Estado de direito material. “Estado de direito material”, que exige que a ação coercitiva do Estado seja estritamente limitada à aplicação de regras uniformes de conduta justa, ao passo que o “Estado de direito formal” requer apenas a legalidade, isto é, “exige simplesmente que cada ação do Estado seja autorizada pela legislação, quer essa lei consista numa regra geral de conduta justa, quer não” (p.175) Entender que o Estado de direito incorpora uma limitação do legislativo, “reconhecer que a extensão dos direitos individuais caminha de mãos dadas com a elaboração das regras do direito privado é fazer dessas regras o modelo ao qual o próprio poder Legislativo deve conformar-se em sua atividade, portanto, impor-lhe de antemão limites intransponíveis” (p.175) Isso vai contra a concepção de Bentham e outros autores que entendem o legislador como soberano das leis, pelo contrário ele está submetido ao regime de Estado de direito. Assim, para uma lei estar de acordo com o Estado de direito, ela deve ser, segundo Hayek: generalidade, ou seja, as leis devem ser gerais e se aplicar a todos sem distinção, não tendo fim e não privilegiando um grupo em detrimento do outro. O segundo é previsibilidade, a certeza que o indivíduo tem haverá estabilidade nas leis. E em ultimo a igualdade, a lei deve ser aplicada de forma igual a todos. O maior ganho do Estado de direito para Hayek é “o poder político somente pode intervir na esfera privada e protegida de uma pessoa para punir uma infração cometida contra uma regra promulgada” (p.177). Assim, o Estado ganha a função de punir quem descumpre as regras gerais, mantendo assim a estabilidade do quadro jurídico frente a um dinamismo do mercado. “O que está em jogo aqui é exatamente a preservação da eficiência da ordem do mercado, já que o elemento decisivo da confiança reside no fato de que o indivíduo possa contar com a aptidão do Estado para fazer com que as regras gerais sejam respeitadas e, ao mesmo tempo, com o respeito das regras gerais pelo próprio Estado. Em resumo, a certeza proporcionada pelo quadro jurídico deve compensar a incerteza inerente à situação do indivíduo dentro de uma ordem espontânea tal como a ordem do mercado. Isso mostra a importância da ação coercitiva do Estado quando se trata de cuidar da punição das infrações cometidas contra as regras de conduta: garantir a segurança dos agentes econômicos é a verdadeira justificação do monopólio do uso da coerção que se encontra nas mãos do Estado” (p.178) O outro ganho, seria que as regras gerais de conduta impostas ao Estado constitui uma limitação apenas para as atividades coercitivas do Estado, liberando assim todas aquelas atividades não coercitivas, contanto que ele não tenha o monopólio delas. Há áreas em que o Estado é necessário, como: “criar um quadro favorável às decisões individuais: instauração e manutenção de um sistema monetário eficaz, definição de pesos e medidas, disponibilização de informações para o estabelecimento de estatísticas, organização da educação sob uma ou outra forma etc.” (p.179). Ademais, o aspecto da igualdade ao qual as leis devem seguir exige que elas sejam as mesmas para todos os grupos, não privilegiando ninguém. Com isso, leis para privilegiar negócios, não são permitidas da mesma forma que leis que fazem distribuição de renda ou qualquer lei da justiça social também seriam proibidas seguindo o aspecto de igualdade criado pelo Estado de direito. “Se ele repousa sobre a justiça comutativa, o Estado de direito exclui a busca de uma justiça distributiva” (Friedrich Hayek, La constitution de la liberté, cit., p. 232. Desde Aristóteles, a expressão “justiça comutativa” designa a justiça nas trocas) Desta forma, fica claro que Hayek não pensou um neoliberalismo que tenham a ‘fobia do Estado’, pelo contrário ele queria que o Estado intervisse em determinadas áreas para que a ordem de mercado fosse respeitada e possibilitada. Podemos falar de um ‘intervencionismo jurídico’ , pois como as leis são entendidas como regras do jogo econômico, “a lei nada mais é do que “regra de jogo para um jogo no qual cada um é mestre, para si e de sua parte”, o Judiciário adquire “uma nova autonomia e uma nova importância”(p.182). Essa Judicialização é um traço distintivo do liberalismo e do neoliberalismo. Há três implicações nisto, a primeira delas é que essas regras do jogo econômico guiaram toda a sociedade. Em segundo que ela não estão mais na dicotomia direito natural e positivo, elas são regras do direito provado e penal, e a terceira é que o Estado está submetido à essas regras. Tudo isso é muito diferente do liberalismo. Antes Estado forte que democracia Hayek faz questão de se diferenciar do laissez-faire, mas também da teoria econômica liberal clássica encarnada por Locke. Essa distinção é justa, há diferenças notáveis, para Locke, por exemplo, o legislador era o governante supremo e cabia a que fazer leis conformo o ‘bem do povo’, Hayek esvazia esse conceito, substituindo o pelas regras de conduta justa, pois estas são mais justas e não dão tratamento diferente para um grupo específico. Ademais, Locke, como já dito concedia ao legislador a autoridade suprema de fazer leis. Para Hayek, o pode executivo era o único que poderia criar novas regras de conduta, por meio de uma assembleia legislativa, “assembleia escapa a qualquer controle democrático: os nomótetas seriam homens maduros (de 45 anos no mínimo), escolhidos por eleitores da mesma idade para um período de quinze anos. A fim de evitar a palavra “democracia”, somente outorga poder de sujeição à vontade da maioria do maior número de indivíduos se a maioria se compromete a seguir a regra geral” (p.183). Há, ainda, outro ponto distintivo entre Hayek e Locke. Locke conferia ao povo o poder legitimo de destituir um poder legislativo quando esse não fosse bom, ele dizia “sempre subsiste no povo um poder supremo de destituir ou mudar o Legislativo, quando se dá conta de que este age em contradição com a missão que lhe foi dada” (John Locke, Second traité du governement, p.184). Em contrapartida, Hayek não acreditava na democracia, pois essa desencadearia, sem dúvidas, em uma ditadura da maioria sobre a minoria. Além disso, se recusa a conferir à maioria do povo o poder absoluto de obrigar todos os seus membros. Hayek disse para o jornal chileno El Mercurio em 1981: “Entenda, é possível para um ditador governar de forma liberal. E também é possível para uma democracia governar sem liberalismo nenhum. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo” (p.184) Esse temor que se tem da democracia tem um motivo: trata-se, em última análise, de isentar as regras do direito privado (o da propriedade e da troca comercial) de qualquer espécie de controle exercido por uma “vontade coletiva”. Tudo isso é muito lógico, se recordarmos o que implica o ideal de uma “sociedade de direito privado”: um Estado que adota por princípio a submissão de sua ação às regras do direito privado não pode assumir o risco de uma discussão pública sobre o valor dessas normas, a fortiori (com razão mais convincente) não pode aceitar entregar-se à vontade do povo para decidir essa discussão. A grande virada A década de 70 e 80 foi marcada pela ascensão e difusão de políticas neoliberais. Ronald Reagan e Margaret Thatcher encarnaram uma nova direita, com agendas conservadoras e neoliberais, que se opunham ferrenhamente ao Estado de bem estar social estabelecido. As políticas neoliberais foram vendidas como a única saída para a estagflação. “Os slogans frequentemente simplistas dessa nova direita ocidental são conhecidos: as sociedades são sobretaxadas, superregulamentadas e submetidas às múltiplas pressões de sindicatos, corporações egoístas e funcionários públicos” (p.189). Assim, começa um desmanche do bem estar social construído. Ataques aos sindicatos, aos direitos trabalhistas (uma vez que esses são diretamente ligado as empresas), privatizações dentre outras medidas. Entretanto, essa grande virada foi muito mais complexa, pois, uma lógica foi imposta a sociedade, ao Estado, a subjetividade do indivíduo. Esse processo preciso de uma reconstrução geral do sistema. Uma vez que “só há “grande virada” mediante a implantação geral de uma nova lógica normativa, capaz de incorporar e reorientar duradouramente políticas e comportamentos numa nova direção” (p.190) Assim, a sociedade da “Economia livre e Estado forte” exigiu enormes mudanças, a primeira delas é esse uso do poder coercitivo do Estado, capaz de proteger o mercado e suas ramificações, o Estado ganha a função de protetor, não só do mercado mais de valores e morais, assim como o responsável por impor a sociedade esses valores e morais. Não trata-se, como se diz por ai, de uma retirada do Estado, não! Há Estado, mas ele assume funções e responsabilidades diferentes. Além disso, para se pensar em a ‘Grande virada’ é necessário compreender quais mecanismo levaram ela a ser reconhecida como a melhor lógica de mercado. Para a implantação do neoliberalismo foi necessário uma espécie de estratégia neoliberal: “entenda-se o conjunto de discursos, práticas, dispositivos de poder visando à instauração de novas condições políticas, a modificação das regras de funcionamento econômico e a alteração das relações sociais de modo a impor esses objetivos” (p.191) Entretanto, não é apenas esse conceito de estratégia, indubitavelmente, há outro. Pois, esse primeiro conceito passa a impressão que a neoliberalismo partiu de um plano conspiratório para ‘dominar o mundo’, na verdade não. Ele surge do confronto contra o estado de bem estar social, “objetivo de uma nova regulação pela concorrência não existia antes da luta contra o Estado de bem-estar na qual se engajaram, alternada ou simultaneamente, círculos intelectuais, grupos profissionais, forças sociais e políticas, muitas vezes por motivos bastante heterogêneos. A virada começou por pressão de certas condições, sem que ninguém sonhasse ainda com um novo modo de regulação em escala mundial” (p.192) Podemos compreender, então, que essa segunda estratégia neoliberal não foi arquitetada por um estrategista e sim fruto de um processo. Uma nova regulação pela concorrência Quando falamos de ‘Grande Virada’, termo que David Harley chama de neoliberalização, dois problemas incorrem. O primeiro deles é entendê-la como transformação apenas interna e o segundo é ver a ‘revolução neoliberal’ como a aplicação concertada de uma teoria econômica. Isto é um equivoco, pois o sucesso de expansão do neoliberalismo se deve a uma conexão entre um projeto político e uma dinâmica endógena (de dentro para fora). Para compreender a dinâmica endógena, basta olha para os governos e as instituições que praticamente imitaram Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Além disso, há eventos importantes que ajudaram a mudar a dinâmica interna nos país. A saber, a Comissão Trilateral que tinha como objetivo “debater propostas práticas de uma ação conjunta” entre EUA, Europa e Japão. Esta comissão escreve então um relatório intitulado The Crisis of democracy, nela há uma constatação que a democracia tal como se dava, ou seja, com a participação popular mássica e participação de grupos marginalizados, não poderia acontecer, pois havia muitas reinvindicações. Para eles, melhor seria se a sociedade gozassem “de apatia e não participação da parte de certos indivíduos e grupos”. Eles queriam limitar drasticamente a democracia. Esse movimento evidenciava que notoriamente o sistema fordista de produção tinha chegado ao fim. Este “conciliava os princípios do taylorismo com as regras de divisão do valor adicionado favoráveis à alta regular dos salários reais (por indexação pelos preços e pelos ganhos de produtividade)” (p.195). O sistema era baseado em uma solidariedade macroeconômica, assim quanto maior a produção da fábrica, maiores seriam os salários. Os arranjos sociais fordistas entendiam que poderia haver valorização do capital e aumento dos salários, um compromisso ‘social-democrata’. Todavia, em 1960, houve a estagflação que por mais que tivesse vários motivos, colocou fim a política keynesiana e fez com que as empresas perdessem lucros. “Essa queda da “lucratividade” explica-se pela desaceleração dos ganhos de produtividade, pela relação das forças sociais e da combatividade dos assalariados (o que deu aos “anos 1968” sua característica histórica, vale ressaltar que esse foi o ano de maior taxa de greves no mundo), pela alta inflação amplificada pelas duas crises do petróleo, em 1973 e 1979” (p.196). Por conta disso, a nova política monetarista esforça-se precisamente para responder aos dois problemas principais, que são a estagflação e o poder de pressão das organizações de assalariados. O que se fez foi interromper a indexação dos salários pelos preços e, assim, transferir a sangria causada pelas duas crises do petróleo para o poder de compra dos assalariados em benefício das empresas. Começa assim, uma série de ofensivas contra os sindicatos, que foi fagocitada até pelos governos de esquerda. Além disso, o aumento na taxa de juros aumentou as dívidas dos países latino-americanos que haviam pedido empréstimos ao FMI e ao Banco mundial. “O aumento das taxas de juros para o dobro nos Estados Unidos, em 1979, e suas consequências internas e externas vão devolver aos credores certo poder sobre os devedores, exigindo deles uma remuneração real mais elevada e impondo-lhes condições políticas e sociais muito desfavoráveis” (p.197). Por meio desses empréstimos, os países mais pobres financiavam os mais ricos e pior, tinham que implantar reformas neoliberais em seus governos, o que levou a devastação da qualidade de vida dessas populações. Desta forma, o neoliberalismo vai transformando uma lógica de concorrência, mudando as “regras do jogo”. As medidas mais imediatas e mais difundidas pelo neoliberalismo são as privatizações. Elas têm como lema a ideia de que o Estado não é capaz de gerir os negócios. Sendo assim, com cada vez mais empresas na mão na iniciativa privada, a concorrência se torna mais acirrada. A concorrência é a regra deste sistema, ela gerou um sistema disciplinar mundial que foi consolidado no Consenso de Washington. Nele estabeleceu-se que os países que quisessem financiamento e empréstimos, precisavam implantar certas medidas. “Entre as dez recomendações da nova norma mundial, encontramos: disciplina orçamentária e fiscal (respeito ao equilíbrio orçamentário e diminuição dos descontos obrigatórios e taxas de impostos), liberalização comercial, com supressão das barreiras alfandegárias e fixação de taxas de câmbio competitivas, abertura à movimentação de capitais estrangeiros, privatização da economia, desregulamentação e criação de mercados concorrenciais e proteção aos direitos de propriedade, em particular à propriedade intelectual dos oligopólios internacionais” (p.197) Essa estratégia no Banco Mundial e do FMI colocou as economias mais frágeis em situações graveis, pois para que conseguissem dinheiro, elas teriam que estabelecer reformas estruturas grandes que deixavam as populações sem proteção social. “As “terapias de choque” sufocaram o crescimento com taxas de juro muito elevadas, arruinaram a produção local expondo-a sem cautela à concorrência dos países mais desenvolvidos, muitas vezes agravaram a desigualdade e aumentaram a pobreza, reforçaram a instabilidade econômica e social e submeteram essas economias “abertas” à volatilidade dos movimentos de capitais” (p.198) O crescimento do capitalismo financeiro A liberalização financeira e globalização da tecnologia possibilitou o avanço do capitalismo financeiro. “Um mercado único de capitais instala-se por intermédio de uma série de reformas legislativas, das quais as mais significativas foram a liberação total do câmbio, a privatização do setor bancário, a abertura dos mercados financeiros e, em nível regional, a criação da moeda única europeia” (p.199). Essa liberalização toda do mercado financeiro era fruto de uma pressão, pois o setor queria se tornar financiador interno de empresa e até mesmo do Estado, e externa financiando outros Estados. E mesmo que essa expansão do setor financeiro estivesse gerando oligopólios e bolhas especulativas, como a globalização foi encabeçada pelo setor financeiro, os Estados permitiram. Todavia, essa passagem do fordismo para o capitalismo financeiro promoveu grandes mudanças nas empresas. Uma vez que uma empresa coloca suas ações no mercado de capitais ela está sujeita as pressões dos acionistas internos e externos para aumentar o dividendo deles. Muitas vezes, essa pressão por maiores lucros era repassada para os trabalhadores que tinham seus salários diminuídos ou um aumento nas metas de produtividade. O poder dos acionistas dentro da empresa é tão grande que todo o plano dos gestores e para aumentar os dividendos, sendo o maior objetivo de toda a equipe de dirigentes aumentar o valor das cotações daquela empresa. “O mercado financeiro foi constituído em agente disciplinante para todos os atores da empresa, desde o dirigente até o assalariado de base: todos devem submeter-se ao princípio de accountability, isto é, à necessidade de “prestar contas” e ser avaliado em função dos resultados obtidos” (p.201) Todavia, não foi só isso, a financeirização aumentou consideravelmente a desigualdade. Pois, com a deflação dos salários, os grandes capitalistas poderiam agregar mais valor e suas empresas e assim talvez instalar fábricas em locais com a mão de obra mais barata. Assim ouve uma competição internacional entre os trabalhadores, que com salários reduzidos contraiam dívidas. “O empobrecimento relativo e muitas vezes absoluto desses assalariados submeteu-os desse modo ao poder das finanças” (p.201). Em financeirização afetou ainda a subjetividade das pessoas, pois todos foram e são levados a adquirir uma ‘subjetividade financeira’. “Cada sujeito foi levado a conceber-se e comportar-se, em todas as dimensões de sua vida, como um capital que devia valorizar-se: estudos universitários pagos, constituição de uma poupança individual para a aposentadoria, compra da casa própria e investimentos de longo prazo em títulos da bolsa são aspectos dessa “capitalização da vida individual” que, à medida que ganhava terreno na classe assalariada, erodia um pouco mais as lógicas de solidariedade” (p.201). Contudo, não deve-se entender que o neoliberalismo consiste apenas no capitalismo financeiro ou na liberalização do setor financeiro. Essa financeirização é uma ordenação das atividades econômicas, das relações sociais e subjetividades. Tanto que o Estado tem um papel importante nisso, pois a ampliação do setor financeiro pode e deve ser entendido como uma política de finanças global regida pela concorrência. “Nada é mais indicativo disso do que o papel dos Estados e das organizações econômicas internacionais no estabelecimento do novo regime de acumulação predominantemente financeiro” (p.202) O mesmo Estado que liberal a economia e o setor financeiro ficou refém dele logo depois e teve que se adaptar às pressas as novas finanças mundiais. Mas, além disso, como os bancos e as instituições do setor financeiro foram privatizadas, “As privatizações, da mesma forma que o estímulo à poupança individual, acabaram por conferir um poder considerável a bancos e seguradoras” (p.203). Desta forma, fica claro que o Estado tem um papel muito importante no neoliberalismo. Cabe a ele aumentar, criar e abrir os mercados para que eles estejam aptos à concorrer com outros países que também fazem a mesma coisa. Além disso, o Estado criou um sistema legal que institucionaliza a gestão empresarial do sistema financeiro. “coube ainda ao Estado criar o elo entre o poder do capital financeiro e a gestão empresarial: ele deu um quadro legal às normas da governança empresarial que consagrava os direitos dos acionistas e instaurava um sistema de remuneração dos dirigentes baseado no aumento do valor das ações (stockoptions)” (p.203). Enquanto o Estado cuida das regulações e burocracias, as instituições financeiras se tornam o centro dos dispositivos econômicos captando a renda das famílias e das empresas, o que lhe conferiu ainda mais poder econômico e social. Contudo, é notório salientar que essas instituições financeiras só podem assumir riscos no mercado concorrencial, a fim de aumentar sua rentabilidade, pois tem o Estado para lhes auxiliar em último caso. “O salvamento das caixas econômicas nos anos 1990 nos Estados Unidos mostrou que o Estado não poderia permanecer indiferente ao desmoronamento dos grandes bancos, segundo o princípio do “too big to fail” [“grande demais para quebrar”]. Na realidade, há muito tempo o governo neoliberal faz o papel de credor de última instância, como mostra a prática de compra de créditos de bancos e securitização nos Estados Unidos” (p.204). É o princípio da ‘nacionalização dos gastos e privatização dos lucros’, evidenciando que na verdade o Estado neoliberal não tem nada de mínimo, ele é construtor, vetor, parceiro, salvador e financiador do sistema financeiro. Ideologia (1): o “capitalismo livre” A tese do capitalismo livre foi construída. “Criou-se toda uma vulgata sobre o tema da necessária “desobrigação do Estado” e a incomparável “eficiência dos mercados”” (p.205) Para que essa luta ideológica fosse ganha muitos estudos foram feitos e vários mecanismo usados para convencer a população. Neste aspecto Hayek, Mises e Friedman tiveram um papel central de difundir a ideologia, para eles educação e propaganda eram temas centrais. Além disso, os chamados escritórios de ideias (think tanks) foram constituídos, um exemplo é a Sociedade de Mont- Pèlerin, e com isso, pouco a pouco as ideias modernos foram derrubando outras ideologias contrarias, como a social democracia. O neoliberalismo já sabia que precisaria das mídias, universidades e mundo político para se difundir, e mais para derrubar demais ideologias. “Nos Estados Unidos, Milton Friedman, em conjunto com seus trabalhos acadêmicos, teve um papel importante na reabilitação do capitalismo com uma produção excepcional de artigos, livros e programas de televisão. Ele foi o único economista de sua época a aparecer na capa da Time Magazine (1969). Perfeitamente consciente da importância dessa propagação das ideias pró-capitalistas, dizia que, na maioria das vezes, a legislação apenas acompanha um movimento da opinião pública que aconteceu vinte ou trinta anos atrás” (p.206) Friedman argumentava que as legislações estava sempre atrasadas ao que a população queria de verdade, elas não conseguiram acompanhar a opinião publica. Apostando nessa tese Friedman consegue cativar as elites, questionando tudo que havia sido proposto pelo estado keynesiano, como ampliação dos gastos públicos com políticas sociais de distribuição de renda e afins. Mas, não podemos esquecer que a gloria ideológica do neoliberalismo, não se deu apenas por essas ideias, mas também por um recuo da esquerda mundial. Ademais, vale ressaltar que o neoliberalismo da década de 70 e 80 ganhou relevância por se opor de alguma forma ao Estado. Argumentava que ele era ineficaz, irresponsável, injusto e incompetente, pois como as empresas estatais não competiam não se aperfeiçoavam e continuavam estagnadas. Alegava-se “Nos últimos trinta anos, o “custo do Estado” e o peso excessivo dos impostos foram constantemente alegados para legitimar uma primeira virada no plano fiscal” (p.207) O próprio Friedman acreditava em um Estado que gastasse o menos possível “Minha definição seria a seguinte: é “liberal” uma sociedade em que os gastos públicos, todas as coletividades juntas, não ultrapassam 10% a 15% do produto nacional” (Entrevista com Henri Lepage, “Milton Friedman: le triomphe du libéralisme”, Politique Internationale). A teoria de Hayek e Mises que havia sido criado em 1930, se adequava como uma luva na nova realidade, volta a tona o ‘governo frugal’, ou seja um Estado leve, não burocrático. Pois, como se via nos exemplos da União Soviética e nas políticas keynesianas, um Estado centralizador, não fazia sentido ou efeito. Além disso, o Estado passou a ser culpado pela pobreza, a miséria e do desemprego. “Mais ainda, houve uma reviravolta na crítica social: até os anos 1970, desemprego, desigualdades sociais, inflação e alienação eram “patologias sociais” atribuídas ao capitalismo; a partir dos anos 1980, os mesmos males foram sistematicamente atribuídos ao Estado. O capitalismo deixou de ser o problema e se tornou a solução universal” (p.209). Ideologia (2): o “Estado de bem-estar” e a desmoralização dos indivíduos Os teóricos neoliberais, por meio desta lógica do ‘governo frugal’, começa a questionar toda intervenção estatal, perguntando se ela é ou não útil. Eles chegaram a conclusão que “o seguro-desemprego e a renda mínima são os responsáveis pelo desemprego; os gastos com saúde agravam o déficit e provocam a inflação dos custos; a gratuidade dos estudos incentiva a vadiagem e o nomadismo dos estudantes; as políticas de redistribuição de renda não reduzem as desigualdades, mas desestimulam o esforço” (p.210). Assim, fica claro que toda intervenção social feita pelo Estado gerou uma corja de aproveitadores e encostados, “pessoas que ficam mamando na teta do governo”. Contudo, eles vão além e dizem que a intervenção estatal provoca feridas bem mais profundas que afetam a moralidade dos cidadãos. “O grande tema neoliberal afirma que o Estado burocrático destrói as virtudes da sociedade civil: a honestidade, o sentido do trabalho bem feito, o esforço pessoal, a civilidade, o patriotismo” (p.210). No Brasil, podemos analisar esse mesmo fenômeno, políticas de distribuição de renda como o Bolsa Família são amplamente criticadas, pois “criam vagabundos que não querem trabalhar”, estigmatizando as pessoas paupérrimas que recebem poucos reais por mês, o que é menos que o suficiente para sobreviver e manter os filhos (já que para receber o benefício é necessário ter os filhos na escolas). Charles Murray alega que precisamos para com as políticas de wefare State, ou seja, Estado assistencialista, “recuperação da solidariedade entre parentes e vizinhos, que obriga o indivíduo a assumir suas responsabilidades, a recuperar certo status, certo orgulho, para manter a honra” (p.210). Pois, para eles uma solução criada pelo mercado é melhor, e mais digna que uma solução dada pelo Estado. Segundo eles, o assistencialismo estatal eximiu as pessoas de suas próprias responsabilidades, como as mães que viam como mais vantajoso continuar solteiras para receber auxilio que se casa, isso dissolvia os laços familiares. “A solução, portanto, é pôr em ação, em todos os domínios e em todos os níveis, sobretudo no nível microeconômico do comportamento dos indivíduos, os mecanismos do cálculo econômico individual. O que deveria ter dois efeitos: a moralização dos comportamentos e uma maior eficiência dos sistemas sociais” (p.211). E como se a proteção social acabasse com todas as virtudes necessárias ao capitalismo e como disse Walter Lippmann “o futuro repousa na fé no capitalismo”. Desta forma, a verdadeira riqueza só se encontra nas virtudes e os pobres preferem ficar sem trabalho e no ócio, pois o Estado os promove isso por meio das políticas de distribuição de renda, igualmente, tirar dos ricos para dar aos pobres por meio dos impostos é dissuadir os ricos de enriquecer. Uma vez que o Estado propaga a visão que os indivíduos são produtos do seu meio, eles ficam sem motivação para continuar e tentar sair daquela situação. Assim, é necessário devolver essa responsabilização ao indivíduo. Assim, tudo que ele tiver será produto do seu mérito. “Se o enriquecimento deve ser um valor supremo, é porque é visto como a razão mais eficaz para incentivar os trabalhadores a aumentar o esforço e o desempenho, da mesma forma que a propriedade privada da residência dos trabalhadores ou da empresa é vista como condição para a responsabilidade individual” (p.213). A lógica concorrencial faz os clientes exigirem mais das empresas, que por sua vez, pressionarão os trabalhadores. Esses são incentivados, por essa lógica, a trabalhar e produzir mais, são incentivados a valorizar o risco, e por meio dele se reinventar. E, em uma sociedade cada vez mais propensa a autorregulação, as agencias e empresas que cuidam de previdência, saúde e escola privadas lucram, já que o Estado no oferece mais essa proteção. A racionalidade econômica adquire outro aspecto. Trata-se “de sair dos domínios tradicionais da análise econômica para generalizar a análise de custo-benefício a todo o comportamento humano” “A família, o casamento, a delinquência, o desemprego, mas também a ação coletiva, a decisão política e a legislação tornam-se objetos do raciocínio econômico” (p.214). Disciplina (1): um novo sistema de disciplinas Foucault quando fala de disciplina em vigiar e punir usa como referencia o panóptico de Jeremy Bentham, uma espécie de prisão que era construída para que os presos tivessem o tempo todo, a sensação de estar sendo vigiados, porém não era verdade, mas era uma gestão baseada no medo. “Se “governar é estruturar o campo de ação eventual dos outros”, então a disciplina pode ser redefinida, de forma mais ampla, como um conjunto de técnicas de estruturação do campo de ação que variam conforme a situação em que se encontra o indivíduo” (p.216). Desta forma, o sistema de disciplina do homem livre, um indivíduo que o pleno poder de escolhas deve ser diferente, a norma deve penetrar o calculo da vontade individual. “O segredo da arte do poder, dizia Bentham, é agir de modo que o indivíduo busque seu interesse como se fosse seu dever, e vice-versa” (p.216). A norma deve parece algo espontâneo, algo que está em harmonia com a liberdade individual. A estratégia neoliberal é atacar por vários meios (privatizações, concorrência, marcadorização) o indivíduo, para que ele “escolha” a situação de mercado como ela é, e assim entrem nas regras do jogo, ou desvalorizem seu capital. Mas, além disso, a disciplina neoliberal tem dispositivos de recompensas e punições. “Serão construídos sistemas de controle e avaliação de conduta cuja pontuação condicionará a obtenção das recompensas e a evitação das punições” (p.217). Como o indivíduo é livre, ele pode se tornar perigoso para as instituições, assim deve ser constantemente vigiado. Milton Friedman com sua teoria monetarista e prestigio acadêmico influenciou muito os métodos de disciplina neoliberais. “O intervencionismo de Friedman consiste em implantar coerções de mercado que forçam os indivíduos a adaptar-se a ele. Em outras palavras, trata-se de pôr os indivíduos em situações que os obriguem à “liberdade de escolher”, isto é, a manifestar na prática sua capacidade de cálculo e governar a si próprios como indivíduos responsáveis” (p.218). Ou seja, criar mecanismo que façam que os indivíduos por si só aprendam como se comportar no mercado. O monetarismo argumenta que as políticas monetárias ativas são ineficazes, por isso as intervenções políticas se frustram, pois não consideram a capacidade de cálculo dos indivíduos, que entendem que revisões fiscais não vão melhorar o mercado. Rapidamente, essa tese se difundiu e começou a guiar os mercados financeiros. Em razão disso, “a luta contra a inflação constituiu a prioridade das políticas governamentais, enquanto a taxa de desemprego transformava-se em simples “variável de ajuste”. A luta pelo pleno emprego tornou-se suspeita de ser um fator de inflação sem efeito duradouro” (p.219) O orçamento público se transformou em uma forma de disciplina. Pois, os impostos sobre empresas e fortunas caiam, como um “estímulo” e enriquecer. Enquanto o governo se recusa a criar programas sociais, sob discurso de estar em crise. “neoliberais instrumentalizaram os “buracos” criados nos orçamentos para demonstrar o custo “exorbitante” e “intolerável” da proteção social e dos serviços públicos” (p.220). Assim, os Estado estavam proibidos de priorizar o pleno emprego ou qualquer outro projeto social, mas, além disso, esses bloqueios foram introduzidos nos próprios cidadãos. Se era difícil convencer os cidadão que o cobertor social estava mais curto, então invertia-se a ordem e descriminava-se os que precisavam desta proteção. “era mais fácil culpar os desempregados e pôr em funcionamento um princípio de divisão entre os trabalhadores bons e sérios, que eram bem sucedidos, e todos aqueles que fracassavam por sua própria culpa, que não conseguiam “dar a volta por cima” e, além do mais, viviam nas costas da coletividade. O thatcherismo explorou largamente o script da culpa individual, desenvolvendo a ideia de que a sociedade não deveria nunca mais ser considerada responsável pela sorte dos indivíduos” (p.220) Prolifera-se então uma lógica que o trabalhador sem emprego é o total responsável por sua condição e o Estado não tem a obrigação de ajuda-lo. É como se ele tivesse no ócio voluntariamente. Com isso, consegue-se não só ridiculariza-lo para que procurei emprego o mais rápido possível e volte a dar lucro para algum capitalista, mas que também se justifique a não cobertura social. Os sindicatos também foram muito afetados pelos governos neoliberais que, em sua maioria, criavam mecanismos para os desmobilizarem. Isso “traduziu-se por uma série de medidas e dispositivos legislativos que limitaram o poder de intervenção e mobilização dos sindicatos” (p.221). Assim, os trabalhadores não se revoltariam contra as políticas de flexibilização do trabalho que eram aprovadas. Assim, criava-se um ‘exercito industrial de reserva’ que traduzia-se em desempregados que eram totalmente responsáveis por si mesmo, e não tinham mais proteções sociais. Disciplina (2): a obrigação de escolher A concorrência move todo o sistema neoliberal, vai das empresas às subjetividades dos indivíduos. Impulsiona os indivíduos a competirem entre si, ao mesmo tempo, que os pressiona para escolherem entre diversas empresas, fazendo-as disputarem, segundo a teoria, o “direito supremo de escolha” dos consumidores seria o mais motor para o aperfeiçoamento dos produtos e serviços. Assim, a liberdade de escolha é um direito fundamental e deve ser preservado pelo Estado, ou criado em lugares que ele não existe, pois isso garante a lógica concorrencial. Apenas assim, em um ambiente capitalista os indivíduos terão liberdade, por conta disso, a concorrência deve existir, para que exista opções para os consumidores escolherem e assim o serviço melhorar. Um exemplo claro é a educação. Depois de ser sucateada pelos planos de austeridade neoliberais, esta é apresentada aos planos de privatização. Pois, uma vez privatizadas, vão haver várias escolhas e os indivíduos vão pode escolher qual é melhor, e elas vão se aperfeiçoar a cada dia para se adequar as demandas dos clientes. Mesmo que na teoria isto funcione perfeitamente, na prática apenas mercantilizou a educação e privou aqueles que não podem pagar de um ensino de qualidade. Mas é claro que o mercado de escolas é bastante lucrativo para uma meia dúzia de grupos. Disciplina (3): a gestão neoliberal da empresa Em primeiro lugar deve-se entender que “O que a lógica do poder financeiro fez foi apenas acentuar o disciplinamento dos assalariados submetidos a uma exigência de resultados cada vez maior” (p.225). Existe um poder de coerção acionário, ou seja, aquele é aplicado pelos acionistas de uma empresa que precisa produzir cada vez mais aumentar seus dividendos, é indubitável que essa pressão recai sobre os trabalhadores. O maior louro desta teoria é conseguir interiorizar esse aumento da produção e dos lucros nos assalariados. O medo do desemprego e da precariedade é usado para que os empregados tenham constantemente compromisso com a empresa, mas, sem dúvidas outras técnicas de gestão foram utilizadas. A individualização dos salários é uma dessas formas. “Assim, a gestão das empresas privadas desenvolveu práticas de gestão de mão de obra cujo princípio é a individualização de objetivos e recompensas com base em avaliações quantitativas repetidas (...) os assalariados foram levados a curvar-se às exigências de prazo e qualidade impostas pelo “cliente” (...) Em todo caso, a individualização do desempenho e das gratificações permitiu que a concorrência entre os assalariados fosse dada como um tipo normal de relação dentro da empresa” (p.226) Essa nova gestão tem que ser moldar constantemente para conseguir ligar com trabalhadores cada vez menos trabalhadores. Assim, a individualização é cada vez mais ressaltada, como sinônimo de autonomia do trabalhador. “A maior autonomia das equipes ou indivíduos, a polivalência, a mobilidade entre “grupos de projeto” e unidades descentralizadas traduzem-se por um enfraquecimento e uma instabilidade dos coletivos de trabalho. As novas formas de disciplina da empresa neoliberal são exercidas a uma maior distância, de maneira indireta, antes ou depois da ação produtiva. O controle é feito por registro de resultados” (p.227). Logo essa autonomia tomou formas de liberdade. Dentro de uma gestão por metas, o trabalhador não está, diretamente, submetido a hierarquia tradicional das fábricas, entretanto, deve internalizar suas metas e lutar por elas como um desejo pessoal. Além disso, como aqueles que não batem as metas de produtividade são ridicularizados dentro das empresas, há outra motivação para trabalhar. Sobre essa gestão baseada no ‘autocontrole’, Peter Drucker diz: “não se trata mais de gerir estruturas, mas, sim, de “guiar” pessoas que têm saberes para que produzam o máximo possível. Gestão por metas, avaliação de desempenhos e autocontrole dos resultados são os métodos empregados por essa gestão dos indivíduos” (p.228) Reafirma-se com o ‘autocontrole’ a liberdade dos indivíduos, eles são livres para trabalhar até a exaustão para bater as metas. “Trata-se de mobilizar a aspiração à “realização pessoal” a serviço da empresa, transferindo exclusivamente para o indivíduo, contudo, a responsabilidade pelo cumprimento dos objetivos. O que, evidentemente, tem um alto custo psíquico para os indivíduos” (p.229). Racionalidade (1): a prática dos especialistas e dos administradores O Estado se tornou um agente importante para a virada neoliberal, pois, mesmo que houvesse um discurso –equivocado- de que deveria haver uma retirada do Estado, o que estava acontecendo na verdade era uma reorganização do estado. As formas de intervenção se modificaram, modernizando-se e aderindo à lógica neoliberal. Assim, “talvez não tenham sido tanto os intelectuais midiáticos e os jornalistas convertidos que tiveram o papel mais importante, mas os especialistas e os administradores públicos dóceis, que, nos diferentes campos em que deveriam intervir, instauraram os novos dispositivos e modos de gestão próprios do neoliberalismo, apresentando-os como técnicas políticas novas, guiadas unicamente pela busca de resultados benéficos para todos” (p.231). Esses agentes conseguiram naturalizar o neoliberalismo teórico o que propiciou sua prática. Tudo isso em nome de técnicas de gestão e ate mesmo da democratização da ação publica. Nesse ponto, tanto esquerda como direito conseguiram com sucesso implantar as medidas neoliberais. Racionalidade (2): A “terceira via” da esquerda neoliberal É certo que a expansão gloriosa do neoliberalismo se deve, em partes, a retração da esquerda como movimento de oposição, e a adesão da ‘esquerda moderna’ aos ideias do neoliberalismo. “O mais marcante nessa institucionalização do neoliberalismo foi a aceitação por parte da esquerda moderna da visão neoliberal do mercado de trabalho flexível e da política de recolocação dos desempregados” (p.233). Não foi construído um novo projeto de governo e de governamentalidade pela esquerda, nem contra a economia de mercado, nem mesmo uma proposta de renovação keynesiana. A luta contra a desigualdade que era aprofundada na social democracia foi deixada de lado para dar lugar a uma ideologia de equidade e responsabilidade individual. “Em outras palavras, a nova esquerda tomou para si a matriz ideológica de seus oponentes tradicionais, abandonando o ideal da construção de direitos sociais para todos” (p.234). Há pelo mundo diversos exemplos de países onde os partidos considerados como esquerda não só implantaram políticas neoliberais, como as ampliaram. O Partido dos Trabalhadores brasileiro, o New Labour de Tony Blair no Reino Unido. De alguma forma, o desconhecido sobre a teoria e a ideologia neoliberal leva as esquerdas a se verem como oposição à ele, simplesmente por serem contra o laissez-faire contudo, isso não é nem de longe o que o neoliberalismo é. Ao tempo que ataca esse princípio, adere aos outros, como a economia de mercado, a precarização do trabalho e o desmonte da rede de proteção social. “em uma palavra, e talvez de forma paradoxal, nada manifesta melhor a natureza da racionalidade neoliberal do que a evolução das práticas dos governos que há trinta anos se dizem de esquerda, mas conduzem uma política muito semelhante à da direita” (p.234) “A prática disciplinar do neoliberalismo impôs-se como um dado de fato, uma realidade diante da qual não se pode fazer nada, a não ser adaptar-se” (p.224) Em 1999, Tony Blair escreve um manifesto intitulado: “A terceira via e O novo centro” . Esse é um manifesto sobre quais eram as características que a nova esquerda tinha, mas parece um manifesto da racionalidade neoliberal. No documento, Blair critica a o neoliberalismo laissez-faire e ao se apoderar desta forma equivocada de neoliberalismo ele assume uma posição de oposição. Contudo, ao mesmo tempo diz sobre a criação de uma economia de mercado e um ambiente propício para a concorrência para “assegurar o emprego”. Ele prega o neoliberalismo melhor que os neoliberais se dizendo antineoliberal. Assim, neste manifesto ele critica a antiga esquerda ao mesmo tempo que reafirma a responsabilidade individual como um valor supremo que não pode ser suprimido pela welfare State: “O desafio da justiça social era confundido às vezes com a palavra de ordem da igualdade de renda. A consequência era a pouca atenção que se dava à recompensa pessoal pelo esforço e pela responsabilidade” (p.235). Como se já não bastasse, Tony Blair defende a flexibilização da burocracia para as empresas e a redução de impostos “As empresas devem ter margens de manobra suficientes para agir e aproveitar as oportunidades que se apresentam: não devem ser entravadas por um excesso de regras. Os mercados de trabalho, capital e bens devem ser flexíveis” (p.235). Ele exalta o mercado, e diz é Estado precisa de uma redução de gastos e da própria administração pública. Ressalta, ainda, a necessidade da criação de um espírito empreendedor e inovador “Para o pleno êxito das novas políticas públicas, é necessário promover uma mentalidade de vencedor e um novo espírito de empreendimento em todos níveis da sociedade” (p.236). Esse documento escrito por Tony Blair não difere muito da ‘Carta ao povo Brasileiro’ escrita por Lula antes da eleição presidencial de 2002. Em ambos os documentos líderes de esquerda sinalizavam para o mercado financeiro. Tony Blair e Anthony Giddens escrevem um livro chamado ‘A terceira via’, nele os autores demonstram como o centro-esquerda se tornou a única opção em meio ao neoliberalismo. Nesse espectro, o Estado adquire uma forma diferente, ele deve conduzir os indivíduos não a se revoltarem contra a exploração capitalista da economia de mercado, mas se adaptarem. Tanto que volta e meia privilegiam as empresas privadas e à veem como a principal fonte de riqueza e crescimento. “Os sociais-democratas adeptos da terceira via não defendem mais a ideia de que o cidadão deve ser protegido pelo Estado, alimentado, alojado e vestido desde o nascimento até a morte, como dizia Hobhouse; ao contrário, seu objetivo é criar condições que permitam aos indivíduos alcançar um alto nível de vida decente, graças aos próprios esforços” (Tony Blair e Anthony Giddens, La troisième voie: le renouveau de la social-démocratie p.238) Assim, cabe ao Estado apenas criar um ambiente de negócios, estável para o estabelecimento da concorrência, e também criar indivíduos adaptáveis a essa lógica. Assim, o indivíduo é incitado pelo alto número de opções a ter liberdade de escolha. O intervencionismo do Estado deve se limitar à isso. “Em que consiste exatamente essa “regulação” que deve levar à “boa” sociedade, segundo os próprios termos de Giddens? Trata-se de fazer com que o indivíduo tenha sempre a escolha de arbítrio entre produtos e serviços” (p.239) Seja na iniciativa pública ou privada deve haver um número de concorrentes para que houvesse competição e assim opções para o consumidor poder exercer sua liberdade. Nas empresas publicas a existência de concorrência seria a forma para melhor os serviços prestados pelo Estado. Desta forma, o New Labour distanciou-se e muito das suas origens e mais ainda da social democracia, entregando-se de bom grado à lógica mercantil. “Obviamente, o blairismo manteve certas diferenças com relação à pura ortodoxia econômica de tipo monetarista: implantação do salário mínimo, políticas orçamentárias anticíclicas, reinvestimento nos serviços públicos de saúde e educação com a ajuda do setor privado. No entanto, a verdade é que, por mais inegáveis que sejam, essas diferenças políticas inserem-se num mesmo quadro fundamental: o da racionalidade política e das práticas disciplinares características do neoliberalismo” (p.241) Não é como se a esquerda tivesse disso convertida ao neoliberalismo, na verdade ela está apenas reproduzindo uma lógica neoliberal que é global. Ou seja, não se trata de um partido ou outro, é uma lógica que se adequa a todos, independente da ideologia. “O neoliberalismo é muito mais do que uma ideologia partidária. Aliás, em geral as autoridades políticas que adotam as práticas neoliberais recusam-se a admitir qualquer ideologia. O neoliberalismo, quando inspira políticas concretas, nega-se como ideologia, porque ele é a própria razão” (p.242) Por conta disso, ela é aceita por todos os partidos, todas as instituições e pessoas mesmo que estes tenham interesses opostos ao que é defendido pelo neoliberalismo, eles são arrastados por esse modos operandi , basta apenas aceitar. As políticas neoliberais são vistas como maneiras de boa gestão por todos os partidos e gestões. “Em resumo, a grande vitória ideológica do neoliberalismo consistiu em “desideologizar” as políticas seguidas, a ponto de não serem sequer objeto de debate”. Políticas como privatizações, cortes de gastos públicos, diminuição das redes de proteção social, flexibilização dos mercados entre outras são dadas como fatos consumados, elas aparecem para os governos como políticas necessárias não ideológicas, isso permite que elas sejam agregadas por todos e qualquer partido. O neoliberalismo constitui uma nova forma de se pensar a sociedade em todos os aspectos, é uma ideologia total com alto grau de mutabilidade, o que a faz caber em todas as realidades. Além é claro de estruturar os indivíduos, suas consciências. Em suma, “estratégia neoliberal consistiu e ainda consiste em orientar sistematicamente a conduta dos indivíduos como se estes estivessem sempre e em toda a parte comprometidos com relações de transação e concorrência no mercado” (p.243) As origens ordoliberais da construção da Europa Com a implementação de medidas neoliberais na Grã-Bretanha e nos Estado Unidos. A Europa começa a difundir um conto de fadas, ela se torna uma oposição ao ultraliberalismo desses países, mas adota para si, um parente próximo, o ordoliberalismo. “trata-se simplesmente de dar o devido lugar à lógica ordoliberal, que desde muito cedo orientou certo rumo à construção europeia (...) o concorrencialismo está substituindo o liberalismo de antigamente”(p.246). Querendo se distanciar da lógica neoliberal, ele à abraçaram mais ainda. Logo, as políticas e o sistema jurídico foram se alterando para conseguir se ajustar a lógica neoliberal “começaram a instaurar regras estritas para evitar que a concorrência fosse desvirtuada por práticas discriminatórias, abusos de posição dominante e subsídios governamentais” (p.246). A comissão Europeias junto com a Corte de Justiça começam a trabalhar juntas para conseguirem preservar a concorrência, amplia-la ou até mesmo cria-la (por meio das privatizações) dentro do Estado. “O ambicioso projeto de união econômica e monetária é, sob esse aspecto, um desafio particular. Esse projeto tem não apenas o objetivo de fortalecer as liberdades do cidadão, como também constitui um dos principais instrumentos políticos que permitirão a estabilização da enorme economia de mercado que é a Europa. Portanto, por essa razão, ele é puro produto do pensamento “ordoliberal”.” (Fala de Bolkestein na Conferência “ Construindo a Europa liberal do séc. XXI, p.248). Para que esse projeto ordoliberal fosse efetivamente implantado na Europa, seria necessário quatro pontos: Flexibilização do mercado de trabalho, salários preços etc. Reforma do sistema de aposentadoria, incentivando a previdência privada Criação de um espírito empreendedor na sociedade A defesa do ideal de civilização de uma sociedade livre contra o “niilismo” Pois, assim eles conseguiriam acessar de forma mais ampla o ideal de sociedade ordoliberal, se esquecendo de que o ordoliberalismo alemão é a base do neoliberalismo. Contudo, há uma confusão, muito acreditavam que assim eles chegariam à “Economia social de mercado”. “essa construção se inseria na linhagem do ordoliberalismo alemão, indo de encontro, portanto, à ideia de que a Europa encarna um “modelo social” contrário à globalização “ultraliberal” dos anglo-saxões. A confusão, largamente intencional, diz respeito ao sentido da expressão tipicamente ordoliberal “economia social de mercado”, dada por muitos como sinônimo de Europa social” (p.249) Arqueologia dos princípios do Tratado Constitucional Europeu A Constituição Europeia já tinha em sua campanha a constitucionalização de alguns princípios da economia de mercado, alguns são: “o monetarismo do Banco Central Europeu (BCE), a concorrência como princípio da atividade econômica e o papel reduzido e secundário dos serviços econômicos de interesse geral” (p.250). Seguindo essa lógica, o Tratado de Lisboa em 2007, também defendia uma economia social de mercado altamente competitiva. Para deixar isso mais claro, a Constituição consagra duas características: o princípio supremo da concorrência nas atividades econômicas e a estabilidade de preços, garantida por um Banco Central independente. A União era a única que poderia criar regras que ordenassem a concorrência interna, mesmo assim é terminantemente proibida de atrapalhar essa concorrência. Enquanto isso, o Banco Central é único autorizado a emitir moeda, e por isso mesmo é independente da União, assim como o Brasil. Esses princípios não são novos, eles reafirmam o slogan “economia aberta na qual a concorrência é livre”. Essa frase estava presente no Tratado de Maastricht, que criou a União Europeia e também no Tratado Constitucional. Mas essa lógica é ainda mais antiga, já estava presente em 1957 no Tratado de Roma que institui uma Comunidade Econômica Europeia. “Em 1957, as liberdades econômicas fundamentais (as “quatro liberdades de circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais”) ganham um valor constitucional, reconhecido como tal pela Corte Europeia de Justiça, enquanto direitos fundamentais dos cidadãos europeus” (p.252). O ordoliberalismo europeu cria um conceito de ‘mercado institucional’ que traz os princípios fundamentais do mercado com o direito constitucional. Este consiste basicamente em um mercado que tem suas regras criadas pelo Estado e integrando a constituição. “Os fundadores haviam “preferido um mercado limitado por intervenções que lhe dariam uma chance de ser moralmente aceitável e politicamente aceito”. Isso não significava um obstáculo ao mercado, na medida em que, como ele também sublinhava, essas intervenções deveriam consistir em procedimentos que “respeitavam o mecanismo dos preços” e não perturbavam sua livre formação no mercado” (p.254). A hegemonia do ordoliberalismo na República Federal da Alemanha (RFA) Para entender a aceitação ampla do ordoliberalismo na Europa, é necessário antes entender como ele se difundiu pela Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. Mesmo que eles já tivessem uma fundamentação de Estado social bismarckiano, eles tiveram avanços que vieram do ordoliberalismo e avanços que vem dessa consolidação história do social que o país já tinha, podemos ressaltar ainda as condições sociais de compromisso entre força sindical e patronato. Assim, mesmo que a Alemanha tenha relutado em aderir ao liberalismo, com o final da Segunda Guerra, se unir a eles tratava-se de “refundar a legitimidade do novo Estado, integrar-se no mundo livre e distanciar-se do passado nacionalista e totalitário” (p.255). “O ordoliberalismo conseguiu impor-se porque combinou, após o nazismo, a rejeição do estadismo autárquico com a rejeição do liberalismo puro pregado pela economia política clássica e neoclássica” (p.256). Com isso, a Alemanha conseguiria conciliar certo domínio por parte do Estado e mesmo assim concorrência livre, se aproximando de uma Economia social de mercado. Além disso, a adesão de certos grupos sociais como os democratas cristãs foi crucial. Como ressalta Joachim Starbatty, o elo entre essas duas orientações (cristã e ordoliberal) é o princípio de subsidiariedade: “Deixamos a cada cidadão, dentro dos limites do possível, a iniciativa e a responsabilidade. Isso determina a tomada de decisão descentralizada e a formação de um patrimônio privado: os dois componentes da economia de mercado” (p.257). Assim, com a adesão do Partido Social-Democrata ao ordoliberalismo, em 1959, levou a adesão por parte de diversos outros partidos. Rapidamente, o ordoliberalismo se transformou em uma ‘credo nacional’. Contudo, vale lembrar que existe uma diferença entre “Economia social de mercado” e o “modelo alemão”. Como dito no início, a Alemanha tinha uma base social muito forte, herdada do bismarckismo. Assim a Economia social de mercado teve que fazer algumas concessões por lá adquirindo uma imagem mais a esquerda e mantendo uma rede de proteção social. “A expressão “economia social de mercado” foi criada em 1947, enquanto a expressão “modelo alemão” surgiu mais tarde, nos anos 1970, quando a social-democracia conseguiu fazer a política alemã pender a favor dos assalariados e reorientá-la no sentido de um apoio conjuntural muito mais ativo. Isso se traduziu em uma ampliação das prestações sociais, uma política redistributiva mais ampla e um peso cada vez maior dos impostos, alinhando a RFA aos outros países europeus em matéria de proteção social” (p.259). Mas isso não é um ganho do ordoliberalismo e sim das tradições de social democracia que tinham no país, assim no final dos anos 1970, com a queda do Keynesianismo, a Alemanha se voltou a sua origem concorrencialista ordoliberal. A construção da Europa sob influência A união Europeia, vendo a política ordoliberal se estabelecer na Alemanha, criou um tratado que instituía a Comunidade Econômica Europeia que assinava à todos os países que “O princípio da concorrência insere-se nisso como um princípio estruturante: o tratado estabelece um regime que assegura que a concorrência não seja desvirtuada no mercado comum” (p.263). Assim, todo o bloco da União europeia adere o ordoliberalismo. Rumo à concorrência entre legislações? Uma vez que o ordoliberalismo foi imposto a todo o bloco, medidas disciplinares tiveram que ser impostas aos países, “o imperativo consiste em limitar os esforços de distribuição e proteção que impedem a economia e o progresso social. O argumento do subemprego na Europa não deve mais servir para beneficiar gastos públicos e criação de moeda. A segurança é o emprego de cada um, não o auxílio social” (p.264). A comissão europeia foi a instituição denominada para vigiar se os mecanismos de concorrência estão sendo efetivamente protegidos. Assim, a Comissão tem a função de “vigilância e sanção de acordos, abusos de posição dominante e concentrações (...) supervisiona as ajudas do Estado e os aportes de capitais públicos que, em certos casos, podem ser interpretados como subvenções; é ela também que os autoriza, concedendo derrogações” (p.265). Contudo, o movimento que surge na Europa agora parece ser uma concorrência entre os próprios sistemas institucionais. Ou seja, uma concorrência entre os próprios Estados que compõem o bloco. “O que parece se esboçar hoje é uma espécie de mutação de certas correntes do ordoliberalismo, revelando uma convergência cada vez maior entre as duas “estirpes” principais do neoliberalismo: a alemã e a austro-americana” “Essa mutação corresponde ao desejo de algumas correntes de retornar às fontes do neoliberalismo europeu, ou até mesmo de radicalizá-lo, a fim de derrubar aquilo com que foi necessário transigir: o Estado social, os serviços públicos fornecedores de bens sociais e o poder sindical” (p.267). Ou seja, um novo ordoliberalismo com características mais próximas aquele aplicado nos EUA e no Reino Unido. “Contudo, enquanto o primeiro ordoliberalismo procurava enquadrar o mercado por meio de leis feitas pelos Estados e pelas instâncias europeias, o novo ordoliberalismo procura fazer do próprio mercado o princípio de seleção das leis feitas pelos Estados” (p.268) O governo empresarial Da “governança da empresa” à “governança de Estado” (Ler novamente) Governança mundial sem governo mundial A concorrência no Estado neoliberal é levada ao extremo, até mesmo os países competem entre si, eles devem competir não só para saber qual economia é mais estável, mas também qual Estado é capaz de atrair mais multinacionais etc. “O chamado “mercado mundial” é um vasto entrelaçamento movediço de coalizões entre entidades privadas e públicas que se valem de todos os meios e os registros (financeiros, diplomáticos, históricos, culturais, linguísticos etc.) para promover os interesses misturados dos poderes estatais e econômicos” (p.286) Assim, não trata-se de uma retirada do Estado, mas sim, de uma ressignificação. O Estado passa a não ser mais uma entidade integradora de todas as dimensões da vida coletiva. Muitas das funções delegadas ao Estado passam a ser cumpridas por entidades privadas. “Os Estados tendem a delegar grande parte dessas funções às empresas privadas, que com frequência já são globalizadas ou obedecem a normas mundiais” (p.286). A saber, a indústria cultural que foi entregue a iniciativa privada, e algumas outras, como as telecomunicações, a cultura do ensino, entre outras tantas. “Não se trata apenas do fato de que o Estado sofre uma erosão em suas margens de manobra; trata-se, sobretudo, do fato de que o Estado se põe a serviço de interesses oligopolistas específicos e não hesita em delegar a eles uma parte considerável da gestão sanitária, cultural, turística ou até mesmo “lúdica” da população” (p.287). Junto com esse crescente poder que é dada as instituições financeiras internacionais há uma dificuldade de se regularizar esses cenários. A estrutura de poder deixa, cada vez mais, de ser nacional, se submetendo as lógicas internacionais. “A extensão do campo da “governança”, portanto, não é apenas uma trama de relações múltiplas com atores não estatais ou simplesmente o sinal do declínio do Estado-nação, ela significa, mais profundamente, uma mudança do “formato” e do papel do Estado, que é visto agora como uma empresa a serviço das empresas” (p.288). O modelo da empresa O Estado neoliberal, ou seja, aquele que opera dentro de uma perspectiva neoliberal precisa se subverter a lógica de governança das empresas. Pois, uma vez que é dado que a gestão das empresas privadas é mais eficiente, seus dispositivos são melhores porque são criados pela “supremacia” do consumidor que, por meio do direito de escolher entre vários concorrentes, elegeu o melhor, assim essa forma de gestão das empresas privadas devem ser implantadas no Estado. “Para os novos conservadores (como Margaret Thatcher), não bastava pôr freios automáticos ao crescimento dos gastos públicos; era preciso mudar profundamente o modo de gestão da ação pública” (p.289, grifos próprios). Assim, o princípio da concorrência deveria ser inserido na gestão estatal, para que essa fosse tão boa quanto a gestão privada, e também por essa lógica que as empresas eram privatizadas, pois assim elas se tornaram ‘motores do progresso social’. “O postulado dessa nova “governança” é que a gestão privada é sempre mais eficaz que a administração pública; que o setor privado é mais reativo, mais flexível, mais inovador, tecnicamente mais eficaz, porque é mais especializado, menos sujeito que o setor público a regras estatutárias” (p.290). É também por meio desta lógica que muitos conservadores defendiam uma diminuição das proteções sociais e do Estado de bem estar social. A hipótese do ator egoísta e racional Os teóricos neoliberais defendem assiduamente que o Estado precisa de um sistema de gestão idem ao das empresas privadas para que funcione. Assim, eles tentam implantar na lógica estatal os mecanismos de ‘controle de qualidade’ que existem na iniciativa privada, um deles é o consumidor e uma maximização do benefício. “De modo geral, a aplicação do cálculo de custo-benefício tende a mostrar que o “consumidor” paga sempre mais caro por um bem público do que por um bem privado e que também paga mais caro por um bem privado cuja produção é regulamentada do que por um bem privado cuja produção não é regulamentada” (p.292). Pois, para o neoliberalismo o Estado está inserido dentro do sistema econômico, não é um agente externo ou apenas regulatório, ele é parte integrada do mesmo e por isso mesmo deve se submeter a mesma lógica de concorrência. A partir disso, seria necessária uma nova gestão estatal que foi desenhada por Jeremy Bentham. Ele acreditava que os funcionários públicos tinham uma tendência a perseguir seus próprios interesses antes dos interesses gerais e por conta disso precisam ser vigiados. “Ele deseja descobrir meios substitutos de controle dos agentes públicos que tenham a mesma eficácia do mercado sobre os indivíduos que participam dele. O objetivo é eliminar todos os abusos, as incompetências, as vexações, as delongas, as opressões e as fraudes que os administrados sofrem nas mãos de políticos e funcionários públicos espontaneamente corrompidos por seu “sinister interest”, contrário ao interesse do maior número de indivíduos” (p.293). Partindo disso cria-se uma lógica de gestão ideal utilitarista para o Estado, este deveria maximizar a aptidão dos funcionários públicos e minimizar os gastos. Além disso, o funcionariado público deveria ser vigiado constantemente para que não perseguisse seus próprios interesses, e essa vigilância seria feita pelo próprio povo por meio da transparência. Esses mecanismos de transparência que existem no Estado são, em vários sentidos, benéficos. Pois, mesmo que vigiem os funcionários públicos, eles são uma ferramenta importante para a democracia, pois é por meio deles que há um acompanhamento mais próximo entre eleitores e eleitos, isso é indispensável em uma democracia representativa, uma vez que por meio desses mecanismos de transparência os eleitores conseguem cobrar seus representantes. Public Choice e a nova gestão pública The Teory public choice  é um ramo da teoria econômica em que os conceitos da economia de mercado são aplicados à política e aos serviços públicos. Assim, na ciência política, a public choice critica a visão romântica de que o político é um servidor altruísta do interesse público em geral, substituindo-a por uma abordagem mais consentânea com o comportamento humano. Em vez de conceder aos políticos um tratamento especial, public choice os trata como meros agentes humanos que priorizam a satisfação do seu autointeresse. Dois grandes expoentes dessa teoria são: James Buchanan e Gordon Tullock. Esses teóricos argumentam que “funcionário público é um homem igual aos outros, um indivíduo calculador, racional e egoísta, que procura maximizar seu interesse pessoal em detrimento do interesse geral. Apenas os interesses privados têm realidade e significado para os agentes públicos, apesar de seus protestos virtuosos” (p.296). Assim, visando objetivos pessoais o funcionário público tende a procurar subir de cargo ou expandir sua repartição, para ganhar mais prestígio e até mais poder, assim sempre que tende a expandir mais uma repartição ele tende a burocratizar mais algum processo ou área. “Como o Estado social suscita múltiplas demandas de intervenção, a burocracia parasitária incha. Cria-se uma espécie de grande aliança entre os funcionários públicos e os membros das classes médias, que são os que mais aproveitam os serviços públicos, acarretando uma inflação do pessoal e do gasto público” (p.297). Assim a tendência de maximização do estado vem unida a uma vontade dos funcionários públicos de se promoverem. Sendo assim, é possível ver certa semelhança entre a teoria de Jeremy Bentham e a public choice que também vê como parasitário o servidor público que, assim como qualquer pessoa, seguiria apenas seus próprios interesses em detrimento dos interesses gerais. Em ambos os casos, vê-se a necessidade de se aplicar mecanismos de administração privada nas repartições pública. Contudo, é necessário ressaltar que Benthan tinha uma visão da democracia muito diferente da visão dos teóricos da public choice. Enquanto Benthan vê a população como vigia desses funcionários públicos, e por conta disso aumenta a participação popular, para que as pessoas tenham controle sobre eles. Em contrapartida, public choice “é um movimento hostil à democracia representativa, que é vista como o principal fator de crescimento da burocracia. Num regime democrático, os cidadãos não podem exercer um controle real sobre os burocratas e tentam aliar-se a eles quando conseguem se organizar. De sua parte, os parlamentares incentivam a superprodução burocrática para serem reeleitos. E os pobres, que não pagam impostos, usam e abusam de um poder eleitoral maior do que os ricos, menos numerosos, para fazer estes últimos arcarem com a maior parte do peso dos impostos” (p.299) Assim, como não eram favoráveis a uma maior participação popular, essa teoria acreditava que deveriam ser impostos aos funcionários públicos um sistema de administração privado. “Essa “nova gestão pública” visa a mudar o Estado e, para isso, inspira se sistematicamente em lógicas de concorrência e métodos de governo empregados nas empresas privadas” (p.301). Podemos citar vários exemplos, como a lógica das terceirizações, auditorias, benchmarketing , gestão de metas, avaliação de qualidade e concorrência, seja com empresas privadas ou públicas. “A nova gestão pública consiste em fazer com que os agentes públicos não ajam mais por simples conformidade com as regras burocráticas, mas procurem maximizar os resultados e respeitar as expectativas dos clientes” (p.302). A concorrência no centro da ação pública Dentro desta nova gestão pública, a característica mais importante e mais marcante é a concorrência. “Trata se de executar simultaneamente duas operações que aparecem como homogêneas em virtude da unicidade das categorias em jogo: de um lado, construir mercados que sejam o mais concorrenciais possível no âmbito mercantil; de outro, fazer a lógica de concorrência intervir no próprio âmbito da ação pública” (p.303). Assim os serviços prestados pelo Estado devem passar pelo processo de concorrência, pois apenas assim serão otimizados conforme o concorrente. Um ótimo exemplo disso são as licitações, nelas as empresas devem concorrer para conseguir prestar o serviço para o Estado. Essa institucionalização da concorrência é clara é vista como benéfica, pois os cidadãos-clientes teriam o privilégio de escolher entre varias escolas, hospitais e assim se optar pelo que mais os agrada. Contudo, foge ao calculo neoliberal que as pessoas mais pobres não têm o dinheiro suficiente para escolher nenhuma opção. Ademais, essa nova gestão também muda a orientações dos trabalhadores, pois os gerentes são avaliados por metas e concorrem entre si desde o topo até a base da hierarquia. Além é claro da mudança nos contratos de trabalho que são cada vez mais aqueles do direito privado. “Esse governo supõe um controle estrito do trabalho dos agentes públicos por meio de avaliações sistemáticas e a subordinação destes à demanda de “cidadãos-clientes” convidados a exercer sua capacidade de escolha diante de uma oferta diversificada, de acordo com o princípio do controle pela demanda”(p.305). Essa nova prática governamental se compilou em um livro chamado Reinventando o governo escrito por David Osborne e Ted Gaebler. No livro eles tratam a nova gestão estatal citada acima como governo empresarial. Segundo eles, esses governos devem ser orientados por dez princípios: A maioria desses governos promove a concorrência entre fornecedores de serviços; Tira poder da burocracia para dá-lo aos cidadãos; Mede o desempenho de suas agências focando não os recursos, mas os resultados; É guiada pela busca de seus objetivos, não pelo respeito de regras e regulações; Considera que os usuários são consumidores e oferece a eles possibilidades de escolha entre escolas, programas de formação, tipos de habitação; Previne os problemas antes que surjam, em vez de conformar-se em oferecer posteriormente o serviço; Emprega sua energia a fim de evitar gastos, em vez de procurar fundos; Descentraliza a autoridade, favorecendo a administração participativa; Prefere os mecanismos do mercado aos mecanismos burocráticos; Concentram-se não só no fornecimento de serviços públicos, mas na mobilização de todos os setores – público, privado e associativo – para resolver os problemas da comunidade. Para eles esses governos empresariais são uma terceira via entre o mercado livre e o mercado máximo, pois há intervenção, mas a natureza da intervenção é otimizada. Uma política de esquerda? Essa reinvenção do governo foi vendida por vezes como uma superação do que foram os governos de esquerda, contudo, além de falaciosa essa ideia apenas mostra uma faceta dos governos neoliberais. Ela obscurece que a mutação empresarial da ação pública era apenas um aprofundamento das políticas neoliberais dos anos 80. O primeiro passo da implementação dessa política consiste otimizar a gestão estatal, a administração pública funcionaria por agências autônomas, foram apresentadas várias opções para melhorar o funcionarismo público, como as privatizações, subcontratação no setor privado ou a autonomização das agências. Essa lógica, não é inerente as esquerdas mundiais, pelo contrário, a saber o caso do Tony Blair que era favorável a competição no setor público, como forma de seguir as orientações de sua antecessora. Essa ideia de colocar empresas privadas para competir com as públicas como forma de melhora-las não nasce nele. Mas indubitavelmente a nova forma de gerir o Estado seguindo uma gestão empresarial foi vendida como uma ideia universal de gestão. Além disso, há uma técnica de gestão por metas, o orçamento destinado para cada setor não deveria seguir a lógica do gasto, mas sim a da produção, ou seja, o setor que mais fizesse era o que mais deveria receber. Uma segunda fase foi implementada na França de Nicolas Sarkony, um plano de rompimento total com a velha gestão, ele planejava “diminuir o gasto público, melhorando ao mesmo tempo a eficácia e a qualidade do serviço prestado pela administração pública”. As instituições internacionais difundiam essa não gestão do Estado para os países subdesenvolvidos, e o divulgavam como uma forma de melhor, não um Esta Mínimo, mas um Estado melhor. “Essa reforma da administração pública é parte da globalização das formas da arte de governar. Em todo o mundo, seja qual for a situação local, os mesmos métodos são preconizados, e o mesmo léxico uniforme é empregado (competição, reengenharia de processos, benchmarking, best practice, indicadores de desempenho)” (p.312). Essa reforma se torna ainda mais universal quando é apresentada como ideologicamente neutra, como se visasse apenas o melhoramento da máquina estatal. Por fim, tem-se que esse processo faz parte de uma série de outros processos criam, moldam a racionalidade dos indivíduos ocidentais, podemos ver esse reflexo em outras áreas. “As normas contábeis constituem não tanto uma “ideologia”, mas uma forma específica de racionalidade importada do econômico”(p.313). Uma tecnologia de controle A nova gestão estatal depende de indicadores e mais ainda, depende de meios tecnológicos que mensurem esses indicadores. Assim, cada vez mais experts de empresas privadas dominam a gestão pública com métodos de gestão e de controle dos agentes públicos. É claro que todos esse controle apresenta-se na forma de diminuição da autonomia desse grupo de profissionais que agora são geridos por metas e técnicas de internalização dessas metas. Acredita-se mais no controle pelas metas e pela competição para um bom trabalho do que na confiança ou qualquer traço moral que permeie esses atos. “Os efeitos de “desmoralização” acabam tendo consequências sobre a qualidade do serviço, já que a dedicação e a consciência profissional são vistas como uma ficção enganadora ou uma exceção na nova doxa” (p.316) Gerenciamento e democracia política Podemos sintetizar esse capítulo da seguinte forma: “A nova gestão pública possui duas dimensões: ela introduz modos de controle mais refinados, que fazem parte de uma racionalização burocrática mais sofisticada, e embaralha as missões do serviço público, alinhando-as formalmente a uma produção do setor privado.” (p.317) “Essa prioridade que se dá à dimensão da eficiência e ao retorno financeiro elimina do espaço público qualquer concepção de justiça que não seja a de equivalência entre o que foi pago individualmente pelo contribuinte e o que foi recebido individualmente por ele” (p.319) Isso mina o espirito social, a confiança a solidariedade entre os entes sociais que são vistos como oportunistas apenas visando uma satisfação pessoal egoísta. É a própria definição de sujeito político que é radicalmente alterada. A fábrica do sujeito neoliberal O livro sustentou arduamente que há um novo sujeito sendo formado, diferente do homem produtivo do século XX, um homem neoliberal que tem a competitividade como cerne de sua existência. O sujeito plural e a separação das esferas O homem é plural, peguemos de exemplo o homem moderno, ele tinha pelo menos três esferas, uma ruralizada e cristã, uma que era a comunidade política e uma que era econômica, no inicio do mercado monetário. Contudo, a sociedade se modifica em todos esses aspectos. “Mais importantes, porém mais difíceis de captar, são a mudança progressiva das relações humanas, a transformação das práticas cotidianas induzidas pela nova economia, os efeitos subjetivos das novas relações sociais no espaço mercantil e das novas relações políticas no espaço da soberania.” (p.323) Logo em seguida o homem moderno de dividiu em um homem com direito inalienáveis e um homem mercantil, econômico, guiado por interesses particulares. Essa segunda dimensão do homem se torna mais dominante e mais forte, pois, as relações humanas são submetidas a um cálculo de lucro. Ao mesmo tempo, há uma sensação de liberdade, um indivíduo que se sente livre, mesmo que seja para integrar a grande engrenagem do capital. Um fruto dessa liberdade são os contratos. Todas as relações sociais modernas se dão por contratos assegurados pelo Estado. Os contratos estão revestidos de liberdade subjetiva que são na verdade uma série de dispositivos de eficácia que validam, convencem sobre a sociedade mercantil. “Era preciso pensar e implantar, “por uma estratégia sem estrategistas”, os tipos de educação da mente, de controle do corpo, de organização do trabalho, moradia, descanso e lazer que seriam a forma institucional do novo ideal de homem, a um só tempo indivíduo calculador e trabalhador produtivo. Foi esse dispositivo de eficácia que forneceu à atividade econômica os “recursos humanos” necessários, foi ele que produziu incessantemente as mentes e os corpos aptos a funcionar no grande circuito da produção e do consumo” (p.324) Era necessário a esse novo sistema social um novo homem, e o governo deveria cria-lo. “Governado e governável pelas sensações: se o indivíduo deve ser considerado em sua liberdade, ele também é um rematado patife, um “delinquente em potencial”, um ser movido antes de tudo por seu próprio interesse. A nova política inaugura-se com o monumento panóptico erguido em glória da vigilância de todos por cada um e de cada um por todos.” (p.325) E a liberdade é importante, pois ela traz a ideia de um cidadão feliz, pois é livre, há, com isso, um sujeito eficaz. A modelagem da sociedade pela empresa Enquanto no utilitarismo do século XIX o homem mantinha certa heterogeneidade, o discurso neoliberal caracteriza por homogeneizar o discurso do homem em torno da empresa. “A partir de então, diversas técnicas contribuem para a fabricação desse novo sujeito unitário, que chamaremos indiferentemente de “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal” ou, simplesmente, neossujeito. Não estamos mais falando das antigas disciplinas que se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis – metodologia institucional que se encontrava em crise havia muito tempo. Trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. Para isso, deve-se reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui. As grandes proclamações a respeito da importância do “fator humano” que pululam na literatura da neogestão devem ser lidas à luz de um novo tipo de poder; não se trata mais de reconhecer que o homem no trabalho continua a ser um homem, que ele nunca se reduz ao status de objeto passivo; trata-se de ver nele o sujeito ativo que deve participar inteiramente, engajar-se plenamente, entregar-se por completo a sua atividade profissional. O sujeito unitário é o sujeito do envolvimento total de si mesmo. A vontade de realização pessoal, o projeto que se quer levar a cabo, a motivação que anima o “colaborador” da empresa, enfim, o desejo com todos os nomes que se queira dar a ele é o alvo do novo poder. O ser desejante não é apenas o ponto de aplicação desse poder; ele é o substituto dos dispositivos de direção das condutas. Porque o efeito procurado pelas novas práticas de fabricação e gestão do novo sujeito é fazer com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se trabalhasse para si mesmo e, assim, eliminar qualquer sentimento de alienação e até mesmo qualquer distância entre o indivíduo e a empresa que o emprega. Ele deve trabalhar para sua própria eficácia, para a intensificação de seu esforço, como se essa conduta viesse dele próprio, como se esta lhe fosse comandada de dentro por uma ordem imperiosa de seu próprio desejo, à qual ele não pode resistir.” (p.327) A cultura da empresa e a nova subjetividade “a racionalidade neoliberal produz o sujeito de que necessita ordenando os meios de governá-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos” (p.328) O neoliberalismo tem uma forma de sujeição dos trabalhadores muito mais eficiente que qualquer outra, há um medo do desemprego que faz com que o trabalhador se sujeite a qualquer coisa, inclusivo situações precarizadas. “Em uma palavra, a novidade consiste em promover uma “reação em cadeia”, produzindo “sujeitos empreendedores” que, por sua vez, reproduzirão, ampliarão e reforçarão as relações de competição entre eles, o que exigirá, segundo a lógica do processo autorrealizador, que eles se adaptem subjetivamente às condições cada vez mais duras que eles mesmos produziram.” (p.329) A empresa em si mesmo como ethos da autovalorização O sucesso, ser bem sucedido na vida profissional e, quase que consequentemente, na vida pessoal é uma das exigências do sujeito neoliberal, para si mesmo e exigência que a sociedade o impõem. Não entendi a questão da empresa de si mesmo dentro de outras empresas e não como uma entidade própria. As “asceres do desempenho” e suas técnicas *O sujeito neoliberal é um sujeito passível de democracia ? Asceres é um termo empregado na filosofia e na sociologia que foi adaptado pelo discurso neoliberal para legitimar suas práticas. Assim, usa-se a boa gestão de si para gerar uma gestão social eficaz. Tudo isso tem como objetivo fazer o trabalhador se identificar com a empresa e seu trabalho. Nesse modelo de conduta de si, para melhorar a conduta geral surgem os coaching e o PNL, gurus que usam técnicas duvidosas, quase sempre embasadas na psicologia para promover o domínio de si mesmo, melhor a comunicação, o desempenho e ser mais produtivo. Tanto o PNL, quanto o coach prometem as empresas uma melhora no desempenho de seus funcionários, para que eles estejam motivados, assim ensina-se técnicas de comunicação para melhor a interação e satisfazer mais o cliente. A “gestão da alma” e a gestão A responsabilidade de tudo de bom e de mau que ocorre com o homem é de responsabilidade dele. Logo, seu desempenho na vida e na empresa são de sua responsabilidade, assim como o crescimento financeiro da empresa. Assim, condiciona-se o bem estar do homem à seu desenvolvimento pessoal, que tem como objetivo melhorar sua produtividade dentro da empresa. Podemos perceber que os slogans das campanhas de coaching são sempre em torno da autoestima, produtividade, trabalho, desempenho, comunicação. Todas essas formas de torna o homem melhor para a empresa. “a gestão neoliberal de si mesmo consiste em fabricar para si mesmo um eu produtivo, que exige sempre mais de si mesmo e cuja autoestima cresce, paradoxalmente, com a insatisfação que se sente por desempenhos passados” (p.345) O resultado desse processo a autoculpabilização do homem. Pois, toda a subjetividade, todas as áreas da vida de um ser são úteis para a aplicação desse modo de gestão. Risco: uma dimensão da existência e um estilo de vida imposto Como dito antes a responsabilidade pelas vitórias e fracassos da vida de um ser de responsabilidade dele. Os riscos é um pressuposto desse processo. O risco é classificado como algo positivo, que encoraja os homens e os faz fortes, assim há uma máxima de que viver é correr riscos, essa é uma dimensão ontológica do homem. “O “risco” tornou-se um setor comercial, na medida em que se trata de produzir indivíduos que poderão contar cada vez menos com formas de ajuda mútua de seus meios de pertencimento e com os mecanismos públicos de solidariedade” (p.348). A medida que em criam um sujeito de risco, produz uma assistência privada. Como o indivíduo tem acesso a informação, tem liberdade de escolha, ele é plenamente capaz para absorver e lidar com os riscos. “compartilhamento da informação e o compartilhamento do risco: a partir do momento que se supõe que o indivíduo tem condições de acessar as informações necessárias para sua escolha, deve-se supor que ele se torna plenamente responsável pelos riscos envolvidos” (p.349) “Accountability” (prestação de contas) Diferentemente do homem benthaniano, o sujeito neoliberal precisa de mais que “legislação indireta”, cria-se uma gama de métodos de avaliação e controle de seu desempenho, ele é constantemente supervisionado por um superior, tem os resultados de sua atividade avaliados constantemente. O empregado por ser mensurado pelos números que produz. Isso é claro, os faz mais adaptáveis as demandas, mas também intensifica seu desempenho. O novo dispositivo “desempenho/gozo” Essa nova racionalidade não foi imposta de forma superior ao sujeito, fomos forçados a aderir a ela. Mas, não da mesma forma que o homem industrial, o sujeito atual é o homem da competição e do desempenho. “O “coaching” é a marca e ao mesmo tempo o meio dessa analogia constante entre esporte, sexualidade e trabalho. Foi esse modelo, talvez mais do que o discurso econômico sobre a competitividade, que permitiu “naturalizar” esse dever de bom desempenho e difundiu nas massas certa normatividade centrada na concorrência generalizada” (p.354) A outra marca desse sistema é o esporte, pois a forma como ele se adapta nesse modelo de superação de si e sucesso é adequada. Logo, o sujeito neoliberal e movido pelo sistema do desempenho/gozo. Intensifica-se o desempenho para se obter mais gozo, em uma lógica cujo principio fundamental é o do excesso e autossuperação constante. Esse é o duplo sentido de um discurso gerencial que faz do bom desempenho um dever e de um discurso publicitário que faz do gozo um imperativo. É indubitável que a máquina econômica aderir a mesma lógica. Da eficácia ao desempenho O primeiro ponto importante é que o sujeito neoliberal não tem os mesmos mecanismos de controle que o do homem industrial. Se antes o corpo deveria ser totalmente útil, atualmente, o corpo deve ser levado ao extremo do dispositivo do desempenho/gozo. Um discurso que era econômico ganhou ares e bases de psicologia e hoje aceita-se uma máxima econômica de desempenho e prazer como uma função psicológica natural. Dessa forma, “o discurso “psi”, com seu poder de expertise e sua legitimidade científica, contribuiu largamente para a definição do indivíduo governável moderno” (p.358). A subjetividade humana passa a ser um meio para a maximização do prazer e a chave do bom desempenho nas empresas. “Enunciados econômicos e enunciados do tipo “psi” juntaram-se para dar ao novo sujeito a forma do arbítrio supremo entre “produtos” e estilos diferentes no grande mercado dos códigos e dos valores. Foi ainda essa conjunção que deu origem a essas técnicas de si que visam ao desempenho individual por meio de uma racionalização gerencial do desejo” (p.360) Diagnóstico clínico do neossujeito O sujeito neoliberal definha, seu quadro institucional e a perca de seus símbolos tem deixado marcas clínicas comprovadas. Sofrimento no trabalho e autonomia contrariada: a nova gestão neoliberal da empresa e da subjetividade dos homens tem feito o assédio, o estresse, o suicídio e a depressão se tornarem comuns no ambiente de trabalho. “Hoje, mais do que antes, o assalariado, sozinho diante de tarefas impossíveis ou duplas injunções, corre o risco de perder a consideração de chefes ou colegas. O enfraquecimento dos coletivos de trabalho reforça esse isolamento” (p.363) Soma-se a isso a brutalidade da concorrência, não apenas na coletividade, mas na subjetividade do trabalhador que é responsabilizado e envergonhado pelas metas que não bateu. Corrosão da personalidade: para Richard Sennett, a organização flexível, apresentada às vezes como uma oportunidade para o indivíduo moldar livremente sua vida, na realidade abala o “caráter” e corrói tudo que existe de estável na personalidade: os laços com os outros, os valores e as referência. Além disso, há uma instabilidade profissional insuportável para os trabalhadores, não se pode mais falar em aposentadoria, carreira ou estabilidade, esse foram se tornando conceitos obsoletos. Agora, cria-se um novo ser que deve ter uma capacidade de adaptação ao mercado e as demandas, maleável e flexível, como o mercado de trabalho. Desmoralização: a neogestão capta sentimentos e afetos positivos, em nome da eficácia. “A corrosão dos laços sociais traduz-se pelo questionamento da generosidade, da fidelidade, da lealdade, da solidariedade, de tudo o que faz parte da reciprocidade social e simbólica nos locais de trabalho” (p.365) Logo, se destroem os laços reais que ligam as pessoas e, para reverter a lógica de desconfiança que é gerada nisso, cria-se inimigos comuns, terceiros que são vistos como raiz de todo mal, o ódio à esses sujeitos é a cola social. Depressão generalizada: “A depressão é, na verdade, o outro lado do desempenho, uma resposta do sujeito à injunção de se realizar e ser responsável por si mesmo, de se superar cada vez mais na aventura empresaria. “O indivíduo é confrontado mais com uma patologia da insuficiência do que com uma doença da falta, mais com o universo da disfunção do que com o da lei: o depressivo é um homem em pane”” (p.366) Dessimbolização: “Provavelmente seria melhor dizer que a estrutura simbólica é alvo de uma instrumentalização por parte da lógica econômica capitalista. Esse é o sentido que podemos dar ao que que Lacan chamou de “discurso capitalista”(...) Essa instrumentalização do simbólico pelas instituições econômicas introduz no sujeito não apenas essa “fluidez” dos ideais, mas também uma fantasia de onipotência sobre as coisas e os seres” (p.368-369) Perversão comum: o gozo total e incessante apresenta-se ate mesmo nas relações com outros, os seres são vistos como uma objeto que vale pela utilidade que tem para o outro. “quanto mais o ser humano envereda por esse vício em objetos mercantis, mais tende a tornar-se ele próprio um objeto que vale apenas pelo que produz no campo econômico, um objeto que será posto de lado quando tiver perdido a “performance”, quando não tiver mais uso” (p.371) O gozo de si do neossujeito O gozo de si é, segundo Lacan, uma aspiração à plenitude impossível, muito mais que prazer, contudo, sempre na ordem social há uma limitação desse gozo. Historicamente, a empresa, a religião a sociedade sempre limitou gozo de si dos homens, contudo o neossujeito é diferente. Há uma maquiação da limitação do gozo de si, logo, a perda não é exatamente perda, uma vez que é decidida pelo próprio sujeito. “O trabalho não é castigo, é gozo de si por intermédio do desempenho que se deve ter. Não há perda, porque é imediatamente “para si” que o indivíduo trabalha” (p.373) Pois, no novo capitalismo, todos ganham sempre. O governo do sujeito neoliberal Dizer que o sujeito neoliberal é mestre de si, empresa de si, não significa dizer que ele não esta submetido a um sistema de vigilância constante, melhor, vigilância estatal constante. “Assim, é inútil lamentar a crise das instituições de enquadramento, como família, escola, organizações sindicais ou políticas, ou chorar a decadência da cultura e do saber ou o declínio da vida democrática. É melhor tentar compreender como todas essas instituições, valores e atividades são hoje incorporados e transformados no dispositivo de desempenho/gozo, em nome de sua necessária “modernização”; é melhor examinar de perto todas as tecnologias de controle e vigilância de indivíduos e populações” (p.375) Conclusão- O esgotamento da democracia liberal