O termo sub especie aeternitatis (latim, “sob o aspecto da eternidade”)
foi consagrado por Spinoza para designar a necessidade do que é eterno
(aeternitas), em contraste com a contingência de coisas e eventos
temporais que têm duração (duratio). Na medida em que são modos da
substância, os modos podem ser concebidos sub specie aeternitatis,
visto que participam de alguma maneira da eternidade da substância.
Destarte, a Favela de Lasar Segall (1954) desvela essa interseção entre
a horizontalidade temporal da imanência e a verticalidade de nossa
transcendência em busca de sentido.
Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Série Filosofia
Conselho Editorial
_______________________________________________________
Editor
Agemir Bavaresco
Draiton Gonzaga de Souza
Evandro Pontel
Everton Miguel Maciel
Fabián Ludueña Romandini
Fabio Caprio Leite de Castro
Gabriela Lafetá
Ingo Wolfgang Sarlet
Isis Hochmann de Freitas
Jardel de Carvalho Costa
Jair Inácio Tauchen
Joaquim Clotet
Jozivan Guedes
Lucio Alvaro Marques
Nelson Costa Fossatti
Nythamar de Oliveira
Norman Roland Madarasz
Orci Paulino Bretanha Teixeira
Oneide Perius
Raimundo Rajobac
Ricardo Timm de Souza
Rosemary Sadami Arai Shinkai
Rosalvo Schütz
Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
(Organizadores)
Draiton Gonzaga de Souza
Agemir Bavaresco
Jair Tauchen
Editora Fundação Fênix
Porto Alegre, 2020
Direção editorial: Agemir Bavaresco
Diagramação: Editora Fundação Fênix
Capa: Editora Fundação Fênix:
Imagem da capa e contracapa, diposnível em:
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Pintura da capa de Lasar Segall (Favela 1954).
Disponível: https://br.pinterest.com/pin/507217976767429438/
O padrão ortográfico, o sistema de citações, as referências bibliográficas, o conteúdo
e a revisão de cada capítulo são de inteira responsabilidade de seu respectivo autor.
Todas as obras publicadas pela Editora Fundação Fênix estão sob os direitos da
Creative Commons 4.0 –
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A publicação da presente obra teve o apoio da CAPES – Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, no âmbito do Programa CDEA –
Centro de Estudos Europeus e Alemães.
Série Filosofia – 23
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
SOUZA Draiton Gonzaga de.; BAVARESCO, Agemir; TAUCHEN, Jair. (Orgs).
Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira. SOUZA Draiton Gonzaga
de; BAVARESCO, Agemir; TAUCHEN, Jair. (Orgs). Porto Alegre, RS: Editora
Fundação Fênix, 2020.
744p.
ISBN – 978-65-87424-16-3
https://doi.org/10.36592/9786587424163
Disponível em: https://www.fundarfenix.com.br
CDD-100
1. Festschrift. 2. Filosofia. 3. Ética. 4. Política.
Índice para catálogo sistemático – Filosofia e disciplinas relacionadas – 100
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 13
1. PUBLIC OPINION AND SENSUS FIDELIUM
Agemir Bavaresco ................................................................................................................... 15
2. DEUS COMO TU E ORAÇÃO COMO DIÁLOGO: AS FERRAMENTAS PARA
RECONCILIAÇÃO EM MARTIN BUBER
Alex Guilherme......................................................................................................................... 33
3. NIETZSCHE, CARMEN E UMA BREVE CRÍTICA FEMINISTA
Ana Carolina da Costa e Fonseca............................................................................................ 55
4. PODER PUNITIVO: FOUCAULT PARA ALÉM DE FOUCAULT
Augusto Jobim do Amaral ....................................................................................................... 67
5. SELF-DEVELOPMENT AND SOCIAL JUSTICE
Catherine Audard ....................................................................................................................85
6. A DISCIPLINA NO PROCESSO DE EDUCAÇÃO E ESCLARECIMENTO EM
KANT
Celso de Moraes Pinheiro ...................................................................................................... 103
7. NEUROCIÊNCIA DA ÉTICA: O ESTADO DA ARTE E AS PROMESSAS PARA O
FUTURO
Cinara Nahra .......................................................................................................................... 117
8. O FIM DE TODAS AS COISAS: UM JOGO COM IDÉIAS
Christian Hamm .................................................................................................................... 147
9. O JUSTO, O BEM E A MULHER
Danilo Marcondes ................................................................................................................. 159
10. PRINCÍPIOS BIOÉTICOS, MEDICINA-BASEADA-EM-EVIDÊNCIAS E
OPÇÕES TERAPÊUTICAS NO TRATAMENTO DA COVID-19
Darlei Dall’agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella ............................. 171
11. MORAL COGNITIVISM AND LEGAL POSITIVISM IN HABERMAS’S
PHILOSOPHY OF LAW
Delamar José Volpato Dutra & Nythamar Fernandes de Oliveira...................................... 199
12. THE NEW LEFT LIVES ON. THE SPIRIT OF MAY ’68 IN 2020
Dick Horward ........................................................................................................................ 213
13. SOBRE A LEI
Eduardo Luft .......................................................................................................................... 237
14. A VIDA QUE RESTA E O CAMPO: ACERCA DA (IN)DIZIBILIDADE E DA
(IM)POSSIBILIDADE DO TESTEMUNHO DIANTE DA POTÊNCIA DA IMAGEM
Evandro Pontel ......................................................................................................................263
15. OS RISCOS DE DEGENERAÇÃO DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA –A
ATOMIZAÇÃO SOCIAL E O DISCURSO TOTALITÁRIO
Fabio Caprio Leite de Castro .................................................................................................287
16. RETENTIVIDADE E CONDIÇÕES ASSOCIADAS EM A PHYSICALIST
MANIFESTO DE ANDREW MELNYK
Gabriel José Corrêa Mograbi ................................................................................................307
17. “ESTADO, MOVIMENTO, POVO” (CARL SCHMITT) - UMA PROVOCAÇÃO
Hans-Georg Flickinger .......................................................................................................... 315
18. VIRTUDES PARA UMA FILOSOFIA DA TECNOLOGIA? NOTAS PARA UMA
PESQUISA A PARTIR DE MACINTYRE E JONAS
Helder Buenos Aires de Carvalho ......................................................................................... 327
19. IDOLATRIA: UM DIÁLOGO TEOLÓGICO E FILOSÓFICO
Jair Inácio Tauchen ...............................................................................................................349
20. O PENSAMENTO MÁGICO EM FILOSOFIA: ESTUDOS DE CASO DA
FILOSOFIA DA MEMÓRIA
John Bolender ........................................................................................................................ 371
21. THE SUBJUNCTIVE POWER OF GOD
John D. Caputo ...................................................................................................................... 411
22. SCAFFOLDING LANGUAGE: WORDS, TOOLS AND THE TRANSMISSION
OF ACQUIRED INFORMATION
John Sarnecki ........................................................................................................................ 419
23. EDUCAÇÃO DO FILÓSOFO NA REPÚBLICA DE PLATÃO
Karen Franklin ...................................................................................................................... 435
24. REVISITING HABERMAS’S THE PHILOSOPHICAL DISCOURSE OF
MODERNITY AFTER 35 YEARS
Kenneth Baynes ..................................................................................................................... 455
25. O RITMO BÁQUICO DO CONCEITO
Kathrin Holzermayr Rosenfield ............................................................................................465
26. HOSPITALIDADE: ALMA DAS RELIGIÕES
Luiz Carlos Susin ................................................................................................................... 479
27. A REABILITAÇÃO DA FILOSOFIA PRÁTICA E A QUERELA ENTRE TEORIA
DISCURSIVA E LIBERALISMO POLÍTICO
Luiz Bernardo Leite Araujo ................................................................................................... 497
28. A AMPLITUDE DA RAZÃO PÚBLICA EM JOHN RAWLS
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten ............................................................ 513
29. A ÉTICA DO APRIMORAMENTO COGNITIVO: EFEITO FLYNN E A FALÁCIA
DOS TALENTOS NATURAIS
Marcelo de Araujo ................................................................................................................. 539
30. O AMOR NO CÉREBRO
Maria Borges ......................................................................................................................... 553
31. THE TIME OF ETHICS: OPENING TO THE IRREDUCIBLE OTHER
Mary C. Rawlinson ................................................................................................................ 563
32. UM DIA NA VIDA DE SCHELLING
Muriel Maia-Flickinger ......................................................................................................... 577
33. ANTIRACIST RE-READINGS: THE RIO DE JANEIRO VACCINE REVOLT
AND A REMINDER OF WHAT POLITICAL PHILOSOPHY DOES AND WHAT IT
CAN ACHIEVE
Norman R. Madarasz ............................................................................................................ 597
34. CRISIS AND THE MECHANICS OF POLITICAL DOMINATION: AN OUTLINE
Nuno Pereira Castanheira.....................................................................................................625
35. SOBRE LA PLUSVALÍA IDEOLÓGICA
Renzo Llorente ....................................................................................................................... 635
36. FENOMENOLOGIA E METAFENOMENOLOGIA - SOBRE O TEMA DA
"SUBSTITUIÇÃO" NO PENSAMENTO ÉTICO DE LEVINAS
Ricardo Timm de Souza......................................................................................................... 647
37. COAÇÃO, LIMITES DA VOLUNTARIEDADE E BATISMO: O FUNDO
FILOSÓFICO-SCOTISTA DE PRÁTICAS BATISMAIS POR MISSIONÁRIOS
FRANCISCANOS NA AMÉRICA LATINA DO SÉCULO 16
Roberto Hofmeister Pich ....................................................................................................... 677
38. DESENVOLVIMENTO EXISTENCIAL E EXISTÊNCIA NEONATAL
Róbson Ramos dos Reis .........................................................................................................703
39. MORAL, DIREITO E JUSTIÇA EM KANT
Thadeu Weber ........................................................................................................................ 725
APRESENTAÇÃO
60 ANOS TEMPORAL-ETERNAL
https://doi.org/10.36592/9786587424163-0
“Sub Specie Aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira”:
Uma homenagem de gratidão e reconhecimento pela trajetória intelectual de
Nythamar de Oliveira, professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS), nos Programa de Pós-graduação em Filosofia e Teologia,
pelos seus 60 anos de vida. A maior parte desses anos foram dedicados à docência, à
pesquisa e à produção filosófica e interdisciplinar, por isso nosso reconhecimento ao
seu trabalho acadêmico e inserção social nas mais diversas áreas de atuação
profissional.
A obra recolhe a contribuição de textos oferecidos e partilhados pelos
pesquisadores das mais diversas Universidades, regiões e países, o que confere um viés
marcadamente plural e interdisciplinar aos 39 capítulos, que compõem este livro
festivo para comemorar os 60 anos de existência de Nythamar de Oliveira.
O título - Sub Specie Aeternitatis - foi escolhido, cuidadosamente, a fim de
captar o espírito da pesquisa e da docência do homenageado, que articula a razão e a
fé em dinâmicas interligadas nas esferas da Filosofia e da Teologia. A expressão foi
cunhada por Spinoza para designar a necessidade do que é eterno (Deus sive natura),
em contraste com a contingência das coisas e eventos temporais. Nesse sentido, a
eternidade é correlata à temporalidade, assim como a transcendência com relação à
imanência.
Humans have the special capacity to step back and survey themselves, and the lives
to which they are committed [...]. Without developing the illusion that they are
able to escape from their highly specific and idiosyncratic position, they can view
it sub specie aeternitatis - and the view is at once sobering and comical [...]. If sub
specie aeternitatis there is no reason to believe that anything matters, then that
does not matter either, and we can approach our absurd lives with irony instead of
heroism or despair (Thomas Nagel. “The Absurd”. The Journal of Philosophy. Vol.
68. No. 20. Sixty-Eighth Annual Meeting of the American Philosophical
Association Eastern Division (Oct. 21, 1971). pp. 716–727)1.
“Os seres humanos têm a capacidade especial de recuar e examinar a si mesmos e as vidas com as quais
estão comprometidos [...]. Sem desenvolver a ilusão de que são capazes de escapar de sua posição
altamente específica e idiossincrática, podem vê-la sub especie aeternitatis (sob o aspecto da
eternidade) - e essa visão é ao mesmo tempo sóbria e cômica [...]. Se não há razão sub especie
aeternitatis para acreditar que alguma coisa importa, então isso tampouco importa e podemos encarar
nossas vidas absurdas com ironia, em vez de heroísmo ou desespero”.
1
14 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Segundo o homenageado, “O termo sub especie aeternitatis (latim, “sob o
aspecto da eternidade”) foi consagrado por Spinoza para designar a necessidade do
que é eterno (aeternitas), em contraste com a contingência de coisas e eventos
temporais que têm duração (duratio). Na medida em que são modos da substância, os
modos podem ser concebidos sub specie aeternitatis, visto que participam de alguma
maneira da eternidade da substância. Destarte, a Favela de Lasar Segall (1954) desvela
essa interseção entre a horizontalidade temporal da imanência e a verticalidade de
nossa transcendência em busca de sentido”.
Queremos parabenizar o homenageado e agradecer a amizade e todos os anos
de colaboração nos estudos e nas pesquisas, ao mesmo tempo, em que manifestamos
nossa gratidão a todos os autores que contribuíram com o envio dos textos para este
livro comemorativo.
Draiton Gonzaga de Souza
Agemir Bavaresco
Jair Tauchen
Orgs.
1. PUBLIC OPINION AND SENSUS FIDELIUM1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-1
Agemir Bavaresco2
Abstract
Public opinion and religious opinion are located within plural societies, connected to
social networks. The experience of the phenomenon of public opinion by the believers
interacts with the experience of religious opinions. What are the mediations employed
by the sensus fidelium to explain the contradictions between public and religious
opinion? This article discusses the proximity between public and religious opinions
through the categories of publicity, contradiction, utility and truth. In networked
societies, the faithful exercise the right to express their opinions and religious
convictions. The phenomenon of the sensus fidelium immediately evidences the
experience of faith of the believers as subjective convictions and religious opinions.
Afterwards, these opinions are mediated by the collegiate spheres of the Church,
expressing the coherence of the belief, that is, its truth. The proximity between public
and religious opinions points to more complex scenarios for the Church and the
believers.
Keywords: Public Opinion; Religious opinion; Sensus Fidelium.
Introduction
The theme of public opinion and the sensus fidelium are phenomena of culture
and religious experience that need the mediation of articulated social intelligence in
social networks. The phenomenon of public opinion is used to make diagnoses, trace
scenarios and establish action plans. Likewise, religious public opinion becomes
increasingly useful for Churches to investigate the opinions of the faithful with the aim
of updating their pastoral actions, debating moral problems, being in tune with the
1 Paper published In: Daimon. Revista Internacional de Filosofía, nº 77, 2019, pp. 7-19.
http://dx.doi.org/10.6018/daimon/280201
2 Professor of the Graduation Program in Philosophy/PUCRS. E-mail: abavaresco@pucrs.br
https://orcid.org/0000-0002-7967-4109
16 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
challenges of the spirit of the times and interpreting the “signs of the times.” Both
public opinion and religious opinion are met with a new fact: plural societies connected
in social networks. Here, the opinion finds its special forum to be affirmed in the
instantaneousness of the internet as well as to be denied in the opposition of plural
societies, constituting itself in the moment of the contradiction that seeks institutional
mediations in order to influence public opinion and the establishment of themes that
constitute the world agenda.
The problem discussed in this text exposes public opinion firstly as situated
within the field of publicity, secondly as a phenomenon of contradiction and finally as
something useful for the relationship between societies and churches. In interpellative
terms: how do the phenomena of public opinion, religious opinion and the sensus
fidelium are articulated interdisciplinarily? How do they contribute for relationship in
plural societies?
This article is structured according to the following objectives: (i) to evidence
the proximity between public opinion and religious opinion, showing how both pass
through the assessment of publicity, contradiction, utility and truth; (ii) to present the
fact of network society, in which religious citizens exercise the right of expressing their
opinions and religious convictions; (iii) to describe the phenomena of the sensus fidei
and sensus fidelium as being, on the one hand, the clarification of the experience of
faith among the religious citizens in their immediacy and, on the other, subjective
convictions and religious opinions that are objectivized through the collegiate
mediation of the Church; (iv) to point to diagnoses and scenarios for churches in times
of networked societies, plural societies connected through religious public opinions as
experiences in the sense of faith and plural beliefs.
Firstly, public opinion is approached in face of the new scenario of networked
societies, having in mind three complementary principles: publicity, contradiction,
and utility. Afterwards, the sensus fidei, the sensus fidelium and the consensus fidei
are described as inclusion, expression and mediation of religious opinion of the faithful
in face of plural societies.
1Public opinion: publicity, contradiction and utility
We initially present a brief exposition of some theories concerning public
Agemir Bavaresco | 17
opinion that we believe are important for understanding the phenomenon of opinion
in social networks, specifically how the believers’ opinion are constituted (religious
opinion) and the believers’ expressions of faith in order to understand the logic that
moves the new networked social subjects and actors and their religious experience. 3
The concept of social networks here is understood in an operational sense, that is,
when a computer network connects a network of people, groups and organizations in
all levels.
a) The Principle of Publicity4
The Declaration of the Rights of Man and of the Citizen (1789) (Déclaration des
Droits de l'Homme et du Citoyen) was the document that synthesized the ideals of the
French Revolution, in which individual and collective rights of humans are clarified;
preoccupied with universality, they advocate for the freedom of opinion in two articles:
10. No one shall be disquieted on account of his opinions, including his religious
views, provided their manifestation does not disturb the public order established
by law.
11. The free communication of ideas and opinions is one of the most precious of
the rights of man. Every citizen may, accordingly, speak, write, and print with
freedom, but shall be responsible for such abuses of this freedom as shall be
defined by law.
Afterwards, in the 20th Century, the Declaration of Human Rights will
consolidate this principle:
“Everyone has the right to freedom of opinion and expression; this right includes
freedom to hold opinions without interference and to seek, receive and impart
information and ideas through any media and regardless of frontiers.” (Human
Rights, article 19).5
Modernity had already instituted the principle of publicity as groundwork for
the advancement of the protection of the right of freedom of the press and opinion.
This principle is simultaneously constituted by the formation of the public sphere.
This part is the reproduction of a chapter of a book, already published in: BAVARESCO, A.; SOUZA,
Draiton Gonzaga de. Epistemologia das redes sociais, opinião pública e teoria da agenda. In: Draiton
Gonzaga de Souza; Agemir Bavaresco. (Org.). Direito e Filosofia I. Porto Alegre: Letra e Vida, 2013, p.
92-115.
4 Cf. BAVARESCO, A.; KONZEN, Paulo Roberto; SORDI, CAETANO. Mídias, democracia e opinião
pública: diagnósticos, teorias e análises. In: BAVARESCO, A.; VILLANOVA, Marcelo Gross;
RODRIGUES, Tiegüe Vieira. (Orgs.). Projetos de Filosofia II. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, v., p. 839. Disponível em: http://www.abavaresco.com.br/publicacoes.html#capitulos
5 United Nations Human Rights: http://www.ohchr.org/EN/Pages/WelcomePage.aspx
3
18 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Therefore, there is a mutual imbrication between publicity and public sphere, freedom
of the press and public opinion.
On a philosophical level, Kant theorizes about the principle of publicity as a
stage of majority, as an emancipation of humanity. Kant inaugurates, as we have seen,
the discussions about public opinion through the principle of publicity presented in
Perpetual Peace: Justice “[…] can only be thought of as publicly disclosable” (KANT,
2010, p. 75). Publicity is a political concept that creates, in political philosophy, the
idea of public sphere as a structure that ensures individual and public rights; the
formal principle of publicity ensures legitimacy to juridical norms. The right of
expressing one’s own opinion has, in the principle of publicity, its legitimation.
Publicity is the formal principle and public opinion is the practicalphenomenological device that mediates between the formal principle of publicity
and the empirical dimension that is effected in civil law, in international law and
in cosmopolitan law (LIMA, 2011, p. 286).
Kant, in publishing the work Religion within the Bounds of Bare Reason,
triggered a great debate, since it was understood as a challenge to the emperor of the
theistic Christian State of his time. There is no publicity in the court, since there is no
public space, only private, that is, the sovereign space. In this context Kant introduces
the principle of publicity, disclosing the conflict between the public use of reason and
private reason within the religious and political ambit that is thematized in The
Conflict of the Faculties. Kantian public reason foreshadows the idea of freedom of
expression implemented in contemporary democratic constitutions as well as
introduces the legitimacy of public opinion in the modern State.
It is Hegel, notwithstanding, who will explicitly posit the theory of public
opinion by thematizing the principle of contradiction as being its immanent
movement. Public opinion is a phenomenon of the contradiction of opinions on all the
levels of society.
b) Contradiction of Public Opinion6
Hegel understands public opinion as a phenomenon of contradiction that needs
to pass from immediacy to mediation. The phenomenon of public opinion is
Cf. BAVARESCO, A; KONZEN, P.R. Cenários da liberdade de imprensa e opinião pública em Hegel.
Kriterion, vol.50, n.119, Belo Horizonte, Junho 2009. Available at:
http://www.abavaresco.com.br/publicacoes.html#artigos
6
Agemir Bavaresco | 19
contradictory, because it contains within itself both the universality of constitutional
principles, of Law and Ethics, and the singularity of rights and interests of citizens and
of the expression of their subjectivity. This contradiction finds its solution through the
mediation of freedom of the press itself within a framework of democratic lawfulness.
This is the strength of contradiction: to effect the mediation of the dialectic tension
between the opposite poles of the universal and the singular in the freedom of the
press, ensuring the right of every citizen to publicly express his or her opinion.
Hegel develops the principle of contradiction in his Logics of Essence,
describing the movement in which being is opposed insofar as it is reflected in itself
and in the other. Contradiction is a logical concept that moves the whole of political
reality. Hegel analyzes the fact of public opinion and understands it as a contradiction;
the right the citizen has of freely expressing his or her opinion allows opposite opinions
to be manifested. This is the logics of opinion, saying what one thinks immediately,
surpassing the contradiction of prejudices, preferences, interests etc. The logics of
opinion is the movement of contradiction of the right to freely express what one thinks
and wants, passing through the mediation of sociopolitical institutions.
The Hegelian principle of contradiction provides us with a diagnosis and an
understanding of public opinion that is relevant to understand both its time and the
complex framework of contemporary society. However, how is public opinion treated
afterwards by J. S. Mill? What is his diagnosis and interpretative horizon to analyze
public opinion?
c) Principle of utility
The utilitarianist horizon is present in the political philosophy of J. S. Mill7 and,
therefore, in his irreducible defense of freedom of expression. In Mill’s conception, a
society wherein freedom of expression flourishes has more positive consequences for
its members than one in which freedom is restricted; and free opinion is a more
7 Cf. ORLANS, Barbara. et al., The human use of animals: case studies in ethical choice. Oxford: Oxford
University Press, 1998. (1) The principle of utility: for utilitarianists, the idea that subjects seek the
maximization of their well-being is indispensable. The postulate that the greatest happiness possible
should be sought for the largest number of people involved in a determinate action is part, therefore, of
utiliatarianist ethics; (2) A scale of benefits: utilitarianists defend that the benefits and evils of the
consequences of an action may be measured through items that count as goods or primary utilities; (3)
Consequentialism: all utilitarian theories are consequentialist. This means that the actions will be
morally right or wrong according to their consequences, far beyond the virtues that refer to any moral
quality they may possess, such as fidelity, friendship or trust; (4) Impartiality: finally all the parts
involved in the action should receive impartial consideration. Any partiality referring to particular
individuals should possess a reasonable and strict utilitarian justification.
20 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
adequate regime than censorship in face of the unavoidable partiality of individual
opinions.
Mills stresses that there is also the principle of utility to guide the defense and
maintenance of free public opinion, since it brings forth benefits for the collectivities
in which it is applied. A democratic society allows its citizens to satisfy their desire of
having the best opinions possible according to the scenario most fit for an impartial
consideration of all the opinions without arbitrary privileges to one specific opinion. It
could be said that Mill applied the moral principle of utility to public opinion: there is
joy in conveying one’s own opinion; more than that, expressing what one thinks is
pleasurable. The individual seeks an advantage or an interest and may want his or her
opinion to influence others. It is useful for the individual to ensure the moral pleasure
of having his or her opinion acknowledged by the public. The interplay of opinions
acknowledges the utility of everybody expressing their opinions. However, the
justification of the many opinions occurs through impartiality, that is, the opinion
needs to be useful for the largest number of individuals possible and not only satisfy
the partiality of some opinions.
Thus, we have publicity, contradiction and utility as the three principles of
public opinion. We think that they are very consistent to understand the fact of public
opinion. Publicity of politics, the logics of contradiction and utilitarianist morals are
constitutive principles of public opinion. They allow understanding the new scenarios
of the public sphere constructed or influenced by the multimedia, social networks and
nationally and internationally broadened in a dynamics of global self-communication
(cf. Castells, 2012). Thus, it may be posited that the network of opinions follows a logics
of contradiction moved by immediate perceptions and impressions in the utilitarianist
conflict of interests, activated by the principle of the public that articulates the
opinions in religious and social networks. This research will investigate to what extent
these principles are also present in the religious public opinion in scenarios of plural
societies.
Currently new scenarios for communication are built, having, on the one hand,
the large corporations of television, radio, press and online media and, on the other,
the role of the independent/alternative press, understood as not linked to a private,
public or state company or some economic group. The constitution of opposition
Agemir Bavaresco | 21
between conventional media and independent/alternative press is progressively
configured, having as material support the new technologies of information.
In the networked society connected with plural societies, three processes of
learning and changes are found: () on a technical level, television, radio, press and
online media are articulated, having in mind that, with the advent of the internet and
independent social networks, there is a progression from the age of the mass media to
the age of the media for all, that is, there is democratization of the media; (β) on a
communicational level, there is a progression from the concept of exclusive journalism
to inclusive press and journalists; (γ) on a political level, social networks question
representative democracy and defy the implementation of digital democracy and the
democratization of the media.
Having these scenarios of communication and public opinion as expressed in
social networks and plural societies in mind, religious opinion is also seen to be
traversed by the three abovementioned principles of public opinion, so that the
publicity of religious opinions is freely expressed in networks, generating the
phenomenon of the contradiction of believers on various themes of society (ethics,
politics, doctrines etc.) according to utilitarianist interests of the believers. It is known
that religions suffer the impacts of this phenomenon of public opinion and that the
religious opinion of the believers, in addition to being a part of this scenario, is guided
by the principle of the truth of religious opinions.
2 Sensus fidei, sensus fidelium and consensus fidei
Initially it is worth positing that there is an implicative articulation among these
three levels of experience of faith: sensus fidei, sensus fidelium, and consensus fidei.
These expressions are connected to varied yet complementary contents. Herbert
Vorgrimler defines (1) sensus fidei (SF) as “a determined species of knowledge that
arises from faith and refers to the essential content of this same faith.” 8 It is a
spontaneous, non-discursive, intuitive and immediate way of knowing. It is the sense
of faith particular to anyone who believes in God’s revelation. It is the individual
consciousness illuminated by the light of the Spirit of God. The (2) sensus fidelium is,
Cf. HAARSMA, Frans. Investigação empírica por um consensus da Igreja? In: CONCILIUM n. 1
(1972), p.100 – 102.
8
22 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
according to the author, the sense of the faithful or the collective consciousness of faith.
The (3) consensus fidei is the faithful’s agreement formed out of the sense of faith.9
According to Dario Vitali, the term sensus means sense; this noun corresponds
to the Greek term aisthesis (ἴθ), which means perception, sensation or feeling,
indicating a way of knowing from experience, acquired through the senses; a way of
understanding or being conscious of something. On the other hand, the term fidei
means faith as an attitude of deliverance, that is, the assent about that which is
experienced as sensus.
The sensus fidei (personal consciousness) is connected to the sensus fidelium
(collective consciousness). The individual Christian existence is situated within the
context of ecclesial communion, that is, the Christian faith is, at the same time,
personal, communitarian and ecclesial. Christian faith becomes explicit in the
community, constituting the communicative relationship of the Church in its personal
and communitarian dimension.
The sensus fidelium (faithful’s sense) has an objective meaning, referring not
only to the believer as individual, but to that which is objectively believed in. It is an
ecclesial and collegial function through theologians, the magisterium and the group of
the faithful. It is, then, something objective, since it is made explicit in a
communitarian level.
The consensus fidei (consensus of faith, that is, the universal agreement or
consensus on questions of faith and moral action) has the value of a criterion of truth.
Frans Haarsma relates the faithful’s consensus to the sense of faith, positing that “the
consensus is defined as a unisonous expression of faith by the totality of the faithful
and may be confirmed by statistics in a kind of ecclesial public opinion 10 whereas the
sense of faith should be based on theology.”11
In the experience of the sensus fidei, the phenomenon of the expression of faith
occurs immediately as sensibility of the act of believing in God. Here, the freedom of
the act of believing is manifested in its intuitive and spontaneous expression, that is,
the freedom of opinion of the faith that the believer has the right of freely expressing,
for instance, in the form of popular religion in face of God and its historical mediations.
9 Cf. VITALI, Dario. Sensus fidelium. Una funzione ecclesiale di intelligenza della fede. Brescia,
Morcelliana, 1993, p. 148.
10 VITALI, Dario. Sensus fidelium. Una funzione ecclesiale di intelligenza della fede. Idem, p. 274.
11 Cf. HAARSMA, Frans. Investigação empírica por um consensus na Igreja. In: CONCILIUM,
Op. Cit., p. 95.
Agemir Bavaresco | 23
Afterwards, in the sensus fidelium, religious opinion experiences the
contradiction of religious opinions, since there is a plurality of opinions about the same
themes and issues. It is something typical of plural societies that show their faith as
autonomous persons to say freely what they think about their experience of faith.
However, there is a mediation to be made among the multiplicity of opinions of the
faithful; this mediation aims at making explicit the contradictions of religious opinions
so that the truth of faith may be achieved. This is the objective moment of the
experience of faith that assumes the individual opinions and mediatizes them through
theological debates, magisterial memory and the hermeneutics of the believers. Here
opinion as sensus fidelium is achieved, that is, the ecclesial consciousness as faith
made explicit by the faithful in the light of the mediations of the ecclesial community
and its members.
Finally, in the consensus fidei, religious opinion is evaluated through the many
collegiate instances of the Church—communities, magisterium, theologians,
assemblies, synods, councils etc.—to establish agreements or understandings that
ensure the unity and truth of opinions in terms of faith, embracing the universal
acknowledgment of the Church.
To what extent may the sensus fidelium be brought near religious public
opinion? That is, is there a public sphere in the Church, allowing the believers (the
faithful, theologians, bishops) to freely express their opinion through social networks?
To deal with these problems, the experience of faith is described in terms of the sensus
fidei, the sensus fidelium and the consensus fidei, which constitute the subjects of the
expression of the Catholic faith. Our objective is to bring the phenomenon of public
opinion near the phenomenon of religious opinion, showing, at the same time, the
specificity of religious public opinion.
2.1 Sensus fidei: Experience as the epistemological place of faith
The sensus fidei constitutes the starting point of the movement of faith and
refers to the expression of a form of acknowledgment of belief, defining the ability of
each baptized individual to live the religious experience. However, it is a personal and,
at the same time, public experience of faith experienced and manifested in the
community of believers wherein the act of faith is a vital and existential act in which
24 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
the whole person is involved.12 The experience of faith enables the person to express
the sensus fidei, whereas personal consciousness experiences the relationship and
identification with the object of faith.
Theology has the difficulty of bringing near experience and sensus fidelium.
When sensus fidelium and experience come near, in Catholic theology, one oscillates
between complementary opinions: on the one hand, in denying the role of experience,
one equally denies the function of the sensus fidelium. According to D. Vitali, the
moment of greater rejection of experience in modernist crisis is also the moment of
greater suspicion in relation to the doctrine of the sensus fidelium.13 On the other hand,
when in theology the experience is recovered, a return to the sensus fidelium occurs.
Indeed, there is, between experience and sensus fidelium, a constitutive relationship;
otherwise, the object of the sensus fidelium is empty without the object of the spiritual
experience. Therefore, the spiritual experience is linked to the sensus fidelium when a
content of the experience of revelation is made explicit.
According to E. Schillebeeckx, “praxis is the place wherein authentic theory is
manifested. A clear idealistic-minded disposition between pure reason and practical
reason does not hold. Concretely, Christianity is essentially a renovation of the concrete
and real being in which the theory occurs interiorly and implicitly”14; that is, it is a
practice lived in the experience of the people as community that practices the faith.
The reflection about the theological places and the understanding of the practice
of faith occurs through the mediation of the local synods, of the articulation of the
communities, of the liturgy in the life of communities. The life of families in their varied
forms witnesses the lex vivendi according to the Gospel as well as the testimony of
charity and the lives of Saints.
Experience is the epistemological place of Faith: the fact of the manifestation of
faith is a practice that constitutes an object of analysis and theological knowledge in its
own source from the subject that makes experience, that is, from the sensus fidei. Faith
and experience together give meaning and identity to the interpretation of the
experience in itself.15
Cf. D. VITALI, Sensus fidelium, p. 251-252.
Cf. D. VITALI, Sensus fidelium, p. 259-260.
14 L.M. FERNANDEZ DE TROCONIZ, «La Teologia sobre el sensus fidei de 1960 a 1970», Scriptorium
Victoriense 31 (1984), p. 23.
15 Cf. A. GONZALEZ MONTES, «La experiencia, lugar epistemológico de la fe», Estudios Eclesiásticos 68
(1993), p. 417-431.
12
13
Agemir Bavaresco | 25
The Lumen Gentium articulates the supernatural sense of faith (sensus fidei)
and the consensus of the universality of the believers:
The entire body of the faithful, anointed as they are by the Holy One, (cf. 1Jo 2,
20.27) cannot err in matters of belief. They manifest this special property by
means of the whole peoples' supernatural discernment in matters of faith when
"from the Bishops down to the last of the lay faithful" (8*) they show universal
agreement in matters of faith and morals. That discernment in matters of faith
(sensus fidei) is aroused and sustained by the Spirit of truth. It is exercised under
the guidance of the sacred teaching authority, in faithful and respectful
obedience to which the people of God accepts that which is not just the word of
men but truly the word of God. (LG 12a).
The universal agreement in matters of faith and morals includes that which the
Church is and believes, that is, the depositum fidei and other forms of expression of the
Christian faith that are the manifestation of the sensus fidei of the faithful in unity with
the ecclesial institutions, in the liturgical-sacramental practice of the Church, in the
theological reflection and in the practice of a Christian life. 16 Therefore, all this
experience of faith by the believer is manifested as religious opinion through the sensus
fidelium.
2.2 Sensus Fidelium 17: Religious opinion and unity of faith
The sensus fidelium is the religious experience as manifestation of the
phenomenon of the divine Spirit that communicates its charismas to the believers.
Thus, the charismas may be considered an expression of the sensus fidelium in the
ecclesial community and in the world,18 in a subjective and objective dimension.
a) The subject of the sensus fidelium: In the ecclesial language, the term sensus
fidelium was habitually applied to the members of the Church that were not part of the
hierarchy.19 However, there is equivalence between the Catholic Church and the sensus
omnium fidelium, that is, there is a coincidence between the sensus Ecclesiae and the
sensus omnium fidelium, since there is only one subject to the sensus fidelium formed
Cf. A. ANTÓN, «Recezione e Chiesa locale. La connessione di ciascuna delle due realtà da punto di vista
ecclesiale ed ecclesiologico», Rassegna di Teologia 40 (1999/2), p. 170-177.
17 For further aspects, cf. Dallagnol, W. (2005): O Povo de Deus como sujeito na vida Igreja. O sensus
fidelium como chave de leitura em eclesiologia. Roma, Pontifícia Universidade Gregoriana, PhD. Thesis.
18 Cf. G. BIONDO, (1989): Il Sensus fidelium nel Vaticano II e nei Sinodi dei Vescovi. Roma, Pontificium
Athenaeum S. Anselmi de Urbe, p. 34, 76-78.
19 Cf. D. VITALI, Sensus fidelium, 157; cf. p. 321-322.
16
26 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
by the whole of the believing faithful. The members of the hierarchy and the faithful
have different functions and missions, but both form “one only subject, which is the
universal Church.”20
According to E. Schillebeeckx, the subject of the sensus fidelium is both the
particular person and the Christian community (the universal Church). The sensus
fidelium is among the subjects of the transmission of the Revelation, identified with
the totality of the Christian people,21 since the action of the Spirit is present in all those
who were baptized, there being a complementariness of functions and opinions
according to the plurality of missions. According to Y. Congar, the community of
believers is the subject of the sensus fidelium, since it continues to transmit and
actualize the content of the faith, being every faithful an active subject in the dynamics
of ecclesial life, freely participating with his or her religious opinion. 22 Therefore, the
subject of the sensus fidelium is the Church as People of God: the People of God,
professing the faith, contributes to expose it, publish it, manifest it, then, in the
moment in which they believe, the People of God teaches. This implies that the sensus
fidelium is present within the Christian community as an intuition, an opinion and an
understanding of the faith.
The subject of the sensus fidelium is an universalis coetus fidelium, that is, all
the faithful form this subject not as a sum of individuals, but as an expression of the
unity of all those baptized in the function of intelligence of the faith.23
b) The object of the sensus fidelium is the very content of the revelation, that is,
what the Catholic Church has “believed in everywhere, always and for all (quod ubique,
quod semper, quod ab omnibus creditum est),”24 constituting the universality of the
Christian faith. The revelation goes through the mediation of the faithful (bishops,
theologians, missionaries, etc.), who, through their experience and practice of faith,
develop their historical experiences that form the sensus fidelium.
Therefore, the object of the faith are concrete realities, the experience of people,
that living sensibility of faith that J. Wicks understands as the common profession of
faith, therefore being “the sensus fidelium an important criterion of the validity of an
Cf. D. VITALI, Sensus fidelium, 158-161.
Cf. L.M. FERNANDEZ DE TROCONIZ, «La teologia sobre el Sensus fidei de 1960 a 1970», Scriptorium
Victoriense 31 (1984), p. 6.
22 Cf. L.M. FERNANDEZ DE TROCONIZ, «La teologia sobre el sensus fidei de 1960 a 1970», Scriptorium
Victoriense 29 (1982), 171-174.
23 Cf. D. VITALI, (2001), Sensus fidelium, p. 173.
24 B. FORTE, La Chiesa della Trinità. Editrice Queriniana: Brescia 1984, p. 177.
20
21
Agemir Bavaresco | 27
article of faith.” 25 From the dynamicity of the faith the dynamicity of the sensus
fidelium emerges, inspiring the whole ecclesial body in a process of interaction and
complementariness of charismas and missions, contributing to the ongoing renovation
of the Church.
The sensus fidelium is the legitimate expression of the plurality of the
experience of faith in the tension of the ecclesial unity. The sensus fidelium acquires a
central place between the criteria of discernment of the faith, having an effective
incidence in the formation of the opinions of the ecclesial will, thus becoming one of
the means of assessment of the validity of the orientations of the Churches. Therefore,
the sensus fidelium is a constitutive subject of the Church, ensuring that the believers
express their religious opinions on the contents of the revelation. Therefore, a correct
relationship between all the subjects of the revelation and of the ecclesial organization
is established so that the sensus fidelium maintains and stimulates a symmetrical
relationship in the ecclesial dynamics, achieving the unity of the practice of the faith
through the consensus fidei.
2.3 Consensus fidei: Opinion, ecclesiality and conspiratio
The act of faith implies being professed, celebrated and manifested in the
community of faith, constituting itself in consensus fidei that strengthens the identity
and the mission of the Church as people of God in the history of ecclesiality.
a) The criterion of ecclesiality of the faith: Consensus fidei
The criterion to distinguish the ecclesiality of faith is the consensus fidei that
emerges from the communion and participation in ecclesial procedures such as the
relationship with the content of the faith through the mediation of the community of
believers, as a space of credibility of faith and ecclesial credibility. The experience of
faith and the theological reflection made explicit in formulations of faith move the
teaching activity of the Church and the consensus as to what is taught.26
The sensus fidelium of the people of God constitutes and moves the sensus
Ecclesiae, the tradition and the fidelity to the history of the faith. The many expressions
25 J. WICKS, Introduction to the theological method, Edité par Piemme, Casale Monferrato, Italy, 1994,
p. 128.
26 Cf. M.-T. NADEAU, «Le développement de l’expression fides Ecclesiae», La Maison-Dieu 174 (1988),
137.
28 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
such as sensus fidei, sensus fidelium, consensus fidelium, sensus Ecclesiae are actually
many criteria and moments of mediation of the sense that constitutes ecclesiality.
According to G. Biondo, “the sensus fidelium” may be “considered as the objective
element of the faith, that is, that which is exteriorly realized, the collective
consciousness of faith of the Christian people that is concretized and becomes historical
in an ecclesial community.”27 Here, this sense is identified as consensus fidelium, so
that the collective experience of the Church people of God is the expression of the
sensus Ecclesiae.
According to J. H. Newman, the sensus Ecclesiae brings preachers and the
faithful together in public acts that form ecclesiality through solidarity, liturgy,
festivities, prayer and devotions of popular religiosity. These acts are the force of
communion and communication of the religious opinions of the sensus communis
fidelium advancing the ecclesial process.28 For J.-M. Tillard, the sensus fidelium is one
of the essential elements of the sensus Ecllesiae, one of the fibers sustaining the life of
faith of the people of God.29
b) Ecclesial Conspiratio: Confluence of opinions
The term conspiratio (spiratio/breathe + con/together = to breathe together)
means the act that constitutes a human group in their breathing together, which in the
theological context is made explicit in the communion (inspiration) and
communication (expiration) of the plurality of ecclesial opinions, traditions, ideas and
practices. Therefore, the conspiratio as a dimension of the consensus fidelium enables
the believers in their different articulations to express their opinions and religious
missions in favor of conviviality, tolerance and the freedom between the churches and
the society, triggering a fluent and confluent process of communication and changes
on all the levels of reality.
An example of conspiratio as expression of the consensus fidelium was the
Second Vatican Council, which has articulated the intra-ecclesial and extra-ecclesial
relationships in many typologies. Theology, after the Second Vatican Council,
highlighted the issue of the subject of faith: the faithful. If in the manualistic the
identification of the revelation with the dogma highlighted the primordial function of
Cf. G. BIONDO, Il sensus fidelium. p. 19-20.
Cf. J.H. NEWMAN, On consulting. Kansas City: Sheed & Ward, 1961, p. 65.
29 J.-M.R. TILLARD, «Le sensus fidelium : réflexion théologique», coll. "Cogitatio fidei," 87, Paris, 1976,
p. 16.
27
28
Agemir Bavaresco | 29
the ecclesiastic magisterium, now the faithful are emphasized. And here the
affirmations in the perspective of the sensus fidelium 30 are developed. Then, “the
transcendent subject of knowledge of the Mystery, the Spirit of the Living God,
operates in the conspiratio of the historical subjects, not mortifying, but exalting in
originality and in specificity the pneumatological and Trinitarian Ecclesiology.”31
That is why “the faithful are not, in the life of the Church, only receptive and
passive receivers of the ecclesial doctrine, but participant subjects of the Church.” 32
The inheritance of the Second Vatican Council enables, then, an open hermeneutics
counting on the participation of the faithful in the life of the Church.
For J. H. Newman, the consensus fidei is oriented by the pursuit of truth, but
we should be attentive to the threat of homogenization, since the suppression of
novelty leads to monotony, to impoverishment and ends up causing tension. The
consensus fidei ensures the plurality of religious opinions, enabling debate and
creativity about theoretical and practical questions within the Church, something that
renders the ongoing aggiornamento of the institution feasible through the confluence
of opinions and its mediation in the pursuit of truth.
The conspiratio is a form of mediation that strengthens the pursuit of truth in
a communitarian manner, specifically through the plurality of opinions and ideas, the
debate and the dialog that allow a creative and innovative hermeneutics of the Gospel
and ecclesial tradition. The dialog between plural opinions is part of the very reality of
human life. “The Ecclesiology of dialog and service is not the loss of identity of the
Church, but the search for an identity of a higher level typical of the evangelical
exigency of ‘losing’ one’s own life in order to ‘save it’” (cf. Mt 10, 39).33
Conclusion
In public opinion and sensus fidelium, the principles that constitute the public
opinion—publicity, contradiction and utility—were evidenced, pointing out that the
mediation for the truth is a constitutive criterion for both public opinion and religious
opinion. Afterwards, we have presented the sensus fidei, the sensus fidelium and the
Cf. D. VITALI, Sensus fidelium, p. 86.
B. FORTE. La Chiesa della Trinità. Editrice Queriniana: Brescia 1984, p. 15.
32 METZ, J. B. –SCHILLEBEECKX, E., «A herança do Concílio», Concilium (ed. brasil.) 200 (1985/4),
p. 3.
33 Id. B. FORTE, La Chiesa icona della Trinità, p. 43.
30
31
30 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
consensus fidelium as theological concepts that express religious phenomena close to
public opinion as the freedom of freely expressing religious opinions.
The worldly and ecclesial context presents us with new scenarios of experience
of faith, since we are living in ever more plural societies articulated by social networks
that allow the free expression of public opinion and religious opinion in the public
sphere as a phenomenon specifically traversing the Catholic ecclesial institutions and
also all the religions in general.
Initially a difference between opinions is perceived, since the believers go from
one level to the other, expressing their opinions in social networks. However, there is
a difference between public opinion and religious opinion, since the sensus fidelium is
the expression of the identity of the faith. If, on the one hand, there is indifference
between the opinions binding all the citizens in plural societies, expressing their
opinions publicly, on the other hand, there is the difference that identifies the
consensus fidei or the community of faith. Nevertheless, this difference between the
spheres is increasingly slight, since social networks instantaneously traverse all the
institutions, influencing decision-making in the instances of power, which implies that
they are ever closer to public opinion and religious opinion through the sensus
fidelium.
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Agemir Bavaresco | 31
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2. DEUS COMO TU E ORAÇÃO COMO DIÁLOGO: AS FERRAMENTAS
PARA RECONCILIAÇÃO EM MARTIN BUBER1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-2
Alex Guilherme2
Resumo
'Oração' pode ser definida como 'o oferecer, em culto público ou privado devoção,
petição, confissão, adoração ou ação de graças a Deus; também a forma de palavras em
que tal oferenda é feita '(cf. Cohn-Sherbok 2010). Para além desta definição simples,
pode-se dizer que existem diferentes formas de oração: algumas são vocais e
articuladas e outras são apenas de natureza mental; algumas orações são orações
comunais e litúrgicas e outras são espontâneas ou pelo menos compostas por aquele
que diz a oração (cf. Stump 1999). Por conseguinte, é evidente que existem múltiplos
meandros envolvidos em qualquer caracterização do que seja uma 'oração'. Neste
artigo tenho dois objetivos. Primeiro, exploro as implicações da filosofia de Martin
Buber, particularmente de sua concepção de Deus como Tu para nossa compreensão
de 'oração'; segundo, argumento que o entendimento de Buber de 'oração' como
diálogo serve como um caminho para o indivíduo buscar a reconciliação consigo
mesmo, com os outros e com Deus.
Palavras-chave: Martin Buber. Oração. Hassidismo. Reconciliação.
Introdução
Ao comentar sobre 'oração', Abrahams (1908: 272) observa que:
o verbo hebraico comum para orar (hithpallel) vem de uma raiz que significa
'rasgar', então pode-se concluir que, com os primitivos Hebreus, a oração
implicava 'cortes na carne', pelos quais os homens procuravam influenciar a
Divindade ... Alguns estudantes religiosos se deprimem com essas teorias; eles
parecem pensar que a religião está sendo degradada pelas conexões sugeridas
entre seus próprios ideais mais caros e ... ritos desagradáveis de selvagens. [...] Mas
temos motivos para orgulho, não vergonha, e que a natureza humana tenha se
Uma primeira versão deste artigo foi publicada em inglês. Guilherme, A. God as Thou and Prayer as
Dialogue:
Martin
Buber’s
Tools
for
Reconciliation. SOPHIA 51, 365–378
(2012).
https://doi.org/10.1007/s11841-011-0282-0
2 PPGF/PUCRS.
1
34 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
mostrado capaz de transformar, sob o impulso do espírito divino, o feio em belo, a
mágica em religião. (tradução minha)
Quaisquer que sejam as verdadeiras raízes etimológicas e históricas de "orar" e
"oração", não podemos deixar de concordar com os comentários de Abrahams quanto
à beleza de fenômeno que deve ser apreciado com orgulho por nós seres humanos –
considerando assim que éramos, e somos 'capazes de transformar, sob o impulso do
espírito divino, o feio em belo, a mágica na religião '.
'Oração' pode ser definida como 'o oferecer, em culto público ou privado
devoção, petição, confissão, adoração ou ação de graças a Deus; também a forma de
palavras em que tal oferenda é feita '(cf. Cohn-Sherbok 2010). Para além desta
definição simples, pode-se dizer que existem diferentes formas de oração: algumas são
vocais e articuladas e outras são apenas de natureza mental; algumas orações são
comunais e litúrgicas e outras são espontâneas ou pelo menos compostas por aquele
que diz a oração (cf. Stump 1999). Por conseguinte, é evidente que existem múltiplos
meandros envolvidos em qualquer caracterização do que seja uma 'oração'. Neste
artigo tenho dois objetivos. Primeiro, exploro as implicações da filosofia de Martin
Buber, particularmente de sua concepção de Deus como Tu para nossa compreensão
de 'oração'; segundo, argumento que o entendimento de Buber de 'oração' como
diálogo serve como um caminho para o indivíduo buscar a reconciliação consigo
mesmo, com os outros e com Deus.
A Filosofia de Martin Buber
Em Eu e Tu, Buber estabelece uma tipologia para descrever os tipos de relações
humanas em que um ser humano pode se envolver. Segundo Buber, os seres humanos
possuem uma dupla atitude em relação a outros seres humanos, ao mundo e a Deus,
que são indicado pelos conceitos fundamentais 'Eu-Isso' ( Ich-Es ) e 'Eu-Tu' ( Ich-Du
). Estes conceitos são fundamentais para uma compreensão adequada da filosofia de
Buber.3
Walter Kauffman, na tradução do trabalho, aponta que Du é o pronome pessoal alemão usado para
abordar amigos ou familiares, pessoas com quem se tem um relacionamento próximo. Isto está em
contraste com Sie, que é o pronome pessoal usado para abordar pessoas com as quais não está
familiarizado, com quem não se possui um relacionamento próximo, ou usado como sinal de respeito
(por exemplo, idosos). Essa distinção está presente em muitos idiomas (por exemplo, francês: Tu e
Vous). O pessoal arcaico inglês Thou não captura a idéia de informalidade presente em Du, que talvez
3
Alex Guilherme | 35
A relação Eu-Tu enfatiza a existência mútua e holística de duas entidades. Isto
é um encontro de iguais, que se reconhecem como tal. É um diálogo. Buber argumenta
que a relação Eu-Tu carece de estrutura e conteúdo, porque quando dois seres
humanos racionais se encontram e se reconhecem como iguais, então, um número
infinito de situações significativas e dinâmicas pode ocorrer. Qualquer tipo de
preconceito, de expectativa, sistematização impede a relação Eu-Tu emergir (cf.
Theunissen 1984: 274-275; Olsen 2004: 17; Lee 2006: 140). Apesar do fato de ser
difícil estabelecer esse tipo de relacionamento, Buber argumenta que é real e
perceptível. Instâncias que ilustram a relação Eu-Tu no nosso dia-a-dia são: dois
amantes, dois amigos.
Enquanto na relação Eu-Tu dois seres se encontram e dialogam, no Eu-Isso
entidades se encontram, mas não conseguem estabelecer um diálogo. Em vez disso, na
relação Eu-Isso um ser confronta outro ser e não o reconhece como igual, o
objetificando. Ou seja, na relação Eu-Isso, um indivíduo trata as coisas, incluindo
pessoas, como objetos a serem usados e experienciados: são meios para um fim.
Vivemos nesta realidade mundana e precisamos, até certo ponto, manipular a
natureza, por exemplo, buscar recursos para atender às nossas necessidades e, às
vezes, usamos pessoas como meios para fins, por exemplo, pegar um táxi de A a B. A
relação Eu-Isso cumpre nossas necessidades. Isso não significa que seja uma relação
"má", mas se ela se tornar muito dominante, é a fonte de algumas expectativas préestabelecidas indesejáveis (e preconceitos em alguns casos).
As relações Eu-Tu e Eu-Isso podem ser mais elucidadas, se nos referirmos a
outro texto de Buber. Em Between Man and Man, Buber (1969: 19-20) descreve três
tipos de diálogo: diálogo genuíno, diálogo técnico e monólogo. O diálogo genuíno é
uma comunicação falada ou silenciosa 'onde cada um dos participantes realmente tem
em mente o outro ou outros, se preocupa em estar presente e de maneira singula, e se
volta para eles com a intenção de estabelecer uma relação mútua e viva entre si mesmo
e o outro/outros '. O diálogo técnico é um conversa baseada na necessidade de obter
seja melhor traduzida em inglês como you (algo que Kauffman realmente faz em sua tradução - ele
apenas manteve o Tu original do título). Isto é algo que talvez nos leve a uma melhoria, e na direção
certa, embora ainda seja problemática, pois o idioma inglês perdeu a distinção entre pronomes formais
e informais. Optei por manter- Thou (tu) durante toda esta discussão como esse é o termo usado na
literatura mais ampla (cf. Martin Buber, I e Thou , trad. Walter Kauffman, New York: Filhos de Charles
Scribner, 1972)
36 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
informações e conhecimento objetivo. E, finalmente, há o monólogo, uma forma de
diálogo disfarçado, 'em que dois ou mais indivíduos, reunidos num espaço, falam cada
um para si próprio, de formas estranhamente tortuosas e circular", é "uma conversa
caracterizada pela necessidade não de comunicar algo, nem aprender algo, nem
influenciar alguém, nem entrar em conexão com alguém. Mas, unicamente pelo desejo
de ter sua própria autoconfiança confirmada ... '. A partir disso, fica claro que apenas
o diálogo genuíno corresponde às relações Eu-Tu, enquanto o diálogo técnico e o
monólogo se enquadram no domínio das relações Eu-Isso.
Buber entendeu que a existência humana consiste em uma oscilação entre
relações Eu-Tu e Eu-Isso, sendo poucas e distantes entre si as experiências Eu-Tu.
Prima facie, parece existir um forte dualismo acontecendo entre relações Eu-Tu e EuIsso, mas este não é o caso. Para Buber, há sempre uma interação entre os modos EuTu e o Eu-Isso, em vez de uma relação de ou um ou outro - entre estes conceitos. A
relação Eu-Tu sempre deslizará para uma relação Eu-Isso, mas a relação Eu-Isso
sempre tem o potencial de se tornar uma relação Eu-Tu (cf. Stevenson 1963: 194;
Silberstein 1989: 132; 142; Casey 1999: 72). Chamo a atenção do leitor ao fato de que
essa oscilação é muito significativa, pois é a fonte de transformação; isto é, através de
todo encontro Eu-Tu, o Eu é transformado e isso afeta a perspectiva do Eu na relação
Eu-Isso e dos futuros encontros Eu-Tu. Putnam (2008: 67) observa que “a idéia é que,
se alguém alcança esse modo de estar no mundo, ainda que brevemente ... então
idealmente, esse modo de ser ... vai transformar sua vida, mesmo quando esse alguém
retorna ao ‘mundo Isso’”. Uma maneira de entendermos esse aspecto transformador,
seria nos lembrarmos, daqueles encontros significantes em nossas vidas; aqueles
encontros com pessoas que foram importantes para nós, que mudaram a nossa
maneira de ser e de se engajar com a realidade – todos esses encontros foram através
de relações Eu-Tu. Ademais, podemos argumentar que encontros Eu-Isso, quando
radicalizados e levando a formas de preconceito como o racismo e a misogenia também
são transformadores, mas numa modalidade negativa para ambas as partes
envolvidas.
Essa tipologia Eu-Tu / Eu-Isso é uma descrição dos dois tipos de relação que
um ser humano pode estabelecer não apenas com outros seres humanos, mas também
com a natureza e com Deus. Talvez seja interessante aqui se referir a um exemplo agora
bem conhecido de Eu e Tu de Buber - o caso de uma árvore. Cito Buber (2004: 14):
Alex Guilherme | 37
Considero uma árvore. Posso olhá-la como quem olha um retrato: coluna rígida
em um choque de luz, ou um borrifo de verde alvejado pelo delicado azul e prata
do fundo … posso percebê-la como movimento: veias que fluem se prendendo,
pressionando a polpa, raízes que sugam… Em tudo isso, a árvore permanece um
objeto, ocupa espaço e tempo e tem sua natureza e constituição [relações Eu-Isso].
No entanto, também pode acontecer, se eu tiver a vontade e a graça, que, ao
considerar a árvore, eu firme uma relação com ela. A árvore já não é Objeto . Fui
tomado pelo poder da unicidade .... Não encontro alma ou dríade da árvore, mas a
árvore em si [relações Eu-Tu] [meus parênteses/tradução minha].
Nesse exemplo, Buber está apenas chamando nossa atenção para o fato de que,
dada a natureza ontológica da realidade e da condição humana, os seres humanos são
capazes de apenas dois tipos de relacionamento, a saber, relações Eu-Tu e Eu-Isso; e
além disso, um ser humano está sempre necessariamente relacionado a outra entidade
(por exemplo, a natureza, ou Deus) através de uma relação Eu-Tu ou Eu-Isso (cf.
Lumsden 2000: 228; Casey 1999: 72). Em outras palavras, explicando de maneira
negativa: dada a natureza ontológica da realidade e do condição humana, é impossível
para um ser humano estar desassociado de outro ser humano, da natureza, ou de Deus,
e é impossível para um ser humano estabelecer um tipo de relação diferente das
relações Eu-Tu/Eu-Isso (cf. Silberstein 1989: 134). O insight de Buber implica uma
rejeição do tipo de discurso filosófico que permeia a investigação filosófica e que
entende: (i) o ser humano como uma entidade individual separada da realidade e de
outros seres humanos (ou seja, o tipo de discurso reducionista que entende o ser
humano ser apenas uma entidade racional livre e autônoma, por exemplo, Descartes,
Kant); e (ii) o tipo de discurso que entende que os seres humanos só podem estabelecer
um relação do tipo sujeito-objeto com a realidade (isto é, aquele tipo de discurso que
permeia grande parte da epistemologia, mas que também é defendido pelo capitalismo
e pelo socialismo quando advogam a dominação e exploração da natureza sem limites
e sem respeito) e com outros seres humanos (ou seja, o tipo de argumento ético que
entende o ser humano como hedonista, ou egoísta, por natureza). É particularmente
interessante notar aqui que Buber entende que (ii) legítima modos de relações que
dificultam o desenvolvimento humano, como o caso de racismo e preconceito (cf.
Silberstein 1989: 106; Guilherme e Morgan 2009; Morgan e Guilherme 2010).
Deus como Tu
"Em cada Tu nos remetemos ao eterno Tu" (tradução minha; Buber 2004: 14).
38 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Para Buber permitir o surgir de relações Eu-Tu, isto é, se dirigir ao outro como um Tu,
representa um encontro com o eterno Tu . Isso pode parecer estranho e difícil de
entender até explorarmos as influências Hassídicas4 no pensamento de Buber. Buber
reconhece isso Between Man and Man. Buber (1969: 224):
Desde 1900, eu estava sob a influência do misticismo alemão de Meister Eckhart para
Angelus Silesius, segundo os quais a base primordial do Ser, a divindade sem nome e
impessoal, nasce na alma humana; também estive sob a influência da Kabbala mais
recentemente e do hassidismo, segundo os quais o homem, ao interagir com o mundo, tem
o poder de se unir a Deus que está no mundo na forma de shekinah. (tradução minha). 5
E ao comentar sobre esse aspecto do pensamento de Buber, Wodehouse (1945:
29) escreve:
A glória de Deus, disseram os Chassistas[Hassidim], no começo foi vertida em
vasos fracos que quebraram e não podiam contê-la; mas cada fragmento ainda
mantém um centelha dessa divindade, e a Presença de Deus vai para o exílio com
estas faíscas, e o homem coopera com o trazê-las de volta à manifestação e à
reunião com a Luz completa da qual elas vieram. (tradução minha; meus
parênteses]
O hassidismo entende que todas as relações genuínas convergem para o Eterno;
sempre que os seres humanos se relacionam genuinamente entre si e com outras
entidades, eles se relacionam com Deus - e é esse aspecto do hassidismo que
influenciou Buber enormemente. Isso transforma as relações Eu-Tu na chave para
uma vida religiosa e para a religião, porque com o estabelecimento de relações Eu-Tu
na vida cotidiana, trazemos santidade às tarefas diárias e à rotina (cf. Silberstein 1989:
210). Portanto, para Buber sempre que permitimos que surjam relações Eu-Tu, toda
vez que nos dirigimos ao outro como um Tu, deixamos de estar sozinhos porque
permitimos que a 'centelha' do Eterno que reside em nós se conecte com a 'centelha'
4 O Hassidismo é um movimento religioso popular que surgiu na segunda metade do século XVIII na
Europa Oriental. Durante os séculos XIX e XX, espalhou-se para outras regiões, principalmente a
Palestina e os Estados Unidos. Esse movimento tem uma ênfase na vida comunitária e na liderança
carismática, bem como no 'êxtase', no 'entusiasmo em massa' e em uma coesão interna do grupo (cf.
Hasidism 2007).
5 Em Hasidism and the Modern Man e The Origin and Meaning of Hasidism Martin Buber argumentou
que o hassidismo popularizou a Cabala. Como ficará evidente mais adiante neste artigo, a filosofia de
Buber parece ter sido influenciada por alguns dos ensinamentos do rabino Isaac Luria (isto é, a Cabala
Luriânica) porque incorpora a idéia de que os fragmentos do divino permanecem contidos no mundo
material e que as boas ações dos corretos e piedosos ['reparação o mundo' (Tikkun Olam)] ajudarão a
liberar essa energia divina (cf Silberstein 1989: 46-48).
Alex Guilherme | 39
do Eterno que está no outro - e esse aspecto do pensamento de Buber dissolve a
concepção comumente aceita de Deus como uma entidade que transcende a realidade. 6
Essa 'centelha' é melhor descrita referindo-se ao conceito hassídico de
shekhinah (ou presença divina). Em Hasidism and the Modern Man, Buber (1958: 37)
elabora sobre esse aspecto quando diz que 'as faíscas que caíram da criação primordial
em invólucros e foram transformadas em pedras, plantas e animais, todas elas
ascendem à sua fonte através da consagração do piedoso [Hasid significa piedoso em
Hebraico] que trabalha nelas com santidade, as usa com santidade, as consome com
santidade '[meus parênteses]. Essa idéia não é particular ao judaísmo e ao hassidismo,
pois é também presente em outras culturas; por exemplo, Blenkinsop (2004: 79)
observa a semelhanças entre shekkinah e uma narrativa dos Ojibwa (um grupo nativo
da América do Norte).7 Assim, cito:
Era uma vez, o mundo era preto, sem qualquer cor. A única exceção era durante
tempestades, quando o sol brilhava e dois arco-íris perfeitos e paralelos
apareceriam. Agora, é claro, os animais e plantas ficavam intrigados com essa
cores brilhantes e então um dia um Corvo decidiu investigar e voou na direção dos
arco-íris. O Corvo acabou voando muito perto e conseguiu voar para o arco-íris
superior quebrando-o em um número infinito de peças que cascatearam sobre
toda a terra, transformando tudo sobre o que caiam. É por isso que há cor na terra,
por isso que o Corvo permanece preto e por que em alguns dias perfeitos de arcoíris, você pode ver os restos de um segundo arco-íris logo acima do primeiro.
(tradução minha).
O hassidismo entende que somos responsáveis por encontrar, por extrair, por
O leitor notará que Buber está defendendo uma concepção metafísica da realidade, embora ele não
faça isso abertamente. Muito foi feito sobre esse aspecto do pensamento de Buber. Veja, por exemplo:
Hugo Bergmann, Der Physiker Whitehead, Die Kreatur, Berlim, vol. II 1927 -28], pp 356-362.; Maurice
Friedman, Martin Buber: Místico, Existencialista, Profeta Social, pp. 326–331, 428, Universidade de
Chicago, junho 1950; Biblioteca da Universidade de Chicago, Microfilme T 809 (esta é, tese de
doutorado de Friedman); e Charles Hartshorne, 'Metafísica de Buber ” The Philosophy of Martin Buber,
ed. Paul Arthur Schilpp e Maurice Friedman. A Biblioteca de Filósofos Vivos, vol. 12, La Salle: Tribunal
aberto, 1967, 49-68; «Martin Metaphysik de Buber, em Martin Buber, herausgegeben von Schilpp u.
Friedman, Stuttgart: Kohlhammer Verlag, 1963, p. 42-61).
7 A influência hassídica no pensamento de Buber é algo digno de nota, porque, como Mendes-Flohr
(1986: 118) afirma: “Nos livros graciosamente escritos e elegantemente produzidos de Buber [ Die
Geschichten des Rabbi Nachman (1906) e Die Legende des Baal Schem (1908)], o Hasid, durante tanto
tempo um emblema dos supostamente atrasado, grosseiros Judeus Orientais (Ostujuden) , não era mais
um objeto de desdém e ridículo ... Buber revelou um notável universo espiritual de profundidade
mística. Ele tornou o hassidismo respeitável ... integrando essa expressão distintiva da espiritualidade
judaica no discurso geral e no idioma do fin-de-siècle … Em virtude da apresentação inspirada de Buber,
o hassidismo - e a milenar tradição mística judaica de de onde surgiu - foi considerado relevante para
as preocupações do indivíduo educado” [meus parênteses].
6
40 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
reconectar com as faíscas, e toda e qualquer entidade deve ser abordada com a intenção
de descobrir a centelha e fundi-la com a nossa própria. No entanto, às vezes as faíscas
ficam muito escondidas de nós, por ignorância e/ou escolha, e isso cria um receptáculo
que as encastela, e nosso desafio é romper essa barreira e descobrir essas faíscas (cf.
Blenkinsop 2004: 80). E na obra Hassidism and the Modern Man, Buber (1958: 103)
comenta que “as faíscas podem ser encontradas em toda parte. Elas estão em suspenso
nas coisas como em fontes fechadas; elas descem nas criaturas como em cavernas
muradas, elas inalam escuridão e exalam pavor; elas esperam” (tradução minha).
A verdadeira experiência religiosa não é algo particular da pessoa religiosa
virtuosa que entra em uma união mística com a divindade (por exemplo, união tanto
como na absorção do Evangelho de São João, ou como a identificação, no Vedānta; cf.
Friedman 1976: 414) mas algo que acontece em nossas vidas diárias quando
encontramos o outro através das relações Eu-Tu. Assim, Buber rejeitou o solipsismo
religioso porque insistia sobre o aspecto ético e coletivo da religião (cf. Stroumsa 1998:
97–98; Burke 1979: 80; Casey 1999: 82); Buber (e hassidismo) não nos pede que nos
tornemos santos, mas que sejamos/nos tornemos 'humanos' (cf. Friedman 2002a:
121). Buber afirma:
Sou contra a gnose ... porque e na medida em que alega que pode relatar eventos e
processos com a divindade. Eu sou contra, porque e na medida em que faz de Deus
um objeto em cuja natureza e história sabemos por onde ir. Eu sou contra, porque
no lugar da relação pessoal da pessoa humana para com Deus, estabelece um
perambular rico em comunhão através de um mundo superior, através de uma
multiplicidade de esferas mais ou menos divinas.8
O ponto aqui é que religião e vida cotidiana não são duas esferas separadas; ao
contrário, elas estão intrinsecamente interconectados. É interessante notar que esse
aspecto da filosofia de Buber (e do hassidismo) também foi interpretada como
inerentemente presente no cristianismo. Por exemplo, no Dr. Zhivago Boris Pasternak
(1959: 42) escreve:
Sempre se presumiu que as coisas mais importantes nos Evangelhos são o ensino
e mandamentos éticos. Mas para mim a coisa mais importante é o fato de que
Cristo fala em parábolas tiradas da vida cotidiana, que ele explica a verdade em
Passagem citada por Maurice Friedman em Martin Buber ' s Life and Works III: The Later Years
1945-1965, Detroit: Universidade Estadual de Wayne, 1988: 182-183; cf. Stroumsa 1998: 99.
8
Alex Guilherme | 41
termos da realidade cotidiana. A ideia subjacente a isso é que a comunhão entre
mortais é imortal e que toda a vida é simbólica porque o todo tem significado.9
Portanto, é possível argumentar que o temos de mais significativo nos
Evangelhos é o uso que Cristo faz de parábolas e exemplos da vida cotidiana para
explicar verdades éticas, que santificam a vida cotidiana, fornecendo significado e
simbolismo, e unificando o passado, o presente e futuro (cf. Bodin, 1990: 385). O que
Buber (e o hassidismo) e Pasternak estão nos lembrando é que as Escrituras não
devem ser tomadas como sagradas e separadas de nós, de nossas vidas cotidianas,
as Escrituras são sagradas porque eles santificam nossa vida cotidiana. Esse insight
tem implicações para a religião organizada, qualquer que seja a denominação, porque
pode-se argumentar que o divino está presente em todos os lugares e em todos os
momentos, e, portanto, o divino não privilegia lugares de culto e/ou serviços religiosos.
O Salmo 139: 8 sugere esta visão: 'Se eu ascender ao céu, tu estás lá! Se eu arrumar
minha cama no Sheol, tu estará lá!” e também 'Corte um pedaço de madeira, e eu estou
lá. Levante uma pedra, e você me encontrará lá '- do texto não canônico, o Evangelho
de Tomé . Consequentemente, 'religião' (como a conexão com Deus, do verbo religare
em Latim) não é apenas um aspecto da vida, mas o que traz sentido à vida; Friedman
(2001: 138) observa que 'os homens da Bíblia eram pecadores como nós, diz Buber,
mas eles não cometeram o grande pecado de professar Deus na sinagoga e negá-lo na
esfera da economia, da política, ... nem eles acreditavam que fosse possível ser honesto
e correto na vida privada e mentir em público pelo bem comum' (tradução minha).10
Assim, para Buber, a única maneira de um ser humano estabelecer uma relação
com Deus é através da relação Eu-Tu, porque este tipo de relação é baseada em um
encontro com um significado muito profundo e conteúdo infinito. A relação Eu-Isso,
como ficará claro mais abaixo no texto, nunca pode explicar com êxito o tipo de
relacionamento entre um ser humano e Deus, pois Deus nunca pode ser tratado como
9 Bodin (1990: 385) continua e argumenta que: “Creio que esta afirmação também pode ser aplicada à
estética de Pasternak. Sendo a vida simbólica, existem metáforas poéticas na própria vida. O papel do
poeta é ver e articular esses símbolos em suas obras. Nesse sentido, o poema é equivalente a um texto
bíblico, pois ambos explicam e interpretam a vida demonstrando-a”. Isso sugere que nós, não apenas o
artista, mas todos os seres humanos, apenas precisamos estar abertos às experiências da vida para se
conectar aos seus simbolismos e santidade.
10 Buber não está sozinho ao argumentar que a religião é essencialmente algo sobre o relacionamento
direto de alguém com Deus. Friedrich Schleiermacher e Søren Kierkegaard são outros pensadores que
também defenderam essa idéia (cf. Schleiermacher 1999; Kierkegaard 1991).
42 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
um objeto, nunca pode ser tratado de 'acima' por um ser humano. Vermes (1994: 138)
observa que:
... o eterno Tu preserva os muitos significados e nuances de significado integrais à
crença na indefinibilidade e inescrutabilidade de Deus, enquanto ao mesmo o
tempo mantém intacta e até aprimora a doutrina tradicional de aproximação e
contato íntimo com ele ... 'eterno' aqui não reflete o conhecimento da eternidade
de Deus, mas apenas a impossibilidade de jamais ser diferente de ti. Tu deve por
natureza ser o eterno Tu. Podemos experimentar a sua ausência, bem como a sua
presença, mas que a ausência nunca poderá assumir o afastamento de um objeto.
(tradução minha)
Buber se recusa a reconhecer um Deus ‘no qual se crê’. Ele reconhece um Deus
‘com quem se vive’. Um Deus ‘no qual se crê’ possui desejos, qualidades, planos, gostos
e desgostos é para Buber um Deus-Isso, um assunto de especulação, mas nunca a quem
dizemos Tu. A mesma rejeição cuidadosa de toda tentação de considerar Deus como
um objeto é visível em Eu e Tu, quando Buber escreve sobre Deus como 'aquele Ser
que confronta imediata, momentânea e eternamente frente a frente, aquilo que só
pode corretamente ser abordado, não expresso” (tradução minha; Vermes 1994: 137).
Pode-se argumentar que o argumento de Buber pertence a uma escola filosófica "em
completa oposição à visão de Deus como meramente um "objeto central" de atenção e
para todas aquelas teorias que identificam religião com magia, sacramento com feitiço
e oração com encantamento ou emissão impessoal "(Calkins 1911: 490).
Alguns podem se opor a posição de Buber, à sua rejeição do Deus-Isso, e isso
porque muitas pessoas ao redor do mundo acreditam em um Deus, ou Deuses, com
desejos, qualidades, planos, gostos e aversões; no entanto, para Buber, 'nós nunca
encontramos Deus, o reconhecemos cumprimentamos e adoramos, até que tenhamos
dito Tu” (Wodehouse 1945: 29). Isso pode parecer elitista ou divisivo para alguns, até
fundamentalista para outros; no entanto, como Wodehouse (1945: 29) sugere, 'lado a
lado com isso ... assim como quando esse reconhecimento falha, ele [Deus] pode ser
um Objeto, e é assim. Como todas as perfeições são dele, entre elas está a perfeição de
Objeto. Ele é toda a verdade que podemos encontrar e explicar, e tudo o que espera
para ser encontrado'. E assim, se pode argumentar que mesmo aqueles que acreditam
em um Deus-Isso se encontram ainda em algum tipo de conexão indireta (talvez, uma
conexão potencial ) com Deus, com a centelha do Eterno (através das relações Eu-Isso)
e, eventualmente, essas relações Eu-Isso permitirão que as relações Eu-Tu surjam com
respeito a Deus – e relembrando que isso é algo completamente de acordo com as
Alex Guilherme | 43
oscilações entre as relações Eu-Tu e Eu-Isso mencionadas anteriormente - e eles
eventualmente e de fato encontrarão Deus.
Pode-se também objetar, assim como o fez Levinas, que Buber está
transformando Deus em um amigo ou parceiro, um igual a nós, e assim, Buber estaria
dissolvendo a altura, a posição de infinitude, de onde Deus vem até nós. Ou seja, o
leitor pode objetar, como Levinas fez, que Buber está transformando nossa relação
com Deus em uma relação simétrica, em vez de uma relação assimétrica. A
preocupação aqui é infundada porque, como Kelly (1995: 72) aponta:
A palavra 'Tu' indica apenas a iniciativa de um Eu em se voltar na direção e abordar
aquilo que confronta o Eu.... Assim, alguém permite ao outro que seja como o outro
é. Mais importante, a ação de falar 'Tu' também é um maneira de se referir e se
voltar para Deus. Ao fazer isso, o Eu não reduz Deus a um igual, como teme
Levinas.
Uma conseqüência direta dessa perspectiva de Buber é que duvidar de Deus é
algo muito problemático, pois cria uma lacuna existencial em nós, seres humanos. Ou
seja, dado que Deus é o absoluto ou eterno Tu, então se alguém duvida de Deus, a vida
se torna sem significado. Para Buber, o rápido aumento da tecnologia e das ciências
(especialmente durante final do século XIX e início do século XX) ampliaram o abismo
entre os seres humanos e Deus, pois tornou mais fácil para os seres humanos
questionarem e, assim, duvidarem de Deus; e, portanto, tornou mais difícil para os
seres humanos dizerem 'Tu' para Deus e ouvirem 'Tu' de Deus. Buber diria que a
comunicação com Deus foi dificultada pelos desenvolvimentos históricos recentes; em
The Eclipse of God, Buber (1952: 165) afirma:
Em nossa época, a relação Eu-Isso, gigantescamente inchada, usurpou,
praticamente sem disputa, a maestria e a regra. O Eu dessa relação, um eu que
possui tudo, faz tudo, consegue tudo, este Eu que é incapaz de dizer Tu, incapaz de
conhecer um ser essencialmente, é o senhor da hora. Essa individualidade que se
tornou onipotente, com todo o Isso ao seu redor, naturalmente não pode
reconhecer nem Deus nem qualquer absoluto genuíno que se manifeste como não
tendo origem humana. Ela se entrepõe e nos desliga a luz do paraíso. (tradução
minha)
Para Buber, Deus está silencioso porque nós estamos silenciosos; o eclipse de
Deus nos leva ao eclipse do homem. Esse silêncio mútuo nos faz sentir que somos
existencialmente sem significado (cf. Morgan e Guilherme 2010). Ao comentar esse
aspecto da filosofia de Buber, Friedman (2001: 138) escreve:
44 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
A vida moderna é dividida em níveis e aspectos. O homem moderno gosta de
erótico, experiências estéticas, políticas e religiosas independentemente uma da
outra. Como resultado, a religião é para ele apenas um aspecto de sua vida, e não
a sua totalidade. Os homens da Bíblia eram pecadores como nós, diz Buber, mas
não cometeram o pecado básico de professar Deus na sinagoga e negá-lo na esfera
da economia, da política e da 'auto-afirmação' do grupo. Nem acreditavam que
fosse possível ser honesto e correto na vida privada e mentir em público pelo bem
comum.
É apenas tentando restabelecer um diálogo com Deus que essa situação da 'falta
de sentido existencial' pode ser superada. Essa re-conexão com Deus, esse religare (do
Latim que é a raiz da palavra religião) é a única maneira de trazer de volta significado
à vida e pôr fim ao silêncio de Deus. O silêncio de Deus é algo que causa angústia ou,
como Friedman (2001: 154) diz, pode: “parecer tão aterrorizante quanto os campos de
concentração da Alemanha nazista em que milhões de seres humanos foram
sistematicamente e cientificamente exterminados como se fossem insetos” (tradução
minha). Para Buber, a re-conexão com Deus é algo que pode ser alcançado, apesar das
divisões e compartimentalizações da vida moderna, mas apenas abordando-a com a
mente aberta, sem pré-concepção prévia e, portanto, através da relação Eu-Tu; nós
devemos permanecer atentos às 'faíscas' se quisermos responder de uma maneira que
cumpra nossa verdadeira responsabilidade humana, nossa humanidade (Adams 2003:
62). De fato, “Buber apresentou consistentemente a Bíblia como um texto que pode
falar aos leitores contemporâneos, desde que eles se aproximem dela de uma maneira
aberta, numa relação Eu-Tu ... A compreensão de Buber sobre o tema central da Bíblia
– ‘O encontro entre um grupo de pessoas e o Senhor do mundo no curso da história’é que o texto será relevante e acessível aos leitores em todas as gerações” (Wright 2004:
212).
Oração
O entendimento de Buber de Deus como o eterno Tu implica que Deus não é
um entidade na qual meramente se 'crê', com a qual não é possível uma certa
comunicação; dentro dessa perspectiva, Deus é uma entidade com a qual os seres
humanos 'vivem com' e com quem a verdadeira comunicação é, não apenas possível,
mas necessária - ou seja, existe verdadeira comunicação, verdadeira conversa, entre
seres humanos e Deus, sempre há diálogo entre um ser humano e Deus (cf. Kat 2006:
261–263).
Alex Guilherme | 45
Uma implicação interessante disso é que, para Buber, as orações são sempre
dialógicas em caráter (Widmer 2004: 18) e não devem ser entendidas como tentativas
de trazer uma mudança de resultado ou influenciar o desfecho de eventos, o que
equipara orações com algum tipo de encantamento e cai na superstição; em vez disso,
as orações são sobre refletir sobre o caráter e propósito de nossas vidas, bem como
expressão de devoção a Deus através da maneira como os eventos ocorrem (cf. Phillips
1981; Evans 1998: 28; Clack e Clack 2008: 150-151); torna-se uma harmonia entre o
humano e o divino; é o divino no homem saindo para encontrar o divino em Deus
(Abrahams 1908: 288). Esse entendimento se aplica à 'oração' como público culto ou
devoção privada (cf. Cohn-Sherbok 2010), à ‘oração’ como vocal e articulada ou apenas
de natureza mental, e à 'oração' como comunal e litúrgica ou espontânea e composta
por quem reza (cf. Stump 1999).
Conceber as orações como uma tentativa de provocar uma mudança de
resultado ou de influenciar o resultado dos eventos (por exemplo, orações com poderes
curativos; cf. Verber 2007; Franks 2009) é um anátema para o pensamento de Buber,
pois seria confundindo um Deus-Isso com um verdadeiro Deus-Tu. Um Deus-Isso é
concebido como tendo desejos, qualidades, planos, gostos e desgostos e, portanto,
como uma entidade que pode ser influenciado e convencido pelo indivíduo a fazer o
que ele desejar. Um Deus-Tu não é concebido como tal, porque pela própria definição
da palavra primária Tu, o Tu não pode ser definido, isto é, Tu estás em estado de total
abertura ao outro e a um número infinito de possibilidades. O Deus-Isso é uma
tentativa de compreender o que não pode ser entendido ou preconcebido, Deus, e é
por esta razão que a palavra Tu é mais apropriada. Não podemos ordenar o Deus-Tu
como podermos o Deus-Isso, e, portanto, “só podemos estar prontos para mudar,
reorganizar nossas vidas - ou abri-la para ser reorganizada - quando Tu nos dirige ...
[e] tais acontecimentos ... não apenas realizam nossa própria cura; eles também
resgatam e salvam as coisas” (tradução minha; Wood 1994: 129). Quando rezamos não
subimos acima da nossa situação, mas trazemos a nossa situação ao diálogo com Deus;
“a abertura ao sagrado não significa deixar o cotidiano para entrar no nível superior
da esfera espiritual, mas que estamos ‘santificando o cotidiano’ através de uma
genuína abertura ao que vem ao nosso encontro” (tradução minha; cf. Friedman 1976:
424). Nessa senda, em seu livro The Eclipse of God, Buber tem uma conversa com
Deus, que nos lembra muito uma oração dialógica:
46 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Eclipse da luz do céu, eclipse de Deus - tal é, de fato, o caráter da hora histórica
pela qual o mundo está passando ... Um eclipse do sol é algo que ocorre entre o sol
e nossos olhos, não no próprio sol ... Mas ... perde-se tudo quando se insiste em
descobrir no pensamento terreno a força que desvenda o mistério. Quem se recusa
a submeter-se à realidade efetiva da transcendência ... contribui para a
responsabilidade humana pelo eclipse. (tradução minha; Buber 1952/2016: 18).11
Apesar do livro ter sido publicado em 1952, essa passagem é parte de um ensaio
escrito em 1943, representanto, a meu ver, um diálogo com Deus sobre os
acontecimentos na Europa, os campos de concentração, os campos de extermínio, os
horrores da guerra. Batnitzky (2016: IX) em sua introdução a uma nova edição de The
Eclipse of God enfatiza três pontos sobre essa passagem:
Primeiro, ... nossa incapacidade de ver Deus não significa que Deus não está lá,
assim como o sol ainda existe quando a lua o bloqueia em um eclipse solar. Em
segundo lugar, ver a realidade de Deus não é apenas uma questão de ajustar a
psicologia humana, assim como ver o sol durante um eclipse solar não é apenas
uma questão de ajustar nossa visão. Finalmente, assim como a lua bloqueia o sol,
embora não destrua a realidade do sol em um eclipse solar, ... algo bloqueia
literalmente nosso relacionamento com Deus em nossos dias. (tradução minha)
Portanto, eu sugeriria que, se as orações são sobre refletir sobre o caráter e
propósito de nossas vidas, bem como uma expressão de devoção a Deus (ou seja, DeusTu) pela maneira como os eventos ocorrem, é discutível que uma conseqüência direta
da orar seria buscar ‘reconciliação’ com aquilo que nos perturba. ‘Reconciliação’
entendida aqui como significando em termos gerais: (1) a aceitação de um situação ou
problema e uma restauração da harmonia ou (2) o início do processo levando a estes.
Mas 'reconciliação' aqui significa também muito mais do que isso. 'Reconciliação' não
é meramente ‘a boa vontade sentimental que afasta o olhar do conflito a ser
reconciliado’ ou ‘uma ação ou abordagem que pressupõe que um situação trágica pode
ser transformada em algo harmonioso'; 'reconciliação' é o reconhecimento de
Apesar do livro ter sido publicado em 1952, essa passagem é parte de um ensaio escrito em 1943,
representanto, a meu ver, um diálogo com Deus sobre os acontecimentos na Europa, os campos de
concentração, os campos de extermínio, os horrores da guerra. Batnitzky (2016: IX) em sua introdução
a uma nova edição de The Eclipse of God enfatiza três pontos sobre essa passagem: “Primeiro, ... nossa
incapacidade de ver Deus não significa que Deus não está lá, assim como o sol ainda existe quando a lua
o bloqueia em um eclipse solar. Em segundo lugar, ver a realidade de Deus não é apenas uma questão
de ajustar a psicologia humana, assim como ver o sol durante um eclipse solar não é apenas uma questão
de ajustar nossa visão. Finalmente, assim como a lua bloqueia o sol, embora não destrua a realidade do
sol em um eclipse solar, ... algo bloqueia literalmente nosso relacionamento com Deus em nossos
dias”.(tradução minha)
11
Alex Guilherme | 47
'diferenças e pontos de conflito' e o movimento em direção a 'descobrir uma
perspectiva pela qual pode ocorrer uma união real que inclui ambos os pontos de vista'
(cf. Friedman 2002b: 75). Assim, se as orações são dialógicas em natureza, orar é uma
maneira de iniciar o processo e/ou, esperançosamente, de trazer ‘reconciliação’ pelo
indivíduo que ora – ‘reconciliação’ consigo mesmo, com outros seres humanos e a
comunidade em geral, e com Deus.
Às vezes nos sentimos infelizes conosco ou com nossas próprias vidas, às vezes
nos sentimos envergonhados ou culpados por coisas que fizemos ou não e, portanto,
se orações são sobre refletir a respeito do caráter e propósito de nossas vidas, então
elas nos oferecem um caminho para entender aqueles aspectos com os quais nos
sentimos desconfortáveis e ao fazê-lo, obter 'reconciliação' conosco mesmo. Isso
significa que é preciso permitir-se e se encontrar como um Tu, é preciso abandonar
todos os equívocos e preconceitos sobre si mesmo e, por um breve momento, encontrese como Tu; e através de encontrar-se como Tu, você está se reconectando com a
'centelha' do divino - isso é algo com o qual James (1902: 464) concordaria porque
como ele diz: a oração é 'todo tipo de comunhão interior ou conversa com o poder
reconhecido como divino'. A esse respeito, a oração é uma espécie de psicoterapia autoaplicada. Certamente, 'reconciliação' não é algo que acontece facilmente porque a
'reconciliação' nesse caso não significa apenas aceitar aspectos de si mesmo que
sentimos desconforto mas também entende-los e mudarmos. Isso ocorre porque se as
orações são dialógicas em natureza, então elas ocorrem através de relações Eu-Tu e,
como mencionei anteriormente, através de todo encontro Eu-Tu, o Eu é transformado
e isso afeta a perspectiva do Eu para futuras relações Eu-Isso e dos futuros encontros
Eu-Tu; 'a idéia é que, se alguém alcança esse modo de estar no mundo, ainda que
brevemente ... então idealmente, esse modo de ser ... vai transformar sua vida, mesmo
quando esse alguém retorna ao ‘mundo Isso’”. (tradução minha; Putnam 2008: 67).
Reconciliação com os outros e com a comunidade é uma extensão direta do
situação ao nível individual. Ao orar, voluntariamente e intencionalmente nos
apresentamos a nós mesmos e ao fazê-lo, abrimos a oportunidade de nos apresentar
para o outro, que por sua vez permite que o outro se apresente a nós. Novamente, isso
não é algo que acontece com facilidade, especialmente quando atos hediondos estão
envolvidos. Em tais situações, se alguém permanecer dentro do domínio das relações
Eu-Isso, apegado ao ódio, é provável que a vingança surja através da objetificação do
48 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Outro, e isso por sua vez pode levar a uma escalada do problema. No entanto, se o
indivíduo permitir que relações Eu-Tu surjam, e isso pode ser feito através da oração,
oração dialógica, então o resultado poderá ser diferente porque proporcionará uma
oportunidade de entender o Outro. Mas isso não significa que será fácil ou imediato é
claro. Nesse caso, a oração oferece uma maneira de se chegar a um acordo, de se
entender acontecimentos, perdoar ações, e isso, por sua vez, trará mudanças e uma
atitude de reconciliação na vida do indivíduo, mesmo que isso seja unilateral à pessoa
que ora.
Mais problemáticos são os casos de indivíduos "zangados com Deus". Achamos
exemplos disso nas Escrituras, mas também na literatura mais ampla. Por exemplo:
'Serás Tu como um riacho enganoso, como as águas que caem? (Jeremias 15:18, RSV),
que acusa Deus de mentir; e ‘Porque seu coração te leva embora e porque seus olhos
brilham, e você volta seu espírito contra Deus, e deixa que essas palavras saiam sua
boca’ (Jó 15: 12–13), que é explícito sobre a raiva de Jó. Outras instâncias podem ser
encontradas na literatura, como quando alguém está zangado com Deus por motivos
pessoais, seja porque alguém querido morreu, seja porque algo terrível (por exemplo,
holocausto, guerra, genocídio) aconteceu. Se as orações são sobre refletir sobre o
caráter e propósito de nossas vidas, bem como sobre uma expressão de devoção a
Deus através da maneira como os eventos acontecem; Deus representa um desafio
maior para o indivíduo que ora e a reconciliação com Deus ‘uma tarefa muito exigente’.
De fato, ouvimos falar de pessoas que estão ‘zangadas com Deus' e/ou desistiu de
qualquer forma de religião organizada e/ou que perdeu sua fé. Talvez, uma maneira
de superar essa situação seja reconhecer que é preciso submeter conscientemente a
humanidade à vontade divina porque, como Khonds, uma tribo do norte da Índia, ora:
‘Ó Senhor, não sabemos o que é bom para nós. Tu conheces. Por isso oramos’ (citado
por Calkins 1911: 496). Isto é, é claro, nem sempre é fácil de fazer ou até aceitável para
algumas pessoas. A este respeito, é possível argumentar que é mais fácil para o
indivíduo procurar e/ou alcançar 'reconciliação' consigo mesmo e com os outros, do
que é para o indivíduo procurar e/ou conseguir isso com Deus porque, neste caso, o
foco da perturbação também é a fonte do diálogo; mas isso não significa que a
'reconciliação' com Deus seja impossível, pois há também a potencial para a 'centelha'
do eterno Tu que nos habita se conecte com outras 'faíscas' presentes em tudo, outras
entidades e eventos. Isso deixa em aberto para o possibilidade de que o indivíduo
Alex Guilherme | 49
'zangado com Deus' possa eventualmente se reconciliar com Deus através das
transformações que experimenta em sua vida através das relações Eu-Tu.
Conclusão
Sugeri que, porque Deus só pode ser encontrado como Tu, então a oração é de
natureza dialógica, e orar é uma maneira de iniciar o processo esperançosamente
trazer 'reconciliação' para o indivíduo orando - 'reconciliação' consigo próprio, com
outros seres humanos e com Deus. Certamente, este não é um processo fácil e os
resultados não são necessariamente imediatos. Ainda, através da oração, através do
diálogo com Deus (o Deus-Tu), um ser humano tem sua:
orientação natural inicialmente vazia com relação ao todo ... preenchida de uma
maneira diversa do senso comum cotidiano ou mesmo de um domínio intelectual
de partes do mundo, que vai além do senso comum. É preenchida pela abertura ao
mistério que tocamos em todos os encontros, mas nunca podemos abarcar.
(Madeira 1994: 131)
Através da oração, do dialogar com o Deus-Tu e refletir sobre nossa vidas, bem
como sobre a maneira como os eventos ocorrem, facilitamos que as relações Eu-Tu
surjam, e assim encontrar o Tu, a centelha de Deus, em nós mesmos e nos outros. A
oração, como diálogo, é uma ferramenta para conseguir isso, porque nos fornece
'espaço' para refletir sobre nós mesmos e questões que nos perturbam, refletir sobre
nossas atitudes em relação aos outros e atitudes dos outros em relação a nós, bem
como sobre eventos ocorrendo em nossas vidas. A oração nos permite entender isso e,
ao fazê-lo, abrir o caminho para a 'reconciliação' com aquilo que nos incomoda.
A 'centelha' do eterno Tu está presente em todas as entidades (outros seres
humanos e natureza) e eventos. Devemos permanecer atentos a essas ocorrências e
facilitar os encontros Eu-Tu, se quisermos responder a eles de uma maneira que realize
plenamente nossa humanidade (cf. Adams 2003: 62). O potencial para encontros EuTu está sempre presente na realidade; só precisamos estar abertos ao outro para que
possamos permitir que esse tipo de encontro aconteça. Esses encontros nos oferecem
a oportunidade de alcançar paz de espírito, algo que só pode ser alcançado ao enfrentar
questões que são problemáticas para nós, e essa luta 'deve começar dentro da própria
alma - tudo o mais se seguirá disso' (Shapira 1999: 58); e paz de espírito, significa
50 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
também "paz nas relações imediatas do indivíduo com o outro - em pensamento,
discurso e ação...” (tradução minha; Friedman 2002a: 121), sendo este outro um
companheiro ser humano ou Deus, eu sugeriria. Ou seja, quando se alcança a
reconciliação consigo próprio, quando alguém está em paz consigo mesmo, também
está no caminho de alcançar a paz e a reconciliação com os outros e com Deus (se
algum deles também for um ponto problemático). Isso sugeriria que, para se alcançar
a 'reconciliação' é preciso começar lidando com questões pessoais que preocupam a si
próprio; somente quando estas forem tratadas com sucesso pelo indivíduo, o indivíduo
pode seguir em frente e envolver-se com questões relativas a outras pessoas e a Deus.
A oração, a oração dialógica, é uma ferramenta para alcançar tudo isso.
A oração dialógica não é a única maneira de facilitar os encontros Eu-Tu educação, educação dialógica, é outra (cf. Morgan e Guilherme 2014). No entanto, a
oração é uma ferramenta útil, pois está prontamente disponível para o indivíduo;
entretanto, é uma ferramenta que muitas vezes é ignorada por aqueles trabalhando em
projetos relacionados a questões de 'reconciliação', individual ou a nível da
comunidade, porque confundem o Deus-Tu com o Deus-Isso e/ou porque esquecem
o aspecto dialógico da oração.
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3. NIETZSCHE, CARMEN E UMA BREVE CRÍTICA FEMINISTA1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-3
Ana Carolina da Costa e Fonseca2
Nietzsche assistiu Carmen pela primeira vez em Gênova em 27 de novembro de
1881. Desde então, totalmente fascinado pela música e pela história, voltou cerca de
vinte vezes ao teatro para ouvir a potente música de Bizet. 3 Falou a amigos do
encantamento sentido com a tragicidade narrada, especialmente com o amor fati de
Carmen, que, apesar de, desde o início, saber que será morta por Don José, permanece
ao seu lado enquanto o ama e o abandona quando deixa de amá-lo. Nietzsche, contudo,
parece tão fascinado pela figura de Carmen que sequer repara em Don José, um
personagem secundário na ópera, que parece posto em cena apenas para dar mais
brilho ao destemor de Carmen. Se contarmos a história de modo simples – um homem
se apaixona por uma cigana, sedutora e voluntariosa, e a mata quando ela deixa de
amá-lo – pode-se dizer que Bizet transformou em ópera (apresentada pela primeira
vez em Paris em 1875) o conto de Merimée, publicado originalmente em 1845.
Contudo, nem conto, nem ópera são superficiais. Recontá-los em uma frase esconde o
que os torna fascinantes e iguala o que é fundamentalmente diferente.
Inspirado em Merimée, Bizet musicou a história de uma outra femme fatale que
amou um outro Don José. Carmen é a ópera preferida de Nietzsche. O que tanto o
fascinou? Neste artigo, comparo as duas versões da história de Carmen, uma escrita
por Merimée e outra musicada por Bizet. Utilizo conceitos nietzscheanos para discutir
as diferenças entre as personagens, bem como para analisar a relação entre Carmen e
Don José, tão diferentes em ambas as obras.
Antes de iniciar a análise, faço uma ressalva, que é muito própria do presente,
pouco relevante, quando comecei a escrever este artigo em 2006, e inexistente no
A primeira versão deste artigo foi escrita entre abril de 2006 e abril de 2007, quando eu estava
realizando o estágio de doutorado sanduíche, na Universidade Humboldt, em Berlim. Uma versão curta
desta reflexão, de pouco mais de um página, foi publicada em 2006 numa revista eletrônica: “Bestiário
– Revista de contos” (www.bestiario.com.br/24_arquivos/carmens.html). O link não funciona mais e
tenho apenas um print da publicação.
2 Professora Associada de Filosofia na UFCSPA. Doutora em Filosofia pela UFRGS.
3 Conforme Sue Prideaux, “Eu sou dinamite: a vida de Friedrich Nietzsche”, p. 195.
1
56 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
século XIX, quando as duas versões da história foram escritas. Até recentemente, havia
uma naturalização da ideia de que homens matam mulheres por amor e de que matar
uma mulher com muitos amantes decorre de algo que a mulher fez e não do machismo
do homem que se sente provocado pela falta de fidelidade da mulher.
A ideia do amor fati, amor pelo destino, tão cara a Nietzsche, é posta em cena
nas duas versões da história de Carmen e explicitada pelo saber que Carmen declara
em relação ao fato de que será morta pelo seu amante, que a mata por ciúmes. Saber
não faz com que ela vá embora. Ao contrário, Carmen sabe, desde sempre, que será
morta por Don José e permanece ao seu lado, para deixar que seu destino se realize,
isto é, ela se deixa matar pelo amante e, com isso, realiza o que está destinado a ela.
Para quem admira a atitude dos gregos antigos, que tomam como virtuoso o ser
humano que sabe o que lhe acontecerá e, ainda assim vive de modo a realizar o que lhe
está reservado sem fugir do seu destino (como primeiro Laio e depois Édipo 4 ,
desonrosamente, tentaram fazer), Carmen é, realmente, uma mulher exemplar. No
presente, contudo, não podemos esquecer as muitas pautas do movimento feminista.
Nosso olhar não permite naturalizar mais o ato de matar “por amor”, outrora tido
como maximamente romântico. Ao final deste artigo, apresento uma crítica feminista
à história de Carmen e ao fascínio da inaceitável ideia de que há homens que matam
por amor.
Em Merimée, dois tipos humanos igualmente fortes se apaixonam e vivem a
paixão até um deles mudar de tal modo que o amor se torna impossível de continuar
sendo vivido. Don José é um bom militar e se torna um bom criminoso. Bravura, força,
respeito são características da personagem e independem do seu labor. Ele deixa de
ser um militar involuntariamente. Circunstâncias alheias à sua vontade conduzem-no
a uma vida de crimes. Após Carmen agredir uma colega de trabalho, Don José é
encarregado de prendê-la. Carmen continua o jogo de sedução por ela iniciado ao
4 Apesar das variações que chegaram até nós da história de Édipo, há de comum o ponto de partida do
imbróglio: o pai de Édipo, Laio, ouve uma profecia que diz que seu filho matará o pai e casará com a
mãe. Tentando fugir a tão terrível destino, determina que deixem o bebê no deserto para morrer. Deste
modo, o pai de Édipo cria as primeiras condições para que a profecia se realize. Anos depois, quando
Édipo é um jovem adulto em Corinto, onde mora com os pais adotivos, que supõe serem pais biológicos,
vem a saber da profecia que lhe envolve. Horrorizado com a possibilidade de matar o pai e casar com a
mãe, e sem saber que o rei Pólibo o salvou da morte no deserto muitos anos antes, foge de Corinto. Cruza
com Laio pelo caminho, brigam e mata Laio, realizando a primeira parte da profecia. Segue sua jornada
até Tebas, onde, desvenda o segredo da esfinge e recebe a mão de Jocasta, recém viúva, em casamento.
Realiza-se a segunda parte da profecia. Porque Laio e Édipo tentaram fugir do que lhes parecia
destinado, o destino se realizou.
Ana Carolina da Costa e Fonseca | 57
chegar para mais uma jornada de trabalho. Talvez ela o tenha perseguido com tanto
afinco porque ele não lhe deu atenção na primeira vez em que ela falou com ele. “A
princípio isso não me agradou e retomei meu trabalho; mas ela, seguindo o costume
das mulheres e dos gatos que não vêm quando são chamados e que vêm quando não
são chamados, parou na minha frente e falou comigo”5 Talvez porque ela efetivamente
precisasse seduzi-lo para escapar. Ao longo da novela, Carmen seduz outros homens
para realizar crimes e caprichos. O fato é que Carmen escapou. Don José foi rebaixado
de posto e passou um mês preso. Carmen se apaixona por esse homem frágil, que fica
sem palavras diante da bela cigana que, dentro de um pão, envia dinheiro e uma
pequena serra para o Don José prisioneiro, depois comanda o primeiro encontro e
decide o que farão. Don José a segue, “sem saber onde eu iria”6. E Carmen decide que
eles são marido e mulher: “Tu és meu marido e eu sou tua esposa” 7 Por fim, quando
ele discute com um capitão da brigada e não pode mais ser nem ao menos um soldado,
ela lhe diz “vá para a costa e seja um contrabandista” 8 . E Don José segue “a nova
carreira que ela me destinou”9.
No início da história, o leitor pode ter a falsa impressão de que Don José é um
homem apaixonado que faz tudo o que a amada determina. Contudo, o homem quase
frágil do início da novela, que se deixa manipular por Carmen, se torna, aos poucos,
seguro de si e consciente do tipo de relação que eles estabeleceram. “Ela mentia,
senhor, ela sempre mentiu. Não sei se em sua vida essa mulher alguma vez disse uma
palavra de verdade; mas, quando ela falava, eu acreditava nela: era mais forte que
eu.”10 A tomada de consciência de Don José em relação às mentiras de Carmen mostra
também uma tomada de consciência em relação ao modo como ele lida com os mandos
e desmandos de Carmen. E estar consciente do que acontece é o início de uma
mudança de comportamento. “Eu estava tão frágil frente a esta criatura que obedeci a
todos os seus caprichos” 11 Compreensão de atitudes implicam mudança de atitude.
5 Mérimée, “Carmen”, p. 130. Livre tradução de: “D'abord elle ne me plut pas, et je repris mon ouvrage;
mais elle, suivant l'usage des femmes et des chats qui ne viennent pas quand on les appelle et qui
viennent quand on ne les appelle pas, s'arrêta devant moi et m'adressa la parole...”
6 Mérimée, “Carmen”, p. 137. Livre tradução de: “sans savoir où j'allais”
7 Mérimée, “Carmen”, p. 139. Livre tradução de: “Tu es mon rom [marido], je suis ta romi [esposa].”
8 Mérimée, “Carmen”, p. 145. Livre tradução de: “va-t'en à la côte, et fais-toi contrebandier”.
9 Mérimée, “Carmen”, p. 145. Livre tradução de: “la nouvelle carrière qu'elle me destinait”.
10 Mérimée, “Carmen”, p. 133. Livre tradução de: “Elle mentait, monsieur, elle a toujours menti. Je ne
sais pas si dans sa vie cette fille-là a jamais dit un mot de vérité; mais, quand elle parlait, je la croyais:
c'était plus fort que moi.”
11 Mérimée, “Carmen”, p. 146. Livre tradução de: “J'étais si faible devant cette créature, que j'obéissais
à tous ses caprices.”
58 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Don José passa a fazer escolhas. “A vida de contrabandista me agrada mais que a de
soldado... Eu tenho dinheiro e uma amante”12 Se, em um primeiro momento, deixar de
ser soldado e se tornar contrabandista parece decorrer exclusivamente da vontade de
Carmen, o tempo nos mostra que Don José se sente mais feliz na sua nova vida do que
fora outrora. Ele quer continuar sendo contrabandista. E quer matar o marido de
Carmen, “eu também tenho um projeto meu””13. Don José provoca, deliberadamente,
uma briga durante um jogo de cartas, desafia quem toma como um rival e mata o
marido de Carmen. Eis que Don José se descobre um homem forte: “Agora eu zombo
do mundo inteiro.”14 Aquele que foi zombado por Carmen no início da história tornouse o que zomba dos demais.
E por se sentir forte, se sente também capaz de ameaçar Carmen: “E [chegará]
o teu momento, se tu não fores para mim uma verdadeira esposa”. 15 Contudo, isso
sequer soa como uma ameaça para a voluntariosa Carmen. Ela já conhece o futuro
deles, “eu vi mais de uma vez na borra do café que nós terminaremos juntos” 16 E
“terminar juntos” não significa a realização da máxima romântica, serem felizes para
sempre, mas morrer juntos. Tal destino pareceu, por alguns meses, a confirmação da
felicidade sentida, pelo tempo que “com uma palavra minha, ela deixava tudo e vinha
me encontrar, num lugar isolado ou até mesmo no acampamento”17. A mulher outrora
maximamente voluntariosa é agora a que segue seu amante e faz as vontades dele. Mas
não passivamente.
Carmen reclama a liberdade perdida: “eu não quero ser atormentada, nem
comandada”18. Eles brigam e o fim se aproxima. Durante um ataque ao bando de Don
José, ele fica seriamente ferido. Carmen cuida dele por mais de seis semanas, tempo
durante o qual Don José pôde pensar sobre a vida e fazer novas escolhas. “Finalmente
eu me recuperei; mas eu havia pensado muito em meu leito de dor e planejava mudar
minha vida. Falei com Carmen sobre deixar a Espanha e procurar viver honestamente
Mérimée, “Carmen”, p. 146. Livre tradução de: “La vie de contrabandier me plaisait mieux que la vie
de soldat... J'avais de l'argent et une maîtresse.”
13 Mérimée, “Carmen”, p. 154. Livre tradução de: “moi aussi j'avais mon projet”.
14 Mérimée, “Carmen”, p. 155. Livre tradução de: “Maintenant je me moque du monde entier.”
15 Mérimée, “Carmen”, p. 155. Livre tradução de: “Et le tien, si tu n'es pas pour moi une vraie romi.”
16 Mérimée, “Carmen”, p. 155. Livre tradução de: “j'ai vu plus d'une foi dans du marc du café que nous
devions finir ensemble.”
17 Mérimée, “Carmen”, p. 156. Livre tradução de: “sur un mot de moi, elle quittait tout, et venait me
retrouver dans une venta isolée, ou même au bivouac”.
18 Mérimée, “Carmen”, p. 156. Livre tradução de: “Je ne veux pas être tourmentée, ni sourtout
commandée”.
12
Ana Carolina da Costa e Fonseca | 59
no Novo Mundo.” 19 Ele escolhe deixar de ser um criminoso para viver ao lado da
mulher que ama uma nova vida na América. Carmen, contudo, gosta da sua vida de
crimes e de sedução e não quer outra: “Nós não fomos feitos para plantar couves” 20,
ou seja, Carmen não quer outra vida, uma vida pacata, uma vida tranqüila de
plantadores de couves. Ela quer a vida que tem.
Don José mudou. Ele deixou de ser o homem por quem Carmen se apaixonara
duas vezes. Ele não mais é nem soldado, nem criminoso, e este não ser se refere ao que
motiva o agir. Ela permanece a mesma. Esse é o impasse que acarreta a morte de três
personagens. Os outros homens que Carmen teve durante seu romance com Don José
não foram importantes para ela, mas a história nos é contada como se o ciúme de Don
José fizesse com que ele mate dois desses homens, o marido e o toureador. Mas ele não
quer continuar matando os amantes de Carmen e decide acabar com a fonte dos
problemas e, por isso, matá-la. “Eu estou farto de matar todos os teus amantes; matarei
a ti.”21 Carmen, por sua vez, sabe, desde o primeiro dia, que ele a mataria e não age de
modo a evitar a própria morte. “Eu sempre pensei que tu me matarias. A primeira vez
que te vi, acabava de encontrar um padre na porta de minha casa. E ontem à noite,
quando você deixou Córdoba, não viu nada? Uma lebre cruzou o caminho entre as
patas de seu cavalo. Está escrito.”22
Carmen sabe que será morta por Don José e mesmo assim permanece ao seu
lado. Por quê? Por saber que não pode fugir do próprio destino? Ou por estar tão farta
da própria vida que leva que prefere que o que estava escrito se realize? Para Don José,
é a teimosia de Carmen que o leva a matá-la. Seu desejo continuava sendo o de tê-la a
seu lado. “Vamos viver em qualquer lugar onde nós não sejamos jamais separados” 23
Mas a escolha de Carmen estava tomada. “Eu te sigo à morte, sim, mas eu não viverei
mais contigo.” 24 Há uma tensão entre o que parece destinado e o que parece uma
19 Mérimée, “Carmen”, p. 157. Livre tradução de: “Enfin je me rétablis; mais j'avais fait bien des
réflexions sur mon lit de douleur, et je projetais de changer de vie. Je parlai à Carmen de quitter
l'Espagne; et de chercher à vivre honnêtement dans le Nouveau-Monde.”
20 Mérimée, “Carmen”, p. 157. Livre tradução de: “Nous ne sommes pas faits pour planter des choux”.
21 Mérimée, “Carmen”, p. 159. Livre tradução de: “Je suis las de tuer tous te amants; c'est toi que je
tuerai.”
22 Mérimée, “Carmen”, p. 159. Livre tradução de: “J'ai toujours pensé que tu me tuerais. La première
fois que je t'ai vu, je venais de rencontrer un prêtre à la porte de ma maison. Et cette nuit, en sortant de
Cordue, n'as-tu rien vu? Un lièvre a traversé le chemin entre les pieds de ton cheval. C'est écrit.”
23 Mérimée, “Carmen”, p. 160. Livre tradução de: “Allons vivre quelque part où nous ne serons jamais
séparés.”
24 Mérimée, “Carmen”, p. 161. Livre tradução de: “Je te suis à la mort, oui, mais je ne vivrais plus avec
toi.”
60 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
escolha. Carmen escolhe não viver com Don José porque sabe que está destinada a ser
morta por ele. Aceitar viver com um homem sem mais amá-lo para não ser morta por
ele não parece a escolha de uma mulher destemida. Ela é aquela que nada teme, nem
mesmo a morte. Viver com um homem sem amá-lo seria uma decisão covarde. Aceitar
ser morta por ele, por saber que é o seu destino, é a decisão corajosa. “Tu queres me
matar, eu bem sei, ela diz, está escrito, mas tu não me farás ceder.”25 Segundo ela, há
apenas duas alternativas: viver com Don José ou ser morta por ele. Viver com ele
significa não viver livremente. “Carmen será sempre livre.” 26 Por não se curvar aos
desejos de Don José, é morta. E mais: como ela disse, ambos morrerão juntos. Depois
de matar Carmen, Don José vai a uma delegacia e se entrega. A novela termina na
véspera do enforcamento de Don José. Ambos escolheram a morte. Em momento
algum é o fim do amor que motiva as ações. Ao contrário, Carmen deixa de amar um
Don José que não é mais o homem por quem ela se apaixonara e a paixão por Lucas é
tão efêmera que ela diz a Don José, pouco antes de morrer, não amar mais o toureador.
E Don José a mata exatamente por continuar a sentir o mesmo amor que, ele sabe, se
tornou impossível de ser vivido. Não havia mais vida possível para ele nem ao lado de
Carmen, nem longe de Carmen. E sua antiga amante deseja o mesmo destino que ele,
a morte.
Bizet, por sua vez, colocou dois pares em cena: Carmen – Escamillo e Don José
– Micaela27. Carmen e Escamillo são tipos humanos fortes. Don José e Micaela são
tipos humanos fracos. O casamento entre Don José e Micaela realizaria o ideal
romântico da união da boa moça com o bom moço. Mas surge a sedutora Carmen, que
escolheu um novo coração para se divertir. Carmen ama Don José “porque ele é um
jovem bonito que lhe agrada”28. Mas amar alguém por ser uma pessoa gentil e lhe dar
prazer, não significa amar um sujeito específico. Muitos podem ser belos e agradáveis.
Por alguns segundos ele está decidido a seguir os conselhos da mãe e se casar com
Micaela. Mas Carmen o provoca. Carmen promete amá-lo. Carmen o conquista. E Don
José deixa de agir por si. “Exato e fiel, eu vou onde ela me chama, o amor da minha
bela” 29 . Carmen faz com que ele não possa mais ser um soldado e se torne um
Mérimée, “Carmen”, p. 161. Livre tradução de: “Tu veux me tuer, je le vois bien, dit-elle; c'est écrit,
mais tu ne me feras pas céder.”
26 Mérimée, “Carmen”, p. 161. Livre tradução de: “Carmen sera toujours libre.”
27 Voltaremos adiante à discussão sobre a existência ou não de uma menção à personagem de Micaela
na história contada por Merimée.
28 Bizet, “Carmen”, p. 106. Livre tradução de: “Parce qu'il est joli garçon donc et qu'il me plaît.”
29 Bizet, “Carmen”, p. 108. Livre tradução de: “Exact et fidèle, Je vais où m'appelle, L'amour de ma belle.”
25
Ana Carolina da Costa e Fonseca | 61
criminoso, mas não sem antes avisá-lo dos perigos de um amor efêmero, um amor livre
como um pássaro. “O amor é um pássaro... Se tu não me amas, eu te amo. Sim, eu te
amo! Cuidado!”30 Depois de viverem juntos por algumas semanas, Carmen diz a Don
José que ele não é um bom criminoso e que deve visitar a mãe, que está morrendo. “Vá
embora! Vá embora! Você se sairá bem, nosso trabalho não vale nada para você.” 31
Carmen. Carmen. Carmen. É sempre a voluntariosa Carmen quem decide o
destino de Don José, que, quando parte, já é um homem estraçalhado pelo amor
perdido. E mesmo ao declarar seu amor por Don José, ela revela ser ele apenas mais
um entre muitos. A única escolha que Don José faz, a única atitude que toma, é matar
Carmen, quando ela já está apaixonada pelo toureador e apenas se deixa matar por
saber ser o que o destino lhe reservou. E mesmo assim, ele se reconhece como
condenado mesmo antes de matá-la, “eu estou condenado!”32. Ao contrário do Don
José de Mérimée que escolhe se entregar após matar Carmen. Don José não age
corajosamente, ele mata uma mulher, não os seus amantes, e mesmo ao matá-la,
apenas Carmen é representada como aquela que age corajosamente. Ela não reage, não
foge. Fala de si mesma, como a Carmen de Mérimée falou a Don José: “Carmen jamais
cedera, ela nasceu livre e morrerá livre”.33 Diz a Don José o mesmo que a Carmen de
Mérimée: “Eu não quero ser atormentada, nem comandada. O que eu quero é ser livre
e fazer o que me agrada”34 Ele é representado como um covarde matando uma mulher
sedutora, mas delicada, que jamais teria força para lutar contra um soldado.
Enquanto a Carmen de Merimée morre declarando que jamais amou o
toureador, a Carmen de Bizet, ao contrário, morre afirmando a Don José amar o
toureador: “Eu o amo, eu o amo, e mesmo frente à morte eu repito que eu o amo” 35
Apesar de morrer jurando amar Escamillo, sabe-se que se ela vivesse, o amor de
Carmen por ele acabaria em alguns meses. No final escrito por Mérimée, Carmen diz
não mais amar Lucas, o toureador, e o amor que conduz a novela é o amor de Carmen
30 Bizet,
“Carmen”, p. 34-36. Livre tradução de: “L'amour est un oiseau... Si tu ne m'aimes pas, je t'aime;
Si je t'aime, Prends garde à toi!”
31 Bizet, “Carmen”, p. 170. Livre tradução de: “Va-t'en! Va-t'en! Tu feras bien, notre métier ne te vaut
rien.”
32 Bizet, “Carmen”, p. 172. Livre tradução de: “je suis condamné!”
33 Bizet, “Carmen”, p. 190. Livre tradução de: “Jamais Carmen ne cédera, libre elle est née et libre elle
mourra.”
34 Bizet, “Carmen”, p. 138, v. Mérimée, p. 156. Livre tradução de: “Je ne veux pas être tourmentée ni
surtout commandée. Ce que je veux, c'est être libre et faire ce qui me plaît.”
35 Bizet, “Carmen”, p. 192. Livre tradução de: “Je l'aime, je l'aime, et devant la mort même, je répéterai
que je l'aime.”
62 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
e Don José. Bizet confere igualdade ao amor de Carmen por Don José e, depois, por
Escamillo, o toureador. Tal sucessão de amores mostra ao espectador que, se Carmen
vivesse, Escamillo tampouco seria o último.
Para entender Don José, precisamos entender a personagem Micaela. No fim
do segundo capítulo, Mérimée nos conta que Don José pede ao eu-narrador da novela
para ir a Navarro, sua cidade natal, devolver uma medalha a uma jovem e lhe dar a
notícia de sua morte. Pode-se pensar que esta jovem é Micaela. Contudo, o que poderia
unir Don José à jovem tem uma natureza completamente diferente do que une o Don
José de Bizet a Micaela. Don José e Micaela querem, de qualquer modo, ficar com o
ser amado, mesmo que não sejam amados por eles. Don José e Micaela amam,
respectivamente, Carmen e Don José de modo tão desesperado, que eles se dispõem a
aceitar qualquer migalha que lhes possa ser oferecida. Carmen em momento algum se
dispõe a negociar migalhas. E, em Mérimée, ela diz claramente aceitar a morte se este
for o preço da sua liberdade. Mas o Don José de Bizet é um ser humano enfraquecido.
Ele mata por não ter seu amor correspondido, por não lhe caberem sequer migalhas.
E Micaela tenta convencê-lo a ficar com ela, como o último recurso que lhe resta. Don
José não cede, mas sua recusa tem uma natureza completamente diferente da de
Carmen. Enquanto Carmen não cede por ter força suficiente para escolher a morte em
detrimento de viver ao lado de um homem que não mais ama, Don José não cede por
não ter força para resistir a Carmen. Ela não cede por suportar a morte, ele não cede
por não poder lutar contra o amor que sente por Carmen. Não é um Don José tranqüilo
e consciente, como o de Mérimée, que mata Carmen, mas um homem enlouquecido e
humilhado pela cigana, que recusa o amor implorado, “eu imploro, eu suplico” 36, que
precisa do amor de Carmen para se salvar, “deixa-me te salvar... e me salvar contigo”37
e aceita qualquer coisa “eu permanecerei bandido, tudo o que tu quiseres”38. A morte
de Carmen apenas corrobora o desespero que o espectador percebe de modo tão
intenso em Don José.
Carmen de Mérimée conta a história de um amor entre iguais que acabou
quando um deles mudou. Carmen de Bizet conta um dos tantos romances de Carmen.
Carmen conhece Escamillo antes mesmo de seu romance com Don José iniciar e ao
conhecer Carmen, esse homem intrépido declara-lhe seu amor. Ela, contudo, avisa-lhe
36 Bizet,
“Carmen”, p. 186. Livre tradução de: “j'implore, je supplie”.
Bizet, “Carmen”, p. 188. Livre tradução de: “laisse-moi te sauver... et me sauver avec toi”.
38 Bizet, “Carmen”, p. 190. Livre tradução de: “je resterai bandit, tout ce que tu voudras”.
37
Ana Carolina da Costa e Fonseca | 63
que é necessário esperar. O espectador sabe que o amor entre as personagens se
realizará, pois há um dueto entre Carmen e Escamillo no qual ambos cantam o amor.
“O amor! O amor!”39. Para Carmen e Escamillo é permitido cantar o amor, como o
fazem no final ao cantarem juntos: “Ah” Eu te amo. Sim, eu te amo!” 40 . Não para
Carmen e Don José, que jamais cantam juntos o amor sentido. Carmen declara seu
amor e depois o fim do amor. Don José permanece desesperado do início ao fim da
ópera por saber que não sobreviverá à potência do amor de Carmen. Escamillo seguro
do amor que Carmen sentirá por ele, lhe diz que esperará. “Vou esperar então, e me
contentarei de esperar”41 Escamillo não implora pelo amor de Carmen, não ameaça
sua amada, apenas diz que esperará, seguro de que será amado.
Em ambos os textos há uma femme fatale, mas para Mérimée não há qualquer
relação entre seduzir o homem que deseja e mesmo os que não deseja, e viver amores
efêmeros. A efemeridade foi posta em cena apenas por Bizet, que retira de Don José o
papel de narrador de seu amor por Carmen, para contar parte dos sucessivos amores
de Carmen. Escamillo, enquanto aguarda o fim do romance de Carmen com Don José,
diz: “Os amores de Carmen duram apenas seis meses” 42 Enquanto o Don José de
Mérimée está farto de matar os amantes de Carmen, o Don José de Bizet está farto de
sofrer, “eu estou farto de sofrer”43. Personagens de autores diferentes que parecem, em
um primeiro momento, similares, quando analisados de um ponto de vista
nietzscheanos, são vistos como fundamentalmente diferentes. O que motiva Carmen e
Don José, o que ambos suportam, é diferente.
A primeira referência de Nietzsche a Mérimée em sua correspondência é em um
postal enviado a Marie Baumgartner em 1° de março de 1879. A primeira referência à
Carmen é feita apenas mais de dois anos depois, quando Nietzsche, em 28 de
novembro de 1881, escreve um postal a Heinrich Köselitz e conta que assistiu, na
véspera, à ópera de Bizet, sobre quem ele pergunta “wer ist das?”, quem é este? E elogia
o desconhecido por não ser mais um que se desorientou pela potência da obra de
Wagner (KSASB, v. 6, p. 144). Nietzsche assistiu Carmen pela última vez na primavera
de 1888 em Turin (KSA, v. 14, p. 402). Na obra escrita por Nietzsche, publicada no
KSA, há quatro menções a Merimée na obra publicada, e onze no Nachalass. Carmen
Bizet, “Carmen”, p. 88. Livre tradução de: “L'amour! L'amour!”
Bizet, “Carmen”, p. 184. Livre tradução de: “Ah! Je t'aime. Oui je t'aime.”
41 Bizet, “Carmen”, p. 90. Livre tradução de: “J'attendrai alors et je me contenterai d'espérer...”
42 Bizet, “Carmen”, p. 160. Livre tradução de: “Les amours de Carmen ne durent pas six mois.”
43 Bizet, “Carmen”, p. 168, Mérimée, p. 159. Livre tradução de: “... je suis las de souffrir...”
39
40
64 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
e Don José são mencionados quatro vezes na obra publicada e seis vezes no Nachlass.
Na obra publicada, exceto por uma das referências, as demais aparecem no início de O
caso Wagner44, quando Nietzsche conta que mais uma vez assistiu à ópera de Bizet e
que “a cada vez que ouvi Carmen, eu parecia ser mais filósofo, melhor filósofo do que
normalmente me creio...” (CW, 1). O caso Wagner, uma das últimas obras organizadas
por Nietzsche para publicação no fatídico ano de 1888 – mais uma obra com o nome
de Wagner no título – inicia com elogios a Carmen de Bizet. Na correspondência de
Nietzsche há mais de 40 menções a Bizet e Carmen. Seu amigo Heinrich Köselitz,
também ele um compositor, a quem muitas das cartas do período são endereçadas, lê
muitos dos elogios de Nietzsche à ópera Camen. Um dos elogios decorre do que
Nietzsche percebe como um retorno ao modo trágico de agir. Seguidamente, Carmen
é mencionada para justificar mais uma crítica a Wagner. “Carmen ist der grösste
Opern-Erfolg überhaupt in der Geschichte der Oper und hat bei wietem die Zahl der
Aufführungen aller Wagnerischen Opern zusammen in Europa für sich allein
überboten. –” (KSASB, v. 8, p. 554).
Concluo
apresentando
uma
reflexão
feminista
com
forte
influência
nietzscheana. Tal discussão, evidentemente, extrapola a obra de Nietzsche, a respeito
da qual muitos ainda discutem se contém ou não ideias misóginas. O que proponho é
uma forma de atualização da discussão sobre seres humanos fortes e seres humanos
ressentidos. No início do artigo, há duas descrições genéricas da história de Carmen.
Na primeira descrição, apresento um sentimento considerado romântico segundo o
qual homens matam mulheres por amá-las demais e sentirem ciúmes. Na segunda
descrição, fortemente influenciada pelos diversos feminismos, homens matam
mulheres porque são violentos e machistas e porque não suportam que mulheres
façam escolhas em desacordo com a vontade de homens, que, portanto, não matam
por amor, ou pelo que uma mulher fez, mas por um problema muito grave no próprio
caráter. Usando termos nietzscheanos, poderíamos dizer que homens matam
mulheres por ressentimento. Matar mulheres não é uma demonstração de força, mas
de fraqueza. Por não suportarem que existam mulheres que fazem escolhas, e que tais
escolhas excluem certos homens, por não saberem lidar com os próprios sentimentos
em relação a um desejo de não estar mais ao lado de um certo homem, por se sentirem
Conforme Sue Prideaux, “Eu sou dinamite: a vida de Friedrich Nietzsche”, p. 311, Nietzsche enviou
um exemplar de O caso Wagner para a viúva de Bizet.
44
Ana Carolina da Costa e Fonseca | 65
rejeitados, matam. Há uma inversão na lógica da narrativa tradicional, segundo a qual,
as mulheres provocam os homens, que, perdidos de amor e sofrendo demais, matam.45
Evidentemente, Nietzsche não era um feminista, tampouco foi um precursor do
feminismo. Ele não defendia mulheres. E sabe-se lá de quantos modos tentam ler
Nietzsche e fazer com que ele se encaixe em qualquer forma de discurso feminista.
Nietzsche, apesar de genial, também é um filho do seu tempo. Mas, podemos explicar
de que modo é possível usar conceitos de Nietzsche conforme ideias feministas: a
maneira como Nietzsche descrevia, concebia, mulheres, em linha gerais, era diferente
da maneira como mulheres são descritas no presente. As muitas passagens nas quais
Nietzsche fala das mulheres, ele está apresentando um retrato de como a maioria das
mulheres agia no seu tempo. Não é o retrato que desejamos ver de mulheres no
presente, mas não é um retrato ruim. As mulheres já foram e são de muitos modos. No
presente, cada vez mais mulheres se tomam como criadoras de seus próprios valores,
o que, por oposição, evidencia o ressentimento presente no que chamamos de
machismo, e que serve para descrever muitos homens, como Don José, que acredita
ter o direito de matar uma mulher porque ela não o ama mais, visto ele não saber o
que fazer com o próprio sofrimento. Alguns conceitos-chave para a compreensão do
pensamento de Nietzsche, seres humanos fortes e fracos, criação dos próprios valores,
ressentimento, podem ser usados de modo estrutural para explicar os muitos séculos
de discriminação das mulheres, bem como as diversas pautas dos feminismos. Tal
discussão será, por ora, apenas aventada.
Resta, contudo, uma pergunta, que é, de fato, uma provocação, e, para a qual,
provavelmente, nunca teremos resposta: será que Nietzsche identificava Carmen com
Lou-Salomé, a potente mulher que, ao seu modo de ver, seduzia e descartava homens?
Será que a cada vez que ia ao teatro, via Lou-Salomé em cena? Talvez...
Agradeço a Rodrigo de Oliveira Lemos que leu o presente artigo, fez pequenas críticas e correções no
texto e sugeriu a leitura de uma reportagem que me era desconhecida. A notícia conta que em janeiro
de 2018, em Florença, na Itália, foi encenada uma versão de Carmen, de Bizet, na qual Carmen mata
Don José, ao invés de ser morta por ele. A mudança foi feita para que provocasse discussão em relação
à violência contra as mulheres. Muitos criticaram a mudança ocorrida no final da história. O objetivo
de
gerar
discussão
foi
plenamente
realizado.
Disponível
em:
https://www.cbc.ca/news/entertainment/florence-italy-change-carmen-1.4482413. Acesso em 7 set.
2020.
45
66 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Referências
BIZET, Georges. Carmen. Stuttgart: Reclam, s.d. francês/alemão.
MÉRIMÉE, Prosper. “Carmen”. In: Les âmes du purgatoire. Carmen. Paris: GF
Flammarion, s.d. p. 105-169.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Kritische Studienausgabe. Organizado por Giorgio
Colli e Mazzino Montinari. Berlin: de Gruyter, 1999. 15 v.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe.
Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlin: de Gruyter, 2003. 8 v.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O caso Wagner: um problema para músicos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
PRIDEAUX, Sue. Eu sou dinamite: a vida de Friedrich Nietzsche. São Paulo: Planeta
do Brasil, 2019.
PLOT twist: opera Carmen altered in anti-violence protest. CBC, 11 jan. 2018.
Disponível em: https://www.cbc.ca/news/entertainment/florence-italy-changecarmen-1.4482413. Acesso em 7 set. 2020.
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração
Editorial, 2011.
SÓFOCLES. Édipo rei. Porto Alegre: L&PM, 1998.
4. PODER PUNITIVO: FOUCAULT PARA ALÉM DE FOUCAULT1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-4
Augusto Jobim do Amaral2
Convém nos tempos que correm ir às coisas mesmas e perceber a realidade por
aquilo que nos interpela. E no manancial de violências que a reflexão sobre a Filosofia
e o Direito impõe, pesa de modo determinante as práticas do poder punitivo. Todavia,
necessário deslocá-lo, inclusive das leituras que, no afã de criticá-lo, estabiliza-o. Neste
instante, em que compomos o Festschrift em homenagem aos 60 anos do Prof. Dr.
Nythamar de Oliveiras, nada mais adequado que insistir em levar a crítica ao patamar
que tornar difíceis os gestos mais fáceis. Valeria a pena, assim, sobretudo, quanto ao
poder punitivo, produzir uma olhada oblíqua através dele e investir nas consequentes
linhas de fuga desta relação – mesmo que de forma incipiente. Se jamais se tratará de
legitimar ou dar contornos palatáveis ao poder punitivo, mas sim investigar as formas
de racionalidade que nele se inscrevem, cabe, antes de tudo, problematizá-lo
diferentemente. Indicamos que deva ser feito através de, pelo menos, três
perspectivas: (a) que assuma o poder punitivo como conjunto prático, como esquema
interpretativo; (b) que aponte o que significa poder para os fins de uma política da
criminologia; e (c) analisar de outro modo a correlata punição que o sentido de poder
punitivo deve veicular. Assim, o estudo dos modos de problematização3, convocado
por uma política da criminologia4, não se afaz à construção de uma teoria ou de uma
doutrina sobre o poder punitivo, mas à maneira de se analisar questões de alcance
geral. A seu modo, analisar as práticas, nesse caso punitivas, a partir das quais essas
mesmas problematizações se formam5.
Texto produzido desde o publicado em Política da Criminologia. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020,
pp. 40-65.
2 Professor permanente do PPGFil e do PPGCCrim da PUCRS.
3 FOUCAULT, M.. “¿Qué es la Ilustración?”, in: Sobre la ilustración. Estudio preliminar de Javier de la
Higuera. Traducción de Javier de la Higuera et.al. 2. Ed.. Madrid: Tecnos, 2006, p. 96.
4 Cf. o nosso Política da Criminologia. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
5 FOUCAULT, M.. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. 6ª ed.. Rio de Janeiro: Graal, 1984,
p. 15.
1
68 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Poder punitivo como dispositivo prático
Primeiramente, assumir o poder punitivo como “conjunto prático”, um
domínio de referência heterogêneo daquilo que os homens fazem (tecnologias) e como
fazem (estratégias). Em termos foucaultianos, “as formas de racionalidade que
organizam as maneiras de fazer (o que poderia ser chamado de aspecto tecnológico); e
a liberdade com que atuam nestes sistemas práticos, reagindo aos que fazem os outros,
modificando até certo ponto as regras do jogo (é o que se poderia chamar a vertente
estratégica destas práticas)”6. Este “conjunto prático”, feixe de relações mais ou menos
coordenado, chamado agora poder punitivo, nesta primeira dimensão ainda,
corresponde a três grandes âmbitos, são os três grandes eixos – saber, poder e
subjetividade – que fazem com que ele possa ser visto como um dispositivo7. Para que
não se recaia noutra abstração que se queria afastar, ele diz, desde logo, respeito ao
enfrentamento sobre o domínio das coisas (saber), da ação sobre os outros (poder) e
da ação sobre si (ética).
Já vemos que, desde logo, o antigo conceito “poder punitivo” (produto do
sistema penal, efeito nada organizado da atuação das agências de criminalização ou
ainda, se quisermos, como poder coativo do Estado em forma de pena 8) assume uma
feição muito mais complexa – seguindo Foucault, mas já para além dele. Falar em
poder punitivo agora é tê-lo como um dispositivo que enovela, entrecruza estratégias
diferentes, compostas através de saberes diversos e que forjam subjetividades; que se
opõem, compõem, sobrepõem, produzindo efeitos permanentes: “esta é a solidez e a
FOUCAULT, M.. “¿Qué es la Ilustración?”, pp. 94-5.
Em apertada síntese seria uma rede formada por elementos heterogêneos que possui, em seus
cruzamentos, uma função estratégica inscrita das relações de saber-poder (Cf. FOUCAULT, M.. “O Jogo
de Michel Foucault”. In: Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade. Ditos e Escritos IX.
Organização, seleção de textos e revisão técnica Manoel Barros da Motta. Tradução Abner Chiquieri.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, pp. 44-77). Para Deleuze, encontramos, em Foucault, uma
“filosofia dos dispositivos”. Para tanto, indagando “o que é um dispositivo”, aduz um conjunto
multilinear, espécie de novelo ou meada, que possui como componentes “linhas de visibilidade, de
enunciação, linhas de força, linhas de ruptura, de fissura, de fratura que se entrecruzam e se mesclam
enquanto umas suscitam outras através de variações ou até mudanças de disposição”. DELEUZE, G..
“¿Qué es un dispositivo?”. In: BALBIER, E. et al. Michel Foucault, Filósofo. Barcelona: Gedisa Editorial,
1999, pp. 157-8. Ademais, cf. CHIGNOLA, S.. “Sul dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze”. In: Da
Dentro: Biopolítica, bioeconomia, Italian Theory. Roma: DOC(K)S, 2018, pp. 173-190.
8 Cf. ZAFFARONI, E. R. et. al.. Direito Penal Brasileiro – I. Primeiro volume. Teoria Geral do Direito
Penal. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Revan, 2003, pp. 43-59.
6
7
Augusto Jobim do Amaral | 69
maleabilidade do dispositivo”
9
. Uma problematização que procura estudar a
racionalidade dispersa que a realidade do poder punitivo impõe.
Agora, poder punitivo analisado como um dispositivo requer também seu
exame aproximado por uma espécie de ficção-histórica 10 , muito rigorosamente
entendida dentro da impossibilidade genealógica de uma história objetiva. Não se quer
dizer, por óbvio, que ele não exista ou que seja mera invenção, mas que, ao se praticar
uma ficção, uma política da criminologia sublinha o caráter de trans-formação que
até mesmo o léxico do direito nos lembra: fictio, como não esquece Chignola11, denota
uma ação pela qual uma coisa intervém sobre outra e a modifica, uma matéria informe
orientada a um projeto. Esta transformação ao problematizar o “poder punitivo” deve
produzir um efeito de deslocamento, para que, de fato, tenha reflexos imediatos e
modifique as percepções sociais dos fenômenos que abarcam. Problematizar o poder
punitivo como um dispositivo é ser capaz de experimentar modos de impactar as
necessidades vitais, como fruto daquilo que se pode mobilizar do presente para
produzir acontecimento. “Tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar
diferente em vez de legitimar o que se sabe”12, escreve Foucault. De modo mais direto,
sob o ímpeto de forças múltiplas e críticas, tensionar a desnaturalização das práticas
que o poder punitivo exerce.
Isto de modo inicial, como primeiro movimento, que em síntese implode o
conceito e fragmenta o poder punitivo para vê-lo como um dispositivo, como conjunto
prático nada universalizável ou mesmo redutível ao exercício estatal. Como rede que
se forma entre elementos absurdamente heterogêneos (discursivos e não-discursivos),
que possui uma função estratégica, inscrita no cruzamento das relações de saberpoder, e que produz linhas de subjetivação que se afetam mutuamente provocando
linhas de fuga.
FOUCAULT, M.. “Mesa-redonda em 20 de Maio de 1978”. In: Estratégia, poder-saber. Ditos e
Escritos IV. Organização e seleção de textos, Manoel Barros da Mota. Tradução Vera Lucia Avellar
Ribeiro. 2ª Ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 344.
10 FOUCAULT, M.. “Foucault Estuda a Razão de Estado”. In: Estratégia, poder-saber. Ditos e Escritos
IV. Organização e seleção de textos, Manoel Barros da Mota. Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro. 2ª
Ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 321.
11 CHIGNOLA, S.. Foucault Oltre Foucault. Una politica della filosofia. Roma: DeriveApprodi, 2014, p.
152.
12 FOUCAULT, M.. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres, p. 13.
9
70 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Poder como situação estratégica
Para tentar sermos mais claros, caberia de forma objetiva, agora como segunda
perspectiva, profundamente interligada à primeira, perguntar qual o sentido que
“poder” aqui assume, para depois examinar seu qualificativo “punitivo”. Falar de
poder, no sentido que propomos, é encará-lo como situação estratégica e não como
sistema geral de dominação. Não há aqui uma teoria geral do poder, um “fora” do
poder, uma posição externa que faria localizar um detentor ou um local privilegiado
para sua concentração.
Conhecida é a metodologia aposta por Foucault no primeiro volume do seu
História da Sexualidade: vontade de saber. De modo esquemático, poder-se-ia
resumir: a) o poder não é algo que se adquira, se arrebata ou se compartilha, se guarda
ou deixa escapar, ele se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações
desiguais e móveis; b) as relações de poder são imanentes e não exteriores a outros
tipos de relações (sociais, sexuais, econômicas etc.), são os efeitos imediatos destes
desequilíbrios e as próprias condições internas destas diferenciações; c) o poder vem
de baixo, quer dizer, as relações de forças múltiplas que se formam e atuam servem de
suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o corpo social, há linhas de força
em geral que geram por intensidade os efeitos hegemônicos de grandes dominações;
d) as relações de poder são intencionais, não propriamente subjetivas. O poder se
exerce presidido por uma série de miras e objetivos, sem que se consiga buscar a equipe
que preside sua racionalidade. A racionalidade de tal poder é a das táticas encadeadas
entre si, que se apoiam, condicionam-se e se propagam, esboçando finalmente
dispositivos de conjunto. A lógica aí, ainda que perfeitamente clara, já não parece
haver mais ninguém para tê-las concebido e poucos para formulá-las caráter das
grandes estratégias anônimas de táticas cujos “inventores” nada têm de hipócritas; e)
onde há poder, nunca em relação de exterioridade a ele, por isso mesmo, há resistência
– eis o terceiro ponto da nossa análise mais adiante. As relações de poder não poderiam
existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência, o que faz com
que não haja um grande lugar da grande Recusa. Tal é o outro termo da relação,
contudo, o que não as deixa em posição meramente passiva13.
Cf. FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 1988, pp. 8897.
13
Augusto Jobim do Amaral | 71
Já em 1976, Foucault explicitava seu cuidado analítico com o poder. Porém, será
em dois outros momentos que sua “filosofia analítica da política” bem se apresenta,
evitando mal entendidos. Um na conferência japonesa que já tratamos de 1978 e outro
no texto publicado em inglês por ele em 1982, chamado O sujeito e o Poder.
Basicamente, o que importa a Foucault, indagando em que consistem as relações de
poder, é afirmar que o poder não é mal propriamente e, como disse em outro espaço,
consiste mais em jogos estratégicos14. E se o papel da filosofia é o de fazer ver aquilo
que vemos, esta é a direção proposta (na esteira da filosofia da linguagem em
Wittgenstein15), ou seja, pôr em relevo o que se passa cotidianamente nas relações de
poder, do que elas se tratam, quais suas formas, as articulações e objetivos. Dentro
desta trama estratégica cotidiana, combatem liberdade e controle, portanto, algo e
alguns escapam e outros são assujeitados. Em suma, a tarefa é ver como funcionam as
relações de poder. Se não é possível escapar das relações de poder, cabe sempre
estudar seus jogos, táticas e estratégias: “abordar esses jogos de poder (...) mais que
estudar o grande jogo do Estado”. Importantíssimo destacar que, neste ponto, ao
contrário do que alguma leitura acomodada poderia insinuar, é de recusa ao próprio
jogo que se trata. Nesta trama cotidiana, de enorme materialidade (menos para certos
marxismos acadêmicos), não se trata de assumir como destino tais regras no interior
destes jogos, nem de capitalizá-las para fins eficientes16, “mas sim de resistências ao
14 FOUCAULT, M. “A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade”. In: Ética, Sexualidade,
Política. Ditos e Escritos V. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; tradução Elisa
Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 284.
15 Cf. Sobre a relação entre Foucault e Wittgenstein, ver GROS, F.; DAVIDSON, A. (sous la direction de),
Foucault, Wittgenstein: de possibles rencontres, Kimé, Paris, 2011.
16 Se é da constatação dos jogos de poder que se trata (“quando digo jogo, me refiro a um conjunto de
regras de produção da verdade”, dirá Foucault (FOUCAULT, M. “A Ética do Cuidado de Si como Prática
da Liberdade”, p. 282) em alguma medida, já que o poder não é algo que se detenha ou elimine, muito
menos algo para se fundar ou refundar, isso nada tem a ver, por exemplo, em formular uma “teoria dos
jogos”, muito menos de viés jurídico-penal, ao menos se bem compreendido este ponto (cf., sobretudo,
FOUCAULT, M.. “O Jogo de Michel Foucault”. In: Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade.
Ditos e Escritos IX. Organização, seleção de textos e revisão técnica Manoel Barros da Motta. Tradução
Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 45). O que se vem assumindo como
uma “teoria dos jogos” aplicada às dinâmicas processuais penais, ao menos no Brasil, nada tem a ver
com este esforço. Aparentemente, está mais afeita aos atalhos, às dicas, aos macetes, aos esquemas
simplificados daquilo que outrora foi um “criticismo” que, enrijecido intelectualmente, virou moeda.
Para esse talante, é como se houvesse de modo concreto a possibilidade de ver o processo penal desde
fora, como um tabuleiro de xadrez, com jogadores blindados dos conflitos, em condições normais de
temperatura e pressão. Ou seja, como se, nas relações de poder postas, houvesse um observador/jogador
externo que pudesse jogar com as regras do jogo e com seu manuseio estratégico, buscando os
“melhores” fins. Noutros termos, trata-se de um eficientismo básico, cálculo de probabilidades para
maiores benefícios, accountability com vidas alheias, gramática suavizada de uma guerra cotidiana real
empreendida pelas engrenagens de persecução, mas de sucesso garantido quando as estratégias, estas
sim, mercadológicas falam mais alto. Efeitos que o modo de vida capital, mais objetivamente, incutiu
em corações de mentes de modo quase tranquilo – e não é estranho seus infinitos reflexos nas práticas
72 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
jogo e de recusa do próprio jogo” 17 – estas são características das lutas e combates
(chamaremos de “linhas de fuga”, logo a seguir) de certos movimentos.
Se num primeiro ponto, com a assunção do poder punitivo como um
dispositivo, ampliamos o foco de análise, ao mesmo tempo que o definimos através da
direção dos saberes que o forjam e que ele mesmo forma, em correlação imamente com
as estratégias e táticas implementadas, bem como, neste entrecruzamento, pelos
jurídicas, inclusive em leituras “teóricas” como estas, afinal, estamos sempre falando da introdução da
economia no interior da gestão do Estado (cf. FOUCAULT, M.. O Nascimento da Biopolítica. Curso
dado no Collège de France (1978-1979). Edição estabelecida por Michel Senellart sob a direção de
François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008 e
DARDOT, P.; LAVAL, C.. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de
Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016). E quando se trata de constatar que, no quadro geral, os
“gurus da economia que nos julgam imbecis”, na belíssima expressão de Bernard Maris, não faltará
inspiração de alguma leitura de “teoria dos jogos” aplicada aos escaninhos jurídicos. Só esquecem
normalmente de dizer certos detalhes. Verdade seja dita, a teoria dos jogos foi uma fantástica renovação
de ares para os economistas incrustados nas sínteses macroeconômicas dos anos sessenta, afinal de
contas, até os nomes são mais divertidos: “o dilema do prisioneiro, a guerra dos sexos, a pomba e o
gavião, o teorema do folclore...” (MARIS, B.. Carta aberta aos gurus da economia que nos julgam
imbecis. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 66; boa síntese
pode ser encontrada em WARK, M.. Gamer Theory. Harvard University Press: Cambridge,
Massachussets, and London, England, 2007). Foi exatamente para tentar salvar a coerência do modelo
de equilíbrio geral de Walras, a falência de uma explicação global da sociedade, pois os economistas
perceberam que o optimum não é o mercado (Cf. HINKELAMMERT, Franz H.. Crítica de la Razón
Utópica. Bilbao: Editorial Desclée de Brouwer, 2002, p. 133-181), que eles precipitaram-se sobre a teoria
dos jogos. O que se passou foi um reforço da autorização para a incorporação maciça de instrumentos
de cálculo econômico em todos aspectos da vida social. Naturalmente, as relações jurídicas, muito
menos ainda o processo penal, não passariam imunes. Como o próprio nome indica, “a teoria dos jogos”
– escreve Maris – “é uma enorme empresa lógico-lúdica que possibilita fazer perguntas difíceis, propor
adivinhações e charadas, construir silogismos tão apreciados pelos lógicos de calças curtas ou compridas
e pontificar sobre toda e qualquer questão social” (MARIS, B.. Carta aberta aos gurus da economia que
nos julgam imbecis, p. 64). Por que com o processo judicial seria diferente, ainda mais com o apelo
máximo do conflito penal? O que está sempre em jogo literalmente é a matriz do comportamento
humano, a leitura dos comportamentos dos envolvidos, um página “Jogos do Suplemento do Mickey
(embora com nível um pouquinho mais elevado” (MARIS, B.. Carta aberta aos gurus da economia que
nos julgam imbecis, p. 65).
E em tempos de coaching generalizado, em que a área jurídica se vê mergulhada na indústria das
performances facilitadas de materiais de forjam as novas gerações de juristas, nada mais atrativo que
algo com certo ar de novidade “crítica”, adequado a esta nova economia psíquica: “a blague estudantil
elevada às cumeeiras do pensamento” (MARIS, B.. Carta aberta aos gurus da economia que nos julgam
imbecis, p. 66). Em tempos que, no processo penal, tornou-se lugar comum falar em incerteza,
imprevisibilidade, riscos e assimetrias de informação, nada mais oportuno que dizê-las com “jogos”:
“interações estratégicas com raciocínios recorrentes, hipóteses de conhecimento comum (´eu sei que
você sabe que eu sei´), eixos de decisão (...)” (MARIS, B.. Carta aberta aos gurus da economia que nos
julgam imbecis, p. 67). Todavia, tudo esquecendo-se a realidade crua do “moedor de carne humana”
chamado processo penal como um dos avalistas jurídicos do turbilhão chamado poder punitivo. Guerra
convertida em jogo de adivinhações. Para não pensarmos que isso seja um exagero, veja-se o porquê da
“GAM3 7H30RY” ter caído nas graças, sobretudo, como uma das principais estratégias de
“contraterrorismo” na “guerra contra o terror” dentro do grande teatro da surveillance global pós 11S
(Cf. WILSON, A. G.; WILSON, G. D.; OLWELL, D. W. (Eds.). Statistical Methods in Counterterrorism.
Game Theory, Modeling, Syndromic Surveillance, and Biometric Authentication. New York: Springer,
2006.
17 FOUCAULT, M.. “A Filosofia Analítica da Política”. In: Ética, Sexualidade, Política. Ditos e Escritos
V. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; tradução Elisa Monteiro e Inês Autran
Dourado Barbosa. 2ª Ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 47.
Augusto Jobim do Amaral | 73
modos de vida diversos que produz, as subjetividades que atuam nestas relações, uma
filosofia analítica da política nos conduz a perceber que o poder, sobretudo, se exerce,
tendo a virtude de visualizar como se dão estas práticas.
Sendo assim, estudar o poder desta forma, ao nosso interesse de política da
criminologia, indica ao menos três deslocamentos pertinentes: a) implosão do foco
estatalizante do seu exercício. Como conjunto prático, seu exercício dá-se em infinitos
pontos nada privilegiados pela leitura estatocêntrica18; b) analisar seus saberes, modos
de visibilidades que o justificam, retroalimentam ou pretendem limitá-lo com relação
à posição que estabelecem, ou seja, os campos de força ali empreendidos; c) o nó, ao
fim, do porquê estudar o poder é a própria questão do sujeito, portanto, instante
especial encontra-se em indagar os modos de vida forjados subjetivamente através
destas formas de racionalidade, muito para além das dinâmicas dos atores jurídicopenais, ou seja, os modos pelos quais, em nossa cultura punitiva, as técnicas de
subjetivação da punição tomam vantagem sobre outras.
O que significa punir?
Mas, para nossos fins, é imprescindível indagar o que “punir” quer dizer neste
contexto. Já parece claro que o sentido da punição aqui não está, de maneira alguma,
restrito à ideia de repressão, muito menos estatal 19 . Poder, acima de tudo, ponto
nevrálgico para Foucault, não é repressão ou dominação, é produção. Poder produz
coisas 20 . Esta percepção também é elementar para nossos interesses. Quando a
contemporaneidade nos impõe cada vez mais a profusão de práticas que veiculam
relações de poder investidas através da instigação de nossa liberdade – governo, afinal,
requer sempre a liberdade como condição –, cabe investigar o “governo da punição”.
Liberdade aqui como algo a ser produzido, suscitado, enquadrado permanentemente,
Cf., em especial, a aula de 7 de janeiro de 1976 em FOUCAULT, M.. Em Defesa da Sociedade. Curso
no Collège de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999,
pp. 3-26.
19 Vale apontar a autocrítica feita por Foucault desde ao menos a referida aula de 7 de janeiro de 1976
(FOUCAULT, M.. Em Defesa da Sociedade, p. 25), ano também da publicação do primeiro volume da
História da Sexualidade: vontade de saber: “olhar um pouco mais de perto a hipótese de que os
mecanismos de poder seriam essencialmente mecanismos de repressão”. O fato de que alguns
mecanismos empregados em certas formações de poder “são algo muito diferente da repressão” e que
ela “é totalmente insuficiente para demarcá-los” é a pista depois seguida no seu direcionamento, nos
anos seguintes, para o estudo da governamentalidade e da biopolítica.
20 FOUCAULT, M.. História da sexualidade 1: a vontade de saber, pp. 88-9.
18
74 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
que incita viver perigosamente e implica estabelecer mecanismos de segurança, por
isso o interesse de Foucault no estudo do liberalismo, no século XVIII, como “condição
de inteligibilidade da biopolítica” 21 e, sobretudo, na “crise de governamentalidade”
(liberdade e segurança) do XX que ocasionaram as revisões neoliberais
(ordoliberalismo alemão e anarcoliberalismo americano) de nefastos reflexos até
hoje22.
Retomando, aqui o Estado é mais visto como uma simples “peripécia”
(péripétie, escreve Foucault) de processos muito mais gerais que o produziu, que
atravessaram seus contornos jurídicos e suas dimensões institucionais, e que os
excedem para continuar a transbordá-lo – Estado como peripécia do governo, e não
este como um instrumento daquele 23 . Falamos de governamentalidade, portanto.
Vivemos em sua “época”. Em termos diretos, com as palavras de Foucault: “por
governamentalidade entendo o conjunto constituído pelas instituições, os
procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as tácticas que permitem exercer esta
forma bem específica, ainda que muito complexa, de poder que tem como alvo
principal a população, por forma principal de saber a economia política e por
instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Segundo, por
governamentalidade entendo a tendência, a linha de força que em todo o Ocidente
não deixou de conduzir, e desde muito tempo, para a preeminência desse tipo de poder
que pode ser chamado de ´governo´ sobre todos os outros: soberania, disciplina, e que
induziu, por um lado, ao desenvolvimento de toda uma série de aparatos específicos
de governo, e por outro, ao desenvolvimento de toda uma série de saberes. Por último,
creio que se veria entender a governamentalidade como o processo, ou melhor, o
resultado do processo em virtude do qual o Estado de justiça da Idade Média,
convertido em Estado Administrativo durante os séculos XV e XVI, se
governamentalizou pouco a pouco”24.
O que está em jogo, entre outras coisas, é o deslocamento da esfera de
sobrevalorização do problema do Estado (“monstro frio” ou, por exemplo, reduzido
“ao desenvolvimento das forças produtivas”) de sua posição privilegiada que
SENELLART, M.. “Situação do Curso”. In: FOUCAULT, M.. O Nascimento da Biopolítica. Curso dado
no Collège de France (1978-1979), p. 442.
22 Cf. FOUCAULT, M.. “Resumo do Curso”. In: O Nascimento da Biopolítica, pp. 431-439.
23 FOUCAULT, M.. Seguridad, Territorio, Población. Curso en el Collège de France (1977-1978).
Edicción establecida por Michel Senellart, bajo la dirección de François Ewald y Alessandro Fontana.
Traducido por Horacio Pons. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006, p. 138.
24 FOUCAULT, M.. Seguridad, Territorio, Población, p. 136.
21
Augusto Jobim do Amaral | 75
invariavelmente acaba por ocupar em muitas análises, principalmente criminológicas.
O Estado não cria, como numa visão que se pode perceber de Hobbes à Revolução
Francesa, o sistema de condições que organiza as relações entre os sujeitos, prevista
em formas legais, mas lança seus mecanismos num ambiente fugidio e opaco de acordo
com uma irredutível e indisponível aleatoriedade. Assim, se para uma adequada
analítica da política o poder produz, importante entendê-lo não apenas como domínio,
mas como produção. Ademais, trata-se de produzir, sobretudo, sujeitos. Em rápidas
palavras, todas as produções e tecnologias de assujeitamento estão interligadas, isto
pode se comprovar no modo como a estratégia de soberania, mesmo investindo na
morte, faz para produzir súditos, indivíduos, sendo a própria fábrica do sujeito de
direito. Da mesma forma, a disciplina, ligando-se ao corpo do vivente, produz corpos
dóceis, um adestramento produtivo que potencializa uma função eficiente
convertendo tempo de vida em tempo de trabalho. Não esqueçamos que aqui também
se produz o “criminoso” e o “doente mental”, por exemplo. Mas, ainda, se o biopoder
acaba por investir não no corpo, não no sistema de leis, mas regulando a população na
realidade de práticas securitárias, uma arte de governo que garante o “governo dos
viventes” impõe que pensemos a “punição” de modo muito diverso.
Insistamos um pouco mais. Se poder punitivo conjuga-se melhor como um
esquema interpretativo para analisar a penalidade moderna, como dispositivo que faz
subsumir muito mais que a própria repressão de aparelhos de Estado, mas programas,
práticas, estratégias que podem produzir tanto sujeitos de direitos (e também aqueles
que não se alinham a este esquema jurídico, vidas matáveis como se poderia chamar),
corpos
disciplinados
que
irão
amalgamar
a
punição
tradicionalmente
(“anatomopolítica dos corpos”), o que se ressalta aqui são os corpos governados,
através da “biopolítica das populações” 25 . Lembremos quanto o controle, como
destaca Deleuze, apresenta-se sob traço determinante, expresso, por exemplo, em
formações subjetivas de um homem endividado, de um sujeito esgotado
psiquicamente etc..26
FOUCAULT, M.. História da sexualidade 1: a vontade de saber, p. 131.
Desde o clássico estudo de Deleuze (“´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”. In:
Conversações (1972-1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, pp. 219-226)
apontando algumas destas perspectivas frutíferas de análise, entradas imprescindíveis a uma política
da criminologia, por exemplo, também podemos encontrar em: CHIGNOLA, S.. “A Toupeira e a
Serpente” [Tradução de Augusto Jobim do Amara]. In: R. Dir. Gar. Fund., Vitória, v. 19, n. 3, pp. 239270, set./dez. 2018; LAZZARATO, M.. La fábrica del hombre endeudado. Ensayo sobre la condición
neoliberal. Buenos Aires: Amorrortu, 2013 e GAGO, V.; CAVALLERO, L.. Uma Leitura feminista da
25
26
76 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Naturalmente poder-se-ia criticar a amplitude de tal “objeto”. Comum quando
se pretende ir “além da criminologia” convencional e levar os danos sociais do poder a
sério 27 – não que seja a mesma a nossa pretensão. Não obstante, uma política da
criminologia não aduz a busca por uma unidade científica, para assim tomar
credibilidade a partir de uma teologia transcendental, uma história global das
totalidades ou uma orientação epistemológica estrito. Trata-se, do contrário, de um
foco, de um frame ajustável
28
, de um nó de problematizações mutável,
recompaginável, com variadas possibilidade de entradas e saídas, e não a tentativa de
construir uma “tudologia social e política” de conhecimentos inabarcáveis29.
Nossa pretensão não é a atenção a um método – deve estar claro a esta altura.
É exatamente por isso – iluminado pela questão primordial que é: o que significa punir
hoje em dia? – que não se foge do campo da batalha e que se deve levar o poder a sério
como exercício nada autônomo e que comporte uma análise limitada a um campo
predeterminado. Noutros termos, prolongando ao extremo a pergunta sobre a
transformação permanente dos modos de governar a punição, insistir na questão:
como se pune atualmente?30 Precisamente para que se perceba os sofrimentos reais
imediatos veiculados nas relações de poder, a preocupação, para uma política da
criminologia não é com uma cientificidade abarcável, sob pena de pagar pela omissão
de não enfrentar praticamente tais relações de poder como se deveria. A seu modo, o
fio condutor, o foco reatualizável para a tomada de posição são as práticas, portanto, é
o exercício do poder punitivo, a penalidade para além do mero exercício da repressão
violenta, tal como propomos.
Indagar o que hoje podemos chamar de punição, ou seja, os meios em que
atualmente ela vem sendo veiculada, de modo mais alargado possível, sem dúvida, é
um problema que empurra o intelectual à análise das diversas formas de vida
familiares que se aderem às nossas percepções e comportamentos. Para que não
dívida: vivas, livres e sem dívida nos queremos. Tradução Helena Vargas e Revisão Técnica Fernanda
Martins. Porto Alegre: Criação Humana, 2019.
27 Cf. COHEN, Stanley. States of Denial: knowing about atrocities and suffering. Polity Press:
Cambridge, 2001 e HILLYARD, P.; PANTAZIS, C.; TOMBS, S.; GORDON, D. (Eds.). Beyond the
Criminology. Taking Harm Seriously. Pluto Press: London, 2004.
28 Cf. o nosso “Criminologia como crítica do visível”. Prefácio obra de GONZÁLEZ, José Calvo.
Criminologia Visual: selos postais como artefatos imagéticos de aculturação ideológico-jurídica. Série
Ciências Criminais, vol. 4. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019, pp. 05-18.
29 ZAFFARONI, Eugenio Raul. La palabra de los muertos: Conferencias de criminología cautelar.
Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 289.
30 FOUCAULT, M.. “Mesa-redonda em 20 de Maio de 1978”, p. 337.
Augusto Jobim do Amaral | 77
caiamos novamente nas mesmas repetições que encontramos quando se debate, por
exemplo, a prisão, deve-se tentar fugir do sintoma sério da “tagarelice criminológica”.
Como alerta Foucault sobre o sistema punitivo em uma das suas últimas entrevistas:
“E, passados agora 150 anos, repetem-se as mesmas repreensões, as mesmas críticas,
as mesmas exigências, como se nada tivesse mudado e, em certo sentido, nada mudou.
A partir do momento em que uma instituição que apresenta tantos inconvenientes, que
suscita tantas críticas só ocasiona a repetição indefinida dos mesmos discursos, a
tagarelice é um sintoma sério”31.
Assim, chegamos ao ponto nevrálgico desta terceira dimensão. Se o poder
produz, sobretudo modos de vida, formas de subjetivação diversas, dando-se seu
exercício numa relação na qual é irredutível a presença de uma resistência nada
passiva, alcançados um ponto determinante para Foucault dentro das nossas
pretensões. Indo direto ao ponto, com relação ao poder, a resistência vem em primeiro
lugar32, ela que obriga as relações de poder a mudar. Interessa, então, investigar – na
centralidade da questão do sujeito (longe daquele “sujeito soberano” consciente que
animaria, desde o exterior, com seu logos a inércia do discurso33) que apontamos nesta
nova economia das relações de poder aposta por Foucault – como se articulam as
formas de resistência hábeis a produzir linhas de fuga às dinâmicas do poder punitivo.
Se a filosofia, como vimos, é um reativo, um contrapoder, um intensificador, um
espessante, nada mais lógico que sejam as práticas de resistência, por um lado, as mais
capazes de fazer emergir as relações de poder que nos constituem, e, por outro, as mais
capazes também de produzir modos de vida que não sejam capturáveis pelas
estratégias do “governo da punição”. São elas que podem permitir, não que o jogo
punitivo não seja jogado desta forma, mas, sobretudo, que impeça “que o jogo seja
jogado”34. Acentuará mais ainda Foucault nesta direção: “Não nos cabe dizer com que
molho queremos ser comidos; não queremos mais jogar esse jogo da penalidade; não
31 FOUCAULT, M.. “O que Chamamos Punir?”. In: Segurança, Penalidade e Prisão. Ditos e Escritos
VIII. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; tradução Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 283.
32 FOUCAULT, M.. “Michel Foucault, uma entrevista: Sexo, Poder, Política”. In: Genealogia da Ética,
Subjetividade e Sexualidade. Ditos e Escritos IX. Organização, seleção de textos e revisão técnica
Manoel Barros da Motta. Tradução Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p.
257.
33 FOUCAULT, M.. “Resposta a uma Questão”. In: Repensar a Política. Ditos e Escritos VI. Organização
e seleção de textos, Manoel Barros da Mota. Tradução Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010, p. 12.
34 FOUCAULT, M.. “A Filosofia Analítica da Política”, p. 47.
78 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
queremos mais jogar esse jogo das sanções penais; não queremos jogar esse jogo da
justiça”35.
Para uma política da criminologia, então, de maneira mais objetiva, nesta
terceira direção, interessa seguir a indicação foucaultiana de “usar as formas de
resistência contra as diferentes formas de poder como um ponto de partida”. Aqui,
torna-se fundamental a metáfora famosa antecipada que consiste em utilizar as
resistências como catalisadores químicos, “de modo a esclarecer as relações de poder,
localizar sua posição, descobrir seu ponto de aplicação e os métodos utilizados”. Não
se trata, portanto, de perquirir uma racionalidade interna do poder punitivo (nem de
qualquer outra forma de poder), mas de analisar suas relações pelos combates que
dispõe (melhor que antagonismos, seria melhor falar de “agonismo”, refere
Foucault36). Compreender as relações de poder, então, para Foucault, é “investigar as
formas de resistência e as tentativas de dissociar estas relações”. Será assim que, ao
invés de se dirigir a práticas reformistas que, na seara da punição, tem apenas o papel
de estabilizar um sistema de poder ao fim de um certo número de mudanças
estratégias (não raro apenas de efeitos simbólicos), as lutas às quais referimos
reconhecem-se perpetuamente abertas, “são anárquicas” 37 , para repetir Foucault.
Lutas imediatas, que não possuem uma morfologia estrita (ou programa determinado,
que nada tem a ver com desorganização, ausência de reflexão verdadeira sobre o que
acontece ou ainda uma falta de preocupação dirigida ao impossível 38) e que não se
comprazem com um futuro de libertação revolucionário, ou um momento, no nosso
caso, de abolição do sistema penal, porque já são, desde sempre, a demonstração
Idem.
FOUCAULT, M.. “O Sujeito e o Poder”. In: DREYFUS, H. L.. Michel Foucault, uma trajetória
filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 245.
37 FOUCAULT, M.. “A Filosofia Analítica da Política”, p. 50.
38 Não ter programa para Foucault, como refere ao falar das realizações dos movimentos políticos dos
anos sessenta e setenta, pode ser algo muito útil, original e criativo. Estas práticas da ausência de
programa como prática organizada são extremamente frutíferas exatamente por se calcarem
pontualmente no jogo estratégico da atualidade e estarem animadas por uma coragem de verdade.
Fugir ao confisco do processo de criação da política pelos programas políticos confirma a virtude que
deve ser preservada a todo instante, noutros termos, a existência de formas de inovação, criação e
experimentação políticas fora dos partidos políticos que comprovam a transformação real em nossas
vidas: “Esses movimentos sociais transformaram realmente nossas vidas, nossa mentalidade e nossas
atitudes, assim como as atitudes e a mentalidade de outras pessoas – pessoas que não pertencem a esses
movimentos. (...) Eu o repito, não são as velhas organizações políticas tradicionais e normais que
permitiram este exame” (FOUCAULT, M.. “Michel Foucault, uma entrevista: Sexo, Poder, Política”, p.
263).
35
36
Augusto Jobim do Amaral | 79
permanentemente renovada de outros modos de vida que não se cansam de
desestabilizar o poder punitivo e inventar outras formas possíveis de relação de poder.
Movimentos de luta perpétua e imediata contra a tecnologia punitiva, dizíamos,
cujo objetivo não se trata propriamente de atacar “tal ou tal instituição de poder ou
grupo ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder”39. Será através
da analítica de suas práticas que se entenderá profundamente como o exercício do
poder punitivo se dá e como se podem produzir novas estratégias para subvertê-lo.
Tais fenômenos difusos e descentrados, efeito destes movimentos autônomos, não
visam apenas ao poder político nem econômico necessariamente, como dirá Foucault
sobre o movimento feminista
40
. Este tipo de resistência está essencialmente
preocupada com os próprios fatos de poder, ou seja, a questão “é o fato de que um certo
poder seja exercido, e que o simples fato de ele ser exercido seja insuportável”41.
Resistências ao governo da punição: eis a questão...
Insistamos um pouco melhor neste entendimento. Se não há relação de poder
sem resistência, sem “inversão eventual”, toda relação implica uma estratégia de
confronto. E para que constitua um ponto de inversão possível ela não pode perder sua
especificidade e finalmente se confundir com a própria relação de poder,
estabilizando-a em domínio. Uma estratégia contra o poder punitivo, para sermos
mais simples, não pode, querendo subvertê-lo, atuar com a mesma tática – por
exemplo, algum efeito simbólico buscado através dele – que o revigora ou o reconduz.
Não pode constituir como finalidade um mecanismo de estabilização da relação, ou
seja, uma réplica da própria ação 42 . Portanto, se, ademais, o funcionamento das
relações de poder não é uma exclusividade do uso da violência, pois o exercício do
poder “incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais
ou menos provável” um modo de agir – “uma ação sobre ações”, dirá precisamente
Foucault 43 – sempre haverá margem de liberdade possível para práticas que
subvertam certas formas de poder que, como o poder punitivo, pretendam “conduzir
FOUCAULT, M.. “O Sujeito e o Poder”, p. 235.
FOUCAULT, M.. “A Filosofia Analítica da Política”, p. 48.
41 FOUCAULT, M.. “A Filosofia Analítica da Política”, p. 49.
42 FOUCAULT, M.. “O Sujeito e o Poder”, p. 248.
43 FOUCAULT, M.. “O Sujeito e o Poder”, p. 243.
39
40
80 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
e dirigir os homens ao longo de toda sua vida (...), um poder que consiste em querer
controlar a vida dos homens (...) para lhe impor uma certa maneira de se comportar” 44.
Em síntese, de modo mais organizado, a potência insurgente
45
destes
movimentos antiautoritários encontra-se, sobretudo, nos dizeres de Foucault, por
serem: a) lutas “transversais” que transbordam os limites de um país, pois não são
confinadas a uma forma de política ou econômica particular; b) lutas anárquicas
“imediatas”, porque objetivam um inimigo imediato, criticam as instâncias de poder
que lhes são mais próximas e, ainda, não esperam uma solução para seus problemas
no futuro (uma ordem revolucionária); c) lutas que questionam o estatuto do
indivíduo, quer dizer, “quem somos nós” e são contra o “governo da individualização”,
ou seja, contra as técnicas de poder pastoral que nos assujeitam 46.
Movimentos que ensinam, de modo plural, a viver o tempo de modo diferente47,
promovendo uma espécie de sublevação contínua. Uma “arte de viver” afirmativa, que
constantemente encontra-se em movimentos feministas, ecologistas, de povos
originários, lgbtq+ etc. e que não se funda em qualquer essencialismo. Como escreve
Foucault, ao produzir novas formas de vida “antipastorais” 48, não se afirmam como
identidade, mas como “força criadora”49. Identidade, a nosso ver, contrariamente aos
usos hegemônicos que dela se pode fazer dentro da questão criminal – em especial
suas maneiras de impulsionar demandas de criminalização –, neste diapasão, ela não
deve passar de mero instrumento para a demonstração dos circuitos de violências
atinentes ao poder punitivo, não um combustível, como dissemos, que replique suas
ações. Se o poder punitivo se cristalizou em instituições e possui fortalezas muito
difíceis de derrubar (a identidade será útil, por exemplo, para identificar como se
exercem seus jogos diferenciais das ilegalidades, como se dão suas práticas desiguais,
misóginas e racistas), a situação estratégica que dispõe qualquer relação de poder
sempre possibilita mudança e transformação. Enfim, há sempre possibilidade de
FOUCAULT, M.. “A Filosofia Analítica da Política”, p. 52.
FOUCAULT, M.. “É Inútil Revoltar-se?”. In: Ética, Sexualidade, Política, pp.77-81. Cf. ainda
FOUCAULT, M.. O Enigma da Revolta. Entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. Posfácio de
Christian Laval. Tradução, organização e apresentação Lorena Balbino. São Paulo: n-1 edições, 2018.
46 FOUCAULT, M.. “O Sujeito e o Poder”, pp. 234-5.
47 FOUCAULT, M.. “Viver de Outra Maneira o Tempo”. In: Genealogia da Ética, Subjetividade e
Sexualidade. Ditos e Escritos IX. Organização, seleção de textos e revisão técnica Manoel Barros da
Motta. Tradução Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 110.
48 Cf. FOUCAULT, M.. Omnes et Singulatim [Para uma crítica da razão política]. Tradução de Selvino
J. Assmann. Revisão Camilo Prado. Desterro: Edições Nephelibata, 2006.
49 FOUCAULT, M.. “Michel Foucault, uma entrevista: Sexo, Poder, Política”, p. 252.
44
45
Augusto Jobim do Amaral | 81
produção de experiências que trazem o instante, a fratura, o dilaceramento, a
interrupção das lógicas da punição50.
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Para além de qualquer suspeita, uma bela e rigorosa expressão de uma política da criminologia pode
ser encontrada neste esforço singular que é a espetacular tese dos chamados “feminismos
criminológicos” proposta por Fernanda Martins. Ali a autora indica, em resumo, a subversão dos modos
de pensamento punitivos, presente principalmente nas “criminologias feministas”, investindo nas
estratégias plurais de resistência através dos estudos de gênero e das experiências práticas oriundas das
vulnerabilidades políticas em aliança de manifestações autônomas em várias partes do mundo. Ver:
MARTINS, F. Feminismos Criminológicos: heterot[r]opias da abolição. Tese apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS para a obtenção do título de Doutora em Ciências
Criminais. Porto Alegre, 2019.
50
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Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense
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Vera Lucia Avellar Ribeiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, pp.
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FOUCAULT, M. “Mesa-redonda em 20 de Maio de 1978”. In: Estratégia, poder-saber.
Ditos e Escritos IV. Organização e seleção de textos, Manoel Barros da Mota. Tradução
Vera Lucia Avellar Ribeiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, pp.
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5. SELF-DEVELOPMENT AND SOCIAL JUSTICE1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-5
Catherine Audard2
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Abstract
Left-liberalism is confronted with the apparently insurmountable task of reconciling
individual rights and freedoms with the demands of social justice. In this paper, I will
argue that both the cases for social justice and for liberal individualism would be
strengthened with a better conception of the Self and of her needs as a developing
being. Whereas classical economics has its starting point in the Self as a given being
and tends to take “men’s propensities and inclinations as given, whatever they are and
then seek the best way to fulfil them” (John Rawls, A Theory of Justice §6, p.27), it
would be important to understand the human individual as a self-developing being
that nevertheless relies on her relationships to others to fulfil its potential. This is why
the ‘container-like’ view of the Self that is shared by both utilitarianism and
libertarianism should be rejected as it treats individuals as given things, not as
developing persons, making it impossible to make sense of the demands of justice.
Instead, I will argue, solidarity and social justice should be understood as necessary
conditions of human self-development. However this all depends on a proper
understanding of self-development for which a detour through Kant’s transcendental
argument will be necessary.
The ‘container-like’ conception of the Self: a liberal view?
One major difficulty any left-liberal or social liberal is faced with is the conflict
between individual rights and freedom and the demands of social justice. If liberal
individualism is understood, following MacPherson famous expression, as “possessive
1 This
paper is based on a lecture I gave at the University of Luxembourg, 5 December 2011 and on
another I gave at the Strasbourg Conference 9 October 2014.
2 Philosophy Department London School of Economics
86 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
individualism”, absolute property rights strongly oppose any form of redistribution. 3
Both libertarianism and utilitarianism share this vision of the individual as a
“container” that is defined quantitatively as the result of an accumulative process of
as many possessions and resources as possible, even at the expense of the similar rights
and demands of others.
Hobbes’s vision of human life in the state of nature as “solitary, poor, nasty,
brutish and short” is typical of this territorial view of the Self. This is the result of his
quantitative Galilean method that dissolves political society into its basic components:
individual human beings and the mechanical forces that animate them: passions,
appetites and desires. Human beings are understood as elementary particles or atoms,
the interaction among which results in society. As in any mechanical apparatus, they
are motivated by one unique force or “power”, the desire to live and the fear of death,
and one unique principle, “the right of nature or the liberty to use his own power as he
wills himself for the preservation of his own nature” and property or “his natural right
to everything; even to one another’s body”.4 Acquisitive appetites cannot be restrained
without alienating this initial natural liberty, which is Hobbes’s version of the liberal
ideal of individual sovereignty. The peaceful coordination of individual passions and
interests is thus impossible in the absence of an absolute superior authority or
sovereign: the Leviathan.
Classical liberalism’s answer to Hobbes claims to reconcile the sovereignty of
the individual with social peace and cooperation. Individuals are not motivated by one
single force, the fear of death and the will to dominate, but by a plurality of conflicting
desires and motives, compensating and neutralizing each other. For instance, David
Hume observes that, in reality, individuals are not totally amoral, but are motivated by
limited egoism and limited altruism as shown in their natural sympathy for their fellow
human beings’ pains or pleasures. Self-love and self-interest are not necessarily the
enemies of society but as famously expressed by Adam Smith, the search for profit can
be the basis of useful social enterprises, as shown by the rise of capitalism in the
eighteenth century. Destructive passions such as greed and the thirst for domination
and power can be compensated by positive passions; and, according to Montesquieu,
3 C. B. Macpherson The Political Theory of Possessive Individualism, Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962. See also Richard Tawney (1880-1962), The Acquisitive Society (1921). For a
critique of MacPherson, see James Tully, Locke in Context, Cambridge University Press, 1993, ch. 2.
4 T. Hobbes, Leviathan (1668), chapter 14.
Catherine Audard | 87
the “doux commerce” will pacify human nature. Economic growth and prosperity will
create the bonds that absolute authority, be it that of the Church or the State can no
longer guarantee.
However, for Bentham, the diverse passions and interests as well as Hobbes’s
acquisitive appetites are only facets of one fundamental force: the greatest happiness
principle. Cooperation among possessive individuals is not impossible but contrary to
Montesquieu and the liberal illusion, it is far from natural or spontaneous. It is the
result of artifices or “sanctions” as Bentham calls them that constrain asocial passions
and maximise public happiness, thanks to the “interest-and-duty junction principle”.
Bentham is possibly not a classical liberal in the sense that he appeals to sanctions and
coercions, the State having a part to play in implementing these sanctions, but he is
still a liberal in the sense that he sees social cooperation as the com-possibility of
individual liberties, based on the common psychological and moral bond provided by
the utility principle.
Still, liberals limit themselves to justifying the possibility of social cooperation
among “possessive” and selfish individuals on the basis of “l’intérêt bien entendu”. 5
Social justice is not mentioned, as it would impose unacceptable demands on the
individual search for happiness and fulfilment. But what if individuals could not satisfy
themselves and their appetites without contributions from others, connected through
an invisible but powerful social network of past generations as well as contemporaries?
What if social cooperation needed “justice as reciprocity”? 6 For Rawls, for instance,
lasting cooperation needs an agreement on a political conception of justice because all
who are engaged and do their part in cooperation expect a fair return for their
contribution that, in turn, should be assessed against an agreed and shared
benchmark. Without justice, cooperation collapses as neither the fear of the Leviathan
nor the passions and the interests or the happiness principle are enough to bind
together free individuals each with their own conflicting interests. It is of the utmost
importance, then, to be able to derive social justice from individual interests as Rawls
endeavours to do in his Theory of Justice.
A.de Tocqueville, Democracy in America (1840), II, II, viii.
J. Rawls, Political Liberalism, Columbia University Press, 1993 and 1996, p. 16 : « Fair terms of
cooperation specify an idea of reciprocity… and a conception of political justice ».
5
6
88 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
The Self as a developing being
I would like to suggest that the answer to the liberal predicament can be found
in a conception of the Self as a developing being, opposed to the atomistic Cartesian
conception of the Self as a ‘container’.7 This would provide an argument against the
reduction of individualism to egoism. As Tocqueville famously says, “Whereas our
ancestors spoke of egoism, we now speak of individualism”.8
Rawls on ‘plans of life’ and ‘ self-realization’
One distinctive feature of Rawls’s analysis of rationality and “thin theory of the
good” is that it uses a developmental view of the Self, referring to plans of life, not to
instant satisfaction. 9 “A person’s good is determined by what is for him the most
rational long-term plan of life given reasonably favourable circumstances”. This is
what makes her a unified moral person and “ a person may be regarded as a human
life lived according to a plan”, not simply as a thing.10 I will come back to the moral
dimension later.
Three ideas are of note here. To be rational is, first, to be able to plan and to
schedule activities and resources for the long term, envisaging the consequences of so
doing: a temporal horizon is a necessary condition for rationality. Instead, to take
“men’s propensities and inclinations as given, whatever they are and then seek the best
way to fulfil them” is a mistake concerning the very nature of rationality. 11 Second, to
be rational is to be capable of using the means necessary to promote one’s ends and
thus, to project oneself in the future within a temporal horizon. “Rational individuals,
whatever else they want, desire certain things as prerequisites for carrying out their
plans of life”. 12 Taking interests as given without any consideration for the ends
pursued is also a mistake in that second sense. Thirdly and as a consequence, a degree
of freedom to choose and rank satisfactions is necessary for rationality. To ignore that
For a critique of self-interest maximization, see A. Sen, Rationality and Freedom, Harvard University
Press, 2002, and ‘Rational Fools’, Philosophy and Public Affairs, vol.11, p.317-44.1977.
8 A. de Tocqueville, Democracy in America (1840), II, II, ii.
9 On plans of life, see J. Rawls, A Theory of Justice (TJ afterwards), Harvard University Press, 1971 and
1999, §15 and §§63-65.
10 Ibid. §15, p.79, (my emphasis), §60 and §63, p. 358.
11 Ibid. §6, p.27.
12 Ibid. §60, p. 348.
7
Catherine Audard | 89
is another mistake leading to the familiar dilemmas of interpersonal comparisons of
welfare. Defining the good in developmental terms or plans of life allows interpersonal
comparisons not of satisfaction - which is impossible -, but of the means to promote
satisfaction. What is compared are not subjective states of mind or satisfactions, but
“things which it is assumed they all normally need to carry out their plans”. 13 A
conception of the Self as a developing being, capable of choosing, planning and
adapting resources for its own ends is implied here.
This conception is reinforced when Rawls analyses the temporal sequence in
which our activities are carried out and the role of deliberative rationality to organize
properly this sequence of activities.
14
For long-term plans, the principle of
inclusiveness is added to the familiar principles of rational choice: “Human beings
have a higher-order interest to follow the principle of inclusiveness”. This means that
“the more inclusive plan is to be preferred… rationality means preferring, other things
equal, the greater means for realizing our aims and the development of wider and more
varied interests”. This is where Rawls introduces the notion of self-development as
self-realization: “human beings enjoy the exercise of their realized capacities (their
innate or trained abilities), and this enjoyment increases the more the capacity is
realized or the greater the complexity”. 15 This leads to rejecting the view that our
interests are fixed. As a consequence, the principles of rational choice, in particular
that of maximization, are not sufficient for ranking our plans of life. Instead, Rawls
moves towards a fuller description of rationality in the face of long-term decisions. The
principle of responsibility to self is derived naturally from the idea of a plan of life: “a
rational individual is always to act so that he need never blame himself no matter how
his plans finally work out”. “Acting with deliberative rationality, we are responsible to
ourselves as one person over time… for our future self and the interests of others…The
principle of responsibility to self resembles a principle of right”. 16
From the idea of long-term planning, Rawls now moves to the idea of a
developing Self, striving to implement its plans and getting pleasure from their
realization. As he puts it, according to the Aristotelian principle, 17 “human beings
Ibid. p. 81.
J. Rawls, TJ §63, p. 360 and §64.
15 J. Rawls, TJ §65, p. 364-5 and 374.
16 J. Rawls, TJ §65, p. 371 (my emphasis).
17 J. Rawls, TJ §65, p. 374, n.20, p. 376, and p. 387.
13
14
90 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
enjoy the exercise of their realized capacities (their innate or trained abilities)... and
are led to expect even greater satisfaction once we acquire a greater repertoire of
skills”. The more complex activities give even more pleasure over time. A companion
principle is that “as we witness the exercise of well-trained abilities by others, these
displays arouse a desire that we should be able to do the same things ourselves”. This
explains the social interdependency of rational plans of life, which are good if “they
are likely to enhance the good of others” and if “others confirm and take pleasure in
what we do”. Our nature as self-developing beings and the type of satisfaction we gain
from that development are dependent on others’ validation and reciprocity and on fair
and just social conditions. My conclusion, at this stage, is not that Rawls has a fully
developed notion of the Self, but that the shift to a long-term conception of our ends
combined with the Aristotelian principle yields a better understanding of the
connection between self-development and social justice.
Sen on capabilities
Amartya Sen’s critique of rational choice theory is another source of inspiration
for a similar understanding of the Self as a developing being. In Rationality and
Freedom as in The Idea of Justice, he rejects the “extremely limited understanding of
reason and rationality” in favour of a distinction between “having reasons to choose
something” and a capacity to project ends in a temporal horizon, and “what would be
rational for us to choose” at a certain point in time. The main point here is the ability
to sustain the choice after scrutiny, that is, the time-relevant conception of rationality.
But it is mostly in Sen’s interpretation of freedom as a component of human wellbeing
that we find the link with self-development. “The process of choice itself is significant”
and “individual advantage is judged in terms of the person’s capability to do things she
has reason to value”. “The capability approach focuses on human life, and not just on
some detached objects of conveniences, such as incomes or commodities that a person
may possess”.18 Like Rawls and against resource-based or utility-based conceptions of
the good, Sen is looking for a freedom-based approach, a way of understanding social
justice in terms of the treatment of persons, not solely the distribution of goods. The
developmental conception of persons is the answer to this concern for justice, which is
18
A. Sen, The Idea of Justice, The Idea of Justice, London, Allen Lane, 2009, p. 231 and 233.
Catherine Audard | 91
perfectly expressed by Elizabeth Anderson, justice should be considered “as a
relationship among people rather than merely as a pattern in the distribution of
divisible goods… injustices may be better remedied by changing social norms and the
structure of public goods than by redistributing resources”.19
Mill, Humboldt and Marx on self-development
In their critique of the ‘container-like’ view of the Self, Rawls and Sen each in
their different ways refer to an older tradition, which emerged with Humboldt, Mill,
and also Karl Marx in the middle of the 19th Century: the turn from an atomistic view
of the Self to a developmental and historical one. It finds its fullest expression in John
Stuart Mill’s conception of “the free development of individuality as one of the leading
essentials of well-being” and as “the chief ingredient of individual and social progress”
(On Liberty, 1859). It is also present, of course, in the young Marx’s 1844 Manuscripts
and in his German Ideology (1845-6) where it appears as a collective as well as a
personal task in a way that is still deeply influential.
John Stuart Mill is responsible for initiating this new view and transforming the
liberal understanding of the individual. One is not born an individual, one becomes
one. “Become what you are” said Goethe’s Faust. Quoting Humboldt as one of his main
sources with Coleridge, Mill summarizes his ambitions at the start of On Liberty
(1859)20: “The grand leading principle towards which each argument unfolded in these
pages directly converges, is the absolute and essential importance of human
development in its richest diversity”. In the famous Chapter III he claims that “the end
of man is the highest and most harmonious development of his powers to a complete
and consistent whole… therefore the object towards which every human being must
ceaselessly direct his efforts is the individuality of power and development”. There are
at least four important benefits to be drawn from this understanding of the Self as a
progressive being.
First, individuality needs freedom and equal rights for all, as individuals can
only flourish through personal free choices and deliberative rationality. « Though our
character is formed by circumstances, our own desires can do much to shape those
Elizabeth Anderson, ‘What is the Point of Equality?’ Ethics 109/2, January 1999, p. 336.
J.S. Mill, On Liberty, J. Gray and G.W. Smith (eds), London, Routledge, 1991), p.21. See also Essay
on Bentham and Essay on Coleridge.
19
20
92 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
circumstances… We have real power over the formation of our own character”. 21 That
process of individuation is most likely to be successful if we are allowed to make our
own choices and to develop capacities, which would have been left dormant if society
or public opinion were our only source of direction. “The human faculties of
perception, judgment, discriminative feeling, mental activity, and even moral
preference, are exercised only in making a choice… The mental and moral, like the
muscular powers, are improved only by being used… He who chooses his plan for
himself employs all his faculties”.22
Secondly, in order to develop their potentialities, each individual necessarily
relies on the cooperation of the others over time. “Experiments in living” as Mill says,
and an exposure to a variety of contexts, cultures, experiences and values that
individuals on their own could not access are hugely beneficial to this process. Against
classical liberalism, Mill stresses the social dimensions of self-development. Society is
instrumental for personal self-development in as much as it provides individuals with
necessary public goods: education, health, employment, housing, security and safety,
etc. But it is also constitutive as it provides us with new ends and values, directions
and models, which we could not discover on our own or within our own culture. What
is distinctive and new in Mill’s view is that this is not simply an instrumental relation,
but a constitutive one and the reason why individual development cannot be separated
from social development. For both the young Marx and John Stuart Mill, selfdevelopment, the fulfilment of individual aspirations and potentialities, was
impossible without social development and, in turns, contributes to it. The Solidarist
movement in France and the ‘new’ liberalism in Britain are good examples of how to
combine respect for individual development and social solidarity. 23 Individuals can
only develop their potential and ‘become themselves’ if they meet favourable social
conditions and opportunities in education, family structures, housing, health, etc. but
if they also are confronted with values and ends transmitted through cultural
institutions, universities, courts, etc. The role of the State is to provide these essential
public goods without which individuals cannot flourish. Social liberalism is based on
such an assumption.
J.S. Mill, Autobiography (1873) ed. J.M. Robson, Penguin, 1989, p. 135, and Logic, Book VI.
J.S. Mill, On Liberty (1859), eds. J. Gray and G.W. Smith, Routledge, 1991, Chapter 3, p. 74-75.
23 On ‘Solidarism’ and ‘New Liberalism’, see J. T. Kloppenberg, Uncertain Victory, Oxford University
Press, 1986.
21
22
Catherine Audard | 93
Thirdly, social and intellectual progress is the expected result of freedom to
develop and individual creativity. Freedom as absence of arbitrary interference will
open up new directions and new interests that will benefit all and nurture rationality
through discussion and comparisons, as Mill explains in Chapter 2. “We can never be
sure,” he wrote, “that the opinion we are endeavouring to stifle is a false opinion, and
if we were sure, stifling it would be an evil still”.24 Only through free debate can such
critical skills be developed and maintained. Our self-development as reasonable
persons, capable of critically assessing our beliefs and actions depends on it. And if our
beliefs and actions emerge intact from the critical assessment such debate involves, if
they survive the struggle in the “marketplace of ideas”, then, and only then, will one be
entitled to accept them as justified. Even so, though this is the best guarantee that there
is sufficient reason to justify accepting a belief as true or an action as right, fallibility
means, of course, that the debate must be ongoing.
Finally, freedom to develop is an essential constituent of happiness. Mill is thus
able to reformulate the classical utilitarian definition: « I regard utility as the ultimate
appeal on all ethical questions; but it must be utility in the largest sense, grounded on
the permanent interests of man as a progressive being”.25 This should be understood
in the context of his indirect utilitarianism: « I never, indeed, wavered in the conviction
that happiness is the test of all rules of conduct, and the end of life. But I now thought
that this end was only to be attained by not making it the direct end ».26 Individuality,
in other words, becomes with Mill one of the main ingredients of human happiness,
individually and collectively and it is for that reason that it should be cultivated. As
John Skorupski writes, “the liberal ideal of self-culture is perfectly compatible with the
greatest happiness principle as only the fullest self-development of one’s potential
gives access to the highest forms of human happiness. Rawls called this the Aristotelian
Principle”.27
Three interpretations of self-development
So far, we have avoided a central question, which is: why should selfJ.S. Mill, On Liberty op.cit., Chapter 2, p. 37.
J.S. Mill, On Liberty, op.cit. Chapter 1, p. 31 (my emphasis)
26 J.S. Mill, Autobiography op.cit., p. 117
27 J. Skorupski, Why Read Mill Today? Routledge, 2006, p. 27
24
25
94 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
development be a good thing? What about the ‘free’ development of criminal antisocial impulses? What about the selfishness of self-development? Is self-development
a good thing in itself, or only with respect to external values: social progress, general
utility, or human excellence? How should we argue for the morality of selfdevelopment? How do we guarantee the fit between individual development and the
principles of justice?
It all depends on our understanding of the idea of self-development. Is it a
purely natural process, developing innate capacities without external interventions?
In that case, the weight of the ‘social debt’ seems minimal and the role of social justice
limited. Is it a purely adaptive process to external social conditions, for instance the
conditions of the labour market, without any room for personal choice? It is not a
surprise if self-development in that case has limited selfish aims, developing only
sellable skills at the expense of personal fulfilment, especially in a competitive context.
Finally, is self-development a creative process, where personal choices and
responsibility overrule social input and external contributions? The ‘social debt’ can
be legitimately ignored in that case and the individual can see herself as the mistress
of her own destiny, ignoring the demands of social justice. As we can see, the main
problem is that of assessing the share of the social input in the process itself, both in
the aims and means of personal development. This is indeed a very difficult question
and there is no way an exact balance sheet of the cost/benefits for society and for
individuals can be provided. Instead of providing a calculus, we can only expect the
developmental outlook to support a growing awareness of individual achievements as
a joint-result, of success as a social product and of social justice as an essential
condition for it.
First, we have to deconstruct the productivist model of self-development as a
simply adaptive process. In that case, the Self’s talents, abilities and qualities and their
development are valued uniquely for their utility, their results both for society and the
individual, as means to an end, as potential ‘goods’ in order to achieve certain aims, in
the way a tool is shaped to produce certain results. The aims are given independently
from any long-term project or plan of life; the talents are only valued as goods or
resources and self-development is shaped according to external aims and demands.
This obviously does not represent an improvement on the ‘container-like’ view of the
Self, which remains passive in the process. The ‘productivist’ model does not treat
Catherine Audard | 95
individual potentialities as part of a personal or a collective project. It represents selfdevelopment as detached from the individual’s own aims, from the deliberative
rationality necessary for ranking ends and means, without a true self-projection in
time. It is right then to talk of a de-humanizing effect, of ‘reification’: human beings
and their capacities are seen as means without ends. Unfortunately, this is the most
common understanding of self-development, for example, in education or training
where talents are simply selected and developed according to specific given managerial
or economic aims and needs.
At the other end of the spectrum, we should equally reject the illusions of the
Romantic’s claims that ‘authentic’ or ‘true’ self-development is a creation similar to the
creative process that produces a work of art. This is a model of self-development,
which is pregnant in the young Marx as well as in Humboldt and Mill. Innovation,
originality and singularity are the main values, signalling the ability of the Self to free
itself from external conventions and pressures. This can lead to ignoring the role
played by the ‘good’ of justice for individuals and the importance of the ‘social debt’, of
the underlying immanent interdependency between members of society. As well as
being an unachievable goal, except for a minority, the Romantic vision implies that
only the ‘hyperself’, the superior being, is capable of creating herself without any
outside help. In Nietzschean terms, to shape oneself freely like a work of art, ignoring
the pressures of reality and of material constraints, the demands of society and of
moral norms, to be the creator of one’s own means of development as well as one’s
aims, is claimed to be the ‘true’ meaning of freedom. In contrast a majority of subhuman beings remain the mere recipients of means for survival. Self-affirmation is the
privilege of the strong against the herd. This is an ideal that cannot be realised unless
the needs and rights of others are trampled upon. If it is understood in this sense, it
does not make space for social responsibility and the role played by others in one’s own
achievements. It is a-moral and a-political in a dangerous way.
Finally, there is the ‘naturalistic’ model of self-development understood as a
‘natural’ and spontaneous process. The question is how autonomous this is. Some will
insist that self-development is a process that should not be interfered with. The Self is
defined as possessing both actual and potential properties. These potential properties
are innate and apparently dormant, but develop according to a natural process that is,
as Mill puts it, comparable to “the growth of a tree”:
96 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Human nature is not a machine to be built after a model, and set to do exactly the
work prescribed for it, but a tree, which requires to grow and develop itself on all
sides, according to the tendency of the inward forces which make it a living thing
(Mill, On Liberty, Chapter 3, p. 75).
Unfortunately, the metaphor is ambiguous. If the process demands only
minimal interference, it is not a good description of human development. For instance,
if abilities and talents are seen as naturally or genetically distributed among human
beings, then, the resulting inequalities will be seen as justified as in the case of ‘natural
liberty’ (Rawls, TJ §12, p. 57) and only an authoritarian arbitrary power would be able
to redress the natural distribution. This is why the privileged always claim to have been
successful on their own merits: talents, character, courage, etc., whereas social justice
is a necessary support for the less privileged. However, if the metaphor is that of a
natural process, which human interventions can support and enhance in yielding
better results, then, we should understand self-development according to the
ecological model, a result of the collaborative efforts of mankind and nature. Let us
conclude with Rawls that
It is important not to confuse the idea of social union with the high value put upon
human diversity and individuality as found in Mill’s On Liberty…and in German
Romanticism… or with the conception of the good as the harmonious fulfillment
of natural powers by (complete) individuals; nor, finally, with gifted individuals,
artists, and statesmen, and so on, achieving this for the rest of mankind (John
Rawls, A Theory of Justice, §79, p. 460, note 4).
If we want self-development to be relevant for social justice in the sense
suggested by Mill, Rawls and Sen, we need to embed its morality into its meaning
without any ambiguity. This is what I will now try to show with the help of Kant’s
transcendental argument.
The Kantian argument
Here we need a detour through Kant’s Critique of Pure Reason, to overcome the
conceptual confusions between self-development and mere change, creation or
adaptation.
The Self as a developing being appears to us in a paradoxical form, both the
same and different. This leads to the Non-Identity problem: how can we say that the
Catherine Audard | 97
self-developing individual remains the same person? We are witnessing the changes,
the results, but, as we have seen, we cannot properly assess the intervening external or
internal factors. This is essential for matters of social justice where we need to make
sure that people claiming justice are the same as those who have suffered injustices, in
spite of the role of all these intervening factors, personal responsibility, chance,
contingencies of birth, social environment, etc. If what is allocated modifies identity,
the recipient cannot say that he would have been better or worse off under a different
distribution. However, following Kant, I suggest that we can overcome this paradox in
the following way. The individual as a phenomenon is an empirical entity, conditioned
by space and time: it is constantly changing. But it is also aware of these changes, and
free from these spatio-temporal conditions, free to move backwards and forwards
instead of being fixed at a certain point in space and time. It can then be described as
a noumenon, a mental entity. If the Self is represented as both in time and space and
outside, we can solve the Non-Identity problem, which stems from an instantaneous
point of view on the Self. This is Kant’s Transcendental Argument.
I would insist that, contrary to many interpretations, Kant is not saying that we
have a dual ontological nature, which would be nonsense, a metaphysical claim
condemned to contradiction. He is only saying that the Self can be correctly described
from this dual standpoint, as both empirical and noumenal. As a result, we can
understand how the Self can develop, remaining the same while changing because it
can synthetize and make sense of external inputs and internal changes into a
continuous development. We should note here that self-development has no
perfectionist connotation, only that changes can be organized into a meaningful and
goal-directed series of events, instead of a set of chaotic experiences, what David Hume
called “a bundle of perceptions”. When Kant writes that “it must be possible for the ‘I
think’ to accompany all my representations”, he only underlines a truism, that
“otherwise something would be represented to me which could not be thought at all”.28
This is not an ontological claim as there is no possibility of knowing the ‘I think’, but
an epistemological claim, as the ‘I think’ is the presupposition, or as Kant says, “the
original apperception” which is presupposed by any representation but cannot itself
“be accompanied by any further representation” (p. 153). This is why the unity of selfconsciousness, or self-identity through time, is “transcendental”: it is a condition of
28
I. Kant, Critique of Pure Reason (1787), tr. Kemp-Smith, Macmillan, 1990, p. 152-153.
98 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
possibility for any representation through space and time, which cannot itself be
represented or intuited. The emphasis in Kant is on something, which is essential for
Mill and for Rawls: the capacity to synthetize the various experiences through time
into a meaningful goal-directed whole, ‘my’ experiences. Contrary to the ‘containerlike’ view of the Self, Kant saw human beings as capable of self-development not simply
as living beings, but as end-setting beings, setting themselves goals and orientations
through time. “The analytic unity of apperception is possible only under the
presupposition of a certain synthetic unity”.29 If we now turn to practical reason and
morality, we can say with Kant that what makes us “persons or ends in themselves”,
and not solely means, is the capacity to set ourselves ends and aims, to construct
plans of life. Such an analysis should allow for a better sense of what self-development
really means, as the American philosopher Christine Korsgaard shows:
So, Kant asserts, the unconditionally valuable thing must be “humanity” or “rational
nature”, which he defines as the capacity to set an end... We must regard ourselves as
capable of conferring value upon the objects of our choice, the ends that we set,
because we must regard our ends as good. But since “every other rational being thinks
of his existence by the same rational ground which holds also for myself”, we must
regard others as capable of conferring value by reason of their rational choices and so
also as ends in themselves. Treating another as an end in itself thus involves making
that person’s ends as far as possible your own… For this reason, it is our duty to
promote the happiness of others – the ends they choose… The goodness of rationally
chosen ends is a matter of the demands of practical reason rather than a matter of
ontology (Christine M. Korsgaard, Creating the Kingdom of Ends, Cambridge
University Press, 1996, p. 260-261).
Self-development as a social process
Let us summarize that far from being an autonomous natural process or an
individual creation or a mere adaptation to the context, self-development is a social
process in the sense that as developing beings, we stand together with each other, we
need each other, even if we are not fully aware of it. This is what Durkheim and
Bourgeois called the ‘fact of solidarity’ 30. Self-development is a social process, not in
the sense that it is fully conditioned by external socio-economic factors, but that it
needs external as well as individual inputs. This is why Rawls uses the expression
Ibid. p. 154.
On Léon Bourgeois’ ‘solidarism’, see J. T. Kloppenberg, Uncertain Victory, Oxford, 1986, and on
Emile Durkheim’s ‘organic solidarity’, see S. Lukes, Emile Durkheim, London, 1973.
29
30
Catherine Audard | 99
‘social union’ to describe the social structure that is at work in the development of the
Self and its capacities, to distance himself from any social determinism as well as from
the illusions of the purely individualistic view of society as ‘private society’.
We need one another as partners in ways of life that are engaged in for their own
sake and the successes and enjoyments of others are necessary for and
complementary to our own good… Rational plans of life normally provide for the
development of at least some of a person’s powers. The Aristotelian Principle
points in this direction. Yet one basic characteristic of human beings is that no one
person can do everything that he might do…
Thus we may say following Humboldt that it is through social union founded upon
the needs and potentialities of its members that each person can participate in the
total sum of the realized natural assets of the others. We are led to the notion of
the community of humankind” (John Rawls, A Theory of Justice, §79, p. 458-459)
“Persons need one another since it is only in active cooperation that one’s powers
reach fruition. Only in a social union is an individual complete (Ibid. note 4, p.
460).
My first conclusion is then that the conception of the Self as a developing being
and of this process as a social process defeats selfishness and opens the way for a
different view of liberal individualism that is compatible with, and even needs social
justice. However, at this stage, we have only a general framework, not a specific one.
In order for desires to be desires of the Self, whatever that is, and not for the Self, we
need other factors such as education, social and political emotions, etc. The capacity
to anticipate others’ needs and desires is a necessary, but not a sufficient condition.
We must have a higher-order desire for social institutions that will include others’
needs and choices in our reasoning. This desire is itself fashioned by education and a
conception of justice in a circular way. As Rawls famously said, “those who can give
justice are owed justice” (TJ §77, p. 446). It would be an illusion to believe that selfdevelopment includes an immanent sense of justice whereas the latter is dependent on
the interplay between institutions and personal choices.
The second conclusion is that social justice itself should be understood
differently in view of this reinterpretation of the Self as a progressive and developing
being. In particular, the demand for freedom and responsibility for one’s own ends
should come to the forefront of social justice, avoiding as much as possible the “undue
reliance on assistance”. 31 Such a view has important consequences for the Welfare
J.S. Mill, Principles of Political Economy, 1848, V, XI, §13 : “The problem to be solved is therefore
one of peculiar subtlety as well as importance; how to give the greatest amount of needful help, with the
smallest encouragement to undue reliance on it”.
31
100 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
State and leads Rawls to a critique of its emphasis on assistance rather than on fighting
the causes of inequality. Only a concerted effort of redistribution of “the ownership of
wealth and capital” can overcome natural as well as social inequalities and give reality
to equality of opportunities and its fair value.32 Following James Meade,33 Rawls is
thus in favour of a “property-owning democracy” which considerably changes the
scope and institutions of social justice.
The idea is not simply to assist those who lose out through accidents and misfortunes
(although this must be done) but instead to put all citizens in a position to manage
their own affairs and to take part in social cooperation on a footing of mutual respect
under appropriately equal conditions (TJ, p. xv).
But I would like to add that a main condition remains, that the institutions of
social justice leave open a temporal horizon of choices and opportunities against which
the Self can project itself and develop as freely as possible. Financial security and
property ownership are certainly necessary conditions, but without a sense of the
future and a trust in it, development remains an illusion. The point I would like to
conclude with is that the temporality of self-development needs to be properly
understood. In order to understand social justice as grounded in individual freedom
to develop, we need a much more complex understanding of what it means to develop
one’s potential within a free and democratic context. We need a re-humanization or a
‘de-naturalization’ of temporality and opportunities. We have seen that selfdevelopment cannot be understood simply in terms of a natural gradual process. Nor
can opportunities be understood simply as ‘chances’. They are very often events or
‘turning points’ because of existing conditions that will change the process.
Opportunities only become such if there exists prior to them a temporal horizon to
which the individual can relate and on which she can base her hopes. The central
notion here is very close to Sen’s capabilities. The capacity to transform resources and
opportunities into welfare relies on the capacity of the individual to project onto an
open horizon. External interventions such as social measures can only be successful if
there exists prior to them a horizon that allows the individual person to project onto.
32 J. Rawls, TJ, p. xiv, and Justice as Fairness: A Restatement, Harvard University Press, 2001, §§4142 and §49. For similar views, see T. Piketty, Capital in the XXIst Century, Cambridge, Harvard
University Press, 2014, ch.15.
33 J. E. Meade, Efficiency, Equality and Property-Owning Democracy, G. Allen & Unwin, London,
1964, and M. O’Neill and T. Williamson (dir.), Property-Owning Democracy: Rawls and Beyond,
Oxford, Blackwell, 2014.
Catherine Audard | 101
Let me conclude and illustrate the importance of this horizon with an example
drawn from a recent book by the French sociologist Eric Maurin, La peur du
déclassement, (2009).34 The book is a brilliant analysis of a widespread social attitude,
fear in the face of losing one’s social status and security through unemployment,
generated by high levels of joblessness in France (around 20% of the 18-24 years old).
However, there is a stark contrast between perception and reality. For 40% of the
French population, fear of joblessness is real whereas the chances of losing one’s job
are minimal, given the high level of job protection for those in work. Among the
sources of this insecurity are the strong inequalities between jobless and employed
people, those who have a status and those who have none. The horizon is closed at a
very young age with no second chance in a society still shaped by status and
expectations of ‘jobs for life’. There is no place for self-development in either the
educational system or the jobseekers’ outlook. Such an ideology produces high levels
of anxiety and depression, not simply injustices that remain incomprehensible in a rich
and prosperous democracy. As Maurin says, it is not the loss of status, which is
problematic; it is the fear of the loss and the absence of projects and alternative
solutions. This shows how important the perception of temporality, of selfdevelopment as a fair opportunity for all during all their lives is for promoting a just
and democratic society.
Catherine Audard
Department of Philosophy
London School of Economics
34
Eric Maurin, La peur du déclassement, Paris, Le Seuil, 2009.
6. A DISCIPLINA NO PROCESSO DE EDUCAÇÃO E ESCLARECIMENTO
EM KANT1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-6
Celso de Moraes Pinheiro2
Kant afirma, de maneira contundente, que “o Homem é a única criatura que
precisa ser educada” (KANT, 1996, p.11), incluindo nessa ideia de educação a
alimentação, a disciplina e a formação moral, com vistas para a formação do caráter e
a instrução. A fim de atingir seus objetivos, a educação deve iniciar prestando
importante atenção às crianças, especialmente ao fato dela precisar conter um largo
elemento de disciplina. Isso sem esquecer que, à medida em que as crianças vão
crescendo, devem ser encorajadas a pensar por si mesmas, de modo autônomo.
Autonomia e esclarecimento, portanto, fazem parte dos fundamentos de um processo
de educação e devem ser constantes fatores de observação e preocupação por parte
daqueles que são responsáveis por ela. Lembremos que, em Kant, pensar por si mesmo
é primordial para a possibilidade do esclarecimento. Assim, dizer que a educação deve
se orientar em direção à formação do espírito autônomo, é também dizer que ela será
possibilitadora do esclarecimento.
Pensando sobre o caminho para a formação do Homem ideal, que possa agir e
pensar autonomamente e que se oriente em direção ao esclarecimento, Kant trata o
processo de educação como um projeto de desenvolvimento da humanidade no
Homem. Esse projeto se inicia de modo heterônomo, uma vez que a criança depende
dos outros para ser cuidada e também para ser coagida a seguir na direção correta, na
direção da moralidade. Ciente da dificuldade de compreensão de uma educação
heterônoma que possibilite a autonomia, Kant afirma que “Um dos maiores problemas
da educação é como unir a submissão necessária ao constrangimento das leis com o
exercício da liberdade” (KANT, 1996, p.34). Esse constrangimento, ou coação, será
exercido por meio da disciplina. O conceito de disciplina possui, portanto, um papel
1 Este texto foi concebido a partir de um capítulo da tese de doutorado intitulada “A finalidade éticopolítica na formação do Homem ideal em Kant”, defendida em 2003, sob orientação do Prof. Dr.
Nythamar Fernandes de Oliveira. Aproveito para prestar minha homenagem ao Prof. Nythamar, que
mais do que um orientador, também é um amigo.
2 Doutor em Filosofia – Universidade Federal do Paraná (UFPR)
104 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
central na mediação entre as convicções pedagógicas e a moral kantiana. Vale
antecipar que, apesar de considerar a disciplina como a parte negativa da educação,
uma vez que serve para coagir e limitar as tendências selvagens do Homem, Kant tem
uma visão profundamente positiva do efeito da disciplina na educação, e tem convicção
que através dela a natureza humana estará continuamente em aperfeiçoamento,
permitindo a possibilidade de uma raça humana mais feliz no futuro.
Diz Kant sobre a necessidade da disciplina na formação do caráter moral no
Homem:
A moralidade diz respeito ao caráter. Sustine, abstine: esta é a maneira de se
preparar para uma sábia moderação. Se se quer formar um bom caráter, é preciso
antes domar as paixões. No que toca às suas tendências, o homem não deve deixálas tornarem-se paixões, antes deve aprender a privar-se um pouco, quando algo
lhe é negado. Sustine quer dizer: suporta e acostuma a suportar! Para se aprender
a se privar de alguma coisa é necessário coragem e uma certa inclinação. É preciso
acostumar-se às recusas, à resistência, etc. (KANT, 1996, p.92).
Mas, antes de tratar objetivamente da educação em Kant, é importante salientar
que a pergunta pelo que seja o Homem é considerada fundamental para a
compreensão de sua Filosofia. Toda a finalidade do processo de educação tem em
vistas a formação do Homem ideal, isto é, daquele que demonstra e carrega em si toda
a ideia de humanidade. Em Conflito das Faculdades, Kant afirma que aprendeu na
Crítica da Razão Pura que:
A filosofia não é uma ciência das representações, conceitos e ideias, ou uma ciência
de todas as ciências, ou ainda algo de semelhante, mas uma ciência do Homem, do
seu representar, pensar e agir: - deve apresentar o Homem em todas as suas partes
constitutivas, tal como é e deve ser, isto é, tanto segundo as suas determinações
naturais como também segundo a sua condição de moralidade e liberdade” (KANT,
1993, p.85).
Em Kant, é bastante clara a importância e relevância da questão sobre o
Homem, apresentada na Crítica da Razão Pura e repetida na Lógica, que resumiria
outras três questões, sobre: o que posso saber? O que devo fazer? O que me é lícito
esperar? A partir disso, já podemos postular que a questão acerca do Homem será o
fio condutor da tarefa crítica de Kant. Aquilo que é o Homem estará sempre presente
nas análises kantianas, impondo-se ora como princípio ora como fim. É importante
salientar que Kant não busca apenas uma aproximação antropológica com a quarta
questão, mas antes, ao fundar o ideal de Homem, representado pela humanidade como
Celso de Moraes Pinheiro | 105
um todo, abre a possibilidade de uma visão transcendental da pergunta3. Desta forma,
reafirmamos que buscar a resposta à quarta questão será a finalidade própria da
filosofia de Kant.
Um dos caminhos para a determinação daquilo que é esse Homem, ou melhor,
a busca por um modelo de Homem que sirva como ideia para a formação da
humanidade, está presente na teoria kantiana da educação, principalmente a exposta
no texto Sobre a pedagogia. Ali, os estudos acerca da educação repousam
essencialmente sobre a oposição entre natureza e liberdade. Kant encontra essa
oposição no Homem, pois, a partir de uma análise que se ocupa com o conceito de
Homem se encontra a necessidade de dividi-lo em dois âmbitos distintos: natureza e
liberdade. Tal divisão é o fundamento do sujeito humano, uma vez que a partir dela
podemos ter a determinação empírica e humana do sujeito. Assim como encontramos
essa oposição na educação, na história, na política, etc., também a encontramos na
filosofia crítica, onde ela percorre o trajeto desde a aparência dialética até a síntese do
imperativo categórico.
No âmbito de suas análises sobre a educação, Kant formula a oposição entre
natureza e liberdade mostrando as duas formas de cultura que constituem a educação
humana: cultura física e cultura moral. Cultura física é aquela que faz uso do
determinismo, é o lugar onde as faculdades do Homem são naturais. Já a cultura moral
é aquela em que a verdadeira liberdade é realmente encontrada. Todo o processo
educacional, de acordo com Kant, deve ter em vista a formação moral, pois na
liberdade se encontram realizados, não somente todos os fins incondicionados da
humanidade, mas também a essência do Homem. Na cultura moral, podemos
encontrar também a razão, enquanto autonomia e liberdade, reguladora da ordem
social, garantidora da unidade dos princípios e da educação moral.
A educação moral será, em consequência, a mais alta e importante tarefa da
educação. Eis porque Philonenko afirma que a educação encontra seu sentido mais
pleno apenas ao nível da educação moral. Segundo o autor, é na educação moral que a
criança recebe seu verdadeiro valor, de ser considerado Homem 4. Assim, de acordo
Sobre a definição do conceito de Homem a partir da dupla designação da antropologia e de um ponto
de vista transcendental, ver o artigo de Manfredo Araújo de Oliveira, publicado na Revista de Ciências
Sociais, v. 9, n.º 1 e 2, disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/art_maoliveira.pdf
(acesso em 31/07/2020).
4 Cf. PHILONENKO, A. Introduction: Kant et le problème de l’éducation, in Kant – Réflexions sur
l’éducation. Paris : Vrin, 2000, p.64: “Ainsi c’est seulement au niveau de l’éducation morale que
l’éducation en totalité trouve son sens: l’enfant reçoit sa vraie valeur, il est homme”.
3
106 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
com Kant, será em direção a essa educação moral que todas as outras formas da
educação devem estar orientadas.
Com isso, temos que aquilo que realmente importa, em toda obra educativa,
desde um ponto de vista pedagógico, é a maneira pela qual se efetua a passagem de
uma consciência ingênua, típica do estado de animalidade do Homem, à maturidade e
à liberdade. A conquista da maioridade, da capacidade de pensar por si mesmo, de
achar o princípio da verdade em si, em sua própria razão, é a tarefa da educação. Isso
nada mais é do que afirmar que a educação proporciona o esclarecimento. De modo
análogo ao apresentado no texto sobre o esclarecimento, onde lemos que “Se for feita
a pergunta: vivemos agora em uma época esclarecida? A resposta será: não, vivemos
em uma época de esclarecimento” (KANT, 1985, p.112), em Sobre a Pedagogia Kant
diz que “vivemos em uma época de disciplina, de cultura e de civilização, mas ela ainda
não é a da verdadeira moralidade” (KANT, 1996, p.28-29). O processo que leva ao
esclarecimento é, desse modo, análogo ao caminho que dirige à verdadeira
moralidade. E, em ambos, o papel de um processo de educação é necessário e
fundamental.
Kant busca, com a exposição de suas ideias sobre a pedagogia, mostrar quais os
caminhos possíveis para dar à criança os meios necessários de viver em sociedade
quando atingir a idade adulta. Meios que também são técnicos e pragmáticos,
resultantes de uma crítica dos ensinamentos da natureza. Em outras palavras, Kant
busca transformar a criança em um Homem. E esse Homem, meta de toda educação,
é uma ideia, um modelo. O Homem, almejado pela educação moral, como finalidade
de todo processo educacional, é um Homem que detém todo o conceito de humanidade
e de moralidade em si. E, ao preparar a criança para se tornar esse Homem moral,
Kant não esquece de buscar também um desenvolvimento de seu lado sensível, físico,
pois está ciente da dualidade entre natureza e liberdade ser o mote de progresso,
apenas porque se busca a união entre os dois âmbitos.
A educação é um processo e, por conseguinte, deve seguir um caminho para sua
consecução. Não devemos perder de vista a finalidade, qual seja, a moralidade. No
entanto, antes e entrar especificamente no âmbito da moralidade, Kant indica um
processo de desenvolvimento em etapas, necessário para chegar a tal fim. Ao dividir a
análise da educação em duas partes, educação física e educação prática, Kant está
indicando um processo que dependerá do cumprimento de etapas próprias. Assim, o
Celso de Moraes Pinheiro | 107
início se dá através do cuidado, isto é, daquela tarefa mais específica dos pais, onde se
requer a conservação e o trato. Um segundo momento surge mostrando a importância
essencial da disciplina no processo de formação do Homem ideal. E, como também a
instrução com a formação faz parte desse primeiro apanhado de Kant sobre a
educação, pode o filósofo dizer que o Homem será “infante, educando e discípulo”
(Kant, 1996, p.11).
Neste momento, nos interessa especialmente a função da disciplina no
processo de formação do Homem ideal em Kant. Isso não apenas porque a disciplina
é essencial para a possibilidade de um processo que consiga atingir a finalidade última
da educação, isto é, a formação do caráter moral. Mas, também porque a disciplina
carrega um importante ponto do pensamento kantiano, a saber, o surgimento da
autonomia a partir da heteronomia. O início do processo de educação proposto por
Kant, conforme trazido à luz pelo texto Sobre a Pedagogia, nos mostra a fundamental
importância da disciplina. Não por acaso, logo na primeira página de seu texto, Kant
afirma que é através da disciplina que o Homem transforma a animalidade em
humanidade. Justamente por isso, a disciplina é, segundo Kant, “o que impede ao
Homem de desviar-se do seu destino, de desviar-se da humanidade, através das suas
inclinações animais” (KANT, 1996, p.11). Lembremos que os desejos e as inclinações
são, para os Homens, múltiplos e contraditórios. Do mesmo modo, Kant admite que
um recém-nascido possa machucar a si mesmo e, para evitar isso, será necessária a
intervenção dos adultos. Faz-se necessário, portanto, impor uma ordem e uma medida
a seus movimentos. Limitar a liberdade física do recém-nascido é fundamental para
que a criança não apenas não prejudique a si mesma, mas que inicie aquilo que mais
tarde será determinante para o desenvolvimento de sua autonomia. Vale pensar que a
autonomia, enquanto um dar a si mesmo suas leis, depende, inicialmente, de que as
leis sejam ouvidas e reconhecidas. Essa condição não é inata, mas depende da
educação. Assim, a autonomia dependerá dos processos coercitivos, como a disciplina,
para que desperte e favoreça no indivíduo sua capacidade de dar a si mesmo suas leis.
A fim de fortalecer a importância da disciplina, diz Kant que, ao contrário dos
Homens, os animais são dotados de uma força instintiva determinante para toda sua
vida. Os instintos animais comandam toda ação da vida de um animal.
108 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
A disciplina transforma a animalidade em humanidade. Um animal é por seu
próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tomou por ele
antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas, o homem tem necessidade
de sua própria razão. Não tem instinto, e precisa formar por si mesmo o projeto de
sua conduta. Entretanto, porque ele não tem a capacidade imediata de o realizar,
mas vem ao mundo em estado bruto, outros devem fazê-lo por ele”. (KANT, 1996,
p.12).
Segundo Kant, isso marca a maior diferença entre os homens e os animais, visto
que para os homens a natureza deu a razão, enquanto dotou os animais apenas de
instintos. De uma maneira geral, o Homem não é dotado de um instinto nos mesmos
moldes do instinto animal. Ele possui desejos, mas estes não são regulados e
ordenados exclusivamente pelos instintos. Isso pode ser confirmado a partir da
afirmação de Kant na Introdução de Ideia de uma história universal do ponto de vista
cosmopolita, onde se lê que “Os homens, nas suas aspirações, não se conduzem
segundo o seu instinto, como os animais” (KANT, 1999, p.10), Ainda como exemplo
disso podemos pensar na atividade sexual dos animais, geralmente determinadas
instintivamente conforme as estações do ano, temperatura, condições climáticas, etc.
De outro modo, os homens não são obrigados pelo instinto a manter uma atividade
sexual em apenas determinadas situações naturais. Neste sentido, podemos dizer que
o Homem mostra sua liberdade ao se afastar das determinações meramente instintivas
da natureza.
Não à toa vemos que, conforme afirma Kant nas primeiras linhas de seu texto
sobre a educação, os recém-nascidos dependem exclusivamente de outros para não
prejudicarem a si mesmos, uma vez que não podem contar com os instintos para
determinar e garantir sua vida e segurança. Assim, os cuidados oferecidos pelos
adultos para as crianças representam o primeiro momento da educação apresentada
por Kant. E esse primeiro momento, que mostra o Homem como dependente de
outros, também serve para reforçar a ideia que o Homem é um ser inacabado. A criança
é um ser que ignora o modo de manter-se, mas nem por isso é um ser inferior. Ao
contrário, segundo Kant, o fato do Homem ser por natureza inacabado é indício de sua
dignidade e da força de sua razão. Se a natureza deu ao Homem a condição de
inacabado, emprestou, ao mesmo tempo, a necessidade de que ele se desenvolvesse.
Ora, isso mostra o quanto o Homem é digno de respeito, pois pode, por si mesmo,
atingir seu fim último, sem precisar ser determinado desde seu nascimento pelos
Celso de Moraes Pinheiro | 109
instintos. Por esse motivo o Homem é levado a buscar desenvolver, por si mesmo, sua
própria conduta, coisa que se dá através da educação.
Se o Homem é por natureza obrigado a determinar-se por si mesmo, então uma
das condições básicas aqui inscritas é a de que ele possa obedecer e respeitar uma regra
em geral, pois apenas assim colocará em prática suas próprias decisões. Não devemos
esquecer que essas decisões implicam uma reflexão autônoma. Cabe ao Homem a
tarefa de determinar-se a si próprio, e de maneira autônoma. A reflexão 5, que ajuda a
consecução da realização da ação, é um ato racional, não impulsivo e muito menos
intuitivo. Todo valor da razão encontra aqui sua justificação. A reflexão permite ao
Homem ser seu próprio mestre. O processo necessário de um desenvolvimento
autônomo da razão é visto, através da reflexão, como o caminho possível para se atingir
a finalidade da educação em Kant. O pensar por si mesmo é trazido à luz como o
verdadeiro fim da educação. Com isso, a reflexão mostra que o Homem não é
simplesmente submisso aos impulsos do momento. Ela implica, de uma outra forma,
uma espécie de abandono à satisfação dos desejos mais imediatos. Através da reflexão
racional o Homem é capaz de dominar seus impulsos e desejos, freando as disposições
naturais de agir precipitadamente.
Vimos, acima, que a tarefa máxima da disciplina na educação em Kant é
justamente fazer as crianças poderem aprender a obedecer. A disciplina favorece não
apenas o surgimento da obediência, mas especialmente auxilia no início do
aprendizado do uso da razão. A obediência, aqui citada, não é uma obediência cega e
totalmente heterônoma. Muito menos uma obediência a impulsos e desejos imediatos,
mas uma obediência às regras racionais autônomas. A disciplina não é apresentada
por Kant como uma espécie de escravidão, mas como um processo necessário para a
compreensão que devemos sempre seguir regras. E, para segui-las, devemos aprender
a respeitá-las. Em outros termos, não há como respeitarmos leis se não sabemos como
respeitar. Através da disciplina, Kant nos ensina que os homens aprendem a agir de
modo organizado e refletido. A coação, exercida pela disciplina, será fundamental para
liberdade.
5 O sentido de reflexão aqui utilizado se remete ao que diz Kant em Crítica da Razão Pura: “A reflexão
(reflexio) não tem nada a ver com os objetos mesmos, para obter diretamente conceitos deles, mas é o
estado da mente em que nos dispomos inicialmente a descobrir as condições subjetivas sob as quais
podemos chegar a conceitos” (KANT, 1991, p. 158). A ideia de a reflexão ser um estado da mente onde
acontece uma disposição para descobrir as condições para se chegar aos conceitos é própria do Homem
e uma importante característica que ajuda na diferenciação entre ele e o animal.
110 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar a submissão ao
constrangimento das leis com o exercício da liberdade. Na verdade, o
constrangimento é necessário! Mas, de que modo cultivar a liberdade? É preciso
habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao
constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua
liberdade. Sem esta condição, não haverá nele senão algo mecânico; e o homem,
terminada a sua educação, não saberá usar sua liberdade. É necessário que ele
sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o
quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é
necessário para tornar-se independente. (KANT, 1996, p.34)
O hábito que a criança vai adquirir através da disciplina é um hábito formal, isto
é, um hábito de impor uma certa forma à sua ação. O mais importante na disciplina da
criança não é fazê-la cumprir o que foi determinado, mas fazer com que ela consiga
controlar seus impulsos espontâneos e respeitar uma regra. Justamente por isso a
disciplina na escola deve ensinar o aluno a ter paciência e tranquilidade. Quando Kant
afirma que o primeiro momento da disciplina está em fazer o aluno ficar quieto em seu
lugar, está implícita a ideia que a obediência deve vir acompanhada de um sentimento
de paciência. A intranquilidade favorece a obstrução do pensamento. Só com
tranquilidade e calma o aluno pode pretender a tarefa de bem pensar. Apenas
respondendo a seus instintos mais imediatos, o aluno não reflete, e não refletindo não
propicia o bom desenvolvimento da razão, único meio possível para o esclarecimento.
É por isso que a disciplina deve coagir a aluno, num primeiro momento, a obedecer, a
restringir seus impulsos e desejos imediatos. Nesse primeiro momento, disciplinador,
a educação pode, então, ser vista como negativa.
Segundo Kant, a disciplina serve para impedir que o Homem se jogue
selvagemente ao perigo. Devido a essa principal característica de impedir um mal ao
Homem, a disciplina é considerada, neste momento, como a parte negativa da
educação. De acordo com Kant,
A disciplina submete o Homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a
força das próprias leis. Mas, isso deve acontecer bem cedo. Assim, as crianças são
mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí
se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e a obedecer pontualmente àquilo
que lhes é mandado, a fim de que no futuro elas não sigam de fato e imediatamente
cada um de seus caprichos. (KANT, 1996, p. 13).
Ora, é claro o objetivo da disciplina em Kant: ensinar a obedecer e a domar seus
impulsos. O grande problema que pode se colocar a partir de uma análise parcial da
obra de Kant é não percebemos que o dever, a fim de nos obrigar a obedecer, deve
Celso de Moraes Pinheiro | 111
também nos ensinar a obedecer. Pois, caso considerássemos a obediência de modo a
priori, correríamos o risco de estabelecer que há algo anterior e externo responsável
pela razão. Por isso podemos postular que a compreensão da disciplina como
possibilitadora da obediência, em sentido positivo, é fundamental para o
estabelecimento do esclarecimento. Com tudo isso podemos nos arriscar e afirmar que
a educação em Kant se apresenta em dois momentos, inicialmente distintos, mas
relacionados necessariamente, a saber, em um primeiro momento a educação das
crianças – disciplina, e num segundo momento a educação dos adultos –
esclarecimento.
Ora, se é correta a afirmação de que a educação pode ser vista a partir de dois
momentos distintos, mas que ambos mantêm uma relação fundamental com a
disciplina, então fica menos árdua a tarefa de compreender porque Kant diz que a
disciplina deve ser colocada desde cedo, pois do contrário é “muito difícil mudar depois
o Homem. Ele seguiria, então, todos os seus caprichos” (KANT, 1996, p. 13). Kant
insiste em afirmar que a disciplina é essencial para a perfeição da humanidade, visto
que sua falta não pode ser remediada posteriormente, ou seja, podemos dizer que a
falta de disciplina impedirá o Homem de esclarecer-se, visto que se não conseguir
dominar seus caprichos não alcançará a liberdade. Se a disciplina está entre os
primeiros momentos da educação, e se ela é essencial para o processo de
esclarecimento, então a ideia de que a perfectibilidade humana precisa se iniciar desde
cedo, através da educação, se mostra plausível e coerente. A ideia de formação de um
Homem que detenha a inteira destinação humana, portanto, que carregue a
humanidade em si, dependerá de um processo de educação que vise a formação moral
e também a formação política. E o papel da disciplina é primordial para a possibilidade
de consecução deste fim.
Vimos acima que a disciplina traz consigo a coação, necessária também no
processo de afastamento do estado primitivo selvagem do Homem natural. A coação
aqui cumpre a tarefa de limitar a liberdade, não a liberdade em sentido moral, mas a
liberdade selvagem, liberdade anárquica, instintiva e irresponsável. A liberdade aqui
abordada trata-se da liberdade selvagem, encontrada no estado sem leis, onde reina a
desordem, a violência e a brutalidade. É a liberdade no sentido do sem-lei. A educação,
112 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
por seu turno, deve se opor à brutalidade e à selvageria6. A condição proposta por Kant
é simples, ou seja, “quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não
tem disciplina ou educação é um selvagem” (KANT, 1996, p. 16). O papel da disciplina
é tão importante, no pensamento de Kant, que podemos ler na sequência: “A falta de
disciplina é um mal pior que a falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde,
ao passo que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina”
(KANT, 1996, p. 16).
Afirmamos acima que, a partir da ideia de disciplina, a tarefa da educação é a
de vencer os impulsos anárquicos da liberdade nativa. A fim de cultivar a razão, desde
a infância, é necessária, portanto, a aplicação da disciplina e da coação. O processo
todo de educação, que visa desenvolver a totalidade das disposições do Homem e,
sobretudo, do uso da razão, está, dessa maneira, fundado na operação da disciplina.
Segundo Philonenko, na operação da disciplina o que está em jogo é “a totalidade da
educação”. Com isso, a cultura, positivamente entendida, só possui valor na “condição
de se apoiar sobre a disciplina, que produz a obediência e abre à educação seu mais
vasto horizonte ao formar o Homem político”7.
O papel fundamental da disciplina é, portanto, conciliar e possibilitar ao
Homem a convivência com os impulsos imediatos e prazerosos do mundo empírico
com a obediência racional do mundo moral 8 . Ou seja, a disciplina afasta o mais
possível a influência das tendências exteriores em nossos atos. Tudo aquilo que se
mostra mais fácil, que é mais rápido de ser atingido, ou numa linguagem popular, é
mais gostoso, geralmente provém de situações que não são justas para todos. É
inegável que existe uma tensão que contribui para uma dificuldade na consecução da
Cf. VANDEWALLE, Bernard. Kant – éducation et critique. Paris: L’Harmattan, 2001, p.22.
“L’éducation s’oppose à la brutalité et à la sauvagerie. Se la grossièreté est de l’ordre de l’inculture, la
violence relève de l’indiscipline. Aussi, l’homme doit-il être cultive et discipline”.
7 Cf. PHILONENKO, A. Introduction: Kant et le problème de l’éducation. In: KANT, Réflexions sur
l’éducation. Traduction, introduction et notes par A. Philonenko. Paris: Vrin, 2000, p.49. “Dans
l’operátion de la discipline c’est la totalité de l’éducation que est en jeu: la culture, positivement
entendue, n’a de valeur qu’à la condition de s’appuyer sur la discipline qui produit l’obéissance et ouvre
à l’éducation son plus vast horizon em formant l’homme politique”
8 Neste ponto poderíamos recorrer ao texto de Valério Rohden, intitulado “O humano e racional na
Ética”, onde se encontra uma análise daquilo que é a tarefa da disciplina dar conta, ou seja, Rohden
percebe que Kant funda uma moral que contém em seu interior uma tensão inevitável entre opostos.
Esta tensão, exposta pela oposição entre um dever-ser racionalmente moral e uma aquisição de um
prazer e de uma satisfação imediata e empírica, é justamente aquela que pretende dar conta a disciplina.
Sobre o texto indicado: ROHDEN, V. O humano e o racional na Ética. Studia Kantiana, v.1, n.1, set.
1998.
6
Celso de Moraes Pinheiro | 113
lei, seja ela uma lei moral ou uma lei jurídica. E essa dificuldade impediria a
moralidade mesma, o que implica que a possibilidade de uma sociedade legal de direito
e, portanto, livre, também enfrenta problemas devido a essa tensão. A disciplina visa
justamente a superação, ou ao menos a diminuição dessa tensão. É apenas graças à
disciplina que pode vir a ser forjado o caráter moral do Homem. Caráter esse
necessário, no âmbito político, para o desenvolvimento de um estado de paz perpétua.
Em outras palavras, podemos afirmar que a disciplina nos oferece a oportunidade de
domarmos nossos impulsos mais animais. Através da disciplina nos afastamos da
tendência natural de preguiça, típica dos homens, e nos aproximamos de uma situação
de maior esclarecimento. Com isso, caminhamos rumo a uma sociedade mais justa,
formada, finalmente, por homens esclarecidos.
A fim de reforçar a ideia de que a disciplina não age apenas no momento inicial
de educação das crianças, mas que é também fundamental para se pensar processo de
esclarecimento, é importante ressaltar que a disciplina não se encerra de imediato em
um primeiro momento, mas permanece ao longo de todo processo de educação. É,
desta forma, o princípio de possibilidade do bom desenvolvimento do Homem que o
acompanha durante todo o processo de formação. Esse processo de formação é um
caminho que, na idade adulta, é o caminho que leva ao esclarecimento. Assim, a
disciplina pode ser vista como a essência do processo de formação do caráter moral do
Homem ideal em Kant. O caráter positivo da educação encontra aqui toda sua força,
pois isto é o mesmo que afirmar que sem disciplina, dificilmente teremos como formar
o verdadeiro cidadão, e muito menos almejar uma sociedade justa e de paz. Como
vimos anteriormente, Kant nos ensina que a finalidade última da educação é a
formação moral dos indivíduos e a possibilidade de seu esclarecimento, e a disciplina
possui um caráter determinante e fundamental em todo esse processo. Com ela
podemos esperar um caminho possível, e talvez até o único caminho possível, para o
esclarecimento. Com o que foi dito acima, é possível se postular que a disciplina ocupa
um papel fundamental para a formação moral do Homem. E mais, também o
desenvolvimento político dependerá da disciplina para atingir uma situação onde seja
possível se almejar um estado de paz. Caráter moral e esclarecimento são possíveis
graças à atuação da disciplina no processo de formação do Homem.
Um importante detalhe requer uma atenção especial neste momento. Partindo
da premissa de que a disciplina é fundamental para a possibilidade do esclarecimento,
114 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
é preciso se pensar também naqueles que detém o poder para disciplinar. Em outras
palavras, não podemos esquecer que a disciplina requer alguém que a instaure. Esse
alguém deve justamente ser uma autoridade competente, portanto, esclarecida. A
autoridade política deve ser moralmente estabelecida. Sem esquecermos que a
autoridade moral é a própria razão. Porém, não podemos obedecer à lei moral antes
de aprendermos a obedecer, aprendizado este que se coloca como possível a partir da
ação da autoridade política no processo educacional. Se a disciplina é fundamento de
possibilidade do esclarecimento, este é, por sua vez, fundamento de possibilidade
daquela. E, mais importante, ambos se dirigem, necessariamente, para a consecução
da moralidade e da legalidade. Eis porque Kant afirma em Sobre a Pedagogia, de
modo muito semelhante ao que diz em Ideia de uma história universal do ponto de
vista cosmopolita, que “entre as descobertas humanas há duas dificílimas, e são: a arte
de governar os homens e a arte de educa-los” (KANT, 1996, p.21).
A fim de sair desse difícil problema, Kant admite que é necessário, antes de
tudo, que se considere a educação com vistas ao desenvolvimento da espécie humana.
Assim, o político estaria determinando um processo de formação que não almeja
apenas o estado presente, mas um progresso da humanidade, desde um ponto de vista
moral. Eis porque Kant afirma que o “estabelecimento de um projeto educativo deve
ser executado de modo cosmopolita” (KANT, 1996, p.23). E segue afirmando que,
A natureza humana pode aproximar-se pouco a pouco do seu fim apenas através
dos esforços das pessoas dotadas de generosas inclinações, as quais se interessam
pelo bem da sociedade e estão aptas para conceber como possível um estado de
coisas melhor no futuro” (KANT, 1996, p.25).
A aporia educativa aqui apresentada é semelhante à aporia legislativa, uma vez
que é preciso alguém educado para educar, do mesmo modo que é necessário alguém
esclarecido para possibilitar o esclarecimento. Nesse sentido, Kant é otimista e
encontra uma saída para a determinação daquele que poderá contribuir para a
educação enquanto progresso da humanidade. Vandewalle afirma a aporia do primeiro
educador apenas pode ser resolvida pela ideia de uma autoeducação progressiva da
humanidade na história, onde a humanidade será, ela mesma, seu próprio mestre 9.
9 Cf. VANDEWALLE. Kant, éducation et critique. Paris: L’Harmattan, 2001, p.52: “L’aporie du premier
éducateur ne peut être dépassée que par l’idée d’une auto-éducation progressive de l’humanité dans
l’histoire, l’humanité étant à elle-même son proper mâitre. Cella-ci doit être en tout cas une idée
régulatrice orientant la pratique historique”.
Celso de Moraes Pinheiro | 115
Assim, a educação deve “contar mais com os esforços particulares do que com a ajuda
dos príncipes” (KANT, 1996, p.24), a fim de desenvolver a natureza humana de modo
a atingir seu destino.
Buscar uma educação que vise o fim último do Homem, fim que possui como
norteador a ideia de uma sociedade justa, formada por homens morais, é a finalidade
de todo um processo de formação e deve, conforme mostrado acima, ter seu início na
disciplina. Através da disciplina o caminho encontra-se aberto. Não devemos pensar,
ingenuamente, que basta isso para encontrarmos um reino dos fins na terra ou uma
situação de paz perpétua. Kant é ciente da dificuldade, e até mesmo da impossibilidade
disso. Mas, sem dúvidas, a disciplina é ponto fundamental para a busca, que
caracteriza a vida humana. Apenas através da educação podemos sonhar em atingir
um estado de paz, uma sociedade mais justa, mais esclarecida e moral. Sem disciplina,
a educação não completaria sua finalidade. Deste modo, a disciplina é, em Kant,
fundamental e garantidora de uma educação que busque atingir seu fim último. Sem
disciplina não há progresso. Sem disciplina não há educação. Sem disciplina não há
esclarecimento. Sem disciplina não há Homem.
Referências
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pédagogie. Paris : Hachette, 1981.
KANT, I. Werkausgabe in 12 Bänden. Hrsg. Von Wilhelm Weischedel. Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1991.
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KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. Valério Rohden e António Marques. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1993.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden e Udo B. Moosburger. São
Paulo: Nova Cultural, 1991.
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1992.
KANT, I. Réflexions sur L’Éducation. Trad. Alexis Philonenko. Paris : Vrin, 2000.
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Sousa Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985.
116 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
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Réflexions sur l’éducation. Paris : Vrin, 2000.
ROHDEN, V. O humano e o racional na Ética. Studia Kantiana, v.1, n.1, set. 1998.
TOSEL, André. Kant révolutionnaire – Droit et politique. Paris : PUF, 1988.
VANDEWALLE, Bernard. Kant – éducation et critique. Paris: L’Harmattan, 2001.
7. NEUROCIÊNCIA DA ÉTICA: O ESTADO DA ARTE E AS
PROMESSAS PARA O FUTURO1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-7
Cinara Nahra2
Resumo
É sabido que a pesquisa em neurociência pode levar a humanidade a entender e
combater muitas doenças e condições que causam muito sofrimento no mundo, como
demência, Alzheimer, depressão, stress e podem também nos levar a obter melhorias
na nossa memória, capacidade de aprendizado, funções executivas, humor e muitas
áreas relacionadas a cognição e emoção. Neste artigo estarei focando especificamente
na pesquisa relacionada e neurociência da ética. A neurociência da ética é uma área da
neuroética que diz respeito ao entendimento dos mecanismos cerebrais que estão
envolvidos na cognição moral e em nossas decisões éticas (ou antiéticas), e eu
proponho aqui estender um pouco mais o conceito, definindo a neurociência da ética
como o campo relacionado ao entendimento dos mecanismos cerebrais de todos os
principais comportamentos relativos a ética e a moralidade. Neste artigo eu identifico
um conjunto de estudos de neurociência que foram publicados nos últimos 10 anos e
que são relevantes para a ética, jogando luz em comportamentos como altruísmo,
generosidade, autoconfiança, verdade, punição altruística, violência, mentira e
preconceito, todos conectados de algum modo com a moralidade. Eu então discuto
O artigo que trago aqui para esta homenagem ao colega e amigo Nythamar é uma tradução para o
português do artigo de minha autoria “Neuroscience of the Ethics: The State of the art and the promises
for the future” que foi originalmente publicado em inglês na revista ethic@ (v.10 n.1 2011) e agradeço
aos editores da revista pela permissão da publicação desta tradução aqui. O artigo tem importância
histórica porque foi um dos primeiros artigos sobre neuroética publicado em revistas de filosofia no
Brasil. Ao apontar para as promessas para o futuro vemos que hoje, nove anos após sua publicação,
sendo a neuroética uma área hoje consolidada, há ainda muita coisa para ser feita neste campo de
pesquisa, que está apenas na sua infância. Ao problematizar o futuro da ética e propor uma ética para o
futuro, lembramos o compromisso que a ciência deve ter com os seres humanos, devendo as suas
descobertas e toda a pesquisa científica estarem a serviço da civilização e da humanidade como um todo.
Oxalá possamos alcançar este tempo!
2 I would like to thanks Capes/Brasil for the pos doctoral research grant that supported this work and
ISEIUniversity of Manchester for receiving me as an academic visiting during 2010.
1
118 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
como o entendimento de cada um destes comportamentos pode beneficiar a sociedade
e como podemos usar esta pesquisa para ajudar a humanidade a melhorar os padrões
morais e promover a felicidade geral.
Palavras chave: Ética, Neuroética, Neurociência da ética, Cérebro, Moralidade,
Neurociência.
1 Imagens e estimulação cerebral
Adina Roskies 3 dividiu a neuroética em duas áreas: ética da neurociência e
neurociência da ética. Ela então previu que embora a neurociência da ética estivesse
menos desenvolvida que a ética da neurociência seria esta área (neurociência da ética)
que iria verdadeiramente ter implicações profundas no modo como trabalharíamos
ética no século XXI e iria desabrochar nos próximos anos. Ela estava certíssima! Hoje
há dois principais conjuntos de tecnologias usadas para mapear o cérebro humano 4:
tecnologias de imagens cerebrais não invasivas e tecnologias de estimulação cerebral
não invasivas. Há muitas tecnologias de imagens cerebrais não invasivas, mas as mais
comumente usadas no momento são as imagens por ressonância magnética (fMRI) e
tomografia de emissão de pósitrons (PET), enquanto no campo das tecnologias de
estimulação cerebral não invasivas há basicamente duas tecnologias: estimulação
magnética transcranial (TMS) e estimulação transcranial por corrente direta (tDCS).
A principal diferença é que enquanto as tecnologias de imagem cerebral medem a
ativação gerada pelo cérebro durante o processo de conhecimento, as estimulações
cerebrais não invasivas induzem mudanças na ativação cerebral. De fato, dependendo
dos parâmetros de ativação da TMS no córtex estas atividades cerebrais podem ser
aumentadas ou reduzidas e na prática TMS pode influenciar (seja aumentando ou
diminuindo dependendo dos parâmetros e da região alvo) muitas funções cerebrais,
incluindo a direção do movimento físico, percepção visual, memória, tempo de reação,
velocidade e humor5 e há até estudos que fornecem evidência da eficácia de curto prazo
See Adina Roskies “Neuroethics for the New Millenium” Neuron, v. 35 (2002): 21–23.
Turhan Canli; Susan Brandon; William Casebeer; Philip Crowley; DonDuRousseau; Henry Greely;
Alvaro PAscoal-Leone “Neuroethics and National Security” The American Journal of Bioethics, v. 7 n.5
(2007): 3–13
5 Ibid., p.4. The authors cites the studies of George, M. S., and R. H. Belmaker (Transcranial magnetic
stimulation in neuropsychiatry. Washington, DC: American Psychiatric Press, 2000) Grafman, J.(TMS
as a primary brain mapping tool. In Transcranial magnetic stimulation in neuropsychiatry. H.
3
4
Cinara Nahra | 119
da rTMS em tratamento da depressão 6 . Mais do que tudo, entretanto, os estudos
usando fMRI, PET, TMS e tDCS estão lançando luzes nos mecanismos cerebrais que
estão por trás dos mecanismos relacionados à moral e a ética. Os estudos no momento
são somente preliminares, mas já temos resultados muito importantes que eu
discutirei a seguir, já sugerindo que o futuro neste campo é altamente promissor.
2 Imagem e estimulação cerebral: auto interesse e punição altruística
No campo do altruísmo muitos estudos usando PET e fMRI estão ajudando a
entender os mecanismos cerebrais envolvidos neste comportamento. Em um destes
estudos7 os autores usaram PET para tentar identificar as bases neurais da punição
altruísta de desertores. Eles formularam a hipótese de que a punição altruísta fornece
conforto ou satisfação para aquele que pune, ativando regiões cerebrais relacionadas a
recompensa. Eles descobriram que o caudado cumpre um papel decisivo na punição
altruísta. De acordo com os autores a ativação caudal é particularmente interessante
porque esta região cerebral tem sido relacionada na tomada de decisões ou prática de
ações que são motivadas por recompensa antecipada e o papel proeminente do
caudado na punição altruística é embasado no fato de que aqueles sujeitos que exibem
ativação do caudado mais forte gastam mais dinheiro punindo os desertores .Eles
então fornecem uma explicação para esta correlação que é a de que a ativação do
caudado reflete a satisfação antecipada em punir detratores. Em outro estudo
envolvendo punição altruística os autores colocaram voluntários homens e mulheres
para jogar um jogo econômico no qual dois jogadores jogavam de modo justo ou
injusto e então mediram a atividade cerebral deles com fMRI enquanto estes mesmos
voluntários observavam os jogadores sendo submetidos a dor. Eles descobriram que
ambos os sexos exibiram ativação relacionada a empatia em áreas do cérebro
relacionadas a dor (a insula frontal e o córtex cingulado anterior) em relação a aqueles
Belmaker, and M. S. George, eds., 115–140.Washington, DC: American Psychiatric Press, 2000)
Pascual-Leone et al. (Handbook of transcranial magnetic
stimulation. London, UK: Arnold, 2002) and Pascual-Leone, A., N. J. Davey, J. Rothwell, et al.
(Handbook of transcranial magnetic stimulation. London, UK: Arnold, 2002).
6 Jeong –Ho Chae, Ziad NAhas, Xingbao Li , Mark S. George “Transcranial magnetic stimulation in
psychiatry:research and therapeutic applications” International Review of Psychiatry vol 13 (2001):
18-23
7 Dominique J.-F. de Quervain, Urs Fischbacher, Valerie Treyer, Melanie Schellhammer, Ulrich
Schnyder, Alfred Buck, Ernst Fehr “The Neural Basis of Altruistic Punishment” Science vol 305, (2004):
1254-1258
120 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
jogadores que jogavam de modo justo. Entretanto estas respostas empáticas foram
significativamente reduzidas nos homens quando eles observavam uma pessoa injusta
recebendo dor. Este efeito foi acompanhado pelo aumento da ativação em áreas
relacionadas a recompensa, correlacionadas com um desejo expresso de vingança. Eles
então concluíram que em homens as respostas empáticas são mediadas pela avaliação
do comportamento social de outras pessoas, de tal modo que eles empatizam com os
oponentes justos enquanto estão a favor da punição física de oponentes injustos8.TMS
tem sido também usado a fim de entender as reações humanas ao comportamento
injusto ou enganador e até mesmo entender auto interesse, preconceito e moralidade.
Knoch9 por exemplo usa TMS em um estudo do ultimatum game (um jogo onde
é dado para uma pessoa uma determinada soma de dinheiro para ser dividido com
outros e na qual a pessoa pode dar para os outros o quanto ela quiser desta quantia,
mas se a pessoa para a qual o dinheiro foi oferecido não aceitar nenhum deles ganhará
nada) mostrando que a ruptura do córtex dorsolateral pré-frontal (DLPFC) direito,
mas não o esquerdo, por estimulação magnética transcranial de baixa frequência reduz
a vontade dos sujeitos de rejeitar as ofertas injustas intencionalmente feita pelos seus
pares , o que sugere que que os sujeitos são menos capazes de resistir à tentação
econômica de aceitar estas ofertas. Isto implica que após a ruptura o DLPFC as pessoas
tendem a ter um comportamento mais “auto interessado” dando menos importância
em suas ações ao que é percebido como justo. Isto sugere também que pesquisa futura
que focasse na estimulação ao invés da ruptura do DLPFC poderia produzir o efeito
oposto, isto é, poderia aumentar as suscetibilidades das pessoas a temas de justiça.
Este estudo abre uma grande porta para os estudos da Akrasia (fraqueza da vontade)
e moralidade, especialmente considerando que apesar de agir de um modo mais auto
interessado (ou talvez avarento), evitando a punição altruística, as pessoas ainda
julgam que as ofertas são injustas.
8 Tania Singer, Ben Seymourl, John P. O’Doherty, Klaas Stephani, Raymond J. Dolan, Chris Frith
“Empathic neural responses are modulated by the perceived fairness of others” Nature vol. 439/26
(2006): 466-469
9 Daria Knoch, Alvaro Pascual-Leone, Kaspar Meyer, Valerie Treyer, Ernst Fehr "Diminishing
Reciprocal Fairness
by Disrupting the Right Prefrontal Cortex" Science v.314 (2006); 829-832
Cinara Nahra | 121
3 Imagem e estimulação cerebral: preconceito
Há também importantes estudos relacionados aos aspectos neurais do
preconceito, especialmente racismo. Em um destes estudos10 os autores usaram fMRI
a fim de explorar os substratos neurais envolvidos na avaliação inconsciente de faces
de negros e brancos entre grupos de negros e brancos focando particularmente na
amígdala cerebral, conhecida por cumpri um papel chave nas emoções e na avaliação.
Eles acharam correlação entre a ativação da amígdala com duas medidas indiretas de
avaliação de raça, mas não com a expressão direta de atitudes raciais, enquanto estes
padrões NÃO foram observados na avaliação de faces brancas e negras familiares.
Estes resultados mostram que a avaliação de pessoas de raças diferentes estão
correlacionadas com graus diferentes de ativação da amídala. Em resumo o estudo
sugere que o grupo de brancos apresenta maior ativação da amígdala quando
avaliando faces negras do que quando avaliando faces brancas, mas esta diferença não
está presente quando as faces de negros são conhecidas por eles.
No experimento a região aonde havia mais ativação para avaliações negativas
era a da amígdala esquerda superior, uma região de interesse especial, segundo os
autores, que é também ativada quando se vê faces que apresentam expressões de
medo. Este estudo é de especial interesse porque confirma, em um certo sentido, que
o preconceito de raça repetidamente opera subliminarmente, com pessoas
expressando preconceito mesmo quando não estão conscientes dele, revelando o
quanto ainda precisa ser feito na sociedade para que se elimine o preconceito de raça.
Isto foi confirmado em outro estudo usando fMRI 11 no qual todos os participantes
discordaram de afirmações preconceituosas e concordaram com afirmações não
preconceituosas, e disseram que tinham motivação para responder sem preconceito.
Ainda assim, em média, os participantes mostraram associações negativas em relação
a faces negras relativas a faces brancas.
10 Elizabeth Pelps, Kevin J O’Connor, William Cunningham and Sumie Funayama, J. Cristopher
Gatenby and John C.Gore, Mahzarin Banaji “Performance on indirect measures of race evaluation
predicts amygdala activation” Journal of Cognitive Neuroscience v. 12 n 5 (2000) : 729-738
11 William Cunningham, Marcia Johnson , Carol Raye, J. Chris Gatenby, John C Gore, Mahzarin Banaje
“ Separable neural components in the processing of black and white faces” Psychological Science v.15
n.12 (2004): 806-813
122 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Em um estudo recente usando fMRI12 os autores também descobriram que há
distintos mecanismos cerebrais para o que eles chamaram de julgamento superficial
(automático) e julgamento individualizado. Seus estudos também fundamentam uma
longa tradição de estudos que afirma que o processamento do julgamento superficial
tem raízes na amígdala, uma região neural especializada no processamento
primariamente automático13. Eles descrevem o estudo como fornecendo evidencia que
a amígdala é recrutada para produzir conhecimento sobre outras características
internas a partir das menores informações superficiais (por exemplo, da face)
fornecendo então um correlato neural de nossos julgamentos superficiais dos outros.
Em um estudo com crianças que tem a Síndrome de Willians (WS) nas quais o medo
social não está presente e as pessoas são bem amigáveis com estranhos, os autores
descobriram que as crianças com WS não possuem estereótipo racial, embora eles
possuam estereótipo de gênero, sugerindo que os mecanismos para a emergência dos
preconceitos raciais e de gênero são neurogeneticamente desassociados 14. Segundo os
autores esta é provavelmente a primeira indicação da ausência de estereótipo racial
em um grupo humano e de que os mecanismos que baseiam diferentes formas de
estereótipos não são uniformes. Eles especulam (sendo necessário a pesquisa com
fMRI para corroborar esta sugestão) que a diminuição da atividade da amídala reduz
preconceito de raça implícito na WS através da diminuição da sinalização de ameaças
sociais associadas com um grupo racial distinto.
4 Detectando mentiras e dizendo a verdade
Outro importante campo de aplicação de técnicas de imagem cerebral e de
estimulação cerebral é o campo das mentiras e das verdades, e em última instância, o
12 Jonathan Freeman, Daniela Schiller, Nicholas Rule, NAlini Ambady “The neural origins of superficial
and
individuated judgements about ingroup and outgroup members” Human Brain Mapping v. 31 (2010):
150-159
13 Ibid., p 156. The authors cites works such as R Adolphs, D Tranel and A Damasio “The human
amygdala in
social judgement” Nature 393 (1998): 470-474; Adolphs R “Recognizing emotion from facial
expressions:
psychological and neurological mechanisms” Behav Cogn Neuros Rev 1 (2002): 21-62 and R Adolphs
and M Spezio “Role of the amygdala in processing visual social stimuli” Progr Brain Res 156 (2006):
363-378
14 Andreia Santos, Andreas Meyer-Lindenberg, Christine Deruelle “Absence of racial, but not gender,
stereotyping in Williams Syndrome Children” Current Biology v.20 n. 7 (2010): 307-308
Cinara Nahra | 123
campo da Justiça. A verdade tem sido por séculos uma das principais questões
filosóficas. Na apologia de Sócrates 15onde é descrita a defesa de Sócrates em juízo
quando este está sendo acusado pelo crime de corromper os jovens e não acreditar nos
deuses, todo o discurso envolve o tema da verdade. Kant por sua vez afirma que não
há nenhum direito a mentir, mesmo por benevolência, concluindo que não há
nenhuma exceção para a obrigação que os seres humanos têm de dizer a verdade16. Na
vida real, entretanto, as pessoas enganam e mentem, e assim sendo um mecanismo de
“detecção de mentira” seria um santo graal para uso nos tribunais e pela polícia,
evitando um problema recorrente na Justiça onde sabemos que muitos culpados estão
livres para cometer mais e mais crimes, porque não pode ser provado que eles
cometeram os crimes que cometeram e vice-versa há pessoas inocentes na prisão
porque foram condenados por cometerem crimes que nunca praticaram. No momento,
entretanto, não há tecnologia confiável para detecção de mentiras, apesar de que nos
Estados Unidos agencias de defesa dedicam fundos significantes para o
desenvolvimento de novas estratégias para detecção de mentiras para uso eventual em
investigações criminais e terroristas.17
Há entretanto propagandas na internet sobre “pegadas no cérebro”18 e isto já
foi usado em tribunais nos Estados Unidos, embora a comunidade científica aponte
que os dados mais relevantes relacionados a esta tecnologia não está publicado na
literatura de trabalhos científicos revisados por pares, tornando impossível checar a
validade do método 19
Plato ‘Apoplogy’ in “The Dilaogues of Plato: (USA: Bantam Dell ,2006)
Immanuel Kant ‘On a supposed right to lie because of philanthropic concerns’ in James Ellington (ed)
Grounding for the Metaphysics of Morals, with on a supposed right to lie because of philanthropic
concerns (USA: HackettPublishing Company, 1993)
17 Paul Roote Woolp, Kenneth Foster, Daniel LAngleben “Emerging neuro-technologies for liedetection: promises and perils” The American journal of Bioethics v. 5 n.2 (2005): 39-49
18 Dr. Lawrence Farwell advertises ( http://www.brainwavescience.com) his brain fingerprinting testing
, that detects information stored in the human brain. A specific, electrical brain wave response, known
as a P300, is emitted by the brain within a fraction of a second when an individual recognizes and
processes an incoming stimulus that is significant or noteworthy. When an irrelevant stimulus is seen,
it is seen as being insignificant and not noteworthy and a P300 is not emitted. However, it is argued by
many scientists that there is no sufficient evidence that the brain
fingerprinter is reliable.
19 See Turhan Canli et als “Neuroethics and National Security” op. cit p.6. See also Martha Farah and
Paul Woolpe “Monitoring and Manipulating Brain Function: New Neuroscience Technologies and Their
Ethical Implications ”The Hastings Center Report, v. 34 n. 3 (2004): 35-45
15
16
124 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Segundo Illes e Greely 20há outras companhias oferecendo serviços de detecção
de mentiras baseados em fMRI como no-lie MRI e CEPHOS. Estas duas companhias
baseiam suas tecnologias em artigos revisados pelos pares os quais dão a estes
produtos uma credibilidade muito maior que a tecnologia de pegadas cerebrais P-300.
Illes e Grelly, entretanto, criticam qualquer tentativa de aplicar esta pesquisa no
mundo real sem antes ser feita mais pesquisa. Segundo eles há boas razões para
duvidar que estes experimentos em fato provam que se pode detectar mentiras no
mundo real através do uso do fMRI e entre estas razões eles citam: a) O fato de que há
muito poucos artigos focados no tema da determinação se os indivíduos estão
mentindo, sendo que esta pesquisa foca muito mais na descoberta de áreas de ativação
cerebral durante o processo; b) a falta de replicação dos resultados por outros grupos
de pesquisa; c) a falta de diversidade dos sujeitos testados; d) a possibilidade dos
sujeitos usarem contramedidas para falsear os resultados e) o fato de que o número
de áreas corticais ativadas nestes testes de mentira e engano inclui muitas áreas, como
a área anterior pré-frontal, a área ventromedial pré-frontal, a área dorsolateral pré
frontal, a área ventromedial pré-frontal, a área para-hipocampal, o cingulado anterior,
o cingulado posterior esquerdo, o caudado temporal e subcortical, o precuneos direito,
o cerebelo esquerdo, a insula, o putâmen, o caudado , o tálamo e regiões do córtex
temporal
Segundo Illes e Greely a ativação de muitas destas regiões é reconhecida como
sendo correlacionada com uma vasta gama de comportamentos cognitivos, incluindo
memória, auto monitoramento, autoconsciência consciente, planejamento e funções
executivas e a emoção, e esta diversidade coloca dúvidas sobre a acurácia de qualquer
método particular de detecção de mentiras. Illes e Greely então chamam a atenção para
a regulação do uso de tecnologias de detecção de mentiras nas cortes e tribunais
dizendo que é necessário prevenir o uso de tecnologias não confiáveis e desenvolver
informação totalmente detalhada sobre os limites da acurácia mesmo de detecção de
mentiras confiável.
Neste meio tempo há entretanto muitos estudos usando fMRI e TMS que
mostram progresso na tarefa de descobrir os mecanismos cerebrais que estão por trás
H. T Greely and J. Illes “Neuroscience-based lie detection: the urgent need for regulation” American
Journal ofLaw and Medicine v.33 (2007): 377-431
20
Cinara Nahra | 125
dos processos de dizer a verdade, mentir e enganar, Em um destes estudos21os autores
descobriram que diferentes padrões de ativação cerebral acontecem quando as pessoas
dizem mentiras e quando elas dizem a verdade e o tipo de mentira modula estes
padrões , de modo que a geração de vários tipos de mentiras envolve diferentes
combinações de processos cognitivos de propósitos gerais os quais podem oferecer
assinaturas neurais confiáveis para vários tipos de mentiras. Em outro estudo 22 os
autores concluíram que é implausível pensar que há uma única e simples “rede de
engamos” a ser descoberta. Ao contrário é possível que o comportamento enganador
resulte de uma combinação sistemática de processos cognitivos. Em muitos estudos os
autores afirmam que eles são capazes de identificar certos padrões de atividade
característico de mentiras, embora não sejam capazes de detectar padrões de atividade
consistente nos indivíduos. Em um destes estudos 23 eles descobriram que em duas
versões de uma tarefa de simples de mentir sujeitos normais exibiram comportamento
consistente e respostas anatômicas funcionais. Enquanto mentiam suas respostas
foram aumentadas significantemente e houve ativação confiável em regiões específicas
do córtex pré frontal. A região cerebral implicada em ambas versões da sua tarefa de
mentir foi a Brodmann bilateral área 47.Em outro estudo24os autores descobriram que
além do fato que há diferenças cognitivas entre engano e verdade e que elas tem
correlatos neurais detectáveis por fMRI, eles também descobriram que o ACC (córtex
cingular anterior) e o SFG (Gyrus superior frontal) são componentes do circuito neural
básico da enganação.
Em outro experimento 25os autores usam tDCS a fim de manipular a produção
de respostas enganadoras e eles descobriram evidencias de que mudanças focais na
excitabilidade do cérebro humano pode experimentalmente influenciar a produção da
mentira, alterando a velocidade e eficiência das respostas mentirosas. Neste
21 G. Ganis, S.M Kosslyin, S. Stose, W.L.Thompson and D.A.Yurgelun Todd “Neural correlates of
different types of deception: an fMRI investigation” Cerebral Cortex v. 13 (2003):830–836
22 Bruce Luber, Carl Fisher, Paul Appelbaum, Marcus Ploesser, Sarah Lisanby “Non-invasive brain
stimulation in the detection of deception: scientifical challenges and ethical consequences” Behav. Sci.
Law v. 27 (2009): 191–208
23 Sean Spence, Tom Farrow, Amy Herford, Iain Wilkinson, Ying Zheng and Peter Woodruff
“Behavioural and functional anatomical correlates of deception in humans” Neuro Report v 12 n 13
2001): 2849-2853
24 D. Langleben, L. Schroeder, J. Maldjian, R. Mc Donald, J.Ragland, C.P O’Brien, R. Childress, “Brain
activity during simulated deception: an event–related functional magnetic resonance study” Neuro
Image v. 15 (2002) : 727–732
25 “Lie-Specific Involvement of Dorsolateral Prefrontal Cortex in Deception” Cerebral Cortex v. 18
(2008):451-455
126 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
experimento os autores testaram dois tipos de mentiras: negar que aconteceu um fato
que realmente aconteceu e produzindo uma resposta falsa sobre um evento que não
aconteceu, e descobriram que os dois tipos de mentira testadas respondem
diferentemente a estimulação sobre o DLPFC o que sugere que os dois tipos de mentira
têm mecanismos neurais distintos. Eles observam que a tarefa que eles administraram
fornece um modelo para dois sub processos associados com a enganação, isto é, a
inibição de respostas verdadeiras (um processo presente mesmo quando o participante
é instruído a mentir) e a produção de uma mentira “fingindo saber” e “fingindo não
saber”.
Alguns dos estudos são mais ambiciosos e reivindicam que são capazes de
detectar a enganação a um nível individual. Em um destes estudos os autores
almejavam usar fMRI para detectar enganos 26a um nível individual os autores usaram
fMRI para mostrar que regiões específicas eram ativadas repetidamente quando os
indivíduos enganavam. Sujeitos participaram em uma simulação criminal roubando
seja um anel ou um relógio. Submetidos ao fMRI os sujeitos negaram o roubo de ambos
os objetos, dizendo a verdade em algumas respostas e mentindo em outras. Os autores
afirmam que foram então capazes de diferenciar corretamente respostas verdadeiras
de respostas enganadoras identificando corretamente o objeto roubado em 90% dos
sujeitos.
Isto tudo parece sugerir que mesmo que seja verdadeiro que no momento nós
não temos uma tecnologia 100% confiável para detectar mentiras, o avanço da
pesquisa neste campo irá inevitavelmente levar a isto, mesmo que seja impossível
prever quando. O advento de uma tecnologia confiável de detecção de mentira pode
ter um enorme impacto na lei e na segurança. Se a tecnologia começar a ser aceita
como evidencia nos Tribunais ou mesmo como um instrumento a ser usado pela
polícia em interrogatórios, nós certamente teremos um sistema de justiça criminal
muito mais justo, com os criminosos sendo punidos e evitando para sempre que
inocentes sejam presos por crimes que eles jamais cometeram. Este poderia ser um
mundo novo em termos de Justiça, mas nós temos de estar preparados para isto,
regulando o uso de tecnologias de detecção de mentiras a fim de tirar o melhor proveito
possível delas e evitar mau uso e abuso.
F. Andrew Kozel, Kevin Johnson, Qiwen Mu, Emily Grenesko,Steven Laken, Mark George “Detecting
deception using functional magnetic resonance imaging ” Biological Psychiatry v.58 n.8 (2005): 605613
26
Cinara Nahra | 127
5 Serotonina e violência
Nos EUA, onde mães que buscam esperma de doadores para seus futuros bebes
tem acesso fácil a informações sobre doadores se diz que mais do que qualquer coisa o
que elas estão interessadas em saber são informações sobre o caráter do possível
doador, se ele é ou não uma pessoa boa. Que a criança seja uma pessoa boa parece ser
um dos traços mais importantes para a maioria dos futuros pais. Isto mostra algo
importante sobre as aspirações das pessoas e seus desejos em termos de
personalidade. Todos nós sabemos que educação é fundamental no processo de
formatar a personalidade de alguém. Mas e sobre outros fatores?
Quais são os fatores bioquímicos envolvidos em certos tipos de comportamento
desejável ou indesejável, bom ou ruim? Serotonina (5~HT) é um neurotransmissor
cuja deficiência tem sido por muito tempo associado a depressão e também
irritabilidade e agressão em primatas e humanos. Em um estudo importante em
macacos Rhesus 27os autores descobriram, confirmando o que havia sido previamente
documentado por eles, que diferenças sociais entre espécies muito próximas são
correlacionadas com atividade da serotonina, e espécies que mostram relativamente
altos níveis de agressão severa (como macacos Rhesus) também tendem a ter baixa
concentração de fluído cérebro-espinhal (CSF) do ácido hidroxiindolacético (5-HIAA)
como macacos pigtailed. Os autores relataram que macacos Rhesus, com baixo CSF 5HIAA, exibiram formas mais sérias de comportamento agressivo. Em outro artigo28 foi
descoberto em um estudo intra-espécies que os macacos Rhesus com baixo CSF níveis
de metabolito de serotonina mostram maior agressão espontânea para com outros da
mesma espécie, se ferem mais e morrem mais jovens, enquanto que aqueles com altos
níveis de CSF de metabolito de serotonina mostram maior proximidade aos seus
pares, são mais “catados” por eles e tem um maior número de vizinhos morando por
perto. Foi também reportado
29
que nos macacos a agressão disfuncional e
comportamento impulsivo associado com a função serotoninérgica são acompanhadas
G.C. Westergaard, · S.J. Suomi, · J.D. Higley, P.T. Mehlman “CSF 5-HIAA and aggression in female
macaque monkeys: species and interindividual differences” Psychopharmacology v. 146 (1999):440–
446
28 Brian Knutson, Owen M. Wolkowitz, Steve W. Cole, Theresa Chan, Elizabeth A. Moore, Ronald C.
Johnson, Jan Terpstra, Rebecca A. Turner, Victor I. Reus, “Selective Alteration of Personality and Social
Behavior by Serotonergic Intervention” American Journal Psychiatry v. 155 (1998) : 373–379
29 Menahem Krakowski “Violence and Serotonin: Influence of Impulse Control, Affect Regulation, and
Social Functioning” J Neuropsychiatry Clin Neuroscience v. 15 n.3 ( 2003) : 294-304
27
128 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
por disfunção social, baixa integração com o grupo e estatuto social mais baixo. Como
podemos ver os efeitos dos baixos níveis de serotonina em macacos podem ser
devastadores em termos de sua sobrevivência e interações sociais. Baixos níveis de
serotonina em alguns macacos afetam não somente a outros no grupo, mas também e
eles próprios que se machucam com maior frequência e morrem mais
prematuramente. Então é importante entender todos os mecanismos que afetam os
níveis de serotonina e não surpreendentemente eles parecem ser afetados também
pelo ambiente. No artigo 30 os autores afirmam que há vários artigos relatando que
macacos removidos de suas mães no nascimento e criados em um berçário com pares
da mesma idade exibiam cronicamente baixas CSR 5-HIAA concentrações que ficam
evidentes na infância tardia e continuam na adolescência e vida adulta. Foi também
apontado em outro artigo 31que a experiência estressante da separação maternal tem
consequências robustas e de longo termo para o sistema da serotonina nos macacos
Rhesus. Este trauma na infância causa ansiedade relacionada a comportamentos
relacionados a depressão associados com adaptação social deficiente e interação por
toda vida.
Se assim é nos macacos porque seria diferente nos humanos? Um estudo
clínico32 em pacientes psiquiátricos sugere que o baixo nível de atividade de serotonina
no cérebro pode estar relacionado a desordens psiquiátricas envolvendo afeto hostil e
comportamento agressivo. Os autores citam estudos que relacionam pessoas com uma
história de comportamento impulsivo violento (por exemplo incendiários, criminosos
violentos, pessoas que morrem por métodos violentos de suicídio) com baixo CSF
níveis de metabolito de serotonina e também cita estudos que relatam que alguns
pacientes com histórias violentas (por exemplo com personalidade antissocial)
mostram sinais de
terem sua função
cerebral
relacionada a serotonina
Courtney Shannon, Melanie L. Schwandt, Maribeth Champoux, Susan E. Shoaf, Stephen J. Suomi,
Markku Linnoila, James D. Higley “Maternal Absence and Stability of Individual Differences
in CSF 5-HIAA Concentrations in Rhesus Monkey Infants” American Journal Psychiatry v. 162 (2005):
1658– 1664
31 Klaus –Peter Lesh “Linking emotion to the social brain” European Molecular Biology Organization
v.8 (2007): 24-29
32 Brian Knutson, Owen Wolkowitz, Steve Cole, Teresa Chan, Elizabeth Moore, Ronald Johnson, Jan
Terpstra,Rebecca Turner, Victor Reus “Selective Alteration of Personality and Social Behavior by
Serotonergic Intervention”American J Psychiatry v. 155 n. 3 (1998): 373-378
30
Cinara Nahra | 129
comprometida 33 . Em outro artigo 34 é observado que reduzida CSF 5-HIAA foi
encontrada em pacientes psiquiátricos agressivos vítimas de suicídio por meios
violentos, ofensores com impulsos violentos e incendiários impulsivos, mas não foi
encontrada em ofensores violentos, mas não impulsivos. Em outro artigo 35 os autores
afirmam que a relação entre serotonina e violência em homens foi estabelecida em
múltiplos estudos. Os autores descobriram que uma extensa literatura datando de
antes de 1960 fornece evidencia de uma associação entre agressões animais e função
serotoninérgica reduzida. A função serotoninérgica foi um marcador e fator preditivo
de violência e suicídio em várias populações. Eles observam, entretanto, que nem todo
comportamento agressivo está associado com a diminuição da função serotoninérgica.
Estes comportamentos agressivos eram frequentemente mal- adaptados de algum
modo, seja impulsivo, emocional ou socialmente disfuncional. Controle de impulso,
regulação emocional e funcionamento social parecem ser qualificadores importantes
do comportamento violento associado com a disfunção serotoninérgica. Os autores
neste estudo concluíram que há uma relação complexa entre serotonina e agressão
onde vários fatores contribuem. Eles observam que a serotonina influencia fatores
sociais e psicológicos e fatores sociais e psicológicos influenciam a serotonina.
É muito provável que existam muitos fatores envolvidos no comportamento
violento, tais como fatores sociais e psicológicos, a química cerebral e os genes.
Davidson et all
36 sugerem
que agressão afetiva e impulsiva pode ser uma falha de
regulação emocional e que indivíduos predispostos para a agressão e a violência têm
uma anormalidade no circuito central responsável por estratégias comportamentais
adaptativas. Para eles agressão impulsiva e violência, independentemente da causa
imediata, refletem anormalidades no circuito de regulação emocional do cérebro.
33 Brian Knutson and als cites Coccaro EF, Kavoussi RJ ‘Neurotransmitter correlates of impulsive
aggression’ in Aggression and Violence: Genetic, Neurobiological, and Biosocial Perspectives. Ed. by
Stoff DM, Cairns RB.
Hillsdale, NJ (Lawrence Erlbaum Associates, 1996) p. 67– 85 and also Virkkunen M, et als “CSF
biochemistries,glucose metabolism, and diurnal activity rhythms in alcoholic, violent offenders, fire
setters, and healthy volunteers”Arch Gen Psychiatry v. 51 (1994) :20–27
34 Richard J. Davidson, Katherine M. Putnam, Christine L. Larson “Dysfunction in the Neural Circuitry
of EmotionRegulation: A Possible Prelude to Violence” Science v. 289 (2000): 591-594
35 Menahem Krakowski “Violence and Serotonin: Influence of Impulse Control, Affect Regulation, and
SocialFunctioning” The Journal of Neuropsychiatry and Clinical Neuroscience vol 15 n.3 (2003): 294305
36 Richard Davidson et als “Dysfunction in the Neural Circuitry of Emotion Regulation: A Possible
Prelude to Violence” op.cit.
130 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Em outro artigo 37os autores pontuam que estudos clínicos corroboraram o nexo
entre variantes da 5-HTT (a proteína transportadora da serotonina) e desordens na
regulação da emoção. Eles enfatizaram que a sinalização serotoninérgica sinalizando
caminhos integra não apenas funções fisiológicas básicas, mas também tarefas
elementares de processamento sensório, cognição, regulação das emoções e atividade
motriz e como ela modela vários sistemas cerebrais durante o desenvolvimento ela
prepara o cenário para funções que regulam emoções durante toda a vida. Ela é
também um modulador crucial do comportamento emocional incluindo ansiedade e
respostas ao stress, impulsividade e agressividade. Eles então observaram que com o
desenvolvimento de técnicas de imagem foi possível ter o primeiro relato de uma
associação entre genótipo 5-HTT e excitabilidade do córtex pré-frontal, o que implica
uma relação entre o processamento cognitivo e funções 5-HTT em humanos. O autor
também enfatizou que a genômica biossocial agora nos permite explorar a natureza
das variações genéticas entre humanos e sua influência em diferenças individuais bem
como o impacto relativo da genética e fatores ambientais envolvidos na cognição,
emoção e comportamento.
6 Serotonina e gens: medo e justiça
Em um estudo recente 38 os efeitos de um polimorfismo funcional na região
regulatória (5-HTTLPR) do transportador (5-HTT) do gene humano 5-HT em
condições de observação de medo e riscos na tomada de decisões sob incerteza, bem
como ansiedade multidimensional em pessoas saudáveis, foi investigada. Eles
descobriram que em comparação com o homozigoto para a versão longa do 5HTTLPR, os portadores da versão mais curta apresentavam condições observacionais
de medo aumentadas e redução de tomada de risco financeiro. .Os autores então
identificaram avaliação social, ameaças físicas e rotinas diárias como as dimensões dos
traços de ansiedade que são especificamente influenciadas pelo 5-HTTLPR. Eles
concluíram que estes efeitos do 5-HTTLPR corroboram as visões desenvolvidas que
Klaus –Peter Lesh “Linking emotion to the social brain” op.cit.,
Liviu Cris, Simona Pana, Romana Vulturar, Renata M. Heilman, Raluca Szekely, Bogdan Druga˘,
Nicolae Dragos and Andrei C. Miu1 “Genetic contributions of the serotonin transporter to social learning
of fear and economic decision making” SCAN v. 9 (2009): 399-408
37
38
Cinara Nahra | 131
emoções sociais complexas e funções cognitivas são significantemente influenciadas
por variações genéticas.
A influência da serotonina está agora sendo estudada até mesmo em
comportamentos mais complexos relativos a justiça. Em dois recentes estudos
39 o
papel da serotonina no comportamento das pessoas no ultimatum game (jogo do
ultimato) foi investigada. Investigando os efeitos da manipulação da função 5-HT no
comportamento de rejeição no Ultimatum Game 40 usando o procedimento de
depleção de triptofano (ATD) para temporariamente baixar os níveis do 5-HT foi
encontrado que, comparado ao placebo, o ATD significantemente aumentou as taxas
de rejeição a ofertas injustas; eles tenderam a rejeitar ofertas baixas mais
frequentemente. Os autores então concluíram que abaixando temporariamente os
níveis de 5-HT aumentava a retaliação à injustiça percebida sem afetar o humor ou o
julgamento sobre o que é justo. Em outro estudo41os autores descobriram que o nível
médio plaquetário de serotonina era significantemente mais baixo em participantes
que rejeitavam ofertas injustas do que naqueles que aceitavam estas, sugerindo que
baixo volume plaquetário de serotonina pode servir como um biomarcador confiável
para identificar pessoas que mais provavelmente rejeitarão ofertas injustas no
ultimatum game e que o sistema serotoninérgico pode cumprir um papel importante
no comportamento de rejeição de ofertas no UG.
Outra descoberta colateral deste estudo, que os autores classificam como
interessante, é que amostras retiradas de indivíduos que fizeram ofertas injustas
mostraram uma pequena, mas significativa, redução dos níveis médios plaquetários
de serotonina comparados com aqueles que fazem ofertas Justas. Os autores não
discutem esta segunda descoberta, mas ela parece muito importante em termos de
comportamento ético. Os dois resultados analisados conjuntamente, isto é, que as
pessoas com níveis mais baixos de serotonina nas plaquetas menos provavelmente
rejeitarão ofertas injustas e mais provavelmente farão ofertas injustas, se confirmado,
Molly Crockett, Luke Clark, Golnaz Tabibnia, Matthew D. Lieberman, Trevor W. Robbins
“Serotonin Modulates Behavioral Reactions to Unfairness” Science v. 320 n.27 (2008): 1739
40 The ultimatum game is a game where there are two particpantes. It is given to participant 1 a certain
amount of money and he /she has to share some of this money with participant 2. He/she can offer
whatever he/she wants to participant 2, but if participant 2 does not accept the offer, neither will receive
any money.
41 Enzo Emanuelea, Natascia Brondinob, Marco Bertonaa, Simona Rea, Diego Geroldi “Relationship
between platelet serotonin content and rejections of unfair offers in the ultimatum game” Neuroscience
Letters v. 437 (2008):158–161
39
132 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
poderia lançar luzes no nosso entendimento do papel da serotonina em relação a
justiça e auto interesse. Poderia sugerir que pessoas com baixo nível de serotonina nas
plaquetas tendem a se comportar de um modo mais mesquinho ou auto interessado
que outras pessoas quando estão em posição de poder (no caso da UG, pessoas na
posição de fazer as ofertas) ao mesmo tempo que irão retaliar aqueles que não se
comportam de modo justo com eles, quando estão na posição de receptadores (no UG,
pessoas recebendo as ofertas). Este comportamento é muito próximo a aquilo que se
chama comportamento oportunista que surge quando as pessoas querem receber os
benefícios da cooperação, mas se recusam a cooperar e é muito relevante em termos
de ética já que sugere um tipo de comportamento “incoerente”, desrespeitando a
famosa regra de ouro (não faça aos outros aquilo que não queres que te façam).
Todos estes estudos mostram que a serotonina pode estar envolvida não
somente no mecanismo da depressão e de alguns tipos de comportamento violento,
mas também em mais complexas interações sociais envolvendo atitudes econômicas e
éticas. Há mesmo estudos recentes sugerindo que a serotonina poderia promover
comportamento pró social aumentando a aversão ao dano, um sentimento que afeta
tanto o julgamento moral quanto o comportamento moral 42 . A descoberta dos
mecanismos precisos da serotonina e suas interações com o ambiente seriam cruciais
para futuros desenvolvimento não apenas de tratamentos para depressão e stress, mas
também para ajudar pessoas que apresentam sintomas de comportamento violento e
talvez isto pudesse também a ajudar pessoas que são extremamente egoístas e
antiéticas a mudar suas atitudes. Estamos agora aqui no campo do aprimoramento
moral, aonde uma outra substancia chave, a oxitocina, pode ter uma importância
crucial.
7 Oxitocina: auto confiança e confiança
Oxitocina é um peptídeo de nove aminoácidos (um nono peptídeo). As
descobertas dos estudos em humanos são semelhantes aos estudos em animais e
apontam para o papel da oxitocina na resposta ao stress e no aumento da sociabilidade,
42 Molly Crockett, Luke Clark, Marc Houser and Trevor Robbins “Serotonin selectively influences moral
judgment and behaviour through effects on harm aversion” PNAS v.107 n.40 (2010):17433-17438.See
also Heike Tost and Adreas Meyer Lindenberg “I fear for you: A role for serotonin in moral behaviour”
PNAS v. 107 n.40 (2010) :17071–17072
Cinara Nahra | 133
ainda que os mecanismos que o embasam ainda não estejam bem entendidos 43 . É
possível que a oxitocina possa estar envolvida em um número de desordens clínicas
envolvendo déficits sociais e/ou problemas com a proximidade, incluindo autismo e
fobias sociais. Em relação ao autismo, por exemplo, depois que os estudos
neurocientíficos identificaram a oxitocina como cumprindo um papel chave no
comportamento social, foi conduzido um estudo recente44 e os autores encontraram a
primeira evidencia que spray nasal de oxitocina melhora o reconhecimento das
emoções em jovens diagnosticados com desordens do espectro autista, sugerindo o
potencial do spray nasal de oxitocina como tratamento para melhorar a comunicação
social e a interação neste grupo.
No artigo Oxytocine Modulates Neural Circuitry for Social Cognition and Fear
in Humans (Oxitocina Modula o Circuito Neural para Reconhecimento Social e Medo
em humanos)45 os autores mostram que a função da amígdala humana é fortemente
modulada pela oxitocina. Eles usaram fMRI para fazer imagens da ativação da amídala
induzindo medo por estímulos visuais em homens saudáveis e descobriram que, em
comparação ao placebo, a oxitocina significantemente diminui a ativação da amídala,
sendo os efeitos mais pronunciados para faces (estímulos socialmente relevantes) que
cenas. Eles pontuam que estes resultados indicam um mecanismo neural para os
efeitos da oxitocina na cognição social no cérebro humano e fornecem uma
metodologia e um fio condutor para explorar estratégias terapêuticas em desordens na
qual a função normal da amígdala está implicada como fobias sociais.
Em outro estudo
46
envolvendo expressões faciais os autores também
compararam um grupo a quem foi ministrado oxitocina com um grupo a quem foi
ministrado placebo e eles concluíram que a redução da atividade da amígdala diante
de estímulos negativos e positivos pode reduzir a incerteza sobre o valor preditivo de
um estímulo social e, portanto, facilita o comportamento de aproximação social. Há
Jennifer A. Bartz, and Eric Hollandera “Hormones and Behavior” v.50 n.4 (2006): 518-528
Adam J. Guastella, Stewart L. Einfeld, Kylie M. Gray, Nicole J. Rinehart, Bruce J. Tonge, Timothy J.
Lambert,and Ian B. Hickie " Intranasal Oxytocin Improves Emotion Recognition for Youth with Autism
Spectrum Disorders"Biological Psychiatry v. 67 (2010) :692–694
45 Peter Kirsch, Christine Esslinger, Qiang Chen, Daniela Mier, Stefanie Lis, Sarina Siddhanti, Harald
Gruppe,Venkata S. Mattay, Bernd Gallhofer, and Andreas Meyer-Lindenberg “Oxytocin Modulates
Neural Circuitry for Social Cognition and Fear in Humans” The Journal of Neuroscience. v.25 n
49(2005) :11489 –11493
46 Gregor Domes, Markus Heinrichs, Jan Gläscher, Christian Büchel, Dieter F. Braus, and Sabine C.
Herpertz “Oxytocin Attenuates Amygdala Responses to Emotional Faces Regardless of Valence”
Biological Psychiatry v. 62 (2007):1187–1190
43
44
134 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
também
estudos
que
sugerem
que
certas
doses
de
oxitocina
momentaneamente aumentar a autoconfiança. Em um destes estudos
47 os
podem
autores
relataram que em seus estudos com pessoas diagnosticadas com a desordem da
ansiedade social (SAD), uma desordem psiquiátrica cuja característica chave é um
medo excessivo de avaliações por outros e representações negativas abertamente
negativas a administração da oxitocina melhorou a representação mental de si após
terapia, embora estes efeitos possam ser curtos ou em situações específicas.
Isto está em linha com um outro estudo 48onde os autores relatam que uma
única dose de oxitocina administrada intranasalmente é suficiente para incrementar a
experiência de segurança no apego. Segundo os autores a oxitocina parece induzir um
estado momentâneo de mudança mental no qual no qual sujeitos classificados como
inseguros mudam para altos índices de segurança no apego, sendo que segurança no
apego é caracterizada como a confiança dos indivíduos para confiar em figuras a quem
ele é apegado para obter carinho, segurança e proteção, e quando sozinho para ter
acesso a uma relação internalizada de segurança.
Estes estudos, tomados em conjunto, podem sugerir que a oxitocina pode estar
envolvida no mecanismo da autoconfiança nos seres humanos e há outros que sugerem
que a oxitocina poderia estar envolvida no mecanismo de acreditar nas pessoas. Em
um destes estudos
49 os
autores desenvolveram o que eles chamam de “jogo da
confiança” e “jogo do risco”. No jogo da confiança dois sujeitos interagindo
anonimamente fazem o papel seja de um investidor ou administrador. O investidor
tem de transferir uma certa quantidade de dinheiro para a conta do administrador e
se o administrador transfere certa quantidade de dinheiro de volta ambos terão lucro.
Entretanto o administrador tem a opção de não retornar o dinheiro para o
investidor e neste caso o investidor estaria em uma situação financeira pior de que se
ele não tivesse confiado. Eles também desenvolveram o “jogo do risco”, na qual o
investidor enfrenta as mesmas escolhas do jogo da confiança, mas na qual um
Adam J. Guastella, Alexandra L. Howard, Mark.R. Dadds, Philip Mitchell, Dean S. Carson “A
randomized controlled trial of intranasal oxytocin as an adjunct to exposure therapy for social anxiety
disorder”Psychoneuroendocrinology v. 34 (2009) : 917- 923
48 Anna Buchheim, Markus Heinrichs, Carol George, Dan Pokorny, Eva Koops, Peter Henningsen,
Mary-Frances O’Connor and Harald Günde “Oxytocin enhances the experience of attachment security”
Psychoneuroendocrinology v. 34 n.9 (2009): 1417-1422
49 Michael Kosfeld, Markus Heinrichs, Paul J. Zak, Urs Fischbacher1and Ernst Fehr1 “Oxytocin
increases trust in humans” Nature v. 435 (2005): 673-676
47
Cinara Nahra | 135
mecanismo randômico, não a decisão do administrador determinaria o risco do
investidor.
O mecanismo randômico no experimento do risco replicava as decisões dos
administradores e, portanto, os investidores enfrentariam exatamente os mesmos
riscos que o experimento da confiança; entretanto suas decisões de transferência não
estariam permeadas pela interação social porque não há administradores no
experimento de risco. Eles então formaram dois grupos, para um grupo foi
administrada oxitocina nasal e para o outro foi dado placebo e eles descobriram que
no experimento da confiança a oxitocina aumentou consideravelmente a confiança dos
investidores. A média transferida pelos investidores foi 17% maior no grupo da
oxitocina e 45% dos sujeitos no grupo da oxitocina mostraram o nível maior de
confiança contra somente 21% no grupo do placebo enquanto no experimento de risco
o comportamento não foi diferenciado entre os grupos do placebo e da oxitocina. Os
autores também descobriram que as diferenças entre o grupo da oxitocina no
experimento da confiança e o grupo da oxitocina no experimento do risco foram
altamente significativas sugerindo que a oxitocina afeta a confiança especificamente
em relações interpessoais.
Eles apontaram que suas descobertas podem ser particularmente importantes
no tratamento da fobia social que é caracterizada por déficits sociais, incluindo medo
persistente e aversão a interações sociais. Eles enfatizam, entretanto, o perigo do mau
uso destas descobertas induzindo comportamentos de confiança que atores egoístas
poderiam explorar. É importante que os autores chamem atenção para este ponto
porque apesar do fato de que estes estudos são extremamente importantes e poderiam
ser usados para tornar a vida das pessoas melhor, ajudando a encontrar tratamentos
futuros para certas doenças ou síndromes que interferem e diminuem as habilidades
sociais das pessoas , estamos em um campo que poderia facilmente ser usado para o
mal e não para o bem, por exemplo, induzindo no futuro comportamentos super
abertos para pessoas que poderiam ser facilmente enganadas por aqueles com más
intenções , facilitando sequestros, estupros, roubos e mesmo formas mais sofisticadas
de enganação, induzindo as pessoas a fazer investimentos de alto risco.
O pássaro Dodô, uma espécie extinta (provavelmente por conta de sua fácil
aproximação e ausência de medo dos humanos e outros animais) permanece como um
aviso do que é possível que aconteça com uma espécie e também um alerta do que é
136 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
possível acontecer no comportamento relativo a membros de sua própria espécie, onde
o fato de pessoas serem super abertas, especialmente crianças, podem torna-los
vulneráveis a pessoas maliciosas.
8 Oxitocina: generosidade, altruísmo e mesquinhez
O papel da oxitocina no comportamento humano tem sido testado em uma
variedade de jogos econômicos como o Jogo do Ditador (Dictator game), o Ultimatum
Game (jogo do ultimato) e outros. Em um destes experimentos50 o gene que codificava
o receptor de oxitocina relacionado (OXTR) foi testado em associação com o “jogo do
Ditador”
51
e um paradigma relacionado, O Social Values Orientation (SVO)
(orientação de valores sociais) foi usado na atarefa. Eles descobriram associação entre
a região do gene e ambos DG e SVO, sendo a associação mais interessante observada
com rs1042778. Eles concluíram que a variação comum no gene receptor da oxitocina
está por trás das diferenças individuais no comportamento pró social. Em outro
estudo52 foi administrado aos pacientes 40 IU de oxitocina (OT) ou placebo enquanto
participavam do Jogo do Ditador e do Jogo do Ultimato. O resultado foi que ofertas do
grupo OT no jogo do UT foram 80% mais generosas que aquelas na qual um placebo
foi administrado, mas não teve impactos nas ofertas do DG (contrariamente a estudos
prévios onde esta correlação foi encontrada). Os autores interpretaram isto como
sugerindo que OT aumenta a generosidade e a empatia e explicam o não aumento no
DG como significando que OT tem mais impacto na generosidade que no altruísmo.
Certamente os dois estudos fortemente sugerem que há uma associação positiva
importante entre OT e generosidade. Os autores do primeiro artigo, entretanto,
notaram a discrepância entre os dois estudos (OT interferindo no DG em um estudo
mas não em outro) sugerindo que talvez a resolução destes resultados aparentemente
discrepantes venha a revelar uma estratégia farmacogenética combinada onde sujeitos
Salomon Israel, Elad Lerer, Idan Shalev, Florina Uzefovsky1, Mathias Riebold, Efrat Laiba, Rachel
Bachner-Melman1, Anat Maril1, Gary Bornstein1, Ariel Knafo1, Richard P. Ebstein “The Oxytocin
Receptor (OXTR) Contributes to Prosocial Fund Allocations in the Dictator Game and the Social Value
Orientations Task” Plos One v.4 n.5 (2009) : 1- 10.
51 DG is the game where people are given money and they can choose whether or not to give some money
to the another participant, but contrarily to the UG, if they choose to give nothing or minimal amounts
the other participant can not do anything), he has to accept the offer.
52 Paul Zak, Angela Stanton, Sheila Ahmadi “Oxytocin Increases Generosity in Humans” Plos One v. 2
n.11 (2007): |1- 5
50
Cinara Nahra | 137
jogando o jogo do ditador poderiam também ser estratificados por genótipo. Me
parece, porém, que ainda permanece inexplicado porque OT não teve impacto nas
ofertas no DG no segundo estudo, porque se eles de fato se tornam mais generosos sob
o efeito da OT nós poderíamos esperar este aumento na generosidade não somente
quando os outros participantes podem retaliar, mas também quando eles não podem.
Isto é extremamente relevante para os estudos da moralidade porque se for
confirmado mais tarde que a oxitocina aumenta a generosidade somente no UG uma
interpretação possível seria que este aumento na generosidade é auto interessado e
poderia significar nada mais que uma estratégia para ser mais eficiente no jogo,
evitando a punição do outro jogador ao não aceitar a oferta e tendo como consequência
que a pessoa que fez a oferta não ganharia nada também. Por outro lado, se confirmado
que a oxitocina aumenta a generosidade em ambos os jogos (incluindo o DG aonde não
há possibilidade de retaliação ou punição) então isto seria uma forte indicação que a
oxitocina está envolvida nos mecanismos que operam quando as pessoas agem de
forma menos interessada e mais altruísta.
9 O Futuro da ética e a ética do futuro
Todos estes estudos mostram um importante caminho para os estudos sobre
moralidade (ou sobre a falta de moralidade) e atitudes conectadas a moralidade como
egoísmo, altruísmo, preconceito, jogo limpo e punição. Nós estamos agora começando
a entender quais são os mecanismos cerebrais conectados a estes comportamentos,
embora pareça que ainda estejamos na idade da pedra em termos do que é conhecido.
O futuro, no entanto, é muito promissor. O cenário no qual poderíamos induzir um
comportamento mais moral e cooperativo nas pessoas através da estimulação cerebral
ou mesmo através de fármacos ainda está longe e isto levanta questões morais me si
mesmo, tais como se é moralmente permitido aprimorar a nós mesmos por quaisquer
meios53. Entretanto não há dúvida que se nós entendermos os processos morais que
estão por trás de comportamentos morais isto poderia nos ajudar não apenas a
On moral enhancement see Tom Douglas “Moral Enhancement” Journal of Applied Philosophy v.25
n. 3 (2008): 228-245; Halley Faust “Should we select for genetic moral enhancement? A thought
experience using the Moralkinder (MK+) haplotype” Theor Med Bioeth vol 29 (2008) :397–416; Ingmar
Person and Julian Savulescu “The perils of cognitive enhancement and the urgent imperative to enhance
the moral character of humanity”,Journal of Applied Philosophy v. 25 n.3 (2008): 162-177 ; Cinara
Nahra
“The
moral
enhancement
of
humankind”
available
at:
https://books.google.com.br/books?hl=pt-nhancement%20of%20humankind&f=false
53
138 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
entender melhor como as pessoas tomam decisões morais e agem moralmente, mas
poderia também ser usado no futuro para beneficiar pessoas que querem agir de um
modo mais altruísta, amigável, generoso, confiável e tolerante. Farei agora uma breve
análise de como a pesquisa sobre moralidade pode evoluir e como cada
comportamento relacionado a moralidade poderia contribuir para a construção de
uma sociedade mais amigável e ética no futuro.
Altruísmo
Altruísmo basicamente significa ajudar alguém sem nenhuma expectativa de
recompensa ou ganho.O comportamento altruísta é provavelmente um dos principais
comportamentos relacionados a moralidade, já que a essência dos atos morais, ao
menos na visão de autores como Kant é precisamente agir unicamente pelo respeito à
lei moral54 (devo agir sempre de um modo tal que a máxima de minha ação deva se
tornar em uma lei universal), isto é, agir de um modo que possa ser universalizado e
não baseado no interesse próprio. Kant faz uma distinção entre agir pelo dever e agir
em conformidade com o dever, sendo somente os atos pelo dever considerados morais.
A diferença básica é que somente quando agimos moralmente (por dever) nós
realmente agimos altruisticamente, já que no segundo caso (agir em conformidade
com o dever) apesar do fato que fazemos a coisa certa nós poderíamos estar fazendo
isto em função de algum interesse, e no momento em que não mais tivéssemos o
interesse não faríamos mais a coisa certa. Por exemplo, se a razão pela qual nós
devolvemos ao dono a sua carteira cheia de dinheiro que encontramos nas ruas é a
expectativa de recompensa, no momento em que soubéssemos que não haveria
recompensa não devolveríamos a carteira. Então, apesar do fato que, aparentemente,
a pessoa que devolveu a carteira porque pensou que era seu dever fazê-lo e a pessoa
que
retornou
a
carteira
porque
estava
querendo
a
recompensa
agiram
altruisticamente, na realidade apenas a primeira pessoa de fato agiu altruisticamente
já que a segunda aguardava pela recompensa e se ela soubesse que não seria
recompensada ela não devolveria o dinheiro.
See Immanuel Kant, Groundwork of the Metaphysics of Morals (UK: CAmbridge University
Press,1997): 4: 402
54
Cinara Nahra | 139
As técnicas de imagem podem lançar luzes no nosso entendimento das
possíveis diferenças nos mecanismos neurais que estão por trás dos dois tipos de
atitudes, nos ajudando a entender melhor o altruísmo e como (e se) nós tomamos
decisões verdadeiramente altruístas e agimos de acordo com estas decisões. A
importância do altruísmo para a humanidade é enorme. O impacto se dá não apenas
no microcosmos, com pessoas altruístas cooperando e contribuindo para o bem da
humanidade em pequenas ações (como devolvendo o dinheiro ao dono sem esperar
nada em troca) e ajudando aqueles que necessitam, mas também a nível macroscópico,
onde o verdadeiro altruísmo é um fator importante influenciando pessoas a fazer seu
trabalho de modo apropriado ou evitando que as pessoas sejam corruptas em países
(especialmente subdesenvolvidos) onde os mecanismos de recompensa e punição não
funcionam de modo apropriado. Se as pessoas têm a oportunidade de cometer
pequenas ou grandes contravenções e estão certas que não serão punidas, então a
única coisa que pode pará-las é uma certa dose de altruísmo e moralidade.
Generosidade
Generosidade significa uma certa liberalidade em doar, e é um comportamento
altamente desejável. É me geral por generosidade que as pessoas ajudam aqueles que
necessitam, fazem doações a instituições de caridade, doam seu dinheiro ou tempo
para outros e por causa de outros. O oposto a isto, em um certo sentido, é a avareza:
um desejo excessivo de possuir e uma incapacidade de dividir coisas com outros. A
avareza foi imortalizada na literatura por Charles Dickens com o personagem
"Scrooge”, em “A Christmas Carol”. A avareza levou Scrooge a viver uma vida miserável
se tornando rico, mas vivendo uma vida solitária e infeliz. A avareza é muito ligada a
falta de benevolência e a falta de benevolência é certamente um problema ético.
Benevolência é um daqueles deveres que Kant chamou de “deveres amplos” (em
oposição a “deveres estritos”) isto é, nós temos a obrigação moral de ajudar outros,
embora a extensão desta obrigação permaneça aberta, isto é, nós não temos a
obrigação de ajudar a todos em todos os momentos. No utilitarismo a obrigação de
ajudar os outros é muito mais estrita, já que temos sempre de promover a maior
felicidade para o maior número de pessoas. O entendimento dos mecanismos morais
que estão por trás da generosidade pode ser muito úteis, por exemplo, no marketing,
140 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
tornando a publicidade mais eficiente em termos de estimular as pessoas para
contribuir com instituições de caridade, e também em campanhas para coletar
dinheiro para boas causas. A possibilidade de mau uso é, entretanto, sempre presente,
já que este conhecimento pode ser usado para estimular pessoas a fazer doações para
causas que não são tão nobres ou pode mesmo ser usado para que pessoas generosas
sejam exploradas, mas então o problema não estará mais relacionado à pesquisa sobre
a generosidade, mas sim as leis e regras que tem sido estabelecidas e que devem ser
estabelecidas para que se evite abusos e mau uso de descobertas futuras.
Confiança, auto confiança e medo
Acreditar nos outros e ter confiança em nós mesmos está fortemente conectado
ao medo interpessoal. Aqui o que Aristóteles disse em termos do sentimento do medo
em geral55, apontando que a virtude em relação a este sentimento, ou seja, a coragem,
é o ponto mediano no qual o medo é sentido na medida correta, enquanto excesso de
medo caracteriza covardia e falta de medo temeridade, sendo ambos vícios, pode ser
aplicado a esta categoria especial de medo, ou seja, medo dos outros. Em relação ao
medo interpessoal parece ser o caso que medo excessivo possa levar a dificuldades
sérias na aproximação e relação com outras pessoas, e a ausência de medo, por outro
lado, poderia levar a um comportamento “super aberto” que poderia levar pessoas
maliciosas a tirar vantagem desta super abertura , especialmente quando se tratam de
crianças. Os estudos usando fMRI e os estudos usando oxitocina estão começando a
jogar luzes nos mecanismos cerebrais envolvidos na confiança ou desconfiança das
pessoas e de nós mesmos. Estes estudos podem levar no futuro a descobertas e mesmo
possíveis tratamentos em relação a síndromes sociais e mesmo autismo.
Punição altruística
Punição altruística significa punir pessoas que não cooperam, mesmo se a
punição é custosa. A punição altruística é bem exemplificada em jogos como o
Ultimatum Game, onde os respondentes não aceitam ofertas injustas a fim de punir a
pessoas que fez a oferta, mesmo sabendo que ao assim proceder iriam perder o
55
Aristotle, The Nichomachean Ethics (UK: Oxford University Press, 2009)
Cinara Nahra | 141
dinheiro que foi transferido para eles. A punição altruística então, mesmo custosa para
o agente que pune, é benéfica para a sociedade porque aumenta a cooperação e evita
os “free riders” (os oportunistas que querem se beneficiar do grupo, mas se recusam a
cooperar)56
Os benefícios da punição altruística são claros: evitar os “free riders”, os
aproveitadores, que então nada mais ganhariam por conta precisamente da punição
altruística que os forçariam a cooperar, e quando a cooperação aumenta a sociedade
como um todo se beneficia disto. O elo perdido nesta cadeia é a pergunta “porque as
pessoas praticariam a punição altruística já que embora benéfica para a sociedade ela
é custosa para os indivíduos que a praticam?”. Fehr 57com seus estudos usando fMRI
dá uma pista para isto mostrando que a punição altruística provoca alívio ou mesmo
satisfação para aquele que pune, ativando áreas relacionadas a recompensa em regiões
cerebrais, algo que é um resultado muito interessante porque sugere que a punição
altruística, psicologicamente falando, é auto interessada.
A punição altruística parece estar conectada a altos níveis de cooperação na
sociedade humana e parece ser necessário manter estes níveis de cooperação.
Entretanto em outro estudo 58os autores concluíram que a cooperação só se mantém
se as condições para a punição altruística forem relativamente favoráveis: baixo custo
para aquele que pune e alto impacto para o punido. Estes resultados são altamente
importantes porque poderíamos inferir que se uma sociedade é capaz de manter estas
condições (punição satisfatória dos que não cooperam a um baixo custo para os que
punem) a sociedade seria capaz de manter altos níveis de cooperação, o que é desejável
não apenas em termos de ética, mas também impacta na economia, no
desenvolvimento e na qualidade de vida. Uma sociedade na qual as pessoas cooperam
é uma sociedade aonde mais pessoas estão querendo contribuir com o grupo, pagando
as taxas que reverterão para a saúde, educação e segurança de todos. Uma sociedade
mais cooperativa é uma na qual os mais ricos estão em realidade preocupados com o
bem-estar sós pobres e estão querendo contribuir para a erradicação da pobreza. Ao
See Ernst Fehr and Urs Fischbacher "The nature of human altruism" Nature v. 425 (2003): 785-791
and also Ernst Fehr and Simon Gachter "Altruistic punishment in humans" Nature v. 415 (2002): 137140
57 Dominique de Quervain, Urs Fischbacher,Valerie Treyer, Melanie Schelhammer, Ulrich
Schnyder,Alfred Buck,Ernst Fehr " The Neural Basis of Altruistic Punishment " Science v. 305 (2004):
1254- 1258
58 Martijn Egas and Arno Riedl "The economics of altruistic punishment and the maintenance of
cooperation"Proceedings of the Royal Society Biological Sciences v. 275 (2008): 871 - 878
56
142 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
mesmo tempo, dado os altos níveis de punição para os “free riders” (e
consequentemente a punição da corrupção e todo tipo de crimes) a corrupção em todos
os níveis deveria também diminuir. No lado mais desfavorecido da cadeia este cenário
diminui a exclusão e os excluídos terão então mais incentivo para cooperar levando a
um círculo virtuoso de cooperação e comportamento ético.
Violência
Os números da violência estão muito altos em todo o mundo e são assustadores.
Quando se olha para o Brasil verificamos que desde o início da guerra do Iraque
20.000 pessoas por dia morreram no Iraque, enquanto são 45.000 pessoas por ano
mortas no Brasil 59 . Assassinato é um grande problema de saúde e especialmente
devastador para aqueles que tem entre 15 e 34 anos de idade 60. Sendo a violência um
problema tão grande é difícil não ver os grandes benefícios que a pesquisa sobre os
mecanismos cerebrais da violência e o papel da serotonina no comportamento violento
poderia trazer. Contrariamente ao que alguns pensam a pesquisa nesta área não nos
torna cegos para as causas ambientais e sociais da violência, mas ao contrário é uma
ferramenta muito importante a ser usada para lidar com o problema.
Aqui é
importante evitar qualquer abordagem reducionista evitando tanto o reducionismo
social, que somente estabelece causas sociais para o problema da violência, como
também o reducionismo médico, que somente vê causas psicológicas. Ao construir a
abordagem integral onde podem ser vistas todas as causas da violência: social, cultural,
psicológica, neuronal e outras somos capazes de combater o problema com mais
eficiência. Seria muito simplista pensar um cenário futuro aonde uma injeção de
serotonina poderia “curar “pessoas violentas, mas por outro lado seria ingênuo pensar
que a serotonina e a estimulação cerebral não deveriam ser usadas como mais uma
ferramenta por pessoas que tem certos tipos de comportamento violento e querem
mudar.
Ver site: http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?edt=22&id=88769. O secretário
nacional de segurança publica do Brasil ,Ricardo Balestrini, em entrevista em 10/3/2010 said that there
are 45.000 pople murder each year in Brazil. Acording to the international agency AFP in the the 5 first
years of was in Iraq .there was a total of 97,639 people killed by war- related causes, an year average of
19,527 people killed a year, what is half of people murder in Brasil each year.
60
See
"O
Mapa
da
Violência
no
Brasil"
Instituto
Sangari,
2010
http://www.institutosangari.org.br/mapadaviolencia/pr_MapaViolencia2010.pdf
59
Cinara Nahra | 143
O desafio ético aqui seria preservar o livre arbítrio das pessoas, balanceando o
respeito pelas pessoas que não querem ser tratadas com o interesse social de que não
se tenha a segurança da comunidade ameaçada.
Preconceito
Todos nós sabemos o quão maligno é o preconceito, seja ele preconceito de raça,
de gênero, de orientação sexual ou qualquer outro. Atitudes preconceituosas são uma
subclasse de atitudes imorais e contribuem por uma grande parte do sofrimento no
mundo vitimizando as pessoas de muitos modos. Alport na sua escala de preconceito61
mostra que ao final da cadeia do preconceito, que começa com o abuso verbal, está a
exterminação e mesmo o genocídio.
Os estudos que estão sendo realizados sobre os circuitos cerebrais do
preconceito sugerem que o preconceito de raça pode ser extremamente sutil, operando
inconscientemente nas pessoas e confirmando aquilo que em um certo sentido já se
sabe, ou seja que o preconceito pode ser extremamente perigoso precisamente porque
ele muitas vezes não é explícito e muitas pessoas não admitem a sua existência, mas
acabam agindo de um modo preconceituoso. Isto também conforma o que estudos com
pessoas com a Síndrome de William estão sugerindo, ou seja, que os mecanismos
cerebrais que operam no preconceito de raça e de gênero são distintos. Seria também
importante estender estes estudos para áreas como a homofobia, mas ao menos até o
presente momento, na revisão bibliográfica que fiz não foi possível descobrir estudos
relacionados a compreensão dos mecanismos neurais da homofobia. Os avanços dos
estudos sobre os circuitos cerebrais do preconceito podem levar a importantes
descobertas sobre como eles operam e estas descobertas podem ajudar as pessoas a
levarem vidas menos preconceituosas, com impacto imediato na diminuição da
discriminação e no aumento da tolerância em nossa sociedade.
Mentira
Os estudos sobre o que acontece no cérebro quando mentimos e quando
61
Gordon Alport, The Nature of Prejudice (USA, Perseu Books, 1979)
144 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
contamos a verdade são dos mais fascinantes no campo relacionado a neurociência da
ética, e provavelmente um dos que recebem mais financiamento no mundo, já que tem
impacto imediato na segurança. Como já afirmei, embora não haja ainda um “detector
de mentiras” que seja 100 por cento confiável na detecção de mentiras alguns
aparelhos estão sendo usados e vendidos e não é ficção científica prever que no médio
prazo haverá uma tecnologia confiável disponível nesta área. O uso de “detectores de
mentira” imediatamente coloca alguns problemas relacionados a possíveis mau usos,
tais como aqueles relacionados a questões de privacidade, e também coloca questões
éticas e legais interessantes tais como “nós temos o direito de mentir? ” ou “temos o
direito de não ser testados para saber se estamos mentindo ou não? “Estas são
certamente questões que eticistas e advogados terão de responder no futuro, mas no
momento parece muito claro os benefícios que tais tecnologias, uma vez disponíveis,
poderiam trazer. Um grande benefício seria seu uso nos Tribunais, já que muitas
pessoas inocentes poderiam solicitar o uso da tecnologia a fim de provar que não são
culpados, levando a sua absolvição. O oposto também é verdadeiro. Muitos criminosos
perigosos estão livres porque não se consegue provar que eles cometeram crimes e tal
aparelho poderia ser usado para a obtenção da prova.
Policiais poderiam usar o aparelho em investigações e certamente isto poderia
trazer mais segurança para a sociedade como um todo. O impacto disto na Justiça e no
sistema criminal seria muito grande, mas não há dúvidas que seria um impacto
positivo, considerando o imenso problema de violência e criminalidade que
enfrentamos na sociedade, com o terrorismo sendo uma grave ameaça na Europa, e a
violência criminal interna um gravíssimo problema no Brasil e em outros países latino
americanos. É claro que problemas de segurança tem de ser enfrentados
imediatamente e não podemos confiar apenas em “detectores de mentira” a fim de
fazer isto, mas certamente um aparelho como este seria extremamente útil para a
investigação policial e para uso nos tribunais e poderia ser um instrumento a mais a
ser usado a fim de construir uma sociedade mais segura e pacífica com impacto
imediato na qualidade de vida.
Para concluir eu diria que a porta está aberta para a neurociência da ética nos
conduzir rumo a um caminho altamente promissor para os estudos da ética,
moralidade e todos os comportamentos relacionados a isto. A neurociência da ética
chegou para ficar e se quisermos um futuro melhor, aprimorando os padrões morais
Cinara Nahra | 145
da humanidade e construindo um mundo no qual as pessoas vivam mais e melhor
sendo cada vez mais livres, mais felizes e mais éticas, é tempo de prestar mais atenção
a ela.
8. O FIM DE TODAS AS COISAS: UM JOGO COM IDÉIAS
https://doi.org/10.36592/9786587424163-8
Christian Hamm1
No seu opúsculo O fim de todas as coisas2, de 1794, Kant retoma uma série de
pontos temáticos que já foram tratados por ele em diversos contextos das suas obras
anteriores, entre eles, nomeadamente, a questão da integração sistemática da doutrina
do sumo bem no todo da sua filosofia prática-moral e, diretamente ligada a isso, a da
interpretação e da função específica do conceito de Deus e, designadamente, do
conceito cristão de Deus. – O que pelo seu amplo espectro temático pode parecer, à
primeira vista, um jogo meramente associativo com idéias, revela-se, na realidade, um
ensaio crítico de argumentação extremamente coerente e muito bem composto. É
verdade que se trata, de fato, como o próprio Kant admite, “apenas” de um “jogo com
idéias”, com uma forma de representações, portanto, que “a razão cria para si mesma”
e “cujos objetos (quando os têm) encontram-se situados inteiramente além do nosso
círculo de visão”, mas que “do ponto de vista prático [...] nos são dadas pela própria
razão legisladora”, adquirindo assim “uma realidade prática objetiva” [08:332s.;
negrito Ch.H.].
Segundo o próprio Kant, a ideia de um fim de todas as coisas tem em si algo de
“pavoroso” [“Grausiges”], porque “conduz, por assim dizer, à beira de um abismo, do
qual, para quem nele cai, não há retorno possível”; mas como possui também algo de
“atraente”, já que “não se pode deixar de para aí dirigir sempre o olhar aterrorizado”,
ela se apresenta, de forma paradigmática, como aquilo que Kant já descreveu, na
primeira parte da sua terceira Crítica3, como “sublime terrível”, em parte pela sua
“obscuridade, em que a imaginação costuma agir com maior poder do que na claridade
da luz”, mas também por estar “entrelaça[da] de um modo estranho com a razão
humana universal” [08:327], ou, mais precisamente, com a razão prática do homem.
Com a caracterização da representação do fim de todas as coisas como sendo
“sublime-terrível”, ela se apresenta, logo de início, como uma figura de reflexão
Universidade Federal de Santa Maria.
Das Ende aller Dinge [O fim de todas as coisas], em: Kants Werke. Akademie-Textausgabe,
Berlin: Walter de Gruyter & Co, 1968, vol. VIII, 325 – 340. Todas as citações dos textos de Kant
[em colchetes] segundo esta edição da “Academia”.
3 Kritik der Urteilskraft [Crítica da faculdade do juízo], em: Kants Werke, vol. V, 165 – 486.
1
2
148 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
estética, à qual – tal como à reflexão sobre o belo, na base do famoso “jogo livre” das
faculdades do ânimo – não compete nenhuma função determinante, mas que se refere,
à diferença e para além daquela, não a um “conhecimento em geral”, mas a algo “que
ultrapassa a natureza” [KU, 05:314], a saber, ao “substrato supra-sensível” da mesma,
“que se encontra à base dela e, ao mesmo tempo, da nossa faculdade de pensar”
[05:255]:
Do mesmo modo como a faculdade de juízo estética no ajuizamento do belo refere
a faculdade de imaginação, em seu jogo livre, ao entendimento para concordar com
seus conceitos em geral (sem determinação dos mesmos), assim no ajuizamento
de uma coisa como sublime ela refere a mesma faculdade à razão para concordar
subjetivamente com suas idéias [...], isto é, para produzir uma disposição de ânimo
que é conforme e compatível com aquela que a influência de determinadas idéias
(práticas) efetuaria sobre o sentimento [05:256] .
Como a reflexão sobre um possível fim de todas as coisas físicas da natureza
(e, com isso, também sobre o fim da nossa forma da intuição destas, i.e.,
do tempo “natural”) compete, quando muito, à razão teórico-especulativa (já que tal
reflexão se referiria somente à morte empiricamente inevitável do homem enquanto
ser sensível), aquela, a da razão prática, só pode e deve preocupar-se com a
questão sobre-natural do que vai acontecer com o homem fora e “depois de todo o
tempo”, na sua qualidade de um ser inteligível, ou seja, enquanto ser moral.
Com sua opção pelo modo de reflexão estético Kant deixa claro que qualquer
aproximação do problema do fim de todas as coisas só será possível por via de uma
apresentação indireta, i.e., simbólica – sendo que “simbólico” deve ser entendido
aqui bem no sentido da sua própria determinação de uma atuação especificamente
estética da faculdade do juízo, segundo a qual esta sempre tem que cumprir uma
“dupla função”, a saber, “primeiro de aplicar o conceito ao objeto de uma intuição
sensível e então, segundo, de aplicar a simples regra da reflexão sobre aquela intuição
a um objeto totalmente diverso, do qual o primeiro é somente o símbolo” [05:352].
Com respeito ao caso aqui em questão, isso significaria, pois, aplicar não só uma
determinada intuição dada, mas – em sentido mais amplo – toda a área em que a
intuição sensível pode realizar-se, em geral, junto com as “regras da reflexão” que
valem para a mesma, àquela área “totalmente diversa” do “supra-sensível”. O que
pode servir de caso exemplar disso é o conceito, introduzido bem no início do ensaio,
de uma “duratio noumenon” [08:327], conceito esse que, por um lado, i.e., tomado à
letra, simplesmente contradiria a tudo o que, no contexto da fundamentação crítico-
Christian Hamm | 149
transcendental do conhecimento da primeira Crítica4, foi exposto sobre a questão do
tempo, enquanto forma pura da intuição sensível, e sobre a duração,
necessariamente entendida como duração dentro deste tempo. Mas permite, por
outro lado – e é nisto que consistiria sua qualidade simbolizante –, enquanto conceito
“simplesmente negativo”, considerar a passagem do homem do tempo à eternidade
como “continuação” do mesmo, não como “ser no tempo” [“Zeitwesen”], mas como
um “ser supra-sensível”, não “submetido às condições do tempo”, mas só
moralmente determinado [08:327], e entrar assim justamente naquele “campo
livre” [08:333] de reflexão (agora moral) que a razão prática tem que preencher,
segundo os “seus princípios próprios”, o que quer dizer: “cisma[ndo] sobre seus
objetos, não sobre o que são em si e de acordo com a sua natureza”, mas unicamente
sobre “como temos que pensa-los com vistas aos princípios morais relacionados com
o fim terminal de todas as coisas” [ibid.; negrito Ch.H.].
Com base na distinção sistemática, inscrita no modo estético de reflexão, entre
uma perspectiva de discussão teórica-especulativa e uma prática-moral, e na
localização da questão do fim de todas as coisas somente no âmbito da última, não é
difícil para Kant refutar como dogmáticas as duas concepções alternativas referidas
por ele neste contexto, a saber, a de considerar o fim de todas as coisas, ou como “fim
místico (sobrenatural)” das mesmas, “na ordem das causas eficientes”, ou como o
“fim antinatural (invertido)” delas, e contrapor e defender sua própria visão de um
“fim natural de todas as coisas segundo a ordem dos fins morais da sabedoria divina”,
enquanto única via de solução praticável [08:333]: enquanto que nós podemos “bem
conhecer” este último, o fim “natural”, “do ponto de vista prático”, nos outros dois
casos, ou “não entendemos nada“, ou “entendemos mal” o conceito fundamental
para a determinação do fim de todas as coisas, i.e., o conceito do “fim terminal” da
razão humana [ibid.].
Por via de uma explicação “sobrenatural” do fim de todas as coisas não se
entende “nada” justamente pelo fato de que, neste caso, essas coisas são
representadas integralmente como objetos dos sentidos, do qual, no entanto, “não
podemos fazer nenhum conceito”, uma vez que “nos perdemos inevitavelmente em
contradições quando queremos dar um único passo do mundo dos sentidos para o
Kritik der reinen Vernunft, 2.Aufl. 1787 [Crítica da razão pura, 2ª Ed. 1787], em: Kants Werke, vol.
III.
4
150 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
inteligível” – no caso, portanto, por tomar “o instante que constitui o fim do primeiro”
simultaneamente pelo “início do outro”, ou seja, inserir este último “numa única e
mesma série temporal junto com o outro” [08:333s.]. – Mais problemática ainda do
que tal concepção contraditória do fim de todas as coisas, baseada no não
reconhecimento dos limites “naturais”, ou seja, na pretensão ilegítima de uma
ampliação do seu uso teórico, é, contudo, aquela de um fim “antinatural” ou
“invertido”, que diz que “algum dia surgirá um ponto de tempo em que toda a
transformação (e com ela o próprio tempo) cesse” [08:334]. Tal representação,
“revoltante para a imaginação”, de uma natureza inteiramente “rígida e, por assim
dizer, petrificada” em que “o último pensamento, o último sentimento ficariam então
fixos no sujeito pensante e seriam sempre os mesmos sem modificação”: tal
representação,
para um ser que somente no tempo se pode tornar consciente da sua existência e
da grandeza dela (enquanto duração) [...] deve parecer igual ao aniquilamento:
pois um ser para se pensar em tal estado deve estar [...] pensando em geral em
alguma coisa; mas o pensar contém um refletir que só pode ocorrer no tempo
[08:334].
Ambas as aporias levam, enfim, a que “o homem que se põe a cogitar” caia na
“mística [...], onde sua razão não se compreende nem a si mesma nem o que quer,
mas prefere o devaneio em vez de conservar-se, conforme convém a um habitante
intelectual de um mundo dos sentidos, dentro dos limites deste” [08:335]. Sua
disposição para, “em total ausência de pensamento”, ou contentar-se com procurar o
fim terminal da sua existência numa transformação ”que se prossegue ao infinito (no
tempo)” [08:334], ou, a exemplo de certas doutrinas filosóficas orientais, mergulharse no puro “nada” e se tornar assim partícipe de uma “tranqüilidade eterna“
entendida como “suposto bem-aventurado fim de todas as coisas” [08:335s.], não o
deixa ver a (segundo Kant) única solução possível da questão do fim de todas as coisas,
baseada justamente na exigida separação rigorosa entre a natureza física e a natureza
inteligível do homem, e, correspondentemente, numa determinação do fim terminal
com ela compatível.
Mas se, primeiro, o motivo da pergunta dos homens em relação ao fim de todas
as coisas e ao seu “estranho entrelaçamento” com a razão consiste de fato, conforme a
suposição kantiana, em que esta lhes diz “que a duração do mundo só tem valor” na
medida em que “os seres racionais são nele adequados ao fim terminal da sua
Christian Hamm | 151
existência”, mas que, “se esse fim não pudesse ser alcançado, a própria criação teria
que lhes parecer destituída de finalidade” [08:330s.]; se eles, os homens, além disso,
após a examinação crítica dos seus próprios poderes de conhecimento, se dão conta de
que as idéias racionais necessárias para uma possível determinação deste fim terminal
terão de ser limitadas “apenas às condições do uso prático” [08:330], e de que eles
mesmos, seguindo essa orientação prática, para, “neste mundo” (das coisas finitas),
“ser adequados ao fim terminal da sua existência”, não podem fazer mais do que se
comportar “moralmente”, quer dizer, deixar-se determinar,
em todo o seu
comportamento empírico, consequentemente pelas exigências da lei moral supraempiricamente válida; e se eles, enfim, justamente por se sentir, assim, obrigados a
guiar-se no seu agir por esta lei, reconhecem este seu agir moral como contribuição
imprescindível – e a única possível – para a realização do fim terminal, isto é: para a
“promoção” do sumo bem, então lhes resta, assim Kant, apenas ouvir “o juízo da [sua]
própria consciência moral”,
isto é, o que nosso atual estado moral, tanto quanto o conhecemos, nos permite a
este respeito julgar de um modo racional: a saber, que princípios de nossa vida,
que encontramos dominando em nós até o fim dela [...], também depois da morte
continuarão a ser dominantes, sem que tenhamos a mínima razão para supor uma
modificação dos mesmos naquele futuro [...]: nesta perspectiva, é, pois, sábio agir
de tal modo como se uma outra vida, e o estado moral com que terminamos a
presente, juntamente com as suas conseqüências, fosse inalterável com a entrada
nela [08:330],
pelo que, como Kant conclui, a regra correspondente do uso prático da razão só
pode significar que devemos tomar nossa máxima como se, em todas as modificações
que se estendem até o infinito, desde o bom para ao melhor, o nosso estado moral não
estivesse submetido, segundo a disposição de ânimo (o homo noumenon, ‘cuja
peregrinação é no céu’), a nenhuma alteração no tempo [08:334; negrito Ch.H.].
Com essa expressão: que, em vista da incognoscibilidade principal daquele
“futuro noumênico”, é “sábio” agir como se o nosso estado moral não estivesse
submetido a nenhuma alteração no tempo, Kant não aponta só nova e mais
precisamente o momento sistematicamente central da questão do fim de todas as
coisas, mas continua também se mantendo fiel à mencionada lógica de reflexão que
está na base do seu “jogo com idéias”, ao todo.
O fato de Kant usar aqui o termo “sábio” [“weise”], em vez de “prudente”
[“klug”] ou “conveniente” [“zweckmässig”], tem, pois, boas razões: com isso, ele quer
152 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
deixar claro que a referida opção “como se” não se deve a um cálculo racional
puramente estratégico, mas que ela se baseia, antes, no reconhecimento crítico da
limitação do nosso saber e, portanto, também da nossa incapacidade de operar por
nós só a realização completa do nosso fim terminal, quer dizer, sem nenhuma ajuda
sobrenatural, nomeadamente de caráter “divino”. Se o texto reza, de acordo com isto,
que o fim de todas as coisas “que passam pela mão dos homens é, mesmo nos seus fins
[Zwecke] bons”, só “tolice” [“Torheit”], e que a “sabedoria”, em sentido estrito, i.e.,
como “razão prática na adequação de suas medidas correspondentes plenamente ao
fim terminal de todas as coisas, ao sumo bem”, encontra-se, finalmente, apenas “em
Deus”, fica evidente que o que “se poderia chamar mais ou menos a sabedoria
humana”, na verdade, só pode consistir, em “não agir visivelmente de modo contrário”
a tal sabedoria universal divina [08:336]. Aludindo aqui obviamente a um dos motivos
centrais da sua doutrina dos postulados práticos, desenvolvida na “Dialética” da
segunda Crítica, Kant volta a destacar também neste contexto a importância – não só,
mas também sistematicamente condicionada! – da sua “fé racional em Deus”:
por mais incrédulo que se queira ser, quando é simplesmente impossível prever
com certeza o êxito decorrente de certos meios, empregados de acordo com toda a
sabedoria humana (que, para merecer seu nome, deve apenas dirigir-se para o
campo moral), importa contudo crer, de modo prático, no concurso da sabedoria
divina na marcha da natureza, a não ser que se prefira renunciar ao seu fim
terminal [08:337].
Pode parecer um pouco estranho que Kant, neste momento da sua reflexão
sobre o fim de todas as coisas, muda de repente o tema, passando da sabedoria divina
ao cristianismo, ou, mais precisamente, à “amabilidade” do mesmo. Mostra-se,
contudo, rapidamente que seus respectivos comentários combinam perfeitamente
com o contexto anterior, precisando e complementando até um ponto bem decisivo da
argumentação até aqui desenvolvida. Pois, o cristianismo que Kant aqui aponta como
amável não é o cristianismo comumente praticado da sua época, obediente ao clero e
ao Estado, que se baseia, como religião estatutária, unicamente na revelação e na
verdade pretensamente eterna das Escrituras, derivando das mesmas toda a sua
autoridade e todas as normas e prescrições do agir moral (e, é claro, representando
assim também, enquanto sistema dogmático, simplesmente outra forma ou outra
espécie justamente daquele modelo acrítico de pensamento baseado na ideia da
imanência do transcendente, que acabou de ser exemplificado no anterior a partir do
Christian Hamm | 153
exemplo de um “devaneio místico”), mas ele é, antes, aquela visão do cristianismo,
desenvolvida por Kant nos seus escritos críticos anteriores, enquanto fé racional
baseada na ideia da autodeterminação moral, que deve sua legitimidade e sua
possível força não só ao fato de suas doutrinas, na generalidade, serem plenamente
compatíveis com os princípios universais de uma teoria moral secular fundada em
autonomia, mas também ao outro fato de ela, pela incorporação na sua própria
perspectiva essencialmente escatológica, estar em condições de dar a esta uma nova
dimensão espiritual, ganhando assim, nas palavras de Kant, também “os corações dos
homens, cujo entendimento já está iluminado pela representação da lei do seu dever”
[08:338].
À diferença daquela fé doutrinal dogmática, que se baseia somente em
“prescrições tomadas por divinas” e, já por isso, só pode, quando muito, exigir
respeito, sem, no entanto, ter em si algo amável, a fé cristã racional, como Kant a
concebe, prima justamente pelo seu caráter não dogmático, não autoritário, ou seja,
pelo seu “modo de pensar liberal”: como, segundo o texto, já “o fundador” do
cristianismo não atuava na qualidade de um comandante que “exig[ia] obediência à
sua vontade”, mas como um “amigo dos homens” [“Menschenfreund”] que “[pôs] no
coração dos seus semelhantes a própria vontade deles bem compreendida”, seria
também aqui, além “do maior respeito que a santidade das suas leis irresistivelmente
infunde”, justamente este “sentimento da liberdade na escolha do fim terminal [...]
que torna para eles a legislação amável“ [08:337 s., negrito Ch.H.].
É só desta forma que se desvenda o verdadeiro motivo para a possível adoção
do cristianismo como um meio, seja só bem-vindo, ou seja, talvez, até necessário, para
a realização do fim terminal, já predeterminado pela razão prática: Ao lado do
mencionado reconhecimento crítico da incognoscibilidade e da indeterminabilidade
de tudo o que se encontra além da esfera do empírico-sensível e, mais, da
realizabilidade (necessariamente só parcial, quer dizer: só conforme ao próprio
comportamento moral de cada um) do sumo bem e – motivado por isto – da adoção
de uma postura “sábia”, entra em cena, assim, um terceiro elemento, que desempenha
um papel central, e não só no caso específico de uma interpretação “liberal” da crença
cristã, mas, principalmente, também em qualquer outro caso de um tratamento
“racional”, i.e., segundo o anterior: um tratamento “crítico” e “sábio”, do suprasensível e dos seus objetos, a saber: que tudo aquilo que, por razões plausíveis ou até
154 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
irrefutáveis, deve ser considerado como verdadeiro – por exemplo, os já mencionados
postulados práticos – também se deve querer crer; que, em outras palavras, a
admissão da validade (objetiva) dos postulados sempre deve implicar também um ato
do assentimento (subjetivo), sem o qual a primeira permaneceria dogmática.
Ora, o espírito conciliador e o tom quase sereno em que Kant defende aqui a
possibilidade da harmonização dos preceitos morais de uma razão prática pura com a
“santidade das leis” da crença cristã não podem esconder, contudo, que sua proposta
e também as condições da sua possível realização se fundamentam numa exigência
muito mais dura e mais rigorosa, a saber, na reclamada adoção de outro modo de
pensar, isto é, daquele “pensar liberal”, independente e livre de qualquer tutela
autoritária e imposição dogmática – uma exigência que, é claro, deve ser válida não só
para a realização de disputas acadêmicas “internas” entre Filosofia e Teologia, mas
também, e principalmente, em relação à postura e ao comportamento das autoridades
políticas e administrativas do Estado da época. Quanto a este ponto, não se pode
esquecer que o presente ensaio da Berlinische Monatsschrift foi publicado no mês de
junho de 1794, ou seja, só quatro meses antes da séria repreensão da parte do rei
Frederico Guilherme II, em que este “constatou [...] com grande desgosto” que Kant
teria feito, “sobretudo no [seu] livro A religião nos limites da simples razão, bem como
noutros tratados mais pequenos, [...] um mau uso da [sua] filosofia para deformar e
degradar as doutrinas capitais e fundamentais” [07:06] – o que resultou, como se
sabe, na interdição de qualquer nova atividade literária ou docente em torno de
assuntos religiosos, fato esse que, por sua vez, levou Kant a “declarar [...] do modo mais
solene” que “doravante [se] abster[á] inteiramente de toda a exposição pública
concernente à religião [...], tanto nas lições como nos escritos” [07:10].
Com efeito, tendo em vista o espírito mais autoritário e conservador que, depois
da morte do rei Frederico II “o Grande”, em 1786, começou a tomar conta da Prússia
(com seu ponto culminante, a instalação da famigerada Immediat-ExaminationsKommission, em 1991, pela qual também a publicação do livro de Kant sobre a Religião
foi interditada), não é de surpreender que O fim de todas as coisas, e nomeadamente
algumas das passagens na segunda parte do texto, não conseguiram suscitar o agrado
dos censores prussianos. – Se bem que Kant procure visivelmente evitar qualquer
formulação provocadora, ele deixa bastante claro que sem uma profunda reforma, não
só do “modo de pensar”, mas também do modo de governar, ou seja, sem a
Christian Hamm | 155
instauração de um modo de governar liberal – “igualmente distante do sentimento
servil e da ausência de vínculo” [08:338] –, as chances de progredir ou até de
solucionar os problemas apontados (só a primeira vista de cunho apenas teológicomoral!) ficam fortemente restringidas. E isso não só pelo fato de que tudo o que,
conforme Kant, constitui a “verdadeira” crença cristã possui sua base e pode evoluir e
cultivar-se só em plena independência de qualquer orientação ou determinação
“externa”, pois
quando se acrescenta ainda ao cristianismo, para torná-lo muito bem, alguma
autoridade (mesmo a divina), por melhor intencionado que seja o propósito dela e
ainda que seja realmente bom o seu fim, esvanece-se assim, no entanto, a sua
amabilidade; pois é uma contradição ordenar a alguém que não somente faça
alguma coisa, mas também que a deva fazer de bom grado [08:338].
Como mais importante ainda Kant aponta, no entanto, o fato de que qualquer
tentativa de consolidar a autoridade da religião forçosamente pelo poder do Estado
poderá causar prejuízos também no âmbito extra-religioso, ou seja, na própria vida
política, no convívio entre o cidadão e os representantes deste mesmo Estado. Tal
como a amabilidade do cristianismo se deve principalmente à aceitação e à
incorporação livre de prescrições religiosas na própria vontade e como a falta de
amabilidade faria dele um simples sistema de coação, também as autoridades políticas,
no fundo, deveriam ter um forte interesse em promover e incentivar a adoção, da parte
de seus cidadãos, de tal pensamento e comportamento liberal, uma vez que deve valer
também para suas próprias leis seculares que estas, para serem devidamente
cumpridas, não precisam ser apenas respeitadas, senão apreciadas como convenientes
à vontade de cada um que está submetido a tal legislação, porque também neste caso
pode dar-se como certo que “aquilo que alguém não faz de bom grado faz tão
mesquinhamente, e também com pretextos sofísticos sobre o mandamento do dever,
que não se poderia contar muito com este enquanto móbil” [ibid.]. A sugestão de Kant
a este respeito fica bastante clara: compete aos próprios órgãos políticos e educacionais
do Estado fazer tudo para que esse novo espírito liberal se propague e se fortaleça na
sociedade – o que, na realidade, nada mais é do que a reiteração daquela velha
exigência, já formulada dez anos atrás, no seu conhecido panfleto sobre o
Esclarecimento5, a saber, conceder “liberdade; e a mais inofensiva entre tudo o que
5
Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? [Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento’?], em:
Kants Werke, vol. VIII, 33 – 42.
156 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
se possa chamar liberdade, a saber, a de fazer um uso público de sua razão em todas
as questões” [08:36]. Foi já neste mesmo contexto que Kant enfatizou – é claro: numa
atmosfera política muito mais propícia a tal tipo de manifestação – que a reclamada
“saída do homem da sua menoridade”, isto é, seu próprio “esclarecimento”, só seria
possível se as autoridades governamentais não só não se opusessem a tal
empreendimento, mas até colaborassem ativamente na sua realização. E não foi por
acaso que, também neste momento, Kant “[pôs] o ponto central do esclarecimento [...]
sobretudo nas coisas de religião” [08:41], já que seriam, conforme ele, geralmente
estas “coisas” em relação às quais “nossos senhores” facilmente podem se sentir
tentados a “exercer a tutela sobre seus súditos” e perpetuar, assim, uma forma de
“menoridade [que] é de todas a mais prejudicial e a mais desonrosa”. É em
contraposição a essa atitude nefasta que ele apresenta, como modelo positivo, aquele
modo de pensar de um chefe de Estado que favorece [o esclarecimento e] vai ainda
além e compreende que, mesmo no que se refere à sua legislação, não há perigo
em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria razão e expor
publicamente ao mundo suas idéias sobre uma melhor compreensão dela, mesmo
por meio de uma corajosa crítica do estado de coisas existentes [ibid.].
Nesta perspectiva da necessidade e, sobretudo, da possibilidade real de uma
efetivação do esclarecimento do homem, tanto no âmbito religioso como no político,
ambas essas esferas – a religião e a política – vão poder coexistir em paz, enquanto os
princípios em que ambas se fundam sejam aceitos e respeitados mutuamente – e mais:
só nesta perspectiva, elas vão poder ganhar sua plena autonomia e conseguir
consolidar sua autoridade, uma em sentido moral, outra em sentido legal, que lhes
proporcionará as necessárias condições para uma colaboração séria e proveitosa para
ambos os lados. É na base de tal relação pacífica que será possível – essa, pelo menos,
a visão de Kant – adotar uma forma de convívio e realizar a idéia de uma comunidade
que é “capaz e disposta não somente a prestar ouvidos às doutrinas piedosas
tradicionais”, mas também “a acatar a razão prática esclarecida por elas”, e em que “os
sábios, no meio do povo, fazem projetos não mediante acordos estabelecidos entre si
(como se formassem um clero), mas como concidadãos, que demonstram”, nesta sua
qualidade de cidadão, “de maneira insuspeitável, que é a eles para fazer a verdade”
[08:336; negrito Ch.H.]. E como é de esperar que “também o povo na totalidade [...]
toma interesse” neste assunto, “pela exigência geralmente sentida (e não baseada
numa autoridade) do necessário cultivo da sua disposição moral”, há boas razões para
Christian Hamm | 157
confiar no sucesso desta empresa e para achar, portanto, “nada mais aconselhável do
que deixar fazer e prosseguir” os atores do processo “no seu curso, pois, no tocante à
idéia que perseguem eles estão no bom caminho” [ibid.]. Que o êxito deste caminho –
um Esclarecimento em que cultura moral e espírito republicano andariam juntos –
continua, no entanto, “sempre inseguro” [ibid.], ou seja, que ele depende não só da boa
vontade
dos
seus
defensores
e
percursores,
mas
também
de
muitas
imponderabilidades históricas, locais e pessoais, mostra, entre outros, o triste destino
que estava reservado até para este opúsculo kantiano.
9. O JUSTO, O BEM E A MULHER
https://doi.org/10.36592/9786587424163-9
That fantastic sect...
Danilo Marcondes1
If we are philosophers, it ought only to be upon sceptical principles.
David Hume, Treatise, book I, part IV, sec.VII, “Conclusion of this book”
1 Introdução: O Problema
O Ceticismo é uma das raras correntes filosóficas da Antiguidade que
permaneceu influente na Modernidade e no Pensamento Contemporâneo, talvez
mesmo a única a ter versões modernas e contemporâneas. É curioso que o ceticismo
que parecia morto e enterrado, ao menos no Ocidente, após o Contra Acadêmicos de
Santo Agostinho (c.399) tenha, depois de 10 séculos, ressurgido com força total no
início do pensamento moderno.
Mas, no que consiste o ceticismo? Essa a pergunta de Hume no início da seção
XII da Investigação sobre o Entendimento Humano (parte I, Seção XII, 116),
intitulada “Sobre a filosofia cética ou acadêmica”: “O que significa ser cético? E até
aonde pode se levar adiante esses princípios filosóficos da dúvida e da incerteza?” É
significativo que Hume identifica nessa seção a filosofia cética com a acadêmica. É
verdade que não chega a usar a expressão “ceticismo acadêmico”, mas diz quase isso
ao se referir à “filosofia cética, ou acadêmica”.
Minha pesquisa atual parte da proposta de uma análise da retomada do
ceticismo antigo no período moderno, seguindo alguns caminhos apontados por
Richard Popkin (2000) em sua História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza, mas
procurando também abrir outros, em outras direções (Marcondes 2019).
Uma das hipóteses centrais dessa pesquisa visa mostrar como em seu processo
de retomada na modernidade o ceticismo antigo sofreu uma mudança radical. David
Hume é um dos principais representantes dessa mudança e do que podemos
1
Departamento de Filosofia, PUC-Rio/UFF
160 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
considerar o ceticismo moderno, que por sua vez tem várias vertentes, sendo o
ceticismo de Hume uma das mais originais e importantes dado o seu radicalismo
(Smith, 1995).
O primeiro ponto a ser discutido nesse sentido diz respeito exatamente a como
entender “ceticismo antigo”, historicamente bem mais complexo do que esse rótulo
geral parece indicar. O ponto de partida para isso é tentar esclarecer em que momento,
ou melhor, a partir de que contexto encontramos a caracterização de um ceticismo que
por sua vez se divide tradicionalmente em duas vertentes principais: ceticismo
acadêmico e ceticismo pirrônico como dois gêneros de uma mesma espécie?
Aparentemente, não encontramos na Antiguidade nada equivalente a essa distinção.
E, contudo, em nossa discussão contemporânea projetamos essa distinção sobre o
contexto antigo, de alguma forma causando com isso uma distorção.
Do mesmo modo, na Modernidade, a terminologia passou a ser usada de forma
particularmente imprecisa, talvez em parte devido às diferentes fontes utilizadas por
diferentes filósofos modernos, começando provavelmente com Montaigne, que pode
ser considerado no século XVI o primeiro cético moderno, ou ao menos o primeiro a
tentar uma elaboração moderna do ceticismo antigo. Montaigne pode ter feito sua
leitura dos céticos através das traduções de Sexto Empírico para o latim feitas nos anos
1560 por Gentien Hervet e por Henri Étienne, mas também pela leitura de Diógenes
Laércio e de Cícero. Mas, referências aos céticos acadêmicos no contexto francês já
aparecem, por exemplo, em Rabelais em seu Gargântua e Pantagruel publicados
entre 1532-1564. Já foi dito que o ceticismo moderno foi essencialmente um fenômeno
francês de Montaigne em meados do século XVI a Pierre Bayle no final do século XVII
e que Hume teria sido o primeiro cético de destaque no contexto de língua inglesa2.
Vejamos melhor essas distinções.
A Academia fundada por Platão passou no período entre a liderança de
Arcesilau (273-242 a.C.) e a de Carnéades (fl.155 a. C.), a assim chamada Nova
Academia, por uma fase dita cética. Arcesilau se notabilizou pela disputa com os
estóicos e Carnéades destacou-se pelo uso da dialética. Nosso conhecimento dessa fase
da Academia origina-se principalmente dos diálogos intitulados Academica
compostos por Cícero por volta de 45-44 a.C. em que o pensamento desses filósofos é
Destacam-se no século XVII na França Pierre Gassendi, François de la Mothe le Vayer, Simon Foucher,
Pierre Charron, Pierre-Daniel Huet, dentre outros.
2
Danilo Marcondes | 161
apresentado bastante tempo após a morte deles e em um momento em que a Academia
sob a liderança de Antíoco de Ascalon dava uma guinada retornando a uma visão mais
doutrinária de Platão. Contudo, o termo cético jamais foi empregado por esses
filósofos e não se encontra nos textos de Cícero em que este se refere a Arcesilau e a
Carnéades.
Apesar disso, o termo “ceticismo acadêmico” se consagrou e o melhor exemplo
que podemos dar é a tradução do texto de Cícero por Charles Brittain (2006) que seria
perfeita não tivesse ele surpreendentemente introduzido no título o termo “Ceticismo”
(On Academic Scepticism), não encontrado no original.
De onde se origina o termo ”cético” e essa divisão entre ceticismo acadêmico e
ceticismo pirrônico e o próprio confronto entre Academia e Pirronismo, que
historicamente não teria ocorrido antes dos séculos II-III?
Diante da guinada doutrinária ocorrida sob a liderança de Antíoco, Enesidemo
de Cnossos, tornou-se um dissidente da Academia, fundando uma nova corrente, o
Pirronismo, inspirando-se em Pirro de Élis, um filósofo bastante anterior (século IV
a.C.) que nada escreveu e do qual pouco se sabe, mas com quem Arcesilau pode ter tido
contato. Enesidemo busca manter o pensamento dialético da Academia, que estaria
mais próximo do socrático. Porém, jamais empregou ele próprio o termo “ceticismo”
ou “cético” referindo-se apenas ao “Pirronismo” ou aos “Pirrônicos”, como nos mostra
Roberto Polito (2014), no que é hoje o mais importante estudo sobre Enesidemo.
“Cético” é um termo que só aparece bastante posteriormente em Sexto Empírico
e em Diógenes Laércio. Mesmo assim, afirma Polito, “I speak of “Scepticism” to
indicate the position of Enesidemus regardless of whether he himself did, for the sake
of consistency” (p.12)3, afirmação surpreendente no que a mim me parece mais uma
questão de inconsistência, uma vez que admite que Enesidemo não usou esse termo.
Segundo alguns historiadores da Academia (Tarrant, 1985) é em Favorino de
Arles (séc.II) que se encontra provavelmente pela primeira vez o termo “cético”
aplicado a ambos Pirrônicos e Acadêmicos, influenciando assim a tradição que se
segue.
O primeiro uso do termo cético designando uma corrente filosófica é atribuído
a Sexto Empírico no século II. Embora o termo sképsis significando “investigação”
Falo de “ceticismo” para designar a posição de Enesidemo mesmo se ele mesmo não tenha usado esse
termo, por uma questão de consistência”
3
162 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
fosse um termo corrente na língua grega, usado regularmente pelos filósofos,
aparentemente só se torna um termo designando uma corrente de pensamento com as
Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico por volta do século II. Assim, finalmente é
Sexto Empírico em uma passagem muito citada da abertura das Hipotiposes (I, I) que
consolida essa distinção ao dizer que:
O resultado natural de qualquer investigação é que aquele que investiga ou bem
encontra aquilo que busca, ou bem nega que seja encontrável e confessa ser isto
inapreensível, ou ainda persiste na busca. O mesmo ocorre com as investigações
filosóficas, e é provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a
verdade, outros que a verdade não pode ser apreendida, enquanto outros
continuam buscando. Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade são os
“dogmáticos”, assim são chamados especialmente Aristóteles, por exemplo,
Epicuro, os estóicos e alguns outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos
consideram a verdade inapreensível e os céticos continuam buscando. Portanto,
parece razoável manter que há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e
a cética.
Mais adiante, na seção (H.P. I, III) intitulada “Sobre as denominações do
Ceticismo”, Sexto Empírico reforça essa posição ao afirmar que a denominação
“Pirrônico” é usada a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de
forma mais significativa do que seus predecessores.
Sexto Empírico deixa clara portanto a diferença entre Acadêmicos e Pirrônicos
e considera apenas os Pirrônicos como céticos, por referência direta a Pirro e não ao
Pirronismo de Enesidemo. Sexto parece estabelecer uma distinção explícita entre seu
ceticismo e a filosofia de Enesidemo.
Possivelmente, essa passagem revela uma preocupação de Sexto Empírico com
os diferentes usos do termo “cético” já em sua época e com a necessidade de uma maior
precisão terminologia reivindicando a autenticidade do Pirronismo, enquanto
corrente cética.
No caso de Enesidemo é importante esclarecer que sua ruptura não se dá em
relação à Nova Academia, ao contrário sua concepção dialética e aporética do ceticismo
é próxima a dos filósofos desses períodos. Sua ruptura se dá com a nova fase mais
dogmática da Academia inaugurada por Antíoco de Ascalon ou talvez mais
propriamente por Fílon de Larissa (Tarrant, 1985). Como Enesidemo, um dissidente,
não poderia mais se identificar como membro da Academia, passou a reivindicar uma
origem de sua posição filosófica em Pirro. Porém é claro, sua posição é mais próxima
da Nova Academia do que do que se supõe teria sido a de Pirro. Enesidemo não rompeu
Danilo Marcondes | 163
portanto com a filosofia da Nova Academia, mas procurou preserva-la vinculando-a
contudo a Pirro. Nesse sentido, a filosofia da Nova Academia e o Pirronismo de
Enesidemo estão próximos sobretudo quanto ao emprego da dialética.
Isso nos mostra como o ceticismo antigo é bem mais complexo do que a simples
distinção hoje corrente entre ceticismo acadêmico e ceticismo pirrônico. Sua formação
se deu através de diferentes rupturas, retomadas e apropriações de pensamentos
muitas vezes muito distintos entre si.
A proximidade entre Enesidemo, o fundador do Pirronismo, e Sexto Empírico é
considerada óbvia, porém tem sido contestada de forma bastante persuasiva p.ex.
Woodruff, 2004, que mostra que Sexto não deve ser visto como um mero seguidor ou
discípulo de Enesidemo.
Tudo indica que Enesidemo (90-80 a. C.) não empregou o termo “cético”, mas
apenas “Pirrônico”. O termo “cético” aparece em Fílon de Alexandria (30 a.C.-45),
embora com um uso limitado. Favorino de Arles (séc.I) já mencionado parece ser quem
primeiro faz a distinção entre ceticismo pirrônico e acadêmico, sem no entanto
elabora-la. Sexto Empírico (c.200) dá uma definição que se tornou canônica, citada
acima. Portanto, entre os cerca de 100 anos entre Fílon de Alexandria e Favorino a
aproximação entre ceticismo acadêmico e pirrônico parece ter se estabelecido, levando
à preocupação de Sexto em precisar a distinção e reivindicar para o Pirronismo o
“ceticismo autêntico” (eilikrinos skeptikos, H.P. I, 222).
A leitura que venho fazendo do pensamento antigo parece indicar
sinteticamente que a distinção entre ceticismo acadêmico e pirrônico não tem base nos
autores a quem é atribuída. Essa parece ser assim uma distinção moderna, projetada
sobre esses autores, reorganizando assim os textos antigos à luz de uma nova
problemática. Na modernidade essa distinção sofre uma mudança radical.
Proponho, por sua vez, uma reorganização do campo de discussão sobre o
ceticismo antigo (baseado em Woodruff, 2004) através de uma nova caracterização de
dois tipos de ceticismo, dialético ou aporético e terapêutico, recorrendo a isso para um
exame da filosofia cética moderna.
O ceticismo antigo foi em grande parte interpretado na modernidade como
ceticismo epistêmico, talvez dada a influência dessas questões a partir de Descartes e
dos cartesianos, como indica o próprio Hume (Abstract). Problematiza assim a
possibilidade do conhecimento a partir da dificuldade de se estabelecer um critério de
164 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
certeza. Seu ponto de partida é a discussão de noções como fenômeno e apreensão
compreensiva (phantasia katalaléptike) dos estóicos e o estatuto epistemológico das
crenças.
2 Ceticismo Terapêutico
Woodruff (2004) distingue o ceticismo dialético e aporético de Enesidemo, no
caso a dialética levando à aporia, do ceticismo terapêutico de Sexto Empírico, deixando
claro que Sexto não é apenas um seguidor de Enesidemo. Contudo, Woodruff
concentra-se apenas no ceticismo aporético, sem elaborar a posição do ceticismo
terapêutico. É o que pretendo fazer em seguida em linhas gerais. para em seguida
relacioná-lo à posição de Hume
Na estratégia cética contra os dogmáticos, podemos distinguir duas vias. O
Pirronismo de Enesidemo que segue a herança da Nova Academia, usando o método
dialético e buscando estabelecer uma diaphonia entre posições dogmáticas que visa
combater, o que por sua vez leva a uma aporia e à consequente suspensão do juízo. A
origem dessa estratégia pode remontar ao método dialético socrático de adotar a
posição do adversário e voltá-la contra ele próprio, ou seja, derrotar o adversário com
suas próprias armas. Isso parece remontar aos argumentos dos acadêmicos contra os
estóicos no início da Média Academia de Arcesilau e ao objetivo de colocar obstáculos
a posições dogmáticas.
O ceticismo terapêutico de Sexto Empírico que leva adiante essa estratégia
dialética da Nova Academia, vê o método não como visando uma oposição entre duas
posições ou dois argumentos, mas como levando a uma depuração ou eliminação da
posição dogmática, donde a metáfora do purgante que encontramos nas Hipotiposes
Pirrônicas, 206-207). O remédio elimina a si mesmo, sem deixar vestígios,
estabelecendo ou restaurando uma atitude não dogmática (adoxastos). Sexto usa
argumentos dialéticos para levar à époche e à indecidibilidade teórica, abrindo
caminho para a skeptiké agogé, o modo de vida ou conduta cética.
O último capítulo do último livro das Hipotiposes (III, XXXII, 280-281) é
relevante nesse sentido, porque contém o que Sexto considera uma conclusão,
retomando a analogia com a medicina e usando a imagem da cura. Segundo uma
tradição que remonta a Empédocles, o filósofo visa não só ensinar, mas curar. Assim
Danilo Marcondes | 165
como o médico cura o corpo, a filosofia cura a alma. Mas, o que, segundo essa
passagem o filósofo cura, qual a “doença” digamos assim do dogmático? Sexto referese a duas atitudes oiesis e propéteia, ou seja, a presunção ou pretensão, supor que se
sabe mais do que sabe, e a precipitação, fazer afirmações rápido demais sem que tenha
bases para isso. O remédio a ser empregado, ou seja, a força argumentativa, depende
do grau de presunção ou de pretensão do dogmático, o que pode variar.
O papel da argumentação é apenas persuadir o dogmático a abandonar essa
atitude e não a contrapor a nenhuma outra. A escada pela qual se sobe pode ser posta
de lado após se atingir o objetivo pretendido (Sexto Empírico, Contra os Lógicos M8
480-481; L. Wittgenstein, Tractatus 6.54).
A atitude não-dogmática é aquela em que nos deixamos guiar pela vida, ou seja,
pela Natureza, em uma passagem evocativa de Hume. (H.P.I, 237).
“O cético é guiado pela força da Natureza...e portanto o cético é guiado pela
influência de suas afecções, quando tem sede a beber, quando tem fome a comer”. Isso
que para Hume é o que nos salva da inação do cético radical é para Sexto Empírico a
própria atitude do cético, o que o aproxima da vida comum (biós ho koinós).
3 Hume e o Ceticismo
Examinemos Hume mais de perto.
Na história do ceticismo moderno (Popkin, 1993; Smith, 1995; Stroud, 1977)
Hume ocupa um lugar de destaque como o cético por excelência, aquele que
aprofundou e mesmo radicalizou o ceticismo, sobretudo por sua crítica aos grandes
pilares da tradição filosófica e científica, epistêmica e moral: a causalidade, a
identidade pessoal e a indução. As críticas de Hume a esses conceitos tiveram um forte
impacto, levando a uma profunda revisão de seus significados e do papel que até então
tinham no sistema filosófico. Os pressupostos mais fundamentais do pensamento
filosófico e científico foram abalados de tal maneira que nunca mais puderam ser
pensados da mesma forma. É famosa a afirmação de Kant nos Prolegômenos de que a
leitura de Hume o havia despertado de seu “sono dogmático”.
166 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Por isso mesmo, Hume foi associado ao ceticismo pirrônico, considerado na
Antiguidade a versão mais radical do ceticismo4. Mas, a questão que podemos levantar
nesse momento é sobre até que ponto as distinções tradicionais herdadas da história
do ceticismo (Popkin, 2003) podem realmente se aplicar ao ceticismo moderno, ou
seja, posterior a Montaigne na segunda metade do século XVI, e em particular a Hume.
Os comentadores e especialistas em Hume costumam considerar que sua principal
fonte para a interpretação do ceticismo teria sido Pierre Bayle (Lessa, 1997). Mas, é a
Berkeley que Hume se refere quando diz que “seus argumentos não admitem resposta,
mas também não produzem convicção”.
Minha proposta não consiste em examinar o ceticismo de Hume, nem examinar
o que dizem os especialistas sobre o tema, bastante controvertido, mas o que Hume
diz sobre o ceticismo no Tratado sobre a natureza humana (1739/1740) e na
Investigação sobre o entendimento humano, principalmente quanto à distinção entre
Pirronismo e Academia, nossa questão inicial. Proponho situar então essa discussão
no âmbito mais amplo de uma consideração da filosofia cética como uma possível
opção para o pensamento filosófico contemporâneo.
Hume não parece ter tido como objetivo primordial a contraposição a doutrinas
dogmáticas, nem a provocação da diaphonia. Sua discussão sobre o ceticismo não visa
a questão da dialética, nem de como chegar à aporia. Sua proposta de uma ciência da
natureza humana é construtiva e não se dá em contraposição explícita ou direta
especificamente a nenhuma filosofia da época que possa ser considerada dogmática,
embora no Tratado, no Abstract e na Investigação referências sejam feitas a um
grande número de filósofos incluindo Descartes e os cartesianos. Suas referências ao
ceticismo antigo são a questões epistêmicas. No Tratado se refere com simpatia aos
céticos moderados e na Investigação opõe os céticos mitigados ao ceticismo excessivo
dos Pirrônicos.
A passagem de onde tomei a expressão que me serviu de título se encontra na
parte IV (Of the sceptical and other systems of philosophy) do livro I do Tratado
(sec.1). Na passagem anterior a esta citada Hume se refere ao “ceticismo total”,
4 Popkin, 1993, examina a relação de Hume com o ceticismo pirrônico em dois capítulos (não
numerados): “David Hume: his Pyrrhonism and his critique of Pyrrhonism” e “David Hume and the
Pyrrhonian Controversy”). Esses capítulos levantam precisamente a questão sobre a interpretação do
ceticismo de Hume.
Danilo Marcondes | 167
observando que quem disputa contra esse ceticismo total não tem realmente um
antagonista:
Whoever has taken pains to refute the cavils of this total scepticism has really
disputed without an antagonist... be really one of those sceptics who hold that all is
uncertain…My intention is therefore displaying the arguments of that fantastic sect.5
Nos textos do Tratado Hume não faz nenhuma distinção precisa entre
Acadêmicos e Pirrônicos, caracterizando apenas os céticos como “essa seita
fantástica”. O “fantástico” parece se referir a estranho, incomum e quase mesmo
inexistente. Haveria realmente esse tipo de pensador?
Não há nenhuma referência em toda parte 4 do livro I nem aos Pirrônicos, nem
aos Acadêmicos. Hume não parece inicialmente adotar a divisão entre esses dois tipos
de ceticismo. Se relacionarmos isso à passagem da Investigação em que Hume diz,
agora explicitamente a propósito dos Acadêmicos, que embora seja certo que
“ninguém jamais encontrou uma criatura tão absurda, ou conversou com alguma
pessoa que não tivesse opinião ou princípio sobre qualquer coisa...”, a “seita fantástica”
poderia ser interpretada como uma dessas criaturas absurdas. Por isso, quem disputou
contra os céticos, "disputou sem antagonista”.
Temos nesse caso, como foi frequente na modernidade um “Ceticismo” sem
referência histórica, um ceticismo anônimo, como um adversário construído,
representando uma posição a ser refutada. E esse é um dos grandes problemas da
interpretação do ceticismo moderno, que sobretudo a partir do final do século XVII,
acaba sendo interpretado pelos seus adversários, prática inaugurada por Descartes nas
Meditações, sem que haja efetivamente uma leitura dos céticos antigos, apesar dessas
referências ainda encontradas Hume.
Apenas no Abstract encontramos a referência ao Pirronismo, entendido como
uma posição radical, embora não a um ceticismo pirrônico,
“Damos assentimento a nossas faculdades e usamos nossa razão, porque não
podemos evitar. A filosofia nos tornaria inteiramente pirrônicos se a natureza não
fosse forte o bastante para evitar isso.”
“Quem quer que se tenha dado ao trabalho de refutar as questões desse ceticismo total, na verdade
disputou sem um antagonista seja um desses filósofos que mantém que tudo é incerto... minha intenção
é portanto mostrar os argumentos dessa seita fantástica”.
5
168 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
(we assent to our faculties, and employ our reason, only because we cannot
help it. Philosophy would render us entirely Pyrrhonian, were not nature too strong
for it.)
A referência aos Acadêmicos aparece na seção XII da Investigação, quando
Hume identifica a filosofia acadêmica com a cética. Nessa seção, a filosofia da
Academia é contrastada com o ceticismo excessivo do Pirronismo (Parte II, 126) e nas
passagens 126 e subsequentes o Pirronismo é mais uma vez visto como inviável, talvez
mesmo impossível ou inexistente, como uma “seita fantástica”, ou seja, talvez nunca
tenha havido “pirrônicos” nesse sentido radical. Na parte III desta seção temos o
desenvolvimento desse contraste quando o ceticismo mitigado, ou filosofia acadêmica,
durável e útil, pode ser considerado em parte como resultado do Pirronismo, ou
ceticismo excessivo, corrigido pelo senso comum e pela reflexão (129). Chegamos
então ao ceticismo moderado dos verdadeiros filósofos que encontramos no Tratado
(livro I, parte III).
Most fortunately it happens, that since reason is incapable of dispelling these
clouds, nature herself suffices to that purpose, and cures me of this philosophical
melancholy and delirium (Treatise, book I, part Iv, , sec.VII, Conclusion of this
book). 6
Mas, é na Investigação sobre o Entendimento Humano sobretudo que se
encontra a distinção que me interessa mais de perto na parte I da Seção XII (116)
intitulada “Sobre a filosofia cética ou acadêmica”, a que já me referi acima.
Encontra-se aí a analogia com a cura que nos permite aproximar sua posição
com o ceticismo terapêutico de Sexto Empírico.
Na tradição filosófica cética, a concepção terapêutica não é encontrada na
filosofia da Academia (embora Cícero se refira uma vez a “dois remédios”, Lucullus,
2.45).
No Tratado, na Conclusão deste livro, temos que a “Natureza nos cura da
melancolia filosófica e do delírio”. Melancolia e delírio sendo assim dois estados dessa
“doença”.
“Felizmente ocorre que uma vez que a razão é incapaz de desfazer essas nuvens, a natureza ela própria
é suficiente para isso, e nos cura dessa melancolia filosófica e do delírio”.
6
Danilo Marcondes | 169
É principalmente na seção XII da Investigação que encontramos a analogia
com a cura. Primeiro, ao Hume referir-se à dúvida cartesiana (parte I) que seria
incurável se alcançada por alguém (porém, não o é).
Hume define então o seguinte método:
O ceticismo antecedente é caracterizado pelo momento radical da dúvida, o
consequente é o que resulta do método.
Aproxima-se de Sexto Empírico, ao dizer: “O grande subvertedor do Pirronismo
ou ceticismo excessivo é a vida comum” (“The greater subverter of Pyrrhonism or
excessive skepticism is common life”) e também, “É a natureza que nos impede da
inação” (Nature is always too strong for principle). Para Sexto, é claro, é o Pirronismo
que nos leva à vida comum (biós koynós). Portanto, para o ceticismo pirrônico a
postura do cético não é incompatível com a atitude natural, a postura cética, antes, é
sobretudo anti-doutrinária. Esse é um exemplo de como o entendimento moderno
sobre os Acadêmicos e os Pirrônicos diverge do antigo.
Quando Hume define as “estranhas enfermidades do entendimento humano,
quando os seres humanos têm uma fond opinion of themselves, que podemos
aproximar da presunção e o prejudice against antagonists, que podemos aproximar
da prevenção, o remédio é uma pequena dose (a small tincture) do Pirronismo, que
pode ser capaz de curvar o seu orgulho (abate their pride). Portanto o emprego do
método pode nos levar com isso a uma “determinação salutar” e à superação da
enfermidade que anteriormente nos acometera.
Nas palavras de Wittgenstein, talvez o melhor representante contemporâneo do
ceticismo terapêutico 7 , “o filósofo trata uma questão; como uma enfermidade”
(Investigações Filosóficas, §255) e para isso, “não há um único método filosófico, mas
diferentes métodos, como diferentes terapias” (id, § 133).
Referências
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FLORIDI, L. Sextus Empiricus: the transmission and recovery of Pyrrhonism.
Oxford: Oxford University Press, 2002.
7
Ver sessão II acima, “Ceticismo terapêutico”.
170 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
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WITTGENSTEIN, Ludwig, Philosophical Investigations, revised 4th ed. Bilingual text,
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10. PRINCÍPIOS BIOÉTICOS, MEDICINA-BASEADA-EM-EVIDÊNCIAS E
OPÇÕES TERAPÊUTICAS NO TRATAMENTO DA COVID-191
https://doi.org/10.36592/9786587424163-10
Darlei Dall’Agnol2
Marco Antonio de Azevedo3
Alcino Eduardo Bonella4
Introdução
O trabalho filosófico de uma pessoa pode ter impactos que vão muito além
daquilo que é normalmente reconhecido. Uma homenagem ao Professor Nythamar
Hilário Fernandes de Oliveira Junior é, no nosso entendimento, merecida não apenas
pelas publicações relevantes na área da Ética (por exemplo, sobre questões de
biossegurança, Saúde Pública e responsabilidade social etc.), mas também pelo efetivo
engajamento na implementação de políticas públicas eticamente orientadas cujos
efeitos nem sempre são claramente visíveis. Por isso, decidimos prestar um tributo ao
seu sexagésimo aniversário com um trabalho sobre fundamentos da Bioética e suas
implicações para as políticas públicas atuais de combate ao SARS-COV-2 no melhor
espírito que tem guiado a sua vida acadêmica. Ao homenageado, nossos votos de uma
existência longa e feliz!
Em nosso artigo “Bioética em Tempos de Pandemia: testes clínicos com
cloroquina para tratamento de COVID-19,” primeiro disponibilizado online em
maio/20 e agora publicado pela revista Veritas (BONELLA, ARAUJO, DALL'AGNOL
2020), defendemos a necessidade de que se atue com rigor ético durante a pandemia
do novo coronavírus e que não se afrouxem os padrões científicos e normativos nas
pesquisas sobre possíveis medicamentos, tendo como exemplos, a cloroquina (CLQ) e
a
hidroxicloroquina
(HCLQ),
para
a
COVID-19.
Argumentamos
que,
excepcionalmente, seria justificado pular algumas etapas na realização de testes
1 Trabalho produzido pelo Grupo Dilemas COVID-19. Os autores do presente artigo agradecem ao colega
Marcelo de Araujo (UFRJ/UERJ/CNPq) pelas contribuições.
2 UFSC/CNPq.
3 UNISINOS.
4 UFU/CNPq.
172 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
clínicos ou tratamentos experimentais, mas que era inadequado o uso indiscriminado
de medicamentos off label para tratar pacientes enquanto resultados favoráveis das
pesquisas não fossem publicados em veículos de sólida reputação científica. Para
sustentar essa posição, avaliamos o caso à luz de informações científicas disponíveis,
princípios bioéticos e valores da ética médica. Concluímos que políticas públicas e
protocolos de larga escala para o uso da CLQ durante a pandemia não deviam ser
implementadas até que fossem divulgados os resultados das pesquisas realizadas pela
“Coalizão COVID Brasil” e pela Solidarity da OMS (Organização Mundial da Saúde).
Desde a pré-publicação do nosso trabalho, continuamos a monitorar as
publicações qualificadas do mundo todo sobre esse tema bem como as políticas
públicas adotadas no nosso país. No presente capítulo, dando continuidade aos estudos
sobre o tema e sobre dilemas bioéticos em tempos de pandemia, sustentaremos que,
se até meados de maio/20 as pesquisas científicas deixavam dúvidas quanto à eficácia
e segurança do uso da CLQ e da HCLQ para tratamento da COVID-19, a partir daquela
data, com a publicação de artigos baseados em estudos observacionais, já existiam
evidências mais claras para se rever certas propostas de usos, por exemplo, para casos
graves. Todavia, no Brasil, esquemas terapêuticos contendo HCRQ passaram a ser
recomendados por grupos de médicos e autoridades oficiais para tratamento da doença
em sua fase inicial, o chamado “tratamento precoce”. A indicação baseava-se, em parte,
em hipóteses sobre a fisiopatologia da doença e, principalmente, em estudos préclínicos sobre o efeito do medicamento na inibição da replicação do vírus em células
cultivadas in vitro (YAU, YE, ZANG et al., 2020). Também baseava-se, mais
genericamente, em troca de informações e relatos de casos, algo mais próximo da
experiência propriamente empírica e do raciocínio clínico comum e tradicional. Alguns
estudos observacionais e relatos de casos, como veremos, pareciam reforçar essa
hipótese de que o emprego precoce da associação entre a hidroxicloroquina e a
azitromicina poderia ser benéfica na redução da gravidade e da mortalidade pela
doença. Muitas profissionais da saúde e estudiosos, então, seguiram insistindo na
necessidade de que os governos adotem políticas públicas de oferta generalizada desses
medicamentos com alegado efeito antiviral na fase inicial da doença estendendo um
"protocolo" de larga escala, embasados, porém, em estudos de menor qualidade.
Uma conclusão que o leigo poderia extrair é que não há consenso na
comunidade médica sobre a indicação ou ausência de indicação dessa droga na doença.
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 173
Diante dessa falta de consenso, como o leigo e, principalmente, como os governantes
devem se conduzir? Não seria o caso de que, dada a falta de conhecimento sobre o tema
e mesmo de consenso sobre o que e quanto efetivamente sabemos sobre o assunto, a
prudência recomendasse precaução, tanto das autoridades oficiais leigas em medicina,
quanto dos comitês de gestão de crise, com especialistas, evitando, assim,
recomendações peremptórias? Ora, infelizmente não é isso que estamos observando.
O que se observa, ao contrário, é uma divisão de posicionamentos, algo que acaba
afetando a confiança do leigo na medicina e nos grupos de especialistas. Não é de se
surpreender que essa divergência sobre como lidar com a pandemia acabe sendo
deletéria ao controle da própria doença no país. Com efeito, ao mesmo tempo em que
vemos o país atingir a marca de mais de 4.000.000 de casos de infecção e 120.000
óbitos causados pela COVID-19 no final de agosto/20 (sem mencionarmos
subnotificações), observa-se que a nação não conseguiu ainda adotar uma orientação
coordenada e coerente de combate à pandemia. O que é, além de lamentável, sem
dúvida, preocupante demandando uma discussão científica e bioética mais
aprofundada para a implementação de políticas públicas mais adequadas.
Na primeira parte deste capítulo, avaliaremos como a politização do debate
influencia negativamente o esclarecimento científico do tema do tratamento da
doença. Divergências políticas externas à ciência fazem com que os grupos
especializados envolvidos no debate assumam posições dogmáticas, resistentes à
avaliação crítica de seus próprios posicionamentos. É o que parece explicar por que,
mesmo após terem sido publicados, desde maio/20, estudos de boa qualidade
mostrando a ineficácia do tratamento com CLQ/HCLQ, ainda observamos
especialistas defendendo junto aos governantes a adoção de políticas públicas com foco
na prescrição precoce e generalizado da combinação de drogas conhecida como “Kit
Covid”, causando, com isso, um misto preocupante de entusiasmo e dúvida na
população. Na segunda parte, argumentaremos com base na Medicina Baseada em
Evidências (MBE), que, durante junho/20, com melhores estudos publicados,
apareceram razões fortes para rever a recomendação de tais políticas públicas. Foi
nessa época também que a OMS suspendeu definitivamente o apoio às pesquisas com
CLQ/HCLQ, assim como começaram a aparecer os resultados iniciais da Coalizão
COVID Brasil, cujas implicações já deveriam desde então ter conduzido os
pesquisadores a reorientar suas prioridades. Na terceira parte, argumentaremos que a
174 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
superação da persistente polarização em relação ao chamado “tratamento precoce”
também pode ser feita a partir da MBE. O respeito ao cidadão exige que políticas
públicas estejam amparadas em recomendações fortes e, na ausência delas, a cautela e
a prudência, tanto clínica como em termos de uso de recursos públicos, devem sempre
prevalecer. Assim, defenderemos que, havendo evidências fracas sobre a eficácia da
CLQ e, havendo opções embasadas em evidências mais consistentes, é necessário
reconsiderar as políticas públicas tomadas pela União e vários estados sobre o
tratamento farmacológico da COVID-19. De fato, estudos sólidos que apontam para
esse redirecionamento deveriam ser levados a sério, assim como devemos continuar
levando a sério a prioridade, nos esforços preventivos, das medidas sanitárias que
proíbem ou controlam as aglomerações públicas e de medidas relacionadas a pesquisa
e desenvolvimento de vacinas eficazes.
1 Quais princípios bioéticos devem reger as ações e políticas públicas na
área da saúde?
Tanto nos EUA quanto no Brasil, vários fatores fora da ciência influenciaram
negativamente o combate à COVID-19 (mas não trataremos deles aqui). Caberá um
dia, quando a pandemia passar, compreender de forma mais aprofundada por que
razões esses dois países se tornaram campeões no número de casos e óbitos. Porém, ao
que parece, um desses fatores está na excessiva “politização”, no sentido pejorativo
deste termo, a saber, de partidarização da recomendação de medidas de enfrentamento
à pandemia.
No nosso trabalho, “Bioética em Tempos de Pandemia”, reconstituímos a
influência de políticos, em especial dos presidentes americano e brasileiro, que
incentivaram usos de tratamentos sem comprovação científica para a COVID-19 e sem
levar em conta as orientações de seus próprios ministérios. Não é necessário, aqui,
relembrar as declarações dessas autoridades públicas. Convém, entretanto, analisar
uma série de desdobramentos em termos de políticas públicas dessa intromissão não
qualificada. Como constatamos, algumas associações privadas e órgãos públicos
chegaram a distribuir kits com CLQ sentindo-se legitimadas pelas novas orientações
do Ministério da Saúde que não aguardou, ao contrário do que preconizávamos em
nosso artigo, a publicação dos resultados das melhores pesquisas.
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 175
Para iniciar, então, lembremos que pesquisas como a da Coalizão COVID Brasil
precisam seguir os mesmos princípios bioéticos rigorosos que regem todo e qualquer
experimento científico envolvendo seres humanos. Uma emergência epidemiológica
não isenta o pesquisador do respeito incondicional a esses princípios. Pois bem, de que
princípios estamos falando? Desde o surgimento, na modernidade, de uma moralidade
baseada nos direitos humanos, a tradição hipocrática tornou-se limitada e guiada não
mais pelo ideal da beneficência apenas. Hoje, é consensual de que é absolutamente
obrigatório obter o consentimento prévio dos participantes em todo e qualquer
experimento que envolva diretamente seres humanos. Além disso, é também um
princípio bioético que os participantes sejam protegidos pela exigência de que os
estudos sigam protocolos metodológicos rigorosos. É relevante lembrarmos, aqui, do
Relatório Belmont (1978, publicado depois da descoberta do famoso caso Tuskegee),
que levou ao enfoque bioético dos 4 princípios (conhecido também como
“principialismo”), desenvolvido no agora clássico Principles of Biomedical Ethics de
Tom Beauchamp e James Childress (2013). Para facilitar, vamos citar a formulação das
normas básicas, a partir da Resolução 466/2012, que rege atualmente as pesquisas
envolvendo seres humanos feitas no nosso país. A eticidade da pesquisa é garantida
pela observância dos seguintes princípios:
a) respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia,
reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e
permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação expressa, livre e
esclarecida;
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais,
individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o
mínimo de danos e riscos;
c) garantia de que danos previsíveis serão evitados; e
d) relevância social da pesquisa, o que garante a igual consideração dos interesses
envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária.5
A legislação brasileira segue essas normas bioéticas básicas, que guiam o
sistema CONEP, responsável por autorizar pesquisas envolvendo participantes
humanos. Ora, as pesquisas da Coalizão COVID Brasil obedecem a esses parâmetros
morais, assim como outros estudos clínicos que procuraram estabelecer a eficácia e a
segurança do uso off label da CLQ.
5
http://www.conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf <Acesso em 31/08/2020>
176 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Conforme antecipamos, alguns artigos de meados de maio/20 já apontavam
para uma direção contrária ao uso indiscriminado desse medicamento na COVID-19.
Naquele momento, vários estudos observacionais já indicavam a ineficácia da CLQ e
da HCLQ no tratamento de pacientes internados pela doença. Para ilustrar, citaremos,
aqui, apenas dois deles publicados em revistas especializadas. O primeiro, de 07/05,
publicado no The New England Journal of Medicine (GELERIS, SUN, PLATT et al.,
2020), avaliou 1446 pacientes com COVID-19 hospitalizados em Nova York (naquele
momento o epicentro da COVID-19), mostrando que o tratamento com HCLQ não
alterou o tempo de intubação nem a mortalidade desses pacientes. Outro estudo
observacional retrospectivo, publicado em 11/05, no The Journal of the American
Medical Association (ROSENBERG, E.S., DUFORT, E.M., UDO, T. et al. 2020),
analisou 1438 pacientes hospitalizados com COVID-19, também no estado de Nova
York e concluiu que a administração de HCLQ, combinada ou não com Azitromicina
(AZT), não foi associada a uma menor taxa de mortalidade desses pacientes.
Finalmente, o trabalho de maior qualidade publicado em 14/05, no The British
Medical Journal (TANG, W. CAO, Z., HAN, M. et al. 2020), que analisou 150 pacientes
com COVID-19 que apresentavam sintomas leves ou moderados e cujos resultados
mostram não apenas que o tratamento com HCLQ não alterou os resultados dos
exames posteriores, mas também que pacientes que receberam HCLQ apresentaram
maior incidência de efeitos adversos do que os pacientes que não receberam. A partir
desse último estudo, tornou-se, então, eticamente questionável prosseguir com ações
ou políticas de oferta de tratamentos com a CLQ/HCLQ, em vista dos danos observados
pelos estudos no uso desses medicamentos em pacientes internados, bem como pela
ausência de benefícios comprovados. Coerentemente, em 18 de maio de 2020, a
Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a Sociedade Brasileira de Infectologia e a
Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia publicam, na Revista da Associação
Brasileira de Medicina Intensiva, um artigo de consenso sobre o tratamento da
COVID-19 (FALAVIGNA, COLPONI, STEIN et. al., 2020), em que recomendam, com
base no sistema GRADE (GUYATT, OXMAN, VIST, et. al., 2008), a não utilização da
“hidroxicloroquina ou cloroquina de rotina no tratamento da COVID-19”, avaliando o
grau de indicação como fraco, dado o nível baixo de evidência em favor dessa conduta.
O comentário final do consenso foi o seguinte:
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 177
O painel de recomendações entendeu que as evidências disponíveis não sugerem
benefício clinicamente significativo do tratamento com HCQ ou com CQ. Houve
entendimento de que o risco de eventos adversos cardiovasculares é moderado, em
especial de arritmias. Até o momento, os estudos comparados existentes avaliaram
pacientes hospitalizados somente, não havendo base para seu uso ou não em
pacientes ambulatoriais. O uso pode ser considerado mediante decisão
compartilhada entre médico e paciente, somente em pacientes graves ou críticos,
hospitalizados, com monitorização frequente de intervalo QTc e evitando
medicamentos concomitantes que também prolonguem o QTc. Seu uso
preferencial deve ser realizado mediante protocolos de pesquisa clínica.
Esta conclusão, portanto, desencoraja a prescrição generalizada da CLQ/HCLQ
na COVID-19, tanto em pacientes internados como em pacientes ambulatoriais.
Todavia, a recomendação é flexível o suficiente para que qualquer prescrição eventual
possa ser avaliada pelo médico e seu paciente. Diante disso, como deveriam conduzirse as autoridades sanitárias? O que poderia levar uma autoridade sanitária a conduzir
ações e políticas públicas orientando a prescrição generalizada, contrariando a
recomendação de associações de especialistas publicamente reconhecidas?
De fato, até determinado momento, o Ministério da Saúde (MS), à época ainda
liderado por um profissional da saúde, acolhia o uso opcional da CLQ/HCLQ para o
chamado “uso compassivo.” Porém, a partir dos estudos de maio, já não fazia mais
sentido manter mesmo essa recomendação. Como veremos na última parte,
alternativas de tratamento surgiram, modificando a recomendação das próprias
sociedades quanto ao emprego de alguns medicamentos antes apenas em estudo, como
foi o caso da dexametasona. Todavia, até o final de agosto/20 nada mudou no Brasil,
infelizmente, com respeito ao emprego da CLQ/HCLQ. Os estudos seguem; alguns, de
menos qualidade, indicando possível benefício; outros, incluindo estudos de maior
qualidade, indicando ausência. A desavença entre os experts tornou-se, desde então,
pública. Grupos de especialistas não ligados às sociedades de especialidades passaram
a defender o uso da CLQ/HCLQ, em combinação com o antibiótico azitromicina e com
o mineral zinco, como esperança para conter a evolução clínica e a disseminação
epidêmica da doença. Por outro lado, as sociedades de especialidades mantiveram sua
orientação de prudência, desencorajando a prescrição indiscriminada desses
medicamentos (que ficaram conhecidos como “kit Covid”).
Quais princípios deveriam guiar a conduta das autoridades sanitárias num
contexto de divergência? Como a autoridade sanitária justificaria a adoção de uma
política que é admitida consensualmente como pobre em evidências e que é
178 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
desaconselhada pelas sociedades de especialidades? Afinal, decisões das autoridades
sanitárias dirigem-se como políticas públicas à toda a população e servem igualmente
para orientar a ação dos profissionais de saúde que atuam como funcionários públicos.
Ora, é prima facie defensável que, nessas circunstâncias, o princípio que deva
orientar a ação dos governos seja um princípio precaucionário. Em outras palavras,
que é sobre a demanda pela introdução de alguma política contrária à opinião das
sociedades de especialistas já que admitidamente não embasada em evidências fortes
ou consistentes que recai o ônus probandi. São, assim, os defensores da intervenção
que precisam dar justificativas para que a autoridade adote a medida como política
pública. Ora, parece claro que a razão não pode estar no fato de que há estudos em
andamento ou concluídos, porém, de baixa qualidade (isto é, evidências que apenas
reforçam hipóteses, mas que não são confiáveis metodologicamente o suficiente para
excluir a possibilidade de vieses observacionais dentro de uma margem aceitável). Tais
razões não podem ser suficientes para implementar qualquer política pública. Se o
fossem, certamente, ninguém exigiria estudos de maior força epistêmica e maior rigor
metodológico. Nesse caso, opiniões embasadas em especulações e opiniões derivadas
de observação não meticulosas já serviriam para sustentar decisões de política, o que
obviamente não faz sentido. Considerando que já há provas consistentes de que o
emprego da CLQ/HCLQ, principalmente no tratamento daqueles que necessitam
alguma intervenção, isto é, os doentes graves, é sabidamente ineficaz, torna-se
antiético insistir nesse curso de ação. Ao que parece, portanto, a única justificativa para
introduzir ações e políticas de combate à COVID-19 embasadas em estudos de baixa
qualidade, e mesmo contrariamente às evidências disponíveis, seria o caráter
emergencial da pandemia. Adiante veremos que essa alegação é insustentável.
Em que pese a divergência entre os alguns pares, bem como a falta de evidência
reconhecida, o MS, já sem um profissional da saúde em seu comando, publicou novas
orientações ampliando o uso desses medicamentos. 6 Há algo de profundamente
perturbador nas políticas públicas adotadas pelo atual governo brasileiro durante o
auge da pandemia. Não é apenas o caso de que não há profissional da saúde
competente dirigindo o Ministério da Saúde há meses. O pior é que o órgão
https://saude.gov.br/images/pdf/2020/June/17/ORIENTA----es-d-para-manuseio-medicamentosoprecoce-de-pacientes-com-diagn--stico-da-covid-19.pdf <acesso 31/08/2020)
6
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 179
coordenador das ações em saúde no país age em menosprezo declarado aos princípios
bioéticos que regem a pesquisa e a adoção de políticas públicas no país.
Para ilustrar em que medida não foram seguidos os princípios bioéticos, vamos
examinar parte do que deveria ser um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) anexado às novas orientações do MS. Antes de citá-lo, convém lembrar das
condições necessárias, segundo os autores de Principles of Biomedical Ethics, para
tornar o processo e o termo de consentimento válido: competência para decidir;
voluntariedade; revelação das informações relevantes; recomendação de planos de
ação; entendimento; decisão e explícita autorização (BEAUCHAMP & CHILDRESS
2012, p.124). Abaixo, vamos mostrar que o termo proposto pelo MS não satisfaz
algumas dessas condições.
No documento do MS (que mais parece um “termo de anuência”), o paciente
acometido pela COVID-19 deve subscrever os seguintes termos:
Fui devidamente informado(a), em linguagem clara e objetiva pelo(a) médico(a),
que: 1. A cloroquina e a hidroxicloroquina são medicamentos disponíveis há muitos
anos para a prevenção e tratamento da malária e também para o tratamento de
algumas doenças reumáticas como artrite reumatoide e lúpus. Investigadores
chineses demonstraram a capacidade dessas drogas de inibir a replicação do
coronavírus em laboratório (in vitro). Um estudo francês mostrou que a eliminação
do coronavírus da garganta de portadores da COVID-19 se deu de forma mais
rápida com a utilização da combinação de hidroxicloroquina e o antibiótico
azitromicina, quando comparados a pacientes que não usaram as drogas.
Entretanto, não há, até o momento, estudos suficientes para garantir certeza de
melhora clínica dos pacientes com COVID-19 quando tratados com cloroquina ou
hidroxicloroquina; 2. A Cloroquina e a hidroxicloroquina podem causar efeitos
colaterais como redução dos glóbulos brancos, disfunção do fígado, disfunção
cardíaca e arritmias, e alterações visuais por danos na retina. Compreendi,
portanto, que não existe garantia de resultados positivos para a COVID-19 e que o
medicamento proposto pode inclusive apresentar efeitos colaterais. Estou ciente
de que o tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina associada à
azitromicina pode causar os efeitos colaterais descritos acima e outros menos
graves ou menos frequentes, os quais podem levar à disfunção de órgãos, ao
prolongamento da internação, à incapacidade temporária ou permanente e até
ao óbito. (itálicos acrescentados)
Seria essa uma apresentação aceitável para um documento cujo objetivo é
declarar formalmente o consentimento informado do paciente a uma recomendação
médica? Ora, primeiramente, as razões citadas não são evidências que justificam
recomendar qualquer conduta. Trata-se de evidências insatisfatórias para justificar
qualquer conduta clínica, já que se derivam basicamente de pesquisas pré-clínicas in
180 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
vitro. Como já argumentamos no nosso trabalho anterior, a passagem para a fase
clínica pode não comprovar os resultados daquela etapa. Pior ainda, o “estudo francês”
citado no documento (também já criticado em nosso artigo publicado na Veritas)
apareceu somente em forma de preprint e foi, posteriormente, retirado de publicação.
Trata-se, assim, de um estudo que somente pode ser citado como exemplo de má
prática científica. Mesmo assim, ele continua a ser usado como justificativa para o uso
da CLQ em agosto/20 no Brasil. Terceiro, feito durante o contexto de uma pandemia
com distribuição pública de kits, é certo que o paciente não se encontra livre de coação
nessa condição. Por conseguinte, resta claro que o MS não estava seguindo padrões
bioéticos ao tomar essa decisão.
Ainda assim, o órgão encontrou apoio na seguinte decisão do Conselho Federal
de Medicina (CFM). O Parecer CFM n.04/2020 estabelece:
Com base nos conhecimentos existentes relativos ao tratamento de pacientes
portadores de COVID - 19 com cloroquina e hidroxicloroquina, o Conselho Federal
de Medicina propõe:
Considerar o uso em pacientes com sintomas leves no início do quadro clín
ico, em que tenham sido descartadas outras viroses (como influenza, H1N1,
dengue),
e
que
tenham
confirmado
o
diagnóstico
de
COVID
19,
a
critério
do
médico
assistente,
em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao
doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício
do uso da droga para o tratamento da COVID 19, explicando os efeitos colaterais
possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos
familiares, quando for o caso;
(...)
d) O princípio que deve obrigatoriamente nortear o tratamento do paciente
portador da COVID-19 deve se basear na autonomia do médico e na valorização
da relação médico-paciente, sendo esta a mais próxima possível, com o objetivo de
oferecer ao doente o melhor tratamento médico disponível no momento;
e) Diante da excepcionalidade da situação, e durante o período declarado da
pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou
hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da
COVID-19. (itálicos acrescentados)7
O argumento empregado pelo CFM, portanto, é de que, “dada a
excepcionalidade da situação” e “durante o período declarado da pandemia”, deve-se
isentar preliminarmente de infração à ética médica o(a) profissional que empregar um
tratamento que, noutras circunstâncias, seria corretamente considerado sem
indicação e potencialmente suscetível, assim, de infração à ética profissional. Isso
7
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/4 <acesso em 31/08/2020>
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 181
porque encontra-se explícito no Código de Ética Médica (CEM) que a permissão dada
ao médico, entendida como um direito, de “indicar o procedimento adequado ao
paciente”, dá-se sob a restrição explícita de que sejam “observadas as práticas
cientificamente reconhecidas” (inciso II do Capítulo II do novo CEM). Contudo, já que
a recomendação do uso da CLQ/HCLQ, como vimos, é uma conduta assumidamente
controversa e sem embasamento sólido, pareceu sensato aos conselheiros
“tranquilizar” os médicos, isentando-os preliminarmente de erro, caso recomendem
esse tratamento. Mas para evitar uma aparente contradição com o CEM, criou-se uma
situação excepcional que transfere artificialmente ao paciente o ônus da decisão. Seria
isso justo?
Várias entidades científicas manifestaram-se logo a seguir contrárias à posição
adotada pelo CFM e pelo MS. Uma delas foi justamente o documento de
recomendações acima mencionado e assinado em conjunto pela Associação de
Medicina Intensiva Brasileira, a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Sociedade
Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (FALAVIGNA, COLPONI, STEIN et. al., 2020).
Bastante explícita é a recomendação, de 17/07/20, contida no Informe Nº 16 da
Sociedade Brasileira de Infectologia, a saber, de abandono da HCLQ em qualquer fase
de tratamento da COVID-19.8
O Parecer 04/20 do Conselho Federal de Medicina foi também questionado do
ponto de vista ético. Cabe aqui citar também a reação da Sociedade Brasileira de
Bioética (SBB), que enviou a carta ao CFM, apontando os seguintes problemas:
(...) O Parecer explicita que nos casos com sintomas leves, a utilização será “a
critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele
obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que
comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID- 19, explicando
os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do
paciente ou dos familiares, quando for o caso”.
Mesmo com o reconhecimento da inexistência de estudo que comprove o benefício,
exatamente num momento de dúvida sobre a possível evolução da sintomatologia,
este parecer transfere para o paciente, que está extremamente vulnerável e em
relação completamente desigual com o médico, a responsabilidade pela decisão
e, consequentemente, dos eventuais efeitos adversos. Isto é eticamente aceitável?
(...) E no último item da conclusão: “Diante da excepcionalidade da situação e
durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico
que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em
pacientes portadores da COVID-19”. Como assim? Isto quer dizer que mesmo
https://web.infectologia.org.br/wp-/2020/07/atualizacao-sobre-a-hidroxicloroquina-no-a-covid19.pdf Acesso em: 31/08/20.
8
182 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
utilizando medicamento sem indicação cientificamente baseada, especialmente
para aqueles “com sintomas leves”, o médico não cometerá infração ética?
Não está nas normas do Conselho, que decisão como essa só ocorrerá após o
devido processo administrativo?” (itálicos acrescentados)9
De fato, parece-nos bastante questionável a decisão de orientar publicamente
o(a)s médico(a)s a exigirem de seus pacientes que declarem explicitamente, e em
documento próprio, seu pretenso consentimento a uma conduta reconhecidamente
mal amparada em estudos confiáveis. Acredita-se que, com isso, o(a)s médicos estarão
isentos do risco de serem acusados de infração à ética profissional. Ora, nada pode
retirar do paciente a legitimidade de questionar uma conduta profissional, assim como
não faz sentido isentar “a priori” alguém, muito menos um profissional, por tomar uma
decisão qualquer. No entanto, o mais grave é que essa medida desrespeita os pacientes.
O processo de consentimento, que deveria de todo modo ocorrer sob as condições do
relacionamento privado entre o médico e seu paciente, torna-se agora substituído por
um instrumento pretensamente “legal” e distribuído de forma generalizada. Salvo
melhor juízo, para quem está numa situação extremamente vulnerável, transferir desse
modo a responsabilidade pela decisão e, consequentemente, dos eventuais efeitos
adversos, não nos parece uma atitude respeitosa e eticamente recomendável.
2 Os pressupostos epistêmicos da Medicina Baseada em Evidências e as
opções terapêuticas na COVID-19
Como já sustentamos acima, desde o início de junho/20, já tínhamos razões
para rever e, eventualmente, abandonar as recém adotadas políticas públicas do MS.
Nos EUA, a recomendação para uso emergencial da CLQ/HCLQ, feita ainda no final
de março/20, já havia sido suspensa pela agência reguladora, o F.D.A. (Food and Drug
Administration), pela ausência de comprovação de eficácia. 10 Aliás, os EUA logo
compraram o estoque de remdesivir, inicialmente criado para combater o ebola, o
único antiviral com estudos científicos mostrando eficácia contra a COVID-19. Por
outro lado, no Brasil, tanto o aumento da produção de CLQ por parte do exército
http://www.sbbioetica.org.br/Noticia/742/SBB-CEBES-e-Rede-Unida-enviam-oficio-ao-CFM42020
<acesso em 31/08/2020)
10 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/agencia-reguladora-dos-eua-revoga-usoemergencial-da-hidroxicloroquina-para-covid19.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm. <acesso: 31/08/2020>
9
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 183
quanto a quantidade posteriormente doada pelos próprios EUA acabaram
pressionaram o nosso sistema de saúde a ter que consumir um estoque enorme desses
medicamentos.11 Estas parecem ser, como veremos, algumas das razões que levaram à
insistência em políticas públicas equivocadas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) também já havia divulgado a conclusão
de que a CLQ não tinha resultados positivos na COVID-19. O Solidarity, pesquisa
liderada pela OMS, já havia suspendido, em 25/05/20, pesquisas com CLQ por razões
de segurança. A instituição fez, então, uma profunda revisão nos dados da pesquisa e,
alguns dias depois, acabou por cancelar definitivamente aquele ramo da pesquisa.12
Tanto os EUA quanto o Brasil estavam, naquele momento, negligenciando as
recomendações da OMS, o que ajuda a explicar porque esses dois países estão se saindo
tão mal no combate à COVID-19, sendo campeões de casos e mortes.
Para indicar uma alternativa que produziria resultados melhores, vamos iniciar
reconstruindo as exigências metodológicas e os padrões de cientificidade da chamada
“Medicina Baseada em Evidências” (MBE) mostrando o vínculo interno entre a
qualidade das evidências e as opções terapêuticas. Parece-nos que um efeito da
pandemia de COVID-19 foi a explicitação de uma divergência subjacente entre dois
modelos de racionalidade médica: o modelo tradicional, centrado na observação
clínica e amparado por explicações fisiopatológicas, e o modelo evidencialista, surgido
com a MBE, que recomenda um processo de tomada de decisões clínicas amparado não
apenas por observações clínicas, mas fundamentalmente por informações obtidas de
estudos científicos clínico-epidemiológicos de boa qualidade. Em que pese muitos
defensores da prescrição da CLQ/HCLQ afirmem que seguem os princípios da MBE,
parece-nos claro que seu comportamento profissional prioriza o método tradicional e
relativiza ou menospreza a autoridade dos cânones da MBE. Podemos chamar ao grupo
defensor do modelo tradicional de "praticalista" e ao outro grupo de "evidencialista".
A medicina atual não é apenas uma arte, mas uma prática que precisa se guiar
pela ciência. Desde a modernidade, a distinção entre ciência e pseudociência (alquimia
vs. química; astrologia vs. astronomia etc.) tem sido uma discussão constante na
epistemologia. Sem entrarmos, aqui, num debate aprofundado sobre critérios de
11
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/reporter-brasil/2020/06/20/laboratoriodo-exercito-gastou-mais-de-r-15-mi-para-fabricar-cloroquina.htm <acesso 31/08/2020>
12
https://www.who.int/news-room/detail/04-07-2020-who-discontinues-hydroxychloroquine-andlopinavir-ritonavir-treatment-arms-for-covid-19 <acesso 31/08/2020>
184 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
cientificidade, cabe perguntar o que diferencia a medicina de práticas pseudocientíficas
de tentativas de cura (por exemplo, benzeduras)? Ora, para que a medicina possa se
diferenciar do mero curandeirismo e evitar as múltiplas formas de charlatanismo que
são exercidas em seu nome, é fundamental orientar-se pelas melhores informações e
práticas científicas disponíveis. Na presente pandemia da COVID-19, presenciamos
muitas sugestões de tratamento a partir de sementes abençoadas por pastores,
procedimentos sem amparo em quaisquer pesquisas sérias (como a ozonioterapia) etc.
É claro que a própria ciência não é um projeto acabado, e há muito de hipotético no
que ainda acreditamos, mas uma das características centrais da ciência como a
concebemos, hoje, é o amparo em proposições científicas sempre justificadas a partir
de evidências abertas e passíveis de revisão. Ora, o que diferencia a atitude científica
de uma postura dogmática é exatamente estar aberto às evidências e estar disposto a
corrigir constantemente nossas crenças em função delas. Cientistas revisam suas
crenças a partir de novos resultados e descobertas feitas por membros da comunidade
científica. A ciência, portanto, é um empreendimento cooperativo e dinâmico. Essa é,
em linhas gerais, a visão de ciência que perpassa também a MBE.
Para compreender melhor esse ponto, vejamos qual o fundamento
epistemológico da MBE. Segundo Guyatt e Djulbegovic, não há uma definição
consensual para o que se entende por ‘evidência’ no âmbito da medicina. Contudo, a
maioria concorda com a definição ampla dada na filosofia, segundo a qual as evidências
são os fundamentos (grounds) tomados como justificativas para crenças. Evidências
são assim grounds for beliefs. Evidências, nesse sentido, é tudo o que fornece suporte
ou crítica a nossas crenças. Para Guyatt e Djulbegovic, a MBE defende um conceito
amplo de evidência para a medicina, segundo a qual quaisquer observações empíricas
ou relatos de sintomas ou estados mentais, sejam sistematicamente coletados ou não,
podem ser considerados como evidência em potencial. De todo modo, para que
alcancemos crenças sólidas, é preciso que os médicos não apenas escolham evidências
guiados por vieses subjetivos (por exemplo, escolhendo as evidências que
subjetivamente reforçam suas convicções particulares). Para que se busque a verdade,
é fundamental dar-se atenção à totalidade das evidências disponíveis. No entanto,
nesse processo de colheita nem toda evidência é igual. Há informações que conferem
maior ou menor convicção às crenças clínicas. É tendo isso que a MBE guia-se pelos
seguintes princípios básicos (GUYATT e DJULBEGOVIC, 2019):
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 185
1) A busca da verdade é melhor realizada através do exame da totalidade
das evidências ao invés da seleção de um item limitado que corre o risco de
ser não representativo e que será certamente menos preciso do que a
totalidade.
2) Nem toda a evidência é igual e um conjunto de princípios pode identificar
evidência mais confiável vs. menos aceitável.
3) Evidências são necessárias, mas não suficientes. A tomada de decisão
clínica requer a aplicação de valores e preferências.
Buscando um fundamento epistemológico para esse conjunto formado por três
princípios básicos, Guyatt e Djulbegovic sugerem que não há uma filosofia única que
os justifique. Sua conclusão é de que a união entre o evidencialismo e o coerentismo,
uma possibilidade, aliás, apontada pelos filósofos Juan Comesaña (2010) e Alvin
Goldman (2011), poderia fornecer as bases epistemológicas para os princípios da MBE.
Segundo Comesaña, o confiabilismo é a visão de que tudo o que importa para a
justificação de uma crença é que ela seja produzida por um mecanismo que tenda a
produzir crenças verdadeiras. Por outro lado, de acordo com o evidencialismo, tudo o
que importa para a justificação é a adequação à evidência. Ocorre que, se o
confiabilismo for a única visão sobre o que levamos em conta quando acreditamos em
algo, bastaria um mecanismo "cego" para que pudéssemos ter crenças justificadas. Em
medicina, isso implicaria dizer que crenças verdadeiras e justificadas poderiam ser
produzidas por mecanismos protocolares confiáveis, imunes a desvios ou vieses
provocados pelas experiências clínicas. Por outro lado, o evidencialismo isoladamente
também não deixa de ser problemático. Médicos poderiam confiar em suas opiniões
clínicas ordinárias sem dar-se conta dos riscos que tais observações possam levá-los a
erros. A união entre o evidencialismo e o confiabilismo parece fazer jus aos três
princípios da MBE. De um lado, médicos precisam decidir clinicamente com base nas
evidências existentes, colhidas não somente de suas observações, mas também de
observações e estudos sistemáticos, capazes de controlarem viéses e, assim, gerarem
maior confiabilidade. A consequência é que crenças não são apenas adequadas às
evidências, mas que as próprias evidências precisam ser avaliadas segundo sua
capacidade de produzir, de modo confiável, crenças ao menos mais próximas da
verdade. Certos tipos de evidências são, portanto, mais fortes do que outras; conferem,
com efeito, mais força epistêmica que evidências menos confiáveis. Como diz
Comesaña (2010, p. 571), “confiança sem evidência é cega; evidência sem confiança é,
porém, vazia.” A MBE consiste num sistema que permite aos médicos alcançar
conclusões clínicas as mais próximas da verdade e as mais corretas possíveis. Nesse
186 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
aspecto, a MBE representa um avanço significativo no modo como médicos tomam
decisões clínicas amparadas em crenças cientificamente verdadeiras (ou verossímeis)
e justificadas (por métodos mais confiáveis). Trata-se de um sistema que busca garantir
aos pacientes o melhor cuidado e o máximo respeito.
É da união entre os princípios bioéticos, mencionados na primeira seção, e os
princípios epistêmicos da MBE que se acha amparada a boa prática médica moderna.
Assim, no contexto atual, afastar-se dos ditames da MBE é afastar-se não somente do
ideal científico de busca da verdade, mas também de um ideal ético de busca do
máximo respeito à pessoa humana.
Com efeito, um problema na presente polarização sobre as opções terapêuticas
de tratamento da COVID-19 está na falta de um consenso em relação a como aplicar
corretamente os princípios da MBE. Para tornar isso mais claro, permitam-nos revisar
aqui como isso se dá no caso das alternativas terapêuticas sugeridas para a COVID-19.
Vejamos, por exemplo, o “estudo francês”, citado no texto do TCLE proposto pelo MS.
Trata-se, na verdade, de um estudo que foi superado. Sua confiabilidade é, portanto,
bastante limitada. Trata-se de um estudo preliminar, que apontava para hipóteses que
pareciam plausíveis, mas cuja força epistêmica era limitada e baixa para poder amparar
decisões clínicas e, principalmente, políticas públicas mais amplas. Isso fica claro ao
revisarmos quais são os diferentes tipos de evidência fornecidos pelos variados tipos
de estudos clínicos. Abaixo, então, está uma lista dos diferentes tipos de estudos
clínicos, estratificados segundo níveis de evidência (ATTALAH, TREVISANI,
VALENTE et al., 2003):
I. Revisão Sistemática ou metanálise;
II. Megatrial (> 1000) pacientes;
III. Ensaio clínico randomizado (< 1000) pacientes;
IV. Estudos de coorte (não randomizado);
V. Estudo de caso-controle;
VI. Série de casos (sem grupo controle);
VII.Opinião de Especialistas.13
Nessa estratificação, quão mais acima está o estudo, mais alta é sua força
epistêmica e, por conseguinte, maior o grau de recomendação terapêutica. Nos níveis
I a III, nessa classificação, temos os estudos de maior nível de evidência. Trata-se dos
No Brasil, essa é a escala de classificação geralmente aceita. Para contrastar com outro modelo, com
subclassificações, vide: https://www.cebm.net/ (Níveis de evidência: 1A a 5), publicado por um dos
melhores centros de medicina baseada em evidências do mundo.
13
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 187
estudos experimentais controlados e das revisões ou metanálises desses estudos. Nos
níveis IV a VI, temos estudos observacionais. Estudos de coorte são estudos
observacionais controlados, sendo, por isso, o tipo de estudo observacional mais
confiável (abaixo dele, poderíamos incluir também os estudos observacionais
transversais, menos confiáveis que os estudos de coorte, mas mais confiáveis que os
estudos não controlados). Abaixo, temos os estudos de caso não controlados (séries de
casos). No último nível, temos as opiniões de especialistas baseadas apenas na
experiência clínica desses profissionais. Trata-se de um nível inferior de evidência,
ainda que possa servir eventualmente de base para a tomada de decisão clínica na falta
de estudos com força epistêmica maior.
É possível, agora, distinguir mais claramente entre diferentes graus de
qualidade das evidências, indo da "alta qualidade", passando pela "moderada" e
"baixa", até a "muito baixa", para, posteriormente, estabelecer a conexão com a força
de recomendação terapêutica. A ponte aqui seria a seguinte: quanto maior a qualidade
da evidência, maior é a força da recomendação. O sistema abaixo, conhecido como
“GRADE,” vem sendo o mais empregado atualmente pelos adeptos da MBE (GUYATT,
OXMAN, VIST, 2008, p.926):
Qualidade É muito improvável que pesquisas posteriores
Alta
irão mudar a nossa confiança na estimativa do
efeito.
Moderada É provável que pesquisas posteriores terão um
impacto importante na nossa confiança na
estimativa do efeito e poderão alterar tal
estimativa.
Baixa
É muito provável que pesquisas posteriores
terão um impacto importante na confiança na
estimativa do efeito e possivelmente mudarão
tal estimativa.
Muito
baixa
Qualquer estimativa do efeito é muito incerta.
Para sintetizar: evidências fortes produzem alta confiabilidade.
A partir desse quadro podemos introduzir operadores de obrigação para
tratamento. Faremos isso na próxima seção, pois, antes, vamos estabelecer alguns
princípios para políticas públicas baseados no GRADE. Ora, evidências fortes, de alta
188 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
qualidade, tendem a levar a um consenso sobre opções de tratamento. É claro que o
consenso não ocorrerá se as pessoas envolvidas não mantiverem uma postura crítica e
aberta, recusando-se a orientar suas práticas clínicas por evidências fracas, e evitando
deixar-se persuadir por argumentos irracionais ou insensatos. De todo modo, nas
situações em que a ciência for incapaz de fornecer estudos de alta qualidade, estudos
de moderada ou mesmo de baixa qualidade poderão orientar políticas públicas, desde
que os especialistas na matéria estejam de acordo de que a medida proposta tem uma
probabilidade alta ou significativa de gerar benefício público sob um custo pequeno ou
significativamente desconsiderável. Para avaliar essa possibilidade, a autoridade
pública deve consultar os painéis ou comitês de experts (sociedades de especialidades
ou câmaras técnicas dos conselhos profissionais, no caso de medicamentos, dos
Conselhos de Medicina) sobre a recomendação da medida.
Com isso, e em resumo, temos dois princípios, extraídos da epistemologia da
MBE e dos princípios bioéticos, regendo a decisão razoável das autoridades sanitárias
no que tange à escolha de ações ou políticas de saúde:
I. As ações e políticas de saúde implementadas devem contar com
fundamentação científica adequada, a saber, devem estar amparadas em
evidências científicas de alta qualidade, capazes de gerar recomendações
fortes em favor de alguma ação, política ou procedimento;
II. Na ausência de amparo científico de alta qualidade, a autoridade
sanitária pode, excepcionalmente, optar por recomendar ações e políticas
amparadas em estudos de moderada qualidade, desde que essa decisão
esteja sustentada em alguma recomendação consensual da comunidade de
experts (como ocorre com frequência no caso de práticas tradicionalmente
aceitas que não foram objeto de estudos controlados, mas não suscitam
dúvidas entre os especialistas sobre sua apropriabilidade).
Disso se segue que age em imprudência a autoridade sanitária que implementar
ações ou políticas públicas sem sustentação científica sólida ou sem o amparo da
opinião consensual de especialistas no assunto. Numa situação em que não há estudos
científicos de alta qualidade amparando uma decisão e diante da falta de consenso
entre os especialistas, a autoridade sanitária, em nome do interesse público, deve
adotar uma posição de precaução, evitando implementar ações que contrariem esses
dois princípios.
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 189
3 O tratamento precoce com HCLQ: Deve o governo acolher essa proposta
como política pública?
Nesta seção, vamos discutir se, dado o estado atual de conhecimento sobre a
COVID-19, a autoridade sanitária estaria eventualmente autorizada a recomendar o
chamado “tratamento precoce” como ação de combate à pandemia, incluindo-o em
protocolos de atenção à saúde. Aplicaremos os resultados da seção anterior ao caso dos
estudos sobre o uso da CLQ e da HCLQ na COVID-19 bem como princípios bioéticos.
Recentemente, dois estudos com alta qualidade de evidências e, por conseguinte
de alta confiabilidade, estabeleceram cursos de ação terapêuticos claros em relação à
COVID-19. A recomendação do MS e do CFM de uso da CLQ manteve-se durante todo
o tempo sustentada, todavia, apenas por estudos de qualidade muito baixa, recebendo,
por conseguinte, recomendação terapêutica fraca. Ora, no dia 05 de junho/20, foi
apresentado o resultado dos ensaios Recovery trial, em especial, um estudo de alta
qualidade, publicado no artigo “No clinical benefit from use of hydroxychloroquine in
hospitalised patients with covid-19.” 14 Trata-se de um estudo com 1543 pacientes
usando HCQ durante a internação por COVID-19, contraposto a 3.132 sob cuidados
usuais. O resultado foi o de que não houve diferença significativa nas taxas de
mortalidade e também não houve evidência de efeitos benéficos em termos de duração
de tempo de internação. Diferentemente dos outros citados na seção anterior de
maio/20, que eram apenas observacionais, este estudo segue o chamado “padrão
ouro” dos ensaios clínicos: trata-se de um estudo randomizado, duplo cego e
controlado (com grupo usando placebo).
No final do mês de junho/20, provavelmente com acesso a dados significativos
da Coalizão COVID Brasil, o hospital líder da rede de pesquisa (Hospital Albert
Einstein) deixou de recomendar o uso da CLQ/HCLQ.15 Um trabalho publicado mais
tarde por pesquisadores brasileiros no prestigioso The New England Journal of
Medicine, também apontou para a falta de eficácia do uso da HCLQ em pacientes
hospitalizados com sintomas leves ou moderados (CAVALCANTI, ZAMPIERI, ROSA
14
https://www.recoverytrial.net/news/statement-from-the-chief-investigators-of-the-randomisedevaluation-of-covid-19-therapy-recovery-trial-on-hydroxychloroquine-5-june-2020-no-clinicalbenefit-from-use-of-hydroxychloroquine-in-hospitalised-patients-with-covid-19 <acesso 31/08/2020)
15
https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/25/einstein-proibe-quemedicos-indiquem-cloroquina-a-pacientes-com-covid-19.htm <acesso 31/08/2020>
190 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
et al. 2020). Essa foi uma contribuição significativa da ciência brasileira, infelizmente
desconsiderada pelo próprio Ministério da Saúde.
Todavia, muitos médicos alegam que essas conclusões aplicam-se ao uso da
CLQ/HCLQ apenas nas fases adiantadas da doença. Tais estudos não poderiam ser
aplicados ao uso desses medicamentos nas fases iniciais, especialmente na fase de alta
replicação do vírus quando se dá o aparecimento dos sintomas. Como estratégia de
tratamento, não há dúvidas de que, se dispuséssemos de algum medicamento ou
tratamento capaz de atuar precocemente para evitar a replicação viral, essa seria uma
ótima opção clínica com efeitos de saúde coletiva. O problema é que, para o emprego
generalizado de uma estratégia terapêutica, não basta sua plausibilidade teórica.
Também não basta a mera possibilidade do efeito com base em estudos pré-clínicos ou
mesmo em estudos observacionais não controlados; é preciso evidências consistentes
de que o esquema terapêutico proposto garanta a melhor clínica dos pacientes com
COVID-19. Isso, infelizmente, falta ao chamado "tratamento precoce" preconizado no
Brasil que segue, no máximo, apenas como hipótese e, portanto, incapaz de
fundamentar políticas públicas.
Como avaliar, então, a demanda de alguns grupos de médicos em favor da
adoção pelos serviços públicos da estratégia do tratamento precoce como medida
terapêutica de combate à COVID-19? Na verdade, é preciso reconhecer que há um
dissenso entre os especialistas sobre a eficácia e sobre a prudência em empregar o
tratamento precoce. Há grupos de médicos que defendem o emprego da medida e há
grupos francamente contrários. Por exemplo, em Santa Catarina, onde um de nós
acompanhou de perto a polarização, um grupo de profissionais da saúde lançou
recentemente a “Carta Aberta dos Médicos do Estado de Santa Catarina", requerendo
a implementação imediata do tratamento precoce da COVID-19. A carta continha a
assinatura de mais de 200 profissionais e foi endereçada ao governador, demandando
a aprovação e implementação de um protocolo que propõe a prescrição pelos médicos
do tratamento precoce para todo paciente acometido pela COVID-19 desde suas fases
iniciais. 16 Por outro lado (e em contraposição), um outro grupo significativo de
profissionais da saúde assinaram um “Manifesto pela segurança do paciente no
16 No final de agosto/20, apesar das fortes evidências científicas contrárias, a pressão de um grupo de
médicos
e
médicas
chegou
ao
Palácio
do
Planalto:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-08/bolsonaro-defende-protocolo-detratamento-precoce-contra-covid-19 <acesso 231/08/20>.
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 191
tratamento para a COVID-19 e em defesa de uma medicina responsável e baseada em
evidências científicas,” este com mais de 600 subscrições.
17
Ora, diante dessa
divergência, como deveria a autoridade sanitária avaliar a proposta da adoção dessa
estratégia como medida de saúde pública? Além disso, como deveria a autoridade
sanitária considerar a proposta, admitindo-se que a qualidade dos estudos
apresentados em seu favor é assumidamente precária? Poderia a emergência sanitária
justificar a inclusão de ações de saúde pública não suficientemente comprovadas e
potencialmente lesivas (como é o caso de toda ação medicamentosa)?
Nosso entendimento é de que, diante da falta circunstancial de evidências
consistentes em favor da medida e da potencialidade de danos colaterais eventuais,
considerando também a divergência entre os experts sobre o assunto, não há
justificativas sólidas para que o poder público adote essa estratégia como política
pública. Diante dessas circunstâncias, a autoridade deve manter-se fiel ao princípio
precaucionário de primeiramente evitar o dano e de exigir que os proponentes
ofereçam provas consistentes em favor de um balanço favorável de benefícios frente
aos prejuízos potenciais da medida.
A presente emergência sanitária também não justifica romper com essa lógica.
Para que uma autoridade sanitária relaxe seu compromisso de exigir comprovação
científica consistente da eficiência da medida seria preciso que houvesse um dano
público significativo e iminente. Chamemos a essa cláusula de "princípio catastrófico".
É plausível que uma catástrofe de dimensões capazes para expor uma coletividade
inteira ao risco iminente de extinção possa justificar o abandono excepcional dessa
medida de precaução. Ora, embora a pandemia de COVID-19 seja um evento de graves
proporções, parece claro que ela não representa uma ameaça à existência dos seres
humanos ou de qualquer coletividade sobre a face do planeta. Nas circunstâncias
atuais, ao contrário, os riscos previsíveis do relaxamento desse princípio racional e
precaucionário são maiores do que os benefícios potenciais apenas especulados. Não
há, portanto, razão para que a autoridade sanitária adote medidas como a inclusão do
tratamento precoce como medida de saúde pública de combate à emergência sanitária
representada pela pandemia sem exigir que tais medidas estejam amparadas em
estudos de alta ou, ao menos, de moderada qualidade. É nesse sentido que o ônus
Em meados de agosto/20, a ABMMD lançou carta em defesa de uma medicina ética e científica:
https://jornalggn.com.br/cidadania/abmmd-lanca-carta-manifesto-por-uma-medicina-eticaresponsavel-e-baseada-em-evidencias/ <acesso em 31/08/20>
17
192 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
probandi recai sobre aqueles que propõem a inclusão da medida. Isso, porém, como
defende o próprio CFM, não implica que o médico esteja também impedido de
prescrever o alegado tratamento. O que vale para o contexto da decisão compartilhada
privada entre o médico e seu paciente não se transfere imediatamente para o contexto
público. No contexto público, a autoridade sanitária age em nome da coletividade, um
ente difuso cujos membros poderiam ser individualmente lesados por uma decisão
uniforme e geral insuficientemente embasada. Médicos podem estar autorizados a
discutir alternativas com seus pacientes, incluindo medidas de benefício potencial sem
comprovação, sem que essas medidas precisem fazer parte de políticas gerais. Todavia,
é preciso seguir as melhores evidências inclusive para qualquer modalidade de
tratamento precoce entendido como ação preventiva.
Para reforçar o nosso argumento, vejamos um breve resumo sobre os resultados
das pesquisas sobre o alegado efeito profilático da CLQ e da HCLQ na COVID-19. Desde
03/06/20, estão disponíveis os resultados de um estudo randomizado, duplo cego e
controlado, publicado no The New England Journal of Medicine (BOULWARE, D.,
PULLEN, M, BANGDIWALA, A. S. et al.),
que já deveria também ter norteado as políticas
públicas no Brasil. De acordo com as pesquisas feitas nos Estados Unidos e em partes
do Canadá com 821 participantes assintomáticos, dos quais 719 reportaram contato de
alto risco com a COVID-19, a incidência da doença não foi significativamente
diferente entre aqueles que receberam HCLQ (11.8%) e aquelas pessoas que
receberam placebo (14.3%). Os autores concluem, por conseguinte, que a HCLQ não
preveniu doença compatível com COVID-19.
Na mesma direção, um elucidativo estudo sobre aspectos fisiopatológicos e uso
clínico, em primatas não-humanos, concluiu recentemente contra a eficácia do
medicamento (MAISSONASSE, GUEDJ, CONTRERAS et al. 2020), e um outro estudo
in vitro, também publicado na Nature, informou que de fato não há efeito em células
pulmonares humanas (HOFFMANN, MOSBAUER, HOFMANN-WINKLER et al.
2020). Além disso, também em junho/20, obtivemos resultados de outros ensaios
clínicos randomizados, controlados e duplo-cegos (SKIPER, PASTICK, ENGEN et al.
2020; MITJÀ, CORBACHO-MONNÉ, UBALS et al. 2020), o tipo de estudo
corretamente chamado de padrão-ouro na metodologia científica de pesquisa clínica,
contrariando a suposta eficácia do medicamento. Essas evidências em conjunto são
razões fortes contra o uso da CLQ/HCLQ. Além disso, resultados preliminares dos
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 193
estudos da Coalizão COVID Brasil reforçaram a ausência de indicação do uso
terapêutico da combinação de drogas proposta no novo “protocolo” oficial brasileiro
para a COVID-19 (CAVALCANTI, ZAMPIERI, ROSA et al., 2020).
Mesmo assim, no Brasil, continua-se a usar CLQ/HCLQ como forma de tentar
inibir a propagação do SARS-COV-2 e seus efeitos. Segundo levantamento do Conselho
Federal de Farmácia, houve um crescimento de prescrições, em 2020 em comparação
ao ano passado, de 676,89% para a CLQ e 863.34% para a HCLQ. 18 Como não houve
aumento significativo de casos de malária, a única explicação é o aumento do uso off
label, e de maneira indiscriminada, para a COVID-19. Não há, todavia, considerando
os estudos padrão-ouro supracitados, no final de agosto/20, motivos suficientes para
adotar quaisquer protocolos de saúde pública que incluam a CLQ/HCLQ no
tratamento da COVID-19. Por outro lado, precisamos respeitar a autonomia do(a)
médico(a), junto ao seu paciente, para encontrar o melhor curso de tratamento.
Para entender corretamente esse ponto, convém lembrar que bioeticistas
estabelecem uma conexão clara entre princípios éticos e tratamento. Podemos, então,
mencionar os seguintes operadores deônticos (BEAUCHAMP & CHILDRESS, 2013, p.
169):
Obrigatório tratar (errado não tratar);
Obrigatório não tratar (errado tratar);
Opcional (Nem requerido nem proibido).
Em outros termos, o uso off label da CLQ não é exatamente contraindicado, ou
seja, não defendemos que seria obrigatório não tratar, exceto em alguns casos (por
exemplo, pessoa idosa com arritmia), mas essa é uma decisão exclusiva do profissional
de saúde e seu paciente. Entretanto, essa autonomia, tanto do paciente quanto do
profissional da saúde, não é absoluta ou ilimitada. Ela não pode significar liberdade
para o paciente demandar CLQ ou para o(a) profissional prescrever o que não traz
benefícios e potencialmente pode causar dano. A autonomia do profissional da saúde
precisa ser limitada pelos outros princípios bioéticos e pelas melhores evidências
científicas.
Não obstante isso, se temos melhores opções (e já nos referimos acima à
dexametasona para pacientes com sinais inflamatórios e ao remdesivir, entre outros),
então torna-se injusto, em termos de uso de recursos públicos, insistir numa solução
18
https://www.cff.org.br/noticias.php <acesso 31/08/2020>
194 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
fantasiosa e meramente hipotética. Em outras palavras, é moralmente incorreto
continuar a oferecer publicamente medicamentos e procedimentos não-seguros e
ineficazes. Se não existem, por um lado, evidências suficientes de benefício e, por outro
lado, se há constatações de danos potenciais, então é antiético adotar como política
pública tais tratamentos. É antiético elaborar protocolos para uso indiscriminado de
medicamentos sem comprovação da segurança e eficácia. Nossa prioridade deve estar
em destinar recursos para medicamentos e insumos que estão já em falta nas nossas
UTIs etc., em desenvolver vacinas etc. Age, assim, de forma irresponsável, e contra o
princípio bioético da justiça, o agente público que continua a desperdiçar escassos
recursos com medicamentos que não trazem benefícios. Temos, aqui, um problema
sério de accountability, ou seja, políticos administradores de recursos públicos de
saúde devem responder por essas opções inadequadas, devendo prestar contas para a
sociedade.
Observações finais
Parece claro, depois de cinco meses de enfrentamento da presente pandemia no
Brasil, que a CLQ/HCLQ não é uma opção farmacológica para tratamento da COVID19 em qualquer uma de suas fases. Há ainda trabalhos sendo publicados em defesa da
medida terapêutica e também há estudos em andamento. Entretanto, depois de meses
da publicação de estudos científicos de alta qualidade demonstrando a sua ineficácia
(já não é mais, portanto, apenas uma questão de ausência de provas de segurança e
eficácia), observa-se ainda no país gestores públicos continuando a recomendá-la. Um
cuidado respeitoso depende da prática da MBE e de princípios bioéticos. Enquanto não
tivermos disponível uma medida eficaz de prevenção, como a vacina (e diante de uma
alta taxa de contágio (Rt >1)), a testagem, o isolamento de infectados e rastreamento
de contatos, assim como as práticas de higiene, uso de máscaras e distanciamento
físico, com devido cuidado com aglomerações, seguem sendo as principais medidas de
saúde pública, amplamente preconizadas pelos especialistas, de combate à pandemia.
Tratamentos mais adequados baseados em evidência, como os que envolvem
dexametasona (TOMAZINI, B., MAIA, I.S., CAVALCANTI, A.B., et al., 2020) e os tratamentos
padrão de cuidados durante a doença, incluindo os medicamentos necessários ao
manejo hospitalar e em UTIs especialmente, tem de se manter adequadamente
Darlei Dall’Agnol; Marco Antonio de Azevedo; Alcino Eduardo Bonella | 195
financiados e disponíveis. Finalmente, acreditamos que é preciso não apenas resgatar,
como bem insistiu Onora O’Neill (2005), a confiança na ciência, mas também
preservar e promover a credibilidade da medicina no nosso país, fazendo-a guiar-se,
no caso de tratamentos experimentais, pelas melhores evidências científicas e por
sólidos princípios bioéticos.
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11. MORAL COGNITIVISM AND LEGAL POSITIVISM IN
HABERMAS’S PHILOSOPHY OF LAW1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-11
Delamar José Volpato Dutra2
Nythamar Fernandes de Oliveira3
Abstract
The hypothesis of this paper is that legal positivism does depend on the non plausibility
of strong moral cognitivism, because of the non necessary connection thesis between
law and morality that legal positivism is supposed to acknowledge. The paper
concludes that only based on strong moral cognitivism is consistent to sustain the
typical non-positivistic thesis of the necessary connection between law and morality.
Habermas’s Philosophy of law is confronted with both positions.
Key-words: Habermas, positivism, moral cognitivism
Moral cognitivism and the foundation of morality and law
According to Habermas, a first type of cognitivism is strong moral cognitivism
aims to support the validity of moral norms: "seeks [...] to take account of the
categorical validity claim of moral obligations."4 The main aim of a moral theory is to
ground, justify, moral principles. Though the following position is not that of
Habermas, it could be considered a radical formulation of strong moral cognitivism: it
is the commitment to the fact that moral truths “are independent of our moral
thinking, a foundationalist epistemology according to which our moral knowledge is
based ultimately on self-evident moral truths.”5 Kant’s Moral Theory could be taken as
an exemplar of a strong moral cognitivist position. Obviously, Habermas himself
DUTRA, Delamar Volpato; OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Moral Cognitivism and Legal
Positivism in Habermas’s Philosophy of Law. In: ETHIC@, v.16, p. 533-546, 2017. Disponível em:
https:/periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/view/1677-2954.2017v16n3p533/35918
2 UFSC/CNPq.
3 PUCRS/CNPq
4 HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press,
1998 [1996], p. 6.
5 BRINK, David O. Moral Realism and the Foundations of Ethics. Cambridge: Cambridge University
Press, 1989, p. 3.
1
200 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
claims that his own moral theory is one of strong moral cognitivism, despite being a
processual one.
As a second type of cognitivism, weak moral cognitivism “opens up a form of
rational assessment of evaluative orientations.”6 It is weak because it depends on some
specifics and circumstances, like the aim of happiness. Exemplary of this position
would be the Aristotelian ethics.
Concerning noncognitivism, Habermas presents two types. The first is Weak
moral noncognitivism: “On such accounts, the supposedly objectively grounded
positions and judgments of morally judging subjects in fact merely express rational
motives, be they feelings or interests, justified in a purposive-rational manner.”7 An
example of this type would be the Hobbes contractual model, and certain forms of
utilitarianism.
Finally, strong moral noncognitivism, by its turn, searches unmask strong
moral cognitivism as an illusion: “Strong noncognitivism tries to unmask the
presumed cognitive content of moral language in general as an illusion.” 8 Stevenson’s
emotivism would be a model for this last type. He says that there is no rational or
empirical method of treatment of ethics. In ethics there is only persuasion, but it is not
rational.9 According to Stevenson, the only intelligible part of all philosophical ethical
theories, from Plato to Kant, it is the power of them to influence attitudes.10
The following table summarize the topic:
HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press,
1998 [1996], p. 6.
7 HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press,
1998 [1996], p. 6.
8 HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press,
1998 [1996], p. 5. “The noncognitivist position relies primarily on two arguments: first, the fact that
disputes about basic moral principles ordinarily do not issue in agreement, and second, the failure,
discussed above, of all attempts to explain what it might mean for normative propositions to be true,
whether such attempts be along intuitionist lines or in terms of either the classical idea of natural law
(which I will not go into here) or an ethics of material value a la Scheler and Hartmann.” [HABERMAS,
Jürgen. Moral Consciousness and Communicative Action. Cambridge: Polity Press, 2007 [1983], p. 56].
9 STEVENSON, Charles Leslie. The Emotive Meaning of Ethical Terms. Mind. Vol. 46, No. 181, 1937, p.
29.
10 STEVENSON, Charles Leslie. The Emotive Meaning of Ethical Terms. Mind. Vol. 46, No. 181, 1937,
p. 31. He sustains: “I may add that if ‘X is good’ is essentially a vehicle for suggestion, it is scarcely a
statement which philosophers, any more than many other men, are called upon to make. […] Ethical
statements are social instruments. They are used in a cooperative enterprise in which we are mutually
adjusting ourselves to the interests of others. Philosophers have a part in this, as do all men, but not the
major part.” [STEVENSON, Charles Leslie. The Emotive Meaning of Ethical Terms. Mind. Vol. 46, No.
181, 1937, p. 31].
6
Delamar José Volpato Dutra & Nythamar Fernandes de Oliveira | 201
Moral cognitivism
Moral noncognitivism
Strong
Kant
Stevenson
Weak
Aristotle
Hobbes
Moral cognitivism and the application of morality and law
The above typology can be used in order to build a model for another typology,
namely that concerning the application of norms in morality and law. Habermas’s
definitions presented above have taken into account the foundation or justification of
moral norms, their cognitive content. As can be seen in his typology, Habermas did
not considered the problem of the application of norms.11 This paper sustains that the
consideration of problems related to the application of norms results in a typology in
an analogous sense of the classification concerning the foundation of moral theories.
At least, it will be necessary to create an equivalent typology for the application of
moral and legal concepts.
Applications issues are very important for moral and legal theories. Rawls, for
example, carried out the distinction between concept and conceptions that remember
grounded moral principles being applied in different ways: “Thus it seems natural to
think of the concept of justice as distinct from the various conceptions of justice.”12 The
problem can be measured by Habermas's assertion that "[…] no rule is able to regulate
its own application.”13 Interestingly, the same phrase is found in the chapter where
Hart is dealing with the skepticism of rules “They [canons of interpretation] cannot,
any more than other rules, provide for their own interpretations.”14 A new typology
adapted to this isssues is justified by the problems involved in the application of norms,
especially those of vagueness and indeterminacy. In fact, are sources of indeterminacy15:
ALEXY, Robert. Justification and Application of Norms. Ratio Juris. Vol. 6 nº. 2, 1993, p. 157-170;
GÜNTHER, Klaus. The Sense of Appropriateness: application discourses in morality and law. New
York: SUNY, 1993 [1988].
12 RAWLS, John. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press, 1999 [1971],
p. 5, §1. Rawls refer Hart as the origin of the distinction. According to Hart a precept as “treat like cases
alike” is an “empty form” that “cannot afford any determinate guide to conduct” [HART, H. L. A. The
Concept of Law. 2. ed., Oxford: Clarendon Press, 1994 [1961], p. 159]. He says that “there is much room
for doubt and dispute. Fundamental differences, in general moral and political outlook, may lead to
irreconcilable differences and disagreement as to what characteristics of human beings are to be taken
as relevant for the criticism of law as unjust” [[HART, H. L. A. The Concept of Law. 2. ed., Oxford:
Clarendon Press, 1994 [1961], p. 161].
13 HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and
Democracy. Cambridge: Polity Press, 1996 [1992], p. 199.
14 HART, H. L. A. The Concept of Law. 2. ed., Oxford: Clarendon Press, [1961], p. 126.
15 ENDICOTT, Timothy A. O. Vagueness in Law. Oxford: Oxford University Press, 2000, chap. 3.
11
202 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
vagueness,
imprecision,
open
texture,
incompleteness,
incommensurability,
immensurability, contestability, family resemblance, dummy standards, pragmatic
vagueness, ambiguity. Indeed, in chap. VII of his book, Hart refers to the open texture
of law. An author such as Habermas takes by granted the indeterminacy of norms. 16
The conclusion from the above argument is that problems with the application
of moral principles means that such principles do not fulfill the epistemological
function of say clearly and precisely what to do. For instance, if morality doesn’t say
with certainty if euthanasia or abortion are correct, how is it possible to connect law
and morality? In this sense, legal precepts should fulfill the role to know what to do. If
the rules were not capable of this determination, all of them will be only broad duties
of virtue like they were thought by Kant in his Doctrine of Virtue. However, the legal
system does not survive by virtue, by definition.17
One of the most central objections of legal positivism against morality is its
cognitive indeterminacy. In fact, Kelsen, 18 Hart, 19 and even Weber 20 sustain this
position. In this vein, Habermas himself admits that his advocated communicative
rationality does not provide substantive guidance for action.21
The main subject regarding the application of morality and law can be
summarized as follows:
Chap. 5 of Between Facts and Norms is entitled ‘The Indeterminacy of Law and the Rationality of
Adjudication.’
17 “Right and authorization to use coercion therefore mean one and the same thing.” [KANT, Immanuel.
Practical philosophy. [Transl. Mary Gregor]. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 389 [6:
232]].
18 Kelsen advocates relativism [KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed., São Paulo: Martins
Fontes, 1991, p. 53, 69s], and also the indeterminacy of justice [KELSEN, Hans. Teoria geral do direito
e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 14-15].
19 HART, H. L. A. The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 1961, p. 164.
20 WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft. Tübingen: Mohr, s/d, Kap. VII.
21 “Communicative reason thus makes an orientation to validity claims possible, but it does not itself
supply any substantive orientation for managing practical tasks—it is neither informative nor
immediately practical.” [HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse
Theory of Law and Democracy. Cambridge: Polity Press, 1996 [1992], p. 115].
16
Delamar José Volpato Dutra & Nythamar Fernandes de Oliveira | 203
Strong
cognitivism
Weak Cognitivism
Weak
noncognitivism
Strong
noncognitivism
Either it does not recognize the problem of indeterminacy in the
application of norms, or recognize it but sustains the possibility
to offer a theory able to present the right answer to the case
without discretion and arbitrariness in the decision. The
application, in general, is a special case of moral discourse.
It recognizes the problem of indeterminacy, but aims to offer
some sort of justification for decisions, although not based
solely on moral grounds.
Limited discretion and no arbitrariness.
Recognizes the problem of indeterminacy, but offers
circumstantial justifications for the decision.
Limited discretion and limited arbitrariness.
Norms are indeterminate and require an authority that applies
them with full discretion and arbitrariness.
If the criterion for weakening cognitivism were indeterminacy, few cognitive
theories would be considered strong. So was taken the criterion of discretion and
arbitrariness for the typology presented above. First, because they are explicitly
mentioned by Hart. 22 Secondly, because Dworkin characterizes positivism by the
discretion thesis, beside of the pedigree thesis, and the obligation thesis. 23 Thus, what
disqualifies a theory as strong cognitivism is discretion. The arbitrariness, in turn,
disqualify a theory as cognitive, be it strong or weak.
The two kinds of typologies, about foundation and application, can be
intertwined. Thus, Habermas, for example, assigns indeterminacy to application, but
no to justification, or attach more indeterminacy to application than to justification.24
Even Kant, according to some scholars, is dubious in relation to this point.25 Moreover,
it will be necessary to ask if the recognition of indeterminacy problems in the
application dimension does not imply a weakening of the cognitive aspect of the
HART, H. L. A. The Concept of Law. 2. ed., Oxford: Clarendon Press, 1994 [1961], p. 273. [Postscript].
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. London: Duckworth, 1977, p. 15. Reprinted from
DWORKIN, Ronald. The Models of Rules. University of Chicago Law Review. N. 14, 1967. Shapiro
maintains that the obligation thesis ‘is the counterpart of the Discretion Thesis for ‘legal obligation’”
[SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide for the Perplexed. [Michigan Law
School] Public Law and Legal Theory Working Paper Series. Working Paper No. 77, March 2007, p.
8].
24 “Problems of norm justification do not present the real difficulties. Normally, the basic principles
themselves—entailing such duties as equal respect for each person, distributive justice, benevolence
toward the needy, loyalty, and sincerity—are not disputed. Rather, the abstractness of these highly
generalized norms leads to problems of application as soon as a conflict reaches beyond the routine
interactions in familiar contexts. Complex operations are required to reach a decision in cases of this
sort.” [HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law
and Democracy. Cambridge: Polity Press, 1996 [1992], p. 115].
25 WALDRON, Jeremy. Kant's Legal Positivism. Harvard Law Review. N. 109, 1995-1996, p. 1535-1566.
22
23
204 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
foundation dimension. For instance, Bobbio supported the view that it is an illusion
want to establish an absolute foundation for human rights, being the first reason
(which are four in number) for such an illusion precisely the practical vagueness of
human rights.26
Law and morality
Legal positivism can be defined by the separation thesis between law and
morals:27 “All positivistic theories defend the separation thesis, which says that the
concept of Law is to be defined such that no moral elements are included. The
separation thesis presupposes that there is no conceptually necessary connection
between law and morality.”28 Accordingly, the analysis of the content of the laws is
irrelevant to its legal validity, as says Kelsen: “Therefore any kind of content might be
law." 29 In an opposite view, non-positivist theories sustain the connection thesis
between law and morality: “By contrast to the positivistic theories, all non-positivistic
theories defend the connection thesis, which says that the concept of law is to be
defined such that moral elements are included.”30 Because of these theses, it’s possible
to understand why Shapiro argues that the essence of the debate that took place
between Hart and Dworkin has as the key issue precisely the relationship between law
and morality. According to him, the focal point of contention between Hart and
Dworkin was neither the discretion thesis nor the model of rules.31
In fact, the separation thesis was clearly advocated by Kelsen.32 Associated with
the separation thesis it is possible acknowledge his noncognitivistic view about
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 17.
VOLPATO DUTRA, Delamar José. Positivismo jurídico inclusivo e positivismo jurídico exclusivo. In
BUENO, Roberto (Org.). Racionalidade, justiça e direito: ensaios em filosofia do Direito. Uberlândia:
EDUFU, 2013, p. 141-158.
28 ALEXY, Robert. The Argument from Injustice. A Reply to Legal Positivism. Oxford: Clarendon Press,
2002 [1994], p. 3. Kelsen, on this matter, denies explicitly the Augustine’s thesis concerning the relation
between law and morals [KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed., São Paulo: Martins Fontes,
1991, p. 52].
29 KELSEN, Hans. Pure Theory of Law. Klark: Lawbook Exchange, 2005 [1934], §34(c), p. 198.
30 ALEXY, Robert. The Argument from Injustice. A Reply to Legal Positivism. Oxford: Clarendon Press,
2002 [1994], p. 4.
31 SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide for the Perplexed. [Michigan Law
School] Public Law and Legal Theory Working Paper Series. Working Paper No. 77, March 2007.
32 “The thesis, widely accepted by traditional science of Law but rejected by the Pure Theory of Law, that
the Law by its nature must be moral and that an immoral social order is not a legal order, presupposes
an absolute moral order, that is, one valid at all times and places. Otherwise it would not be possible to
26
27
Delamar José Volpato Dutra & Nythamar Fernandes de Oliveira | 205
morality.33 Kelsen is aware that a different answer for the problem would require “to
determine what must be considered good and evil, just and unjust, under all
circumstances.” 34 Therefore, only a strong moral cognitivist theory could support a
necessary connection between law and morality. In fact, it is possible find such a theory
in Aquinas and Augustinus: “Nam mihi lex esse non videtur, quae iusta non fuerit;” 35
"non lex sed legis corruptio;"36 “lex tyrannica [. . .] non est simpliciter lex.”37
The connection between moral cognitivism and the positivist theories of law
was suggested by Hart. 38 According to this framework, the hypothesis is that the
affirmation or denial of moral cognitivism, either within the justification aspect or
within the application aspect, is of capital importance for to understand legal
positivism. Alexy seems to have realized clearly that the non-cognitivistic thesis is at
the very basis of the separation thesis or at least constitutes a strong argument in favor
of that thesis. 39 Also it is important to stress, for the present research, that Alexy
establishes a clear connection between morality and human rights. For him, if human
rights can be justified in an absolute way, then legal positivism would be refuted.
Until now, it is possible summarize the main points as follows:
evaluate a positive social order by a fixed standard of right and wrong, independent of time and place.”
[KELSEN, Hans. Pure Theory of Law. Klark: Lawbook Exchange, 2005 [1934], p. 68].
33 “Moral values are only relative […]. In view of the extraordinary heterogeneity, however, of what men
in fact have considered as good or evil, just or unjust, at different times and in different places, no
element common to the contents of the various moral orders is detectable.” [KELSEN, Hans. Pure
Theory of Law. Klark: Lawbook Exchange, 2005 [1934], p. 64].
34 KELSEN, Hans. Pure Theory of Law. Klark: Lawbook Exchange, 2005 [1934], p. 65.
35 SAINT AUGUSTIN. De libero arbitrio. [Oeuvres de Saint Augustin; VI. Dialogues Philosophiques; ed.
F. J. Thonnard]. 2. ed., Paris: Desclée, 1952, I. V. 11. [“A law that is not just would not seem to me to be
a law.”]
36 Summa Theologiae. I-II, q. 95, r. 4.
37 Summa Theologiae. I-II, q. 92 art. 1, 4.
38 “The expression 'positivism' is used in contemporary Anglo-American literature to designate one or
more of the following contentions: (I) that laws are commands of human beings; (2) that there is no
necessary connection between law and morals, or law as it is and law as it ought to be; (3) that the
analysis or study of meanings of legal concepts is an important study to be distinguished from (though
in no way hostile to) historical inquiries, sociological inquiries, and the critical appraisal of law in terms
of morals, social aims, functions, &c.; (4) that a legal system is a 'closed logical system' in which correct
decisions can be deduced from predetermined legal rules by logical means alone; (5) that moral
judgments cannot be established, as statements of fact can, by rational argument, evidence or proof
('non cognitivism in ethics'). Bentham and Austin held the views expressed in (I), (2), and (3) but not
those in (4) and (5); Kelsen holds those expressed in (2), (3), and (5) but not those in (I) or (4).
Contention (4) is often ascribed to 'analytical jurists' but apparently without good reason.” [HART, H.
L. A. The Concept of Law. 2. ed., Oxford: Clarendon Press, 1994 [1961], p. 302. It is a note to the p. 185
of the chap. IX].
39 ALEXY, Robert. The Argument from Injustice. A Reply to Legal Positivism. Oxford: Clarendon Press,
2002 [1994], p. 53-55. See also ALEXY, Robert. Law, Morality, and the Existence of Human Rights.
Ratio Juris. V. 25, n. 1, 2012, p. 2–14.
206 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
It is consistent to support (a) strong moral cognitivism, (b) problems in
application, and advocate the non-necessary connection between law and
morality;
It is consistent to support strong moral cognitivism in foundation and
application, and sustain the necessary connection between law and morality;
It is inconsistent to sustain weak moral cognitivism or strong moral noncognitivism, be in foundation or in application, and the necessary connection
between law and morality.
In the debate with Rawls, Habermas addressed a criticism to Rawls’s
overlapping consensus. According to Habermas, strong moral foundation of tolerance
was important to bring to an end the religious wars: “But could the religious conflicts
have been brought to an end if the principle of tolerance and freedom of belief and
conscience had not been able to appeal, with good reasons, to a moral validity
independent of religion and metaphysics?”40 Habermas seems to support that a strong
foundation of human rights is crucial to account for the motivation to comply with
them. He explains this thesis in a footnote to the Theory of Communicative Action as
a conceptual need involved in acting according rules:
[...] but when we use the concept of normatively regulated action we have to
describe the actors as if they consider the legitimacy of action norms to be basically
open to objective appraisal […]. Otherwise they would not take the concept of a
world of legitimately regulated interpersonal relations as the basis of their action
and could not orient themselves to valid norms but only o social facts. Acting in a
norm-conformative attitude requires an intuitive understanding of normative
validity; and this concept presupposes some possibility or other of normative
grounding.41
He recognizes that this conceptual necessity could be the result of a linguistic
misunderstanding, illustrated by emotivism and decisionism. This conceptual
necessity led Habermas to link the stability of a social order to the recognition of its
righteousness. Without the conviction on the validity of fair rules, social order would
become unstable. Although the last note to the preface to the 3rd. edition of Theory of
HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press,
1998 [1996], 67. In this respect, Habermas advocates a relative justification of social rights: “the
category of social and ecological rights [...] can be justified only in relative terms.” [HABERMAS, Jürgen.
Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge:
Polity Press, 1996 [1992], p. 123].
41 HABERMAS, Jürgen. Theory of Communicative Action. Boston: Beacon Press, 1984 [1981], p. 420
fn.
40
Delamar José Volpato Dutra & Nythamar Fernandes de Oliveira | 207
Communicative Action, 1984, turn up the conceptual necessity into a merely gradual
difference between power accepted as fact and power accepted based on a normative
validity, he never broke completely with the mentioned conceptual necessity. This is
what clearly appears in his dialogue with Rawls and his treatment of the free-rider
problem.42
Raz, by his turn, express a similar point. According to him, despite the apparent
modesty of Rawls theory as A Theory of Justice apparent in terms such as overlapping
consensus, in fact, he is arguing for The Theory of Justice, in other words, he is
sustaining his Theory as the true one, at least for us nowadays.43
The point is that today moral rights have a big impact not only in law in general,
but specially in jurisdiction, in the application of the law in almost every constitutional
state. Because of this, the role of supreme courts has been redesigned and has even
been criticized by many scholars.44 In this sense, the debate Hart/Dworkin makes a
good case for studying the implication of moral rights on jurisdiction.
Is Habermas’s theory of law a kind of sui generis legal positivism?
In Between Facts and Norms Habermas made very clear the neutrality of D, the
Discourse principle, in relation to law and morality.45 The consequence of this thesis
is that the two principles that follow from D are distinct: the moral principle and the
principle of democracy. This distinction entail another, between morality (or justice)
and legitimacy. It is supposed that legitimacy applies directly to law. In this regards,
despite the advice made by Habermas himself that the kind of issues, contributions,
and reason in each of the two principles should not be limited a fortiori,46 suggesting
a possible overlap between both principles, critical aspects have been raised against
this neutrality thesis of D.
42 HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and
Democracy. Cambridge: Polity Press, 1996 [1992], p. 166. HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the
Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press, 1998 [1996], p. 15, 80.
43 RAZ, Joseph. Facing Diversity: The Case of Epistemic Abstinence. Philosophy & Public Affairs. Vol.
19, No. 1, 1990, p. 15.
44 ELY, John Hart. Democracy and Distrust: a Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard
University Press, 1980.
45 HABERMAS, Jürgen. 1996. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law
and Democracy. Cambridge: Polity Press, p. 107.
46 HABERMAS, Jürgen. 1996. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law
and Democracy. Cambridge: Polity Press, p. 108.
208 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Apel critized the lack of moral justification of legal coercion.47 Some have even
accused Habermas of a kind of sui generis positivism: “Habermas defends a novel
version of legal positivism.” 48 Hedrick is emphatic in suggesting a kind of relation
between Habermas’s philosophy of law and the legal positivism of Hart and even
Kelsen:
Moreover, a major concern of Between Facts and Norms is to distinguish moral
norms from legal norms without subordinating the latter to the former, as is
standard practice in natural law approaches up through Dworkin. The similarity
here between Habermas’s position and that of modern legal positivism—in
particular the work of Hans Kelsen and H. L. A. Hart—is notable, complete with
their collective insistence that a failure to distinguish clearly between moral
questions and questions of legal validity leads to ‘confusion’ or ‘muddled analyses.’
And as with the legal positivists, the point of this move is not to insulate law from
moral criticism, but to insist on the value, for the purposes of theoretical clarity, of
distinguishing between different kinds of validity.49
Others, like Heck 50 and Kettner 51 have seen in Habermas thesis a kind of
eclipse of discursive ethics in the domain of law and politics.
In face of this reaction is convenient to scrutinize why Habermas made such a
neutralization of D, and the consequent distinction between morality (justice) and
legitimacy. The hypothesis of this paper is that such a view has strict connections with
the above discussion concerning the cognitivistic and non-cognitivistic aspects of
discursive ethics. To be sure, discourse ethics is a universalistic and cognitivistic ethics,
but it is also formal, this means, processual. The processual accent of discursive ethics
will imply some deficits concerning the contents of norms, as Habermas himself
highlights. One of this aspects is justly the cognitive one.52 So, Habermas sustains a
kind of division of labor, a kind of complementarity between law and morals.
Legitimacy is a less normatively exigent justification of norms than the justification
under the moral point of view or the point of view of justice, and legitimacy is the kind
APEL, Karl-Otto, OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, MOREIRA, Luiz. Com Habermas, contra
Habermas: direito, discurso e democracia. São Paulo: Landy, 2004, p. 224. See also VOLPATO
DUTRA, Delamar José. Apel versus Habermas: como dissolver a ética discursiva para salvaguardá-la
juridicamente. Kriterion. V. 51, 2010, p. 103-116.
48 MAHONEY, Jon. Rights without Dignity? Some Critical Reflections on Habermas’s Procedural Model
of Law and Democracy. Philosophy & Social Criticism. V. 27, n. 3, 2001, p. 25.
49 HEDRICK, Todd. Rawls and Habermas: Reason, Pluralism, and the Claims of Political Philosophy.
Stanford: Stanford University Press, 2010, p. 86-7.
50 HECK, José N. Razão prática: uma questão de palavras? A controvérsia Habermas/Kant sobre moral
e direito. Kant e-prints. Campinas: Série 2, v. 1, n.1, 2006, p. 19-30.
51 KETTNER, Matthias. The Disappearance of Discourse Ethics in Habermas´s Between Facts and
Norms. IN BAYNES, Kenneth, SCHOMBERG, René von. Essays on Habermas´s “Between Facts and
Norms”. Albany: SUNY, 2002, p. 201-218.
52 114.
47
Delamar José Volpato Dutra & Nythamar Fernandes de Oliveira | 209
of justification appropriate to law, according to Habermas. So, under pragmatic
aspects, it is possible to say, is better to comply with legitimate juridical norms issued
by authorities, despite the fact that they can carry some degree of injustice.
In this regards is that his theory of law could be characterized as a kind of sui
generis positivism. As suggested by Hedrick, there are similarities between Hart’s
positivism and Habermas’s legal philosophy. Hart called the attention to the defects of
system of primary rules of obligations, being its uncertainty concerning “to what the
rules are or as to the precise scope of some given rule,” the second is static character
of the rules, and the third one inefficiency of the “inefficiency of the diffuse social
pressure by which the rules are maintained.” 53 The remedy to these defects are
provided by a legal system, specially by its authoritative character. Of course, Hart is
aware of the problems that a legal system could rise: “[…] run in the interests of the
dominant group […].”54
So a legal positive system has clear advantages compared to a pre-legal form of
life. The first defect appointed by Hart could be appreciate also as moral disagreement,
justly Waldron’s position.55 In this regards, Waldron quotes Hobbes in chapter V of
Leviathan to make very clear the point in question:
and when men that think themselves wiser than all others, clamour and demand
right reason for judge; yet seek no more, but that things should be determined, by
no other men's reason but their own, it is as intolerable in the society of men, as it
is in play after trump is turned, to use for trump on every occasion, that suite
whereof they have most in their hand.
According to Waldron:
it is clear that no one can believe his view of justice is right reason (and hence
appropriately ours) merely because he is convinced (even if rightly) that his view
is really correct. […] Indeed, every democratic system embodies to some degree
the principle that certain officials are empowered to take decision in the name of
the whole society on the basis of their own views about justice. This is how most
political system actually solve the problem of settling on social choices in the face
o justice-disagreements: we designate one of the contestant views as the one to
govern us for time being.56
HART, H. L. A. 1994. The Concept of Law. 2. ed., Oxford: Clarendon Press, p. 93.
HART, H. L. A. 1994. The Concept of Law. 2. ed., Oxford: Clarendon Press, p. 202.
55 WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 187.
56 WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 203.
53
54
210 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
When Habermas comments Waldron’s ideas he says that he not embrace the
“[…] non-cognitivist foundation of classical legal positivism […],”57 but instead what
he calls epistemic pluralism, meaning: “epistemic indeterminacy of interpretation as
it is perceived also from a participant’s point of view on the one hand, and
noncognitivism as a position of moral philosophy and legal theory on the other.” 58 The
persistence of actual moral disagreement is taken by Waldron as indicative that an
impartial view from nowhere is not available. Because of that “the epistemic pluralist,
like the positivist, must look to find a source that confers legitimacy upon law apart
from its content.”59 This is precisely the kind of remedy proposed by Hart’s secondary
rules, that are more processual than substantive. Of course, Habermas have his own
processual conception of law’s legitimacy, but his definition of law resembles a lot that
proposed by Hart as system of primary and secondary rules: “By ‘law’ I understand
modern enacted law, which claims to be legitimate in terms of its possible justification
as well as binding in its interpretation and enforcement.”60
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58 HABERMAS, Jürgen. On Law and Disagreement. Some Comments on “Interpretative Pluralism”.
Ratio Juris. V. 16, N. 2, 2003, p. 189.
59 HABERMAS, Jürgen. On Law and Disagreement. Some Comments on “Interpretative Pluralism”.
Ratio Juris. V. 16, N. 2, 2003, p. 190.
60 79.
57
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12. THE NEW LEFT LIVES ON. THE SPIRIT OF MAY ’68 IN 2020
https://doi.org/10.36592/9786587424163-12
Dick Horward
The first draft of this essay was written during the summer of 2019 for the
Tocqueville Review; a year later, at least in the United States, it has acquired greater
explanatory power. The political and intellectual challenges posed five decades ago by
the world historical rupture symbolized by the May events of 1968 have retained their
actuality; but the failure two decades later to recreate the spirit of the New Left in the
wake of that other world historical rupture, the Fall of the Wall in Berlin in 1989, has
made room instead for new forms of antipolitical populism worldwide. Although there
are reasons for pessimism, there are signs even in the dusk that political creativity
remains possible.
This personal essay may seem incongruous in a Festschrift dedicated to a friend
and colleague because it speaks often in the autobiographical first person. It speaks as
I’ve often discussed with Nita de Oliveira, as well as some of his friends and his
students, who recognize the historical challenge posed by these broad philosophical
and political concerns and their historical renewal. The philosophically inclined may
perceive here echoes of Paul Ricoeur’s notion of “oneself as another”; the more political
readers will be struck by the actuality of the quest for a New Left. I continue to share
both of these concerns, as does my friend Nita de Oliveira. I have made only minor
modifications to the earlier draft; as my title indicates, I’ve updated it in the concluding
pages that refer specifically to the American political possibilities as the decisive
elections of 2020 approach. As we said in May ’68: continuons le combat!
1 Discovering the New Left and Searching for its Historical Sense
I am genetically a part of the “68’ generation.” More specifically, my life
experience has been marked by the emergence of a “new left” in the United States and
in France and, to a lesser degree, similarly motivated movements in Germany and in
Czechoslovakia. This concept of a “new left” is perhaps intuitively evident (by contrast
214 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
to the old, however you define it), but it is conceptually slippery. It does not refer to
the immediate experience of a generation born into the emerging prosperity of the
postwar West; and it assumes that a left will always and necessarily exist in modern
societies. I have tried over the decades since my first experiences to conceptualize and
to reflect on the legacy of that “new left” which cannot be understood only as a
generational gain; we were a minority, but active and future-oriented. At the risk of
taking my desires for reality, I return again to the question, this time by describing my
own experiences as a participant in that movement prior to the brèche that took place
in May ’68, and by suggesting some of the implications of the new possibilities that it
opened.1 It seemed to me that the historical opening of May made sense only as a
moment in a longer evolution. For that reason, I will refer to the new radical
movement substantively, in capital letters, as a New Left.
A decisive symbolic moment in the emergence of the New Left took place on
April 4 1967, when the civil rights movement recognized that the political logic that
underlay its struggles demanded that it also denounce the American war in Vietnam
as the product of imperialism. The public expression of this synthesis was articulated
at the Riverside Church in New York, where the civil rights leader, Martin Luther King,
denounced the war. King’s speech was titled “Beyond Vietnam” because he recognized
that the war was the “symptom of a far deeper malady within the American spirit.”
Although the Reverend King was speaking in a church, as so often, the gospel he
preached on this occasion challenged the his audience to look beyond political
immediacy to rethink the foundations of American political life. His words were a
reflection of the failure of his own movement to deepen the campaign for civil rights
by moving to the North, and to give social content to the civil rights movement’s
demand for political equality by capturing the thirst for justice expressed by the
growing, largely student based, antiwar movement. When King insisted on the need
“to break the silence,” he was speaking to these two concerns. He would not have said
Mai 1968: La Brèche. Premières réflexions sur les évenements was published in June 1968 by Edgar
Morin, Claude Lefort and Jean-Marc Coudray [the pseudonym of Cornelius Castoriadis], (Paris: Fayard,
1968). I have maintained the French because has roots in the phenomenology of Merleau-Ponty; a
brèche opens a symbolic moment of possibility for action that depends neither on material conditions
nor on normative ideas. I return to the concept to describe my situation on leaving France to return to
Texas where I find a different New Left. The concept returns differently, perhaps in an overly
mechanical way, with regard to the unrealized possibilities opened in 1989. Its phenomenological
foundations are explored by Miguel Abensour in Hannah Arendt contre la philosophie politique?
(Paris: Sens & Tonka, 2006), especially pp. 38.
1
Dick Horward| 215
that he was speaking a the New Left; yet in retrospect the value of his words was
symbolic; they expressed the sense of the historical moment.
The unity two
movements that had market the 1960s in the U.S. that would found a new politics was
only a dream when King was assassinated one year later, in April 1968.
The conjunction of the civil rights and antiwar movements was an expression
of what its younger participants were calling the New Left. Its founding principles had
been elaborated in 1962 by the “Port Huron Statement” of the Students for a
Democratic Society (SDS).
This document was not a manifesto announcing a
revolution to come; it promised only to present the “agenda for a generation.” Unlike
the Communist Manifesto, the realization of this project would be determined by the
participants rather than express an historical necessity.2 The fundamental principle
of the SDS was expressed succinctly by the demand for “participatory democracy.”
Existing forms of liberalism which had found their home in the liberal wing of the
Democratic Party were challenged; participation was to be the basis of a radical
transformation in all spheres of life. The intuitive appeal of the participatory agenda
was a strength in the early days but it could become a fatal weakness for the same
reason; its lack of content opened it to a process of radicalization without limits that
left it defenseless against organized ideologues who promised to give political content
to the anarchy of its moral intuition.3
After 1965, when I joined SDS as a student in Texas, tensions between the “New
York faction” (considered to be too doctrinaire in its socialist vision and too top-down
in its politics) and my own more anarchist alliance of the Berkeley and Austin chapters
were beginning to be felt. With the failures of the civil rights movement in the North,
and the intensification of the Vietnam war, some leftists began to insist on the need to
learn from Third World liberation movements (Cuba or China, or both); others
stressed the use value of theories of alienation found in Marx’s recently published 1844
Manuscripts. Another challenge came from the advocates of Black Power, who
For this distinction, c.f. Dick Howard, The Specter of Democracy (New York: Columbia University
Press, 2002). Many of the “new lefts” that emerged in the post-war years were defined by what they
opposed, as in the case of the New Left Review, whose founders were reacting to the Soviet invasion of
Hungary in 1956. C. Wright Mills’ “Letter to the New Left” published in the New Left Review (Nr. 5,
1960) is closer to the American spirit.
3 Andy Rabinbach pointed out to me that there was another inherent flaw in SDS’s self-conception: it
rejected the anticommunism that was wielded indiscriminately by the liberal left in the postwar period.
This “anti-anticommunism” was consummated when SDS voted to strike a clause forbidding
membership of “totalitarians of the left or the right.” If my memory serves, this was at the convention
at the University of Illinois in December 1966.
2
216 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
declared their independence at its national convention in December of that year. I
reflected on my own doubts, and hopes, in an article published in the SDS journal,
New Left Notes in 1966, under the title “The Reactionary Radicals.” Building on Karl
Mannheim’s theory of ideology, I criticized an overly subjective and ahistorical
orientation shared by many before proposing an analysis of what I took, on the basis
of my reading of Herbert Marcuse’s One-Dimensional Man, as fundamental changes
in the “life-world” of modern societies. I was not accusing the New Left of being
“reactionary” from the historical standpoint of the Communist Manifesto; I thought
that it should pursue further its self-defined mission to realize participatory democracy
by building on the new spaces opening in the life-world (which is not identical to the
material world as such) as a basis for social change4.
My short article was also the expression of the need to enlarge my horizons. I
was studying philosophy in the United States, where so-called continental philosophy
barely existed; and I was an activist in a country where leftist politics had been
discredited, repressed or simply forgotten. I left for Paris, where Sartre had recently
tried to show the compatibility of Marxism and existential philosophy 5, but I hadn’t
given up on the New Left. In fact, I had even hoped that its experiences could have
some influence in debates among the French left. Before leaving, I had received a letter
from Claude Lanzmann (dated May 9, 1966), informing me that an unsolicited essay
attempting that task that I had sent to Sartre’s journal, Les temps modernes, “had been
read by members of the editorial committee” who determined that my essay was
“infinitely more complete and documented” than an earlier article by Schofield Coryell
published earlier by the journal; I would receive a check “soon after publication.” Alas,
the check was not in the mail, essay was never published, and I have never found the
carbon copy!6 Meanwhile, I found myself in Paris.
For the record, this was published in New Left Notes, Vol. 1, 40-41, October 28, 1966.
Sartre’s Critique of Dialectical Reason was published in 1960. The long essay introduced the Critique,
the “Search for a Method,” published separately in 1957, famously declared that “Marxism is the
unsurpassable horizon of our times.”
6 There was one fortunate development: although I never did meet Lanzmann, although as a result of
my inquiries, I came to know the de facto political editor of the journal, André Gorz, who became a
lifelong friend. Much later, he told me that it was he who had vetoed the publication— although he did
not recall his reasons! I did meet Sartre, in a different context (seeking his support for Czech dissident
friends), and took advantage of the occasion to express my doubts about the Critique’s vision of the
political party as a “totalizing Third.” Unfortunately, at that time, my spoken French was not good
enough to pursue this in detail.
4
5
Dick Horward| 217
2 Encountering French political intellectuals
My introduction into French political life came from an unexpected encounter
with the editor of the monthly journal Esprit. Founded in 1932 by the philosopher
Emmanuel Mounier, Esprit was the non-Marxist rival to Les Temps modernes; its
roots were in left-wing Catholicism, but its concerns were wide and international.
Although I had never read the journal, I knew that Paul Ricoeur, my fellowship sponsor
and an engaged Protestant, was a long-time contributor. I accepted an invitation to
take part in the weekly Monday discussions that suggested topics for a section of each
monthly issue that printed short essays on actual themes (titled “Le journal à plusieurs
voix”). Linguistically limited, I spoke little but listened much, and took the occasion
to meet a variety of intellectuals that would never have crossed my path at the
university. 7 Finally, one day, I tried to explain why I found the emergence of
agricultural unionism among Mexicans in South Texas significant; and, following the
custom, I was encouraged to write a short note. Published in January 1967, it was the
beginning of a long collaboration, which has endured through the present. 8
The Vietnam war continued; Americans in Paris joined the protests, forming
their own antiwar organization, the Paris-American Committee to Stop War (PACS).
Among the transient students who participated were also long-time residents in Paris,
most notably Maria Jolas. Some of us continued the old habit of forming reading
groups which of course took up political themes— and were the occasion for bitter
ruptures. One group went afoul due to the insistence of a Maoist literature professor
(who later published an anthology of the writings of Stalin), another ran ashore around
the Trotskyist insistence by a future journalist in Chicago. I would later try to use the
hospitality of George Whitman’s Shakespeare & Company library to create something
that I imagined as a ‘free university’ space like the one I had organized back in Austin.
It was there that in 1968 I led a reading group on Marx’s Capital—which had gotten
half-way through Volume 3 when tear gas from the police surrounding the occupied
Sorbonne signaled the start of May ’68.
It would take too much time to run through a list; the number of foreigners, particularly from Latin
America, often exiles, opened new horizons for me. One, Conrad Detrez, a political exile from Brazil,
became a prize-winning novelist and a particularly close friend over the years.
8 Much has been written about Esprit; I tried to explain why the journal had a broader appeal in an
American context in the (then still new leftist) journal Telos; c.f., “Esprit,” in Telos No. 36, Suimmer
1978, pp. 143-53. For Ricoeur’s political engagements, c.f. François Dosse, Paul Ricoeur. Les sens d’une
vie (Paris: La Découverte, 1997).
7
218 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
My earlier attempts to pursue new leftist politics in Paris somehow caught the
attention of a group of Quakers who were organizing an international conference to
which they would invite two youth leaders from both Eastern and Western countries
to meet in Veszprem, Hungary.9 Perhaps my invitation was due to the fact that it was
less expensive to send me by train than to fly in an American activist; the other young
American was now-Congressman John Lewis, while the author of the then-influential
Growing Up Absurd, Paul Goodman, was a senior advisor. Several of us proposed that
our international group sign a petition, formulated by Robin Blackburn, an editor of
the New Left Review, against the Vietnam war. One Czech participant, Helena
Klimova, explained her refusal to sign useless petitions that only flatter their authors’
authority. I did not understand her reasoning at the time 10 ; but I accepted the
invitation of a second Czech, Jan Kavan, to stay with him in Prague after the
conference. My meetings with some of the student leaders, including Helena, conveyed
the warmth and intensity that I knew from SDS. Despite the fact that I was trying to
become a Marxist while they were liberating themselves from the oppressive weight of
a party-government that appealed to that ideology, and despite the limits of language,
a shared sense of political participation made possible a rich exchange while walking
and talking (and drinking) through the Prague nights.
Back in Paris in the fall, no longer living in the dormitory at Nanterre, I still
attended regularly Ricoeur’s lectures on Hegel while enlarging my study Marx’s
Capital. My antiwar activism led to contacts with a group of French militants who had
reactivated a clandestine network created during the Algerian war. I accepted their
invitation to help antiwar deserters from U.S. forces stationed in Europe, which
entailed learning some simple precautions of clandestine action, starting with the
French friends helped me to arrange a visit with the Hungarian Marxist philosopher, György Lukács,
with whom I discussed my ideas about the New Left (in English), after which he talked about his new
manuscript on the ontology of labor (with an excursus in German on Heidegger). I would later in the
1980s become friends with some of the young theorists with whom Lukács had continued to share ideas
when they emigrated to the West and were involved with Telos; among them were Agnes Heller, Ferencz
Feher, György Markus and Mihaily Vajda (who published an essay on Korsch in The Unknown
Dimension). After the opening in the 1990s I became friendly with another, older veteran of the Lukács
group, Ivan Vitanyi, whose earlier life is itself a story (worth researching), but whose contribution to a
renewal of a social democratic left in post1989 Hungary was important as a deputy in parliament, an
editor of Literarni Gazeta, and an intellectual go-between.
10 Her reasoning was similar to that of Vaclav Havel’s later idea of “living in truth.” I do not know
whether she influenced him or whether Havel’s vision was shared among writers already at that time.
When I met her again after the Velvet Revolution, she was a practicing psychoanalyst whose training
had taken place in alternative oppositional institutions.
9
Dick Horward| 219
adoption of a pseudonym.11 This new level of political engagement led me to express
my frustration with the inefficacity of French intellectual support for the resistance in
a note in the “Journal à plusieurs voix” published as “Les intellectuels américains et
nous”12 (implicitly identifying Esprit with the French intellectuals I had criticized in
my own title, while identifying me as “un jeune camarade américain, directement et
personnellement concerné”). I may have been wrong about the French intellectuals;
one of them, Pierre Vidal-Naquet, who had asked to meet me after reading my
criticisms agreed later to my request that he meet clandestinely with some of the
deserters.
The broader point that I stressed in Esprit was the that the “transition from
opposition to resistance” that had taken place needed less the support of professors
than participation in the streets. “If the cause is universal,” I concluded, “it is valid
also in France.” I came back to this theme in two notes published in May 1968. “Les
moutons et nous” was occasioned by the recent rash of animal deaths at Dow
Chemical’s Dugway, Utah test site. Dow rejected demands by student protesters to
stop its collaboration in the Vietnam war, claiming that it was doing its patriotic duty—
and if it didn’t produce the chemicals, others would. Recalling Ricoeur’s insistence
that the symbol distinguishes humans from animals because that is what makes critical
thought necessary, I suggested that the animal deaths pointed to the need to think
about the complicity of an underlying political system. This concern with the symbolic
became the theme of a second article, “resister,” that criticized another press
conference, on April 3, by French intellectuals. This time, however, they had stepped
in because the French police had prevented American draft resisters from speaking in
their own cause. Sartre and Vidal-Naquet were again the speakers, but the actors were
eight Americans who symbolically handed their draft cards to the representative of the
Vietnamese FLN, who thanked them in English.
The press conference had an unexpected symbolic echo. It had announced the
passage “from protest to resistance.” The next day, on April 4 1968, Martin Luther
King, the leader who had forcefully expressed that demand a year earlier, was
11 I was “H. Donald,” a pseudonym that I used for a short article in Czech student opposition for
Commonweal (May 17, 1968), to which the editors gave the title “Czech-Mating Stalinism.” One
“homework assignment” from my new friends was to watch Alain Delon’s methods in J.P. Melville’s
film, Le samouraï.
12 C.f., Esprit, mars 1968, pp. 506-508. The Appeal of the French intellectuals is reprinted in the two
pages that followed my note.
220 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
assassinated! The “confrontations” he had initiated in order to unmask the rhetoric of
liberal internationalism had had driven Lyndon Johnson to abandon his quest for
reelection. Perhaps, I suggested, there was something for the French students to learn
from the Americans. They too criticized the injustices of “the system,” but their
indiscriminate use of the label “fascist” closed the argument rather than opening the
path to critical thinking. They could learn from the way that the Americans’ attempts
to supplement the tactic of “confrontation” by initiating teach-ins and creating
alternative institutions such as “free universities” as bases for critical thought freed
from the imperatives of systemic reproduction. Although I didn’t mention it in Esprit,
I had made a similar suggestion at a meeting only a few days before, at a mass meeting
at Nanterre in the wake of the student occupation of the administrative offices.
This same issue of Esprit contained a polemical tract, “Pourquoi les
sociologies?” that I had brought back from Nanterre. Written by four leaders of the
“March 22nd Movement,” it asked rhetorically why the discipline of sociology had
entered the university curriculum only in 1958. What was its function in modern
industrial society; for what future were students being trained? If they were learning
to be productive cogs in a system, what was its nature? These questions were not only
rhetorical but practical, since sociology was preparing students for their future work.
The answers offered by the Marxists (including the apparently attractive version of
Louis Althusser) were static and reductionist, while the apparently more dynamic,
even gauchiste explanations of Alain Touraine or Michel Crozier reduced student
demands (tellingly) to mere analogies to conflicts that had arisen within business firms
in the 19th century. The authors proposed to move beyond “the illusory StalinoTourainian slogans” by analyzing the new social forms of social relations that had led
to the academic recognition of the discipline of sociology. The promise that concludes
their tract— “to be continued”— was fulfilled as April turned into May. 13
There is no need for another account of the “events.” I was an enthusiastic participant, learning by
doing, enjoying especially the sociability in the streets encouraged by the absence of cars once the
general strike hat taken hold. With some friends, I was an organizer of a “Comité d’action américaine:
in the Censier annex to the Sorbonne. In early June of 1968, I was asked by some New Left friends to
write an essay about the origins of the March 22 nd movement and its development into May. Because
the post offices had been closed by the strikes, my manuscript was sent by a special courier to the antiwar
magazine Viet Report. I do not know whether it arrived; it was never published, and the magazine
ceased publication in the summer of that year. I had my carbon copy when I travelled to England in
June, but lent it to an editor of New Left Review, who promised to return it the next day—but he never
showed up for our meeting.
13
Dick Horward| 221
3 After May: The Search for an “Unknown Dimension”
The challenge posed by “Pourquoi les sociologies?” was not really answered in
the action of May; the flames that had been kindled were dying embers in June.
Something was no doubt happening; it remained to learn what it was. My visit to the
students who had occupied the English art school at Hornsey in late May suggested a
first hypothesis. What were then called “art schools” were in reality institutions for
forming technicians who could replace the increasingly outmoded artisans methods
(for example of lead type-setting).
The rebels spoke of their occupation as a
“revolution,” but there were no portraits of Che Guevara or Ho Chi Minh; and when
the politicized London intellectuals came to offer their wisdom, they were quickly sent
home by the students, who saw their movement as “apolitical.” Their demands were
corporatist and reformist; but their action was no less radical; their opponent was a
glacial and inhuman system that wanted to dominate their future. I was admitted to
their meetings because I was introduced as a student from Nanterre. I was not asked
for advice (I had none), only to talk about the French experience. In retrospect, writing
in Esprit, I ha described to them similarities to the analysis of “Pourquoi les
sociologies?” Whereas industrial Taylorism had objectified the production of objects,
a new “educational Taylorism” was trying to objectify the production of persons,
making even “art” students into cogs in a system whose logic they could not understand
or control. Perhaps the Hornsey revolt might offer a foretaste of what was to come:
non-theoretical political revolts, set off by immediate conditions.
Perhaps the
traditional vision of political change, inherited from economistic Marxism, was
incapable of understanding the conditions of modern capitalism? I optimistically
titled my essay, published in August in Esprit, “Un début en Angleterre.”
The months of July and early August were the occasion to another round of
visits to the New Lefts in Europe. There were striking contrasts. For example, while
the French example had inspired some younger people to occupy the site of a former
department store in the central district of the staid bourgeois city of Zurich, their
action found no echo. We were put up nearby, at the famous Pinkus Buchhandlung,
where we slept on a semi-private floor for researchers, surrounded by old books and
pamphlets in multiple languages that had been sold or donated to the Theo Pinkus
(1909-1991), a former communist militant who, along with his wife, had become active
222 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
in the new social movements. The permanence of a revolutionary tradition could be
felt and even touched in the bookstore. Continuing to Rome (to stay with an Italian
whom I had met in Veszprem), we encountered a different leftist tradition. The weight
of the past had a double measure in Italy. Although the Italian Communist Party was
powerful, it was less subservient to Moscow than the French Party, whose stance
during May was at best opportunist. Its founder, Antonio Gramsci, had died in
Mussolini’s prison, leaving as an ambiguous legacy his Prison Notebooks.
This
theoretical indetermination left running room young leftists, who came together
around critical journals such as Quaderni Rossi, Potere Operaio, and Lotta Continua.
The strength of the party organization meant that the radicals were more concerned
with theory; the passage that would lead some to armed action would come later.
The dualism of theory and practice took a different form in West Germany. The
Social Democratic Party (SPD) that had foresworn Marxism at its Bad Godesberg
Congress in 1959 was one pole, its former youth movement called the Sozalistische
Deutscher Studentenbund (SDS), which refused to abandon that legacy stood at the
other. The political choices by the SDS were animated by their critique of the same
mortifying “system” as the New Left, including the liberal reformism of the mother
party. There was an important difference: they forged the arms for their critique from
interpretations of Marx’s theory itself, which they wielded with an attention to nuance
supported particularly by the only recently published manuscripts of the young Marx,
which they could read in the original. Nor did these SDS leftists stop with the young
Marx; they learned also from German leftist theorists, some of whom had returned
from exile after 1945 to teach in the reconstructed universities that, here as in France,
were opening to new types and increased numbers of students.
This theoretical strength of German SDS could become a political weakness if
its radical refusal of the capitalist system led it to accept an alliance with a communist
regime that appeared to fight the same enemy. I had an inkling of this kind of slippage
while travelling from Berlin to Frankfurt. I had purchased a copy of Lukács’ History
and Class Consciousness which had been condemned by the Communist International
in 1923 for his theories of alienation that in effect anticipated the ideas now being
found in the manuscripts of the young Marx. At the border, I had thoughtlessly left
the book on back seat while hiding in the trunk were the antiwar leaflets that we were
transporting to SDS activists in Frankfurt. I had forgotten that although the East
Dick Horward| 223
German regime was opposed to all forms of “American imperialism”; it was Lukács
who caused us problems. I should have taken more seriously the rumors circulating
in Prague that the Soviet Union would crack down on the reformist socialist humanism
of the “Prague Spring.” In effect, we did deliver the antiwar leaflets in Frankfurt before
finally returning to Texas, while for their part, the East Germans joined the Soviet-led
troops who invaded Prague on August 20th. And days later, the police violently
attacked protesters at the Democratic Party convention in Chicago, where the party
apparatus imposed the candidacy of Lyndon Johnson’s vice-president, Hubert
Humphrey.14
An activist cycle had ended; the brèche would close. Back in Texas, the unity of
my SDS was challenged the dogmatism of the radicals whose rhetoric would ultimately
destroy it, opting for direct militant action, sure that they needed no help from
theoretical “weathermen” to know which way the wind was blowing. For my part, I
could feel the need for action, but for the moment I adopted Lenin’s then fashionable
adage: “without revolutionary theory… no revolutionary movement." In Paris, I had
passed the four qualifying exams for the PhD during the first week of May; my passing
grade certainly owed more to the spirit of May than to my specific preparation. My
dissertation project tried to bring together the French work on Capital with what I had
grasped from Germany concerning the young Marx under the title “from philosophy
to political economy.” The fact that there was no faculty member qualified to direct
the dissertation encouraged me to pursue it. But the fact that Marxism was being
forcefully imposed on the Czechs by explicitly Leninist means led me to turn to Lenin’s
great rival, Rosa Luxemburg, whose Selected Political Writings I edited and published
in 1971.15 During this period, I reaffirmed my American roots through collaboration
with Radical America, a journal associated with the SDS chapter at the University of
Wisconsin. The journal sought to liberate a historical tradition of radicalism academic
orthodoxies written from the perspective of the dominant classes.
My friend Jan Kavan was in the US when the invasion took place, invited by the organizers of the
demonstrations as a speaker. On hearing the news, he wanted immediately to return and to resist, but
his sponsors would only pay for his return ticket after he had given his speech. As he reminded me
recently, he did speak; and found himself under arrest in Chicago, unable to return (or to complete his
promised visit to see us Austin). Kavan eventual went into exile in London where he organized the
clandestine publishing house Palach Press, returning only after 1989.
15 I chose to publish this volume with the leftist house, Monthly Review Press; royalties were donated to
the journal, Radical America.
14
224 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
The two articles that I published in Radical America drew on French themes
that I saw as significant for the New Left. The first, “French New Working Class
Theory,” generalized some implications of my understanding of the March 22 nd
movement for a student-based American movement tempted to identify its critical
project with Marxism. The first creative political syntheses of both André Gorz and
Serge Mallet dated from 1963, when Gorz published Stratégie ouvrière et
néocapitalisme and Mallet La nouvelle classe ouvrière. These two authors, from
different backgrounds, challenged the orthodox understanding of Marxist politics,
which Mallet had known from the inside, as an organizer for the PCF from 1945 until
1958.
It is significant that Mallet did not leave the Communist Party in 1956, as did so
many future liberals (such as François Furet); he left in 1958, when the Party proved
unable to face up to the Gaullist capture of power. Unemployed after he had left the
party, Mallet was able to pursue the empirical research for his book with financial help
from Sartre, after publishing in his analysis of Gaullism in Les Temps modernes.
When I once asked him how he came to the idea of a “new working class,” he explained
that when party business would take him to a new factory, the local officials would
regularly say to him, “you know, comrade, conditions are different here.” Although
there were signs of a technological determinism in his empirical description of the
emergence of this new class, what makes his work so powerful is his understanding of
the way that learning takes place through action. Mallet’s ability to unite empirical
analysis with the subjective experience of the participants explains why Herbert
Marcuse adopted many of Mallet’s insights in One-Dimensional Man. It also points
toward his later reflections on May ’68 in the Preface to a new edition of of La nouvelle
classe ouvrière under the title “ May-June 1968:
Management.” 16
the First Strike for Self-
In effect, by assuming that self-management is the contrary of
alienation, Mallet no longer needs to have recourse to the Leninist theory of the
revolutionary party as the mediation between the objective conditions of alienation to
political self-consciousness. This is also the context in which Andre Gorz theory
becomes important.
16 Mallet’s critique appeared in two essays, “Pour un programme de l’opposition” and “Perspectives
nouvelles,” republished in Le gaullisme et la gauche (Paris: Éditions du Seuil, 1965). I co-edited with
Dean Savage a collection of Mallet’s Essays on the New Working Class (St. Louis: Telos Press, 1975) to
which I added a short Preface that considers his later work. After his unfortunate death in an accident,
I published “In Memory of Serge Mallet” in Telos, No. 20, 1974.
Dick Horward| 225
Gorz used his editorial role at Les Temps modernes to encourage and publicize
innovations in radical politics, particularly from Italian theoretical experiments and
trade unionist practice. As a journalist for the weekly Le nouvel Observateur, Gorz
had a gift for recognizing the importance of specific struggles. His theoretical essays
used concrete examples to criticize sociological theories that claimed that modern
capitalism had integrated the working class. His own theory builds from the Marxist
idea of the “new needs” produced by the neo-capitalist order. These can become the
catalyst for in the immediate for a renewal of class struggle and in the longer run for a
new vision of a revolutionary society that does not reproduce the bureaucratic
deformations of actually existing socialism. Gorz developed the practical political
implications of the idea of new needs in the essays collected in Le socialism difficile in
1967, where he paid specific attention to the situation of students. After May ‘68, Gorz
republished the central essay from this book along with a re-edition of Stratégie
ouvrière in a single volume under the title Réforme et revolution. The conjunction in
his title challenges the usual leftist argument appealing to Rosa Luxemburg’s choice of
“social reform or revolution.” Gorz’s claim was that there are types of reform that
cannot be integrated into a social system based on alienation; one such reform is
involved in the demand for forms of self-management which would bring about
“revolutionary reforms.” The difficulty, however, was that inherited Marxist theories
had first to be challenged if the New Left was going to take up the project suggested by
new working class theories.
The place of Marxism in the self-understanding of the New Left was my concern
in the second essay that I published in Radical America following the reconstruction
of French theories of the new working class. It seemed important for me to come to
grips with the influence of Louis Althusser, whose distinction between the humanism
of the young Marx and the mature structural theory had led me to read Capital.
Knowing too little about Hegel, or about the communist usage of ideology, the title of
my article identified Althusser’s structuralist reading of Capital with a normative
theory called “dialectical materialism.” I distinguished it from what I called “genetic
economics,” which was illustrated in the two volume empirical-historical analysis of
capitalism by Ernest Mandel, a Trotskyist leader, who claimed to integrate the theories
of the young Marx with Capital. Retrospectively, my essay was at best a first attempt;
it was only a decade later, in in From Marx to Kant (1985), that I began to understand
226 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
the interrelation between genetic and normative analysis; and only after I had begun
to question the idea that the French revolution provided the model for radical change
that I could look more clearly at the democratic foundations of New Left politics.
Enjoying another year of fellowship before defending my already completed
dissertation, I left for Bonn, where I studied with a conservative Hegelian while
working on Rosa Luxemburg. A letter from Karl Klare proposed that we edit a
collection of essays radical theories of Marxism that had been suppressed by an
increasingly rigid orthodoxy. A New Yorker whose family had deep roots on the left,
Karl had participated in SDS activism at Columbia university before going on to study
political science at Yale with Shlomo Aveneri. I eagerly accepted his invitation, and
together we established a table of contents for the proposed book. We corresponded
at length and worked out a proposed table of contents before meeting in New York,
where we agreed to a contract with Basic Books. Despite the reference to Europe in
the subtitle of the volume (“European Marxism since Lenin”), the intended audience
for The Unknown Dimension was the participants in the New Left who, we hoped,
would recognize themselves in the this hidden tradition. Karl made that clear in his
introductory essay, while insisting on the necessary rejection of Leninist distortions of
Marxism without rejecting Marx himself. My presentation of “the historical context”
in which a critical Marxism had grown in spite of being suppressed or pushed to the
margins of left-wing discourse. My reconstruction of European history was not aimed
at the specialist; in fact, knowing how little I had known of this history before my
travels, I aimed at readers like myself, curious amateurs with practical hopes. Such is
the strength (and weakness) of being self-taught, in history as I had been in
philosophy.
The Unknown Dimension. European Marxism since Lenin is divided into three
historical periods, each of which contains essays on (mainly) individual thinkers who
whose work could be understood as reacting to the overall characterization of the
period. The challenge to the first group was posed by the conjunction of “the Russian
Success” in seizing power in 1917 with the “decline of proletarian revolution in the
West.” The authors studied in this first part were mostly unknown in English language
texts. They included Georg Lukács, Karl Korsch, Antonio Gramsci and the “left-wing
communism” of the Council Communists, particularly Anton Pannekoek. Each in his
own way could be read as offering an alternative to Leninism. The second set of
Dick Horward| 227
alternatives was regrouped under the heading “The Interregnum,” referring not only
to the interwar years but also to the state of the debates around Marxism and political
practice. Wilhelm Reich, the early Frankfurt School, and Walter Benjamin fit the
chronological time-frame; Jürgen Habermas—who celebrated his 90th birthday in
2019 by publishing a new, two-volume study—is of course considered as an older
participant in the debates of the German SDS as they reflected the evolution of the New
Left. Finally, four Francophone and one Italian theorist are seen to offer “The PostWar Response and New Beginnings. Jean-Paul Sartre, Henri Lefèbvre, Galvano Della
Volpe, and Louis Althusser along with the new working class theories of Serge Mallet
and André Gorz are considered. Della Volpe had died in 1968, and Lefèbvre’s most
creative years had passed; we included them because their work was beginning to be
known among new leftists.
There no need to say more about the contents of The Unknown Dimension or
to insist on its role in introducing discussions thinkers and theories that had remained
below the horizon of the young activist left. Perhaps the definition of the principal
divisions of the book could have been clarified and their interrelation defined by the
editors rather than being left as simple path marks. Other authors might have been
added, and the collective projects of left-wing journals could have had their own place;
but often we didn’t know of their existence or could not find someone able to write
about them. For example, I tried but ultimately failed to find someone to write about
the journal Socialisme ou Barbarie.17 Some of the authors who did take part in our
project remained active and creative intellectual participants in the New Left; others
went their own way, or passed away. Significantly, many of them found themselves
together again in a new collective project, the quarterly journal Telos, whose editorial
committee I joined in 1970.18 Many of the essays that I published in that journal over
the next 6 years became the basis of a book that I published in 1977 The Marxian
17 I refer to the journal Socialisme ou Barbarie, which I knew by reputation, having read only a few
copies found in a used bookstore; I did not know its principal animators, whom I only met when I asked
Pierre Vidal-Naquet to help me find someone to write. He arranged for me to meet Claude Lefort. He
was agreeable to the project, but was unable to write the chapter because he was completing his massive
study of Machiavel. Le travail de oeuvre; he told me to return in two weeks, when he would introduce
me to a potential author. That was Cornelius Castoriadis, who explained that he had in mind a perfect
younger author… who never delivered the chapter. My reward was the life-long friendship with both
Lefort and Castoriadis.
18 C.f my reconstruction of the rise and fall of the journal Telos, first published in the Zeitschrift für
Ideengesichte, Heft XI/3, Herbst 2017 as “Wanderwege der Neuen Linken”; a modified English
translation was published as “The New Left and the Marxian Legacy,” in Logos, Vol 17, No. 2, 2018 (at
Logosjournal.com).
228 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Legacy. This concept of a “legacy,” rich with ambiguity, came to replace in my mind
the earlier idea of an “unknown dimension” whose discovery would permit activists of
the New Left to escape from the Leninist vision of politics. The learning process could
not be so immediate; it would demand reflection on the identification of Marxism with
the New Left. That is why I spoke of that legacy as “Marxian” rather than Marxist. I
have told my part of that story in a recent article, “The New Left and the Marxian
Legacy: Encounters in the U.S., France and Germany.”19
4 Quo vadis the New Left?
Insanity is sometimes defined as doing the same thing over and over again while
expecting different results. I’ve been accused of that failure of imagination. In effect,
I have continued to take inspiration from my early experience a New Left, in Texas and
then in Paris, trying to sniff out signs of its return in articles published in 1970, 1978,
1983, 1992, 2003, 2009, 2017 and 2018.20 The intuition and hope for its re-emergence
led me to publish new editions of The Marxian Legacy in 1988, reflecting the
emergence of “new social movements” particularly in Eastern Europe, and again in
2019 anticipating a hoped-for renewal in the United States during the past decade.
When I reflect on the self-destruction— aided by provocations by the FBI and its
equivalents elsewhere— of the original New Left (and of the spirit of May ’68), I see its
roots in ideological attempts to put an end to the indetermination of social relations
that makes participatory democracy possible.
What I intuited as “reactionary
radicalism” I would now call the temptation of anti-politics. I felt its presence without
being able to name it already in 1973, at an international conference in Italy celebrating
This essay was written for a special issue of the German journal Zeitschrift für Ideengeschichte for the
centenary of Marx’s birth (published in Heft XI/3, Herbst 2017), pp. 5-20. An English version appeared
in the online journal Logos, spring 2019; http://logosjournal.com/2018/coward-marxian-legacy/. An
edited French version appeared in Esprit under the title Lectures de Marx par la nouvelle Gauche en
1968 (Mai 2018). See also an interview with the editor of Esprit, Anne-Lorraine Bujon, “Repenser le
marxisme,”
on
the
website
of
the
École
des
Hautes
Études,
Politika,
at
https://www.politika.io/en/entretien/rethinking-marxism.
20 C.f., “La Nouvelle Gauche étudiante aux États-Unis,” Esprit, avril 1970.
—“La praxis de la nouvelle gauche comme discours utopique, ou du lieu qu’on n’occupera pas” in Le
discours utopique, Maurice de Gandillac, ed. (Paris: 10/18, 1078), pp. 99-106.
—“D’une nouvelle gauche à une autre, Esprit, juillet, 1983.
—“Gauche européenne, gauche américaine: un même combat?” Autres temps, 1992.
—“Sortir la gauche de la critique morale,” Esprit, juin 2003
.
—“Une nouvelle gauche international?”, Esprit, mai 2008.
—“Qu’est-ce qu’une revolution? Reflexions sur la portée des années 1989-1990,” Esprit, octobre 2009.
— “Lectures de Marx par la Nouvelle Gauche en 1968,” Esprit, mai 2018.
19
Dick Horward| 229
Rosa Luxemburg. My presentation, which became the first chapter of The Marxian
Legacy, asked how to reconcile the fact that the most creative socialist of her times felt
obliged to justify her political choices by appeal to the authority of Marx’s texts (which
she also read creatively). In a word: her action was political; her justification was antipolitical. But there was no time for debate that day; we learned that the army had
overthrown socialist government in Chile; the need to demonstrate solidarity seemed
to demand political unity (and I was in effect ostracized during the rest of the
meetings). But solidarity in fact binds people who differ; it should not be confused
with unity, which is anti-political.
I came to understand the relation of the political and anti-politics as I worked
through the implications of the critique of totalitarianism in the writings of Lefort and
Castoriadis, beginning with their contributions to the understanding of May ’68, which
I read at the time. Reading them meant exploring the implications of the first
syntheses of their thought, which I described in The Marxian Legacy. The concept of
“the political” was central to both, although they differed in their practical
understanding of the concept. As for me, I learned from both that interpretation
demands appropriation, which encouraged me to set off on my own. The results are
found in two collections of essays, The Politics of Critique (1988) and Defining the
Political (1989).
On the one hand, I tried to decipher the implications of the
emergence of a New Left in the movements toward the autonomy of civil society,
particularly in Eastern Europe. On the other hand, it was necessary to recognize threat
of anti-politics in the attraction of neoliberalism that began to overshadow the new
possibilities of a new shape of the political. That shadow had acquired flesh when, two
decades later, I was invited to Berlin in 2009 on the 20th anniversary of the fall of the
Wall. Returning to the question of revolution that had haunted the New Left, I offered
a definition of “revolution” as a rediscovery or revivification of the political, and tried
to show how the radical aspirations of the new social movements that had shaken the
foundations of both regimes had fallen prey to anti-politics. Published as “What is a
Revolution? Reflections on the Significance of 1989-90,” this essay became the anchor
of a collection of my attempts to understand how the real possibilities experienced
after 1989 (another unexpected brèche) had been devoured by the rise of Islamic
230 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
terrorism, which was ultimately an anti-politics pretending to redefine parameters of
the political by destroying the possibility of politics.21
I hadn’t finished with the search for a New Left (and haven’t stopped since).
When there was no lived experience to which to attach my hopes, I turned to theory,
as I have frequently. I had glimpsed a way to escape the antinomy of the political and
anti-politics, at least in principle, during one of those theoretical interludes, when I
returned once again to Marx. Criticizing his implicit Hegelianism (evident particularly
in his unpublished draft manuscripts), From Marx to Kant (1985) tried to show those
who still looked to a critical Marxism that, in order to realize the Marx’s goals, it was
necessary to reinvent Kant’s theory of “reflective judgment.” I hoped that my
provocative title might draw attention of what remained of the New Left, but the
movements of civil society were more important. I tried to bring my proposals into
harmony with the new challenges of a post-communist order an expanded edition of
that work in 1993, but the rise of neoliberalism and the need to criticize its results
became more pressing. I was certain that neoliberalism was a new avatar of antipolitics; but I wasn’t equipped to demonstrate how my intuition could be shared by a
potential New Left. In the meanwhile, I took advantage of my academic seniority to
teach regularly a large lecture class on the history of political philosophy (aided by
several assistants from whose feedback I profited) to test the reach of my intuition. I
published my conclusions in The Primacy of the Political 22 which made me think
ruefully of those four days of qualifying exams that I had passed during May ’68.
These self-referential remarks are both too immodest and too abstract. I mean
by them to suggest only that in undertaking this essay for the Tocqueville Review, I am
once again encouraged by what I see as, perhaps, the glimmering signs of a renewal of
the New Left in the growing popularity of the term “socialism” among at least
American youth, particularly at universities. As I read some of the publications in
which this new openness to redefining the political is expressed, I see also signs of the
return of an anti-political danger that is also present among the newly active. (What
is more — and it is much more— the idea of a direct and participatory democracy has
found rhetorical supporters from within the populist movements particularly present
in Europe; that is the problematic element to which I referred concerning SDS’s fear
C.f. Between Politics and Antipolitics. Thinking about Politics after 9/11 (New York: Palgrave
Macmillan, 2016).
22 New York: Columbia University Press, 2010.
21
Dick Horward| 231
of being “anti-anticommunist”; today’s fear concerns “anti-islamist” accusations.) My
hope is that this brief recall of my pilgrim’s progress through the stages and phases of
the New Left will awaken echoes among some of those on whom I still hinge my hopes.
A Past that has not Passed. Postscript
The brief paragraphs that follow are excerpted from an longer more analytical
essay to appear in early September in the French journal AOC (Analyses, Opinions,
Critiques, which can be consulted at aoc. media). That analysis sets the stage for the
final months preceding the decisive American elections of November 3, 2020. The
paragraphs included here suggest the reason that the lived experience of May 1968 has
more than antiquarian interest; the old frameworks that defined left-wing politics have
lost their hold on the political imagination; something new is on the horizon, and the
first challenge is to recognize its novelty. This stress on the “newness” of the spirit of
May does not neglect the danger of what Claude Lefort called the “attraction of
repetition” that characterizes a “left” that finds comfort in the historical patterns and
theoretical certainties of the past. 23 Although a Festschrift celebrates an plateau in life,
it is no reason to take comfort solely from the achievements of a past which has not
passed.
A Return of the Spirit of the New Left?
I am not the only one to have noted the similarity between the demands of the
Black Lives Matter movement that the movements of the 1960s; in fact, I owe the
comparison to Donald Trump. In his attempts to reclaim the domination of the
political stage that he has lost since the spring, Trump seems happy to have found an
enemy against which he can stand out while returning to themes that Americans have
come to know. Like his words, his actions recall those that were known from the time
of the segregationist ancient régime when “white power” was seriously challenged. As
if he were incapable of articulating a political answer to the double crisis of health care
and economic failure, the president falls back on his own racism (which in truth had
C.f. “Le nouveau et l’attrait de la repetition” in the new edition of Claude Lefort, Éléments d’une
critique de la bureaucratie (Paris: Gallimard, 1979; first edition Genève, Droz, 1971).
23
232 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
been evident to all, at least since the demonstrations of 2017 in Charlottesville). His
method is simple, building on the southern tradition of old, denouncing
demonstrations as a threat to the “law and order” which he claims to represent. For
example, he recites the famous words of a policemen from Miami in 1967: “when the
looting starts the shooting starts,” taking care to add that confronted with threats he
will bring in the army to reinforce the police. Similarly, when he was faced with a
demonstration on Lafayette Square, in front of the White House, he defined the
situation as a “battlefield” and—recalling once again the sheriffs of thee old order,
threatened too call on “vicious dogs” to disperse the demonstration. More broadly, he
appeals to the authority of religion to justify the means that serve his political ends. At
Lafayette Square, after tear gas had been used against the protesters, he emerged on
foot from the White House, accompanied by his Justice minister and the commanding
general of the army, before crossing the empty square to stand in front of the
neighboring church where, smiling contentedly, he took from his pocket a Bible and
held it up high, like a trophy, for the TV cameras.
Such tactical similarities to the stakes of the challenges of the 1960s should not
be exaggerated. If the Southern reactionaries appealed to religion, the antiracist
movement led by the Reverend Martin Luther King and his Southern Christian
Leadership Council also drew their political inspiration from religion: the Divine
cannot be as easily manipulated for extraneous goals as can the rejection of the Other.
Indeed, from the beginning of his campaign in 2015, Donald Trump used his racism in
a more socially acceptable form, denouncing Mexicans as “thieves, dealers and
criminals” and proposing to build a wall the length of the border (to be paid for by
Mexico). As soon as he had taken the oath of office, he issued executive orders to forbid
the entry of citizens from Muslim countries. Just as in the old days, such arbitrary
state actions drew a judicial reply that was followed by a political movement. The
emergence of the representatives of “white power” at Charlottesville in August 2017
was a reply to that political mobilization whose demand for the removal of statues
honoring generals who had betrayed their nation to support the separatist pro-slavery
Confederacy. Since that time, the conflict has continued to be radicalized.
Dick Horward| 233
And now?
The true beginning of the presidential campaign took place on the weekend of
the national holiday, July 4th. Always eager to put himself in the center of the picture,
Trump gave a speech in front of the immense monument sculpted into the granite face
of Mount Rushmore, in the Black Hills of South Dakota, not far from the final battle of
the Sioux, led by their charismatic chief Crazy Horse, who was defeated in 1877. The
president, refusing to wear a mask, ignored the double crisis threatening his power
(and re-election). The sculpted faces of Washington and Jefferson, of Lincoln and of
Teddy Roosevelt set the scene for what his supporters could hear as a patriotic hymn
whereas others heard a declaration of “cultural war.”
Invoking once again the
rhetorical tropes of White Power, Trump called also on the anticommunist themes
from the Cold War to denounce what he called the “cultural fascism” of the extreme
left whom he accused of encouraging “urban criminality” while attempting to impose
its values on innocent youths. Continuing his rhetorical flight while changing slightly
his metaphors, he condemned “Marxists, anarchists…and people who have no idea
what they are doing” and wh0o are causing the “American carnage” that had been
another favorite theme since his inaugural speech. This enemy, identifiable by its
desire to “destroy our statues and erase our history,” had to be fought with all available
means. In the meanwhile, the president called for a commission to propose “a
monumental garden to honor our heroes,” adding for good measure that the statues to
be erected would be “neither abstract nor modern.”
What could the democrats offer in the face of this reactionary radicalism? From
January until March, while the democratic party primaries were only beginning,
Donald Trump was happy that the apparent choice of the democrats was the
“independent socialist,” Bernie Sanders. The flourishing economy in and of itself
appeared to give him a crucial advantage. But Trump’s aggressive reaction to the
unexpected events of the following six months suggest that his goal has always been
more than simply re-election; his political vision is more subtle, and more dangerous.
“Bernie” was symbolically the candidate of youth, of ethnic minorities, indeed of all
minorities, whereas Trump represented the white population that feels threatened by
the loss of its historically dominant status by the “great replacement” made possible
by the increasingly global society. From this perspective, Trump’s victory would
234 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
symbolize the defeat of all those “Bernies,” past, present and future. It would represent
the overcoming of all resistance to his will, be it the benign opposition of the
democratic party, the stickiness of the democratic division of power, even natural
limits (such as the coronavirus or the effects of global warming); it would validate the
insistence of the candidate that “only I can save you.” In a word, the radical nature of
Trump’s political vision had been hidden by his incompetence; his election to a second
term would permit the unleashing of his dangerous will to power. On the other hand,
what would he do if he were defeated? And what would those supporters who have
enrolled in his “culture war” that claims to defend white civilization?
Analysis of the origins, and recognition of the failures and errors of the New Left
cast light on the problems facing Black Lives Matter, which has emerged strongly
during (but independent of) the six months of Trump’s troubles. With more than a
little help from the FBI, the New Left of the 1960s had destroyed itself. Impatient and
discouraged by the slow progress and by the resistance of a political system built on
compromise, the radicals tried to become increasingly radical, as if political success
depended on the purity of will. Because the government criticized their demands as
“communist,” they would be “anti-anticommunist” in an apparently democratic
gesture. This opened the door to a variety of competing and warring isms unified only
by one presupposition, which would prove fatal: the quest for a real democracy in
which social equality would replace the individualist freedoms of the capitalist market
economy. The New Left found itself fighting the old battles; adding the qualification
“democratic” to the politics of “socialism” only occluded the values that made the New
Left new: its stubborn quest for a Justice that could never be fully achieved because
democracy can never be realized but must be always renewed.
From this perspective, it is fortunate that “Bernie” did not become the
candidate; and also fortunate that Black Lives Matter has mobilized the kernel of a new
New Left. The future of the nation will not be defined by the choice between two
imaginary projects: a cultural war to defend a racist “civilization” that is unwilling
admit that it knows it has become the faith of a minority, and a social democracy based
on the quest for an egalitarianism that doesn’t recognize that the ideal of justice
represents the unity of a multiplicity of projects and forms a horizon that can always
only be approached (asymptotically, so to speak) because its realization would destroy
its vision. That ideal of justice is the unspoken appeal that underlies the demands of
Dick Horward| 235
Black Lives Matter; the movement is not claiming that other lives don’t matter; its
insistence on the particular demands of Black people presupposes the universal claim
that all lives matter. Black Lives Matter reaffirms the demand for justice as a horizon
which is both universal and particular; and its militant action makes clear the need to
strive always to realize both of them.
13. SOBRE A LEI1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-13
Eduardo Luft2
I
A lei3
A filosofia dialética investiga o Direito no contexto de uma ontologia regional 4,
e sob o pano de fundo de uma ontologia geral que permite iluminar o seu pressuposto
incontornável, a liberdade, como já sustentara Hegel5. Precisamos, portanto, ter já de
início em mente os traços gerais da ontologia dialética para compreender o terreno em
que se move a ação jurídica e eticamente significativa.
A ontologia dialética é uma ontologia relacional e processual. Tudo o que existe
e pode existir ocorre como um evento instaurado em tramas relacionais processuais
ou como um enlaçamento deste tipo. Não há entidades isoladas de outras entidades,
nem mesmo essências ou estruturas que permaneçam idênticas e inalteráveis,
intocadas pelo devir presente em tudo o que existe, e portanto também no âmbito da
ação humana.
Não podendo perder-se no infinito 6 , estas tramas relacionais terminam
dobradas sobre si mesmas em processos de autodeterminação, que de todo modo só
se determinam ou formam uma identidade própria contrastando-se com outros
processos de autodeterminação. A forma mínima do ser é esta coerência dinâmica
entre autocoerências dinâmicas ou parte de um processo deste tipo. Na esfera da ação
humana, a autodeterminação revela-se como autonomia. Toda ação pressupõe
Este texto é uma reapresentação, com pequenas correções, do original publicado em E. Luft (2019).
Prof. Dr. (Email: eduardo.luft@pucrs.br).
3 O presente ensaio segue, em suas linhas gerais, os passos percorridos pela Filosofia do Direito de Hegel
(sobretudo ao abarcar a tríade Direito abstrato, Moral e Eticidade), reconstruídos criticamente levando
em conta a tarefa de reelaboração do projeto de sistema de filosofia. Às vezes estaremos mais próximos,
às vezes mais distantes da intenção original de Hegel, como ficará claro ao leitor atento no decorrer do
texto. As traduções do alemão são do autor.
4 Aquela que trata da ação humana ou metacoordenação de ação (ação mediada por conceitos).
5 A Filosofia do Direito pressupõe, neste sentido, a Lógica hegeliana e seu tratamento lógico-ontológico
da liberdade (GW, v.14,1, p.23).
6 Toda infinitude é sempre potencial, nunca atual. Poincaré sugerira que a pressuposição de infinitude
atual estaria na origem dos paradoxos da teoria de conjuntos (KNEALE, W./KNEALE, M., 1991, p.680).
1
2
238 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
interação, e toda interação pressupõe este jogo dinâmico de autonomias
potencialmente rivais ou mutuamente enriquecedoras7.
Todavia, o conceito de pessoa legado pela modernidade parece desmentir este
fato. Conceito tão significativo, de todo modo, que poderíamos dizer, sem margem a
muita dúvida, que seu emergir 8 no processo civilizacional significou a abrupta
aparição no mundo da esfera do Direito propriamente dita. Tudo o que precedeu o
advento da pessoa, do ser autônomo ou autolegislador, todos os momentos históricos
prévios ligados à presença da lei deveriam ser redescritos mais propriamente como
integrando o âmbito do proto-direito, da esfera jurídica em fase ainda embrionária ou
potencial. Só com a pessoa vemos surgir a liberdade reflexiva, a ação mediada pelo
pensamento crítico capaz de pôr em xeque retrospectivamente, de modo radical, as
normas e valores dados em certa cultura, ou mesmo em todas as culturas.
O pensamento reflexivo é aquele ato inaugural que, ao ter posto em suspeita e
em suspensão todas as conquistas históricas prévias, veio a ser compreendido como o
instaurador da modernidade. O sujeito cartesiano duvida de tudo, e somente em si
mesmo supõe encontrar a certeza buscada, e no conhecimento de sua existência crê
desvelar o fundamento possível do conhecimento da existência do próprio mundo em
sua totalidade. Este novo cerne do sistema de filosofia foi conceituado de forma ainda
mais precisa por Fichte, em sua Doutrina da Ciência. O eu fichtiano, autocontido e
produtor de si mesmo e do mundo representado (não-eu)9, fundamento da certeza de
si e da certeza deste mundo, é a pessoa como concebida inicialmente pelos modernos.
A soberania instável
Parece correto afirmar a pessoa como o ponto de partida da Filosofia do Direito,
ou melhor, como o seu pressuposto incontornável, o seu início e também o seu fim.
A Lógica de Hegel parece ter permanecido refém da estrutura monológica e autorreferencial do
Conceito (HÖSLE, 1988, p.271). Proponho, em vez disso, compreender a própria forma mínima da Ideia
como a relação dinâmica entre (ao menos duas) autorrelações dinâmicas, coerência entre
autocoerências.
8 Mesmo que o seu surgimento não tenha ocorrido de uma vez, mas em momentos distintos e cada vez
mais significativos no contexto daqueles períodos históricos denominados por Deutsch (2011) de miniiluminismos, consolidados talvez, ou ao menos radicalizados, no iluminismo propriamente dito que
caracterizou a época moderna. Tenhamos em mente, por exemplo, o mini-iluminismo que levou ao
despertar do pensamento filosófico ocidental na Grécia antiga, sobretudo com o movimento sofista e a
origem do convívio democrático.
9 “A fonte de toda a realidade é o eu” (FICHTE, FW, v.1, p.134).
7
Eduardo Luft | 239
Todavia, este ponto de partida, concebido em seu suposto caráter absoluto ou
incondicionado, é na verdade instável e precário. Por um lado, o eu compreende-se
como soberano, senhor de si e do mundo dele derivado por atos de autoposição, de
acordo com as teses básicas do idealismo subjetivo fichtiano. De outro, ele se encontra
constitutivamente ligado a outros sujeitos naquela trama interacional mencionada ao
início.
A tese da autossuficiência do eu10, de sua soberania absoluta ou incondicional,
de sua independência radical da relação com outros, não pode, todavia, ser refutada
por argumentos. É realmente muito difícil, ou mesmo inviável, superar o idealismo
subjetivo por crítica imanente, e a crítica externa é ainda mais questionável aqui do
que em outros contextos do fazer filosófico11. Hegel proporá um outro caminho, uma
via pragmática12 que convida o idealista subjetivo a levar a sério a sua visão de mundo
e a sua relação com os outros. Esta estratégia de enfrentamento marcará a dialética do
Senhor e do Escravo, e é neste contexto que veremos emergir as duas primeiras leis do
Direito.
“Uma verdade não pode perder nada ao ser anotada”, diz Hegel na
Fenomenologia (GW, v.9, p.64). Em nosso confronto com o idealista, poderíamos
sugerir algo parecido: uma verdade não deveria perder nada ao ser vivida. Quais as
conseqüências práticas da tese da soberania do eu, de seu caráter incondicionado? Se
absoluto ou incondicionado é apenas o eu, este eu, e nada mais, então todos os demais
eventos têm uma existência apenas condicional ou relativa ao próprio eu, são apenas
objetos perante o sujeito soberano que os acolhe como meras representações. O eu
moderno tem este curioso toque de midas: tudo o que ele toca mostra-se apenas como
O que Brandom chama de “independência pura” (2019, p.314), destituída daquele tipo de
dependência que caracterizaria o ser responsável perante os outros, e definiria o conceito de autoridade
moral. A autoridade do Senhor seria, portanto, intrinsecamente defectiva.
11 Para a importância da crítica interna em filosofia, cf. Luft (1995, p.13ss).
12 Note-se que o pragmatismo inerente à Fenomenologia hegeliana é um tipo de pragmatismo
ontológico, uma teoria da ação desenvolvida sob o pressuposto de uma teoria dialética do Ser, em
contraste com o pragmatismo deontológico destilado nas recentes releituras analíticas da obra
hegeliana (cf. sobretudo Brandom (2019)). O problema crucial do pragmatismo deontológico é operar
no vazio, sem o devido esclarecimento de seus pressupostos ontológicos, sendo assim incapaz de
explicitar a racionalidade objetiva (diria Hegel) inerente às normas defensáveis por um agente racional.
Em suma: normas não são, em si mesmas, boas nem más; o que diferencia a aceitabilidade de algumas
normas em detrimento de outras é a noção prévia (ontológica) de bem. Não por nada, Hegel ancora o
princípio universal do Direito, a liberdade, na ontologia desenvolvida previamente em sua Ciência da
Lógica. Ele pode, desse modo, realizar uma apreciação histórica das diversas civilizações e do próprio
processo civilizacional tendo por referência uma teoria da liberdade como o bem ético objetivo, o que
inexiste no pragmatismo deontológico. A posição de Brandom, e de outros autores que vão nesta
direção, é neste sentido mais neokantiana do que neohegeliana.
10
240 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
representação ou fenômeno, é transformado em objeto para o sujeito, o eu soberano
que o tem em mira. É assim com esta árvore, que o eu transforma em mesa, com esta
fruta que o eu consome, e com este sujeito que o eu… O que ocorre quando o sujeito
depara com outro eu? A sua pretensa soberania absoluta é colocada em risco. Se eu
sou o único soberano, você não pode ser mais do que súdito, e vice-versa. Esta situação
inviável conduz à luta de vida e morte descrita pela Fenomenologia hegeliana.
Perdendo a luta pela soberania absoluta e vendo-se com a faca no pescoço,
literalmente, a consciência subjugada toma a decisão difícil, mas compreensível: aceita
perder a liberdade em nome da preservação da vida. Paradoxalmente, todavia, aquele
que aparece como vencedor (o Senhor) é, na verdade, o perdedor, e a consciência
subjugada encontrar-se-á muito mais próxima da verdadeira liberdade do que a
consciência subjugante. Em sua arrogante soberania, o eu é incapaz de encontrar-se
livre porque a liberdade propriamente dita supõe reconhecimento intersubjetivo. Só
somos livres enquanto nossa liberdade é reconhecida por outros seres livres, e viceversa. Esta é a correta mensagem hegeliana. Mas por que a consciência escrava estaria
mais próxima do encontro desta verdade?
Autores de tradição marxista13 fazem uma leitura própria deste desfecho: só o
escravo é capaz, via a experiência do trabalho, de alcançar a autonomia desejada,
enquanto o senhor mostra-se, em sua indolência, destituído dos meios para tanto.
Prefiro outra leitura: ao trocar a liberdade pela preservação de sua própria vida, o
escravo está realizando o que faltava ao idealista subjetivo (raiz última da figura do
Senhor, como vimos), reconhecendo o condicionamento corporal do pensamento livre,
transitando da autoconsciência à razão, aceitando-se parte de uma racionalidade
objetiva mais abrangente 14 . A liberdade abstrata (meramente pensada) só se torna
liberdade concreta (ação livre) ao ser mediada pelas restrições necessárias para sua
efetivação. Esta razão não é minha razão subjetiva, mas nossa razão intersubjetiva
operando no mundo, inserida na razão objetiva que pervade o universo em seu todo.
O escravo traz à luz a dimensão objetiva da razão, do lógico na terminologia hegeliana.
A busca por coerência inerente aos processos de autodeterminação não caracteriza
13 Esta parece ser, de todo modo, uma leitura originada mais em autores inseridos, de modo ortodoxo
ou não, na tradição marxista (mais propriamente, em Kojève e Marcuse) do que no próprio Marx
(ARTHUR, 1983).
14 Justamente neste ponto, o idealismo objetivo hegeliano - que, como será mostrado mais tarde, é
superado e guardado no idealismo evolutivo - contrasta com o idealismo intersubjetivo do pragmatismo
deontológico defendido por Brandom (1998; 2019).
Eduardo Luft | 241
apenas a lógica interna15 ao pensamento, mas a lógica interna ao corpo, à vida em
geral e ao próprio universo. O eu descobre sua lógica íntima como a lógica inerente ao
mundo, desvelando a transição do idealismo subjetivo ao objetivo. A autonomia é
apenas expressão mais complexa dos processos de autodeterminação que pervadem o
todo.
Autonomia recíproca
A autonomia verdadeira é sempre, portanto, autonomia recíproca. Eu não sou
livre isoladamente. Nós somos livres uns para os outros, forjando uma rede dinâmica
de reconhecimento mútuo. Da autonomia recíproca, desta lei primeiríssima do Direito
- reconhece na outra pessoa o ser autônomo que ela por igual reconhece em ti;
concede ao outro o mesmo direito à autopropriedade16 que ele concede a ti - brota a
esfera do Direito propriamente dita.
Mas a autonomia recíproca é ainda pouco. Deparando-se com outro sujeito, o
processo de objetificação encontra o seu limite. E o que dizer de nossa relação com
todos os demais eventos? Ora, nenhum limite, nenhuma barreira se interpõe entre o
eu e o outro, desde que este outro não seja um outro sujeito. Cada eu encontra o mundo
inteiro à sua disposição, com exceção dos outros eus - é o que mostra nossa
reconstrução do Direito até aqui. Mas os recursos são escassos, e logo duas ou mais
egoidades voltarão a rivalizar, dois ou mais desejos incidirão sobre um mesmo objeto,
e a guerra entre as vontades, já encenada na dialética do Senhor e do Escravo, revelará
mais uma vez a sua face perturbadora.
A segunda lei do Direito diz que todo recurso escasso só pode transformar-se
em propriedade, e não mera posse, pela mediação de um contrato. Só o acordo mútuo
explícito tem este poder. Só a lei consentida é justa. Assim emerge o direito mais
genérico de propriedade. E aqui encerra nossa primeira seção, esgotando o âmbito do
que Hegel denominava o direito abstrato.
Há duas faltas cruciais ou contradições-por-insuficiência17, todavia, no direito
abstrato: a) não basta a lei estar no papel, ela precisa ser assimilada, quer dizer,
interiorizada e maturada na consciência de quem a segue; b) contratos são precários
Que Hegel denomina “Conceito”, e este artigo denomina “Ideia da Coerência”.
Para o direito de autopropriedade, cf. Locke (PW, p.274).
17 Sobre o conceito de “contradição-por-insuficiência”, cf. Luft (1995, p.83ss).
15
16
242 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
enquanto isentos de aplicação eficaz, ou seja, eles precisam estar amparados em
instituições partilhadas intersubjetivamente e se concretizar nas teias da interação
humana. O direito abstrato precisa ser interiorizado na moralidade, e esta precisa ser
concretizada na moralidade objetiva ou eticidade.
O ocultamento da lei
Mas por que a lei precisa ser interiorizada? Isto não estava claro na época em
que Hegel escrevia a sua Filosofia do Direito 18 . Kant, por exemplo, supunha 19
característica diferenciadora do Direito em relação à Moral justamente a
desconsideração do motivo interno do agente no cumprimento da lei, não vendo neste
fato déficit algum. Direito e Moral eram concebidos por Kant como esferas
independentes, ou mesmo opostos excludentes: se para o Direito vale a coerção
externa20, à Moral vale a coerção interna; se ao primeiro cabe a liberdade negativa, à
segunda cabe a liberdade positiva; se o princípio da moral é o imperativo categórico
(princípio de universalização), o princípio do Direito é aquele que garante a
coexistência pacífica entre agentes livres.
O dialético, todavia, não costuma conviver bem com oposições excludentes.
Onde Kant via opostos inconciliáveis, Hegel vislumbrava uma oposição entre
complementares ou correlativos. Não há Direito sem Moral, nem Moral sem Direito.
Quanto mais distante o Direito da Moral, e vice-versa, mais aporéticos ambos se
tornam. A Moral sem Direito torna-se ineficaz e desvinculada das nuances da
complexa realidade da ação humana. O Direito sem a Moral torna-se opaco e
opressivo. Quanto mais distante da assimilação íntima pelo sujeito, mais a lei se torna
enigmática, e mais perde em legitimidade.
Este tipo de relação conflitiva com a Moral é, todavia, característica
predominante no Direito na modernidade. Ao tematizar a relação entre Direito e Moral
como oposição excludente, Kant está não apenas explicitando sua própria concepção
de uma Metafísica dos Costumes relida transcendentalmente, mas “apreendendo o seu
A ser publicada em 1820.
A Metafísica dos Costumes de Kant é de 1797.
20 “O Direito estrito também pode ser representado como a possibilidade de uma coerção recíproca
plenamente conforme à liberdade de cada um segundo leis universais” (KANT, AA, v.6, p.232). O
Direito, portanto, diz respeito à coerção externa de uma agente sobre outro, e vice-versa, segundo leis
universais, enquanto a Moral diz respeito à coerção interna do agente moral sobre si mesmo, enquanto
ser racional autônomo (autolegislador).
18
19
Eduardo Luft | 243
tempo em pensamentos” (HEGEL, GW, v.14,1, p.15), explicitando conceitualmente os
pressupostos inerentes à cultura de sua época.
Quanto mais se destaca do vigor das tradições, e mais se cristaliza como aparato
de um Estado burocrático e centralizado, mais o Direito se torna abstrato, separado
das consciências. A lei está aí para ser cumprida, mas precisa antes ser compreendida.
Em sua separação extrema das consciências, no entanto, a lei se oculta aos olhos de
quem é por ela afetado.
Diante da lei está um guardião. Ao guardião vem um homem do campo e pede para
entrar na lei. Mas o guardião diz que não pode permitir-lhe a entrada agora. O
homem reflete e pergunta se poderia entrar mais tarde. ‘É possível’, diz o porteiro,
‘mas não agora’. Já que a porta para a lei permanece aberta como sempre, e o
guardião afastou-se para o lado, o homem se inclina para, através do portal,
vislumbrar o interior. Ao notar tudo isto, o guardião ri, e diz: ‘Se te interessa tanto,
tenta entrar, apesar da minha proibição. Mas vê bem: sou poderoso. E sou o menos
imponente dos guardiões. De sala em sala, verás outros guardiões, um mais
poderoso que o outro. A mera vista do terceiro me é intolerável'. O homem do
campo não esperava tantas dificuldades; a lei deve ser sempre acessível a todos pensa -, mas ao olhar melhor o guardião em seu casaco de pele, seu grande nariz
pontudo, a longa, fina e negra barba tártara, decide que o melhor é aguardar, até
receber a permissão para a entrada (KAFKA, SW, p.853).
Aguardar, aguardar. O homem do campo kafkiano aguardará até à morte por
uma esguelha capaz de iluminar o enigma da lei, diante do portal aberto apenas para
ele. Fora a escuridão impenetrável do interior, resta de visível apenas a força da lei.
Desta força todos estão conscientes. Isto todos sentem em seus corpos. Mas uma lei
que é mera força bruta não pode ser senão odiada com todas as forças. Este o preço a
pagar pela abstração da Lei, sua fuga para fora das consciências, seu exílio na pátria
de ninguém. No extremo deste afastamento, poderíamos dizer com Hegel, os opostos
Moral (e sua morada nas consciências) e Direito (e seu poder sobre os corpos) não
apenas se excluem, mas se invertem.
A inversão dos mundos
O mundo invertido é um tema recorrente na obra hegeliana, mas um tema
imensamente árduo para o intérprete 21 . É peça-chave do capítulo sobre “força e
entendimento” na Fenomenologia do Espírito e reaparecerá em parte decisiva da
21
Cf. o clássico ensaio de Gadamer sobre o tema (1988, p.49ss).
244 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Lógica no capítulo denominado “o fenômeno”, na seção homônima. Trata-se da
dialética entre os mundos sensível e suprassensível. Buscando reduzir a complexidade
do mundo à trivialidade da essência do mundo, o racionalismo ingênuo (que opera, na
terminologia hegeliana, sob a lógica do entendimento) busca expurgar as leis naturais,
em sua suposta perfeição e imutabilidade, do instável, báquico reino fenomênico,
como o platonismo tentou livrar as ideias de suas contrapartes instáveis no mundo
material. No extremo de sua oposição, todavia, ambos os mundos não apenas se
afastam e se estranham infinitamente, mas revertem um no outro: “O que no ser-aí
fenomênico é algo mau, uma infelicidade etc., é em si e para si algo bom, uma
felicidade” (HEGEL, GW, v.11, p.351).
Esta estranha transição no texto hegeliano de um discurso metafísico ou
ontológico para um discurso preenchido por conceitos axiológicos, “bom”, “mau”,
permite lançar luzes sobre o mesmo fenômeno de inversão que pode ser encontrado
no âmbito da ética, ou no contexto dos sistemas éticos dilacerados. É o que acontece
em algumas regiões do Brasil. Um dia perguntaram a uma menina de uns 12 ou 13 anos
quem eram as pessoas boas. Ela logo apontou, faceira, para os meninos que abanavam
à distância: “Eles”; “Por quê?”; “Ah, eles trazem remédio quando estamos doentes, ou
materiais para escola. E mais, eles nos protegem dos maus”; “E quem são os maus?”;
“Aqueles”, diz ela, apontando morro abaixo. Tudo certo, poderíamos dizer, se os maus
não estivessem fardados.
A totalidade do mundo ético que perfaz a sociabilidade brasileira racha e se
divide entre a percepção dos moradores da(s) favela(s) e a percepção dos demais que
se sentem mais próximos da Lei. O bem para uns (a polícia, a lei, o Estado) é o mal
para outros, e os mundos éticos se invertem. A consequência extrema deste quadro,
como bem sabemos, é a guerra civil.
Em um mundo ético bem realizado, pelo contrário, consciência moral e eficácia
jurídica não se estranham, mas se complementam, forjando uma totalidade
harmônica. Para tanto, a lei precisa ser interiorizada. O eu precisa iniciar este
contramovimento que, afastando-se do vigorar meramente exterior da lei, reencontra
o Bem em sua própria consciência íntima.
Eduardo Luft | 245
II
A interiorização da lei
Uma vez sabida como a resolução adequada, ao menos provisoriamente, do
conflito potencialmente disruptivo entre vontades livres, a lei própria ao direito
abstrato 22 mostra-se como o que é: condição necessária, mas não suficiente, ao
florescimento da liberdade. Seu vigorar meramente exterior precisa ser internalizado.
Neste processo de interiorização, o eu passa não apenas a reconhecer a lei como
condição para realização de um bem que lhe é caro, identificando-se com ela, mas tem
a possibilidade de compreender este bem, a liberdade, como manifestação específica
do bem universal, da própria Ideia do Bem. Capaz de reencontrar em sua própria
interioridade o bem antes manifesto apenas lá fora, a pessoa eleva-se a sujeito.
A Ideia do Bem
Neste mergulho para dentro, o Direito abstrato revela-se como um pequeno,
modesto campo, comparado ao imenso, aparentemente insondável território da
subjetividade. Descortina-se diante do sujeito toda a profundidade e vastidão do
mundo interior. O que pode parecer puro recolhimento ou mesmo fuga do mundo, o
afundar-se na vacuidade do ego, mostrar-se-á, todavia, como um movimento duplo: a
retomada da segunda navegação socrática e o reencontro do tu nas profundidades do
eu.
O sujeito descobre em si a estrutura lógica do mundo, a Ideia. É o que indicava
a dialética do Senhor e do Escravo. Vimos que o ensinamento contido naquele
momento da Fenomenologia, com a inusitada vitória de quem parecia o perdedor
óbvio, o escravo, passava pela descoberta de que o mesmo processo de
autodeterminação encontrado no pensamento que pensa a si mesmo mostra-se
presente no corpo como um processo auto-organizado e, na verdade, em todos os
demais sistemas, inclusive no próprio universo, como sistema de todos os sistemas. A
estrutura lógica do pensamento é a estrutura lógica do mundo. A consciência
A lei concebida em seus dois momentos até aqui examinados, o direito recíproco originário de
autopropriedade e o direito contratual de propriedade.
22
246 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
transmuda-se em razão objetiva, e o Idealismo Subjetivo é superado pelo Idealismo
Objetivo23.
A tese constituidora do Idealismo Objetivo, a compreensão da identidade
estrutural entre pensamento e ser, é o ponto de partida da Ciência da Lógica. Hegel
concorda com a conquista cartesiana: a emergência da pessoa põe em dúvida todos os
pressupostos dogmáticos, mas reconhece como incontornável o próprio ato de pensar.
O pensamento que pensa a si mesmo é o início da filosofia. O desacordo com o ponto
de partida cartesiano radicalizado por Fichte vem da superação do Idealismo Subjetivo
e na reafirmação de uma antiga verdade filosófica: o lógos, a razão inerente ao sujeito
é a razão objetiva inerente a tudo o que existe. A caminhada para dentro não é apenas
uma via de autoconhecimento, mas é, como a segunda navegação socrática, o
reencontro da estrutura lógica do mundo, a Ideia, na interioridade do eu.
O pressuposto mínimo para que algo possa ser pensado e, ao mesmo tempo,
para que algo possa existir em geral, é o pressuposto mínimo para a determinação de
algo como algo, a coerência. Só o coerente, só o que está em relação com algo outro,
permanece determinado. Desfeita a relação, desfaz-se a determinação, e o ser perdese no nada. Mas a perda de determinação não implica a queda no vazio. O nada
conceituado por Hegel é sempre uma negação determinada, uma negação de algo para
algo. Incoerências locais são possíveis, mas o pensamento, bem como o ser em sua
totalidade, não pode deixar de ser coerente consigo mesmo.
Hegel aventou algo mais: não apenas a coerência ou relação é a marca
incontornável do ser e do pensamento, mas a forma mínima da coerência é a relação
dinâmica entre (ao menos duas) autorrelações dinâmicas (uma prefiguração da
relação entre o eu e o tu a emergir no decorrer de uma certa história evolutiva): a
relação recíproca entre ao menos duas substâncias simultaneamente independentes e
interdependentes, duas “efetividades livres contrapostas” (HEGEL, GW, v.11, p.408).
Esta forma embrionária de intersubjetividade
24
terminou, todavia, em Hegel,
subordinada à lógica monológica do Conceito 25 , na forma de uma teleologia do
incondicionado.
23 Note-se que falta em Hegel a mediação do Idealismo Intersubjetivo, a emergir logo em seguida no
presente texto.
24 Para este ponto, cf. Müller (1993).
25 Como mostra Hösle (1988, p.257).
Eduardo Luft | 247
É neste ponto que uma abordagem contemporânea de ontologia dialética
precisa discordar de Hegel. A recusa da teleologia do incondicionado, via a crítica
interna do sistema hegeliano (LUFT, 1995), deflaciona a ontologia geral, e a vasta
esfera categorial com que Hegel buscava apreender a estrutura lógica do mundo, em
sua Lógica, é revertida na demanda minimalista por coerência. Embora reconhecendo
a coerência entre autocoerências como a exigência mínima para a determinação do
pensamento e do ser, há potencialmente infinitos modos da coerência.
Coerência é a unidade de uma multiplicidade ou a multiplicidade de uma
unidade. Cada manifestação possível desta dialética do Uno e do Múltiplo é um modo
possível da coerência, uma configuração possível inerente ao espaço de possibilidades
ou espaço lógico evolutivo inaugurado pela Ideia. Na busca por demarcar este espaço
de possibilidades encontramos, em um extremo, o predomínio máximo do Uno e seus
traços constitutivos (identidade, invariância, determinação) sobre o Múltiplo
(diferença, variação e subdeterminação) ou a Configuração de Parmênides, e no outro
extremo, o seu reverso ou a Configuração de Górgias. Estes extremos coincidem e
revertem um no outro na Configuração de Cusanus: o espaço lógico dobra-se sobre si
mesmo e manifesta-se fechado para fora, mas aberto para dentro, já que a ele inerem
n possibilidades não antecipáveis, apenas circundadas pela demanda mínima por
coerência.
Desvendando com maior cuidado o espaço lógico, o sujeito descobre por fim a
sua assimetria tão característica: o quadrante de Parmênides (onde residem as
configurações possíveis em que predomina o Uno sobre o Múltiplo) apresenta
configurações mais coerentes com o devir universal do que o instável quadrante de
Górgias; os quadrantes inferiores ou quadrantes de Leibniz apresentam configurações
mais resilientes, a médio e longo prazos, quando expostas ao devir universal, do que o
quadrante de Parmênides. O espaço lógico não é estático, mas dinâmico, com novas
possibilidades sendo criadas ou extraídas a todo instante. À Ideia inere o tempo. O
Idealismo Objetivo é, em sua verdade, um Idealismo Evolutivo.
Orientando-se para a coerência consigo na relação com outros, por esta
teleologia imanente dinâmica que aponta para coerência, ao mesmo tempo em que se
abre a suas potencialmente infinitas variações, a Ideia não é apenas Ideia da Coerência,
248 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
mas Ideia do Bem 26 . A Ideia orienta-se para autopreservação, mas se abre aos
potencialmente infinitos modos da coerência, e justamente neste sentido ela é livre. O
sujeito descobre a liberdade como propriedade não apenas da ação humana, mas do
universo em seu todo, a liberdade metafísica. A orientação para a coerência entre
autocoerências na Ideia é a autodeterminação relacional ou a liberdade em sua face
positiva, que manifestar-se-á, na esfera do Direito, como autonomia recíproca. O abrirse aos potencialmente infinitos modos da coerência é a liberdade em sua face negativa,
a desdobrar-se na esfera da ação humana como livre-arbítrio relacional ou
independência recíproca.
A expansão do eu
O sujeito desvela em si mesmo o Bem universal. E pode constatar que o Bem
não é uma mera projeção sobre o mundo de uma disposição subjetiva. As redes
conceituais dinâmicas reveladas pelo pensamento que pensa a si mesmo têm uma face
dupla: para dentro, expressam a intimidade do eu; para fora, mostram o vínculo
constitutivo do eu com o tu27. Pensamento é metacoordenação de ação28: pensando
buscamos produzir e preservar a coerência própria às redes conceituais, evitando a sua
dissolução na incoerência; metacoordenando ações buscamos produzir e preservar
coerência nas redes de interação. Mesmo na intimidade do pensamento, portanto, o
eu está sempre em diálogo implícito com o outro.
Ressituando-se na perspectiva de quem desde sempre toma parte destas redes
complexas e concretas de interação humana, e sob o pano de fundo da compreensão
renovada da ontologia geral, o sujeito pode reconstruir a sua posição moral no mundo.
Sabe que não apenas ele, mas todos os seres auto-organizados possuem valor
intrínseco, pois a todos estes seres inere a teleologia imanente e dinâmica que aponta
para a produção e reprodução da coerência consigo mesmo no enlaçar-se com o outro.
26 Para a coerência como um dever-ser e princípio do sistema de filosofia, cf. a obra de Cirne Lima
(2017). No Idealismo Evolutivo, este dever ser emerge da teleologia imanente e dinâmica que inere a
todos os processos sistêmicos.
27 Esta foi uma descoberta decisiva do pensamento contemporâneo, qual seja, a de que o pensamento é
linguagem e, portanto, tem desde sempre uma dimensão intersubjetiva (OLIVEIRA, 1996).
28 Na formulação de Maturana (1999, p.168).
Eduardo Luft | 249
Mas sabe também que o eu difere do mero si29, e o tu do mero outro por graus de
densidade interna do processo de autodeterminação: quanto maior a densidade
interna, quanto mais definida a orientação para a autocoerência, maior o valor
intrínseco; embora também perceba que estes graus seguem, para cima e para baixo,
em uma escala potencialmente infinita, para muito além de sua visada30 (que graus de
densidade o aguardam para muito além da rica interioridade do eu, ou para muito
aquém da pobre interioridade do mais singelo si?), reconhecendo, portanto, sua
contexto-dependência.
Para reconhecer o bem intrínseco no outro, e não apenas vivenciá-lo em si
mesmo, o sujeito precisa expandir a sua perspectiva. São três os momentos da
ampliação da consciência moral: a) Reconhecer o outro como possuindo valor
extrínseco; b) reconhecer o outro como possuindo valor intrínseco (autocoerência); c)
reconhecer o outro como um ser livre, nos dois sentidos da liberdade antes
mencionados: reconhecer a capacidade do outro como ser autônomo ou autolegislador
(liberdade positiva) e como alguém capaz de explorar outros modos possíveis da
coerência (independência ou liberdade negativa).
Com este terceiro momento encerra-se o processo de interiorização do Direito
Abstrato.
Somos e não somos o todo
Tudo isto foi descoberto em teoria, mas não temos aqui mais do que
possibilidades, meras possibilidades. Mesmo a tese do Idealismo Evolutivo é uma
alegação enquanto não estiver encarnada como o pressuposto teórico de nossas ações
concretas no mundo. Por que, de todas as possibilidades infinitas, a Ideia manifestouse na forma deste mundo específico que nos cerca? Por que a evolução humana
decorreu como decorreu? Por que somos o que somos? O que podemos ser, levando
em conta o que de fato somos? O que devemos vir a ser?
Diante do Bem universal, a lei interiorizada é ainda uma figura pálida e muito
específica, uma de suas manifestações precárias e instáveis. Diante do todo, parecemos
E um si mais rico interiormente (ou mais denso em seu movimento para a coerência consigo
(autocoerência ou integridade)) difere de outro si menos rico, como um cavalo se diferencia de uma
bactéria, p.ex.
30 Este ponto só se tornou claro para mim em resposta a objeção feita em aula por Carlos Naconecy, a
quem agradeço.
29
250 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
um nada, e estremecemos. Somos e não somos o todo. Nesta oscilação abrupta de
perspectivas, o sujeito quase desvanece. Tem esperança, mas esperança é pouco. O
desespero é o fruto amargo da esperança. A Moral precisará exceder-se e abarcar o
mundo efetivamente. Ela precisará transcender-se como Ética.
III
A concretização da Lei
Se é verdadeiro o Idealismo Objetivo, a estrutura lógica do pensamento é a
estrutura lógica do ser. Se é verdadeiro o Idealismo Evolutivo, a ontologia dialética
engendra uma Cosmologia Evolutiva, e a Moral Abstrata é superada por uma Ética
Evolutiva. A conexão entre o conteúdo contido na Moral ainda Abstrata, reconstruída
agora como momento de uma Ética Evolutiva Universal assentada na Ideia do Bem, e
aquele inerente ao mundo ético específico em que brota o sujeito moral, é feita por
uma certa trajetória histórica. Um filamento do devir universal que poderia ter sido,
de todo modo, inteiramente diferente.
A justiça cósmica
Como o direito abstrato, a moral também mostra-se ao sujeito como apenas um
pequeno recorte de uma ética universal evolutiva muito mais vasta. O eu elevou-se a
sujeito ao interiorizar a lei. Nas profundezas de sua própria interioridade, ele
encontrou a Ideia do Bem, que agora vê refletida como a estrutura lógica do mundo.
Em sua lógica íntima, o Pensamento é o Ser, e o Ser é o Pensamento.
Isto foi antecipado pela Lógica de Hegel, que tem em seu ápice, como categoria
que reúne e integra todas as categorias previamente desdobradas, a Ideia, diferenciada
em Ideia da Verdade e Ideia do Bem. A ontologia é uma ética. Esta é a reafirmação
hegeliana da antiga noção platônica, da hipótese de que a Ideia do Bem é o cerne da
ontologia dialética. É também a resposta peculiar, na trilha aberta pelo jovem
Schelling, ao dilema característico de nossa época, a crise de autointerpretação do
sujeito moderno (LUFT, 2012): como conceber a si mesmo como sujeito livre e
orientado por valores em um universo descrito como máquina-determinada pela nova
Eduardo Luft | 251
Física? O dialético propõe compreender a natureza em seu todo não sob o modelo da
máquina determinada, mas sob o modelo do organismo vivo. O bem inere a tudo o que
há porque a coerência é o alvo da teleologia imanente e dinâmica própria aos processos
sistêmicos, e tudo o que existe e pode existir é um processo deste tipo ou parte dele.
Fosse o universo constituído por apenas um sistema, haveria apenas um bem (o
alvo inerente a este sistema, a sua coerência consigo mesmo), e não haveria conflitos
entre bens. Já vimos, todavia, que a forma mínima da coerência é aquela relação
dinâmica entre ao menos duas autorrelações dinâmicas. A autocoerência visada pelo
movimento de auto-organização de cada si (autorrelação) é o bem próprio. A coerência
entre autocoerências é o bem comum. Enquanto cada sistema visa o seu bem próprio,
eles divergem entre si; enquanto participam do mesmo movimento para a coerência
de um sistema mais abrangente, condição de possibilidade da manifestação e
preservação de seus bens próprios, eles convergem. A dialética entre convergência e
divergência de bens é a dinâmica operacional.
A dinâmica operacional implica a possibilidade de conflito entre bens rivais,
seguido do possível alastramento da incoerência, disrupção da unidade sistêmica e
conseqüente perda de determinação. Incoerências são, portanto, possibilidades
inerentes ao devir universal. Mas incoerências são sempre estados parasitários de um
dado movimento para a coerência. Toda perda de determinação na parte implica
transformação de determinação em uma totalidade mais abrangente. Bens locais
podem se desfazer, mas o bem universalíssimo, a coerência do todo (do universo)
reverbera em sempre novas reconfigurações, em novos mundos possíveis. Esta
assimetria originária entre o coerente e o incoerente é a justiça cósmica.
Enlaçamentos
Independente de como se deu a vasta trajetória evolutiva desta configuração de
universo ou deste mundo que nos cerca, tema de uma cosmologia evolutiva dialética
que excede os marcos deste ensaio 31 , o segundo estágio de manifestação desta
complexa relação entre bens potencialmente ou efetivamente divergentes dá-se com a
emergência da senciência: a dialética entre simpatia e antipatia ou dinâmica de afetos.
31
Cf. Luft, 2010.
252 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
O terceiro estágio manifesta-se com a emergência do sapiens: a dialética entre
consenso e dissenso ou dinâmica discursiva.
Desta trajetória emerge o eu, o eu faz-se pessoa, e a pessoa, sujeito. O eu diz-se
livre, um ser autônomo e independente, mas a sua autonomia só é autonomia na
interação com o outro. Este outro, o tu com que se defronta o eu, não é mais agora uma
mera potencialidade ínsita no traço relacional da Ideia do Bem (aquela coerência entre
autocoerências dinâmicas), nem aquele com quem dialogo apenas na intimidade do
pensamento (moral abstrata), mas este outro sujeito concreto com o qual me encontro
efetivamente enlaçado na esfera da ação humana. Deste emaranhado surge o impasse:
como posso ser livre, um ser verdadeiramente autônomo ou independente, se minha
própria identidade como ser social brota das teias de interdependência características
da interação humana? Como posso ser eu se estamos todos tão inextricavelmente
imersos no nós?
Costumes
Como tantos outros pensadores liberais, Kant respondia a este impasse
apelando à abstração: o sujeito moral não é o nó em uma rede concreta de interações,
mas o átomo social32 postulado para pensar como possíveis a Moral e o Direito. É este
átomo social que, como ser racional e autolegislador (autônomo), imporia a si mesmo
o Imperativo Categórico como o princípio fundamental da Moral e a lei universal do
Direito como garantidora da coexistência dos múltiplos átomos livres ou
reciprocamente independentes.
Já vimos, todavia, os impasses desta visão atomista e da conseqüente dicotomia
kantiana entre Moral e Direito. Para encontrar a síntese possível entre estes opostos,
não mais considerados excludentes, mas complementares, Hegel propõe um novo
termo: Sittlichkeit ou eticidade. Sitten, em alemão, vem a ser costumes: ao revisitar a
origem dos termos ética (do grego ethos) e moral (do latim moralis), Hegel descobre
o ponto cego da Filosofia Prática kantiana, aquilo que escapa ao refinado aparato da
filosofia transcendental.
A disputa entre atomismo e holismo em ontologia social tem suas raízes profundas na dicotomia mais
ampla entre Analítica e Dialética (cf. Cirne Lima, OC, v.III, p.103ss).
32
Eduardo Luft | 253
Imagine-se cruzando, apressado, uma alameda em direção ao trabalho. Ao seu
lado, uma senhora de idade tropeça e deixa cair a sacola de compras no chão. Você
titubeia. “Vou perder o horário. A senhora pode se ajudar sozinha”, você pensa. Mas
outras pessoas o observam. Você sente a pressão dos outros, e ajuda a senhora. Não há
nada na moral kantiana que possa iluminar esta forma de pressão social que o olhar
dos outros exerce sobre nós. A moral transcendental, afinal de contas, diz respeito
apenas à força interior exercida pelo próprio sujeito sobre si mesmo ao impor-se
normas universalizáveis (ou seja, derivadas do imperativo categórico). O Direito
transcendental por sua vez fala, sim, de coerção externa, mas a lei jurídica não tem
nada a dizer sobre a ajuda a pessoas de idade, o seu âmbito de atuação é muito mais
restrito, e nela não encontramos, segundo Kant, a força da convicção interior. Os
costumes são aquele terceiro elemento que, curiosamente, supera e guarda os opostos
Moral e Direito: da Moral, os costumes preservam o momento característico da
interiorização do bem - enquanto integrantes de um mesmo ethos, sabemos
intimamente que é melhor ajudar a senhora do que desprezar a sua dificuldade, sendo
o olhar do outro, neste sentido, apenas um reflexo de nosso próprio olhar; do Direito,
eles conservam de todo modo aquela pressão externa, embora sem a força ou a
gravidade da lei jurídica.
Mas Hegel não estava apenas se referindo aos costumes. Implícita em sua teoria
da eticidade estava a compreensão de que, subjacente à história evolutiva dos
costumes, estava a operar uma racionalidade objetiva que excede em muito aquela
racionalidade abstrata a que recorre qualquer teórico da Moral, do Direito ou dos
Costumes em sua busca por elucidar como agimos e como devemos agir.
A razão evolutiva
Se o universo não é composto por um sistema, mas por múltiplos sistemas em
conflito potencial, então a história natural é ao mesmo tempo a exploração e resolução
(ao menos provisória) destes conflitos. Afinal, estamos aqui pensando sobre esta
história porque de algum modo ela foi bem sucedida, porque o conflito atual ou
potencial entre a miríade de bens próprios, entre os múltiplos movimentos para a
autocoerência que convergem e divergem o tempo inteiro na tensão entre sistemas
rivais, encontrou de algum modo uma conciliação provisória. O mesmo pode-se falar
254 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
das interações humanas: enquanto Kant via nos costumes o reino instável e irracional
da ação humana empiricamente detectável, a ser superado por uma teoria pura
(transcendental) dos costumes, devemos ver neles, pelo contrário, superando e
guardando a posição hegeliana, formas sofisticadas de resolução dos conflitos que
emergem da interação humana envolvendo as três camadas ontológicas anteriormente
mencionadas, as dinâmicas operacional, de afetos e discursiva.
Pense na imensa complexidade que emerge da interação humana. Cada um de
nós é filho ou filha, e pode ser pai ou mãe, mas também é estudante ou exerce uma
profissão, é vendedor ou comprador, namorado ou namorada, marido ou mulher, tio
ou tia, avô ou avó, e por aí vai. E todos estes papéis são exercidos simultaneamente,
envolvendo o seu elenco próprio de prioridades ou bens, prioridades de todo modo em
devir, abertas a novas problematizações e adaptações. E esta abertura nem sempre é
uma abertura para possibilidades definidas, muitas vezes é o confronto com
possibilidades não predefinidas, apenas minimamente circundadas pela demanda por
coerência33. Em sua complexidade, o mundo é dotado de uma opacidade toda própria.
Como saber o que é melhor para nós e para os outros em todas estas
circunstâncias, em cada diferente contexto e a cada novo instante? Se a cada momento
precisássemos tomar uma nova decisão moral explícita, conceitualmente mediada,
como chegaríamos a um resultado? Na verdade, como o fluir do sangue em nossas
veias segue à nossa revelia e, enquanto estamos vivos e saudáveis, corre a nosso favor,
o imenso rio dos costumes forja uma ética espontânea e evolutiva que ao mesmo tempo
nos acolhe e excede. E, bem ou mal, ela funciona, como funcionam os nossos corpos.
A esta segunda natureza, à força viva da racionalidade objetiva inerente aos costumes,
Hegel denominava espírito.
Costumes não são meros fatos, mas problemas e soluções, mesmo que
provisórias, que emergem da teia dinâmica da interação humana. Execute uma ação e
a repita todos os dias, como exercitar o corpo na medida adequada (consistente com
nossa trajetória evolutiva) ou contrair dívida em demasia. Aos poucos, esta ação se
tornará um hábito. Um hábito que, a médio e longo prazo, produz coerência (produz e
Este grau elevado de subdeterminação, incluindo possibilidades não predefinidas (LUFT, 2010, p.
105), é equivalente à noção de “incerteza” em Gigerenzer: “Na linguagem do dia-a-dia fazemos uma
distinção entre ‘certeza’ e ‘risco’, mas os termos ‘risco’ e ‘incerteza’ são, na maioria das vezes, usados
como sinônimos. Não são. Em um mundo de riscos conhecidos, tudo, incluindo as probabilidades, é
conhecido com certeza. Aqui, pensamento estatístico e lógica são suficientes para tomar boas decisões.
Em um mundo incerto, nem tudo é conhecido e não se pode calcular a melhor opção” (GIGERENZER,
2014).
33
Eduardo Luft | 255
sustenta os laços que constituem este agente como um agente) em dado contexto,
como no primeiro caso, o bem-estar físico, é uma virtude própria; pelo contrário, o
afundar-se nas dívidas excessivas decorrente da segunda situação é característico de
um vício próprio. Mas também há vícios e virtudes comuns, como a dívida excessiva
que destrói as nações, e a poupança que as enriquece. As virtudes interpessoais, por
fim, são as ações feitas em prol do bem do outro. Se este outro é alguém distante
afetivamente de nós, e ainda mais se o ato virtuoso é realizado sem a comumente
desejada visibilidade, as virtudes interpessoais são algo tão raro quanto valioso.
A miríade das tradições conhecidas, com todas as suas possíveis estranhezas,
resulta do predomínio de nossas virtudes sobre nossos vícios. Não havendo, todavia,
contrariamente ao que pretendia Hegel com seu apelo à teleologia do incondicionado,
um único modo de resolver incoerências atuais ou potenciais, sendo múltiplos os
modos da coerência possíveis, abre-se à ação humana um imenso campo de
possibilidades alternativas. A história dos costumes dos povos, esta miríade de
tradições, já é, neste sentido, a história da liberdade humana. Mas esta história não é
ainda a história da liberdade pessoal, assim como o proto-direito não vem a ser o
direito propriamente dito.
Ética nômade
A nossa história começa com a ética nômade. Na origem, não éramos apenas
uma espécie, mas uma pluralidade de espécies humanas rivais34. Vivíamos em bandos
pequenos, de no máximo poucas dezenas de pessoas. A emergência da linguagem
abstrata permitirá a metacoordenação de ação de muitas dezenas ou centenas de
pessoas, e fará do sapiens a espécie dominante.
O ethos nômade é não-hierárquico, livre, enquanto ainda não subordinado à
força centralizadora do Estado, vinculante, da perspectiva dos laços intragrupais, e
rivalizador nas relações intergrupais. Vivíamos, e até certo ponto vivemos ainda,
imersos em uma peculiar dinâmica de afetos: simpatia com os próximos, antipatia com
os distantes e potenciais inimigos, sobretudo quando sob a míngua dos escassos
recursos naturais. Uma vida, por um aspecto, idílica, na harmonia com o todo da
natureza, por outro lado terrificante, imersa como era na violenta lógica da predação.
34
Para a evolução humana, cf. Harari (2014) e Diamond (2006).
256 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Mesmo muito tempo depois, o eu nômade ainda verá a si mesmo como o lobo, em
contraste ao frágil cordeiro de seu rival, o eu assentado ou civilizado, e muitas vezes
na história estes egos antagônicos 35 rivalizarão em um mesmo território, como os
Tehuelches e os Mapuches na Patagônia, as tribos nórdicas invadindo a Roma
civilizada, ou os mongóis dominando a China Han.
A vantagem do sapiens significou também o seu maior desafio. O crescimento
populacional garantido pelo sucesso adaptativo expandirá em muito a pressão
exercida pela escassez dos recursos naturais. Das três alternativas 36 à escassez, a
migração, a luta pela conquista de território e a inovação tecnológica pela criação de
um novo modo de organização social, a última prevalecerá com o surgimento da
revolução agrícola, há cerca de 10 mil anos. O uso produtivo dos recursos naturais em
regime de escassez virá com a privatização da terra. A responsabilidade pela geração e
cuidados dos rebentos ficará a cargo da família. O eu nômade dará lugar ao eu
sedentário, assentado.
O Cântico e a Lei
O direito privado à terra nasce com o cântico do patêr na família antiga37. O eu
é um nós, e o nós é a nossa família. O cântico, nomos, é a lei, a representação concreta
da tradição centenária ou milenar de uma família. O poder é até certo ponto paterno,
o pai é o líder da família, mas não se pode esquecer que o patêr não é mais do que um
representante da tradição familiar, não ainda uma pessoa com toda a sua autonomia
própria: o direito de propriedade e, portanto, o poder está na família, não no pai. Na
terra em que a família reside estão enterrados os antepassados. As almas dos mortos
não estão distantes, mas de certo modo vivem aqui junto de nós, embaixo da terra, e
precisam ser homenageadas nos rituais. Esta família está enlaçada, pelos rituais, a seus
antepassados e estende a mão àqueles que a sucederão na trajetória futura. A
propriedade passa de geração em geração, junto com a transmissão da religião. No
cântico estão integrados, indissociáveis, o Direito, a Religião e a Ética.
As famílias unem-se em fratrias, as fratrias em tribos, e as tribos juntarão forças
forjando as cidades. Nascem as aristocracias de sangue, talvez a forma de poder
Para esta complexa dinâmica, cf. Rong (2008).
Sobre esta reconstrução histórica, cf. Hoppe (2015).
37 Sobre este ponto, cf. Coulanges (2009).
35
36
Eduardo Luft | 257
político mais arraigada na história das civilizações (o que não é necessariamente um
elogio).
Da ordem à organização
Aristocracias são caracterizadas por um regime de ordem: as redes de interação
humanas são centralizadas e hierarquizadas. O poder emana de um centro: no caso
das aristocracias de sangue, da família ou das famílias que comandam a sociedade. O
comando vem de cima e se propaga para baixo: os comportamentos dos súditos
reverberam um mesmo modo de agir e pensar, aquele demandado de cima (a
identidade predomina sobre a diferença); os súditos agem assim hoje, e agirão do
mesmo modo amanhã, uma vez permanecendo o mesmo comando (a invariância
predomina sobre a variação); as ações partilhadas por todos sob o mesmo comando se
destacam no tecido social e se cristalizam com uma identidade própria, um certo modo
da coerência, a distinguir esta de outras sociedades atuais ou possíveis (a determinação
predomina sobre a subdeterminação). Em terminologia neoplatônica: em um regime
de ordem, o Uno predomina sobre o Múltiplo, e a sociedade que daí emerge tem as
características típicas de modos da coerência próprios ao quadrante de Parmênides no
espaço lógico evolutivo.
Estas sociedades são tipificadas como sociedades fechadas 38, mas é bom não
esquecer que “fechamento” e “abertura” vêm em graus. Até certo ponto, a transferência
de parte importante do poder da família para o Estado, com a gênese das cidades,
significa uma deflação da lei: o comando é central, a sociedade é hierarquizada, mas a
identidade de comando que emana de cima preserva a diferença introduzida pela
presença das múltiplas famílias. A autonomia da família regente é de certo modo
espelhada na autonomia, mesmo que parcial, das famílias regidas. Este é o vínculo
simbólico que dá certa legitimidade ao poder nas aristocracias de sangue. De todo
modo, a lei que emana de cima (a lei político-estatal) e as múltiplas leis que florescem
por baixo (cada lei que emana de cada família) rivalizam, em um tenso jogo dialético.
Se dentro da família o cântico liderado pelo pai é oniabrangente, no corpo político o
cântico da família regente tem fissuras ou limites. O poder político tem aberturas, a
voz de comando nunca elimina as vozes múltiplas sob comando. Enquanto o poder de
38
Na terminologia de Popper (1966).
258 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
cada família não for neutralizado pelo comando central, enquanto esta multiplicidade
de vozes não for absorvida em um único cântico onipresente, a aristocracia de sangue
ainda não se desfez em autocracia.
A Ágora
Um grau ainda maior de deflação da lei dá-se quando, da fenda que se abre entre
o poder privado que emana de cima (o poder aristocrático regente) e os poderes
privados que brotam de baixo (das múltiplas famílias) emerge a Ágora, o espaço
público. Da exploração deste espaço virá uma nova forma de poder partilhado, o poder
como (auto-)organização, não como ordem. No âmbito do espaço lógico evolutivo, ir
da ordem à organização significa sair do quadrante de Parmênides em direção aos
quadrantes de Leibniz, deixar para trás o predomínio do Uno sobre o Múltiplo em
direção a uma relação mais equilibrada entre ambos. Ou, dito de outra forma, iniciar
processos de descentralização do poder.
Pela Ágora circularão os Sofistas e, seguindo os seus passos, Sócrates, a figura
arquetípica da vida reflexiva. De todo modo, da ambigüidade de Sócrates, com os pés
na Ágora e a cabeça até certo ponto em Esparta39, nascerão as tensões do pensamento
platônico, que de um lado faz coroar a liberdade humana na letra mesma de sua escrita,
a forma literária do diálogo, mas, por outro lado, desenvolve um projeto político que,
se pensarmos nas liberdades pessoais, regride da democracia não à aristocracia de
sangue, mas à forma ainda mais centralizada e autoritária da aristocracia de sábios por
ele pensada, ao dissolver o poder diverso das múltiplas famílias na unidade do poder
estatal40.
A lei efetiva
Da livre-interação entre agentes sociais na Ágora emerge o diálogo, e do poder
crítico-reflexivo do diálogo emergem as pessoas em seu emaranhado. Em nossa
reconstrução crítica da história da liberdade, a lei primeira do Direito propriamente
dito só se efetiva, de todo modo, muito depois, com a abolição da escravidão 41 ,
Sobre este ponto, cf. Stone (1989).
Cf. sobretudo o livro VIII da República (PLATON, SW, v.V).
41 A sociedade grega, como sabemos, era massivamente permeada pela escravidão.
39
40
Eduardo Luft | 259
enquanto a segunda lei do Direito, o direito de propriedade pessoal, dependerá da
superação da ética antiga, centrada ainda, como vimos, no direito de propriedade
familial. O poder depois descerá até as pessoas, agora concebidas, em mútuo
reconhecimento, como sujeitos políticos (liberdade política) e econômicos (liberdade
econômica).
A emergência das pessoas ao mesmo tempo perturba e enriquece nossa relação
com as tradições. As soluções provisórias que resultam do processo espontâneo de
tentativa e erro de milhares, milhões de ações e interações no decorrer de uma certa
trajetória evolutiva forjam os costumes. Mas estes não são imutáveis, nem
sacrossantos, podendo e mesmo devendo (por razões adaptativas) ser criticados e
aprimorados.
A presença da reflexão não abole a força espontânea dos costumes, nem a
presença massiva dos costumes impede ou cancela a força da reflexão. Os costumes
ainda vigentes desoneram o que seria uma carga excessiva lançada sobre a frágil teia
do discurso reflexivo (sobretudo se está à procura do improvável consenso
habermasiano42). A presença da dinâmica discursiva, radicalizada e aprofundada pelo
giro inerente à emergência da pessoa, revitaliza uma tradição que pode se ver à beira
da morte.
O bem político
A liberdade pessoal dependeu e depende de condições muito restritas para seu
aparecimento e consolidação. Uma filosofia do direito tem por tarefa central a
reconstrução crítica de nossas tradições 43, à procura das instituições que tornaram
possível a emergência daquelas formas de vida em comum que fizeram emergir o bem
político, a efetivação da autonomia recíproca: quando dois ou mais movimentos que
se abrem aos múltiplos modos possíveis da coerência consigo mesmo florescem
(liberdades pessoais) e promovem a coerência na rede de interações que os sustenta
(sociedades livres).
Sociedades livres são aquelas que reforçam os laços sociais ao mesmo tempo em
que fazem florescer as individualidades, permitindo o crescimento diretamente
42
43
Para a ética do discurso, cf. Habermas (1996).
Cf. Luft/Pizzatto (2018, p.561ss).
260 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
proporcional de sociabilidade e individualidade. Elas aparecem quando a exploração
dos quadrantes de Leibniz, via o processo de descentralização política e econômica,
mostra-se viável e engendra instituições garantidoras da liberdade. Uma vez
descobertas e explicitadas estas instituições, é preciso reforçá-las ou aprimorá-las na
direção da realização do bem político.
A um modelo possível
44
de sociedade livre corresponde uma Teoria
Deflacionária do Direito 45 , em que a lei universal 46 é concebida como a condição
mínima, não máxima para a efetivação das liberdades, dando proteção e salvaguarda
para a normatização subsequente que brota de comunidades autônomas e pessoas
livres. A deflação do Direito decorre do reconhecimento de que a esfera de abrangência
da lei é restrita, um pequeno segmento da vasta esfera da ética, como vimos no
tratamento do processo de interiorização da lei. A diferença crucial entre Ética e
Direito é que apenas no segundo caso aceitamos o uso da força para realização de um
certo bem, o maior dos bens, a liberdade. O recurso ao Direito é incontornável, mas
sempre tem sua gravidade. O apelo à lei deve, portanto, ser ponderado e a esfera de
sua aplicação deve sempre manter-se restrita, longe da banalização generalizada vista
no mundo contemporâneo, quando a pseudo-legitimidade democrática de formas de
governança altamente centralizadas desfaz a lei na legislação 47.
A lei efetiva é a política justa. Convém lembrar, de todo modo, que produzir e
sustentar as formas mais elevadas do bem político têm seus custos, e não é, nunca foi
tarefa fácil. O bom pode estar razoavelmente disseminado no mundo, e é até certo
ponto algo comum. O melhor é raro.
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Amparado na reconstrução crítica da história das instituições favoráveis à liberdade.
Trata-se de uma contrapartida da ontologia dialética deflacionária (LUFT, 2010) resultante da crítica
interna ao sistema de Hegel. O desenvolvimento desta Teoria Deflacionária do Direito fica para um
projeto futuro. Cf. tb. LUFT/PIZZATTO (2018, p.564ss).
46 Ou as duas leis primeiras do Direito já mencionadas, o direito à autopropriedade e o direito
(consentido) de propriedade.
47 Sobre esta deterioração, cf. LEONI (1972).
44
45
Eduardo Luft | 261
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14. A VIDA QUE RESTA E O CAMPO: ACERCA DA
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DIANTE DA POTÊNCIA DA IMAGEM1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-14
Para Nythamar de Oliveira
Evandro Pontel2
A reflexão visa investigar o problema da impossibilidade da dizibilidade e do
testemunho sobre a Shoah em Giorgio Agamben e a contraposição proposta por
Georges Didi-Huberman. Para isso, busca-se situar como o campo opera enquanto um
dispositivo de governamentalidade que inclui a vida por meio do direito, pelo uso da
exceção firmada como norma, que coloca a vida e o direito em uma íntima
relacionalidade. No campo de concentração emerge uma zona de indistinção entre fato
e direito, entre interno e externo, entre exceção e regra, entre lícito e ilícito, o que
expressa à brutalidade desse modelo de racionalidade totalizante. Entretanto, se para
Agamben resta à impossibilidade do testemunho e da dizibilidade dos acontecimentos
ocorridos, pois as vítimas que poderiam fazê-lo, tocaram o fundo e não retornaram, na
posição de Didi-Huberman, a imagem ocupa um papel central na produção da
dizibilidade e do testemunho. Para isso, desloca-se à primazia da linguagem expressa
por meio dos atos de fala, para a potencialidade das imagens. Assim, a partir da
posição hubermiana compreendemos ser possível defender que, por meio das
imagens, depreende-se, apesar de tudo, o dever de fazer memória, de imaginar, apesar
dos horrores, apesar das atrocidades, e daquilo que elas testemunham e interpelam.
Portanto, precisamos encarar as imagens, embora talvez o ato de pensar seja expressão
O presente estudo, em sua parte inicial, resulta da pesquisa realizada durante o Doutorado em
Filosofia, desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Phil. Ricardo Timm de Souza, intitulada: “Estado
de exceção permanente: a condição humana e a política no ocidente entre a vida (nua) e o (bio)poder
no pensamento de Giorgio Agamben”, com financiamento do CNPq, a quem registramos o
agradecimento pela orientação e pela sugestão bibliográfica, especialmente, no que concerne aos
escritos de Georges Didi-Huberman.
2 Doutor em Filosofia – PUCRS, Professor colaborador e Editor Assistente na Revista Veritas - Escola
de Humanidades. Programa de Pós-Graduação em Filosofia – Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul PUCRS. Bolsista PNPD/CAPES. E-mail: epontel@hotmail.com
1
264 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
e sinônimo de pesar e, apesar de toda dificuldade, em contraposição à barbárie impedir
a tentativa de apagar os próprios vestígios e arquivos que atestariam a devastação do
povo judeu que, em última instância, aniquilou, por conseguinte, a imagem humana.
1 A vida que resta e a (in)dizibilidade do testemunho
Auschwitz é exatamente o lugar em que o estado de exceção coincide, de maneira
perfeita com a regra. A situação extrema converte-se no próprio paradigma do
cotidiano (AGAMBEN, 2008, p. 57)3
Vivemos em uma época demarcada por uma massiva saturação e
espetacularização de imagens que atestam as mais diversificadas formas de violências
estatuídas e instituídas no panorama social. Certamente tais acontecimentos presentes
no cenário atual jamais poderiam ser proporcionalmente equiparados ao ocorrido no
século XX, especialmente a Shoah, que ainda requer ser entendidos em sua
significação e alcance para os tempos que correm. – pois vivemos em uma época em
que as mais diversificadas formas de barbáries e violências campeiam no interior de
cada panorama social, as quais seguem em plena ascensão no século XXI, marco
delineador da geopolítica em âmbito mundial. Diante dos desses eventos enunciados
que ocorerram no século XX, cabe posisiconar algumas indagações, quais sejam: É
possível representar a dor e o sofrimento vivido pelos prisioneiros dos campos? É
possível testemunhar o sofrimento? Diante do aniquilamento das vítimas da Shoah,
no qual as testemunhas pereceram, , é possível depreender das imagens um status de
testemunho da barbárie? Será que a tradição ocidental não está demarcada pelo
primado da fala e da voz em detrimento da imagem? e, por fim, qual o estatuto, o
papel e a importância da imagem na possibilidade de testemunhar?
Essas questões colocam o problema sobre o qual intentaremos focar na presente
exposição, embora cientes de sua complexidade, amplitude e, por conseguinte, da real
irresolutividade presente em qualquer que seja, por mais bem sucedida que possa ser,
qualquer tentativa de responder à altura a profundidade e o alcance do proposto, haja
vista que o que está em questão, em última instância é a vida que tocou o fundo, é a
negação da própria imagem do humano e como esta foi e é produzida, gerida e tratada
pelos agentes que deveriam ser, por excelência, os garantidores de seus direitos: os
3
[Grifo nosso].
Evandro Pontel | 265
Estados ocidentais4, que não raras vezes agem sob o manto da promoção de direitos e
por meio de discursividades pautadas em princípios democráticos, mas que agem
politicamente sob a lógica de suspensão e de um instinto tanatopolítico que
paradoxalmente afirma ter como tarefa a garantia a vida que, porém, produz barbáries
e aniquila vidas, vidas dos indesejáveis (Cf. MBEMBE, 2017).
Embora seja inegável a opacidade das barbáries perpetradas pela lógica da
máquina biopolítica de definição do humano operacionalizado de modo emblemático
no século XX, fruto de uma lógica totalizante como resultado acabado da racionalidade
ocidental5, continuamos a presenciar o pleno crescimento da violência biopolítica que
se apresenta de formas multidimensionais em cada horizonte conjuntural no
paradigma biopolítico na contemporaneidade, o campo – localização deslocante – que
excede e rompe com qualquer forma de limite circunscrito em algum espaço geográfico
situável, se constitui na matriz oculta da política dos tempos presentes, o paradigma
de governamentalidade do Ocidente que configura-se como o novo nomos do planeta.
Vejamos:
O mundo contemporâneo, em seu veio principal e por exigência inelutável do
tardo-tecno-capitalismo, é de facto uma imensa e infernal máquina, ou
maquinismo, de transformação contínua de qualidades, singularidades, em
quantidades, generalidades [...] Mas desde o século XX, e ainda mais nas
intempéries desse início de século e milênio no qual habitamos, o real debate-se
exatamente nesta contradição: o “está consumado” – “consumado” que não
significa, ao fundo, senão a violentação do passado e do futuro no presente
totalizante –, sua impessoalidade escatológica, deixa por trás de si um volume
imenso de restos, traços, espectros, espessuras, sonhos vivos, não aceitos, não
relacionados, não resolvidos. O maciço de ruínas benjaminianas continua seu
crescimento aparentemente inelutável. E, em meio a esses fatos, as hipócritas
promessas de felicidade, esses espíritos vagantes, insuflam-se sempre novamente
de aceitabilidade no mundo de escolhas muito escassas (SOUZA, 2014, p. 70;72).6
Frente aos espectros que assombram o presente, com seus restos e rastros, os
campos de concentração foram a expressão máxima de um modelo de racionalidade
totalizante que teve sua mais acabada efetividade em Auschwitz, em que a violência
biopolítica inerente ao estado de exceção se deu com máxima profundidade ao
desqualificar o ser humano, ao transformá-lo em vida nua, vida matável e sacrificável7.
Neles se dá a máxima da perda da condição humana, a humilhação da vida levada a
Ver: (DERRIDA, 2005).
Ver: (SOUZA, 2010); (BAUMAN, 2008).
6 [Grifo do autor].
7 Conferir: (BAUMAN, 1998); (MATE, 2005).
4
5
266 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
limites extremos, a negação da vida em sua radicalidade, passível de descartabilidade.
Nessa perspectiva, por meio de dispositivos jurídicos de suspensão da ordem, “O
estado de exceção cessa, assim, de ser referido a uma situação externa e provisória
de perigo factício e tende a confundir-se com a própria norma” (AGAMBEN, 2010, p.
164)8, tornando-se regra permanente. Essa suspensão do ordenamento frente a uma
situação de eminente perigo passa a figurar em caráter de permanência, situação
paradoxal, posto que esse caráter de zona de anomia configura um fora do
ordenamento formal.
O campo de concentração compreende um estatuto paradoxal porque incorpora
em si um estar fora do ordenamento jurídico por meio da exceção, isto é, “O campo é
o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se a regra”
(AGAMBEN, 2010, p. 164)9. Frente a essa configuração, por meio da decisão soberana,
sucessivamente, emerge uma zona de indistinção entre fato e direito, entre interno e
externo, entre exceção e regra, lícito e ilícito, em uma localização deslocante, pois a
própria compreensão daquilo que poder-se-ia entender por direito e proteção jurídica
apresentam sua perda de referencialidade e sentido, conforme podemos acompanhar:
“Antes de ser o campo da morte Auschwitz é o lugar de um experimento ainda
impensado, no qual, para além da vida e da morte, o judeu se transforma em
muçulmano, e o homem em não-homem” (AGAMBEN, 2008, p. 60). Emmanuel Taub
pontua que:
[...] nos campos de concentração existia uma ordem que excluía sua condição de
homens-políticos, aqueles que ali foram levados. Os que estavam a cargo dos
campos tomaram para si a violência soberana porque nesse contexto o poder
soberano fixa o momento em que a vida deixa de ser politicamente relevante. É o
momento biopolítico da modernidade por excelência [...] se o Führer é a lei, e se
dirige diretamente a eles, eles são os portadores políticos da lei-vivente: cada
homem era como um deus soberano, e como tal, podia decidir sobre o outro sem
responder a ninguém [...] Na realidade essa indeterminação acaba radicalizando a
situação normativa (não suspendê-la), e é por isso que não há comportamento fora
daquilo que o Führer ordena (TAUB, 2008, p. 60).10
8[Grifo
do autor].
[Grifo do autor]. Nessa perspectiva, Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz aforma: “Auschwitz só foi
possível porque houve um estrito cumprimento do dever de uma longa cadeia de funcionários que,
independentemente de sua opinião pessoal, aceitaram cumprir o “dever de ofício” como prática inerente
a sua função. Este é o ponto crítico que nos interessa destacar da falência ética desta barbárie e perceber
nele as possibilidades de uma espécie de eterno retorno desta falência ética” (RUIZ, 2016, p. 215).
10 “[...] en los campos existia un orden que excluía su condición de hombres-políticos aquellos que allí
fueron llevados. Los que estaban a cargo de los campos tomaron para sí la violencia soberana porque
en este contexto el poder soberano fija el momento en que la vida deja de ser políticamente relevante.
Es el momento biopolítico de modernidad por excelencia. […] si el Führer es la ley, y se dirije
9
Evandro Pontel | 267
Em O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha, a exposição gira em
torno da vida, da vida nua, do não-homem, vida exposta em seu caráter extremo nos
campos de extermínio nazistas, dentre os quais Auschwitz é, nesse sentido, o
paradigma da máxima aniquilação e da condição inumana presente na história,
produção de cadáveres, em que a referência maior pode ser considerada Primo Levi. A
referida obra causou não pequenas ou poucas controvérsias, uma série de críticas e
acusações 11 , sobretudo pelo fato de o pensador italiano ter tomado como foco da
análise a estrutura do testemunho. Entretanto, cabe ressaltar que a obra não visa uma
abordagem histórica do extermínio, que possa tratar do evento em sua opacidade, nem
trata do testemunho dos sobreviventes, mas caracteriza-se como uma espécie de
comentário perpétuo sobre o testemunho. Nessa perspectiva, adverte que aquilo que
emerge constitui uma situação paradoxal, pois o testemunho “[...] continha como sua
parte essencial uma lacuna, ou seja, os sobreviventes davam testemunho de algo que
não podia ser testemunhado, comentar seu testemunho significou necessariamente
interrrogar essa lacuna, ou mais ainda, tentar escutá-la” (AGAMBEN, 2008, p. 21).
Ao iniciar a obra o pensador italiano se ocupa da questão da testemunha, a vida
que resta, o muçulmano [o morto-vivo, o não-homem, sem história, sem rosto e
força; pois perambulava pelo campo sem vida, magro ao extremo e de ombros
curvos] que carrega que em si a inscrição de sobrevivente do extermínio, o
(in)testemunhável. Em vista de tematizar a testemunha, são destacados dois termos
provenientes do latim que elucidam tal estrutura testemunhal, quais sejam: testis e
supertes. O primeiro, “[...] testis, de que deriva o nosso termo testemunha, significa
etimologicamente aquele que se põe como terceiro (terstis), em um processo ou um
litígio entre dois contendores. O segundo, superstes, indica aquele que viveu algo, [...]
[e] pode dar testemunho disso” (AGAMBEN, 2008, p. 27). Assim, o superstes expressa
sua vivência não em nome de outro, mas fala com base naquilo que experimentou,
directamente a ellos, ellos son los portadores políticos de la ley-viviente: cada hombre era como un dios
soberano, y como tal, podía decidir sobre el otro sin responder a nadie […] En realidad esta
indeterminación acaba por radicalizar la situación normativa (no suspenderla), y es por ello que no hay
comportamiento por fuera de lo que el Führer ordena” [Grifos do autor] [Tradução nossa].
11 Nessa direção Carlo Salzani observa: “Quel che resta di Auschwitz è anche l’opera di Agamben che è
stata più aspramente e violentemente criticata – le accuse vanno dall’opportunismo, all’apocalittismo,
all’estetizzazione della sofferenza, all’inadeguatezza del paradigma scelto [...]” (SALZANI, 2013, p. 114);
Leland de la Durantaye aponta que no desenvolvimento do tema da vida nua em sua condição extrema,
a tematização do pensador italiano é singular: o percurso que o pensador italiano escolhe por meio de
uma análise da ‘estrutura do testemunho’, como se esse fosse o verdadeiro dilema, que pode ser
ilustrado na seguinte indagação: Como poder dar testemunho a vida nua? (Cf. DURANTEYE, 2009, p.
247-249).
268 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
experiência de si. Isto é, não pode intermediar e figurar como “terceiro”, entre outras
duas partes, pois se apresenta em primeira pessoa.
Partindo dessa distinção, emerge uma situação paradoxal, posto que o superstes
tendo vivenciado diretamente o acontecimento, enquanto sobrevivente, seu
testemunho do ponto de vista jurídico é questionável tendo em conta que lhe falta a
distância necessária dos fatos e, por conseguinte, não consegue explicitar com a exigida
e devida objetividade necessária. Isto é, contrariamente ao testis que pode ser um
testemunho neutro, sua posição testemunhal é considerada parcialmente acerca
daquilo que se relata, pois expressa o experienciado de si mesmo. Logo, o testemunho
contém uma lacuna, pois compreende em sua centralidade “[...] algo intestemunhável,
que destitui a autoridade dos sobreviventes. As “verdadeiras testemunhas, as
“testemunhas integrais” são as que não testemunharam, nem teriam podido fazê-lo.
São os que “tocaram o fundo”, os muçulmanos, os submersos” (AGAMBEN, 2008, p.
43).
Assim, o intestemunhável, o muçulmano12, prisioneiro do campo, abandonado
sem qualquer esperança, um cadáver ambulante, vida agonizante e reduzida à suas
funções vitais, que assume a condição de resto carrega em si uma posição de falar a
impossibilidade da fala, pois quem pereceu não pode testemunhar, emitir uma
qualquer ordem de narratividade. Esses que tocaram o fundo são assim descritos por
Primo Levi:
A história – ou melhor, a não-história – de todos os “muçulmanos” que vão para o
gás é sempre a mesma: simplesmente, acompanharam a descida até o fim, como
os arroios que vão até o mar. Uma vez dentro do campo, ou por causa de sua
intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles
foram esmagados antes de conseguir adaptar-se; ficaram para trás, nem
começaram a aprender o alemão e perceber alguma coisa no emaranhado infernal
de leis e proibições, a não ser quando seu corpo já desmoronara e nada mais
poderia salvá-los da seleção ou da morte por esgotamento. A sua vida é curta, mas
seu número é imenso; são eles, os “muçulmanos”, os submersos, são eles a força
do campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos nãohomens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha
divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamáNesse sentido, afirma Giorgio Agamben: “Isso significa que o testemunho é o encontro entre duas
impossibilidades de testemunhar, que a língua, para testemunhar, deve ceder o lugar a uma não língua,
mostrar a impossibilidade de testemunhar. A língua do testemunho é uma língua que não significa mais,
mas que, nesse seu ato de não significar, avança no sem língua até recolher outra insignificância, a da
testemunha integral, de quem, por definição, não pode testemunhar” (AGAMBEN, 2008, p. 48). Nesse
sentido, a narratividade, a língua não dá conta de expressar os brutais sofrimentos perpetrados contra
a vítima, e o vivenciado se constitui em experiências indizíveis, que não cabem na língua como
expressividade do vivido.
12
Evandro Pontel | 269
los vivos; hesita-se em chamar “morte” à sua morte, que eles já nem temem, porque
estão esgotados demais para poder compreendê-la. Eles povoam minha memória
com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal
do nosso tempo escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento,
cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o
menor pensamento (LEVI, 1998, p. 131-132).13
Esse lugar em que se produziu o não-homem, reduzido a mera vida nua – meros
cadáveres – cuja expressão paradoxal indica a (im)possibilidade de morrer, pois a vida
se torna objeto capturado, pensado, projetado em uma situação de mera
descartabilidade, em que o homem passou a ser parte de uma engrenagem, objeto no
interior de uma maquinaria infernal de produção de cadáveres14, uma produção em
série, sob a lógica de uma racionalidade instrumental totalizante, indica que o
humano passou a viver em uma condição de degradação da morte. Em Os afogados e
os sobreviventes é ilustrada a ímpar situação da vida, sua máxima exposição:
Cercado pela morte, muitas vezes o deportado não era capaz de avaliar a extensão
do massacre que se desenrolava sob seus olhos. O companheiro que hoje tinha
trabalhado do seu lado amanhã sumia: podia estar na barraca próxima ou ter sido
varrido do mundo; não havia jeito de saber. Em suma, sentia-se dominado por um
enorme edifício de violência e de ameaça, mas não podia daí construir uma
representação porque seus olhos estavam presos ao solo pela carência de todos os
minutos [...] Numa distância de anos, hoje, se pode bem afirmar que a história dos
Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não
tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação
ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão (LEVI, 2016, p. 12).
Nessa situação paradoxal de exposição da vida, o exercício de narratividade, a
tentativa daqueles que sobreviveram a essa aterrorizante experiência, em
testemunhar, o fazem sabendo que devem fazê-lo pela impossibilidade do ato mesmo
de testemunhar, pois precisam atestar acerca daquilo que lhe falta:
Aquele que testemunha a violência, testemunha sempre parcialmente porque as
verdadeiras testemunhas, que deveriam narrar o horror pleno, não podem mais
falar. As verdadeiras testemunhas são as que morreram vítimas da violência, elas
experimentaram até o limite o horror da barbárie. Mas como testemunhar o
Uma leitura esclarecedora que situa particularmente a questão da vida que resta em Primo Levi pode
ser conferida em: SANTOS, 2012, p. 292-314.
14 “Em todo caso, e expressão “fabricação de cadáveres” implica que aqui já não se possa propriamente
falar de morte, que não era morte aquela dos campos, mas algo infinitamente mais ultrajante que a
morte. Em Auschwitz não se morria: se produzia cadáveres. Cadáveres sem morte, não homens cujo
falecimento foi rebaixado à produção em série. É precisamente a degradação da morte que constituiria,
segundo uma possível e difundida interpretação, a ofensa específica de Auschwitz, o nome próprio de
seu horror” (AGAMBEN, 2008, p. 78).
13
270 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
intestemunhável? Os sobreviventes narram no seu testemunho o testemunho
daqueles que não mais conseguem dizer o indizível da barbárie total [...] Ao
testemunharem, seu testemunho sempre haverá de remeter àqueles que não
podem testemunhar porque desapareceram. O indizível daqueles que
desapareceram é a lacuna que resta no testemunho dos sobreviventes (RUIZ, 2015,
p. 107).
Embora os relatos e os testemunhos que nos legaram aqueles que suportaram
tais experiências, os sobreviventes [do qual Primo Levi pode ser considerado, por
excelência como testemunho] superstes, em que toda forma de testemunho, do ponto
de vista do estabelecimento de um processo, seria inconsistente, pois não seria
suficientemente neutro para tal, pois não se estabelece como um testis. Por outro lado,
persiste um aspecto de suma importância no testemunho do superstes, pois a
narratividade que emana de seu testemunho está como algo além de toda e qualquer
forma de enquadramento em um processo jurídico, de tal forma que o vivido, o
experimentado não se esgota. Essa condição de sobrevivente, de superstes, indica que:
“Há uma consistência não jurídica da verdade, na qual a quaestio facti nunca poderá
ser reduzida à quaestio iuris” (AGAMBEN, 2008, p. 27). Ou seja, o sobrevivente por
ter sido vítima [superstes], em sua narratividade possibilita, por meio da memória de
determinado acontecimento violento, rememorar um acontecimento no qual se torna
possível contrastar com a violência sofrida.
2 Imagens, apesar de tudo – por uma memória visual da violência
biopolítica
Seguindo os rastros de Aby Warburg e de Walter Benjamin, Didi-Huberman
explicita a necessidade de que a história seja uma disciplina autônoma, mas que se
deixe atravessar noutras/por outras disciplinas. Nessa perspectiva, a partir de uma
releitura da historiografia acerca da arte, elabora uma redefinição e uma reformulação
do discurso sobre a História a partir da importância das imagens, colocando em
questão o próprio estatuto outorgado à história da arte, com sua pretensa
cientificidade. Isto é, indaga acerca do estatuto mesmo da filosofia da arte, como fica
evidenciado: “que obscuras ou triunfantes razões, que angústias mortais ou que
exaltações maníacas puderam levar a história da arte a adotar esse tom, essa retórica
da certeza? (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 11). Portanto, partamos, apesar de tudo, das
imagens, dessas quatro imagens, as imagens daquilo que restou da Shoah, que ainda
Evandro Pontel | 271
coloca-nos a tarefa ética de repensar o estatuto próprio da linguagem, da
(in)dizibilidade e do próprio testemunho diante dos horrores e barbáries. É nessa
direção que buscamos apresentar um pensamento que é capaz de romper com
determinadas formas estanques de estabelecer padrões limitadores daquilo que poderse-ia dizer, da construção de uma ética da imagem a partir da potência da imagem em
contraposição ao indizível, ao não testemunhável enquanto condição de possibilidade
de estabelecer um patamar de um posicionamento ético em torno à memória, a partir
das imagens, mas memória enquanto antídoto à barbárie15.
Imagem 116
Fonte
Imagem 217
Fonte
Ver: (MATE, 2005).
Imagem fotográfica feita por um membro do Sonderkommando, em Auschwitz, judeu grego
conhecido como Alex. Corpos sendo cremados após passarem pelas câmeras de gas, cremados ao ar
livre, próximo ao Crematório V de Auschwitz, datada de agosto de 1944, Museu de Estado AuschwitzBirkenau (negativos nº 277)
17 Idem, (negativos -278).
15
16
272 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Imagem 318
Fonte
Imagem 419
Fonte
Diante dessa situação paradoxal acerca da (in)dizibilidade do testemunho,
Georges Didi-Huberman sinaliza para uma leitura crítica acerca da forma como
procedemos com aquilo que se apresenta no plano real. É na possibilidade de reler a
cultura humana e suas manifestações que podemos compreender o labor filosófico
desse pensador que vem desenvolvendo uma robusta reflexão acerca da importância
das imagens – uma arqueologia das imagens 20 – na construção de uma releitura
crítica da contemporaneidade. A partir de uma matriz de pensamento que tem como
pilares centrais Aby Warburg e Walter Benjamin, o filósofo francês e historiador da
arte, filho de pintor de quem herdaria o gosto pelas artes, nascido em 1953, SaintÉtienne – França, ocupa um lugar de destaque, sobretudo por proporcionar por meio
de sua teorização, a possibilidade de se compreender a condição humana e a
estruturação das sociedades no tempo presente. Fruto desse intenso e profícuo labor
reflexivo e de produção de obras que vem sendo publicadas e traduzidas para diversos
idiomas, no ano de 2015 recebe o Prêmio Adorno, pela sua destacada produção
filosófica e pela sua profunda contribuição para diversas áreas dos saberes.
Imagem fotográfica feita por um membro do Sonderkommando, em Auschwitz, judeu grego
conhecido como Alex. (negativo nº 282)
19 Imagem fotográfica feita por um membro do Sonderkommando, em Auschwitz, judeu grego
conhecido como Alex. Retrata mulheres sendo encurraladas em direção à câmara de gás – Crematório
V de Auschwitz, agosto de 1944. Museu de Estado de Auschwitz-Birkenau (negativo nº 282)
20 Ver: (DIDI-HUBERMAN, 2013).
18
Evandro Pontel | 273
Essa indagação que recoloca a necessidade primigênia e imperativa de se refletir
sobre o status da arte e seu processo de constituição, bem como da ciência da arte
enquanto saber, reposicionar uma questão magna que consiste precisamente em
averiguar a partir de que registro e de que mapa conceitual se opera a análise acerca
dos arquivos e dos elementos da cultura produzidos no interior das sociedades. É
nessa esteira que, rompendo com uma visão positivista e evolucionista calcada sob um
viés teleológico, seguindo o legado benjaminiano, que o pensador francês propõe reler
a história a contrapelo, (re)criá-la a partir de dos detritos, das ruínas, dos cacos e dos
estilhaços, diante daquilo que se apresenta como estatuído, uma espécie de
arqueologia das imagens, a partir de seu caráter fenomenológico. Vejamos em suas
palavras:
Eu comecei como historiador da arte, ou seja, como um apaixonado pela beleza. E
um dia me dei conta de que toda análise de uma imagem tem uma dimensão
política, e toda imagem tem uma dimensão política. Então, tentei ser mais preciso,
porque a dimensão artística sempre está em dialética com algo mais temível, mais
perigoso (DIDI-HUBERMAN, 2017, s.p.).
A partir da passagem supramencionada evidencia-se a importância que as
imagens passam a ter na estruturação de seu pensamento, pois ao mesmo tempo em
que convocam, evocam, elas também interpelam (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2018),
colocam-nos diante de uma exigência inadiável, embora por vezes inenarrável diante
dos acontecimentos que manifestam a violência biopolítica impregnada no campo
social. Ou seja, implica em uma responsabilidade tal que não é possível ignorá-las ou
mesmo tentar estabelecer qualquer forma de atitude de menosprezo, ou mesmo de
descaso. Assim, as imagens carregam em si a potência de produzir a reflexividade, de
proporcionar o acesso a opacidade do estatuído no plano do real, em romper lógicas
de suspensão, políticas de exceção, em que a vida é meramente meio no interior de
uma máquina que vive de sangue humano, da produção e da comunicação da morte
(biotanatopolítica)21.
Esse fator agrega um elemento fundamental ao plano linguístico, pois
possibilita repensar a própria narratividade e a possível descrição de determinados
acontecimentos, em abrir fendas que propiciem a elaboração do passado, em fazer
memória daquilo que ficou soterrado, que foi relegado ao esquecimento, ou que não
chegou a ser, por meio da imagem, da imaginação, do dever de imaginar que possibilita
21
Ver: (MBEMBE 2017; MBEMBE, 2018).
274 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
elaborar o que pode ter acontecido, apesar de tudo, das dificuldades, do horror, do
sofrimento, elementos que colocam a tarefa ética de não desviar o olhar da imagem.
Portanto, reler a história implica, necessariamente, propor a tarefa de produzir
uma historiografia marginal, atenta, por conseguinte, aos rastros, restos e vestígios,
aos cacos evidenciados na textura do real, aos estilhaços que, comumente são deixados
de lado, pois a historicidade é demarcada por uma leitura historicista/positivista que
perpetua um continuum de progresso em que aquilo que se perdeu acaba por ser visto
como irrelevante, desprezível e, sucessivamente, que são elementos centrais para se
construir uma narratividade capaz de reconstruir e rememorar a história e os
acontecimentos que de fato atravessam o processo evolutivo da humanidade.
Diante desse panorama complexo e amplo, naquilo que rodeia e determina a
condição humana nos tempos presentes, buscaremos nos debruçar e compreender de
que forma e, em que medida, as imagens podem sinalizar para a potencialidade do
pensamento, e como podem indicar para a resistência, palavra cara para o contexto
vigente em escala planetária, diante de tempos ásperos, hostis,violentos e prenhes de
uma fenomenologia das imagens sumamente demarcada por um caráter que, em sua
imanência, atestam a barbárie presente no seio dessas sociedades, imagens que
denunciam as lógicas idolatrícas totalizantes 22 que fundam e refundam a todo
instante os processos de governamentalização da vida por meio de seus dispositivos,
instrumentos e mecanismos de gestão das vidas, em que governamentalidade
materializa-se como mera técnica de administração das vidas, em que cada vez mais
governamentalização coincide e se torna sinônimo de excepcionalidade.
A obra Imagens, apesar de tudo: memória visual do holocausto (2004) que
tomamos como base para a presente exposição emerge a partir da preocupação de
indagar acerca da natureza da imagem, tendo em vista estabelecer em que pode
consistir
o
limite
entre
o
dizível/indizível,
imaginável/inimaginável,
representável/irrepresentável diante das quatro imagens, desses registros fotográficos
que foram, apesar de tudo, arrancadas daquele inferno que era Auschwitz23 no agosto
Ver: (SOUZA, 2020a)
Essas quatro imagens fazem parte do arquivo do Museu de Estado Auschwitz-Birkenau, pode ser
acessadas em: (MELLID, 2019). De acordo com Isabel Ferrer (2019) essas imagens do campo de
concentração de Auschwitz-Birkenau, mostram os prisioneiros a caminho da câmara de gás.
Recentemente se estabeleceu uma polêmica, pois essas imagens que atestam como se dava a queima de
cadáveres, foram cobertas pelo Museu do Holocausto de Amsterdã. Faziam parte de uma exposição
dedicada à perseguição dos judeus holandeses entre 1940-1945, que pode ser vista na instituição até 6
22
23
Evandro Pontel | 275
de 1944, quando o campo havia se efetivado e se convertido em espaço de
aniquilamento de almas humanas. É diante desse problema, diante dessas imagens, de
seu significado e seu caráter fenomenológico que o pensador francês desenvolve sua
(ex)posição filosófica que contrapunha alguns posicionamentos que advogam em favor
do inimaginável, do instestemunhável, e do irrepresentável diante das atrocidades
cometidas, da calamidade perpetrada contra o povo judeu.
Essas imagens indicam para a hipótese da reconstrução do testemunho, até
então feito pela palavra, em detrimento da imagem. Essas quatro imagens foram
realizadas por prisioneiros de Auschwitz em situação extrema – pondo em risco suas
vidas [situação-limite], de tal forma que podem ser compreendidas como testemunhos
visuais - o que restou, contraponto à ideia de que o testemunho para ter condição de
validade, precisa ser fundado na palavra, de que a imagem seria um falso-semelhante,
uma mera ilusão. É nesse panorama que precisamos situar essas quatro imagens,
enquanto pedaços de filme, arrancadas do inferno. Delas emerge a exigência proposta
como um imperativo:
Para saber é necessário imaginar. Devemos tentar imaginar o que foi o inferno
de Auschwitz no verão de 1944. Não invoquemos o inimaginável. Não nos
safemos até o fim, por dizer que nós não podemos, nós não poderemos, de
qualquer maneira – pois é verdade –, imaginar isso. Mas, esse imaginável muito
pesado, nós devemos” [...] E devemos como uma dívida contraída com as palavras
e com as imagens que alguns prisioneiros fotografaram para nós no real assustador
da sua experiência. Portanto, não invoquemos o inimaginável (DIDIHUBERMAN, 2004, p. 17).24
Essas imagens expressam o inferno de Auschwitz, uma situação paradoxal, pois
o campo define um estatuto paradoxal porque incorpora em si um estar fora do
ordenamento jurídico por meio da exceção e se configura como localização deslocante,
que produz uma zona de indistinção. É diante dessa configuração que se coloca a
exigência de se levar em conta essas imagens, pois encerram em si uma série de riscos
e a própria resistência dos prisioneiros que buscavam alternativas para que se pudesse
atestar as atrocidades que ocorriam no campo. Diante disso, precisamos, em
contrapartida, apesar de tudo, assumi-las, tentar dar conta delas, encarar essas
imagens: apesar da própria incapacidade de saber olhá-las como elas merecem, apesar
de outubro, mas a direção do Instituto para Estudos da Guerra, do Holocausto e do Genocídio (NIOD)
justifica seu gesto alegando que ainda não tem uma posição oficial diante de cenas tão cruéis.
24 [Grifo nosso].
276 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
do próprio mundo saciado, quase sufocado pela saturação de imagens que nos são
apresentadas a todo momento, pela multiplicidade de mercadoria imaginária
produzida pelas relações assentes no capital (Cf. BEBORD, 1997).
Essas fotos foram tiradas por membros do comando especial – Sonderkomando
– que foi criado em julho de 1942 – e que seria sucedido por 12 equipes que eram, de
tempos em tempos, substituídas por outras. Esse processo de instauração de um
comando e a passagem para outro subsequente compreendia um rito de iniciação que
consistia no seguinte: os sucessores queimavam os cadáveres de seus predecessores.
Entretanto, em que consistia a tarefa desse comando? Seu trabalho se dava
precisamente em desenvolver atividades comandadas pela SS, mais precisamente em
manipular a morte de milhares de seus semelhantes, de serem testemunhas de todos
seus fatais e últimos momentos.25
O campo se constituía, então, enquanto um espaço no qual além de fazer
desaparecer vidas, [vidas dos prisioneiros], também coincidia com a anulação de sua
psique devido ao isolamento do mundo externo’; de sua língua, de seu ser e, por fim,
de seus restos, bem como de apagar qualquer possibilidade de memória do
desaparecimento – ou mesmo de arquivos que pudessem atestá-lo. A partir de DidiHuberman, em Auschwitz, é possível situar uma política de gestão dos corpos:
Tirarem os corpos um a um, os despirem. Lavarem a jato todo o sangue, todos os
vômitos, todos os excrementos acumulados. Extraírem os dentes de ouro, para o
despojo do Reich. Introduzirem os corpos na fornalha dos crematórios. Manterem
a cadência inumana. [...] Retirarem as cinzas humanas na forma desta ‘matéria
informe, incandescente e esbranquiçada que escorria em valetas [e que] ao se
arrefecer, tornava-se uma tinta acinzentada [...] Triturarem os ossos, última
resistência dos pobres corpos a sua destruição industrial. Fazerem um monte com
tudo isso, jogarem-no no rio vizinho ou utilizarem como material de
terraplanagem para a estrada em construção no campo (DIDI-HUBERMAN,
2004, p. 19-20).
Conforme o sobrevivente Filip Müller, diante desse panorama, a preocupação
que emergia era como informar às atrocidades que se cometiam no campo. Foi a
constante ameaça e a promessa de desaparecimento e de apagamento de qualquer
25 “Eles não tinham a figura humana. Eram rostos devastados, loucos, disseram os detidos que puderam
vê-los. Eles sobreviviam, portanto, pelo tempo que lhes era confiado na ignomínia da tarefa. A um detido
que lhe era perguntado como ele podia suportar semelhante trabalho, um membro de equipe respondia:
Evidentemente, eu poderia me atirar sobre os fios elétricos, como tantos dos meus camaradas, mas eu
quero viver [...] No nosso trabalho, se alguém não ficar louco no primeiro dia, então se habitua” (DIDIHUBERMAN, 2004, p. 20).
Evandro Pontel | 277
forma de testemunho, que fez com que buscassem registrar aquilo que acontecia.
Diante
da
eminente
desaparição
próxima
da
testemunha
e,
de
certa
irrepresentabilidade do testemunho, surgiu enquanto alternative a imagem
fotográfica. Entretanto, o desafio posto seria: como arrancar uma imagem a isso,
apesar de tudo? A imagem era a possibilidade de dar forma ao inimaginável – de
produzir um instante de verdade. Assim, em um dia de verão de 1944, os membros do
sonderkomando decidiram efetivar a arriscada tarefa de arrebatar do seu infernal
trabalho algumas fotografias suscetíveis de atestar e testemunhar o horror específico
e a amplitude do massacre. Arrebatar algumas imagens, pois a emissão da imagem era
o que restava – o último gesto de resistência que se converteu em urgência mesma – o
que restava entre os últimos gestos humanos,
[...] um inimaginável de que ninguém, até então havia vislumbrado a possibilidade.
Era preciso arrebatar uma imagem em um instante que concretizasse o momento
mais indescritível do massacre dos judeus, em que não havia espaço nem para o
pensamento, nem para a imaginação, pois tudo estava ofuscado pela enormidade
mecânica da violência produzida (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 23).
Entretanto, a produção das fotografias implicou em uma vigilância coletiva dos
membros do sonderkomando. Foi necessário que danificassem propositalmente o
telhado do forno V, de tal forma que a SS mandaria efetuar o reparo. Diante do
trabalho de arrancar uma imagem o medo havia desaparecido. O filme das fotos seria
enviado para membros da resistência polonesa [Cracóvia], tiradas do campo e
ocultadas dentro de um tudo de pasta de dente, por Helena Dantón, empregada do
refeitório da SS, que o subtrairia do campo. Essas imagens fotográficas estão dispostas
e se colocam contra todo o Inimaginável, são dirigidas ao inimaginável e o refutam
de maneira mais desgarradora que existe. Refutam, portanto, toda e qualquer tentativa
de produzir o inimaginável fomentado e produzido pela própria SS, pois conforme
observou Arendt, os nazistas acreditavam que o êxito de sua empresa consistiria em
que ninguém externo ao campo acreditaria. O fato de não ser passível de crença aquilo
que era relatado colocava-se como hipótese basilar, em ser algo inimaginável [pois os
fatos ocorridos seriam demasiado monstruosos para que as pessoas acreditassem no
que pudesse ser relatado].
Os campos, de acordo com Arendt, eram laboratórios de desaparecimento
generalizado, com um objetivo unicamente alcançável, que em circunstâncias
278 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
extremas se convertiam em um inferno produzido por homens ( Cf. DIDI-HUBERMAN,
2004, p. 39). Nos campos se produziu a distorção da língua e da cultura alemã – a
mentira nas palavras pronunciadas pelos nazistas: Ex: Schutzstaffel – ‘abreviatura de
SS’ que significa ‘a proteção’, ‘estar sob proteção’; salvaguardado (Schutz) ( (DIDIHUBERMAN, 2004, p. 40); 26 [que na realidade consistia em morrer nas câmaras de
gás]. Desse modo, a ação nazista que tinha por finalidade fazer desaparecer qualquer
forma de restos, rastros, também fez desaparecer as ferramentas que produziram tal
desaparecimento, pois converteram Auschwitz em algo inimaginável, que consistiu em
produzir uma espécie de não-lugar (tanto que no local onde foram tiradas as fotos, em
pouco tempo restavam apenas ruínas, paragens devastadas); A tarefa magna consistia,
portanto, em eliminar arquivos, anular qualquer possibilidade de memória – para
manter a condição de inimaginável, em suma, sem a possibilidade de atestar o
ocorrido: sem palavras e sem imagens.
Essa é a razão pela qual essas imagens fotográficas manifestam e ilustram certos
exemplos de tentativas de interromper os mais violentos desejos de desaparecimento,
de quebrar o continuum do progresso na história. A fotografia está associada a pôr
vida à imagem e à memória (diante da orientação deliberada de proibição de
fotografar – ao lado de uma imensa produção de imagens feitas pelos nazistas).
Paradoxalmente, nesse mesmo ambiente, funcionava uma grande produção de
imagens por parte da SS, onde era proibido fotografar sob pena de duros castigos, em
um contexto no qual se fazia registros fotográficos diários, tanto que em Auschwitz
funcionavam dois laboratórios de fotografias, com produção na qual, conforme DidiHuberman, permanecem 40 mil fotos – embora boa parte foi queimado
sistematicamente. Portanto, essas imagens, “Os arquivos da Shoah definem sem
dúvida alguma um território incompleto, de sobrevivência, fragmentário, porém, este
território, existe” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 43).
De acordo com Didi-Huberman, por conseguinte, diante desse “corpus de
imagens, apesar de tudo, não é mais possível se falar de Auschwitz em termos
absolutos e bem intencionados, aparentemente filosóficos, mas em realidade
preguiçosos, em termos de indizível e inimaginável” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 47).
Dessa assertiva emerge a exigência posta por Hannah Arendt e retomada por DidiHuberman: é preciso reposicionar a tarefa do pensamento, pois onde fracassa o
26
Ver (SOUZA, 2020b).
Evandro Pontel | 279
pensamento, é onde se deve perseverar no pensamento, dando-lhe um novo giro (Cf.
DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 47). Disso decorre a urgência de se colocar em xeque e
repensar o estatuto do direito, da ciência política e da própria antropologia. Portanto,
nessa esteira, não podemos relegar o genocídio judeu à categoria de inimaginável, de
impensável, pois ao operar nesse registro se corroboraria para a reafirmação da lógica
interna do arnanum imperii de poder que determinou tais eventos. Destarte, a própria
enunciação e a possibilidade do testemunho, como atesta o caso de Primo Levi, nessa
direção – apesar de tudo, refuta, pois, essa grande ideia limitada de Auschwitz
enquanto algo inimaginável e indizível.
Assim, falar de Auschwitz em termos de indizibilidade é repetir e perpetuar
inconscientemente a mesma lógica operativa do arcanum nazista. Contrariamente a
um posicionamento que privilegia a tese acerca da indizibilidade (não-língua), é
preciso, também, recolocar a compreensão acerca da própria linguagem e da imagem,
de tal modo que, no processo de produção testemunhal, em cada ato de memória,
[...] as duas – linguagem e imagem – são absolutamente solidárias e não deixam
de intercambiar suas carências recíprocas: uma imagem pode acudir aí onde falta
a palavra; ao mesmo tempo em que, a palavra pode acudir onde parece falhar a
imaginação” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 49).
Esse discurso acerca do imaginável e do indizível indica um distanciar-se que
repete sistematicamente a (re)produção da lógica, talvez de modo inconsciente, do
próprio arcanum imperii nazista. Essa posição acerca do inimaginável distingue dois
regimes distintos, porém simétricos: “Um procede do estetismo, que tende a ignorar
na história suas singularidades concretas. O outro procede de um historicismo, que
tende a ignorar as especificidades formais da imagem” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p.
50). Portanto, daí emerge o imperativo ético: “para recordar é necessário imaginar”,
ou ainda, se o horror perpetrado em sua opacidade se apresenta como inalcançável, se
“Isto é inimaginável, logo devo imaginá-lo apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN, 2017,
p. 109).
Nesse sentido, essas quatro imagens não dizem “toda a verdade”, mas podem
ser entendidas como minúsculas amostras de uma realidade tão complexa, breves
instantes de um continuum que durou cinco anos. Porém, expressam a verdade em si
mesma, seu vestígio, um recorte, aquilo que resta visualmente de Auschwitz (Cf. DIDIHUBERMAN, 2004, p. 65). Enfim, graças a essas imagens, apesar de tudo, dispomos
280 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
de uma representação necessária do que foi Auschwitz – a expressão de um limite,
uma lacuna entre o dizível e o indizível – porém, se a condição dos prisioneiros era
insuportável e inimaginável, é necessário imaginar apesar de tudo, o que exige uma
difícil ética da imagem: “Uma simples imagem – inadequada, porém necessária,
inexata, porém verdadeira, embora paradoxal, [...] A imagem é aqui o olho da história
por sua tenaz vocação de tornar visível” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 67). Essa
questão indica para algo que toca a centralidade do humano, pois além do sentido
político óbvio que se depreende das imagens, as quatro fotografias nos situam diante
do drama da imagem humana como tal.
Entretanto, embora reconheçamos essa estrutura paradoxal inerente à
testemunha, tendo em conta sua exposição como vida nua – pois a vida foi aniquilada
no campo, por outro lado, o testemunho do sobrevivente reveste-se de um caráter de
suma importância em vista de se fazer memória, memória entendida em sentido de
antídoto à barbárie. Reyes Mate é enfático ao explicitar a razão anamnética, como
razão prática:
O grito de protesto contra o sofrimento, a exigência de partir em cruzada contra a
barbárie, nasce do recordar Auschwitz. E, isso porque? Porque em Auschwitz se
fez a experiência da injustiça e do sofrimento e porque essa injustiça não afeta um
homem em particular, mas toda a humanidade. Auschwitz não é um campo de
tormento, porém, é, sobretudo, o lugar da injustiça do sofrimento infligida ao povo
judeu e, através dele, à humanidade do homem [...] deve-se pensar o conhecido
desde o impensável, [...] deve-se aceitar que o acontecimento dá oque pensar. E
nisso consiste precisamente a razão anamnética: um pensar do impensado
partindo do fato de que esse impensado aconteceu (MATE, 2005,p, 160).
Nessa senda, a potência da imagem, no exerício de se elaborar a memória
encerra em si um ato político, mas também compreende em si um estatuto
epistemológico, haja vista que ao recordar, ao fazer o exercício anamnético, a vítima,
aquele que sofreu a barbárie que lhe foi perpetrada elabora sua experiência, a
sistematiza em vista de torná-la partilhável, mesmo que embora não sem compreender
um processo doloroso e traumático que envolve a historicidade da vida, perdas e
sofrimentos imensuráveis em sua significação. Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz,
assevera:
Ao testemunhar, a vítima assume um papel único que lhe confere a potência,
também singular, de dizer, desde sua experiência, a realidade da injustiça sofrida.
O seu testemunho como superstes tem a potencialidade de introduzir uma nova
perspectiva da verdade. A vítima que se torna testemunha advém sujeito político
no jogo do poder e contribui para a desconstrução ética da violência. A vítima pode
Evandro Pontel | 281
recuperar parte da indignidade sofrida ao assumir a condição histórica de
testemunha que protagoniza um novo acontecimento contra a injustiça sofrida
(RUIZ, 2015, p. 92).
Enfim, apesar de tudo, coloca-se a exigência ética de fazer memória, o desafio
de (re)elaborar o passado, rememorar, a história que permanece inscrita e pregnada
de barbáries e horrores, expressos por meio de rostos trucidados, rastros e restos,
traços inegáveis das múltiplas formas de violências no interior da história entendida
como progresso. Nesse viés, poder-se-ia, trazer presente a história do continente
latino-americano, desde a invasão pelo homem branco, o qual nomeou e definiu os
povos que aqui viviam; as subsequentes disputas econômico-políticas que geraram
guerras e o genocídio desses povos originários, bem como as obscuras páginas inscritas
e escritas ao longo do tempo, a história dos povos negros em solo brasileiro, demarcada
pela diaspora forçada e pela violência e pelo exercício do (necro)poder 27 , o Brasil
escravocrata e seus sintomas e, ademais, a dimensão espectral da experiência da
ditadura28 e suas consequências para a democracia, acontecimentos que ainda dão o
que pensar.
Diante desse panorama, percebemos que vivemos em um tempo em que há uma
massiva saturação das imagens, em que as mais diversificadas imagens de violência e
de horror passaram a fazer parte da cotidianidade da vida e passaram a ser aceitas com
certa normalidade. Em suma, a partir do exposto, percebe-se que negar o humano na
vítima significava condená-lo a uma condição de (in)diferente, e esse elemento coloca
em xeque o limite entre humano/inumano, posto que em Auschwitz o que se destruiu
não foi somente a vida, mas a forma mesma do humano e, por conseguinte, sua
imagem. Resistir, portanto, significou manter e conservar essas imagens apesar de
tudo, mesmo que o campo fosse uma máquina trituradora de almas. As imagens são
instantes de verdade – possuem uma potência crítica para reler a história a partir dos
estilhaços, das ruínas, requerem uma leitura a contrapelo, pois possibilita abrir fendas
diante do estatuído, proporcionam baralhar as cartas do mundo: “Auschwitz é
unicamente imaginável, e a imagem nos obriga a isso e, por isso, devemos tentar fazer
uma crítica interna para ajustar-nos com sua obrigação, com essa incompleta
27
28
Ver: (MBEMBE, 2017).
Conferir: (TELES, Edson; SAFATLE. Vladimir, 2010).
282 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
necessidade” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 75), pois conforme afirmou Robert Antelme
(2013): é um fato da espécie humana.
Diante dessas imagens feitas no campo de concentração de Auschwitz
permanece o desafio de se reposicionar o estatuto próprio da imagem e, partir disso,
de se repensar uma ética da imagem, tendo como ponto de partida que essas imagens
indicam para a hipótese da reconstrução do testemunho, até então feito pela palavra,
em detrimento da imagem, pois restam imagens e elas embora não sejam a verdade
em sua totalidade, são breves instantes de verdade. Entretanto, essa postulação
também toca diretamente na questão da hierarquia mesma do testemunho que, apesar
de tudo, emerge como exigência ético-política de imaginar o inimaginável, encarar a
imagem, ali mesmo onde imaginar, pensar e buscar elaborar o passado se constitua
enquanto pesar, conceber para poder compreender, elaborar o passado enquanto
antídoto à barbárie e a violência biopolítica perpetrada nos campos, conforme destaca
Casa Nova: “[...] nunca apagar os rastros”, “nunca deixar cair no esquecimento”, narrar
as ruínas pela palavra, pela imagem (2014, p. 67).
A partir das imagens, apesar de tudo, do estatuto das imagens e seu possível
potencial de produzir o testemunho diante da calamidade perpetrada contra o povo
judeu, a partir de uma arqueologia das imagens o pensador francês reposiciona o
desafio de como devemos encarar Auschwitz, em propor uma leitura crítica das
imagens como exercício fundamental para se compreender a dimensão biopolítica
implicada nelas, o que se constitui como a possibilidade de um revisitar a contrapelo a
historiografia, em criar meios de supender a operatividad da máquina biopolítica que
aniquila e anula a vida a cada instante e refunda o arcanum imperii do poder vigente
no lastro social. Dessa constatação se depreende, apesar de tudo, o imperativo
hubermiano: “para saber é preciso imaginar” (DIDI-HUBEMAN, 2017, p. 96) como
condição para articular sinais restos, ruínas, rastros de destruição diante da figura do
anjo da história benjaminiano que acompanha o continuum da barbárie, em perceber
diante disso, apesar de tudo, pequenos lampejos de resistência diante do estatuído e
das lógicas que enquadram, delineiam e determinam a vida, uma crítica à violência
que abra a possibilidade para pavimentar o terreno para uma ética da imagem
articulada com as dimensões política e estética, ainda além da opacidade dos
mecanismos e artifícios que circunscrevem a dinamicidade da vida no interior das
relações políticas vigentes.
Evandro Pontel | 283
Em suma, essas quatro imagens realizadas por prisioneiros, em risco de vida,
podem ser compreendidas, como testemunhos visuais vivas - o que restou, como um
contraponto à ideia de este ser um evento inimaginável e instestemunhável, de que o
testemunho para ter validade precisa ser fundado na palavra, de que a imagem seria
um falso-semelhante, uma ilusão. Ante a isso cabe indagar: Que papel têm as imagens
na leitura da história? Como nos posicionamos diante da infinidade de imagens que
chegam? Em termos conclusivos, consideramos: Certamente, as imagens que vemos,
mas que também nos veem e nos interpelam, coloca-se a exigente tarefa, se
soubéssemos encará-las, repensar os desafios emergentes dos tempos presentes:
exigência de se pensar novas formas de vida, colocar noutros termos o por vir da
democracia, revisar os moldes e os alicerces sustentadores da sociabilidade humana,
a vida humana como um fim em si mesmo, e rever a própria noção de uso das coisas29,
para além das entranhas dos dispositivos que moldam à vida, muitas vezes, como um
artefato de mera sobrevida no interior das lógicas de poder vigentes, posto que, de
acordo com Jacques Derrida, “la vieja palabra vida sigue siendo quizá el enigma de lo
político en torno al cual rondamos sin cesar” (DERRIDA, 2005).
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29
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15. OS RISCOS DE DEGENERAÇÃO DA DEMOCRACIA
CONTEMPORÂNEA –
A ATOMIZAÇÃO SOCIAL E O DISCURSO TOTALITÁRIO1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-15
Fabio Caprio Leite de Castro2
Introdução
O desafio que propomos consiste em discernir e analisar os riscos de
degeneração dos regimes democráticos contemporâneos, através da atomização social
e do retorno do discurso totalitário. O percurso será subdividido em três tempos.
Inicialmente, retomaremos o tema da possibilidade de degeneração da democracia
segundo perspectiva de Platão e Aristóteles com o objetivo de apresentar os seus traços
elementares. Em seguida, faremos uma breve consideração sobre as transformações
dessa problemática com a instauração das democracias na modernidade.
No segundo ponto, voltaremos nossas atenções à obra do filósofo francês Alexis
de Tocqueville, pois reconhecemos a originalidade com que tratou das ameaças à
democracia no quadro do liberalismo político do século XIX. Crítico à centralização do
poder, Tocqueville sustentava que a descentralização e a criação de instâncias
intermediárias funcionariam como um contrapeso à “tirania da maioria” e ao
despotismo – este último, no caso das democracias liberais, seria, no entanto,
facilitado pela despolitização e pelo individualismo.
Embora o pensamento tocquevilliano seja nesse aspecto bastante atual,
procuraremos mostrar em um terceiro ponto que as ameaças contemporâneas exigem
que se coloque em relevo os efeitos produzidos pelas novas mídias e pelo retorno de
um discurso totalitário. Faremos uso de alguns textos escolhidos de Baudrillard e
Rancière na tentativa de melhor explicitar o modo como as ameaças atuais à
democracia se entrelaçam com a sociedade de consumo, especialmente com as novas
Artigo originalmente publicado na Revista Conjectura: Filosofia e Educação, v. 23 (2018), nº especial
– dossiê Ética e Democracia, p. 366-385.
2 Doutor em Filosofia (ULg – Bélgica. Professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia na PUCRS.
1
288 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
mídias e com o retorno de um discurso totalitário. Desse modo, pretendemos
apresentar e descrever duas dimensões que consideramos significativas para se
realizar uma crítica da democracia contemporânea.
1 O regime democrático e a possibilidade da sua degeneração
Tão antiga quanto as experiências democráticas na Grécia Antiga é a percepção
de que a democracia, enquanto forma de governo, é suscetível ao desvio e à
degeneração. Assim como qualquer tipo de governo, o regime constitucional
democrático também está sujeito à corrupção. Um dos problemas centrais da filosofia
política, desde os períodos antropológico e sistemático da filosofia antiga, consistiu
precisamente em interrogar quais seriam os melhores modelos e quais mecanismos
poderiam ser criados para evitar ou diminuir a possibilidade de degeneração do
governo da cidade.
Em uma famosa passagem do Político de Platão, o estrangeiro, em diálogo com
o jovem Sócrates, classifica os governos em três tipos – monarquia, aristocracia e
democracia – e reconhece que, em todas essas formas, é possível governar respeitando
as leis ou não. A democracia seria a pior forma entre os governos que se conformam à
legalidade e a melhor nos casos em que não se a respeita. (O Político, 302e-303b, 2011,
p. 1422). Bem submetida às leis escritas, ou seja, à legalidade, a monarquia
corresponderia à melhor forma de governo.
Aristóteles, por sua vez, no livro III da Política, retoma a mesma classificação
tripartite e as suas três formas desviantes (Política, V, 7, 1279b, 2014, p. 2389), porém
adota outra posição, sustentando que todas as formas degeneradas seriam
globalmente viciadas, de maneira que não seria justo afirmar, por exemplo, a
superioridade da oligarquia à tirania, pois ela seria apenas menos má (Ibidem, IV, 2,
1289b, 2014, p. 2413).
Igualdade e liberdade constituíam para o estagirita princípios democráticos.
Nesse sentido, o justo tem como medida o critério numérico, de modo que a autoridade
decorre da decisão da maioria. Porém, há um tipo de democracia degenerada em que
a maioria soberana governa por decretos e não pela lei, transformando-se em uma
demagogia despótica, similar à tirania. (Ibidem, IV, 4, 1292a, 2014, p. 2419). Ainda
nessa direção, uma maioria numérica pode recair na injustiça quando confisca os bens
Fabio Caprio Leite de Castro | 289
de minoritários (Ibidem, VI, 3, 1318a, 2014, p. 2478). Para evitar a demagogia, que
tudo faz para comprazer as massas, como aumentar o confisco de bens pelos tribunais,
Aristóteles sugere que o resultado desse confisco não seja vertido ao tesouro público,
nem retorne ao povo, mas seja declarado sagrado. (Ibidem, VI, 4, 1320a, 2014, p.
2482).
Guardadas as devidas proporções, considerando-se a distância histórica e o
contexto cultural no qual a Academia e o Liceu interrogaram acerca da solidez da
democracia, é notável como essa questão ressurgiu diversas vezes em filosofia política,
especialmente a partir da modernidade. A partir das transformações provocadas pelo
gradual crescimento da burguesia, da contrarreforma, da busca de novos mercados e
da crítica ao absolutismo monárquico, o modelo democrático ganhou um novo
destaque, desde a perspectiva do liberalismo político.
É consabida a influência iluminista sobre os movimentos que sedimentaram o
modelo democrático, embora essa influência tenha sido paulatina, pois muitos
pensadores mantinham restrições para com a democracia. Rousseau chegou a afirmar
que “em geral, o governo democrático convém aos Estados pequenos” (1987, p. 82),
referindo-se, nesse sentido, à democracia direta. Logo em seguida a essa passagem,
sustenta o filósofo, de modo cético, que, rigorosamente falando, “jamais existiu, jamais
existirá uma verdadeira democracia”. (Ibidem, p. 83).
Conforme a análise de Dalmo de Abreu Dallari, “é através de três grandes
movimentos político-sociais que se transpõem do plano teórico para o prático os
princípios que iriam conduzir ao Estado Democrático”. (2012, p. 147). O primeiro foi
o movimento que muitos denominam de Revolução Inglesa, fortemente influenciada
por Locke e que resultou na Bill of Rights de 1689. O segundo foi a Revolução
Americana, cujos princípios foram traduzidos na Declaração de Independência de
1776. Por fim, o terceiro foi a Revolução francesa, que conferiu universalidade aos seus
princípios através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,
recebendo esta última a influência do pensamento de Rousseau.
Com a consolidação do ideal de Estado Democrático em seu modelo
representativo, tornou-se possível sintetizar em três os princípios que o orientam: a
supremacia da vontade popular, a preservação da liberdade e a igualdade de direitos
(DALLARI, 2012, p. 150). Um volume considerável de debates da filosofia política
contemporânea voltou-se para a adoção, o peso e as consequências da aplicação destes
290 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
princípios. Autores como Paulo Bonavides, na esteira de Maurice Duverger, preferem
ampliar o rol de princípios próprios à democracia, acrescentando por exemplo, o
sufrágio universal; a pluralidade partidária; a observância constitucional da divisão de
poderes; a adesão à fraternidade social, o Estado de direito, a temporariedade dos
mandados eletivos, existência garantida das minorias políticas. (BONAVIDES, 1998,
p. 274). Em grande medida, a renovação do debate sobre as condições da democracia
é motivada pela história recente, que recomenda cautela para com os fenômenos
políticos resultantes do governo democrático em sua versão liberal contemporânea.
Talvez seja possível afirmar que a teoria da democracia deva ser pensada como
uma teoria sobre as suas condições e limites. Como sinaliza Otfried Höffe, a
experiência histórica “nos mostra a escravatura nos Estados Unidos, o nacionalsocialismo, que, ao mesmo tempo, se confessava adepto do princípio democrático, e –
é claro, bem menos contrastante – a Igreja do Estado da Suécia ou a proibição dos
jesuítas e dos mosteiros, revogada na Suíça apenas nos anos setenta (...)”. (HÖFFE,
2006, p. 415). A partir dessa observação, interroga o filósofo alemão se a democracia
não é nem uma condição necessária, nem suficiente para a introdução e a proteção dos
direitos humanos. Trata-se de tema de grande atualidade e alvo de muitas
controvérsias, sobretudo porque remete à afirmação histórica dos direitos humanos e
à necessidade de instituições que os reconheçam e protejam. É nesse ponto que
pretendemos situar a investigação sobre as ameaças à democracia.
Em seu nascedouro, a defesa do regime democrático está intimamente ligada
ao liberalismo político e é neste que devemos procurar algumas das formulações sobre
os riscos da democracia. Tomando esta direção, estabeleceremos como fio condutor a
perspectiva de Alexis de Tocqueville. As razões que nos levam à sua obra são o
importante lugar ocupado por ela no século XIX e o modo original como ele articula a
defesa da democracia e o alerta sobre as ameaças de uma “tirania da maioria” e de um
novo tipo de despotismo silencioso, inerentes à própria democracia.
2 Os riscos da centralização – a tirania da maioria e o individualism
A obra de Alexis de Tocqueville (1805-1859) ficou por muito tempo circunscrita
aos especialistas, tendo maiormente sido estudada na França e nos Estados Unidos,
países que foram objeto de suas investigações. É relativamente recente a renovação do
Fabio Caprio Leite de Castro | 291
interesse por sua obra, especialmente a partir da interpretação de Raymond Aron
(1964 e 2008). Em seu livro As etapas do pensamento sociológico, de forma original e
surpreendente, Aron confere a Tocqueville a posição de um dos fundadores da
sociologia, mesmo que este não tenha concebido um método sociológico rigoroso e
tampouco tenha definido com rigor a noção de “sociedade democrática” por ele
empregada (ARON, 2008, p. 316 e 318). O pensamento de Tocqueville, especialmente
enquanto observador da Revolução de 1848, parece cumprir na organização da obra
de Aron o papel teórico de um defensor do liberalismo político em resposta a Marx e a
Comte, questão que mereceria uma investigação própria. No presente contexto, o
nosso interesse volta-se diretamente para a obra de Tocqueville e circunscreve-se ao
modo como ele avaliou as ameaças à democracia, nos moldes em que ele a conheceu.
Talvez não seja excessivo recordar que Tocqueville foi um nobre, filho de uma
família legitimista normanda, cuja posição social e política contribuiu para as ideias
que defendeu. Tocqueville terminou por aderir à defesa da democracia, essa “potência
irresistível” (1951b, p. 104), mas sempre com uma forte crítica à tendência
centralizadora. Viajou aos Estados Unidos para estudar o sistema penitenciário
americano, de 1831 a 1832, período que o motiva a escrever e publicar os dois volumes
sobre A democracia na América, em 1835 e 1840. É fundamentalmente nestes
volumes que o autor, baseando-se na observação das interações sociais, defendeu a
inseparabilidade entre a liberdade política e a igualdade.
Tornou-se em seguida um severo crítico da centralização jacobinista. Ao
contrário dos Estados Unidos, “uma das características maiores do contexto histórico
francês é a centralização”. (KRULLIC, 2017, p. 74). Procurou mostrar, em O Antigo
Regime e a Revolução, publicado em 1856, que a Revolução francesa, embora radical,
não foi tão inovadora como geralmente se supôs (1967, p. 80), na medida em que
manteve diversas estruturas da centralização administrativa e em muitos aspectos as
tornou piores. “A centralização tinha já a mesma natureza, os mesmos procedimentos,
os mesmos focos de nossos dias, mas ainda não o mesmo poder” (1967, p. 192).
A sua tese, ainda central para o liberalismo político, é a de que a liberdade não
pode se assentar na desigualdade, mas na igualdade de condições e, por outro lado, a
equalização das condições e oportunidades consiste em um processo que não pode ser
realizado em detrimento das liberdades políticas, sob pena de ameaçar a própria
democracia. Não foi por outra razão que ele decidiu estudar a democracia norte-
292 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
americana. “Dentre os objetos novos que, durante minha estada nos Estados Unidos,
atraíram minha atenção, nenhum impressionou mais vivamente os meus olhares do
que a igualdade de condições”. (1951a, p. 01).
Em seu longo estudo, ele procura identificar os traços e características do
Estado norte-americano que trouxeram estabilidade ao regime. Tocqueville identifica
na descentralização administrativa uma das grandes vantagens da democracia
americana, a partir do estabelecimento de corpos políticos intermediários, que lhe
permitiram temperar a onipotência da maioria e combater institucionalmente o
individualismo, o qual produz uma despolitização e leva a uma nova forma de
despotismo. São fundamentalmente esses dois aspectos – a tirania da maioria e o
despotismo – com os quais nos ocuparemos no presente ponto.
É essencial para Tocqueville analisar como culturalmente as instituições lidam
com os mecanismos de poder e os aparelhos de decisão. Mais do que uma avaliação do
sistema representativo da democracia indireta, Tocqueville procura avançar em
direção àquilo que ele chama de “sociedade democrática”, ou seja, um modelo de
representação social das leis e dos costumes, ligados a um sentimento democrático,
vivido pelos cidadãos e reforçado pela descentralização do poder. O maior risco de uma
degeneração dos regimes democráticos pela centralização se dá pela “tirania da
maioria” e pelo despotismo, este último decorrente da despolitização dos indivíduos.
Como vimos no ponto anterior, Platão e Aristóteles já haviam alertado para o
perigo de degeneração da democracia e para sua transformação em um regime
semelhante à tirania. Tocqueville procurou mostrar como esta noção se aplica ao
modelo moderno de Estado, regido por uma democracia representativa e por
instituições democráticas. Os limites da democracia consistem nas determinações que
ela deve circunscrever a si mesma, ou seja, em parâmetros que ela deve estabelecer de
tal modo que ela não seja levada à autodestruição ou não promova a perseguição e
anulação das liberdades políticas individuais.
Tocqueville consagra um capítulo da Democracia na América à análise da
onipotência da maioria nos Estados Unidos e outro capítulo ao que permite temperar
esse poder tirânico. Talvez seja nessa parte do livro que o autor se mostra mais crítico
à sociedade norte-americana, chegando a afirmar que “se a América ainda não teve
grandes escritores, não devemos procurar alhures as razões: não existe gênio literário
sem liberdade de espírito e não há liberdade de espírito na América” (1951a, p. 267).
Fabio Caprio Leite de Castro | 293
Para o filósofo, o maior perigo dos Estados Unidos vem da tirania da maioria,
tensionada pela centralização governamental. O que permite equilibrar esta tendência
seria a descentralização administrativa, influenciada por um “espírito legista” na
ocupação das funções públicas, pelos costumes, pelos valores religiosos e reforçada
legalmente pelo federalismo, pelas instituições comunais e pelo Poder Judiciário.
(1951a, pp. 290-306).
A crítica tocquevilliana à tirania da maioria exerceu um papel importante na
construção teórica do liberalismo político. Quase vinte anos depois da publicação do
segundo volume da Democracia na América, seu amigo, o filósofo John Stuart Mill,
publica, em 1859, o importante livro Sobre a Liberdade, no qual retoma a crítica à
tirania do maior número: “como outras tiranias, a tirania do maior número foi, a
princípio, e ainda é vulgarmente, encarada com terror, principalmente quando opera
por intermédio dos atos das autoridades públicas”. (1942, p. 26). Seria necessário,
portanto, encontrar o limite adequado à interferência da opinião coletiva sobre a esfera
individual, mantendo-o contra as usurpações, por ser “indispensável tanto a uma boa
condição dos negócios humanos como à proteção contra o despotismo”. (1942, p. 27).
Em sua essência, encontra-se aqui um importante marco de um tema que ganhou
novos contornos com o tempo, embora não tivesse ele ainda a dimensão protetiva do
constitucionalismo democrático posterior à 2ª Guerra. Por esta razão, talvez seja
prudente fazer um recuo para melhor elucidar o significado da “tirania da maioria”
para Tocqueville.
Em realidade, o texto é indicativo de que a “maioria”, como designação
quantitativa, se refere à onipotência que se expressaria no âmbito da opinião pública,
como uma espécie de despotismo difuso na própria sociedade democrática. (1951a, pp.
265-268). A aplicação mais imediata da sua análise realiza-se na esfera da liberdade
de expressão e na liberdade de comércio, mas ela não se aplicaria, ainda, por exemplo,
ao reconhecimento dos direitos de negros e índios.
A prova disto é que, embora Tocqueville não tenha se furtado ao exame do
“futuro provável das três raças” dos Estados Unidos, ele o fez em um capítulo à parte
e subsequente ao da análise da tirania da maioria. Neste capítulo, Tocqueville
reconheceu o infortúnio e a posição social inferior que ocupam o negro e o índio na
sociedade norte-americana. “Ambos experimentam os efeitos da tirania; e mesmo se
suas misérias são diferentes, elas podem acusar os mesmos autores” (1951a, p. 332).
294 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
No entanto, surpreende que, apesar de ele ter inclusive empregado nesta frase o termo
“tirania”, não tenha ele considerado a questão dos negros e dos índios sob o mesmo
ângulo da onipotência da maioria que ele havia destacado nos capítulos anteriores.
Este já é um sinal de que, para ele, não se trata do mesmo problema, não se trata
necessariamente de reconhecer a cidadania e os direitos dos negros e dos índios.
É bem verdade que Tocqueville evitou justificar, “como certos autores
americanos, o princípio da servidão dos negros” (1951a, p. 376). Ademais, ele procura
estudar a dificuldade de abolição nos Estados do Sul (1951a, p. 373), assinala a
“atrocidade incrível” da legislação destes Estados (1951a, p. 377) e chega a fazer a
previsão de uma Guerra civil no país norte-americano (1951a, p. 373). Prevê
igualmente dificuldades, como a proveniente da memória: “A lembrança da escravidão
desonra a raça, e raça perpetua a lembrança da escravidão” (1951a, p. 357). Ou, ainda,
afirma que a abolição não conduziria o escravo à liberdade, mas apenas à “troca de
mestre” (1951a, p. 366). No entanto, a sua análise, de cunho histórico, econômico e
social, não nos parece afirmar inexoravelmente a necessidade de reconhecimento dos
direitos dos povos indígenas e oriundos do continente Africano.
Dessa forma, a leitura de Tocqueville nos faz perceber que a evolução da
preocupação do liberalismo político com os as condições e limites democráticos,
dirigida aos direitos das minorias políticas, permanece essencialmente ligada à esfera
individual, em especial à liberdade de expressão e ao livre comércio. Não obstante, isso
não nos impede de reconhecer nos escritos de Tocqueville os primeiros traços de uma
problematização que tomará posteriormente uma dimensão mais ampla no que tange
ao reconhecimento e à proteção das minorias políticas, sobretudo a partir da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e do constitucionalismo democrático
contemporâneo.
Passaremos à análise de como a recaída no despotismo tornou-se uma ameaça
à democracia. Entendemos que o risco da tirania da maioria, enfatizado no primeiro
tomo da Democracia na América, e a ameaça do despotismo, apresentada no segundo
tomo, são dois temas interligados, pois são como as duas faces da centralização do
poder.
Para compreendermos a que Tocqueville se refere quando trata da ameaça de
um despotismo, é preciso retornar à sua crítica ao individualismo, entendido por ele
como um “sentimento refletido e sossegado que dispõe cada cidadão a se isolar da
Fabio Caprio Leite de Castro | 295
massa de seus semelhantes e a se retirar com sua família e seus amigos; de tal sorte
que, depois de ter criado para si uma pequena sociedade eficiente, ele abandona
prontamente a grande sociedade a ela mesma”. (1951b, p. 105). Ora, colocando-se os
indivíduos, por seu individualismo, fora dos negócios públicos, torna-se a sociedade
mais suscetível e vulnerável ao despotismo.
Ordinariamente, segundo o pensador, é na origem das sociedades democráticas
“que os cidadãos se mostram mais dispostos a se isolar”. (1951b, p. 108). Como
resultado do individualismo dos cidadãos, sem ligação comum que os retenha, o
despotismo os separa, sem que um certo tipo de igualdade seja propriamente atacado.
Isso porque “os vícios que o despotismo faz nascer são precisamente aqueles que a
igualdade favorece” (1951b, p. 109). Os Estados Unidos teriam combatido o
individualismo que a igualdade fazia nascer através do governo livre, ou seja, através
da liberdade política. “E eu digo que, para combater os males que a igualdade pode
produzir, não há senão um remédio eficaz: a liberdade política”. (1951b, p. 112).
Segundo Tocqueville, a igualdade pode produzir tanto uma tendência à
anarquia, quanto outra ao despotismo. Como a primeira é mais visível, torna-se mais
fácil resistir-lhe. A tendência ao despotismo seria menos visível, e conduziria por um
caminho mais longo e mais secreto em direção à servidão, razão pela qual ele a
considera um perigo maior. O grande problema da equalização das condições é que
“cada cidadão se perde na massa e não percebemos mais do que a vasta e magnífica
imagem do povo ele mesmo” (1951b, p. 298). Nesse sentido, a igualdade sugerida pelo
pensamento de um governo único, uniforme e forte torna-se uma tendência “dos
séculos democráticos” a ser combatida pela independência individual e pelas
liberdades locais.
A espécie de despotismo que as nações democráticas devem mais temer é o
despotismo silencioso, que é “mais alargado e mais doce”, pois degrada os homens sem
lhes atormentar. (1951b, p. 323).3 Para Tocqueville, esse tipo de opressão, a rigor, não
poderia ser chamada de “tirania” ou de “despotismo” (1951b, p. 324) e é totalmente
nova em relação às outras formas de opressão dos povos democráticos. Através dela,
uma multidão de indivíduos procura reconfortar-se com pequenas ocupações, por
meio das quais eles preenchem suas almas. “A sujeição a coisas pequenas se manifesta
Os termos “despotismo” e “tirania”, a rigor, como Tocqueville mesmo afirma (1951b, p. 324), não são
convenientes para o fenômeno que ele pretendeu definir.
3
296 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
todos os dias e se faz sentir indistintamente a todos os cidadãos. Ela não os desespera
de modo algum, mas ela os contraria sem cessar e ela os leva a renunciar o uso de sua
vontade” (1951b, p. 326). Por meio de um modelo de entretenimento vulgar, os
indivíduos alimentam o seu individualismo e se creem livres, quando em verdade
formam uma multidão de despolitizados, dependentes e sujeitos a um poder central.
A tese de Tocqueville, em síntese, é que a tendência silenciosa ao despotismo
deve ser controlada por instituições democráticas, por instâncias intermediárias de
decisão e pelos indivíduos eles mesmos. Ou seja, mantendo-se um bom nível de
participação dos indivíduos no âmbito das múltiplas camadas da esfera social, com a
descentralização do poder, Tocqueville acreditava ser possível construir mecanismos
efetivos para o exercício da liberdade política. As palavras finais do segundo volume
da Democracia na América terminam o livro com a mensagem de que depende das
nações e de suas escolhas políticas que a igualdade conduza à servidão ou à liberdade.
A concepção de sociedade democrática que anima a tese de Tocqueville foi
constantemente repisada e revisada pelo liberalismo político. Após o crash da Bolsa
de 1929, já à beira da 2ª Guerra, o modelo liberal entrou em profunda crise e encontrou
diversos críticos, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos. Muitos autores
perceberam que a degradação da democracia, com a crise das instituições, deveria
fazê-la passar por um reexame, não apenas como forma de governo, mas como um
modelo de organização. No pragmatismo de John Dewey, por exemplo, encontramos
a defesa de uma democracia “radical” e “criativa”, sustentada não na “forma política”,
mas na “ideia de democracia”, ou seja, em um modo de vida (2008a, 2008b, 2008c),
sem sucumbir, por exemplo, ao universalismo ou ao normativismo. O raciocínio de
Dewey é, nesse ponto, mais complexo, porém similar ao que antes examinamos: as
associações, enquanto organismos intermediários entre o Estado e a sociedade civil,
convertem-se em modos de cooperação que reforçam o autogoverno e a perseverança
das comunidades. Para Dewey, a finalidade da democracia é radical e está sempre por
ser realizado, pois requer “uma enorme mudança nas instituições sociais, econômicas,
jurídicas e culturais existentes” (2008a, p. 132).
Embora não seja aqui o nosso enfoque, assinalamos que muitas outras
perspectivas partilharam a defesa de uma maior participação dos cidadãos nos
processos políticos, colocando em destaque as diferenças culturais e os temas
relacionados à identidade. Essas perspectivas conduziram a uma ampla reflexão, em
Fabio Caprio Leite de Castro | 297
centenas de livros e artigos, acerca da necessidade de amparo e de reconhecimento dos
direitos de grupos minoritários, entre elas, por exemplo, o multiculturalismo liberal de
esquerda e o multiculturalismo crítico, de acordo com a classificação de McLaren
(1997).
Recentemente, Brigitte Kurlic propôs uma interessante análise do pensamento
de Tocqueville como forma de abordagem do “porvir da democracia” (2017). Com
efeito, a tirania da maioria e o despotismo silencioso das massas não deixaram de ser
uma possibilidade latente em toda e qualquer democracia. Ao contrário, são riscos
permanentes do regime democrático, pois este se instaura sobre a igualdade e a projeta
de modo sobre a população a fim de instalar e fazer valer o princípio da maioria, a ser
controlado e harmonizado com os direitos humanos e os direitos fundamentais.
No entanto, embora esses riscos sejam permanentes, entendemos que o modo
como eles se apresentam sofreu transformações ao longo do tempo, sobretudo
considerando as novas formas de ameaça a que se veem confrontadas as sociedades
democráticas contemporâneas. A nosso juízo, a crise do modelo democrático na sua
forma atual exige ainda outros recursos teóricos para que possa ser compreendida. É
o que pretendemos desenvolver no próximo ponto.
3 Os riscos atuais – a atomização social e o discurso totalitário
Entre
as
mais
variadas
formas
de
ameaça
às
democracias
na
contemporaneidade, há uma que se sobressai – o totalitarismo. O poder do líder
carismático sobre as massas, percebido e estudado por Weber, Le Bon, Freud, Reich e
pela Escola de Frankfurt, produziu ainda na primeira metade do século XX uma nova
forma de governo das massas. Trata-se de um governo autoritário dirigido sobre
indivíduos atomizados e intercambiáveis, que deixaram a vulgaridade de seus lares
(como temia Tocqueville), mobilizados por um tipo novo de propaganda, e aceitaram
defender a união pela força, pelo feixe do fascismo e pela vitória medíocre do ódio.
Com os novos mass media, a política ganhou um novo poder de comunicação, de
espetacularização e de domínio. Foi bastante doloroso perceber que a ascensão desses
regimes durante o séc. XX em nada se opôs ao chamado regime democrático; ao
contrário, eles se tornaram possíveis no interior da democracia e buscaram assento em
um de seus principais baluartes – a supremacia da vontade popular.
298 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Os efeitos disso na prática, como sabemos, foram aterradores. As populações
que sofreram as mais duras consequências desse modelo e se viram totalmente
ameaçadas foram aquelas que Hannah Arendt chamou de “povos sem Estado” e as
“Nações de minorias”, como, por exemplo, as do leste Europeu. Diante dessa dura
realidade, como afirma a filósofa em Origens do Totalitarismo, “a própria expressão
‘direitos humanos’ tornou-se para todos os interessados – vítimas, opressores e
espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia” (1989, p.
302). Atacada por uma realidade brutal e uma política baseada na violência física e
moral, a expressão “direitos humanos” tornou-se apenas uma expressão vazia. Ainda
segundo Arendt, “nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente
irônico como a discrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, que
persistiam em considerar ‘inalienáveis’ os direitos desfrutados pelos cidadãos dos
países civilizados, e a situação de seres humanos sem direito algum”. (1989, p. 312).
A partir da 2ª Guerra, foram feitos os mais largos esforços na tentativa de
responder a esse problema, através da criação da ONU e da reformulação e
institucionalização dos direitos humanos em âmbito internacional, através de uma
nova Declaração Universal. No plano teórico, tornou-se praticamente um lugar
consensual entre os liberais a diferença entre totalitarismo e democracia, bem como a
necessidade de uma nova reflexão sobre esta última, a fim de evitar a todo custo, por
suas nefastas consequências, transformar-se em regime totalitário. Por outro lado,
autores como Agamben, em seu famoso Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua
(2004), permanecem céticos quanto às atuais formas democráticas, na medida em que
o modelo biopolítico em que vivemos nada mais seria do que a continuação do
paradigma do estado de exceção. De um lado ao outro, qualquer que seja o referencial
teórico adotado em filosofia política hoje, já não é mais possível teorizar sem, de algum
modo, pensar a ameaça do totalitarismo.
Pretendemos mostrar nas próximas linhas, dentro das limitações do presente
artigo, que os riscos da democracia percebidos por Tocqueville ganharam nova
profundidade com as novas tecnologias e os novos mecanismos de comunicação de
massa, antes inimagináveis. A ameaça da tirania da maioria, transformada em horror
pelos regimes totalitários, persiste hoje através do discurso totalitário. E o
individualismo despótico, potencializado pelo modelo da sociedade de consumo e
Fabio Caprio Leite de Castro | 299
pelos aparelhos de comunicação de massa, transformou-se e produziu hoje uma
atomização social onde impera a descrença na representação política.
Em nossos dias, o fantasma totalitário do fascismo assombra a democracia,
sobretudo com dispositivos totalitários de controle mais difusos, mais silenciosos e
menos perceptíveis do que aqueles empregados nos regimes da primeira metade do
século XX. A grande dificuldade impõe-se em um plano emocional e comunicativo: os
cidadãos já não se sentem mais politicamente representados. Medidas autoritárias,
repressivas e reacionárias voltam a ser desejadas e expressas por camadas
significativas da população.
O modelo democrático passa por uma crise notável e inaudita, de ordem global,
em múltiplas esferas comunicacionais. A crise econômica global se associa à crise da
democracia, colocando em descrédito a representação política e em suspeição o
próprio ideal democrático. Desde o crash econômico e financeiro da Bolsa de Valores
em 2008, uma das maiores crises da história do capitalismo especulativo, é possível
notar uma nova onda política nos mais diversos países. Esta onda política ganhou
volume em razão dos efeitos diretos da crise econômica sobre a globalização como, por
exemplo, a perda global de somas incalculáveis e o desemprego advindo das radicais
transformações do mercado de trabalho. Alguns movimentos políticos que podem ser
percebidos em larga escala procuraram dar uma resposta a essa crise, ainda vigente
em nossos dias, com o aparecimento de um discurso antiglobalizante, apontando para
o fortalecimento dos Estados-nações e, no âmbito dos direitos humanos, um discurso
reacionário e policialesco, à serviço do retrocesso emancipatório.
À tese de Tocqueville examinada anteriormente, é preciso acrescentar que, no
âmbito do capitalismo tardio estruturado pela globalização, não se podem ignorar os
fatores internos e externos dramaticamente nocivos à autonomia econômica de cada
Estado democrático. Sobretudo, não se pode ignorar que os fenômenos de escassez
costumam gerar efeitos seriais, entre eles o desespero coletivo. Em uma massa sem
esperança e atordoada, formada por indivíduos isolados e formações sociais
atomizadas, encontra-se o ovo da serpente do totalitarismo. Em uma sociedade em
rede, atravessada pelo individualismo consumista, pelo sentimento de impotência,
pela perda de desejo e de sentido, abre-se o espaço para uma nova forma de fascismo
que não ousa dizer seu nome, um neofascismo silencioso, provocado e alimentado
300 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
pelos desastres da própria globalização capitalista e suas repercussões nas sociedades
ditas democráticas.
A fim de melhor compreender a ascensão da descrença na representação
política em diversos países – não apenas os desenvolvidos, como também aqueles em
desenvolvimento – colocaremos em relevo atomização social à qual as sociedades
contemporâneas foram predispostas ao adotar o modelo da sociedade de consumo. Em
sua raiz, o liberalismo aposta no indivíduo como ponto de partida e desde sempre
correu o risco de individualismo que lhe é inerente. Ora, o modo como o
individualismo se apresenta atualmente é lucrativo, pois ele faz movimentar o
consumo, transformando-o em consumismo. Ocorre que a lógica do consumismo
subsiste com pelo menos uma condição: a eterna insatisfação do consumidor. Esse
sentimento contínuo de insatisfação, por sua vez, retroalimenta-se de uma sensação
difusa de impotência, que tende a aumentar conforme a situação de escassez e o
aumento de desigualdade. É nessa impotência que se instala definitivamente o que
denominamos aqui atomização social, com reflexos no campo da democracia
representativa, ou seja, a descrença individualista na capacidade de representação
política.
Essa descrença dificulta a organização dos corpos sociais e a defesa coletiva de
demandas específicas, pois as demandas são a tal ponto fragmentárias que apenas o
indivíduo na sua individualidade se sente à vontade para produzi-la. Não é à toa que
as “insurreições” políticas em todo globo, ao longo da última década do século XX e da
primeira década e meia do século XXI, passaram por um período de formação de
massas indignadas sem uma demanda clara e precisa. Constituem um ajuntamento de
forças – legítimo, sem dúvida –, mas que, ao final, pouca efetividade teve do ponto de
vista político. Rancière corrobora nossa perspectiva em um entretien com Eric Hazan,
recentemente publicado, Em que tempo nós vivemos?, no qual ele sustenta que “a
insurreição que vem”, a insurreição ela mesma, vem “para se afastar de todo ativismo
planificado” e que “alguns anos mais tarde, seus autores pensam poder fazer a
constatação de que as insurreições são bem-vindas, mas não aportaram o que se
esperava delas: não somente elas não foram ‘a revolução’ como ainda assinaram a
morte da revolução como processo”. (2017, p. 59).
Não temos a menor intenção de negar que as novas tecnologias provocaram
uma verdadeira revolução das relações humanas, trazendo-lhe inúmeros benefícios de
Fabio Caprio Leite de Castro | 301
acesso à cultura e às comunicações. Por outro lado, não podemos ignorar certos efeitos
nocivos e perigosos produzidos pelos novos sistemas de comunicação. É nesse ponto
que buscamos apoio em um dos ensaios de Baudrillard, que desde os anos 1970,
mostrou-se crítico e pouco otimista em relação que ele investigou e intitulou como
“sociedade de consumo”. Ao longo dos anos, ele procurou mostrar como esse modelo
de sociedade se desdobra e se movimenta em um jogo de signos, em que o excesso de
informação convive com a diminuição do sentido. No livro Simulacros e simulação, de
1981, Baudrillard classificou em três formas o que ele chamou de “simulacros”:
naturais (baseados na imagem e no fingimento); produtivos (baseados na força e na
materialização pela máquina) e de simulação (baseados na informação, no modelo do
jogo cibernético, com operacionalidade, objetivo do controle total e “hiper-realidade”)
(1991, p. 151 e ss.). É especialmente este último que nos interessa, enquanto
mecanismo de simulação, na medida em que interfere profundamente no modo como
a informação é produzida e trocada.
Baudrillard já afirmava nesse mesmo livro que “(...) a informação é diretamente
destruidora ou neutralizadora do sentido e do significado. A perda de sentido está
diretamente ligada à ação dissolvente, dissuasiva, da informação, dos media e dos
mass media”. (1991, p. 104). A informação devora os seus conteúdos por duas razões:
(1) ao invés de comunicar, ela encena a comunicação, produzindo uma simulação, uma
hiper-realidade, mais real do que o real, que tende a anulá-lo; (2) os mass media
prosseguem uma desestruturação do real (1991, pp. 105-107). Embora tenha
conhecido a tecnologia cibernética e tenha testemunhado o primeiro avanço comercial
da internet e dos aparelhos celulares, o filósofo não chegou a conhecer a mais recente
evolução dos aparelhos eletrônicos portáteis, a qual, entretanto, não apenas corrobora
a sua tese como, em nosso entendimento, mostra dimensões ainda mais radicais da
perda de sentido produzida pela ação dissolvente dos mass media. E isso a ponto de
hoje se falar em “pós-verdade”, seja lá o que isso queira designar. A perda de sentido
está no coração do sentimento de impotência, que termina por aprofundar ainda mais
a atomização social.
No livro À sombra das maiorias silenciosas, Baudrillard mostra como, neste
jogo de informações, produz-se uma “idolatria” aos estereótipos e uma consumação
dos signos, em uma fascinação com o “espetacular”. (1985, p. 15). Especialmente nos
últimos anos, o que temos assistido é um novo tipo de espetacularização da política
302 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
através dos mass media, como se os políticos tivessem percebido que eles poderiam
valer-se facilmente da produção de estereótipos como nos reality shows, adotando
rigorosamente a mesma metodologia televisiva. Ou ainda, podemos pensar na
aplicação de logaritmos em informática, a fim de detectar o grau de preferência dos
usuários, ou o Big Data, capaz de detectar diferentes conjuntos de eleitores e oferecerlhes as mensagens mais persuasivas.
Talvez o pior resultado desse jogo de informações seja a produção paradoxal de
uma maioria silenciosa, referente imaginário, objeto de um verdadeiro bombardeiro
de estímulos, que, no entanto, ninguém pode dizer representar ou por ela ser
representado. (1985, pp. 22-23). Não há, em nossos dias, como ignorar o potencial
nocivo desse mecanismo e do seu uso político nas ditas democracias. A tirania de uma
maioria a tal ponto massificada, que não se pode ver, qualificar ou atacar, mas que
guarda a marca do atomismo social, ganha em nosso tempo dimensões profundas.
Um segundo aspecto que pretendemos analisar é o discurso cada vez mais
repetido de ataque explícito ao processo democrático. Esse sintoma político parecenos bem descrito no livro O ódio à democracia, de Jacques Rancière, publicado de
2005. Colocaremos em relevo algumas de suas descrições, sem que isso implique
adotar o pensamento do autor em seu conjunto.
Rancière questiona a noção de “sociedade democrática”, seja como forma de
governo, seja como forma de sociedade – podemos neste aspecto incluir o pensamento
de Tocqueville –, pois ele os considera enquanto tais apenas “uma pintura fantasiosa”
(2014, p. 68). Para ele, nunca houve propriamente governo democrático, senão
governos que fizeram o jogo das oligarquias. O sufrágio universal foi ele mesmo uma
forma representativa mista, “nascida na oligarquia, desviada pelo combate
democrático e perpetuamente reconquistada pela oligarquia” (2014, p. 71). Ou ainda:
“Vivemos em Estados de direito oligárquicos, isto é, em Estados em que o poder da
oligarquia é limitado pelo duplo reconhecimento da soberania popular e das liberdades
individuais. (2014, p. 94).
Com efeito, há vantagens, mas também limites nesse tipo de Estado. As eleições
são livres, mas apenas fazem girar e reproduzir os mesmos dominantes. As liberdades
são respeitadas, mas às custas de notáveis exceções. A imprensa é livre, mas só
desenvolvem grandes jornais e emissoras de televisão aqueles que possuem a ajuda
das potências financeiras. (2014, p. 94). Por outro lado, os efeitos de maio de 68, da
Fabio Caprio Leite de Castro | 303
liberação sexual e do consumo de massa contribuíram para o “reino dos desejos
ilimitados na sociedade de massa moderna”, no qual a atomização dos indivíduos
corresponde ao triunfo do número. Em nosso entendimento, o modo como esse reino
dos desejos ilimitados se massifica e acaba paradoxalmente predispondo os indivíduos
a se tornarem intercambiáveis no âmago de suas mais singulares ambições aproximase daquilo Sartre denominou de serialidade do prático-inerte.
No entanto, o que Rancière chama de “processo democrático” perfaz-se não
através do desejo ilimitado, o qual termina por operar a manutenção do status quo,
mas através das ações dos sujeitos, trabalhando nos intervalos das identidades e
reconfigurando as distribuições entre o público e o privado, entre o universal e o
singular. Ao contrário de uma produção ilimitada ou de um desejo ilimitado, o que é
ilimitado no processo democrático é o movimento de deslocamento dos limites entre
o público e o privado, entre o político e o social (2014, p. 81). Esse processo, enquanto
um perpétuo pôr em jogo, é “uma invenção de formas de subjetivação e de casos de
verificação que contrariam a perpétua privatização da vida pública”. (2014, p. 81). O
que Rancière chama de dimensão do “político” é a contradição entre o exercício do
poder e o princípio democrático sobre o qual ele se repousa. (2017, p. 08). É nessa zona
de conflito que o processo democrático se encontra em tensão com o jogo
governamental oligárquico, o qual termina se beneficiando da atomização social.
De onde se levantam então as vozes que criticam e declaram ódio a este
processo, preferindo a incidência do controle da elite oligárquica? Rancière coloca em
suspeita a crítica à democracia, na medida em que ela se transformou em “um ódio à
igualdade pelo qual uma intelligentsia dominante confirma que é a elite qualificada
para dirigir o cego rebanho” (2014, p. 88). Ou seja, o discurso antidemocrático dos
intelectuais de hoje, pelo qual trabalham a oligarquia estatal e econômica, aproximase de um esquecimento do processo democrático. (2014, p. 117).
No entretien Em que tempo nós vivemos?, Rancière reforça que a situação de
ataque à democracia que ele havia denunciado há mais de dez anos ainda não foi
ultrapassada, tendo, até mesmo, se amplificado, a ponto de ter se tornado a grande
causa nacional francesa (2017, p. 09). Nessa ocasião, afirmou o autor que não há
nenhum tipo de receita para revitalizar a democracia, embora se possa criar um
distanciamento de uma visão dominante que assimila democracia e representação,
mostrando que os regimes representativos são cada vez mais oligárquicos.
304 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Em nossa percepção, o esquecimento da democracia se avizinha do discurso
totalitário, reacendendo o ódio e afetando os consensos mais fundamentais. Os
Estados ditos democráticos serão cada vez mais colocados à prova em suas
instituições. Não há como prever até quando resistirão. O que se pode perceber através
de sinais da política internacional, com o discurso de contenção do terrorismo, da
violência, das migrações e do desemprego, é a relativização crescente dos direitos
humanos e das políticas de hospitalidade e de tolerância.
Considerações finais
Toda forma de governo possui riscos de degeneração a ela inerentes. Desde a
filosofia antiga, esses riscos foram estudados nas diversas formas de governo, inclusive
a democracia. Com a modernidade, o governo democrático em seu modelo
representativo estabeleceu-se paulatinamente com o impulso do liberalismo político.
A partir de então, os riscos de degeneração da democracia foram ganhando novas
proporções.
O pensamento de Tocqueville ajudou-nos a compreender, a partir de uma
reflexão crítica sobre o modelo democrático, a importância da descentralização
administrativa e da criação de instâncias intermediárias como contrapeso à
centralização do governo. Além disso, essa análise permitiu enfatizar que um dos
maiores riscos da democracia provém dos efeitos nefastos do individualismo e da
despolitização dos cidadãos.
Por fim, procuramos mostrar que estes riscos são atravessados atualmente por
outras questões que minaram a democracia desde dentro dela mesma, conduzindo ao
totalitarismo. Atualmente, os maiores riscos da democracia são dois: (1) a atomização
social em sua forma contemporânea, alimentada pela sociedade de consumo e pelas
novas mídias, a qual conduziu em um período de crise econômica, à sensação de
impotência e à crise de representação política; (2) o retorno de um discurso totalitário,
contrário aos processos democráticos e mobilizado por uma oligarquia estatal e
econômica condescendente com o retrocesso político.
Fabio Caprio Leite de Castro | 305
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16. RETENTIVIDADE E CONDIÇÕES ASSOCIADAS EM A PHYSICALIST
MANIFESTO DE ANDREW MELNYK
https://doi.org/10.36592/9786587424163-16
Gabriel José Corrêa Mograbi1
A questão da retentividade é central para a configuração teórica do fisicalismo
de realização (alcunha dada pelo próprio Melnyk para seu modelo). Entende-se aqui
retentividade como a capacidade de manter o poder explicativo das demais ciências
que não a física, bem como, idealmente, sua relevância causal (ainda que indireta).
Esse seria um traço fundamental para a distinção de um determinado modelo de
filosofia da mente em relação aos outros: o espectro de sua retentividade - sendo o
eliminativismo o ponto mínimo da retentividade (retentividade zero) e, o dualismo de
substância, o outro extremo - limitando o espectro como que de fora, já que inclusive
a própria questão da retentividade como que perde sentido, por podemos pensar em
poderes causais além do domínio físico sustentando a efetividade de outros saberes.
Em nosso atual quadro teórico dentro do rol majoritário de posições em filosofia
da mente, poucos autores professam o dualismo abertamente e quando o fazem,
raramente, chegam a defender o dualismo de substância, quando muito uma forma ou
outra de dualismo de propriedades que, de alguma forma, reconhece o físico como
fonte constituidora única da realidade.
A grande maioria dos autores adere a uma forma ou outra de modelo fisicalistamonista, pelo menos no que concerne à ontologia. Posições semelhantes às de Melnyk
são muitas vezes taxadas como formas de fisicalismo não-redutivo. Mas, o autor vai
tratar essa questão a partir de seus próprios termos e se declara reducionista, mas, ao
mesmo tempo, defenderá a validade das ciências especiais-e-honorária2, preconizando
PPGF-UFRJ
“Ciência especial”, no vocabulário técnico de Melnyk é qualquer ciência que não seja a física, como por
exemplo a química e a biologia. Ciências honorárias, como o próprio nome diz, são aquelas “pretensas”
ciências, aquelas que não necessariamente aplicam métodos científicos, no sentido estrito do termo,
mas ainda sim poderiam representar alguma forma de conhecimento. Como exemplo, poder-se-ia citar
a psicologia popular (Folk Psychology). A própria construção hifenizada “Ciências especiais-ehonorárias” (special-and-honorary sciences) demonstra a primazia da física como ciência fundamental
e geral no modelo de Melnyk, uma espécie de “ciência primeira”.
1
2
308 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
um caráter retentivo no que concerne não só ao seu valor explicativo, bem como em
relação a sua relevância causal.
O autor estabelece que a possibilidade de garantir a retentividade possa por
identificar tipos funcionais como tipos científicos especiais-e-honorários. Em suas
próprias palavras:
Realization physicalism will turn out to be retentive only if, and to the extent that,
certain functional types whose actual tokens are physically realized turn out to be
identical with special- and honorary- scientific types. (Melnyk, 2003. p. 32)
Como se nota, de maneira patente, a partir do que vemos pela citação anterior,
o modelo em questão é definido como uma forma de fisicalismo identitária (ainda que
extremamente diferente do identitarismo vigente dos anos 1960 ao começo dos 2000)
porque entende ser possível, ao mesmo tempo, defender uma forma substancial de
reducionismos, mas, ao mesmo tempo, defender uma forma capacidade relevante de
retentividade. O intenso debate sobre o que permite a identidade físico mental em
Melnyk ganha seu capítulo mais complexo e confuso. Identidade de tipo ou de token?
Por que não misturar as duas e criar uma identidade não entre físico e o mental, mas
entre aquilo que é descrito pela física e aquilo que é descrito por todas as outras formas
de saberes? É, justamente isso que Melnyk faz: assim, toda possibilidade de
garantirmos os poderes causais das ciências especiais-e-honorárias 3 (doravante
CEeH) passa por identidades entre tokens físicos e funcionais, e depois, por uma
identidade entre tipos funcionais e tipos CEeH. Essa segunda identidade será criticada
em breve.
Além disso, temos de tratar do que o autor chama de Truthmaker Intuition. O
autor preconiza que se, de fato, o fisicalismo é verdadeiro segue-se desta premissa que
as descrições das CEeH são verdadeiras, por sua vez, pela distribuição dos tokens
físicos e das leis da física. Ou, nas palavras do próprio autor:
(TI) If physicalism is true, there must be some sense in which all the true
descriptions of the world framed in the proprietary vocabularies of the specialand-honorary sciences are made true by the distribution in the world of physical
tokens (given the physical laws). (Melnyk, 2003. p. 33). A forma com que o
fisicalismo de realização tenta resolver a aparente contradição entre monismo
físico e retentividade é justamente aquela da qual falávamos no parágrafo anterior:
os tipos CEeH são idênticos a certos tipos funcionais, dos quais todos os tokens de
Gabriel José Corrêa Mograbi | 309
fato teriam de ser realizados fisicamente. Podemos ressaltar esta fragilidade do
realizacionismo, trazendo à tona a seguinte passagem:
Certainly retentive realizationism entails the existence of one-way laws asserting
the sufficiency of conditions specified in physical terms for conditions specified in
special- or honorary- scientific terms; for it entails that, for every actual condition
specifiable in special- or honorary-scientific terms there is a condition specifiable
in physical terms - its broad realizer - that, as matter of (physical) law is sufficient
for it. For, according to retentive realizationism, the fact that the broad realizer of
a given special- or honorary-scientific condition is physically sufficient for it can
be explained as the consequence of (i) the physical sufficiency for the broad realizer
for a certain functional condition, plus (ii) the (metaphysical) sufficiency of this
functional condition for the special- or honorary-scientific condition with which it
is identical.
Valeria perguntar o que exatamente implica a “suficiência (metafísica) desta
condição funcional”. Se dependemos de tala apelo à suficiência de uma condição
metafísica, para além das condições físicas, para garantir a relação de identidade, não
estaríamos de alguma colocando ao monismo físico em jogo?
O problema do arranjo de teses que caracteriza o realizacionismo é justamente
a injunção entre redução e retentividade. Então, devemos nos perguntar: o que é isso
que vai além das condições físicas suficientes e que é ainda uma condição (metafísica)
suficiente? Se já temos uma condição física suficiente para o tipo funcional porque
precisamos de uma suficiência metafísica desta condição funcional para a condição
CEoH? Como pode-se manter-se a identidade entre estas duas condições se uma é
física e a outra metafísica? Ou bem, perdemos a retentividade do sistema, ou bem,
ferimos o fechamento causal do mundo físico.
Apesar de reiterar minha desconfiança em torno da problemática relação entre
a suficiência metafísica para o cumprimento da condição C em um sistema que se
autointitula fisicalista-monista, devo ressaltar que todo o debate em torno das
identidades a posteriori, tal como conduzido pelo autor, no que concerne a linguagem,
parece estar bem estabelecido. Justamente por isso não será nosso alvo de debate.
Devo conceder também a Melnyk que concordo com sua postulação no que se refere a
impossibilidade de atestar a priori essas identidades:
Statements reporting the requisite identities, if discoverable at all, will only be
discovered a posteriori, nondemonstratively inferred from empirical, and even
then perhaps only with great difficulty. (Melnyk, 2003. p. 35)
310 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
No entanto essa postura mais naturalista aqui preconizada parece incongruente
com maneira pela qual se daria o cumprimento da condição associada de tipo é que
possibilita a implementação dessa identidade. Vejamos então o que o autor diz sobre
este tema:
The laws invoked in specifying an associated condition, then might be causal or
non-causal; and we can add that laws of either kind need not be strict and
deterministic, but might also be probabilistic or hold only ceteris paribus (however
that should to be understood best). (Melnyk, 2003. p. 38)
Até mesmo o emergentista Samuel Alexander estranharia essa citação. Como
sabemos, a máxima de Alexander é a de que "existir é ter poderes causais". Mesmo
uma posição emergentista parece ser mais forte em termos de critérios do que essa de
nosso autor. As leis para o preenchimento das condições associadas de um tipo podem
ser causais ou não causais, não precisam ser estritas ou determinísticas, podem ser
probabilísticas ou ceteris paribus. Enfim, vale quase qualquer coisa. É claro que o
próprio autor reconhece que isso deve ser melhor explicado. Então vejamos o que mais
ele nos para esclarecer este ponto:
Similarly, a lower-order type's meeting of an associated condition might be a
matter of its tokens’ standing in other relation than nomic ones (e.g.
spatiotemporal relations). Again, a type's meeting of an associated condition might
require the holding of certain, specified circumstances that are external to, and/or
earlier (or indeed later) than, tokens of that type.
O que está sendo aqui afirmado é que os tokens de ordem inferior, ou em
consonância com outras passagens até aqui analisadas, tokens físicos são governados
por leis outras que nômicas e como exemplo de que natureza possam ter estas relações,
o autor elenca como exemplos paradigmáticos as espaço-temporais. Deve-se entender
estas relações como relações governadas por leis da física se uma posição filosófica se
autointitula fisicalista. Mas, será que, meio a contrabando, Melnyk assume a relação
espaço-tempo por uma via Kantiana, como se fossem intuições puras a priori? Outro
ponto que podemos considerar para tornar mais precisa esta definição é a nota de
rodapé que aparece comentando a primeira parte de nossa última citação onde o autor
mostra sua concordância parcial com a visão de Kim: "Here I part company with Kim,
in whose terminology a functional type is a second-order type 'defined in terms of
causal/nomic relations'" (Melnyk apud Kim 2003. p.38). Se, bem compreendo o autor
Gabriel José Corrêa Mograbi | 311
neste momento ele estaria estabelecendo que, quando pensamos em tipos funcionais,
as relações estariam restritas às formas possíveis de interação previstas nas leis da
física, o que parece dizer que estas são relações causais, apesar de nosso autor não ter
dado uma definição realmente clara do que seja a física, ou mesmo, qual seja a natureza
de uma lei física. Como já demonstramos a natureza, dessas leis fica em aberto. Mas,
nota-se que a ideia de que um tipo funcional seja um tipo de segunda ordem definido
em termos de relações causais/nômicas aponta para a possibilidade de que além de
relações causais, estes tipos possam ser marcados por outros formas de relações que
não sejam causais, estrito senso. Mesmo assim, para o autor, estas relações que seriam
nômicas, mas não necessariamente causais, ainda poderiam seguir tendo viabilidade
de também serem caracterizadas a partir de relações causais. Esta forma d entender
tipos funcionais é construída para que, mantendo-se a relevância causal destes tipos,
possamos ainda apelar para relações não-causais na definição do cumprimento de suas
condições associadas: esse é o pulo do gato. Passemos a considerar um exemplo no
qual o autor faz menção a certas condições que não poderiam ser entendidas pela via
da mera superveniência ao físico:
Consider, for example, genuine coins, whose narrow realizers need to be regarded
in a certain way by some population (e.g. desired not for use but exchange) and
have had a certain historical origin (e.g. to have been manufactured in the royal
mint). So special- or honorary- scientific types whose tokens do not supervene
upon simultaneous and local physical conditions might still be functional types in
my sense.
O exemplo das moedas genuínas é especialmente interessante porque vai se
coadunar com nossa análise anterior da propriedade de ter circulação, valor de troca,
lastro (having currency). O exemplo é especialmente interessante porque acaba por
mostrar as limitações da relação de superveniência. A simultaneidade que caracteriza
as relações de superveniência, para nosso autor, não poderia dar conta de
propriedades como a circulação (having currency). Neste ponto estou em pleno
acordo com Melnyk. Existem condições que se estendem no tempo de tal maneira que
a simultaneidade das relações de superveniência parece por demais idealizada para
dar conta. Mas o problema mesmo da maioria das visões metafísicas é este de
trocarmos o pouquíssimo plausível pelo ainda implausível. Não estou aqui defendo
uma abordagem livre de qualquer teoria e bem ao contrário acredito que toda
312 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
abordagem traz consigo um ponto de vista que acaba por trazer uma ontologia na sua
base, por vezes explícita, temática e consciente, por outras, subterrânea e indiscutida.
Por isso, alguma discussão de natureza ontológica teremos sempre presente em
qualquer teoria. E, acredito que, se esta se faz de maneira clara e temática prestamos
melhor serviço a compreensão de um tema. O problema aqui presente é a natureza um
tanto contraditória do método de Melnyk que já caracterizamos de maneira exaustiva.
O que o autor faz é um bravo esforço de partir de uma visão metafísica e tentar
encontrar evidências empíricas que mostrem sua validade. Mas o problema reside na
forma com que esta tentativa se realiza. As relações de realização caracterizadas pelo
autor são uma possibilidade de entender a questão da retentividade e da redução por
um caminho distinto daquele operado pela nossa visão corrente fundada na
superveniência e sua forma por demais simplificadora da forma como o físico sentido
estrito realiza aquilo que não é físico no sentido estreito. Mas, acaba por incorrer no
mesmo processo de simplificação à medida em que cria condições metafísicas a serem
cumpridas, e tem nas suas evidências empíricas que garantiriam a validade de seu
modelo, evidências que poderiam ser apropriadas por diversos outros modelos
fisicalistas. O fisicalismo de realização pode ser projetado no mundo e de alguma forma
"encontrado", visto que sua estrutura lógica é simples o suficiente para ser uma
possibilidade de ler a realidade, mas, de qualquer forma, não resolve de fato toda a
sorte de problemas epistemológicos já aqui elencados. Por outro lado, utiliza uma série
de noções metafísicas que em outras abordagens onde o caráter apriorístico e
puramente metafísico das teses não é visto com maus olhos. O comentário de Joseph
Levine sobre o texto de Andrew Melnyk pode ser bastante interessante neste ponto da
discussão:
On the one hand, Melnyk emphasizes its contingency; he even describes it as
“strongly contingent”. Given his understanding of physicalism as very much a
scientific hypothesis on a par with physics itself, it makes sense that it shares
physical theory’s modal status. On the other hand, Melnyk also emphasizes that
the realization relation, as mentioned above, involves metaphysical necessity. (...)
Now, one might wonder how physicalism could be contingent if the physical base
metaphysically necessitates all that is realized by it. (Levine, 2003)
Pelo que se pode notar na citação de Levine não sou apenas eu que fico
impressionado com o problemático estatuto do sistema de Melnyk. Como defender a
possibilidade de apresentar um sistema definido como fortemente contingente que
envolva necessidades metafísicas? Parece amplamente incoerente postular um sistema
Gabriel José Corrêa Mograbi | 313
repudiando o caráter apriorístico, mas ao mesmo tempo, lançar mão de noções
metafísicas de necessidade que sejam tão determinantes para todo o estatuto
ontológico deste mesmo sistema. Levine termina sua recensão sobre o livro de Melnyk
de "A Physicalist Manifesto" com uma ironia bastante aguda: "I’ll end on one ironic
note. Given Melnyk’s formulation of physicalism, it turns out he thinks the doctrine
he’s defending is less likely to be true than I think the doctrine I’m attacking is". (Ibid)
Em visões como a de Levine e outras posturas que de fato não se importam com
o caráter mais metafísico de argumentos e considerações, a posição de Melnyk no que
concerne ao uso de necessidades metafísicas seriam mais naturalmente aceita que do
na própria visão de Melnyk. O autor acaba por realizar aquilo que ele mesmo ataca
quando se trata de defender o caráter retentivo de seu sistema.
Além disso, devemos lembrar que estas teses de natureza metafísica seriam
mais bem fundamentadas e elaboradas em sistemas abertamente metafísicos sem que
se justifique seu caráter meramente científico-estipulativo-hipotético (falsificável, a
posteriori e contingente), como faz nosso autor, a partir de uma defesa do caráter
puramente contingente do modelo e de sua validação a partir de evidências empíricas
que o comprovem. Certamente estas visões que tendem a mais pureza metafísica que
as de Melnyk poderiam ser, muito possivelmente, mais mitológicas ou fantasiosas
mesmo que mais elaboradas em termos lógicos e ontológicos. No entanto, as relações
nômicas tais como postuladas por Melnyk são epistemologicamente muito mais fortes
que as próprias premissas fundamentais de seu Fisicalismo. Antes de tudo, devo
ressaltar que os desiderata de Melnyk são muito semelhantes aos meus em muitos
aspectos, grosso modo: um sistema que se defina como a) fisicalista, b) redutivo no
que concerne a ontologia fundamental e os elementos fundamentais da causação e c)
retentivo (ou não redutivo) no que concerne a manutenção da relevância ciências
especiais e algumas relações nômicas da psicologia popular. No entanto, a forma que
o autor defende muitas premissas que temos em comum não me parece tecnicamente
convincente.
Referências
MELNYK, A. A Physicalist Manifesto: Thoroughly Modern Materialism. Cambridge:
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314 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
LEVINE, J. Comments on Melnyk’s a physicalist Manifesto. Disponível em:
https://essaydocs.org/comments-on-melnyks-a-physicalist-manifesto.html
17. “ESTADO, MOVIMENTO, POVO” (CARL SCHMITT) - UMA
PROVOCAÇÃO
https://doi.org/10.36592/9786587424163-17
Hans-Georg Flickinger1
Nota preliminar
Na tentativa de diagnosticar problemas atuais ligados ao espírito liberal, é
ousado trazer ao debate político um pensador como Carl Schmitt. Comprometido com
a ideologia nacional-socialista, desde os anos trinta do século passado, ele é autor de
vários textos favoráveis ao Terceiro Reich. Entre esses, “Estado, Movimento, Povo”, de
19332, é decerto um dos mais agressivos contra o mundo liberal-democrático. Preciso,
por isso, legitimar a escolha desse texto como base às minhas considerações finais.
Penso que, sempre, ao invés de desvalorizar uma argumentação que não seja a
própria, é bem mais proveitoso tomá-la a sério; pois, utilizando-nos dela, nós não
compreendemos apenas as diferenças específicas de nossa própria argumentação,
senão, também, preconceitos e possíveis falhas, que possam estar minando essa nossa
abordagem crítica. De fato, apreende-se mais mediante o confronto com uma posição
oposta à nossa, que seja, naturalmente, séria, do que através de uma atitude ideológica,
que busque apenas confirmar nossa convicção. Trata-se, nisso, de uma experiência
hermenêutica, à qual se junta o fato de cada texto, uma vez lançado, falar por si mesmo.
Quero dizer, que ele se torna, com isso, objeto de interpretação e exploração
independentemente das convicções de seu autor. Em outras palavras, é-nos, sim,
possível, deste modo, avaliar os argumentos apresentados pelo texto, sem aceitar as
conclusões a que seu próprio autor chegou. Esses são alguns aspectos, que me levam
à retomada crítica do texto do autor em questão, de 1933, sem ter de defender-me da
acusação de estar compartilhando a ideologia nele defendida.
O ensaio de Schmitt tem função dupla. Ele visa, antes de tudo, legitimar a
concepção nacional-socialista do Estado forte e o faz polemizando contra a
Constituição de Weimar. Segundo o autor, essa Constituição alemã, em vigor entre os
1
2
Universidade de Kassel/Alemanha/PUCRS.
Publicado em 1933, pela Hanseatische Verlagsanstalt Hamburg.
316 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
anos 1919 e 1933, apresentaria, de modo exemplar, os defeitos intrínsecos à construção
do Estado liberal do Direito; defeitos já apontados em outro trabalho seu, sob o título
“A crise da Democracia Parlamentar”, de 1923.3
Toda polêmica segue uma lógica argumentativa própria, porque não leva em
conta o horizonte de entendimento de seus leitores. É o caso do texto de Schmitt, a que
nos voltamos aqui, a saber, “Estado, Movimento, Povo”. Pois, nele, ao invés de
primeiro confrontar o leitor, com a crítica ao Estado liberal do Direito como base
argumentativa para sua defesa do modelo constitucional implantado pelos nazistas, na
Alemanha de 1933, C. Schmitt começa com a apresentação eufórica deste modelo,
passando à sua análise mais sistemática, para, só no terceiro capítulo, trazer à tona os
motivos que o levavam a denunciar o espírito liberal-democrático da Constituição de
Weimar. Essa inversão da sequência argumentativa explica-se única e exclusivamente
pelo fervor, com qual C. Schmitt saudou a ruptura política no cenário alemão ao início
dos anos 30. Foi, provavelmente, essa postura entusiasta e pouco refletida, que o levou
a perder seu habitual rigor de reflexão, dando lugar a uma miscelânea esquisita de
considerações constitucionais, políticas e ideológicas.
A fim de entendermos melhor o fio condutor da argumentação de C. Schmitt,
acho oportuno apresentar os capítulos na sua sequência invertida. Iniciarei meu relato
com a sua crítica à Constituição de Weimar, logo, no terceiro capítulo do ensaio, para
após discutir o cenário político alemão em 1933, que ele havia exposto em seu primeiro
capítulo. A partir daí, serão avaliadas as razões com as quais Schmitt legitima - no
segundo capítulo - a concepção do Estado forte. Concepção esta oposta, portanto, ao
Estado liberal do Direito na sua postura de ideólogo nacional-socialista. Essa avaliação
me servirá de apoio, para apontar problemas do Estado liberal do Direito
contemporâneo; problemas esses, que vêm, sem dúvida, preocupando a Teoria política
atual, em especial no tangente à doutrina da Constituição. A pergunta que se coloca, é
quanto ao que se poderia extrair da diagnose político-sistemática de C. Schmitt, acerca
do estágio de desenvolvimento do atual Estado liberal do Direito, embora sua execrável
carga ideológica?
No original: Carl Schmitt, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus,
(4ª edição, Berlin 1969); trata-se da reprodução da 2º
edição de 1927. A edição portuguesa: Editora
Página Aberta, São Paulo 1996.
3
Hans-Georg Flickinger | 317
A crítica do modelo bipolar da Constituição de Weimar
A um primeiro olhar, a crítica de Schmitt em relação ao Estado liberal do Direito
não traz argumentos novos. Segundo ele, o modelo nascido das revoluções burguesas
e adotado, ao longo do século XIX, por muitos países ocidentais, vive do que ele chama
a oposição entre Estado e indivíduo livre, entre poder e liberdade, entre as esferas
política e privada. A bipolaridade e tensão entre momentos opostos são tidas como a
marca principal da Constituição liberal. Disso daria prova a Constituição de Weimar,
ao separar explicitamente a parte que trata dos direitos fundamentais liberais daquela
que determina as regras básicas da organização do Estado. Pergunta-se, portanto, pela
verdadeira relação entre essas duas partes e as consequências daí provindas para a
articulação do Poder político.
A primeira pergunta recebe sua resposta liberal mediante o sentido da
expressão “direitos fundamentais liberais”. Tomados à risca, esses direitos reivindicam
primazia absoluta em detrimento de qualquer outra fonte de ordenamento da vida do
cidadão. Eles sobrepõem-se, também, ao agir do Estado restringindo seu poder de
intervenção na esfera privada. Tendo isso em visita, C. Schmitt conclui que a atuação
do Estado estaria submissa, de fato, às diretrizes e ao controle da Sociedade civil. O
Estado liberal se tornaria, assim, um joguete da última, ficando incapaz de cumprir a
função de instância política superior e de garante da unidade política do povo.
Uma vez aceito esse raciocínio, a resposta à segunda pergunta pela articulação
do Poder político é previsível. Pois, se a atuação do Estado dependesse mesmo do
espaço político a ele concedido pela Sociedade civil, seria vão procurar o poder político
supremo no Estado. Muito pelo contrário, esse poder se articularia na Sociedade civil
que, por seu lado, estaria sujeita à heterogeneidade crescente da população. Isso
apontado, C. Schmitt busca achar as razões da perda do lugar autônomo do político.
Para compreender seus argumentos e avaliar sua atualidade no cenário político
contemporâneo, é necessário lembrar que a Sociedade civil se apresenta, hoje, como
um complexo altamente heterogêneo. Ela é composta por várias correntes sociais, cuja
articulação de interesses parciais, às vezes até mesmo opostos entre si, serve-se de
figuras legais do Direito civil: fundação, associação, sociedade anônima, etc.. Há
também categorias profissionais, partidos políticos, sindicados de trabalhadores e do
empresariado, associações de cunho religioso, corporações com fins culturais – o
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espectro de atores coletivos de interesse particular, ancorados na Sociedade civil, é
amplo e vem crescendo. Certos de que a defesa de interesses deveria ser mais efetiva
mediante a articulação jurídico-civil coletiva, cada um desses atores tenta agir no
espaço concorrido da legislação, intrometendo-se nas decisões do rumo da política –
o fenômeno de lobbyismo que, não raro, atinge até mesmo a atuação da Administração
pública, é um excesso típico dessa postura. A transferência contínua do poder político
para a Sociedade civil resultaria, portanto, da lógica liberal e faria com que o Estado
perdesse seu papel verdadeiramente político. Essa a constelação, que Schmitt destaca
como o calcanhar de Aquiles do Estado liberal do Direito.
A análise de Schmitt traz à tona seis aspectos estruturais, que ele acredita serem
responsáveis pelo deslocamento e enfraquecimento do espaço do político. Em
primeiro lugar, ele aponta à parcialidade dos interesses defendidos pelas corporações
civis, as quais, mesmo assim, querem impô-los como se fossem interesses gerais. Não
seria mais o indivíduo particular, em primeira linha, que defenderia sua liberdade
contra a intervenção do Estado na esfera privada. Muito mais potentes, na política
hodierna, seriam os atores coletivos bem organizados, que se aproveitam da liberdade
civil, para atuar na política, sem assumir responsabilidade política pelas
consequências desse seu agir. Na atuação desses atores coletivos, ter-se-ia um poder
não estatal que, mesmo assim, poderia jogar a responsabilidade política de sua atuação
às instituições estatais.
Um outro momento destacado por Schmitt resulta do primeiro; a saber o
pluralismo partidário no Parlamento, como legislador supremo. Como a legitimação
do conteúdo das leis dependeria unicamente da conquista da maioria dos votos dos
parlamentares, e diante do fato de que os Partidos políticos representariam os
interesses parciais de sua respectiva clientela, o processo de legislar assumiria o
caráter de negociação entre os Partidos, com o objetivo primordial de alcançar o
número necessário de votos – a maioria simples ou, em casos especiais, qualificada.
Em busca de resultados aceitos pela maioria quantitativa dos deputados, a negociação
política deslocaria a razoabilidade dos conteúdos para um segundo plano. Um tal
processo se assemelharia, é óbvio, a um tipo de negociação praticado em Bazar
oriental. Infelizmente, é isso que acontece até hoje: os líderes dos Partidos negociam
projetos de lei em salas fechadas e ocultos ao olhar dos eleitores. Assuntos de interesse
público tornam-se, assim, objeto de negociações secretas. Com isso, o pluralismo
Hans-Georg Flickinger | 319
partidário não representa apenas a multiplicidade de interesses das organizações civis;
segundo os resultados da negociação, os projetos determinam também o alcance e os
limites da atuação política do Estado. Dito de modo mais radical: os procedimentos do
Parlamentarismo representativo reforçam a primazia política da Sociedade civil diante
do Estado, desvirtuando, obviamente, a função tradicional do último enquanto
articulador e guardião da res publica.
O terceiro momento destacado por C. Schmitt, tem a ver com o que hoje é
debatido sob o título ‘proceduralismo’.4 O conceito aponta à importância das regras de
procedimento, cuja observação, por si só, fiel ao princípio da legitimação pelo
procedimento, faria valer os conteúdos.5 A crítica de Schmitt denuncia a tese liberal de
que o procedimento legal deveria ser visto como condição suficiente para a legitimação
do conteúdo das decisões. Para entender esse aspecto, teríamos de lembrar o papel
específico do Direito no sistema liberal; algo que não posso fazer, aqui.6
Com o quarto aspecto, Schmitt bota o dedo no que considera a ferida principal
da Constituição liberal. Pois, segundo a construção bipolar dessa Constituição, o
Estado não pode meter-se nos conflitos que surgem na Sociedade civil, tornando-se,
com isso, um Estado fraco, porque exposto à manipulação pelas forças civis. Esse
aspecto, leva C. Schmitt a perguntar aonde se ocultaria a liderança política, no Estado
liberal de Direito. Haveria possibilidade de uma reconquista do espaço autônomo do
político?
Essas perguntas levam-nos à quinta observação, isto é, ao problema expresso
na pergunta pela “organização sustentadora do Estado e do povo”. Uma retrospectiva
histórica mostra vários modelos de liderança política com uma marca comum; a saber,
a visibilidade do poder político. A Igreja, o monarca, oligarquias ou ditadores - a
verdadeira liderança política sempre foi imposta e demonstrada ao povo de modo
público. Insígnias e símbolos indicam seu reconhecido poder político. Em
contrapartida a essas tradições, a Constituição liberal permitiria, segundo Schmitt, que
O conceito indica a concepção segundo a qual a legitimidade de decisões políticas dependeria única e
exclusivamente do respeito pelas regras de procedimento democráticas e honestas; ele remete a
argumentos encontrados originalmente em Teoria da Justiça, de John Rawls.
5 Publicado pela primeira vez em 1966, refiro-me à edição do Suhrkamp-Verlag, Frankfut/M, 1983, sob
o título Legitimation durch Verfahren.
6 Ver, sobretudo, Carl Schmitt, Legalidade e Legitimidade (Legalität und
Legitimität, 1ª
edição, Verlag Duncker & Humblot, Berlin, 1932). Tradução Portuguesa: Editora del Rey, Belo
Horizonte, 2007.
4
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os verdadeiros detentores do poder se escondessem e atuassem como que na
clandestinidade. A bipolaridade de Estado e Sociedade civil, que faz do Estado um
mero administrador dos compromissos fechados entre atores civis, não revelaria o
verdadeiro lugar constitucional que visualizasse a efetiva liderança política. Nem
mesmo a definição de diretrizes econômicas por parte do Estado seria possível, pois
ela minaria a bipolaridade do modelo político.
O sexto e último aspecto da crítica de C. Schmitt, recorre à Filosofia do Direito
de Hegel, que, já na primeira parte do século XIX, teria destacado a construção triádica
do poder político. O grande feito do filósofo idealista, teria sido o ter identificado, no
Estado prussiano, uma liderança política capaz de sobrepor-se aos egoísmos coletivos
manifestos na Sociedade civil. Na época de Hegel, o funcionalismo público teria
assumido o papel de instância ético-política e de organização sustentadora do Estado.
Nas palavras de Schmitt, o funcionalismo público alemão do século XIX, “nunca foi
mero aparato burocrático...senão um poder autônomo no Estado.”7 Eu não discuto,
aqui, a validade dessa afirmação. O que importa é o fato de C. Schmitt ter atribuído a
força e estabilidade do Estado prussiano à implementação de uma lógica triádica, que
incluía, além do Estado e da Sociedade civil, o funcionalismo público, como garante da
unidade ideológica do povo.
Com o último raciocínio chegamos ao que move a argumentação de Schmitt, no
segundo capítulo de seu ensaio, intitulado “A construção triádica da unidade política”.
Este, como se sabe, é o modelo contraposto pelos Nacional-socialistas ao Estado liberal
de Direito; uma contraposição que, evitando as falhas da construção liberal,
recuperaria o sentido forte do conceito do político.
Em defesa da construção triádica da unidade política
A crítica da Constituição de Weimar teria posto à luz os aspectos, que, ao ver de
C. Schmitt, legitimavam a reviravolta político-constitucional dos anos 30, na
Alemanha. A situação caótica da República de Weimar, nos seus últimos anos,
caraterizada pelo esfacelamento da liderança política, teria exigido sua reestruturação.
Como já dito, “Estado, Movimento, Povo” é um texto polêmico. É compreensível,
Nos séculos XVIII e XIX, o funcionalismo público prussiano foi reconhecido como camada
sustentadora do Estado e defensor de um éthos específico da atuação do Estado.
7
Hans-Georg Flickinger | 321
então, que o relato das mudanças constitucionais de 1933, apontasse, antes de tudo, às
caraterísticas novas e próprias a legitimar o projeto constitucional triádico dos
Nacional-socialistas.
O espírito polêmico do texto, levou C. Schmitt a recorrer a afirmações nem
sempre sustentáveis do ponto de vista jurídico. Sem entrar em detalhes, contento-me
com indicar apenas três delas. A primeira, eu a extraio de um trabalho seu publicado,
pouco antes, sob o título “O conceito do Político”8; trabalho este, no qual ele defende a
tese da primazia absoluta do político em relação a qualquer outra área da vida social.
A tese seria válida, portanto, também em relação ao Estado do Direito como modelo
constitucional. A unidade política do povo poderia ser garantida única e
exclusivamente à base do reconhecimento geral de um órgão de liderança, ao qual
caberia a última palavra. Essa tese, bem vemos, explica ademais a usurpação do direito
de legislar pela pretensa liderança política do Movimento nacional-socialista,
representada na figura do Führer.
A segunda afirmação em defesa da atuação dos Nacional-socialistas refere-se à
eleição da Câmara dos Deputados (Reichstagswahl), em 1933. C. Schmitt interpreta
essa eleição como plebiscito em favor da liderança política personificada no Führer,
Adolf Hitler. Com essa interpretação forçada, ele pretende sustentar, tanto a ficção da
unidade da vontade coletiva do povo quanto a base de legitimação, sem restrição legal,
do poder político de Hitler.
É evidente que, da perspectiva de Weimar, tal transformação das eleições em
plebiscito infringia as regras formal-legais até então em vigor. C. Schmitt apressou-se
a minar essa objeção com sua terceira afirmação, na qual postula a ruptura radical da
“Constituição” de 1933 (eis sua interpretação do Ato Institucional do 24 de março de
1933), logo, da Constituição de Weimar, e, juntamente, o reconhecimento de uma base
própria e autêntica da nova “Constituição”. Têm-se, aqui, o abismo que sempre se abre
quando da passagem da Constituição vigente para uma nova, pois Constituição
nenhuma é detentora das regras de sua auto-suspensão em favor da elaboração de uma
outra. Sem qualquer laço legal entre ambas, cada Constituição basear-se-ia em
dispositivos políticos pre-jurídicos, independentes das regras em vigor na Constituição
8 No original: Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen, de 1932; a reprodução
do texto, com um
prefácio e três corolários, na 2ª edição, Verlag Duncker &
Humblot Berlin 1963. A edição em
português: O conceito do político, Editora Vozes, Petrópolis 1990, com apresentação minha.
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anterior. De modo que, a Constituição nacional-socialista deveria ser interpretada
como isenta da contaminação pelo espírito de Weimar.
O desafio de “Estado, Movimento, Povo”
Sem dúvida, os raciocínios de C. Schmitt arrastam um peso ideológico muito
forte. Peso este, que, entretanto, não desvaloriza a diagnose estrutural de Schmitt, que
culmina na tese de o Estado liberal de Direito ter destruído o lugar autêntico do
político, e se tornado, com isso, susceptível à usurpação do poder por parte de forças
civis fortes. Estas usariam os meios legais, para impor seus interesses particulares
como se fossem interesses comuns. O Estado liberal do Direito ficaria, assim, obrigado
a acolher quaisquer demandas de indivíduos ou grupos particulares, desde que
articuladas dentro das regras legais do jogo. O que levaria a legitimidade do conteúdo
das demandas e seu efeito para o bem comum a perder sua função de ser critério, para
as decisões.
C.
Schmitt vê no projeto nacional-socialista o caminho de inverter essa
tendência perigosa. Para ele, nem o Estado, que, como instituição politicamente
estática, vê na administração da dada ordem público-jurídica sua tarefa principal, nem
o povo, tido como apolítico e interessado em satisfazer suas mais diversas demandas,
poderiam dar impulsos essenciais no sentido de estabelecer a unidade política. De
modo que, ao estabelecer uma liderança política como instância de decisão última,
seria o projeto nacional-socialista que traria a solução do problema.
Como já vimos, Schmitt diferencia três pilares, nos quais a unidade política do
Estado nacional-socialista se apoia: o Estado visto como instância político-estática,
responsável pela administração ordenada da sociedade; o povo tido como apolítico e
preocupado com a auto-organização de seus espaço e convívio sociais; e o Movimento,
como instância político-dinâmica e promotor vanguardista da política. Segundo
Schmitt, tal construção triádica representaria o modelo mais avançado das
Constituições políticas do século XX, ao substituir a visão do liberalismo do século
XIX. É importante observar que a revitalização desse liberalismo (do XIX), hoje – nós
diríamos, no Neoliberalismo – deveria ser considerada, de qualquer modo, um
retrocesso. Aliás, esse modelo triádico nem mesmo seria novidade; o próprio C.
Hans-Georg Flickinger | 323
Schmitt lembra o projeto político dos Bolchevistas, no qual o Partido Comunista
assume a função dinâmica de liderança política.
O motivo que levou Schmitt a seguir sua estratégia argumentativa não deixa
dúvidas. Ele tem em vista a reconquista e sustentação do lugar autêntico do político,
na luta contra o caos daqueles últimos anos da República de Weimar. Para alcançar
esse objetivo, ele opta por um Estado forte, isto é, um Estado que deveria implementar
a liderança política em todas as áreas da comunidade. Contra a dissolução do poder
político, que teria causado a fraqueza do Estado liberal de Direito, C. Schmitt atribui á
liderança política uma qualidade para assim dizer ontológica ou pré-constitucional.
Sua âncora estaria no “pensamento concreto e substancial do Movimento nacionalsocialista”, com o sentido existencial de “presença imediata e real”. Essa ontologização
do espaço político faria com que qualquer ideologia pudesse usurpar esse espaço, para
inscrever e garantir a unidade política. O critério fatal, de raça, foi apenas um possível;
em outras épocas, apelou-se a outras ideologias. Na verdade, a implementação da
Constituição triádica, não traz consigo qualquer compromisso com uma determinada
ideologia; ela deixa a porta aberta para as mais diversas opções, segundo sua
potencialidade de oferecer critério útil à organização e dinamização do espaço político.
O que decide sobre a escolha de um critério são, de fato, os dispositivos reais. Bem, a
seguir, e antes de tomar os argumentos de Schmitt como provocação frente à situação
política atual, vale a pena lembrar algumas tentativas do Estado liberal do Direito no
sentido de vencer as sérias dificuldades que ele opõe a si mesmo.
Foi o próprio Estado liberal do Direito que, já na segunda parte do século XIX,
lutou com os problemas de sua construção bipolar. Sua busca de manejar crises
econômico-sociais, surgidas, então, em grandes proporções, na Sociedade civil, é uma
prova disso. Penso, por exemplo, no debate sobre a transformação do Estado liberal
do Direito em Estado social do Direito; um debate difícil, que implicava no risco de se
passar ao Estado a tarefa política de solucionar problemas que não competiam a ele,
devido ao cunho a ele imposto pelo modelo bipolar, ou seja, o da separação das
responsabilidades entre Estado e Sociedade civil. Tal risco foi evitado mediante
solução inteligente e dentro da concepção liberal bipolar. A reforma social,
implementada então por Bismarck, na Prússia – que se tornaria modelo para a maioria
dos sistemas de seguridade social nos países ocidentais - reagiu às crises nas áreas da
saúde, do trabalho, do trânsito e outras, criando comunidades de risco, ou seja, fundos
324 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
financeiros alimentados pelos empregados e empregadores, enquanto atores da
Sociedade civil. Tal solução deixou o Estado de fora e livre da responsabilidade social.
Ao invés de afrouxar a construção constitucional bipolar, essa política a consolidava.
A ideologia liberal, inicialmente saudada sem restrições, como grande avanço
da liberdade pessoal diante do Estado absolutista, não demorou, porém, a mostrar
outros lados problemáticos. Falo, primeiro, da submissão contínua do Estado e da
Sociedade civil à lógica econômica do capital. A mão invisível do mercado, com o
capital no lugar de um deus absconditus, assumiu a função de última instância de
poder político. Quanto mais radical esse processo, tanto maior a supressão de
demandas legítimas de parte das populações, que sofriam os efeitos dessa lógica. A
reação não demorou. O reprimido faz-se valer, como sabido, em situações e formas de
expressão imprevistas, e não surpreende que surgissem, no final do século XIX,
embora em estágio embrionário, novos atores políticos; a saber, movimentos sociais e
sindicatos. Nascidos no bojo da sociedade civil, eles lutaram para dar voz a interesses
coletivos, que se mantinham, até aí, desconsiderados pela Sociedade civil e igualmente
negligenciados pela política estatal. Na verdade, não se tratava, ainda, de uma
politização da Sociedade civil como um todo, mas esses Movimentos representaram
fortes impulsos à política social posterior.
Apontou-se, desse modo, à terceira ferida importante causada pelo modelo
bipolar. A ordem liberal, inicialmente festejada, como grande conquista, os seus
protagonistas não se deram conta – até a segunda parte do século XX – da
despolitização e simultânea despotencialização de grande parte das populações.
Problemas do sistema educacional, do meio-ambiente, da distribuição da riqueza – eis
só algumas áreas que precisam e ainda esperam soluções. Despolitizada, a população
deixa nas mãos do Estado encontrar as respostas. O Estado liberal do Direito, por sua
vez, não assume a tarefa, porque, com meios legais, teria de lidar com uma
heterogeneidade de interesses, que restringiriam seu campo de ação. Nada mais
natural, portanto, do que o surgimento de novos atores políticos, os quais pretendem
alcançar pelo menos três objetivos: reconquistar a plataforma pública, para o debate
sobre diversas demandas da população; fazer reconhecer a multiplicidade cultural,
social e ideológica como dispositivo do novo cenário político; e reforçar a legitimidade
da atuação política do Estado e das diretrizes sociais.
Hans-Georg Flickinger | 325
Em contrapartida aos Movimentos sociais do fim do século XIX, que se
movimentavam ainda dentro das regras do jogo legal, com os novos Movimentos
sociais da segunda parte do século XX, anunciou-se um problema crucial para a
Constituição liberal bipolar: como lidar com atores políticos, que não se enquadram,
nem nas regras de atuação da Sociedade civil nem no aparelho institucional do Estado?
Depois da Segunda Guerra Mundial e da extinção do Terceiro Reich, a questão ganhou
urgência por duas razões. Primeiro, a instrumentalização de um “Movimento” pelos
Nacional-socialistas reforçou a suspeita de que quaisquer Movimentos sociais e outros
novos atores políticos – por exemplo a Oposição extraparlamentar, NGOs, seitas
religiosas fundamentalistas - pudessem assumir posições totalitárias. Não por acaso,
os Novos Movimentos sociais, surgidos a partir dos anos sessenta do século passado,
foram vistos como ameaça ao Estado liberal do Direito. Além disso, a avaliação
negativa viu-se alimentada por um segundo fator. É que, no intuito de chamar atenção
dentro do espaço político, não raro, esses Movimentos e atores utilizaram-se de ações
nem sempre legais, visando estimular a agitação pública em torno às suas demandas
e, deste modo, forçando a área política a preocupar-se com estas. O Movimento
ecológico, na maioria dos Estados ocidentais, é exemplo típico dessa experiência
equivocada; equívoco este, que se reconhece na pecha de tratar-se, nele, de um mero
“eco-fascismo”.
Bem, eis que chegou a hora de eu esclarecer o motivo que me faz buscar,
justamente no ensaio, altamente problemático ideologicamente, de C. Schmitt,
argumentos para esclarecer o lugar e o papel dos novos atores políticos dentro do
Estado liberal do Direito. Qual, eu pergunto, o desafio colocado pelas conclusões, a que
chega o referido ensaio, frente a experiências com movimentos do tipo, “Diretas já”,
“Friday for future”, e outros? A tese que defendo é a de que, o modelo triádico poderia
servir-nos de inspiração, no sentido de tomarmos os novos Movimentos sociais como
um terceiro pilar político, desde que não encubram ideologias totalitárias. Sua missão
principal consistiria na reconquista do espaço público como lugar de avaliação dos
diversos interesses coletivos e sua legitimidade, assim como na troca das mais variadas
ideias interpretadas como contribuição à res pública. Questionando, deste modo,
também a regência totalitária do capital, os Movimentos sociais agiriam como motor
na dinâmica do desenvolvimento característica da sociedade contemporânea. Esse
papel pressuporia, portanto, não apenas o seu reconhecimento como terceiro pilar
326 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
político, senão também a abertura real de um espaço político próprio entre o Estado e
a Sociedade civil.
É claro, que se trata, aqui, de uma visão idealista; de modo que, não seria nada
fácil providenciar os meios adequados de sua realização. A pergunta que me ocorre, é
quanto a se deveríamos permitir aos novos atores, pensados como terceira força, o
favorecimento do princípio de legitimidade em detrimento daquele da legalidade?
Qual o procedimento certo frente à decisão acerca da legitimidade das demandas? O
Estado liberal do Direito deveria levar mais em conta a base existencial e, por isso, préconstitucional de sua atuação? A Constituição de 1988, que fala do “Estado
democrático do Direito”, encontra aí o seu verdadeiro significado? Seria necessário
pensarmos em um modelo novo da res pública, isto é, em um não repouso em sua
dinâmica? Perguntas é o que não nos falta. E, curiosamente, é justamente a
argumentação encontrada em C. Schmitt, que nos leva a fazê-las, mesmo que isso nos
obrigue a revisar a construção bipolar da Constituição liberal.
18. VIRTUDES PARA UMA FILOSOFIA DA TECNOLOGIA?
NOTAS PARA UMA PESQUISA A PARTIR DE MACINTYRE E JONAS1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-18
Helder Buenos Aires de Carvalho2
Introdução
A reflexão aqui proposta não é ainda o resultado de uma pesquisa amadurecida,
fruto de anos de trabalho e discussão, mas o esboço precário de algumas questões que
me tem preocupado mais recentemente como estudioso em filosofia moral, mais
precisamente questões relacionadas à presença extraordinária da tecnologia/técnica
na cultura contemporânea – aqui incluo não só as formas materiais da cultura, mas
também aquelas simbólicas e valorativas – e seu impacto sobre as possibilidades e
características da ação humana, pois é algo evidente que a tecnologia tornou-se o
principal fato de nossas sociedades e o tecido central no qual se gesta o modo de vida
em todo o mundo contemporâneo, não importando se em países centrais ou
periféricos.3
A tecnologia tem provido a condição atual da comunicação humana
instantânea, permitindo uma poderosa circulação de ideias e produtos que era
inimaginável há menos de um século atrás, ao interconectar cada parte de nossos
países, cidades e comunidades, alterando a compreensão de espaço e tempo internas
às nossas ações, bem como as formas de se fazer política, economia, guerra, produzir
alimentos e nos transportar de um lugar a outro no planeta. A tecnologia também tem
provido meios poderosos para a intervenção humana no mundo natural em escala
planetária, o que resultou em diversos problemas ambientais, que se tornaram uma
ameaça iminente à própria existência da espécie humana sobre a terra nos próximos
1 Publicado como capítulo em: Francisco J. Guedes de Lima & Gerson A. de Araújo Neto. (Orgs.).
Filosofia prática, Epistemologia e Hermenêutica. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016, p. 95-125.
2 Profesor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Piauí, Brasil. E-mail:
hbac@ufpi.edu.br
3 Ver Scheps (1996).
328 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
séculos;4 bem como, ainda mais grave, tem colocado o próprio homem como objeto de
sua intervenção, não apenas atendendo a necessidades específicas e delimitadas
daquele, mas também possibilitando a alteração da própria condição genética do
humano, noutras palavras, de sua natureza mesma.5
Nesse sentido, pela sua presença intensiva na vida contemporânea, a tecnologia
se tornou objeto de reflexão filosófica primária – a filosofia da tecnologia –, dada a
especificidade com que se configurou especialmente na vida social a partir do século
XX, tornando-se objeto de disciplina autônoma e de problemática filosófica própria.
Assim, o desenvolvimento do campo da filosofia da tecnologia se mostra como uma
tarefa cultural urgente e inadiável que a Filosofia tem e que a assumiu em nosso
tempo. 6 E uma das mais importantes questões neste campo é trazer à tona os
elementos éticos e políticos de nossa civilização tecnológica contemporânea para o
debate, mesmo em um contexto no qual não parece haver consenso valorativo amplo
sobre o bem humano e a ação correta, 7 algo que parecia existir de um modo
relativamente estabelecido alguns séculos atrás – mais ainda, mesmo em um país
como o nosso, onde o tecido ético parece ter se esgarçado completamente e vemos um
governo (ilegítimo, não democrático) lançando mão de discursos “técnicos” na
economia para justificar políticas de redução de direitos e outros ataques contra até
mesmo a autonomia tecnológica do país.8 Não podemos, assim, nos render à visão
simplista da tecnologia como meras ferramentas que compramos em alguma loja ou
shopping da cidade, mas entendê-la como parte da vida política, social e moral.
Como lembra Feenberg,9 da mesma maneira que a economia, a sexualidade e o
gênero nas últimas décadas, a tecnologia se transformou em uma questão política e
moral, tornando-se parte importante do universo de debates em torno da própria
humanidade e de seu modo de ser e viver. Desse modo, não podemos manter a
tecnologia e a ciência longe ou mesmo fora da discussão moral e política, pois elas são
agora partes inevitáveis de nossa civilização em escala global e constitutivos da
identidade humana contemporânea, fazendo parte do complexo de ações que
Ver Brüseke (2001), Jonas (1984), Latour (2015).
Ver Jonas (2013), Haraway (1991).
6 Ver Magnani (2007), Ihde (1993ª).
7 Ver MacIntyre (2007), Taylor (1990, 1998).
8 A evidência disto está no desmonte realizado até agora do MCTI e também do CNPq pelo (des)governo
Temer.
9 Feenberg (1999).
4
5
Helder Buenos Aires de Carvalho | 329
realizamos, gerando não só ferramentas e instrumentos, mas constituindo também
modos de ser e valorar no contexto mais geral da vida social.10
Além disso, esse meu interesse teórico pela filosofia da tecnologia nasceu a
partir da frequentação de uma obra importante da filosofia contemporânea sobre a
tecnologia: O Princípio Responsabilidade – Ensaio sobre uma ética para a civilização
tecnológica,
de
Hans
Jonas.
Como
a
presença
intensiva
da
tecnologia
contemporaneamente tem sido um tour de force no modo que organizamos,
produzimos e pensamos sobre nossos objetivos de vida e os métodos para realizá-los,
o alemão Hans Jonas foi um filósofo cujo trabalho nos ajuda a pensar sobre a força da
influência que a tecnologia tem tido em todas as esferas da vida humana, mas
precisamente como ela mudou a qualidade de nossas ações e suas diversas outras
consequências. 11 Sua filosofia da responsabilidade trouxe para o debate filosófico
contemporâneo a questão do papel que queremos que a tecnologia ocupe na definição
de nossos objetivos, métodos e na própria condição humana, ou seja, pondo juntas
questões ontológicas e éticas – lembremos que Jonas foi estudante de Heidegger, que
trouxe a perspectiva ontológica para o centro da chamada filosofia clássica da
tecnologia (Heidegger, Jonas, Ortega y Gasset, Arnold Gehlen).
12
Seguindo e
amplificando o traçado filosófico aberto por Heidegger, Jonas defende a
responsabilidade como o princípio moral fundamental para guiar nossa ações e
preservar a possibilidade da existência continuada dos seres humanos no futuro, como
uma consequência direta das questões concernentes à crescente destruição ambiental
que está tomando lugar em todo o mundo pelo poder da tecnologia que obtivemos
desde a modernidade e seu uso intensivo e indiscriminado.
Nosso interesse no trabalho filosófico de Jonas está na centralidade da
responsabilidade pela atual ação humana e como temos que considerar a dimensão
moral do crescente poder causado por nosso uso diário e intensivo da tecnologia,
especialmente sua sugestão de que devemos moralizar a tecnologia como uma
alternativa à visão moderna. 13 Segundo Jonas, em função da ascensão da técnica
moderna, a qualidade da ação humana mudou: comparativamente à técnica antiga,
que não alterava significantemente o lugar que o homem ocupava no mundo e diante
Ver Borgman (1984); Bruno (2013); Novaes (2003); Galimberti (2006).
Jonas (1984).
12 Ver Caponi (2013), Heidegger (1977).
13 Jonas (1974, 1984, 2013).
10
11
330 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
uma natureza que se colocava como um objeto transcendente às ações daquele, agora
o poderio tecnológico alcançado por nós alterou radicalmente essa correlação,
colocando a natureza e também o próprio homem como objetos da técnica, mais que
isso, objetos da técnica disponíveis para a manipulação e alterações sem fim e sem
quaisquer limites éticos ou políticos. Se antes a ação humana e o caráter moral desta
se restringia ao enclave humano originário no mundo – a cidade – agora o planeta
inteiro e a vida nele presente se tornaram objetos de alcance da ação humana
potencializada pela tecnologia/técnica moderna.
Nesse contexto, mesmo o futuro da humanidade não é mais garantia ou
pressuposto comum, dada a capacidade de destruição que alcançamos em relação ao
planeta inteiro. A própria possibilidade de continuar havendo humanidade no futuro
está em risco. Em função disso, segundo Jonas, faz-se necessária uma nova ética que
se afaste desse antropocentrismo da filosofia moral tradicional, da centralização do
interesse exclusivamente humano na esfera do fazer tecnológico e que se distancie da
perspectiva instrumental que tem caracterizado a relação do homem com a natureza
como um todo, tematizando a vida como categoria ética central, num olhar em que o
futuro da própria humanidade, as gerações futuras, esteja incluído na visada ética, e
no qual a vida como tal, não só a humana, seja um valor fundamental. Daí porque a
defesa de seu princípio ético fundamental, o da responsabilidade, formulado da
seguinte maneira: “aja de tal forma que a máxima de tua ação possa garantir a
preservação ou a existência humana no futuro”. Com isso, o pressuposto básico de
qualquer ética possível ou imaginável, não importando seu conteúdo normativo
específico, estaria garantido: a existência do agente humano.
Mas nosso ponto de partida aqui é de que as considerações de Jonas ainda estão
enviesadas por uma compreensão instrumental da tecnologia, como uma ferramenta
que pode vir a ser usada para diversos fins – bons ou maus. Essa avaliação jonasiana
se cristaliza na sua tese de que devemos buscar construir um contra-poder para obstar
o poderio que a técnica assumiu hodiernamente, ao se constituir em um sistema que
deixou de ser instrumento para atender as necessidades humanas mais diversas, para
se tornar ele próprio constituidor e definidor dessas necessidades humanas; portanto,
como assumindo uma autonomia em relação às decisões dos agentes humanos,
escapando de qualquer escolha moral na forma de um sistema de produção e consumo
de bens e artefatos tecnológicos que não são mais pensados como meios, mas, sim,
Helder Buenos Aires de Carvalho | 331
como fins em si mesmos – as pessoas consomem artefatos tecnológicos, tais como
celulares, não se importando se são necessários ou não às suas vidas, mergulhadas em
uma lógica de posse do artefato mais novo e “moderno”, num processo sem fim.
Nesse sentido, o fluxo atual de funcionamento do sistema tecnológico precisaria
ser redirecionado por uma força política e moral que não mais é da ordem do agente
moral individual, mas que cobra uma perspectiva coletiva, de intervenção mesma do
sistema político, do Estado. Nossas atitudes individuais, mobilizadas pelos referenciais
das éticas tradicionais, não seriam mais capazes e suficientes de dar resposta à crise
gerada pelo modo de ser de nossa civilização tecnológica, exigindo ações de amplitude
até mesmo global para reverter as consequências de nossas ações cumulativas. Jonas,
então, critica os modelos políticos que lhes eram contemporâneos – liberalismo e
comunismo – tecendo críticas às suas fragilidades e dificuldades, encontrando em
ambos a manutenção do horizonte da utopia tecnológica, o que os impediriam de ser
capazes de oferecer alternativas à situação atual.
O problema é que, segundo nossa interpretação, seu princípio responsabilidade
está ainda concebido como um elemento estranho à própria tecnologia, que tem que
ser normatizada por um princípio moral externo, acrescido ao trabalho tecnológico, a
fim de obtermos as coisas certas. Em outras palavras, ele ainda pensa que a tecnologia
permanece um objeto aberto a um processo de moralização advindo de outras áreas da
vida, como a ética e a política. A fórmula do princípio responsabilidade jonasiana é
importante para se pensar os fins para a atividade tecnológica, mas ela não pode se
colocar na perspectiva de um princípio que vai se inserir, como se fosse externo à
tecnologia mesma, para corrigir seu direcionamento ou suas consequências
indesejáveis. Consideramos que as diversas conquistas teóricas de Jonas têm que ser
mantidas em uma filosofia da tecnologia adequada, mas que, para esse fim, devemos
ir além de limites filosóficos como este. Isso significa que devemos buscar no cerne da
própria atividade tecnológica referenciais morais, de modo que essa responsabilidade
possa ser uma normativa intrínseca de seu próprio evolver. É para isso que aqui
propomos trazer à tona elementos da ética das virtudes de Alasdair MacIntyre.
MacIntyre não é um filósofo da tecnologia, mas seu trabalho em filosofia moral
tem sido muito importante para o debate contemporâneo concernente à toda a crise
moral que enfrentamos hoje em dia, com o aprofundamento do individualismo, do
consumismo e com o enfraquecimento dos vínculos comunitários, que se espalha por
332 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
países e nações em todos os continentes. Ele tem defendido fortemente uma
reapropriação da teoria das virtudes de Aristóteles como um modo consistente de sair
dessa crise, não como ela foi proposta originalmente pelo próprio Aristóteles, mas
como parte de uma tradição moral de pesquisa racional mais ampla, que ele nomeou
de aristotélico-tomista. O caminho a ser traçado para escapar da confusa e
fragmentada linguagem e práticas morais nas avançadas sociedades capitalistas
contemporâneas é realizar um retorno à ética das virtudes, mas modulada por
ferramentas filosóficas atuais que, a nosso ver, incluem a visada historicista da
hermenêutica e tópicas pragmáticas. Nesse caso, pretendemos ir além dos insights
originais de MacIntyre, trazendo alguns deles para o campo da filosofia da tecnologia
enfatizando – talvez mesmo contra sua intenção original – alguns elementos teóricos
que podem ser traçados de volta à influência da hermenêutica filosófica de Gadamer e
da pragmática filosófica de Wittgenstein em sua meta-teoria da racionalidade das
tradições morais.14
O que tomaremos de MacIntyre, que nos ajudará em nosso movimento teórico
de “moralizar” criticamente a tecnologia, são seus conceitos de “prática”, “virtude” e a
“concepção narrativa do ser humano e do agente moral” – não o seu giro tomista –,
compreendendo a tecnologia como uma prática social, o que significa situar a
moralidade no seu interior, como uma parte do telos de toda atividade humana e que
exige as virtudes para realizar integralmente seus fins. Seu conceito de prática como
uma categoria essencial para compreender o papel das virtudes na ação humana é a
principal fonte de nossa pesquisa. Também lançaremos mão das investigações de
MacIntyre sobre o papel do que ele chamou de as virtudes da dependência reconhecida
na constituição e manutenção do agente moral racional autônomo, mas agora
concebido como um ser vulnerável cujo corpo animal deve ser parte de nossa
autocompreensão completa – esta última se complexifica mais ainda pela perspectiva
de um homem pós-orgânico, no qual a tecnologia ocupa um papel central nessa
redefinição do humano.15 Em nossa perspectiva, tais virtudes macintyrianas podem
prover a oportunidade de pensar quais virtudes são importantes para abordar a
tecnologia como parte constituidora e constitutiva do mundo da vida humana,
desenvolvendo não somente as virtudes clássicas e as virtudes da dependência
14
15
Fizemos esse tipo de considerações em Carvalho (2013, 2011).
Sobre isso, ver Sibilia (2002).
Helder Buenos Aires de Carvalho | 333
reconhecida, mas também o que podemos chamar de virtudes relativas à tecnologia
como parte da realização da boa vida humana.16
Nesse sentido, pensar filosoficamente sobre ética e tecnologia a partir da
perspectiva teórica da ética das virtudes,17 significa, de um lado, focar sobre o papel
que as virtudes têm na vida moral e na constituição do agente moral autônomo, bem
como o lugar que a tecnologia ocupa na configuração da ação humana valiosa e, por
conseguinte, do caráter do agente moral realizador dessa ação, ou seja, de suas
virtudes; e, de outro lado, focar sobre o fazer tecnológico como uma práxis humana
portadora de finalidades estabelecidas axiologicamente (teleologias), não apenas como
produtora de ferramentas e artefatos cujos modos de existir seriam desprovidos de
valores intrínsecos ou que se colocariam fora da moralidade, mas como uma prática
social portadora de cargas normativas intrínsecas e extrínsecas.
Portanto, nos colocamos na perspectiva de poder avançar uma filosofia da
tecnologia que não compreenda esta última como um artefato ou uma maquinaria
externa à práxis humana, mas como constitutiva do fazer e do agir humanos autênticos
e, por conseguinte, como também constituidora desse mesmo fazer e agir. Se a
Heidegger coube a tarefa de nos indicar a técnica e/ou a tecnologia como nosso
destino18, cabe-nos agora a tarefa de pensá-la para além de um destino, mas como
parte iniludível do modo humano próprio, no qual a tecnologia é também um fazer
moralmente valioso, ou seja, construir uma ética da tecnologia.
Tradições, práticas, virtudes e bem humano em MacIntyre
Segundo MacIntyre, a moralidade reside fundamentalmente nas disposições de
caráter, adquiridas pelo hábito, cujo estatuto de virtudes se caracteriza exatamente
pela sua orientação a fins constitutivos da boa vida humana. Assim, se quisermos
compreender a moralidade, é preciso nos reportarmos a essa condição da vida humana
como sendo teleologicamente ordenada. E esse ordenamento vai ser encontrado no
âmbito das práticas sociais, não em invariantes naturais. Em seu neo-aristotelismo,
Sobre tecnologia e boa vida, ver Higgs, Light & Strong (2000).
Sobre a ética das virtudes em geral, ver Van Hooft (2013). Essa dimensão das virtudes como parte de
uma filosofia da tecnologia é mínima ou mais geralmente desconsiderada como elemento pertinente, o
que denota a inovação teórica buscada na pesquisa aqui proposta. Ver Durbin (1998); Franssen,
Lokhorst, van de Poel (2013); e Reydon 2015).
18 Ver Heidegger (1977); Ferreira Jr (2012).
16
17
334 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
MacIntyre transforma a questão “O que devo fazer?” em “Que tipo de pessoa devo me
tornar?” ou ainda “Qual gênero de vida devo levar?”. Com isso, o âmbito da pergunta
moral não se restringe a atos individuais, como o liberalismo preconiza, mas se abre
para a forma de vida na qual tais atos se realizam e para o caráter do agente moral,
para a forma de vida coletiva que é necessária para sua sustentação, para as
comunidades e suas tradições de pesquisa racional intrínsecas.
Nessa perspectiva, o caráter do sujeito moral é formado e se desenvolve num
contexto social determinado, pela participação nas práticas constituídas em torno dos
fins de cada tradição, nas quais a maturidade moral é adquirida pela reflexão sobre o
gênero de vida vivenciado e pela avaliação das ações como vícios ou virtudes, fracassos
ou sucessos, por meio de uma narrativa pessoal construída no interior de uma tradição
de pesquisa constituída pela comunidade e dela constitutiva. Assim, a identidade
moral e o valor moral das ações dos indivíduos estão relacionados às práticas das
tradições racionais e às formas sociais, comunitárias, de sua cultura.19
MacIntyre opera aqui o conceito de tradição, não como algo passado
estaticamente através das gerações e se manifestando imutavelmente na vida social e
cultural das comunidades que vivem sob o seu signo, mas sim como portadora de uma
dinâmica interna, na qual o conflito tem um lugar necessário na sua constituição. A
tradição, para ele, é
uma argumentação, desenvolvida ao longo do tempo, na qual certos acordos
fundamentais são definidos e redefinidos em termos de dois tipos de conflitos: os
conflitos com críticos e inimigos externos à tradição, que rejeitam todos ou pelo
menos partes essenciais dos acordos fundamentais, e os debates internos,
interpretativos, através dos quais o significado e a razão dos acordos fundamentais
são expressos e por cujo progresso uma tradição é constituída.20
Para entendermos corretamente o que seja uma tradição de pesquisa racional,
precisamos abandonar os usos ideológicos que o conceito de tradição tem recebido de
Uma perspectiva bem diferente da modernidade liberal, que não oferece uma cultura unificada, ou
seja, não tem um conjunto comum de valores e virtudes compartilhados que permitiriam a avaliação
das ações, instalando o desacordo insolúvel no âmbito prático. Segundo MacIntyre, “a retórica dos
valores comuns tem uma grande importância ideológica, mas ela maquia a verdade quanto à maneira
com que a ação é guiada e dirigida. Porque o que, em nossas máximas, preceitos e princípios morais,
nos é verdadeiramente comum é insuficientemente determinado para guiar a ação, e o que é
suficientemente determinado para orientá-la não nos é comum”. MacIntyre, A. The Privatization of
Good. IN: Delaney, C. F. (ed). The Liberalism-Communitarian Debate. Lanham: Rowman & Littlefield,
1994, p.6.
15 JR, 23.
14
Helder Buenos Aires de Carvalho | 335
teóricos conservadores, ao contrastarem tradição e razão, a estabilidade da tradição e
o conflito. Ao contrário, o raciocínio de um agente moral sempre acontece no interior
de algum modo tradicional de pensamento, isto é, o espaço da racionalidade é o espaço
interno da tradição. Uma tradição em bom estado não significa ser algo estável e
perene, imóvel nas suas formulações, ao contrário, é sempre constituída parcialmente
por uma discussão em torno dos bens cuja busca dá sentido e propósito a essa tradição.
A pesquisa racional é sempre uma linha de discussão em torno dos bens internos à
tradição social mais ampla da qual ela é constitutiva e pela qual é constituída. Daí
porque tradições vivas serem continuidade de conflitos, uma discussão historicamente
estendida e socialmente encarnada, uma discussão precisamente acerca dos bens que
constituem essa tradição.
Para MacIntyre, é sempre um tipo particular de prática que providencia o
contexto no qual as virtudes morais vão ser exibidas e definidas. “Prática” é definida,
diferentemente do uso ordinário da palavra, como toda forma complexa e coerente de
atividade humana coletiva, estabelecida socialmente, por meio da qual “bens internos
são realizados na busca de alcançar aqueles padrões de excelência que são apropriados
e parcialmente definidores dessa forma de atividade, resultando que os poderes
humanos para alcançar a excelência, e as concepções dos fins e bens envolvidos, são
sistematicamente ampliados”. 21 Nesse sentido, dar um chute com habilidade numa
bola não é uma prática, mas o jogo de futebol é; plantar batatas não é uma prática, mas
a agricultura é; levantar paredes não é uma prática, mas arquitetura é. E assim são
práticas as pesquisas da física, química e biologia, o trabalho do historiador, a pintura
e a música, etc., uma variedade ampla que abrange desde artes, ciência, jogos, política,
até a formação e a sustentação da vida familiar, bem como, a nosso ver, a atividade
tecnológica.
Segundo MacIntyre, a vida individual consiste na unidade de uma narrativa
encarnada numa vida singular, que na forma de atos e palavras tenta responder
sistematicamente às questões acerca do que é bom para cada indivíduo e do que é bom
para o homem a partir do interior das práticas. É o tecido histórico dos significados
formado pelas respostas a essas duas questões que constitui a unidade da vida moral
tanto para um indivíduo como para a comunidade. Mais precisamente, a unidade de
uma vida humana é a unidade de um relato de busca:
16
AV, 187.
336 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Buscas algumas vezes fracassam, são frustradas, abandonadas ou dissipadas em
distrações, e as vidas humanas podem, de todos esses modos, também
fracassarem. Mas o único critério para sucesso ou fracasso numa vida humana
tomada como um todo são os critérios de sucesso ou fracasso numa busca narrada
ou a ser narrada.22
Uma busca que é orientada por um telos, mais precisamente, por alguma
concepção do bem para o homem que nos permita ordenar outros bens, ampliar nossa
compreensão do propósito e conteúdo das virtudes, entender o lugar da integridade e
da constância na vida, definindo com isso, ao final, o tipo de vida que é uma busca pelo
bem. Mas uma busca pelo bem não como algo já definido e pronto, como que situado
em patamares transcendentais, e sim envolvendo um aprendizado contínuo em
relação tanto ao caráter desse bem como também em relação ao autoconhecimento do
próprio agente moral. Quer dizer, é no próprio processo histórico da busca, de
enfrentamento dos perigos, ameaças, tentações e distrações particulares envolvidas
nessa trajetória, com seus episódios e incidentes peculiares, que o objetivo da busca
vai ser entendido.
As virtudes vão ser definidas exatamente como aquelas disposições que darão
sustentáculo às práticas e nos habilitam a alcançar seus bens internos, mas “que
também nos manterão no tipo relevante de busca pelo bem, habilitando-nos a superar
os perigos, ameaças, tentações e distrações que encontraremos, e que nos fornecerão
um crescente autoconhecimento e um crescente conhecimento do bem”. Com isso
MacIntyre pode, então, nos oferecer uma definição, provisória, do que significa a boa
vida para o homem, isto é, do telos que orienta a ação do homem numa vida humana
considerada como um todo: “a boa vida para o homem é a vida gasta procurando a boa
vida para o homem, e as virtudes necessárias para esse procurar são aquelas que nos
capacitarão a entender o que mais e mais é a boa vida para o homem”.23
Mas essa definição da boa vida para o homem e do papel das virtudes na busca
dessa boa vida ainda exige um último passo. E isso tem a ver com o fato de que tanto a
busca pelo bem, como o exercício das virtudes, não pode ser procurada por cada um
de nós somente enquanto indivíduos, como se estivéssemos isolados das comunidades
históricas a que pertencemos e da qual derivamos nossa identidade. Viver a boa vida
varia concretamente em função das circunstâncias — mesmo quando é a mesma
17
18
AV, 219.
AV, 219; AV, 219.
Helder Buenos Aires de Carvalho | 337
concepção da boa vida e o mesmo conjunto de virtudes que estão encarnados numa
vida humana — não apenas porque somos indivíduos diferentes vivendo
circunstâncias diferentes, mas porque carregamos uma identidade social particular.
Isso significa dizer que a minha identidade, o meu eu não pode ser separado dos papéis
e do status social e histórico que vivencio, pois a história da minha vida está inserida
na história daquelas comunidades das quais retiro minha identidade.
Entretanto, MacIntyre adverte que o fato do eu encontrar sua identidade moral
mediante seu pertencer a comunidades como a família, a vizinhança, a cidade e a tribo
não significa que esteja preso às limitações da particularidade daquelas formas de
comunidade, que não possua qualquer capacidade crítica e esteja condenado às
determinações
da
particularidade social
em que está mergulhado. Essas
particularidades morais constituem o dado inicial, o ponto de onde começar a moverse, a lançar-se para além de tais particularidades na busca do bem, do universal; mas
uma busca na qual a particularidade nunca vai poder ser deixada para trás ou
obliterada. Para MacIntyre, a tentativa iluminista de escapar da particularidade
mergulhando num campo de máximas inteiramente universais pertencentes ao
homem enquanto tal é uma ilusão que tem consequências terríveis.24
Quer dizer, a minha identidade, aquilo que sou é em grande parte oriundo do
que herdei, de um passado específico que está presente de alguma forma no meu
presente, porque sou parte de uma história, uma história que, reconhecendo ou não,
gostando ou não, é um dos sustentáculos de uma tradição. Mas tradição entendida aqui
como uma discussão historicamente estendida e encarnada socialmente, em parte
acerca dos bens que constituem a tradição, dos bens cuja busca lhes dá sentido e
propósito. Ou seja, MacIntyre se refere às tradições sociais mais amplas que se
construíram historicamente como formas de vida portadoras de um vívido debate
interno em torno do que seja a boa vida e o bem para o homem.
Uma tradição, nesse sentido, é uma história de conflitos, é uma narrativa dos
debates que conduziram a sua formulação ao estágio atual; uma tradição é o terreno
no qual todo e qualquer raciocínio tem lugar, transcendendo por meio da crítica e da
invenção as limitações do que foi até aqui pensado nessa tradição, isso valendo tanto
19 Segundo ele, “quando homens e mulheres identificam o que são, de fato, suas causas particulares e
parciais muito parcialmente e muito completamente com a causa de algum princípio universal, eles
usualmente comportam-se piores do que se comportariam de outra forma” (AV, 221). Totalitarismo,
etnocentrismo, preconceitos raciais e culturais são exemplos dessas ilusões universalistas.
338 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
para a física como para a lógica medieval, numa busca dos bens que se estende muitas
vezes por muitas gerações. Da mesma forma que a busca de cada indivíduo pelo seu
bem está, de um modo geral, inserida dentro do contexto definido pelas tradições das
quais a vida do indivíduo faz parte, assim também ocorre com os bens internos às
práticas e os bens de uma vida particular. Como as tradições têm um caráter histórico,
nunca são estáticas nas suas formulações, sofrem um processo permanente de
recriação e transformação, não significa necessariamente que vão existir e permanecer
ad eternum, elas também podem decair, desintegrar e desaparecer. O que vai sustentar
e reforçar ou enfraquecer e destruir uma tradição é precisamente o exercício ou a falta
do exercício das virtudes relevantes.
Tecnologia como prática: lugar de exercício das virtudes?
A tecnologia é um objeto de estudo complexo – variando desde objetos e
artefatos, passando por processos e formas de conhecimento, a atividades humanas
específicas e também volição 25 –,
que exige e deve ser estudado por diversas
perspectivas, requerendo ferramentas conceituais articuladas. Caberia, então,
pensarmos a tecnologia também naquela perspectiva ética apontada por MacIntyre?
O fato da ambivalência da tecnologia, que é usualmente concebida como usada para o
bem ou para o mal, de certo modo deixa aberta a possibilidade de pensá-la como neutra
em si mesma. Isso significa conceber equivocadamente a tecnologia como uma
ferramenta cujo valor moral dependa de uma determinação apriorística da agência
humana, não da própria tecnologia como uma prática. Sustentamos o ponto de vista
oposto: tecnologia é uma prática social que envolve intrinsecamente avaliações morais
internas e externas como qualquer outra modalidade de ação humana inserida em
redes sociais ampliadas. E de tal forma que virtudes relacionadas à tecnologia são
requeridas para colocar as tecnologias na estrada da boa vida humana, seja como
instâncias de resistência ao determinismo tecnológico e à sua racionalidade
instrumental, seja como instâncias de exercício da própria prática tecnológica
enquanto tal – o design virtuoso.
Nesse sentido, a tecnologia como uma prática social, na definição macintyriana,
tem uma história, está entrelaçada no tecido social, sujeita às mesmas questões que
25
Ver Mitcham (1994), Cupani (2013) e Franssen, Lockhorst, Van de Poel (2013).
Helder Buenos Aires de Carvalho | 339
qualquer outra ação humana inserida no contexto de uma tradição – isto é, podemos
encontrar internamente à tecnologia as mesmas características constitutivas de
práticas sociais como a agricultura, futebol ou política, o que proverá uma visão crítica
da mesma, não mais como uma realidade neutra, mas carregando uma dimensão
moral constitutiva. Isso quer dizer que tecnologias tem bens internos e externos, um
telos constitutivo, uma história social, e que virtudes são exigidas para alcançar seus
fins, de tal forma que podemos encontrar internamente às práticas tecnológicas um
ambiente construído socialmente que provê critérios a fim de avaliá-las moralmente.
Noutras palavras, que tecnologias podem portar alguma forma de agência moral, seja
no plano de quem faz e usa tecnologias, seja no plano das funções e objetivos próprios
destas.
Assim, vista como uma ação humana complexa, que carrega internamente
questões morais constituídas e constitutivas, submetidas a uma variedade de
compreensões hermenêuticas como quaisquer outras práticas,
26
a atividade
tecnológica configuraria mesmo o que seria parte de uma tradição – uma tradição
tecnológica em uma civilização tecnológica, um modo de ser histórico de organizar a
vida humana em suas diferentes dimensões. Isso significa pensar a tecnologia de um
modo não apenas ontológico, mas também empiricamente, ou seja, como uma prática
extensamente disseminada e/ou articulada em todo o tecido social no mundo
contemporâneo.27 Dessa forma, amplificaríamos o conceito de prática em MacIntyre,
na sua extensão à atividade tecnológica em nossas sociedades contemporâneas.
Como toda prática, a atividade tecnológica tem um telos, um fim que lhe dá
sentido como tal. Num primeiro momento, tal fim parece ser a resolução de algum
problema, de atendimento a alguma necessidade humana emergente para a qual a
tecnologia se volta. Daí porque essa constituição de uma racionalidade instrumental
presente na tecnologia ser frequentemente o aspecto mais acentuado, que, migrando
para outras esferas da vida social, parece estabelecer uma relação de dominação e
controle do mundo. Entretanto, essa dimensão instrumental primária não esgota o
fenômeno tecnológico como práxis humana: ao contrário do pessimismo encontrado
26 Sobre o giro prático na teoria social contemporânea e na filosofia da ciência, ver Schatzki, Cetina &
von Savigny (2001); Agazzi & Heinzmann (2015).
27 Daí porque aqui nos situarmos melhor no contexto teórico do que se consolidou chamar de giro
empírico da filosofia norte-americana da tecnologia. Sobre isso, ver Achterhuis (2001), Hottois (2004),
Brey (2010) e Domingues (2015).
340 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
em Jonas 28 sobre as possibilidades da tecnologia como meio para o bem humano,
também encontrado na visão negativa de MacIntyre sobre a modernidade e a
moralidade instrumental-emotivista desta, podemos pensar em encontrar, seguindo a
Feenberg, modos alternativos de escapar da instrumentalização primária da tecnologia
que reduz o mundo inteiro a um todo singular, vasto e calculável, cujos elementos estão
todos à disposição da intervenção tecnológica. 29 A tecnologia contemporânea não
existe sem um segundo nível de instrumentalização: “A técnica tem que ser integrada
em ambientes naturais, técnicos e sociais que dão sustentação a seu funcionamento”
(Feenberg, 1999, p.205).
Em outras palavras, não há tecnologia sem integração social, o que significa que
é possível gerar outras possibilidades de tecnologias ocupando um papel em nossas
vidas que aponte para fins moralmente fundados. “Uma vez que se perceba que a
tecnologia desde sempre já incorpora valores sociais devido a seu entrelaçamento nos
sistemas técnico-sociais – nos termos de Feenberg, uma vez que se incorpore o nível
de instrumentalização secundária na análise – o terrível dilema desaparece”
(Achterhuis, 2001, p.91-92). Assim, o conceito macintyriano de uma racionalidade
prática portadora de um telos, constituída por e constituidora de uma tradição moral
de pesquisa, nos ajudaria a articular essa pluralidade alternativa possível de mundos
tecnológicos tematizada por Feenberg. Assim, há todo um campo de reflexão sobre o
papel das virtudes nas atividades tecnológicas quando estas são pensadas como
práticas sociais, portanto, para se pensar uma ética da tecnologia.
Adotando a terminologia proposta em MacIntyre, a tecnologia seria uma prática
cujos bens internos seriam o desenvolvimento das ferramentas e artefatos necessários
ao atendimento das necessidades humanas, mas estas pensadas não apenas como já
legitimamente dadas ou não sujeitas a questionamentos, e sim como parte de uma
visada sobre o bem humano e, por conseguinte, sobre quais valores estão se
incorporando nesse desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, teríamos uma
dimensão moral inerente à atividade tecnológica vinculada à realização da vida boa
humana – o seu télos – que é objeto de discussão e debate em seu contexto interno, no
âmbito de uma tradição, cujo propósito é ofertar alguma forma de ordenamento da
Ver Hottois (2000), onde ele situa Jonas como um tecnofóbico.
O que aproxima MacIntyre e Feenberg, uma vez que aquele busca também escapar da
instrumentalização promovida pela racionalidade instrumental da burocracia moderna e da vida moral,
inclusive radicalizando a crítica à versão marcuseana da teoria crítica.
28
29
Helder Buenos Aires de Carvalho | 341
vida humana em suas diferentes dimensões; bem como seus bens externos, vinculados
à sua dimensão institucional, voltados, no contexto das sociedades capitalistas,
eminentemente para o lucro e a dominação da natureza.
É precisamente essa dimensão dos bens internos que proporcionaria a
capacidade de avaliação crítica da atividade tecnológica, tanto no contexto da
produção, como naquele de seu uso disseminado na sociedade. Quando a atividade
tecnológica perde de vista os seus bens internos, aquilo que a insere em um contexto
social mais amplo sobre o bem humano, e fixa-se fortemente nos seus bens externos,
qualquer potencial de democratização ou de modificação da vida humana numa
sociedade tecnologicamente medida em suas diferentes esferas fica perdido. A
racionalidade instrumental presente no contexto dos bens externos implicará a
destruição ou corrupção da própria atividade tecnológica, conduzindo-a à promoção
talvez do fim da humanidade em um futuro não muito distante.
A insistência de Jonas sobre a responsabilidade como um resultado do enorme
poder que os humanos alcançaram com a tecnologia moderna, a despeito das severas
e não intencionadas consequências de seu uso intensivo, oferecem a oportunidade para
amplificar suas considerações sobre a responsabilidade como princípio moral
fundamental para uma era tecnológica, assumindo-a também como uma virtude ou
mesmo exigindo um conjunto de virtudes relativas à tecnologia e ao meio-ambiente.30
Assim, a tecnologia não pode ser vista como mera ferramenta disponível para
eventuais interesses humanos, como um objeto neutro acessível para um ponto de
vista moral externo introduzir nele questões morais; as dimensões sociais e políticas
são partes constitutivas da práxis tecnológica, configurando a responsabilidade como
um traço imanente desta – a discussão em torno de uma ética da engenharia, dos riscos
tecnológicos e do problema das múltiplas mãos (PMH) são exemplos derivados dessa
discussão crítica jonasiana.31
Ampliando a abordagem de MacIntyre sobre as virtudes para o âmbito da
tecnologia, esta última é vista como uma prática social que carrega consigo uma
teleologia interna, e não pode ser compreendida sem seu ambiente de relações
econômicas e sociais históricas, o que também aponta para uma concepção da boa vida
Ver Carvalho (2011).
Sobre isso, ver Nissenbaum (1996), Johnson & Powers (2005), Swierstra & Jelsma (2006), Davis
(2012), Zandvoort (2000), Doorn (2012), Thompson (1980), Cranor (1990), Shrader-Frechette (1991),
Hansson (2003), Van de Poel (2009).
30
31
342 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
humana.32 Virtudes são necessárias para a vida moral do mesmo modo que o oxigênio
é necessário para seres biológicos; uma vida moral baseada apenas em normas
abstratas não pode ser realizada de forma bem-sucedida. Da mesma maneira que as
ações morais, práticas tecnológicas requerem virtudes morais e intelectuais para
ajudar a realizar seus fins em um contexto de múltiplas possibilidades de mundos da
vida, no qual a agência humana é posta para funcionar com mediações cada vez mais
tecnológicas. E isso vale tanto para o cientista como para o tecnólogo, que são os
personagens centrais na vida social contemporânea, funcionando como modelos
morais para outros cidadãos em uma civilização tecnológica.
Aqui será valioso também o conceito de vulnerabilidade do agente moral que
MacIntyre traz em sua teoria moral – agora debatido por vários outros autores como
uma categoria moral importante33–, uma vez que a tecnologia se insere precisamente
no redimensionamento das fragilidades derivadas da condição animal do homem; por
conseguinte, com implicações importantes para a configuração das virtudes
necessárias para alcançar a condição de agente moral autônomo, na consideração e
respeito dessa vulnerabilidade. O fazer tecnológico não pode realizar-se mais sem ter
presente o fato de que a vida humana no planeta, mesmo mediada tecnologicamente,
continua a fazer parte da rede biótica que se estende por ele todo, não escapando de
sua fragilidade intrínseca; o bem humano, como télos último da prática tecnológica,
deve ser realizado em um ente que é vulnerável, portanto, não redutível a uma única
dimensão, cujo bem viver é o horizonte final da atividade tecnológica.
Desse modo, não podemos ficar fechados em uma visão pessimista da presença
intensiva da tecnologia no mundo da vida; as experiências concretas de como a
tecnologia não é determinista das ações humanas, como aquelas relacionadas ao
movimento ambiental e à internet, são uma ilustração do que a agência humana pode
fazer com a tecnologia que permeia o mundo da vida, mesmo em uma sociedade
capitalista onde o potencial de alienação é sempre pervasivo e constitutivo desse modo
de produzir a vida social.
A pretensão, por exemplo, de se buscar uma democratização das tecnologias de
comunicação se articula com a pretensão macintyriana de uma visada ética em que a
agência humana não mais se entregue à racionalidade burocrático-instrumental,
32
33
Ver Waelbers (2011).
Ver Tronto (2009), Maillard (2011), Bechi (2008), Garrau & Le Goff (2010) e Goldstein (2011).
Helder Buenos Aires de Carvalho | 343
herdada com o fracasso da modernidade iluminista, mas se abra para uma
autonomização crescente do agente moral ordinário, em que o fazer tecnológico não se
restrinja a uma modelização da vida humana a fins extrínsecos de mercado, e sim
provê a inclusão das pessoas comuns na modelagem da tecnologia. 34
Assim, é nesse quadro complexo que devemos pensar os elementos
fundamentais para contextualizar e afirmar a validade da ética das virtudes também
no campo da filosofia da tecnologia, de modo a evidenciarmos as virtudes necessárias
para nos conduzir nesses tempos de alta complexidade e velocidade crescente das
transformações sociais, políticas e éticas impulsionadas pela tecnologia em sociedades
globalizadas e cada vez mais plurais.
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19. IDOLATRIA: UM DIÁLOGO TEOLÓGICO E FILOSÓFICO1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-19
Jair Inácio Tauchen2
Introdução
O tema da idolatria na teologia bíblica é muito abrangente; está presente no
Judaísmo e no Cristianismo. Por conseguinte, é necessário estabelecer fundamentos
claros para poder interpretar os textos bíblicos, muitas vezes restritivos e violentos,
mediante uma análise respeitosa das diversidades espirituais que fazem parte da vida
do homem. A prática religiosa da idolatria permeia o processo do politeísmo e
monoteísmo do Antigo Testamento e do Novo Testamento. 3 Ela está diretamente
ligada ao significado de denúncia, repulsa, intolerância, discriminação e condenação
dos cultos que utilizam imagens, o que permite uma interpretação ampla. Essa
interpretação, muitas vezes tida como fundamentalista e religiosamente intolerante, é
um grande desafio para a sociedade atual marcada pela emergência das diversidades
culturais, religiosas e de orientação sexual.
Considerando a abrangência do tema na teologia bíblica, o propósito é analisar
a idolatria como uma estrutura que oprime e exige entrega e sacrifícios da vida
humana. Por isso, diante das inúmeras narrativas bíblicas, faz-se necessário escolher
algumas que exibem ídolos como deuses que legitimam a opressão, apoiam poderes
dominadores, interferem na comunidade humana e são incapazes de ouvir o clamor
dos pobres.4
1 Texto revisado e atualizado para o festschrift em homenagem ao professor Nythamar de Oliveira.
Versão publicada na Revista Veritas, V64, n3, 2019, Porto Alegre.
2 Pós-doutorando (Bolsista PNPD/CAPES), Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PUCRS). E-mail:
jairtauchen@gmail.com - CV: http://lattes.cnpq.br/5822521985784574
3 O Antigo Testamento comparado com o Novo possui uma abordagem sobre a idolatria muito maior.
No Novo Testamento os Evangelhos e os outros livros praticamente não abordam o tema de forma
patente, mas consta em alguns relatos no Atos, em alguns escritos paulinos e no Apocalipse de maneira
mais elaborada. Beale questiona se em razão disso é possível “concluir que o problema da idolatria
cessara ou deixara de ser tão agudo na história posterior de Israel na época de Jesus, ou então que não
era problema na igreja do primeiro século?” Cf. BEALE. Você se torna aquilo que adora, p. 28.
4 O sociólogo e filósofo alemão Erich Fromm entende o processo idolátrico da seguinte forma: “a
essência do que era chamado ‘idolatria’ pelos antigos profetas não está em o homem adorar muitos
deuses em vez de um único. Está em os ídolos serem a obra das mãos do próprio homem – eles são
coisas e, no entanto, o homem curva-se ante a elas e as reverencia; adora aquilo que ele mesmo criou.
Ao fazê-lo ele se transforma em coisa. Transfere às coisas de sua criação os atributos da vida e, em vez
de experenciar-se como pessoa criadora, só entra em contato consigo mesmo através da adoração do
ídolo. Ele se alheou às forças de sua própria vida, à riqueza de suas próprias potencialidades, e só entra
350 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Na tradição cristã, o ídolo ou culto dos ídolos encontra-se no sentido oposto
ao culto do verdadeiro Deus proclamado pelas escrituras. O mesmo ocorre em relação
à fé, pois se o reconhecimento do Deus verdadeiro depende da fé e o culto a Deus
apenas pode acontecer a partir da fé, a idolatria aproxima-se da incredulidade. Assim,
o verdadeiro culto a Deus é incompatível ao deus dinheiro ou ao deus mercado que,
por sua vez, deve ser compreendido como idolatria. O idólatra guarda dinheiro e bens
somente para si, um culto como se fosse deus. Comportamento reprovado pelo
Evangelho quando se refere a servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo. Jesus, ao
afirmar que não é possível prestar culto simultaneamente a Deus e a Mamon (Mt 6,24),
renova o que os profetas do Antigo Testamento já haviam denunciado. No Novo
Testamento o enfoque da idolatria continua atual: “Mamon”, nesse caso, refere-se aos
bens que as pessoas acumulam e não utilizam. Quem se utiliza disso como sentido da
vida, não considera a Palavra de Deus, vive sob o mando da idolatria. A ganância pelo
dinheiro deve ser desmascarada em sua imagem de justiça.
Os teólogos latino-americanos, ao criticarem as relações do mercado no
contexto econômico, são impulsionados a considerar a Sagrada Escritura como
elemento balizador a fim de interpretar o mundo que os cerca e fundamentar a questão
da idolatria. Por isso, o termo “ídolo” deve expressar um significado maior do que
apenas uma imagem ou estátua. A idolatria pode ser qualquer realidade divinizada
pelo homem. Sempre que o homem substitui o poder divino por outra confiança, cai
em idolatria. As possibilidades são inúmeras, por exemplo, a divinização do poder, do
Estado, das raças, do capital.
A idolatria no sentido econômico e empresarial tem algo diferente da idolatria
na Bíblia. O mercado, o dinheiro e o capital são criações humanas, são ídolos adorados
que se tornam insaciáveis. O verdadeiro Deus segundo a tradição bíblica quer que o
ser humano ocupe o centro da história com suas necessidades concretas atendidas. De
outro modo, os ídolos do mercado, do dinheiro, estão ligados à exploração e à injustiça
na sociedade; diferente do Deus que se tornou humano em Jesus de Nazaré que não
ordena sacrifício algum, os ídolos do mercado exigem sacrifícios. Aliás, Ele próprio se
entregou como sacrifício, no Cristianismo.
em contato consigo mesmo de maneira indireta, e submetendo-se à vida congelada nos ídolos.” Cf.
FROMM. O conceito marxista do homem, p. 123.
Jair Inácio Tauchen | 351
1 Imagem ou ídolo?
No Antigo Testamento em Gênesis 1, relata-se que Deus criou o ser humano à
sua imagem e semelhança, capaz de refletir a sua gloria. A questão é saber se no
decorrer da história até a atualidade esse propósito foi cumprido. O que o homem
como criatura de Deus reflete atualmente? O ser humano, conforme a narrativa
bíblica, foi criado para refletir Deus e quando isso não acontece reflete outra coisa.
Reflete, sobretudo, aquilo com o qual está comprometido, seja com o Deus criador ou
com qualquer outro objeto da criação. Assim, quando não adora o Deus verdadeiro em
vez de assemelhar-se com Ele, o idólatra assemelha-se com o ídolo que adora. O
problema da idolatria, considerando a revelação bíblica do primeiro e do segundo
mandamento, é que ele camufla a nobreza entre Deus, o Criador e a criatura. O fato de
representar Deus por alguma imagem divina o desvia da verdadeira natureza
espiritual. Ou seja, criar outros deuses e tirar o Deus do seu devido lugar é diminuir a
glória do Criador.
Adão e Eva foram criados à imagem de Deus com o propósito de refletir sua
glória e povoar a terra com essa finalidade. Ao abandonar o compromisso com Deus,
deixaram de refletir sua imagem e passaram a reverenciar outra coisa no lugar de Deus.
Trocaram a reverência ao Deus criador por outro objeto de adoração. Idolatria é adorar
qualquer coisa a não ser Deus. Adão trocou a lealdade a Deus pela fidelidade a ele
próprio e a satanás, refletindo características da serpente.
O fato de Adão refletir no princípio a imagem de Deus, revela um conceito
antigo até mesmo fora dos limites de Israel. Por exemplo, na Síria e no Egito era
comum colocar imagens de divindades no templo dos quais os reis eram imagens vivas
do deus, o próprio reflexo desse deus. Destarte, justifica-se a fabricação das imagens
com metais nobres com a finalidade de refletir a glória do deus que representavam. O
rei era a imagem viva do deus.
A Bíblia contém inúmeras passagens condenando o culto que envolve a
utilização de imagens, que incita atos de violência, que discrimina e emprega a
intolerância em nome de Deus. A questão das imagens/ídolos esteve presente no
conflito entre católicos e reformados; esteve e está presente nas discussões
conturbadas entre o cristianismo e as religiões africanas e indígenas; na relação do
hinduísmo com outras religiões que utilizam imagens em seus templos. O termo
352 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
geralmente é utilizado no sentido de demonizar ou diminuir a dignidade das religiões,
um processo discriminatório e violento que pesa sobre as religiões dos povos africanos
e povos originários das Américas, mediante uma infeliz interpretação de um possível
respaldo na “Palavra de Deus”, especialmente em textos do Antigo Testamento.
A religião de Israel 5 utilizou por muitos séculos imagens de todos os tipos,
formas e tamanhos representando deuses e deusas nos cultos, tanto nos centros
urbanos, como nas vilas camponesas. Migrou de um complexo sistema politeísta para
um monoteísmo centralizado em Jerusalém como único local de culto e com um único
código litúrgico. Somente no período da Judeia como província do Império Persa é que
o monoteísmo, culto sem imagem, tornou-se oficial em Judá.6
A utilização de imagens nos cultos públicos e santuários foi comum até
aproximadamente 720 a. C. quando ocorreu a reforma de Ezequias e Josias. Fato
comprovado pelas escavações arqueológicas que encontraram inúmeras imagens
relacionadas a este período; algo também comprovado pelos textos bíblicos que
empregam uma certa naturalidade e por não esboçar nenhuma crítica ao se referir à
utilização das imagens nos cultos religiosos (Gn 31,19. 34. 35; Jz 17,5; 18,14-20; 1Sm
19, 13-16). A proibição das imagens entra em vigor após as reformas de Ezequias e de
Josias (Dt 7,25-26; 16,21-22).
Sobre o emprego do termo ídolo ou imagem relacionados à Bíblia, Dietrich
chama atenção para a sua tradução para o português. Geralmente a tradução carrega
uma conotação pejorativa e depreciativa envolvendo o objeto como algo condenável,
especialmente quando na fase politeísta antes das reformas de Ezequias e Josias o
texto bíblico depara-se com alguma imagem utilizada no culto público: “muitas
traduções usam ou acrescentam a palavra ‘ídolo’ para traduzir palavras que no
hebraico indicam simplesmente alguma ‘imagem’.”7 Quando se faz referência isolada
à palavra “imagem”, o seu significado é neutro, não está imbuído de nenhuma carga
negativa e pejorativa, diferente do significado de “ídolo”. Dietrich apresenta um
exemplo: na religião católica ou mesmo nas religiões afro-brasileiras uma pessoa pode
Segundo Dietrich, a história de Israel não começou em 1800 a. C. na Babilônia com a migração de
Abraão como tradicionalmente é conjecturado. Teve início bem mais tarde entre 1500 e 1300 a. C. em
Canaã. Neste período ocorreu a sedentarização de algumas famílias de pastores em três regiões
montanhosas da Palestina: Siquém, Betel e Hebron. Todo esse território fazia parte da região conhecida
na época como Canaã. Cf. DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 342.
6 Alguns textos bíblicos do Antigo Testamento que mencionam a utilização de imagens em cultos: Gn
31, 19.30-35; Is 6, 1-13; Jz 6,24-30; 1Sm 19,13-16; 1Rs 12,28-29; 2Rs 18,4; 23,4-14; Jr 44, 15-19.
7 DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 346.
5
Jair Inácio Tauchen | 353
dizer: “na cabeceira da minha cama tenho três imagens”, mas é improvável que dirá:
“na cabeceira da minha cama tenho três ídolos.”8 O mesmo é válido para os terreiros
de candomblé, umbanda, batuques e outras religiões que utilizam imagens em seus
cultos; elas não irão se referir a estas imagens chamando-as de “ídolos”. Portanto, a
religião de Israel no período pré-exílico quando faz referência à utilização de imagens
em cultos, não pode ser interpretada como “idolatria”.
Essa interpretação é comum nas traduções. Empregam a palavra ídolo na
tradução portuguesa da palavra hebraica que se refere a objetos que no texto bíblico
transmite uma simples indicação de uma imagem. É oportuno apresentar mais alguns
exemplos sugeridos por Dietrich que comprovam o problema da tradução. O texto
bíblico utilizado para análise é Gn 31,19:
Bíblia de Jerusalém (BJ): “Labão fora tosquiar os rebanhos e Raquel roubou
os ídolos domésticos que pertenciam a seu pai.”
A Bíblia da CNBB: “Como Labão tinha ido à tosquia das ovelhas, Raquel
roubou as estatuetas dos ídolos de seu pai.”
Tradução ecumênica da Bíblia (TEB): “Laban tinha ido tosquiar o seu gado e
Raquel roubou os ídolos que pertenciam a seu pai.”
Bíblia de Estudo Almeida: “Tendo ido Labão fazer a tosquia das ovelhas,
Raquel furtou os ídolos do lar que pertenciam a seu pai.”
A Nova Versão Internacional (NVI) Bíblia de Estudo Arqueológica: “Enquanto
Labão tinha saído para tosquiar suas ovelhas, Raquel roubou os ídolos do clã.9
No hebraico o versículo citado não tem nenhuma palavra que possa ser
traduzida como “ídolo”. Segundo Dietrich, “o texto menciona a palavra terafim e o faz
com a maior naturalidade. Terafim era o nome dado às imagens dos deuses domésticos
que muito provavelmente eram os ancestrais divinizados de cada família, eram os
Elohim das famílias.” 10 Todas as famílias tinham seu Elohim (Gn 31,53). Portanto,
nesse texto bíblico não existe conotação de crítica à posse das imagens em cultos
familiares porque para os autores dessa narrativa a utilização de imagens era comum
e, consequentemente, não possuem o significado de ídolos. A tradução da palavra
terafim do hebraico para o português com o significado de “ídolos” “revela que os
tradutores assimilaram as proposições das reformas de Ezequias (720 aC) e de Josias
DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 346.
DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 346-347.
10 DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 347.
8
9
354 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
(620 aC), e as têm como verdadeiras revelações da vontade de Javé.” 11 Porém,
utilizaram de forma retroativa em tradições anteriores às reformas de Ezequias e de
Josias. Quando as traduções apresentam a palavra “ídolos” onde não existe e nem
pressupõe esse significado no texto hebraico estão criando um anacronismo que
mascara o período politeísta de Israel antes das reformas.12
As reformas centralizadoras de Ezequias e Josias estabeleceram (i) o templo
de Jerusalém como único local de culto em Israel; (ii) designa Javé como Deus de
Israel; (iii) proíbe o culto a qualquer outra divindade; (iv) condena o uso de imagem
que represente Javé ou qualquer outra divindade. A partir dessa reforma, todas as
imagens passam a ser consideradas ídolos e, por conseguinte, tidas como crime de
idolatria.
A idolatria acontece somente através do culto aos ídolos ou pode se
desenvolver mesmo sem imagens? A crítica às imagens ocorre mais em função do tipo
do culto, da religião e das consequências a que estão associadas do que as imagens em
si. Dietrich, entende que pode haver “idolatria” sem necessariamente haver imagens.13
A questão da idolatria transcende à questão das imagens. Como exemplo, é
conveniente recorrer a uma das respostas mais claras de toda a Escritura, representada
pelo Salmo 115, 4-8:
São de prata e ouro os ídolos deles,
e foram feitos por mãos humanas;
esses têm boca e não falam,
têm olhos e não veem,
têm ouvidos e não escutam,
têm nariz e não cheiram;
têm mãos e não apalpam,
têm pés e não andam,
nem sua garganta produz sussurro algum.
Os ídolos deles são obras de mãos humanas.
O que o salmo condena não é o fato de as imagens serem de “ouro e prata,
feitas por mãos humanas” que se caracterizam pela imobilidade e insensibilidade, mas,
DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 347.
Nesse sentido, Dietrich entende que “esse procedimento acaba também por falsear ou até mesmo
esvaziar completamente o sentido libertador da crítica à idolatria. Pois acaba focando o peso dessa
crítica no uso da imagem em si. Idolatria nesse caso é possuir imagens, usar imagens como
representação do Divino, substituir o Divino por algo que se possa manipular, usar. Mas não é esse o
motivo original da crítica profética às imagens na Bíblia.” Cf. DIETRICH. Quando as imagens viram
ídolos 2015, p. 349.
13 DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 349.
11
12
Jair Inácio Tauchen | 355
sobretudo, o fato de denunciar aqueles que produzem e confiam nessas imagens.
Aqueles que fabricam e adoram os ídolos ficarão igual a esses ídolos e o castigo será
tornarem-se semelhantes a eles: “têm olhos e não veem”. Ou seja, não ouvem e não
veem as coisas do espírito, mesmo tendo um deus por trás deles, ficaram tão cegos e
tão surdos espiritualmente quanto a esses ídolos. A idolatria, nesse caso, expressa uma
religiosidade enganadora e revela que o maior pecado de Israel foi a idolatria. O ídolo
nada mais é do que uma obra “feita por mãos humanas”, um produto da vontade do
homem que tem “boca, olhos, ouvido, nariz, mãos, pés, garganta”, semelhante a uma
estátua inanimada.14 Ou, nas palavras do apóstolo Paulo, quando comenta em I Cor
12,2 o referido Salmo, chama os ídolos de “mudos” seguindo a polêmica da falta de
comunicação, pois “não têm boca e não falam”.
A crítica de que os ídolos não têm vida está amparada no fato de que os
fabricantes e adoradores acreditavam que os deuses falam e ensinam por meio dos
ídolos, mas na verdade dentro da imagem somente existe o vazio. Confiar e seguir esses
deuses é seguir no caminho tortuoso, é tornar-se semelhante aos ídolos ocos
espiritualmente.
Duas outras passagens bíblicas do Antigo Testamento merecem uma atenção
especial, em virtude da condenação das imagens correspondentes aos “deuses de metal
fundido” e os “deuses de ouro e prata”. Novamente, o contexto de proibir
exclusivamente um tipo específico de imagens remete ao período anterior às reformas.
Ex 20,23: “vocês não farão para mim deuses de prata e deuses de ouro, vocês
não farão para vocês”.
Ex 34,17: “deuses de metal fundido não farás para ti”.
Dietrich15 chama atenção para dois aspectos nestes versículos. O primeiro é
que são chamados de “deuses” tanto as imagens de “metal fundido” como as de “prata
e ouro”. É importante frisar que em nenhum momento transparece uma conotação
pejorativa; não são chamados de ídolos e não sugere uma palavra com termo neutro
14 Nesse sentido é oportuno o comentário de Beale: “[...] quando se retratam os ídolos com olhos e
orelhas que não enxergam nem ouvem, afirma-se que seus adoradores têm olhos e orelhas, mas não
veem nem ouvem” cf. BEALE. Você se torna aquilo que adora, p. 21. O homem foi criado por Deus para
ser uma criatura refletora. Portanto, vai refletir aquilo com que está comprometido, pode ser o Deus
verdadeiro ou alguma imagem criada. O Salmo 115, 4-8 tem muita semelhança com a narrativa de Is 6,
1-13. Outro fato interessante segundo Beale é que sempre que o povo de Israel é “mencionado como
quem ‘têm olhos para ver, mas não veem, têm ouvidos para ouvir, mas são capazes de ouvir’ (ou textos
semelhantes a esse) ele está sendo condenado e castigado por ser idólatra. Cf. BEALE. Você se torna
aquilo que adora, p. 48.
15 DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 352.
356 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
como “imagem”. Para o autor da narrativa, estas imagens são “deuses” mesmo
expressando uma condenação. Nesse caso, no que diz respeito a interpretar imagens
no sentido de deuses, o argumento encontra amparo em Gn 31,30 quando Labão ao
procurar os seus Terafins questiona: “por que roubaste meus deuses?”16
Outro aspecto interessante é que a proibição aponta especificamente um tipo
de imagens. Em Ex 20,23 proíbe-se as imagens feitas de “prata e ouro”; é bem provável
que esse versículo determine a crítica mais antiga dos deuses de prata e os deuses de
ouro. A narrativa em Ex 34,17 proíbe somente as de “metal fundido”. Diante disso, é
possível deduzir que as imagens de cerâmica, pedra, madeira ou outro material não
são proibidas.
Em Ex 20,22-26 é possível encontrar outra passagem na qual uma proibição é
bem específica. Nessa narrativa, a proibição de fazer “deuses de prata e deuses de ouro”
está ligada à proibição de fazer “altar de pedras lavradas”. Esses versículos tratam das
primeiras tradições da redação do Código da Aliança quando ainda era possível
levantar altar fora de Jerusalém e não existia uma centralização do culto, portanto,
anterior às reformas de Ezequias e Josias. Na primeira parte, o código deixa claro que
tipo de altar é permitido. São permitidos altares de terra e pedras naturais. E, também,
o tipo de altar que não é permitido fazer: o de pedras lavradas. Assim, é possível
perceber que a mesma especificidade de proibir “deuses de prata e deuses de ouro”
está presente na proibição do altar de “pedras lavradas”.
Agora é necessário perguntar: onde estavam localizados esses altares? É
adequado apresentar a interpretação de Dietrich segundo a qual “somos levados a
concluir que estas proibições ecoam algumas das primeiras críticas da profecia
camponesa (Amós, Oseias) contra o uso da religião para explorar os camponeses.” 17
Para tornar o argumento ainda mais claro, chama atenção para a especificidade da
proibição. São proibidos deuses de metal fundido, deuses de prata e deuses de ouro.
Conclui-se que as imagens de pedra, de madeira e de cerâmica estão autorizadas. Mas
por que somente as de metal são proibidas? Primeiro é preciso saber quem são e onde
se encontram os que podem fazer imagens de prata, de ouro e construir altares de
pedras lavradas? Segundo Dietrich, as perguntas têm a mesma resposta: “eram
16 Aqui, novamente, o sentido dos “deuses” deve ser interpretado como Elohim, ancestrais divinizados
e amplamente utilizados por todas as famílias. Não existe uma conotação pejorativa ou repressiva no
versículo ao utilizar a expressão “deuses”.
17 DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 353.
Jair Inácio Tauchen | 357
encontrados nas principais cidades. Talvez somente nas capitais e nas cidades com
‘santuários do rei’ (Am 7,13).”18 Fica claro que esse tipo de culto é característico das
cidades. A justificativa é que os materiais empregados são caros e precisam ser
importados, como também, os artesãos que dominam a técnica. Isso somente é
possível através da riqueza e do poder adquiridas às custas da opressão dos
camponeses que viviam e trabalhavam nas proximidades das muralhas das cidades. 19
Como já foi comentado, antes das reformas as leis contra imagens não tinham
o mesmo propósito dos discursos teológicos que atualmente condenam as pessoas, os
povos, as religiões, ao utilizarem imagens em seus cultos. Em Israel, no período préexílico, as vilas camponesas mantinham em seus locais de culto, altares de terra,
imagens de madeira, de pedra, de cerâmica. É importante destacar que nesses rituais
litúrgicos e nesses vilarejos “ninguém ficava mais rico ou mais pobre.” Os cultos
estavam ligados diretamente às necessidades concretas da vida e não em relação ao
acúmulo de riqueza e poder. Portanto, é possível questionar se a “idolatria” está
presente no culto que utiliza diversos deuses, deusas e imagens, todas elas ligadas a
defesa da vida ou no culto centralizado em um só lugar, um só Deus, mas que não está
ligado à promoção da vida, por permitir a exploração e opressão.
É muito provável que o alerta desses profetas camponeses contribuiu para a
constituição das leis de Israel, especialmente, nas reformas de Ezequias e Josias. Outro
fato perceptível e comentado por Dietrich é o “lado ambíguo da religião oficial: leis que
na origem eram contra o acúmulo de riqueza e de poder realizado pela monarquia,
integradas nas reformas eram postas a serviço da monarquia e visavam dar-lhe
legitimidade.”20 Isso deve levar a uma reflexão quando se abordam outras religiões que
utilizam imagens em seus cultos, especialmente no Brasil, as mais perseguidas: as afrobrasileiras, as indígenas e as populares. Em muitas ocasiões, a condenação dessas
religiões dá a impressão de que está carregada do mesmo espírito centralizador e
opressor que esteve presente nas reformas concentradoras de riqueza e poder
comandadas por Ezequias e Josias. É primordial deixar de lado o espírito conservador,
DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 353.
É oportuna a interpretação de Dietrich: “estes versículos ecoam os primeiros gritos dos camponeses
contra o uso da religião para explorá-los. É no geral um grito contra a religião oficial das monarquias e
seus centros de culto, nos quais a ostentação de altares caros e deuses de metal fundido, ou mesmo de
ouro e de prata, tinham a função de legitimar a exploração das famílias camponesas (Os 8,4-5; 13,2; cf.
Lv 19,6; Dt 9, 12. 16; 27,15; 1Rs 14,9; Is 30,22).” Cf. DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p.
353.
20 DIETRICH. Quando as imagens viram ídolos, p. 354.
18
19
358 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
imperialista e, perante a diversidade dos ritos religiosos, buscar o respeito e a
convivência pacífica para entender o que é adorar a Deus.
2 As divindades de ouro: idolatria e culto a imagens
A adoração de imagens no período politeísta representando suas divindades
fazia parte da religiosidade, da cultura e da tradição, especialmente no Egito, Síria e
Mesopotâmia. As divindades se faziam presentes no cotidiano das pessoas e eram
invocadas para favorecer uma colheita, aumentar o rebanho, proteger a família,
garantir a justiça. Acreditavam que essa era a maneira adequada de prestar culto e
receber a proteção de deus. Um exemplo dessa proteção é a narrativa de Gn 31,49 já
mencionada anteriormente na qual Raquel roubou os terafins que pertenciam a seu
pai Labão antes de sair da sua casa, como símbolo de proteção e de justiça.
A proibição do culto às divindades e a produção das imagens que as
representassem teve origem para o povo de Israel na revelação de Deus a Moisés no
monte Sinai. Inclusive, não era permitido fazer imagens do próprio Javé. A revelação
de Deus a Moisés no Sinai estabeleceu o conceito de idolatria. A monolatria em Israel
foi um processo lento principalmente até o período do rei Josias no qual Javé foi
reconhecido como o único Deus. No princípio Javé era apenas um dos deuses cultuado,
somente depois é que ficou reconhecido como único Deus, o Deus dos pais, de Abraão,
de Isaac, de Jacó, o Deus criador de tudo.21
A proibição do culto às imagens na Bíblia ocorre em função do ídolo (imagem)
não ser deus e ter sido produzido por mão humana. A idolatria é um processo no qual
se concebe a uma imagem, uma função divina que não possui. Segundo Mckenzie,
“nenhuma figura humana ou de animal poderia representá-lo. Representar Javé por
meio de imagens seria o mesmo que o reduzir ao nível da natureza e, por conseguinte,
rebaixá-lo ao nível de divindades adoradas por imagens.”22 Mesmo sabendo qual era a
vontade de Deus de não construir imagem que o representasse e não prestar culto a
outra divindade, por que em momentos específicos da história, a lei não foi cumprida
e se voltou a cultuar imagens? Como forma de entender esse retrocesso histórico, é
21 Na narrativa do texto bíblico Ex 20, 3-5 é possível constatar: “não tenha você outros deuses diante de
mim. Não faça para você imagem de deus, qualquer representação do que existe no céu, na terra ou nas
águas que estão debaixo da terra. Não se prostre diante desses deuses, não lhes sirva, porque eu, Javé
seu Deus, sou um Deus ciumento.”
22 McKENZIE. Dicionário Bíblico, p. 436.
Jair Inácio Tauchen | 359
oportuno a análise de duas narrativas bíblicas, amplamente conhecidas e dotadas de
grande clareza que facilitará um entendimento mais aprofundado.
A primeira narrativa bíblica refere-se ao bezerro de Aarão. O texto discorre
sobre quando Moisés subiu a montanha para se encontrar com Deus. Durante a subida
o povo permaneceu embaixo aguardando o retorno de Moisés que segundo o texto
bíblico (Ex 24,18), demorou quarenta dias. Tempo suficiente para o povo se sentir
sozinho, desamparado, sem liderança. O período de quarenta dias pode representar
um simbolismo de um tempo suficiente para um encontro com Deus e de preparação
para o novo momento histórico. Outra interpretação simbólica encontra amparo no
texto quando Moisés se encontra com Deus no alto da montanha, enquanto o povo
permanece embaixo, desamparado e desprovido de uma divindade. A inquietação e
reclamação do povo não tarda a aparecer, conforme Ex 32,1: “... porque não sabemos
o que aconteceu com esse Moisés, o homem que nos tirou da terra do Egito”. O povo
ainda não reconhece em Moisés como o enviado por Deus, o Profeta da Lei, aquele que
foi encarregado para liderá-los. Até então, é apenas “esse Moisés”.
Outro elemento é que o povo não percebe que é o Senhor Javé quem os libertou
do Egito e que permanece junto na caminhada como o Deus libertador. Quando se
sente desamparado e perdido, pede a Aarão uma divindade para protegê-los: Ex 32,1
– “Vamos! Faça para nós deuses que caminhem à nossa frente”. É preciso destacar que
nesse período o culto é politeísta e o povo não quer viver sem a proteção de uma
divindade. Sente a necessidade de ter Elohim 23 concreto, presente e que conforme
narra o versículo, “que caminhem à nossa frente”. O povo solicita a confecção de deuses
para Aarão e, para não entrar em conflito, atende o pedido. O pecado do povo está na
impaciência de não esperar o retorno de Moisés. O bezerro de ouro foi celebrado com
altar, festa, comida e bebida, como se fosse o Senhor Javé. A narrativa do texto bíblico
Ex 32,22-24 deixa visível os motivos e a intenção de atribuir a culpa ao povo, a
confecção do bezerro de ouro, conforme explicação para Moisés:
Não fique irritado meu Senhor. Você sabe que este povo é inclinado para o mal.
Eles me pediram: “Faça para nós deuses que caminhem à nossa frente, porque não
sabemos o que é feito desse Moisés, o homem que nos tirou da terra do Egito”. Eu
23 O termo hebraico Elohim é utilizado no plural, traduzido por deuses. Embora muitas vezes é, também,
empregado no singular, como deus. No caso do versículo em discussão, o termo é traduzido no plural
embora seja apenas um bezerro, é possível interpretar como uma representação de um grupo de deuses.
Cf. TOGNERI. Os Bezerros de ouro, p. 368.
360 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
disse então: “Quem tiver ouro, que o retire”. Eles me trouxeram, eu levei ao fogo,
e saiu esse bezerro.
Quando Moisés subiu à montanha o povo ficou sem liderança e, até o
momento, Moisés era o líder que tinha a ligação com o Senhor Javé, diferente de Aarão
que não desfrutava dessa intimidade. Segundo Togneri, “o texto culpa totalmente o
povo pela quebra e ruptura da Aliança com o Senhor. Esse relato nos lembra a frase e
a ação de Jesus, muito tempo depois, ao olhar a multidão e se compadecer deles (do
povo) (Mc 6,34).”24 O que está por trás da narrativa é a incompreensão do povo no
Deus libertador. Precisa de um tempo maior para entender os desígnios de Javé. Isso
se percebe ao substitui-lo por uma imagem de metal fundido, um bezerro 25 de ouro,
moldado por Aarão, do ouro que o povo deu, retirado dos brincos que tinham nas
orelhas. Depois de criado, o povo disse: “Israel, este são os deuses, que tiraram você
da terra do Egito.” (Ex 32,4)26
Outro fato para entender o culto politeísta do povo de Israel está na narrativa
de Ex 12,38: “junto com os filhos de Israel, subiu também com eles grande mistura de
gente”. Durante o exílio uniram-se ao povo de Israel muitas outras pessoas que traziam
consigo a prática da cultura religiosa a diversas divindades representadas por imagens
e o bezerro de ouro pode ser um exemplo disso. Também é preciso considerar o período
em que a narrativa foi escrita, bem posterior aos acontecimentos e, por isso, carregada
com o sentimento de pecado, quando ainda o povo não tinha consciência de quem era
o Javé.
A segunda narrativa bíblica é sobre os dois bezerros de Jeroboão (1Rs 12,2633). O texto está relacionado à época da divisão da monarquia em reino do Sul – Judá,
TOGNERI. Os Bezerros de ouro, p. 369.
A tradução do termo hebraico ‘egel por bezerro, segundo Togneri, não é fiel em virtude do termo se
referir a um jovem touro com aproximadamente três anos de idade. Deve-se considerar o fato do povo
estar no deserto e é muito improvável que tenham animais de grande porte, mesmo assim tem como
imagem protetora um bezerro, “ou um pequeno touro”. Togneri indica a possibilidade de “ser fruto do
culto a Apis ou à deusa Hator desenvolvido no Egito?” Existe a possibilidade de Aarão ser natural do
Egito e, talvez, esses deuses, o tenham inspirado na fabricação do bezerro de ouro. Cf. TOGNERI. Os
Bezerros de ouro, p. 370. Togneri, também menciona a interpretação de Cole sobre essa questão: “a
santidade do touro como símbolo de força e capacidade reprodutiva corre desde o culto a Baal em Canaã
até o hinduísmo popular do sul da Índia de hoje, onde quer que a religião seja vista como forma do culto
da fertilidade comum aos criadores de animais cf. COLE. Êxodo, p. 207.
26 Outra interpretação sobre a atitude de Aarão que merece destaque é a desenvolvida por Adiñach: “a
atitude de Aarão pode ser vista como tentativa de criar uma religião a partir dos desejos das pessoas e
não a partir da palavra revelada. Uma religião que não se fundamenta na pergunta ‘O que Deus espera
de nós?’ mas na interrogação ‘Qual Deus as pessoas querem ter?’” Cf. ADIÑACH. O livro do Êxodo, p.
362.
24
25
Jair Inácio Tauchen | 361
sob o reinado de Roboão, e reino do Norte – Israel, comandado por Jeroboão em torno
de 930 a. C. O povo do Norte, sob a influência de Jeroboão, deve ter adquirido o apoio
dos anciões das 10 tribos para a romper com a tradição do Sul, de rejeitar o Templo de
Jerusalém e, também, suspender as peregrinações para as grandes festas na capital
dourada. Havia sido determinado pelas tábuas da Lei na Arca da Aliança que o povo
se apresentasse em sua honra, por ocasião a três festejos em Jerusalém: na Festa da
Páscoa (celebração da saída do Egito e dos Pães sem Fermento), na Festa de
Pentecostes (celebração da colheita) e na Festa das Tendas (celebração do final do
período agrícola).
Com o propósito de evitar que o povo do Norte se dirigisse ao Templo de
Jerusalém 27 que era grandioso, preocupado por Judá ser um lugar com uma
religiosidade especial e impedir que o povo passasse a seguir o Rei Roboão, Jeroboão
mandou construir dois bezerros de ouro e os colocou em dois santuários de forma
estratégica. A distância que os dividia era em torno de 160 quilômetros. Em Dã, no
Norte, sopé do Monte Heron, favorecia o deslocamento das tribos do norte de Israel e,
em Betel, no Sul, apenas 20 quilômetros de Jerusalém, entre os territórios de Efraim
e Benjamim.28 Os bezerros foram denominados por Jeroboão como: “os deuses que
fizeram vocês sair da terra do Egito” (1Rs 12,28).
Parece claro que a intenção de Jeroboão era afastar o seu povo da influência
do governo do Sul a fim de proteger o seu reinado, pois tinha receio de perder o apoio
da população e até mesmo, a sua vida, conforme a narrativa bíblica:
Jeroboão disse em seu coração: “Agora mesmo o reino poderá voltar para a casa
de Davi. Se este povo subir e oferecer sacrifícios na casa de Javé em Jerusalém, seu
coração vai se virar para seu senhor Roboão, rei de Judá. Eles acabarão me
matando e passando para o lado de Roboão, rei de Judá (1Rs 12,26-27).
Nesse caso é preciso considerar, segundo Togneri29, o fato do reino do Norte
desejar sua própria religiosidade a fim de manter o povo sob o jugo de Jeroboão. As
estratégias utilizadas foram construir os bezerros de ouro, reconstruir os templos de
Betel e Dã, comemorar a Festa das Tendas, com data diferente da de Judá, e criar novo
sacerdócio. Tudo com a intenção de manter independência da tradição religiosa do
CHAMPLIN. O Antigo Testamento interpretado, p. 1411.
Os Bezerros de ouro, p. 372.
29TOGNERI. Os Bezerros de ouro, p. 371.
27
28TOGNERI.
362 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
reino do Sul. Pela tradição, Jeroboão não podia ter iniciado o culto em Dã e Betel,
fazendo com que o povo fosse em procissão cultuar os bezerros, recaindo numa
situação de pecado. Não era lícito celebrar a Páscoa e outras festas fora do domínio de
Jerusalém, como também, não podia alterar o calendário das festas. A quebra dessa
tradição, para Crocetti30, tornava o culto em Israel idolátrico.
Diante do exposto, é possível fazer algumas considerações sobre as duas
narrativas bíblicas, permanecendo fiel ao propósito de identificar a idolatria como um
processo de dominação e exploração do povo, por reis dominadores, que se utilizam
da criação de uma divindade para legitimar a opressão e interferir na comunidade
humana. A primeira é que o poder atribuído a Deus acabou por legitimar o poder
absoluto do autoritarismo, da ditadura e dos impérios na terra. A outra, é que o
símbolo da grandeza de Deus serviu para justificar o poder e o desejo ilimitado dos
homens.
O relevante na primeira narrativa é que o bezerro de Aarão foi solicitado pelo
povo que permanecia impaciente com a ausência de Moisés, com sentimento de
abandono e desejoso de um deus que caminhasse à sua frente. A construção do bezerro
de Aarão foi fruto da participação do povo, feito com os brincos de ouro que traziam
nas orelhas. Enquanto, na segunda narrativa, os dois bezerros de Jeroboão foi algo
feito sob iniciativa própria, criado pelo medo da morte e perda do poder, ou seja,
impostos por Jeroboão, mesmo com a conivências das dez tribos do Norte. A imagem
dos bezerros tinha a intenção de representar os deuses que os tiraram do Egito, por
conseguinte, não reconheciam Javé como Deus libertador. O povo não teve a
participação direta na construção dos bezerros, nem foram consultados, embora o
ouro utilizado possa ser resultado da exploração e domínio desse povo.
Na narrativa de “Ex 32,1-10 o povo é ativo e em 1 Rs 12,26-33 o povo é
passivo.”31 Na primeira narrativa o povo se sente só, abandonado, solicita um deus que
caminhe à sua frente. Na segunda, é o rei Jeroboão que teme ficar isolado, perder o
apoio do povo e sua própria vida. Para se proteger, oferece uma representação de Deus,
imagens representando divindades. É possível perceber na narrativa que o povo não
se revolta com a mudança na tradição religiosa imposta por Jeroboão, pois foi ele quem
decidiu onde seriam colocados os bezerros. O povo se deixa dominar e passa a
30
31
CROCETTI. 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, p. 117.
TOGNERI. Os Bezerros de ouro, p. 373.
Jair Inácio Tauchen | 363
frequentar em peregrinação os santuários de Betel e Dã, como também aceita a
alteração das datas festivas. Na verdade, tornaram-se uma nação tão morta
espiritualmente quanto os ídolos que passaram a adorar.
No entanto, a construção dos bezerros e a entrega ao povo teve o mesmo
sentido para o povo e para Jeroboão: “Israel estes são os seus deuses que tiraram você
da terra do Egito” (Ex 32,4: 1Rs 12,28). Isso significa que o povo ainda não reconhecia
Javé como o Deus libertador, necessitava de imagens, deuses visíveis. A dificuldade
estava em acreditar no Senhor Javé, Deus libertador invisível, que se revela através da
palavra e ações e que não pode ser comparado e representado por nenhuma imagem.
3 Idolatria no Cristianismo
Ao ler a Bíblia facilmente surge o seguinte questionamento: qual Deus é o
verdadeiro? Existe o reconhecimento que Deus é profundamente “humano”, vivo e ao
revelar seu nome em Ex 3,14 deixa claro: “Eu sou aquele que é”.32 Deus se mostra como
absoluto.33
O texto de Ex 3,14 apresenta diferentes traduções, interpretações e inúmeros debates. Por exemplo, a
Bíblia do Peregrino, edições Paulinas, traduz Ex 3,14 como “Sou o que sou”. A opção foi seguir a tradução
da Bíblia de Jerusalém: “Eu sou aquele que é”. É enriquecedor o comentário que a Bíblia de Jerusalém
apresenta sobre Ex 3,14. “Essa narrativa, é um dos pontos altos do AT, coloca dois problemas: o primeiro
filosófico, diz respeito à etimologia do nome ‘Iahweh’; o segundo exegético e teológico, o sentido geral
da narrativa e o alcance da revelação que transmite. 1° Procura-se explicar a nome de Iahweh através
de outras línguas que não fossem o hebraico, ou então através de diversas raízes hebraicas. É preciso,
provavelmente, ver aí o verbo ‘ser’ numa forma arcaica. Alguns reconhecem aqui uma forma causativa
deste verbo: ‘Ele faz ser’, ‘Ele traz a existência’. Muito mais provavelmente trata-se de uma forma do
tema simples, e o termo significa: ‘Ele é’. 2° Quanto a interpretação, o termo é explicado no v. 14, que é
um antigo acréscimo da mesma tradição. Discute-se sobre o significado desta explicação: ‘ehyeh’ ‘asher’
ehyeh’. Deus, falando de si mesmo, só pode empregar a primeira pessoa: ‘Eu sou’. O hebraico pode ser
traduzido literalmente: ‘Eu sou o que sou’. Isso significaria que Deus não quer revelar o seu nome. Mais
precisamente, Deus dá aqui o seu nome que, segundo a concepção semita, deve defini-lo de uma certa
maneira. Contudo, o hebraico pode ser também traduzido literalmente: ‘Eu sou aquele que sou’; e
segundo as regras de sintaxe hebraica, isso corresponde a ‘Eu sou aquele que é’, ‘Eu sou o existente’. Foi
assim que compreenderam os tradutores da Setenta: Ego, eimi ho ôn. Deus é o único verdadeiramente
existente. Isto significa que ele é transcendente e permanece um mistério para o homem. E, além disso,
ele age na história do seu povo e na história humana, a qual ele dirige para um fim. Esta passagem
contém em potência os desenvolvimentos que a sequência da Revelação lhe dará (cf. Ap 1,8: ‘Aqueleque-é, Aquele-que-era e Aquele-que-vem, o Todo Poderoso’”). Cf. BÍBLIA DE JERUSALÉM.
33 Sobre esse sentido absoluto, é oportuno o comentário de Gutiérrez: “ser princípio absoluto não
significa desinteressar-se pela história. Pelo contrário, ao revelar seu nome, que não é puro conceito,
Javé manifesta a sua decisão de participar dela. O ser de Deus está ligado no decurso histórico. O eterno
se faz presente no temporal, o absoluto na história, sem ser, porém, apenas uma presença: é também
comunhão, é dom (...) ‘Eu sou’ (Javé) princípio absoluto e ativo, origem de tudo, é igualmente o Deus
do passado, o Deus dos patriarcas, dos antepassados, daqueles aos quais Moisés agora é enviado” cf.
GUTIÉRREZ. O Deus da vida, p, 36-37.
32
364 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
A Bíblia também relata que “somos a imagem e semelhança de Deus” e que
Deus é bondade, amor, justiça. Portanto, permanecendo fiel ao relato, o homem
deveria praticar a bondade, o amor a justiça. No entanto, o que se percebe é que não é
bem assim. “Fizemos Deus à nossa imagem e semelhança. O ser humano cria a sua
própria divindade e a adora como sua própria imagem.”34 Segundo o exposto, o Deus
que se vê, reflete aquilo que se é. Assim, a sociedade contemporânea violenta,
possivelmente terá deuses violentos.
Desde os tempos antigos quando o “Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus
de Jacó” foi substituído por outros deuses, as religiões procuram apresentar o Deus
verdadeiro e oferecer uma proposta segura de salvação. Muitas se apresentam como a
verdadeira, a única, acusando as outras de falsas, ao mesmo tempo que Templos são
erguidos, novas propostas religiosas são ofertadas. No entanto, apesar da bonita
retórica, desconhecem o Deus do qual o homem é “imagem e semelhança”, “mesmo
falando deste Deus, vão criando para o povo ídolos que não salvam e não são capazes
de ouvir o clamor dos pobres.”35
Um olhar atento sobre o Novo Testamento é possível perceber que ídolo para
Jesus é uma realidade histórica concreta e diretamente vinculada ao dinheiro, como
por exemplo no Evangelho de Mateus: “Ninguém pode servir a dois senhores. Com
efeito ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo.
Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24). Também no Evangelho de Lucas a
narrativa é praticamente a mesma: “Ninguém pode servir a dois senhores: com efeito,
ou odiará um e amará o outro. Ou se apegará a um e desprezará o outro. Não podeis
servir a Deus e o Dinheiro” (Lc 16,13). Portanto, a questão dos ídolos vai além da
veneração das imagens criadas. O tema refere-se aos amantes do dinheiro que
acumulam e guardam seu tesouro como se fosse algo divino, acreditando ser fonte de
bênção e felicidade. É justamente o que o Apóstolo Paulo denuncia: o dinheiro é um
ídolo. Assim, os ídolos não se limitam apenas ao culto das imagens, mas também se
referem a atitudes do coração.
Transformar o dinheiro em poder soberano é o mesmo que negar o Deus da
vida, da vida dos pobres, dos que não têm dinheiro. À sombra da idolatria se esconde
e legitima a opressão das pessoas, especialmente das mais pobres; oculta-se a justiça
34
35
CLÓVIS; BERNARDINO. Os “ídolos” no cristianismo primitivo, p. 396.
CLÓVIS; BERNARDINO. Os “ídolos” no cristianismo primitivo, p. 396.
Jair Inácio Tauchen | 365
trazendo consequências imediatas e reais sobre essas pessoas, como por exemplo, a
injustiça, a ganância, a maldade e o assassinato. O tema transparece na carta aos
Romanos: “Manifesta-se, com efeito, a ira de Deus, do alto do céu, contra toda
impiedade e injustiça dos homens que mantêm a verdade prisioneira da injustiça...”
(Rm 1,18-32).
Os Evangelhos apresentam Deus com várias denominações, como Emanuel, o
Deus conosco (Mt, 1,23), o Deus justo (Rm 9,14), um Deus fiel (1Cor 1,9). No entanto,
a síntese de tudo encontra amparo na expressão: “Deus é amor” (1Jo 4,18). O povo ao
experimentar o amor de Deus, é convidado a abandonar os ídolos e a servir o Deus vivo
e verdadeiro (1Ts 1,9). Deus vivo no sentido que a revelação tem a ver com a vida, Ele
cria e defende a vida. Idolatria é a manipulação de Deus, é criar uma realidade na qual
se coloca a confiança em alguém ou alguma coisa que não é Deus.
Assim como na história de Israel o problema da idolatria foi uma constante, o
mesmo acontece no cristianismo. Facilmente o Deus da vida apresentado por Jesus é
trocado por um simulacro divino, produto humano que provoca opressão e sofrimento
nas pessoas. Clóvis e Bernardino destacam que “nenhum sistema religioso é fiel a Deus
se permite a exploração ou a negação da dignidade do ser humano.” 36 Aceitar a
injustiça social, a fome, a violência, ações que desrespeitam a vida e o meio ambiente
constitui uma prova que falsos deuses são adorados, encobertos pelo véu do egoísmo,
do individualismo do poder econômico. O ídolo provoca uma fascinação que em certas
ocasiões passa a impressão que suas “propostas” são mais palatáveis que as do Deus
bíblico. No entendimento de Keller a idolatria manifesta-se quando “um ídolo tem uma
posição de controle tão grande em seu coração que você é capaz de gastar com ele a
maior parte de sua paixão e energia, seus recursos financeiros e emocionais, sem
pensar duas vezes.”37
O cenário religioso do Império Romano apresentava um conjunto de deuses
espalhados por todo Império no qual Estado e religião se confundiam. As autoridades
públicas eram responsáveis pela organização da religião oficial e, a fim de manter a
legitimidade nas relações sociais e políticas, os imperadores se autodivinizavam
proclamando-se deuses e passando a exigir de seus súditos o devido culto. Essa
estrutura da sociedade Romana provocou enorme dificuldade no início do cristianismo
36
37
CLÓVIS; BERNARDINO. Os “ídolos” no cristianismo primitivo, p. 401.
KELLER. Deuses falsos, p. 15.
366 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
em função de não se admitir questionamentos sobre a religião e ritos em prol dos
imperadores. O fato de Jesus anunciar o Reino de Deus e, no seu “projeto político”,
assumir a defesa dos pobres, dos doentes, dos marginalizados, questionando o
desrespeito à vida, provocou um enfrentamento com o Império Romano. Contestar a
religião do Império consistia em colocar-se contra o Estado e, em virtude disso, no
princípio houve um confronto ideológico, posteriormente, um embate jurídico, até
culminar na morte de Jesus e na perseguição dos cristãos.
Atualmente é o sistema capitalista neoliberal que assume o papel do Império
Romano ao transferir o plano do Deus da vida para o mercado que privilegia alguns
indivíduos através do sacrifício da maioria. A idolatria tem a função simbólica de
legitimar a opressão do poder econômico vigente e político. Isso é facilmente percebido
quando o ídolo passa a ser mais importante que o homem, tornando-o explorado e
dominado.
Considerações finais
O problema da idolatria na revelação bíblica, cuja interpretação não pode estar
ancorada no fundamentalismo e na intolerância, está em camuflar a nobreza entre
Deus, o Criador e a criatura. Todo poder atribuído a Deus acabou por legitimar o poder
absoluto do autoritarismo, da ditadura e dos impérios na terra. Serviu para justificar o
poder e o desejo ilimitado dos homens. Um processo que culminou na dominação e na
exploração do povo por reis dominadores que se utilizaram da criação de uma
divindade para legitimar a opressão. Assim, foi possível depreender que a idolatria
pode ser qualquer realidade divinizada pelo homem; ela se constitui ao substituir o
divino por algo que se possa manipular e usar. À sombra da idolatria se esconde e
legitima-se a opressão, especialmente dos mais pobres, e oculta-se a justiça trazendo
consequências imediatas e reais como a ganância, a maldade e a exclusão.
Também, foi possível demonstrar que a idolatria é uma divindade que oprime
e exige a entrega e o sacrifício humano; outro ponto demonstrado foi que os ídolos são
deuses que legitimam a opressão, apoiam poderes dominadores, interferem na
comunidade humana e são incapazes de ouvir o clamor dos pobres. O sacrifício exigido
não é mais em nome de Deus, mas de uma instituição que foi transcendentalizada. É o
Jair Inácio Tauchen | 367
caso do mercado que se utilizou da religião como instrumento para justificar e
legitimar o projeto econômico de expansão, dominação e opressão.
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https://doi.org/10.36592/9786587424163-20
Introdução
John Bolender
O pensamento mágico é encontrado ao longo de grande parte da história da
filosofia. É possível que o pensamento mágico tenha sido um pouco menos influente
durante a Revolução Científica, graças às tentativas de Francis Bacon e René Descartes
de minimizar a influência de preconceitos. A matematização da natureza também
constituiu uma alternativa convincente ao pensamento mágico. Todavia, uma vez que
a filosofia e a ciência se distinguiram completamente uma da outra no século XIX, o
pensamento mágico se reafirmou com força na filosofia. É bastante evidente na
filosofia do século 20, se o procuramos. Seria impossível estabelecer estes pontos no
espaço de um único capítulo. No entanto, tentarei ilustrar parcialmente a tese,
concentrando-me no papel do pensamento mágico em várias teorias filosóficas da
memória através dos séculos. Há pelo menos quatro formas de pensamento mágico.
Cada uma delas é melhor definida dando exemplos, o que começarei a fazer na Seção
2 Um relato geral do pensamento mágico também é discutido nessa seção
Antes de começar, porém, quero deixar claro que esta discussão sobre o
pensamento mágico desempenha um papel numa abordagem naturalista da
epistemologia. O objetivo é mostrar que a prevalência do pensamento mágico na
filosofia é muito freqüente, e muito especialmente após a Revolução Científica, um
sintoma de fechamento cognitivo. A tese do fechamento cognitivo é a afirmação de que,
dada a natureza biológica da mente humana, há limites para a capacidade de formar
conceitos. Como resultado, há limites na gama de teorias que a mente humana pode
acessar. Além disso, aqueles que defendem a tese, como eu faço, insistem que muitos
problemas perenes de filosofia não se submetem a respostas claras precisamente
devido a esta limitação. Acho os limites biológicos da cognição humana um tópico
372 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
adequado para um Festscrhift para Nythamar de Oliveira, à luz de ter liderado os
Seminários de Neurofilosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul desde 2012. O reconhecimento da relevância do naturalismo na definição dos
limites da própria filosofia pode ser entendido como uma espécie de neurometafilosofia.
Quando a mente humana acha a pergunta inexplicável, uma tendência é
recorrer ao pensamento mágico. Não quero insinuar que esta seja a única tendência
possível. Outra tendência pode ser a de produzir teorias que são altamente vagas,
contendo muitas pseudo-proposições, para usar o termo popular na filosofia analítica
clássica. No entanto, esta última tendência já está bem documentada, então eu escolho
aqui para discutir o primeiro.
Ao fazer isso, porém, é importante deixar claro que nunca pretendo sugerir que
uma teoria imbuída de um pensamento mágico é necessariamente falsa. Revelar o
pensamento mágico em uma teoria filosófica não é necessariamente um reductio ad
absurdum da teoria. Implicar que é cairia na armadilha de acreditar que sabemos de
antemão qual será a forma do conhecimento. É o tipo de armadilha em que B. F.
Skinner caiu quando escreveu o seguinte:
Aristóteles argumentara que a aceleração de um corpo em queda se devia ao
crescente júbilo por se aproximar da Terra; e, mais tarde, as autoridades no
assunto supuseram que um projétil era impelido para frente por um ímpeto, por
vezes chama do de “impetuosidade”. Todas essas concepções foram finalmente
abandonadas, mas as ciências do comportamento ainda apelam para estados
internos correlatos. Ninguém se surpreende ao ouvir dizer que um portador de
boas-novas anda mais depressa por se sentir jubiloso, ou age com menos cuidado
devido a sua impetuosidade, ou se se aferra teimosamente a um modo de agir, por
pura força de vontade. Ainda se encontram referências descuidadas quanto à
intenção, tanto na física como na biologia, mas na prática correta não há lugar para
isto; entretanto, quase todos ainda atribuem o comportamento humano a
intenções, propósitos, objetivos e metas. (SKINNER 1973, 11)
A resposta de Chomsky a Skinner sobre este ponto também poderia ser tomada
como um aviso para qualquer pessoa tentada a acreditar que o pensamento mágico é
sempre falso: “Certamente nenhum cientista acompanharia Skinner em sua
insistência na necessidade a priori de que a investigação científica levará a uma
conclusão particular, antecipadamente especificada” (CHOMSKY 1979, 13). É
concebível, por exemplo, que a teoria da telepatia de Marshall, a ser discutida na Seção
3, seja verdadeira, embora eu não esteja ciente de nenhuma razão convincente para
John Bolender | 373
acreditar nela. O ponto não é que o pensamento mágico seja sempre enganoso. Há, ao
invés disso, dois pontos: um é que o pensamento mágico é natural e instintivo,
especialmente quando se enfrenta um desafio cognitivo que é à primeira vista
insolúvel. O segundo ponto é que, porque o pensamento mágico é instintivo, uma
teoria mágica pode parecer mais plausível do que realmente é. A presença do
pensamento mágico é um aviso para ser cauteloso: devemos estar atentos à presença
de um pensamento desejoso se notarmos um aspecto mágico em nossa teorização.
1 Fechamento Cognitivo
A alegação de que existem limites biológicos inatos nas capacidades humanas
para a formação de conceitos tem sido utilizada por alguns pensadores, como Noam
Chomsky, Jerry Fodor, Thomas Nagel (2004) e Colin McGinn, para explicar por que
existem problemas perenes na filosofia. Especificamente, ela tem sido usada na
tentativa de explicar por que tais problemas freqüentemente parecem ser insolúveis
ou, pelo menos, para explicar por que os filósofos não convergem em seus pontos de
vista sobre como resolvê-los. Chomsky tem insistido que esta posição, às vezes
conhecida como "a tese de limitação epistêmica" (FODOR 1983) ou "a tese de
fechamento cognitivo" (MCGINN 1993), é um truísmo, dada a suposição de que a
mente humana é biológica.
[A]s mesmas propriedades da mente que oferecem hipóteses admissíveis podem
excluir outras teorias corretas, como não sendo inteligíveis pelos seres humanos.
Algumas teorias podem simplesmente não se encontrar entre as hipóteses
admissíveis determinadas pelas propriedades específicas da mente que nos adapta
para “imaginar teorias corretas de alguns tipos”, apesar de essas teorias serem
acessíveis a uma inteligência organizada de maneira diferente. (CHOMSKY 2007,
149)
A idéia é que o ser humano, como organismo, tem um dom biologicamente
inato. Se não fosse assim, o humano se desenvolveria em algum tipo de entidade
parecida com a ameba meramente refletindo as influências moldadoras de sua história
individual. Os próprios fatores inatos que tornam possíveis algumas estruturas
corporais também impedem a formação de outras; assim, os fatores biologicamente
inatos que resultam no desenvolvimento de nossos braços e pernas também nos
impedem de desenvolver asas e chifres. Chomsky estende este tipo de observação para
374 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
a mente: sem alguma restrição biologicamente inata, mentes adultas seriam análogas
às da entidade ameba referida anteriormente, simplesmente refletindo as
propriedades empobrecidas de seus ambientes particulares. Elas não teriam
estruturas tão ricas como, por exemplo, a linguagem. Mas note que as mesmas
restrições inatas que tornam possíveis certos desenvolvimentos cognitivos também
impedem outros desenvolvimentos cognitivos. Outras espécies, com um dom biológico
diferente, poderiam ter esses poderes cognitivos, embora os seres humanos não os
tenham. Assim como algumas espécies não-humanas crescem asas ou chifres, pode
haver certas capacidades cognitivas possuídas por outras espécies -- em outros
planetas, se não na Terra -- que nenhum ser humano jamais poderia adquirir.
Para ilustrar o ponto, considere a capacidade humana de contagem sem limites,
ou seja, de apreender cognitivamente a série de números naturais. Esta capacidade é,
plausivelmente, um ramo da faculdade de linguagem biologicamente inata, dado que
ambas exibem a característica biologicamente rara da infinitude discreta, e dado que
a contagem sem limites pareceria ser um spandrel em vez de uma verdadeira
adaptação (HAUSER et al. 2002). Considerando que os números utilizados na
teorização científica (imaginários, complexos, etc.) são definíveis em termos de
números naturais (WAISMANN 1959), podemos ver como a vasta gama de
matemáticas cientificamente utilizáveis é derivável da propriedade aparentemente
simples da contagem sem limites. O uso de matemática sofisticada em filosofia natural
foi crucial para a Revolução Científica, como refletido na visão de Descartes de que o
estudo do mundo material poderia ser reduzido à ciência da geometria e, talvez o mais
famoso de todos, na observação de Galileu em O Ensaiador:
A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre
perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de
entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está
escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e
outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente
as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto. (1983,
232)1
Esta atitude contrastava fortemente com a suposição quase gnóstica,
prevalecente anteriormente, segundo o qual o mundo natural fica aquém da perfeição
matemática, pelo menos no domínio sublunar. A utilidade da matemática em revelar
1A
paginação é da edição original de 1623.
John Bolender | 375
os segredos da natureza tem sido tão marcante a ponto de evocar um sentido de enigma
entre alguns (WIGNER 1960), e até levou outros a inferir (precipitadamente!) que a
realidade consiste em verdades matemáticas e nada mais (TEGMARK 2014). Uma
possibilidade mais razoável é que a capacidade de contagem humana nos permita
compreender alguns aspectos da realidade a uma grande profundidade, mas deixandonos nos rasos no que diz respeito a outros aspectos. Ou seja, a ciência
matematicamente sofisticada nos dá insights profundos sobre apenas alguns aspectos
da realidade, mas não há outras opções humanamente disponíveis. Isto seria análogo
a ter as estruturas genéticas possibilitando um, com grande disciplina, para se tornar
um atleta olímpico, mesmo quando essas mesmas estruturas impedem o crescimento
de olhos compostos ou de brânquias.
Em outras palavras, a Revolução Científica foi a época em que os filósofos
estavam reconhecendo, como nunca antes, a importância da matemática para a
compreensão do mundo natural. Combinado com um novo ceticismo dirigido contra
as alegações tradicionais de conhecimento, isto resultou em muito progresso em
algumas áreas da filosofia (mecânica, reações químicas, ótica) enquanto deixa muitas
outras áreas da filosofia não melhoradas (os conhecidos hoje como os problemas
perenes da filosofia). O resultado histórico foi que as áreas da filosofia que mostraram
progresso passaram a ser conhecidas como "as ciências", enquanto as áreas estagnadas
mantiveram a antiga designação "filosofia". (Isto não é para negar que a palavra latina
"scientia" é muito antiga). Uma vez que a filosofia e as ciências tinham se tornado
claramente distintas, pensamento mágico ressurgiu dramaticamente na filosofia,
permanecendo raro, mas não totalmente ausente, nas ciências. Isto reflete o fato de
que, embora os cientistas tenham vários métodos úteis para abordar seus quebracabeças, os filósofos permanecem em um nevoeiro.
2 O Pensamento Mágico
O pensamento mágico parece ser um universal humano. Ele não se encontra
apenas em todas as culturas, mas se manifesta como uma forte tendência inconsciente,
mesmo entre os bem educados. Como exemplo de pensamento mágico, considere a
discussão de James Frazer sobre a crença na magia homeopática. Especificamente, é a
crença no princípio de que o semelhante produz o semelhante: “A aplicação mais
376 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
conhecida do princípio de que o semelhante produz o semelhante talvez seja a
tentativa, feita por muitos povos em muitas épocas, de ferir ou destruir um inimigo
danificando ou destruindo uma imagem sua, na convicção de que, assim como a
imagem sofre, também sofrerá o homem, e de que, se ela for destruída, ele terá de
morrer” (FRAZER 1982, 35). O psicólogo de desenvolvimento Eugene Subbotsky
(2010, 49) revisa uma série de estudos psicológicos mostrando que adultos bem
educados têm tendências inconscientes a acreditar em princípios mágicos, como é
mostrado em algumas de suas reações mostrando repugnância. Por exemplo, os
sujeitos estavam menos dispostos a provar um pedaço de chocolate moldado na forma
de fezes de cachorro e em vez de um muffin, embora os sujeitos estivessem claramente
cientes de que a substância era chocolate inofensivo. Este e outros estudos mostram
uma tendência inconsciente a acreditar na magia homeopática.
O tema do pensamento mágico é relevante para a tese de fechamento cognitivo;
há razões para acreditar que quando os seres humanos chegam aos seus limites
cognitivos, tenderão a pensar magicamente. Há evidências apoiando a visão de que
existe uma tendência natural e automática de pensar magicamente quando se encontra
um quebra-cabeça tão desconcertante que efetivamente não se tem nenhuma
ferramenta ou método aparente para se aproximar dele. Assim, as pessoas pensam
magicamente como uma espécie de muleta ou às vezes como um último recurso, como
é mostrado nas evidências que apoiam the systematic distortion hypothesis (a
hipótese de distorção sistemática) (D’ANDRADE 1965; SHWEDER 1977; 2017;
BORMAN 2017).
Esta hipótese foi desenvolvida nos anos 60 e 70 com o trabalho dos
antropólogos Roy D'Andrade e Richard Shweder que notaram um viés sistemático nas
tentativas dos psicólogos para categorizar as pessoas de acordo com seus tipos de
personalidade. Eles atribuíram isto a uma confusão, na mente do psicólogo, entre a
correlação real dos traços de personalidade e as semelhanças semânticas entre as
frases que descrevem tais traços: “Algumas das classificações utilizadas pelos
psicólogos podem ser derivadas apenas de semelhanças nos significados das palavras
sem considerar nenhuma amostra de comportamento real" (D’ANDRADE 1965, 215).
Esta confusão resulta de dificuldades humanas inerentes ao julgamento de
correlações. Assim, por exemplo, um psicólogo pode achar difícil, na observação de
crianças, julgar se autoconfiança no playground se correlaciona com autoconfiança na
John Bolender | 377
sala de aula. Entretanto, devido à considerável sobreposição semântica entre as frases
“autoconfiança no playground” e “autoconfiança na sala de aula”, o psicólogo tenderá
a acreditar em tal correlação. Esta tendência para confundir a semântica com os fatos
que vão compor o mundo é uma resposta natural ao desafio cognitivo de processar
correlações reais, ou seja, informações estatísticas.
Informações relevantes para a correlação são difíceis para a mente humana de se
organizar em um formato que se presta à manipulação correlacional, e o raciocínio
correlacional é normalmente evitado quando a maioria dos adultos em todas as
culturas estima o que vai com o que em sua experiência. [...] Muitos conceitos
estatísticos que têm a ver com mudanças e probabilidades são não-intuitivos. Por
exemplo, se eu apostasse que, em um grupo de vinte e cinco pessoas selecionadas
aleatoriamente, duas teriam nascido no mesmo dia do ano, as chances estariam
ligeiramente a meu favor (KEMENY, SNELL, THOMPSON 1966, 134-41), ainda
que muito poucos adultos normais recusariam meu pedido de grandes
probabilidades. Para um grupo composto aleatoriamente de quarenta pessoas,
seria eu quem deveria oferecer fortes probabilidades (de fato, oito para um) a
qualquer tolo o suficiente para apostar que não nasceriam duas no mesmo dia do
ano. A mente intuitiva se confunde! A correlação é um conceito não intuitivo (ver,
p.ex., SMEDSLUND 1963; JENKINS, WARD 1965; WARD, JENKINS 1965).
(SHWEDER 1977, 638)
Shweder desenvolveu esta observação de distorção sistemática em um relato
geral do pensamento mágico. Enquanto Shweder descreve o pensamento mágico como
"confusão de proposições sobre o mundo com proposições sobre a linguagem" (1977a,
639), o que ele realmente descreve, em detalhes de sua teoria, é uma confusão entre
expressões verbais com características semânticas sobrepostas. Ele descreve uma
confusão adicional sobre o mundo que resulta desta confusão lingüística.
Para ilustrar o ponto, imagine um cenário historicamente plausível no qual
alguém, que acredita na magia homeopática, está tentando lançar um feitiço sobre
Adolf Hitler, na década de 1930 ou 40. A pessoa corta de um jornal uma fotografia de
Hitler que se prendem a uma superfície por meio de pinos fixados diretamente em
partes do corpo de Hitler, como aparecem na fotografia. O objetivo seria prejudicar
Hitler ou, ao menos, evitar que ele realizasse seus desejos. Em outras palavras, a
imagem de Hitler é utilizada de forma análoga ao uso de um boneco Voodoo. Em algum
canto da mente do praticante, por assim dizer, o praticante confundiu a imagem com
o próprio Hitler. Mas esta confusão resulta de uma confusão entre expressões verbais.
Especificamente, o praticante confunde a expressão "Adolf Hitler" com a expressão
378 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
"imagem de Adolf Hitler". Como resultado desta confusão semântica, o praticante
confunde Hitler, o homem, com Hitler, a imagem. A pessoa, presumivelmente, não
confunde as duas expressões no contexto da construção sintáctica das frases. Mas
confunde as expressões no nível da inteligência geral em que essas frases são colocadas
em uso.
Antes da Revolução Científica, se esperaria muito pensamento mágico na
tentativa de compreender o mundo natural. Isso seria porque os filósofos naturais
simplesmente não tinham os métodos que convincentemente levariam ao progresso
com respeito a tais questões. Eles confiariam naturalmente no pensamento mágico
como um tipo de muleta intuitivamente persuasiva. Assim, não é surpresa que a
existência da magia homeopática tenha sido considerada como truística pelos antigos
gregos, e, portanto, freqüentemente entraram em sua filosofização.
Aristóteles distingue três espécies de mudança: movimento de lugar para lugar
(locomoção); mudança em quantidade (crescimento e diminuição); e mudança de
qualidade (alteração). Cada um desses três campos encontraremos ocupado por
uma máxima que presta contas das modificações que ocorrem nele quanto a
semelhança ou não semelhança na natureza das coisas que sofrem modificação.
Assim o movimento no espaço é explicado afirmando que O semelhante atrai o
semelhante; o crescimento, afirmando que O semelhante nutri o semelhante; a
modificação da qualidade, afirmando que O semelhante afeta o semelhante. Quase
cada filósofo antigo invoca algum princípio deste tipo. A única diferença da opinião
é na pergunta de que se não são coisas não-semelhantes que atraem, ou nutrem,
ou afetam uma a outra. Ninguém deixa de perguntar se essas máximas são bem
fundadas ou capazes de carregar a estrutura da teoria baseada sobre elas.
(CORNFORD 1931, 31-2)
E esta atitude não se limitava a Aristóteles, como veremos em breve. Francis
Cornford tenta explicar este fenômeno em termos de os gregos ainda estando
intimamente ligados às crenças religiosas pré-racionais. Entretanto, é igualmente
razoável apelar para uma proclividade humana inata para o pensamento mágico, algo
na linha dos "ídolos da tribo" de Francis Bacon.
Considerando que Cornford está discutindo o pensamento mágico em filosofia
antes da revolução científica, seus exemplos não ilustram necessariamente a tese de
fechamento cognitivo. Em alguns casos, ao contrário, poderiam ilustrar o recurso
natural ao pensamento mágico quando não se tem uma metodologia adequada para
abordar uma questão científica. Em parte porque a matematização da natureza ainda
não havia se realizada, e talvez em parte também por outras razões, tal como uma
John Bolender | 379
dependência acrítica das autoridades, incluindo as tradições esotéricas, deve-se
esperar filosofia, antes da revolução científica, ser saturada com o pensamento mágico.
Começando com a Revolução Científica, ao contrário, deve-se esperar que o
pensamento mágico em filosofia seja limitado em grande parte às questões perenes.
Enquanto ainda estamos sobre o tema dos antigos gregos, é adequado discutir
brevemente o conceito de magia alopática. Desempenhará um papel nas discussões
posteriores de Aristóteles e Plotino. Gertrude Anscombe fornece a seguinte
caracterização:
A doutrina que o-semelhante-conhece-o-semelhante era uma doutrina freqüente
entre os primeiros filósofos gregos. É relatado por Teofrasto que Anaxágoras a rejeitou
fortemente, e sustentou que, ao invés disso, o-não-semelhante-conhece-osemelhante. Ele mencionou, entre outros exemplos, que a sensação lhe mostrará que
algo está quente se sua mão estiver mais fria, e vice-versa. “Coisas semelhantes não
pudessem ser afetadas pelas semelhantes. Uma imagem é lançada sobre o que não é
da mesma cor, mas duma diferente”. (Isto é sobre visão). Não apreendemos doce e
azedo por doce e azedo respectivamente, mas por contrastes. (2011, 2)
A crença no pensamento mágico alopático, na primeira impressão, pareceria
surpreendente. Afinal de contas, a magia alopática seria oposta à magia homeopática.
Poder-se-ia pensar que uma tendência inata à crença na magia homeopática militaria
contra qualquer tendência à crença na magia alopática. No entanto, a crença em
magias homeopáticas e alopáticas é completamente sem surpresas, à luz da teoria do
pensamento mágico de Richard Shweder (1977a). Para apelar para o exemplo dado
anteriormente, assim como é natural pensar que há algo que liga Hitler diretamente à
fotografia de Hitler por causa de uma sobreposição semântica entre as expressões
"Hitler" e "fotografia de Hitler", também é altamente intuitivo pensar que existe
alguma conexão entre uma coisa e seu oposto. Afinal, existe uma clara sobreposição
semântica entre quaisquer duas expressões com as formas "X" e "oposto de X".
3 Marshall
Antes de se voltar para uma das questões perenes da filosofia, consideremos um
análogo mais moderno para o caso do pensamento grego antigo. Este é um caso em
que um psiquiatra formulou uma teoria fortemente saturada do conceito de magia
homeopática, como uma estratégia para responder a algumas perguntas notavelmente
desconcertantes nas quais ele acreditava. O psiquiatra em questão é Ninian Marshall
380 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
que, pelo menos em 1960, acreditava na realidade da telepatia bem como da memória
racial; ele também achou profundamente difícil entender como as memórias poderiam
ser armazenadas no cérebro. Talvez não seja tão óbvio hoje que estes são enormes
desafios científicos, em parte porque a telepatia e a memória racial não parecem ser
reais. Há também abordagens mais sofisticadas da memória (GALLISTEL; KING
2010) do que as disponíveis em 1960. Mas estas perguntas eram reais e muito
intrigantes para Marshall. Sua abordagem para todos esses três supostos problemas
foi a de propor uma única lei que se manifesta apenas em estruturas complexas ou cuja
influência é apenas grande o suficiente para ser perceptível em tais estruturas.
Os experimentos físicos são realizados em estruturas simplificadas. Pode haver leis
holísticas não descobertas, cujos efeitos seriam fortes apenas em estruturas
complexas como o cérebro. Tal lei é proposta, a "lei da ressonância", para explicar
a existência da telepatia e da memória. Por esta lei, quaisquer duas estruturas
similares exercem uma influência uma sobre a outra, o que tende a torná-las mais
semelhantes. Esta influência pode atuar sobre as estruturas físicas somente dentro
dos limites do princípio da indeterminação, mas é independente de sua separação
espaço-temporal. A ressonância de um padrão de atividade neural em um cérebro
com outro cérebro leva à telepatia; a ressonância com um estado passado de si
mesma leva à memória. (MARSHALL 1960, 286)
Um padrão em qualquer parte do córtex que se assemelhasse a um padrão anterior
em qualquer parte do cérebro, seria atraído para se assemelhar mais a ele. Assim,
passar-se-ia de uma determinada idéia ou imagem para uma imagem
relacionada—uma lei de associação bem conhecida. Memórias complexas podem
assim ser explicadas como ressonância com os estados passados do próprio
cérebro. (MARSHALL 1960, 283)
O “princípio da indeterminação” se refere à indeterminação quântica. Em
outras palavras, a indeterminação em um sistema é uma condição necessária para que
o sistema se enquadre no domínio da lei, assumindo a proposta de Marshall. Ele
também sugeriu que sua teoria poderia explicar a existência de uma memória racial,
presumivelmente uma coisa muito intrigante para aqueles que acreditam nisso:
“Finalmente, é possível supor que, em um nível indiferenciado e profundamente
inconsciente, os cérebros das pessoas estão em ressonância na maior parte do tempo.
Isso daria uma base para teorias do inconsciente coletivo, da mente grupal, da
participation mystique ou da memória racial” (MARSHALL 1960, 278).
Marshall esclarece ainda mais sua teoria da seguinte forma, revelando assim,
inadvertidamente, seus fundamentos mágicos:
John Bolender | 381
Uma hipótese geral para cobrir isto seria: "Quaisquer duas estruturas físicas que
sejam semelhantes, tendem a se tornar mais semelhantes". Para fazer a lei
corresponder com a física das estruturas simples, devemos acrescentar: a força
desta tendência é proporcional à complexidade das duas estruturas. Para que ela
corresponda aos fatos da telepatia, devemos acrescentar: a tendência é
independente da separação das estruturas no espaço e no tempo, mas aumenta
com a similaridade das duas estruturas. (1960, 266)
Está claro, pelo exposto acima, que, se Marshall estiver correto, o grau em que
a lei faz uma diferença observável é proporcional ao grau em que o comportamento do
sistema em questão passa além do entendimento científico. Em outras palavras, o
efeito é observável precisamente naqueles sistemas que são muito complicados para
qualquer entendimento científico real. Marshall pode não ter pretendido esta
implicação, mas a implicação é clara quando se reflete sobre a importância da
idealização nas ciências. Para citar Chomsky sobre o tema da idealização,
[E]m pesquisa racional, nas ciências naturais ou em qualquer outra, não há um
tema como “o estudo de todas as coisas”. Assim, não faz parte da Física determinar
de modo exato como um corpo se move sob a influência de cada partícula ou força
no universo, com possível intervenção humana, etc. Isso não constitui um tópico.
Em vez disso, em pesquisa racional, idealizamos selecionar domínios de tal
maneira (esperamos) que nos permita descobrir características do mundo. (2002,
103)
Assim, Marshall postula um princípio de magia homeopática que se refere
precisamente à medida em que os sistemas estão além da investigação científica. Isto
se encaixa bem com a concepção de Shweder de pensamento mágico: quanto mais o
sistema excede as capacidades humanas de compreensão, mais um está inclinado a
posar processos mágicos na tentativa de entender. A magia é introduzida, por assim
dizer, como um deus ex machina, a fim de preencher as lacunas deixadas pelo limite
epistêmico humano.
Antes de deixar o tópico da teoria de Marshall, seria bom passar algum tempo
refletindo sobre o porquê de ele levar a telepatia tão a sério em primeiro lugar. O
argumento de Marshall para sua existência se baseia inteiramente no trabalho de S. G.
Soal (SOAL; BATEMAN 1954), cujos dados se mostraram mais tarde fraudulentos
(MARKWICK 1978). Entretanto, o objetivo deste artigo não é determinar se a telepatia
ou a memória racial existem. O ponto a ser observado é que Marshall, que
aparentemente acreditava nessas coisas, deve ter achado a explicação delas
intimidadora, sem uma visão clara de como proceder. Este é precisamente o tipo de
382 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
circunstância em que se espera que o teórico deslize instintivamente para o
pensamento mágico. E foi exatamente isso que Marshall fez.2
4 Conhecimento e Memória
A discussão de Marshall foi concebida como uma espécie de exercício de
aquecimento. Foi concebida como uma ilustração relativamente simples de como a
mente tem uma tendência inconsciente para recorrer ao pensamento mágico quando
não há método para se chegar a uma compreensão profunda de algum problema
aparente. Mas a principal preocupação desta discussão são os problemas perenes da
filosofia, não problemas que presumivelmente nem sequer existem, como o mistério
da telepatia. Então, finalmente, vamos nos voltar para uma dessas perguntas perenes:
Como explicar a capacidade de se ter crenças racionalmente justificadas
sobre o passado
O problema é levantado de uma forma dramática por Wittgenstein: “As
memórias têm sido chamadas de figurações. Uma figuração pode ser comparada com
sua original, mas a memória não pode. As experiências do passado afinal não são como
objetos na sala ao lado; embora eu não os veja agora, posso ir lá. Mas será que eu posso
entrar no passado?” (1979, 48). Mesmo para alguém que insiste que se pode explorar
o mundo externo de forma bastante direta, é muito menos óbvio que faz qualquer
sentido falar em explorar o passado. Mesmo quando os arqueólogos ou historiadores
falam em explorar o passado, eles não estão falando literalmente; não viajam para lá.
E ainda assim é intuitivamente óbvio que se tem (racional, justificado)
conhecimento do passado. De fato, esta é uma das verdades mais óbvias. Mas quando
se tenta articular como se elimina racionalmente a possibilidade de certos cenários
Marshall também especulou que sua teoria de ressonância poderia ser estendida à biologia,
presumivelmente como uma explicação para a herança: “Por fim, parece provável que os fenômenos
quânticos desempenhem um papel nos processos biológicos em geral, embora uma parte muito menor
do que no cérebro” (MARSHALL 1960, 272). Na verdade, a teoria de Marshall foi adotada,
essencialmente inalterada, pelo biólogo Rupert Sheldrake, e constitui a base de quase todo o trabalho
de Sheldrake. No entanto, ele só dá crédito a Marshall na breve nota final que se segue em um de seus
livros. “A hipótese de que tanto a telepatia quanto a memória podem ser explicadas sob a ótica de um
novo tipo de ‘ressonância’ transtemporal e transespacial entre sistemas complexos já foi apresentada
por Marshall (1960); com efeito, sua sugestão antecipa, em diversos aspectos importantes, a ideia da
ressonância mórfica” (SHELDRAKE 2013, nota 319).
2
John Bolender | 383
céticos sobre o passado, a tarefa parece ser desesperada. Como eliminar a possibilidade
que um cientista louco implantou pseudo-memórias enganosas em seu cérebro?
Mesmo que se busque no mundo a corroboração de suas memórias aparentes, só se
pode buscar no presente. Então aqui temos um caso em que sabemos de alguma forma
que existe uma solução para a questão filosófica, mas os filósofos não conseguem
convergir em uma única teoria, mesmo em linhas gerais vagas. Este é exatamente o
tipo de caso que Colin McGinn examina em sua defesa da tese de fechamento cognitivo
(1993), mesmo tendo pouco a dizer sobre o ceticismo em relação ao passado. Esperase que este ensaio ajude a preencher essa lacuna.
O objetivo é mostrar que numerosas teorias filosóficas influentes sobre a
memória pressupõem a existência da magia. Além disso, é para ser mostrado que este
pressuposto mágico é feito de modo a evitar o ceticismo sobre o passado. Discutirei
vários filósofos no que será, em sua maioria, por ordem cronológica: Plotino, Bergson,
Russell, Wittgenstein. No entanto, a discussão de Aristóteles virá depois de
Wittgenstein. A razão para isto é que a abordagem de Aristóteles à memória é
notavelmente complexa e sutil; a discussão de Aristóteles se beneficiará assim do
fundo fornecido pelas discussões dos outros filósofos. Mas isto em nenhuma forma
implica que a abordagem aristotélica à memória seja menos mágica do que as
abordagens dos outros filósofos que acabamos de mencionar. Ao contrário, a
concepção de Aristóteles de memória é profundamente mágica.
5 Plotino
A teoria da memória de Plotino se assemelha muito à sua teoria da percepção:
em ambos os casos, Plotino nega a existência de um interveniente entre o estado do
conhecimento e a coisa conhecida. Tanto a percepção quanto a memória se qualificam
como conhecimento, neste contexto. Em outras palavras, para Plotino, a percepção de
um objeto externo é direta, sem que haja necessidade de qualquer modificação do
espaço ou ar interveniente. Da mesma forma, as memórias segundo Plotino não são
armazenadas como vestígios ou impressões na alma. Ou seja, ele rejeitou qualquer
concepção arquivística de memória. Isto também é para rejeitar a existência de um
interveniente, a suposta impressão na alma servindo como tal interveniente.
Em ambos os casos, uma motivação por trás da teoria é o desejo de evitar
384 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
cenários céticos. Se o conhecimento perceptivo ou de memória não for direto, então há
espaço para dúvidas quanto à existência do objeto de percepção ou de memória. No
caso da percepção, pode-se perguntar se o ar que interveio de alguma forma tinha sido
modificado para criar uma ilusão. No caso da memória, pode-se perguntar se a alma
foi de alguma forma modificada em algum ponto intermediário no passado para criar
uma impressão enganosa resultando assim em uma pseudo-memória.
O desejo de descartar o ceticismo não é, no entanto, o único fator em sua
teorização. Parte do encanto intuitivo da teoria da visão de Plotino é que ela apela para
o que teria sido o senso comum do tempo dele. Por exemplo, Plotino evidentemente
considerou como um truísmo que uma pessoa possa estar em completa escuridão
mesmo quando as estrelas são visíveis para ela. Assim, ele infere que a luz não é
necessária para a visão. Assim, não se precisa de luz como um intermediário na
percepção visual. O mesmo vale para a visibilidade de fogos distantes à noite: “Se,
desafiando tudo o que os sentidos nos dizem, devemos acreditar que nestes exemplos
o fogo [como luz] atravessa o ar, então na medida em que qualquer coisa é visível, deve
ser aquela reprodução diminuída no ar, não o fogo em si" (PLOTINO § IV.5.3, 185). Ou
seja, para Plotino, a posição padrão é que o espectador está em completa escuridão ao
contemplar incêndios em, digamos, faróis distantes. Entretanto, se insiste-se que
alguma pequena quantidade de luz está chegando ao espectador, então, falando em
termos de senso comum, a percepção do espectador sobre o fogo não é de forma
alguma constituída pela percepção dessa pequena quantidade de luz.
No entanto, além do apelo ao antigo senso comum, Plotino também está
preocupado em privar o ceticismo de todo o seu oxigênio. No caso da visão, ele quer
evitar dúvidas sobre a existência de objetos a qualquer distância real do espectador.
“Se nossa percepção dependerá de impressões anteriores feitas no ar, então não temos
conhecimento direto do objeto de visão, mas o conhecemos apenas através de um
intermediário, da mesma forma que estamos cientes do calor onde não é o fogo
distante em si que nos aquece, mas o ar aquecido interveniente” (§ IV.5.2, 184). Dado
que temos conhecimento direto do objeto de visão, então nossa visão do objeto não
depende de impressões transmitidas através do ar; tal é seu raciocínio.
Os órgãos corporais desempenham um papel na percepção, em Plotino, mas
apenas porque são responsáveis pela existência de alguma similaridade entre o
perceptor e o objeto de percepção: “O conhecimento, então, é realizado por meio de
John Bolender | 385
órgãos corporais: por meio destes, que [na alma encarnada] são quase de um
crescimento com ela, sendo, ao menos, as continuações dela, entra em algo como união
com o alienígena, já que esta abordagem mútua traz um certo grau de identidade [que
é a base do conhecimento]” (§ IV.5.1, 183). Note que as impressões feitas sobre os
órgãos não constituem percepção para Plotino, nem mesmo parcialmente. É, em vez
disso, a semelhança do órgão com o objeto de percepção que é relevante para o relato
de Plotino. Este tipo de magia homeopática é um fator nas simpatias que correm pelo
universo e que Plotino acreditava serem cruciais para a percepção: “Percepção de todo
tipo parece depender do fato de que nosso universo é um todo simpático a si mesmo”
(§ IV.5.3, 185). Considerando o assunto com mais detalhes, Plotino escreve que
Este Um-Tudo, portanto, é um total simpatico e permanece como um ser vivo; o
distante está próximo; acontece como em um animal com suas partes separadas:
garra, chifre, dedo e qualquer outro membro não são contínuos e ainda estão
efetivamente perto; peças intermediárias não sentem nada, mas em um ponto
distante, a experiência local é conhecida. Coisas correspondentes não lado a lado,
mas separadas por outras colocadas entre si, o compartilhamento de experiências
por meio de condições semelhantes—isto é suficiente para garantir que a ação de
qualquer membro distante seja transmitida a seu companheiro distante. Onde
tudo é um ser vivo somado a uma unidade, não há nada tão remoto em relação à
localização a ponto de não estar próximo em virtude de uma natureza que faz do
único ser vivo um organismo simpático. (§ IV.4.32, 175)
O apelo a um organismo universal para explicar a percepção não implica,
todavia, a transmissão de sinais através de um meio. “Há necessidade de alguma
substância corporal entre o olho e o objeto iluminado? Não: tal material interveniente
pode ser uma circunstância favorável, mas essencialmente não acrescenta nada ao
poder de ver” (§ IV.5.1, 183). Isto é mais fácil de fazer sentido quando se tem em mente
que Plotino está apelando para o que é, para ele, literalmente magia. Há conexões
simpáticas na natureza, de acordo com o ponto de vista em questão, em parte por causa
de princípios mágicos homeopáticos. É a natureza do perceptor, ou mais
especificamente talvez a natureza dos órgãos do perceptor, que torna a percepção
possível. Especificamente, o
princípio
de o-semelhante-conhece-o-semelhate
desempenha um papel importante.
A abordagem mágica milita contra a existência até mesmo de um papel
subsidiário para um meio interveniente: “Assim, também, aqueles que explicam a
visão por simpatia devem reconhecer que uma substância interveniente será um
empecilho como tendendo a restringir ou bloquear ou enfraquecer essa simpatia” (§
386 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
IV.5.2, 184). O resultado é uma teoria de visão que se assemelha ao que os ocultistas
chamam de visão remota ou clarividência. Em outras palavras, mesmo a visão comum
se revelaria um caso especial de clarividência, se a vista de Plotino fosse precise
correta. Analogamente, a audiência para Plotino é um caso especial de clariaudiência:
“Chegamos à mesma conclusão como no caso da visão; os fenômenos de audição
surgem de forma semelhante em uma certa co-sensibilidade inerente a um todo vivo”
(§ IV.5.5, 186). Ele até tenta estender tal relato à sensação tátil: “A haste entre a mão
do pescador e o peixe torpedo não é afetada da mesma forma que a mão que sente o
choque. E ainda assim, se a haste e a linha não interviessem, a mão não seria afetada—
mesmo que isso possa ser questionado, já que, afinal de contas, o pescador, segundo
nos dizem, está entorpecido se o torpedo estiver apenas em sua rede” (§ IV.5.1, 183).
A discussão de Plotino sobre a memória é muito semelhante à sua discussão
sobre percepção. Ele oferece algumas considerações contra acreditar que a alma
contém impressões de memória que teriam parecido truísmos para muitos de seus
leitores. Uma dessas considerações foi a suposta imaterialidade da alma. “Que a
memória é um poder da alma [não uma capacidade para tirar impressões] é
estabelecido de uma só vez pela consideração de que a alma está sem magnitude” (§
IV.6.3, 191). Outra "obviadade" parte da observação de que, na concepção do arquivo,
a memória seria um fenômeno passivo. Ao contrário, insiste Plotino, é evidente que a
memória é algo bastante ativo:
Observe estes fatos: a memória segue a atenção; aqueles que memorizaram muito,
por meio do treinamento deles no uso de indicações orientadoras [palavras
sugestivas e assim], chegam ao ponto de serem facilmente capazes de reter sem tal
ajuda: não devemos concluir que a base da memória é o poder da alma trazido à
plena força? [...] A sensação e a memória, portanto, não são passividade, mas
poder. (§ IV.6.3, 191)
Embora, como também foi o caso com percepção, Plotino tem a intenção de não
deixar espaço para o ceticismo. Por rejeitar a conta arquivística da memória, ele
acredita que pode evitar o ceticismo de memória.
Além disso, mesmo com esta explicação, a mente deve ter estado previamente em
contato com o objeto na ausência total de interveniente; somente se isso tiver
acontecido poderia o contato através de um interveniente trazer conhecimento,
um conhecimento por meio da memória, e, ainda mais enfaticamente, por meio de
comparação fundamentada [terminando em identificação]: mas este processo de
memória e comparação está excluído pela teoria do primeiro conhecimento através
John Bolender | 387
da agência de um intermediário. (§ IV.5.4, 186)
Se alguém segue Plotino nesta questão, o conhecimento de um evento passado
só é possível se alguém estiver em contato direto com esse evento. Se a única conexão
com o passado é uma impressão deixada na alma, então, fica faltando o conhecimento.
Pois, como acontece com o conhecimento genuíno em geral, não pode haver
intermediário. Daí, nesta inferência específica, encontra-se Plotino argumentando
contra a abordagem arquivística da memória por meio de reductio ad absurdum.
Mas esta é apenas a parte negativa de sua teoria da memória; a parte positiva é
um apelo aos poderes mágicos: para Plotino, a pessoa está em contato com o passado
através da magia homeopática e da magia alopática. Assim como a visão é um caso
especial de clarividência, e ouvir um caso especial de clariaudiência, Plotino vê a
memória como um caso especial de telepatia, nomeadamente, contato telepático com
uma etapa anterior do próprio ser. E esta telepatia, como também foi o caso em
Marshall, envolve, no mínimo, o princípio de o-semelhante-afeta-o-semelhante. Isto
se deve ao fato de que Plotino queria que seu relato da memória fosse uma aplicação
adicional de sua teoria da percepção.
Existem, entretanto, duas diferenças significativas entre Plotino e Marshall.
Enquanto a teoria de Marshall apelava apenas para a magia homeopática, Plotino
também atribuiu um papel à magia alopática, escrevendo que “Onde há semelhança
entre uma coisa afetada e a coisa que a afeta, o processo de afetar não é estranho; onde
a afetando causa é não-semelhante o processo de afetar é estranho e desagradável” (§
IV.4.32, 175-76). Em outras palavras, para Plotino, ambos os princípios são
verdadeiros:
o-semelhante-afeta-o-semelhante,
o-não-semelhante-afeta-o-não-
semelhante. Mas existe uma diferença afetiva, já que o primeiro explica o prazer,
enquanto o segundo explica a dor. “Em virtude da unidade, o indivíduo é preservado
pelo Todo: em virtude da multiplicidade de coisas tendo vários contatos, a diferença
muitas vezes causa dano mútuo" (§ IV.4.32, 176).
Outra diferença significativa com Marshall reside no fato de que Plotino estava
consciente do elemento mágico no pensamento dele. Marshall, ainda que sua teoria se
encaixe na descrição do pensamento mágico homeopático, não parecia estar ciente de
que ele estava propondo um princípio mágico. Plotino, ao contrário, identifica a
natureza mágica de sua simpatia cósmica de forma bastante explícita: “Se feitiços e
outras formas de magia são eficientes mesmo à distância para nos atrair em relações
388 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
simpáticas, a agência não pode ser outra que a única alma. Uma palavra silenciosa
induz mudanças em um objeto remoto, e se faz ouvir a grandes distâncias—prova da
unicidade de todas as coisas dentro da alma única” (§ IV.9.3, 205).
Para Plotino, o poder dos feitiços mágicos é derivado, um resultado das magias
homeopáticas e alopáticas que constituem a simpatia cósmica:
Mas feitiços mágicos; como se explica sua eficácia? Pela simpatia reinante e pelo
fato de haver na Natureza um acordo de forças semelhantes e uma oposição das
diferentes, e pela diversidade desses poderes multitudinários que convergem no
único universo vivo. Há muita invocação e vinculação por feitiços não dependendo
em nenhuma conspiração; a verdadeira magia é interna ao Todo, suas atrações e,
não menos importante, suas repulsões. Aqui está o primeiro mago e feiticeiro—
descoberto por homens que, a partir de então, viram essas mesmas ensorcelações
e artes mágicas uns sobre os outros. (§ IV.4.40, 180)
Esta discussão de feitiços em Plotino introduz outro tópico: a magia verbal.
Seria bom passar algum tempo agora discutindo magia verbal, não apenas porque
Plotino a considerava de algum interesse, mas também porque o conceito dela tem um
papel central na discussão de Bergson. Que o enunciado de certas frases tem poderes
invisíveis é uma idéia encontrada em muitas culturas em todo o mundo e através do
tempo. Naturalmente, tem atraído o interesse de antropólogos, tal como Bronisław
Malinowski, que escreveu que
A crença na eficácia de uma fórmula resulta em várias peculiaridades da linguagem
na qual ela se expressa, tanto com relação ao significado como ao som. O nativo
está profundamente convencido desse poder misterioso e intrínseco de certas
palavras; acredita-se que as palavras têm essa virtude por sua própria natureza,
por assim dizer; que elas tiveram origem nos tempos primeiros e que exercem sua
influência de maneira direta. (2018, Kindle loc. 9140-9143)
O sintagma o nativo não deve ser tomado para indicar que a crença na magia
verbal está limitada aos povos "primitivos". Ao contrário, assim como no caso da magia
homeopática, a crença na magia verbal parece ser uma tendência entre as pessoas em
geral. Subbotsky (2010, 49) descreve estudos psicológicos nos quais foi demonstrado
que mesmo pessoas altamente instruídas têm uma tendência a acreditar na magia
verbal, mesmo que elas não estejam conscientes da tendência. Por exemplo,
estudantes universitários preferiram beber água com açúcar de um recipiente que eles
mesmos haviam rotulado como "sacarose" em vez de um recipiente com água com
açúcar que eles mesmos rotularam como "cianeto". (Uma ilustração dramática deste
John Bolender | 389
tipo de pensamento é o medo que muitas pessoas têm de beber Cerveja Corona durante
a praga do novo coronavírus.) A crença na magia verbal pode ser vista como o caso
limite do pensamento mágico, o caso em que, em algum canto da mente, se confunde
a frase "X" com a frase "símbolo para X" ou "nome de X". Os estudos discutidos por
Subbotsky também revelaram uma tendência a acreditar inconscientemente em um
tipo de magia verbal com uma forma alopática. Especificamente, os sujeitos eram
mesmo resistentes a beber água com açúcar de um recipiente que tinham rotulado
"não cianeto, não veneno". A teoria semântica do pensamento mágico de Shweder
(1977a), é claro, explica isto de forma bastante natural: a pessoa sente que existe uma
conexão entre veneno e o sintagma "não veneno" por causa da sobreposição semântica
entre as expressões "veneno" e "não veneno".
Em contraste com Plotino, alguns filósofos consideraram a magia verbal como
um poder fundamental, não derivada de outras formas de magia. Este era o caso de
Parmênides, que faríamos bem em discutir brevemente, pois há também uma teoria
da memória implícita no poema dele. E esta teoria é mágica. Na verdade, há uma forma
muito extrema de magia verbal no pensamento de Parmênides. Pois ele "identificou o
pensamento com a existência" (KINGSLEY 2003, 69), e manteve “que simplesmente
pensar algo é fazê-lo existir: é torná-lo real” (p. 72). Este é um caso extremo de
utilização do pensamento mágico para evitar o ceticismo: não se pode ser cético em
relação a qualquer coisa, se acreditar-se com Parmênides. Peter Kingsley resume a
magia verbal parmenidiana da seguinte maneira: “Cada pensamento é sua própria
validação. Não precisa de confirmação fora dele. O que quer que sejamos capazes de
pensar é verdade” (2003, 73). Aqui está implícita uma teoria da memória, a saber, que
a lembrança e a coisa lembrada são uma e a mesma coisa. Não deve haver mais
nenhum mistério sobre o porquê de Parmenides, um filósofo que rejeitou a existência
da mudança e possivelmente até mesmo do próprio tempo, teria uso para uma teoria
de memória: de sua teoria da memória, pode-se inferir que não há tempo.
Depois de considerar várias instâncias de crença na magia verbal, estamos em
uma posição de dar pelo menos uma caracterização aproximada da mesma. Diz
respeito a, não necessariamente palavras em particular, mas significadores em geral,
incluindo pensamentos. Estes significadores podem assumir muitas formas diferentes,
correspondendo a diferentes tipos de magia verbal. Eles podem ser enunciados,
orações, textos escritos, etc. Acreditar na magia verbal é acreditar que o significador
390 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
garante, ou pelo menos aumenta muito a probabilidade, da existência da coisa
significada. No caso mais extremo, significadores e significados são um só.
6 Bergson
Eu quero argumentar que Parmênides e Bergson defenderam pontos de vista
muito semelhantes com relação à memória e à magia verbal. No entanto, esta
interpretação de Bergson parecerá imediatamente equivocada para alguns. Pois
existem claramente algumas diferenças dramáticas entre Parmênides e Bergson.
Revisemos alguns desses contrastes antes de nos voltarmos para as semelhanças entre
esses filósofos.
Bergson era um filósofo de fluxo; a solidez e a estabilidade são em grande parte
ilusórias, na visão dele. Durante grande parte do trabalho de Bergson, há uma ênfase
na realidade do fluxo versus a aparência enganosa da realidade que consiste em
unidades estáveis e discretas.
Quando passeio sobre minha pessoa, suposta inativa, o olhar interior de minha
consciência, percebo primeiramente, como uma crosta solidificada na superfície,
todas as percepções que lhe advêm do mundo material. Estas percepções são
nítidas, distintas, justapostas ou justaponíveis umas às outras; elas procuram se
agrupar em objetos. [...] É, por sob estes cristais bem recortados e este
congelamento superficial, uma continuidade que se escoa de maneira diferente de
tudo o que já vi escoar-se. É uma sucessão de estados em que cada um anuncia
aquele que o segue e contém o que o precedeu. A bem dizer, eles só constituem
estados múltiplos quando, uma vez tendo-os ultrapassado, em me volto para
observar-lhes os traços. Enquanto os experimentava, eles estavam tão solidamente
organizados, tão profundamente animados com uma vida comum, que eu não teria
podido dizer onde qualquer um deles termina, onde começa o outro. Na realidade,
nenhum deles acaba ou começa, mas todos se prolongam uns nos outros.
(BERGSON 1979, 15-6)
Ao menos à primeira vista, tais observações colocam Bergson no extremo
oposto em relação à filosofia eleática. Além disso, também era antagônico a ao menos
uma forma de magia verbal, criando assim uma distância aparente ainda maior entre
ele e Parmênides.
O que chamamos ordinariamente um fato não é a realidade tal como apareceria a uma
intuição imediata, mas uma adaptação do real aos interesses da prática e às exigências
da vida social. A intuição pura, exterior ou interna, é a de uma continuidade indivisa.
Nós a fracionamos em elementos justapostos, que correspondem, aqui a palavras
John Bolender | 391
distintas, ali a objetos independentes. (BERGSON 1999, 213)
De acordo com Bergson, erramos quando assumimos que a realidade é dividida
em unidades discretas correspondente às nossas palavras. Tomado isoladamente, isto
parece demonstrar uma grande hostilidade em relação à crença na magia verbal. E
também, o apelo de Bergson à pura intuição poderia, na opinião dele, leva a uma
metafísica que elimina completamente os símbolos, aparentemente aniquilando a
possibilidade de qualquer tipo de magia verbal: “A metafísica é, pois, a ciência que
pretende dispensar os símbolos" (1979, 15); "[U]m absoluto só poderia ser dado numa
intuição, enquanto todo o restante é objeto de análise. Chamamos aqui intuição a
simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com
o que ele tem de único e conseqüentemente, de inexprimível" (1979, 14).
Ou a metafísica é apenas este jogo de idéias, ou, se é uma séria ocupação do
espírito, é preciso que transcenda os conceitos para chegar à intuição. [...] Mas ela
só é propriamente ela mesma quando ultrapassa o conceito, ou ao menos, quando
se liberta de conceitos rígidos e préfabricados para cria conceitos bem diferentes
daqueles que manejamos habitualmente, isto é representações flexíveis, móveis,
quase fluidas, sempre prontas a se moldarem sobre as formas fugitivas da intuição.
(1979, 18-9)
Seja como for, também encontramos Bergson mostrando uma preocupação que
o une com Plotino e muito provavelmente também com Parmênides, nomeadamente,
a preocupação de mostrar que o agente tem potencialmente uma conexão epistêmica
perfeitamente confiável com a realidade. No caso de Bergson, essa conexão funciona
fundamentalmente por meio da faculdade de intuição: não há lugar nenhum para
ceticismo quando o conhecedor entra no próprio ser da coisa conhecida, que é como
Bergson caracteriza o ato de intuição. Assim, a intuição tem um papel epistêmico em
Bergson análogo ao papel das simpatias cósmicas em Plotino.
Se compararmos entre se as definições da metafísica e as concepções do absoluto,
percebemos que os filósofos concordam, apesar de suas divergências aparentes,
em distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma coisa. A
primeira implica que rodeemos a coisa; a segunda, que entremos nela. A primeira
depende do ponto de vista em que nos colocamos e dos símbolos pelos quais nos
exprimimos. A segunda não se prende a nenhum ponto de vista e não se apóia em
nenhum símbolo. (1979, 13)
Essa segunda maneira de conhecer uma coisa é, é claro, a intuição. Ao
equacionar a intuição com seu objeto, Bergson postula uma espécie de magia muito
392 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
semelhante à equação de Parmênides do pensamento com seu objeto. O que é
surpreendente aqui é que se encontra magia verbal no pensamento de um filósofo que
deseja minimizar o papel dos símbolos, um papel que, ao menos à primeira vista,
parece ser absolutamente essencial para a magia verbal. Mas é uma inferência razoável
que, para Bergson, a identidade da intuição e do objeto é tão completa e inqualificável
que a própria palavra "símbolo" é tornada imprópria. Dado que o substantivo
"símbolo" corresponde ao verbo transitivo "simbolizar", há uma sugestão de dualidade
no uso de "símbolo", uma dualidade que Bergson deseja rejeitar. Neste caso, sua
rejeição da palavra "símbolo" em relação ao conhecimento intuitivo reflete a força da
magia; pois se o pensamento e a realidade são realmente um só, então há apenas a
realidade. Uma outra consideração, como se depreende das citações acima, é que ele
considerou o uso de símbolos para implicar algo muito congelado e estático para
capturar o fluxo do mundo, a menos que esse fluxo possa de alguma forma ser
incorporado aos próprios símbolos.
A versão extrema de magia verbal em Bergson se mostra na afirmação dele de
que não há distinção clara entre o ato de percepção e seu objeto. "Ora, mostramos que
a percepção pura, que seria o grau mais baixo do espírito -- o espírito sem a memória
--, faria verdadeiramente parte da matéria tal como a entendemos" (1999, 262). Da
mesma forma, dada a visão dele de que a memória impregna a percepção (do tipo
impuro), também não há distinção clara entre a matéria e a memória: "Mas com isso,
nossa percepção fazendo parte das coisas, as coisas participam da natureza de nossa
percepção. [...] A memória portanto não é, em nenhum grau, uma emanação da
matéria; muito pelo contrário, a matéria, tal como a captamos numa percepção
concreta que ocupa sempre uma certa duração, deriva em grande parte da memória"
(1999, 212-13).
Mas dizer que a memória constitui em grande parte matéria é também dizer que
a memória constitui em grande parte o passado, pois a matéria não é apenas uma coisa
do presente. Esta identidade de memória e passado é ilustrada no início do Capítulo
III do livro dele Matéria e Memória. Lá se encontra uma figura mostrando como, para
Bergson, lembrança e percepção constituem um espectro. Num extremo do espectro,
encontra-se percepção pura e, no outro, lembrança pura. A lembrança pura nada mais
é do que a história passada de todo o universo, exercendo uma espécie de pressão sobre
o organismo. Mas apenas os elementos do passado suficientemente relevantes ao fim
John Bolender | 393
perceptual do espectro são permitidos, pelo cérebro, ter um efeito direto na ação. São
esses elementos que constituem as lembranças-imagens; também correspondem à
área do meio do espectro, na figura de Bergson.
Deve ficar claro, a partir do exposto acima, que Bergson rejeitou a visão
arquivísta da memória. Assim como Plotino negou que as lembranças são vestígios
armazenados dentro da alma, Bergson negou que sejam vestígios armazenados dentro
do corpo que, é claro, incluiria o cérebro. "[O] papel do corpo não é armazenar as
lembranças, mas simplesmente escolher, para trazê-la à consciência distinta graças à
eficácia real que lhe confere, a lembrança útil, aquela que completará e esclarecerá a
situação presente em vista da ação final" (1999, 209). Se a lembrança fosse um vestígio
no cérebro, estaria localizada totalmente no presente o que, para Bergson, seria um
absurdo. Uma parte crucial do que faz a lembrança o que é, é que ela não é totalmente
distinta do passado, e, portanto, não pode ser algo que existe atualmente dentro da
cabeça: "Mas continua presa ao passado por suas raízes profundas, e se, uma vez
realizada, não se ressentisse de sua virtualidade original, se não fosse, ao mesmo
tempo que um estado presente, algo que se destaca do presente, não a
reconheceríamos jamais como uma lembrança" (1999, 156).
Portanto, Bergson responderia à pergunta de Wittgenstein em relação à
verificação da memória ao insistir que explora-se literalmente o passado em
lembrança. “[A] verdade é que jamais atingiremos o passado se não nos colocarmos
nele de saída. [...] Imaginar não é lembrar-se. Certamente uma lembrança, à medida
que se atualiza, tende a viver numa imagem; mas a recíproca não é verdadeira, e a
imagem pura e simples não me reportará ao passado a menos que seja efetivamente
no passado que eu vá buscá-la, […]" (1999, 158). Encontra-se em Bergson uma vista
muito próxima da posição de Parmênides que cada pensamento é sua própria
verificação, mas dentro de limites. Especificamente para Bergson, é mais verdadeiro
quanto mais se aproxima dos casos extremos da lembrança pura e da percepção pura.
Não há nenhuma razão para acreditar que Bergson afirmaria isto para qualquer tipo
de pensamento.
Bergson rejeita a concepção arquivísta da memória, não apenas porque a
lembrança pura é o próprio passado, mas também porque o cérebro nada mais é do
que uma imagem. “Sendo ele próprio imagem, esse corpo não pode armazenar as
imagens, já que faz parte das imagens; por isso é quimérica a tentativa de querer
394 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
localizar as percepções passadas, ou mesmo presentes, no cérebro: elas não estão nele;
é ele que está nelas" (1999, 177). (Ele fez uma exceção para a memória motora, a
memória de como fazer algo como andar de bicicleta. Este tipo de memória consiste
em capacidades e tendências corporais, mesmo para Bergson.)
Bergson tinha uma visão bastante notável do passado, de acordo com o qual
todo o ser do passado exerce o poder causal sobre o organismo a cada momento. A
função biológica do organismo, incluindo o cérebro, é filtrar todas as irrelevâncias que
pertencem ao passado, deixando passar apenas aquilo que diz respeito às exigências
atuais de ação. Isto também se aplica, supostamente, à percepção: “O que você tem a
explicar, portanto, não é como a percepção nasce, mas como ela se limita, já que ela
seria, de direito, a imagem do todo, e ela se reduz, de fato, àquilo que interessa a você"
(1999, 38-9). Mesmo que esta visão possa parecer exótica, Bergson considerou-a um
truísmo:
Componha-se o universo com átomos: em cada um deles fazem-se sentir, em
qualidade e em quantidade, variáveis conforme a distância, as ações exercidas por
todos os átomos da matéria. Com centros de força: as linhas de força emitidas em
todos os sentidos por todos os centros dirigem a cada centro as influências do
mundo material inteiro. Com mônadas, enfim: cada mônada, como o queria
Leibniz, é o espelho do universo. Todo o mundo está portanto de acordo quanto a
esse ponto. (1999, 36)
Note que na alusão a Leibniz, o indivíduo sendo um reflexo do universo, isto
inclui também ser um reflexo de toda a história do universo.
Em conclusão, no que diz respeito a Bergson, pode-se dizer que as diferenças
entre ele e os eleáticos não devem ser permitidas nos cegar para o terreno comum
compartilhado com Parmênides. Para ambos, existe uma identidade numérica entre o
conhecimento, como algo psicológico, e o conhecimento como a coisa conhecida. Esta
visão se aplica à memória implicitamente em Parmênides, e explicitamente em
Bergson. Para o último, a identificação é tão forte que Bergson até quer rejeitar termos
como "símbolo". Longe de ser uma negação de magia verbal, isto mostra como a magia
verbal em Bergson assume uma forma extrema, uma forma na qual a identidade do
estado-de-conhecendo e da coisa-conhecida é tão absoluta que a primeira desaparece
na segunda.
John Bolender | 395
7 Russell
Na teoria da memória de Bertrand Russell, como encontrada principalmente no
livro dele A Análise da Mente (2019 ed.), encontramos a suposição aparentemente
inconsciente de um terceiro princípio mágico: o princípio do contato, também
conhecido como a lei do contágio. Frazer tem o seguinte a dizer a respeito deste
princípio.
Se analisarmos os princípios lógicos nos quais se baseia a magia, provavelmente
concluiremos que eles se resumem em dois: primeiro, que o semelhante produz o
semelhante, ou que um efeito se assemelha à sua causa; e, segundo, que as coisas
que estiverem em contato continuam a agir umas sobre as outras, mesmo à
distância, depois de cortado o contato físico. Ao primeiro princípio podemos
chamar lei da similaridade, ao segundo, lei do contato ou contágio. Do primeiro
desses princípios, a lei de similaridade, o mago deduz a possibilidade de produzir
qualquer efeito desejado simplesmente imitando-o; do segundo, que todos os atos
praticados sobre um objeto material afetarão igualmente a pessoa coma qual o
objeto estava em contato, quer ele constitua parte de seu corpo ou não. (FRAZER
1982, 34)
Enquanto a tendência a acreditar no contágio mágico parece ser um universal
humano, tem sido mais marcante na cultura cristã do que na filosofia grega antiga
(mas observe a Seção 9). Há muitas ilustrações cristãs possíveis, incluindo o seguinte:
escrevendo em 1474, Sébastien Mamerot reconta a lenda da visita do rei Carlos Magno
para a cidade de Constantinopla. Segundo o relato de Mamerot, um dos pregos que
perfura a carne de Cristo enquanto estava na cruz, e preservado naquela cidade, o
"Prego Sagrado", foi tornado público na presença de Carlos Magno e uma grande
companhia de outros. O seguinte é um trecho do relato de Mamerot:
Quando o Prego Sagrado foi retirado do recipiente pelo bispo Damel, um cheiro
grande, maravilhoso e agradável enchia o lugar e a igreja onde se localizava, mas
nenhum conseguiu achar palavras adequadas para descrevê-lo. E como um
milagre espalhado por toda a cidade em homens de várias posições que estavam
naquele lugar, e foi tão bom que, graças ao grande poder curativo deste cheiro,
trezentos e um, que estavam doentes com diversas doenças, foram curados
naquele exato momento. (MAMEROT n.d., § V)
Em outras palavras, de conformidade com a lei do contágio, o prego que uma
vez esteve em contato com Jesus permanece, em algum sentido, em pleno contato,
transmitindo assim os poderes de cura de Jesus às pessoas próximas ao prego. Mesmo
o passar dos séculos não reduz necessariamente a transmissão da influência derivada
396 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
a partir deste contato anterior com o corpo de Cristo. Um apelo implícito ao contágio
mágico é encontrado em outras regiões da cultura cristã também. Escrevendo em 1910,
a evangelista Alma White observou o seguinte com relação aos pentecostalistas que
praticam o glossolalia: “Eles estão escutando sinais e maravilhas e eles ficam
fascinados enquanto histórias notáveis estão sendo contadas de pessoas que, segundo
foi alegado, foram curadas de doenças corporais, etc. Há pouco tempo, em Londres,
ouvimos falar de uma pessoa que [os glossolalistas] afirmaram ter sido curada ao
receber um lenço que um de seus líderes em Los Angeles, Califórnia, havia abençoado
e enviado a ela” (1910, 18-9).
Note que a teoria do pensamento mágico de Shweder explica com facilidade a
crença no contágio mágico. Se saber-se que alguém tocou em um objeto, então é-se
propenso a pensar na pessoa e no objeto por meio de expressões verbais com conteúdo
semântico sobreposto. Como resultado, é provável que se acredite que permanece uma
íntima conexão causal entre os dois com a distância no tempo ou no espaço sendo um
fator atenuante menor ou nenhum fator. No caso do Prego Sagrado, duas expressões
relevantes seriam "o Corpo de Cristo" e "o Prego que perfurou o Corpo de Cristo". No
caso do lenço, duas expressões pertinentes seriam "Pastor X" e "lenço tocado pelo
Pastor X". Esta confusão de expressões verbais, embora não possa levar a qualquer
confusão sintáctica, evidentemente leva a uma confusão nos sistemas de inteligência
geral, em que estas expressões são usadas para fazer inferências sobre o mundo.
Pode parecer ultrajante atribuir tal visão mágica a Bertrand Russell. Sem
hesitar, eu afirmo que Russell não atribuiu nenhum significado místico a relíquias
sagradas ou a lenços abençoados. Entretanto, deve-se ter em mente, como já foi dito
anteriormente, que tendências a pensar magicamente são naturais para os seres
humanos. Além disso, a julgar pelo trabalho de Shweder discutido anteriormente,
quando não há uma maneira clara de responder a uma pergunta, há alguma tendência
para o ser humano pensar de forma mágica. O pensamento mágico pode funcionar
como um último recurso, e assim não é surpreendente para encontrar muito
pensamento mágico na filosofia. Para ilustrar a crença inconsciente no contágio
mágico, considere os estudos psicológicos notados por Subbotsky (2010, 49) que
revelam tais tendências, mesmo entre pessoas bem formadas. Por exemplo, as pessoas
serão avessas a usar uma camisole que tinha sido usada por um paciente com AIDS,
apesar de estarem bem cientes de que o HIV não é transmitido através do vestuário.
John Bolender | 397
Não há razão para pensar que Russell era totalmente imune a esta tendência, mesmo
que a propensão dele para a racionalidade fosse superior à de muitos outros.
Prosseguirei com a discussão de Russell da seguinte forma: Começarei por
apresentar sua visão sobre a memória, por mais ambivalente que ela seja. Vou revelar
seus elementos mágicos, e depois discutirei como as preocupações epistemológicas em
Russell tornaram estes elementos mágicos atraentes para ele.
Russell avançou uma teoria de memória em que existem dois tipos de
causalidade no mundo, a causalidade da física e a causalidade da psicologia. A
causalidade da psicologia de Russell, que ele chamou de "mnêmica", é uma ligação
direta entre passado e presente sem nenhuma cadeia causal interveniente. Em outras
palavras, também aqui encontramos uma rejeição -- embora um tanto hesitante no
caso de Russell -- da concepção arquivística da memória. A tendência de Russell era
para pensar que este tipo de causalidade mnêmica requer a presença de um organismo,
talvez até mais especificamente a presença de um sistema nervoso. Mesmo assim, não
há nenhum vestígio de lembrança, ou engrama, dentro desse sistema nervoso, sobre
a visão em consideração: “Estou inclinado a pensar que, no presente estado da
fisiologia, a introdução do engrama não serve para simplificar o relato dos fenômenos
mnêmicos” (RUSSELL 2019, 49), sendo o engrama uma modificação hipotética do
tecido cerebral codificando a lembrança em questão. Na tentativa de lançar dúvidas
sobre a existência do engrama, Russell escreve que
O argumento da conexão entre cérebro-lesão e perda de memória não é tão forte
quanto parece, embora também tenha algum peso. O que sabemos é que a
memória, e fenômenos mnêmicos em geral, pode ser perturbado ou destruído por
mudanças no cérebro. Isto certamente prova que o cérebro desempenha um papel
essencial na causa da memória, mas não prova que um certo estado do cérebro é,
por si só, uma condição suficiente para a existência da memória. (2019, 52).
A causalidade mnêmica de Russell, no entanto, ocorre somente na presença de
um objeto com o tipo certo de estrutura ou natureza; o sistema nervoso, mesmo depois
que a idéia do engrama tenha sido totalmente abolida, serve como este artefato crucial
que carrega consigo seu passado. “Não há nenhuma razão empírica convincente para
supor que as leis que determinam os movimentos dos corpos vivos são exatamente as
mesmas que se aplicam à matéria morta” (2019, 22). O sistema nervoso, devido a ter a
história certa de exposições ambientais e sendo o tipo certo de substância para se
enquadrar em tais leis, é análogo ao Prego Sagrado ou ao lenço abençoado,
398 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
mencionado anteriormente. Isso ilustra que tal causalidade, se ela fosse real, contaria
como uma forma de magía do contágio.
A natureza mágica do relato de Russell sobre a memória pode ser ainda mais
ilustrada considerando-a à luz da psicometria. O físico Oliver Lodge fornece uma breve
descrição da psicometria; convidando à comparação com o caso de Marshall, o fato de
que um cientista tão bem sucedido como Lodge levaria a sério a magia do contágio
ilustra ainda mais como o pensamento mágico é intuitivamente convincente mesmo
entre os cientificamente letrados. Para citar Lodge sobre psicometria,
Instâncias do uso da chamada faculdade psicométrica são numerosas demais para
mencionar. Qualquer que seja a explicação, é certo que um objeto com uma história
ligada a ele parece permitir que uma pessoa sensível para decifrar um pouco dessa
história. Robert Browning narrou um episódio desse tipo em conexão com um anel
que tinha pertencido a um homem assassinado. (LODGE 1930, 144-45)
O objeto utilizado em uma leitura psicométrica, como o anel mencionado por
Lodge, é às vezes referido como o "token-objeto". Para Russell, o sistema nervoso
desempenha um papel semelhante ao do token-objeto. Em psicometria, o token-objeto
fornece uma conexão direta com o passado, não por causa de informações impressas
no objeto, mas simplesmente por causa da história dele. Da mesma forma, no caso da
causação mnêmica de Russell, o cérebro fornece uma conexão direta com o passado,
não por causa de informações impressas no cérebro, mas simplesmente por causa da
história do cérebro mais as leis hipotéticas relevantes. Evidentamente, as leis
mnêmicas que Russell tinha em mente seriam, na verdade, leis do contágio.
Uma diferença, embora não seja o tipo de diferença para torná-la menos
mágica, é que na causalidade mnêmica, o token-objeto é parte da pessoa que está
fazendo contato com o passado. Em casos clássicos de psicometria, não é bem assim
que funciona: a pessoa que adquire as informações se aproxima do objeto, mas o objeto
não faz parte do corpo dela. Todavia, nem toda psicometria se enquadra neste padrão.
A crença generalizada de que se pode adquirir algumas lembranças pertencentes ao
doador por meio do recebimento de um transplante de um órgão, como por exemplo
um coração, é um tipo de psicometria que chega notavelmente próximo à noção de
causalidade mnêmica de Russell.
Russell, que não era nada se não fosse um pensador cuidadoso e escrupuloso,
estava de fato em conflito sobre propor algo tão obviamente mágico. Há uma variedade
John Bolender | 399
de passagens em A Análise da Mente nas quais ele expressa alguma hesitação com
relação à idéia de causalidade mnêmica; por exemplo, “É provável, embora não certo,
que a causação mnêmica seja derivada da causação física ordinária no tecido nervoso
(e outros)” (2019, 170). E, mesmo assim, ao longo de todo o livro dele, ele volta
repetidamente à possibilidade de causalidade mnêmica irredutível. Ele estava
claramente fascinado com a possibilidade de que um contraste fundamental entre a
causalidade mnêmica, versus o que ele chamou de "causação física", poderia ser uma
forma de resolver o problema mente-corpo.
Mais especificamente, ele se perguntou se a causalidade mnêmica poderia ser
uma forma de dar sentido à teoria do monismo neutro. Para o monista neutro, a
realidade não é intrinsecamente nem mental nem física. Mas um único e mesmo
evento pode ser considerado tanto físico quanto mental, físico, na medida em que se
enquadra nas leis físicas e mental, na medida em que se enquadra nas leis psicológicas.
As últimas, ao menos na visão que era tentadora para Russell, seriam as leis da
causalidade mnêmica. “Como distinguir a psicologia da física? No início do nosso
inquérito, a resposta sugerida provisoriamente foi que a psicologia e a física se
distinguem pela natureza de suas leis causais, não por seu objeto de estudo” (2019,
160): ou seja, um evento é físico na medida em que se encontra em relações físicas
diretas com outros eventos, e é mental na medida em que se encontra em relações
mágicas diretas com outros eventos: este foi o ponto de vista de Russell, embora ele
pudesse ter franzido o cenho ao ouvir a palavra "mágicas". O papel da causação
mnêmica em Russell não pára por aí. Foi também uma tentativa de entender à
identidade pessoal, intencionalidade e semântica verbal.
Mas o foco neste ensaio é a questão epistemológica de como se pode ter
conhecimento do passado. Assim como Plotino e Bergson, uma das motivações de
Russell para negar a visão arquivística da memória era evitar qualquer tipo de lacuna
epistémica entre a lembrança e a coisa lembrada. Portanto, já havia um apelo sutil e
em parte implícito à causalidade mnêmica, mesmo tão cedo quanto Os Problemas da
Filosofia:
É óbvio que nos lembramos muitas vezes do que vimos ou ouvimos ou tivemos de
outro modo presente aos nossos sentidos, e que em tais casos estamos mesmo
assim imediatamente cientes do que nos lembramos, apesar do facto de aparecer
como passado e não como presente. Este conhecimento imediato pela memória é
a fonte de todo o nosso conhecimento sobre o passado: sem ele, não poderia haver
conhecimento do passado por inferência, dado que nunca saberíamos que houve
algo anterior para se inferir. (RUSSELL 2008, 48-9)
400 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Encontramos assim uma motivação epistemológica para preencher a lacuna
entre o presente e o passado, uma motivação essencialmente idêntica àquela
encontrada em Plotino, Bergson e possivelmente Parmênides também. Não é claro
como preencher esta lacuna, embora haja uma obviedade intuitiva em afirmar que ela
deve ser preenchida em algum meio. Sabemos que temos conhecimento do passado,
mesmo que não possamos explicá-lo em termos de justificação racional. É esta
situação de saber que deve haver uma resposta, mas não saber como fazer o menor
progresso para dar essa resposta, que pode tornar o pensamento mágico um encanto
persuasivo até mesmo para os mais instruídos.
8 Wittgenstein
A concepção de Wittgenstein de memória é essencialmente idêntica à hipótese
de Russell de causalidade mnêmica.3 Entretanto, Wittgenstein está notavelmente mais
entusiasmado com a idéia e mais confiante na verdade dela do que Russell. Muito
notavelmente, Wittgenstein às vezes falava da mera possibilidade lógica da falsidade
da visão arquivística como vindicação da abordagem mnêmica. No livro Fichas,
escreveu “É, pois, perfeitamente possível que determinados fenómenos psicológicos
não possam investigar-se fisiologicamente, porque nada lhes corresponde no plano
fisiológico” (WITTGENSTEIN 1989, § 609). A possibilidade da qual Wittgenstein fala
aqui nada mais é do que mera concebibilidade ou imaginabilidade. Esta também não
é a única passagem em que se encontra tal raciocínio:
Vi este homem há anos: agora vi-o outra vez, reconheço-o, lembro-me do seu
nome. E por que razão tem de haver uma causa desta memória no meu sistema
nervoso? Por que razão tem algo, seja o que for, de ser armazenado ali em qualquer
forma? Por que razão teve ele de deixar um rasto? Por que não poderia haver uma
regularidade psicológica à qual não correspondesse nenhuma regularidade
fisiológica? Se isto perturba o nosso conceito de causalidade, é então altura de ele
ser perturbado. (1989, § 610)
Imagina o fenómeno seguinte. Se quero que alguém tome nota de um texto que lhe
recito, de forma a que me possa repetir mais tarde, tenho de lhe dar papel e lápis;
enquanto falo, ele faz linhas, marcas no papel; se tiver de reproduzir o texto mais
tarde, segue essas marcas com os olhos e recita o texto. Mas presumo que a sua
anotação não é escrita, não está ligado por regras às palavras do texto; no entanto,
sem esses apontamentos, é incapaz de reproduzir o texto; e se alguma coisa aí se
alterar, se parte dele for destruída, ele atrapalha-se na ‘leitura' ou recita o texto
Uma diferença possível, embora sutil, é que Wittgenstein não apela para a leis psicológicas na conta
dele, ou ao menos não tão explicitamente quanto Russell.
3
John Bolender | 401
incerta ou descuidadamente, ou não consegue de todo encontrar as palavras. -Isto pode imaginar-se! -- Aquilo a que chamei anotação não seria uma reprodução
do texto, não seria, por assim dizer, uma tradução com outro simbolismo. O texto
não estaria armazenado na anotação. E por que razão haveria de estar armazenado
no nosso sistema nervoso? (1989, § 612)
No contexto do livro dele Fichas, encontra-se Wittgenstein argumentando a
favor da causalidade mnêmica simplesmente com base em sua possibilidade lógica.
Todavia, quando se recorre a Observações sobre a Filosofia da Psicologia, finalmente
se descobre uma motivação epistemológica unindo Wittgenstein com Russell e com os
outros filósofos discutidos acima.
Um evento deixa um rasto na memória: às vezes imagina-se que isso consistiria no
evento deixar para trás um rastro, uma impressão, uma conseqüência no sistema
nervoso. Como se pudéssemos dizer: até os nervos têm uma memória. Mas, se
alguém agora se lembra de um evento, ele teria de deduzi-lo dessa impressão, desse
rastro. Seja o que for que o evento deixe para trás no organismo, isso não é a
lembrança. (WITTGENSTEIN 2008, § I-220)
Por outro lado, note a passagem surpreendente, senão mesmo chocante, de
Fichas em que Wittgenstein expressa a vontade de estender um relato mágico à
biologia.
Nenhuma suposição me parece mais natural do que a de não existir no cérebro um
processo relacionado com o associar ou o pensar; de forma que seria impossível
recolher os processos do pensamento a partir dos processos do cérebro. Quero
dizer: se falo ou escrevo, presumo que há um sistema de impulsos que saem do
meu cérebro e estão relacionados com os meus pensamentos falados ou escritos.
Mas por que deveria o sistema continuar na direcção do centro? Por que não
poderia esta ordem provir, por assim dizer, do caos? O caso seria como o seguinte
-- algumas espécies de plantas reproduzem-se por sementes, de modo que uma
semente produz sempre uma planta da mesma espécie daquela a partir da qual foi
produzida -- mas nada na semente corresponde à planta, que é resultado dela; pelo
que é impossível deduzir as propriedades ou a estrutura da planta a partir das da
semente que dela sai -- isto pode apenas ser feito a partir da história da semente.
Portanto, um organismo poderia nascer mesmo de algo completamente amorfo,
por assim dizer, sem causa; e não há razão por que isto não seja assim em relação
aos nossos pensamentos e, portanto, em relação à nossa fala ou escrita. (1989, §
608)
A semente, para Wittgenstein, é muito semelhante ao token-objet em
psicometria, a única diferença significativa é a ausência de uma pessoa "sensível" para
ler as informações da semente. Em lugar de uma leitura psíquica, tem-se o processo de
402 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
crescimento da semente em uma planta madura. O importante ponto em comum entre
os dois casos, se se assumir que a biologia de Wittgenstein está correta, é a falta de
qualquer informação relevante impressa tanto no token-objeto como na semente. A
história da semente é tudo.
A discussão de Wittgenstein sobre hereditariedade biológica é especialmente
notável, pois não parece haver qualquer motivação filosófica para isso. Não há a
motivação epistemológica como na visão dele da memória. Para tornar as coisas ainda
mais curiosas, a discussão viola um dos princípios centrais da filosofia de Wittgenstein
encontrado tanto em seu trabalho inicial como em seu trabalho subseqüente, a saber,
que a filosofia não é um ramo das ciências naturais (1961, § 4.111; 1999, § 109). Embora,
essa crença no contágio mágico se manifestaria mesmo nessas circunstâncias, em um
pensador tão profundo como Wittgenstein, reflete sua persistência, seu ser uma
manifestação da natureza humana.4
9 Aristóteles
A pergunta de se existe ou não um pensamento mágico em Aristóteles nada tem
a ver com a pergunta se a filosofia dele é materialista (ou quase materialista). Pois o
materialismo, como os gregos helênicos o entendiam, era perfeitamente compatível
com a magia. Ninguém entre eles poderia ter sido mais paradigmaticamente
materialista do que Demócrito, e mesmo assim ele acreditava na magia homeopática.
Citando Sexto Empírico sobre Demócrito, “Pois as criaturas (diz ele) juntam-se com os
seus semelhantes, as pombas com as pombas, as cegonhas com as cegonhas, etc. E o
mesmo acontece até com as coisas inanimadas, como se pode ver com as sementes
numa peneira e os seixos à beira-mar […] [G]raus semelhantes, continua ele, e
pedrinhas do mesmo formato congregam-se sob a acção da peneira ou das ondas”
(SEXTO EMPÍRICO citado em KIRK; RAVEN; SCHOFIELD 2010, 444; DEMÓCRITO
DK 68B164). Ou seja, o semelhante atrai o semelhante. A respeito desta passagem,
Cornford observa que “observações, como a do grão peneirado, não são a base sobre a
qual a teoria é formada, mas ilustrações casuais chamadas a apoiar um princípio já
assumido como óbvio. Demócrito nunca pensa em analisar o fenômeno do grão
Revela também uma semelhança entre Wittgenstein e Marshall; ver nota 2 acima. Isto levanta as
questões de se, e por que, o pensamento mágico pode ser especialmente atraente em biologia. Considero
o ponto suficientemente importante para mencionar, embora não tenha certeza de como desenvolvê-lo.
4
John Bolender | 403
peneirado em leis mecânicas de movimento, nem em sondar o porquê da ação da água
peneirar os seixos redondos” (1931, 35-6). Portanto, mesmo que a visão de mundo de
Aristóteles fosse materialista, ou quase materialista, em algum sentido, seria em um
sentido helênico. E isto não exclui a possibilidade de Aristóteles ter acreditado em
princípios mágicos.
Em um aspecto muito importante, o relato de Aristóteles sobre a memória
difere de todos os relatos considerados até agora. Em contraste com os pensadores
discutidos acima, Aristóteles aderiu a um relato arquivístico da memória; para ele,
uma memória é uma impressão na alma deixada por uma sensação.
Pode-se ficar perplexo como, quando a condição de ser afetado está presente, mas
a coisa está ausente, o que não está presente é mesmo lembrado. Pois é claro que
se deve pensar na condição de ser afetado, que é produzida por meio da percepção
na alma e na parte do corpo que contém a alma, como se fosse uma espécie de
imagem, a tendo do qual dizemos ser memória. Porque a mudança que ocorre
marca, por assim dizer, uma espécie de impressão da imagem-sentido, como fazem
as pessoas que selam as coisas com anéis sinetes. (Da Memória, 450 A 25-32)
Pode-se ser tentado a dizer que isto não é de modo algum mágico, que
Aristóteles está simplesmente explicando a memória em termos de causalidade
eficiente. Mas a própria noção de causalidade eficiente de Aristóteles é profundamente
mágica. Para Aristóteles, uma lembrança é uma impressão de arquivo feita por meio
de magia. Na verdade, a concepção de Aristóteles de causalidade eficiente pressupõe
três tipos de magia: homeopática, alopática e do contágio.
Para entender a noção de Aristóteles de causação eficiente, é preciso distinguir
diferentes formas de se dizer que uma coisa é: “As coisas só existem em ato [por.ex.
divinidade], ou ambos em potência e em ato” (Física, 200 B 26). Uma coisa pode ser
realmente quente (quente em ato) e, ao mesmo tempo, potencialmente fria (fria em
potência). Desta forma, Aristóteles pode explicar a omnipresença de magias
homeopáticas e alopáticas: o-semelhante-afeta-o-semelhante na medida em que o X
em ato só pode afetar o X em potência; o-não-semelhante-afeta-o-não-semelhante na
medida em que o X em ato afeta o oposto-de-X em ato. “A mudança é a realização
daquilo que existe potencialmente, na medida em que é potencialmente esta
realizaçao” (Física, 201 A 10).
Para dar um exemplo: o calor do fogo afeta a água, tornando-a quente apenas
404 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
em virtude da água estar realmente fria (o-não-semelhante-afeta-o-não-semelhante);
o calor do fogo afeta a água, tornando-a quente em virtude da água estar
potencialmente quente (o-semelhante-afeta-o-semelhante). Além disso, a causalidade
eficiente é a transmissão da forma de um objeto a outro por meio de contato. Este é o
princípio do contágio: transmissão da essência por contato, com a essência
permanecendo no destinatário por algum período indefinido de tempo depois disso.
Para fornecer um exemplo: a forma de calor se transfere para à água fria por meio do
contato da água com a panela que, por sua vez, está em contato com o fogo sobre o qual
está suspensa. A forma de calor está transmitida para a água por meio desta cadeia de
contatos.
Agir em algo mutável, na medida em que é mutável, é precisamente mudá-lo, e é
preciso contato para fazer isso, então, o agente de mudança também está sendo
agido em ao mesmo tempo. A mudança, então, é a realização [ato] da mutável, qua
mutável, e isto acontece como resultado do contato com o agente de mudança, que,
portanto, também está sendo agido em ao mesmo tempo. O agente de mudança
sempre trará consigo alguma forma, o que será ou "tal e tal coisa" ou "tal e tal
qualidade" ou "tal e tal quantidade", e esta forma será o principal e a causa de
qualquer mudança que o agente de mudança produza. (Física, 202 A 5-12)
Se houver dúvidas persistentes sobre se a causalidade eficiente incorpora uma
magia do contágio, considere o papel da forma em todos os três componentes da
causalidade eficiente. Note que as formas aristotélicas são as essências, análogas às
formas platônicas, mas sem ocupar um domínio transcendental não-empírico, como
fazem suas contrapartidas platônicas. Assim, a essência aristotélica desempenha um
papel crucial em todos os três componentes de causalidade eficiente. Com este
pensamento em mente, pode-se ver que os três tipos de magia simpática entram em
causalidade eficiente, como Aristóteles a concebeu. Com relação a estes três tipos de
magia, observe a seguinte citação dos psicólogos Carol Nemeroff e Paul Rozin.
A magia simpática é caracterizada por três princípios básicos: a lei da semelhança
(magia homeopática); a lei dos opostos (a "inversa" da semelhança e geralmente
considerada uma subcasa dela), e a lei do contágio (magia contagiosa).
Caracteriza-se também pelo conceito de "mana", que pode ser descrito como a
força motriz, ou essência, que viaja ao longo das linhas determinadas pela
simpatia. Vemos as leis mágicas simpáticas e a mana como compreendendo o
núcleo da categoria "magia". Abstraídas de ritos mágicos e crenças de culturas do
mundo inteiro, elas foram consideradas como características básicas e universais
do pensamento humano "primitivo". Concordamos provisoriamente com esta
premissa. (2000, 3; citações excluídas)
John Bolender | 405
Apesar do uso cauteloso da palavra "provisoriamente" pelos autores, eles estão
aqui expressando a visão psicológica padrão. Note que em todas as três categorias de
magia simpática, uma encontra essência, os objetos em questão ou compartilham a
essência relevante ou um objeto encarnando a essência contrária à do outro. Portanto,
a noção de Aristóteles da transmissão da essência por contato é reconhecível como
uma crença em magia do contágio.
Para Aristóteles, a memória é uma impressão sobre a alma resultante de
causalidade eficiente. As formas, nesta visão, passam de objetos externos para órgãos
sensoriais e depois, por sua vez, passam para a alma onde as essências ou formas
externas permanecem por algum período indefinido de tempo depois. O fato de que a
visão da memória de Aristóteles se encaixa tão bem com uma espécie de senso comum
pré-científico reflete o fato de que o próprio pensamento mágico é uma espécie de
senso comum pré-científico. Note que nesta teoria de Aristóteles, as formas ou
essências contidas na alma intelectual são numericamente idênticas às essências da
história do ambiente do organismo. Não há nenhuma lacuna entre o conhecedor e o
conhecido e, portanto, nenhum ponto em que a cunha do ceticismo possa entrar. Mais
uma vez, encontramos o pensamento mágico sendo trazido para fechar a lacuna entre
o conhecedor e o conhecido.
Karl Popper estava ciente desta abordagem para eliminar o ceticismo, e chegou
muito perto de identificar a epistemologia aristotélica como mágica: “[A]pesar de sua
attitude geralmente muito objetivista, [Aristóteles] se torna estranhamente
subjetivista na teoria do conhecimento: ensina que, ao conhecermos uma coisa, ao
intuí-la, o conhecedor e seu conhecimento se tornam um só com o objeto conhecido;
teoria que pode, com justiça, ser descrita como misticismo” (2011, xxvi). Observe
também a semelhança entre Aristóteles e Bergson nesta questão: o estado do
conhecimento e a coisa conhecida são um só, em certo sentido. A defesa que Aristóteles
mantém da concepção arquivística da memória não significa que se tenha evitado o
pensamento mágico, pois a impressão armazenada no arquivo é uma combinação de
essências que a alma absorveu magicamente.
Conclusão
Temos visto em cada um desses pensadores, vários tipos de hocus pocus sendo
406 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
usados para explicar como o conhecimento é possível. No caso de Marshall, o tipo de
conhecimento em questão era ilusório, já que assumimos que a telepatia e memória
racial são mitos. Todavia, os outros casos eram um pouco diferentes. Em cada um
deles, um apelo à magia serve para mostrar como o ceticismo em relação ao passado
não é sequer possível, dada uma concepção informada da natureza da memória. E, de
acordo com essas posições, uma concepção informada da memória inclui um papel
para a magia. Não é de forma alguma surpreendente que durante a Revolução
Científica, quando ao menos uns filósofos se esforçavam especialmente para evitar o
pensamento mágico, a ameaça do ceticismo tenha surgido de forma tão dramática. A
muleta mágica estava sendo conscientemente evitada com pouco ou nada de
persuasivo para substituí-la. Citar Francis Bacon, “[O]s experimentos de magia natural
devem ser diligentemente e vigorosamente arejados antes de serem admitidos; e
devem ser evitados sobretudo os inventados e admitidos com grande estupidez e
credulidade a partir das simpatias e das antipatias populares” (2016, 423). Com a
rejeição consciente das escotilhas de fuga mágicas, Descartes não demorou muito para
reconhecer o ceticismo como um agudo desafio intelectual.
Uma alternativa razoável às teorias mágicas da memória é o reconhecimento de
que simplesmente não entendemos inteiramente o conhecimento do passado. É um
mistério como conseguimos evitar o ceticismo da memória sem sermos dogmáticos
irracionais. Temos um conhecimento genuíno do passado, mas simplesmente não
conseguimos entender com exatidão o que o torna genuíno. Isto reflete um dos limites
do ser humano como estrutura biológica: nossa capacidade de formar conceitos é uma
capacidade biológica e, portanto, severamente limitada ao longo de certas dimensões.
Dado que usamos nossos conceitos para formar teorias, nossa capacidade de formar
teorias também é severamente limitada ao longo de certas dimensões. A teoria
adequada sobre como justificar racionalmente nossas crenças sobre nossas próprias
experiências passadas é provavelmente fora do alcance humano, assim como um ser
humano não pode cultivar um tronco ou chifres.
Colin McGinn (1993) discutiu como os filósofos, quando tentam resolver
enigmas que são mistérios-para-os-humanos, às vezes pensam de forma mágica.
Entretanto, McGinn disse muito pouco sobre o que é o pensamento mágico, nem
descreveu seu papel na teorização filosófica com muitos detalhes. Além disso, ele não
cita nenhuma das literaturas antropológicas ou psicológicas sobre magia. (Isso não é
John Bolender | 407
uma crítica contra McGinn; apenas reflete o fato de que o (1993) dele tem uma ênfase
diferente do que este ensaio). Espero ter aqui ajudado a preencher alguns dos detalhes.
Espero também ter dado ao leitor alguma razão para acreditar que o pensamento
mágico desempenha um enorme papel na filosofia precisamente por causa da
impenetrabilidade destes mistérios-para-os-humanos. O pensamento mágico entre os
filósofos, revelado neste ensaio, é apenas a ponta do iceberg.
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21. THE SUBJUNCTIVE POWER OF GOD
https://doi.org/10.36592/9786587424163-21
John D. Caputo
The translation of the New Testament Greek basileia tou theou as the
“kingdom” or “reign” of God has become controversial these days. Feminists object to
the gender – a king, not a queen – and either way, king or queen, the image of reigning
royalty brushes against the grain of the citizens of modern democracies, who distrust
images of top-down power. The sovereignty of God easily translates into earthly
political sovereigns. This is not just a translation problem. It forces us to ask, what is
the power of God? Is it inseparable from divine sovereignty? How are we to think it?
We do not want to give up on power altogether. When people are disempowered
– the poor and persecuted, immigrants and exiles, the third world, racial and ethnic
minorities, women – justice demands that they be empowered. That is the cry of the
prophets: to empower the powerless. Even the word “hospitality” makes reference to
power, the power (posse, potens) to welcome the hostis, the stranger. I cannot make
the other welcome in someone else’s home. It must be my home, where I am the
proprietor and the one taking the risk. I must be in the position to say welcome.
We don’t want to be weak about true power. We want hospitality to be stronger
than hostility. We would like to think that love has real power, and that the power of
love is greater than the power of hatred and aggression. The New Testament
expression is referring to what the world would look like if God ruled, if true power
held sway, and not the “powers and principalities” the evildoers, who represent the
reign of brute force, which in this case meant the brutal imperium Romanum. We want
God’s power, the power of the good, to be stronger that the powers and principalities,
the power of evil. So we need to distinguish the divinity of true power in the kingdom,
the power of the truly divine, from the profanity of mere force, which cannot be God’s
power.
1 Cor 1. The paradoxical thing about Christianity is that, unlike the Greek and
Roman divinities, unlike almost any divinity, the mark of the divine, of the true power
412 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
of God, is found in what for all the world is weakness. In one of the most explosive texts
in the New Testament, Paul writes:
For the foolishness of God is wiser than human wisdom, and the weakness of
God (to asthenes tou theou) is stronger than human strength...But God chose
what is weak in the world to shame the strong; God chose what is low and
despised in the world, things that are not (ta me onta), to reduce to nothing the
things that are (ta onta). (1 Cor 1:25, 27-28)
Against the Greek philosophers of Corinth, who advance the cause of wisdom,
power, and being, Paul announces the counter-principle of the cross, of folly,
weakness, and nullity. In speaking of “ta me onta,” the non-beings, the nothings and
nobodies, Paul uses an expression that would have scandalized the philosophers, that
would have been foolishness (moria) to them. Paul is confronting head-on the elite,
the powers that be (ta onta), the men of substance (ousia), with the scandal of the
cross. For them, this is sheer nonsense. For Luther, this is the logic of the cross, where
the revelation that takes place in the New Testament is made sub contraria specie,
under the appearance of the opposite, according to which what is foolish is wise and
what is weak is strong and what is null and void enjoys real being.
Paul says he did not meet Jesus in the flesh but his words to the Corinthians
ring true to what we know of Jesus. The kingdom whose coming Jesus announced
turned on a logic, or alogic of amazing reversals, of paradoxical overturnings – the first
shall be last, the poor are privileged, the uninvited are special guests – which make the
kingdom of God look like Alice in Wonderland, like a divine topsy-turvy. The
evangelists have Jesus announce his mission by way of a citation of Isaiah, that he
brings good news to the poor, the hungry, the lame, and the imprisoned. Jesus’ mission
was to desperately poor people living from day to day, praying very literally for their
“daily bread,” the lowest social stratum in an occupied country in an obscure corner of
a powerful empire, the very nobodies of this world Paul is describing.
Icon of the Invisible God. Jesus took the side of the oppressed and fearlessly
spoke truth to the power of the Romans and the religious authorities. Still, Christians
are not just saying that Jesus was a great man, a courageous truth-teller, and a martyr
for the truth. We already have Socrates for that. The distinctly Christian claim is that
apart from his human qualities, there is something qualitatively different about Jesus,
which marks the qualitative difference between the human and divine. The Christian
claim is that in Jesus we are given an intuition of the divine – that Jesus is an icon of
John D. Caputo | 413
the invisible God (Col 1:15). Socrates was an icon but of an entirely different sort. He
incarnated the Greek principle, where the divine meant wisdom, power and being. He
was an iconic man of reason, of the laws of the polis. Jesus is an icon of the prophetic
principle, where the divine meant solidarity with the outlaws and the victims of the
polis, which is the foolishness of God.
So if Christians are asked, “who do you say God is?” the answer has to be found
not by Greek metaphysical speculation but by looking at Jesus, and if that is so, then
we must be ready to be turned upside down:
Faced with an armed enemy, he tell us to lay down our sword.
Faced with hatred, he counsels love.
Faced with an offense, he tell us to forgive, up to and including the act of
forgiveness that is issued from the cross.
The characteristic features of God fall systematically on the side of forgiveness,
non-violence, and mercy, not of a sovereign lord and mighty conqueror. Unlike
standard form heroes in antiquity, Jesus does not crush his enemies with his might but
is instead defeated – arrested, tortured and subjected to a particularly cruel and, in an
honor/shame society, humiliating public execution. The iconic body on the cross is
itself one of the most abject of the me onta.
But this is governed by the paradoxical logic of reversals, where “the weakness
of God is stronger than human strength” (1 Cor 1:25). The power of love, mercy, and
forgiveness is greater than the power of brute force and merciless retaliation. So there
is power here, but it is the power of powerlessness, a power without force. The divine
realm is found in solidarity with everything that the world despises, where God mixes
with the nothings and nobodies, pitching his tent among the shanty towns of the world.
This divine realm contradicts the power of the “world” in the New Testament, where
what holds sway is the clenched fist, the strong force of the power of the present age,
the human-all-too human way of doing business, the authority of “man” over other
men and women – and animals and the earth itself.
This throws the top down schema of one Sovereign God in heaven – “God of
gods, King of kings, Father Almighty” – into reverse. The schema of the God of
omnipotence who crushes his enemies succumbs to that of a more powerless power.
The image of God in the classical theology of omnipotence derives from the Greek
principle, and it is at odds with the icon of God imaged by Jesus, which derives from
414 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
the prophets. This God is not lacking in strength, but the strength is located precisely
in the weakness, in what the world calls weakness. So Paul – at least in 1 Cor 1 – is not
denouncing power and strength but reimagining it according to the icon of the cross,
relocating it according to the logos, the para-logic, of the cross. If Jesus is the
distinctive and defining way that the invisible God is made visible to us, then the God
that is thus revealed reverses our expectations: a God not of sovereign power but of
weakness, a stunning reversal.
The Church. Jesus, we should recall, is not the “founder” of “Christianity,” of
which he never heard. He was publicly executed long before he had a chance to found
anything. If Christianity dares to take up his name, the name of this outsider and
outcast, who represents the upside-down reversal of what the world expects, then it
has a paradox on its hands. It is an institution, which means a worldly power, that
exists in the name of a powerless power, a power which does not operate by way of
worldly force. If the Christian presupposition is that “God” stands for an event that
scandalizes the upper crusts of power, knowledge and privilege, then the institutions
and structures of Christianity must be porous, open, bottom-up, hospitable, where
justice reigns, not the institution. On that point the church is still a work in progress.
The paradox can be seen in the liturgical calendar where the feast of “Christ the
King” is celebrated shortly before the season of advent, when the church prepares for
the birth of a little baby under the humble circumstances described in the infancy
narratives. This child – what the American womanist theologian Delores Williams calls
“poor little Mary’s boy1– emblematizes for us the divinity of true power, the power of
the truly divine. Then which is it? A child or a King? There is, of course, no paradox at
all in a child born to become king, but the Christian paradox is that the royalty is lodged
in the child as such, that is, the power is found in the weakness, not in spite of the
weakness. This is a hard saying.
1 Cor 2. Too hard, I think, even for Paul, who did not adhere to his principle of
weakness, folly and nullity with absolute rigor. In 1 Cor 2 he pretty much walks back
what he said in 1 Cor 1, which now looks like a ruse. The tables are turned on the powers
that be. They did not recognize the Lord Jesus and mistakenly cast their lot with Satan,
and they will rue the day they did. They are doomed to perish, Paul says, when the real
Delores Williams, “Rituals of Resistance in Womanist Worship,” in Women at Worship:
Interpretations of North American Diversity, eds. Marjorie Procter-Smith and Janet R. Walton
(Louisville, KY: Westminster/J. Knox Press, 1993), 215-23, 216-17.
1
John D. Caputo | 415
power of God will overthrow the powers of darkness and evil. I came to you in
weakness, he says, but this weakness rests upon the power of God, by which he now
means power as the world knows power. He does not mean the power of the kiss, of
love, of forgiveness, but apocalyptic power, a real worldly reversal of fortunes in which
the celestial power of God will strike down |the powers and the principalities. Christus
victor. The worldly ones think they are smart, but they will be outsmarted by the ones
who are perfected in the ways of God (teleiois, 1 Cor 2:6), by those who know better,
who have the spirit, and know where the real power lies. So the first chapter is
compromised by the second. Paul’s idea, it turns out, is to overthrow human violence
with divine violence, in which God almighty punishes the evil doers and rewards his
saints handsomely. As Dale Martin says, “Ultimately, what Paul wants to oppose to
human power is not weakness but divine power (2:5)—that is, power belonging to the
other realm.”2
The Unconditional. But if not even the apostle Paul himself goes far enough with
his vision of the weakness of God, how can such a weak God still be God at all? Where
is God’s true power? I approach the Godhead of God as something unconditional, of
unconditional worth and importance. This I identify as an unconditional appeal or call,
a claim that is unconditional but without force or coercive power to which we, who
are on the other end of this call, respond unconditionally, without being subjected to
coercive force.3 The operative distinction for me is between the unconditional address
contained in the name of God and our unconditional response. The name of God is the
name of something that lays claim to us, that draws us out of ourselves and calls upon
us, not from on high but from down below, from among the nothings and nobodies of
the world. The unconditional requires us to respond to the call but without coercion,
without a promise of worldly victory, without an economy of celestial rewards and
punishments, “without why,” as the Rhineland mystics say.
The call that issues from the hungry is without coercive force; the “world” is
well-known for ignoring it. We are asked to respond to this call unconditionally, which
means to feed the hungry because the hungry are hungry, without condition, without
Dale B. Martin, The Corinthian Body (New Haven, CT: Yale University Press, 1995), 62. See also The
Wisdom and Foolishness of God: First Corinthians 1-2 in Theological Exploration, Christophe
Chalamet and Hans-Christoph Askani, eds. (Minneapolis: Fortress Press, 2015).
3 Derrida analyzes the “unconditional without sovereignty” in Jacques Derrida, “The University without
Condition,” in Without Alibi, ed. and trans. Peggy Kamuf (Stanford: Stanford University Press, 2002),
202-37.
2
416 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
a promise or a threat. The kingdom of God is not a reward for feeding the hungry.
Feeding the hungry is the kingdom of God, what it would be like if God ruled. The
kingdom comes intermittently, every time the hungry are fed and the oppressed are
lifted up, period, simpliciter. To think, to speak, to pray the coming of the kingdom of
God is to imagine a realm where the unconditional holds sway, a realm of the
unconditional, which is my candidate for a translation of the Greek.
I locate God’s power in the powerless power of the call, where powerless implies
it can always be rejected, ignored, scorned or distorted and, with any worldly luck, with
complete impunity. The rich get richer and they get away with it. That is the basileia
of the world, the way the power of the world works. Might makes right. I do not and
cannot recognize any divinity at all in the power of a God who promises retaliation,
who will make our enemies our footstool, who will come one day in apocalyptic power
to reverse the fortunes of the downtrodden and crush the evildoers. The power of that
God is worldly, not divine. The weakness of that God is a thinly disguised power play,
a ruse pulled off on the worldly-wise who are not as smart as they think they are, which
is what Nietzsche meant by the ressentiment of the religious soul. That God, as Paul
Tillich says, is “half-blasphemous and mythological,” and to that God the right
religious and theological response is atheism.4
The Subjunctive Power of God. Rushing to a conclusion – I have defended all
this elsewhere – this weakness must be applied to theology itself. The theology of the
cross must also be a crucified theology.5 The weakness of God must issue in a weak
theology, one that is weakened into theopoetics.6 The kingdom or rule of God is a poem
to what the world would look like if God ruled, not the powers and principalities, and
Jesus is its poet. The basileia has the power of a poem, the power of a dream, the power
of a prayer. If we press the question of what such a world would look like – now the
emphasis falls on the would, on the subjunctive – one answer is found in the poem to
the realm of God in Isaiah, which the Church takes to be a pre-figuring of Jesus’
kingdom:
Paul Tillich, Theology of Culture, Ed. Robert C Kimball (Oxford: Oxford University Press, 1959), 25.
John D. Caputo, Cross and Cosmos: A Theology of Difficult Glory (Bloomington: Indiana University
Press, 2019).
6 The Weakness of God: A Theology of the Event (Bloomington: Indiana University Press,
2006). Spanish translation: La Debilidad de Dios: una teleologia de acontecimiento. Trans. Raúl
Zegarra (Buenos Aires: Promoteo Libros, 2014); French translation: La faiblesse de Dieu: Une
Théologie de l’événement, trans. John E. Jackson (Geneva: Labor et Fides, 2016).
4
5
John D. Caputo | 417
The wolf shall live with the lamb, the leopard shall lie down with the kid, the calf
and the lion and the fatling together, and a little child shall lead them. (Isai 11:6)
This is not biological speculation. Neither is it a divine revelation of a coming
turn in the history of evolution or in the course of human history. This is a poem, a
prophetic song, and a prayer, a prophetic yearning. May this happen, please. May thy
kingdom come. How long, O Lord? The power of being (être) lies in the may-being
(peut-être); the might of God almighty lies in the might-be. The prophet Isaiah is a
visionary, but he is not predicting a future event, like making a meteorological forecast.
A prophecy is a poetic vision of a world in which a divine order prevails. The year of
the Jubilee is coming but it is not found in calendar time. The “fiftieth” year is not a
mathematical number; we keep counting but we never get to fifty. The kingdom of God
is not a prediction of an age to arrive at some presently unknown date in the future.
Neither is it to be found in another metaphysical world outside space and time, which
is the Neoplatonic rendering – and I would say distortion – of the New Testament. The
kingdom of God does not exist; it insists.7 The kingdom of God does not exist; it calls.
It is what is being dreamt of, prayed for, called for – come, viens, oui, oui, amen,
erchou. The realm of God does not refer to a different world but to a poetic vision of
how this world would be different, how it would look, in the subjunctive, if the
powerless power of God held sway. The power of God is subjunctive.
I hasten to add that this powerless power is nothing anemic and indecisive. The
power of the subjunctive is not subjective. The power of the subjunctive is the power
of a dream, not an idle dream, but a prophetic dream, like the dream of Martin Luther
King, Jr. “I have a dream,” he said, of a world in which “all of God’s children” will be
free. This is a dream for which King – his name is ironic – was not willing to take
anyone else’s life but he was willing to lay down his own life. That is how the
subjunctive power of God works. That is how the kingdom comes.
The Insistence of God: A Theology of Perhaps (Bloomington: Indiana University Press, 2013).
French translation of chapters 2-3 in “John Caputo. Faiblesse de Dieu et déconstruction
de la théologie,” ed. Elian Cuvillier, Études Théologiques et Religieuses, Volume 90 (No. 3): 2015.
7
22. SCAFFOLDING LANGUAGE: WORDS, TOOLS AND THE
TRANSMISSION OF ACQUIRED INFORMATION
https://doi.org/10.36592/9786587424163-22
John Sarnecki1
Abstract
Attempts to characterize the evolution of human cognitive capacities in terms of
biological adaptations fail to recognize the dynamic nature of ecological challenges
facing early humans.
Using Kim Sterelny’s model of human cognitive evolution I
examine how local solutions to adaptive problems could be transmitted across
individuals through distinct pedagogical strategies. In particular, I consider the view
that human cognition evolved in the context of environmental interaction mediated by
the material and social culture of early human groups. I consider how the creation of
tools required the development of specialized environments and argue that both
technological and general vocabularies can reproduce and extend many of the features
of these environments.
1 Introduction
Standard models of human evolutionary development have often traced the
rapid development of human cognitive capacities to specific biological adaptations. In
recent years, many proponents of this view have characterized these changes in terms
of a mind that has become finely tuned to solving enduring ecological and social
challenges through the development of domain specific hard-wired information
processing modules (see, for example, Tooby & Cosmides, 1992; Sperber, 1994).
These models often draw inspiration from Chomskyan accounts (Chomsky, 1965) of a
language processing module that aids in both the acquisition and understanding of
natural language.
1
University of Toledo.
Modules have been postulated to explain naïve physics
420 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
(Baillargeon, 1995), folk biology (Atran, 1998), theories of mind (Scholl & Leslie, 1999)
and calculations of social exchange and cheater detection (Gigerenzer & Hug, 1992).
This list is not exhaustive.
These and similar accounts locate the transition to
behavioral modernity strictly in terms of biological adaptation.
Evolutionarily
adaptive behaviors emerge under ecological conditions that selectively favor innate
problem-solving mechanisms (see, for example, Cosmides, 1989).
In recent years, this view has become increasingly contested by theorists who
claim that biological models of human development underestimate the role of external,
environmental and social factors in human evolution (Odling-Smee et al. 1996, 2003;
Laland et al. 2000). These accounts contend that human cognitive capacities emerge
in the context of environmental and social feedback loops that trigger and shape not
only cognitive solutions to adaptive problems, but also the circumstances in which
these solutions may be passed between individuals and across generations. The
creation of reliable modalities of information transmission would facilitate the
accumulation of adaptive knowledge concerning strategies for coping with
environmental and social challenges.
It is these practices that enabled humans to
sustain and disseminate novel adaptive solutions over time. This suggests that many
of the central determinants of what we think of as typically modern human lifeways
depend not on any one or several changes in brain structures, but rather on the
development of ecological structures that facilitate the cross generational transmission
of acquired information.
Kim Sterelny (2012) has championed a view of this kind. He argues that the
strongest account of the transition to what he calls “behavioral modernity” (circa
150,000 to 100,000 years ago) is a function the development of high fidelity, high
volume information transmission between generations (2012, 13). On this account,
the main difference between human and animal cognition is the reliance on the
adaptive properties of inherited cultural or environmental information in human
communities.
Humans are able to fashion distinct and varied modes of
communication that preserve and transmit the contingent and hard-won information
gathered in experience.
In adopting this perspective, Sterelny appears to de-
emphasize biological models of this transition in favor of social or ecological changes
that enhance the capacity for communication.
John Sarnecki | 421
The nature of this information can vary broadly. Information about hunting
and gathering techniques, identifying food sources and biological properties can be
transmitted along with the skills necessary to build tools, shelters and protective
barriers. These adaptive solutions will also include social and cultural practices, ways
of enhancing or organizing social life to minimize conflict and maximize the
coordination of prosocial group activities. As part of these strategies, some of the most
valuable information will itself describe methods for sustaining and enhancing the
transmission of ideas.
Indeed, the plausibility of this view centrally depends on an understanding of
the modes and methods in which information may cross the gap between individuals.
In this paper, I will contrast several distinct methods that support information
transmission and examine the ways that language can perform several of the most
important functions this model requires. It is the emergence of language, as a method
of both collecting adaptively valuable information (as a medium of information
storage) and as a reliable and fine-grained conduit for information transmission, that
underlies the collection and dissemination of the knowledge responsible the transition
to behavioral modernity in humans.
Accordingly, this view locates the transition to behavioral modernity not in any
specific biological adaptation, but rather in the development of new ecological
landscapes that facilitate and promote the transmission of acquired information. In
this paper, I want to examine some of the ways even a circumscribed use of language
could play this role, both as a method of externalizing thought and as a tool in the
construction of environments that facilitate the transmission of adaptive learning.
This is not to say that biology doesn’t matter. Even if we cannot identify any
particular neurological or biological adaptation responsible for the development of the
chains of communication necessary for information transmission and archival, it is no
less true that the cognitive capacity necessary to sustain these methods must already
have been in place. Our ability to engage in these practices is not independent of the
biological and physical structures with which they must interact.
As I have said
elsewhere, “if we choose to define modernity in terms of the emergence of these
behaviors through social processes, we can only do so in light of the biological
adaptations that made the social processes themselves possible” (Sarnecki, 2014, 75)
422 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
What Sterelny’s model requires is a recalibration of our understanding of how
cognition functions with respect to its environment.
2 Dynamics
Sterelny argues that the now standard, modular, account of human cognitive
evolution fundamentally “understates the dynamism and connectedness of the
hominin evolutionary environments” (2012, 4).
relatively fixed ecological conditions.
Modular accounts presuppose
It is the stability of these environmental
challenges that permit selective pressures to converge on biological or modular
solutions to these problems. However, we have growing reason to be concerned that
the environment of evolutionary adaptation in which human cognitive capacities were
formed was anything but stable.
Consider for example that one of the key
determinants of ecological properties was subject to broad changes over these periods.
Weather patterns that would severely affect ecological conditions involving the
acquisition of water, food sources and other living conditions and during this period
they were anything but stable.
Moreover, the adaptive conditions of these
environments would themselves be subject to impact of local human populations and
their activities. The availability of resources would depend on techniques for hunting
and gathering, their toolkits and technologies as well as their foraging patterns in the
region.
What impact these practices had would not be insignificant.
Sterelny’s
recognition of the ecological instability created through resource exploitation, niche
construction and population size, for example, is a key feature of this account (See
2012, 4-5). Each of these factors suggest that fluctuating ecological conditions would
destabilize the environment necessary for the evolution of fixed biological response.
Instead, conditions of constant ecological change would require dynamic or flexible
responses to changing environmental challenges.
As a consequence, Sterelny eschews any individualist or biological account of
the evolution of human cognitive capacities.
Sterelny argues that the transition to
behavioral modernity is best characterized in terms of the development of new
pathways for information transmission and archival that allowed humans to reliably
and accurately transmit acquired information across generations.
On Sterelny’s
model these pathways are sustained largely through interactions both within the
John Sarnecki | 423
environment and the community.
Early humans could alter or structure the
environment in ways that would foster the conditions for this transition. This confers
the advantage not merely of sustaining solutions to ecological or social challenges
individuals encounter, but also permitting the transmission of new solutions to these
problems as they emerge as a consequence of changing environmental conditions.
Biological adaptations are by their very nature slow, whereas novel cognitive solutions
can not only be dynamic, they can also be quickly shared across populations.
Biological accounts often emphasize the cognitive capacity for creating novel solutions
without recognizing the importance of their transmission.
This is not simply a model of instruction. While it is no doubt true that much
of the acquired information transmitted between individuals may involve explicit
instruction, the nature and methods of this transaction depend on the conditions
under which this is attempted. We cannot suppose that the pedagogical environment
of prehistoric humans was similar to what we see today. There was no PowerPoint,
nor classrooms, nor well stocked labs to learn experimental practices. Instead, what
emerges is an account of information transmission that is constrained by the economic
value of instruction, the changing environmental conditions under which instruction
may take place, the nature of the knowledge itself and how it is subject to explanation
or duplication.
These channels of information transmission were likely heterogeneous.
Sterelny argues that many were likely to require specific environmental and ecological
conditions. These learning environments, many of which are constructed by humans
themselves, play an important role in facilitating the transmission of information upon
which culture depends.
3 Tools
Sterelny has emphasized the economic value of apprenticeships in producing
social environments which aid in cross-generational high-fidelity information
transmission (2012, 34-35). In these relationships, labor is traded for knowledge or
know-how in ways that sustain and transmit acquired information or technologies. In
many cases, much of this technological information would involve the development
and use of tools.
As Sterelny notes, tool making happens in tool shops where the
relevant materials are gathered and ordered in instructively valuable ways (2012, 35).
424 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
In this way, the environment can itself take on part of the discursive role of
transmitting information between experts and apprentices. I will argue that language
performs a similar function in passing information between individuals.
The
development of specialized or technical vocabularies expresses relationships that can
capture and characterize important relationships between concepts that structure an
understanding within specific domains of expertise. We do not merely observe the
construction of new tools or methods of resource gathering, we develop ways of talking
about them that enable us to distinguish between effective and fruitless variations of
similar ideas.
Language can thus be used as a scaffold towards more fine-grained or
detailed information transfer.
The idea that language played a central role in the development of cognition is
not a new one. However, these theories have tended to emphasize the role of language
as a form of symbolic representation. The capacity for representation or even metarepresentation has been taken to be indicative of the cognitive changes responsible for
the growth of human culture and innovation.
I have no doubt that these roles are
significant, however the role of language imagined here is far more circumscribed and
incremental than these theories suggest. Indeed, Sterelny’s account emphasizes not
an encyclopedic understanding of the physical word so much as one steeped in skills
and know-how. An apprenticeship is often best characterized in terms of trial and
error learning rather than through detailed expository instruction. An expository or
explicit instruction model suggests that language functions primarily as direct conduit
for information transmission between minds. One tells another with words. They do
not show or construct environmentally engaged capacities.
This conception of information transmission is often part of our default
assumptions about language. We can find a similar analogy in examining the material
culture of prehistoric communities.
We might suppose, for example, that a tool is
fashioned after a mental model that dictates a template for the creation of the item
itself – that the tool itself is in some sense a physical manifestation or copy of the
mental template.
Tools are, as a consequence, evidence of cognitive capacities, a
product of them, and not part of feedback loop that aids in their creation.
This assumption has become increasingly difficult to maintain (see, for
example, Jeffares, 2010). Tools play many roles in their production that go beyond
the model described above. Apart from the primary or intended function of the tool
John Sarnecki | 425
itself, we can suppose that physical tools can serve as three-dimensional templates for
both their reproduction and as prototypes for the production of new variations of those
tools.
We can offload much of the descriptive work in tool production simply by
examining a successful exemplar of the tool to be produced. As anyone knows from
constructing IKEA furniture, the picture on the box is often more valuable than the
explicit instructions.
Tools also permit new relationships with the environment, which will
themselves create back-channel opportunities for instruction and information
transmission. Consider for example how tools wear or become damaged. In this way
they carry information that can become central to their future iterations. No tool has
entered the world fully formed and perfectly functional.
Tools thus can create an
environment that at once carries information about improving the tool, while creating
pressures for the development of new ones.
The development of specialized or technical vocabularies can function in much
the same way. We do not merely observe the construction of new tools or methods of
resource gathering, we develop ways of talking about them that enable us to both
distinguish and characterize the difference between effective and fruitless variations
of similar ideas.
Language can thus be used as a framing device towards more fine-
grained or detailed information transfer.
Central to this model is the idea that
language is not itself a simple direct channel for information transfer, but that it can
itself be part of the environment in which information transfer takes place. This may
seem like an unexpected detour from the traditional model of information
transmission, but there are good reasons for supposing that the direct channel model
is limited in ways that the environmental model is not. In what follows I will examine
several examples of the role language can play in creating environments that aid in the
transmission of valuable environmental and technical information.
How Structured Environments Reduce Cognitive Load: Symbols
Structuring the environment as a means of reducing cognitive load is extremely
common. Cognitive systems can offload complex tasks, or system taxing information
storage, by creating custom environments that lessen the information processing
demands in cognition. An abacus, for example, eliminates the need to track orders of
426 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
magnitude in performing calculations and hence increases both the speed and
complexity of one’s ability to solve mathematical problems (see Noe 2009, 84-87).
While these environments often reduce cognitive load and processing for us as
individuals, these benefits can also extend to others. A cashier in a local coffee shop
places individual cups or glasses on the counter as orders are processed. When
someone orders espresso, for example, she places a demitasse cup on the counter.
Subsequent orders for, say, a cappuccino or a pour-over coffee prompt a cup and
saucer and a tall glass.
The barista can take the cups in order and makes the drinks
that correspond to each cup in the sequence in which they were placed. The noisy
channel of communication between cashier and barista is thus circumvented and there
is no requirement that the list of orders be remembered or recorded. The cups
themselves carry the crucial information between the cashier and barista in virtue of
their traditional functions.
It is easy to imagine superficial analogs to these processes in linguistic form.
Several pedagogical strategies involve exploiting the symbolic or phonetic features
of linguistic tokens to code for complex information or procedures. For example, the
mnemonic device for recalling the relative heat of individual stars can be signaled by
the sentence:
Oh Be A Fine Girl, Kiss Me.
These corresponds to the scientific characterization of solar temperatures on a
diminishing scale: OBFGKM. This may in fact be the only thing I remember from my
astronomy textbook, but this of course makes the power of these devices clear. We
can produce similar effects with rhymes to remember specific pieces of information or
use the first letters of terms to form acronyms that enable us to more easily remember
individual facts or names. For example, most American schoolchildren learn that “in
fourteen hundred and ninety-two, Columbus sailed the ocean blue." The rhyme
participates in what has been called “acoustic encoding” which uses the phonetic
properties of the words to establish a memorable connection. English history would
certainly be simpler if there were a similar rhyme for 1066.
These mechanisms use the symbolic form of words or their phonetic properties
to aid in the performance of specific memory tasks. In these cases, words function to
structure the environment in much the same way that one might outline tools or pots
John Sarnecki | 427
on a grid or backboard to more easily order their position when the tools are not being
used.
However, language can do considerably more in structuring the very content of
the environment itself.
Consider, for example, how we conceptualize numbers.
Studies suggest that infants have only a basic or rudimentary innate capacity to think
and reason about quantity.
Some researchers have speculated that our ability to
extend our numerical reasoning beyond our native single digit complement stems from
the representational skills acquired through the use of language (see, for example,
Dehaene et al, 1999). The recursive nature of symbolic or linguistic representation
renders conceptions of large numbers both more tractable and more precise.
For
example, Lance Rips writes that the “grammatical resources of language can easily
generate the type of countably infinite sequence that can represent the natural
numbers” (Rips, 2011, 78). These enable individuals to track and pin down larger
numbers at high levels of complexity. As a system of numerical representation, the
cultural backdrop provided by complex symbolic structure of language permits the
development of increasingly complicated theories of natural or social phenomena.
Similar cognitive economies can be generated through the development of
different forms of notation. Nobody who has worked through the many variations of
logical notation in philosophy is unaware of the value of clear and tractable symbolic
systems. Medieval logic, which lacks a precise logical notation, is notoriously difficult
to follow, while far more complicated forms of predicate or modal logic benefit from
symbolic practices that help individuals better track logical relationships. These
methods of representation create environments in which information and instruction
is made pedagogically more accessible.
Notation is a linguistic or symbolic
environment in which the tools of logical or mathematical reasoning are given to us by
the handle.
How Structured Environments Reduce Cognitive Load: Reference
Language can also play a significant role in guiding our referential capacities.
Consider for example how language might be used to augment or extend structured
environments in ways that enable individuals to track properties of groups more
economically. Andy Clark notes, for example, that we often make impromptu physical
428 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
groupings of objects to help track similarities between members of a given class.
Hence, cleaned vegetables might be grouped together as they are washed, while dirty
ones remain clumped together in another location.
These groupings use spatial
proximity to track the condition of the vegetables, and hence alleviate the need to track
their condition in memory.
Clark notes that we use language to accomplish much the same thing as we
attach labels and names to individual objects.
These labels often require that we
ignore many significant features of the objects in question, while privileging individual
or sets of properties to track salient properties. Clark writes, “labeling thus functions
as a kind of ‘augmented reality’ trick by means of which we cheaply and open-endedly
project new groupings and structures onto a perceived scene” (2014, 172). The
judicious usage of labels can thus replace spatial proximity in helping individuals track
object kinds.
We might suppose that this is a point not about language but concepts. That
is, one may arbitrarily form new groupings of objects under some tab or label that
corresponds to some mental conception of category membership. Hence, we can, as
individuals, invent categories or kinds that correspond to any sort of grouping.
(“Grue” may be one kind of example.) This would appear to make no special claim
regarding the role of the environment or external conditions in aiding the transmission
of acquired information.
However, this strategy is problematic. In supposing that one can arbitrarily or
extra-linguistically develop a personal or private representational system, we risk
falling prone to Wittgensteinian objections to a private language.
The rules of
application for these concepts, defined through the private exercise of ostensive
definition, cannot be regulated, on Wittgenstein’s account, without an external
“criterion for correctness”.
Any attempts to define a term through one’s personal
memory, for example, fall prey to concerns about whether such memories are
veridical.2
Moreover, whatever we think of the putative strength of the private language
argument, other concerns may be more telling. Developing complex categories does
I recognize that the debate around the Private Language Argument is extensive and the reliance on the
fallibility of memory is now commonly contested. However, nearly all accounts of the private language
argument share the view that a person cannot devise a language or representational system that is
private in the sense described. For an alternative interpretation, see Soames (2003, 33-51).
2
John Sarnecki | 429
little to reduce cognitive load.
In forming personal conceptions of discrete kinds,
tracking objects is little different than keeping a list or developing a rule that must
itself be checked for accuracy against the list.
Hence, individual labeling, though
useful perhaps on its own terms, fails to provide the cognitive economies generated by
the public and regulative nature of shared natural language expressions. The rules we
use in applying labels and other terms are both policed and maintained by the
community in which those terms are applied. Putnam’s “division of linguistic labor”
(Putnam, 1975) is more than a metaphor. The work of navigating the world through
language is a tool that is collectively maintained.
The communal nature of language also suggests a major difference between the
use of language and material culture in extending the transmission of acquired
information across individuals.
Whereas Sterelny’s examples tend to emphasize the
creation of local physical environments that aid in learning and cognitive development,
the role of language is primarily social and cultural. These categories are by no means
mutually exclusive, but there are important differences in how they may operate within
a community. A physical tool, for example, may serve as a template for the creation of
new tools, but there is no reverse engineering for lost linguistically defined categories.
The ongoing extinction of minority languages represents a loss of cultural traditions
(of stories and poetry, for example), but also the erosion of unique and valuable
linguistic toolkits that carry with them distinct “ways of knowing, and ways of talking
about the world and human experience” (Harrison, 7).
The loss of a language has
implications for our understanding of any community’s collective knowledge in fields
as divergent as geography and botany or zoology and pharmacology. The list could
continue. Even outside of the extreme case of language death, however, categories of
linguistic representation may face more tenuous conditions for their reproduction
than other channels of information transmission.
These differences between the tools of material culture and language do not
imply that they cannot evolve together over time. The creation of tools has often been
characterized as a skill based or non-discursive process.
Philosophers have often
distinguished between what they call knowing-how and know-that.
The former
corresponds to a cognitive skill or capacity that functions without explicit mental
representation, whereas knowing-that is characterized in terms of explicit
representations. Learning to ride a bike, for example, is typically defined as knowing-
430 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
how, whereas learning the provincial capitals is knowing-that. While this distinction
has become more contested in recent years (see Stanley & Williamson, 2001), it seems
clear that even the indirect use of language can help individuals acquire the know-how
to perform specific tasks. No father or mother is silent when teaching a child to ride
a bike, even if language alone cannot convey the necessary information to learn the
task.
If developing tools and other technologies of representation involve the
acquisition of skills, we should not downplay the role language could play in their
creation.
Part of the very environment in which Sterelny’s tools were made likely
included linguistics prompts, hints, or feedback.
Conclusion
Much of the excitement surrounding the emergence of extended mind theories
centers on the ways that external environments aid in the reduction of computational
load and complexity. Cognitive systems can offload complex tasks, or system taxing
information storage, by creating custom environments that lessen the information
processing demands in cognition.
An abacus, for example, eliminates the need to
track orders of magnitude in performing calculations and hence increases one’s ability
to solve complex mathematical problems.
Air traffic controllers use paper “flight
strips” to stand as proxies for airplanes in track high volumes of flights and flights
paths in ways inconceivable without external symbol systems (see Noe 2009, 84-87).
A greater awareness of how minds and environments interact may also enable us to
create new technologies that address cognitive deficits. New teaching techniques for
dyslexic children use color coding to help students discern grammatical differences
between terms.
Textual distinctions that prove difficult for these children are
highlighted in the environment with easily recognizable markers (Barton, 2000).
Similarly, researchers are beginning to develop augmented environments that could
enable Alzheimer’s patients to hold onto their independence even as their memory
becomes less reliable.
The existence of environmental prompts or automated
functions interacts with individual capacities to create sustainable living environments
for these patients (Quintana & Favela, 2013).
Most theories of the extended mind (Clark & Chalmers, 1998) have focused
almost exclusively on the role that the social and physical environments can aid in
John Sarnecki | 431
individual cognition. The cell phone, to use the classic example, is an extension of the
mind of its owner not of the community more generally.
On this model, these
processes play uniquely individual roles, aiding an individual’s cognitive capacities
through environmental interaction in ways that in ways that more efficiently employ
their own cognitive resources. However, the external or extended processes that aid
cognition are public and often shareable.
The simple dichotomy between private
mental processes and public behavior is superseded by a mind operating in a public
space. The methods we use to order the environment to enhance our own cognition
are available to aid others. Altering the environment in strategic ways can thus permit
or encourage the acquisition of complex technical and environmentally adaptive
information across individuals and generations. And indeed, it could have played an
important role in creating the technologies that typify the human transition to
behavioral modernity.
It is important to recognize, however, that methods of information transfer,
both in developing and communicating lines of information transmission, described
here are themselves contingent.
Environmental stress or changes in social
organization or resource availability can disrupt or eliminate lines of communication
that sustain information transmission.
Changes in climate or ecology may result in
the displacement of established resources and the attendant need for the specific
hunting techniques or tools necessary to exploit them. Should these resources return,
the methods may no longer be available.
Similar changes can alter group size and
organization in ways that make different demands on social roles within communities.
This could scatter information resources or prevent technical specialization. Sterelny
speculates that these conditions may have existed for Neanderthals as they came under
environmental stress from biologically modern humans (Sterelny, 2012, 62-64).
Technologies and know-how can be lost in the absence of information environments
that enable the transmission of acquired information.
In these ways, the
environments that support information transmission can come under severe stress.
These challenges would put increasing pressure on the development of methods
that could sustain high fidelity information transmission and archival. In the ways I
have discussed above, I believe there is good reason to believe that even a rudimentary
use of language could play an important role in maintaining the methods and
techniques for preserving foundational skills and information necessary for the
432 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
formation of modern human lifeways.
How language may have played a role in
mitigating the impact of this stress will require considerable research. However, it
should be evident that the role of language in securing lines of information
transmission and understanding will be a central element of any story about the
development of human technological capacities and culture itself.
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23. EDUCAÇÃO DO FILÓSOFO NA REPÚBLICA DE PLATÃO1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-23
Karen Franklin2
A construção do pensamento platônico referente à definição dos valores
culmina no diálogo República, um dos textos mais lidos e comentados da história da
filosofia. Muitas são as possibilidades de interpretação do conjunto da obra de Platão.
Vamos tomar como ponto de partida, a concepção evolucionista, em que os diálogos
vão se complementando e se esclarecendo na medida de uma suposta historiografia e
isso significa levar em consideração a mudança na construção do pensamento
platônico. Sob essa perspectiva interpretativa, a pesquisa sobre a definição dos valores
se torna o centro de nossa questão, devido ao fato de a considerarmos fundamental
para o estabelecimento de um projeto educativo. Quais são os valores e princípios para
a determinação de uma sociedade justa? Como podemos determinar os meios para se
atingir tal objetivo? Que concepções devemos privilegiar para obter êxito, tanto no
homem como na sociedade? Essas questões freqüentemente surgem como problemas
da atualidade, e isso pode ser um indício de que essas questões filosóficas são uma
constante na estreita relação entre o indivíduo e a cidade.
O diálogo República é particularmente interessante porque marca uma
transição no conjunto dos diálogos platônicos. Este texto divide suas preocupações
iniciais de definição, próprias dos primeiros diálogos, com a filosofia constituída a
partir da teoria das idéias, própria dos diálogos da maturidade. Apesar de muitos
comentadores conceberem a ligação do livro I com os primeiros diálogos, os demais
livros apresentam uma exposição linear de uma concepção política e social tipicamente
platônica, apresentando uma considerável diminuição da influência socrática. Platão
trava uma batalha especialmente contra o ceticismo moral, buscando mostrar que há
1 Presto esta homenagem ao Prof. Dr. Nythamar Fernandes de Oliveira, que em meu percurso acadêmico
e profissional esteve presente em dois momentos muito importantes, como professor em meu
doutoramento (2004) e como supervisor de pós-doutorado (2013) na PUCRS. Este texto é uma versão
dos estudos do doutorado que tiveram participação do prof. Nythamar. Mas não posso deixar de
assinalar que os laços profissionais nesses 20 anos passaram a ser de admiração, compreensão e
amizade.
2 Doutora. UFPR
436 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
verdades objetivas e que o indivíduo pode manter a ordem social, mesmo levando em
consideração as particularidades. Na verdade, podemos perceber uma busca de
reestruturação dos valores éticos tradicionais, afastando-os da banalidade do consenso
geral e da vivaz interpretação de Trasímaco.
A discussão dos primeiros livros da República gira em torno do cálculo das
vantagens e desvantagens da justiça e da injustiça, inserindo na trama a necessidade
de determinação desses conceitos. Essa determinação preliminar será o fundamento
para o estabelecimento daquela que será a mais vantajosa para o indivíduo e para a
sociedade. Platão reestrutura as opiniões morais ordinárias sob um novo fundamento.
Pretende transformar a moralidade grega sob o princípio do Bem à luz de uma nova
perspectiva. Nesse sentido, podemos considerar Platão como um revolucionário, pois
propõe uma reformulação social através da educação no interior da tradição grega.
Sob esse ponto de vista, poderíamos classificá-lo como revolucionário, no
entanto, encontraremos também outras posições que afirmam o contrário, que podem
ser a de conservador ou de tradicionalista. Na verdade, em meio a tantas possibilidades
interpretativas da República temos de admitir, segundo Jean-François Pradeau,
que Platão, ao romper com o consentimento ideológico de algumas questões,
afirma três coisas: 1) que existem conflitos irredutíveis na cidade, onde o interesse
de certos grupos é mais visível; 2) que a cidade escolhida pelos deuses, Atenas
heróica, não se configura naquela na qual ele e seus contemporâneos vivem, ou
seja, a antiga perfeição, que poderia justificar uma hegemonia ateniense, não
existe mais; 3) se declara contra a idéia de que os atenienses são a própria Atenas,
pois ao medirem-se pela glória dos antigos prejudicam Atenas, uma vez que não
são dignos de seus heróis nem dignos da própria ideia de Polis (1997, p.17).
A partir desta motivação o diálogo se revela como um contra-ataque às questões
morais correntes, pois é a partir delas que Platão inicia a fundamentação de seu
pensamento político e moral, levando necessariamente à construção de um modelo de
educação que possibilite a volta à perfeição moral dos tempos heroicos.
Apesar do diálogo iniciar-se com a questão sobre a justiça, Platão tem como alvo
principal o homem (KOYRÉ,1962, p.108). Busca estruturar uma cidade justa a partir
da possibilidade de que todos possam vir a ser justos ou ao menos se submeter à justiça
perfeita. A partir da postulação de como a cidade poderia ser criada: “se
considerássemos em imaginação a formação de uma cidade, veríamos também a
justiça e a injustiça surgir nela” (369a). Platão introduz, aqui, uma necessidade que é
Karen Franklin | 437
fundamental o projeto de cidade, a saber, a educação do homem que se destina a viver
nela. A interdependência entre a análise do homem e da cidade se revela como um
fator necessário para elucidar, tanto as nuances da sociedade como as nuances da alma
humana.
A fundação da sociedade humana, precisamente na perspectiva de Platão, é uma
sociedade fundada pelo interesse próprio (369c)3. Nesta idéia de origem, o que há de
maravilhoso e utópico, é que nenhum conflito surge entre os indivíduos, nenhum tem
nada a sacrificar, pois o benefício de todos estaria computado no interesse próprio.
Esta postulação da origem das sociedades leva em conta a satisfação das necessidades
básicas de cada homem, bem como, a vontade originária de viver em comunidade.
Nesse sentido, a questão a ser respondida é: O que devemos fazer para vivermos numa
cidade justa? Esta resposta vai de encontro a percepção platônica de que não basta
uma parcela do todo viver feliz, é preciso persuadir todos a se render à idéia da justiça.
A dignidade de uma classe qualquer de cidadãos é de se consagrar ao bem da cidade
inteira de modo que o filósofo, enquanto idealizador da Polis perfeita, não assegure
apenas a felicidade dos governantes, mas de todas as classes sociais da cidade. É
interessante notar que a felicidade aqui está estreitamente ligada à justiça, Platão
consagra o desinteresse de si próprio ao bem do conjunto, pois somente aí todos
poderiam encontrar a felicidade. Nota-se que Platão se preocupa muito pouco em
considerar a situação afetiva dos cidadãos, sob suas realizações e contentamentos
subjetivos. Ele evoca uma vida austera, mesmo quando fala que é melhor sofrer do que
cometer uma injustiça (Górgias, 475c). O que Platão quer subjugar são as necessidades
subjetivas, ele as opõem à objetividade do Bem e da justiça, que é identificada como
saúde da alma. Aos olhos de Platão a justiça deve necessariamente trazer a felicidade,
ela deve ser felicidade. Platão é claro a este respeito, não é interessante para o plano
da Polis justa a felicidade de um grupo apenas, “mas que o fosse, tanto quanto possível,
a cidade inteira”. Diz ele: “estamos a modelar, segundo cremos, a cidade feliz, não
tomando à parte um pequeno número, para elevar a este estado, mas a cidade inteira”
(420b-c).
A perspectiva coletivista, por assim dizer, adotada por Platão, em relação às suas
primeiras reflexões sobre a origem da sociedade humana, não lhe causa dificuldade na
Poderíamos considerar a ideia de um contrato social originário, onde o interesse do indivíduo em
formar e manter uma comunidade justa estaria ligado a própria natureza humana.
3
438 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
tese de que cada ser ou cada homem dever se dedicar, por natureza, a uma única tarefa
na cidade. A vocação social de cada um está inscrita na sua alma, na forma de uma
aptidão rigorosamente definida. Platão insiste neste ponto para determinar a unidade
e o caráter natural da competência: “cada um deve ocupar-se de uma função na cidade,
aquela para a qual a sua natureza é mais adequada” (433a). Ao propor esta ordenação
para a Polis, Platão introduz uma necessidade de reestruturação de todas as nuances
da vida, desde a comunidade das mulheres 4 como a educação das crianças 5, mas o
determinante para este empreendimento é a proposta educativa do governante, ou
melhor, do filósofo.
A necessidade de se possuir um saber que dá à virtude seu status e sua
importância, se configura através da convicção de que a excelência ética é também uma
excelência cognitiva. A preocupação com a virtude tem relação intrínseca com o
problema geral da educação, definido pela questão: A virtude pode ser ensinada?
(Ménon). A questão da virtude não está apenas voltada a excelência do caráter
humano, está também ligada a descoberta de que este termo qualifica um fazer. Platão
lhe dá uma nova amplidão, fazendo-o presente em qualquer atividade. Todas as formas
de virtude devem estar fundadas sobre um saber e é esta percepção que dá legitimidade
aos sofistas oferecerem seus préstimos aos jovens cidadãos atenienses, no entanto,
para Platão é preciso esclarecer que saber é este e se é possível de ser ensinado. A
questão, que está presente no diálogo Górgias6, volta de outra forma na República,
agora buscando estabelecer qual é a melhor forma de se obter um verdadeiro político,
ou melhor, um filósofo-político. Novamente a educação se mostra o centro dessa
realização.
O diálogo República mescla resgates da tradição com alguns pensamentos
estranhos ao cotidiano ateniense, como por exemplo, uma força militar profissional:
República livro V, sobre o papel das mulheres na obra de Platão ver FRANKLIN, Karen. ‘Aristófanes e
Platão: discursos sobre a mulher na Antiguidade’ In. Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 12, n. 1, p.
91-116, 2016; ‘O Papel da Mulher na Cidade: Atividades Femininas na Antiguidade e a Idéia de Guardiã
em Platão” In. CORNELI, G. (org) Representações da Cidade Antiga - categorias históricas e discursos
filosófico, Achai/Universidade de Coimbra, 2010; LAURENT, Jérôme, La mesure de L’humain selon
Platon (La liberation de la Femme), Paris Vrin, 2002; ANNAS, Julia Introduction à la Republique de
Platon, Trad. Béatrice Han, Paris: PUF, 1994; La Psychologie de Platon, 2ª ed, Paris: PUF, 1973;
ARISTÓFANES, Paris: Belles Lettres, 1954; JAEGER, Werner Paidéia, 3ª ed, trad. Artur M. Parreira,
São Paulo: Martins Fontes, 1994.
5 República livro V, Platão ver LAURENT, Jérôme, La mesure de L’humain selon Platon (L’Enfance des
Lois), Paris Vrin, 2002;
6 Ver Górgias 520 e, na obra de E. R. Dodds, Plato, Górgias, edição e comentário da Oxford: Claredon
Press, 1959, encontra-se um dos mais completos e justos comentários sobre este diálogo. Ver
SCOLNICOV, Samuel Platão e o Problema Educacional, São Paulo: Ed. Loyola, 2006.
4
Karen Franklin | 439
os guardiões. Não seria mais o cidadão despreparado obrigado a lutar para defender
sua cidade, sua proposta de uma milícia traria a excelência às conquistas bélicas de
Atenas. A divisão de tarefas proporcionaria uma especialização da cidade em todas as
instâncias possíveis, desde as tarefas mais simples até a organização e condução da
Polis. Para essa realização seria preciso uma educação capaz de descobrir talentos e
perfeições físicas e de caráter. É este caminho que os livros VI e VII tentam esclarecer,
delineando um método capaz de selecionar e treinar os melhores cidadãos para o
comando da Polis. A perfeição moral seria fruto de uma promoção das melhores
índoles através de um exaustivo aprimoramento pessoal, proporcionado por uma
educação seletiva.
O que seguramente representa a tentativa platônica de estabelecer uma relação
entre o conhecimento e a moral é a imagem da Linha no livro VI e a Alegoria da
Caverna no livro VII. Desde a publicação da primeira edição crítica (1804) do diálogo
Republica por F. Ast se sucederam 965 estudos sobre estas passagens até o ano de 1984
(LAFRANCE, 1987). É uma das passagens mais controvertidas da obra platônica ou
das que mais propiciaram interpretações e correções de interpretação ao longo do
século XX. Devido a isso, não vamos nos ater aos problemas de interpretação, mas sim,
ao ponto central da intenção platônica, a saber, a evidência da relação entre o modo
como se educa o cidadão, a idoneidade de seu mestre, sua fortaleza moral e a
possibilidade de uma cidade justa para todos, mesmo para aqueles que não participam
da perfeição moral.
Para se pensar nessa possibilidade, primeiramente é preciso analisar como
Platão projeta a construção da cidade perfeita a partir da idéia de felicidade para todos.
O acordo social indica que cada um quer sua felicidade. Esta, por sua vez, deveria estar
ligada intrinsecamente a felicidade de todos. Isso significa que deve haver harmonia
entre as atividades racionalmente distribuídas, com a satisfação de cada um no interior
do conjunto. Para isso, Platão não se cansa de recuperar a ideia de que ‘cada um deve
fazer o que lhe é devido’, pontuando que a capacidade individual é fruto da própria
natureza e sua atividade deve contribuir para a harmonização e completude do
conjunto. Cada indivíduo é como um elemento arquitetural que deve ocupar seu justo
lugar de maneira a contribuir exatamente com sua parte à harmonia do conjunto,
todos têm um lugar. Como podemos notar, a origem egocêntrica da formação da
sociedade se transforma, ao longo da preparação da justa sociedade, numa consciência
440 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
social harmônica. O aspecto comunitário aparece quando Platão tenta suprimir ao
máximo toda a propriedade privada daqueles que se destinam a dirigir a cidade, os
guardiões. Essa ponderação tenta preservar a integridade destes: “nenhum possuirá
quaisquer bens próprios, a não ser coisas de primeira necessidade; em seguida,
nenhum terá habitação ou depósito algum, em que não possa entrar quem quiser”
(416d). Mais adiante Platão enfatiza a comunidade das mulheres e dos filhos para estes
dirigentes (464b-461a-b). Neste caso o indivíduo é apreciado pelo ponto de vista
funcional, a tal ponto que a instância privada é considerada como um princípio de
divisão, de desordem e de irracionalidade. Essa posição, muito criticada por
Aristóteles (1998)7, também trata a vida privada e os desejos como fraquezas que se
deve reduzir o máximo possível.
O processo de perfeição moral da cidade inicia-se com a reestruturação da
formação dos jovens. Essa nova perspectiva depende de um conhecimento puramente
racional, ou seja, a perfeita educação deverá estar baseada exclusivamente num saber
superior. Nesse sentido, podemos resgatar o comentário de Samuel Scolnicov (2006,
p.31-32) sobre Parmênides ser o primeiro cartesiano, trazendo à tona a percepção da
relação entre a verdade e método. O fundamento de tal relação evidencia que a intuição
primordial, absolutamente segura e inegável é o ponto de partida do qual se deduzem
conseqüências. E essa intuição racional tem prioridade absoluta sobre as percepções
comuns ou sensíveis. Para corroborar essa posição, percebemos que Platão se dirige a
uma distinção fundamental entre doxa e episteme, ao buscar a determinação da
diferença entre a simples opinião e o verdadeiro saber, como ponto fundamental de
um projeto educativo. Uma preocupação presente em todos os primeiros diálogos,
aprimora os conceitos e aposta tudo no antagonismo desse procedimento no diálogo
República. Ao longo da obra Platão é enfático ao admitir que a Polis perfeita depende
da superioridade moral dos guardiões, ou seja, a Polis depende da idoneidade dos
dirigentes. Após explicar o sistema de educação e a igualdade de condições entre
mulheres8 e homens que se destinam ao comando da cidade no livro V, Platão passa a
analisar, por meio de analogia, a real possibilidade do conhecimento verdadeiro. Isso
Política, II e anexos.
Ver DEISSER, André ‘Le Platon des Dames’, Revue de Philosophie Ancienne, Tome XII, n° 1, 1994,
p.65-108. Interessante estudo que coloca um paralelo entre as mulheres do ponto de vista de Platão e
outros gregos com alguns pensadores modernos.
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Karen Franklin | 441
significa que a moralidade do guardião estaria ligada inevitavelmente ao conhecimento
verdadeiro, fruto de um processo educativo perfeito.
Ao buscar o verdadeiro conhecimento na cidade e no cidadão, estabelecendo
uma relação necessária entre conhecimento e a natureza filosófica, Platão procura
“uma atitude de espírito, comedida e agradável por natureza, cuja disposição inata
facilitará o aceso à forma de cada ser essencial” (486d). Dessa forma, legaliza-se a
maior importância da educação daqueles que se destinam ao comando, daqueles que
se destinam a ser o modelo para os demais. Nessa preocupação está inserido o temor
de Platão em dar educação medíocre a um homem de natureza superior, pois seria um
mal muito maior uma natureza melhor sujeita as tentações da vida do que uma
natureza medíocre. A preocupação gira em torno de preservar as melhores almas para
que elas não cometam os piores crimes. Na verdade, além de preservar as melhores
disposições para a filosofia, Platão mostra que a realidade da natureza humana é
propriamente a vida contemplativa (JAGU, 1997, p.94). Isso significa dizer que o
homem deve se render à sua condição primeira, pois se sua alma contemplou as
verdadeiras realidades, antes de se mesclar ao corpo, agora deve procurar viver
conforme sua natureza9.
A construção da Polis perfeita traz à tona uma constatação difícil de se observar
cotidianamente: “o mal é, de algum modo, mais oposto ao que é bom do que ao que
não é bom” (491d). Platão, ao analisar as maiores atrocidades cometidas por
governantes, chega à conclusão que suas almas eram de uma categoria superior, mas
que foram corrompidas em algum momento de seu desenvolvimento e produziram
maiores males do que um homem medíocre no poder poderia cometer. Com isso, a
educação dos que se destinam a governar é mais importante que a educação dos
demais, pois aqueles poderão provocar maiores males a todos. Cuidar, educar e
proporcionar às almas superiores a satisfação de suas necessidades é a função da
educação, pois a efetivação da justiça dependeria desse sucesso. Assim, a busca pela
natureza filosófica tem como pressuposto a impossibilidade de que a multidão obtenha
a episteme: “será possível que a multidão perceba e aceite que existe o belo, mas não
as muitas coisas belas, que existe cada coisa, mas não a pluralidade das coisas
particulares?” (493e-494a). A resposta negativa põe por terra a possibilidade de se
educar a multidão para a filosofia.
9
Sobre a reminiscência podemos assinalar o mito do Fédon (107 a-114c).
442 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Nesse sentido, fica claro que Platão busca estabelecer uma educação e formação
seletiva. Uma educação capaz de formar poucos, os verdadeiros filósofos, para o
governo da Polis justa, pois terão como paradigma o Bem e a justiça. A estrutura
educacional para todos que visa poucos seria o meio de descobrir as verdadeiras almas
filosóficas. A seleção não é natural, mas sim conforme a natureza. A felicidade
individual estaria intrinsecamente ligada à satisfação real de sua natureza e não a
satisfação de necessidades artificiais desenvolvidas pela má educação. Platão não
admite em momento algum que esta situação privilegia estes poucos, antes, mantém
que o filósofo, projeto máximo desse processo educacional, põe-se à disposição para
contribuir para a felicidade da cidade. Sua harmonia com a cidade é tal que poderá
custar a sua própria felicidade, pois ao contemplar as Ideias é convocado para
participar da direção da cidade: “É nossa função, portanto, forçar os habitantes mais
bem dotados a voltar-se para a ciência que anteriormente dissemos ser a maior, a ver
o bem e a empreender aquela ascensão e, mais uma vez que tenham realizado e
contemplado suficientemente o bem, não lhes autorizar o que agora é autorizado”
(519c-d), a saber, retirar-se das importantes decisões da administração da cidade, e
conclui que, se deve forçá-los à atividade política, pelo bem de todos. O filósofo deve
ser coagido ao convívio do vulgo, para lhes trazer sábios conselhos firmemente
fundados sobre a realidade perfeita que lhe foi revelada pela contemplação das Ideias.
Segundo Julia Annas (1994, p.104), muitas de suas proposições sobre a
natureza e a forma da educação provocam questões filosóficas e pedagógicas que se
mostram claramente atuais. E esta atualidade provoca questionamentos por vezes
desconcertantes, como por exemplo a constatação de que o único fundamento
proposto por Platão, para estabelecer que existem pessoas suscetíveis de serem
educadas para se tornarem guardiões, é a comparação com os animais. Quando Platão
pergunta: “para efeitos de servir de guarda, há alguma diferença entre a natureza de
um bom cão e a de um jovem bem nascido?” (375a), está se referindo à possibilidade
de uma pessoa ser dócil e feroz na justa medida. Para isso, basta educar a inteligência
para que a seleção dessas qualidades não erre na decisão da ação.
Tal analogia aparecerá em diversas passagens (416a-b, 422d, 451d, 459a, 537a),
mas é conveniente nos afastarmos da interpretação de um imperativo puramente
biológico para a questão, pois o comportamento humano não pode ser tomado da
mesma forma que o comportamento animal. Argumentar sobre a educação dos
Karen Franklin | 443
homens, a partir de uma comparação com os animais poderia parecer inapropriado,
apesar de usado por Platão. Aparece como argumento provisório que depois será
esclarecido de forma adequada. Essa forma de exposição se assemelha à própria
proposta educacional de Platão, pois ”aprender qualquer coisa pela primeira vez e ter
uma compreensão plena e inteira sobre o assunto são duas coisas completamente
diferentes” (ANNAS,1994, p.105). A ênfase dessa diferença determina a própria
diferença entre a doxa e a episteme. A linha que separa esses conceitos na República,
explica a diferença das noções anteriores, nos primeiros diálogos, mas, aqui, Platão é
mais duro e rígido em relação à doxa. As diferenças de graus de compreensão se
tornam mais evidentes e podem ser vistas, em todas as suas nuances, na imagem da
Linha e do Sol (508a-511e).
Essas imagens forçam a compreensão do fundamento da educação na
República e revelam que a formação do caráter não se determina apenas pelas
disciplinas escolares, mas também pela formação do indivíduo fora do conhecimento
científico. É neste sentido que Platão assinala a importância do mestre, pois ele poderá
determinar o sucesso ou insucesso da educação do discípulo. A moralidade estaria
ligada ao caráter do mestre e, nesse ponto, Platão esclarece e duvida da capacidade dos
sofistas de serem mestres de virtude do mundo grego: “que cada um destes
particulares mercenários, a quem essa gente chama de sofistas e considera como rivais,
nada mais ensinam senão as doutrinas da maioria, que eles propõem quando se
reúnem em assembléia, e chamam a isso de ciência” (493a).
Platão aborda muito vagamente a demarcação entre a vida privada e a
escolarização pública na República. Como vimos, sua proposta é de minimizar o limite
entre o privado e o público para aqueles que se destinam a governar. Dentro dessa vaga
perspectiva sobre como proceder para se obter os resultados desejados, a República
aponta na direção da correção do caráter e na preservação das boas índoles através de
uma boa educação. Na verdade, o que Platão sugere é que a educação não se limita a
aquisição de informações e competências técnicas, ela vai além da utilidade, evoca uma
formação completa, ou seja, uma Paidéia capaz de formar o caráter através do exemplo
e de exercícios de moralidade.
O problema é como promover este objetivo: na educação moderna, por
exemplo, frequentemente recomenda-se que as crianças obedeçam a certas regras e
princípios éticos sem compreender o porquê isso ocorre. Essas razões lhes são dadas
444 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
apenas num momento posterior 10. Para Platão esse procedimento é incorreto, pois
poderia apenas produzir alguém com princípios rígidos, mas não alguém que
compreende verdadeiramente o sentido da regra e da lei. Impor certas regras às
crianças que não compreendem nem regras nem princípios seria uma perda de tempo,
pois jamais adquirirão interesse sobre o que é correto ou não e, dificilmente, iriam
adquirir interesse pela própria regra. O que Platão propõe é o desenvolvimento, nas
crianças, de uma certa vontade de tratar o assunto11, promovendo o que é moralmente
bom e desprezando o que é moralmente mau. Na verdade, Platão propõe uma espécie
de “brincadeira de julgar” e, mediante exemplos, as crianças poderiam aprender sobre
o que é moralmente mau, analisando as pessoas que cometem erros e julgando-as
como horríveis. Para ele, as crianças naturalmente iriam aprender que estas pessoas
procedem de forma errada e podem ser consideradas más. Com esse mecanismo
acredita que introduziria a familiaridade com questões éticas desde o princípio da
educação, relegando os defeitos de educação, como o preconceito e os conflitos entre
os sexos, a falha de caráter proveniente de uma educação inadequada. Os bons
exemplos seriam alvos de elogios, exaltando que o princípio de beleza e bondade é o
melhor a seguir.
Esta possibilidade é possível porque a proposta platônica de educação prioriza
o belo e o bom como modelos estéticos. O termo grego kalos dá força à expressão,
empregando o desejo estético de obter o bem, o bom, o mais cedo possível. A beleza da
linguagem faz parte da beleza do caráter e é dele que se molda o guardião, “a boa
qualidade do discurso, da harmonia, da graça e do ritmo depende da qualidade do
caráter, não daquele a que, sendo debilidade de espírito, chamamos familiarmente de
ingenuidade, mas da inteligência que verdadeiramente modela o caráter na bondade e
na beleza” (400e). Platão não se detém exaustivamente nesse aspecto, não examina o
caráter nele mesmo, mas toca em aspectos essenciais para sua boa formação: o
equilíbrio da formação física e teórica. Como diz: “aquele que melhor caldear a
ginástica com a música e as aplicar à alma na melhor medida, - de um homem assim
diríamos com toda a razão que seria o mais consumado músico e harmonista, muito
mais do que o que afina as cordas uma pelas outras” (412a). A intenção aqui é
10 Essa é uma visão da educação tradicional onde a formação do caráter está ligada a reprodução de
conteúdo e comportamentos.
11 Podemos citar o Programa de Filosofia Para Crianças no Institute for the Advancement of Philosophy
for Children (IAPC) de Mathew Lipman que se inspira em certos aspectos da proposta educativa de
Platão. Ver FRANKLIN, Karen. Filosofia no Ensino Fundamental, Cap. II, Intersaberes, 2016.
Karen Franklin | 445
demonstrar que o governante bem-educado no modelo do kalos e com um equilíbrio
entre o físico e o teórico, seria o melhor administrador da Polis justa. Assim, depois
das fadigas do exercício físico, o bom guardião inicia o exercício do espírito. Ele não
deve temer diante das dificuldades e nem em qualquer outra situação, pois sua
harmonia interior deve suportar qualquer desafio.
No desenrolar de sua proposta educacional Platão utiliza-se do termo mathema
para expressar toda sua busca. Originalmente este termo significa o que se pode
aprender e o que se pode ensinar, mas, segundo Heidegger (1987, p.76) o termo
também conserva um duplo sentido, lição no sentido de ‘ir a uma lição e aprender’ e
lição como ‘aquilo que é ensinado’. O resgate do termo como centralizador do que de
novo surge na cultura filosófica, frente às anteriores fases da Paidéia, é o motivador da
busca de um conhecimento universal que não se encontra nos preceitos poéticos. “O
caráter inabalável e firme que Platão exige do “governante” deve ir apetrechado com
os mais altos dons espirituais e requer, além disso, o “controle” mais exato dos
conhecimentos” (JAEGER,1994, p.865). Jaeger se refere à proposta de Platão em
priorizar o conhecimento da Ideia do Bem, como o verdadeiro conhecimento,
submetendo todos os outros conhecimentos à iluminação deste. “Se não a
conhecemos, e se, à parte essa idéia, conhecermos tudo quanto há, sabes que de nada
nos serve, da mesma maneira que nada possuímos, se não tivermos o bem” (505a-b).
Nesse sentido, a estrutura educacional de Platão está fundamentada na teoria das
ideias, onde o conhecimento da idéia do bem se configura como garantia da
possibilidade e êxito do filósofo-governante.
Se formos buscar homens de boa constituição física e intelectual, para os
educarmos nestes estudos e treinos, a própria justiça não terá nada a
censurar-nos, e salvaremos a cidade e constituição. Mas, se trouxermos para
estas atividades pessoas sem valor, obteremos a efeito exatamente inverso, e
despejaremos sobre a filosofia uma onda de ridículo ainda maior (536b).
Ao procurar selecionar as melhores almas para a educação superior, Platão abre
uma discussão que até então se desconhecia. É o primeiro pensador que defende
sistematicamente a ideia de que a educação deve se preocupar muito mais com a
formação do caráter do que com informações e práticas. A seleção das melhores almas
para o comando da cidade não faz parte de discussões contemporâneas, mas a tese de
educar o caráter em vez de quantificar informações, tem tomado tempo de educadores
446 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
e pensadores durante todo o século XX e está na pauta do século XXI. Na era da
informação planetária nosso dilema continua o mesmo: qual o objetivo da educação?
Devemos educar o caráter? Afinal, ele é educável?
O tema é polêmico e sério, pois traz a educação novamente para um campo
aberto, longe dos muros fechados das escolas e longe de professores instrutores de
conteúdos preestabelecidos. O que temos novamente em questão é a qualidade do
mestre, seu pensamento político, moral e ético. Na verdade, o que Platão apresenta
com a sua concepção de educação, sua Paidéia, é um ajuste do olhar a própria vida.
Não é adquirir algo de alguém como se fosse um tesouro a ser guardado ou
transmitido, mas sim uma correção do indivíduo que deve visar o bem do todo,
buscando uma harmonia da sociedade. “A educação não é o que alguns apregoam que
ela é, dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não existe,
como se introduzissem a vista em olhos cegos” (518b-c). Com isto, Platão esclarece que
o sofista não serve como modelo de educador e anuncia que a educação deve fazer com
que a alma se volte para o que é essencial, ou melhor para a ciência que a alma possui
no interior de si mesma. A inspiração socrática é premente no discurso educativo e as
concepções de reminiscência e maiêutica se mantém como princípio e método.
Ao expor a necessidade de dar uma educação mais apurada aos que
governariam a cidade perfeita e ao estabelecer a educação dos guardiões, Platão
percebe que deveria ser um estudo provisório, pois “com os métodos de que estamos a
servir-nos agora na discussão, jamais atingiremos rigorosamente o nosso fim” (435d).
Platão se refere à necessidade de se fazer um caminho mais longo, para demonstrar
como a alma do que se destina ao comando deve ter maiores desafios, “precisam se
exercitar em muitas ciências, para ver se são capazes de agüentar estudos superiores
ou se sentem receio deles” (503e- 504a). No momento da seleção, os guardiões que se
destinam à filosofia devem demonstrar que suportarão os estudos filosóficos em
direção às Ideias, bem como os rigores da dialética. A dificuldade em ver as Ideias é
revelada como uma instância necessária de aprimoramento pessoal daquele destinado
ao comando (504b).
A educação superior descrita na República tem, em última instância, o objetivo
de descobrir os verdadeiros filósofos, nos quais a racionalidade é plenamente
desenvolvida pelos árduos caminhos percorridos. Platão concebe que apenas estes
podem relacionar-se com as coisas essenciais para a harmonia da Polis. Segundo Julia
Karen Franklin | 447
Annas (1994, p.112), no Estado justo ideal, a educação moral implica numa boa parte
de conformismo, para aprender a se submeter às normas já conhecidas e a agir
conforme as outras crianças da mesma idade. A grande questão que sempre preocupou
os comentadores é de saber como uma educação conformista e restritiva poderia
produzir seres criativos e originais. Podemos assinalar que, em Platão, a conformidade
faz parte do processo racional de desenvolvimento, pois se desde a infância as crianças
se aplicarem à ciência do cálculo, da geometria e todos outras que irão preceder a
dialética (536d), estariam acostumadas com este tipo de conhecimento e, quando
crescidas, não estariam contrariadas quando iniciassem o programa de educação
superior.
Platão é claro: “quem é livre não deve aprender ciência alguma como uma
escravatura. E que os esforços físicos, praticados à força, não causam mal algum ao
corpo, ao passo que na alma não permanece nada que tenha entrado pela violência”
(536e). É por isso que Platão insiste que os primeiros exercícios matemáticos sejam
introduzidos na infância por meio de jogos e brincadeiras, para que isto faça parte da
alma do adulto. O prazer deve ser o aliado do educador, pois é sempre para ele que a
criança estará voltada no princípio da educação, o lúdico deverá introduzir a atitude
contrária da busca do prazer: o pudor e o cumprimento da regra 12 . Para muitos
comentadores como Julia Annas, a educação proposta por Platão é extremamente
autoritária, pois além de ser a única oferecida na cidade, baniria todas as obras de arte
que não considerasse benéficas à formação. Para ela, Platão bloqueia qualquer
possibilidade de se introduzir outros valores como desejáveis. Num outro aspecto ela
esclarece que a pesquisa livre é destinada à elite intelectual, que percorreu todas as
etapas da longa educação secundária (ANNAS, 1994, p.114). Na verdade, o que
devemos ter presente é o rigor que Platão exige da razão, pois apenas aqueles que
gozam de sua plenitude poderão atuar livremente sem trazer perigo à Polis justa.
Outra preocupação educacional é revelar a diferença entre o aparente e seu
contrário, ou seja, a diferença essencial entre doxa e episteme (536a). O cuidado em
Sobre esse assunto é importante notar o trabalho de Jerôme Laurent, La mesure de L’Humain selon
Platon (Paris: Vrin, 2002), em que no primeiro capítulo (L’enfance dans les Lois) apresenta uma
interessante interpretação sobre a educação das crianças. E que buscando esclarecer a finalidade da
Paideia apresenta três sentimentos que correspondem ao desejo de justiça que deveria se tornar
universal: o primeiro é uma espécie de ataraxia, a calma que apaziguaria a alma humana. O segundo
sentimento deve buscar estabelecer no coração dos homens um afeto divino que os cidadãos devem
procurar imitar, ou seja, a filantropia. O terceiro sentimento que a educação deve ensinar a criança a
reconhecer no adulto a esperança.
12
448 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
selecionar homens de boa índole revela que Platão tenta assegurar-se de que o caráter
daquele que se destina ao governo não pode ser apenas uma aparência, tem que ser
legítimo. Não é difícil encontrar aqueles que concebem o sistema de educação proposto
por Platão assemelhado a uma lavagem cerebral, que introduz as boas opiniões
assegurando-se que elas estão bem assimiladas. O modelo buscaria aliar o despertar
do caráter com o direcionamento único. No entanto, não podemos assegurar
firmemente, que Platão quisesse apenas introduzir boas opiniões e não se preocuparia
em formar o caráter através da educação, resignando-se a fazer o mesmo que criticava
nos sofistas. Para ele, a única forma de implantar as boas opiniões no espírito dos
jovens seria formando seu caráter, pois teria uma ação direta e eficaz.
Poderíamos argumentar contra Platão que sua idéia de introduzir certos valores
nos jovens, sem que pudessem discutir sobre a validade destes atos, seria uma atitude
altamente conformista e que jamais daria espaço a criatividade. No entanto, Platão
considera que a receptividade dos valores nobres na juventude não excluiria um futuro
espírito intelectualmente aventureiro e destemido quando maduro. O que importa a
Platão é a segurança da formação moral, do caráter, pois é na juventude que os
espíritos estão mais propensos a corrupção. É preciso assinalar que, apenas dentro de
uma educação disciplinada como a proposta aqui que se chegaria aos efeitos desejados
por Platão. A disciplina e o conhecimento seriam os fundamentos de uma educação
propensa a revelar boas índoles e isso possibilitaria a efetivação de seu projeto
educacional.
A finalidade da educação através do fortalecimento do espírito, exemplificada
nas crianças que são levadas à guerra para provarem e suportarem seus horrores e
vitórias (413d-e), também tem o objetivo de formar o caráter. A formação do ethos que
fortalece o caráter do jovem e o prepara para a educação moral tem um papel central
no projeto. Platão não diz que se deve educar os jovens para que eles não duvidem
desses valores morais, mas sim que se deve educar de tal forma que seja desnecessário
duvidar de tais valores. Os valores não seriam discutidos por aqueles que tem a medida
da Verdade, relegando a discussão do assunto apenas aqueles que não estão certos de
seus próprios valores. Desse modo, os valores morais daí derivados não precisariam
ser questionados, pois são verdadeiros a medida que participam da Verdade. A crítica
a este tipo de argumento é freqüente em relação a Platão, principalmente na
República, onde a abertura para a discussão da pluralidade dos valores se encerra na
Karen Franklin | 449
concepção da teoria das Ideias, sustentada pela unidade e perenidade da Verdade. Este
argumento não é aceito por Julia Annas, para ela é preciso a “consciência da
possibilidade de outras escolhas, que dão à possessão de uma opinião moral uma
insignificante influência sobre a imaginação, o que impede de se reduzir a um dogma
longínquo e enfadonho” (1994, p.116).
Parece-nos que Platão quer evitar a situação exemplificada no jovem que se
descobre filho adotivo, que repentinamente toma diferentes atitudes em relação aos
pais e aos lisonjeadores (537e -538c). Nesse sentido, diz que a força da refutação
contínua traz confusão ao espírito do jovem, pois estando tanto tempo longe da
verdade, quando a obtiver, não poderá reconhecê-la. Se não puder confiar como sendo
verdadeiras as máximas familiares, o jovem aceitará qualquer outra mais conveniente
como sua, tornando-se um rebelde. As questões sobre o ensino dos valores éticos
morais estão diretamente ligadas aos perigos da dialética mal aplicada. Por isso, tal
disciplina deve ser assegurada apenas no último estágio da formação, retirando a
possibilidade de se tornar um jogo de palavras e argumentos, usados pelos jovens
como brincadeira. Dessa forma, diz Platão: “será uma precaução segura não os deixar
tomar gosto pela dialética enquanto são jovens” (539b). Nesse sentido, Platão busca
evitar as brincadeiras de refutação, pois “depois de terem refutado muita gente, e por
sua vez, terem sido refutados por vários, caem rapidamente e com toda a força na
situação de não acreditarem em nada que antes acreditavam. E por este motivo, eles
mesmos e tudo o que diz respeito à filosofia são caluniados perante os outros” (539bc). Essas palavras pretendem redimir a imagem da filosofia e certificar que seu papel
é o de buscar a Verdade que sustenta todos os valores éticos desejáveis para a Polis
justa, afastando totalmente a possibilidade de duelos sofísticos.
A promoção da segurança intelectual e moral é um dos objetivos de Platão, por
isso não concebe o encorajamento de constantes discussões sobre os valores pelos
jovens. Para Platão, eles não têm a segurança e capacidade para defender seus próprios
pensamentos e, neste tempo de aprendizagem, devem manter distância dos “jogos
dialéticos”. É pertinente notar que Platão não recusa os questionamentos, pois tem
uma confiança marcante no poder da razão para resolver controversas questões éticas,
no entanto, quer preservar a procura da Verdade como ápice desses questionamentos.
Não lhe importa produzir indivíduos capazes de ter uma atitude crítica que não são
capazes de sustentar suas próprias opiniões. O mais importante é que estejam
450 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
convictos da verdade de suas opiniões e sejam capazes de defendê-las de qualquer
questionamento externo. Os valores éticos devem estar claros, pois devem suportar a
submissão à autoridade exterior. Segundo Annas, Platão afirma que é “bom que uma
pequena elite, selecionada por sua competência intelectual, passe ao crivo os
fundamentos de todas as opiniões admitidas, qual seja a fonte de sua autoridade”
(1994, p.117). Novamente vemos que o projeto educativo de Platão tem uma
preocupação latente com aqueles destinados ao comando da cidade, pois seus valores
prevalecerão diante da multidão que lhes serve.
A dialética é instituída, na República, como a disciplina suprema do processo
educacional do filósofo, ela representa o ápice do conhecimento filosófico digno de
uma Paidéia superior. Para Jaeger (1994, p.910), essa postura estaria baseada na
experiência pessoal de Platão como educador, com a dialética caracterizada como um
instrumento e método educativo. Assinalamos ainda, que esse diálogo ainda não
contém todos os elementos desenvolvidos sobre a dialética, apenas em diálogos
posteriores Platão irá especificar a idéia de que o conhecimento filosófico deve estar
ligado às matemáticas. Naturalmente as matemáticas são o estágio imediatamente
anterior ao da dialética segundo a imagem da Linha do conhecimento (509d-511e).
Mas é apenas no diálogo Teeteto que, o personagem de mesmo nome, se torna exemplo
de homem capaz de assimilar a dialética não apenas como disciplina, mas como aquele
que tem a capacidade de bem usar a matemática, capaz de “prestar e fazer os outros
prestarem contas” do que dizem (JAEGER,1994, p.910-911). A preocupação constante
na seleção daqueles que se destinam à dialética é saber se são capazes de assimilar
tanto os conhecimentos como aprender os valores éticos capazes de lhes tornar
filósofos. Suportar os estudos superiores significa suportar a visão do que lhe espera,
a Ideia do Bem. Portanto, ser um dialético é ser um homem “capaz de ter uma visão de
conjunto” (537c), um ser capaz de considerar todas as possibilidades das ações antes
mesmo que elas aconteçam, isso significa ter um estratagema matemático que sustente
suas ações diante da cidade.
Os poucos que suportaram o caminho árduo das seleções terão almas
filósoficas. O mais importante é ter “pessoas capazes de terem boas opiniões, que
tenham uma vida dominada pela justa percepção de si e de suas capacidades” (ANNAS,
1994, p.117). Platão freqüentemente dá pistas de quem poderá chegar ao nível mais
alto do conhecimento: “as pessoas moderadas e firmes por natureza que se dará acesso
Karen Franklin | 451
à dialética” (539d), pois com essa índole e com uma boa formação serão os mais aptos
ao comando da Polis. “Depois de terem visto o bem em si, usá-lo-ão como paradigma
para ordenar a cidade, os particulares e a si mesmos, cada um por sua vez, para o resto
da vida, mas consagrando a maior parte dela à filosofia” (540a-b).
Marcar a importância do estudo filosófico para a formação do justo governante
é o ponto forte da educação platônica, não apenas no plano teórico, mas também no
plano prático e para correção histórica. O aspecto histórico aparece, claramente no
livro VI:
Os fatos mostram que todos quantos se dedicaram à filosofia, para se cultivarem,
quando eram novos, e não a abandonaram, mas persistiram mais tempo nesse
estudo, na maior parte dos casos se tornaram bastante excêntricos, para não dizer
perversos, e aqueles que parecem mais equilibrados, mesmo assim se ressentem
dessa aplicação que tanto elogias, tornando-os uns inúteis para a cidade (487c-d).
Mesmo tendo exemplos de filósofos que ficaram historicamente conhecidos
como perversos e excêntricos, Platão, não os considera modelos ou exemplos de seu
projeto educacional. A confiança de que uma educação baseada em princípios
imutáveis, na segurança dos valores éticos e no exemplo de bons mestres
proporcionaria o surgimento do filósofo-governante. Portanto, colocar no comando da
cidade um filósofo, seria a prova irrefutável de que sua teoria corresponde à verdade e
que apenas ele poderia conduzir todos à justiça.
A metáfora do navio (488a-489a) exemplifica os propósitos platônicos com
relação a política ligada a educação: o processo educacional deve imprimir no corpo
social um querer, deve-se educar o povo para que esse queira e esteja convencido que
é o melhor que deve comandar. O processo educativo platônico, que deveria começar
na infância através das fábulas e contos infantis, culmina na extremada seleção das
melhores capacidades humanas dentro de uma seleção rigorosa que perdura toda a
vida. A educação deveria ser tão cuidadosa que o próprio Platão tem cautela em
relacionar o que serviria e o que não serviria para sua Polis justa (377b- 380c). Crê que
a cultura popular deve fazer parte do primeiro momento educativo, pois dependerá
dela a formação posterior e é nesse sentido que critica a poesia de Homero e Hesíodo,
pois sua seleção não poderia admitir atitudes dos deuses que não estivessem em
conformidade com seu projeto moral. Como afirma Julia Annas, a relação que os
gregos tinham com a arte poética não poderia ser desconsiderada por Platão, no
entanto seria prudente disciplinar seu conteúdo para que as pessoas não tomassem
452 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
uma interpretação errônea do que ouviam (1994, p.120). Todo o cuidado em escolher
o que é conveniente a um povo e o que não convém está diretamente ligado à atitude
ética dos governantes. Para quebrar esse hábito, Platão propõe que o comando da Polis
seja destinado aos filósofos formados a partir de rigorosa seleção, da mesma forma que
o controle do navio deve ser dado ao verdadeiro comandante. Não permitir que
marinheiros e imediatos, desonestos e galhofeiros, tomem a direção do navio. Isso
seria o mesmo que exigir que a cidade se liberte dos sofistas e demagogos em
detrimento do governo justo do filósofo.
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Karen Franklin | 453
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24. REVISITING HABERMAS’S THE PHILOSOPHICAL
DISCOURSE OF MODERNITY AFTER 35 YEARS1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-24
Kenneth Baynes2
The Philosophical Discourse of Modernity (PDM) is undoubtedly Habermas’s
most polemical text. Habermas often reads other philosophical texts aggressively to
find ways to articulate his own views—many good philosophers do that—but in this
case it is as if he reads the texts in order to create a distance between himself and them.
In his magnum opus, The Theory of Communicative Action (TCA), Habermas sought
to bring about a “paradigm shift” from the philosophy of the subject to an
intersubjective or communicative account of reason. Yet, each of the authors he
criticizes in PDM—especially Heidegger, Derrida and Foucault—has also claimed to
have moved “beyond metaphysics” and so beyond the philosophy of the subject.
Habermas’s polemic against these authors is not only that they have failed but that in
their attempt to go beyond metaphysical thinking each has in his own way become
ensnared in that very metaphysics. This leads Habermas to conclude that the best way
to become “postmetaphysical” is not to try to beat metaphysics at its own game—to
offer a yet deeper explanation of the conditions of possibility that made such a
(disorienting or misleading) metaphysics possible—but, in a more straightforwardly
pragmatist gesture, to return to an analysis of our social practices.
The polemical approach is nonetheless unfortunate because in some cases—
perhaps especially in the case of Foucault—the projects may have much more in
common if they are read more charitably. In many cases it has fallen to Habermas’s
students—Wellmer, Honneth, Benhabib, and others—to develop more sympathetic
interpretations of these figures. Still, even if Habermas’s readings are sometimes
disappointing, they are not completely surprising and on occasion they can also be
quite illuminating. PDM appeared shortly after TCA and at a time when the wider
1 I have been interested in the “philosophical discourse of modernity” at least since Nythamar was my
graduate student and wrote a provocative thesis on this topic in connection with Kant, Nietzsche and
Foucault. It is a pleasure to contribute to this volume honoring his career.
2 Syracuse University
456 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
political and cultural trends were against an understanding of modernity and its
emancipatory potential that Habermas defended. The rise of neoconservatism—with
the elections of Margaret Thatcher, Helmut Kohl and Ronald Reagan—seemed to call
into question just this claim about the emancipatory potential of modernity. It is also
not hard to see Habermas’s polemic as stemming at least in part from the two very
different post-war receptions of Heidegger in Germany and in France, respectively, as
he later suggested (Thomassen 2006, 117).
Still, this contextualization does not excuse Habermas’s strong polemic. Most
of those whom Habermas labeled “young conservatives” were equally opposed to the
neoconservative trend. Since his interpretations of these figures are thus not likely to
be considered definitive to many, my aim here will only be to highlight some of
Habermas’s main criticisms. A more extensive assessment of his claims is beyond the
scope of this paper. As others have shown, in many cases it is possible to find deeper
alliances between Habermas and those whom he criticizes (see, for example,
Kompridis on Heidegger; Menke on Derrida; and Allen and Koopman on Foucault).
(1)
Horkheimer and Adorno’s influential Dialectic of Enlightenment is a
challenging text, but Habermas focuses on one of its central themes: “Myth is already
enlightenment; and enlightenment is already mythology” (Horkheimer and Adorno,
xviii). Even this thesis is not easy to interpret, though the claim seems to be that while
mythology (e.g., Homer’s Odyssey) already exhibits elements required for individual
emancipation (the self’s distancing from its origins), the Enlightenment as
“instrumental reason” in the service of self-preservation is itself myth (or a form of
ideology).
At any rate, according to Habermas, the basic thesis of Dialectic of
Enlightenment is relatively clear: “Reason itself destroys the humanity it had first
made possible” (PDM, 110). This is because reason, understood as the rational control
and domination of nature in the name of “self-preservation”, eventually undercuts and
destroys the (more substantive) reason that initially allowed for a richer and more
meaningful culture (including morality, religion and art) in which “subjectivities”
could orient themselves. By contrast, a “rationality in the service of self-preservation
gone wild” or, as Horkheimer expressed it elsewhere, “self-preservation without a self”
destroys the possibility for a more humane living by subordinating everything else to
a domination of nature (PDM, 112).
Even “inner nature” (or the formation of
subjectivity or a self) is subordinated to this demand.
However, according to
Kenneth Baynes | 457
Habermas, the form of critique that Adorno and Horkheimer invoke here is no longer
“immanent critique” (roughly, the attempt to use bourgeois ideals to expose their
failure or shortcomings) (see PDM, 116). Rather the “totalizing critique” they practice
calls into question the very reason by means of which immanent critique might
proceed: “It is turned not only against the irrational function of bourgeois ideals, but
against the rational potential of bourgeois culture itself, and thus it reaches into the
foundations of any ideology critique that proceeds immanently” (PDM, 119).
Habermas’s concern in the chapter is two-fold. First, he wants to distinguish
the form of totalizing critique found here from what he finds in Nietzsche. Whereas
Adorno and Horkheimer attempt to preserve a form of ideology-critique however
paradoxical, Nietzsche abandons the rational critique of ideology in favor of a
heightened form of aesthetic critique. Any distinction between validity and power is
relinquished in favor of an “aestheticized” will to power (PDM, 98). In the last analysis,
Nietzsche’s critique of culture assumes the form of a perspectivalism in which
competing claims are interpreted as conflicts of power that cannot be rationally
adjudicated.
Second, Habermas argues that even their paradoxical form of ideology-critique would
only be appealing if it could be shown that there is no alternative to it (PDM, 128).
More specifically, unless their “one-sided” interpretation of cultural modernity (as
“instrumental reason in service of self-preservation”) is a moderately convincing
interpretation, other options for ideology critique might be identified (PDM, 114).
Such an alternative is, of course, what Habermas has in mind with his claim that the
Dialectic of Enlightenment “does not do justice to the rational content of cultural
modernity that was captured in bourgeois ideals” and the alternative sketch of
(cultural) modernity he presents: a decentered worldview that focuses not only on
science and instrumental rationality, but also on the distinctive rationalities or “logics”
associated with law and morality and art and art criticism respectively (PDM, 113). In
short, contrary to the claim of Dialectic of Enlightenment the “rational content” of
modernity is not exhausted by instrumental reason directed at the domination of
nature. For Habermas, this is at best a misdirected extension of one dimension
(science and technology) to the exclusion of other achievements of the Enlightenment
(autonomous morality and law, on the one hand, and a “liberated aesthetic
subjectivity”, on the other).
458 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
(2) The strong critique of Heidegger and especially the late Heidegger is not
surprising. Habermas’s extreme disappointment in a thinker who deeply influenced
him, as we noted, stems from Heidegger’s refusal to accept any personal responsibility
for his participation in the National Socialist movement. I suspect that the harsh
criticism of the later Heidegger—after the Kehre (or turn)—also stems at least in part
from the lasting influence that Being and Time had on Habermas. That work can also
be read as a form of transcendental pragmatism that is in some important respects
close to Habermas’s own (Lafont 2000). In PDM (and elsewhere) Habermas defends
the strong thesis that the reasons for Heidegger’s Kehre were due almost exclusively
to external (political) factors and not the result of philosophical problems internal to
his earlier work. This is, to say the least, a controversial thesis.
What seems less
disputable is that after the Kehre Heidegger advocates a form of thinking or thoughtful
remembrance (Andenken) that is not subject to the same standards of public criticism
and accountability as other forms of reason. Heidegger frequently makes the claim
that discursive modes of argument and truth depend for their possibility on a prior
notion of truth as “unconcealment” (Lafont 2000, chap. 3; Wrathall). This revival of a
specialized form of thought that is the privilege of philosophy is what Habermas has
consistently rejected since introducing his notion of philosophy as “critique” in
Knowledge and Human Interests.
On Habermas’s view it also suggested an
unbridgeable chasm between “world-disclosing” knowledge and more mundane
“innerworldly” learning (PDM, 154; PT, 42; TJ, 25). Others have argued that this latter
claim is a very uncharitable reading of Heidegger (Wrathall, 34f.). But even if one does
not accept the view that external motivations were largely responsible for later
developments in Heidegger’s work, Habermas is by no means alone in his claim that
his later philosophy promotes a style of thinking that substitutes a notion of solicitude
or surrender to the call of Being for a model of discursive thought and rational
argument (Tugendhat; Philipse; Lafont 2000). For Habermas, it is thus not difficult
to see in it the dismissal of a more dialectical relation between world-disclosing
knowledge and inner-worldly learning—that is, the form of Kantian pragmatism
endorsed by Habermas.
It is for Habermas also an indication of the elitist or
“mandarin” attitude that he believes characterized Heidegger (PDM, 147; NC, 147).
(3) Habermas’s discussion of Derrida is more surprising since the latter’s
critique of “logocentrism” in many ways parallels Habermas’s own critique of the
Kenneth Baynes | 459
philosophy of the subject. Both reject the idea of philosophy as “first philosophy” or of
the view that philosophy has to ground or legitimate the other sciences by establishing
a secure foundation in reason. However, what seems to trouble Habermas is that
Derrida’s criticisms of this “metaphysics of presence”—like Adorno’s—deprives him of
the possibility of more discursive modes of argument.
(Derrida, understandably,
disputes this claim.)
Habermas’s criticism has two roots: First, he discerns in Derrida’s claims about
“iterability,” or différance or arché-writing as an (impossible) “condition of possibility”
for communication a form of transcendental argument that is immune to criticism (see
Derrida 1996, 82).
Habermas thus reads Derrida as advocating a conception of
philosophy as a privileged form of discourse—or perhaps novel form of “literary
criticism” (PDM, 188). Second, Derrida undertakes a critique of Austin’s analysis of
speech acts whose aim is to show that Austin had completely failed to show how
performatives such as making a promise could ever succeed. Very briefly, Derrida’s
claim was that in setting aside cases of non-literal or “nonserious” speech acts—such
as making a wedding vow in a play—Austin left himself unable to explain the notion of
iterability (or repetition of the “same” performative in different contexts) on which any
plausible account of speech act depends (Derrida 1988, 15). Since Habermas’s own
account of speech acts is greatly indebted to Austin, Derrida’s criticism (if correct)
would also undermine Habermas’s own “communication-theoretic” alternative to the
philosophy of the subject.
As Derrida understandably objected, it would have been preferable had
Habermas then proceeded to engage Derrida’s own essay directly rather than refer
only to some secondary literature. But, as anyone who has worked through Derrida’s
critique of Austin will attest, it is extremely difficult to reconstruct the argument. It
moves very quickly and culminates in an extremely obscure claim that “iterability” is
(like the related notions of différance and arché-writing) a condition of possibility for
a successful performative that necessarily eludes explication. “Iterability” seems not
to be contained—as for Searle and Habermas—in the tacit knowhow of a speaker who
has mastered the rules governing a practice, but in an absent presence (or present
absence) that cannot be further described (Derrida 1988, 17). While it would be hard
to defend as a charitable reading, it is also not difficult to see how Habermas saw in
Derrida’s move something like Heidegger’s attempt to replace an argument about
460 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
transcendental conditions with a claim that the possibility of intelligible
communication or meaningful discourse depends on an a gift or dispensation of Being
that eludes all attempts at rational reconstruction. In other contexts, in fact, Derrida
makes just such a gesture toward Heidegger (Derrida 1971, 9). For Habermas it thus
represented another example of a totalizing critique of reason (or attempt to explain
the conditions of rational discourse) that failed to go beyond metaphysics.
(4) Finally, Habermas’s largely critical treatment of Michel Foucault is perhaps
most surprising of all (PDM, c. 9 & 10). Both have had a long engagement with the
social sciences—much more so than Derrida or Heidegger. Both have also been
importantly influenced by Kant and the tradition of Weber and western Marxism
which views the occident as the outcome of a long process of societal rationalization—
compare, for example, Weber’s “iron cage” and the Dialectic of Enlightenment to
Foucault’s discussion of the Panopticon.
And, perhaps most importantly, both
thinkers understand themselves to be engaged in a project of “detranscendentalizing”
Kant or, to use Foucault’s terminology, engaged in a project of replacing Kant’s
constitutive subject with a notion of a plural and historical a priori (Foucault 1972,
127f.; Han).
However, despite these similarities their respective projects assume quite
different shapes and there is ongoing debate about whether they can be brought into a
fruitful engagement.
Foucault, and more especially some of his followers, have
maintained that Habermas’s detranscendentalization of Kant—especially in
connection with the identification of the idealizing suppositions contained in
communicative action—remains far too Kantian and wedded to a notion of reason
untainted by power. Habermas and some of his followers, on the other hand, have
argued that Foucault’s treatment of power—which, at one level, assumes the
constitutive role of Kant’s transcendental subject—makes it difficult if not impossible
to distinguish between objectionable and unobjectionable exercises of power (e.g.,
relativism). In PDM Habermas also accused Foucault of a “cryptonormativism” (PDM,
282): Foucault presumably advocates resistance to the disciplinary powers that are at
work in constituting the modern subject, but in his call to “get rid of the subject” it is
not clear where the normative resources for such resistance are to be found (Foucault
1980, 117). As for Horkheimer and Adorno modern rationality—along with its related
ideals of knowledge and individual freedom—is complicit in the vast network of
Kenneth Baynes | 461
disciplinary power such that reason cannot obviously offer any guidance for its
overcoming. It is not reason but rather its radical “other”—now in notion of the body
or perhaps an aesthetics of the self—that is cited as a source of resistance and critique
(PDM, 285, 291).
In response to this criticism, others have pointed out that Habermas has (again)
failed to read Foucault carefully. Foucault’s call to “get rid of the subject” is not offered
as a rejection of all forms of subjectivity (and agency), but (like Habermas) the sign of
an attempt to get beyond Kant’s transcendental subject and its (supposed) worldconstituting powers (Allen 2008, 37; Koopman). Others sympathetic to Foucault’s
analysis of power suggest that he does not reject all notions of freedom but only those
notions that describe freedom (or autonomy) in exclusive opposition to power or as
radical freedom from constraint (Koopman, 169f). As Foucault later claimed, “Power
is exercised only over free subjects, and only insofar as they are free” (Foucault 2001,
342). In developing this point Allen states that “autonomy is . . . necessarily linked to
power relations” (Allen 2008, 67; Allen 2014).
Moreover, according to Foucault,
power (necessarily) presupposes freedom as well:
Relations of power are then changeable, reversible and unstable. One must
observe also that there cannot be relations of power unless the subjects are free. If
one or the other were completely at the disposition of the other and became his
thing, an object on which he can exercise an infinite and unlimited violence, there
would not be relations of power. In order to exercise a relation of power, there
must be on both sides at least a certain form of liberty (Foucault 1997, 291-92).
But interpreting Foucault’s somewhat limited remarks about the (necessary)
inseparability of power and freedom is difficult. If the claim is that with reference to
any individual life—or relatedly in reference to any claim to knowledge—power
relations are at work, it seems important to ask whether these are objectionable or
unobjectionable exercises of power or, if both, how any distinction between the two
forms is to be made.
The claim that “autonomy is necessarily linked to power
relations” would be relatively uncontroversial if (1) we are making an empirical claim
about a specific case or individual life-history or (2) if the type of power involved is
itself unobjectionable (if the claim is, for example, that “individualization requires
socialization”). Neither of these are claims that Habermas would deny. But, if the
point is that, as a conceptual or normative matter, we cannot conceive of freedom (or
autonomy) without it being necessarily linked to objectionable power relations it
462 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
becomes more difficult to assess. As social actors and critics it would seem that we
need some way to distinguish between objectionable and unobjectionable power
relations. Habermas’s charge concerning Foucault’s “cryptonormativism” was not
meant to show that we need an ultimate grounding to secure human freedom. It was
meant to show that we need a relatively clear indication as to how the distinction might
be drawn and how, when power relations are contested, such disagreements might be
handled. Foucault’s analysis of power does not seem to be able to do that.
But, those sympathetic with Foucault’s analysis might raise another objection
and here matters become more difficult. Habermas’s own solution, as we have seen,
is to point to the idealizing suppositions contained in our more mundane social
practices.
But what if those practices have themselves become so distorted by
disciplinary power that the idealization are themselves manifestations of power. What
if practical reason is not a resource for critique, but implicated in the (objectionable)
relations of power? (Allen 2014, 77). This is a clear statement of the problem that
confronts all ideology critique once it is framed as a “totalizing critique of reason”. It
is also difficult to see how Habermas could reply given that he has rejected
“transcendent” critique in favor of some version of immanent critique. However,
raising this objection does not seem to offer any advantage to his critics for there is
little reason to suppose that a stronger contextualism is in any better position to
respond. Rather, it seems preferable to admit that this presents a limit case for any
practice-based approach like Habermas’s. Moreover, critics of Habermas’s attempt to
locate the resources for critique in the idealizing suppositions of communicative
reason still need to address the question of how they would propose distinguishing
between objectionable and unobjectionable (or at least less objectionable) relations of
power.
Even though Habermas does not offer the most charitable or only possible
reading of these thinkers, it is fairly clear to identify his deeper worry. In what he calls
the “totalizing critique of reason” (and modernity) he discerns a return to a conception
of philosophy that he finds problematic. It is a conception that rests on a sharp
contrast between a “world-disclosing” role, on the one side, and inner-worldly learning
on the other (PT, 42; TJ, 25). This is for him clearest in Heidegger’s distinction
between the history of Being (as world-disclosing) and the realm of (empirical or ontic)
entities. For Heidegger, the philosopher’s special task is to be attuned to this history
Kenneth Baynes | 463
and to the revelations of Being. As students of Heidegger, Habermas fears that Derrida
and Foucault, each in their own way, reinstate this sharp dichotomy. For Habermas,
by contrast, philosophy is not able to fulfill such a role. It stands in a much closer
relation to the empirical sciences and must also retain its connection with a human
“common sense” found in the more mundane practices of the lifeworld (PDM, 208;
PT, 18).
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25. O RITMO BÁQUICO DO CONCEITO
https://doi.org/10.36592/9786587424163-25
HegelRitmoBaquico- desdobramento abril 2009
Kathrin Holzermayr Rosenfield1
O verdadeiro é assim o tontear báquico
no qual nenhum membro escapa à embriaguez.
É curioso encontrar numa obra como a Fenomenologia do Espírito repentinas
irrupções das paixões juvenis de seu autor, por exemplo, reminiscências de uma época
em que Hegel dedicou ao seu amigo Hölderlin um poema entitulado « Eleusis »2. Este
período de amizade intensa e de animadas discussões sobre poesia e filosofia gregas
parece estar definitivamente ultrapassado quando Hegel publica a Fenomenologia em
1807. Hölderlin está há três anos recluso na Torre de Tübingen, isolado na loucura.
Hegel, diferentemente de Schelling, nunca mais o visitará e em nenhum dos seus
escritos encontramos qualquer menção do antigo amigo, nem de sua poesia ou de suas
idéias. No entanto, o leitor que conhece o poema Eleusis que o jovem Hegel enviara ao
seu amigo Hölderlin, ou a correspondência dos anos subseqüêntes, logo se lembra de
Hölderlin e Schelling quando topa, na Introdução da Fenomenologia, com a inusitada
metáfora que ilustra a essência da verdade como « tontear (ou delírio) báquico »,
aproximando a verdade lógica do processo (estético) de integração
rítmica):
« A aparição (Erscheinung) é o surgir e passar, o [processo] que ele mesmo não
surge e passa, mas que é em si mesmo e constitui a efetividade e o movimento da vida
da verdade. O verdadeiro é assim o tontear báquico no qual nenhum membro escapa
à embriaguez ; » (3, 46, F 53)3.
UFRGS.
G.W.F. Hegel, « Eleusis. An Hölderlin (August 1796) in : Frühe Schriften, Werke in zwanzig Bänden,
Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1981, vol. 1, 230-233.
3 Cf. Phänomenologie des Geistes, Werke in zwanzig Bänden, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1981, vol.
3. Citaremos doravante o volume 3, seguido da indicação do número da página. A sigla F remete à
tradução brasileira Fenomenologia do Espírito, trad. Paulo Meneses, Petrópolis, Vozes, 2002.
1
2
466 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
A frase reitera a idéia, onipresente em toda a introdução, da « natureza líquida »
que unifica os momentos distintos e sucessivos. A ‘liquidez’ reconduz o diverso para a
unidade e, assim, constitui a necessidade lógica (atemporal); ao mesmo tempo, ela
torna perceptível a unidade orgânica da coisa ela mesma no tempo. Em vários
momentos, Hegel ilustra esta idéia com exemplos: o botão, a flor, a fruta e a semente
se recalcam e excluem mutuamente ao longo do tempo, embora todas estas fases
constituam, para « a vida do todo » momentos de « igual necessidade » (3, 12) ; outro
exemplo é o do embrião, da criança recém-nascida e do homem racional como figuras
que desenvolvem no tempo seu potencial, efetuando assim sua verdade intrínseca e
atemporal. (3, 18 e 3, 25).
As metáforas e formulações orgânicas remetem a Herder e Goethe, cujo
pensamento era fonte de inspiração dos amigos do Tübinger Stift 4 . Não é de se
surpreender que Hegel mencione reiteradamente as formas vegetais e animais cuja
constante transformação (Goethe diria: metamorfose) encontra sua verdade apenas
no “apanhado” dos diversos estados mutantes que a planta ou o animal percorrem no
seu desenvolvimento. “Apanhado” é, aliás, o sentido literal do termo alemão de
“conceito” (Begriff) – isto é, o percorrer que apanha, segura e abrange (begreifen) o
ciclo completo das formas sucessivas e as relações mútuas do seu devir. O conceito é
assim concebido como a abreviatura lógica-atemporal que assegura a co-presença
(simultaneidade) dos momentos essenciais do todo, embora as formas distintas
apareçam, para a percepção sensível, ao longo do tempo5.
Para Goethe, a metamorfose designa relações vivas entre a formação do bulbo,
das folhas, da flor, da fruta e das sementes – a permanente e mútua transformação dos
órgãos abaixo e acima da terra, dos externos e internos. Numa escala maior, esta idéia
remete ao que Kant chama de “aventura da razão”: à hipótese de uma progressiva
diferenciação das espécies - os animais aquáticos transformando-se pouco a pouco em
criaturas do pântano, estes finalmente em mamíferos 6 . Ora, num outro plano –
filosófico e estético – esta se torna a aventura dos amigos do Tübinger Stift : trata-se
Numa das discussões sobre a passagem da experiência à idéia, em 1794, Goethe desenha, para Schiller,
uma « planta simbólica » que fixa no espaço da folha os momentos da metamorfose do bulbo até à
semente. O jovem Hölderlin teve oportunidade de assistir a algumas destas discussões.
5 J.W. von Goethe, Schriften zur Morphologie, in Sämtliche Werke, Frankfurt am Main, Deutscher
Klassiker Verlag (DKV) vol. 24, pp. 91-161: “Gestalt-, Verwandlungs- und Vergleichungslehre. 17881794”.
6 I . Kant, Kritik der Urteilskraft, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1977, # 80, p. 375.
4
Kathrin Holzermayr Rosenfield | 467
de apanhar, segurar e abranger espiritualmente o que o tempo físico e banal separa,
artificial e arbitrariamente, na sucessão.
Mais de uma década antes da publicação da Fenomenologia, Hölderlin já
colocara sua reflexão estética no marco destes problemas levantados por Goethe e
Schiller. Fiel às preocupações dos grandes mestres, suas cartas a Niethammer esboçam
o problema da passagem que levaria da experiência à idéia. Tentando romper a
fronteira (kantiana) entre entendimento e razão, entre a vivência e o intelecto7, o jovem
poeta defende a idéia de que a experiência estética (o que ele chama de « sentido
estético » e « lógica poética ») suspenderia o hiato entre o sensível e o intelectual8.
Indo além das preocupações estéticas de seu amigo poeta, Hegel dá um sentido
metafórico-conceitual ao delírio báquico: a ritmicidade solta e tonta dos ritos
dionisíacos viabiliza no imaginário clássico a reintegração das categorias sociais
hierarquicamente separadas na totalidade vital da natureza cósmica (imaginário esse
que voltará à tona, de novo, no romantismo, na juventude de Nietzsche ou no
movimento hippie do século XX). O vigor dionisíaco devolve o pensamento e a
sensibilidade à unidade maior da vida como um todo biológico-estético-e-espiritual.
Essa idéia que preocupará todos os românticos, estava no cerne das reflexões de F.
Hölderlin 9 e de Schelling, quando esboçaram o plano para um sistema estéticofilosófico capaz de suspender (ultrapassar e manter) as diferentes formas da
experiência sensível e intelectual. Embora seja hoje difícil ver Hegel como um
simpatizante deste tipo de projeto, seu sistema mostra ainda claros traços das
formulações do Mais antigo fragmento de sistema do Idealismo alemão, que
Este problema está no centro das preocupações de Goethe, tanto nas conversas com Schiller em 1794
como também nos ensáios e nas cartas mais tardías, nas quais Goethe explica suas relações com a
filosofia, em particular de Kant. Cf. DKV, 24, 442 Efeitos da mais nova filosofia; DKV 24, 447
Anschauende Urteilskraft – A faculdade de julgar intuitiva; DKV 23, 451 Bildungstrieb - Pulsão de
formação; DKV 24, 449 Bedenken und Ergebung
8 Em 24/02/1796, Hölderlin escreve a Immanuel Niethammer (editor de uma revista filosófica de Iena)
anunciando as grandes linhas de seu projeto estético, que procura uma justificação teórica dos
fundamentos do sentido estético e da imaginação poética : « Nas cartas filosóficas procurarei encontrar
o princípio que me explica as divisões [distinções] a partir das quais nós pensamos e existimos, e que é,
no entanto, capaz de fazer desaparecer a contradição […] entre o sujeito e o objeto, entre o si-mesmo
(Selbst) e o mundo, e, até, entre a razão e a revelação; [procurarei fazê-lo] de modo teórico, na intuição
intelectual, sem recorrer ao auxílio de nossa razão prática. Para tanto, precisamos de sentido estético e
eu chamarei minha cartas filosóficas de « Novas cartas sobre a educação estética do homem ». Nestas,
eu farei uma transição da filosofia à poesia e à religião. »
9 Cf. F. Hölderlin, Observações sobre Édipo e Antígona in K. Rosenfield, Antígona – de Sófocles a
Hölderlin, Porto Alegre, L&PM, 2000, pp. 385-408. Trad. francesa, Antigone. De Sophocle à Hölderlin,
Paris, Galilée, 2003; trad. EUA, Antigone. Sophocles’ Art – Hölderlin’s Insight, Davies Group, Aurora,
Colorado, 2010.
7
468 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
valorizavam o fluxo, a transição, a transformação dinâmica das determinações
abstratas. Daí a estranha combinação de um duplo ponto de vista – de um lado, lógicoatemporal, de outro, histórico-phenomenológico – que orientará o olhar do filósofo na
Fenomenologia e também na Estética.
A idéia do ritmo unificador subjaz ao modo filosófico de considerar o tempo e à
crítica hegeliana do conceito de tempo na matemática. Hegel distancia-se de uma
concepção abstrata (que prédomina na física e na matemática), considerando o tempo
como o movimento constitutivo da própria coisa, como a essência de seu vir-a-ser
orgânico. Diferentemente do formalismo de Kant, Hegel não concebe a coisa como
tendo seu ser e sua verdade (incognoscíveis) em si mesma, nem concebe a percepção 10,
o conhecimento e o saber como processos capazes de exteriorar o que há de verdadeiro
e efetivo na coisa. Nos limites do tempo-espaço da vida humana (comunidade, polis,
Estado) aparecem formas históricas. Mas o espírito pode por assim dizer ‘telescopar’
as formas sucessivas e imaginar os diferentes estados (historicamente separados)
como co-presentes. É nesta perspectiva que a surpreendente metáfora dionisíaca
adquire seu sentido. O «tontear» (Taumel) da possessão báquica designa menos o
delírio no sentido banal da palavra do que um movimento fluido, não orientado para
um fim determinado (ação na vigília). Para quem não resiste ao dom divino de Baco, o
« tontear » se torna uma entrega liberadora: abertura simultaneamente ativa e passiva
às forças que movem o cosmos e um reencontro com a harmonia que o mantem unido.
Hegel sabia certamente que o thiase, a comunidade dionisíaca reunida para cortejos
rituais, simboliza a ultrapassagem das fronteiras sociais e políticas estabelecidas,
alvejando a conciliação não somente de todas as camadas e categorias sociais, mas
também a fusão do humano com o animal, o vegetal e o mineral. A fluidez deste
movimento torna líquidas as determinações convencionais e introduz numa outra
esfera – o outro tempo e espaço do espírito – onde todas podem harmoniosamente
coexistir como saber. O tontear báquico remete, portanto, a uma incomensurabilidade
entre o tempo da vivência cotidiana e o tempo de uma Necessidade todo abrangente.
Para chegar a esta visão « báquica » da verdade, Hegel inicia com uma critica
da noção do tempo na matemática pura/imanente (que « não põe o tempo como tempo
frente ao espaço »), apontando também uma deficiência da matemática aplicada.
Cf., neste sentido, a formulação relativa a percepção: « isto é ; […] a consciência por sua vez é, nesta
certeza, apenas como puro eu ; ou eu sou nisto apenas como puro este e o objeto como puro este… » 3,
82.
10
Kathrin Holzermayr Rosenfield | 469
Embora esta trate do tempo e do movimento, diz Hegel, ela toma da experiência as
proposições sintéticas que concebem o tempo e o espaço como exteriormente dados; o
engodo desta suposta exterioridade consolida-se imaginariamente nas demonstrações
da física e da matemática aplicada, por exemplo, na demonstração da relação do tempo
e do espaço na queda livre. Contra este uso do conceito do tempo, uma crítica filosófica
da matemática mostraria os limites do conhecimento empírico e a necessidade de um
outro saber, para o qual o tempo não é medida externa e descontinuidade, mas a
própria vivacidade da coisa e do saber-da-coisa: automovimento. Hegel concebe,
assim, o tempo como « pura inquietude da vida » e como « diferenciação absoluta »
das próprias coisas e do espaço ele mesmo (3, 45, F 52), como « processo que produz
e percorre seus momentos » concretos (3, 46, F 53).
Em outras palavras, o tempo, para Hegel, não é “a contrapartida do espaço que
forneceria a outra parte da matemática pura”, mas ele é “o próprio conceito
estando/sendo-aí” (der daseiende Begriff selbst). Como tal, o tempo escapa ao
princípio da grandeza (diferença demunida de conceito) e ao princípio da igualdade
(unidade abstrata e sem vida), que são incapazes de ocupar-se com a pura inquietude
da vida. (45-46, F 52-53):
A filosofia contempla […] o efetivo, o que se põe a si mesmo e o que está em si
mesmo vivo, o ser-aí no seu conceito. É o processo que se produz seus momentos
e os percorre, e este movimento total constitui o positivo e sua verdade. Esta inclui
tanto o negativo como aquilo que seria chamado de falso, se pudessemos
contemplá-lo abstraíndo dele. (46, F 53)
Hegel não compreende, portanto, o tempo como grandeza11 ou como a medida
do movimento (o que faria do tempo um dispositivo externo ao pensamento, tal como
é concebido na matemática aplicada). O tempo é constitutivo do saber verdadeiro, ele
é o próprio partir de e retornar a si mesmos da consciência e do pensamento, seu
progressivo e constante extrair-se de determinações fixas. No âmbito deste outro
tempo, os enganos e engodos da aparência habitual tornam-se parte constitutiva do
desenvolvimento da verdade. Esta não se dá em um dos momentos sucessivos do
tempo quantitativo, porém apenas no todo do movimento. Hegel sublinha que o
“familiarmente conhecido (das Bekannte) é, por isso mesmo [isto é, devido à
« O princípio da grandeza, da diferença sem conceito, […] é incapaz de apreender [o tempo] aquela
pura inquietude da vida e da diferenciação absoluta. » (3, 46, F 52)
11
470 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
familiaridade], o não reconhecido” (3, 35). Estes conhecimentos pressupostos como
pontos fixos e válidos para o pensamento raciocinante conduzem o pensamento a
enganar-se e a enganar os outros, porque eles se subtraem ao movimento e ao tempo
do espírito que suspende os pensamentos fixos, tornando-os líquidos no conceito que
apanha e abrange os momentos de seu próprio devir12.
A concepção hegeliana do tempo, que desemboca na sua concepção da lógica e
do movimento do conceito, parte de duas maneiras distintas de pensar o tempo que já
encontramos (embora de modo implícito e metafórico) nas Observações
hölderlinianas: o poeta assinala, com efeito, que podemos ver o tempo, de um lado,
como sucessão, de outro como permanente co-presença, como simultaneidade, que
permite aceder à idéia da totalidade e da unidade dos momentos sucessivos.
É esse o ponto de vista que Hölderlin escolhera para a sua análise da tragédia :
ele vê os heróis e heroínas trágicas na encruzilhada destes dois tempos, como aqueles
que administram/geram no tempo e no mundo humanos o outro Tempo divino 13. O
Tempo dos deuses é todo-abrangente (mais do que infinito) e, neste sentido,
atemporal. O que interessa Hölderlin é a lógica da poesia trágica, isto é, a forma através
da qual a própria experiência viva apresenta-se nas suas articulações essenciais e
necessárias que constituem o « pensamento ou lógica poéticos ». A lógica poética traz
à tona o que é essencial na existência humana, isto é, o paradoxo de um modo de ser
(humano) que se desenvolve no tempo da sucessão, mas cuja verdade aparece quando
a experiência no tempo é pensada à luz de um outro modo de ser : o do « tempo
torrencial » ou o « torrencial espírito do tempo », que tudo
conecta e une,
ultrapassando o entendimento humano. No ritmo que articula as representações da
tragédia Hölderlin detectou a forma matricial desta experiência do pensamento que
Hegel destaca como o movimento do conceito. Este se extrai da sua determinação no
tempo físico, acedendo à possibilidade de um outro saber, que comprime ou suspende
as coisas sucessivas e distintas na copresença atemporal do todo.
Para além da problemática poética estrita da tragédia, Hegel aborda a totalidade
dos fenômenos sob o enfoque do ritmo unificador. A introdução começa com
explanações quanto às formas diversas e sucessivas unidas no movimento do seu
12 Cf. 3, 37 : os pensamentos firmes tornam-se líquidos « quando o puro pensar, a imediatez interior, se
reconhece como momento ou na medida em que a certeza pura de si abstrai de si (sem descartar-se,
sem colocar-se de lado) mas abandonando o fixo do pôr-se a si mesmo ».
13 Nas Observações a Antígona, 2, Hölderlin assinala na análise do hino a Danaé, que seria preferível
chamar Zeus de « Pai do Tempo » ou « Pai da Terra », porque sua função é a de unir as duas esferas.
Kathrin Holzermayr Rosenfield | 471
aparecer. Os exemplos da planta e da criança (3, 12 e 3, 18) ilustram, para além das
formas sucessivas do aparecer destes objetos, a aparição do movimento contínuo que
liga e concebe (begreift) as diferentes formas de perceber, conhecer e saber. Nele, o
sujeito e o objeto, a experiência e o pensamento revelam-se como o mesmo. A reflexão
sobre a ciência como saber verdadeiro coloca, assim, a questão da essencia do
aparecer/ aparição (Erscheinung) que envolve o tempo. Hegel mostra que a
atemporalidade (ou o Tempo-conceito todo abrangente) do Espírito é a própria vida
dos conhecimentos com suas determinações temporais (formas históricamente
dadas). O que se firmou no tempo dissolve-se (melhor: é suspenso, isto é, continua
estando presente sob a outra forma do lembrado) no movimento espiritual. O
indivíduo, consciência natural, que permanece marcado por uma determinidade
predominante, é, para o espírito mais elevado, um momento inaparente. Seu vir-a-ser
é, para o espírito, um «passado que percorre o indivíduo», mas o indivíduo encontra
no movimento que dissolve as determinações sua verdadeira substância. Dando
unidade aos momentos deste vir-a-ser, o espírito chama de volta as lembranças dos
conhecimentos preparatórios, reconhecendo o que há nelas de inorgânico e exterior
(3, 32, F 41) à livre automovimentação espiritual. O Espírito hegeliano tem, portanto,
uma função meta-histórica que assegura a consistência intrínseca das figuras que
aparecem no tempo:
A substância do indivíduo e mesmo o espírito universal [espírito do mundo]
tiveram a paciência de percorrer estas formas na longa extensão do tempo e de
empreender o gigantesco trabalho da história mundial, plasmando nela […] a
totalidade de seu conteúdo (3, 33, F 42).
O novo conteúdo é a efetividade « estancada enquanto possibilidade », a
« imediatez vencida », a figuração da consciência natural encontra-se reduzida à sua
« abreviatura », isto é, a uma simples determinação-de-pensamento, isto é, um
momento fugaz apenas de um constante processo de “ir adiante”.
Se Hölderlin assinalava, analisava e traduzia este ritmo espiritual da
experiência sensível na composição poética (em particular nas duas trajetórias trágicas
de Édipo-Creonte e de Antígona-Creonte), Hegel rompe as fronteiras da composição
poética. Sua análise da tragédia expõe nas representações dramáticas as formas
seminais do tornar-se líquidas das formas da certeza sensível, da consciência e da
consciência de si. Diferentemente de Hölderlin, Hegel vê nas representações sensíveis
472 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
da arte o esboço ou a primeira figura do livre automovimento que transforma o pensar
em conceito e Espírito absoluto.
A tragédia como duplo percurso: da universalidade ativa à segmentação
do universal (3, 37)
Para Hegel e Hölderlin, a poesia trágica não é apenas uma peça chave da cultura
da antigüidade, mas um momento essencial para se pensar os ideais de consciência de
si, de liberdade e autonomia que a cultura moderna arrisca de petrificar em
pensamentos fixos e determinados (3, 36). A antigüidade promoveu a « formação da
consciência natural » (3, 36, F 44), perfazendo o percurso que transforma a vivência
sensível e cotidiana (a « imediatez vencida » 3,33) em « substância pensada e
pensante ». Mas já na própria época clássica a tragédia põe em cena o risco que corre
este processo ao se solidificar numa abstração meramente pensada. A beleza da
tragédia reside na sua capacidade de dar forma tanto à universalidade ativa da
consciência natural como aos pensamentos fixos (por exemplo, à autodeterminação do
cidadão livre na polis) que tendem a rigidificar-se e exigem ser reconduzidos à liquidez
que lhe confere a potência viva da auto-movimentação.
Antígona e Creonte são figuras deste problema. Antígona acede da certeza
sensível à consciência de si. Sua trajetória equivale à uma análise de tudo o que é
familiarmente conhecido [das Bekannte], pondo como separados e inefetivos os
momentos essenciais dos conteúdos conhecidos pelos costumes (deus, natureza,
sujeito, objeto). A morte trágica de Antígona e o fim infeliz de Creonte são as figuras
complementares da força do entendimento (que Hegel qualifica de «mágica» e
« maravilhosa»), do « poder portentoso-assombroso (ungeheuer) do negativo», da
« energia do pensar ». Nota-se que, para Hegel, não são os personagens individuais
que assim pensariam e representariam individualmente este processo magnífico,
porém a tragédia como um todo nos dá a noção deste movimento (3, 35 ss.).
É a representação da morte trágica no todo harmonioso da peça que surte esta
energia do «eu puro» que nega suas próprias determinações concretas. Na introdução,
Hegel compara este processo com uma morte:
A morte, se quisermos chamar esta inefetividade assim, é o mais terrível; segurar
a coisa morta exige a maior força. A beleza sem força detesta o entendimento,
porque ele exige isto dela e ela não o pode. Mas a vida do espírito é aquela que não
Kathrin Holzermayr Rosenfield | 473
teme a desertificação e a morte – ela alcança a verdade encontrando em si mesmo
o absoluto dilaceramento (3, 36, F 44).
Na representação trágica do heroismo, o indivíduo assume a luta à morte e
conquista assim sua universalidade ativa, isto é, o herói eleva-se sobre tudo aquilo que
o determina nos limites da sua existência histórica14. A vida trágica apresenta-se sob a
forma essencial de sua lógica espiritual intrínseca, a figura dramática é
simultaneamente vida e pensamento.
Tanto Hegel como Hölderlin recorrem a esta forma do pensamento poético
antigo para pensar o problema – diametralmente oposto – da sua própria época. Com
efeito, a vida moderna está marcada pela perda do elã vital na universalidade abstrata
de pensamentos fixos 15 . O entendimento que se rigidifica nas convenções do puro
pensar, esquecendo os momentos do seu vir-a-ser, perde a espiritualidade viva, ele
perde « a força maior e mais maravilhosa, ou melhor: a potência absoluta » que vivifica
o seu trabalho (3, 36, F 44).
Hölderlin menciona este problema no final das suas Observações sobre
Antígona, e expressa a esperança de que a arte contemporânea (patriótica)
proporcione os impulsos para tal autonomia da vida espiritual:
Ora, as formas patrióticas de nossos poétas, onde os há, são entretanto, preferíveis,
pois estas existem não apenas para que se chegue a compreender o espírito do
tempo, mas para que ele seja apanhado, retido e sentido, uma vez que tenha sido
compreendido e aprendido (OA, últimas linhas).
Hölderlin acredita que os poetas modernos, ao recriar o espírito trágico
poderiam fornecer um impulso decisivo para a vida do espírito, ao passo que Hegel
guarda implacável ceticismo diante desta proposta de educação estética. Na
modernidade, pensa Hegel, o indivíduo encontra a forma abstrata já preparada. Ele
14 Em trabalho anterior expusemos detalhadamente a análise hegeliana deste processo espiritual na
tragédia: a conquista da consciência de si livre de Antígona, o retorno de Creonte à intimidade do
sentimento expõem o círculo completo dos momentos do vir-a-ser do conceito de liberdade e
autonomia.
15 Hegel se refere ao « familiarmente conhecido » (das Bekannte, 3, 35, F 43), que, por isso mesmo, não
é reconhecido: sujeito, objeto, Deus, natureza, entendimento, sensibilidade, etc. são pressupostos como
algo familiar e válido. Como tais, estes conteúdos constituem ilusórios pontos fixos « para enganar-se e
enganar os outros ». O trabalho do entendimento (análise que distingue e separa os momentos
essenciais) transforma esses conteúdos présupostos em representações que são a propriedade da
consciência de si pura. Tendo passado pelo poder negativo do espírito, estes pensamentos podem
novamente enrigecer-se. Enquanto pensamentos fixos e determinados eles resistem, mais que as
determinações sensíveis, ao trabalho do conceito, ao esforço de tornarem-se líquidos novamente (3, 3537, F 43-45). É nisto que consiste o desafio da razão.
474 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
se a apropria por um impulso interior imediato, produzindo assim formas
segmentadas do universal, isto é, abstrações mortas da universalidade viva. Tendo sido
produzidas pelo « poder do negativo ou a pura efetividade do entendimento »,
os pensamentos fixos se tornam líquidos tão somente quando « o puro pensar, a
imediatez interior, se reconhece como momento ou na medida em que a certeza pura
de si abstrai de si (sem descartar-se, sem colocar-se de lado) mas abandonando o fixo
do pôr-se a si mesmo » (3, 37, F 45)16. Esta nova figura da história universal não cabe
mais, aos olhos de Hegel, na representação dramática, mas constitui o movimento
proprio da ciência17.
O movimento contra-rítmico do pensamento que concebe-e-abrange
(begreifendes Denken)
Hegel vai além do marco poético no qual Hölderlin analisa o sentido estético e
esboça uma concepção rítmica do pensamento racional.
Na Introdução da
Fenomenologia (3, 34-37, F 42-45) ele insiste sobre a necessidade (e a dificuldade) de
tornar líquidos os pensamentos firmes, sobre a « natureza líquida » do ser, do ser-aí e
do conceito (3, 54), identificando o rítmo do tornar-se líquido das determinações com
o racional:
a necessidade lógica em geral consiste tão somente na natureza daquilo que é,
sendo no seu ser, seu conceito; somente ela é o racional e o ritmo do todo orgânico,
ela é também o saber do conteúdo enquanto o conteúdo é conceito e essência – ou
somente ela é o especulativo (3, 55, F 60).
Prolongando as Observações de Hölderlin sobre a lógica poética da tragédia, a
Fenomenologia retoma e reelabora a idéia do ritmo como constitutivo da lógica – de
uma só e mesma lógica que anima a vida, as representações, os pensamentos.
Hegel refere-se tanto ao fixo do puro concreto (eu como oposto ao conteúdo distinto) como ao fixo de
distintos (von Unterschiedenen) postos no elemento do puro pensar, eles participam da
incondicionalidade do eu) 3, 37, F 45.
17 No ser-aí imeditao do espírito, a consciência tem dois momentos: o saber e a Gegenständlichkeit
(objetalidade) negativa em relação ao saber. Assim, o espírito se desenvolve expondo seus momentos.
Nas figuras da consciênica, na experiência, está a substância espiritual enquanto objeto – melhor dito:
como Gegenstand (o que está contra) – de seu si. O espírito torna-se objeto/GGST, pois ele é aquele
movimento de tornar-se algo outro, objeto de seu si, suspendendo este ser-outro.
16
Kathrin Holzermayr Rosenfield | 475
O saber que ultrapassa os engodos da consciência cotidiana articula e concilia
dois tempos heterogêneos. De um lado, o tempo da sucessão, que desliza de
conhecimentos em conhecimentos, de experiências em experiências, de uma
concreção sensível a outra, acumulando pensamentos e príncípios como se esses
fossem dados (isto seria o engodo da “vida comum” na qual a consciência atribui ao
que é dado um “ser firme e em repouso” – 48). De outro lado, entretanto, reflexão que
abrange os momentos do seu devir assim estanca-se a constante perda (do deslize
pelos momentos sucessivos). O conceito enquanto pensar que apanha (greift) e
abrange (begreift) inverte o primeiro movimento da substituição interminável de um
momento pelo seguinte: no deslizar mecânico do tempo vazio surge, assim, sua própria
contracorrente. No deslize que faz desaparecer os momentos percorridos, a
lembrança ergue-se como refluxo que mantem presente o que passou, de forma que
aquilo que desvanece deve ser considerado como essencial (46, F 53). O que
desvanece não fornece simplesmente uma mortalha positiva, um resto morto, clivado
e exterior ao verdadeiro: o pensamento que concebe e abrange (sentido literal de
begreifendes Denken ; 3, 57, F 62) introduz a um outro saber.
Hölderlin já assinalava a presença desta outra forma de pensar na tragédia,
onde o movimento pensante coincide com uma espécie de outro estado. Também em
Hegel a metáfora do delírio báquico sugere que o saber do conceito elevou-se para além
da consciência cotidiana e da noção comum do tempo 18 . Retomando a idéia do
verdadeiro enquanto « delírio báquico », o final do parágrafo desenvolve a imagem
paradoxal da possessão dionisíaca, na qual os extremos-opostos19 se tocam, revelandose o mesmo. É neste sentido que Hegel sublinha agora a coincidência de movimento e
quietude:
e na medida em que cada um [dos momentos ou membros] , ao isolar-se, também
imediatamente se dissolve [o tontear báquico] é simultaneamente simples e
transparente quietude. No juízo daquele movimento as figuras singulares do
espírito, tais como os pensamentos determinados, não se mantêm (bestehen),
porém eles tanto são momentos positivos e necessários, quanto são negativos e
evanescentes (46, F 53).
18 Cf. 3, 48, F 54: «Na vida comum ou cotidiana, a consciência tem conhecimentos, experiências,
concreções sensíveis, também pensamentos, princípios e, em geral, conteúdos que valem para ela como
dados ou então como ser ou essência fixos e estáveis ».
19 O thiase visa a coincidência do máximo movimento e do total repouso, ele afirma o laço entre homens
através do mergulho numa fusão cósmica que refunde o humano com o vegetal, o animal e o mineral.
476 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Ao contrário do entendimento cotidiano, que desliza entre conhecimentos,
experiências, representações sensíveis, com pensamentos e princípios como se esses
fossem dados fixos e estáveis, o verdadeiro saber suspende este deslize – e, com ele, a
noção vulgar do tempo como sucessão de momentos, apresentando-se, no conceito
como sendo atemporal, como sendo a lógica da própria coisa:
No todo do movimento, [o todo] concebido como repouso (Ruhe), está conservado
aquilo que [no movimento] se distingue e dá ser-aí específico, ele é conservado
como aquilo que se lembra e cujo ser-aí é o saber de si mesmo, tal como este
[saber] é também imediatamente ser-aí (3, 46-47)20
A ciência, portanto, não é nada mais do que o método deste movimento que
aparece na reconfiguração rítmica dos momentos fixos:
A natureza do método científico [é], por um lado, de ser não separado do seu
conteúdo, por outro, de determinar-se seu ritmo através de si mesmo (3, 55, F 60)
O que Hegel chama aqui de « ritmo » é a dissolução dos pensamentos simples
(que são fixos apenas aparentemente), com o movimento do seu devir. O « esforço do
conceito » é precisamente a entrega à natureza líquida da « necessidade lógica » que
dissolve o ser, o ser-aí e o conceito (3, 54). Hegel sublinha assim a diferença entre o
raciocínio e o pensar que apanha-e-abrange (begreifendes Denken). Este último vem
a ser no « ritmo imanente dos conceitos », ele renuncia à irrupção de associações e
representações que parecem oferecer um solo firme ao pensar:
O solo fixo balança e seu movimento torna-se ele mesmo objeto. […] O pensamento
que representa, que desliza pelos acidentes ou predicados, indo além deles, é
impedido no seu deslizar, porque aquilo que na proposição tem a forma de um
predicado, é a própria substância. Ele sofre um contragolpe (3, 58, F 63)
As fórmulas de Hegel lembram o « movimento contra-rítmico » de Hölderlin
que transforma a sucessão de « sentimentos, representações e raciocínios »
no
harmonioso e simultâneo aparecer da representação ela mesma, isto é, do sentido vivo
20 Cf. também 3, 140: « A essência é a infinitude enquanto ser-suspenso (Aufgehobensein) de todas as
diferenças, o puro movimento que faz girar o eixo, o repouso de si-mesmo enquanto infinitude
absolutamente inquieta; a autonomia ela mesma, na qual as diferenças do movimento encontram-se
dissolvidas; a simples essência do tempo que tem, neste ser-igual-a-si-mesmo a sólida figura do
espaço. »
Kathrin Holzermayr Rosenfield | 477
do todo da tragédia21. De modo análogo, Hegel analisa o raciocínio (räsonnierendes
Denken) como uma atitude negativa, que se coloca como um si no qual retornaretrocede o conteúdo, perdendo assim a fluidez rítmica do conceito. Este não possui
um conhecimento exterior do objeto, porém confunde-se com o próprio si do objeto
que se apresenta como o seu devir (3, 57, F 62).
É a partir do princípio do ritmo que Hegel elabora a especificidade da
proposição especulativa, isto é, do movimento ordenado que torna líquidas as partes
distintas de uma frase (sujeito e predicado). No simultâneo progredir e refluir do
movimento entre estas partes desvanece a separação entre sujeito e predicado, o
sujeito não é o ponto fixo22 ao qual são atribuídos diversos predicados acidentais, mas
ele transita e desvanece no predicado. No próprio esforço do raciocínio que procura
dominar e ir além dos predicados, o sujeito descobre-se tomado num movimento que
o une a este outro e no qual se dissolve a ação. Este eu-que-sabe (wissendes Ich) vem
a ser junto com o outro (conteúdo, predicado) que lhe fornece sua sustentação (e não
apenas um atributo acidental). Alguns parágrafos mais adiante, Hegel recorrerá
explicitamente à imagem rítmica do golpe e contragolpe, do fluxo e refluxo que
constituem o mesmo movimento lógico do saber especulativo:
A natureza do juízo ou da proposição que inclui a diferença do sujeito e do
predicado é destruída pela proposição especulativa; a proposição idêntica na qual
se transforma a primeira contém o contragolpe desta relação. – Este conflito da
forma de uma proposição como tal com a unidade do conceito (unidade esta que
destrói a forma da proposição), aproxima-se daquele conflito que ocorre no ritmo
entre o metro e o acento. O ritmo resulta do meio-termo suspenso e da
fusão-unificação de ambos. Da mesma forma, a identidade do sujeito e do
predicado não deveria destruir, tampouco na proposição filosófica, a diferença dos
mesmos, porém sua unidade deve surgir como harmonia. A forma da proposição é
a aparição (Erscheinung) do sentido determinado, ou o acento, que distinguesegmenta [o cumprir de] sua plenitude (der seine Erfüllung unterscheidet); mas o
fato que o predicado expressa a substância e que o sujeito ele mesmo cai no
universal (ins Allgemeine fällt), é a unidade na qual ressoa e desvanece o acento
(3, 59).
Cf. Hölderlin, Observações sobre Édipo, 1.
Cf., 3, 58 : Normalmente fixamos em primeiro lugar o sujeito como o si objetal e fixo
(gegenständlich); de lá propaga-se o movimento necessário na multiplicidade das determinações ou
dos predicados; aqui surge no lugar daquele sujeito o próprio eu que sabe (das wissende Ich selbst)
que é o conectar dos predicados e o sujeito que os sustenta (sie haltende). Na medida em que aquele
primeiro sujeito entra ele mesmo nas determinações, sendo sua alma, o segundo sujeito, aquele que
sabe, encontra no predicado aquele com o qual ele acha já ter terminado e para além do qual ele procura
retornar para dentro de si; em vez de poder ser o ativo que move o predicado (Räsonieren), ele tem a
ver com o si do conteúdo, não devendo ser para si, mas junto com este outro.
21
22
26. HOSPITALIDADE: ALMA DAS RELIGIÕES1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-26
Luiz Carlos Susin2
Huc pauci vestris adnavimus oris.
Quod genus hoc hominum?
Quaeve hunc tam barbara morem permittit patria?
Hospitio prohibemur harenae;
bella cient primaque vetant consistere terra.
Si genus humanum et mortalia temnitis arma,
at sperate deos memores fandi atque nefandi.
Em poucos aqui chegamos a nado às vossas praias.
Que raça de homens é esta?
Que pátria permite um costume tão bárbaro:
somos proibidos até da hospitalidade das areias,
nos declaram guerra e nos vetam pousar sobre a terra próxima.
Se não no gênero humano e na fraternidade entre os braços mortais,
crede ao menos nos deuses,
que lembram o justo e o injusto
(Virgílio, Eneida, Livro I 538-543)
O jovem americano Edward Snowden, ex-analista da Agência de Segurança
Nacional dos EUA, no ano de 2013, permaneceu por um mês na sala de trânsito do
aeroporto de Moscou depois de revelar o poderoso império que controla o cotidiano
das vidas de virtualmente todos os seres humanos numa nova forma de banalidade do
Este texto resultou da conferência de abertura do seminário Ética da hospitalidade realizado em
agosto de 2013 na Universidade Franciscana de Santa Maria-RS, e publicado originalmente sob o título
da conferência, Deus hóspede: hospitalidade e transcendência. Thaumazein v.6, n.12, p. 6-21, 2013.
Aqui está revisado e modificado.
2 Doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, professor permanente do programa de
teologia da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e da
Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. Co-fundador e ex-presidente da Associação
de Teologia e Ciências da Religião do Brasil, membro da direção da Revista Internacional de Teologia
Concilium.
1
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mal que aceitamos como normal e até desejamos sob a justificativa de nossa segurança.
O mais espantoso, depois desta revelação, foi constatar a incapacidade de dezenas de
países aos quais ele pediu asilo, inclusive o Brasil, de oferecer hospitalidade, o que
revela também a implicância e a submissão global de governos importantes ao redor
do mundo nesse novo modo cibernético de controle americano dos cidadãos. É
possível um paralelo instigante entre este jovem e a figura fundadora de Abraão: o
patriarca, depois de transgredir o mandamento sacro do sacrifício do primogênito ao
“patriarca celeste” numa aliança sacrificial de fortalecimento de seu poder, e, em
consequência, depois de revelar assim que no âmago do sacrifício estava, na verdade,
a crueza do assassinato do inocente, precisou fugir de seu clã, de sua pátria, de sua
cultura, e buscar um refúgio. Bersabeia, atual Be’er Sheva, já dentro do deserto ao sul
do atual Israel, era uma “cidade refúgio”, um lugar de proteção para quem fosse
acusado de crimes e, no entanto, estivesse convicto de sua inocência. Nessas cidades
refúgio não se podia tocar no acusado, e ali a hospitalidade funcionava como um
“Direito internacional” para quem sofria hostilidade – note-se a raiz comum de
hostilidade e hospitalidade, como ainda vamos aprofundar. É que em nosso mundo
atual parecemos mais desumanos que os contemporâneos de Abraão quando
pensamos no caso emblemático de Edward Snowden. Há alguns elementos parecidos
na situação do australiano Julian Assange, do Wikileaks, e do jornalista americano
Glenn Greenwald, do Intercept, aqui no Brasil. Não se trata de casos isolados: os
aborígenes de algumas pequenas ilhas da Oceania, com a elevação do oceano já
acontecendo em sua região, tiveram que abandonar suas terras, desde o rei até as
crianças de colo, e não foram recebidos por quem tinha as melhores condições de
hospedá-los, a Austrália. Àquelas ilhas inundadas do Pacífico, podemos associar as
ilhas emblemáticas de Lampedusa e de Lesbos em meio à tragédia dos migrantes sem
hospitalidade que vagam pelo Mediterrâneo, mar tão celebrado na história do
Ocidente. Por outro lado, há o fenômeno humano das patronas do México, mães de
família que se postam ao longo da estrada de ferro para oferecer água e milho aos
migrantes que atravessam a região em busca dos Estados Unidos, mesmo em meio aos
perigos das pandilhas de criminosos que praticam extorsões, estupram e assassinam
migrantes. Finalmente, é importante nomear haitianos, senegaleses, venezuelanos e
todos os que buscam uma vida digna em nosso país.
Luiz Carlos Susin | 481
A hospitalidade, como se constata na cidade refúgio de Bersabeia, é uma das
mais arcaicas regras na formação do Direto, junto à contenção da violência. Se a
hospitalidade se tornou uma prescrição, um dever, é porque pode haver dificuldade
em acontecer, não é algo natural, precisa ser aprendida e cultivada. Na verdade, ela é
um grande risco, é uma prova da qual se pode sair mal, e precisamos tratar também
do medo à hospitalidade, ou da hospitalidade parcial e seletiva. Será necessário levar
em conta também a fragilização e até a perda do ethos hospitaleiro no Ocidente
marcado
pelo
individualismo,
pelo
utilitarismo
e
pelo
economicismo.
Sintomaticamente, neste mundo de mercado globalizante quem mais está tratando de
hospitalidade são os especialistas em turismo, hotelaria, resorts, enfim a hospitalidade
como negócio, o que a contradiz em sua raiz assim como foi conhecida até agora.
Podemos começar parafraseando uma das mais famosas conclusões da filosofia
de Lévinas, que afirma ser a ética a filosofia primeira, a ética como origem mesma da
racionalidade 3 : em nosso caso, a hospitalidade é a ética primeira. Essa fonte tão
primaria e inclusive historicamente tão arcaica no melhor sentido, a hospitalidade
como viga-mestra da ética, do relacionamento humano, exige também uma abertura
interdisciplinar em que o turismo e até mesmo o negócio possam ser justificados e
“redimidos” eticamente. Aqui, porém, vou me ater à dimensão transcendente e sacra
da hospitalidade.
Claudio Monge, frade dominicano de origem italiana que vive há mais de década
em Istambul, escreveu Deus hóspede, uma exaustiva tese de doutorado com seiscentas
páginas de pesquisa ritual e cultural historicamente contextualizada sobre a
hospitalidade, e será a principal referência a que vou recorrer. 4 Outra referência
importante é o livro de Pierre-François de Béthune, A hospitalidade sagrada entre as
religiões.5 Valendo-me do meu trabalho de teólogo, terminarei com a constatação de
que a hospitalidade é a alma das religiões, e as principais narrativas fundantes de
significado das tradições religiosas, seus ritos e seus ensinamentos e mandamentos
poderiam ser interpretados organicamente a partir da prova e da experiência da
hospitalidade. Quando se pensa, por exemplo, no provérbio eslavo de que “receber o
“A moral não é um ramo da filosofia, mas a filosofia primeira” (LÉVINAS, Emmanuel, Totalidade e
Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 284). Lévinas busca demonstrar fenomenologicamente a
anterioridade da ética sobre a ontologia.
4 MONGE Claudio, Dieu Hôte. Recherche historique et théologique sur les rituels de l’hospitalité.
Bucarest: Zeta books, 2008.
5 BÉTHUNE Pierre-François, l’hospitalité sacrée entre les religions. Paris: Albin Michekl, 2007.
3
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hóspede é ter Deus em casa”, isso nos leva a pensar na dupla direção que assume esta
presença divina: o hóspede, o forasteiro, traz consigo o Deus que vem de fora, mas
também quem o recebe, com este gesto de acolhida, com a hospitalidade oferece Deus
ao hóspede.
Desejo explorar esta vertente em primeiro lugar passeando pelas narrativas
míticas que estão na raiz do cultivo da hospitalidade desde a noite dos tempos. Em
segundo lugar me concentrarei na tradição bíblica que nutre as raízes religiosas das
tradições judaica e cristã, vendo ali não um privilégio mas uma provocação na minha
própria tradição. Finalmente, num terceiro ponto, já conclusivo, vou tecer algumas
reflexões sistemáticas.
1 As raízes sacras e os riscos da hospitalidade.
Uma visão superficial da mitologia grega costuma constatar nos deuses, em
primeiro lugar, as sombras arcaicas do desejo, da rivalidade, do conflito e da guerra.
Mais do que propriamente éticos, seriam “deuses caprichosos”. Há boas razões para
isso, mas nas narrativas multifacetadas dos deuses há também o seu contrário. Por
exemplo, a biografia do mais famoso dos deuses, Zeus, o deus luz: entre seus atributos
está também a defesa dos forasteiros. Ele vigia sobre o tratamento dado ao forasteiro
e castiga os maus-tratos, colocando à prova a capacidade de hospitalidade dos seres
humanos. Ele é o Zeus Xenios. A palavra grega xenos nos remete mais facilmente hoje
à xenofobia, que traduzimos como “medo diante do forasteiro”. É uma realidade
humana: temos medo ao estranho, ao desconhecido. E hoje assistimos impotentes ao
crescimento de novas formas de xenofobia num mundo mais globalizado que traz
novos perigos embutidos nos relacionamentos humanos. No entanto, antes de xenos
significar o que é estrangeiro ou estranho, significava hóspede. Não são propriamente
hóspedes os que são nossos parentes e vizinhos, os que tem alguma familiaridade
conosco. Hóspedes são, mais propriamente, os que vem de fora, os estranhos, os
forasteiros. Outro título de Zeus Xenos é o de Philoxenon. É a disposição à xenofilia,
ou, para ser mais exato com a virtude da hospitalidade segundo Aristóteles, a filoxenia.
Trata-se da alegria, do prazer e da ânsia por receber a visita do estranho, recepção do
desconhecido, aventura de travar um novo conhecimento. A xenofilia não anula o risco
de hospedar o desconhecido e portanto a existência de sentimentos xenófobos. Mas,
Luiz Carlos Susin | 483
na ambivalência, a xenofilia pode triunfar sobre a xenofobia, vencendo assim a
provação e descobrindo, como nos ensinam sociedades tradicionais, que sob as roupas
normalmente pobres do peregrino se abrigava o próprio Deus. Na tradição bíblica se
trata de encontrar Deus no encontro com o pobre, o órfão, a viúva e, justamente para
o nosso caso, o estrangeiro: “eu era peregrino e tu me acolheste” (Mt 25, 35b).
Portanto, na fragilidade e na vulnerabilidade de quem não tem credenciais para ser
hospedado com honras já estabelecidas, transcende-se tudo o que há neste mundo
para receber, na nudez de quem chega, a pureza da transcendência, inclusive da
transcendência divina.6
No entanto, a ambivalência, a percepção da bipolaridade que está na raiz desta
experiência pode ser encontrada nas palavras e seus desdobramentos, desde a língua
mãe das línguas indo-europeias, o sânscrito. Vamos viajar mais um pouco pelas
palavras: da raiz Ghostis, que se pode traduzir por “espírito” (Geist em alemão, Ghost
em inglês), deriva também a ambivalência de hostes e hospes, ou seja, o que é hostil,
inóspito, e também o peregrino que suplica hospitalidade. Assim, hostilidade e
hospitalidade são duas possibilidades diante do outro que é estrangeiro, o
desconhecido e estranho a nós e ao nosso grupo, ao nosso povo. Podemos acolher como
hóspede ou fazer-lhe guerra com vantagem por ser ele mais frágil em sua condição de
deslocado, por não ser da terra. Podemos arregimentar nossas hostes de defesa e
possível agressão diante da sua provocação poderosamente ética ainda que em
fragilidade
ontológica.
Nesse
mesmo
campo
semântico
encontramos
surpreendentemente a palavra alemã Gast e inglesa Guest justamente para nomear o
hóspede. Retornemos, por um momento, à sua origem: o “espírito”. Aquele que chega
desde a sua estranheza ao nosso mundo pode carregar consigo um espírito que não
necessariamente é bom, que pode trazer a maldição e a morte. Pensemos na viúva de
Sarepta ao hospedar Elias e que, com a morte do próprio filho à chegada de Elias,
reclama amargamente com o profeta: por onde passa produz morte (Cf. 1Rs 17, 17-18).
Mas, como ainda veremos, normalmente não é assim, o hóspede é uma promessa de
bênção, uma abertura ao futuro.
Na cultura grega e depois na cultura romana se encontra uma feliz aliança entre
Héstia e Hermes, depois Vestal e Mercúrio, da descendência de Zeus ou Júpiter. Héstia
é a divindade feminina do lar e da hospitalidade, cuja alegoria retorna com o
6
Cf. MONGE Claudio, Dieu Hôte. p80ss.
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Renascimento. Ela é generosa e vigilante, protege o lar e o encontro dos que recebem
e são recebidos na intimidade da casa, junto ao fogo – lar para o forasteiro. Seu aliado
exterior é Hermes, divindade enviada pelos caminhos ao encontro dos que peregrinam
pelos campos ( per agri, em latim, donde o per-egrino). Ele carrega consigo o segredo
do Mistério em si mesmo inefável e indizível – o que é hermético. Mas no
acompanhamento do peregrino, Hermes vai explicando, interpretando, expondo a
“hermenêutica” do seu Mistério inefável e transcendente. Por isso ele é o comunicador
de grandes notícias, o “evangelizador”, o portador de palavras que transformam a
estranheza em familiaridade, transportando o peregrino para o lar. Rembrandt nos
deixou um quadro de Zeus e Hermes se apresentando em vestes de peregrinos, que,
depois de serem rejeitados por toda a cidade para o pernoite, chegam à pobre casa de
Filomena e Báucide. São recebidos conforme diz o nome “Filomena”, com toda a força
da amizade. Em troca da comida enchem-lhes de benefícios. Hermes é quem fala por
Zeus, e por isso ele é símbolo de toda mediação do sagrado e de seus benefícios. É
curioso pensar que Mercúrio, o Hermes romano, foi substituído na religiosidade
popular cristã por Santo Antônio, que se costuma castigar de alguma forma, como se
praticava com Mercúrio, quando demora em cumprir seu papel de mediador dos
benefícios que esperamos. Mas é tentador também pensarmos nos paralelos bíblicos
do anjo Gabriel, portador da palavra que, ao chegar, precisa começar sua saudação
acalmando o temor. Ou então o anjo Rafael, companheiro de Tobit, que orienta nos
recursos da medicina e leva o filho para a casa do pai a fim de curá-lo, desaparecendo
quando os da casa pretendem retê-lo.
Os ritos de hospitalidade, segundo as regras mais antigas, são absolutamente
indispensáveis, e não cumpri-los seria uma grave falta, pondo em risco inclusive o
hospedeiro. Estes ritos se dão nas passagens entre o exterior e o interior, junto à porta
principal, ou entre as fronteiras. As embaixadas, desde as primeiras civilizações,
apresentam suas credenciais para serem recebidas por onde forem. Já nas portas são
os anfitriões que saem abrindo a porta principal e se postando no átrio, de face para a
outra parte, exatamente o que diz a palavra anfi-trião. Não há hospitalidade sem
anfitrião. Ali, no átrio, junto à porta, como nas fronteiras, se desenrolam os ritos de
hospitalidade através de uma sucessão de gestos quase fixa: Em primeiro lugar o
convite à aproximação através da invocação; em segundo lugar o reconhecimento do
outro através da saudação; em terceiro lugar a apresentação dos nomes próprios de
Luiz Carlos Susin | 485
cada parte; em quarto lugar a eventual palavra de intercessão quando se trata de uma
embaixada, de um pedido por quem se representa. Assim, a palavra é criadora da
hospitalidade, e, nesse sentido, é tecida de ethos, criação de relacionamento.
Mas a palavra é normalmente acompanhada de dons, de presentes. Segundo a
antropologia do dom inaugurada por Marcel Mauss e desenvolvida atualmente pelos
cientistas sociais anti-utilitaristas, os dons são a forma de criar relações e de
aprofundá-las em laços permanentes. Eles criam e reforçam o relacionamento.7 Podese explorar também sua etimologia. Em francês, um cadeau ou um souvenir é tudo o
que enlaça, que cria laço e mantém a memória de um encontro. Já um regalo ou gift
em inglês demonstra o lado gracioso do dom e o prazer de dar prazer ao outro. Mas o
nosso aparentemente prosaico “presente” vai direto ao coração do dom: marca
presença estável, cria um laço duradouro pelo qual a resposta é invariavelmente a
confissão de uma obrigação: “obrigado!” É uma palavra genial de nossa língua, que
confessa o laço criado e a dívida que obriga na mesma lógica do dom com novos
presentes, ou seja, novas formas de presença. Por isso o mesmo medo à hospitalidade
se mostra no medo aos presentes, porque testemunham a presença de outro, ao qual
ficamos obrigados, num círculo de dons e benefícios obrigatórios virtualmente ao
infinito.8
Não há um momento fixo para a troca de presentes no ritual mais abrangente
da hospitalidade, mas é razoável e mais comum que o hóspede se apresente com seu
presente e que o hospedeiro presenteie o hóspede na sua despedida. Pode-se
estabelecer uma verdadeira guerra simbólica de presentes, pois quem dá mais
presentes coloca em dívida o outro de tal forma que o outro se obriga a nova visita, seja
o hóspede que se sentirá compelido a voltar para seu hospedeiro, seja o hospedeiro que
poderá se sentir na obrigação de visitar seu hóspede ou terá disposição para receber
novamente seu hóspede. Seja como for, as oferendas mútuas, mesmo entre seres
humanos e divinos, são parte essencial do rito de hospitalidade e criação de
familiaridade.
Cf. SUSIN, L.C; FLACH J.L. O paradigm do dom. Teocomunicação, vol. 36, p179-208, 2006.
É também curioso que a mesma palavra Gift, que em inglês é um dom, em alemão é “veneno”, donde
se pode deuzir um dom amargo e contagioso também inesquecível que impele a um círculo de dons
malévolos, de vinganças e hostilidades. Ao círculo das famosas “três graças” – dar, receber, retribuir –
pode-se juntar o perigoso círculo das três formas das bruxas em dar, receber e retribuir. A casa, o
comportamento e as relações de uma bruxa são o avesso de Héstia ou Vestal, são a perversão da
hospitalidade e do dom.
7
8
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No âmago do rito da hospitalidade, está a oferenda por excelência, que ao
mesmo tempo tem a ver com o corpo e com o espírito: a bebida e a comida, desde os
banquetes diplomáticos até o cafezinho à visita. É sobretudo nos ritos de hospitalidade
que o ser humano se revela diferente dos outros seres vivos em relação à comida: come
e bebe sem necessidade de ter fome ou sede, assim como mata sem necessidade de
comer. Um coquetel de recepção não é lugar para matar a fome, mas para comemorar,
consagrar e comungar. E assim celebrar, tornar sólida e pública a união em torno da
sua motivação. É, portanto, um banquete ou um ágape, um ato de reunião amorosa,
para usar um termo tão caro ao Novo Testamento.
Os autores citados na introdução, Monge e Béthune, se dedicaram à pesquisa
sobre a hospitalidade depois de experiências que os marcaram na Índia, na China, no
Japão e na Turquia, entre hindus, budistas e muçulmanos. É a área do rito do chá, um
ritual de delicadeza até os mínimos detalhes nos gestos corporais, nas palavras, no
modo de dar e receber a taça de chá, cada detalhe significando um elemento da
hospitalidade. Em torno do chá se desenrola a mais profunda e espiritual experiência
de encontro, do qual todos saem mais humanos. É claro que entre nós há paralelos
muito significativos, inclusive o nosso cafezinho ou uma cuia de chimarrão.9
Todos temos algo a contar em relação à hospitalidade. Assim, em uma ocasião, ao levar da ANAÍ, a
Associação Nacional de Ação Indigenista, uma medicação para uma comunidade guarani sobre a serra
de Maquiné-RS, esperei na beira da clareira, já à vista dos índios que se movimentaram preparando um
banco e o chimarrão. Quando ficou tudo pronto, o cacique mandou um adolescente me buscar e
permaneceu esperando em pé com uma cuia de chimarrão pronto. Em seguida sentamos para a troca
de palavras e para a oferta e recebimento dos medicamentos. Antes da despedida mandou um jovem
como guia para que eu visse de diversos ângulos desde cima a soberba paisagem montanhosa que os
cercava. Impactaram-me também experiências de hospitalidade em alguns países da África. Em Dacar,
eu andava inquieto pelas ruas por causa do que julguei ser um assédio de vendedores de artesanato. A
um certo momento, caminhando com um de cada lado, acabei desabafando que, se comprasse tudo o
que me estavam oferecendo naqueles dias, deveria levar comigo ao menos meio Senegal. A resposta que
me surpreendeu foi que eles não estavam se importando se eu iria comprar ou não, mas que, visto que
eu os estava visitando, queriam andar ao meu lado para conversar comigo, rir junto, era a sua
hospitalidade. Confesso que fiquei realmente desarmado. Na mesma cidade me interessei por uma
oferta de um libanês e ele imediatamente me convidou para ir ao fundo da loja e tomar um chá com ele.
Ao perceber minha hesitação, ele explicou que não gostava de fazer negócio algum sem primeiro criar
uma relação amistosa em que o negócio se tornaria parte de uma troca entre amigos. Por isso sempre
precedia as tratativas de negócio com um chá apropriado. Entendi nas capitais africanas que mesmo a
maioria dos taxistas conduzem com espírito de hospitalidade e não como meros cocheiros ou lacaios.
Uma vez negociado o percurso e o preço, a conversa se direciona invariavelmente para os sentimentos
do hóspede de seu país: se está se sentindo bem, se necessita alguma informação que possa facilitar, se
está gostando do que está experimentando, se pode mostrar algo que julga interessante. Mas a maior
experiência, ao menos até agora, me foi reservada para uma região de grande beleza e pobreza ao mesmo
tempo, na África profunda junto à fronteira da Uganda com a Ruanda, numa aldeia chamada Rushoka,
em que fui visitar uma comunidade de freiras missionárias brasileiras. Depois de alguns dias fui
convidado para uma comida na casa modesta de um empregado do posto de saúde administrado pelas
irmãs. Ao anoitecer fui acompanhado por uma das irmãs, que me deixou de sobreaviso sobre a
necessidade de fazer o meu discurso quando chegasse a minha vez. Na beira do milharal esperavam-nos
9
Luiz Carlos Susin | 487
2 Dois testemunhos bíblicos da hospitalidade como alma de toda religião
A figura fundadora da tradição bíblica é Abraão. Seguindo as indicações de Karl
Jaspers sobre a era axial, podemos situar a formação e fixação literária desta figura
fundadora justamente no tempo dos profetas de Israel, que coincidem com a virada
dos tempos pré-axiais para a era que até hoje é eixo do humanismo religioso a inspirar
a história da humanidade em momentos de crise. Entre os anos 900 e 200 antes de
Cristo, toda a vasta região que engloba a China e a Índia, o Oriente Médio e a Europa
mediterrânica passaram por uma “grande transformação”, nas palavras do título do
livro de Karen Armstrong sobre a era axial do ensaio de Jaspers.10 Em resumo, tratase da passagem de sociedades tribais fechadas, baseadas em leis extremamente
simétricas como a vingança e o sacrifício e com a distinção clara entre amigo e inimigo,
para sociedades mais abertas, baseadas na ética da regra de ouro e da compaixão, na
benevolência e nos riscos interculturais e inter-religiosos. É também a passagem dos
deuses caprichosos ao Deus ético. Em termos bíblicos, é caracterizada pelo bordão
profético: misericórdia e não sacrifício. Nesse contexto a memória de Abraão é
desenhada conforme este exigência profética.
A aventura de Abraão, cujo nome significa “pai iluminado” ou “pai divino”,
poderia ser comparada à aventura da relação entre deuses e humanos na Grécia, mas
na verdade é uma aventura bem mais humana. No centro de sua ultrapassagem axial
está a prova do sacrifício do primogênito, como aludimos na introdução (Cf. Gn 22).
Entre as duas ordens, a sacra ordem estabelecida pela religião da tradição, e a segunda
e surpreendente ordem que revela a violência assassina sob o manto da sacralidade,
Abraão se decide pelo “não sacrifício”, o que o expulsa do sistema sacro tradicional,
as crianças que nos conduziram até a casa. À porta, marido e mulher sorridentes me secundaram, um
de cada lado. Entreguei o meu presente, uma garrafa de cerveja cuja água vem das fontes do rio Nilo,
uma bebida preciosa para eles. Levaram-me a uma poltrona decorada com guardanapos no encosto e
nos braços. A irmã, que já era mais familiar, sentou-se num banco como os da casa. O primeiro ritual
foi o de lavar as mãos para depois se servir dos dedos como talheres “com temperatura e sabor”. As
comidas, servidas para todos na mesma bacia, se sucediam sempre com o “homem branco hóspede” em
primeiro lugar. Depois se seguiram os cantos, e finalmente os discursos, começando pelo mais novo, de
apenas quatro anos, até chegar a vez da mãe e do pai, e finalmente do hóspede, que é escutado como
quem recebe uma bênção. À saída, novamente o acompanhamento até o limite ou a fronteira do
milharal, agora por toda a família. O menor de todos entregou o presente da família, uma bola feita de
fibras vegetais ao hóspede que veio do país do futebol. Uma noite inesquecível, que ficou na alma, na
saudade que não passa, na certeza de um mundo amigável, porque no coração da África há pessoas que
se tornaram familiares para sempre.
10 Cf ARMSTRONG Karen, A grande transformação. O mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e
Jeremias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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tornando-se um nômade vagando por desertos perigosos, vulnerável e necessitado de
hospitalidade. Mas Abraão, que decide manter a vida do outro ainda menino a
expensas de sua própria vida, tem um seio espaçoso, regaço capaz de acolher, o que
será lembrado nas narrativas de Jesus no texto de Lucas: o seio de Abraão é figura de
justiça e de bem-aventurança para o pobre Lázaro, figura da hospitalidade celeste (Cf.
Lc 16,19ss). O lugar clássico da constituição hospitaleira de Abraão é a narrativa da
tarde em que três peregrinos se aproximam de sua tenda e são recebidos com ânsia e
generosidade (Cf. Gn 18). Abraão prostrado roga para que entrem, comam e
descansem antes de retomar o caminho. Os seus hóspedes lhe deixam, em
contrapartida, uma promessa de posteridade, portanto promessa de futuro. Na
releitura cristã, os três peregrinos passaram a ser considerados uma pré-figuração da
Trindade. O ícone de Andrey Rublev é o mais celebrado nesta releitura cristã um tanto
controvertida entre as três grandes tradições abraâmicas – judeus, cristãos e
muçulmanos - embora convirjam de que se trata de uma experiência de hospedagem
divina na hospitalidade oferecida aos peregrinos junto à tenda. Prosseguindo o relato,
os peregrinos revelam a Abraão que irão anunciar a Sodoma e Gomorra sua destruição
por causa de sua abominação. A que se deve a abominação destas cidades? Estamos
habituados ao clichê da violência sexual, especialmente homossexual, a sodomia. Mas
a própria narrativa, sem excluir o papel da violência sexual, diz muito mais, em
contraste com a hospitalidade de Abraão: os peregrinos colocam à prova a
hospitalidade e são mal recebidos pela cidade, que quer se aproveitar dos forasteiros
para torna-los suas vítimas expiatórias, usá-los para descarregar neles a sua
hostilidade, na forma de violência sexual. Este é o pecado central de Sodoma e
Gomorra: a sua hostilidade ao invés da hospitalidade. Trata-se, portanto de uma
narrativa em dois atos antitéticos entre si, Abrão hospitaleiro por um lado e Sodoma e
Gomorra hostís aos forastereiros por outro. O melhor intérprete da relação inóspita,
anti-abraâmica, das cidades de Sodoma e Gomorra, é o próprio Jesus quando anuncia
para as cidades de Cafarnaum, Corozaim e Betsaida e para as cidades que não recebem
os enviados divinos um destino mais trágico do que o de Sodoma e Gomorra: porque
não foram hospitaleiras para com a visita que as podia salvar (Cf. Mt 11, 20ss; Lc
10,12ss.). Ele apostrofa também, de forma dura: “Muitos virão do levante e do poente
para tomar parte na festa com Abraão, Isaac e Jacó no reino dos Céus, enquanto os
filhos do Reino serão jogados em trevas exteriores” (Mt 8, 11-12). Assim também chora
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como os profetas sobre Jerusalém, constituída para ser a sede da justiça, mas incapaz
de reconhecer o dia da sua visitação. Inóspita e violenta, Jerusalém cairá por si mesma,
sob os golpes de sua própria hostilidade (Cf. Lc 19, 41ss). Voltemos a Abraão diante da
tragédia anunciada de Sodoma e Gomorra: assim como ele ousou não sacrificar por
mais sacro que fosse o mandamento, também ousa interceder hospitaleiramente pelas
cidades hostis que endureceram sua postura inóspita. Abraão chega a barganhar para
salvaguardar o injusto junto com o justo, ainda que houvesse apenas pouquíssimos
justos que seriam, segundo a narrativa, retirados em fuga na madrugada, sem sequer
uma despedida. A barganha de Abraão é a barganha da hospitalidade insistente,
assimétrica, absolutamente generosa e ousada, que mereceu a Abraão ser chamado o
amigo de Deus e referência fundadora das tradições religiosas do Oriente Médio, que
hoje, todas somadas, são a maior referência do planeta. Nesse momento de urgente
necessidade de hospitalidade entre as religiões para que haja paz entre os povos nunca
será demasiado retornar a esta figura fundadora da religião da hospitalidade radical.
Já a figura fundadora do Novo Testamento é o profeta de Nazaré, donde,
segundo Natanael, não poderia vir nada de bom. Lucas diz de seu nascimento que se
abrigaram junto aos animais porque “não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,
7). Já Mateus joga com o contraste entre os sábios de outras religiões e as autoridades
que recusam o recém-chegado. E no presépio, desde a Idade Média, se lembra Isaias
1, 3, em que o burro e o boi reconhecem seu senhor mas o povo eleito sequer
compreende isso. João resume lacônico e trágico, ainda que salvando a situação pelo
fio dourado de um “mas”: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas a
todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus (...). O Verbo de Deus
se fez carne e habitou entre nós”(Jo 1, 11-12;14). O problema, a prova da hospitalidade,
é a “carne”: ele veio como a narrativa grega dizia de Zeus Xenios, na condição de um
mendigo vulnerável, humano e mortal, colocando à prova a capacidade de
hospitalidade de sua forma “escandalosa”. Os textos do Novo Testamento se tornam
até repetitivos: ele é hóspede dos noivos de Caná (Cf. Jo 2), da samaritana junto ao
poço (Cf. Jo 4), de Mateus e de Zaqueu, famosos pecadores (Cf. Mt 9; Lc 19), de Simão,
o fariseu (Cf. Lc 7), de Nicodemos (Cf. Jo 3), de Marta e de Maria (Cf Lc 10). Chegou a
ser chamado de comilão e beberrão por seus detratores por causa de seu costume de
aceitar convites para sentar-se à mesa (Cf. Mt 11, 18-19). Se, por um lado, declara que
não tem onde repousar a cabeça (Cf Lc 9, 58) , por outro lado, comporta-se e ensina os
490 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
discípulos a se comportarem como pregadores itinerantes, peregrinos e dependentes
da hospitalidade alheia. Sua última refeição de Páscoa é narrada como um refinado
ritual de hospitalidade com direito ao lava-pés abraâmico, pão e vinho pascais na
forma de oferenda e souvenir de si mesmo, “corpo dado”, um memorial para o futuro.
Se nos damos conta do clima armado com hostilidade em torno dele, o que acontece é
realmente uma transubstanciação: a energia de hostilidade que iria pisá-lo e
transformá-lo justamente em “hóstia” – palavra derivada da hostilidade na forma de
esmagamento da vítima expiatória – se torna hóstia tomada por ele antecipadamente
e transformada em hospitalidade eucarística para sempre, ponto alto de toda
expressão religiosa cristã. A “ceia” ou a “missa” é, toda ela, um rito de hospitalidade.
Mas talvez a narrativa de Emaús (Cf. Lc 24, 13-35), no rescaldo dos
acontecimentos trágicos de Jerusalém, seja a mais primorosa das experiências que
reúnem hospitalidade e transcendência, o “Deus hópede”. Nem Hermes e nem
Mercúrio, nem Gabriel e nem Rafael: o próprio Jesus em carne e osso, portanto de
forma ao menos aparentemente mais prosaica, se põe a caminhar na companhia dos
discípulos desanimados que julgam ser ele um forasteiro desinformado. Aos poucos,
depois de escutar o seu infortúnio, o estranho peregrino começa a interpretar, e sua
hermenêutica aquece os corações devolvendo-os ao mistério dos fatos. Quando os põe
à prova por seu gesto de afastamento recebe o insistente convite clássico de toda
hospitalidade: “permanece conosco, pois cai a tarde e o dia já declina” (Lc 24, 29). Já
na intimidade da casa, sentados à mesa como tinham feito muitas vezes, há uma
inversão típica da hospitalidade: o hóspede se torna senhor, e o dono da casa se torna
seu servo. Levinas, utilizando a raiz semântica de hospedeiro e refém em francês –
hôte, otage - explorou a fundo a relação de hospitalidade como autêntica relação entre
o sujeito e o outro, sujeito “sujeitado”, dedicado e inteiramente entregue à
hospitalidade em relação ao outro, hospitalidade em que o hospedeiro se torna refém
do seu hóspede, como que infetado e obsessionado, doente de hospitalidade, possuído
pelo hóspede.11 Na pacata narrativa de Emaús, no entanto, há apenas a menção de uma
inversão, do hóspede tornado hospedeiro ao tomar o pão, abençoá-lo e reparti-lo aos
que o tinham convidado. É o seu dom, o presente e o memorial. E como no caso de
Tobit diante do anjo Rafael ou de Madalena na manhã da Páscoa, no abrir-se os olhos
LEVINAS Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Salamanca: Sígueme, 1987, p.
212,
11
Luiz Carlos Susin | 491
do reconhecimento de sua transcendência, o hóspede soberano se retira em seu pudor
e mistério, deixando seu presente e sua presença na comida repartida. Os cristãos tem
assim, é importante insistir, no ágape eucarístico a hospitalidade por excelência e a
memória e exigência ética de toda religião: a hospitalidade. Pode-se concluir este
percurso das duas pontas bíblicas afirmando com clareza que a hospitalidade é a
religião por antonomásia. Quanto isso tenha de consequências, de clamor por
coerência ética, é o que veremos agora na sequencia.
3 Theoxenia e Gastfrei, o dever sagrado da hospitalidade e a liberdade da
diaconia hospitaleira
O terceiro ponto deste texto quer reforçar a tese e o título do mesmo: no evento
da hospitalidade há o traço da transcendência, e toda religião pode ser considerada a
partir da hospitalidade.
De Homero a Platão, os gregos utilizaram a palavra theoxenia para narrar ou
lembrar que a relação com o outro, o estranho, o estrangeiro, se mistura à relação com
a divindade. Desta forma, faziam frente ao problema arcaico da consideração do outro
simplesmente como um bárbaro, aquele que mal sabe pronunciar a língua grega e que
não se porta conforme os bons costumes gregos. Faziam frente também às guerras
fratricidas entre as cidades gregas ou a guerra aos outros povos que acabavam
custando caro também a eles. Na raiz da mais homérica das guerras, a guerra de Troia,
há uma ferida à hospitalidade e uma espécie de necessidade fatal de vingança: Páris, o
troiano, hóspede de Menelau, irmão de Agamenon, o ofende gravemente por ter
roubado a mulher, Helena. A guerra de Tróia é, portanto, a vingança do hospedeiro
diante do mau hóspede. Já no roubo de Europa, também uma traição à hospitalidade,
se desenhava a justificação para a guerra e para o domínio sobre outros povos. Mas
essas são justificativas míticas que precisam ter um contraponto na ética da
hospitalidade para poder viver em paz praticando a justiça. E nada melhor do que
invocar os deuses para isso. Assim, segundo Homero, a figura paradigmática de Ulisses
em sua arriscada jornada e seus encontros com os diferentes, ao se aproximar dos
Ciclopes, se pergunta com certa angustia: “Encontrarei homens brutos e selvagens sem
justiça ou homens hospitaleiros que temem os deuses?” (Odisseia XIII, grifo nosso).
Esta relação entre hospitalidade e temor de Deus, portanto já se desenha na Grécia
492 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
arcaica. Mesmo Platão, ao retirar dos mitos divinos a sua arbitrariedade sobre os
humanos e, portanto, ao insistir na racionalidade e decisão ética para a construção de
uma real civilização, anota no texto sobre as Leis, V, 729a-730a, o lugar de Deus na
relação da hospitalidade. Ele afirma, por exemplo:
A respeito dos estrangeiros, é necessário ter em mente que os contratos feitos com
eles tem uma santidade particular, porque todas as faltas cometidas pelos
estrangeiros e contra eles tem, mais do que as que se cometem entre cidadãos, uma
dependência estreita com um deus vingador. Isolado como está, de fato, sem
companheiros nem parentes, o estrangeiro inspira mais piedade aos homens e aos
deuses. Daí que aquele que pode mais facilmente vinga-lo coloca mais pressão em
socorrê-lo, e aquele que pode eminentemente, em toda ocasião, é o daimon ou o
deus dos estrangeiros, que faz parte da corte de Zeus Xenios. É necessário,
portanto, ao homem tanto mais prudência e grande vigilância para não cometer
nenhuma falta em relação aos estrangeiros ao longo de sua vida e no seu caminho
para o seu termo. Ora, entre as faltas que dizem respeito aos estrangeiros ou
compatriotas, a maior, para todo homem, é aquela que atinge os suplicantes,
porque o deus que testemunha e dá apoio ao pedido do suplicante para lhe dar
garantia, esse deus se torna guardião especial da vítima, de sorte que não sofrerá
nunca sem vingança aquele que teve este sofrimento em partilha.
Platão reforçou assim a necessidade de a cidade mesma cuidar da hospitalidade,
obrigando-se à instituição da hospitalidade como um serviço público. Em nome da
cidade, estabeleciam-se a proxenia e os proxenoi, pessoas encarregadas pelo poder
público para receber o estrangeiro e hospedá-lo à custa da cidade ou mesmo do próprio
bolso. Destas palavras sacras as línguas modernas guardaram apenas a sua perversão,
o “proxeneta”, vulgar cafetão, que oferece prostitutas como mulheres públicas para
desconhecidos. Na verdade, o proxenos devia ser também prostatis, o protetor do
estrangeiro por ele hospedado. Distinguia-se especialmente a proxenia theorodoquita,
a hospitalidade aos que chegavam em missão religiosa, tornando a hospitalidade
explicitamente sacra. Seria curioso estabelecer um paralelo com os textos de envio
missionário dos evangelhos ou com os movimentos mendicantes medievais que
perambulavam para pregar o evangelho e recebiam da hospitalidade o que
necessitavam.12
A sacralidade da hospitalidade entre os romanos pode ser resumida no dito: Jus
Hospiti, Jus Dei. 13 Os romanos desenvolveram o sentido ético da hospitalidade
associado à recepção dos deuses dos outros, e todo recebimento de hóspedes era
12
13
Cf. MONGE Claudio, Dieu Hôte. p80ss.
Cf. Ibidem. p133ss.
Luiz Carlos Susin | 493
constituída de sacrifícios de propiciação, de pedido de benevolência aos deuses que os
outros traziam consigo. Num mundo mais vasto e mais plural, somente aos poucos os
romanos foram organizando a hospitalidade em hospícios e patronatos, que os cristãos
levaram adiante com motivações evangélicas. Assim, por exemplo, ao organizar a
hospitalidade nos mosteiros, São Bento estabelece o dever de hospitalidade com a
seguinte motivação: “Todos os peregrinos que apareçam serão recebidos como Cristo,
pois ele mesmo disse ‘Eu era estrangeiro e tu me recebeste’ (...) Com uma inclinação
da cabeça ou com uma prostração de todo o corpo por terra, que se adore neles (os
peregrinos de passagem) o Cristo, pois é a ele que se acolhe” (Regra, 53,7). Esta
motivação nos remete ao pobre e ao peregrino como “imagem” divina pela mediação
da humanidade do Filho de Deus. Ficaram célebres as narrativas em torno de São
Martinho e de São Francisco de Assis, que, ao socorrer o peregrino nu ou beijar o
leproso exilado da sociedade, tiveram nisso uma experiência de encontro com Cristo.
Já na Idade Média, a hospitalidade foi institucionalizada no que em francês ainda
ressoa por seu caráter religioso: Maison-Dieu ou Hôtel-Dieu, e que em bom português
são as nossas Santas Casas de Misericórdia e nossos Pão dos pobres. Modernamente,
enquanto a secularização retira as raízes sacras da hospitalidade e afasta a ressonância
de transcendência reduzindo a filantropia, o movimento de são Vicente de Paula e
figuras como Madre Tereza de Calcutá provocam os cristãos e também não cristãos.
Em conclusão, a theoxenia é o drama a três da hospitalidade: um terceiro
transcendente se esgueira com a leveza própria de sua condição apofática na relação
de hospitalidade.
Jürgen Moltmann, considerado um dos melhores teólogos cristãos de nosso
tempo, ao refletir sobre as diversas formas da liberdade, algumas ilusórias, outras
limitadas, utiliza, para se referir a uma liberdade ilimitada, a expressão popular de
algumas regiões da Alemanha que junta liberdade com hospitalidade: Gastfrei. Ou
seja, é livre quem é hospitaleiro. Mas explica em seguida: para ser hospitaleiro é
necessário ter uma disposição existencial desde o fundo da alma, o despojamento de
si mesmo e a disponibilidade total a outro, é colocar a própria casa no sentido
existencial a serviço de outro, incluído o próprio tempo. É liberar-se para o outro. Ele
associa esta liberdade não à formalidade da escolha, que é arbitrária e por isso arrisca
não fazer justiça ao outro e nesse risco já está no âmbito da injustiça, e nem a liberdade
baseada no poder, na propriedade e nos bens ou capacidades, que seria uma liberdade
494 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
circunscrita a si mesmo. Também recusa a liberdade limitada pela liberdade de outro,
pois se trata aqui de uma liberdade de si, de quem é vazio de si mesmo, em kénosis,
em renúncia ao seu território, ao seu Direito, ao seu tempo, à sua escolha, para que o
outro passe adiante e seja o centro constitutivo da sua liberdade. Portanto, uma
liberdade que, renunciando a si se expande a partir do outro.14 Lévinas chama esta
liberdade de “liberdade exaltada” na relação de diaconia ao outro, e ainda de “liberdade
justificada”, que encontra sua racionalidade, sua razão de ser e sua justiça isenta de
riscos egocêntricos no serviço ao outro. Esta liberdade não constrange mas dilata,
liberta para a hospitalidade.
15
Sem esta compreensão de liberdade a própria
hospitalidade permanece sob medida, seletiva, lá onde cumprimentamos apenas os
que nos cumprimentam ou damos apenas a quem pode nos dar de volta. A
hospitalidade de alguém Gastfrei é sem risco de injustiça, mas é a fundo perdido nessa
saída de si e, portanto, autotranscedência desde a acolhida da estranheza e da
assimetria do outro, servindo sem intenção de ser servido, sem retorno a si, pura
autotranscendência diante da transcendência que visita.
Numa análise mais prosaica, a capacidade de ser Gastfrei, de estar disponível
ao outro sem discriminação, a irreciprocidade e a assimetria, a desmesura da
hospitalidade, se torna a capacidade de transformar o inimigo em amigo por causa da
assimetria ou irreciprocidade da relação. No círculo dos dons, antes da reciprocidade
há a pergunta sobre quem toma a iniciativa do primeiro dom. Só é possível o primeiro
dom quando não há nem garantia, nem promessa e nem desejo de retribuição,
renúncia de retorno e de satisfação. A simples intenção de recompensa torna impura
a gratuidade do dom. Isso não significa que não se valorize a retribuição, mas como
forma de acrescentar valor a quem retribui. O exercício da hospitalidade sem
perguntar pela hospitalidade do outro revoluciona o mundo, derruba os muros da
inimizade e introduz a paz. A experiência de transcendência que há no encontro e na
hospitalidade do estrangeiro nos remete, então, ao título e à tese deste texto, a
dimensão teológica da hospitalidade: a sua sacralidade remete à divindade pura e
difusiva no fundo da hospitalidade, e toda religião deriva da hospitalidade e se torna
matriz sacra de hospitalidade: a hospitalidade é a alma e a vida das religiões.
Cf MOLTMANN Jürgen, Trindade e Reino de Deus. Um acontribuição para a teologia. Petrópolis:
Vozes, 2000. p197ss.
15 Cf. LEVINAS, Emmanuel, Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988, pg 31.
14
Luiz Carlos Susin | 495
Referências
ARMSTRONG, Karen. A grande transformação: o mundo na época de Buda, Sócrates,
Confúcio e Jeremias. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
BÉTHUNE, Pierre-François. L’hospitalité sacrée entre les religions. Paris: Albin
Michekl, 2007.
FLACH, José Loinir & SUSIN, Luiz Carlos. “O paradigma do dom”. In:
Teocomunicação. Revista de Teologia da PUCRS. Vol. 36, Nr. 151, 2006. p. 179-208.
HOMERO. Odisseia. I: Telemaquia; II: Regresso; III: Ítaca. Tradução de Donaldo
Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007.
LÉVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Traducción de
Antonio Pintor Ramos. Salamanca: Sígueme, 1987.
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa:
Edições 70, 1988.
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia.
Tradução de Ivo Martinazzo. Petrópolis: Vozes, 2000.
MONGE, Claudio. Dieu Hôte. Recherche historique et théologique sur les rituels de
l’hospitalité. Bucarest: Zetabooks, 2008.
PLATÃO. As leis. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2010.
27. A REABILITAÇÃO DA FILOSOFIA PRÁTICA E A QUERELA
ENTRE TEORIA DISCURSIVA E LIBERALISMO POLÍTICO1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-27
Luiz Bernardo Leite Araujo2
Desde o chamado movimento de “reabilitação da filosofia prática” 3, a partir da
década de setenta do século passado, os impulsos fundamentais da filosofia moral e
política podem ser creditados à revitalização de três fontes: o utilitarismo, o kantismo
e o aristotelismo. Como observa Michael Sandel, qualquer que seja o dilema
considerado, baseado em situação real ou hipotética, o raciocínio filosófico no campo
da moral e da política, consistindo em harmonizar juízos e princípios, termina
envolvendo esses três modos alternativos de pensar a justiça: a maximização do bemestar, o respeito à liberdade e aos direitos individuais, e o cultivo ou a promoção da
virtude4. Não é outra a caracterização feita por Karl-Otto Apel quando estima que seu
programa específico de fundamentação racional dos deveres deve considerar como
complementares e subordinados os temas da maximização das utilidades e dos afetos
morais, do bem viver e da vida ética substancial, que estão no centro das controvérsias
ético-políticas contemporâneas5. Na verdade, a relação entre princípios universais de
justiça e concepções particulares do bem é constitutiva da própria razão prática e
define o campo de possibilidade da ética filosófica na atualidade, sendo
nomeadamente a relação entre o fato do pluralismo e as exigências da justiça nas
sociedades modernas o problema central da filosofia política.
1 A referência original deste texto é ARAUJO, Luiz Bernardo Leite. “Habermas e Rawls no cenário da
filosofia moral e política contemporânea”. Sofia, v. 6, n. 1, 2017, p. 4-16. Nele, trato de autores e de
assuntos que figuram no centro dos interesses filosóficos compartilhados entre mim e Nythamar de
Oliveira, a quem dedico este trabalho como uma singela homenagem na passagem de seu sexagésimo
aniversário.
2 Doutor em Filosofia pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), Pesquisador do CNPq e Professor
Titular do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
3 A expressão tem sua origem em RIEDEL, Rehabilitierung der praktischen Philosophie, 1972-1974.
4 Cf. SANDEL, Justice: what's the right thing to do?, p. 19-21.
5 Cf. APEL, Éthique de la discussion, p. 9-11.
498 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Assim, o movimento de reabilitação da filosofia prática procurou redefinir um
quadro filosófico-conceptual apropriado para construir um modelo de razão que
permita superar certos impasses da modernidade com respeito ao domínio da ação e
de suas particularidades, estabelecendo confrontos entre modelos alternativos de
razão prática à luz de suas respectivas contribuições ao debate sobre a complexa
articulação entre igualdade e diversidade. Quer do ponto de vista moral, ansiando por
estabelecer uma base de conhecimento independente da autoridade e acessível à
pessoa comum, quer do ponto de vista político, visando a verificar as condições
essenciais de uma sociedade viável e justa de cidadãos que se veem como livres e iguais,
mas se encontram profundamente divididos pelo pluralismo dos ideais de vida e pela
incompatibilidade das orientações axiológicas, como assinala John Rawls, a filosofia
prática se enreda com problemas típicos do mundo moderno, em contraste com os do
mundo antigo6.
Esse confronto entre modelos alternativos de razão prática reitera o debate
clássico em torno da prioridade do justo sobre o bem, cuja fórmula, originária de Kant,
transformou-se
em
princípio
fundamental
da
filosofia
moral
e
política
contemporânea. É preciso reconhecer, no entanto, certa desorientação na avaliação do
alcance e dos limites de cada perspectiva teórica, proveniente de uma insuficiente
diferenciação
entre
os
elementos
característicos
daquelas
três
correntes
representativas do consequencialismo, do deontologismo e do teleologismo. No meu
entender, é acertada a observação de Charles Larmore7, inspirada na obra clássica de
Henry Sidgwick8, de que a tradição utilitarista não é exceção à concepção imperativa
predominante na modernidade, apelando a um dever (ought) moral categórico tanto
quanto a ética kantiana. É errôneo, pois, considerar que a diferença entre as teorias
deontológica e consequencialista residiria na prioridade do justo ou do bem como
noção moral fundamental 9 . Embora difiram nos princípios essenciais, já que o
deontologismo, ao menos em sua versão rigorista, sustenta a obrigatoriedade de uma
Cf. RAWLS, Political liberalism, p. xxiii-xxix.
Cf. LARMORE, The morals of modernity, p. 19-40.
8 Cf. SIDGWICK, The methods of ethics, 1907 (1ª ed.: 1874).
9 Uma expressão influente desse erro, para Larmore, encontra-se em FRANKENA, Ethics, 1973. Cabe
notar que Rawls adota a leitura de Frankena, cuja primeira edição da obra é de 1963, apresentando o
utilitarismo clássico como uma doutrina teleológica na qual “the good is defined independently from
the right, and then the right is defined as that which maximizes the good” (RAWLS, A theory of justice,
p. 24). A introdução de uma obra, de resto instrutiva, dedicada a introduzir a filosofia moral britânica
ao público de língua francesa, incorre no mesmo deslize (Cf. CANTO-SPERBER, La philosophie morale
britanique, p. 71).
6
7
Luiz Bernardo Leite Araujo | 499
ação mesmo diante da certeza de que a ação alternativa produziria globalmente um
bem maior, ao passo que o consequencialismo leva em conta o maior bem global para
todos os que são afetados por ela, ambos compartilham a concepção de que o dever
moral é independente do bem próprio do agente, razão pela qual a ética antiga
ignorava o debate infindável entre as teorias deontológica e consequencialista, que é
capital na filosofia moderna10. E é justamente no ataque frontal às formas imperativas
da moralidade, sua suposta indiferença à vida moral em geral e à vida moral do agente
em particular, decorrente da visão estreita de uma lei aplicada indistintamente a todo
e qualquer indivíduo, que o ressurgimento inusitado da ética das virtudes de
inspiração aristotélica deve ser situado na filosofia prática contemporânea 11 . Com
efeito, a chamada ética das virtudes funda-se numa doutrina teleológica da vida
humana, opondo-se tanto ao deontologismo quanto ao consequencialismo, e,
portanto, ao ideal imperativo da moralidade que prevalece na modernidade, ao qual
contrapõe o ideal atrativo do verdadeiro bem para o próprio agente moral. Dessa
maneira, é principalmente em torno da disputada questão sobre a possível − e a melhor
− articulação entre a justiça e o bem que se chocam as diversas correntes da filosofia
moral e política atual.
Conquanto a filosofia prática moderna tenha sido palco de uma disputa
empedernida entre deontologismo e consequencialismo, em suas formas mais
conhecidas de kantismo e de utilitarismo, e a despeito de algumas raras exceções,
como as de Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, a controvérsia fundava-se num
amplo consenso ao redor de um ideal imperativo de moralidade que viria a ser abalado
por éticas perfeccionistas e sua retomada do ideal clássico da atratividade. No
primeiro caso, como notava Rawls em seus cursos de história da filosofia moral em
Harvard, também inspirado em Sidgwick, a correção (rightness) na ação constitui o
ditame de uma razão imperativa, vista como prescrevendo incondicionalmente certas
ações, ou ainda com referência a algum fim ulterior, de modo que
[...]os modernos se perguntavam primordialmente, ou ao menos em primeiro
lugar, sobre aquilo que consideravam prescrições impositivas da justa razão, e
sobre os direitos, deveres e obrigações aos quais tais prescrições davam origem. Só
depois voltavam sua atenção aos bens que tais prescrições permitiam buscar e
apreciar. (RAWLS, 2000, p. 2)
Um rico esclarecimento do debate entre deontologismo e consequencialismo pode ser visto em
BRAGA, Kant, Rawls e o utilitarismo: justiça e bem na filosofia política contemporânea, 2011.
11 Tratei do assunto em ARAUJO, “Filosofia prática, modernidade e ética das virtudes”, 2011.
10
500 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
No segundo caso, o ideal moral é visto como especificação de um bem a ser
buscado e a ação virtuosa como algo bom em si mesmo, e não simplesmente como um
meio para algum bem posterior, de maneira que
[...]os antigos se perguntavam sobre o caminho mais racional para a verdadeira
felicidade, ou o sumo bem, e inquiriam sobre como a conduta virtuosa ou as
virtudes enquanto aspectos do caráter – as virtudes da coragem e temperança,
sabedoria e justiça, que são elas mesmas boas – estão relacionadas com o bem
supremo, quer como meios, quer como algo constitutivo, ou ambos. (RAWLS,
2000, p. 2)
Destarte, não apenas por representar uma distinção lógico-conceptual precisa,
mas também por enraizar-se num marco histórico determinado pelo desacordo
razoável quanto à definição da vida boa, a tese da prioridade do justo sobre o bem
encontrou vasta ressonância filosófica na modernidade.
Embora a fórmula da prioridade do justo sobre o bem 12 esteja implícita na
abertura da Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), onde Kant afirma ser
a boa vontade (guter Wille), isto é, a disposição de agir por puro respeito à lei moral, a
única coisa que possa ser considerada como incondicionalmente boa, é no momento
de elucidar o paradoxo do método na Crítica da razão prática (1788) que o enunciado
aparece: “o conceito de bom e mau não tem que ser determinado antes da lei moral
(no fundamento da qual ele aparentemente até teria que ser posto), mas somente
(como aqui também ocorre) depois dela e através dela.” (KANT, 2002, p. 100-101.) Tal
clivagem estabelecida por Kant desempenhou um papel importante nas discussões
filosóficas, encetando modos diferentes de compreender a natureza da vida moral e
política. Trata-se de uma dualidade da razão prática, à qual o filósofo alemão responde
com dois argumentos em prol de uma concepção imperativa, cujo traço principal é
precisamente o do primado do justo sobre o bem.
O primeiro argumento é negativo, sendo levantado contra uma prioridade do
bem sobre o justo. Ele consiste em dizer que se nossa ação não é determinada por um
princípio formal, que obriga o agente a agir independentemente de todo fim específico,
ela será então determinada por um princípio material, isto é, por um objeto de nossa
faculdade de desejar. Isso implicaria definir o bem como a satisfação de nossos desejos,
o que é inaceitável por duas razões principais: por um lado, como os objetos da
12
Cf. ARAUJO, Pluralismo e justiça: estudos sobre Habermas, p. 96-101.
Luiz Bernardo Leite Araujo | 501
faculdade de desejar são numerosos e variam segundo os indivíduos, será sempre
impossível dar uma definição clara e unívoca do bem; por outro lado, se o bem é
referido ao desejo, é impossível, na falta de um ponto de referência exterior a nossos
fins, adotar uma atitude crítica com respeito aos nossos desejos e estabelecer uma
hierarquia normativa entre eles. Essas duas dificuldades são insuperáveis tanto para o
hedonista, que identifica o bem com a satisfação do desejo imediato, quanto para o
perfeccionista, que identifica o bem com a plena realização de si. De acordo com
Larmore,
a primeira razão de Kant para rejeitar a prioridade do bem é uma razão
especificamente moderna. Ela combina, na verdade, duas idéias distintas: a) a
concepção pluralista segundo a qual há muitas formas valiosas de autorrealização,
irredutíveis a alguma forma comum de bem que todos desejem; b) o
reconhecimento de que pessoas razoáveis tendem naturalmente a divergir com
respeito à natureza da vida bem sucedida. O pluralismo e a expectativa de
desacordo razoável sobre a vida boa são raramente encontrados nos pensadores
antigos. (LARMORE, 1996, p. 30)
O segundo argumento é positivo e pretende explicar por que o justo deve ter
primazia sobre o bem. Ele não diz respeito às dificuldades concretas que podem ser
encontradas para uma vida moral, e sim à nossa constituição profunda como agentes
morais. Trata-se de um argumento diretamente vinculado à experiência moral, que
mostra que o dever é irredutível ao querer e que lhe é superior. Com efeito, a escolha
de um princípio material nos obriga a ficar no plano das motivações empíricas, isto é,
a conceber-nos como agentes cujas ações seriam meras respostas a estímulos sensíveis
ou afetivos. Mas somos conscientes de que podemos nos livrar das cadeias da
causalidade, sendo assim capazes de controlar os desejos e as emoções. Tal consciência
nos é dada pela experiência que temos de seguir uma norma moral, ou seja, uma norma
fundada num princípio formal. Ora, para Kant, essa consciência tem o valor de uma
prova, mostrando nossa capacidade constitutiva de romper com a ordem natural e de
agir como sujeitos autônomos. E é precisamente esse fato decisivo de nossa
experiência moral (o célebre “se devo, então posso”) que as teorias que concedem
primazia ao bem sobre o justo não conseguem explicar. O ponto essencial do segundo
argumento, para Larmore, é que “apenas a prioridade do justo sobre o bem pode dar
sentido àquilo que sabemos, por nossa consciência, acerca da natureza das obrigações
morais.” (LARMORE, 1996, p. 32) É o que permite a Kant afirmar que a moral não é
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“propriamente a doutrina de como nos fazemos felizes, mas de como devemos tornarnos dignos da felicidade.” (KANT, 2002, p. 209.)
Evidentemente,
os
argumentos
invocados
por
Kant
não
obtiveram
unanimidade, sequer entre aqueles que invocam o seu legado, e tornaram-se alvo de
inúmeras objeções13. Contudo, é incontestável que a afirmação da prioridade do justo
sobre o bem gozou de ampla aceitação na reflexão moral e política pós-kantiana,
representando como nenhuma outra, para além do próprio kantismo, o cerne da
concepção imperativa reinante na filosofia prática da modernidade. É a ela, pois, e sua
restritiva questão “o que devo (ou devemos) fazer?”, que a teoria das virtudes lançou
seu anátema, propondo a recuperação de uma concepção atrativa da moral, guiada
pelas questões “que tipo de pessoa deveria (ou deveríamos) ser?” e “como devo (ou
devemos) viver?” 14 . É também a ela que, por seu turno, se refere o núcleo da
discordância entre Habermas e Rawls, dois dos mais importantes e influentes
pensadores contemporâneos em matéria de filosofia moral e política, cujas obras
reverberam o desafio da articulação entre a justiça e o bem, além de introduzir
mudanças sensíveis no deontologismo kantiano.
Pouco mais de vinte anos após sua inauguração, o debate entre Habermas e
Rawls – relativamente negligenciado em razão de certo desapontamento diante das
expectativas iniciais geradas pela controvérsia, a ponto de um articulista do The Times
Literary Supplement ter sugerido que a disputa representava uma “falha um tanto
embaraçosa de duas das maiores mentes contemporâneas ao se encontrarem” 15 –
ainda suscita interesse entre os estudiosos de seus pensamentos, como mostra uma
recente coletânea sobre o assunto16. O desapontamento se deveu a uma sensação de
oportunidade perdida, ao fato notório de que cada pensador estava mais preocupado
em defender e esclarecer seu próprio projeto do que envolver-se no terreno do
13 Uma breve e elucidativa apresentação da filosofia moral kantiana e de seu legado, na qual se distingue
a ética de Kant contida em seus escritos críticos, a que é desenvolvida por seus primeiros e influentes
críticos e que costuma ser-lhe atribuída, bem como a ética kantiana adotada em diversas posições
morais contemporâneas que reivindicam sua herança, mas divergem de Kant em vários aspectos,
encontra-se em O'NEILL, “Kantian ethics”, 1993.
14 Sobre tais questões, bem como sobre a teoria das virtudes em geral, cf. PENCE, “Virtue theory”, 1993.
O texto apresenta também algumas referências bibliográficas sobre o tema.
15 Cf. WOLFF, “In front of the curtain”, 2008.
16 Os três ensaios que compõem o debate entre Habermas e Rawls (Part I: The Habermas-Rawls Dispute,
p. 23-113), assim como oito ensaios críticos, na segunda parte, acompanhados de uma réplica de
Habermas, na terceira parte, foram reunidos por FINLAYSON; FREYENHAGEN, Habermas and
Rawls: disputing the political, 2010.
Luiz Bernardo Leite Araujo | 503
adversário em busca de uma melhor compreensão da respectiva abordagem acerca de
questões filosóficas prementes. Mas é verdade também, a despeito dos muitos
equívocos difundidos na literatura sobre seus devidos projetos, que ambos teceram
críticas perspicazes ao oponente, as quais resultaram em importantes clarificações, e
até mesmo em eventuais incrementos, de suas respectivas teorias, como no caso da
noção rawlsiana de justificação pública e no da visão habermasiana sobre o papel da
religião na esfera pública. De fato, a importância dada por Habermas e Rawls ao debate
travado em 1995 pode ser aquilatada pela inclusão de seus estudos em Die
Einbeziehung des Anderen, no caso de Habermas, e na edição em brochura de Political
liberalism, no caso de Rawls, ambas as obras publicadas no ano seguinte.
Afora algumas alusões de Habermas sobre A theory of justice de Rawls,
timidamente em Theorie des kommunikativen Handelns (1981) e mais detidamente
em Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln (1983), a pré-história do debate
foi dominada por comentadores que, em regra geral, guiados por essas obras
impactantes no cenário recente da filosofia moral e política, eram mais simpáticos a
Habermas, ainda que admiradores do projeto teórico de Rawls, tais como – para
mencionar apenas autores reconhecidamente importantes no tema – Kenneth
Baynes 17 , Seyla Benhabib 18 e Thomas McCarthy 19 . Na opinião de Finlayson e de
Freyenhagen, o equívoco principal a obscurecer o debate inicial residiu na apreensão
da ética do discurso e da teoria da justiça como equidade como teorias semelhantes,
sem ter sido até hoje completamente apreciado o significado das profundas diferenças
de sentido do termo “justiça” em Habermas e Rawls.
Enquanto Rawls usa o conceito de justiça “em sentido restrito, distributivo,
encapsulado em seus dois princípios”, não sendo a justiça como equidade uma teoria
moral, mas uma concepção de justiça aplicada ao objeto específico da estrutura básica
da sociedade, Habermas, ao contrário, elabora uma teoria moral como uma teoria
geral da conduta correta, sendo a justiça “equivalente à correção moral: ela é o conceito
normativo central da teoria discursiva da moralidade e o fenômeno central a ser
estudado.” (FINLAYSON; FREYENHAGEN, 2010, p. 3-4) Ora, a inobservância dessa
diferença fundamental, ou, dito positivamente, a impressão de similaridade dos
BAYNES, The normative grounds of social criticism: Kant, Rawls and Habermas, 1992.
BENHABIB, Situating the self: gender, community and postmodernism in contemporary ethics,
1992.
19 McCARTHY, “Kantian constructivism and reconstructivism: Rawls and Habermas in dialogue”, 1994.
17
18
504 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
projetos teóricos de Habermas e de Rawls, e de suas respectivas noções de justiça,
surgiu como o efeito combinado de duas estratégias de interpretação que empurravam
ambas as teorias na direção de um aparente terreno comum: a leitura política da ética
do discurso e a leitura moral da teoria da justiça como equidade20.
A interpretação da ética habermasiana como teoria política e uma teoria da
legitimidade democrática disfarçada, por um lado, e a interpretação da teoria
rawlsiana da justiça como teoria moral e uma teoria geral da conduta correta, por outro
lado, as quais, diga-se de passagem, tinham certo apoio em seus respectivos textos das
décadas de setenta e de oitenta, tornaram-se obsoletas e claramente imprecisas após a
publicação de Faktizität und Geltung (1992) e Political liberalism (1993), acerca das
quais ambos os autores estavam cientes, citando-as profusamente, na ocasião do
debate inaugural 21 . Assim, o real contraste entre duas teorias da legitimidade
democrática, igualmente restritas ao domínio político-jurídico, estava presente na
disputa de 1995, constituindo um solo fundamental compartilhado pelos dois
contendores:
[...]ambos concordam que a filosofia política não é apenas teoria moral aplicada,
como, por exemplo, pretende a teoria do direito natural. Eles também rejeitam o
realismo político forte, segundo o qual os princípios morais e as motivações são
irrelevantes para a esfera política. Por fim, cada um torna a ideia de legitimidade
central para seu respectivo projeto. (FINLAYSON; FREYENHAGEN, 2010, p. 7)
Não é o caso aqui de relembrar as ideias principais dessas obras maduras de
Habermas e Rawls, o que tornaria penosa minha tarefa e fastidiosa a do leitor 22 ,
bastando chamar a atenção para o fato de que elas tratam de problemática
reconhecidamente semelhante, como se pode depreender da questão central
enunciada por cada pensador: “como é possível existir, ao longo do tempo, uma
sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais, que permanecem profundamente
divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis?” (RAWLS, 1996, p.
Cf. FINLAYSON; FREYENHAGEN, Habermas and Rawls: disputing the political, p. 5-7.
Embora Habermas note que, ao escrever seus comentários em 1992, ano da publicação de Faktizität
und Geltung, mesmo tendo em mente sua filosofia do direito e da democracia recentemente publicada,
não era sua intenção trazê-la à discussão e não poderia supor que Rawls estava familiarizado com a
obra, cuja tradução inglesa apareceu pela primeira vez em 1996. Cf. HABERMAS, “Reply to my critics”,
p. 283-284.
22 Sugiro, mais recentemente, sobre Habermas e Rawls: FREEMAN, Rawls, 2007; INGRAM,
Habermas: introduction and analysis, 2010; MAFFETTONE, Rawls: an introduction, 2011; BAYNES,
Habermas, 2015.
20
21
Luiz Bernardo Leite Araujo | 505
4)23; “que direitos os cidadãos têm que atribuir-se mutuamente, quando se decidem a
constituir uma associação voluntária de sujeitos jurídicos e a regular legitimamente
sua convivência por meio do direito positivo?” (HABERMAS, 1994, p. 668)24.
É importante, entretanto, sumariar o debate propriamente dito, no qual aquelas
ideias estão pressupostas, dando ensejo a incompatibilidades efetivas ou presumidas
entre seus respectivos projetos teóricos. Como se sabe, o debate entre Habermas e
Rawls é constituído de um ensaio crítico do primeiro e de uma réplica do segundo, aos
quais se seguiu um novo texto do filósofo alemão, mas nenhuma tréplica rawlsiana à
última incursão habermasiana no debate. Em seu artigo, Habermas levanta três
questões sobre o estatuto da teoria da justiça como “equidade” (fairness). A primeira
delas diz respeito à argumentação rawlsiana em torno da posição original. Nota-se aqui
que a noção de sujeito moral tal como Rawls articula o leva, segundo a leitura
habermasiana, a algumas falhas concernentes à definição de “bens primários”
(primary goods), o que por sua vez conduz a certa impotência quanto ao caráter de
neutralidade de sua teoria. Em sua resposta, Rawls se defende indicando uma
diferença entre sua teoria, apresentada como freestanding em relação às doutrinas
abrangentes, e a de Habermas, tida como uma doutrina desse tipo. Na segunda
objeção, Habermas discute a problemática do pluralismo e a ideia rawlsiana do
consenso sobreposto. Sua argumentação gira em torno da ideia de um overlapping
consensus tomado como a observância de um índice de estabilidade social, porquanto
Rawls não concede à noção de “razoável” − elemento que determina a existência de um
consenso entre as divergentes doutrinas abrangentes − o caráter de verdade, mas o de
expressão de uma atitude de tolerância. Rawls responderá que a preocupação com a
estabilidade está presente em sua formulação, mas que sua legitimidade vai além,
devido a um caráter triplo da justificação e ao reconhecimento de dois tipos diferentes
de consenso. Por fim, são discutidas as noções de “autonomia” pública e privada,
entrando propriamente na discussão relativa aos princípios de justiça que Rawls erige
em sua teoria. Quanto a isso, Habermas entende que Rawls privilegia a “liberdade dos
“how is it possible for there to exist over time a just and stable society of free and equal citizens, who
remain profoundly divided by reasonable religious, philosophical, and moral doctrines?”.
24 “Welche Rechte müssen sich Bürger gegenseitig zuerkennen, wenn sie sich entschließen, sich als eine
freiwillige Assoziation von Rechtsgenossen zu konstituieren und ihr Zusammenleben mit Mitteln des
positiven Rechts legitim zu regeln?“.
23
506 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
modernos” em detrimento da “liberdade dos antigos”, no que Rawls responde com
uma explanação de sua four-stage sequence, para ele mal interpretada por Habermas.
A problemática que espelha, a meu juízo, a principal divergência filosófica entre
a teoria discursiva e o liberalismo político, correspondente ao segundo momento do
debate aqui sumariado, questão retomada por Habermas em sua nova intervenção, é
a da justificação de uma concepção independente de justiça política no contexto de
sociedades pluralistas. Ora, a discussão envolve um tema fundamental da filosofia
moral e política moderna, o da chamada neutralidade procedimental25, vinculado à
tese kantiana da prioridade do justo sobre o bem, e não por acaso é aquela que permite
estabelecer o mais agudo e significativo contraste entre Rawls e Habermas 26. A rigor,
considerando o movimento de reabilitação da filosofia prática, o estado da arte era
bem definido pelo debate entre esses autores sobre o melhor procedimento para a
operacionalização do moral point of view em sociedades pluralistas. Provenientes de
tradições de pensamento distintas, embora marcadas por mútuas influências, suas
teorias contribuíram para relançar o debate acerca da universalidade dos princípios
morais
e
da
legitimidade
da
democracia.
Conjurando
contra
tendências
instrumentalistas e historicistas reinantes na filosofia contemporânea, Habermas e
Rawls intentam restituir às práticas e aos discursos políticos um alcance moral em
sociedades privadas de garantias últimas de caráter transcendente, desenvolvendo
suas reflexões nos limites de uma concepção procedimental da razão prática
fundamentalmente haurida em Kant27.
O conjunto da querela indica que, em certos momentos, Rawls e Habermas
correm em pistas às vezes distantes, embora com o fito idêntico de defender uma
concepção autônoma da justiça política em sociedades pluralistas. Em suma, a
diferença capital apontada por Rawls na comparação do liberalismo político com a
teoria do discurso baseia-se no pretenso caráter isento do primeiro e a roupagem de
doutrina abrangente da segunda. Habermas, por sua vez, lança dúvida quanto à
imparcialidade do procedimento rawlsiano, considerando que Rawls vincula à razão
prática conotações substantivas e presumindo possuir um mecanismo mais
Cf. LARMORE, The autonomy of Morality, p. 139-167.
Cf. HEDRICK, Rawls and Habermas: reason, pluralism, and the claims of political philosophy,
2010. De um modo sumário, cf. BAYNES, Habermas, p. 170-176.
27 Contudo, tais modelos de procedimentalismo kantiano se confrontam com o particularismo das
tradições evocado, entre outros, pela concepção aristotélica de MacIntyre. É o que procurei investigar
em ARAUJO, “Uma questão de justiça: Habermas, Rawls e MacIntyre”, 1998.
25
26
Luiz Bernardo Leite Araujo | 507
satisfatório para a operacionalização do ponto de vista moral em tempos de
pluralismo. Entretanto, e apesar de todas as divergências assinaladas pelos
protagonistas do debate e por vários comentadores, parece-me que há uma
proximidade entre Rawls e Habermas bem mais acentuada do que suas próprias
intervenções, assim como diversas interpretações 28 , parecem indicar. A principal
crítica habermasiana ao liberalismo político incide sobre um consenso resultante da
mera convergência bem-sucedida de doutrinas abrangentes, mas a posição rawlsiana
é mais complexa e sutil do que parece à primeira vista, uma vez que o chamado
consenso sobreposto não é resultado casual da convergência entre doutrinas
abrangentes conflitantes, mas, pelo contrário, estando vinculado a um ideal de
justificação cujo aspecto central reside no raciocínio público dos cidadãos, só pode
desempenhar um papel apropriado na justificação política ao contribuir para a
estabilidade social através de right reasons. O debate entre Habermas e Rawls, no meu
entender, traz a lume um acordo fundamental em torno da noção de razão pública e
de seu papel crucial no problema da legitimidade política29.
É curioso notar, neste sentido, que as teorias rawlsiana e habermasiana são
alvos de críticas semelhantes quanto aos limites dos modelos ditos “arquimedianos”
de razão prática e, em consequência, ao modo como tratam os conflitos morais e
políticos da atualidade. Não seria mais adequado abrir mão de uma concepção exigente
de justificação normativa, à qual está vinculada a ideia de razão pública, em prol de
uma acomodação mútua entre as conflitantes doutrinas abrangentes ou visões de
mundo e suas respectivas formas de vida? A maneira de reagir aos casos de desacordo
razoável, cada vez mais agudos e persistentes, não induziria à defesa de perspectivas
sectárias e exclusivistas incompatíveis com aquelas supostas virtudes de tolerância e
respeito pelos outros que parecem emergir de concepções procedimentais fundadas
nos valores da autonomia e da liberdade e igualdade das pessoas? O liberalismo
político de Rawls e a teoria do discurso de Habermas, por estarem primariamente
concernidos com questões de estabilidade e de coesão sociais, e a consequente ênfase
no ideal regulador de um acordo que guia as deliberações e legitima os resultados de
28 Cf. p. ex.: McCARTHY, “Legitimacy and diversity: dialectical reflections on analytical distinctions”,
1998; LAFONT, “Procedural Justice? Implications of the Rawls-Habermas debate for discourse ethics”,
2003.
29 É o que tentei demonstrar em ARAUJO, “A decade of debate: discourse theory versus political
liberalism”, 2007. Sobre a noção de razão pública, cf. RAWLS, “The idea of public reason revisited”,
1999.
508 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
procedimentos democráticos, não subestimariam o desafio que a diversidade impõe à
ideia de uma cultura política compartilhada, negando assim reconhecimento pleno aos
membros da sociedade cujas doutrinas abrangentes não coincidem com a da cultura
majoritária e dominante? Eis aí algumas questões fundamentais que se encontram no
centro das investigações filosóficas no campo da filosofia moral e política.
Obviamente, a defesa de uma proximidade entre Habermas e Rawls no sentido
indicado não significa que ambos tenham as mesmas respostas aos problemas
enunciados, e tampouco implica que as respectivas concepções filosóficas sejam
atingidas em planos idênticos pelas críticas contemporâneas aos modelos
procedimentais de razão prática. A questão decisiva para cada um dos dois
debatedores torna-se, assim, nos termos precisos de Finlayson e Freyenhagen, a
seguinte:
Para Rawls, a questão é saber se a sua teoria tem ou não os recursos para sustentar
a possibilidade de um consenso sobreposto, e isto num sentido forte o suficiente
para justificar a esperança racional na justiça como equidade, e assim sacrifícios
pessoais na consecução de sua plena institucionalização. Para Habermas, o desafio
é assegurar um sentido mais forte de aceitabilidade sem que a natureza filosófica
deste empreendimento se torne um obstáculo à sua efetiva aceitação por cidadãos
divididos pelo pluralismo razoável. Enquanto a estratégia de esquiva de Rawls é,
sem dúvida, sua deficiência, poder-se-ia dizer que Habermas, em contrapartida,
toma demasiados reféns (filosóficos) ao acaso. (FINLAYSON; FREYENHAGEN,
2010, p. 18-19) 30
De todo modo, a mim me parece claro que − a despeito dos muitos equívocos
difundidos na literatura sobre seus devidos projetos – não somente a convergência
entre suas teorias constituiu evento proeminente da filosofia moral e política do último
século, mas ambos os pensadores tornaram ainda mais profícuo o movimento de
reabilitação da filosofia prática em que eles estavam inseridos.
“The decisive issue for each of the two disputants thereby becomes the following. For Rawls, the
question of whether or not his theory has the resources to underpin the possibility of an overlapping
consensus, and to do so in a sufficiently strong sense to warrant rational hope for, and thereby personal
sacrifices in working towards the full institutionalization of, Justice as Fairness. For Habermas, the
challenge is to secure a stronger sense of acceptability without the philosophical nature of this endeavor
becoming a stumbling block to its actual acceptance by citizens divided by reasonable pluralism. While
Rawls's strategy of avoidance is arguably his downfall, Habermas by contrast might be said to take too
many (philosophical) hostages to fortune”.
30
Luiz Bernardo Leite Araujo | 509
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28. A AMPLITUDE DA RAZÃO PÚBLICA EM JOHN RAWLS
https://doi.org/10.36592/9786587424163-28
Luiz Paulo Rouanet1
Raquel Nuvolini Wanjgarten2
Resumo
O presente estudo pretende explanar sobre a real dimensão da esfera pública em
Rawls. Em outros termos, trata-se de determinar qual a dimensão e os limites da
participação popular na Teoria da Justiça como Equidade do referido autor. Para
tanto, esta análise parte de uma contextualização da importância do tema e da vida de
Rawls, seguida de uma breve apresentação de sua teoria de “justiça como equidade”.
Na seqüência, conceitua-se a concepção de razão pública em John Rawls, bem como
se aufere sua extensão. Logo após, é analisada sua amplitude. Para tanto, toma-se
como ponto de partida a sua teoria dos quatro estágios, a saber: (1) posição original,
(2) estabelecimento da constituição, (3) estágio legislativo, e (4) aplicação das regras.
Como objetivo secundário, procurou-se efetuar uma comparação da razão pública de
Rawls com a noção de esfera pública em J. Habermas. A determinação da amplitude
da noção de razão pública em Rawls, que adquiriu destaque em 1995, quando J.
Habermas e J. Rawls altercaram no The Journal of Philosophy, é por si só um objetivo
válido, dada sua importância para o debate contemporâneo em torno da teoria
democrática. Em particular, aborda um importante problema relacionado ao grau de
participação popular nas democracias contemporâneas, ou seja, do grau de
participação popular nas decisões políticas.
Palavras-chave: Razão pública, Teoria da Justiça como Equidade, Democracia.
1 Doutor em filosofia pela USP, professor do Departamento de Filosofia e Métodos e do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da UFSJ.
2 Bacharel em Direito pela PUC-Campinas, desenvolveu trabalho de Iniciação Científica no período
2009-2010 sob a orientação de Luiz Paulo Rouanet. Este artigo foi resultado do trabalho desenvolvido
nesse período.
514 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Abstract
This paper intends to expose the real dimension of Rawls’s public sphere. In other
words, it searches to determine the dimension and limits of popular participation in
the Theory of Justice as Fairness of this author. For such, this analysis begins by a
contextualization of the central role of this subject and of the life o John Rawls,
followed by a short presentation of its Theory of Justice as Fairness. After that, there
is a exposition of the conception of public reason in Rawls, as well as the analysis of its
extension and scope. For that, the starting point is his theory of the 4 stages, to know:
(1) original position, (2) modeling of constitution, (3) legislative stage, and (4) rule
application. As a secondary objective, it was made a comparison of the notion of public
reason in Rawls with the notion of public sphere in J. Habermas. The determination
of the scope of the notion of public reason in Rawls, which was put in evidence in the
debate between J. Habermas and J. Rawls in The Journal of Philosophy, in 1995, is by
itself a valid objective, given its importance to the contemporary debate related to
democratic theory. In particular, it touches an important issue related to the degree of
popular participation in contemporary democracies, i.e., the degree of popular
participation in political decisions.
Keywords: Public Reason, Theory of Justice as Fairness, Democracy.
Introdução
Nos tempos em que as sociedades democráticas convivem com a desigualdade,
que se impõe a maltratar milhares de pessoas, refletir sobre a justiça torna-se
imprescindível. No entanto, o que é justiça? Este questionamento não apresenta uma
única solução. As definições de tal conceito variam conforme a teoria adotada para
respondê-lo.
Uma teoria contemporânea de extrema importância sobre a justiça, adotada por
este artigo, é aquela formulada pelo filósofo John Rawls. Nela, o referido autor
trabalha com o conceito de “justiça como equidade”.
John Rawls nasceu em Baltimore, estado de Maryland, nos Estados Unidos da
América, em 21 de fevereiro de 1921, e faleceu em Lexington, estado de
Massachussetts, no dia 24 de novembro de 2002.
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 515
Por ter vivido nos Estados Unidos da América durante o século XX pôde
acompanhar de perto dois momentos de grande efervescência: a luta pelos direitos
civis e a Segunda Guerra Mundial, da qual inclusive participou como soldado.
Como pensador de seu tempo, a obra de Rawls, que abrange os livros Uma
teoria da justiça (1971), Liberalismo político (1993, 1996 incluindo “Resposta a
Habermas”), Direito dos povos (1999), Collected papers, (1999), Lições sobre a
história da filosofia moral (2000) e Justiça como eqüidade – Uma reformulação
(2001), é uma tentativa de responder aos conturbados acontecimentos por ele
presenciados.
Logo, por ser o homem diretamente influenciado pela sociedade em que vive, a
obra de Rawls não pode ser dissociada do contexto no qual estava inserido. Sendo
assim, a exposição que se segue sobre a teoria da “justiça como equidade”, bem como
as considerações acerca da noção, extensão e amplitude da razão pública não podem
deixar de serem analisadas tendo essas considerações como fundo.
I Teoria da justiça como equidade: uma breve apresentação
A análise da teoria da “justiça como equidade”, tratada por John Rawls, tem
como ponto de partida a posição original. A posição original consiste em um
procedimento de apresentação, pelo qual é introduzida uma situação hipotética,
equivalente ao estado de natureza em sua mais alta abstração. Nessa situação, os
homens são livres, desinteressados e racionais. Não possuem consciência do lugar que
ocupam na sociedade e nem de suas aptidões, isto porque são cobertos pelo “véu da
ignorância”.
O “véu da ignorância”, assim como a posição original, faz parte de uma
construção procedimental de uma situação hipotética, sendo parte essencial daquela.
Mostra-se um recurso necessário para afastar os interesses pessoais daqueles
envolvidos na situação original. Tal ignorância do lugar ocupado na sociedade, bem
como das aptidões, é garantia de que as escolhas dos indivíduos ocorram de modo mais
adequado com a justiça, isto é, de acordo com a razão, pois ficam afastados quaisquer
auto-interesses.
Mesmo ignorando seu lugar na sociedade, os indivíduos encontram-se
associados na posição original e, por isso, devem, dentre várias opções, escolher nortes
516 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
de justiça. Como estão cobertos pelo “véu da ignorância”, os cidadãos podem eleger
princípios de justiça “realmente justos”, já que não são influenciados por seus próprios
interesses. Essa escolha é feita a partir de um pacto de vontades livres.
É justamente em decorrência da eleição livre, desinteressada e razoável, ou seja,
de todos naquele primeiro momento serem realmente iguais e desconhecerem sua
posição na sociedade, é que a justiça na teoria de Rawls é uma justiça como equidade.
Assim, a justiça como equidade é “objeto de um acordo original em uma situação inicial
adequadamente definida”3.
Se é objeto de um acordo de vontades, de um contrato, a eleição dos princípios
da “justiça como equidade” consiste na escolha mais plausível, mais aceitável de
justiça, dentre várias opções. Em outras palavras, a eleição dos princípios de justiça é
a resolução do problema apresentado na posição originária a partir do critério de
aceitabilidade aferida racionalmente (trata-se de uma questão de razoabilidade). E é
exatamente neste ponto que reside a importância da teoria: em demonstrar que os
homens escolheram os princípios de justiça de forma racional, razoável, sendo
possível, então, explicar as diferentes concepções de justiça, e, principalmente,
descobrir o que é justo em uma dada situação concreta.
Rawls, partindo de uma interpretação filosófica adequada, na qual adequação
deve ser entendida como um equilíbrio reflexivo4, sustenta que as pessoas presentes
na situação originária elegeriam dois princípios de justiça antagônicos:
A – Princípio da liberdade igual para todos, e
B – Princípio da diferença.
Em síntese, o princípio da liberdade igual para todos, que se sobrepõe
“lexicalmente” ao segundo princípio, justifica-se ante ao “véu da ignorância” presente
na posição original. Como os homens não são movidos pelo auto-interesse, há
inicialmente uma divisão igualitária dos bens.
Todavia, mesmo supondo a igualdade de oportunidades, existe um momento
em que, por determinados motivos, há uma desigualdade insuperável. Contudo, essa
desigualdade só será justa se resultar em vantagens recompensadoras para todos, e
RAWLS, J. Uma teoria da justiça, p. 144.
De acordo com Luiz Paulo Rouanet, em Rawls e o renascimento da filosofia política, p. 13 e 14, o
equilíbrio reflexivo “é a ponderação a partir de uma posição mais universal, não restrita a meus próprios
interesses mais imediatos, atingir o consenso por sobreposição (overlapping consensus), que é
justamente o consenso que se obtém “passando por cima” (overlapping) das características demasiado
particulares de minha concepção”.
3
4
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 517
principalmente para os menos abastados (princípio da diferença).
Em outros termos, a desigualdade só é aceitável a partir do momento em que todos
dispõem dos bens sociais primários, que podemos entender como saúde,
educação, moradia e alimentação em um mínimo aceitável, que pode variar de
acordo com o grau de opulência, ou de miséria, da sociedade5.
Ambos os princípios tratam de reivindicações conflitantes das vantagens
conquistadas a partir da cooperação social (critério da reciprocidade), por isso, seu
objeto primeiro é a estrutura básica da sociedade.
O autor define como estrutura básica da sociedade a “maneira como as
principais instituições políticas e sociais da sociedade interagem formando um sistema
de cooperação social, e a maneira como distribuem direitos e deveres básicos e
determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social no transcurso
do tempo”6.
As instituições, portanto, podem ser consideradas de dois aspectos: “como um
objeto abstrato, ou seja, como uma forma de conduta expressa por um sistema de
normas”7, fruto de uma aceitação pública (sendo essa a moral ou até o próprio direito),
ou como “a efetivação dos atos especificados por essas leis no pensamento e na conduta
de certas pessoas em determinado momento e lugar”8, devido à exigibilidade social
(eficácia social das normas morais e jurídicas). Este funcionamento dos arranjos
sociais entendidos como públicos, na realidade, é oriundo da ação e da aceitação dos
princípios de justiça.
Rawls acrescenta que as principais instituições eficientes para atender os
princípios de justiça são as da democracia constitucional bem-ordenada 9 . Porém,
ainda que eficientes, é necessário um sistema de simplificação da aplicação desses
princípios, e essa sistematização é efetuada por meio dos quatro estágios. Tema que
será tratado em momento oportuno.
ROUANET, J.P. Rawls e o renascimento da filosofia política, p. 07
RAWLS, J. apud ROUANET, J.P. Ibid, p. 07
7 RAWLS, J. Uma teoria da Justiça, p.66
8 Idem. Ibid, p. 66
9 Rawls, em seu livro Liberalismo político, p. 35, caracteriza a sociedade constitucional bem ordenada
a partir de três elementos: 1- é uma sociedade na qual cada um aceita, e sabe que todos os outros
aceitam, exatamente os mesmos princípios de justiça (implica a ideia de uma concepção publicamente
reconhecida de justiça); 2- a estrutura básica é publicamente tida, ou tem-se boas razões para acreditar
nisso, como satisfazendo a esses princípios (implica a ideia da regulação efetiva de tal concepção), e 3seus cidadãos possuem um senso de justiça normalmente eficaz e desse modo eles geralmente acatam
as instituições básicas da sociedade, que eles encaram como justas.
5
6
518 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
A priori cabe-nos adiantar que em cada um dos quatro estágios, cujo grau de
abstração e o uso do “véu da ignorância” sofrem variações, há deliberação, afinal,
Rawls opera sua teoria a partir de uma democracia deliberativa.
Acredita-se que neste ponto uma primeira dificuldade foi superada: ao leitor
foram expostas diretrizes gerais da “justiça como equidade”. Assim, após a concisa
delimitação do pensamento de Rawls, suscita-se novamente a questão das
desigualdades.
Em uma sociedade – doméstica – razoavelmente justa as desigualdades devem
ser dirimidas por todos os cidadãos, e daí reside à importância do que Rawls chama de
razão pública10.
II A razão pública em John Rawls
O autor constrói de maneira sistemática a ideia de razão pública nos livros
Liberalismo político e Uma teoria da justiça, e no ensaio “A ideia da razão pública
revista”, apesar de expô-la sob diferentes enfoques nos respectivos textos.
Os dois livros [respectivamente Uma teoria da justiça e Liberalismo político] são
assimétricos, embora ambos tenham uma ideia de razão pública. No primeiro a
razão pública é mais abrangente, ao passo que no segundo a razão pública é uma
maneira de raciocinar a respeito de valores políticos compartilhados por cidadãos
livres e iguais, que não se imiscui nas doutrinas abrangentes dos cidadãos contanto
que essas doutrinas sejam compatíveis com uma sociedade democrática11.
No presente artigo serão levados em consideração apenas os pontos tangentes
entre as ideias de razão pública, a fim de tornar único um conceito que apresenta
pequenas variações (mesmo porque a razão pública apresentada no primeiro livro
acaba por abranger a outra) e de possibilitar aceitação dos temas aqui adotados em
quaisquer das situações. Feito esse esclarecimento, adentra-se na seara da razão
pública12.
CUNHA, S.S. O direito dos povos, p. XV.
RAWLS, J. A ideia da razão pública revista, p. 235
12 Cumpre ressaltar que o termo “razão pública” foi adotado pelo autor em decorrência de sua teoria de
“justiça como equidade” ser pautada na razoabilidade, na razão dos indivíduos e de essa razão ser
utilizada em três situações ditas públicas. A saber, são elas o uso da razão por todos, já que há isonomia
(razão do público); a adoção de medidas que privilegiem a todos, constituindo questão de justiça básica
(bem público); e a razão é pública quando o raciocínio tem a natureza e o conteúdo de origem pública.
Ademais, segundo o autor, a razão pública apresenta uma estrutura bem definida, sem a qual existe uma
descaracterização, composta por cinco aspectos: (a) questões políticas fundamentais a quais se aplica,
10
11
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 519
Rawls apresenta um conceito extremamente restrito da ideia de razão pública.
Para ele, a razão pública aplica-se somente nos discursos dos juízes, dos funcionários
do governo e dos candidatos a cargos públicos e de seus chefes de campanha, e na
participação do povo em plebiscitos. Isso porque, como a razão pública é a mais clara
explicitação de um governo democrático constitucional com seus cidadãos e a relação
destes entre si, somente as supracitadas pessoas representam tal relação, seja por
criarem políticas públicas, seja por solucionarem problemas do bojo social.
Quanto ao conteúdo da razão pública, Rawls formula que este é resultado de
várias concepções políticas de justiça, ou seja, o conteúdo da razão pública é composto
pelos vários princípios e valores integrantes das concepções políticas liberais, no
momento em que questões políticas de fundamental importância são debatidas com o
escopo de satisfazer os imperativos de justiça assim considerados por meio da
razoabilidade.
Nas palavras do filósofo:
Um cidadão participa da razão pública, então, quando delibera no contexto do que
considera sinceramente como a concepção política de justiça mais razoável, uma
concepção que expresse valores políticos dos quais também possamos pensar
razoavelmente que outros cidadãos, como livres e iguais, poderiam endossar. Cada
um de nós deve ter princípios e diretrizes aos quais recorremos de tal modo que
esse critério seja satisfeito.13
Surge, nesse momento, uma aparente contradição entre a mencionada restrição
na razão pública e a possibilidade de participação de todos os cidadãos,
indistintamente.
Realmente, Rawls constrói uma razão pública restrita, porém, isso não exclui a
participação dos demais cidadãos.
Em primeiro lugar, afirma-se isso com base no próprio conteúdo da razão
pública, que parte do pressuposto da igualdade entre os cidadãos e do uso da razão de
cada um, bem como de um sistema justo de cooperação entre os indivíduos a partir da
escolha de critérios razoavelmente justos.
Em segundo lugar, porque Rawls constrói um conceito “ideal de razão pública”.
Ao contrário do que acontece com a “ideia de razão pública”, o ideal não é
(b) pessoas a quem se aplica (juízes e funcionários públicos), (c) conteúdo, (d) aplicação do conteúdo
em discussões para exegese legítima de normas destinadas a democracia, e (e) verificação pelos cidadãos
de que os princípios derivados de suas concepções de justiça satisfazem o critério da reciprocidade
13 Ibid.
520 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
intrinsecamente estrito às justificações das posições políticas de justiça razoavelmente
consideradas por juízes, funcionários públicos etc., que, ao agirem de acordo com a
ideia de razão pública, acabam por concretizar o ideal de razão pública.
O ideal de razão pública possibilita que todos possam concretizá-lo. Para tanto,
os cidadãos devem idealizar
14
que são legisladores, visto que esses, em uma
democracia, são representantes do povo. Devem, assim, “pensar em si mesmos como
se fossem legisladores”15, e a partir dessa posição analisar, fazendo uso de sua própria
razão, quais normas são mais compatíveis com a justiça e com o critério de
reciprocidade. Feita essa análise, devem exigir dos funcionários do governo que ajam
adequadamente à luz dessas normas razoáveis. Rawls nomeia essa atividade de “dever
de civilidade” 16 , própria de uma democracia constitucional bem-organizada, pois é
fruto de uma relação de liberdade e igualdade entre os cidadãos e da relação destes
com a estrutura básica.
Por fim, Rawls apresenta uma concepção de razão pública composta por quatro
estágios 17 . Como dito anteriormente, a finalidade dos quatro estágios é facilitar a
aplicação dos princípios de justiça em uma democracia constitucional bem-organizada
a partir de um esquema18, ou seja, os quatro estágios nada mais são do que a ordem
seqüencial de aplicação dos princípios de justiça. Conforme exposição do autor19, são
os quatro estágios:
(1) posição original,
(2) estabelecimento da constituição,
(3) estágio legislativo, e
(4) aplicação das regras.
O primeiro estágio é a posição original. Nela são eleitos os princípios de justiça
(princípio da liberdade igual para todos e princípio da diferença). Os nortes de justiça
na sociedade democrática constitucional bem-ordenada serão dados justamente a
partir desses princípios. Nesse momento há um alto grau de abstração, os indivíduos
O termo “ideal” de razão pública advém justamente de os cidadãos não funcionários do governo
idealizarem-se como se fossem legisladores.
15 Idem. Ibid, p.185
16 Idem. Direito dos povos, p 71
17 Segundo Rawls, em Uma teoria da Justiça, p. 241, nota1, a ideia de seqüência dos quatro estágios é
vista na Constituição dos Estados Unidos.
18 Rawls, ao criar, por meio dos quatro estágios, um procedimento para facilitar a aplicação dos
princípios de justiça, levando em consideração a complexidade de cada etapa e considerando que em
cada estágio há um ponto de vista a ser observado, cria uma noção de justiça procedimental imperfeita.
19 Idem. Uma teoria da justiça, p. 239 apud 246
14
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 521
são cobertos pelo “véu da ignorância”, desconhecendo totalmente o lugar que ocupam
na sociedade.
O segundo estágio é o estabelecimento de uma constituição por meio de uma
convenção constituinte. A elaboração dessa convenção deve ter como alicerces os
princípios da justiça, principalmente do primeiro, com o intuito de que esta
constituição seja justa e projete uma legislação justa e eficaz.
Nessa etapa ocorre a elaboração dos direitos fundamentais dos cidadãos, bem
como é criado um sistema para os poderes governamentais. A partir disso, sempre com
base nos princípios da liberdade igual para todos e da diferença, cria-se um padrão
para os vários resultados desejados, sempre dentro de uma variabilidade possível.
Por já terem sido eleitos os parâmetros de justiça, retira-se parcialmente o véu
da ignorância. Os homens ainda não sabem quais lugares ocupam na sociedade, mas
possuem entendimento de fatos genéricos sobre ela20.
O terceiro estágio consiste no estágio legislativo. Nele serão analisadas a justiça
das leis e das políticas, tendo em vista os princípios de justiça e a constituição
formulada no estágio anterior.
A avaliação das leis e políticas ocorre mediante uma votação, na qual os
indivíduos colocam-se como legisladores representativos e, numa espécie de
movimento espiral, comparam a justiça das leis e políticas com os parâmetros
definidos nos estágios anteriores. Tal movimento propicia não só a justiça das leis e
políticas, como também a descoberta de uma constituição mais adequada.
Nesse momento, o véu da ignorância é retirado um pouco mais, deixando
revelar alguns itens da estrutura fundamental relacionados à hierarquia e a fatos
genéricos da sociedade. Há certa diferenciação, porém, fica preservada a igualdade de
oportunidades. Nota-se o destaque do segundo princípio no estágio legislativo.
Contudo, por ser a constituição superior à legislação, o princípio da diferença é
mitigado pelo princípio da liberdade igual para todos, relevante no segundo estágio.
Em termos de Brasil, o segundo estágio é muito bem exemplificado quando temos em mente o poder
constituinte. O poder constitucional originário de 1988 elegeu alguns princípios, como o da dignidade
da pessoa humana, função social da propriedade, etc.(princípios considerados como justos, e de suma
importância para toda ordem e ordenamento jurídico), e construiu a Constituição Federal de 1988 sob
a sua égide, formulando tanto os direitos e garantias fundamentais (art. 5º) como a organização do
Estado. Por ser a Constituição Federal a Lei Maior do país, as leis-infraconstitucionais, em sentido
amplo, foram todas diretamente criadas em congruência com tais princípios, tanto por uma questão de
validade, quanto por uma questão de legitimidade.
20
522 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Por último, está o quarto estágio. Nele as normas são aplicadas pelos juízes e
administradores aos casos concretos. Para os demais cidadãos, o quarto estágio
consiste na observância das normas. Nessa última etapa, todos têm consciência do
lugar que ocupam na sociedade, o véu da ignorância é totalmente retirado. Não mais
pode se falar em abstração. Depara-se tão somente com uma situação concreta. Isso
porque, a tarefa de formular um sistema normativo foi rematada, restando apenas o
dever de aplicar tal sistema aos indivíduos exatamente em sua situação – concreta –
na sociedade. Logo, não há mais motivo para o véu da ignorância, muito pelo contrário,
o acesso irrestrito às informações mostra-se indispensável nesse momento.
Como conclusão desse tópico, a razão pública de Rawls é composta pela
seqüência dos quatro estágios, cujas características foram expostas acima. Em cada
um desses estágios tem-se a deliberação, ou seja, os indivíduos indiscriminadamente
participam da esfera pública, mesmo que em diferentes graus de participação e de
abstração.
Com isso, a aparente contradição entre a extensão da razão pública e seu
conteúdo é resolvida por meio de três argumentos já explanados: no próprio conteúdo
da razão pública, no conceito ideal de razão pública, e principalmente na deliberação
que ocorre nos quatro estágios, na qual há diferentes graus de participação popular,
tema tratado a seguir.
III Deliberação: a seqüência dos quatro estágios e a participação popular
Como mencionado, Rawls constrói um conceito de razão pública fazendo uso da
sequência de quatro estágios. O uso desse recurso visa demonstrar a deliberação em
cada uma dessas etapas. Entretanto, ocorre uma variação nos graus de participação
popular e das condições de tal participação, em razão dos diferentes graus de
abstração.
O objetivo dessa exposição sucinta da sequência de 4 estágios na TJE (Teoria da
Justiça como Eqüidade) era demonstrar a presença, em todas as etapas, da
deliberação, inicialmente com abstração total das condições e chances respectivas
dos participantes, até o conhecimento completo de todos os interesses envolvidos
por parte dos agentes, ou pelo menos aqueles envolvidos na deliberação21.
21
ROUANET, J.P. Democracia deliberativa: uma apreciação, p. 05.
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 523
Chama-se especial atenção para as últimas linhas da citação, pois nela há uma
clara relação direta de proporcionalidade entre as chances de participação popular e o
grau de abstração: quanto maior a abstração, maior a chance de deliberação de todos
os indivíduos, como veremos abaixo de maneira pormenorizada.
O primeiro estágio, isto é, a posição original, possui o mais alto grau de
abstração, em decorrência do uso do “véu da ignorância” (faz com que os indivíduos
desconheçam seu lugar na sociedade).
Por se tratar de uma cláusula contratualista22, na qual o objetivo é eleger os
princípios de justiça que nortearão a sociedade, a posição original pressupõe um
acordo de vontades livres e iguais.
Tal igualdade é reforçada, na teoria de Rawls, pelo uso do referido artifício.
Como não existe a consciência do lugar ocupado, os indivíduos estão em uma situação
de isonomia absoluta. A única preocupação é não saírem prejudicados.
Em outras palavras, no momento de escolha dos princípios de justiça, por serem
todos os cidadãos iguais, a única preocupação será eleger justamente aqueles
princípios de justiça que, pelo menos, não os prejudiquem, ou seja, princípios
realmente justos.
A eleição desses princípios de justiça ocorre por meio de uma deliberação entre
as várias possibilidades. Como todos os indivíduos desconhecem o lugar que ocupam
na sociedade, são isonômicos. Perante essa isonomia há uma igualdade de participação
irrestrita. Todos têm, pelo menos, acesso incondicional à participação nessa
deliberação, pois devem garantir, e têm capacidade para tanto, que parâmetros justos
sejam escolhidos para nortear a sociedade organizada.
Adverte-se, porém, que nessa etapa não há deliberação “propriamente dita” 23,
mas, por meio da razão, da razoabilidade, são eleitos os únicos princípios plausíveis,
dentre as várias opções, para uma democracia constitucional bem-organizada.
22 Segundo Luiz Paulo Rouanet, em Rawls e o renascimento da filosofia política, p. 03: “A posição
original (PO daqui por diante) é claramente uma cláusula contratualista. A grande diferença em relação
aos demais autores contratualistas - Hobbes, Rousseau e Locke, sobretudo - reside, talvez, no fato de se
assumir, mais explicitamente do que nunca, que se trata de uma situação hipotética. Além disso, não
existe uma concepção clara de pessoa, não há uma concepção geral de natureza humana, pelo menos
publicamente assumida. Pode-se argumentar que só se recorre ao véu de ignorância porque se
pressupõe uma natureza egoísta e auto-interessada do homem. Mas isso não é necessariamente
verdadeiro: a réplica poderia ser que o véu de ignorância apenas cobre todas as possibilidades, inclusive
esta última”.
23 Por “deliberação ‘propriamente dita’”, termo criado para uso neste artigo, entende-se a ausência da
previsibilidade da situação. Na realidade, substitui-se o termo racionalidade deliberativa utilizado por
524 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Apesar disso, creio que as duas teorias [de Rawls e Habermas] podem efetivamente
se aproximar e se complementar exatamente na etapa da deliberação, na segunda
fase da teoria de Rawls. Esta prevê uma primeira etapa, a da escolha dos princípios
que nortearão a futura sociedade justa, escolha que se dá mediante o artifício do
“véu da ignorância”. Uma vez escolhidos os princípios, que são dois (o da liberdade
igual para todos e o da diferença), cada sociedade, nos planos doméstico e local
(povo e instituições), escolherá então como colocá-los em prática em suas próprias
sociedades. É nessa etapa que deve ter lugar a complementaridade com a teoria de
Habermas24.
Chega-se a essa conclusão, uma vez que, na posição original, os indivíduos
cobertos pelo “véu da ignorância” não possuem domínio sobre as condições presentes
e nem sobre os impactos futuros de suas escolhas atuais. Falta, por conseguinte, um
item essencial à deliberação: a consciência.
Assim sendo, nesse estágio usa-se a racionalidade e a razoabilidade, todavia não
como modo de deliberação, mas como a única escolha possível dentro dos limites
razoáveis de justiça, na qual todos podem participar ilimitadamente, justamente pela
situação de igualdade imposta pelo uso do “véu da ignorância”.
Eleitos os princípios de justiça (o da liberdade igual para todos e o da diferença),
passa-se para o segundo estágio, o da convenção constituinte, o da formação da
constituição.
O segundo estágio também possui alto grau de abstração, pois o “véu da
ignorância”, que continua a encobrir os indivíduos efetivamente, entretanto sofre uma
redução. A consciência do lugar ocupado na sociedade ainda é muito restrita, de toda
maneira, os cidadãos passam a ter conhecimento de algumas informações gerais.
Apesar de os princípios de justiça nortearem os rumos da constituição, a
convenção constituinte levará em consideração os fatos acerca da sociedade das quais
os indivíduos já têm consciência. Dessa forma, o requisito a propiciar a deliberação
“propriamente dita”, e ausente no estágio anterior, é preenchido.
Nessa deliberação há uma redução mínima na participação indiscriminada dos
cidadãos, em consequência da pequena diminuição do grau de abstração. Contudo essa
diminuição é ínfima, em termos ideais.
Como persiste uma grande indeterminação em relação aos lugares na
sociedade, é conveniente que todos participem da criação da constituição, com o
Rawls por outro, a fim de diferenciar a racionalidade “comum” e a racionalidade combinada com a
vontade de progredir a partir da previsibilidade, ou seja, da racionalidade deliberativa.
24 Idem. Paz, justiça e tolerância no mundo contemporâneo, p 105 e 106.
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 525
propósito de assegurar justiça, assim entendida com base nos princípios eleitos e no
entendimento dos fatos genéricos até então sabidos, no processo de estabelecimento
do sistema político de governo e de fixação dos direitos fundamentais. É conveniente,
portanto, que todos participem da deliberação dos rumos tomados pela sociedade.
Na prática, quando se leva em consideração as convenções constituintes, tais
como ao do Brasil, essa redução na participação popular mostra-se significativa.
Ocorre, na realidade, uma participação massiva do povo em um primeiro
momento, o da eleição dos representantes que farão parte da convenção constituinte.
Em um segundo momento, o da deliberação, há uma exclusão da direta participação
popular, ocorrendo a deliberação tão somente entre aqueles eleitos.
Logicamente, os representantes, como o próprio termo indica, representam a
sociedade, que, então, estaria participando da deliberação, mas a participação direta
fica marginalizada.
Em verdade, as condições de participação direta, tal como imaginada por
Rousseau e posteriormente preconizada por Rawls, exceto na posição original (ou
estado de natureza), situação totalmente hipotética, mostra-se viável somente em
sociedades extremamente pequenas, tal como a que Rousseau viveu.
Há de se destacar uma exceção no que acabamos de afirmar. No Brasil houve a
participação popular direta quanto a um dos itens elementares ao segundo estágio da
teoria de Rawls e da formação de uma constituição: o poder constitucional originário
previu, por meio do artigo 2º dos Atos das Disposições Constitucionais Provisórias,
um plebiscito, a ser realizado no dia 7 de setembro de 1993, no qual o eleitorado
definiria a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo
(parlamentarismo ou presidencialismo) que deveriam vigorar no País. Infelizmente,
porém, como já alertado, trata-se de caso excepcional de participação direta em
deliberações, ou mesmo de voto excetuada a época de eleições dos representantes do
governo e do Estado.
Findo o procedimento de criação constitucional, passa-se para o terceiro
estágio, o legislativo. O estágio legislativo equipara-se ao estágio da convenção
constituinte tanto pelo grau de abstração, quanto pelo grau de participação popular,
novamente em termos ideais da teoria rawlsiana.
Novamente se analisarmos na prática, o estágio legislativo é muito restrito à
representação. Por exemplo, no Brasil há na Constituição, artigo 14, inciso III, a
526 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
possibilidade de propositura de projeto-lei à Câmara dos Deputados, versando
somente sobre um assunto, a partir da iniciativa popular. Para tanto, tal iniciativa deve
estar subscrita por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo
menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de
cada um deles (regulamentação disposta pelo artigo 13 e parágrafos da Lei 9.709/98).
Esse seria um importante mecanismo da democracia direta. No entanto, as
exigências contidas no artigo 13 da Lei 9709/98 tornam quase faraônica a tarefa de
cumprir todos os requisitos. Até o momento apenas quatro projetos-lei de iniciativa
popular foram convertidos em norma. O primeiro foi a Lei 8930/94 (Lei de crime
hediondos) e a mais recente a chamada “Lei da Ficha Limpa”.
De qualquer modo, a participação popular no terceiro estágio da teoria de
Rawls, encontra, concretamente, outra maneira de ocorrer: há possibilidade de
controlar a constitucionalidade dos atos normativos. Assim, quando o autor descreve
que no estágio legislativo há uma espécie de movimento repetitivo de análise, com a
finalidade de comparar a justiça das leis e políticas à constituição e,
consequentemente, com os princípios de justiça, essa tarefa não é restrita somente ao
plano ideal, mas ainda que na prática, conta com média, ou ampla, possibilidade 25 de
participação de todos os cidadãos, por meio dos chamados remédios constitucionais,
por exemplo.
Por fim, no quarto estágio o véu da ignorância é retirado. Não há mais
abstração, os lugares na sociedade foram revelados, pois o sistema normativo
encontra-se pronto. Resta somente as normas serem aplicadas pelos juízes e
administradores aos casos concretos, e aos demais cidadãos cumpri-las.
Nesse momento, ainda que em uma sociedade justa, tem-se um desequilíbrio
de forças e de condições. Com esse desequilíbrio, a participação popular torna-se
restrita.
Apesar de o judiciário e os demais Poderes do Estado existirem para concretizar
o interesse público, eles estão em uma posição de superioridade em relação aos
indivíduos. Deixa-se claro que isso não é prejudicial aos cidadãos, muito pelo
contrário, é essencial à função estatal, como mantenedora do interesse público, tal
supremacia, desde que seus limites de atuação sejam bem definidos (essa limitação é
Adota-se o termo “possibilidade”, pois há a faculdade para todos participarão, o que difere da efetiva
participação.
25
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 527
dada pelos direitos fundamentais do indivíduo, constituídos no segundo estágio).
Inegável é, porém, que essa superioridade, esse desequilíbrio, gera um
distanciamento popular. Até porque o acesso aos cargos públicos, apesar de
inicialmente todos terem tido condições iguais de acesso, é restrito a poucos
indivíduos, e somente esses poderão efetivamente atuar no quarto estágio.
Quanto à segunda parte de atividades compreendida no quarto estágio, a
obediência dos cidadãos às normas, não há de se falar em atividade deliberativa. Não
há propriamente uma participação por meio de uma conduta ativa, há uma obrigação
de não fazer, de não descumprir o sistema normativo.
O homem médio, por meio de sua razão e razoabilidade, e por preceitos de
ordem moral, segue as normas, mas não há ativa e efetiva participação. Somente temse uma forma passiva de atividade. Alem disso, àqueles que agem de maneira ilícita
pode o Estado aplicar o jus puniendi.
Em síntese, a participação popular é diretamente proporcional ao grau de
abstração. Na posição original (primeiro estágio) todos têm ampla possibilidade de
participação. No segundo estágio, quando o “véu da ignorância” é parcialmente
retirado, ainda há possibilidade de participação irrestrita, com uma ínfima redução.
Todavia, a aplicabilidade desse estágio é falha, pois na prática já nesse momento a
participação popular é condicionada à representação, ficando a participação popular
direta marginalizada.
O terceiro estágio, no qual o uso do “véu da ignorância” sofre outra redução,
assemelha-se com o que ocorre no estágio anterior. Em termos da teoria rawlsiana há
ampla participação popular, mas na prática pouco se opera, pois os cidadãos acabam
não se colocando no papel de legisladores, mas acabam realmente elegendo-os e
restringindo a deliberação somente a eles. Excetua-se a esse contexto a interpretação
feita em espiral das normas à luz da constituição e dos princípios de justiça, pois os
indivíduos têm possibilidade de executar essa tarefa, em casos concretos, mesmo
perante o Estado.
Por fim, o quarto estágio, no qual o uso do véu da ignorância é totalmente
retirado, há um desequilíbrio de forças advindo do lugar concretamente ocupado pelos
indivíduos. Em decorrência, a participação popular na deliberação torna-se restrita a
um pequeno grupo: a dos funcionários do governo e do povo tão somente quando age
nesse sentido (votação em plebiscitos). Aos cidadãos em geral, cabe somente respeitar
528 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
as normas, o que ocorre por prudência, e moralidade, mas não há que se falar em
deliberação. Nota-se que nessa etapa, na qual a sociedade já está completamente
estabelecida, tem-se a ideia de razão pública de extensão restrita, inicialmente
explanada neste artigo, ao contrário do que acontece com a proposta de esfera pública
de Jürgen Habermas.
IV A esfera pública de Jürgen Habermas e a razão pública de John Rawls
Como anteriormente tratado, a noção de razão pública em John Rawls, em uma
sociedade já estabelecida (último estágio em sua teoria dos quatro estágios) possui
extensão restrita, compreendendo somente os discursos dos juízes, dos funcionários
do governo e dos candidatos a cargos públicos e de seus chefes de campanha; a
participação do povo em plebiscitos; e nas ações efetuadas na concepção de “ideal de
razão pública”. Ao contrário do que acontece na noção de esfera pública de Jürgen
Habermas.
Para Habermas, “a esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada
para a comunicação de conteúdos, tomadas de posições e opiniões; nela os fluxos
comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões
públicas enfeixadas em temas específicos”26.
Em outras palavras, a esfera pública em J. Habermas abrange praticamente
tudo o que não é privado. Nela, há um espaço para deliberação, na qual os indivíduos,
indiscriminadamente, podem participar por meio do agir comunicativo, isto é, no agir
pautado pelo entendimento do cotidiano, que, por sua vez, gera discursos de
convencimentos pautados na racionalidade.
A esfera pública não possui um conteúdo pré-determinado, seus limites são
móveis, podendo ser alterados conforme a necessidade. Tão pouco ela é instrumento
oportuno para a tomada de decisão.
Os temas nela discutidos têm por fundo os problemas sociais somados às
aflições de cada indivíduo. Assim, a cada momento em que se discute um desses temas,
a comunicação da esfera pública adentra na vida privada. No entanto, apesar da esfera
pública em Habermas ser extremamente abrangente, no momento em que essa
26
HABERMAS, J. Direito e democracia – entre facticidade e validade – II, p. 92.
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 529
comunicação ocorre utilizando-se dos impulsos da vida privada, o debate deixa de
existir de maneira pública, a passa a ser travado na esfera privada.
O limiar entre esfera privada e esfera pública não é definido através de temas e
relações fixas, porém através de condições de comunicação modificadas. Estas
modificam certamente o acesso, assegurando, de um lado, a intimidade, e de outro,
a publicidade, porém elas não isolam simplesmente a esfera privada da esfera
pública, pois canalizam os temas de uma esfera para outra. A esfera pública retira
seus impulsos da assimilação privada dos problemas sociais que repercutem nas
biografias privadas.27
Em verdade, o objetivo da esfera pública é perceber e pontuar problemas da
sociedade, discutindo-os, e, conforme a aceitação e o status de tal deliberação, tais
opiniões são enfeixadas, originando a chamada opinião pública.
A opinião pública, consequentemente, não servirá para a tomada de decisões, já
que essa função cabe às instituições. Por ser formada, porém, por apreciações que
gozam de ampla aceitação e grande status, a opinião pública influencia diretamente o
sistema político, seja por ter ação sobre o comportamento dos eleitores ou nas ações
dos representantes. Cabe, portanto, a esfera pública legitimar essa influência, pois
trata de um campo de persuasão.
Ademais, para Habermas, a esfera pública nos moldes atuais surgiu com a
chamada “esfera pública burguesa” 28 , em razão de sua configuração quase 29 que
inédita.
Inicialmente, a esfera pública compreendia um aglomerado de pessoas privadas
reunidas em público, cujos temas em debate eram as políticas de mercado, e a
regulamentação e a detenção da autoridade, em detrimento do monarca.
Com a sua consolidação, por meio de deliberações em salões, cafés, teatros e,
posteriormente, contando com a massificação da cultura e da igualdade e liberdade
dos cidadãos, variados temas, sempre a partir das experiências e “espelhos” da esfera
privada, tais como o sentido das leis e sua aplicabilidade, foram também sendo objeto
dessa esfera pública burguesa, até ela adquirir o contorno de uma esfera pública
política, próxima ao que é hoje.
Ibid.
Idem. Mudança estrutural ad esfera pública, p. 42.
29 Adota-se o termo “quase” inédita, pois Habermas, em Mudança estrutural ad esfera pública, p. 44,
ensina que a esfera pública burguesa “preserva uma certa continuidade da representação pública da
corte”.
27
28
530 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Logo, a noção de razão pública de J. Rawls e de esfera pública de J. Habermas,
apesar de terem, de certa maneira, a mesma função, possuem extensões extremamente
diferentes. Enquanto a primeira é restrita, a segunda é muito ampla.
Contudo, não obstante as diferenças, em muitos aspectos essas noções se
assemelham, principalmente quando se tem em mente a teoria dos quatro estágios de
Rawls.
A teoria dos quatro estágios conta, em todas as etapas, com a deliberação, ainda
que na posição original (primeiro estágio) não haja uma deliberação “propriamente
dita”, pois falta o elemento consciência em decorrência dos indivíduos estarem
cobertos pelo “véu da ignorância”. Entretanto, nos outros três estágios há, sem dúvida,
pelo menos idealmente, a possibilidade, maior ou menor, de deliberação. É justamente
a deliberação o ponto convergente da esfera pública e da razão pública.
È por meio da deliberação que a esfera pública de Habermas é construída. É por
meio dela que se dá a existência do agir pautado no convencimento. A deliberação é
instrumento do agir comunicativo, pois ela envolve uma argumentação racional, e a
adoção, ou não, de determinada posição deve ser pautada apenas na razão.
Consequentemente, as influências sofridas na política em razão da opinião
pública, e a própria legitimação política da esfera pública, contam com os resultados
diretos da deliberação, e dela em si, afinal, a opinião pública nada mais é do que um
feixe de opiniões relevantes, que só atingiram tal status por terem sido racionalmente
expostas e racionalmente adotadas a partir da deliberação.
Também, é por meio da deliberação que a sociedade na teoria rawlsiana é
formada e norteada após sua constituição. Somente fazendo uso dessa ferramenta
durante os quatro estágios é que se chega a uma sociedade justa.
Mediante a racionalidade, e razoabilidade, os indivíduos elegem os princípios
de justiça na posição original, é após a deliberação que os homens constroem uma
constituição e todo um sistema normativo, e é por intermédio dela que no quarto
estágio tem-se a efetiva aplicação dessas normas.
Um ponto de especial estreitamento entre as noções de razão pública e esfera
pública pode ser notado ao se analisar o estágio legislativo da teoria de Rawls. Nesse
estágio, os cidadãos, conhecendo alguns poucos elementos genéricos sobre a
sociedade, tais como a hierarquia, passam a formular as leis interpretando-as de
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 531
acordo com a constituição. Assim como ocorreu na “esfera pública burguesa” e assim
como ocorre na esfera pública como é hoje.
Obviamente, para essa aproximação entre as ideias, devem ser abstraídas duas
grandes diferenças.
A primeira consiste na construção das noções de razão pública e esfera pública:
Rawls formulou sua teoria em termos ideais, mas, foi influenciado, como todo homem,
pelo tempo e espaço em que viveu, ou seja, no fundo tratou de analisar a construção
da sociedade estadunidense30, ao passo que Habermas ao formular a noção de esfera
pública analisou concretamente a sociedade presente e passada.
A segunda importante diferença reside na consciência e nos objetivos dos
envolvidos nas situações. Enquanto os cidadãos no estágio legislativo não conheciam
com precisão seu lugar na sociedade e criaram a constituição e as leis buscando a
justiça, os cidadãos da esfera pública têm pleno conhecimento de suas condições e
possibilidades, e acabam por defendê-las.
Ainda sim, com essas duas importantes diferenças, acredita-se haver uma
grande aproximação entre o terceiro estágio da teoria de Rawls e a esfera pública de
Habermas. Isto porque, tem-se a gênese de normas a partir da deliberação,
principalmente na chamada “esfera pública burguesa”. Em ambos os casos se tem um
sistema normativo e político sendo formulado por meio da ampla razão dos indivíduos,
independente das razões que os motivem e da consciência de suas condições que
possuam.
Por fim, a esfera pública aproxima-se da razão pública em face ao “ideal de razão
pública”. Neste os indivíduos, não mais usando o véu da ignorância, passam a
idealizarem-se no lugar daqueles que efetivamente constituem a razão pública em uma
sociedade ordenada, isto é, juízes, membros do governo e Estado, e o povo ao votarem
em plebiscito.
Quando os cidadãos se colocam no daqueles que os representam e avaliam a
maneira mais justa de agir à luz dos dois princípios de justiça, cobrando-os de terem
condutas adequadas a esses moldes, além de se haver uma amplificação da noção de
razão pública, o espaço para o debate, para deliberação é novamente aberto, e os
30 Essa ideia de que Rawls, ainda que inconscientemente, teve como pano de fundo a construção da
sociedade americana para formular a sua teoria transparece no, já mencionado (nota 14), comentário
de que sua teoria da sequência dos quatro estágios é vista na Constituição Americana (Uma teoria da
Justiça, p. 241, nota1).
532 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
cidadãos como um todo passam a influenciar diretamente os rumos políticos, assim
como ocorre na esfera pública de Habermas.
Conclusão
A teoria de “justiça como equidade” de John Rawls, tem como ponto
fundamental a igualdade e liberdade dos indivíduos na posição original. Nela, os
indivíduos são cobertos pelo “véu da ignorância”, e, por desconhecerem o local que
ocupam na sociedade, elegem, por meio da racionalidade e da razoabilidade, dois
princípios de justiça realmente justos: o princípio da liberdade igual para todos e o
princípio da diferença.
Contudo, conforme adverte o próprio autor, a teoria da “justiça como equidade”
aplica-se somente às democracias constitucionais bem-organizadas. Sendo assim, a
ideia de razão pública torna-se um forte elemento de construção nessa teoria, pois é
reservado a ela o espaço para deliberação, tão caro a essas sociedades.
A razão pública apresenta uma concepção composta por quatro estágios, cuja
finalidade é fornecer um esquema para que sejam objetivados princípios de justiça. A
saber, são os quatro estágios: a posição original, o estabelecimento da constituição, o
estágio legislativo, e a aplicação das regras.
O primeiro estágio é a posição original. Nele há alto grau de abstração. Os
indivíduos são cobertos pelo véu da ignorância, desconhecendo seu lugar na sociedade.
É a partir desse desconhecimento que, como dito, são eleitos os princípios de justiça
(princípio da liberdade igual para todos e princípio da diferença).
Essa eleição ocorre por meio de uma deliberação (que não é a “propriamente
dita”, pois falta o elemento consciência) dentre os vários princípios a serem adotados.
Fulcrados no desconhecimento da posição que ocupam na sociedade, os cidadãos são
isonômicos, e, fazendo uso da razão e da razoabilidade, elegem os únicos princípios
aceitáveis para nortearem a justiça em uma democracia constitucional bemorganizada.
Nesse momento todos têm ampla possibilidade e capacidade de participar dessa
deliberação, pois possuem liberdade de expressarem-se e estão em posição de extrema
igualdade.
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 533
O segundo estágio consiste no estabelecimento de uma constituição por meio
de uma convenção constituinte, abrangendo, inclusive, os direitos fundamentais dos
cidadãos e um sistema para os poderes governamentais.
Ele também possui alto grau de abstração, pois o “véu da ignorância” deixa
transparecer apenas alguns conhecimentos genéricos sobre a sociedade.
A formulação da constituição conta também com a deliberação. Nessa
deliberação há, em termos ideais, uma ínfima redução na possibilidade de participação
indiscriminada dos cidadãos.
Como novamente haverá deliberação sobre os rumos da sociedade, e persiste
uma grande indeterminação em relação aos lugares sociais, é conveniente que todos
participem da criação da constituição, com o propósito de assegurar justiça, assim
entendida com base nos princípios eleitos e no entendimento dos fatos genéricos até
então sabidos.
Na prática, quando se leva em consideração as convenções constituintes, tais
como ao do Brasil, essa redução na participação popular mostra-se significativa.
O terceiro estágio equivale ao estágio legislativo. Nele é analisada a justiça das
leis e das políticas, tendo em vista os princípios de justiça e a constituição formulada
no estágio anterior.
Nesse estágio, o grau de abstração e de participação popular, em termos ideais,
equivalem aos do segundo estágio.
A avaliação das leis e políticas ocorre mediante uma deliberação, na qual há uma
interpretação, em forma de espiral, das políticas e das leis à luz da constituição e dos
princípios de justiça.
Essa interpretação, em termos ideais, não é quase restrita, pois todos ainda
teriam acesso a ela, justamente porque o “véu da ignorância” ainda os encobre.
Todavia, na prática, ocorre um grande tolhimento dessa participação, porém, menor
do que o ocorrido no segundo estágio, pois, apesar de a criação legislativa ficar a cargo
dos representantes do povo, há outros mecanismos que possibilitam essa
interpretação em espiral.
Por último, está o quarto estágio. Nessa última etapa não mais pode se falar em
abstração. Depara-se tão somente com a sociedade já estruturada e com a completa
consciência dos indivíduos.
534 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Nesse estágio, as normas são aplicadas pelos juízes e administradores aos casos
concretos. Aos demais cidadãos, o quarto estágio consiste na observância das normas.
Essa situação, ainda que em uma sociedade justa, gera um desequilíbrio de
forças e de condições. Com esse desequilíbrio a participação popular torna-se restrita.
Não só por quem participa efetivamente na razão pública, mas também porque os
cargos públicos não abrangem a muitos.
Quanto à obediência dos cidadãos às normas, não há de se falar em atividade
deliberativa, pois não há uma participação ativa, há uma obrigação de não fazer, de
não descumprir o sistema normativo.
À guisa de conclusão, a participação popular é diretamente proporcional ao grau
de abstração, conforme vimos acima.
Nota-se que a estrita noção de razão pública em Rawls, ao contrário do que
formulou Habermas em sua esfera pública, compreendida somente nos discursos dos
juízes, dos funcionários do governo e dos candidatos a cargos públicos e de seus chefes
de campanha, e na participação do povo em plebiscitos, equivale à noção presente no
quarto estágio, isto é, nas sociedades já estruturadas.
Isso porque, como a razão pública é a mais clara explicitação de um governo
democrático constitucional com seus cidadãos e a relação destes entre si, em uma
sociedade estruturada somente naquelas situações esta relação é concretizada.
No entanto, essa limitação na razão pública é fruto de sua observação na
sociedade organizada. Quando se tem em vista a formação da sociedade, a razão
pública, e a deliberação, tornam-se extremamente amplas, e daí assemelham-se à
esfera pública de Habermas, dependendo do grau de abstração da situação em análise.
E é isso que demonstra a teoria dos quatro estágios de Rawls: a razão pública é
composta por quatro estágios, que variam no grau de participação e abstração, sendo
esses elementos diretamente proporcionais, bem como a amplitude da razão pública.
Assim, não se pode restringir a razão pública somente à sociedade estruturada,
ou seja, ao quarto estágio. Em sua análise devem ser considerados os demais estágios
(primeiro ao terceiro), em que a participação popular, em termos ideais, é quase que
irrestrita, da mesma forma que a amplitude da razão pública também o é.
Ademais, a amplitude da razão pública sofre uma ampliação quando se leva em
consideração o próprio conteúdo da razão pública, que parte do pressuposto da
igualdade entre os cidadãos e do uso da razão de cada um, bem como de um sistema
Luiz Paulo Rouanet & Raquel Nuvolini Wanjgarten | 535
justo de cooperação entre os indivíduos a partir da escolha de critérios razoavelmente
justos, e do “ideal de razão pública”, por meio do qual é possível quaisquer cidadãos
concretizá-lo.
Por fim, quando se abre a possibilidade para que todos participem da razão
pública não só a deliberação passa a abranger a todos os indivíduos, mas a concepção
de justiça, assim como a de liberdade e igualdade, retoma seu sentido e função original,
dirimindo as injustiças tão frequentes dos dias de hoje.
Nota explicative
Este artigo, escrito originalmente no âmbito de uma Iniciação Científica na
PUC-Campinas, com bolsa do CNPq, instituições às quais os autores agradecem, foi
posteriormente adaptado para publicação como artigo pela coautora, Raquel
Wajngarten, e por mim, na condição de seu ex-orientador. O artigo deveria ter sido
encaminhado para periódico, mas as atribulações da vida, viagens e outros empecilhos
acabaram postergando essa publicação. Agora, por ocasião deste Festchrift para
Nythamar de Oliveira, apresentou-se uma ocasião em que esse texto poderia ser
aproveitado.
Nythamar de Oliveira foi um dos primeiros pesquisadores no Brasil a chamar a
atenção para a importância da obra de John Rawls. Seu pequeno livro (OLIVEIRA,
2003), é ainda útil introdução ao pensamento do autor. Minha tese (sob orientação de
Franklin Leopoldo e Silva), “O enigma e o espelho: uma análise dos discursos sobre a
paz de Erasmo e Rawls”, seguida de meu livro contendo a segunda parte dessa pesquisa
(ROUANET, 2000 e 2002, respectivamente) foi seguramente um dos primeiros
trabalhos sobre o autor. Na mesma época, Alcino Bonella defendia sua tese na
Unicamp, sob orientação de Marcos Mûller, “Justiça como imparcialidade e
contratualismo” (BONELLA, 2000). Em 2003, Denis Coitinho, orientado por
Nythamar de Oliveira, defendia na PUCRS a tese “Justiça e Eqüidade: universalismo e
comunitarismo em Aristóteles e Rawls” (COITINHO, 2003). A lista poderia se
estender, mas eu a interrompo, sem pretensão de esgotá-la, e a fim de não cometer
injustiças.
O que quero dizer é que os estudos sobre Rawls, no Brasil, iniciam-se na virada
do século XX para o século XXI, ou seja, entre 1999 e 2000, e continuam até hoje.
536 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Como já se mostrou, Nythamar de Oliveira teve e tem papel importante na valorização
desse pensador, talvez o maior pensador político do século XX.
No que se refere ao presente texto, ele foi em grande parte redigido pela própria
Raquel Wajngarten, que efetuou uma síntese muito clara daquilo que eu mesmo
pensava nesse momento. Em Paz, justiça e tolerância no mundo contemporâneo
(ROUANET, 2010) estão reunidos os artigos mais significativos dessa fase de minha
produção. Agradeço à Raquel por ter conseguido resumir tão bem aquilo que escrevi
durante esse período, e que não sei se conseguirei retomar, dados os rumos de minha
pesquisa atual, e do próprio país. Raquel não se dedicou à pesquisa acadêmica
propriamente dita, tendo tomado outro rumo profissional, mas este artigo, escrito
principalmente por ela, mas com minha revisão e complementação, quando
necessário, mostra que ela poderia, e ainda pode, se assim o desejar, seguir carreira
como pesquisadora.
Luiz Paulo Rouanet.
Referência
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29. A ÉTICA DO APRIMORAMENTO COGNITIVO: EFEITO FLYNN
E A FALÁCIA DOS TALENTOS NATURAIS1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-29
Marcelo de Araujo2
Resumo
O debate contemporâneo sobre a ética do aprimoramento cognitivo tem se
concentrado sobretudo na pergunta sobre se, e em que medida, os indivíduos deveriam
ou não ter o direito a fazer uso de novas tecnologias na expectativa de aumentar suas
respectivas faculdades cognitivas. A pergunta sobre se haveria uma obrigação de
implementarmos o aprimoramento cognitivo dos indivíduos não tem recebido muita
atenção. Neste artigo, eu defendo a tese segundo a qual o Estado tem, em princípio, a
obrigação de promover o aprimoramento cognitivo dos seus cidadãos. O argumento
envolve uma análise do denominado efeito Flynn e das políticas públicas para a
educação de crianças superdotadas. A obrigação que o Estado tem de promover o
aprimoramento cognitivo de seus cidadãos está subordinada ao conhecimento
disponível sobre a eficácia e a segurança dos procedimentos para fins de
aprimoramento cognitivo.
Palavras-chave: aprimoramento cognitivo; talentos; efeito Flynn; superdotação.
Abstract
The contemporary debate on the ethics of cognitive enhancement has mainly focused
on the question whether, and to which extent, individuals should be granted the right
to make use of new technologies in order to enhance their own cognitive powers. The
question on the existence of a duty to implement the cognitive enhancement of the
individuals has received less attention. In this paper, I argue that the state has a prima
facie duty to pursue the cognitive enhancement of its citizens. The argument involves
1 Esta pesquisa contou com o apoio financeiro do CNPq e da FAPERJ (Cooperação Bilateral FAPERJBirmingham, 2014-2016).
2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Departamento de Filosofia. Universidade Federal do Rio
de Janeiro – Faculdade de Direito. Pesquisador Bolsista de Produtividade do CNPq.
540 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
an analysis of the so-called effect Flynn and of the public policies for the education of
gifted children. The duty the state has to further the cognitive enhancement of its
citizens is qualified by our knowledge of the efficacy and the safety of the procedures
used for cognitive enhancement.
Keywords: cognitive enhancement; talents; Flynn effect; gifted children.
Nota preliminar
Este artigo surgiu de uma apresentação em Power Point e algumas notas que
preparei para participação em um seminário de pesquisa, organizado por Nythamar
de Oliveira, em 6 de dezembro de 2016 na PUC de Porto Alegre. Motivado pela
discussão, as notas tomaram depois forma de artigo e mais tarde foram aceitas para
publicação na Revista Ethic@. Como na ocasião, eu agradeço a todas as pessoas que
participaram do evento pelas críticas e sugestões. Agradeço especialmente também,
claro, a Nythamar de Oliveira, não apenas pelo convite, mas também pela amizade de
todos estes anos.
Introdução
Argumentos em favor do “aprimoramento cognitivo” geralmente envolvem o
apelo à “liberdade” do indivíduo.3 A ideia básica aqui é que, contanto que a integridade
física ou mental de outras pessoas não seja colocada em risco, cada indivíduo deveria
ter o direito de decidir por si próprio se é ou não de seu interesse fazer uso de
tecnologias que têm o potencial para ampliar os limites de suas capacidades cognitivas.
Outras pessoas, e o Estado especialmente, não deveriam impedi-lo de pelo menos
tentar implementar esse interesse. Mas esse tipo de defesa do aprimoramento
cognitivo geralmente não envolve a suposição de que o indivíduo tenha qualquer
obrigação de aprimorar suas capacidades cognitivas, ou que o Estado tenha a
obrigação de promover o aprimoramento cognitivo de seus cidadãos. O argumento
relativo à liberdade do indivíduo me parece, em linhas gerais, válido e não pretendo
discutir aqui esse ponto. 4 O que me interessa neste artigo é discutir a questão da
Empregarei a expressão “aprimoramento cognitivo” neste artigo como tradução da expressão correlata
em inglês cognitive enhancement.
4 Eu discuti esse ponto em outras publicações: Araujo (2014; 2016a; 2016b).
3
Marcelo de Araujo | 541
obrigação. A tese que defendo neste artigo é que o aprimoramento cognitivo dos
cidadãos deve ser promovido pelo Estado como uma questão de saúde pública. As
razões para a promoção coletiva do aprimoramento cognitivo são basicamente as
mesmas razões que podem ser alegadas em favor de outros tipos de políticas públicas
tais como, por exemplo, a vacinação em massa da população, a iodização do sal, ou a
criação de programas de educação especial para crianças superdotadas.
Dois cenários hipotéticos
Como ponto de partida para a discussão sobre a questão do aprimoramento
cognitivo, eu gostaria de introduzir dois cenários hipotéticos. A discussão sobre esses
dois cenários hipotéticos me permitirá, por um lado, esclarecer o que compreendo por
“aprimoramento cognitivo”; por outro lado, essa discussão me permitirá também lidar
com uma objeção recorrente no debate sobre o aprimoramento cognitivo, a saber: a
objeção que alega que a busca pelo aprimoramento cognitivo – seja ao nível individual
ou coletivo – é moralmente errada porque essa é uma prática pouco “natural.” Para
essa objeção, a busca pelo aprimoramento cognitivo representa uma ameaça à
natureza humana.5
Vejamos os dois cenários hipotéticos. No primeiro cenário hipotético, médicos
examinam embriões humanos para verificar a ocorrência de distúrbios genéticos tais
como, por exemplo, a doença de Huntington. Suponhamos que os médicos detectem o
problema em alguns embriões, e que eles sejam bem sucedidos na correção da
sequência de genes associada ao problema. Os médicos podem agora ter razoável
certeza de que, ao se tornarem adultos, esses embriões jamais desenvolverão a doença
de Huntington. Mas vamos supor também que, durante o procedimento de edição
genômica, uma mutação inesperada ocorra, e que isso ocasione mais tarde o
nascimento de crianças com graves problemas cognitivos. A única maneira de reverter
esse problema consistiria na utilização de um “novo procedimento”, que permite elevar
a capacidade cognitiva das crianças a um patamar considerado normal. A pergunta que
podemos então nos colocar é a seguinte: existe uma obrigação moral de
proporcionarmos a essas crianças o acesso ao “novo procedimento”? Parece-me que a
Essa objeção pode ser atribuída, por exemplo, a Sandel (2007); Kass (2003); Fukuyama (2002);
Habermas (2002).
5
542 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
maioria das pessoas concordaria que temos essa obrigação. A expectativa de viver uma
vida melhor, uma vida que permitiria às crianças realizar uma diversidade de
capacidades humanas, ficaria comprometida se fosse negado a elas o acesso ao “novo
procedimento.” Mas algumas pessoas poderiam também alegar que estamos
autorizados a usar o “novo procedimento” neste cenário porque (e somente porque) o
que está em questão aqui não é o “aprimoramento”, mas o “tratamento” de uma
deficiência cognitiva. Num artigo de 2003, Leon Kass, por exemplo, afirma o seguinte:
Terapia genética para fibrose cística ou Prozac para depressão psicótica é aceitável;
inserção de genes para aprimorar [enhance] a inteligência ou esteroides para
atletas olímpicos, não. (Kass, 2003, p. 13).
A distinção entre o que está em questão no primeiro cenário hipotético e o tipo
de prática condenada por Kass pode ser representada, respectivamente, através das
figuras 1 e 2.
Imaginemos agora um segundo cenário. Neste cenário, a tentativa de se
eliminar a doença de Huntington também é bem-sucedida, mas agora uma mutação
inesperada leva ao nascimento de crianças com uma capacidade cognitiva
extraordinariamente alta. Contudo, tal como ocorreu no cenário anterior, um “novo
procedimento” permite que essa situação seja revertida. Isso garantiria que as crianças
possam ter um nível de rendimento cognitivo igual ao de outras crianças normais. A
questão que temos então de nos colocar é a seguinte: temos, também nesse caso, a
obrigação moral de intervir na capacidade cognitiva dessas crianças? Parece-me que a
maioria das pessoas concordaria que, nesse caso, não temos essa obrigação. As
crianças que estão acima da média, no que diz respeito ao desempenho cognitivo, são
algumas vezes chamadas de “superdotadas”, como se elas tivessem sido agraciadas
com uma espécie de “dote” natural. Às vezes, esse “dote” é também chamado de “dom.”
Marcelo de Araujo | 543
As crianças superdotadas são geralmente incentivadas a cultivar a própria inteligência.
E isto pode ser feito, por exemplo, através de programas de educação especial.
Muitos países têm seus próprios programas para educação especial de crianças
superdotadas, às vezes denominados em inglês de GATE-Programs (Gifted and
Talented Education). A tomada de decisão nos programas GATE geralmente ocorre ao
nível municipal ou estadual. Mas os governos, ao nível federal, têm a obrigação de
garantir que todas as crianças superdotadas tenham igual acesso a programas de
educação especial, independentemente de gênero, religião ou origem étnica (Grissom
e Redding, 2016).6 De acordo com um documento emitido pelo governo brasileiro,
precisam de educação especial não apenas as crianças que têm dificuldade de
aprendizagem, mas também aquelas reconhecidas como “superdotadas.” O
documento, publicado pelo Ministério da Educação em 2001, afirma o seguinte:
Além desse grupo [sc. o das crianças com déficit cognitivo], determinados
segmentos da comunidade permanecem igualmente discriminados e à margem do
sistema educacional. É o caso dos superdotados, portadores de altas habilidades,
‘brilhantes’ e talentosos que, devido a necessidades e motivações específicas –
incluindo a não aceitação da rigidez curricular e de aspectos do cotidiano escolar
– são tidos por muitos como trabalhosos e indisciplinados, deixando de receber os
serviços especiais de que necessitam, como por exemplo o enriquecimento e
aprofundamento curricular (Brasil, 2001a).7
Na discussão sobre políticas públicas para a educação de crianças superdotadas,
pode surgir a questão sobre qual é realmente o objetivo dessas políticas: [1] garantir
que as crianças superdotadas não se sintam desestimuladas em sala de aula, de modo
que elas possam ter um desempenho cognitivo igual ao desempenho das outras
crianças; ou [2] garantir que as crianças superdotadas realizem todo o potencial de que
elas são capazes, atingindo portando um desempenho cognitivo superior ao
rendimento das demais crianças. Parece-me que é a segunda meta que é visada pelas
políticas públicas para a educação de crianças superdotadas. 8
Ver também BBC Brasil (2016).
Ver também BRASIL (2001b, artigo 5, parágrafo III), esse documento define uma criança superdotada
como aquela que possui “altas habilidades/superdotação, grande facilidade de aprendizagem que os
leve a dominar rapidamente conceitos, procedimentos e atitudes.”
8 BRASIL (2006, p. 11): “Várias são as razões para justificar a necessidade de uma atenção diferenciada
ao superdotado. Uma delas é por ser o potencial superior um dos recursos naturais mais preciosos,
responsável pelas contribuições mais significativas ao desenvolvimento de uma civilização.”
6
7
544 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
O rendimento escolar das crianças superdotadas, que são beneficiadas por
programas de educação especial, é geralmente superior ao rendimento das crianças
“normais.” Mas essa forma de desigualdade não tem de ser percebida como um tipo de
injustiça. A própria existência de programas para educação especial se baseia na
suposição de que as crianças superdotadas devem ter a oportunidade de cultivar suas
capacidades cognitivas especiais. Ninguém poderia razoavelmente propor uma
política de educação que buscasse promover a igualdade de oportunidades nas escolas
públicas através de medidas que neutralizassem os “dons” ou “dotes” naturais com os
quais algumas crianças parecem ter sido agraciadas. Essa política de educação seria
tão contrária à nossa percepção ordinária acerca do que consideramos melhor para as
crianças quanto a tentativa de se neutralizar a mutação inesperada – a que me referi
na apresentação do segundo cenário – através da aplicação de algum “novo
procedimento” que nos permitisse reduzir o nível de inteligência das crianças a um
patamar considerado normal. Essa forma bizarra de promover a igualdade de
oportunidade entre as crianças pode ser representada esquematicamente através da
figura 3.
Mas se não faz sentido neutralizar os “dons naturais” com os quais algumas
crianças são agraciadas, por que então seria moralmente errado – como sugere por
exemplo Kass na passagem citada acima – usar algum “novo procedimento” para
elevar a capacidade cognitiva de crianças normais ao nível de performance de que são
capazes as crianças talentosas? Evidentemente, as expressões “dom natural” e “ser
agraciado” estão sendo usadas aqui em um sentido figurado, pois não existe uma
entidade que tenha a capacidade de “agraciar” as pessoas com tais e tais “dons” ou
“dotes.” É por essa razão que alguém poderia talvez preferir falar aqui em “talentos”
ao invés de falar em “dons” ou “dotes” naturais. Mas a palavra “talento” também tem
uma conotação metafísica. Ela significava originalmente um benefício financeiro que
Marcelo de Araujo | 545
poderia ser dado a algumas pessoas. Essa utilização da palavra “talento” ocorre, por
exemplo, no Novo Testamento, na “parábola dos talentos” (Mateus 25: 14-30). Mais
tarde, a palavra “talento” passou a designar também uma espécie de “presente” dado
por Deus a algumas pessoas. E é somente a partir do século XVIII que a “natureza”, ao
invés de Deus, passa a ser vista como a entidade que conferiria aos indivíduos tais e
tais habilidades excepcionais (Lühe, 1998).
No debate sobre o aprimoramento cognitivo é possível percebermos o quanto a
ideia de “talentos” ou “dons” ainda preserva resíduos da conotação religiosa e
metafísica que essas palavras originalmente tinham. Uma das razões pelas quais, por
exemplo, Francis Fukuyama se posiciona contra a busca pelo aprimoramento cognitivo
é a seguinte: “O propósito original da medicina é, afinal, curar os doentes, e não
transformar pessoas saudáveis em deuses” (Fukuyama, 2002, p. 209). Para
Fukuyama, elevar o nível de inteligência das pessoas normais ao mesmo nível de
performance cognitiva de indivíduos superdotados equivaleria a arrogar para si um
poder que somente Deus poderia exercer.
Até mesmo documentos que evitam o uso de ideias teológicas acabam se
comprometendo, de modo implícito, com a suposição de que algumas de nossas
habilidades naturais devem ser compreendidas como uma espécie de “dádiva.” Em
2015, por exemplo, o Comitê Internacional de Bioética da UNESCO publicou um
relatório sobre o uso de novas tecnologias para edição genômica. O Comitê se mostra
preocupado com relação à possibilidade de que, no futuro, a edição genômica possa vir
a ser usada para fins de aprimoramento, e não apenas para fins de tratamento. O
relatório emprega a palavra endowment para se referir às habilidades especiais que
algumas pessoas têm. O problema, porém, é que a palavra endowment também
envolve a ideia de um “presente” ou “dote.” O documento afirma o seguinte:
O objetivo do aprimoramento [enhancing] de indivíduos e da espécie humana por
meio da engenharia de genes relacionados a características e propriedades
específicas não deve ser confundido com os projetos bárbaros de eugenia que
planejavam a simples eliminação de seres humanos considerados ‘imperfeitos’ a
partir de bases ideológicas. No entanto, esse objetivo viola [impinges] o princípio
do respeito pela dignidade humana de diversas formas. Ele enfraquece a ideia de
que as diferenças entre seres humanos, independentemente da medida de seus
dotes [endowment], são exatamente o que o reconhecimento da igualdade
pressupõe e portanto protege (UNESCO (2015, p. 27, §111).
546 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Segundo o Comitê Internacional de Bioética da UNESCO, a tentativa de
modificarmos os “dotes” (endowments) naturais das pessoas por meio de novas
tecnologias constitui uma violação do “princípio do respeito à dignidade humana.” A
referência ao “princípio do respeito à dignidade humana” nesse contexto constitui, a
meu ver, uma tentativa de se reintroduzir, de modo sub-reptício, uma ideia teológica
através de uma linguagem secular. Afinal, um “dote” pressupõe sempre a existência de
um “doador”, de uma entidade à qual deveríamos respeito e gratidão pelos “dotes” que
recebemos. Mas esse “doador” simplesmente não existe. Ou se existe, é difícil darmos
um sentido a essa ideia num debate em que premissas teológicas ou metafísicas não
deveriam ser impostas a pessoas que não compartilham essas ideias. Os críticos do
aprimoramento cognitivo, de modo implícito ou explícito, frequentemente se
comprometem com essa concepção metafísica de “talentos” ou “dotes” naturais.
Michael Sandel, por exemplo, afirma o seguinte:
Se a engenharia genética nos permitisse sobrepujar os resultados da loteria
genética e substituir o acaso pela escolha, o caráter de dádiva [gift] das potências
e das conquistas humanas desapareceria (Sandel, 2013, p. 102).
Para os críticos do aprimoramento cognitivo o nível médio de inteligência
humana tem um caráter normativo: nós não deveríamos nos afastar muito da “linha
da normalidade”, a menos que tenhamos sido excepcionalmente “agraciados”
(endowed), pela natureza ou por Deus, com talentos ou dons especiais – isso que
Sandel chama de “dádiva” (gift), ou aquilo que o documento da UNESCO chama de
“dote” (endowment). Mas essa suposição é equivocada. Ela é equivocada, em primeiro
lugar, porque é preciso aceitarmos, ainda que de modo implícito, ideias metafísicas ou
religiosas para aceitarmos também, como pretendem Kass, Sandel e Fukuyama, a
suposição de que a “linha da normalidade” tenha um caráter normativo. Essa
suposição é também equivocada, em segundo lugar, porque a própria ideia de uma
“linha de normalidade” é problemática. O nível médio de desempenho cognitivo das
pessoas não é fixo. O QI da população mundial, como demonstram diversos estudos
longitudinais, tem aumentado de forma constante ao longo do século XX, muito
embora isso não venha ocorrendo no mesmo ritmo em todas as partes do mundo. Esse
fenômeno é conhecido como o “efeito Flynn.”
Marcelo de Araujo | 547
Efeito Flynn e políticas públicas
A explicação para o efeito Flynn tem sido objeto de muita discussão, mas o
fenômeno em si mesmo é bem documentado (Flynn, 2013; 2012; 2007). Acredita-se
que o incremento do QI das pessoas seja atribuível à interação de diferentes fatores,
tais como, por exemplo, melhor nutrição, educação compulsória para todas as
crianças, e o surgimento de trabalhos cada vez mais exigentes em termos cognitivos.
Outros fatores são menos aparentes, mas igualmente importantes para o aumento do
QI das pessoas em diversas partes do mundo. Sabe-se, por exemplo, que a deficiência
de iodo está associada ao retardo mental. Alguns estudos sugerem que o QI médio das
populações que sofrem de deficiência de iodo é de 10 a 15 pontos inferior ao QI médio
em populações que não sofrem de um déficit de iodo. Um documento publicado pela
UNICEF em 2007 adverte que a deficiência de iodo ainda é um “grande problema de
saúde pública na Europa.” Este problema está associado a “graus sutis de deficiência
mental” que contribuem para um menor desempenho acadêmico (UNICEF / World
Health Organization, 2007, p. vii).9 O combate à deficiência de iodo é geralmente feito
através de políticas públicas que envolvem a iodização do sal. Esse é um procedimento
bastante barato.
A iodização do sal pode ser vista aqui como um procedimento análogo ao “novo
procedimento”, a que me referi anteriormente na discussão do primeiro cenário
hipotético. Tanto num caso como no outro os tomadores de decisão concordam que
temos a obrigação moral de usarmos todos os meios que estão ao nosso alcance na
tentativa de impedir que uma criança tenha um rendimento cognitivo abaixo do
rendimento considerado normal.10 Mas a questão que podemos nos colocar agora é a
seguinte: uma vez que o problema relativo à deficiência cognitiva das crianças tenha
sido resolvido – seja através da iodiozação do sal ou através da aplicação de um
hipotético “novo procedimento” –, por que então não poderíamos dar um passo além,
Ver também Aburto et al. (2014, p. 10); J. Feyrer et al. (2013); Steen (2009, p. 83).
Ver por exemplo Schwarz (2012), que relata o caso do pediatra que prescrevia o medicamento
Adderall, indicado para o tratamento de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, para
crianças de baixa renda, que não tinham sintomas desse transtorno. A prescrição era feita para que as
crianças pudessem ter um desempenho escolar tão bom quanto o de outras crianças da mesma faixa
etária. A medicação foi realizada com o consentimento dos pais e, de fato, parece ter contribuído para
um aumento do rendimento escolar das crianças medicadas. Nesse caso, porém, o pediatra tomou uma
decisão particular, que não foi orientada ou acompanhada por algum tipo de política pública oficial, e
que não levava em consideração, por exemplo, os riscos que esse tipo de prática pode representar para
a saúde das crianças.
9
10
548 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
se esse passo estiver a nosso alcance? Por que, com outras palavras, não poderíamos
aumentar o QI das crianças a níveis ainda mais elevados do que aqueles considerados
normais, se tivermos recursos para fazer isso de modo eficaz e seguro? A meu ver, não
há nenhuma razão para rejeitarmos de antemão a promoção do aprimoramento
cognitivo como uma questão de saúde pública. Afinal, como diversos estudos
longitudinais sobre o efeito Flynn mostram, isso já vem sendo feito ao longo das
últimas décadas. A implementação de políticas públicas como a iodização do sal, a
educação compulsória para todas as crianças, e a criação de programas para a
educação especial de crianças superdotadas, têm contribuído para um aumento
genealizado do QI da população mundial. E conforme o QI da população mundial
aumenta, a “linha da normalidade” se desoloca gradualmente para um patamar
superior. A “linha da normalidade”, portanto, diferentemente do que alguns críticos
do aprimoramento cognitivo acreditam, não é fixa (Vilaça e Dias, 2015). Não existe
realmente um nível “natural” de inteligência que devêssemos tomar como normativo.
É a figura 4 que, a meu ver, melhor representa o problema que está em questão na
discussão sobre o aprimoramento cognitivo de grandes populações. Num período de
poucas décadas, que se estende de t1 a t4, o nível médio de inteligência das pessoas
pode variar bastante.
Evidentemente, podemos nos perguntar se o aumento de QI da poupulação
mundial ao longo do século XX poderia ser realmente considerado como um tipo de
“aprimoramento cognitivo.” Cameron Clark e colegas, por exemplo, sustentam que o
efeito Flynn não deve ser compreendido como uma forma de “aprimoramento
cognitivo real de nossa espécie.” Num artigo de 2016, eles afirmam o seguinte:
Marcelo de Araujo | 549
A tese central deste artigo é que embora seja conveniente concluir que aumentos
na medição de pontos de QI, ao longo do século XX, representem uma espécie de
aprimoramento cognitivo real ou direito de nossa espécie, estes aumentos devem
ser vistos, mais apropriadamente, como incrementos reais no desempenho em
testes de QI, devido a ambientes cognitivos aprimorados impostos à nossa espécie
pelos ambientes sociais e culturais do século XX, e provavelmente anteriormente;
ou seja: o efeito Flynn não representa aumentos genuínos em inteligência geral,
mas na verdade aumento do desempenho em testes de QI devido a uma crescente
adaptação para os tipos de raciocínios modernos que a vida moderna exige, e que
testes de QI medem (Clark et al., 2016, p. 41).
A vida moderna nos apresenta uma série de tarefas cognitivamente exigentes.
Um número crescente de pessoas tem de processar uma enxurrada de informações, e
lidar com uma variedade de símbolos, tabelas, gráficos, e estatísticas todos os dias.
Além disso, nós nos acostumamos a expressar nossas próprias ideias por meio de
abstrações e raciocínios hipotéticos. A linguagem da ciência permeia nossa linguagem
cotidiana de uma forma que seria familiar apenas a um número limitado de pessoas
até o início do século XX. Clark e seus colegas, portanto, têm razão ao sugerirem que
os nossos antepassados não eram de modo geral menos “inteligentes” do que somos
agora, mesmo admitindo que nossos antepassados teriam mostrado claros sinais de
retardo mental, se tivessem sido submetidos aos testes de QI que são aplicados hoje
em dia. Essa assimetria entre os níveis de desempenho nos testes de QI do passado e
a pontuação média obtida hoje em dia é às vezes denominada de “paradoxo do retardo
mental.”11 Mas o paradoxo é apenas aparente. Nossos bisavôs e bisavós simplesmente
não tiveram de enfrentar as mesmas tarefas cognitivas e os mesmos quebra-cabeças
intelectuais que enfrentamos diariamente ao buscarmos, por exemplo, informações na
internet, ou quando nos deslocamos em uma grande cidade, seguindo diagramas e
símbolos que aprendemos a interpretar sem dificuldades. Testes de QI servem para
avaliar nossa capacidade para lidar com os desafios cognitivos típicos da vida
moderna, e não a nossa capacidade de lidar com as tarefas do mundo pré-industrial.
No entanto, diferentemente do que Clark e colegas sugerem, o que está em jogo
no debate sobre o “aprimoramento cognitivo” não é tanto a questão sobre se podemos
ou não obter “aumentos genuínos na inteligência geral.” É claro a aquisição de
“aumentos genuínos na inteligência geral” deveria ser caracterizada como um caso de
Flynn (2007, p. 9-10): “The mental retardation (MR) paradox: If we project IQ gains back to 1900, the
average IQ scored against current norms was somewhere between 50 and 70. If IQ gains are in any sense
real, we are driven to the absurd conclusion that a majority of our ancestors were mentally retarded.”
11
550 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
aprimoramento cognitivo. Mas o debate contemporâneo sobre aprimoramento
cognitivo não se concentra sobre esse tipo de aquisição. O debate sobre
aprimoramento cognitivo incide basicamente sobre o uso de “novos procedimentos”
para aumentar nosso rendimento em uma diversidade de tarefas cognitivamente
relevantes. Esses “novos procedimentos” incluem, por exemplo, o uso de drogas como
modafinil e metilfenidato; dispositivos para tDCS (estimulação transcraniana de
corrente direta); e, possivelmente no futuro, o recurso à edição genômica e seleção de
embriões. Esses “novos procedimentos” têm o potencial para ajudar às pessoas a lidar
com os desafios da vida moderna, e a explorar as oportunidades que a vida moderna
oferece.12
Conclusão
Se novas drogas como modafinil ou metilfenidato, ou técinas para edição
genômica, ou ainda próteses cerebrais e dispositivos para tDCS se tornarem realmente
eficazes e seguros para fins terapêuticos no futuro, não há razão alguma para supormos
que eles não deveriam jamais ser usados para fins de aprimoramento cognitivo
também. Esses “novos procedimentos” podem vir a nos ajudar a viver em ambientes
que, provavelmente, serão ainda mais exigentes em termos cognitivos do que os
ambientes em que vivemos atualmente. O aprimoramento cognitivo, portanto, pode se
tornar necessário no futuro da mesma forma que a produção de antibióticos e
programas de vacinação em massa se tornaram indispensáveis na tentativa de tornar
nosso sistema imunológico capaz de combater agentes patogénicos a que não
havíamos sido expostos antes, ou que não estávamos devidamente preparados para
enfrentar no passado.
No futuro, os tomadores de decisão podem, portanto, vir a considerar a busca
pelo o aprimoramento cognitivo da população como uma obrigação relativamente aos
cidadãos. A busca pelo aprimoramento cogntivo da população poderia assim ser vista
como uma questão de saúde pública por força das mesmas razões que medidas como
a iodização do sal, a vacinação em massa, e a criação de programas para educação
especial de crianças superdotadas foram implementadas em nosso passado recente.
Para uma discussão recente sobre o debate em torno do aprimoramento cognitivo, ver por exemplo a
coletânea de artigos organizada por Jotterand e Dubljevic (2016).
12
Marcelo de Araujo | 551
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30. O AMOR NO CÉREBRO1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-30
Maria Borges2
Resumo
Neste artigo, eu procurarei mostrar a relação entre o sentimento do amor e
neurotransmissores, bem como o lugar do amor no cérebro. Na primeira parte, eu
examinarei a tradição de ligar emoções e fisiologia, partindo da intuição cartesiana que
os sentimentos tem um aspecto fisiológico. Num segundo momento, mostrarei os
experimentos da neurologista Helen Fisher sobre o amor, na qual buscou detectar as
regiões cerebrais responsáveis por esse sentimento.
Palavras chave: amor, cérebro, dopamine.
Abstract
In this paper, I aim at showing the relationship between the feeling of love and
neurological substances, as well as their place in the brain. In the first part, starting
with Descartes, I examine the tradition that related emotions and physiology. After
that, I show the experiments of Dr. Helen Fisher, who found out the love paths in the
brain.
Key words: love, brain, dopamine
Amor e fisiologia
A ideia de que o amor envolve processos fisiológicos não é nova. Já Descartes
relacionava as paixões da alma aos movimentos fisiológicos no livro As paixões da
alma. A teoria das paixões da alma baseia-se numa interessante fisiologia do século
XVII, na qual a interação entre corpo e alma se fazia através de fluidos chamados
espíritos animais. Temos aí uma explicação mecanicista das emoções. Os espíritos,
1
2
Esse artigo foi publicado na Revista Princípios, Natal, v.22, n. 38, 2015
(UFSC/ CNPq)
554 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
substâncias rarefeitas, estão contidos nas cavidades do cérebro e, ao serem ativados,
percorrem os nervos, incitando um certo tipo de ação. Na paixão do medo, por
exemplo, os espíritos vão do cérebro para os nervos que movem as pernas para fugir.
No amor, assim descreve Descartes a interação entre a representação do objeto
do amor, os espíritos animais e os órgãos internos:
Estas observações e tantas outras que seria demasiado longo descrever, me fizeram
crer que, na medida em que o entendimento se representa algum objeto de amor,
a impressão que este pensamento causa no cérebro conduz os espíritos animais,
pelos nervos do sexto par, em direção aos músculos circundam os intestinos e o
estômago, de forma a fazer com que o suco das carnes, que se converteu em sangue
novo, passe rapidamente em direção ao coração sem se deter no fígado. Sendo
conduzido ao coração com mais força do que aquele sangue que está em outras
partes do corpo, ele aí penetra em maior abundância e excita um maior calor, visto
que ele é mais espesso do que aquele que já foi rarefeito várias vezes ao passar e
tornar a passar pelo coração. Tal faz com que ele envie os espíritos ao cérebro,
[espíritos] cujas partes são mais espessas e mais agitadas do que o normal, e estes
espíritos, fortalecendo a impressão feita pelo primeiro pensamento sobre o objeto
amado, obrigam a alma a deter-se neste pensamento, e é nisto que consiste a
paixão do amor.3
O amor também implica um caminho específico dos espíritos. A impressão que
a imagem do ser amado provoca na mente incita os espíritos animais a percorrerem o
corpo, fazendo com que o sangue corra em abundância, enviando novamente os
espíritos com mais força ao cérebro, o que fortalece a primeira imagem do objeto
amado, forçando a alma a permanecer neste pensamento.
A lenda de Tristão e Isolda faz referência, por sua vez, à influência de
substâncias no despertar e na permanência do amor. Em Tristão e Isolda, temos o
efeito do filtro do amor, que, ao ser bebido, provoca o amor romântico.
A partir do momento que os dois jovens beberam deste vinho, o amor, tormento
do mundo, penetrou nos seus corações. Antes que eles se dessem conta, ele os
submeteu ao seu jugo. O rancor de Isolda desvaneceu-se e nunca mais eles foram
inimigos novamente. Eles já se sentiam ligados um ao outro pela força do desejo,
e no entanto, eles se escondiam um do outro. Apesar da violenta atração que os
impelia num mesmo desejo, eles igualmente estremeciam no temor da primeira
confissão do seu amor.
3
René Descartes, Les passions de L´ame, Oeuvres de Descartes, eds. edição Adam/ Tannery, Paris,
Vrin, 1964-76, AT, XI
Maria Borges | 555
A teoria das paixões em Descartes já antecipava o que a filosofia contemporânea
admite: as perturbações fisiológicas são elementos constitutivos das emoções. William
James radicaliza esta concepção ao afirmar que a sensação da emoção nada mais é do
que a percepção de perturbações fisiológicas. Não haveria emoção se retirássemos
desta as sensações de agitação, tremor, rubor etc. James chega mesmo a inverter a
ordem causal entre a emoção e sua perturbação fisiológica associada. Não choramos
porque estamos tristes, ele afirma, mas estamos tristes porque choramos. Sentir
tristeza não seria a causa da reação fisiológica, mas, ao contrário, a nossa experiência
desta reação.
As modificações físicas provocadas pelo amor, descritas por filósofos e poetas,
sabe-se hoje, não são apenas invenções literárias, mas modificações que são induzidas
pela paixão. Os estudiosos admitem que a paixão do amor causa efeitos no sistema
nervoso autônomo: aumento de batimentos cardíacos, garganta seca, dificuldade para
respirar e aumento de temperatura. Assim a febre que percorre o corpo daquele que
ama não é uma ilusão literária, mas um efeito do amor no sistema nervoso autônomo.
As modificações fisiológicas atribuídas ao amor podem levar a ações
impetuosas, desprovidas de reflexão. No amor, deve-se duvidar das juras feitas pelos
amantes, pois, ao serem produtos de alterações físicas, são intempestivas e voláteis.
Shakespeare foi pródigo, nas suas tragédias, em fazer o paralelo entre fisiologia,
sentimento e ação. Em Hamlet, Polonius já advertia sua filha Ofélia sobre a influência
da fisiologia nas juras de amor de Hamlet: “Quando o sangue ferve, como a alma torna
a língua pródiga em votos”.
A ideia que emoções são acompanhadas por uma agitação mental e física não
aparece apenas nos século XVI e XVII, com Shakespeare, ou Descartes. Já na
antiguidade, vemos poemas que enfatizam essas agitações como partes do sentimento
amoroso. Assim, a poetisa Safo escreve:
Quando eu te vejo,
Minha voz engasga,
Minha língua paralisa,
Uma febre percorre todo meu corpo
E eu não vejo nada
Meus ouvidos se enchem de um ruído latejante
556 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
E todo meu ser estremece4
O amor como droga
John Elster, no livro Strong Feelings: Emotions, Addiction and Human
behavior5, estabelece um paralelo entre emoções fortes e os sintomas físicos causados
pela ingestão de drogas. O arrebatamento amoroso, provocado pela crença de que
somos correspondidos, possui os mesmos sintomas causados pela ingestão de
anfetamina: aumento de energia, falta de fome e sono, consciência aguçada. A
desilusão amorosa induz aos mesmos sintomas da privação desta substância,
principalmente o humor deprimido.
Várias são as substâncias que estão implicadas no circuito das emoções.
Primeiramente, temos os hormônios sexuais, tais como testosterona, estradiol e
progesterona. Além disso, as emoções estão associadas a neurotransmissores, como
dopamina e serotonina, às endorfinas, que tem um efeito opiáceo e à feniletilamina,
cujo efeito é próximo à anfetamina. A sensação de euforia descrita pelos amantes
também é causada por esta última substância. O bem- estar que sentimos na
proximidade do amado pode estar relacionada com aumento de dopamina. A perda do
objeto amoroso e consequente supressão desta substância pode causar a mesma dor e
desconforto físico que sente um viciado em drogas em síndrome de abstinência.
Elster segue a sugestão de Michael Liebowitz de que a ‘química do amor´
assemelha-se a das anfetaminas:
Sabemos bastante sobre a neurofisiologia das anfetaminas e como elas produzem
os efeitos característicos de uma consciência aguçada, aumento de energia, pouca
necessidade de sono a comida, sentimentos de euforia, etc. Estes efeitos têm um
curso previsível, durando muitas horas e levando à depressão. Estes sintomas são
surpreendentemente parecidos com aqueles do amor, no sentido de um
arrebatamento agudo, ou o que Dorothy Tennov denomina limerence 6 , e é
totalmente possível que o amor e as anfetaminas utilizem os mesmos circuitos
neuronais. 7
Citado em Ronald de Souza, The Rationality of emotions (Cambridge: MIT Press, 1997)
Jon Elster, Strong Feelings, Emotion, Addiction and Human behavior, Cambridge, MIT Press, 2000
6 Dorothy Tennov, Love and Limerence, New York: Stein And Day, 1979.
7 Jon Elster, Strong Feelings, Emotion, Addiction and Human behavior, p. 5.
4
5
Maria Borges | 557
Contudo, há também uma diferença notável. A excitação das anfetaminas é
produzida pela ingestão de uma substância química. A euforia do amor pode ser
produzida pela crença que a outra pessoa nos ama e pode tranformar-se em depressão
quando a crença é provada falsa. A euforia e depressão amorosas podem acontecer
virtualmente de forma instantânea, enquanto os efeitos da anfetamina são produzidos
e desaparecem de forma mais gradual.
Elster também aponta para uma característica do amor: a duração breve. A
emoção do amor, afirma Elster, com base nos trabalhos de Dorothy Tennov, duram em
média de 18 meses a três anos. Curiosamente, três anos é o tempo de duração do filtro
do amor utilizado por Tristão e Isolda.
Have you just fallen madly in love? O experimento de Helen Fisher
Uma série de experimentos foram realizados para detectar quais eram
exatamente os circuitos cerebrais utilizados pelo sentimento de amor. A neurologista
Helen Fisher8 se notabilizou por ter estabelecido o locus do amor no cérebro. A fim de
relacionar o amor com neurotransmissores cerebrais, a pesquisadora realizou
experimentos na State University of New York, USA, nos quais ela e sua equipe
procuraram determinar a modificação que ocorria nos cérebros dos apaixonados. Os
apaixonados eram recrutados na Universidade, com a chamada “Você acabou de se
apaixonar perdidamente?” Posteriormente, eles eram selecionados seguindo alguns
critérios, incluindo o de não estarem deprimidos, e passavam por um exame de FIMR
(ressonância magnética funcional), que mostrava o aumento do fluxo sanguíneo numa
determinada área cerebral. O experimento partiu de hipóteses já consideradas pelos
pesquisadores sobre a química cerebral. Segundo pesquisas anteriores, três
substâncias foram consideradas as principais responsáveis pelas sensações
experimentadas no amor romântico: dopamina, norepinefrina e serotonina.
A dopamina seria a principal substância relacionada à paixão amorosa. Ela
explicaria o fato de que o apaixonado passa grande parte pensando no seu objeto
amoroso. Elevados níveis de dopamina produzem uma atenção concentrada num
Helen Fisher, Why we Love, The Nature and Chemistry of romantic love (New York: Hanry Holt and
Company), kindle edition
8
558 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
objeto, bem como uma motivação e comportamento direcionado a um fim. Essa é
exatamente uma característica dos apaixonados: sua atenção é focada no objeto
amoroso, com a exclusão de todos à sua volta. Além disso, concentram-se nas
qualidades positivas do amado, esquecendo as qualidades negativas.
Alta doses de dopamina produzem outras sensações associadas à paixão:
aumento de energia hiperatividade, falta de sono, tremor, respiração acelerada,
coração pulsante, além de ser responsável pelo êxtase, que é sentido pelos apaixonados
como um êxtase amoroso. Soma-se a isso o efeito de aumentar a persistência: quando
a recompensa é postergada, a dopamina aumenta a energia do cérebro para que esse
tenha uma maior atenção e leva o amante a lutar mais e mais para conseguir a
reciprocidade do amado.
Os aspectos negativos da dopamina incluem uma dependência da substância, o
que resulta num comportamento aditivo, de um viciado em droga. Há uma
interessante interação da dopamina com os hormônios sexuais: quando os níveis da
dopamina aumentam no cérebro, aumentam também os níveis de testosterona, o
hormônio do desejo sexual, tanto para homens quanto para mulheres. Contudo,
enquanto a dopamina aumenta a testosterona, elevadas doses de testosterona não
levam necessariamente ao aumento de dopamina. Por essa razão, nós podemos ter
desejo sexual sem paixão, mas dificilmente teremos paixão amorosa sem desejo.
Um outro neurotransmissor associado à paixão amorosa é a norepinefrina,
induzindo o aumento de energia, atenção e vitalidade típicos do ser apaixonado. A
serotonina também entra no circuito do amor; entretanto, ao contrário do que muitas
vezes é divulgado, a paixão acarreta uma diminuição, e não um aumento, de
serotonina. A diminuição de serotonina faz com que a paixão se assemelhe aos
transtornos obsessivos- compulsivos. Na ausência do objeto ou na suspeita de rejeição,
o apaixonado fica obsessivo, ao invés de aceitar a perda.
O amor no cérebro
A pesquisa da Dra. Helen Fisher procurava testar se essas substâncias
realmente estavam ativas na experiência amorosa e em quais lugares do cérebro elas
eram ativadas. Para tal fim, as ressonâncias magnéticas dos cérebros dos apaixonados
foram feitas quando esses olhavam para fotos das pessoas por quem estavam
Maria Borges | 559
apaixonados. Essas ressonâncias foram confrontadas com outras nas quais as mesmas
pessoas olhavam para fotos de estranhos.
Foi constatado que o lugar que mais mostrava atividade era o núcleo caudato,
uma região em forma de C que se encontra no centro do cérebro. É uma região
primitiva, uma parte do que é chamado de cérebro reptílico, pois essa parte se
desenvolveu no cérebro animal muito antes dos mamíferos terem se proliferado há 65
milhoes de anos. O scan cerebral mostrou que o corpo e a cauda do núcleo caudato
tornavam-se especialmente ativos quando o apaixonado olhava para a foto do seu
bem-amado.
Figura 19
Além disso, outras áreas nas quais foram constatados atividade cerebral
durante o experimento fazem parte do caminho da dopamina no cérebro, conforme é
mostrado na figura abaixo.
As figuras 1 e 2 foram extraídas do livro de Helen Fisher, Why we Love, The Nature and Chemistry of
romantic love (New York: Hanry Holt and Company), Capítulo “Chemistry of love”, kindle edition
9
560 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Figura 2
Há pouco tempo, foi descoberto que o núcleo caudato faz parte do sistema de
recompensa do cérebro (reward system). O núcleo caudato nos ajuda a detectar e
perceber uma recompensa, discriminar entre recompensas e preferir uma recompensa
particular a outra, além de antecipar uma recompensa e esperar uma recompensa.
Outro lugar onde foi notada uma grande atividade é a área tegmental ventral (VTA) e
a parte central do circuito de recompensa do cérebro. Esse resultado condiz com os
neurotransmissores associados ao amor, pois a VTA é a difusora das células de
dopamina para o núcleo caudato.
As substâncias cerebrais nos três momentos do amor
As experiências da Helen Fisher também foram responsáveis por estabelecer e
divulgar que existem três fases no amor e que, em cada um dela, há a ação de
determinados hormônios ou neurotransmissores. A primeira fase seria o desejo, fase
na qual o objeto de atração é indiferenciado. Nesta fase predomina a testosterona,
responsável pelo desejo sexual.
Num segundo momento, teríamos a paixão do amor, caracterizada pelos efeitos
da dopamina e norepinefrina. Essa fase não duraria para sempre e daria lugar à
terceira fase do amor, a do vínculo. Nessa última fase, a substância atuante seria a
oxitocina, responsável pelo vínculo amoroso.
Maria Borges | 561
Caberia a pergunta: essas descobertas fisiológicas não levariam ao
desencantamento do amor? Passaria a paixão a ser objeto da ciência e não mais da
literatura ou da Filosofia? É Jon Elter que nos responde:
Enquanto está sendo elucidado o caminho neurológico através dos qual as
substâncias químicas produzem seus efeitos, a química da crença de que o amor é
correspondido e o efeito desta crença no sistema de gratificação do cérebro é
provavelmente muito mais complexo. Num futuro próximo, e talvez para sempre,
estaremos apenas aptos a descrevê-la em termos do seu conteúdo (‘Ela me ama’) e
não em termos de seu substrato molecular.10
Bibliografia
Descartes, Réne. Les passions de L´ame, Oeuvres de Descartes, eds. edição Adam/
Tannery. Paris: Vrin, 1964-76, AT, XI.
Elster, Jon. Strong Feelings, Emotion, Addiction and Human behavior. Cambridge:
MIT Press, 2000.
Fisher, Helen. Why we Love, The Nature and Chemistry of romantic love. New York:
Hanry Holt and Company, kindle edition.
Souza, Ronald. The Rationality of Emotions. Cambridge: MIT Press, 1997.
Tennov, Dorothy. Love and Limerence. New York: Stein And ay, 1979.
10
Jon Elster, Strong Feelings, p. 5
31. THE TIME OF ETHICS: OPENING TO THE IRREDUCIBLE OTHER
https://doi.org/10.36592/9786587424163-31
Mary C. Rawlinson1
Is it not because I do not know you that I know that you are? Luce Irigaray, To Be
Two
From Hobbes to Hegel, philosophers in the West have located the origin of
social life in a mythic time outside history, where violence is pervasive and inevitable,
so that men are motivated by the fear of death to institute the law of property,
substituting right for might to secure life and ownership. This narrative installs the
man of reason as the figure of the human, while women’s bodies provide the paradigm
of property, their exchange cementing the bonds of fraternity. Thus, the law of
property is inextricably linked to a law of sexual propriety and to man’s attempt to
“give the universe his gender” (Irigaray JTN, 31).
Debunking “man’s false transcendence,” Irigaray argues against an ethics of the
same and the fiction of man as a generic subject (ILTY, 67). Taking sexual difference
into account, she locates ethics in the encounter with the irreducible other. Wonder,
not the fear of death, provides the motivation for social life. Her analysis shifts ethics
away from a dependence on rational calculation toward an imagination focused on
“livable futures” (ILTY, 67). How does this openness to the irreducible other give rise
to an ethics of collaboration and solidarity aimed at reimagining the infrastructures of
life to promote health and happiness, as well as the integrity of the earth that sustains
life?
Part I of this paper exposes the three essential commitments of the ethics and
politics of the rights of man. First, man’s ethics belongs to a mythical past in which
nature, the “perceived adversary against whom he must fight,” is subdued and
dominated (Irigaray TBT, 73). His ethics and politics depend on man’s mastery of
1
Department of Philosophy. Stony Brook University.
564 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
nature and of man’s own natural being. Second, motivated by the threat of violence
and the fear of death, the ethics of man identifies right with the right to possess. In this
context, women’s bodies represent a wild nature that must be subjected to laws of
ownership and domesticated by man’s disciplines. Finally, the ethics of man identifies
the right with abstract right and the universal with an abstract universal in which all
difference is effaced. In every natural man, philosophy produces the same man of
reason, and this sameness, at once, serves as the precondition of community and
authorizes its law.
Part II develops, against this ethics of the past, of death, and of the same,
Irigaray’s idea of an ethics based on the irreducible difference of the other. If sexual
difference is taken into account, philosophy must admit that its subject has always
been at least two. Philosophy can no longer sustain its attempt to render woman either
fully absorbed in the concepts of man or a special case that cannot be universalized.
Against an ethics of death, I follow Irigaray in proposing an ethics of wonder before
the other who is not like me.
Part III proposes an ethics of the future that focuses not on judging or rational
calculation, but on solidarity, collaboration, and generativity. Listening to the other,
forgiving the other, and laboring with the other, each one participates in a collective
imagination aimed at creating a culture of possibilities that would promote the
flourishing of each and all.
The Mythic Time of Man: The Generic, Property, and War
Man has been the subject of discourse, whether in theory, morality, or politics.
Luce Irigaray, An Ethics of Sexual Difference
The true founder of civil society was the first man who, having enclosed a piece of
land, thought of saying, “this is mine.” Jean-Jacques Rousseau, Discourse on the
Origin of Inequality
The history constructed by man resembles a history of enduring violence, of
appropriation, of domination and not of contribution to what is. Man has created,
invented, and given to nature not so much because he was more than nature, but
because he wished to tame her. Is this not, perhaps because he was less than
nature?
Luce Irigaray, To Be Two
Mary C. Rawlinson | 565
The discourse of rights depends on mythmaking. Philosophers from Hobbes to
Hegel fabricate stories about the origin of civil society to demonstrate that rights are
both necessary and natural, on the one hand, and the result of a voluntary contract
or convention, on the other. The institution of right joins instinct to liberty.
Hobbes, understandably shaken by the chaos of civil war, hypothesized a “state
of nature” before the advent of civil authority, in which each man’s right is absolute
and guaranteed only by his own power.2 In this “war of every man against every man,”
each one is justified in doing whatever is necessary for his own “self-preservation,” and
he is both constantly subject to the fear of aggression and entirely reliant on his own
strength.
While in Hobbes’s myth of origin it would be unnatural, that is, contrary to his
own interest and instinct for self-preservation, for man to persist in the state of nature,
the legitimacy of civil authority depends on man having freely accepted constraints on
his liberty. A man may be forced into servitude, but he cannot be constrained into
citizenship. Only if, following the dictates of his own reason, he voluntarily accepts the
authority of the state’s sovereign power, can he be legitimately subject to its judgments
and justice. Thus, the institution of right subjects natural necessity to self-legislating
reason under the idea of nature as a state of absolute war.
With respect to actual human history, this founding social contract always will
have been. 3 As the natural counterforce to nature as war, the contract will always
already have taken place. Moreover, in Hobbes’s account, the installation of a
governing sovereign power cannot be undone, for any revolution would constitute a
return to nature as war. In principle, sovereign power cannot be illegitimate, because
it is the condition of legitimacy. The contract and the rights it establishes cannot be
rescinded.
Hobbes argues that only the “voluntary transferring of right” institutes property
as a legitimate ownership guaranteed by civil authority rather than mere force. Only
after each one has laid down his absolute right to the goods of nature and agreed to
accept limitations on his liberty in return for a guarantee of peace and safety, are
specific civil rights—first and foremost the right to property — installed as conditions
Please note that I do not in this analysis of Hobbes and Hegel employ the politically correct he/she, as
it would be philosophically incorrect. Woman is not a subject in these theories, but the paradigm of
property.
3 The same future anterior status is claimed by Hegel’s analysis of the origin of social life, where the
encounter between men gives rise to the relation of mastery and slavery.
2
566 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
of judgment and punishment.
The man of reason who enters into the contract becomes the man of property,
installing himself as the universal subject of ethics and politics. Under the logic of the
same, he subdues nature by possessing and cultivating for his own ends reproductive
space, i.e., land and women’s bodies. Further, man’s fraternal relations depend on the
exchange of women’s bodies. By taking another man’s sister as his wife, he becomes a
brother to the other and establishes the relations of mutual recognition that will define
social life. As Irigaray remarks, the universal “belongs to a masculine imaginary” in
which each citizen is like the other and recognizes the other as like himself (ESD, 121).
Hegel’s analysis of “mutual recognition” specifically excludes women, who,
“when they enter into the domains of science, politics, and philosophy, put those
domains in danger” by introducing difference into the figure of the generic subject
(Hegel 1991 [1820], §166n2). As Hegel insists, “at a time when the universality of Spirit
has gathered such strength . . . the individual must all the more forget himself, as the
nature of Science implies and requires … [L]ess must be demanded of him, just as he
in turn can expect less of himself, and may demand less for himself” (Hegel 1977
[1807], §72). In Hegel’s analysis, the individual is thoroughly reduced in the figure of
the citizen without remainder. Thus, as Irigaray argues, “our tradition as a civilization
is founded upon self-identity, the thought of the same” (ILTY, 16n2). The project of
overcoming nature depends on the fiction that nature is one, but “this one does not
exist” (ILTY, 31). There will always have been an irreducible two.
The institution of right in place of might not only legitimizes inequities of
wealth, it also makes ownership the fundamental social relation. 4 In the myths of both
Hobbes and Hegel, relations among citizens are mediated by things. In Hobbes’s
narrative, money, commerce, and trade provide the “sanguification” of the body
politic. Just as blood “nourisheth every member of the Body of Man,” so, too, does
money circulate to nourish every member of the Commonwealth, “to enliven and
enable for motion all the Members of the Same” (Hobbes 1991 [1651], 174–5). Trade
and commerce are the opposite of war; they sustain the members of the state through
the exchange of the goods that flow from the land and the sea, the “two breasts of our
4 “The emergence of ‘human rights’ is coterminous with the emergence of what are commonly referred
to as structural inequalities—that is, with the emergence of forms of inequality that are independent of
personal attributes and instead derive from modes of economic, political, and cultural organization.”
(Woodiwiss 2005, 7)
Mary C. Rawlinson | 567
common mother” (Hobbes 1991 [1651], 170). Thus, the generativity of both women and
nature is subjected by the generic man of reason and made to serve his interests.
Similarly, in Hegel’s analysis, the founding social relation between master and
slave is mediated by the thing. The slave works, while the master consumes, and it is
through the formed thing that the slave recognizes his agency and reclaims his
freedom. In Hegel’s analysis, work and the exchange of fabricated things provide both
the opportunity for the realization of individual freedom and the binding network of
social life.
Despite Hobbes’s attempt to inoculate the generic subject of the rights of man
against any violence that does not devolve from the Sovereign, relations in this social
order tend to be unstable and inclined toward conflict because,
We are afraid of losing what we already possess, we are always wanting more, we envy
those who possess more than us and we start competing with them. Our attention, our
intentions, our time are dedicated to the acquisition and preservation of possessions.
We are no longer in any sense available towards ourselves, no longer able to find
ourselves again in nature or with others. (Irigaray DB, 169)
Relations among citizens are mediated by the “unconditional power of money”
(Irigaray JTN, 76). Money serves as the generic in terms of which all values can be
reduced to the same scale. As Irigaray remarks of “our time,”
we are fascinated by infinite subtleties involved in the manufacture, commerce,
and ownership of property. Yet, we know practically nothing about the commerce
between people. We are so alienated by goods, money, economic exchanges in
the narrow sense, that we are losing our most basic physical and moral health.
(TD, 71)
The interpretation of nature as the enemy that must be subdued and exploited,
as well as the mediation of human relationships by money and things, gives rise to a
world that is inimical to human health and human happiness. Science, the art of the
man of reason, contributes to environmental degradation and social inequity, while
promising solutions to the problems it has had a hand in creating. “Science contributes
to destruction, then repairs things as best it can” (Irigaray SG, 187). The scientist
exploits nature, while forgetting that he belongs to it and depends on it.
In our time, cost–benefit analysis reduces all values to the same: the scale of
money. Irreplaceable natural resources are sacrificed to global capital. The built
568 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
environment continues to be transformed into a space inimical to human life: too
noisy, too fast, and too out of scale with the human body to support human health.
Women’s bodies continue to be bought and sold on the open market. Social inequities
increase. War and its death machines are well funded, while lunches are denied to
school children who cannot pay, or food stamps for the poor are cut in favor of
subsidies to global agribusinesses that regularly dispossess indigenous farms and
damage local ecologies. This is the regime of the man of property, science, and
calculative reason, where nature is subjected and ownership is the hallmark of identity.
The Time of the Irreducible Other
Looking up to the other as an ideal, we have supposed him to be where he cannot
be found: in the abstraction of an idea, in the perfection of a model, in the distance
of an idealization, in the flatness of an image, in the insensibility of a dead thing. .
. without imagining him as a mystery to be examined, contemplated, embraced,
and not sought in the beyond. Luce Irigaray, To Be Two
The natural is at least two: male and female. All the speculation about overcoming
the natural in the universal forgets that nature is not one ... The universal has been
thought as one, thought on the basis of one. But this one does not exist. If this one
does not exist, limit is therefore inscribed in nature itself. Luce Irigaray, I Love to
You
If the natural is “at least two,” not one or the same, and if we do not wish to
operate from a mythic time that devalues the real materiality of existence, then we
must begin again.5 But, who are we?
Hegel, like Hobbes, insists that the singular human being is fully reduced in the
citizen, in man. There is no excess or remainder. Yet, this logic would make women
either a special case, whose eccentricity made no difference to philosophy and politics,
or a variation fully absorbed in the logic of man. Man’s attempt to overcome nature
always involves the erasure of sexual difference.
5 Frequently, Irigaray elides the “at least,” seeming to render other differences of class, race, or sexuality
null, but I insist on it. If sexual difference commands a logical privilege as the ubiquitous paradigm of
subjection across times and places, then thinking the ethical subject requires a genealogy of this
difference. This genealogy, however, invites rather than precludes the analysis of other differences and
opens the ethical subject to multiplicity, not only to the duality of the heterosexual couple, as Irigaray
often avers.
Mary C. Rawlinson | 569
As Irigaray points out, the differences in male and female corporeal
morphology, as well as the genealogical differences between the two, preclude any
reduction of the one to the other. At least four differences between woman and man
make human being at least double:
One is born of the same sex and the other is born of a different sex.
One can conceive a living being in her own body and the other cannot.
One procreates within herself and the other outside himself.
One can nourish another from her own body and the other only with his labor
(Irigaray DB, 151).
Against the Hegelian idea that the other is infinitely reducible to the same,
Irigaray poses as the origin of ethics and politics the excess and surprise of the
encounter with the other who is not like me. Women have always been the “guardians
of singularity,” because they have been structurally excluded from the generic
universals of science, politics, and philosophy.6
Questioning the phenomenology of the encounter with the other inherited from
Hobbes and Hegel, Irigaray shifts the scene from threat, violence, and the fear of death
to the experience of wonder. The others have the capacity to surprise me and to exhibit
an excess over my ideas. Whereas Hegel identifies philosophical thought with the
capacity to anticipate what comes, Irigaray locates ethical thinking in the advent of the
other who cannot be foreseen.7
Bataille wonders if there is anything new under the sun after Hegel. Hegel aims
to outline all possible forms and shapes of consciousness, as well as all possible forms
and shapes of objectivity, so that history would be at an end insofar as it is of interest
for philosophy. Everything, everyone would have been anticipated as an instance of
the forms that comprise the whole. Thinking with Irigaray the irreducibility of the
other introduces into experience a wild novelty that cannot be tamed by reason. As
Bataille remarks, “There is something passionate, generous, and sacred in us which
exceeds the representations of the mind: it is this excess which makes us human”
(Bataille 2012 [1957], 145). Wondering before the other provides a bridge to the future.
The excess of the other to my anticipations and representations opens up “the time
Western medicine, for example, has regularly been based on research done only on men. Women are
still drastically underrepresented in the councils that determine the future, and women are virtually
absent from the history of philosophy.
7 Wonder is the “advent or the event of the other.” (Irigaray ESD, 75).
6
570 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
that is always covered over by the present” (Irigaray ESD, 75). Beyond the
instrumentalities of the everyday, the suspension of expectations leaves room for the
advent of the other who is not like me.
Though Irigaray often refers to the need to proliferate new images that support
the subjectivity of women and the irreducibility of the other to the same, she does not
offer an effective phenomenological account of the constitutive ethical and political
role of art, given its capacity to produce wonder before the other. For this we must turn
to Proust. Proust offers a robust phenomenology of reading that makes clear how the
text mediates among readers to provide a non-analogical experience of other minds.
For Proust reading constitutes “an intervention, which, while coming from another,
takes place in our own innermost selves, which is indeed the impetus of another mind,
but received in the midst of solitude” (Proust 1972 [1906], 41). We weep over the other
who belongs to the time of the novel and not our own, but in doing so we experience
the vivacity of an alien thought and feeling in our own intellect and sensibility. This
immediate, non-analogical impression of the other — what phenomenology has always
declared impossible—is the demonstration of the irreducibility of the other to the
same.
While Kant identifies beauty with a “universal voice” and a sensus communis,
Irigaray, like Proust, finds in aesthetic experience “the existence of [a] mystery [that]
safeguards each one of us ... outside of all violence” (Irigaray ILTY, 149). Beginning
from the irreducibility of sexual difference and being [at least] two, Irigaray locates the
origin of social life not in mutual recognition and the logic of the same, but in the excess
of the other:
Beauty helps us discover a measure and direct the growth of relations between us
. . . Sometimes appearing in a gesture, a smile, a voice, a word, marks of presence
which approaches while distancing. (ILTY, 150)
The reduction of the other to “my meaning” in those general figures—the man
of reason, woman—that sustain sovereign power and the ideology of war dissipates the
mystery that makes our being together possible. It is you who exceed the grasp of man’s
techniques and ideas to command respect. Respect for the other consists in leaving to
you the excess of the imperceptible, the “diffusion of your interiority beyond your
visible forms.” This respect requires a cognitive and practical restraint that “listen[s]
Mary C. Rawlinson | 571
always and anew to each other so that the irreducible can remain” (Irigaray ILTY, 8–
9). Through what practices might this attentive ear be formed?
Art challenges political philosophy’s figure of truth, not only because the
specificity of the work cannot be subsumed under a rule, but because — rather than
opening a domain of “common sense” — the work gives rise to the experience of the
other as an other who is not like me, yet whom I know immediately. Art exposes my
experience to that of an other who always eludes me in ordinary perception and whom
philosophy has only been able to establish by analogy or in virtue of the reduction to
the in common. Art provides a material field in which the other is encountered as an
irreducible and novel difference. The work reveals to me features of experience that
are not derived from my own. These features are universal in that they are, via the
work, transposable from one experience to another, but they do not imply any idea of
the in general or in common. They remain alien to me, even as they are realized in my
own experience. Thus, the work of art gives rise to the idea of specific universals, a
field of transposable figures irreducible to any master generality. A book proves its
universality by creating for itself a community of readers across generations, who are
transformed and amplified, not by appropriating the other, but by being appropriated
by the other.
Art may have an ethical or political effect, then, because, like the Kantian
sublime, it exceeds the subject’s powers of presentation and, through its specific,
contingent, sensuous material, evokes surprise and wonder. The work of art suggests
a politics that begins, not from the assumption of a sensus communis, but from my
gratitude to the other who has gone before, who laid down the surprise, whose
generosity afforded me the pleasure of novelty, the transformative pleasure of
transgressing the boundaries of my own experience. Art supplies an occasion to escape
the fundamental narcissism of ordinary experience—the ineluctable tendency to see
one’s self in the other, not the other in her irreducible difference—in which the justice
of sovereign reason, the mastery of nature, and the necessity of war are linked. Art
occasions a wonder before the other who exceeds my experience, and this wonder
provides the point of departure for a politics that need no longer impose a regulative
ideal of the same on the irreducibly specific signatures of human experience.
572 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Livable Futures: Toward an Ethics of the Imagination
For centuries, we have been zombies, reduced to the condition of phantasms by
means of what has been proposed as truth, as good. Beauty is certainly less simple:
but only just, I would say. Who has taught us to perceive the whole within the
horizon of beauty? On the contrary, it has often been repeated to us that we are not
up to such a task. Luce Irigaray, To Be Two.
The problem of we is that of a meeting which occurs through fortune, good fortune,
as it were (a kairos?), or partly that of a coincidence whose necessity escapes us,
but it is also or especially that of constituting a temporality: together, with,
between. Luce Irigaray, I Love to You.
But it is better to have possibilities for the future than to be already totally
determined by the past. Luce Irigaray, Democracy Begins Between Two.
The time of being with the other, the kairos, belongs neither to the mythic time
outside history, nor to the historical chronology of man’s rights and the triumph over
(his) nature. Kairos names an opportunity, an opening, a chance that appears between
us, that we enjoy together.
Much of Irigaray’s work takes an apocalyptic tone in diagnosing our precarious
future. The “unconditional power of money” reduces all social relations to an economic
calculus. We live under the threat of nuclear disaster and other forms of environmental
calamity. The built environment proves inimical to our health. 8 The temporality of
globalization leaves many behind in various degrees of abandonment and want, while
its speed rushes the rest along without time for being together. 9 Wealthy countries
impose industrial capitalism on poorer countries with disastrous results for their
peoples. 10 War is waged in the name of peace, yielding death, displacement, and
destruction. Man’s project of mastering nature and the reduction of identity to
ownership may yet kill us, but “things don’t have to work this way” (Irigaray SG, 186).
Against this critique, Irigaray calls for a new ethics of the imagination focused
on reconfiguring the infrastructures of life to promote not only human health and
One of Irigaray’s favorite examples, along with the noise and crowded space of cities, is that in the
drive to build the tallest building, men have been faced with the problem of how to transport people up
and down in them without causing inner ear damage. “Airplane ear” would be another example of how
we become dependent on technologies that are inimical to our health.
9 Often cited as a cause of the obesity epidemic in the US is the infrequency with which families eat
together and the frequency of “fast-food” meals. See, e.g., Binkley et al. 2000.
10 E.g., Greece in 2013.
8
Mary C. Rawlinson | 573
happiness, but also the flourishing of Earth and all living creatures. Ethics and politics
should focus, not on property, sexual propriety, or ascribing blame and praise, but on
“what is to be done and how to do what is necessary to guarantee the existence of a
world that is livable in the future” (Irigaray DB, 96). It is the task of philosophy,
Irigaray insists, not only to reflect on the disasters that threaten existence and the
earth, but also to create a new culture of possibilities that would “convert individual
morality into collective ethics” (Irigaray SG, 4). Philosophers can unite politics and
happiness by “refusing to accept that politics should be reduced to managing a world
that is now dehumanized and dehumanizing; by refusing to accept that the world
should remain as it is, criticizing only other people, as bad, within such a world”
(Irigaray DB, 167). Nothing is more important for philosophy, for ethics and politics,
than “the task of building community without eliminating the singularity of each
individual” (DB, 170). Against the Hegelian absorption of the individual in a
community of mutual recognition of each as the same, Irigaray proposes a community
emerging from wonder and recognition of the irreducible alterity of the other, a
community focused on building collaborations to promote the agency of each and all.
Projects and hope build community while according to each his or her own
share of responsibility. Collaboration and solidarity around three aims might begin to
create bridges between today and tomorrow.
Political fairness requires the encouragement of a form of economic
development that is appropriate to the environment and specific to the culture of
a country. It requires the promotion of “economic diversity rather than imposing
a single and inevitably competitive model” (Irigaray DB, 159). Global capitalism
has no more claim to immortality than any of man’s other works. Even Hegel
recognized that private property is no more logically coherent than ownership in
common. 11 There is no reason in principle that economic practices cannot be
reimagined to better distribute prosperity and to insure the excellence and beauty
of public infrastructure, thereby improving the quality of life for each and all. 12
The “hidden roots” of nationalism, conflict, and war lie in “the refusal to
question and change one’s own habits” (Irigaray DB, 62). Health and happiness
require that the interest of living together on the earth trump man’s honor and
property. The idea of pouring more arms into conflict zones under the delusion
that one only needs to get them into the right hands to be successful is both
ludicrous and deadly. The only effective solution to the violence of tribalism will
be political, not military.
See Hegel 1977 [1807], §430.
While infrastructure in the US is in poor condition and the social and political landscape extremely
divisive, it is not so everywhere. Rotterdam, for example, combines commitment to public
infrastructures with efforts aimed at social cohesion. See, Michael Kimmelman, “The Dutch Have
Solutions to Rising Seas. The World Is Watching.” New York Times, June 15, 2017.
11
12
574 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
The conditions of work need to be reimagined, not only to overcome the gender
division of labor on which Hegel’s modern nation state is based and to allow for
the integration of work and family, but also to recognize caring for others as the
most important and valuable form of labor a human can undertake. The economy
has long depended on women’s unpaid or underpaid labor. With the entry of
women more formally into the workforce in the last five decades, the lack of public
infrastructures supporting the care of children and the elderly, as well as the sick
and disabled, can no longer be tolerated given its catastrophic effects on the lives
of the most vulnerable. At the same time, work itself needs to be reimagined
beyond the narrow horizon of economic utility, as the mode through which each
and all participate in and contribute to a healthy and happy community.
Politicians accept the status quo and operate within entrenched interests, rather
than reimagining our coexistence on Earth. Ethicists tend to focus on exotic cases
raised by progress in science or on the articulation of abstract principles or abstract
rights that fail to engage the real conditions of agency, rather than asking what kinds
of solidarities and collaborations might sustain us toward a “livable future.” What
particular infrastructures of life do we need to reimagine to produce a more sustainable
coexistence on Earth — work, food, security, care-giving, transportation? Ethics and
politics need an imagination focused on new figures of agency aimed at creating
material and social infrastructures to sustain communities of difference across
generations. Criticism, despair, hatred, and jealousy will undermine collective efforts,
but this only makes collaboration toward a livable future all the more urgent and
necessary.
References
Bataille, Georges, (2012) Literature and Evil, [1957] trans. Alistair Hamilton. New
York: Penguin.
Binkley, J. K., J. Eales, and M. Jekanowski, (2000) “The relation between dietary
change and rising US obesity,” International Journal of Obesity, 24 (8): 1032–1039.
Hegel, G. W. F., (1977) The Phenomenology of Spirit, [1807] trans. A. V. Miller,
Oxford: Oxford University Press.
Hegel, G. W. F., (1991) Elements of the Philosophy of Right, [1820] trans. H. S. Nisbit,
Cambridge: Cambridge University Press.
Hobbes, Thomas, (1991) Leviathan, [1651] Cambridge: Cambridge University Press.
Mary C. Rawlinson | 575
Proust, Marcel, (1972) On Reading, [1906] trans. Jean Autret and William Burford,
London: Souvenir Press.
Woodiwiss, Anthony, (2005) Human Rights, London: Routledge.
32. UM DIA NA VIDA DE SCHELLING1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-32
Muriel Maia-Flickinger
É uma tarde de outubro. Estamos em Dresden, no ano de 1809. Schelling
percorre as ruelas do centro, ladeadas de edifícios públicos e privados2, as fachadas em
ladrilhos ou simples tijolos. O filósofo acaba de chegar. Era já madrugada, quando
desembarcou no hotel obediente ao impulso de ver o lugar onde tudo iniciou. Na
primeira visita à cidade, Caroline ela mesma lhe serviu de guia. 3 E ele imagina, agora,
que as coisas relembradas possam trazer de volta a sensação da vida escamoteada à
morte inesperada da mulher. Sim, que, trazendo o passado ao espaço presente, o
sentido de tudo, quem sabe, se mostre... O cansaço da viagem pesando no corpo, ele
procura ouvir, em sua voz sedutora, as histórias perdidas de ruas, de praças, igrejas e
prédios antigos; busca ver seus contornos, lá atrás, ainda imantados dela. Em uma
pedra solta da calçada sente o corpo dançar, e a lembrança das vinhas, que sabe agora
iluminadas pelo sol à pique, lhe invade a consciência. Foi nesta ruela, e – quem pode
saber? - sobre esta mesma laje deslocada ao peso de seu corpo, que, no outono de
então, Caroline os deixou prosseguir, a ele e ao bando barulhento dos amigos, para,
1.
Esse texto foi publicado originalmente em alemão, em homenagem ao prof.dr. W. Schmied-Kowarzik,
em livro intitulado „Kritik und Praxis“, hrg. Von H. Eidam et alii, Verlag zu Klampen, Lüneburg, 1999.
O texto cuja tradução contém alterações significativas, pareceu-me adequado à publicação presente, em
homenagem ao colega e amigo Nythamar de Oliveira, em vista de seus próprios interesses acadêmicos.
2 . O dia descrito nesta narrativa é uma ficção. No final de outubro do ano de 1909, após a morte da
mulher, Caroline, em 7 de setembro, Schelling não se desloca a Dresden. Oscila, na verdade, entre
Munique, onde não consegue mais ficar, e Stuttgart, onde ministra suas “Aulas Privadas”; e, segundo
alguns, escreve o diálogo “Clara”. Se faço dele, aqui, a figura de uma narrativa fictícia pondo em seu nos
lábios palavras que jamais formulou, imprimindo-lhe sentimentos e emoções que talvez nunca tivesse
tido, se o faço viver situações não experimentadas efetivamente, é por ver nele uma personalidade
filosófica, que, já em vida, se tornou legendária. Legendária não só devido à ousadia de seu pensamento,
senão, também, porque, contra todas as formas sociais estabelecidas, teve a ousadia de amar. Isso faz
dele o habitante de um mundo imaginário, a partir do qual o invoco, para essa curta narrativa. Tomo
ademais a liberdade, de, utilizando-me de uma determinada bibliografia, tanto para os diálogos entre
as personagens quanto para as descrições da cidade de Dresden e seus arredores, apenas indicar sua
fonte geral, integrando as citações à narrativa.
3 . Caroline Schlegel-Schelling (1763-1809), 11anos mais jovem que Schelling, viveu com ele o seu
terceiro casamento e foi, talvez, à época, a mais admirada e odiada figura feminina do primeiro
Romantismo alemão. Conf. in Roßbeck, Zum Trotz glücklich (Apesar de tudo feliz). Caroline SchlegelSchelling und die romantische Lebenskunst, Siedler Verlag, München, 2008.
578 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
sem ela, abandonarem a cidade pela Porta Negra – e, entre as cores mutantes dos
vinhedos, celebrarem o início da nova amizade.
Atravessada a Porta, ele segue à direita, em direção às vinhas cultivadas ao logo
do Elba, para daí gozar a vista da cidade. Olhos semicerrados, aspirando com força o
cheiro adocicado das uvas, deixa o corpo cair sobre um banco de pedra. O mesmo,
talvez, de onze anos atrás, em que se acomodou junto ao grupo de amigos, no parreiral
berrando as cores de seu breve declínio. Schelling ouve, de longe, o ruído abafado da
cidade, de repente, encoberto pelas vozes vindas do passado. Vê, à sua esquerda, a
figura de Hardenberg, olhos iluminados e os traços amáveis. Wilhelm serve-lhes vinho,
e os cálices, no brinde, vibram ao som das risadas. É Hardenberg quem fala, espirrando
entusiasmo: “Uma libação para os deuses! Esvaziemos os cálices!”. Lançam-nos
juntos, após, contra as pedras, onde eles se espatifam, com estrondo. Ouve o grito de
Fritz, apaixonado: “Nenhuma separação! Nenhum ficar a sós! Seja-nos concedido um
ir juntos a pique!” 4 . As feições do filósofo ensombrecem. Bem demais, os deuses
atenderam o desejo insensato...
Schelling sacode-se do devaneio e, pela mesma Porta, toma o caminho de volta
à cidade, só parando na ponte, sobre o rio. A vista é encantadora. Se o leito do Elba
vem estreito até próximo a Dresden, torna-se, aí, uma correnteza poderosa em
harmonia com o fausto da cidade e da paisagem. A cadeia de montanhas, na direção
da Lausitz, oferece uma vista estupenda. Ao longo do rio, as elevações em parte
selvagens, em parte cultivadas com videiras, formam um palco de beleza incomum.
Surpreso, ele constata que a cidade ainda passa a impressão de antiga fortaleza, com
suas circunvoluções elevadas, de tijolos, e os lúgubres Portões. Além desses, abre-se a
massa de edifícios e torres, que, agora iluminada pelo sol, amaina a impressão
confrangedora. O seu olhar desliza, pensativo, sobre as montanhas, além. Naquela
primeira visita à cidade, em 1798, havia percorrido, com o grupo, a região inteira, suas
planícies e cavernas, até a fronteira com a Boêmia, gozando a multiplicidade
4.
Trata-se do grupo convidado pelos irmãos Schlegel, para uma temporada de estudos em Dresden. Em
Jena, após isso, o grupo conviveu uns poucos anos de intercâmbio social e intelectual de grande
intensidade, para então separar-se em desavenças mesquinhas. O barão de Hardenberg é o poeta
Novalis; Wilhelm é W. Schlegel e Fritz é Friedrich Schlegel, figuras marcantes do movimento romântico,
em sua fundação. Outras figuras importantes, nesse convívio, foram, o filósofo Fichte, os escritores
Tieck e C. Brentano, o físico Ritter, entre outros, além de personagens femininas interessantes, embora
ferinas em suas antipatias mútuas. Goethe e Schiller assistiram, apenas, céticos, os desdobramentos
dessas relações. Conf. in Huch, R. Die Romantik. Blütezeit. Ausbreitung und Verfall, Rowohlt Verlag,
Hamburg, 1985; e Safranski, R. Romantik. Eine Deutsche Affäre, Carl Hanser Verlag, München, 2007
Muriel Maia-Flickinger | 579
surpreendente da natureza. Para dela extraírem o rico material às discussões
filosóficas travadas após, já que eles todos se sentiam aptos a “romantizar o mundo”,
a “potencializá-lo” em seu imaginário...5
Chegado ao fim da ponte, o filósofo dobra à direita, para o Zwinger, a
impressionante construção em pedra a abraçar o quadrado de uma praça pública,
junto ao Mercado Novo. Sua intenção é alcançar a Galeria de Pinturas localizada em
uma asa lateral do castelo, onde um dia ficavam as “cavalariças” do duque. Ao lembrar
o lugar, não consegue evitar um sorriso. Naquela época, e talvez ainda hoje, andava-se
através de um pátio desolado, passando por estábulos e descendo, a seguir, por escada
de pedras já gastas, até chegar a uma porta, que só abria mediante o pagamento de um
ducado. Os irmãos Schlegel tinham tomado posse da Galeria e, junto aos convidados,
ocupado as manhãs com o estudo das obras expostas. Tomava-se notas, discutia-se
muito, e, à noite, no alojamento, ministrava-se e ouvia-se as aulas uns dos outros. Num
entusiasmo quase infantil, queriam todos ser introduzidos nos mistérios da arte.
Mesmo Fichte. Era cômico assistir a prontidão, com que este se deixava arrastar, por
toda parte, e ensinar pelos Schlegel...
Como se preso a uma fenda do tempo, Schelling detém-se sob uma arcada do
Zwinger. Sem contornos precisos, mas com força própria, jorram agora em seus
sentidos, as formas e as cores das pinturas, os cheiros e o calor do espaço, em que eles
se reuniam, naquele período, durante as manhãs. Ele se havia atrasado, aquele dia; e
revive, em um nu – ah, com o mesmo prazer! – a sensação da umidade que emanava
das paredes, quando, apressado, penetrou na sala abobadada da Galeria. Sim... lá está
ela, a alma cristalina! Caroline está diante de Fichte, a face voltada na direção da
Madonna6. Deslocado da parede, para um cavalete, o quadro servia, no momento, aos
estudantes de pintura, que o analisavam e, às vezes, copiavam. Fixando o olhar em
. Os primeiros românticos alemães, incendiados pelo discurso de Fichte acerca do “eu”, acreditavam
que a força viva da imaginação seria capaz de agir no interior e fora do “eu”, no mundo pretensamente
‘lá fora’ (eu e não-eu se erguem juntos em um acontecimento único), podendo transmudar até mesmo a
realidade objetiva. “Romantizar o mundo” significava agir em uníssono com essa força geral da vida,
não só sobre si mesmo, senão também além de si, potencializando-se, assim, qualitativamente, e aos
outros, na relação, a ponto de gerar uma realidade em todos os sentidos mais elevada que a existente,
sobretudo moralmente. Conf. in Ricarda Huch, Die Romantik. Blütezeit, Ausbreitung und Verfall,
Rainer Wunderlich Verlag, Hamburg, 1985; e Rüdiger Safranski, Romantik. Eine deutsche Affäre, Carl
Hanser Verlag, München, 2007
6 . Trata-se da “Madonna Sixtina“, de Raffael (1512/13) 269,5x201 cm. A tela foi comprada de uma igreja
em Piacenza, em 1753/4. A Igreja fora dedicada ao santo Papa Sixtus, de onde a designação sixtina. Em
geral, o quadro se encontrava no alto da parede e era preciso usar uma escada para observar a obra de
perto. A pintura era deslocada, por vezes, para um cavalete, na Galeria, para que os estudantes de arte
pudessem copiá-la ou estudá-la de perto, como acontece nesta narrativa.
5
580 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Caroline, como no passado, Schelling a ouve falar, o tom baixo da voz ecoando,
abafado, entre as arcadas.
“– Como domar a língua”, ela interroga Fichte, “de modo a que repita a elevação
dessa expressão? Isso age tão imediatamente, indo do olho à alma, que não se chega
às palavras, nem se precisa delas, para reconhecer o que está aí numa clareza
indubitável, sendo impossível apanhá-lo de outro modo qualquer.” Ela hesita,
parecendo esperar que o filósofo reaja; mas não, e prossegue: “- Impressiona-me, neste
quadro, o fato de Maria não ser uma deusa. Tampouco o amor materno é acentuado,
para conquistar-nos. Maria não segura a criança amorosamente no seu braço; e a
criança tampouco sabe algo da mãe, que está aí só para sustentá-la. Deus colocou-a
nos seus braços, e é neste serviço sagrado que ela aparece à adoração do mundo.”
Fichte ainda cala concentrado na imagem. Ela volta a falar: “- O que mexe comigo, é a
falta de qualquer paixão, já que, em seus olhos claros, a Virgem silencia por inteiro. Eu
não posso negar, que - ao subir numa escada, para lhe ver de perto a face, quando o
quadro ainda estava lá em cima, na parede -, aproximando o rosto da pintura, fui
Muriel Maia-Flickinger | 581
tomada de um breve calafrio; meu sangue congelou frente à luz desse olhar, que jorra
de uma calma sobrenatural.”
Fichte se volta, agora, em gesto brusco, para a amiga, e seus olhos como que a
atravessam. Schelling sente-se ainda tocado desse olhar. Desde o primeiro encontro,
teve a impressão de apanhar, nos seus olhos, o indício físico do que se oculta na
expressão “Eu sou Eu”. “- É aí, que isso se concretiza”, ele murmura. E, congelando a
cena em seu espaço-tempo, acerca-se de Fichte, para observar-lhe os olhos - que lhe
engolem o rosto a partir do interior. Estranhamente ausente, a luz que lhe encharca as
pupilas, não se dirige para fora como se a experiência que faz de si mesmo o cegasse
para o mundo catapultando-o a uma realidade outra. O único lugar sensível, em que
seu espírito filosófico aparece, está na força visionária aninhada em seus olhos. De
cada vez que ele se volta ao mundo fora dele, seu olhar desfalece, recolhendo-se em si,
empobrecido. Agora, porém, tem o holofote do olhar fixado em Caroline, e parece
alcançar a dimensão espiritual de que brota sua fala. “- Querida amiga”, ele diz, “o que
você parece ver na Madonna, o que a leva a fremir à transparência do instante
sobrenatural, é certamente a força da mesma vontade, que escorre em cada ser
humano e através de toda natureza. O querer, que é a vida, jorra não apenas do ponto
focal do olho divino; não apenas, portanto, do olhar de Maria, onde se encontram a
força maior e a calma absoluta. A correnteza luminosa atravessa igualmente o mundo
material profano produzindo e forjando a si mesma. Ela escorre igualmente em nossas
veias e músculos, como se põe nas plantas e animais, em tudo que se move e que se faz
sentir, num impulso geral fiel ao princípio único de todo movimento, o qual impele o
abalo harmônico de um fim ao outro do universo.”
Fichte detém-se e Caroline retoma a palavra: “- Você está certo; é assim que vejo
a natureza. E me pergunto, sempre, como essa força se resolveria na morte... Na
natureza, a morte é nascimento, e parece ser nela, justamente, que a elevação da vida
se torna visível. Na natureza, é o que penso, não há princípio algum de morte; toda ela
é vida, e nada mais que vida. Nela, o que mata, não é a morte, mas a vida mais viva; a
vida, que se desenvolve ocultamente por detrás da velha vida. É através da morte, que
a vida se eleva e cresce - para iluminar-se em manifestações mais espirituais de si
mesma...” Ela ia prosseguir, mas Fichte a interrompeu: “- No entanto”, ele iniciou,
“mesmo que o espírito impregne o mundo inteiro, esse acontecimento imensurável,
que você experimentou ao contemplar a Madonna, é, de fato, monstruoso; e o calafrio
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é, sim, a reação fiel da carne a si mesma... Frente à experiência do divino, eu diria ser
esta a única reação possível à nossa sensibilidade. Porque, nessa experiência, a
fronteira de nossos sentidos é tão violentamente ultrapassada, que, para apanhá-la em
nossa carne, resta-nos só o sentimento do sublime. Como seres finitos, não somos
capazes de vivê-la. Não me surpreende, por isso, que, referindo-se a nós, meros
mortais, os gregos tomassem por aniquilador o olhar direto dos deuses, embora a eles
nos pudéssemos unir no amor corpóreo...”
Num meneio impulsivo do corpo, Caroline se tinha aproximado de Fichte, e ia
falar, mas parou percebendo a presença de Schelling. E sorriu, para ele, inclinando a
cabeça com graça sobre o ombro. Ele treme à lembrança; e recai no presente deixando
a cena afundar na correnteza interior. Lá atrás, ele havia lamentado interromper a
conversa, por surpreender, nos dois, um instante de forte comunhão e se sentir ligado
a eles pela mesma força mágica. Desde então, sabe-o há muito, apaixonou-se por
Caroline; sem querer, desde logo, admiti-lo. Ele suspira fundo, e apoiado na arcada às
suas costas, sacode-se do transe a que a lembrança o arrastou. E afugenta de si a ideia
de buscar a Galeria; não se deve forçar Mnemosine ... Com passos inseguros, ele
abandona o Zwinger, para entrar na melhor, na mais brilhante rua da cidade, a Ruela
do Castelo, que o levará ao encontro do Velho Mercado. Respira com dificuldade à
consciência voltada, de sua morte ... Sente-se oco, vazio. Sabe que só conseguirá
superar tal sensação através do trabalho; mas precisa, também, dos abalos e choques
externos, para encontrar alívio. Por isto, a viagem a Dresden. Ele aí tinha sido jovem,
feliz, vivido o encontro com uma natureza deslumbrante, e o início da grande aventura
de sua vida. Com ela, a incomparável – que tinha ousado a ‘dança da liberdade’.7
7 . Referência a estadia de Caroline em Mainz, anos antes, quando, após a morte de seu primeiro marido,
juntou-se a G. Forster e sua mulher, entre outros revoltosos, festejando com eles a Revolução Francesa.
Abafada a insurreição de Mainz, Forster exilou-se na França; Caroline viu-se desonrada e encarcerada,
algum tempo, em uma fortaleza (Königstein, em Frankfurt) junto da filha, Auguste, de 7 anos. Foi seu
irmão mais jovem, quem conseguiu tirá-la da prisão através de uma amiga - mediante um contato desta
com o rei da Prússia (1793). Em consequência de anterior aventura com um oficial do exército francês,
Caroline pariu uma criança, que deixou aos cuidados de família local; o menino morreu dois anos após.
Wilhelm Schlegel, que já havia tentado sem sucesso desposá-la, deixou a Holanda, onde se encontrava,
para ajudá-la. Na situação em que se encontrava, Caroline ficava impedida de viver onde desejasse, nas
cidades alemãs. Em Gotha, foi tratada como uma “criatura abjeta”; em Göttingen, declarada
oficialmente “pessoa indesejada”. Passando a ajudar Schlegel em seu trabalho de tradutor, entre outros,
o sucesso deste foi imediato. Os juízos linguísticos de Caroline tornaram-se, para ele, imprescindíveis.
A possibilidade de ele apresentar aos editores textos de alta qualidade literária dependia sobretudo dela,
o que veio completar o laço de cooperação e respeito entre ambos; sem paixão. Casaram-se em julho de
1796, mudando-se imediatamente para Jena, onde Wilhelm havia sido convidado a trabalhar, inclusive
por Schiller. Conf. in Roßbeck, B., Zum Trotz Glücklich (Apesar de tudo feliz). Caroline SchlegelSchelling, Siedler Verlag, München, 2008
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No Velho Mercado, Schelling vê-se empurrado, aos tropeções, entre cavaleiros
e soldados, na multidão barulhenta. Há, contudo, pessoas bem vestidas contrastando
com as tendas sem gosto, que enfeiam a praça. O ruído é enorme, intensificado pelos
muitos coches, que aí circulam. Schelling escapa àquele picadeiro, no elegante Café
d’Europe, onde toma lugar numa mesa à janela. No local, em uma mesa ao fundo,
sentam três oficiais, e, bem próximo a ele, alguns homens discutem política. Toma-se
limonada, sobretudo café, tendo à frente um pedaço de bolo, de torta, ou bolos fritos.
Ainda assim, os frequentadores parecem ter vindo nem tanto pelas ofertas da
confeitaria, senão pelos jornais expostos em quantidade e à disposição em várias
línguas. Schelling folheia distraído em um periódico do dia, seguindo com os olhos os
passantes, lá fora, sem vê-los, realmente. Seus pensamentos arrastam-se, indolentes,
indo perder-se no vapor da grande taça de café que tem à frente. Parece-lhe reconhecer
esse perfume de um tempo anterior. O cheiro do café não o alcança, contudo, a partir
dessa taça, mas de outra, menor e azulada, que ele percebe agora estar na mão de
Fichte. Este a aproxima dos lábios sorvendo, sem pressa, o conteúdo fumegante. Lá
atrás, no passado, quando sentados, ambos, nesta mesma mesa...
Schelling tenta reter a lembrança, fecha os olhos e goza a sensação deliciosa de
sua materialização. É um veneno ou um bálsamo, o que mexe com ele? Temendo ver
desvanecer-se a miragem, ele se inclina sobre a mesa, aspirando com força o perfume
que sobe da taça em suas mãos. Tinham vindo, ele e Fichte, naquele mesmo dia, até o
Café d’Europe, para tecer adiante os pensamentos iniciados na Galeria de Pinturas.
“- Há muito”, é a voz de Fichte, que ele ouve à sua frente, “o universo já não é
mais, para mim, aquele em que uma vez acreditei: não mais o círculo retrocedendo em
si mesmo em jogo repetido, sem cessar. Não mais aquele monstro a devorar-se a si
mesmo, para outra vez parir-se como já era antes. Ele espiritualizou-se frente ao meu
olhar, e traz em si o cunho próprio do espírito em seu progredir incessante, para o mais
perfeito, em uma linha reta, que se vai perdendo no infinito...”
Schelling o ouve com certa impaciência. Naquele outono de 1798, Fichte é, por
certo, ainda, para ele, o filósofo-herói, conquistador da terra da verdade; importa-lhe,
porém, naquela tarde, retomar a pergunta que Caroline impediu-se de fazer ao
surpreender sua presença, na Galeria. “- Sei, sei!”, ele interrompe Fichte. “É,
entretanto, notável o fascínio que essa imagem de um círculo voltado sobre si mesmo
exerce em nosso imaginário. Talvez, porque, visto a partir de nossa perspectiva, seu
584 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
movimento se repita ininterruptamente? Virá jamais a ser suspensa essa luta
incessante entre morte e nascimento, esse perpétuo sofrimento no cerne da vida? Na
natureza, há de ser, afinal, tudo novo e, ainda assim, sempre o mesmo? E nós?
Também a nós ela impele, sem descanso, adiante, até que, exaustos, desabemos
também nos seus braços? Estou certo de que, se, afinal e inevitavelmente, o círculo
devesse ser quebrado, isso só se daria por um ato de pura liberdade; e a chave à solução
desse enigma, quem a possui é, sem dúvida, o Orco. Volto, então, justamente por isso,
ao ponto da conversa, a que você e a Schlegelin tinham chegado, esta manhã, quando
os interrompi. Ela acabava de dizer que olhava a morte como um ‘nascimento’ no seio
da natureza. Eu lhe pergunto, então, aonde situar, no desdobrar-se do querer em geral
nesse campo de guerra da vida, a morte individual da própria personalidade?”
Fichte reagiu gesticulando muito e obviamente irritado: “- Como faz tal
pergunta, meu caro? Acaso a minha morte poderia ser algo outro que um verdadeiro
nascimento, um aperfeiçoar-se da vida em uma esfera mais elevada? Sim, minha
morte, já que não sou uma mera representação e cópia da vida, mas carrego em mim
mesmo a única vida originária, verdadeira e essencial? Não, nem mesmo a minha vida
natural, essa mera representação da vida interior invisível aos olhos do finito, pode ser
aniquilada pela natureza. Porque, se o fosse, ela precisaria poder aniquilar a si mesma;
ela, que aí está meramente para mim, que não é, se eu não sou!” Fichte estava agitado,
como sempre. Interrompeu-se, e, abraçando com os dedos a xícara, levou-a à boca.
Com os olhos perdidos na janela, engoliu até o fim a bebida já fria, sem parecer notar
o ruído penetrante que vinha da rua. “- O próprio ato”, ele prosseguiu, “mediante o
qual a natureza mata um ser livre e independente, é o seu solene – revogável por toda
razão – passar para o outro lado desse ato e por cima da esfera inteira que ela encerra.
O fenômeno da morte é a escada, na qual meu olho espiritual desliza para a outra
banda, para a nova vida de mim mesmo, e para uma natureza para mim. Se, portanto,
alguém que eu amo caminha para fora da liga terrena, este arrasta consigo os meus
pensamentos. Na verdade, este alguém ainda é, e lhe é devido um sítio.”
Emocionado, Schelling detém a cena, e a aproxima dos olhos. Os crescentes
mal-entendidos entre ele e Fichte tinham-no feito esquecer a relação amigável de
então. E se pergunta, agora, por que os dois – tão ligados em Jena – jamais chegaram
a falar pessoalmente acerca de suas diferenças. Mesmo naquele seu primeiro encontro
a sós, no “Café d’Europe”, era-lhe já muito claro: se a natureza não pode aniquilar o
Muriel Maia-Flickinger | 585
indivíduo, isso não é devido a ela estar aí apenas para ele. A ideia de Fichte, de que o
mundo fora da consciência seria meramente posto pelo sujeito cognitivo, sim, de que
ele mergulharia no nada sem o seu olhar, isso era, já então, para ele, uma
monstruosidade na, no mais, fascinante teoria do amigo. Que, para Fichte, o mundo
dos sentidos precisasse cair em uma minúscula região da consciência, servindo apenas
como impulso ao conhecimento teórico, sim, que não lhe coubesse qualquer
significado especulativo, era-lhe já profundamente irritante. Ele há muito pensava a
natureza e o espírito enquanto correlatos vivos e ativos. Mesmo considerando o eu
enquanto o meio-dia dessa correlação, era-lhe inimaginável pensar em um sem o
outro. De qualquer modo, já então, para ele, a natureza teria em si mesma o
fundamento de sua existência – ainda que nela a consciência fosse um olho cego, ou,
no máximo, sonolento. Já naquela conversa com Fichte, Schelling punha o eu como a
mais elevada potência da própria natureza. Sem ousar, entretanto, falar-lhe a
respeito; não, ao menos, abertamente. Por quê?
As badaladas do relógio de parede arrancam-no ao seu devaneio. Tomado de
vertigem, o filósofo enxerga suas mãos sobre o periódico aberto na mesa; elas tremem.
“- Mesmo assim, meu amigo”, ouve-se murmurar ajeitando o jornal, “hoje posso
sentir ainda mais fortemente o efeito iluminador de suas palavras. Como ouvi de você,
naquela tarde, Caroline ainda é! Soube-o desde sua morte; e ocupo-me, desde então,
quase exclusivamente com esta e outras questões de um mundo mais elevado. Sinto,
sei, em mim mesmo, como ouvi de você, que “lhe é devido um sítio’... Está muito
impreciso, ainda, em mim, o modo como experimento isso... Estou certo, porém, de
que a existência espiritual pode mover-se apenas em um elemento sombrio, o qual não
passa, afinal, de sua base natural, a saber, no corpo, no qual o espiritual acorda, para
penetrar no mundo como elemento luminoso. Justamente, por isso, ouso afirmar a
imortalidade corpórea. Não fosse assim, como pensar a sobrevivência da própria
personalidade? Vinda da obscura natureza, ela tem algo físico em si. Em nós existe,
sim, uma essência espiritual de nossa corporeidade; essência, a qual só chega a
libertar-se, em sua singularidade, quando nem os sentidos nem outros laços de vida
amarram-na ao mundo exterior. Mesmo o meu luto, eu sei, pertence à mera esfera
empírica. O laço de meu amor é indissolúvel, como o é, também, a lembrança de uma
alma enraizada no mundo corpóreo. Não é acaso uma exigência de Deus, que o laço de
meu amor afunde, ele também, na obscuridade corpórea?”
586 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Schelling só agora dá-se conta, de que o relógio bateu as três horas. Levanta-se
da mesa e paga a conta. Ao sair, o proprietário do Café, o mesmo italiano simpático de
anos atrás, cumprimenta-o na porta e agradece. Ele se apressa, agora, de volta à Ruela
do Castelo, para nela alcançar o Hotel de Pologne, onde se hospeda. Todo luxo de
Dresden parece ter-se concentrado nesta rua. Agasalha butiques elegante, joalherias,
gabinetes de arte e lojas de pinturas. É a travessa preferida dos ociosos da cidade, dos
estranhos e aventureiros de toda espécie; onde desfilam equipagens reluzentes, com
seus cavalheiros vestidos à moda e acompanhados, em geral, de belas mulheres. Nela
reina também, um enorme alarido. Empregadinhas e cozinheiras apressadas, em
trajes típicos, soldados, damas com seus cachorros, pares elegantes e jovens estafetas
apertam-se, na multidão, fazendo da rua um alegre teatro de variedades. Diante do
hotel, três jovens serviçais descarregam de um coche as malas de família recémchegada. Schelling passa por eles e avança no amplo saguão. Sua figura chama atenção,
os olhares se voltam para ele. Há algo de determinado e enérgico em seus movimentos,
em contraste com a o rosto ensombrecido pela ruga funda que lhe corta a testa. Uma
hora depois, ele volta, apressado e dirige-se, a pé, na direção da Porta Pirnaica, onde
o pintor Friedrich o aguarda no seu atelier 8 . Por pouco, ele e o pintor se teriam
encontrado, naquele outono de 1798. Quando o artista chegou a Dresden, Schelling e
seus amigos acabavam de deixar a cidade. Friedrich não demorou, porém, a entrar em
contato com o pensamento dos Românticos e com sua própria “filosofia da natureza”,
da qual sofreu obviamente influência. O filósofo ouvira acerca dele, não apenas de
Goethe, senão também de Schubert9, Tieck e W. Schlegel; além de Caroline, é claro.
. Caspar David Friedrich (1774-1840). O pintor foi geralmente mal interpretado, em seu tempo. Figura
solitária entre os ditos pintores românticos, a modernidade de seu trabalho foi percebida por poucos,
então; isso só apareceu no início do séc. 20, quando, como figura isolada no contexto do romantismo
alemão, o pintor ganhou, na crítica filosófica, lugar comparável ao de Novalis, Tieck, Schlegel e ao do
próprio Schelling. (conf. in Schmied, W, Caspar David Friedrich, DuMont, Köln, 1992)
9 . Gotthilf Schubert (1780-1860), médico, filósofo da natureza e místico, deslocou-se de Halle, em 1800,
onde estudava medicina, para Jena, atraído pelas investigações do físico Ritter sobre o galvanismo e sua
influência sobre os nervos do corpo humano. Após falar com o físico e ter ouvido Schelling, decidiu ficar
aí por um semestre, assistindo as famosas aulas de Schelling sobre sua “filosofia da natureza”. Sua
impressão foi tão forte, que comparou o filósofo a Dante, o vidente de um mundo além deste mundo
físico. Schubert escreveu textos que influenciaram E.T.A. Hoffmann, Freud e Jung. Para ele os sonhos
eram uma abreviatura hieroglífica, mais adequada à natureza do espírito do que a fala normal,
permitindo rápidas associações cujas leis funcionariam como uma forma de álgebra mais elevada. No
sonho, as leis seriam outras que as da vida desperta, quando o individuo poderia atingir uma consciência
mais elevada. Entre outros, Schubert escreveu seu famoso “Ansichten von der Nachtseite der
Naturwissenschaft “(1808), (Vista sobre o lado noturno da ciência da natureza). Conf. in Huch, R. Die
Romantik. Blütezeit. Ausbreitung und Verfall, Rowohlt Verlag, Hamburg, 1985
8
Muriel Maia-Flickinger | 587
Todos admiravam sua arte, embora Goethe o criticasse em sua tendência à mística;
inadequada, dizia, à pintura de uma natureza real.
Um ano antes, pela primeira vez a óleo, Friedrich tinha pintado um pico de
montanha imerso em forte neblina matinal10. A concepção do quadro abalava, de tal
modo, as expectativas tradicionais de uma paisagem, que a obra se tornou o centro da
disputa entre conhecedores de arte de diversas posições. Schelling havia lido as várias
opiniões sobre esse novo conceito de paisagem; e tinha simpatia pela intuição da
natureza que inspirava o pintor. O sentimento de uma natureza abandonada por Deus,
expresso nesse quadro, havia de tal modo impressionado Caroline, que ela viajou a
Dresden, para ver a pintura11.
De fato, o caráter incomum do quadro perturba. O olhar do espectador vê-se
impedido, por imensa rocha, de enxergar o drama que transcorre atrás dela – o qual é
o tema propriamente dito dessa pintura. Frente a essa pedra gigantesca, a atenção do
espectador é dirigida a uma luz perturbadoramente artificial e mesmo apavorante
vinda do lado oculto da pedra e a propagar-se em raios poderosos, a partir de uma
10 . Trata-se de pintura realizada por Friedrich em 1807/08, intitulada „A cruz na montanha”
(Tetschener Altar), 115x110,5 cm. Dresden, Galeria de Pinturas.
11 . Esta viagem de Caroline e suas considerações sobre a pintura de Friedrich é uma licença literária,
como o são a viagem de Schelling a Dresden, naquele momento, e suas considerações, a seguir, sobre o
pintor e sua obra.
588 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
fonte invisível situada abaixo, no lado encoberto da montanha. No seu pico, uma
escultura de Cristo na cruz, de costas para o observador, acentua ainda mais a falta de
acesso ao drama ocultado, porque voltada justamente para a luz ou o acontecimento
sobrenatural invisível, do qual se arranca. De volta, Caroline qualificou como ambíguo
o sentimento que a tomou frente à obra. A beleza incontestável da paisagem, com seus
traços parcos e rudes, agira sobre ela em um misto de ameaça e promessa.
“- Frente a esse quadro”, ela falou, “não se experimenta o comumente observado
‘sentimento panteísta’ provocado por uma paisagem. A natureza, em Friedrich, e não
apenas nessa pintura, gera antes uma impressão de abandono, como se fôssemos
arremessados de volta a nossa solidão. Nela, Deus nos parece ausente; ela deixou de
ser o Seu palco, semelhando antes o espaço que nos sobra, quando Ele se retira; um
espaço estranhado do homem, mudo e inalcançável...” Caroline chegou a comparar o
que sentia, com o que experimentava ao ler certos textos escritos pelo marido, quando
este falava sobre um fundo obscuro e inultrapassável na existência das coisas; um
fundo, em que se gestaria a possibilidade do mal no mundo... Segundo ela, na pintura
dessa natureza indevassável, Friedrich parecia estar, intuitivamente, tematizando a
relação daquele fundo tenebroso para com o divino. “- O que Friedrich aponta, no
quadro, sem o representar”, ela disse, “é algo incapturável por nossos sentidos; ou, se
estes conseguem, de algum modo, apanhá-lo, isso não chega à nossa consciência. Daí,
justamente, o sentimento de abandono que essa pintura desperta no contemplador; e
o que lhe torna a coisa tão mais surpreendente! Pois, é nesse sentimento de abandono,
que o quadro acorda em nós uma esperança inexplicável, por ser tão incompreensível
quanto inegável...” Caroline voltara a falar, com frequência, da experiência vivida no
atelier do artista. “- Friedrich me lembra”, ela disse, uma vez, “aqueles sacerdotes de
cultos arcaicos, que extraem da própria escuridão uma promessa.” E completou: “Nessa pintura de natureza, o que mais me abalou, foi, na verdade, o novo, o até aí
insuspeitado em uma paisagem: o fato de o pintor não parecer enxergar a natureza, lá
fora, senão auscultá-la em sua força interior caótica, ajudando-a a parir – na forma
limitada da pintura - algo inimaginável, porque invisível para o nosso olhar...”
Desde então, Schelling tinha pensado em procurar o artista. Não para falar
sobre o mistério da criação, pois, quem cria, ele sabe, não pode falar a respeito. Tinha
querido vê-lo, sentir sua presença, ouvir sua voz, para... para tentar, talvez, adivinhar
o que assim lhe permite acercar-se da natureza com tão singular sentimento religioso;
Muriel Maia-Flickinger | 589
um sentimento que pressente a ameaça do nada no cerne do existente. Ao dobrar
numa esquina, o filósofo topa com o Elba, e identifica o subúrbio Pirnaico, onde, à
margem do rio, está a casa de Friedrich. Não custa a achá-la e se surpreende ao
perceber inscrita, também nela, a pobreza do entorno. Ele mal toca a aldraba e os
passos do pintor ressoam no interior da casa. O corpo do artista recorta-se no
retângulo de madeira, alto e magro; no rosto, os traços sérios, mas abertos. O homem
lhe aperta a mão, formula uma gentileza e o conduz até o fundo, onde fica o atelier.
Schelling era esperado e, aí, sobre mesa minúscula, está um bule de chá junto às xícaras
e o prato com biscoitos sob um guardanapo. Duas cadeiras de madeira, a cama estreita
oculta sob um cobertor, e o cavalete de pintura. Não há tintas, pincéis, panos e outros
utensílios, naquele espaço. Esse despojamento lembra a cela de um Mosteiro, e a
impressão se acentua ao vestuário do artista semelhante ao de um frade.
Friedrich o leva à janela que se encontra aberta, à esquerda – a da direita está
fechada por tapume de madeira -, de onde se avista o rio e suas margens. Ao fundo,
entrevê-se a cidade, para além da ponte; na margem oposta, uma carreira de choupos
encobre a meio umas poucas casas minúsculas.12 Os dois homens trocam impressões
acerca de Dresden. Friedrich é um expert a respeito, pois conduz incursões pela cidade
e através da região. Bem-humorado e brincalhão, conta histórias jocosas acerca de seus
habitantes, salientando uma e outra das figuras características da cidade. Durante o
chá, falam sobre a situação política. O artista vive mais do que nunca recolhido, tão
penosa e opressiva esta lhe pesa, no momento. Schelling concorda. Há muito deixou
de ter simpatia pela revolução; os franceses são hoje seus inimigos. Sente, como o
pintor, que se está indo aceleradamente em direção do abismo. Enquanto conversam,
ele pode observá-lo. O homem o agrada, com seu modo direto, descomplicado e ao
fundo alegre. Tem a boca sensual, que, se aberta em sorriso, lhe ilumina o rosto
duramente talhado, e o suaviza. Lembrando o lado obscuro de sua pintura, Schelling
fica surpreso de não ler melancolia nos seus traços; menos ainda, exaltação. Nenhum
dos dois dirige a conversa para a arte. O filósofo se deixa guiar com prazer, sem querer
forçar nada, mas, passado um tempo, pergunta se poderia ver seu trabalho atual.
12 . A descrição desse atelier e da indumentária de Friedrich tem por base em quadro de pintor seu
amigo, Georg Friedrich Kersting: Caspar David Friedrich no seu atelier, 1811, Berliner Nationalgalerie.
A vista da janela baseia-se em quadros do próprio Friedrich. A vista permaneceu a mesma, quando,
mais tarde, ao casar, este mudou para casa maior, alguns metros dali: Vista da janela à esquerda, sépia,
31x34 cm, 1805, Viena, Kunsthistorisches Museum; e, Vista da janela à direita, 31x24cm, 1805, Viena,
Kunsthistorisches Museum.
590 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Friedrich não hesita, o visitante está aí para isso. Desde esta manhã, após a vinda do
estafeta - que lhe apresentou a solicitação acerca da possibilidade da visita e, em caso
positivo, do horário mais adequado para a mesma -, ficara curioso de ter o filósofo em
seu atelier. Se sua obra teria algo a lhe dizer? Não lhe passa pela cabeça falar a respeito;
sobre o que o move, essencialmente, ele guarda silêncio. A arte é sua religião.
Friedrich deixa o atelier e retorna, minutos após, carregando uma tela
avantajada, que deposita com cuidado sobre o cavalete. Já de pé, o visitante se acerca
da pintura. O espanto que o toma é sensível. Os olhos do pintor prendem-se, um curto
momento, em seu rosto moreno... e ele se retira. Schelling nem o percebe. “- O que
acontece neste quadro?”13, pergunta-se, atônito. Nada. O poder do vazio é assustador.
Aí, os objetos escapam aos sentidos, o contemplador é roubado à realidade e, sim,
sugado para dentro da cena pintada. Ele já está na praia, junto ao monge.
Aproximando à deste a sua cabeça, ele fixa, sobre o ombro da figura, as duas
eternidades - a do mar e a do céu -, que, engalfinhadas em luta, perdem-se acavaladas
no infinito. O ponto de encontro entre ambas, o início do embate monstruoso, está fora
do quadro, no abismo. “- Como trouxe a si mesmo a esse lugar desolado?”, perguntase. “- O que diz esse quadro? Troça do sim à vida? Aponta ao beco-sem-saída, a que a
esperança nos leva? Condenou-se a contemplar para sempre o divórcio irreparável do
existente?”
. Trata-se da pintura “O monge à beira mar”, de 1808-10; óleo sobre tela, 110x 171,5 cm. O quadro
encontra-se em Berlin, no Schloß Scharlottenburg, Stifftung Preußischer Kulturbesitz.
13
Muriel Maia-Flickinger | 591
Na tela, o monge acaba de voltar-se para o horizonte; isso, porém, parece ter
acontecido desde sempre, eternidade afora. Ele não busca o olhar dos homens. Não, o
que o tem prisioneiro, são as formas a meio esboçadas do corpo do mundo. Formas
emersas do enlace entre o seu próprio olhar e o que elas são nelas mesmas. É nesse
interstício, que o universo inteiro se concentra; neste eu, que, misturado ao mundo
contemplado, se vai desfazendo com ele... Schelling ouve a si mesmo: “- Foi alcançada,
aí, a última fronteira, em que o homem ainda consegue deter-se. O mundo empírico
ficou, há muito, para trás, com o último marco da consciência transcendental. É entre
uma coisa qualquer e nada, que o monge se equilibra - na linha invisível de fronteira,
entre um primeiro ou um último trapo de vida, e a morte... O monge ainda é, por certo,
um eu; mas um eu que se encontra a si mesmo, onde ameaça afundar. E não pode
voltar. A praia, faixa estreita de areia em que se apoia, derradeiro retalho de existência
ainda reconhecível no limiar do nada, é tudo que lhe resta – aquilo em que se poderia,
talvez, agarrar... Ponto extremo, em que mesmo a produtividade infinita, o embate
medonho entre a matéria e o espírito ficou no passado. Assim, em pé, o corpo
levemente contorcido, o monge dá a impressão de mergulhar no horror originário do
espírito. Petrificado pela danação buscada dele mesmo, e, desde então, no aguardo de
sua própria queda, ou...?” Schelling se vê arrastado, como o monge, na tela, ao cume
da liberdade. Estão ambos imóveis, entre dois infinitos: o de um mar soturno e o de
um céu vazio. Como o monge, o filósofo sente-se à beira de um colapso. É a tensão
torturante entre duas atitudes frente ao mundo, que ele vê desenhar-se na figura hirta,
no quadro, e nele próprio. Ambas as atitudes dizem o mesmo: o exílio do homem, sua
auto-exclusão do todo. Em uma delas, o monge se empertiga, sublime, toma nas mãos
o fado - e diz sim à própria danação; na outra, ele se curva, perplexo, a um apelo a ele
estranho e, em si mesmo, inaudível – e ele o ausculta, tremendo, nas bordas do todo.
Aqui, ele é o êxtase puro... e sofre. Lá, ele é intelecto... e parece triunfar...
592 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Schelling recua, desaba na cadeira. Friedrich tinha voltado, e o observa sobre a
mesa. O lado esquerdo de seu rosto mergulha na sombra14; de dentro desta, o olho que
o espia é assustador. Sente esse olhar como se lhe tocasse a pele. Oculto sob a
sobrancelha espessa, esse olho ganha a expressão de maldade e de luto simultâneos,
de grande sofrimento. Um sobressalto breve, e o movimento lhe desvia a vista para o
outro lado do rosto à sua frente. Neste, profusamente iluminado, ao contrário do
anterior, o olho direito dá a impressão de estar pregado à face do pintor como um foco
de luz sobrenatural. Enterrado na caverna do olho, o azul cristalino da pupila não se
volta para fora; é a impressão do filósofo. Recolhido em si mesmo, esse olhar não o vê.
Pelo contrário, volta as costas ao mundo. Sorte de inteligência ao mesmo tempo
esclarecida e orgulhosa, auto-dominadora na soberba, e atrevida até mesmo na dor.
Schelling crê surpreender a confissão metafísica do artista, na expressão discrepante
desse olhar. O que acabou de ver, no quadro, espelha-se, agora, no rosto de Friedrich.
Se as atitudes opostas do monge se alternam, no quadro, parecendo oscilar em
fronteira invisível do cosmo, a discórdia espelhada no olhar do pintor denuncia duas
almas em guerra, na face.
. Toda essa passagem (que trata dos olhos e do olhar do pintor) tem por base um Auto-retrato de
Friedrich, de 1810; desenho a lápis e giz, 23x18,2cm; Berlim, Staatl. Museum, Kupfertishckabinett.
14
Muriel Maia-Flickinger | 593
“- O que vejo emergir, aqui, no próprio corpo de Friedrich”, pensa Schelling,
“são dimensões antípodas da existência. O olho na sombra é o homem natural, ainda
inconsciente da separação do todo, a que se condenou. Ele não sabe o seu exílio. Em
seu pathos, o espírito decaído não sabe por que sofre. Nessa fronteira, o intelecto
insiste em suas capacidades ordenadoras como se um fino véu lhe impedisse a visão
da própria loucura. Isso se expressa na melancolia, que o atravessa acenando de longe
ao fundo mau, no espírito. Já o olho direito... Schelling hesita, lutando com um
sentimento ambíguo. “- Estranha essa expressão de um espírito inteiramente
consciente de si mesmo! Tem-se a impressão, que, nele, a obstinação atingiu sua mais
alta potência. Mesmo emitindo tal serenidade, parece mergulhado em um profundo
auto-esquecimento. Tão impessoal é a força desse olhar, que raia o sobrenatural... É,
pois, neste olho iluminado, não naquele afundado na sombra, que se deve buscar, tanto
a fonte do mal quanto do bem. A chave do quadro está aqui, no brilho espiritualizado
deste olho direito. Seu enigma mantém-se, porém, tem de ficar indecifrável para o
espectador. No quadro, como no olho-holofote do pintor, o bloqueio à visão do que
ambos sinalizam faz parte do ser. Nesse limiar, o “eu” alcança o limite de sua
existência, antes de mergulhar na morte...”
Schelling vê-se arrancado à sua concentração pelo pintor, que os serviu
novamente do chá. A visão interior, subitamente enfraquecida, entra em luta com a
solicitação vinda de fora. Na mão de Friedrich, o bule tem um brilho irreal; ele o fixa,
perplexo, busca entender o que aquilo procura dizer. Esforça-se por reter o que sente.
Inútil. O bule já pesa na mesa, opaco. Sorvem, agora, em silêncio, a bebida; ligados,
talvez, pela mesma incerteza... Friedrich traz uma vela e a acende. Schelling volta a
cabeça para o quadro, mas já não o vê, mergulhado na sombra. Respira fundo, e se
594 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
levanta. Friedrich o imita. Apertam-se as mãos, agradecem, os olhos num
assentimento mudo. Na porta, ainda se detém, hesitam; mas não falam. Friedrich em
pé, no limiar, até vê-lo sumir.
Pela Porta Pirnaica, o filósofo alcança as ruelas estreitas e já iluminadas do
Centro. Como ele gostaria que esse dia não chegasse ao fim... A cidade está quieta.
“- Como a alma de Friderich”, ele sussurra. E também não se entrega, como
esta... Por que o faria?
Um vento forte tenta impedir-lhe os passos. Schelling resiste, e avança,
curvado...
Bibliografia
Observação: As citações dos textos utilizados foram livremente integradas nessa
narrativa, sem indicação de páginas.
Obras utilizadas para a interpretação dos filósofos Schelling e Fichte: F.W.J. v.
Schellings sämtliche Werke (Bde. I – XIV), Hrsg,v. K.F.A. Schelling,
Stuttgart/Augsburg, 1856-1861:
a) Ideen zu einer Philosophie der Natur (1797) II.
b) Erster Entwurf eines Systems der Naturphilosophie (1799) II.
c) Einleitung zu dem Entwurf eines Systems der Naturphilosophie (1799), III.
d) Über das Verhältnis der bildenden Künste zu der Natur (1807) VII.
e) F.W.J. Schelling. Clara; Über den Zusammenhang der Natur mit der Geisterwelt.
Andechs 1978.
f) F.W.J.Schelling. Clara. Sobre a Conexão da Natureza com o Mundo dos Espíritos.
Um Diálogo, Edipucrs, 2ªa Edição, Porto Alegre, 2015.
g) Schellings Werke (hrsg. v. M.Schröter), München,1927: Philosophische
Untersuchungen über das Wesen der menschlichen Freiheit und die damit
zusammenhängenden Gegenstände (1809) IV.
h) F.W.J. Schelling. Briefe und Dokumente, hrsg. v. Horst Fuhrmans, 3 Bde., Bonn
1967.
i) Schmied-Kowarzik, W., Von der wirklichen, von der seyenden Natur, Stuttgart,
1996: und „Existenz Denken. Schellings Philosophie von ihren Anfängen bis zum
Spätwerk.“, Alber-Verlag, Freiburg, 2015.
Muriel Maia-Flickinger | 595
j) Gulyga, A., Schelling, Leben und Werk, Stuttgart, 1989.
2. Fichtes Werke, hrsg. v. I. H. Fichte, Berlin, 1971:
a) Die Bestimmung des Menschen, Buch II S. 316-319.
Obras utilizadas para a interpretação das pinturas e descrição de Dresden:
1. Athenaeum; eine Zeitschrift von A.W. Schlegel und F. Schlegel, hrsg. v. B. Sorg,
Dortmund. 1989, Teil I, S.126-131, Die Gemälde“.
2. W v. Kügelgens. Jugenderinnerungen eines alten Mannes, München/Berlin, 1993.
3. Dresden zur Goethezeit; die Elbstadt von 1760 bis 1815, hrsg. v. Günter Käckel,
Berlin, 1990.
4. Huch, R., Die Romantik, Blütezeit, Ausbruch und Verfall, Tübingen, 1985.
5. Schmied, W., Caspar David Friedrich, DuMont, Köln, 1992.
6. Jensen, J.C., Caspar David Friedrich; Leben und Werk, Köln, 1991.
7. Földény, L., Caspar David Friedrich; Die Nachtseite der Malerei, München, 1993.
33. ANTIRACIST RE-READINGS: THE RIO DE JANEIRO VACCINE
REVOLT AND A REMINDER OF WHAT POLITICAL PHILOSOPHY DOES
AND WHAT IT CAN ACHIEVE
https://doi.org/10.36592/9786587424163-33
Norman R. Madarasz1
“I don’t wanna die; I want another life”.
- Lima Barreto.
The disproportionate vulnerability of continental African-Americans to Covid19 and official narratives justifying the daily violence suffered by them flows through
a process similar to the negation of truths. One of the uncanny effects of a truth is the
negationism it also produces, the stress here being on a psychological side effect and
not on negation, objection or refutation. As far as pandemics are concerned, history
shows in a timely manner how truths are often negated before acquiring broader
acceptance. Yet negationism is one thing, willful omission of crucial information is
another. The moral effect these stances play on undermining truth is equally
devastating.
With the pandemic caused by Sars-CoV-2, the circuit linking omission to
negationism has entered another round. As for racism, philosophy can certainly attest
to how assertions on its conceptual inexistence often projects veils of ignorance over
its concrete workings. A constant buzz of white noise obliterates what is tirelessly
asserted by victims of racism, namely that the world is not the same place for those
who suffer from it as it is for Whites. The explosion of Antiracist movements in Brazil
and the U.S. has concentrated public attention on the homicidal violence committed
by the police forces of these countries against Black and Brown persons. It has sparked
deep preoccupation at the militarization of the chain of command of police forces. And
Associate Professor in the Graduate Programs of Philosophy and Literature and Linguistics at the
Pontifical Catholic University of Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, Brazil.
An earlier version of this article in Brazilian Portuguese was published in the Revista Latinoamericana
do Colégio Internacional da Filosofia - Tiempos, v. 5, 2020, pp. 1-15.
1
598 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
it has also channeled calls to defund the inflated budgets paid to the sector at the
expense of crucial social investments, especially in racially distinct communities. The
overlapping of the pandemic with Antiracism forces the scene of political philosophy,
if it expects to maintain its intellectual legitimacy, to go local.
This “local” has little if anything to do with relativism. Instead, it talks to a
structural dynamic by which a truth emerges, pointing to the productive drive of
philosophical analysis itself. The local is what opens up as a conceptual situation, one
that can be analysed thoroughly by means of the resources of history, sociology and
economics. Thinking the local implies correction. It can be what leads the traditionally
exclusionist logic of political philosophy to surrender to what is manifest. Without
focusing on how injustice is committed locally, philosophy’s search to analyze the
structural variations and conflicting relations constitutive of human societies can end
up missing crucial undercurrents. A case in point: the way in which nature and society
enter into conflict in moments of pandemics has caught political philosophy
unprepared.
As a result of underreporting and under-analysing the effects of previous
pandemics one questions whether political philosophy, let alone historiography, is
looking in the right direction. As the number of Covid-19 fatalities soared in the U.S.,
political philosophy remained silent about how in 1968-1970, 100,000 U.S. citizens
died from the H3N2 virus, the so-called Hong Kong flu.2 AIDS in richer countries and
malaria in poorer ones follows the same fate when left in the hands of theorists, they
who tend to deem these epidemics to be non-causal factors on political conflict, let
alone on ethnic and class cleansing, and thus condemn them to oblivion.
What type of structural resistance makes political philosophy focus only on
macroscopic causal agents? For all the microphysical turns carried out to refine its
findings, most political philosophy still seems to lose sight of the structuring power of
the epic literary form it regularly applies to achieve discursive, if not always scientific,
coherence. At any rate, if one takes into consideration the way economic policy
decisions have set the priorities for research over the last four decades, the
unpreparedness of political philosophy to understand the opportunity pandemics
present to racist, authoritarian governments comes as no surprise. Health care and
Centers for Disease Control and Prevention: 1968 Pandemic (H3N2 Virus).
https://www.cdc.gov/flu/pandemic-resources/1968-pandemic.html >. (Last accessed on September 7,
2020.)
2
Norman R. Madarasz | 599
medicine themselves, with thousands of its front-line workers and professionals
succumbing to Covid-19 around the world, seem to exempt themselves also with great
difficulty from this disorganization.
Political philosophy seems to perpetrate an ethical flaw when failing to
postulate, by means of apriori synthetic judgments, the irresistible temptation
authoritarian leaders have to instrumentalize epidemics and pandemics, whether in
liberal or post-colonial governments. Although it occurs in the theoretical blueprints
political philosophy is known to produce, such omission becomes the symptom by
which the art of governing is distorted into cynical demographic engineering. On the
tables where deadly policy decisions are made, the pandemic phenomenon clearly
leaves the confines of nature. By the intentional passivity shown by our governing
bodies when faced with this contagion, a pandemic tends to exceed most other
catastrophes. It in fact shares ranks with the most mortal technologies created by
competent decision-makers.
Now, technology is not only the product of human creativity, although it most
clearly expresses the arrogance of exceptionalism. Even if one can frequently read how
there are few theoretical domains in which the exception is as valued as in political
philosophy, what is less written is how exceptionalism is almost always linked to
inequality and racism. First, as it regards the source: inequality and racism against
scientists, intellectuals and artists perpetuated by police and military power. Second,
regarding its conditions: economic and social inequality as well as racism toward
persons left on the margins by financial capitalism and the central banking elite. Their
executives control more than ever the democratic mode of government beyond even
the means of production and financial valuation reproducing the sacrosanct right of
private property.
While exception grows on the surface of political philosophy, racism is often
isolated in a discourse that seems to have only historical value. By contrast, when that
exceptionalism fragments, political philosophy manages to integrate antiracist
struggles hand in hand with the very exploitation of the environment that has caused
the current pandemic. The need to include history to understand its own scientificity
makes it crucial for political philosophy to break with its recurring habit of honouring
the literary form of epics and the “great men” narrative structure.
600 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Meanwhile, the modeling of exception seems to bind theoretical attention to
figures of government and governance while leaving the critique of demographic
engineering on a second plane. Beliefs may then emerge about the latter having no
causal force over growing social malaise. But false beliefs in theory can perpetuate
inequality on the conceptual plane, whilst conceptual instability comes to structure
political philosophy itself. The proof of this is in the omission of a debate on the causal
force of epidemics regarding the conceptual structuring of philosophy itself. The
drawbacks were overwhelming for our craft at least until the Sars-Cov2 pandemic.
Since then, they risk becoming disastrous.
In hindsight, we researchers need to face up to our collective failures due to a
desire to avoid the implications of epidemics on the way in which we think the political
and the historical alike. Epidemics seem to trigger mental illness in many liberal
theorists with a degree second only to determinism. Political philosophy has still yet to
accept how its purpose is to submit to real social transformation, instead of integrating
it in order to preserve its own prestige. Still, we discover that the representation of the
political consequences resulting from epidemics leads directly to the ethical question
as to the ends and directionality toward which political philosophy itself tends. One
wonders how conceptual analysis of epidemics faces off with the goal of a just society.
In face of so many devastated lives, what justifies the theoretical resignation to the
continued existence of poverty even while we pontificate over the normative principles
of sound governance? In other words, what theoretically justifies how political
philosophy conveniently washes its hand of the inequality reproduced by the asserted
necessity of private property?
Should there be any doubt as to how a political philosophy that justifies
inequality feeds into racism and contempt for the climate crisis; how a theoretical
pursuit obsessed with justifying the privatizing of lands feeds into the removal of
public safeguards that protect disenfranchised populations, like Indigenous persons
and continental descendants from the enslaved and enslavers; and how self-interested
theories produce disgraceful practices; it might then be useful to reread the narrative
on one of the greatest atrocities suffered by Brazilians in the twentieth century. The
event was the terror imposed by Brazil’s federal government against the insurrection
in the city of Rio de Janeiro triggered by the Compulsory Vaccination Law passed in
November 1904, an insurrection otherwise known as the “Vaccine Revolt”. Milked
Norman R. Madarasz | 601
down in the historical education received by Brazilian children and meant to spark
allergic reactions against the danger of “ignorant mobs”, the Revolt is another instance
of philosophical history extending class warfare. A critical rereading of this instance in
state terror will then allow us to draft an appraisal of political philosophy according to
its fundamental orientations.
1 Democratic dictatorship and the distorted destiny of the masses
Considering the events surrounding the Rio de Janeiro Vaccine Revolt from the
perspective of its effects, the now official story tends to justify why dictatorial powers
were taken by a president and a mayor merely a decade and half after Brazil had
become a constitutional republic. Necessity pointed to accelerating much needed
revitalization of the downtown core of the capital, we are told. Added to a form of
governing by decree came the workings of a megalomaniacal physician required to
push through the new vaccination technology on the general population. Also granted
full dictatorial powers by the president, he went on to carry out his program of
immunizing residents in the harbor areas of the city.3
With the actors now in place, the official version can now apply the great men
historical narrative, albeit with a certain twist of irony. Through the conspicuous eyes
of the natives of Rio de Janeiro (the “Cariocas”), the São Paulo (or “Paulistan”) elite’s
hand on government could be derided for the disaster wrought by its bid to conduct
the city’s urban renewal. In fact, the defeat of the Paulistan hegemony in this atrocity
was urged on by its Carioca counterpart, even if the similarity of vision between the
two oligarchies was never in fact denied. On the ground, the result had these two fronts
joining forces in a massacre of the Afro-Brazilian, Northeastern and Pardo populations
residing in the center of the old city. Not coincidentally, the center sat adjoining the
slave-trading counters through which millions of kidnapped Africans were sold as
property after sailing into the Guanabara Bay for over two centuries.
According to historians, Rio de Janeiro’s vulnerability to epidemics went
unmatched in South America during the nineteenth century. 4 On account of them,
3 We have drawn much of the data about this monumental event from Nicolau Sevcenko’s A Revolta da
Vacina, the first edition of which was published in 1983. The third edition contains a afterword from
2010, Editora Cosac Naify, São Paulo.
4 Sevcenko transmits the report made by the Paulistan hegemony about the port of Rio de Janeiro: “it
has an antiquated and restricted structure, absolutely incompatible with its condition as an energy pole
602 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
there was even good reason to lament the nation’s slow development. It is hardly news
how common persons are often depicted as an obstacle to progress, exactly as they are
in the narrative about the yellow fever epidemic of 1850. Due to the high number of
fatalities in this earlier epidemic, Brazil’s then capital came to be known as the
“deathbed of foreigners”. Developmental reports point to the city’s multi-epidemic
vulnerability and how this exposure would have prevented the arrival of much needed
manpower from Italy to substitute the enslaved. The struggle to eradicate disease
sparked the needed turnabout of the country’s economic model.
One would surely not be wrong to contest such a narrative, though. There was
little if any opinion favorable to the abolition of slavery in Brazil in 1850, apart from
the Britain’s. By repeatedly threatening to block the country’s ports, the Royal Navy
pressured Emperor Peter II, barely twenty-five years old at mid-century, to make his
supposedly pro-abolitionist word turn into deed. Historians do recognize that the
epidemic contributed to positive legislation with the Eusebio de Queiros Bill banning
Brazil from the international slave trade. This bill sought to better the country’s image
internationally as its colonial oligarchs kept stalling any real moves to abolish slavery. 5
Once we manage to link the yellow fever epidemic with the multiepidemiological situation of 1904 (yellow fever then being joined with bubonic plague
and small pox), the official version of the Revolt starts to fall apart. Lauded for
implementing a “sanitary dictatorship”, the triple dictatorial framework began waging
an unrelenting battle against the evils both natural and social that had ravaged Rio de
Janeiro. The same narrative attempts to celebrate the recently achieved constitutional
Republic as it decayed into social Darwinism, the most pernicious variation of social
engineering. According to the still official tale, engineers would have saved a
misinformed urban population enduring a form of lethal ignorance worse than the
diseases themselves.
In the history lesson repeated to Brazilian high school students on the
Republic’s drive to modernity, such was the suspicion toward the government amongst
the population at large it simply refused vaccination against small pox. The size of this
demographic mass and the urgency for mass vaccination grew into an ideal
justification for instituting dictatorial powers to the physician, mayor and president.
and catalyzer of the nation’s entire economic activity. […] The city streets are colonial, narrow, tortuous
and dark alleyways, with steep slopes.” Sevcenko, op. cit., p. 35. (Henceforth, my translations.)
5 Pimenta, 2018, p. 196.
Norman R. Madarasz | 603
What the narrative does not contemplate is that, seen from the perspective of the
Afrobrazilian population living in the city’s port region, namely that of persons recently
emancipated from slavery, the plan did not benefit them in any way. In fact, it was
quite the opposite. Despite being prohibited by the pro-slavery constitution of 1831
from frequenting schools and learning to read and write, it was not ignorance that held
the day amongst freed persons so much as the well justified fear of forced dislocation
toward the hills, swamps or even more decrepit regions of the city.
The “sanitizing” assessment of the insalubrity of the port region and of its
vulnerability to epidemics is part of the political elite’s official version of history. Its
plans of urban revitalization did not include keeping residents in the area, let alone
renovating the buildings in which they lived. The Compulsory Vaccination Bill was
voted on October 31, 1904 and enacted as law on November 5 of the same year.
According to the official version of the train of events, in reaction to the decree, city
residents grouped together in Tirandentes Square in a bid to prevent federal agents
from carrying out their campaign.6 To disperse the masses, government forces opened
fire, thus triggering the “most unruly popular insurrection of which the Republican
capital had been the stage”.7 Spreading through all neighboring areas in the city, and
at one time moving dangerously close to the Presidential Palace in the Catete district,
the revolt tended to concentrate in the port areas of Gamboa and Saúde. 8 These
districts were to be bombed by battleships from Guanabara Bay and invaded by the
army. Soldiers allegedly sought the leader of the revolt, one “Silver Negro”, whose
codename leaves little mystery either to his, or the community’s, racial profile. Far
from a battle between scientific reason and mass ignorance, the struggle has to be
understood today as yet another transnational act in the nineteenth century of an
impoverished community aiming to protect its residents from predatory bourgeois
projects of modernization.9
6 According to Sevcenko, the powers granted to the physician Oswaldo Cruz were of a dictatorial nature,
since they allowed him to “invade, assess, fine and demolish houses and constructions. In addition, [the
law] established its own jurisdiction, provided with a judge specially appointed to settle questions and
reinforce resistance. Appeals to common law were not permitted.” Ibid, p. 42-43.
7 Ibid., p. 31.
8 Sevcenko unequivocally registers the anonymous nature of the insurrection, which resisted leadership
attempts made by both the League against the Compulsory Vaccination Law and federal and municipal
governments. “For the mutineers, it was not a question of choosing leaders or platforms, but more
crucially fighting for a minimum of respect for their condition as human beings.” Ibid., p. 17.
9 Citing a description made by novelist and journalist Afonso Henriques de Lima Barreto, Sevcenko
asserts that “the fact is that when the revolt irrupted, it had no party, no platform, or explicit objectives.”
Ibid., p. 54.
604 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
The question of race seldom enters into the representation of the events, which
is striking and worrisome given that Blacks in Brazil, unlike even southern states in
the U.S. at the same time, made up the majority of the population. That it is often
described as if it were comprised of foreigners leaves little doubt about intention. The
terminology allowed Brazil’s oligarchs to simply replace the freedwomen and men with
“foreigners”, now called to immigrate and take up the paid labor denied to the
emancipated. The defeat of the Afro-carioca population in this conflict amounted to
extending the remains of slavery to other forms. It marks the beginning of structural,
institutional and genocidal racism in Brazil’s period as a Republic, a process that has
only become more rigid with time.10
More than just a prudent rereading of the events, it is a duty to be sceptical
regarding the whitewashed versions of history. According to them, so-called poor
communities, non-distinct regarding race, would have simply rejected, because of
sheer ignorance, the health benefits of vaccination against small pox. By contrast, what
can be assessed from the ground view is how the revolt was likely triggered by the
additional strain of being forcefully dislocated from one’s living space. Resistance to
the vaccine was but a spark to this broader struggle to maintain hearth and heath. In
exchange for defending themselves with stones, these residents were massacred by
bullets, bayonets and bombs. Through the cruelty typical of the anti-political posturing
of social engineering, a most decadent from of constitutional government, entire
families were expelled from the center of the city. Victims of the “demolition fever”
orchestrated by the modernist project of urban “revitalization”, they represent the
fallen to a genocidal form of gentrification.
Were we to extend our analysis by means of structural comparison, the Vaccine
Revolt represents for Rio de Janeiro what the 1871 Commune does for Paris. It does so
both in terms of the resistance mounted as well as in its aftermath. 11 Recall that the
10 The 2020 Atlas on Violence in Brazil, published by the federal government-linked IPEA think tank,
shows an increase in violent deaths amongst persons of color of 11,5% over an eight-year period from
2012 to 2018, as opposed to an almost symmetrical decrease of violent deaths during the same period
amongst whites by 8,5%. <DOI: https://dx.doi.org/10.38116.riatlasdaviolencia2020>
11 By terming the Revolt the “last classical urban riot (motim) in Rio de Janeiro” (p. 87), Sevcenko gets
close, but never gives himself over to establishing a structural and symbolic relation between the two
revolts. When commenting on the interest had by then mayor, Engineer Pereira Passos, the historian
lends his voice to the engineer’s dream, even if only for rhetorical effect: “The narrow alleyways and
cobblestone pavement constituted the inevitable scenario of the various riots (motins), revolts and
Communes of Paris – the urban planners perceived it soon enough. Broad paved avenues made
barricades practically unfeasible and gave total liberty of action to the police force.” (p. 47) The fact is
that the 1871 Commune did not fall due to the famous openings of the Haussmannian boulevards. It
Norman R. Madarasz | 605
1871 Commune was brutally suppressed by an army loyal to the French nobility holed
up in Versailles following the Second Empire’s defeat by Prussia in a short war between
bourgeois empires. Victims of a terrifying state of siege imposed by the victors that had
lasted for months, thousands of French workers, intellectuals and artists created a
radically socialist autonomous government and declared political independence for
Paris. The Council acted from March to May to organize and defend the population.
Like their kin in Rio de Janeiro, the Parisian poor had also been subjected to forced
dislocations and to the destruction, often for allegedly sanitary reasons, wrought upon
entire districts by urbanization. Historians have suggested that roughly 10,000
persons were massacred in Paris by the French liberal-conservatives (though the
numbers continue to be contested), with hundreds deported. In Rio de Janeiro, the
real facts risk never to correct the official narrative about those days of fire. According
to the webpage of the Brazilian Ministry of Health, “the revolt left a balance of 30
deaths, 110 wounded and 945 arrested, of which 461 were deported to the northern
state of Acre”. 12
Even as they overlooked the modernization of nearby Buenos Aires, the barons
and marquis whose names spread over the cartography of Rio de Janeiro could not
keep themselves from dreaming about Napoleon III’s Paris. They were convinced that
the obscure underside of Baron de Haussmann’s urbanization could be allied with the
successful elimination of at least part of the residential poor. Beyond what the
administrative records show, as a result of the Vaccine Revolt there were possibly
thousands of Afrobrazilians rounded up and detained on Cobra Island, which served
as a concentration camp. When the most recalcitrant of the rebels refused to
collaborate, they were deported to the northernmost state of Acre, thrown again
without a trial into slavery. Such was also the destiny for the Communards deported
to New Caledonia.
As enlightening and well-researched Brazilian historian Nicolau Sevcenko’s
fundamental book is on the events and as critical as is the narrative he has spun, it is
curious not to find in his report any suggestion that the people of the city center were
was the greatest and most successful popular revolt in France of the nineteenth century,
notwithstanding its crushing end. By condemning with passion the authoritarianism and violent
repression of the Cariocas by President Rodrigues Alves’s government, Sevcenko does not seem to
perceive the genocidal nature of the use of all sectors of the armed forces against the districts in the port
region, nor specially the racial profile of its residents.
12
Ministério
da
Saúde,
Centro
cultural
da
saúde:
“Revolta
da
vacina”.
<
http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/revolta2.html>. Consultado em 1 de junho de 2020.
606 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
largely freed persons of African descent. The closest an observation of his gets is when
stating “how ironic such systematic exclusion and elimination of a number so large of
persons is in an era when the government stepped up its efforts to attract foreign
immigrants.”13 Who would these persons in fact be if not descendants of the enslaved
and enslavers who sixteen years earlier, on May 13, were granted their freedom? In the
end, Sevcenko delegates this confirmation to author Lima Barreto: “What the author
suggests is how our Republic democratized the quarters in which the enslaved lived
(the senzala): once the legal privilege of a private citizen flaunting his slaves was
prohibited, the State moved to treating everyone according to practices warranted by
the symbolic existence of the category of the senzala.”
14
Even considering that
Brazilians of African descent make up half the population, the question remains as to
whether it was really “everyone”?
The official version of the Revolt tends to reduce the number of deaths, possibly
by thousands, as it also tries to divert from the issue by shifting attention to the
disorganized military coup attempt against President Rodrigues Alves prepared at the
Praia Vermelha Naval Base. As writer Abdias de Nascimento has shown,
inconsistencies regarding the numbers of registered Black Brazilians exist in census
counts published during the first decades of the twentieth century. Moreover, there
has been a longstanding controversy regarding the use of “Negro” (Black or Negro) as
opposed to “Mulato” in the country. As a result, the Afro-Brazilian community went
through much of the twentieth-century appearing as a minority in the country, an
official trend most specifically witnessed in the city of Rio de Janeiro. 15 But to consider
the atrocity suffered by the black community in this revolt as only relative to the
version of history that is told by the defeated would amount to a second conceptual
covering over. It would amount to ignoring a crime against humanity that was
plausibly the cornerstone to strengthening a national political philosophy constituted
by institutionalized and structural racism. 16
Ibid., p. 62.
Ibid., p. 70.
15 The city of Rio de Janeiro has been the capital of successive state formations: of the colony, from 1763
to the arrival of the Portuguese royal family in 1808, who shifted the Kingdom’s capital from Lisbon to
Rio de Janeiro. From 1815 to 1822, Rio de Janeiro was then capital of the United Kingdom of Portugal,
Brazil and the Algarve, then of the Kingdom of Brazil, the two Empires of Brazil and from 1889 to 1960,
of the Republic. Thereafter until 1975, it was its own capital as it was the only city belonging to the
previous federal district, called Guanabara State. Since 1975, it has remained the state capital of the
larger state of Rio de Janeiro.
16 Almeida, 2019.
13
14
Norman R. Madarasz | 607
It is the task of political philosophy to prevent its field from succumbing to an
ideology when serving to shape state structures. To prevent this from happening,
political philosophy in Brazil (and beyond) has a duty to take positions as to the details
of history and let itself be immersed by them. Its aim to achieve objective truth depends
upon it. This is not as slight or calm a gesture as frequent calls to listening to the other
might suggest. Although reviewing the principles of political philosophy might not
immediately translate the victims’ perspectives, which may have been silenced forever,
it does aim to participate in the process of creating truth from a viewpoint that has no
other version.
2 Political philosophy and its doubles
Critically telling either histories or stories involves reexamining the parameters
that structure the way a theoretical discourse aspiring to scientific pretensions of
verification and validation are set up. A critical political philosophy can thus be
understood as a theory that presents the political in the shape of a space of speeches
and acts in which truths are created. Clearly, it is not merely a field subservient to lies
and vulnerable to the opportunism of those with a hunger for power. Upon identifying
this space, it is possible to observe that there are only three possible directions to be
taken. Three directions in which the two first are related, whilst the third is irreducible.
Three directions, but with their doubles.
By naming these directions, our aim is to stress the elements of the discursive
production behind political philosophy and its presuppositions. Our interest is not to
review how Plato or Aristotle may have classified state forms. Nor it is to leave off from
the assumptions about supposedly transhistorical invariables, such as human nature,
race, natural hierarchies, struggle for power or the inevitability of economic inequality.
We focus instead on the structures validated by political philosophy. By doing so, we
also seek a topological ground in which the difference between a real direction in
political theory is inscribed into the very fabric of an organizational, practical form, be
it statecraft or government.
Regarding past attempts that have given this space some topological detail and
conceptual density, we can laud French structuralism for its commitment to not giving
up on how the political produces truths. Post-structuralist thinkers, from Michel
608 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Foucault to Alain Badiou, Jacques Rancière and Chantal Mouffe, have produced
important deconstructions regarding the key concept of sovereignty as the political
prime mover. These approaches have taken a great deal from the perspective of the
history of African, Amerindian and pre-Greek Indo-European history, languages and
mythology. They have been enriched by case studies in the struggle for decolonization
during the more recent modern period. Moreover, it is structural analysis that has
shaped contemporary knowledge as to how the transformation of feudal domains into
market societies transformed the formative locus of the State. In the past, two castes,
the nobility and clergy, were bound by a legal compact that legitimized power by divine
right, which also authorized the monopoly over land possessions. The modern order
came to justify ownership of individualized private property, which included enslaved
and indentured persons, by groups made up of a third component, that of small owners
and the mass of labourers. Their existence in the feudal context was latent at best.
Although Karl Marx and writers who have extended his historical analyses integrated
the working class viewpoint into political theory, it was really only through the fullscale implications found in the concept of otherness or alterity, as it moved from
Simone de Beauvoir to James Baldwin, that political philosophy managed to broaden
its parameters.
Regarding the historical progression of this theoretical body, the secularization
of the legal order came to reformulate the State based on the representational
instantiations of the popular or general will. Yet, the theoretical bind that bolstered
claims to extend the idea of popular will to the field of state formations still relied on
holdovers from natural law and social contract theories, like the structuring capacity
of the sovereign and sovereignty. By means of general will, a new political structure
would turn obsolete the former process of legitimization of power, which had derived
from divine right and moral law. This change would usher in the spirit of liberty that
has since crossed civilizations and continents by repositioning the supreme power of
State in the circulatory rhythm of the markets of domestic industry and international
trade.
The problem with this descriptive model of state functioning, which is based on
secularization and the diminished role of clergy as a landowner, has always been the
overdetermined legitimization of the concept of sovereign. The discursive structure of
political secularism differs precisely from the trifuncional feudal model of State by the
Norman R. Madarasz | 609
way the codified legal archive, namely the formal constitution, stipulates the nature,
character and limits of a political order, along with its moral and indeed commercial
possibilities. While it is doubtless true that freedom was primarily an inalienable right
espoused by social-contract and natural-law theorists, it was furthermore a practical
concept required to broaden commercial autonomy according to the British and Dutch
models. Submitted to an incorporated conception of the sovereign, feudal political
philosophy had for a long time molded itself according to the sacralisation of the law.
Whatever shifts or mutations would arise in the theoretical foundations of its
applications were recast as effects of the social traditions and ideologies specific to the
growth of the nation-state.
What the doctrine of reason of State continued to shield through the concept of
sovereignty was a discursive, creative force limited by the social contract doctrine. This
force sought to preserve a fundamental, if not always asserted right, according to which
each citizen could “ensure the right to acquire a life”. 17 On the ground, though, with
slave-based economies heading the way, the right to acquire was less that of a life than
of invasion, treachery, plunder and rape by those who had seized power to commit acts
of primitive accumulation and appropriation by dispossession.
Nonetheless, other operators serving as conceptual focal points in political
philosophy can easily be found. Their surface content may not allow much theoretical
extrapolation upon first view. Take for example the conceptual operator of cleanliness.
Standards of bodily cleanliness have increased with the development of technology,
higher aesthetic standards accompanying wealth is a case in point. Consider, however,
how some societies seem to believe they favor a greater degree of household cleanliness
than others. Whether cleanliness can really be reduced to a national tradition is easily
debatable. From the perspective of exchange relations, either you clean your own
house or someone else does. In oligarchic societies, if you do not clean your own house,
lazy sloppiness aside, it means you are able to pay someone else to clean yours. As such,
cleanliness is clearly an offshoot of economic means. In a supposed cleanliness
obsessed society, like Brazil for example, it is characteristic to hear upper middle class
households pride themselves on how they tend to maintain higher standards of
This right is the fourth in thirteen “lines of action” proposed by economist, Ladislow Dowbor in the
annex of his book The Era of Non-Productive Capitalism (2017, p. 282.) These lines of action
materialize his bid to restructure capitalism into a productive economy, as opposed to the nonproductive hegemonic form currently stripping society from the results of its historic struggles while
lining the pockets of central banks and billionaires.
17
610 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
cleanliness than most found in, say, Canada or France. Yet, when considered through
forms of government, it is easy to see how social-democratic societies place as much
importance on the cleanliness of its public spaces as its private abodes. By contrast,
one can spot an oligarchic society by the cleanliness of its private spaces and the utter
decay in which it seemingly condemns its public commons. Maintaining these
standards requires having a reserve army of domestic workers to attend to the
cleanliness of the private domain. Such a result might only be a factor of available time.
Were the domestic sector of the population not overly busy cleaning the households of
the rich, they would surely be attending as meticulously to their own.
To such topical scrutiny developed in the guise of geopolitical assessments, one
can easily encounters other perennial questions such as those regarding whether some
nations are less inclined or more resistant to democratic forms of government than
others. The question is frequently asked of Arabic and Muslim nation-states, most
often when disregarding Iran’s democratic history. Similar speculations arouse in the
1970s about South America. Meanwhile, the “greatest democracy” of the world would
assist military tyrants individually to topple democratically elected progressive
governments in Argentina, Uruguay and Brazil, or even in otherwise longstanding
democracies, like Chile. Meanwhile, through the Condor Plan it would organize the
torture and extermination of social workers, intellectuals and social democrats. By
contrast, one often finds less of the same type of inquiry regarding nations with short
histories of democracy, such as Spain, Portugal or Italy. By the mere fact of being
European and Catholic, these states would supposedly have had the essence of
democracy carved into their souls.
In our bid to trace the three directions structuring political philosophy with
their symmetric doubles, the distinguish factor will not be cleanliness nor an innate
sensitivity to democratic forms of government. By maintaining that political
philosophy is limited to three directions, the focus on the concept of the sovereign
proves to fall short of the complexity expected of this field. However, the structuring
force of a State in the midst of a public space in continuous movement, between
expansion and retraction, is maintained by the partial transparency afforded by selfreferential discourse, one that blends creativity and obedience. Sovereignty has
nothing to tell us about diversity, racism and reparation for enslaving peoples, as a
contemporary political philosophy must. As we seek to unfold what we see as the
Norman R. Madarasz | 611
typology of directions in political philosophy, it seems more cogent to derive the field
from the concept of constitution, constitutionality and constitutionalism.
Social contract theories reinforce themselves by disconnecting natural right
from what had reinforced the position of the sovereign in its ancient fusion into a
unique figurehead of the nobility with the clergy. The new legal parameters of
constitution came to gradually invest collective participation of the public in the
construction and maintenance of the social and administrative State by means of a
growing sensitivity to rights. Therefore, by constitution, let us understand the
discursive entity that sets fundamental (or supreme) laws, rights and norms, the form
of which oscillates according to the historic and religious characteristics of a class or
specific political culture. Viewed abstractly from within the historical forms of political
theory, constitutionalism aims above all to ensure the internal coherence of an
organizational logic, either as an extension or substitution of the principles of
domination through force. Constitutions organize political processes by setting the
parameters that enable them to become concrete factors of integration. As it is carried
out at the level of nation-states, constitutionalism establishes the translation between
ideas and its inscription into a referential entity, namely a State’s supreme law.
As seen from this angle, political philosophy works to refine its capabilities of
analysis and interpretation of normativity and prescriptions always from the limits of
discursivity. In other words, its theoretic center lends itself to better scrutiny when
thought from its parameters. To resist such transparency, the center would seek to
dissolve these limits in the name of fighting off excesses and insurrections. In its initial
historical manifestations, this tendency would pressure political philosophy to
surrender to the seductions of power, instead of struggle to reach the conditions of
universal inclusion of citizens into visions of wealth redistribution – a perspective
articulated solely from a model’s discursive parameters and referential limits. The
advantage in overseeing political science from the perspective of its parameters is to
see it as a continually formative and thus dialogical process.
The first direction of political philosophy, recognizable by the concrete projects
of magna cartas, declarations of independence or the other varied promulgations of
universal rights of man or woman into which it has materialized, may be named the
constitutional direction per se. Had we to attribute a symbol to it, the incandescent
light bulb would surely summarize the combined force of nature and culture involved
612 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
in the discovery of its technical model. Two centuries earlier, Thomas Hobbes had
asserted nothing different regarding the technical prowess of his “new political
science”. He would apply to it the most advanced scientific knowledge of his day with
the aim of creating a State cadenced by the pitch of an “artificial animal”. 18
In fact, Hobbes’ Leviathan already bares the complexity of conceptual creation
when applied to concrete livelihoods. Based on the hypothetical premise of saving
human animals from their own destruction, after they had been transformed into
hordes of psychopathic assassins due to the scarcity of goods found in nature and a
soul ill-executed by the creator, his oft-slandered political blueprint is a jewel of
conceptual creation. First, Hobbes preserves in the judicial order of the State what
Nature created most perfectly, that is, natural laws. Second, Hobbes subtly submits the
concentration of powers in a sole figurehead, the sovereign itself, to a network of
tensions, affects and interrelations amongst the “subjects”, without whom, truth be
told, the State would not exist as a political body. As opposed to John Locke’s ideal, the
subjects abdicate their “natural rights”, which are none other than the fundamental
principles of their physical human nature. The latter being “natural”, they are as
malformed as the soul itself, for only Nature’s laws are perfect. Consequently, a human
animal only has to gain by allying itself with the material entity of the “Civil State”, that
is, Leviathan’s “artificial animal”. And, finally, the extension of the sovereign power is
limited morally by the civil law exactly insofar as it still concedes to the subject a
fundamental right to resist: just in case, and on an individual basis, the State should
put its life at risk.19 It ought to be clear that there is no authoritarian State anywhere
that recognizes the legitimacy of this right universally and literally, let alone a dictator
who would respect it. As such, one witnesses, if one chooses to, the reversal in Hobbes
of the essential dynamic between sovereignty and constitutionality.
The color to represent this foundation direction in modern European political
philosophy, the constitutional direction, is white. As such, it evokes the incandescent
“Nature (the art whereby God hath made and governs the world) is by the art of man, as in many other
things, so in this also imitated, that it can make an artificial animal.” Further still, art imitates “that
rational and most excellent work of Nature, man”. Hobbes, Leviathan, Introduction.
19 Thomas Hobbes, Leviathan or The Matter, Forme and Power of al Commonwealth Ecclesiastical
and Civill, Penguin Classics, New York, 2017, II.xxi, p. 134: “Of the Liberty of Subjects”: “No man is
bound by the words themselves, either to kill himself or any other man; and consequently, that the
obligation a man may sometimes have, upon the command of the sovereign, to execute any dangerous
or dishonourable office, dependeth not on the words of our submission, but on the intention; which is
to be understood by the end thereof. When therefore our refusal to obey frustrates the end for which the
sovereignty was ordained, then there is no liberty to refuse; otherwise, there is.”
18
Norman R. Madarasz | 613
light bulb, with its glow, wealth and transparency. Human ingenuity makes the State
into a structure the coherence of which is ensured by the corporal variations amongst
its citizens instead of by divinity’s monarchic avatar.
The symmetrical double of this direction cannot be considered in and of itself.
In the three orientations, the deformations of the first reference are not sufficient to
make them distinct. In the case of the destruction of the principles of a constitutional
political philosophy, as in the case of the Vaccine Revolt, there is no model, but only a
destructive mutation of the first. To consider this deviation, we point to the
transformation of political philosophy into social engineering when it literally distorts
and undermines all of the possible creations emanating from human communities
through their arts and technologies. To raise the Vaccine Revolt to a status structurally
similar to that of the Paris Commune is to draw attention to yet another revolt in the
Americas spawned by the continental African-American community as it faced the life
threatening prods of a predatory State that had unwillingly and cynically conceded its
emancipation. The citizen virtue of rejecting laws of exception when they jeopardize
the lives of the disenfranchised is the very basis of the constitutional direction – and
its willed destruction is the result of treachery on behalf of the colonial elite through
measures of social engineering, urbanism and architecture. Citizen virtue denotes
ethical conduct linked to a principle of moral excellence, promoted by the integration
of the collectivity in participatory works of knowledge and science. In light of what
citizens can create, a State is a work of justice. However, it is so only insofar as it is
increasingly fruit of collective creation in which freedom is shown to be a complex
relational process instead of the dogma into which it has stagnated.
What limits political philosophy from securing itself as an extension of
collective creativity? What can prevent its slide into engineering and disaster? One of
the responses could be the nature itself of its discursive composition. Decades after
mapping human nature and potential in the Leviathan, theories of the social contract
split themselves increasingly from the analytical field of psychological inquiry into
human nature, while keeping for its own domain the nature of the political and of law.
In this movement of discursive filtering, having recourse to empirical analysis became
increasingly necessary. The study of history in the nineteenth century, the time of its
consecration as a science, came to compensate what the distancing from psychology
left pending for political philosophy. The insertion of history into a now legalized form
614 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
of psychologism typical of the constitutional direction did not create a new science,
though. In fact, history risked neutralizing the applicability of the prescriptions issued
by the latter. Political philosophy reinforced the legal and administrative apparatus in
which citizen virtue and ethics were recast, even allowing for a religious form of
morality to dictate over the rights granted to citizens. Still, this direction in political
philosophy did not eye with less suspicion the lessons history could bring to the
theoretical realm.
Following up on this dispute with history, a second direction in political
philosophy emerged in response to the need of recognizing demands to integrate
broader sectors of the population into the public conceptual space. It would use the
expedient of justice to determine the conditions of its inclusion. In this movement, it
is less history per se that is coveted for an interdisciplinary partnership than
economics, or rather political economy. In the beginning of the twentieth century, the
example of creating an income tax in the United States of America represents a true
leap for a community hoping to give itself the means to carry out its social objectives.
Taxation was a revolutionary program. Depending on how it is crafted, it still is. Up
until the first World World, revenue from income tax had financing wars as its main
goal.20 It might seem ironic that an overall progressive tax reform – that is, one not
limited to income, but focused on inherence, capital gains and dividends – encounters
such dire opposition today precisely when society requires the State to increase its
spending. But this opposition is simply proportional to the measure of wealth
concentration that has occurred over the past three decades. Since then, plutocracy
has clasped onto tax-exemption and new financial instruments to forge astronomical
profits in what has become a non-productive capitalism. Tax havens, initially created
by the City of London to perpetuate its global rule, ushered in a return to a mode of
government by the rich merely for the rich. 21
A progressive tax system is the main reform that has to be put on the agenda by
political philosophy in Brazil, provided the funds collected be reinvested in society –
and not in banks and financial institutions. Most liberal democracies would also do
Cf. Thomas Piketty. Capital et idéologie. Éditions du Seuil, Paris, 2019 (2019); Emmanuel Saes and
Gabriel Zucman, The Triumph of Injustice. How the Rich Dodge Taxes and how to make them pay.
W.W. Norton, New York, 2019 and also Kevin Phillips, Wealth and Democracy: A Political History of
the American Rich. Broadway Books, New York, 2003.
21 Cf. Ladislau Dowbor, A Era do Capitalismo Improdutivo. Outras Palavras & Autonomia Literária, São
Paulo, 2017.
20
Norman R. Madarasz | 615
well to ditch the neoliberal stripping of public patrimony and criminalize tax havens.
The gains from which wage earners would indirectly benefit from such progressive tax
legislation could even eliminate the need for a universal basic income. Moreover,
determining the right amount of such a basic income depends on rates of inflation,
levels of goods and services tax as well as general cost of living. If a society still desires
to give itself the wherewithal to survive and political philosophy the means to
demonstrate how its concrete inscription does not imply the exclusion of prescriptions
that aim for universal assent, then there is little other option than to flatten the curve
of wealth concentration, the true economic curse of our times.
Integrating discursive fields is not without its own problems, even in as
transdisciplinary a field as political philosophy. While constitutions already play a part
of the revolutionary spirit of natural right and the social contract, it has always been
manifest how imperfect they actually are. On the margins of this artful practice, to
which philosophy has been such a major contributor, reparatory maneuvers emit a
constant buzz. From the margins of constitutionality, an extra-legal resource is carved
out, one specifically aimed at the ethical space triggered by the demand for rights.
Modern constitutions tend to follow this path, recognizing and activating this resource.
That this amounts to a revolution in thought, of a revolution that surpasses the spirit
of secularism by integrating it as an instrument by which to recognize injustice within
the constitutional order itself, is what can be properly observed in the second direction
of political philosophy, the amendment-based or extra-constitutional direction.
The spirit of constitutional amendments deals with correction, as recognized by
State and society alike. Ever since the Haitian Revolution of the Enslaved, historically
excluded populations in the Americas have urged for their own rights to also be
written. From the First Amendment to the Constitution of the USA, until the glorious
but tragically flawed Thirteenth22, the margin created by constitutional amendments
makes up the membrane by which the flux of real life permeates into the supreme law
Written in two sections, the Thirteenth Amendment or Emancipation Proclamation states: “Section
1. Neither slavery nor involuntary servitude, except as a punishment for crime whereof the party shall
have been duly convicted, shall exist within the United States, or any place subject to their jurisdiction.
Section 2. Congress shall have power to enforce this article by appropriate legislation.” "13th
Amendment". Legal Information Institute. Cornell University Law School. Retrieved August 7, 2020.
(My emphasis). Through this loophole, the amendment quite literally legalizes slave labor for
“convicted” citizens. According to Angela Davis, this is the major legal stimulus for the prison industrial
complex. (2003). See also, Duvernay (2016).
22
616 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
and the theories by which they are upheld. When voted in legislative assemblies,
political philosophy’s structural form proves that it does not fail to integrate social
struggle into its own field. The juridical truth consecrated by such modifications always
has legislative potential on its side, provided this truth be recognized for the right
reasons. Inasmuch as it does, its symbolic object builds upon inclusive policies as that
which bolster accountability instead of a misleading universalism or a camouflaged bit
of private interest. The symbolic object of the second direction in political philosophy
meets the long flow of rivers, ancient and dusky, as deep as the soul, as Langston
Hughes once sang. The color shining forth from them is deep blue.
Yet the amendatory discursive structure of the second direction in political
philosophy does not altogether escape from destabilization. It risks crashing against a
reef once interlocutions are allowed with the reductive versions of the economic
sciences. With economic theories recognizing the supreme value of labor as a drive to
create wealth, the extra-constitutional direction compensates its conceptual lacuna
with concrete objectivities, such as wealth redistribution and labor law. The
constitutional and extra-constitutional directions of political philosophy assert the
possibility of transcending racial, gender and economic disparities in the name of
higher moral principles. Yet they all too often surrender to the misunderstood
obstacles of middle-term projects, especially those reiterating how economic equality
would transform individuals into clones of one another.
Within the discursive structure of constitutional political philosophy, attempts
at including economics have often worsened its internal coherence. When surrounded
by a historical economic sequence, in which the system produces not only inequality,
but misery and psychosomatic suffering, political philosophy can end up normalizing,
even naturalizing, constraints determined by its own parameters. By legitimizing
rational arguments on natural hierarchies and wealth disparity, it can frequently lead
oppressed subjects to obsequiousness, submitting them to the humiliation of
impoverishment and servitude.
Nevertheless, in the case of the second political direction, limits to including
economic discourse into its camp is not so much impossible as it is undesirable. The
logic of constitutional amendments in a good number of functional democracies
produces not only concrete, but ethical results, the most spectacular of which was no
doubt the Fourteenth Amendment to the U.S. Constitution, by which freed African-
Norman R. Madarasz | 617
American persons were granted the right to citizenship and to vote. The fact that
thousands of persons head to the streets to protest again racism and political violence
is without a doubt a contingency, even when it happens during a pandemic. Yet their
goal – our goal – is one and the same: it takes aim at those in charge of the absurd
management of this pandemic in both the U.S. and Brazil.
The roots of political violence committed in different, but equality abusive,
degrees in Brazil and the USA exposes the double of this second direction. The political
carries out, over and above the collective fear experienced daily in Brazilian favela
communities and disenfranchised American neighborhoods, the erasure of the means
of survival of African-descendants in both countries. As previously in the Vaccine
Revolt, militarized police forces, vetted on sturdy budgets, extend the legacy of
institutionalized slavery by marking persons according to the color of their skin.
Policing has come to reinforce the system of social exclusion now reproduced by
structural racism. The prison complex has reverted, in the U.S. at least, what the
aforementioned amendments no longer allowed. Perhaps no event better marks the
limitations and helplessness revealed by extra-constitutional political philosophy than
precisely the partiality with which terror was wrought by the federal State during the
Vaccine Revolt in Rio de Janeiro – and by the all-white racist police forces operating
in inner cities in the U.S.
Giving oneself the wherewithal and sensitivity to fully understand the
implications of such terror still requires the critical openness reserved for a third
direction in political philosophy. Meanwhile, the double of the second direction is
without a doubt a repressive police state having no accountability with justice,
furthermore a state legitimized by a cast of intellectuals, attorneys and judges. Joining
them are the modern day technocrats, experts in computer mining, and professionals
of the State. In its unfolding, this double of extra-constitutional political philosophy
tends to present arguments favoring inequality between classes, genders and ethnic
groups as a mere extension of hierarchies allegedly found in nature. Justifying the
existence of inequality shows why there is no way to go further with institutional
constitutionality.
The judicialization of political philosophy typically veils subliminal levels of
class and racial bias. In the end, it amounts to justifying the cruelty suffered by poor
sectors of the population – and by the poorest even more –, persons doomed to misery,
618 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
stripped even of minimal access to socialization, much less to a social safety net.
Historically, theoretical racism would be transformed into white supremacist hatred.
Its acting out went by lynchings, destruction of neighborhoods and intimidating voter
restrictions, in virtue of clauses that would exclude those who could not read from the
political process when thugs did not keep them away from polling booths. This was but
a second form of exclusion after the enslaved had been constitutional forbidden in
Brazil or prevented by law in the U.S., from benefiting of an education. Barred from
reading and writing skills, the central slave-trading powers aimed at keeping the poor
from the political process. When they got closer to the latter, white supremacy would
turn, as it did in Memphis and Louisiana in 1866 and Tulsa, Oklahoma in 1921, to
massacre. In Brazil, the yearly massacre by law enforcement of male Afrobrazilians
under the age of twenty-five has already reached genocidal proportions.
In cases where the conflict of discourses mutates the unitary space of political
philosophy and spills over into the social places of constructive political practices, a
third direction, the infraconstitutional, may be cited. Its color, like its glow, is red. The
technical complexity of its symbolic object is clearly more advanced as is its own
organizational structure. Its application aims to split lost time by spectroscopy in order
to weld it to a new reality. The infrared beam can also detect the unmistakable heat
triggered by the fever symptomatic of Covid-19.
Like infrared light, the infraconstitutional orientation does not lend itself to
being perceived in its totality. Analogous to it, the infraconstitutional direction carries
within itself important information as to its formal organization. Spectroscopic
movements break down the information against the threat of reduction or deletion.
This information cannot be derived from visibility, at least not externally. Viewed from
within, it might very well be unrecognizable, were political philosophy not intent on
integrating scientific standards for increased stability of its own translations of
discursive practices. As such, political philosophy may emerge as a fundamental
science in which demonstrations draw thought closer to the real by showing how truths
are created from within the latter. These truths prove to emerge in and through shifting
the lateral forms of practical organization, in relation to which leaders become an
impediment.
Deviations from infraconstitutional thought appear when the latter allows itself
to be fooled by the idea that the creation of common political space may only occur in
Norman R. Madarasz | 619
the future, in the “can-being” of the “à venir”, as it were. Political philosophers of the
likes of Angela Davis and James Baldwin have shown that, without integrating a
critical, antiracist history of continental slavery, the future is literally unable to arrive.
Infrared philosophy already has a future to fix, indeed, a racist future to rid.
Without embracing antiracism, not even post-conventional moral arguments
can prevent shackles from binding its aspirations for inclusion. In the second direction,
the sophisticated versatility of Realpolitik adorns the theoretical apparatus with a
conviction that the rationality underlying the integration of amendments to a
constitution is upheld by the spirit of conciliation that mends divergent discourses.
Not infrequently, amendments are shipwrecked as a result of the inertia of their own
scientific rationality. After all, the amendatory orientation functions insofar as
discourses adjacent to political philosophy repair instances of exclusion and violent
oppression suffered by the disenfranchised.
The third orientation really emerges discontinuously in another phenomenal
realm, one that is no less structuring for political philosophy. It completes the impeded
intersectionality of a discourse previously excluded from science and doomed to
irrational destruction. When the infrared thermometer identifies the fever underlying
a dramatically unjust society due to wealth disparity, it is rare for it not to accuse the
sanctity of private property. The sacralisation of private property could be carried out
only with the appropriation of Indigenous persons or those brought from the African
continent, doomed to be sold, violated, raped and reduced as commodities in the slavetrading motor of Atlantic capitalism. Critical history bears out the story according to
which capitalism grew thanks to machines, fruit of the-all mighty Industrial
Revolution. Prior to that, capitalism had already operated beyond even its own internal
commercial contradictions at the level of indentured and slave-based labour. From
them, natural resources were extracted externally and internally, the very force of
which the glorious industry of advanced countries was so in need. As such, a sentence
comes to assert the infrared orientation in terms of the Covid-19 Pandemic: “At this
time in which one discusses how persons can think a new democratic structure for
society, there cannot exist democracy without the struggle against racism.” 23
Eugênio Lima, founder of “Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro”, in El País Brasil, June 14, 2020.
< https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-14/nao-se-pode-pensar-a-democracia-real-no-brasil-se-oracismo-nao-for-um-ponto-central.html%E2%80%9CN%C3%A3o?fbclid=IwAR0x6wUsDNWtMZSLLqiJmfIsJNWP88LwVWfY8RPzus46Qx5TI59LVaHSlo>.
23
620 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
These days, the struggle against the privatization of the commons also takes
place in the struggle against violence against women, and particularly against women
of color. It is the struggle to discover who killed Marielle Franco. Sadly “Amefricans”,
to cite Brazilian philosopher Lelia Gonzalez, still remain the most vulnerable to suffer
different forms of sexual violence. Their living spectres are projected onto the
complicity of the misleading rational perfectibility of a constitutional political
philosophy. As Angela Davis has written when reflecting upon the conditions and
experiences of enslaved women in the USA: “ Rape, in fact, was an uncamouflaged
expression of the slaveholder’s economic mastery and the overseer’s control over Black
women as workers.”24 By integrating rape and slavery through spectroscopy steeped
in the black and brown in order to make the red beam flash, voices are heard that can
no longer silence the urgency of statements like “Black Lives Matter” and the Brazilian
Favela movement’s “Parem de nos matar” (“Stop killing us”).
The infraconstitutional orientation opened by the critical dimension of theory
amounts to signing onto the surging forth of newly situated and embodied
subjectivities. Their emergence occurs in confrontation with the rule of law, the norm
from which they had previously been excluded. But if the amendatory blue-orientation
ends up punctually integrating previously excluded perspectives, only the force of the
infrared orientation can overthrow the scientificity of liberal political discourse. When
managing to present it as a concrete option, hegemonic institutions may attempt to
discredit its aesthetic and fictional aspects. They distort its truth through an ideal of
validation that only works well when coexisting with obscure ideologies.
3 Epilogue
Considered according to the two first directions in political philosophy, the
current pandemic unquestionably caught the humanities unprepared. The rupture
observed between a philosophical education and history is so deep one cannot merely
lament it was created by an all-out attack against scientific research, travestied as a
national policy of higher education. Suddenly the pandemic surged to face nature and
its inhabitants off regarding a constitutional order and the discourses reproducing it.
If science promotes measures by which to control the pandemic, it also keeps itself far
24
Angela Davis, Women, Race and Class. Random House, New York, 1981, p. 10.
Norman R. Madarasz | 621
too submissive to the interests of plutocrats for there really to be a public calamity
produced by the disease.
By the end of the 1990s, Susan George, the political scientist and founding
member of the ATTAC research group, used the recourses of fiction to integrate what
constitutional political philosophy demeans as conspiracy theories. In her Lugano
Report, she details the plans of a fictional “work group”, made up of business and
political members of the global elite. Its proposals were aimed at passively shrinking
down the size of the human population so as to attend to the needs and ends of a
capitalist world system. In the hands of the elite, pandemics represent the perfect
storm. Where George may have been inaccurate was only in the conviction, expressed
by her characters, that a soon-to-come pandemic would be unleashed by supergerms,
generated by the reckless planetary use of antibiotics. 25
Fictional supplementation becomes a formal tool in the infraconstitutional
direction. The risk of seeking this kind of interface with political philosophy is to open
the political space too far. Messianism and other forms of obscurantist delusions are a
symptom of such opening. In cynical hands, they aim at creating false hopes, emotional
confusion and predictable retaliatory hate crimes when the degree of their foolery is
exposed.
But opening is what is nonetheless at stake, as the task is to situate the political
from within a process lying outside of the current State, as if in “excess”. The parameter
and limit prove to be porous. Analysis of non-recognized forms of political subjectivity
becomes the new challenge. They have to be sought without the guarantees of
instantiation. Anchoring proposals in deductive arguments is not only wished for, but
possible. Michael Neocosmos, for example, stresses how his research into the
emergence of new political subjectivities on the African continent aims at “opening up
and discussing this excessive subjectivity – this thought in the strict sense, for
expressive subjectivity is not thought, but mere expression of interest – justifying its
existence, outlining some of the categories necessary for it to begin to be apprehended
in thought, and identifying the way it is still marked by and linked to expression and
representation.”26
Susan George, The Lugano Report: on Preserving Capitalism in the Twenty-first Century, Pluto
Press, London, 1999.
26 Michael Neocosmos, Thinking Freedom in Africa: Toward a Theory of Emancipatory Politics. Wits
University Press, Johannesberg, 2016, p. 28. As Neocosmos argues, “it is indeed possible to be faithful
to the idea that ‘The people shall govern’, i.e. to a vision of representation in which what people say when
25
622 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
At the time when Susan George’s fictitious report was written, there was next to
no possibility for social margins to be filled by widespread infrared concrete political
action. Pressures and restrictions aided and abetted by transnational corporate media
suffocated most proposals that could favor another economic system the basis of which
would be to engaging with the communist hypothesis. Symptomatic of it all was how
the key sentence in the penultimate paragraph of the Communist Manifesto had
always been occluded –as much in positive references to the book as in those deriding
it. In that paragraph, Marx and Engels assert their “disdain to conceal their views and
aims […]” as they vow to work “everywhere for the union and agreement of the
democratic parties of all countries.”27 It has taken half a century since The Lugano
Report for a communist economic and political system to acquire a level of technical
and organizational sophistication able again to show the lie of the primacy of the
scarcity of goods. By pulling millions from poverty, China has gone from a limitless
repository of cheap labor, ready to accommodate the relocations of globalization, to
carry out the most sophisticated social-democratic economic organization of the 21st
century, a “market socialism”.
The proof lies in the way it managed to contain the spread of Sars-CoV-2 and
treat cases of Covid-19. After the 2008 collapse and the following recession, China had
already saved the economies and financial markets of the West through its
monumental public infrastructure works.28 In the promissory figure in which a billion
persons have been drawn from poverty in the world, seventy percent of them are
Chinese.29 Through the existence of China, in light of the pandemic and the antiracist
struggle triggered in liberal democracies weighed down by unprecedented degrees of
concentration of wealth, political philosophy confronts the need for a structural
revision that is at the very least comparable to the achievements of this millenary flux
of State and economic form.
To complete the symmetry, the third direction of political philosophy also
confronts its degenerate double. We have seen how crushing normalization delimits
the first constitutional direction of political philosophy and how terrorizing repression
pulverizes the second, the extra-constitutional. The third direction, for being
they think at a distance from the state is taken seriously. The political problem consists in how to sustain
this vision and the practices that flow from it.” (p. 538)
27 Karl Marx and Friedrich Engels, The Communist Manifesto, Vintage Press, London, 2018, p. 52.
28 Jabbour, Dantas E Espíndola, 2020.
29 Dowbor, 2017, p. 150, citing various sources.
Norman R. Madarasz | 623
infraconstitutional, contains a totalizing, purportedly totalitarian opposite, but in
appearance. Less discursive than the doubles of the first two directions, its opposite is
opaque and brutal. Neither constitutional nor extra-constitutional political philosophy
aim to inscribe in their models the hundreds of thousands of deaths by Covid-19 in
Brazil and the United States. Only the third orientation manages to associate – perhaps
to better vindicate – these deaths with racism and the most vulgar class discrimination.
The double of the third direction is thus death. Its realization is given through
the brutality of assassination, of extrajudicial execution and genocide. A genocide
provoked by passive inactivity and negationism by governments built upon economic,
military and religious powers. The future of political philosophy struggles with
complete symmetry. But through its most hopeful incentives, this art of thought,
reason and art stands in front of the racist gun of pandemics, as does the future of us
all – though no future more so than that of our fellow continental African-Americans.
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34. CRISIS AND THE MECHANICS OF POLITICAL DOMINATION:
AN OUTLINE1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-34
Nuno Pereira Castanheira2
In a 2012 interview to the newspaper Ragusa News, Giorgio Agamben said that
«[…] today, “Crisis” means only “you must obey!”», thus emphasizing the
transformation of the concept into the motto of contemporary politics with the aim of
forcing people to accept restrictions to their freedom that they would not accept
otherwise (Agamben 2012).
Following Agamben’s insight, the purpose of these paragraphs is to provide
some elements to a cursory understanding of the mechanics of crisis and domination,
a mechanics which is seemingly becoming the core structure of contemporary politics.
To this effect, besides Agamben, I will rely on thinkers such as Michael Hardt, Antonio
Negri, Hannah Arendt, Walter Benjamin, and Carl Schmitt. The goal is not to discuss
their contributions and implications in a detailed fashion, but simply to present a brief
outline of the issue. The etymological relation between crisis (krisis) and judging
(krinein) is well-known and I will take it for granted here.
What is “Crisis”?
According to Hannah Arendt, a crisis takes place when the standards, laws and
measures inherited from the past to guide us in the predicaments of the present are no
longer reliable (Arendt 2006a). This seems to indicate that “crisis” is the occurrence of
a rupture with a given, handed down past, a tradition, whose function was to judge
This text was originally published in the website of the project Philosophy in a Time of Crisis
(https://www.philosophyx.co.uk), coordinated by Professors Miguel de Beistegui and Amedeo
Policante
from
Warwick
University.
The
project’s
Manifesto
is
available
at
https://www.philosophyx.co.uk/manifesto. Besides minor corrections, the text is republished in this
volume in its original form.
2
Postdoctoral fellow at the Graduate Program in Philosophy of the School of Humanities of the
Pontifical Catholic University of Rio Grande do Sul (PUCRS), with a fellowship from the Higher
Education Improvement Coordination (CAPES).
1
626 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
that which is worthy or not of being preserved. “Crisis” is the experience of the
interruption of a willed continuity in time, an experience where the distinction
between past and future becomes blurred (Arendt 2006). However, this does not
necessarily mean that the unreliability of past standards to judge new conditions
entails an interruption in their use. If left to its own devices, this blurring will simply
reproduce its own indistinctness, becoming a kind of eternal, self-sustaining present
(Arendt 2006a).
The risks associated with this process of acritical reproduction become clearer
when seen from Arendt’s views on judgement. According to Arendt, the word
“judgement” has two meanings (Arendt 2005, 1993):
1. To organize and subsume under a given general, universal rule – Kant’s
“determinant judgement” (Arendt 1982; Kant 2000). These kinds of judgements are
grounded on a pre-judgement (Vorurteil) or prejudice. Prejudices are shared with
others, are considered self-evident and part of everyday life, enabling us to recognize
each other and our commonality, a trait they share with judgements. Their function is
to protect and shield us from having to experience, confront and judge anew every facet
of reality. In fact, they are used as standards for judging in everyday life, that is, in a
limited, non-binding context. Prejudices are the basis of public opinion, of our partial
ways of viewing the world; they are not judgements per se since these require their
own legitimate ground in lived experience. Prejudices have a past judgement at their
origin, which means they once had an experiential ground, but this ground is now
covered by the passage of time. And this allows them, in extreme cases – as in the case
of crisis –, to prevent both the experience and judgement of present events,
particularly those which resist subsumption to past judgements and are, therefore,
altogether new.
2. Dealing with the new requires “judgement” in a different sense, since it means
that there are no standards available capable of accounting for its novelty. This is what
Kant called “reflective” or “aesthetic judgement” (Arendt 1982; Kant 2000), over
which we can debate and try to persuade others, but which we cannot impose on others
as logically irrefutable or compulsorily binding.
For Arendt, a crisis occurs when prejudices are no longer deemed self-evident
and reliable in the limited, non-binding context of everyday opinion, undergoing a
process of “naturalization” that can turn them into all-encompassing and all-
Nuno Pereira Castanheira | 627
explaining ideologies which, unlike genuine prejudices, claim universality and aim at
completely shielding us from reality. This claim to universality is also the signal that
our standards of judgement and the prejudices based on them are no longer
appropriate to deal with events. Standards have no compulsory nature, they are valid
and in force based on nothing else than agreement, although they seem compulsory
because their validity is assumed in their everyday application.
The Relation Between Crisis and Modernity
This tension between the ability of judging anew, for oneself, without given,
constituted standards, and the prejudicial need for judgements to have a compulsory,
deductive-like nature capable of categorizing and ordering reality is, in a way, the red
thread running across European Modernity, a thread which seems to have totally
unravelled in our time and whose relevance to an understanding of the relation
between crisis and domination should not be underestimated.
In Empire, Michael Hardt and Antonio Negri describe European Modernity
itself as crisis, manifested in two opposite ways.
On the one hand, Modernity is characterized as a radical revolutionary process
brought about by the emancipation of human beings from transcendent standards and
the affirmation of a new ontological dignity to the realm of immanence translated into
a power of constituting science, history and politics according to human experiences,
determinations and actions. Human beings begin to be seen as singularities, that is, as
absolute finite beings able to transcend their finitude and not just to conceive, but to
potentially exist as universals. Citing Duns Scotus, Hardt and Negri state: «“[…] every
entity has a singular essence [...]”», a singularity which is not accidental or ephemeral,
but ontological (Hardt and Negri 2000, 71). This new humanity is the multitude, the
presentation of singularities through their actions without recourse to external
mediation and impossible to reduce to an identity.
On the other hand, it gave rise to a counter-revolution whose aim was to shape,
control and dominate the rising dynamics of re-foundation on the basis of the newly
discovered human dignity by establishing a transcendent power whose internal logic
was not to return to pre-modern conditions, but to provide a new order for the
exploitation of the newly released forces of immanence.
628 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
The above-mentioned tension is referred by Hardt and Negri as a civil war
fought between two paradigms of Modernity: the immanent, constituting forces of
desire and association; and a transcendentally constituted order imposing authority.
This civil war was mediated and somewhat resolved by the sovereignty of the state,
which then became the locus of crisis in European Modernity and meant the victory of
the counter-revolutionary paradigm (Hardt and Negri 2000).
The “resolution” of European Modern crisis came not with the end of the
conflict, but with its internalization. To use a Hegelian concept, crisis was sublated
(aufgehoben), that is, simultaneously abolished and preserved by removing it from its
immediacy and turning it into a mediating transcendent, necessary, ideological a
priori standard whose purpose was to dominate the multitude of immediately selfconstituting, potentially equal subjects under a pre-constituted order, both internally
– i.e. intra-Europe – and externally – by imposing European domination to nonEuropean populations.
According to Hardt and Negri, crisis is the permanent state of Modern
European domination and it became the mediating ideological core of European
hegemony, disputes regarding its characteristics notwithstanding (Hardt and Negri
2000).
Crisis and Sovereignty
The presupposition of a civil war as the original condition of human relations –
Hobbes’ war of all against all (Hobbes 1998) – demands a transference of power from
the subjects to a sovereign power that transcends it, representing and ruling it for the
sake of peace and survival: «Sovereignty is thus defined both by transcendence and by
representation, two concepts that the humanist tradition has posed as contradictory»
(Hardt and Negri 2000, 84). The transcendence of the sovereign is grounded on the
presupposed conflictual logic of human relations, which is represented and preserved
– since the sovereign remains in a state of war – by depriving the subjects of their
constituting power through an implicit contract of association that is inseparable from
the contract of subjugation (Hardt and Negri 2000).
To return to Arendt’s considerations on judgement and prejudice, this sublation
of crisis into sovereignty is the original experiential ground of judgement of European
Nuno Pereira Castanheira | 629
Modernity, a judgement which became, initially, a self-evident prejudice and, after, an
ideological mechanism of control and domination. The result was the transformation
of politics into administration or political economy, essentially coupling sovereignty –
the transcendent, pre-constituted, presupposed victorious form of European
Modernity – with capitalist expansion – its immanent content, ordering and guiding
the constituting power of social relations in accordance with the rulings of the
hegemonic, pre-constituted standard, turning both the singularities and the multitude
into productive functions of its development and validators of its “success”, i.e., of its
effectiveness. Capitalist sovereignty and its administrative, bureaucratic state
machinery are the core elements of the modern nation-state, according to which
politics is only a function of social interest, represented by the figure of the sovereign,
that transcendent “invisible hand” ruling private, conflicting interests. Through the
fiction of the “interest of society as a whole”, the creative, productive forces of
singularities are disciplined, mobilized and organized to be put at the service of the
continuous sublation of private conflicts – of sectorial crises – and the preservation of
the status quo, translated into the exchange market.
The sovereign standard, to whose mediation the different sectorial crises are
subjected in order to be legitimized, normalized and prepared to fulfil their role in
perpetuating the constituted order of things, becomes both the measure of progress
and its ultimate end. In a way, sovereignty preserves the ability of crisis to break the
continuity of willed time, thus blurring past and future, but purposefully and
exclusively with the goal of reproducing itself and its own conditions indefinitely, in a
paradoxically ever-changing eternal present, while producing a set of new figures
whose sole function is to validate and perpetuate its existence. Paraphrasing Arendt,
the couple sovereignty/capitalism – and its perpetual mechanics of conflict – is the
dead monotony of sameness in the process of its historical unfolding (Arendt 1994).
Crisis as Device of Political Domination
Given their insightfulness and implicit or explicit influence on contemporary
democracy and its techniques of government, Carl Schmitt’s reflections on the state of
exception and the character of exception are key to understand this process of
transforming crisis into a device of domination.
630 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
In his preface to Political Theology, Schmitt describes the political as “the total”
(Schmitt 2005), thus making the unpolitical, that is, the private life of citizens – which,
in the Modern liberal political framework, is supposedly beyond the boundaries of
politics – explicitly dependent on political decision. The decision is the prerogative of
the sovereign: “Sovereign is he who decides on the exception” (Schmitt 2005, 5). This
not only means that a constitutional order of some kind must be presupposed, but also
that the sovereign has the power of suspending the rule of law in the name of his own
preservation. That is, in Schmitt’s view, the distinguishing trait of sovereignty (Schmitt
2005). In the state of exception, the state has priority over the law; in fact, it continues
to exist even when the law is suspended, while the law is dependent, in its applicability,
on the field of application constituted by the sovereign’s power.
In this sense, the exception is literally a Grenzbegriff, i.e. a borderline concept,
as Schmitt intends (Schmitt 2005): by deciding on the exception, the sovereign is, in a
single act, not only creating a zone of indistinctness from which to determine who and
what is within the constitutional order of the state and who and what should be
excluded from it for the purpose of the state’s preservation and security, thus being the
abnormal ground of the norm, but also producing and sustaining the field of its
application by constantly putting the life of the subjects themselves within the scope
of its absolute power.
In this framework and since there is no given rule to anticipate and subsume
crises, the sovereign decides with unlimited authority on whether or not there is a crisis
– a state of emergency – and what should be done to address it, including suspending
the constitution in its entirety. The decision on the exception cannot be derived from
the constitutional norm, which is a mere guideline on how to deal with crises and on
who is entitled act on critical cases, that is to say, who is the sovereign.
Since the existence of the sovereign and the state itself depends on the decision
on the exception, the only way to assert and guarantee its power seems to be through
the recurrent production and reproduction of the means of its preservation, that is, of
crises. This is achieved by conceiving social relations as a constant state of insecurity
– as a war of all against all – in which all parties in dispute paradoxically seem to aim
at a common good. Despite the faint Kantian flavour of this view, unlike Kant – who
argued that the good constitution of the will envisaged the common good
independently of particular intentions, including those of the sovereign –, Schmitt
Nuno Pereira Castanheira | 631
claims that the common good is determined by sovereign decision, thus granting the
sovereign absolute power over the constitution of public interest (Schmitt 2005).
To use an Arendtian formula, this would be tantamount to equate the common
good with the will of the Führer (Arendt 2006b), that is, the sovereign as the holder of
absolute power. To act in accordance with the common good would be «“to act in such
a way that the Führer, if he knew your action, would approve it”», a command to which
Arendt called, in one of her several analyses of totalitarian rule, «the categorical
imperative in the Third Reich» (Arendt 2006b).
In a similar vein, Agamben states that, in a totalitarian state, the state of
exception is a device to establish a legal civil war with the purpose of physically
eliminating entire categories of citizens who somehow are unable to be included in the
political system (Agamben 2005). In the current global civil war, refugees and
displaced persons, deprived of civil rights and political protection in consequence of
the collapse of their sovereign states, are the best example of this device in action, even
considering the distance between the world’s current state of affairs and the
totalitarian state.
The fact is that totalitarianism led, in the post-totalitarian world, to the
adoption of the state of emergency – of crisis – as a recurrent device of government in
democratic states, whose main advantage for government purposes is to justify the
temporary suspension of the division of powers between legislative, executive and
judiciary and its transference to a single, absolute sovereign whose executive powers
are then extended and who then becomes capable of ruling by decree.
According to Agamben, this transference is becoming systematic and
commonplace in contemporary democratic states, even in parliamentary democracies,
whose parliament is increasingly limited to ratifying executive decrees. To Agamben,
a good example of this tendency is the political appropriation of the metaphor of war
by the executive power in the United States of America – the war on drugs, the war on
terror, and so on –, given the intimate relation between the President’s sovereign
powers and the state of war (Agamben 2005).
Exploring the consequences of this state of permanent crisis in the present
situation, Hardt and Negri argue that the legitimation of violence – of war – in our
time requires the presence of a constant threat to the security of our way of life. This
threat seems to come from an immaterial enemy constantly haunting us, thus
632 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
reinforcing our need for security and the necessity of the status quo and its means of
violence as the only way to maintain security (Hardt and Negri 2004).
This transformation of crisis into an ideological device of domination by the
state is achieved by assuming the imminent threat of an always lurking, evanescent
enemy with a logic of security that reinforces the expectation of threat to the point of
making its concrete experience irrelevant. Besides the permanent state of war, the
result is a paradoxical sense of security – of peace –, produced not in virtue of the
elimination of the concrete threat, but in virtue of the continuous validation of the
expectation of threat and concomitant insecurity, which is ever-present and
completely independent of the threat’s actual presence.
If this is the case, then it seems that Walter Benjamin was right in saying that
«the tradition of the oppressed teaches us that the “state of emergency” in which we
live is not the exception but the rule» (Benjamin 2006, 392).
Unlike the Arendtian “crisis” – which is an event, contingent by definition,
essentially linked to experience and its conditions and therefore unable to be produced
and sustained at will –, the state of exception is nothing other than the sovereign’s
fictitious, self-produced indistinctness between past and future turned into a
sempiternal present with the purpose of preserving the status quo and preventing the
emergence of the new. Benjamin’s above-quoted sentence recognized the state of
exception as the rule in contemporary society; however, he also added that “[…] it is
our task to bring about a real state of emergency [...]” (Benjamin 2006, 392), that is,
to dispel the prejudice of sovereignty grounded on Modernity’s appropriation of the
experience of crisis by critically re-examining it and bringing to light the past
judgements that brought it about and constituted it. This is perhaps the most urgent
political task of our time.
References
Agamben, Giorgio. 2005. State of Exception. Translated by Kevin Attell. Chicago:
University of Chicago Press.
Agamben, Giorgio. 2012. “Giorgio Agamben, Intervista a Peppe Savà: Amo Scicli E
Guccione.” Ragusa News. 2012.
Arendt, Hannah. 1982. Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago: The
University of Chicago Press.
Nuno Pereira Castanheira | 633
Arendt, Hannah. 1993. Was ist Politik?: Fragmente aus dem Nachlass.
Vorausgegeben von Ursula Ludz. Munchen: R. Piper.
Arendt, Hannah. 1994. Essays in Understanding: 1930-1954 Formation, Exile, and
Totalitarianism. Edited by Jerome Kohn. New York: Schocken Books.
Arendt, Hannah. 2005. The Promise of Politics. Edited by Jerome Kohn. New York:
Schocken Books.
Arendt, Hannah. 2006a. Between Past and Future: Eight Exercises in Political
Thought. New York: Viking Press.
Arendt, Hannah. 2006b. Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil.
London: Penguin Books.
Benjamin, Walter. 2006. Selected Writings. Edited by Howard Eiland and Michael W.
Jennings. Vol. 4, 1938–19. Harvard: Harvard University Press.
Hardt, Michael, and Antonio Negri. 2004. Multitude: War and Democracy in the Age
of Empire. New York: Penguin Press.
Hardt, Michael, and Antonio Negri. 2000. Empire. Cambridge, Massachusetts &
London: Harvard University Press.
Hobbes, Thomas. 1998. Leviathan. New York: Oxford University Press.
Kant, Immanuel. 2000. Critique of the Power of Judgment. New York: Cambridge
University Press.
Schmitt, Carl. 2005. Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty.
Translated by George Schwab. Chicago: The University of Chicago Press.
35. SOBRE LA PLUSVALÍA IDEOLÓGICA1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-35
Renzo Llorente2
¡Qué no daríamos por ver a Karl Marx sentado frente a un televisor venezolano!
Vería entonces que (…) aparecen ante él las
mercancías
caminando
y
cantando. Vería (…) cómo un bote de mayonesa adquiere el rostro de un ama de
casa y dice de sí mismo (…) que es una auténtica necesidad comprarlo en el
“supermercado” Vería cómo sale rodando por su propio impulso la tapa de un
refresco y de pronto (…) se dibuja en ella una cara que habla y saluda: “¡Hola! Yo
soy X”… Vería (…) cómo un horno eléctrico sonríe y se estira de placer ante el
cosquilleo que le produce un maravilloso cepillo untado de un maravilloso
“limpiahornos”… Vería, en suma, (…) cómo de mercancías se va llenando la sique
de los hombres desde su más tierna infancia… Ludovico Silva, 1971.
I
Como es bien sabido, la clase dominante normalmente no tiene necesidad de
recurrir a la fuerza para mantener su poder y control dentro de las sociedades
capitalistas, lo cual viene a confirmar que la mayor parte de la dominación capitalista
apenas si encuentra resistencia entre los explotados y oprimidos. Ello es así en gran
medida porque, como bien subrayó el gran economista marxista Paul Baran en un
ensayo publicado por primera vez hace ya más de medio siglo, “la mentalidad de la
clase dominante ha llegado a ser indiscutiblemente la mentalidad dominante, y (…) la
actitud sistemáticamente cultivada que consiste en tomar por sentado el capitalismo,
en considerarlo el orden obvio y natural de las cosas, no sólo se ha convertido en la
actitud de la burguesía, sino también en la actitud de extensas masas populares” (1969,
p. 28; la traducción es mía). En definitiva, como afirman Marx y Engels en La ideología
alemana, “las ideas de la clase dominante son las ideas dominantes en cada época”
(1970, p. 50), y en nuestra época la clase dominante sigue siendo la capitalista.
Ahora bien, si aspiramos a abolir el capitalismo no basta con reconocer este
fenómeno, que no es otro que el de la hegemonía de la ideología capitalista (cuya
Este trabajo desarrolla algunas de las tesis que presenté de forma sumaria en “El concepto de plusvalía
ideológica: Una breve introducción”, publicado en la Revista Peruana de Filosofía Marxista (No. 2, Año
2: 26-28). En el presente ensayo reproduzco ciertos párrafos de este trababjo anterior para analizar con
detenimiento algunas de las cuestiones que entonces abordé con brevedad.
2 Saint Louis University–Madrid Campus.
1
636 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
importancia apreciamos gracias, sobre todo, a Antonio Gramsci); es necesario
entenderlo y combatirlo. Para ello, nos hace falta una teorización adecuada de los
procesos mediante los cuales surge y se consolida la ideología capitalista, pues las
“ideas dominantes” —las ideas que se hacen hegemónicas— en nuestra época son,
como ya he señalado, precisamente las ideas que corresponden a esta ideología. Son
especialmente necesarias las propuestas que nos ayuden a concebir la psicología de la
ideología. Esto no supone un desafío meramente teórico: como ha quedado patente en
la últimas grandes crisis económicas, la incapacidad de pensar en alternativas al statu
quo político y económico, una incapacidad debida en gran medida al dominio de cierta
ideología neoliberal, ha impedido que la gente afectada más directamente por las crisis
reaccione y empiece a luchar a favor de modelos socioeconómicos más justos y
racionales. De hecho, lejos de interesarse por propuestas alternativas a las “soluciones”
capitalistas a las crisis, los que más sufren los efectos de estas crisis tienden a
reaccionar con desorientación, fatalismo y resignación.
Una estimulante aportación latinoamericana al esfuerzo por teorizar la
dimensión psicológica de la hegemonía de la ideología capitalista se puede encontrar
en la obra de Ludovico Silva, y en particular en el concepto de plusvalía ideológica que
empezó a desarrollar a principios de los años 70 del siglo pasado. Aunque este
concepto apenas ha sido comentado y discutido 3 , constituye, como veremos, una
contribución valiosa al conjunto de las herramientas teóricas de que dispone el análisis
social marxista.
II
Para entender el concepto de “plusvalía ideológica” conviene tener presente el
significado que Silva le da al término “ideología”, así como su noción de “alienación
ideológica”. Con respecto a lo primero, Silva sostiene que la ideología consiste en un
“sistema de ideas y creencias destinadas a afirmar el orden de dominación y
explotación existente” (1983b, p. 203), y que “forman parte de la ideología de una
sociedad sólo aquellas formas espirituales destinadas, de un modo u otro, a ocultar y
deformar, a invertir y ‘mistificar’ (que decía Marx) todo cuanto ocurra en la estructura
De hecho, la obra de Silva en general apenas ha sido estudiada. El libro de Ramírez (1981) constituye
el único intento, que yo sepa, de realizar un estudio más o menos sistemático de la obra filosófica de
Silva.
3
Renzo Llorente | 637
socioeconómica” (1980, p. 18). Es decir, para Silva la ideología consiste en creencias
falsas cuya aceptación sirve a los intereses de la clase dominante. La ideología es, pues,
una especie de apología, para emplear la terminología utilizada por Bhikhu Parekh
(1982) para denominar esta tendencia en la interpretación de Marx. La ideología
aparece necesariamente, insiste Silva, en todas las sociedades cuya estructura social
— su sistema de producción incluido— supone relaciones de explotación, y su función
consiste en establecer la necesidad y la inevitabilidad de esta explotación en las mentes
de todos los integrantes de la sociedad (1989, p. 19). Es por ello que Silva afirma que
“toda ideología es justificación de una explotación” (1989, p. 19). Dada esta concepción
de la ideología, la frase “ideología burguesa”, una formulación empleada por Lenin
(1961, p. 384), resulta ser una redundancia en el contexto de las sociedades
capitalistas, mientras que el concepto de “ideología revolucionaria” (inspirado en las
ideas de Lenin) es poco más que un absurdo (Silva 1989, p. 13; 1983b, p. 105)4.
Al hablar de la “alienación ideológica” Silva se refiere a una idea que afirma
encontrar en los escritos del joven Marx. Además de otras formas de alienación
habitualmente enumeradas y comentadas 5 , Silva identifica una variante de la
alienación que denomina “alienación ideológica”. Esta clase de alienación se refiere a
una identificación inconsciente (por parte del trabajador) con unos intereses que no
sólo no le son propios, sino que son opuestos a sus verdaderos intereses. Según Silva,
esta “alienación ideológica” surge como consecuencia de las explicaciones
mistificadoras ofrecidas por la economía política, la inversión de los valores en la
religión y la alienación de las necesidades humanas que ocurre siempre que la
producción está diseñada para satisfacer las exigencias del mercado en vez de
orientarse hacia la satisfacción de las necesidades humanas (1984, pp. 208, 231; 1983a,
pp. 63-69)6.
La noción de ideología defendida por Silva representa, a mi juicio, una interpretación marxista
coherente de este concepto. Sin embargo, considero que la mejor conceptualización específicamente
marxista de ideología es la que propone Joe McCarney, quien define la ideología como “pensamiento
que sirve a intereses de clase” (1980, p. 127; la traducción es mía). (Si aceptamos esta definición de
ideología, la frase “ideología revolucionaria” sí tiene sentido.) Creo que se podría sustituir la noción de
ideología de Silva por la de McCarney sin desvirtuar la teoría de la plusvalía ideológica que resumo en
las páginas siguientes. No resulta pertinente, sin embargo, defender aquí esta tesis.
5 Para algunas referencias bibliográficas, véase mi artículo “El concepto de plusvalía ideológica: Una
breve introducción”, citado arriba.
6 Este concepto puede, a primera vista, parecer incongruente con la concepción de ideología defendida
por Silva, ya que podría sugerir que uno está alienado en este aspecto por no asumir la ideología que le
corresponde, lo cual presupone, a su vez, que existe una ideología “correcta” o indicada para la persona
explotada. En realidad, lo que quiere decir Silva es que la persona está alienada por asumir ideas
ideológicas y no por asumir ideas ideológicas “incorrectas”.
4
638 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Si hay algo que distingue la concepción de la ideología defendida por Silva, es,
sin duda, su insistencia en que el principal soporte ideológico de apoyo del capitalismo
hay que buscarlo en el preconsciente, al menos en el caso de las innumerables personas
que no se benefician de semejante orden socioeconómico (1984, p. 213). La
combinación de esta tesis con la noción de “alienación ideológica” produce la
aportación más original de Silva a la teorización marxista de la ideología, a saber, su
concepto de plusvalía ideológica. Silva propone este término para nombrar varios
fenómenos, los cuales manifiestan todos cierta semejanza analógica a las prácticas y a
los significados que se asocian con el término “plusvalía” en los escritos económicos de
Marx. En estos escritos el término “plusvalía” se refiere, como sabemos, a la diferencia
entre el valor (medido en dinero) producido por el trabajador durante la jornada
laboral, por un lado, y el valor de su fuerza de trabajo (medido en su salario), por otro.
Dicho de otra manera, la plusvalía consiste en el valor producido durante esa parte de
la jornada laboral en la que no se les paga a los trabajadores por el valor que han
producido. La plusvalía es, en definitiva, el trabajo sin pagar del que el empresario se
apropia en el sistema capitalista (véase Marx, 1984).
Pues bien, ¿qué quiere decir, exactamente, Silva al hablar de la plusvalía
ideológica? Aunque las distintas definiciones de “plusvalía ideológica” que Silva ofrece
son algo imprecisas, la idea central es bastante clara: “Se trata (…) de un excedente de
energía mental del cual se apropia el capitalismo” (1984, p. 230), es decir, “consiste en
todo el excedente de energía psíquica que se pone al servicio del capital, transformada
en verdadero ‘capital ideológico’ del sistema, puesto al servicio del capital material”
(1983b, p. 102). El término se refiere, por tanto, a cierta inversión psíquica en el
capitalismo: la consciencia o energía psíquica —una especie de fuerza de trabajo— que
se “extrae” de los individuos en forma de su lealtad o adhesión al capitalismo. Esta
inversión psíquica en el sistema capitalista sirve para fortalecer el orden económico
capitalista en la medida en que produce el apoyo necesario para asegurar el éxito —a
saber, la maximización de las ganancias— y la continuidad del sistema. Si Silva insiste
en llamarlo plusvalía ideológica, es porque la “extracción” de esta adhesión al
capitalismo se parece a la extracción de la plusvalía en el lugar del trabajo, puesto que
al obtener una adhesión psíquica el capitalismo se apropia de algo que no le pertenece
—una parte de nuestras psiques (en la forma de una lealtad psicológica inconsciente al
sistema capitalista)—, y así recibe algo sin “pagar” (esto es, sin compensar
Renzo Llorente | 639
adecuadamente) lo que vale. Además, al igual que ocurre cuando se extrae plusvalía
en, por ejemplo, una fábrica, en este caso el capitalismo se apropia de algo para su
propio beneficio: la consolidación y perpetuación de este sistema socioeconómico. Por
otra parte, si Silva subraya que es una plusvalía ideológica, es porque en este proceso
el capitalismo adquiere, como se puntualiza en el pasaje citado antes, capital
ideológico, de la misma manera que la plusvalía sacada en una fábrica se convierte en
capital material. De hecho, es la “plusvalía ideológica” la que sirve luego para justificar
la producción de plusvalía material, y por consiguiente para justificar la institución del
capitalismo (Silva 1984, pp.183-255; 1989, p. 164).
Frente al concepto de plusvalía utilizado para describir la extracción de valor en
una actividad industrial, por la cual al obrero o a la obrera no se le paga nada, Silva
afirma que los sujetos explotados de las sociedades capitalistas sí reciben algo a cambio
de su “esclavitud inconsciente al sistema” (1984, p. 230): el “lujo” de no tener que
pensar por sí mismos. Es decir, “a cambio de esa especie de salario espiritual que es la
‘seguridad’ de no tener que pensar por cuenta propia, el hombre explotado por la
industria ideológica vende su fuerza de trabajo espiritual y produce un excedente
ideológico; o mejor dicho, compra su ‘seguridad’ a cambio de su conciencia” (Silva
p.1984, 237; cursiva en el original). Como este tipo de “seguridad”, que no tiene nada
que ver con la provisión de las condiciones socioeconómicas que garantizan una vida
verdaderamente humana, no justifica una lealtad cuasi-absoluta al sistema capitalista
ni compensa el sacrificio realizado por los que renuncian a su capacidad de analizar
críticamente el sistema social que los rodea, este cambio genera plusvalía —a saber,
plusvalía ideológica—.
El resultado es, por tanto, que la explotación dentro del capitalismo también
asume la forma de una explotación de la psique humana. O dicho con más precisión,
dentro del capitalismo avanzado se desarrolla “una explotación específicamente
ideológica que consiste en poner el siquismo al servicio inconciente [sic] del sistema
social de vida” (Silva, 1989, p. 20).
Tal vez resulte útil, después de este rápido repaso de algunas de las tesis de
Silva, resumir las relaciones entre los términos y conceptos que se han mencionado
hasta ahora. Resumido esquemáticamente: Los sujetos explotados producen plusvalía
ideológica, que el sistema capitalista convierte en capital ideológico. Los que han
producido el capital ideológico para el sistema sufren una alienación ideológica (es el
640 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
correlato del capital ideológico: si el sistema capitalista posee lo último es porque
muchos sujetos sufren de lo primero). La existencia de grandes reservas de capital
ideológico permite que el capitalismo mantenga su hegemonía ideológica.
Antes de pasar a considerar algunas de las virtudes y ventajas del concepto de
plusvalía ideológica es importante señalar el origen de esta plusvalía. Según Silva, la
mayor parte de la plusvalía ideológica se crea en nuestro tiempo libre y durante las
actividades con que llenamos nuestras horas de ocio. Por eso, insiste en que el nuestro
“es un ‘tiempo libre’ en el que trabajamos para la preservación del sistema, es el
tiempo de producción de la plusvalía ideológica” (Silva 1989, p. 205; cursiva en el
original). La consciencia de la que disponemos durante nuestro tiempo libre es, para
emplear la terminología acuñada por Rudolf Bahro (1979) —en un libro publicado
varios años después de que Silva propusiera el concepto de plusvalía ideológica por
primera vez—, “consciencia excedente”; y a la par que se ha incrementado el tiempo
libre de buena parte de la población oprimida a lo largo de las últimas décadas ha
crecido también la cuantía de consciencia excedente7.
Pero al mismo tiempo se han ampliado y perfeccionado los instrumentos utilizados
para explotar esta consciencia excedente a fin de generar plusvalía ideológica, de
manera que el tiempo libre se ha convertido en gran medida en “tiempo de trabajo
síquico para el sistema, cuyos medios de comunicación y propaganda utilizan todo ese
tiempo ‘libre’ para el esclavizamiento ideológico” (Silva, 1989, p. 221), un hecho que se
ve confirmado con la creciente comercialización, o saturación comercial, de nuestro
tiempo libre, con sus anuncios constantes, marcas comerciales omnipresentes, etc.
Entre todos los factores que hacen que el tiempo libre sirva para crear plusvalía
ideológica, Silva destaca el papel de los medios de comunicación y entre ellos atribuye
una importancia suprema a la televisión. Según Silva, la televisión constituye un
instrumento singularmente eficaz para estimular la producción de plusvalía
ideológica, puesto que “al mismo tiempo que hipnotiza la conciencia, dinamiza la
inconciencia [sic], la manipula directamente mediante técnicas perfeccionadas…”
(1989, p. 213); la televisión, por tanto, incide tanto en la consciencia como en la
preconsciencia e inconsciencia. Es justamente por ello que la televisión resulta ser
7 “Por primera vez en la historia contamos realmente con ‘consciencia excedente’ en masa, es decir,
capacidad psíquica enérgica que ya no puede ser absorbida por las necesidades y peligros inmediatos
de la existencia humana, por lo que puede adscribirse a los más lejanos” (Bahro, 1979, p. 297; cursiva
en el original).
Renzo Llorente | 641
un eficiente transmisor de la ideología que sustenta y justifica al sistema, y (…) un
condicionador colectivo de máxima efectividad en la creación de valores,
representaciones e imágenes…destinados a salvaguardar y justificar, en la estructura
síquica, las relaciones de explotación que tienen lugar en la estructura social. (…) La
explotación inmaterial a que contribuye la televisión engendra sumisión, esclavitud
inconciente [sic] y lealtad hacia el sistema de explotación material (Silva 1989, p. 175;
cursiva en el original)8.
Y esta sumisión incluye, destaca Silva, la asimilación de una ideología
neocolonial y la mentalidad del subdesarrollo y de la dependencia (1989, pp. 178; 181;
213).
De todas formas, si la televisión desempeña este papel, tenga o no el peso que
le atribuye Silva, es porque la cultura en su conjunto constituye un proveedor o fuente
incesante de ideología. En efecto, “la mayor parte de la cultura que se suministra es
cultura ideológica, ideología cultural (Silva 1989, p. 212). Por eso, si bien reconoce el
valor del análisis de la “industria cultural” de Max Horkheimer y Theodor Adorno
(1994) para una cabal comprensión del origen y producción de la plusvalía ideológica,
Silva considera más oportuno emplear el término industria ideológica al referirse a
este sector económico, dado que lo que la industria cultural crea es, sobre todo,
ideología (1984, pp. 248-52; 223-32)9.
III
¿Hasta qué punto es el concepto de “plusvalía ideológica” una aportación
valiosa a la teoría marxista? En mi opinión, constituye una herramienta útil para
concebir la producción y el funcionamiento de la ideología en las sociedades
capitalistas avanzadas, ya que ofrece algunas ventajas conceptuales frente a otros
modos de entender estos fenómenos. Consideremos dos de estas ventajas.
Es de suponer que, de escribir este ensayo hoy, Silva se refiriera también a internet, aunque este último
medio también incluye la transmisión de ideas y mensajes “contra-hegemónicos” que no tienen cabida
alguna en la televisión.
9 Probablemente huelga decir que las tesis de Silva guardan algunas semejanzas no sólo con las ideas
desarolladas por Adorno y Horkheimer, sino también, y sobre todo, con las de otro integrante de la
llamada “Escuela de Fráncfort”, a saber, Herbert Marcuse (1969; 1994), como el propio Silva ha
reconocido (1984, pp. 248-50). Merecería la pena estudiar estas afinidades entre el pensamiento de
Silva y el de Marcuse, pero éste es un tema para otro ensayo.
8
642 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
En primer lugar, el concepto de plusvalía ideológica hace hincapié en la
dimensión psicológica de la ideología; de hecho, Silva insiste, como ya hemos visto, en
que la adhesión al capitalismo entre los que no se benefician de este sistema se sitúa
en gran medida en el nivel preconsciente. Es allí donde se halla “la base de sustentación
ideológica del capitalismo imperialista (…) en el hombre medio de esta sociedad”
(1984, p. 213); allí encontraremos las creencias, imágenes, valores, inclinaciones, etc.
que preservan y generan un compromiso con el capitalismo
10
. Según este
planteamiento, el poder y la fuerza de la ideología no derivan de un asentimiento a
determinadas proposiciones políticas, sino que se apoyan en deseos y preferencias a
nivel del preconsciente: estos son los factores que engendran una identificación
inconsciente con unos intereses opuestos a los verdaderos intereses del portador de
estos deseos y preferencias. Si se han dedicado tantísimos recursos al
perfeccionamiento de las técnicas que garantizan que los mensajes ideológicos lleguen
al preconsciente, es precisamente por la eficacia de los impulsos del preconsciente
como condicionante de nuestras actitudes conscientes.
Esta interpretación psicológica de la ideología tiene varias virtudes. Para
empezar, nos ayuda a entender por qué el burdo adoctrinamiento político no resulta
ser necesariamente la manera más eficaz de inculcar una ideología determinada.
Además, nos ayuda a esclarecer en qué sentido las creencias ideológicas resultan
doblemente irracionales: son irracionales porque inducen a las personas a pensar y
actuar en un sentido opuesto a sus intereses esenciales, y también porque operan a un
nivel de la mente que es preconsciente y por tanto de una racionalidad restringida 11.
Por otro lado, el enfoque psicológico pone de manifiesto que el término “consciencia
falsa”, empleado en alguna ocasión por Engels (“Carta”) y utilizado a menudo como
sinónimo de “ideología”, puede dar lugar a equívocos. Si Silva está en lo cierto, la
ideología sí es falsa, pero el origen de los errores hay que buscarlo a un nivel más
profundo: en lugar de ser una consciencia falsa, se trata de un falso preconsciente12.
Además, si situamos la fuente de las distorsiones en este nivel, se entiende la razón por
En conformidad con esta perspectiva, Silva asume que si Marx estuviera vivo hoy, intentaría
incorporar el psicoanálisis en su teoría social (1989, p. 15).
11 Según la teoría psicoanalítica, el preconsciente, situado entre el inconsciente y la consciencia, contiene
pensamientos que, sin estar conscientes actualmente, se pueden convocar, activar o recordar mediante
un esfuerzo consciente. Por estar fuera del campo de la consciencia, el contenido del preconsciente no
puede considerarse esencialmente racional.
12 El concepto de “consciencia falsa” de hecho parece corresponderse con la noción de “alienación
ideológica” en el pensamiento de Silva.
10
Renzo Llorente | 643
la cual lo que se ha dado en llamar “consciencia falsa” resulta tan irracional y tan
difícilmente tratable. Al margen de estas consideraciones, el concepto de “plusvalía
ideológica” también parece más adecuado que el de “consciencia falsa” para resumir
todo el proceso ideológico por otra razón: además de llamar nuestra atención sobre los
mecanismos por los que se produce la ideología (y el papel desempeñado por los que
promueven estos mecanismos), saca a relucir la lealtad al capitalismo de los
explotados, y no sólo el hecho de que tengan una comprensión equivocada acerca de
cómo funciona el capitalismo y cuáles son sus verdaderos intereses.
Una segunda ventaja que ofrece el concepto de “plusvalía ideológica” es el
énfasis económico que conlleva esta interpretación de la naturaleza y operación de la
ideología. Al caracterizar nuestra aceptación del capitalismo como el resultado de una
extracción de cierta clase de valor, Silva llama nuestra atención sobre el hecho de que
el capitalismo consiga un beneficio muy concreto de la ideología: una disposición o
actitud que fomenta cierta conformidad con las instituciones del capitalismo y con sus
relaciones de producción. Esta disposición de aceptar el capitalismo se traduce en
capital ideológico, un recurso que el capitalismo puede aprovechar para mantener y
expandir su dominación. Si lo que el capitalismo consigue al obtener la adhesión de la
gente cuyos intereses son opuestos a este sistema puede entenderse como capital
ideológico, es razonable suponer que el concepto más adecuado para referirse a la base
de esta adhesión es el concepto de valor, ya que el capital crece y se expande mediante
la acumulación de valor. Por otra parte, si se recalca, tal como lo hace el concepto de
Silva, que es una cuestión de plusvalía, es más fácil entender la transmisión o
inculcación de la ideología como un tipo de explotación de la psique; y una vez que
empecemos a concebir la ideología de esta manera, resulta más evidente que existe un
paralelismo entre la explotación en el trabajo y la explotación que se produce durante
nuestro ocio —el periodo durante el cual se genera la mayor parte de la plusvalía
ideológica, como hemos visto— y que esta especie de explotación sirve para justificar
y legitimar aquella. Así que con esta terminología resulta menos probable que se pierda
de vista la conexión sistémica entre la ideología y el poder económico, por un lado, y el
hecho de que haya que entender “la dependencia ideológica como expresión de la
dependencia estructural” (Silva 1989, p.194), por otro.
A pesar de estas consideraciones la analogía aún puede parecer muy imperfecta
y algo inadecuada y por tanto conviene aclarar las razones por las que puede tener
644 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
sentido hablar de “trabajo” y “capital ideológico” en relación con la psique humana.
Cuando Silva habla de “la fuerza de trabajo síquica” (p. ej., 1989, p. 162) está
refiriéndose a la consciencia que uno podría emplear para reflexionar críticamente
sobre la sociedad que lo rodea. En la medida en que esta consciencia —que forma parte
de la “consciencia excedente”, para recurrir otra vez a la terminología de Bahro— está
absorbida por mensajes, ideas, creencias e imágenes de tipo ideológico, disminuye y
se socava nuestra capacidad — una especie de fuerza de trabajo— de analizar el sistema
social críticamente y de hacernos una idea acertada sobre ella. Mientras esto ocurre,
mientras reproducimos la ideología del capitalismo dentro de nuestra propia
subjetividad, trabajamos para el sistema capitalista y este trabajo crea plusvalía: esta
adhesión, lealtad y sumisión no se ven compensados por lo que el/la “trabajador(a)”
recibe del sistema capitalista. De ahí la afirmación categórica de Silva: “Todo aquel
que, en su taller interior de trabajo espiritual, obedezca a una conciencia falsa, ilusoria,
ideológica, y no a una conciencia real y verdadera, será eso que llamamos un productor
típico de plusvalía ideológica para el sistema capitalista” (1984, p. 214).
Con respecto a la cuestión del “capital” o “capital ideológico”, puede que la
analogía con el capital material que se genera durante la producción material sea más
válida aun (y, dicho sea de paso, tan coherente como, por ejemplo, el conocido
concepto de “capital cultural”). Si el capital, en términos generales, trata de “un activo
que puede generar una corriente de ingresos para su dueño” (Mohun, 1984, p. 92),
tiene sentido concebir nuestra adhesión al capitalismo como una suerte de capital
ideológico, ya que el capitalismo puede manejar, manipular y explotar esta adhesión
para generar ganancias y así acrecentar la acumulación total de capital (de la misma
manera, más o menos, que suele explotarse la lealtad patriótica para el beneficio del
gran capital). Como subraya Silva, al fin y al cabo el capital ideológico está “siempre
dispuesto a traicionar cualquier impulso subversivo y siempre al servicio del capital
material” (1989, p. 164)13.
13 Hay otra ventaja, quizá, en el hecho de que el término “capital ideológico” sea congruente con algunas
otras metáforas, tales como “expropiación de la consciencia” o “colonización de la consciencia”,
empleadas a veces para designar el fenómeno que estamos comentando y que también apuntan a la
función económica de la ideología.
Renzo Llorente | 645
IV
Como he dicho al principio, el concepto de “plusvalía ideológica” de Ludovico
Silva constituye una aportación valiosa al conjunto de herramientas teóricas a
disposición del análisis social marxista. A modo de conclusión, quisiera puntualizar
cómo la reflexión sobre un aspecto de este concepto nos puede ayudar a hacer frente a
—y así empezar a eliminar— la opresión capitalista.
Como se ha señalado arriba, creamos la mayor parte de la plusvalía ideológica
durante nuestro tiempo libre. Por consiguiente, apenas se puede afirmar que la
producción de la plusvalía ideológica conlleve coerción, lo cual implica que los
explotados y oprimidos mismos tienen la capacidad de poner fin a la plusvalía
ideológica. En la medida en que los explotados y oprimidos lleguen a librarse del
consumo ideológico —el cual contribuye, según Silva, tanto a la reproducción del
sistema capitalista en su conjunto como al consumo material— dejará de existir la
plusvalía ideológica. Pero no es tarea fácil: la “industria ideológica” jamás ha gozado
de tanto poder como hoy y dispone de más medios y herramientas que nunca
(televisión, internet, teléfonos móviles, sofisticadísimas técnicas de propaganda
comercial, etc.). Frente a esta ofensiva ideológica constante y omnipresente, sólo cabe
desarrollar la consciencia de clase —la cual es justamente lo que Marx oponía, nos
recuerda Silva, a la ideología (1989, p. 18; 1983b, p. 105; 1980, p. 26)—. He aquí, pues,
otra razón para impulsar la consciencia de clase: cuando los explotados y oprimidos
hayan alcanzado suficiente consciencia de clase, la plusvalía ideológica acabará
consignada al lugar que le corresponde: la historia de la dominación humana.
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36. FENOMENOLOGIA E METAFENOMENOLOGIA - SOBRE O
TEMA DA "SUBSTITUIÇÃO" NO PENSAMENTO ÉTICO DE LEVINAS
https://doi.org/10.36592/9786587424163-36
Ricardo Timm de Souza1
Introdução – os termos gerais da questão2
Já é tempo de denunciar a confusão abusiva
entre futilidade e moral.
E. Levinas3
Uma das construções mais complexas da última fase do pensamento de Levinas
diz respeito à temática da “substituição”, título do IV. Capítulo de Autrement qu’être
ou au-delà de l’essence 4 - livro que pode, muito propriamente, ser considerado o
resultado da sedimentação de vários decênios de pensamento e que consiste, por sua
vez, em uma espécie de reconsideração da questão do sentido mesmo do pensamento5.
Na verdade, analisada a obra de Levinas em termos de um discurso articulado que se
estrutura ao leitor sob a forma de grandes sínteses que amalgamam um rico complexo
de elementos, o tema da “substituição” se constitui em um dos “limites” de seu
pensamento ético. “Limite” é entendido aqui como uma determinada dimensão que,
1 Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS, Porto Alegre, RS,
Brasil) na Escola de Humanidades, professor no PPG Filosofia e no PPG Letras da mesma instituição.
E-mail: r.timmsouza@gmail.com.
2 O presente texto (originalmente in: SOUZA, R. T. - OLIVEIRA, N. F. (Orgs.), Fenomenologia hoje,
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, republicado posteriormente em LOPARIC, Z.; WALTON, R. (Orgs.),
Phenomenology 2005 -Selected Essays from Latin America, Bucarest: Zeta Books, 2007) refere-se
implicitamente aos nossos seguintes livros e textos: Sentido e Alteridade – Estudos sobre o pensamento
de E. Levinas, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000; Existência em Decisão – uma introdução ao
pensamento de Franz Rosenzweig, São Paulo, Perspectiva, 1999; O tempo e a Máquina do Tempo –
estudos de filosofia e pós-modernidade, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1998, especialmente p. 95161; Totalidade & Desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, Porto
Alegre, EDIPUCRS, 1996, especialmente p. 15-29 e 139-198; Metamorfose e Extinção – sobre Kafka e
a patologia do tempo, Caxias do Sul, EDUCS, 2000, p.9-21 e 107-115; e Sujeito, Ética e História –
Levinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1999.
3 Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, Paris, Kluwer Academic (Le livre de poche), p. 201.
4 LEVINAS, Emmanuel. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, p. 156-205 (utilizaremos esta edição
nas citações devido ao seu mais fácil acesso).
5 Cf. ROLLAND, Jacques. Parcours de l’autrement – Lecture d’Emmanuel Levinas, Paris, P.U.F., 2000,
p. 4.
648 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
abarcando em sua tessitura uma infinidade de sentidos parciais em constante interrelação, propõe-se simultaneamente a si mesma como uma espécie de reserva de
sentido do pensamento ético e da racionalidade que organiza os sentidos parciais e os
enfeixa em uma direção dada, ou seja, como origem ou envio à pré-originalidade da
pretensão de radicalidade que um tal pensamento comporta. Estamos, aqui,
extremamente longe tanto de esquematismos compreensivos ao estilo “MesmoOutro”, referidos a bipolaridades conceituais enganosas, quanto das interpretações
que tais esquematismos possam vir a sugerir. O problema tornou-se infinitamente
mais complexo, na medida em que abrange necessariamente um “colocar em questão”
do próprio estatuto da racionalidade (e de um determinado modelo, muito abrangente,
de filosofia) como um todo. A aproximação do tema da “substituição” envolve uma
reestruturação na hierarquia dos termos da realidade, ou seja, dos termos que
pretendam abordar filosófica e consequentemente a realidade, seja ela qual for6. O que
está realmente em jogo é o questionamento da possibilidade de reconstruir intelectualretrospectivamente a unicidade absoluta de um acontecimento excessivamente rico
para a moldura compreensiva que pretenderia abarcá-lo, mesmo a partir da
mobilização do infinito arsenal de sutilezas do espírito. A questão é de outra ordem.
Nem por isso, porém, caímos simplesmente no campo do inefável ou do
“indizível”, tal como normalmente se poderia conceber estes termos: defrontamo-nos
apenas com uma linguagem extremamente consciente de seus limites (e é de se
destacar que a obra filosófica levinasiana apresenta a estrutura geral de construção de
uma linguagem 7 ). Se for verdade, na inspiração wittgensteiniana, que minha
6 Sobre o tema da “substituição” no pensamento de Levinas, cf. entre outros FABRI,
Marcelo. Desencantando a ontologia – subjetividade e sentido ético em Levinas, Porto Alegre,
EDIPUCRS, 1996, p. 162-166; SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico – uma introdução ao
pensamento de Emmanuel Levinas, Porto Alegre-Petrópolis, EST-Vozes, 1983, p. 378-391;
WALDENFELS, Bernhard. “La responsabilité”, in: MARION, Jean-Luc. Emmanuel Levinas – Positivité
et transcendance, Paris, P.U.F., 2000, p. 259-283; LAHACHE, Stéphanie. “Le messianisme chez
Emmanuel Levinas – une éthique du pro-nom” in: Pardès – Revue européene d´études et de culture
juives 26, 1999, p. 259-269; além do monumental estudo de Elisabeth WEBER Verfolgung und
Trauma. Zu Levinas’ Autrement qu´être ou au-delà de l´essence, Wien, Passagen Verlag, 1990.
7 A diluição da questão no campo do indiferenciado viria a contrariar exatamente o fundamento
incontornável para a compreensão do problema como um todo. Não se pode olvidar que, para Levinas,
a temática da dessacralização do mundo e das estruturas normais da tradição é um dos temas centrais
de seu trabalho, e condição sem a qual não se compreende a estruturação de seu pensamento. Cf. FABRI,
Marcelo. Desencantando a ontologia: subjetividade e sentido ético em Levinas, Porto Alegre,
EDIPUCRS, 1996, p. 14 “..(para Levinas)...Uma filosofia do “Sagrado” não pode atingir o humano
verdadeiro. No universo “pagão”, os seres são reduzidos a funções e papéis. São figuras. Não existem
como rosto. O poder do rosto está no fato de que ele apresenta uma noção de verdade como expressão,
e não como desvelamento de um neutro impessoal... A nostalgia da terra e do solo, religada a um
universo sacral, é sinal de violência e de guerra”. Sobre a questão da linguagem em Levinas, cf entre
Ricardo Timm de Souza | 649
linguagem é o limite de meu mundo, também é verdade que minha linguagem não é o
limite do mundo do Outro, pelo menos enquanto é realmente o mundo do Outro, e não
o simulacro de alteridade que eu sou perfeitamente capaz de pensar; e qualquer
proposição limitativa neste sentido padece do delírio da onipresença – de meu mundo
sei eu, e não sei senão de meu mundo. Tudo o que diga com respeito a “outros mundos”
– o mundo do Outro propriamente dito – não é certamente, para mim, questão de
mero saber.
Mas estas distinções correm o risco de permanecerem retóricas, no pior sentido
do termo, caso não se aprofundem as raízes que levam realmente à origem da questão.
E isto envolveria uma retrospectiva extremamente complexa em termos de
acompanhamento do itinerário filosófico levinasiano, o que, por sua vez, não é garantia
de relevância de suas estruturas primigênias
8
. Primariamente, o tema da
“substituição” – um dos “últimos” e mais sofisticados deste pensamento - envolve uma
tal gama de elementos, que sua compreensão cabal somente se poderia dar, a rigor, no
acompanhamento arduamente reconstrutivo da obra levinasiana como um todo. Um
plano de aproximação “direto”, porém, não é, em princípio, inviável, e se torna possível
a partir da mobilização de certos elementos decisivos que podem vir a compor a
estrutura compreensiva essencial da questão.
Este plano de abordagem mais direto da questão da substituição envolverá,
porém, um retorno a uma estrutura básica de compreensão das próprias origens do
pensamento que difere radicalmente das estruturas formais “normais” dos modos
correntes de operação da filosofia ocidental e envia a um universo de inteligibilidade
bastante diverso das tradições cognitivo-objetivantes tradicionais, mesmo em suas
dimensões mais sofisticadas, dialéticas e fenomenológico-correlativas9.
O propósito deste texto é investigar esta segunda possibilidade compreensiva
da temática da “substituição” na obra levinasiana. Para tal, porém, é necessária a
outros: WIEMER, Thomas. Die Passion des Sagens, Freiburg, Alber, 1988; FERON, Etienne. De l´idée
de transcendance à la question du langage, Grenoble, J.-Millon, 1992.
8 Como introduções gerais ao pensamento de Levinas, sejam destacadas as seguintes obras: o já
clássico O homem messiânico – uma introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas, de L. C. SUSIN
(Porto Alegre-Petrópolis, EST-Vozes, 1983); BECKERT, Cristina. Subjectividade e Diacronia no
pensamento de Levinas,Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 1998; CHALIER,
Catherine. Levinas e a utopia do humano, Lisboa, Instituto Piaget; CIARAMELLI,
Fabio. Transcendanece et Ethique – Essai sur Levinas, Bruxelles, Ousia, 1989.
9 Cf. SOUZA, R T. “Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade – estações de uma história
multicentenária” in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade – Onze estudos sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000.
650 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
recorrência a alguns temas fundamentais do pensamento de um autor sem o qual a
compreensão da obra própria obra levinasiana é virtualmente inviável: Franz
Rosenzweig. A referência é, aqui, aquilo que temos chamado de “intuição pré-original
da multiplicidade ou da pluralidade”10, sem a qual nem o pensamento de Rosenzweig
nem de Levinas, nem ainda de outros autores – seja aqui citado, apenas a título de
importante exemplo entre muitos outros, W. Benjamin 11 – é compreensível em
algumas de suas dimensões realmente decisivas.
Assim, esta estrutura de análise - referenciada nos desdobramentos de intuições
fundamentais do pensamento do autor - abre uma outra dimensão de leitura, e esta
em um nível que consideramos nitidamente mais relevante do que a reproposição
analítica de suas idéias fundamentais. Pois este texto pretende avançar ao ponto em
que se evidencie que a inteligibilidade de um dos mais complexos temas de Levinas –
a idéia de “substituição” – pressupõe a inteligibilidade de estruturas compreensivas
prévias, as quais não se dão endogenamente à leitura do texto levinasiano – o que, por
certo, explicará algumas das razões da radical incompreensão que muitas vezes
envolve a recepção de temas cruciais no pensamento deste autor.
E, por sua vez, um tal desenvolvimento procurará tornar mais clara a passagem
da fenomenologia à metafenomenologia ética, operada por Levinas ao longo de seus
escritos, sob as mais diferentes formas circunstanciais de abordagem12.
Em termos estruturais, o presente texto seguirá os seguintes passos:
Em um primeiro momento, serão analisadas as proposições levinasianas a
respeito do tema da “substituição”, tal como aparece em Autrement qu´être ou audelà de l´essence. Em uma segunda etapa, será investigada sua base de inteligibilidade
segundo as idéias acima propostas e, finalmente, em um último passo, correlações,
evoluções e afastamentos serão reconsiderados, em um nível de maior profundidade,
na síntese final.
10 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de Souza. Existência em decisão – uma introdução ao pensamento de
Franz Rosenzweig, São Paulo, Perspectiva, 1999, p. 21-28.
11 Cf. SOUZA, R. T. “Alteridade e Citabilidade – Benjamin e Levinas”, in: VERITAS – revista de Filosofia
da PUCRS, Porto Alegre, n. 2, junho de 2000, p.267-272.
12 Cf. nosso Sujeito, Ética e História..., Op. cit., p. 56-78.
Ricardo Timm de Souza | 651
I Substituição e sentido – o tema da “Substituição” em Autrement qu´être
ou au-delà de l´essence
1 Subjetividade e Identidade
O capítulo IV de Autrement qu’être..., “A substituição”, traz como epígrafe um
verso de um poeta caro a Levinas: Paul Celan - “Ich bin du, wenn ich ich bin”
(literalmente, “eu sou tu, quando eu eu sou”) 13. Este simples verso sugere já uma
complexa intriga da subjetividade, como que desautomatiza o sujeito em seu processo
atemporal de auto-compreensão: a minha subjetividade real depende de bem mais
fatores do que, simplesmente, do fato de eu “sentir-me eu” ou como tal perceber-me
de um ponto de vista intelectual em oposição ao não-eu. Trata-se de problematizar de
forma nítida a passagem excessivamente rápida da autoconsciência à subjetividade.
O início desta seção recapitula um tema claro a Levinas, a saber, se a vida
intelectual como tal se dá apenas segundo os parâmetros “normais” ocidentais, ou seja,
na consciência, na exposição do ser, no saber14. O título da seção inaugural do livro
introduz a dimensão de fundo: “Princípio e anarquia”.
Levinas retoma, ao início do texto, a questão, tão antiga e importante, da
consciência que conhece. Como conhece a consciência? Como se “autoconhece” o
consciente? Este processo é examinado desde uma dupla perspectiva, de auto e heteroconhecimento: desde a consciência que temos “de” algo, algo que identificamos a partir
de sua silhueta e portanto conhecemos ao identificarmos a silhueta “com” algo, e
desde a posse de si que significa “apossar-se” de si através do decorrer das “fases
temporais” – os cortes temporais que nos dilatam para além de meros limites formais,
fazendo com que uma contínua “reintegração de posse” seja necessária ao longo das
quais nos afastamos de nós mesmos para nos (re)encontrarmos conosco mesmos, em
que o ser de cada um se “re-possui” e se “expõe” à verdade15. Tanto em um quanto em
outro caso, trata-se de algo que conduz a uma determinada síntese ideal que permite
que o conhecimento se proclame como tal – “repousa sobre uma misteriosa operação
AE, p. 156.
Cf. AE, p. 157.
15 Cf. AE, p. 156: “Na relação com os seres que se chama consciência, nós identificamos estes seres
através da variedade de silhuetas onde eles aparecem; na consciência de si, nós nos identificamos
através da multiplicidade de fases temporais: como se a vida subjetiva, sob as espécies da consciência,
consistisse, para o ser mesmo, em se perder e em se reencontrar para se possuir mostrando-se,
propondo-se como tema, expondo-se na verdade”.
13
14
652 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
no esquematismo na linguagem, graças ao qual uma idealidade pode corresponder à
dispersão de aspectos e de imagens, de silhuetas e de fases” 16. O conhecimento, de
qualquer gênero, é o limite inultrapassável da empiria – “Tomar consciência de um ser
é pois, sempre, para este, ser tomado através de uma idealidade e a partir de um Dito17.
Inclusive um ser empírico individual é algo que se aborda através da idealidade do
logos”18. O que temos realmente aqui é um reenvio à essência, uma aventura ontológica
de reencontro com a arché 19 , pois “para a tradição filosófica do Ocidente, toda
espiritualidade dá-se na consciência, na exposição de ser no saber” 20, um encontro
consigo mesmo.
Assim, esta aventura da consciência que procura a posse de ser no saber não é
uma aventura propriamente dita, na medida em que não sobra espaço para o
realmente desconhecido, nos termos de que a realidade (ainda) desconhecida se
aninha na arché, se manifesta e se amolda à procura da consciência que
necessariamente acabará por coincidir consigo mesma no ser do procurado; “tudo se
articula no movimento da essência”21.
Existem outras formas de aproximação com o real, porém: como “proximidade”.
“Proximidade”
significa
aproximação
que
primordialmente
é contato e
não
equacionamento intelectual do contatado: não é uma saber, mas uma base original
possível do saber que, porém, não se substitui, em nenhuma hipótese, a esta base
original; trata-se de uma questão de outra ordem: “buscando na linguagem por detrás
da circulação de informações o contato e a sensibilidade, ensaiamos descrever a
subjetividade como algo irredutível à consciência e à tematização” 22 . Na ordem
temporal, a tematização – mesmo da consciência de algo e da auto-consciência –
emerge depois da emergência do tematizável; e é por isso que o tematizável é
AE, 157.
“Dito” (Dit) tem, para Levinas, um sentido especial: trata-se do conceito expresso, que pretende
subsumir em si as virtualidades da linguagem da qual se origina e que se refere à realidade que é “dita”;
sugere uma forte conotação “atemporal” do conceito que sobrevive e perdura, exatamente, apesar das
vicissitudes do tempo. “Dito” opõe-se a “Dizer” (Dire), que indica o processo de “ir dizendo”, a
aproximação e constituição da realidade através da linguagem que não se substitui a esta realidade, mas
se dá ao longo do tempo desta aproximação: não há “dizer” sem ser no tempo que decorre e que permite
justamente o dizer. Sobre o Dito e o Dizer no pensamento de Levinas, cf. no próprio Autrement..., p. 5599; WIEMER, Thomas. Die Passion des Sagens – Zur Deutung der Sprache bei Emmanuel Levinas
und ihrer Realisierung im philosophischen Diskurs, Freiburg, Alber, p. 154-217; ROLLAND,
Jacques. Parcours de l´autrement – lecture d´Emmanuel Levinas, Paris, P.U.F., 2000, p.167-203, etc.
18 AE, p. 157.
19 Cf. AE, p. 157.
20 AE, p. 157.
21 AE, p. 157.
22 AE, p. 157.
16
17
Ricardo Timm de Souza | 653
“tematizável”: porque, em “já existindo” previamente, se dá às agudas sutilezas do
intelecto identificante.
Mas esta proximidade, este contato, esta a-proximação, não se dá com um
neutro ou com uma indiferença, caso em que nada de novo ocorreria realmente, já que
a indiferença ou a neutralidade, neste sentido, não se opõem realmente ao que se lhes
“opõem”, mas lhe oferecem apenas sua “indiferenciação”. Assim, a proximidade
somente se pode dar com o eminentemente não-neutro: “A proximidade apareceu
como a relação com o Outro, que não pode resolver-se em ‘imagens’ nem se expor como
tema; (relação) com o que não é desmesurado com relação à arché da tematização, mas
incomensurável, com o que não mantém a identidade do logos kerigmático, colocando
em questão todo esquematismo” 23 . O Outro porta um sentido de significação
totalmente distinto daquele da correlação; sua significação consiste justamente não
em um correlato para além do poder da visão intelectual (seria ainda um co-relato),
mas, sim, no transcender dos esquemas significativos correlacionais, e em persistir
“com sentido de realidade” para além das determinações de sentido da mera
figuração intelectual de sentido.24
Estamos aqui em um ponto capital para compreender a inversão que se
processa. Superamos, pelo encontro, a tentação que a expressão “separação absoluta”
pode sugerir, com seus corolários de indizibilidade; mas também superamos a
tautologia do auto-encontro da consciência intelectual que encontra o ser, ao
declinarmos de uma estrutura de encontro na qual o efetivamente relevante seria antes
a estrutura (inclusive a estrutura cognoscitiva, ou principalmente esta) e não
o encontro propriamente dito. Pois, agora, nenhuma imagem do Outro pode vir a
substituí-lo na intriga do encontro, já que “é minha responsabilidade para com o outro
quem forma o para da relação, a mesma significância da significação que significa
no Dizer antes de mostrar-se no Dito. Um-para-o-outro: quer dizer, a significância
mesma da significação!”25. O sentido de um encontro neste nível é a sua ocorrência, e
não sua descrição ou sua representação intelectual; descrição ou representação, ainda
que tão fiéis quanto possível à realidade, não podem criar nem a priori nem a posteriori
o sentido do encontro: apenas “recriá-lo”, segundo as regras que se dão através deste
sentido mesmo, e somente através dele. Descrição, representação chegam ou cedo,
AE, p. 157-158.
Cf. AE, p. 158.
25 AE, p. 158.
23
24
654 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
ou tarde demais, e configuram sempre “tematizações” de um fato e de uma realidade
– e o que “aqui conta é o rechaço a deixar-se amansar ou domesticar por um tema”26.
Eis que temos, então, a inscrição de um fato propriamente novo no campo das
possibilidades da realidade, um fato que as possibilidades prévias não podem dar
conta, na medida em que estão ou “antes” ou “depois” de seu acontecimento
propriamente dito: “anarquicamente a proximidade é assim uma relação com uma
singularidade sem a mediação de nenhum princípio, de nenhuma idealidade” 27.
O que está aqui realmente em questão é a ruptura de qualquer possibilidade
de neutralidade na ordem da realidade que se desenha no encontro com o
propriamente outro. Chegamos aqui ao enunciado de uma idéia central nesta
argumentação:
Esta incomensurabilidade com respeito à consciência, que se converte em vestígio
(trace) de não sei de onde, não é a inofensiva relação do saber onde tudo se iguala,
nem a indiferença da contiguidade espacial... é já assignação, de urgência
extrema... Temos chamado de obsessão a esta relação irredutível à consciência...
irredutível à consciência inclusive se a transtorna, a obsessão atravessa a
consciência a contrapelo, inscrevendo-se nela como estrangeira: como
desequilíbrio, como delírio... movimento an-árquico no sentido original do
termo.28
Ocorre então como que uma estranha intrusão na lógica da boa consciência; o
elemento
central
a
destacar
aqui
é
o
termo desequilíbrio:
uma obsessão
desequilibrante, que não se dá à racionalidade que a poderia resolver em bons termos
(a racionalidade da consciência propriamente dita), mas que passa a se constituir, ela
mesma, em substância da própria racionalidade, conduzindo, com esta subversão, a
um status anárquico paradoxalmente “de origem”: originante da história que se
desenrola a partir do choque intrusivo e do novo tipo de racionalidade da qual este
choque é, também ele, elemento desencadeador. O choque, enquanto evidência de
absoluta não-neutralidade de um encontro, é traumaticamente fecundante em seu
processo de desestruturação do organizado29. Por que isso? Porque a “anarquia não
pode ser soberana como é a arché. Não pode senão perturbar, mas de um modo radical,
AE, p. 26.
AE, p. 158-159.
28 AE, p. 159.
29 Cf. SOUZA, R. T. “Traumatismo e Infinito – esboço de uma metafenomenologia do infinito ético” in:
SOUZA, R. T. Totalidade & Desagregação..., Op. cit., p. 179-198.
26
27
Ricardo Timm de Souza | 655
o que torna possíveis os instantes de negação sem nenhuma afirmação”30. “A anarquia
detém o jogo ontológico”31, precisamente porque não permite a síntese lógica em um
presente ex-planativo que enviasse a alguma figura “arcaica” de origem e acabasse
coincidindo com sua própria identidade, reiniciando o jogo da neutralização do
diferente através da anulação das distâncias reais que medeiam os diferentes.32
É evidente, portanto, que não se trata de descobrir, nos escaninhos mais
recônditos da consciência, um determinado “espaço seguro” para a alteridade, mas,
sim, trata-se de negar, pelo levar a sério do fato do trauma, tal recorrente tentação
intelectual. O vestígio, o rastro, escorrem para fora de suas figurações, carnalizam-se
para além da idéia da carne; tornam-se correlativamente tão insignificantes que
escapam à apreensão e ao paralelismo: uma espessa passividade intrusa numa
consciência
33
, uma conturbação in-descritível da lógica do sentido claro e
autorreferente, intrusão e conturbação estas cuja determinação maior de
existência consiste justamente em não poder ser articulada em uma constelação de
existentes, por mais sutil que esta seja. Sua realidade é o que não se dá segundo as
regras de identificação do real como real, mas eflui apesar das infinitas teias
classificatórias. Incômoda presença.
Trata-se assim de uma inversão da própria proveniência do sentido, ou da
própria idéia de sentido, incapaz de conter um sentido para o qual não dispõe de
estruturas de adequação: contenção das engrenagens onto-lógicas:
Em uma responsabilidade que não se justifica segundo nenhum compromisso
prévio – na responsabilidade por outrem – na situação ética, que se esboça a
estrutura meta-ontológica e meta-lógica desta Anarquia, desfazendo o logos em
que se inscreve a apologia segundo a qual a consciência sempre se retoma e ordena.
Paixão, absoluta na medida em que é surpreendente sem a priori algum. Por
conseqüência, consciência afetada (atteinte) antes de fazer idéia do que a ela vem,
afetada apesar dela mesma. Nós reconhecemos por sob estes traços a perseguição,
colocação em questão anterior ao questionamento e responsabilidade para além
do logos da resposta. Como se a perseguição por outrem estivesse no fundo da
solidariedade com outrem. Como uma tal Paixão pode ter lugar e tempo na
consciência?34
AE, p. 160, nota 1.
AE, p. 160.
32 Cf. AE, p. 161.
33 Cf. AE, p. 161. Cf. também: “Há que insistir nesta exterioridade. Não é objetiva ou espacial, não é
recuperável na imanência para colocar-se sob a ordem e na ordem da consciência, mas é obsessiva, nãotematizável e anárquica, no sentido que acabamos de definer” (AE, p. 161).
34 AE, p. 162.
30
31
656 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Eis então toda uma nova e inquietante intriga da subjetividade: eu, consciência
encarnada, consciência pensante, vejo-me radicalmente afetado pelo que não sou eu
–
...estou assinalado sem recurso, sem pátria, já reenviado a mim mesmo, mas sem
me poder manter aí(...) Nada que se pareça à consciência de si, isto que não tem
sentido a não ser como surgimento em mim de uma responsabilidade anterior ao
compromisso, quer dizer, de uma responsabilidade por outrem. Eu sou um e
insubstituível – um enquanto insubstituível na responsabilidade... nada que se
assemelhe à consciência de si...35
O meu ser-um tem apenas uma referência: não se trata de uma determinação
da consciência reflexiva, ou da súbita auto-apreensão de minha existência, ou da
constatação de minha solidão existencial, ou da distinção lógica-ontológica que eu seja
capaz de fazer entre eu e os outros. Esta referência, subsistente ao jogo de espelhos que
configura o recorrente autorreconhecimento da consciência ingênua, é a alteridade de
Outrem que invade minha ordem e desarticula, com sua presença, o mundo que eu
posso compreender; sou reenviado a mim mesmo e não me acho em mim mesmo, não
coincido mais comigo mesmo, como nos tempos da boa consciência, cindido que estou
entre meu eu tornado insuficiente pela visita inoportuna da alteridade e meu eu
exigido desde fora de mim enquanto subjetividade para além da lógica das estruturas
reflexionantes, insuficientes para dar conta de meu peso e do peso de minha
responsabilidade pelo des-conhecido. Estou assoberbado, até o fundo de minha
medula existencial, pela impossibilidade de resolver racionalmente o enigma do
encontro com Outrem36; nada avançará, a não ser que Outrem seja levado a sério de
uma forma para a qual a especulação, por mais poderosa que seja, não oferece
esquadro. Sou, sem as armas de minha razão toda-poderosa, pequeno demais para um
tal choque, e, não obstante, tal choque não significa uma aniquilação, mas um
espantoso chamamento ao assumir de minha mais própria resposta a este choque.
Esta
é,
então,
segundo
esta
estrutura,
a
própria
estrutura
de minha subjetividade: “sub-estar” à exigência absoluta de Outrem (exigência de
outrem manter-se Outrem apesar de todas as minhas tentações de resolver
o mistério em que se configura seu aparecer) sem, nem por isso, desaparecer por sob
AE, p. 163.
Sobre a questão da alteridade enquanto “enigma”, cf. SOUZA, R. T. Sujeito, Ética e História..., op.
cit., p. 71-78. Sobre o tema da “subjetividade” tal como tratado nesta seção, cf. AE, p.206-219. Cf.
também Marcelo FABRI, desencantando a ontologia – subjetividade e sentido ético em Levinas, Op.
cit., especialmente p. 154-161 e 185-198.
35
36
Ricardo Timm de Souza | 657
a gravidade que significa o que não se resolve segundo meus esquemas
compreensivos, mas existir desde o assumir desta gravidade enquanto substância de
minha própria possibilidade de existir enquanto sujeito. Isto é minha subjetividade
real, e não uma idéia que eu dela tenha nos intervalos em que me sinto flutuar em meio
à indiferenciação dos seres, ou em meus translocamentos racionais: minha
subjetividade dá-se em uma situação-limite dilatada, em um instante de decisão em
que não posso ser senão eu mesmo, de forma radical, sem me descolar, por qualquer
artifício da razão, da situação em que sou eu mesmo: o encontro com o que não sou
eu.
E é do encontro com o que não sou eu – com o Outro propriamente dito, para
além de quaisquer projeções sob a forma de alter ego – que a questão da identidade
retoma sua pregnância. Sou idêntico a mim mesmo não na medida em que me
identifico simplesmente comigo mesmo, mas somente e na medida em que esta
identificação é, pura e simplesmente, injustificável por si mesma, com suas razões e
legitimações, mas quando, no tempo, inscreve, pelo assumir da incerteza de um
encontro ético com outrem, uma inelutabilidade mais sólida do que qualquer autofiguração. Sou eu, e apenas eu, e eu somente, quando minha inscrição na ordem dos
acontecimentos é indelével eticamente, quando até mesmo a carregada palavra
“existência” é excessivamente fraca para dar conta de quão profunda é esta inscrição
que está infinitamente além de mim. Reduzo-me então à plena dimensão de minha
responsabilidade, e minha subjetividade – “empírica ou contingente, mas que resiste,
em seu permanecer (stance), à erosão do tempo e da história; quer dizer, ferida pela
morte, que é sempre violenta e prematura”37 – alça-se à posição de decisões definitivas
na responsabilidade que assume – não por uma condenação, mas por sua
própria possibilidade de constituição- pelo que não é ela, e nesta escolha se
constituindo propriamente.
2 Substituição
Não estamos aqui em nenhum status de tranquilidade gloriosa, mas
exatamente em meio a um dilaceramento –
37
AE, p. 168.
658 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
A responsabilidade para com os outros não foi um retorno a si mesmo, mas uma
crispação desesperada, que os limites da identidade não podem reter. A
recorrência se converte em identidade ao fazer com que se rompam os limites da
identidade, o princípio do ser em mim, o intolerável repouso em si da definição. Si
mesmo, aquém do repouso: impossibilidade de retornar de todas as coisas para
não ocupar-se mais que de si, mas manter-se a si mesmo devorando-se. A
responsabilidade do eu na obsessão é uma responsabilidade do eu com respeito
àquilo que este eu jamais teria desejado, ou seja, respeito aos outros.38
Não se trata, portanto de um novo jogo, ao estilo dos jogos da tradição
ontológica. Não culmina no instante de autoglorificação onde a identidade, apesar
de tudo, simplesmente “se deu”, ainda que por vias absolutamente insuspeitas; este
não é senão um passo, embora “inédito na história do ser”. O que se anuncia é a
radicalização da intrusão da alteridade em todo mundo ordenado, a de-composição de
qualquer ordem prévia, a desconstrução dos sentidos anelados na lógica das conexões
temporais controláveis:
Esta anarquia da recorrência a si, para além do jogo normal da ação e da paixão
onde se mantém – onde é – a identidade do ser, aquém dos limites da identidade,
esta passividade sofrida na proximidade por meio de uma alteridade em mim, essa
passividade da recorrência a si que, não obstante, não é a alienação de uma
identidade traída. Que outra coisa pode ser senão a substituição de mim pelos
outros?39
Mas não se trata de algum tipo de alienação, na exata medida em que
responsabilidade – ou a capacidade exercida de resposta, condição para a substituição
mesma – é o inverso perfeito do simplesmente perder-se no além-de-si. Não esvaziado
de si mesmo a ponto de constituir-se numa fragilidade expiatória, mas insuflado de
vida que não se metaboliza a partir dos poderes da imanência: “Pelo outro e para o
outro, porém sem alienação: inspirado”40. Antes seria como que um “achar-se paraalém-de-si” e de seus poderes, “como ser-em-sua-pele, como ter-o-outro-em-suapele”41.
Substituição: a inversão total do sentido e a falência das dicotomias, fixação da
minha absoluta condição de insubstituível nela mesma, inversão da identidade,
AE, p. 181.
AE, p. 181.
40 AE, p. 181.
41 AE, p. 181.
38
39
Ricardo Timm de Souza | 659
paradoxal libertação do infinito peso das exigências recorrentes da identidade sempre
ameaçada pelo tempo:
Nesta substituição em que a identidade se inverte, nesta passividade mais passiva
que a passividade conjunta do ato, para além da passividade inerte do designado,
o si-mesmo se absolve de si. Liberdade? Outra liberdade, diversa da(quela) da
iniciativa. Mediante a substituição dos outros, o Si-mesmo (Soi-même) escapa
à relação. No limite da passividade, o Si-mesmo escapa à passividade ou à
inevitável limitação que sofrem os termos na relação; na incomparável relação da
responsabilidade, o outro não limita o mesmo, mas é suportado pelo que limita. É
aqui em que se mostra a sobredeterminação das categorias ontológicas, que as
transforma em termos éticos. Nesta passividade, que é a mais passiva, o si-mesmo
(soi), eticamente, se libera de qualquer outro e de si.42
Subjetividade: o si-mesmo liberto do peso de si mesmo e de qualquer outro que
tenha nele sua referência de sentido e realidade. Infinitamente leve, na medida em que
não necessita suportar-se ontologicamente a si mesma, sem descanso, em um jogo
perpétuo de espelhos, em recorrentes estruturas auto-identificantes, para sentir-se
real; e infinitamente pesada, no sentido de que é capaz de conter infinitamente mais
do que pode conter, infinitamente mais do que se poderia pensar – é capaz de suportar
o infinito ético, ou seja, a diferença real, o novo, sem que este novo signifique pura e
simplesmente o derribar de qualquer impulso de existência, ou a colocação em questão
da própria condição de conceber a existência, como geralmente acontece no passado
da ontologia. “Identidade em diástase, a coincidência vem a fracassar para si
mesma”43: não se encontra a si mesma, mas encontra apenas a alteridade radical com
relação a ela.
Responsabilidade: anterioridade absoluta à idéia de liberdade, a qual pressupõe
uma identidade livre, expressa-se em sua forma mais própria na anterioridade da
responsabilidade que, enquanto responde, responde não só a si, mas a todos os
outros:
Instauração de um ser que não é para si, que é para todos - ao mesmo tempo ser
e
desinteresse;
o para
si significando
consciência
de
si, para
todos, responsabilidade para com os outros, suporte do universo. Este modo de
responder sem compromisso prévio – responsabilidade para com o outro – é a
fraternidade humana propriamente dita, anterior à liberdade.44
AE, p. 181.
AE, p. 182.
44 AE, p. 184.
42
43
660 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Estamos fora do alcance do representável: a si mesma, a responsabilidade não
se re-presenta, apenas se a-presenta enquanto cisão de uma identidade que não se
completa em sua idéia. No mundo que as clarezas abandonaram, sobram vestígios de
um outro tempo, outro espaço, do Outro; é pelo outro que a responsabilidade é capaz
de viver, já que não é capaz de dar as respostas a si mesma, desenraizou-se de sua
arché ao desidentificar-se de sua idéia; capaz apenas de sofrer a anarquia extrema dos
traços, dos vestígios de uma presença ausente, de um outro tempo que ainda
permanece no seu tempo ou que ao seu tempo reenvia ou ainda não chegou:
desarticulação da idéia de certeza, sobrevivência no inusitado da diferença real45:
O olhar (visage) do outro na proximidade, mais que representação, é vestígio
irrepresentável, modo do Infinito. Não é porque entre os seres exista um Eu, ser
que persegue fins, que o Ser adquire uma significação e se converte em universo.
É porque na aproximação se inscreve ou se escreve o vestígio do infinito – vestígio
de uma partida, mas vestígio daquilo que, desmesurado, não entra no presente e
inverte a arché em anarquia – que há o abandono pelo outro, obsessão pelo outro,
responsabilidade e Si-mesmo.46
Ao contrário do que se poderia ter pensado, portanto, não se trata de uma
espécie de falência do sujeito, mas do levar às últimas conseqüências o débâcle que a
própria idéia de subjetividade se autoimpôs ao procurar nela mesma e não mais que
nela mesma – em sua autoprodução autorreferenciada - seu último fundamento.
Também não se trata de algum tipo de estruturalismo, onde um sujeito infinitamente
fracionado ou pulverizado, virtualmente invisível, acontece como se não existisse.
Trata-se simplesmente da re-apreensão de uma referência de si que porém,
paradoxalmente, não encontra em si sua real instância de realidade, ou seja, que não
se legitima apenas porque se concebe; mas que se concebe apenas porque sua solidez
advém do mais além, da alteridade que é incapaz de conceber – ou que, em se
concebendo, permanece como não mais do que, exatamente, uma concepção
arbitrária que poderia simplesmente não existir, e se atrofia em sua tendência à
endogenia. Estamos aqui em um ponto de inteligibilidade muito complexa; a
subjetividade, enquanto suportando a si mesma, não pode não existir, pois que sua
existência é o que configura sua capacidade de suportar sem a qual não é, a rigor, nem
ao menos concebível. E a forma deste “não poder não existir”, a forma desta existência
Cf. SOUZA, R. T. “Traumatismo e Infinito”, in: SOUZA, R. T., Totalidade & Desagregação..., op. cit.,
p. 188-191.
46 AE, p. 184.
45
Ricardo Timm de Souza | 661
inelutável, mais pesada que qualquer existência meramente contingente, é a
substituição. Uma vez inscrita na ordem da realidade, nada a transforma em não-real,
pois nada há na realidade que não carregue a sua marca indelével: a marca de se dar
enquanto suporte de toda uma estrutura de existência através da qual a alteridade
foi de fato suportada para além de todo o desconforto da razão. Indelebilidade,
insubstituibilidade – alicerces primordiais de uma subjetividade que transborda de
sua própria idéia, por mais rica que esta seja, que é o peso máximo de si mesma sem
ser somente si mesma, exatamente por não ser somente si mesma, mas de certo
mudo tudo o que não é si mesma: a alteridade. “O não-intercambiável por excelência,
o Eu (Je), o único, substitui-se aos outros. Nada é jogo. Assim se transcende o ser” 47.
O eu: não mais idéia soberana, mas coágulo indelével no corpo da realidade, não pode
mais não existir, ainda que se precipite na correlação onto-lógica do Ser: o
“Nada”. Nada lhe poupa de sua “existência”, nem mesmo a idéia de nada, inconcebível
senão como correlação de ser. Há ser demais; “há” ainda por fora das demarcações
ontológicas; qualquer indiferenciação ontológica não conduz senão à espessura que
desborda todas as determinações, e em função das quais as de-terminações são
concebíveis 48 . Nada lhe poupa de sua “existência”, de sua realidade anterior à
dualidade essência-existência. E a estrutura de compreensão desta auto-realidade, se
pode assim ser chamada, se constitui no suportar a si mesma suportando o que não é
ela, o em princípio alérgico à sua própria idéia: a alteridade, ou seja, o desencontro de
si consigo mesma.
É necessário que bem se compreenda que a estrutura do auto-suportar-se não é
uma questão volitiva ou uma destilação intelectual, mas, antes, um acontecimento
incessante:
Não é somente que o eu (moi) seja um ser dotado de algumas qualidades, ditas
morais, que ele portasse como uma substância porta atributos ou de que ela se
reveste como acidentes em seu devir; é sua unicidade excepcional na passividade
ou a Paixão de Si, que é este acontecimento incessante de sujeição a tudo, de
substituição, o fato, para o ser, de se des-garrar (dé-prendre), de se esvaziar de seu
ser, de se postar ‘ao contrário’ e, se se pode dizer, o fato do ‘outramente que ser’,
sujeição que não é nem nada, nem produto de uma imaginação transcendental.
Não se busca nesta análise relacionar um ente, que seria o Eu, ao ato de substituirse, que seria o ser do ente49.
AE, p. 184.
Cf. a apresentação do “há” por Levinas in: Da existência ao existente, Campinas, Papirus, 1998.
49 AE, p. 184-185.
47
48
662 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Dar-se como uma subjetividade que se suporta apesar do insuportável que é,
para sua própria idéia – no melhor sentido do termo -, suportar-se desde o que não é
ela, cindida em sua auto-concepção aquém das bipolaridades concebíveis desde esta
cisão. Incessantemente acontecer – não poder não-ser – eis o que desautoriza
o ato soberano, a expressão clara e distinta da vontade pela qual a subjetividade
acabaria por se reapossar de si mesma, re-encetando a sutileza dos jogos
identificantes, que não podem ter vez porque a corrente do não poder não-ser é
excessivamente vigorosa. Eu como incessante ex-ceção do existir sem a debilidade
do meramente existir nem a robustez do existir apesar das tentação “tanáticas” da nãoexistência: anterioridade crispada a qualquer lógica de conciliação, atrito e trauma incessantes, passividade –
A substituição não é um ato, ela é uma passividade inconvertível em ato, aquém da
alternativa ato-passividade, a exceção que não se pode submeter às categorias
gramaticais como Nome ou Verbo, se tal não é no interior do Dito que os tematiza.
Trata-se da recorrência, que não se pode dizer a não ser como em si ou como o
anverso do ser, como de outro modo que ser. Ser-si-mesmo, outramente que ser,
se des-interessar, é portar a miséria e a falha do outro, e inclusive a
responsabilidade que o outro possa ter para comigo. Ser si mesmo – condição de
refém (otage) é ter sempre um grau de responsabilidade superior, a
responsabilidade com respeito à responsabilidade do outro.50
Substituição: em nenhuma hipótese um ato de mortificação – seria ainda um
ato, com motivações muito logicamente equacionáveis; não uma atuação no palco dos
iguais, ou uma fidelidade a um enredo piedoso; mas, apenas uma condição, a condição
de refém, condição incondicional (e neste sentido incondição), substância do eu
subsistente na subsistência do não-cessar.
Estamos aqui no cerne de uma estrutura de capital importância, a ser retomada
na próxima seção. O dilaceramento que a condição de refém evoca encontra seus
limites não ao fim de um itinerário atribulado – que poderia culminar em uma guerra
privada, em um sacrifício heróico ou em uma mortificação extrema -, mas,
exatamente, na origem de qualquer encontro humanamente significativo.
É pela condição de refém que pode haver no mundo piedade, compaixão, perdão e
proximidade, inclusive o pouco que de tudo isto se encontra, inclusive o simples
‘você primeiro!’. A incondição de refém não é o caso limite da solidariedade, mas
a condição de toda solidariedade. Toda acusação e perseguição, como toda
linguagem, recompensa, punição interpessoal, supõem a subjetividade do Eu
50
AE, p. 185-186.
Ricardo Timm de Souza | 663
(Moi), a substituição, a possibilidade de colocar-se no lugar do outro, que remete
à transferência do ‘pelo outro’ ao ‘para o outro’.51
Em outros termos, a incondição de refém é o assumir de uma fato originaloriginante: o de que não estou só no mundo, só com meus delírios, mas que, desde o
princípio, minha solidão – que é desde onde, necessariamente, eu “penso”, na medida
em que meço o diferente comigo mesmo52 – está absolutamente assoberbada pelo fato
ineliminável do para além de mim mesmo. Na origem dá-se o múltiplo, que é
condição, inclusive, para que se conceba a unicidade – voltaremos a este tema
adiante. E, neste sentido, ética e substituição se constituem, em certo sentido, em uma
obsessiva fidelidade a esta condição primigênia – pré-original - dos múltiplos.
O Eu (Moi) não é um ente ‘capaz’ de expiar pelos outros: ele é esta expiação original
– involuntária – porque anterior à iniciativa da vontade (anterior à origem), como
se a unidade e a unicidade do Eu fossem já a carga sobre si da gravidade do outro.
Neste sentido o Si mesmo é bondade ou está sob a exigência de um abandono de
todo ter, de todo o seu e de todo o para si, até a substituição (...) A individuação ou
sobreindividuação do Eu que consiste em ser em si, em sua pele, sem compartilhar
do conatus essendi de todos os seres que são seres em si, a individuação e a
sobreindividuação que consiste para mim em não ser com respeito a tudo o que
há, porque eu sou pelo respeito para com tudo o que há; isso é a expiação de ser.
O si mesmo é o fato mesmo de se expor por sob a acusação não assumível em que
eu suportava os outros, ao contrário da certeza do eu que se alcança a si mesmo na
liberdade.53
A responsabilidade não pode ser solipsista; uma evidência tão luminosa pode se
perder em estruturas de referência auto-conscientes – pois “a dominação está na
consciência como tal, e Hegel pensava que o Eu não é mais do que a consciência que
se domina na igualdade consigo mesma em meio àquilo que ele chama ‘a liberdade
desta infinita igualdade’” 54 . A responsabilidade é, paradoxalmente, de fora para
dentro; ela inverte a tendência de procurar a possibilidade da comunicação em um ir
de dentro para fora desde a coincidência da consciência consigo mesma 55 . A
comunicação “seria impossível se devesse começar no Eu, sujeito livre com relação ao
qual todos os outros não seriam mais que uma limitação que convida à guerra, à
AE, p. 186-187.
Cf. nosso cit. “Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade – estações de uma história
multicentenária”.
53 AE, p. 187-188.
54 AE, p. 161.
55 Cf. AE, p. 188.
51
52
664 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
dominação, à precaução ou ao informe”56. Há que levar a sério a “inversão radical” que
consiste em ir do conhecimento à solidariedade: comunicação propriamente dita,
inversão que consiste precisamente em abandonar a segurança que representa o
“diálogo interior57. “Na expiação, a responsabilidade com respeito aos outros, a relação
ao não-eu, antecede a toda relação do Eu (Moi) consigo mesmo”58. No princípio, dá-se
a diferença, mas a diferença não se dá em sua idéia. Assim,
Que a ênfase da abertura seja a responsabilidade pelo outro até a substituição –
o para o outro do desvelamento, da mostração ao outro invertendo-se em para o
outro da responsabilidade – esta é, em suma, a tese da presente obra.59
A inversão do conhecimento em responsabilidade conduz necessariamente a
uma conturbação da idéia tradicional de “verdade”, colocando em questão a idéia de
que a verdade somente possa ser concebida como uma “descoberta”. A procura
recorrente e absolutamente hegemônica na filosofia da verdade como certeza
intelectual bloqueia outras formas possíveis de concepção da própria idéia de verdade,
aferrada que esta é às determinação da autorreferência identificatória:
A idéia de que a verdade possa significar testemunho prestado ao Infinito nem ao
menos é suspeitada. Nesta pre-eminência da certeza, a identidade da substância
se toma como o eu, se chama mônada, e desde este momento é incapaz de
comunicar-se a não ser por milagre. Deste modo, se é conduzido a aproximar-se
de uma teoria de Cassirer e de Binswanger segundo a qual antes um diálogo prévio
mantém o Eu do que o Eu mantém uma conversação.60
Mas a concepção de verdade que se anuncia desde o desarticular das estruturas
monádicas de referência da subjetividade tem a ver com a des-identificação do mesmo,
e a verdade é, antes do que uma certeza, como que a própria fissura da idéia tradicional
de certeza: se não é possível que haja adequação entre diferentes sob pena da abdicação
da própria estrutura de alteridade que os sustenta enquanto, exatamente, diferentes,
então a relação entre diferentes é primordialmente inadequação por excelência, e esta
é a verdade – verdade enquanto inadequação – desta relação entre diferentes61. É por
isso que
AE, p. 189.
Cf. AE, p. 188-189.
58 AE, p. 189.
59 AE, p. 189.
60 AE, p. 190.
61 Cf. SOUZA, R. T. “Traumatismo e Infinito – esboço de uma metafenomenologia do infinito ético”,
in: Totalidade & Desagregação..., Op. cit., p.193-194; SOUZA, R. T. Sujeito, ética e história..., Op. cit.,
p. 137-143
56
57
Ricardo Timm de Souza | 665
A comunicação com outrem somente pode ser transcendência caso se constitua em
vida perigosa, como um belo risco a correr... O Outro absolutamente exterior só
por isto está próximo até chegar à obsessão. Proximidade e não certeza com
respeito à proximidade; não se trata de certeza sobre a presença do Outro, e sim
da responsabilidade para com ele sem a deliberação e a compulsão de verdades nas
que nascem os compromissos, sem certeza. É uma responsabilidade que me
compromete antes de toda verdade e de toda certeza, tornando ociosa a questão
da confiança e da norma, porque em seu sentido reto a consciência não é outra
coisa que ingenuidade e opinião.62
Estamos assim no limite do que se pode compreender, segundo o legado da
tradição, como verdade, comunicação, comunicação enquanto pretensão de
comunicar verdade. É bem além que nos posicionamos; além das boas intenções, na
medida em que o “altruísmo da subjetividade-refém não é uma tendência, não é a
benevolência natural dos filósofos morais do sentimento... é algo contra a natureza,
não-voluntário... algo anárquico”63. Além dos humanismos de conciliação, na medida
em que se percebe a intuição dos anti-humanismos, a qual “consiste em haver
abandonado a idéia de pessoa enquanto meta e origem de si mesma, onde o eu ainda
é coisa porque é ainda um ser”64 – este humanismo que “deve ser denunciado porque
não é suficientemente humano” 65 . Além, enfim, das consolações da filosofia das
essências, na medida em que as essências mostram seu verdadeiro peso absolutamente
opressivo e sua face violenta – “todo o sofrimento e crueldade da essência pesam sobre
um ponto que a suporta e a expia”66 – e que nela não se resolve.
Defrontamo-nos com uma aspereza radical, aspereza que significa a falência de
toda e qualquer estrutura auto-suficiente de compreensão conciliadora da realidade,
principalmente consigo mesma. Nenhuma promessa de conciliação indiferenciante
evita, ao pregar suas promessas, o des-pregar-se de suas ações, as quais, entre escolher
a futilidade ou a moral, ficam sempre com a primeira alternativa: é mais fácil jogar
– especular – com ela.
A todos estes jogos, a des-instalação referencial do conceito de verdade leva à
necessidade de que se compreenda que algo como “verdade”, neste contexto, perdeu
toda sua condição de sacralidade em oposição a uma determinada “falsidade”
meramente concebível; “verdade” só pode ser concebida como verdadeiro exercício de
AE, p. 190-191.
AE, p. 195.
64 AE, p. 203.
65 AE, p. 203.
66 AE, p. 199.
62
63
666 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
responsabilidade, ou seja de comunicação verdadeira – e “falsidade” é, inclusive, a
mais grandiosa “verdade” que permanece simplesmente encapsulada em si mesma. A
verdade perdeu seu lastro que a tornava, por vezes, até mesmo esmagadora em uma
relação; transforma-se na melhor salvaguarda possível de qualquer relação que descrê
que o recém-ocorrido esgotou a virtualidade do recém-anunciado. Desta forma, não
se acha a verdade em um nicho do cosmo ou do pensamento, mas se dá quando o
respeito à diferença se transforma em verdadeiro exercício de responsabilidade até a
substituição, desde a substituição da boa e luminosa consciência de si pela inquieta
aventura de uma subjetividade que, “hetero-afetada”67, apesar de todos os riscos e no
descontrole de sua própria identidade, vive a incomparável aventura de aceitar o forade-si.
II A originariedade da realidade: a multiplicidade como origem
Há alguns elementos decisivos na base de inteligibilidade de compreensão da
noção de “substituição” no pensamento de Levinas que apenas muito dificilmente são
compreendidos em sua real extensão e profundidade: verdadeiros pressupostos de
origem68. Implicitamente presentes nos momentos decisivos das articulações internas
deste pensamento, não necessariamente estarão presentes ao leitor que tenta
acompanhá-lo; fundamentais para a compreensão do pensamento levinasiano como
um todo e, especialmente, de suas proposições-limite 69 , ocupam um espaço de tal
importância nesta obra que dificilmente podem ser analiticamente destacados sem que
tal ato empreste à análise um certo teor de artificialismo – e, não obstante, sua
Cf. AE, p. 193.
Embora estejamos utilizando aqui, para as finalidades deste texto, a questão da “substituição” como
acesso à compreensão destes pressupostos, tais pressupostos se constituem antes, segundo nossa visão,
nos esteios profundo do conjunto da obra deste autor – em um outro nível que o da linguagem filosófica
utilizada.
69 Entendemos por “proposições-limite” aqueles momentos privilegiados na articulação da obra
levinasiana em que os limites da linguagem são simultaneamente atingidos e confessados, em que o
desdobramento discursivo se inverte em algo como uma redescoberta paradoxal da questão pelo sentido
do todo, da questão pela procura do sentido do sentido. Isto se dá em muitas situações nas quais termos
tradicionais no pensamento filosófico são utilizados desde uma forma de abordagem totalmente
inusitada, em uma reinvenção da linguagem que evitará a detenção conceitual das categorias,
reconduzindo-as a um fluxo de alta tensão e inacabamento que muitas vezes escandalizará o leitor
desavisado de Levinas; e é em categorias pesadas – justiça, religião, existência, linguagem, verdade,
desejo, liberdade – que tal situação é especialmente evidente (Cf. nosso texto “Traumatismo e Infinito
– esboço de uma Metafenomenologia do Infinito ético”, in: SOUZA, R. T. Totalidade & Desagregação...,
Op. cit., p. 179-198, que se constitui justamente em uma tentativa de ler Levinas desde este viés
“paradoxal”).
67
68
Ricardo Timm de Souza | 667
fundamental importância exige que a questão seja realmente levada a sério.
É neste sentido, e em acorde com o proposto à introdução deste trabalho, que
será desenvolvida, nesta seção, a análise de alguns dos termos fundamentais desta base
de pressuposição do pensamento levinasiano.
Para as finalidades deste texto, é suficiente que a abordagem se concentre em
torno a uma dimensão absolutamente fundamental nos termos acima propostos: a
questão da multiplicidade de origem.
Para que tal abordagem seja possível, porém, é necessário que a argumentação
seja proposta desde um outro nível do discurso que aquele que, na primeira parte deste
trabalho, tentou acompanhar a construção levinasiana: um discurso que mantenha à
vista as tensões entre formas diferentes até mesmo de conceber o que venha a ser – ou
possa vir a ser - a própria filosofia.
Os termos da questão
A proposição de algo como a “substituição ética” soará normalmente como
escandalosa à imensa maioria dos ouvidos filosóficos. Tal é perfeitamente
compreensível; ou será entendida como alguma espécie de arroubo heróico que
pouquíssimo ainda guarda em relação ao que normalmente se entende por “filosofia”,
ou – caso seja mantida a análise, com grande esforço, dentro de parâmetros
tradicionalmente concebidos como “filosóficos” – será provavelmente interpretada
como uma espécie de niilização do Eu, uma apologia, em nome de algum
imponderável, do vácuo daquele sentido que se enraíza no primeiro espasmo de um
sujeito que inicia a compreensão de si mesmo. É improvável que, ao leitor munido de
tal arsenal analítico, a verdadeira face da questão possa ser abordada – o que se verá
não é o tema como ele realmente se sugere, mas sim o inusitado conjunto de
proposições e idéias mobilizados para sua abordagem. Substituição sugere de algum
modo “tudo ou nada”, e ainda na mais delirante dialética tal oscilação é eventualmente
desagregante: pouco sobra, depois de uma tal radicalidade, que possa ser realizado ou
mesmo concebido.
Todavia, tal atitude de desconfiança, eventualmente muito saudável, é antes
credora de uma incompreensão fundamental do todo. E para que se aborde com
668 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
propriedade tal situação de incompreensão, faz-se necessária uma certa reconstrução
de alguns dados elementares da filosofia ocidental em suas linhas preponderantes.
O pensamento ocidental assume sua feição especificamente filosófica, no
sentido mais tradicional e consagrado do termo, desde a questão original
da diferença real 70 . Não houvesse algo como a Diferença, e se dariam apenas a
onipresença e a onisciência, impossibilidades evidentes de qualquer perguntar
filosófico. É porque, antes de qualquer pergunta ou consciência, dá-se a diferença, que
qualquer pergunta ou consciência são possíveis. A diferença seria como a préoriginariedade a partir da qual qualquer originariedade pode ser concebida. E seu
sentido de pré-originalidade se deixa perceber mesmo através de sua conceitualização
ou de seu acoplamento a uma determinada esteira de linguagem.
Porém, a diferença é também o escândalo original: é o transtorno de toda
tranqüilidade de espírito, de toda unidade, de toda solidão pensante que se identifica
e compraz consigo mesma ao se encontrar consigo mesma até mesmo “fora” de si –
por exemplo, ao captar um conceito ou constituir transcendentalmente um objeto -,
ao retornar a si após uma longa aventura, quase irreconhecível mas na realidade a
mesma: a fábula de Ulisses.
Assim, a posição do pensamento que se dirige à realidade, na sua modalidade
filosófica tradicional, é congenitamente determinada pela questão da identificação da
diferença: aquilo que se chama conhecer, seja qual for a modalidade que tal termo
assuma. O que o logos quer é recolher e re-conhecer a diferença, reconhecer-se a si
mesmo conhecendo a diferença, identificar-se a si mesmo desde este reconhecimento.
Em termos concretos, a questão das linhas maiores do pensamento de origem grega é
o exercício de uma tarefa incomodamente dupla: por um lado, anular a diferença (o
particular, o contingente, o temporal, o precário, o dispensável – radicalizados no nãoser) enquanto esta se constitui no escândalo da realidade que incomoda e chama à
filosofia; e, por outro lado, preservar ainda de alguma forma a diferença,
simplesmente para que o pensamento possa seguir pensando.
O resultado dos dilacerantes esforços para responder a esta dúplice questão de
base dá origem à lógica, ou seja, à diferença lógica, à diferença enquanto questão
lógica; e é aí que as mais variadas lógicas se tangenciam e mesmo se interpenetram,
Nesta seção, seguiremos a argumentação desenvolvida em nosso texto citado “Da nautralização da
diferença à dignidade da Alteridade – estações de uma história multicentenária”.
70
Ricardo Timm de Souza | 669
por mais diferentes que sejam sua crenças de fundo e seus modos de agir. E não deixa
de ser, nestes termos, uma trágica ingenuidade a crença de que, por exemplo, a lógica
dialética se constitui em alguma forma de oposição real ou absoluta à lógica formal.
Ambas têm, no fundo, um e um só problema: preservar a possibilidade de continuar a
pensar logicamente a realidade, ou seja, de identificá-la enquanto correlato do
pensamento lógico. Muito mais próximas do que pensam estar, devem esta
proximidade à sua origem absolutamente comum. Ainda lógicas muito avançadas,
como as que propõem uma determinada faixa de imponderabilidade na qual não
haveria a determinação no sentido tradicional dos termos, surgem exatamente para
tentar superar os impasses que o desacordo entre a realidade e sua figuração lógica
evidenciam.
Porém, esta fidelidade à origem traz consigo as conseqüências da duplicidade
acima sinalizada. No fundo, ocorre a necessidade de um optar.
O
pensamento
uma opção pela
ocidental
resolução
lógica
propõe-se,
da
em
realidade
suas
(aqui
linhas
gerais,
entendido
como
como
o
“equacionamento objetivo” da realidade, ou da questão da realidade) em detrimento
da preservação da diferença real; a obsessão pela unidade sobrepuja a provocação de
origem. A partir de um certo ponto – um ponto muito antigo -, o que não é logicamente
determinável enquanto realidade não é realidade, mas pura e simples não-existência e
não-ser.
A culminância de tal universo de pensamento se dá com os grandes sistemas
filosóficos, especialmente no idealismo alemão e em seus derivados.
Porém, no mais tardar a partir de meados do século XIX, é este modelo de
concepção de realidade que entra profundamente em crise, e não em crise colateral,
corrigível, mas em processo de desagregação de sentido – desagregação do sentido de
totalidade e de totalidade de sentido -, que acabará culminando nos grandes dramas e
dilemas civilizatórios do século XX71.
É a esta situação que uma imensa variedade de pensadores tenta se dirigir –
evidentemente, não apenas filósofos, mas exponentes os mais diversos de um
determinado corte histórico-cultural, atuando nas mais diferentes áreas da cultura, da
epistemologia à crítica musical e literária. Mas, no caso específico da filosofia, uma tal
Cf. nosso texto “O século XX e a desagregação da totalidade”, in SOUZA, R. T. Totalidade &
Desagregação..., Op. cit., p. 15-29.
71
670 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
preocupação é evidente. Herdeiros de um período de forte pessimismo históricocultural (em oposição, por exemplo, aos séculos do iluminismo, que se caracterizaram,
entre muitas outras coisas, por portarem uma acentuada verve otimista em relação à
resolução dos problemas do presente e do futuro), cada grande filósofo desta época é
obrigado a se ver com os desafios que a crise civilizatória da grande época na qual se
tornaram filósofos lhes propõe 72 . E é evidente que, no século XX, nenhum grande
pensador se pode simplesmente furtar a esta questão, simplesmente porque esta
é a questão a partir da qual o próprio fazer filosófico passa a ser concebido.
O que então emerge com inusitada energia é, novamente, a questão da
diferença; apenas que abordada desde infinitas nuances muito complexas, em
contextos os mais diversos. Não é tarefa excessivamente difícil mostrar que, não
obstante todas as imensas distinções, a inquietude do pensamento de autores tão
diversos como Bergson, Heidegger, Bloch, Adorno, Wittgenstein e muitos outros
respira uma mesma atmosfera de desencanto cultural-civilizatório. As abordagens das
grandes questões filosóficas do século XX trazem todas esta marca distintiva e
inconfundível; pouco “corroborativas”, imiscuem-se na concretude feita turbilhão que
constitui a inquietação do século XX; e a forma de como emergem desta aventura lhes
empresta a cada uma seu particular caráter73.
É neste contexto que tem de ser compreendida a contribuição de Franz
Rosenzweig à cultura do século XX. Muito mais do que um conjunto de apologias
curtas referentes a temas restritos – tal como parecem querer entender leitores
apressados de seus trabalhos -, sua obra monumental se consubstancia como um
gigantesco esforço de trazer à conturbação dos tempos uma nova oferta de
racionalidade74, uma racionalidade em que as tensões acima sugeridas sejam levadas
radicalmente a sério. Para além de suas inspirações evidentes – uma particular leitura
da filosofia, da história, do judaísmo, etc. -, o que transparece em Rosenzweig é a
preocupação constante de rescrever alternativas possíveis do século XX em termos de
Para maiores detalhes a respeito da abordagem filosófica da crise civilizatória da transposição século
XIX – século XX, cf. nosso texto citado à nota anterior.
73 Nos casos específicos de Husserl e Heidegger, conduzimos um exame pontual deste particular caráter
de recriação de sentido desde uma certa “arqueologia” da própria questão do sentido em nosso ensaio:
“Husserl e Heidegger; motivações e arqueo-logias”, in: SOUZA, R. T. O tempo e a Máquina do Tempo
– estudos de filosofia e pós-modernidade, Op. cit., p. 49-80.
74 As idéias a seguir apresentadas, aqui apenas sugeridas em sua generalidade mais significativa (bem
como dados bio-bibliográficos), encontram-se exaustivamente desenvolvidos em nosso Existência em
decisão – uma introdução ao pensamento de Franz Rosenzweig.
72
Ricardo Timm de Souza | 671
uma procura de sentido e inteligibilidade contemporâneos. Esta parece ser sua mais
profunda e real motivação: uma espécie de grandiosa oferta de paz (que não se
confunde absolutamente com aqueles arranjos conciliatórios que a Maurice Blanchot
pareceram tão insuportavelmente hipócritas75), uma mobilização de imensos recursos
racionais neste sentido de realidade, para além de qualquer suavidade que concorra
para o escamoteamento da questão da diferença. É nesta linha que Rosenzweig propõe
o que temos chamado sua “intuição original” 76 : a questão da “multiplicidade de
origem”.
Defendemos aqui a idéia de que a noção levinasiana de “substituição” não é
compreensível em sua radicalidade e abertura de perspectivas de interpretação sem
este prévio aporte do pensamento de Rosenzweig, o qual contribui indiretamente para
uma certa “completação’ da fenomenologia que conduz, por sua vez, à
metafenomenologia da Alteridade. A seguir, serão desenvolvidas mais detidamente
estas idéias.
A multiplicidade de origem
Nós destroçamos o Todo, cada parte é, agora, um Todo para si mesmo.
F. Rosenzweig77
Não temos, nesta seção, absolutamente nenhuma pretensão de sintetizar a
riqueza do pensamento de Franz Rosenzweig; eventualmente, no máximo, repassar ao
leitor não familiarizado com o pensador de Kassel uma pálida idéia da fecundidade de
sentidos que tal pensamento pode assumir 78 . A nossa questão, aqui, é enfocar a
Maurice Blanchot, em ‘Le Refus’, (“Le 14 juillet” n. 2, Paris, outubro de 1958, cit. por Herbert
MARCUSE, A ideologia da sociedade industrial, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 234): “O que nós
recusamos não é sem valor nem sem importância. É por causa disso que a recusa é necessária. Há uma
razão que nós não aceitamos mais, há uma aparência de sabedoria que nos causa horror, há uma oferta
de acordo e de conciliação que nós não entendemos. Uma ruptura se produziu. Fomos lançados a
esta franchise que não mais tolera a cumplicidade”.
76 Cf. Existência em decisão..., Op. cit., p. 21-28.
77 Der Stern der Erlösung, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1996, p. 28.
78 Sobre o conjunto da obra de Rosenzweig, cf., além de nosso citado Existência em decisão..., as
seguintes obras, entre outras: CHALIER, Catherine. Pensées de l’eternité – Spinoza, Rosenzweig;
CASPER, Bernhard. Das dialogische Denken – Eine Untersuchung der religionsphilosophischen
Bedeutung Franz Rosenzweigs, Ferdnand Ebners und Martin Bubers, Freiburg, 1967; MAYER,
Reinhold. Franz Rosenzweig – eine Philosophie der dialogischen Erfahrung, München, Kayser, 1973;
MOSES, Stéphane. L’ange de l’histoire – Rosezweig, Benjamin, Scholem, Paris, Seuil, 1992; MOSES,
Stéphane. System und Offenbarung – Die Philosophie Franz Rosenzweigs, München, W. Fink Verlag,
1985; SCHMIED-KOWARZIK, Wolfdietrich. Franz Rosenzweig – Existentielles denken und gelebte
Bewährung, Freiburg/München, Alber, 1991; MÜNSTER, Arno (Org.). La pensée de Franz
Rosenzweig. Paris, P.U.F., 1984; FABRIS, Adriano. Linguaggio della Rivelazione – Filosofia e Teologia
75
672 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
estrutura original de compreensão da questão pelo sentido da realidade tal como a
propõe Rosenzweig, e apenas nos limites exigidos par a compreensão da idéia que
estamos a defender, a saber, que é daí que o tema da “substituição” em Levinas atinge
uma inteligibilidade mais plena.
O que irá em primeira mão distinguir radicalmente Rosenzweig do conjunto dos
pensadores prevalentes da tradição ocidental em suas linhas mais gerais – o que irá
distingui-lo inclusive de seus inspiradores estritamente filosóficos mais diretos – pode
ser lido, através do maciço de sua obra, como uma espécie de intuição (ou
desdobramento de intuição) de uma determinada multiplicidade – pluralidade,
plurivocidade – de origem. Em contraponto a qualquer estrutura de pensamento
identificante, finalmente redutível a alguma sofisticada correlação, é na pluralidade
mutuamente irredutível dos elementos originais que virão a configurar o pensamento
que se dirige à realidade – qualquer que seja a concepção de realidade que esteja em
jogo – que Rosenzweig colhe o vigor de suas idéias. Para além delas mesmas, eis uma
proposta de inteligibilidade das proto-palavras (Ur-worte)79.
A desarticulação da estrutura “ser = pensar”, estrutura arquetípica no
pensamento identificante (mesmo quando este pretende explicitamente negar-se a
esta identificação, como nas inúmeras concepções do “outro” desde o “eu”, que se
sucedem na história do pensamento), dar-se-á não em termos de uma reconsideração
estática do que seja a realidade concebível - o que nada mais seria do que uma astuta
recorrência da lógica identificatória -, mas, sim, através do atrito de uma
temporalidade que se propõe como o “crivo real da realidade”; temporalidade na qual
o presente do indicativo já é, desde sempre, passado no fluxo dos acontecimentos, e
em que cada instante é o instante decisivo da realidade, ao abrir um inusitado espaço
de liberdade no imponderável do seguir acontecendo no qual o tempo mesmo, em
última análise, se constitui80. A realidade, até certo ponto ao estilo adorniano, que não
nel Pensiero di Franz Rosenzweig, Genova, Marietti, 1990; FUCHS, G. – HENRIX, H. H. Zeitgewinn –
Messianisches Denken nach Franz Rosenzweig, Frankfurt a. M., Knecht, 1987. No trabalho organizado
por J. Guinsburg, intitulado O judeu e a modernidade, São Paulo, Perspectiva, 1970, constam uma breve
introdução e a tradução parcial de “Das neue Denken” (do qual existe versão espanhola: El nuevo
pensamiento, Madrid, Visor, 1989).
79 Sobre as proto-palavras em sua dimensão de abertura à multiplicidade ancestral da realidade, cf.. Der
Stern..., op. cit., p. 29, 48, 68, 121, 255.
80 Cf. Der Stern..., op. cit., p. 95, 98, 132, 180, 244, 269, 280, 319ss, 331, 368, e, de forma especial, 465468. Cf. também “Das neue Denken”, in: ROSENZWEIG, Franz. Zweistromland – kleinere Schriften zu
Glauben und Denken (Gesammelte Schriften III), Dordrecht/Boston, Martinus Nijhoff, 1984, p. 148,
151ss; e nosso cit. trabalho Existência em decisão..., p. 105-130; etc. São evidentes as similaridades entre
estas proposições de Rosenzweig e aspectos centrais do pensamento de Bloch e Benjamin, entre outros
Ricardo Timm de Souza | 673
se subsume nunca em um conceito, por mais grandioso que este seja, mas que exige
constantemente o conceito de volta à terra de onde saiu – esta realidade, tão pouco
fixável (que é fundamentalmente desencontro consigo mesma, desvão do sentido onde
o sentido pode se dar), é compreendida por Rosenzweig como fundamentalmente
dinâmica, desdobramento de uma multiplicidade ancestral que nunca, em nenhuma
hipótese,
circunscreve
o
seu
campo
de
abrangência
81
.
Trata-se
da
realidade acontecente que, se não atinge a fluidez de Bergson, sugere-se como
fundamentalmente não sintetizável em uma presença, ou seja, não referida a uma
estrutura de ser em contraposição à aparência, ou de devir em contraposição de ser. E
isto porque a questão ontológica primigênia é precedida, segundo Rosenzweig, pela
questão do sentido que uma tal pergunta filosófica possa vir a assumir em seu próprio
decorrer.82
Assim, o essencial da realidade, para Rosenzweig – o fluxo da multiplicidade
acontecente em sua efetividade temporal - substitui as essências, entidades
privilegiadas onde o real viria a ancorar sua inteligibilidade. A improvável
convertibilidade entre “tempo” e “outro”, anunciada por Rosenzweig, sugere que o
tempo, em que eu sou, seja o radicalmente outro de minha autocompreensão: eu sou
“outro”, para além de meu tempo privado, para além de meu sonho de totalidade, e só
sou porque o Outro “é” além de mim, além do meu tempo, além até mesmo de meu
“mundo de sentido”: “...a diferença entre o velho e o novo pensamento expressa-se...
na necessidade do Outro e, o que dá no mesmo, no levar a sério o tempo”83. Ruptura
da possibilidade até mesmo lógica da tautologia, a origem múltipla do “sentido” da
realidade sugere o retorno ao incontrolável-imponderável da diferença real, escândalo
do pensamento identificante. O sentido da realidade se consubstanciaria, se assim se
pode dizer, exatamente na multiplicidade de sentidos que a realidade desde sempre
comporta; pensar seria: manter tal multiplicidade de sentidos à vista – e viver seria
levar tal multiplicidade de sentidos efetivamente a sério.
– similaridades que são, ao seu modo, uma corroboração nada casual da idéia de “atmosfera históricofilosófica” acima desenvolvida.
81 Cf. nosso Existência em decisão..., op. cit., p. 24-25.
82 Cf. Der Stern..., op. cit., p.229ss, 465-472.
83 ROSENZWEIG, F. Zweistromland – kleinere Schriften..., op. cit., p. 387.
674 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Conclusão
–
Tempos
plurais,
mundos
plurais:
a
intriga
ético-
metafenomenológica como origem da racionalidade
...o sentido ... não (é o que) se mede pelo ser e pelo não-ser, mas
é o ser que, ao contrário, se determina a partir do sentido.
E. Levinas84
É porque Levinas leva a fenomenologia extremamente a sério que pode
tangenciar os limites da fenomenologia como limites mesmos da filosofia85; é porque
esta seriedade é estendida às concepções de realidade às quais as derivações
fenomenológicas se vertem que o pensamento fenomenológico pode se transmutar, no
complexo do pensamento levinasiano, em linguagem ético-metafenomenológica,
obsessão a substituir o austero comedimento da correlação. Mas é porque no alicerce
da
noção
de
“substituição”
se
encontra
a efetividade
“acontecente” da
realidade compreendida como pluralidade primordial e eminente, na esteira de
Rosenzweig, que a formulação de uma tal idéia não incorre em alguma contradição
auto-destrutiva, e sim se propõe como exigente viabilidade na temporalidade que
constitui o humano. A substituição ética, no pensamento levinasiano, não é
extrapolação pura e simples dos limites do pensamento, mas sim decorrência da forma
de pensamento que tem como constitutivo primeiro não a identidade postulada ou
conquistada, porém a des-identificação original do desencontro do pensamento com o
pensado e, por decorrência, consigo mesmo: a pluralidade. O fato, dificilmente
concebível desde a tradição objetivante ou correlacionante da realidade, de que
ainda anterior à síntese intelectual situa-se o disperso plural que é também razão
para a efetivação da síntese intelectual – a diferença real antes da diferença lógica, o
múltiplo antes do uno -, este simples fato, absolutamente subversivo das estruturas de
segurança da consciência meramente cognoscente, exige mais que a mera síntese:
exige a substituição, ou seja, a articulação múltipla dos elementos da multiplicidade
para além das potências totalizantes ou sintetizantes do intelecto. A substituição – o
choque da consciência uma, a escandalosa possibilidade ou necessidade de que a
consciência una perceba sua não-unidade desde a não-unidade do real que não é ela –
deixa-se antever na possibilidade efetiva de que o mundo dos outros – do Outro – não
venha a implodir definitivamente quando o mundo fenomenológico de sentido do Eu
84
85
AE, p. 205.
Cf. nosso Sujeito, Ética e História..., p. 38-78.
Ricardo Timm de Souza | 675
racional-existencial se desagrega, por exemplo, na minha morte, pontualização
extrema do meu “ser eu” existencial-racional nos moldes de meu projeto
de autocompreensão. Insubstituível que sou, tenho de, enquanto mera consciência,
substituir minha estrutura endógena de autocompreensão pela radical insegurança
que se deriva do fato de que, além de mim, algo mais é consistente em si mesmo: o
Outro – muito embora esta consistência nunca se ofereça à minha demiurgia racional,
por mais poderosa que esta se apresente. Minha realidade deriva da capacidade que eu
possa ter de suportar o fato de que minha subjetividade apenas se constitui se esta
constituição significa que na minha mais remota origem sou mais do que “eu” apenas:
sou o “eu” ético – ou seja, múltiplo – antes de ser um “eu racional”, ou seja,
identificante-totalizante. Minha racionalidade deriva do re-conhecimento ético que
se posta, paradoxalmente, como anterior ao conhecimento racional: reconhecimento
que não se resolve, porque o tempo não se resolve em seu sentido de abertura, mas
reconhecimento no qual eu posso vir a me reconhecer apenas e na exata medida em
que não conheço, nem sustento apenas a mim mesmo, mas a todo o universo das
relações: sentido de ser.
37. COAÇÃO, LIMITES DA VOLUNTARIEDADE E BATISMO: O
FUNDO FILOSÓFICO-SCOTISTA DE PRÁTICAS BATISMAIS POR
MISSIONÁRIOS FRANCISCANOS NA AMÉRICA LATINA DO SÉCULO 16
https://doi.org/10.36592/9786587424163-37
Roberto Hofmeister Pich1
Introdução: missões dos franciscanos no Novo Mundo
O teólogo jesuíta alemão, Michael Sievernich, afirmou que, na história das
missões católicas na América Latina, até o século 18, é possível encontrar, de forma
mais ou menos progressiva, quatro “clássicos conceitos e métodos de missão” 2, a saber:
(1) “conquista espiritual”, (2) “o único modo de convencer e atrair” as pessoas à
verdadeira religião (caracterizado por Bartolomé de Las Casas O.P. (ca. 1484–1566),
(3) “novos métodos de evangelização” baseados em um olhar mais realista sobre os
povos indígenas e os seus costumes, proponentes de estratégias de substituição das
religiões aborígenes pela nova e verdadeira (caracterizado por José de Acosta S.J.
(1540–1600), na segunda metade do século 16, em sua obra De procuranda indorum
salute, publicada em 1588), e finalmente (4) “o modelo de reduções” ou misiones,
consolidado pelos jesuítas, tendo sido proposto, por exemplo, por Antonio Ruiz de
Montoya (1585–1652).
Com respeito ao primeiro método, a “conquista espiritual”, Sievernich destaca
os relatos e as práticas pelos primeiros missionários franciscanos no Novo Mundo. Não
é apenas o caso que os primeiros missionários mostravam um entendimento
providencialista das razões históricas da “descoberta” e da conquista das América, mas
eles também eram movidos por uma leitura milenarista da história universal da
salvação. Para os frades franciscanos, a missão no Novo Mundo começara em 1500, na
Ilha “Hispaniola” – hoje, dividida em República Dominicana e Haiti. A evangelização
Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Teologia
da PUCRS. E-mail: roberto.pich@pucrs.br.
2 Michael
Sievernich, Die christliche Mission. Geschichte und Gegenwart, Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2009, p. 122-123.
1
678 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
metódica, porém, pelos franciscanos, iniciaria em 1524, nos domínios dos astecas.
Famosamente, 12 frades da Província de Estremadura foram enviados para a Nova
Espanha (México), a saber, um número específico de “apóstolos”, assim escolhidos de
propósito, pelo Ministro Geral da Ordem, Francisco de Los Ángeles, com uma clara
referência à igreja primitiva e, como condição, com o mais firme comprometimento
com as características essenciais da primeira obra missionária nos tempos de Jesus e
dos seus apóstolos (cf. Jo 13.15)3.
Nenhum missionário franciscano caracterizou esse ímpeto mais fortemente do
que Toríbio de Benavente O.F.M., o “Motolinea” ou “Motolinía” (nascido ca. 1482, em
Benavente (Espanha), e falecido em 1568/1569, na Cidade do México) 4 – a última
designação significa, na língua mexicana-náhuatl, “o pobre”, “o afligido”. Toríbio de
Benavente tinha sido um dos 12 escolhidos por Francisco de Los Ángeles. Junto com o
seu discípulo Jerónimo de Mendieta O.F.M. (1525–1604) – que chegaria à Nova
Espanha em 1554 5 –, Motolinía deu forma a uma interpretação quiliástica do
empreendimento missionário como um todo, pelos franciscanos no México 6 . Deus
tinha previamente escolhido Francisco e os franciscanos como “capitães” (capitanes)
da “conquista espiritual” e Deus inspirara o Papa e o Ministro Geral dos franciscanos
para enviar os “doze escolhidos”7. As suas ideias sofreram a influência de Joaquim de
Fiore (ca. 1135–1202), que por sua vez influenciara o primeiro movimento franciscano,
no qual a expectativa pelo “Terceiro Reino do Espírito”, portanto, pela “Era do Espírito
Santo”, era óbvia. O que Joaquim de Fiore originalmente profetizara para o ano de
1260 em realidade irrompera nos tempos da descoberta da América. A impressão das
obras de Fiore, no começo do século 16, colocara de novo em circulação as suas ideias.
Uma certa interpretação da doutrina dos reinos do mundo, inspirada no profeta
Cf. Hans-Jürgen Prien, Die Geschichte des Christentums in Lateinamerika, Göttingen: Vandenhoeck
& Ruprecht, 1978, p. 142-143; Enrique D. Dussel, Caminhos de libertação latino-americana I:
interpretação histórico-teológica, São Paulo: Edições Paulinas, 1985, p. 63-64. O Ministro Geral e os
“12 Apóstolos” tiveram em seguida o apoio do primeiro Bispo do México, Juan de Zumárraga (1468–
1548), que era também um franciscano.
4 Cf. Elizabeth Andros Foster, Introduction to Motolinia's History of the Indians of New Spain,
translated and edited by Elizabeth Andros Foster, Westport, CT: Greenwood Press, 1973. Cf. também A.
Abad Pérez, Los franciscanos en América, Madrid: Editorial MAPFRE, 1992.
5 Foi autor de uma Historia eclesiástica indiana (1597), que pode ser encontrada in:
www.cervantesvirtual.com/obra-visor/historia-eclesiastica-indiana--0/html/.
6 Sobre a principal obra histórico-narrativa de Toríbio de Benavente, editada e publicada pela primeira
vez somente em 1858, cf. Fray Toribio de Benavente “Motolinía”, Historia de los indios de la Nueva
España, ed. Mercedes Serna Arnaiz y Bernat Castany Prado, Madrid: RAE-CECE, 2014 – cuja acurácia
editorial deve ser vista com reservas. Cf. também Lino G. Canedo, Toribio Motolinia and His Historical
Writings, in: The Americas 29:3 (1973), p. 277-307. doi:10.2307/980054.
7 Cf. G. Baudot, Utopía e historia en México, Madrid: Ed. Espasa-Calpe, 1983, p. 247-386.
3
Roberto Hofmeister Pich | 679
Daniel, foi conectada à ideia de um “traslado” (translatio) do domínio político –
portanto, da criação de um novo Reino Cristão – e da igreja original. Motolinía e os
seus confrades viam no seu labor missionário um chamado para realizarem, na ponta
geográfica do mundo e antes do final dos tempos, a evangelização na última hora,
através de todos os meios humanos de que Deus poderia fazer uso, se preciso também
pela força8. Havia uma meta implícita de erigir então uma nova igreja primitiva, com
semblante indígena. Como a igreja primitiva, na origem, florescera no Oriente, na
aurora da era cristã, ela agora vicejaria no Ocidente, no fim de todos os tempos e no
fim do mundo conhecido9.
Motolinía, que acreditava que os habitantes do Novo Mundo eram selvagens e
tinham de ser primeiramente subjugados pela força, é talvez mais bem conhecido por
seus fortes ataques a Bartolomé de Las Casas e ao assim chamado método missionário
apostólico, pacífico, do “protetor” dos ameríndios 10 . E, com efeito, as obras de
Motolinía revelam um uso consciente, ainda que não necessariamente correto ou
justificável, de noções do pensamento político de Scotus e da teoria scotista da lei
natural: a “infidelidade” (infidelitas) religiosa, como ofensa contra os dois primeiros –
estritos, necessários e imutáveis – princípios da lei natural, equivalentes aos dois
primeiros dos dez mandamentos da lei mosaica, não poderia ser desculpada, e ela
poderia ser tomada como razão suficiente para uma guerra justa de conquista.
8 Cf. Michael Sievernich, Die christliche Mission. Geschichte und Gegenwart, p. 122-123. Cf. também
Hans-Jürgen Prien, Die Geschichte des Christentums in Lateinamerika, p. 143-144, incluindo a nota
147. Cedo no século 16, os franciscanos difundiram a sua mensagem em aproximadamente todas as
partes do continente americano. Em 1580, foram os franciscanos que fundaram as primeiras reduções
no Paraguai.
9 Cf. Michael Sievernich, Die christliche Mission. Geschichte und Gegenwart, p. 122-123. A primeira
ruptura com esse modelo veio com Juan Focher (+1572), a saber, em se diminuindo a ênfase nas
esperanças apocalípticas e aumentando o foco na comunicação humana, na convivência, na combinação
de palavras e ações, bem como na ideia de proceder benigne e dulciter. Juan Focher faleceu na Cidade
do México. Teólogo franciscano francês, Focher havia estudado no Studium dos franciscanos em Paris.
Na Nova Espanha, chegou a atuar como professor no “Colegio de Santa Cruz de Tlatelolco”. No seu
Itinerarium catholicum proficiscentium ad infides convertendos (1574), Juan Focher teve o mérito de
discutir e assimilar doutrinas de teólogos e juristas escolásticos sobre a conversão dos infiéis. Entre os
seus importantes opúsculos anteriores – de certa maneira incorporados, depois, no Itinerarium –, cabe
menção ao Enchiridion baptismi adultorum et matrimonii baptizandorum (1544). Cf. também Steven
E. Turley, Franciscan Spirituality and Mission in New Spain, 1524–1599. Conflict Beneath the
Sycamore Tree (Luke 19:1-10), London – New York: Routledge, 2016, p. 120-126.
10 Cf., por exemplo, Toribio de Benavente Motolinia, The Franciscan Reply (to Las Casas), in: Letters
and People of the Spanish Indies, Sixteenth Century, edited and translated by James Lockhart and
Enrique Otte, Cambridge: Cambridge University Press, 1976, p. 218-247. Cf. também I. Pérez
Fernández, Fray Toribio Motolinía, O.F.M., frente a Fray Bartolomé de las Casas, O.P., Salamanca:
Editorial San Esteban, 1989; Josep Ignasí Saranyana(dir.) et alii, Teología en América Latina –
Volumen 1: Desde los orígenes a la Guerra de Sucesión (1493–1715), Madrid – Frankfurt am Main:
Iberoamericana – Vervuert, 1999, p. 70-74.
680 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Ademais, dentro do poder político de um príncipe cristão, seria compreensível, para
Toríbio de Benavente, que súditos fossem forçados a observar a lei natural e, portanto,
que pessoas fossem forçadas por meio violentos à conversão, ao batismo e à
incorporação na Igreja e em sua jurisdição espiritual. Na esteira de medidas de punição
à infidelidade, o poder absoluto de um regente cristão, na sua jurisdição e no escopo
de suas atitudes políticas religiosamente moldadas, encontra-se o batismo em massa e
por meio da força (coação militar, punição física e suplício), práticas que seriam, de
novo, embasadas em Scotus11.
Como poderia ser esperado, os primeiros missionários franciscanos
partilhavam com todas as outras Ordens Religiosas que se mobilizaram em missões no
Novo Mundo algumas convicções teológicas básicas: há somente uma religião
verdadeira, que é o cristianismo, e todas as religiões praticadas pelos povos indígenas
são formas de idolatria. A religião cristã possui apelo universal, dado que, como
indicado na Escritura, ela contém uma mensagem de salvação para todos os seres
humanos, diante da sua condição de estar em pecado; segundo o plano de Deus, a
salvação só pode ter vez através do conhecimento de Deus por meio de Cristo, em fé.
Nesse plano salvífico, a Igreja Apostólica recebeu de Cristo uma função de participação
(Mc 16.15; Mt 28.19; Lc 24.47; At 1.8)12. Ela tem a tarefa de ensinar todos os povos
acerca de Cristo, e essa consiste, ao final, em tornar conhecida a necessidade da fé em
Cristo e de ser batizado em seu nome13. Convém ter em mente que, na perspectiva das
missões no Novo Mundo, onde Cristo jamais tinha sido anunciado, a tarefa missionária
Cf. Fray Juan Focher OFM, Itinerario del misionero en América [Itinerarium catholicum
proficiscentium ad infideles convertendos], Sevilla: Apud Alfonsum Scribanum, 1574; trad. P. Antonio
Eguiluz, Madrid: Librería General Victoriano Suárez, 1960, Capítulo VIII, p. 77: “Es lícito, en cambio,
coaccionarles condicionada e indirectamente, por ejemplo, mediante amenazas, miedo, injuria o
trabajos serviles, para que de esta forma les nazca el deseo de convertirse a la fe. Así Escoto y los demás
Teólogos ubi supra. Concedamos, dicen, que no fueran de corazón verdaderos cristianos; es para ellos
un mal menor el no poder observar impunemente su ley, ilícita, que poderla observar con libertad”.
12 Cf. José de Acosta, De procuranda indorum salute – Pacificación y colonización, latín – castellano,
Madrid: CSIC, Vol. 1, 1984, I, i, p. 74-83; I, iii, p. 98-105; I, vi, p. 126-137; cf. também José de Acosta,
De procuranda indorum salute – Educación y evangelización, latín – castellano, Madrid: CSIC, Vol. 2,
1987, V, xxi, 1, p. 330-331. Sobre a mesma base escriturística para o encargo missionário da Igreja, cf.
Francisco de Vitoria, De los índios recientemente descubiertos (relección primera) / De indis recenter
inventis relectio prior, in: Francisco de Vitoria, Obras de Francisco de Vitoria – Relecciones teologicas,
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1960, p. 642, 685. Cf. ainda Bartolomeu de Las Casas, Obras
completas I – Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião, São Paulo: Paulus, 2005, I
(V), p. 57; I (V), I, § I, p. 62, 63. Michael Sievernich, Die christliche Mission. Geschichte und Gegenwart,
p. 17-30, destaca esses textos finais dos evangelhos, de estrutura pascal, de urgência pela proclamação
de Cristo e a modo de alternativas condicionais, como base teológica na história das missões.
13 Cf. José de Acosta, De procuranda indorum salute – Pacificación y colonización, Vol. 1, I, i, 2-3, p.
76-83; I, iii, 2-3, p. 98-105; I, v, p. 116-121.
11
Roberto Hofmeister Pich | 681
tinha como alvo especial pessoas adultas, a quem a profissão de fé seria uma
pressuposição para o ser batizado.
1 Scotus sobre o batismo: algumas ideias básicas
Dado que o argumento sobre o tópico em discussão, a saber, a coação e os
limites da voluntariedade (cf. abaixo), tem como contexto as práticas de batismo por
franciscanos pré-modernos que alegaram estar diretamente embasados em – e
legitimados pelo pensamento de – Scotus, parece justo dizer algo sobre o batismo
como sacramento e as razões pelas quais ele é tão importante. O que afirma Scotus
sobre a doutrina do batismo? Primeiramente, cabe dizer algo sobre os sacramentos
em geral. Em sua via, os seres humanos precisam dos “mais perfeitos sinais da
atividade salvífica de Deus” 14 , que são os sacramentos. Scotus endossa a doutrina
recebida de que são sete os sacramentos, todos eles instituídos por Cristo: “eles
significam o mais apropriadamente a graça que Deus confere através deles”15. Essa é a
definição de sacramento na acepção do Doutor Sutil: “[Um sacramento] é um sinal
sensorial, que significa eficazmente, por instituição divina, a graça de Deus ou um
efeito gratuito de Deus, ordenado à salvação do ser humano peregrino” 16 . Os
sacramentos, pois, são “eficazes” ou “causam graça”. Isso exige alguns breves
comentários. Tendo como pano de fundo concepções (i) de Boaventura, para quem um
sacramento “não é nada mais que uma ocasião para uma ação simplesmente divina”,
e (ii) de Tomás de Aquino, para quem os sacramentos têm algum tipo de “papel
causal”, isto é, “eles são causas instrumentais da graça”17, e tendo em mente que na
recepção do sacramento, por um ser humano, Deus é o agente que tem poder causal e
a pessoa tem “certos poderes passivos em virtude dos quais ela pode ser afetada”, o
poder causal do próprio sacramento é, com efeito, difícil de definir. Scotus firmemente
Cf. Richard Cross, Duns Scotus, Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 135. Cf. Ioannes Duns
Scotus, Ordinatio IV d. 2 q. 1 n. 10-17, p. 145-148. Nessa breve subdivisão sobre sacramento e batismo,
oriento-me, sem pretensão de originalidade, pelo estudo de Richard Cross recém citado.
15 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 135. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 2 q. 1 n. 18-26, p.
148-150.
16 Richard Cross, Duns Scotus, p. 136. Cf. Ioannes Duns Scotus Ordinatio IV d. 1 p. 2 q. 1 n. 207, p. 73.
Cf. também Luigi Iammarrone, Giovanni Duns Scoto metafisico e teologo. Le tematiche fondamentali
della sua filosofia e teologia, Roma: Miscellanea Franciscana, 1999, p. 130-131.
17 Richard Cross, Duns Scotus, p. 136.
14
682 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
discorda de Tomás de Aquino sobre a doutrina da “causalidade sacramental” 18 , ele
antes dá suporte ao “relato ocasionalista” proposto por Boaventura. Ainda que Scotus
concorde com Tomás de Aquino que (a) “agentes têm poderes causais”, (b) “causas
instrumentais não têm poderes causais intrínsecos” e (c) “poderes causais em virtude
dos quais uma causa instrumental tem um papel na produção de um efeito são
causados nela pelo movimento do agente principal” 19 , ele afirma contra Tomás de
Aquino que é contraditório que “um objeto material” – em realidade, que qualquer
“agente natural” possível – tenha “um poder causal sobrenatural”. Afinal de contas,
uma “forma sobrenatural não pode ser estendida para existir ao longo de um agente
material”20. É impossível que “um sacramento [a saber, um agregado temporalmente
extenso “de palavras, substâncias e ações”] seja uma causa instrumental da graça”,
fundamentalmente porque “nenhuma criatura pode ser uma causa instrumental de um
efeito sobrenatural”21. Como sintetiza R. Cross, para Scotus, na direção de uma “opção
ocasionalista”, “um sacramento é uma “condição necessitante” não-causal”, ele não
causa a ação divina (visto que em si não tem poderes causais para tanto, sejam eles
“intrínsecos” ou “instrumentais”); é apenas o caso que Deus, em sua liberdade, decidiu
que “sempre que um sacramento for recebido [...] o dom sobrenatural apropriado” será
dado22. Isso foi estabelecido em uma “aliança” (pactio) de Deus com a Igreja, e aquela,
devido aos méritos de Cristo, “garante a confiabilidade sacramental” 23.
Os efeitos dos sacramentos são produzidos pelos méritos de Cristo.
Essencialmente, os efeitos são “o dom da graça”. O batismo, assim como a penitência,
confere primeira graça (em virtude da qual uma pessoa é salva). Outros sacramentos
conferem “segunda graça, ou seja, “um acréscimo em graça” 24 . Na alma, uma e a
mesma graça causa efeitos distintos; os sete sacramentos administrados pela Igreja
justamente se diferenciam pelo modo como se ligam a esses efeitos. Pelo batismo, Deus
18 Richard Cross, Duns Scotus, p. 136. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 1 p. 3 q. 1-2 n. 276-306,
p. 92-108; n. 309-325, p. 110-116.
19 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 136-137.
20 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 137.
21 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 137. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 1 p. 3 q. 1-2 n. 296306, p. 105-108.
22 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 137. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 1 p. 3 q. 1-2 n. 309322, p. 110-114; IV d. 2 q. 1 n. 27-32, p. 150-152.
23 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 137. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 1 p. 3 q. 1-2 n. 323325, p. 115-116.
24 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 138. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio (B. Ioannis Duns Scoti
Opera omnia XIII, Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011) IV d. 18-19 q. 1-2 n. 95-102, 125, p. 219-221,
228.
Roberto Hofmeister Pich | 683
causa “a remissão do pecado original” e do “pecado atual”, sem que qualquer
penitência seja necessária; por ele, Deus redime tanto a “culpa do pecado” quanto a
punição que ela exige. Pelo batismo, o ser humano recebe o efeito gracioso de nascer
espiritualmente, ser adotado como filho de Deus e tornar-se membro da Igreja25. O
batismo também confere um tipo de “marca indelével” no seu recebedor, chamada de
“caráter” pelos teólogos26. “Caráter” é “uma forma espiritual […] irrepetível impressa
por Deus”, que torna os seus portadores “conformes a Cristo” e os coloca “sob algum
tipo de obrigação para com Cristo”, bem como em comunhão com outros na mesma
condição 27 . Para Scotus, “caráter” é uma “propriedade relacional” que não possui
nenhum papel causal em absoluto, ela reside na vontade e é simplesmente “uma
ocasião para que Deus nos dê a graça”28. O caráter do batismo incorpora alguém na
família de Cristo 29 . De potentia Dei ordinata, pelo menos, Scotus subscreveria um
princípio de teologia da missão já mencionado acima, a saber, de que o batismo é uma
condição necessária para a salvação de qualquer ser humano individual; como
sacramento, ele é trazido e administrado pela Igreja Católica somente.
2 Batismo controverso
De fato, independentemente da correção da interpretação dos textos de Scotus
feita pelos notáveis missionários franciscanos do século 16, as Distinções escritas por
Scotus sobre os sacramentos, em particular sobre o batismo, merecem cuidadosa
atenção. Isso não se deve apenas ao fato de que trazem discussões teológicas
importantes, mas também em função do conjunto de pressupostos filosóficos para os
diversos tópicos debatidos, que aos poucos ganham espaço na pesquisa, uma vez que
a edição crítica da Ordinatio IV foi completada30. Se nas Distinções sobre o batismo
não são encontradas novas explicações da “vontade” como (I) um poder afetivo duplo
25 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 138. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 1 q. 2 n. 19, 2739, p. 228-229, 230-233.
26 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 139. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 6 p. 4 a. 2 q. 1 n. 195201, p. 354-355.
27 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 139. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 6 p. 4 a. 2 q. 2 n.
290-317, p. 383-393.
28 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 139. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 6 p. 4 a. 2 q. 2 n.
333-334, p. 397-398.
29 Cf. Richard Cross, Duns Scotus, p. 139. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 6 p. 4 a. 2 q. 2 n. 331,
p. 397.
30 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio (B. Ioannis Duns Scoti Opera omnia XIV, Civitas Vaticana: Typis
Vaticanis, 2013) IV d. 43-49.
684 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
ou duplamente ordenado ao bem – tanto uma afeição natural ao que é vantajoso
(affectio commodi) quanto uma afeição livre ao que é objetivamente justo (affectio
iustitiae) – e como (II) um poder racional para opostos, sob a estrutura interna de uma
contingência sincrônica, na própria volição, de possibilidade atualizada e não
atualizada31, pode-se achar nelas reflexões peculiares sobre (III) a “voluntariedade”
dos atos da vontade, voluntariedade essa que também deveria pertencer a uma teoria
completa da liberdade da vontade. Isso se deve à natureza do batismo como tal,
especialmente no tocante ao batismo de adultos.
O sacramento do batismo é tratado por Scotus em quatro Distinções, ou seja,
Ordinatio IV d. 3-632. No que diz respeito à discussão sobre a voluntariedade, a fonte
mais importante está na Distinção 4 da Ordinatio IV, que é dividida em três
“membros”33. Em todos os membros, a discussão versa sobre (i) aqueles que recebem
o batismo e (ii) o que exatamente eles recebem34. Esses membros são os seguintes: (1)
a recepção do “sacramento e da coisa [“res”, o efeito da graça]”; (2) “do sacramento, e
não da coisa [o efeito da graça]”; (3) “da coisa [o efeito da graça], e não do
sacramento” 35 . Scotus afirma ainda que o membro (1) diz respeito às crianças, o
membro (2) aos adultos tão somente, e o membro (3) pode dizer respeito tanto a
crianças quanto a adultos36. Uma vez que a Parte I de Ordinatio IV d. 4 trata apenas
da recepção do sacramento e da coisa pelas crianças pequenas, ela é deixada
totalmente sem consideração no presente estudo37.
É na Parte 2 de Ordinatio IV d. 438, na qual Scotus questiona “sobre a recepção
do sacramento, e não da coisa”, especificamente em adultos que se supõe que recebam
o batismo, que pode ser encontrada a seguinte pergunta deveras instigante: (i) “Se um
adulto pode receber o efeito do batismo [isto é, a primeira graça de Deus] em não
consentindo”39. A segunda questão, isto é, (ii) “Se um adulto insincero recebe o efeito
Sobre os temas (I) e (II), cf. a visão geral oferecida in: Ludger Honnefelder, Duns Scotus, München:
Verlag C. H. Beck, 2005, p. 82-88, 113-131.
32 Cabe dizer, de todo modo, que a Questão 2 da Distinção 2 de Ordinatio IV já servia de preâmbulo ao
tratamento do sacramento do batismo; cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio (B. Ioannis Duns Scoti
Opera omnia XI, Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2008) IV d. 2 q. 2 n. 43-56, p. 156-161.
33 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio (B. Ioannis Duns Scoti Opera omnia XI, Civitas Vaticana: Typis
Vaticanis, 2008) IV d. 4 n. 2, p. 225. A partir daqui, Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4...
34 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 n. 2. 9-10, p. 225-226.
35 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 n. 2, p. 225.
36 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 n. 9-10, p. 226.
37 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 n. 11, p. 226; ibid., IV d. 4 p. 1 (“Sobre o sacramento e a
recepção da coisa nas crianças que recebem o batismo”) q. 1-3 n. 12-55, p. 227-239.
38 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1-2 n. 56-119, p. 241-260.
39 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 57-86, p. 241-249.
31
Roberto Hofmeister Pich | 685
do batismo”, não será abordada neste estudo40. Ao que tudo indica, um adulto não
pode receber o efeito do batismo sem o seu consentimento espiritual 41. O batismo –
especialmente se a discussão, aqui, é sobre adultos – parece implicar um “voto”, uma
“confissão” em favor de Deus. Isso exige um assentimento por alguém 42. Qualquer
pessoa batizanda precisa mostrar “consentimento” (consensus) e “intenção”
(intentio)43. Se padrinhos consentem no lugar da criança – quando se trata do batismo
de crianças –, um adulto tem também de consentir por si mesmo, claramente dizendo
“Eu quero” (“Queres ser batizado?” […]. “Eu quero”) 44 . Mas, como argumento
contrário Scotus se depara com o texto das Decretais, do Papa Gregório IX45: “Quem
for atraído violentamente através de terrores e torturas e, no intuito de não sofrer
dano, aceitar o sacramento do batismo, […] aceita o caráter impresso [i.e., a marca
indelével!] do cristianismo. Ele o aceita como um que quer condicionalmente
[condicionaliter], ainda que não queira absolutamente [absolute], e [então] há de ser
compelido à observação da fé cristã”. Assim, alguém que não quer absolute “recebe o
sacramento do batismo”46.
Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 n. 56, p. 241; IV d. 4 p. 2 q. 2 n. 87-119, 250-260.
Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 57, p. 241. In: Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 83, p.
248, Scotus afirma que “no batismo há mais propriamente a ‘adoção de um filho’ do que matrimônio”,
e isso é também mais apropriado com respeito a uma criança (para todo contrato, tal como o casamento,
o uso da razão é exigido). Na adoção, precisa-se apenas do “consentimento ou do ato da pessoa que
adota”.
42 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 58, p. 241.
43 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 59, p. 241.
44 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 60, p. 242.
45 Gregorius IX, Decretales III tit. 42 c. 3 (CIC II 646). Scotus se remete às Decretais de Gregório IX,
conhecidas em latim como “Decretales” ou “Liber Extra”, ou seja, uma compilação de direito canônico,
em cinco livros, publicada em 1234. O Papa Gregório IX – cujo nome de batismo era Ugolino di Conti
(ca. 1145 ou antes de 1170–1241) e cujo pontificado se estendeu de 1227 a 1241 – solicitou a compilação,
cuja redação ficou a cargo do dominicano Raimundo de Peñafort (ca. 1175–1275). Em 1220, o Papa
Honório III havia designado Ugolino di Conti como Cardeal Protetor da Ordem dos Franciscanos – foi
durante o pontificado de Gregório IX que teve vez a canonização de Francisco de Assis, em 1228.
Também em outros aspectos nada elogiáveis – mas intimamente ligados à presente reflexão sobre
batismo e voluntariedade – Scotus reverberaria a Nova compilatio decretalium de Gregório IX, a saber,
na posição favorável à conversão forçada dos judeus. Cf. R. H. Pich, Scotus sobre a autoridade política
e a conversão forçada dos judeus: exposição do problema e notas sobre a recepção do argumento scotista
em Francisco de Vitoria, in: R. P. Rivas (ed.), Tolerancia: teoría y práctica en la Edad Media, Porto:
FIDEM – Brepols, 2012, p. 135-162. Gregório IX dera peso jurídico-canônico, nas Decretais de 1234, à
doutrina da perpetua servitus iudaeorum – “servidão [política] perpétua dos judeus”, seguidores do
Talmude, até o dia do Juízo Final. Essa mesma doutrina teria espaço na concepção da servitus camerae
imperialis, “a servidão sujeita imediatamente à autoridade imperial”, promulgada por Frederico II. Em
estados cristãos, os judeus foram impedidos de qualquer papel ou influência em processos políticos até
o século 19. Cf. também H. Dilcher, Gregor IX., Papst (1227–1241), in: Theologische Realenzyklopädie,
Berlin – New York: Walter de Gruyter, Band XIV, 1985, p. 153-154.
46 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 61, p. 242 : “Contra: Extra, ‘De baptismo et eius
effectu’, “Maiores”: “Qui terroribus atque suppliciis violenter attrahitur, et, ne detrimentum incurrat,
baptismi suscipit sacramentum, talis, sicut et is qui ficte ad baptismum accedit, characterem suscipit
40
41
686 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Scotus tentará explicar, de fato, e aqui há uma diferença entre a sua própria
posição e a posição adiantada na última passagem por Gregório IX, que uma pessoa
adulta coagida ou pressionada por algo como terrores e torturas (terroribus atque
suppliciis) e que aceita o batismo no intuito de não sofrer dano o quer ou consente
plenamente com aquilo: ela o faz voluntariamente, seja como for. Ele explica a sua
tese através de várias distinções, que ajudam a definir o debate sobre a voluntariedade.
Cabe determinar, primeiramente, sobre (1) o adulto em questão e, em seguida, sobre
(2) a pessoa da qual se diz que é “não-volente” (non vollens) ou “não-consentidor” com
respeito a um ato47.
(1) Os adultos em questão poderiam ser (1a) aqueles que não fazem e jamais
farão uso da razão (tais como pessoas mentalmente desabilitadas e os lunáticos), ou
poderiam ser (1b) adultos que não fazem uso da razão agora (estão agora
desabilitados), mas fizeram anteriormente, ou (1c) adultos que fazem uso da razão
agora 48 . Em prol do argumento deste estudo, cabe deixar de lado, aqui, os casos
primeiro49 e segundo50 e focar no (1c) caso de adultos que de fato fazem uso da razão
agora e são possíveis recebedores do batismo, inclusive – seja assumido – por meio
de terrores e torturas, que eles certamente não querem sofrer. Tenha-se em mente,
ademais, que a questão é sobre o batismo recebido por adultos que, em certo sentido,
não consentem com ele. Nesse ponto, Scotus introduz uma distinção adicional,
concernente ao entendimento do que é uma pessoa adulta que “não consente” (non
consentiens). Ao fazê-lo, Scotus toca (2) o reino dos “atos da vontade”. Seja dado a “um
adulto que não consente” (ANC) o nome “Moctezuma” – mais exatamente, e apenas
simbolicamente 51 , inspirado em Moctezuma II (ca. 1466–1520), o nono regente de
Tenochtitlán, imperador dos astecas no México, à época em que, em 1519, Hernán
Cortés, o seu pequeno grupo armado e um contingente de indígenas aliados entraram
christianitatis impressum, et ipse, tamquam condicionaliter volens, licet absolute non velit, cogendus
est ad observationem fidei christianae”; ergo absolute non volens recipit sacramentum baptismi”.
47 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 62, p. 242.
48 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 63, p. 242-243.
49 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 64, p. 243.
50 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 65-67, p. 243-244. Os casos primeiro e segundo
são, de todo modo, deveras interessantes para uma teologia prática aplicada ou ao menos para uma
casuística da recepção dos sacramentos, especialmente porque, no segundo caso, Scotus conecta
voluntariedade ao consentimento e ao dissentimento habituais, reais e conhecidos, baseados em
decisões ou formas da vontade prévias ao estado de deficiência ou desabilidade.
51 Ademais, cabe dizer que a atribuição desse nome a uma pessoa hipotética não tem aqui qualquer teor
pejorativo; ao contrário, deve servir para acentuar e mais enfaticamente lembrar que questões
filosóficas na base de práticas batismais tiveram papel significativo em missões religiosas históricas e
concretas.
Roberto Hofmeister Pich | 687
no palácio de Axayacati. Nessa fase derradeira da história de sua nação, Moctezuma
não foi especialmente admirado por suas gentes, devido ao perceptível equívoco de sua
leitura dos fatos e à ausência de predicados de liderança – do líder guerreiro – que a
situação dele exigia. Moctezuma, no entanto, teria sido um alvo central dos esforços
missionários dos religiosos, naqueles impressionantes dias da infame “conquista” da
nação asteca. “Um adulto que não consente” pode ser entendido “negativamente”
(negative) (ANC1): ele não dá em ato o consentimento (ele é um non volens). Assim,
por exemplo, se “Moctezuma não quer ser batizado”, isso significa que “Moctezuma
não realiza um consentimento em ser batizado”. Mas, o consentimento pode ser
entendido “contrariamente” (contrarie) (ANC2): nesse caso, a pessoa faz um
dissentimento atual (ela é uma nolens). Fosse essa pessoa Moctezuma e “nolente”, terse-ia, no tocante ao batismo, a seguinte atitude: “Moctezuma quer-não [ou: desquer]
ser batizada” 52 . A distinção proposta tem de ser feita, portanto, com base em uma
análise dos atos da vontade: jamais se pode misturar (i) “não querer” (non vollere) com
(ii) “querer-não” ou “desquerer” (nollere). O advérbio “contrarie” quando ligado a um
ato da vontade deveria significar precisamente “querer-não atual” ou “desquerer atual”
(actualis nolitio). Scotus também explica tal “desquerer atual” por meio de uma
expressão mais simples, isto é, como um “dissenso” ou um “dissentimento”
(dissensus), em que claramente dissensus = nolitio. Far-se-á uso, agora, de
“dissensus”, uma vez que há, para “dissenso”, uma distinção adicional: entre um adulto
que dissente simpliciter (ADS) e aquele que dissente secundum quid ou “sob
determinado aspecto” (ADSQ)53.
52 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 68, p. 244: “De tertio membro, scilicet de ‘adulto
utente ratione’, distinguo de eo quod ponitur in quaestione ‘non consentiens’ quod potest intelligi
negative vel contrarie: ‘negative’ tantum negat actualem consensum, ‘contrarie’ vero ponit actualem
dissensum”.
53 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 69, p. 244 : “Et patet distinctio, quia non est idem
‘non velle’ et ‘nolle’: si accipitur ‘contrarie’ pro ‘dissentiente actu’, aut simpliciter dissentit aut secundum
quid. Et intelligo ‘simpliciter’ sicut expositum est in III libro, quod iste, qui – ut fugiat aliquod
incommodum – vult aliquid simpliciter, cum vult illud aliquid (sicut proiciens merces in mari ut
submersionem fugiat, simpliciter vult proicere merces, nam potentiam suam motivam ad proiciendum
voluntas movet imperando, et ipsa se ipsam libere movet, quia cogi non potest; ‘simpliciter’ igitur volens
proicit, sed ‘secundum quid’ nolens, hoc est sub condicione nolens, quia nollet si alio modo posset
salvare vitam suam)”. Scotus affirma que havia explicado a distinção entre tais formas de dissentimento
em passagens anteriores de sua Ordinatio. Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio (B. Ioannis Duns Scoti
Opera omnia IX, Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2006) III d. 15 q. un. (Utrum in anima Christi
secundum portionem superiorem fuerit verus dolor), n. 58-59 (c. – De tertio modo seu via tristandi,
id est propter nolle condicionatum), 119, p. 504-505, 527; Lectura (B. Ioannis Duns Scoti Opera
omnia XX, Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2003) III d. 17 q. 2 (Utrum Christus aliquid voluit quod
non evenit), n. 26, p. 430.
688 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
No intuito de explicar o que é um agente que quer-não, desquer ou dissente
simpliciter, Scotus fala do seu oposto, isto é, de uma pessoa que quer algo simpliciter:
um consentidor pura e simplesmente (ACS). Por exemplo, um adulto que, no intuito
de evitar alguma desvantagem, simplesmente quer que alguma coisa aconteça ou seja
feita. Um exemplo para um (ACS) é oferecido: o mercador em um navio, que, em meio
a uma terrível tempestade, lança ao mar os seus bens, no intuito de evitar o naufrágio
e a perda da vida. Cumpre prestar atenção ao modo como Scotus descreve as decisões
feitas pelo mercador. Essa pessoa “incondicionalmente” ou “absolutamente”
(simpliciter) quer lançar fora aqueles bens. Afinal de contas, é a vontade, através de
um comando seu, que move a potência ativa do mercador (o corpo, os braços, as mãos,
etc.) para lançar ao mar os bens. Em tal caso, assim afirma Scotus, a vontade – que é
aqui a voluntas, naturalmente – se move livremente, dado que ela “não pode ser
forçada”. Scotus não vê coação danosa nesse cenário – ele assume autodeterminação
ou automovimento da vontade com respeito à ação resultante e espontaneidade. O
homem, naquela situação in extremis, lança ao mar os seus bens por querê-lo
simpliciter, o que é outra maneira de dizer que ele dá o seu “consentimento”
(consensus) interno pleno. Caso ele não lançasse fora, ao mar, os seus bens por
atualmente desquerer simpliciter o lançar fora ao mar as coisas, naquela situação, ele
daria (a si mesmo) um comando oposto – realizaria um dissensus – e agarraria em
suas mãos todos os seus preciosos bens. Mas, o Doutor Sutil aceita dizer que o
mercador é alguém que dissente “em determinado aspecto” (secundum quid): ele
“condicionalmente” (sub condicione) quer-não o lançar fora as coisas ao mar, pois ele
(absolutamente) quereria-não ou desquereria isso (o lançar fora ao mar os seus bens)
“se ele pudesse de outro modo [alio modo] salvar a sua vida”54.
Deveria estar claro, nesse ponto, que Scotus tem como pano de fundo uma
passagem de Aristóteles, da Ethica Nicomachea III.1, em que o Filósofo lida com
dilemas acerca da voluntariedade e da coação – em Ethica Nicomachea III.1-3,
Aristóteles lida com o hekôn, hekousios / voluntarium e o akôn, akousios /
involuntarium, ao analisá-los, através de condições de “coação” e “ignorância” ou
“desconhecimento”, no contexto das assim chamadas “ações mistas”, que têm uma
porção tanto de voluntariedade quanto de involuntariedade (cf. mais abaixo,
Subdivisão 4). De toda maneira, o caso analisado por Scotus deveria ser tomado como
54
Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 69, p. 244 (cf. a nota anterior).
Roberto Hofmeister Pich | 689
um problema concernente à coação somente. A propósito, é surpreendente que o texto
de Aristóteles não seja mencionado no aparato crítico do volume correspondente da
Editio Vaticana – e, com efeito, nem em Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 69 nem em pelo
menos outros dois contextos e outras quatro passagens das obras de Scotus em que o
mesmo exemplo aparece. Nos últimos casos, o exemplo não ocorre em uma discussão
sobre a coação, mas a cada vez – em questões teológicas especulativas – na análise de
atos da vontade, em termos de querer e desquerer, “condicionais” e “incondicionais”,
“sob determinado aspecto” e “não sob determinado aspecto” ou “absolutos” 55 . Seja
como for, no contexto ora analisado, Scotus estaria, em certo sentido, propondo uma
explanação a um dos antigos enigmas sobre o voluntário-involuntário em ações mistas,
ao afirmar que aquilo que é querido e somente condicionalmente desquerido é, ainda
assim, um querer em sentido pleno ou simpliciter. Em Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 73,
Scotus conecta isso diretamente ao batismo: se um adulto pressionado por terrores e
suplícios quer-não ou dissente em um sentido qualificado, mas quer ou consente
incondicionalmente na “ablução” (ablutio) do batismo a que a Igreja tem a intenção de
submetê-lo, ele recebe aquele sacramento incondicionalmente, uma vez que ele é um
“volente” (volens) incondicionalmente 56 . Com efeito, pois, Scotus parece em parte
Cf. Ioannes Duns Scotus, Ordinatio III d. 15, q. un. n. 58-59, p. 504-505 (aqui, n. 58, p. 504): “58.
Praeter modos tristandi praedictos duos […], videtur posse poni tertius (vel quartus) modus tristandi:
propter nolle condicionatum, quando scilicet aliquis nollet aliquid quantum in se esset, tamen in aliquo
casu vult illud. Exemplum: mercator, periclitans in mari, nollet – si posset – eicere merces; sed hoc
nolle est condicionatum, scilicet, quantum in ipso est, nollet, tamen simpliciter vult eicere, quia non
coactus ab extrinseco eicit: licet enim propter aliquod non volitum, puta periculum, eiciat, tamen non
cogitur invitus eicere. Haec volitio absolute exprimeretur per ‘volo’, nolitio condicionata per ‘nollem si
possem aliud’. Talis nolitio condicionata videtur sufficere ad tristandum de sic nolito eveniente (sicut
ille tristando eicit merces), nec ibi velle oppositum facit tantum gaudium sicut nolle condicionatum
tristitiam”. Id. ibid., III d. 15 q. un. n. 119-120, p. 527-528: “119. Primum ostenditur in exemplo illo de
periclitante: cum enim ille sit dominus actuum suorum per voluntatem in cuius potestate est uti virtute
motiva vel non uti ad proiciendum, et hoc ita est in potestate eius in periculo sicut alias, – igitur
simpliciter volens tunc proicit, quia a nullo tunc coactus est uti vi motiva. Patet enim quod voluntas
posset ita inordinate amare merces, quod nollet eas proicere etiam pro pericolo evadendo. 120. In
proposito etiam non videtur Christus nolle mortem nisi cum determinatione distrahente, scilicet ‘si bene
fieri posset aliud’, quae [determinatio] ideo distrahit quia condicio non exstat”. Ioannes Duns Scotus,
Lectura III d. 17, q. 2 n. 22, p. 429: “Secundum autem voluntatem liberam, [Christus] nihil voluit quod
non evenit, nec aliquid conti[n]git cuius oppositum voluit; immo sibi complacuit simpliciter in hoc quod
evenit. Secundum quid tamen non complacuit, hoc est voluit si voluntas Dei esset (sicut est de
proiectione mercium in mare). Unde simpliciter voluit secundum portionem superiorem voluntatis,
quae sequitur dictamen rationis aeternae”; id. ibid., III d. 17 q. 2 n. 26, p. 430: “Dico tamen quod mihi
videtur quod nec hic oravit pro aliquo, nec aliquid optavit quin evenit. Nam cum primo oravit, Matth.
26: Mi Pater, si possibile est, transeat a me calix iste, non oravit quopd calix ab eo transiret, sed sub
condicione distrahente, scilicet, ‘si possibile esset’, – quod non fuit possibile secundum potentiam Dei
ordinatam. Cum quo stat quod simpliciter voluit oppositum (ut de proiectione mercium in mari); [...]”.
56 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 73, p. 245: “Si autem ‘secundum quid’ dissentiat,
sed simpliciter consentit (et hoc, dico, non tantum in illam ablutionem tamquam in quoddam balneum,
55
690 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
concordar com o propósito da já aludida passagem da Decretal de Gregório IX,
segundo a qual meios deveras violentos de coação poderiam ser validamente utilizados
para atrair ou, antes, compelir determinadas pessoas a aceitarem o batismo. Porém,
Scotus explica diferentemente os atos da vontade supostos em tal situação e, com isso,
também o critério de voluntariedade daqueles atos.
Nesse sentido, Scotus chega a oferecer dois exemplos adicionais de um dissentir
secundum quid e um consentir incondicionalmente na esfera do batismo. Com eles,
por certo pode-se retomar o que foi afirmado acima sobre os missionários franciscanos
na América Latina. Assim, pois, (1) um adulto pode consentir na ablução do batismo
na maneira como a Igreja o pratica (ACS), embora ele quereria-não (desquereria), “se
pudesse escapar das torturas”, pois ele não crê que a ablução é de qualquer valor
(ADSQ) 57 . E, (2) se alguém não crê nas “palavras de encantamento [incantatio]”
faladas por alguém no tocante aos efeitos, mas concede que o encantador as profira
sobre ele com a intenção que tem com elas, “dizendo no seu coração [ou: no seu
íntimo]: valham [essas palavras] o quanto terão podido valer”, pode-se afirmar que
essa pessoa está “encantada” – em um sentido derivado, ela está “consagrada”58. Essas
são passagens interessantes, de fato – e agora cabe explorá-las dentro do escopo mais
reduzido do problema dos batismos voluntários e involuntários. Primeiramente, o fato
de que a pessoa não crê no valor, no efeito ou, em uma palavra, no significado mesmo
do batismo não implica que ela esteja em (total) ignorância acerca do que se trata no
batismo: tautologicamente, implica somente que ela não crê nele. Em segundo lugar,
a lição central dessas passagens parece ser que, em tais casos, a pessoa consentiria
plenamente em receber o sacramento, embora ela claramente não tivesse qualquer fé
ou crença positiva nele, sendo concedido, contudo, que há indiretamente um apelo a
um critério de fé ou de conhecimento avalizado sobre o que se trata nele, tal como
alguém que diz em seu íntimo, em certa analogia às crianças batizandas que não têm
fé expressa e à fé expressa dos pais e dos padrinhos e das madrinhas que comparecem
sed in ablutionem eo modo quo eam intendit Ecclesia facere), simpliciter recipit sacramentum, quia
simpliciter est volens, licet secundum quid nolens”.
57 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 75, p. 246: “Exemplum huius: qualiter aliquis potest
consentire in illam ablutionem, suscipiendam eo modo quo confertur ab Ecclesia, – et tamen nollet si
posset evadere tormenta, quia non credit eam aliquid valere”.
58 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 76, p. 246: “Exemplum etiam potest haberi de eo
qui non credit ista verba incantationis posse habere aliquem effectum, tamen concedit incantanti quod
dicat illa verba super eum ea intentione qua solet ea dicere, dicens in corde suo: ‘Valeant quantum valere
potuerunt’, – iste vere diceretur incantatus; et si talis incantatio super aliquem diceretur ‘eius
consecratio diabolo’, et ille diabolo esset consecratus”.
Roberto Hofmeister Pich | 691
à cerimônia ritual: “Batiza-me, e ocorra não de acordo com o que eu, mas de acordo
com o que tu crês ou com o que vocês creem!”. Esse apelo bastante indireto à fé e ao
conhecimento de outros não parece ser equivalente a uma situação de
desconhecimento sobre os termos do batismo – supõe-se, com efeito, que o suficiente
conhecimento do que está em questão, pelo adulto alvo de batismo sob coação, é uma
condição necessária para o batismo voluntário. Trata-se no máximo de caracterizar um
consentimento implícito à fé que outros possuem – por exemplo, à fé que a pessoa que
ministra o batismo possui. Seja como for, as consequências perigosas da aceitação
desse tipo de consentimento, por exemplo, nos campos de ação de missionários
entusiastas, desde a Idade Média até a pré-modernidade, são perceptíveis. Ocorre,
ademais, que, segundo uma regra do direito canônico alegada por Gregório IX no Liber
Extra e já anteriormente por Graciano no Decretum59, as pessoas assim batizadas –
casos (1) e (2) reportados – poderiam, então, ser obrigadas pela Igreja à observação da
fé. Não fica claro, porém, se em um batismo correspondente alguém receberia a “coisa”
ou o efeito da graça. Presumivelmente, não. Mas, o batismo estaria feito, e o batizado
estaria sob a jurisdição da Igreja. O caso tem semelhança com a situação da criança
batizada: no intuito de plenamente se beneficiar do dom da graça provido pelo
batismo, a pessoa terá de confirmar a sua fé mais tarde.
3 Batismo, casuística e involuntariedade
Todos os batismos de adultos considerados até esse ponto contariam como
batismos voluntários válidos. Mas, batismos involuntários não são impossíveis. Antes
de mais nada, porém, cabe perguntar: o que a involuntariedade significa nesse
contexto – isto é, a involuntariedade no âmbito de ações e sofrimentos de ação parcial
ou totalmente indesejados? Parece que há involuntariedade em uma ação ou um
sofrimento-de-ação quando a ação ou o sofrimento-de-ação é feito por ou acontece em
um dissentidor atual, isto é, em alguém que em ato e incondicionalmente desquer
aquela ação ou o sofrimento de ação. Essa é uma condição suficiente para uma ação
involuntária ou um involuntário sofrimento-de-ação. Assim, pois, se uma pessoa
dissente incondicionalmente – se “Moctezuma em ato quer-não ou desquer receber o
batismo”, mesmo sob ameaças e suplícios –, ela em princípio não poderia receber o
59
Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 74, p. 246.
692 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
batismo, pois isso seria algo involuntário. Isso valeria ainda mais fortemente, é claro,
no caso de um “dissentidor duplo” ou uma “pessoa duplamente dissentidor”. Scotus
considera um caso adicional, ou seja, de um adulto que quer-não ou desquer o batismo
em ambos os modos, isto é, ele é um dissentidor duplamente (ADD): ele quer-não
(desquer) o batismo “incondicionalmente” (simpliciter) e ele também quer-não
(desquer) o batismo “sob determinado aspecto” (secundum quid). Pode-se imaginar
que Moctezuma, depois de dar atenção à proclamação feita por Toríbio de Benavente60,
em ato desquer ser batizado, mesmo depois de ou sob torturas, e também em ato
desquer ser batizado mesmo se (ou no caso de que) ele não estivesse passando por
suplícios. Esse adulto duplamente dissentidor não deveria receber o batismo. Não há
voluntariedade nesse caso, e no batismo é preciso que a pessoa ofereça o seu “coração”:
Cristo não quer que alguém seja adicionado à sua família totalmente “contra o seu
querer” (omnino invitus)61: embora Scotus não ofereça um exemplo, ele afirma que, se
há duplo dissentimento sobre Deus e a Sua verdade, na perspectiva interna ou no
estado atual da vontade, o batismo não é recebido. Por outro lado, Scotus considera
que o dissentidor que quisesse que a Igreja soubesse de seu duplo dissentimento
deveria ajudar a Igreja a externamente entender o seu protesto. Como qualquer outro
ser humano, a Igreja pode apenas julgar na base do que é externamente manifesto. E,
aqui, silêncio é consentimento. Se a Igreja batiza um dissentidor duplo que não
manifesta externamente qualquer reclamação, ele recebe o sacramento e estará
obrigado pela Igreja – e, pode-se imaginar, pela entidade política, em se tratando de
respublica ou de estado cristão – à observação religiosa62. Nesse caso, ter-se-ia, com
efeito, um batismo involuntário: o sacramento seria recebido sem a vontade do
batizando, ainda que a “coisa” ou o efeito da graça não fosse recebido.
60 Para todos os efeitos, e por razões óbvias, o encontro entre Moctezuma II e Toríbio de Benavente
nunca aconteceu.
61 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 70, p. 245: “Si iste sit utroque modo dissentiens,
dico quod non recipit sacramentum, quia Deus per Sapientem dicit, Prov. 23 [Prov. 23, 26], Filii, praebe
mihi cor tuum, nolens aliquem omnino invitum adscribi familiae suae; suscipiens autem baptismum,
adscribitur per hoc familiae Christi”.
62 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 71, p. 245: “Nec oportet his distinguere de
reclamante sive protestante – signo exteriore – suum dissensum et de non reclamante, quia in rei
veritate, si est dissensus quoad Deum et veritatem, omnino idem est; tamen quantum ad iudicium
Ecclesiae, iudicantis de manifestis et eum qui tacet praesumentis consentire, non cogetur reclamans ad
observantiam christianae religionis, cogetur autem non reclamans”.
Roberto Hofmeister Pich | 693
Scotus chega a afirmar que, no caso de a Igreja batizar um dissentidor duplo
(ADD), na situação de não reclamação externa, de silêncio ou de incomunicação, não
há nenhuma “ofensa” (iniuria). Seria para a pessoa “um mal menor” que começasse a
seguir, então, a lei cristã contra a sua vontade: seria um “mal” menor do que agir, sem
punição, contra a lei cristã. Que essa pessoa, “involuntariamente” ou “contra o seu
querer” (invitus), pressionada agora pela Igreja e pelo reino cristão ou pela entidade
política cristã, faça coisas boas e se afaste do pecado é um mal menor “do que fazer
coisas más livremente e com impunidade”63. Talvez haja uma razão teológica, aqui,
para um batismo válido. Mas, não há, nessa última situação, de duplo dissentimento,
nenhuma voluntariedade na recepção do batismo. É interessante que Scotus parece
aceitar a ideia de que alguém, então, passaria a realizar atos involuntários adicionais
– como, por exemplo, pode-se supor, involuntariamente ir à missa do domingo ou
submeter-se à doutrina em um dia da semana, pressionado pela Igreja. A razão por
que esses atos ou fazeres secundários são involuntários parece ser que eles, de alguma
maneira, são consecutivos e encadeados a uma ação involuntária original ou um
original sofrimento de ação externa involuntário.
Deveria ficar claro nesse ponto que, embora essa não seja uma tese sobre o
voluntarium e a ação voluntária, mas sobre o batismo, Scotus relaxa o critério de
acordo com o qual todo batismo válido tem de necessariamente ser precedido por um
ato ou uma decisão voluntária. Com efeito, em dadas circunstâncias a sua validade ex
opere operato e a sua validade sob a estrutura potentia-absoluta-et-ordenata podem
ocorrer sob certas formas de pura coação, com nenhuma mistura de aspectos
voluntários e involuntários no recipiente, em absoluto. É assim, por exemplo, que
Scotus explica a passagem do Liber Extra, do Papa Gregório IX, que se referia a um
cânone promulgado no III Concílio de Toledo (em 589) – ou, talvez, no IV Concílio de
Toledo (em 633), a ser encontrado no Decretum de Graciano: aqueles que, no passado,
“foram coagidos ao cristianismo” e tiveram, então, parte nos sacramentos divinos,
esses devem agora ser coagidos a manter a sua fé, que eles receberam a modo de
Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 72, p. 245: “Nec in hoc potest argui Ecclesia quod
isti nolenti, tamen non reclamanti, fiat iniuria: minus enim malum est sibi quod invitus servet Legem
christianam quam quod impune permittatur agere contra eam, quia minus malum est invitum aliqua
bona facere et mala fugere quam libere et impune mala agere et bona omittere’.
63
694 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
necessidade, de forma que “o nome de Deus não seja objeto de blasfêmia”, e a fé uma
vez recebida não se torne “vulgar e desprezível”64.
De qualquer modo, o que é essencial, assim parece, é a distinção que ajuda a
entender o que seria, de potentia ordinata pelo menos, um batismo minimamente
válido, conveniente – por causa do seu caráter ultimamente voluntário e, pois, nãocoagido. Tem-se em vista o batismo minimamente conveniente, precedido por ou
sendo o seguimento de um ato que é uma mistura do voluntarium atual em um sentido
absoluto e do involuntarium atual em um sentido qualificado, isto é, de um
“consentimento” atual simpliciter e de um “dissentimento” atual secundum quid ou
sub condicione, mas que, afinal de contas, não é em absoluto uma coação. Assim, se
Moctezuma, sob pressão de suplícios e terrores, explicitamente disser “Ser batizado é
a minha vontade”, consentindo incondicionalmente, mas também dizendo para si e
qualquer um que possa ouvir “Eu desquero em certo sentido”, isto é, “Eu [totalmente]
o desquereria, se eu não estivesse passando por suplícios”, ele poderia ser e
eventualmente seria batizado validamente. A propósito, para a sua sorte, ele jamais
precisaria ser batizado de novo65.
4 Alguma solução para um dos enigmas da voluntariedade?
Antes de tecer um comentário sobre como a análise, por Scotus, de algumas
situações limite da voluntariedade acaba por oferecer uma nova interpretação da
voluntariedade no caso das ações mistas, cumpre enfatizar, outra vez, que o
entendimento de Scotus sobre o que alguém quer e desquer, naqueles casos, difere do
que fora afirmado por Gregório IX, no texto referido. Ele também difere – e isso pode
ser ainda mais relevante – do que “alguns autores” como Tomás de Aquino disseram
acerca das ações mistas em Ethica Nicomachea III.1 66 . Comentando sobre o ato
Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 74, p. 246: “Et de tali loquitur illud Concilium
Toletanum quod allegatur Extra, ‘De baptismo et eius effectu’, “Maiores”: “Illi qui iam pridem ad
christianitatem coacti sunt, quia iam constat eos sacramentis divinis associatos, oportet ut fidem, quam
necessitate susceperunt, tenere cogantur, ne nomen Domini blasphemetur, et fides, quam susceperunt,
villis et contemptibilis habeatur”.
65 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio IV d. 4 p. 2 q. 1 n. 77, p. 246: “Patet autem differentia huius membri
‘secundum quid dissentientis’ a membro preaecedente [n. 70], quia ille ‘simpliciter dissentiens’ omnino
non recipit sacramentum, et ideo cessante dissensu esset simpliciter baptizandus; ille autem qui
simpliciter consentit, licet secundum quid dissentiat, est baptizandus, et ideo – cessante dissensu illo
secundum quid – non est iterum baptizandus”.
66 Ioannes Duns Scotus, Ordinatio III d. 15 q. un. n. 118, p. 526-527: “Et quod aliqui dicunt in huiusmodi
[volente] esse voluntarium mixtum involuntario, et quod illud simpliciter est volitum quod quis vult
64
Roberto Hofmeister Pich | 695
realizado pelo mercador que jogou ao mar os seus bens e supondo que aquele fora um
ato voluntário misto com traços do voluntarium e do involuntarium, Tomás de Aquino
afirmou que (a) o mercador queria “condicionalmente” ou “em certo sentido” o que a
presente necessidade então exigia dele, isto é, o jogar ao mar os seus bens –
lamentando e de fato ficando triste por causa daquilo –, tal que a sua ação mesma
naquela situação in extremis foi uma ação voluntária “condicionalmente” ou “sob
determinado aspecto” (secundum quid); (b) o mesmo mercador quis em um sentido
absoluto ou incondicionalmente (simpliciter) o que dependeria de seu querer como
tal, se aquilo fosse possível, isto é, não jogar os seus bens ao mar. Assim, pois, (c) o
lançar fora os seus bens naquela situação limite deveria ser tomado como algo
“incondicionalmente
involuntário”
(simpliciter
involuntarium),
mas
“condicionalmente voluntário” (voluntarium secundum quid), e isso ainda seria o
bastante para dotar de voluntariedade uma dada “ação mista”. Contudo, Scotus crê
que essa é tanto uma equivocada descrição quando um parecer falso sobre a
voluntariedade, também, ou especificamente, no caso de ações mistas tais como as que
estão em debate.
Pode-se dizer que o tratamento dado por Scotus a tais consentimentos atuais in
extremis traz alguma explanação para um dos muitos enigmas sobre o voluntarium e
o involuntarium em ações mistas, a saber, naquelas ações que são descritíveis como –
e até mesmo equivalem a ou são precedidas de – um misto de eleições ou escolhas, em
que, contudo, um aspecto daquela conjunção predomina, tal que a eleição / ação é
determinável como voluntária ou involuntária? No esquema clássico de Aristóteles
para esses problemas, o hekousios-voluntarium é assim definido: “aquilo [a] cujo
princípio [de movimento para a coisa querida ou desejada] está no próprio agente, à
medida que [b] ele conhece cada aspecto com respeito à ação [ou ao atingimento do
bem intencionado]”67 – o akousios-involuntarium se caracteriza, por oposição, por [a]
quantum in ipso est, et illud nolitum secundum ‘quid’ quod vult propter necessitatem praesentem (puta:
simpliciter voluntarium est periclitanti non proicere merces, vel simpliciter involuntarium est
periclitanti proicere merces, ideo tristatur de proiectione, et proicere est voluntarium secundum ‘quid’),
et sic in proposito dicerent quod Christus absolute mortem noluit, quia quantum in ipso fuit et
secundum ‘quid’ eam voluit, – hoc credo falsum tam generaliter quam in proposito”. Scotus pode estar
se dirigindo ao comentário de Tomás de Aquino à Ética a Nicômaco III.1 (Sententia libri Ethicorum III
c. 1).
67 Traduzo a passagem relevante da Ética a Nicômaco III.1 em cotejamento com: Aristoteles,
Nikomachische Ethik, auf der Grundlage der Übersetzung von Eugen Rolfes, herausgegeben von
Guenther Bien, Hamburg: Felix Meiner, 1972, III.3, 1111a23-26, p. 46; Aristotle, Nicomachean Ethics,
translated by W. D. Ross, in: The Basic Works of Aristotle, edited and with an Introduction by Richard
McKeon, New York: Random House, 1941, III.1, 1111a23-26, p. 967. Nas demais traduções (cf. abaixo),
696 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
coação e / ou [b] desconhecimento como princípios ou causas da ação realizada. Se a
partir do primeiro aspecto da definição pareceria possível incluir crianças e seres vivos
não-humanos na esfera do voluntarium, o segundo aspecto da mesma forçaria a
conclusão de que não-humanos e crianças não agem voluntariamente 68 . Um ato
voluntário – com desejo direcionado a um fim e com conhecimento das circunstâncias
de ação – em situações ideais, é experimentado pelo agente como uma “eleição
deliberada” (prohairesis)69, embora o voluntário tenha uma extensão mais ampla que
o caso ideal, e isso se evidencia justamente quando casos complexos de deliberação são
examinados.
É oportuno ressaltar as características básicas do “não-voluntário” e
“involuntário” (ouch hekôn, akôn, akousios), segundo Aristóteles – na sequência,
inverto a ordem de exposição constante na Ethica Nicomachea III: (ii) há ato
involuntário quando ele é feito a partir de ignorância (di’ agnoian), e isso basicamente
quer dizer que, por causa do desconhecimento das circunstâncias da ação, aquilo que
um agente faz acabará sendo diferente daquilo que foi intencionado por ele: nesse
sentido, não será o seu próprio ato; mais especificamente, em vindo a conhecer as
circunstâncias e percebendo a não intencionalidade do ato, o agente “involuntário” se
arrepende, ao passo que o agente “não-voluntário” não padece de arrependimento
após inteirar-se de tais aspectos70. Estou assumindo que os poucos casos propostos por
Scotus e aqui considerados – limitados, ademais, aos seus contextos de problemas
(práticas batismais relativas a adultos, possivelmente pessoas professantes da fé
judaica vivendo em estados cristãos) – não testam a voluntariedade de receber ou o
voluntário aceitar do batismo através do critério de graus de desconhecimento. (i)
Ademais, há ato involuntário, para Aristóteles, quando ele ocorre sob o efeito de
basicamente traduzo a partir da versão para o inglês de W. D. Ross. Cabe deixar indicado que, para o
trecho em questão, ainda que as duas traduções sigam a numeração cifrada da edição crítica de
Immanuel Bekker (1831), a divisão de capítulos em Ethica Nicomachea III apresenta, nos dois casos,
diferenças.
68 Cf. Aristotle, Nicomachean Ethics, translated by W. D. Ross, op. cit., VI.2, 1139a18-1139b13, p. 10231024.
69 Aristotle, Nicomachean Ethics, translated by W. D. Ross, op. cit., III.2, 1111b7-1112a18, p. 967-969.
70 Aristotle, Nicomachean Ethics, translated by W. D. Ross, op. cit., III.1, 1110b18-24, p. 966: “Tudo o
que é feito em razão de ignorância não é voluntário; só o que produz dor e arrependimento é
involuntário. Pois o homem que fez alguma coisa devido à ignorância, e não sente a mínima vexação em
sua ação, não agiu voluntariamente, dado que ele não sabia o que estava fazendo, nem todavia
involuntariamente, dado que ele não sente dor. Das pessoas, pois, que agem em razão de ignorância
aquele que se arrepende é considerado um agente involuntário, e o homem que não se arrepende pode,
dado que ele é diferente, ser chamado de um agente não voluntário; afinal, dado que ele difere do outro,
é melhor que ele tenha um nome que lhe seja próprio”.
Roberto Hofmeister Pich | 697
“violência” (bia), caso em que a razão do agir não está no agente ou o agente não exerce
poder ou influência sobre o agir que ele, antes, sofre71. As “ações mistas”, contudo, que
têm uma mistura de voluntariedade e involuntariedade, aparecem como uma análise
caso a caso, e especialmente com respeito à coação ou à compulsão Aristóteles procura
testar se o caráter ou a força da violência psíquica evita que o agente seja o princípio
do movimento para um bem representado e intencionado.
Com efeito, Scotus permanece próximo à ideia-chave de Aristóteles de que atos
sob dadas formas de coação psicológica são voluntários enquanto forem de tal modo
concebidos e descritos que o agente, afinal de contas, porque esse está suficientemente
em seu poder, é a origem verdadeira do movimento do corpo 72 . O que parece ser
particularmente novo no relato de Scotus é, em primeiro lugar, e reiterando o que já
foi dito sobre a diferença de sua análise na comparação com os pareceres de Gregório
IX e de Tomás de Aquino, a ideia de que em ações mistas como aquela do mercador no
navio em meio à tempestade o que ele decide fazer e faz expressa o seu consentimento
incondicional, combinado com um dissentimento secundum quid – Aristóteles,
porém, explicaria o ato invertendo a posição do “incondicionalmente” e do
“condicionalmente”. A explicação de Scotus, em defesa de sua tese, parece depender
da convicção na total autodependência da vontade e na sua intangibilidade causal no
tocante a fatores externos ou causas externas – a vontade, em última análise, não é
forçada a nada –, bem como do entendimento de que aquilo que dá forma à decisão /
ação é sempre aquilo que a vontade faz ou quer simpliciter. Em segundo lugar, e agora
Aristotle, Nicomachean Ethics, translated by W. D. Ross, op. cit., III.1, 1110a1-19, p. 964-965: “São
consideradas, pois, involuntárias aquelas coisas que têm lugar sob compulsão ou devido à ignorância; é
compulsório aquilo cujo princípio movente está fora, sendo um princípio no qual nada tem a
contribuição da pessoa que está agindo ou sofrendo a ação, por exemplo, se alguém estivesse sendo
levado para algum lugar pelo vento ou por homens que o tivessem em seu poder. Mas, com respeito às
coisas que são feitas por medo de grandes males ou por algum objetivo nobre [...], pode ser debatido se
tais ações são involuntárias ou voluntárias. Algo do tipo ocorre também com respeito ao lançar os bens
ao mar, em uma tempestade; afinal, pura e simplesmente ninguém joga fora os seus bens de modo
voluntário, mas, sob a condição de assegurar a salvação de si mesmo e da sua tripulação, qualquer
homem razoável o faz. Tais ações, pois, são mistas, mas são mais como ações voluntárias; afinal, elas
valem a escolha no momento em que são feitas, e o fim de uma ação é relativo à ocasião. Ambos os
termos, pois, ‘voluntário’ e ‘involuntário’, devem ser usados com referência ao momento da ação. Agora
o homem age voluntariamente; pois o princípio que move as partes instrumentais do corpo em tais
ações está nele, e as coisas das quais o princípio movente está em um homem mesmo estão em seu poder
fazer ou não fazer. Tais ações, portanto, são voluntárias, mas pura e simplesmente talvez [sejam]
involuntárias; pois ninguém escolheria qualquer ato desse tipo em si mesmo”.
72 Sobre os temas ora tratados em Aristóteles, cf. Christof Rapp, Freiwilligkeit, Entscheidung und
Verantwortlichkeit, in: Otfried Höffe (Hrsg.), Aristoteles – Die Nikomachische Ethik, Berlin: Akademie
Verlag 1995, p. 109-133. Cf. também Ian Drummond, John Duns Scotus on the Passions of the Will, in:
Martin Pickavé and Lisa Shapiro (eds.), Emotion and Cognitive Life in Medieval and Early Modern
Philosophy, Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 53-74 (p. 69, nota 52).
71
698 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
com teor mais especulativo, a outra inovação do relato scotista parece dizer respeito a
uma diferente modalidade de contingência sincrônica na volição. Apesar de a
linguagem do texto parece sugerir o contrário, a conjunção do consentimento e do
dissentimento do agente-mercador – portanto, a mistura de voluntarium e
involuntarium em sua ação – não é explicada contrafactualmente. Trazendo
novamente Moctezuma à narrativa, pode-se sugerir que esse seria um “cenário
aristotélico” para a voluntariedade no ser batizado do aborígene asteca: sob a ameaça
de torturas e terrores, “Moctezuma quer agora ser batizado”, mas em outro mundo ou
outra configuração de mundo, em outro tempo, não ameaçado por torturas e terrores,
“Moctezuma (plenamente) desquereria ser batizado”.
Aqui, no cenário aristotélico, a mistura de voluntarium e involuntarium é
explicada contrafactualmente – o “involuntário” incondicional seria o significado de
um evento possível que não tem posição na realidade efetiva reconhecida, isto é, uma
espécie de alternativa à realidade efetiva, jogada para outro hipotético instante de
tempo. Teoricamente – e, para ser mais exato, metafisicamente –, estar-se-ia, a partir
dessa assunção, em necessidade de explicar tal mundo possível, contrafactual, baseado
no único mundo real que existe, isto é, o mundo atual (assumindo-se, aqui, que uma
metafísica aristotélica de mundos possíveis se enquadraria em alguma teoria
“atualista” de mundos possíveis). Esse seria, porém, o “cenário scotista” para a
voluntariedade no ser batizado de Moctezuma: sob a ameaça de torturas e terrores,
“Moctezuma quer agora simpliciter ser batizado”, mas ao mesmo tempo “Moctezuma
desquer secundum quid ser batizado”. No cenário de Scotus, a mistura de voluntarium
e involuntarium não é explicada contrafactualmente, dado que tanto velle quanto
nolle, consentimento e dissentimento, são atuais e simultâneos. Sem dúvida, faz-se
apelo a um contrafactual para o dissentimento qualificado na ação mista, isto é, na
situação contrafactual de não ser ameaçado por torturas e terrores, “Moctezuma
desquereria simpliciter ser batizado”. No entanto, isso não modifica a análise proposta
da estrutura de ações mistas de acordo com Scotus, em casos limite afins, com respeito
à coação. Se o voluntário é um elemento de qualquer teoria da liberdade com base
metafísica, Scotus parece pensar que, no caso de ações mistas ao menos, os elementos
que possivelmente as explanariam não podem estar diacronicamente dispersos no
tempo. É também claro que, para ele, a voluntariedade é sempre plena voluntariedade:
é sempre consentimento absoluto – mesmo que esse “conviva” com um dissentimento
Roberto Hofmeister Pich | 699
condicional. Além disso, é claro que Scotus fornece instrumentos para a análise de atos
e potências ativas – tais como velle, nolle e non velle, bem como simpliciter e
secundum quid – que permitem a conclusão de que os atos da vontade são logicamente
complexos, ainda que temporalmente simples. O voluntário, pois, parece requerer, em
alguns casos ao menos, uma explicação em termos de uma contingência sincrônica de
puras atualidades, tais como “quer simpliciter p & desquer secundum quid p” – um
artifício teórico que deveria ser explorado em mais detalhes. Essa contingência
sincrônica claramente não equivale a “quer p em t & pode desquerer p em t”, tomada
essa em um novo “sensus divisionis”.
Nota final
Cabe dizer, ao final, que, em muitos aspectos, Toríbio de Benavente e outros
franciscanos de seu tempo, cheios de fé e entusiasmo, leram corretamente as
passagens difíceis das Distinções de Scotus sobre o batismo, nas quais se trabalha com
uma intrigante elevada medida para pôr o limite entre o voluntário e o coagido e com
uma embaraçosa flexibilidade no tocante ao critério de profissão de fé bem-informada,
pelo batizando. Contudo, a atitude dos missionários poderia ser combatida ad mentem
Scoti com as mesmas armas de que parecem fazer uso, a saber, o pano de fundo de lei
natural e jurisdição de potentia-absoluta-et-ordinata de autoridades da Igreja e de um
regente cristão. Para Scotus, determinações de lei devem ser consonantes com o dever
de amar a Deus acima de todas as coisas, e as leis humanas, pois, devem ser
convenientes ao que pode realmente e racionalmente ser entendido como conducente
à observação daquele máximo “dever natural”. Qualquer um poderia dizer que
batismos sob coação não o são.
Referências
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Aristoteles. Nikomachische Ethik. Auf der Grundlage der Übersetzung von Eugen
Rolfes. Herausgegeben von Guenther Bien. Hamburg: Felix Meiner, 1972.
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Aristotle. Edited and with an Introduction by Richard McKeon. New York: Random
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38. DESENVOLVIMENTO EXISTENCIAL E EXISTÊNCIA
NEONATAL1
https://doi.org/10.36592/9786587424163-38
Róbson Ramos dos Reis2
1
A ontologia fundamental e a metafísica do ser-aí perfazem o ambicioso projeto
de elaboração do problema da fenomenalidade. No projeto elaborado por Heidegger,
fenomenalidade e normatividade são aspectos de um problema cuja solução reside, de
um lado, na apreensão compreensiva das condições metanormativas de constituição
(os modos de ser) e, de outro, na interpretação das estruturas que tornam possíveis os
comportamentos responsivos a normas. O exame das condições formais que instituem
contextos intencionais em que algo se manifesta significativamente é também o estudo
da constituição da normatividade. É objeto de controvérsia se a interpretação temporal
da compreensão de ser e da liberdade consegue atender às exigências postas com o
problema da fenomenalidade e da origem da normatividade. Contudo, é plausível
sugerir que o pluralismo ontológico e a historicidade do existir humano foram
concebidos por Heidegger como condições básicas da experiência significativa e da
livre vinculação à normatividade dos contextos intencionais. Neste sentido, a analítica
existencial e a metafísica do ser-aí contêm as linhas gerais para elaborar o problema
da origem da normatividade, permitindo elucidar a diferença entre atuar de acordo
com normas e agir segundo uma resposta a normas (Golob, 2020).
Situando-se no marco de uma fenomenologia hermenêutica não naturalizada, a
solução visada por Heidegger não se refere a um âmbito explicativo não normativo
integrado por relações causais. No entanto, afastando-se de um platonismo da
validade, tal solução também não precisa apelar para uma capacidade epistêmica
supranatural de acesso às condições da normatividade. Entretanto, ainda assim paira
a suspeita de misterismo na normatividade. Abordar essa dificuldade exige elucidar a
solução fenomenológico-hermenêutica para o problema crítico da resposta à
1
2
Este trabalho recebeu o apoio do CNPq e da FAPERGS.
Departamento de Filosofia/UFSM
704 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
normatividade dos contextos intencionais. Ainda que não seja parte dessa solução, o
exame da gênese da apreensão das condições metanormativas permite diminuir o
mistério na origem da normatividade.
2
Dado que as condições da normatividade são apreendidas no acontecer
histórico da existência humana, uma sugestão para elaborar a hipótese de uma gênese
ontológica de tal apreensão consiste em situar o problema num marco de
desenvolvimento. Assim, a elucidação do desenvolvimento existencial oferece uma via
para entender o surgimento e as modificações na apreensão das condições da
normatividade e da fenomenalidade. Um requisito básico para iniciar esse projeto é a
caracterização de etapas da existência e, mais especificamente, da existência infantil.
Evidentemente, é um erro categorial exigir de uma investigação transcendental
um procedimento em termos de psicologia do desenvolvimento. No entanto, ao
considerar as condições da normatividade como sendo existenciais e históricas, a
fenomenologia hermenêutica remove essa inconsistência. No entanto, seria injusto
objetar ao projeto de Heidegger, orientado para obter os requisitos conceituais para a
ontologia fundamental e a metafísica do ser-aí, a falta do exame dos problemas de
psicologia do desenvolvimento. Ainda que Heidegger não tenha proposto um exame
do desenvolvimento das estruturas existenciais, da compreensão de ser e da formação
de mundo, ele ofereceu uma concisa abordagem de aspectos da existência infantil. Nela
são traçadas as direções e condições de uma interpretação ontológica do ser-aí infantil.
A partir da reconstrução da interpretação esboçada por Heidegger, abrem-se duas
orientações de análise. A primeira é o exame da compatibilidade com os mais
importantes resultados da pesquisa em psicologia experimental do desenvolvimento
das últimas décadas. A segunda é a elaboração de uma noção de desenvolvimento
existencial. Deste modo, o problema da origem desenvolvimental das condições da
normatividade poderá ser formulado em bases mais plausíveis. Na presente
contribuição, não seguirei nestas duas direções. Farei apenas a reconstrução do esboço
de interpretação ontológica do ser-aí infantil formulado por Heidegger em 1928.
3
Antes de iniciar uma fenomenologia da temporada (Sena, 2019) inicial da
existência, Heidegger julga pertinente explicitar um conceito fundamental, que define
o domínio de referência da investigação. Tal explicitação contém duas características:
Róbson Ramos dos Reis | 705
a existência infantil é constituída como ser-aí diferente. Na condição de ser-aí, os
infantes também dispõem da apreensão de condições metanormativas que
possibilitam interações intencionais significativas. Dispor de tais condições implica
que estão abertos contextos em que os comportamentos se referem a algo significativo.
Em tais contextos, vigora uma normatividade de fenomenalização, uma luminosidade
(Helligkeit). Na condição de outro ser-aí, a alteridade implica a presença de aspectos
estruturais que determinam a normatividade e a fenomenalidade próprias do período
da infância. O espaço lógico admite, portanto, que a temporada infantil disponha de
condições metanormativas próprias e que, ao mesmo tempo, não disponha de outras
condições, específicas de outros períodos da existência humana. Tal ausência, contudo,
não é uma falha, uma deficiência que seria suprida ao longo do desenvolvimento
existencial.
Na hipótese de que o período infantil não disponha de uma luminosidade
específica, essa diferença não é uma falha, uma incompletude a ser eventualmente
plenificada ao se alcançar outras temporadas. Por exemplo, caso esteja ausente a
condição que permite referir-se a si mesmo em um momento futuro do tempo,
requisito para a atribuição da capacidade de uso de utensílios como utensílios
(McCarty et al., 1999), configura-se uma alteridade, mas não uma falha na
fenomenalidade normativa infantil.
Desse modo, a fenomenologia da existência infantil tem por objetivo a
apreensão conceitual das estruturas constitutivas de um ser-aí diferente. Essa não é
uma tarefa complexa apenas em razão das dificuldades epistêmicas. Há uma razão
estrutural na dificuldade de uma fenomenologia do ser-aí infantil:
Talvez a criança somente seja criança porque em um sentido metafísico ela é algo
que nós adultos não mais concebemos de maneira alguma. (Heidegger, 1996, p.
311)
Feita no contexto de uma análise do conceito de jogo, essa declaração sugere
que a infância seria uma propriedade relacional, referida à dinâmica restritiva das
capacidades epistêmicas dos adultos. Ao amadurecer, cada vez mais o mundo infantil
deixa de ser apreendido, e é isso que perfaz a propriedade de ser infantil. Contudo, a
expressão “em um sentido metafísico” sugere que a restrição da capacidade de
apreensão seja uma consequência da constituição ontológica da infância. Talvez a
infância seja uma alteridade que intrinsecamente se retira da fenomenalidade próprias
706 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
dos adultos. A opacidade da infância, que não é completa, é análoga àquela que
Heidegger atribui à vida de animais e plantas, com os quais os humanos conseguem
compartilhar suas respectivas formas de intencionalidade, mas apenas parcialmente.
Que a infância deva ser concebida como alteridade íntegra no ser-aí implica uma
definição metodológica:
No entanto, se as etapas e períodos do estágio primevo do homem, como criança
ou no tempo pré-histórico, são diversos – que lhes falte uma luminosidade
específica não é nenhuma falha –, então vem à tona a pergunta metodológica
básica sobre como afinal se deve apreender esse outro ser-aí. Isso só acontece de
maneira privativa, isto é, partindo de uma concepção positiva basilar do ser-aí, não
sem o fio condutor de uma ideia de homem em geral. Aquilo com o que meço deve
estar determinando de antemão e, por conseguinte, essa medida – como todo
fundamento de uma privação – não é inessencial, senão que é codeterminante para
o que deve ser determinado de maneira privativa (Heidegger, 1996, pp. 123-124).
4
A interpretação privativa é a via metodológica da fenomenologia da vida
orgânica (Reis & Ramalho, 2010). Heidegger entende que a infância da existência
também é acessível para a fenomenologia com a adoção de um procedimento privativo.
A diferença reside em que a vida orgânica é um modo de ser irredutível e distinto do
modo de ser da existência. A infância, por sua vez, é uma especificação interna à
existência. O que há de comum em ambas as aplicações da via privativa é que não se
trata de uma maneira de proceder por abstração. A via privativa não é aplicada em
conceito já dado de existência em geral. O domínio de aplicação da interpretação
privativa tem como campo de referência os metamodelos – ou situação hermenêutica
– das ciências do desenvolvimento e da infância.
A via privativa não consiste em uma abstração, no sentido de que as
determinações da infância seriam obtidas por negação da atribuição das
determinações positivas fixadas no conceito de existência adulta. A dificuldade do
procedimento abstrativo
reside
em
conceber
a
investigação ontológica
e
fenomenológica como sendo apenas análise conceitual, que procederia sem tomar em
consideração o estudo e as investigações do próprio fenômeno da infância. Além disso,
tal entendimento da abstração suporia que os períodos da existência são especificações
acidentais do gênero acidental existência. No entanto, a existência pode ser concebida
Róbson Ramos dos Reis | 707
como uma dimensão de generalidade categorial, na qual as especificações são
epistemológica e ontologicamente prioritárias em relação ao gênero categorial. 3
Não sendo uma operação abstrativa, a via privativa consiste numa concepção
metateórica dirigida para os metamodelos das investigações positivas, tendo como
objetivo permitir que o que está ausente se mostre como tal, e não de acordo como as
determinações do que está manifesto. Especificamente, trata-se de permitir que as
determinações da infância se apresentem como tais, e não a partir da perspectiva ou
da situação da existência adulta. A privação consiste em um procedimento de restrição
da valência da situação hermenêutica da existência adulta na investigação da infância.
Portanto, a via privativa tem uma orientação positiva e de revisão crítica. Positiva
porque é o esforço para deixar que a existência infantil se mostre como tal e a partir de
si mesma, e não a partir da perspectiva adulta. Crítica porque ela implica a revisão dos
supostos das ciências da infância, na hipótese que estejam baseados na situação
hermenêutica da existência adulta.
Concretamente, a interpretação privativa não admite um procedimento teórico
exclusivamente reconstrutivo, dado que a recordação da infância pertence à existência
adulta. Também como no estudo da vida orgânica, a via privativa inclui o
acompanhamento compartilhado da fenomenalidade infantil e adulta, introduzindo
cláusulas de reiterado exame da presença não explícita de conceitos e perspectivas
próprios da existência adulta. A interpretação privativa é, portanto, compatível com a
psicologia experimental do desenvolvimento e com o paradigma da desabituação
(Rochat, 2004, pp. 8-11). Naturalmente, é possível ser agnóstico sobre o conhecimento
da existência infantil. Esse não é, contudo, a atitude da fenomenologia hermenêutica.
Segundo Heidegger, a interpretação privativa sugere a necessidade de revisão nos
resultados da pesquisa psicológica, psicanalítica, antropológica e etnológica:
Com base na pesquisa psicológica, psicanalítica, antropológica e etnológica temos
hoje possibilidades mais ricas de visualização em determinados contextos do seraí. Todavia, os fatos e fenômenos que se pode aduzir a partir dessas pesquisas
necessitam de uma revisão crítica fundamental, caso sejam tomados em
consideração para modos essenciais do ser-aí. Essa revisão deve ser guiada pela
tese fundamental de que se em relação ao ser-aí infantil, assim como em relação
ao ser-aí do povos primitivos, o que está em questão é um ser-aí humano, então
lhes é subjacente um caráter essencialmente histórico, ainda que simplesmente
não reconheçamos esse caráter. (Heidegger, 1996, p. 124).
Sobre a teoria dos tipos de generalidade, ver Ford (2011). Sobre a existência como dimensão de
generalidade categorial, ver Zuckermann (2015).
3
708 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
5
O método para a interpretação ontológica da infância não é delimitado apenas
como procedimento privativo, mas Heidegger também acrescenta que se faz
necessário a elaboração especial da posição de partida para realizar um movimento de
retrocesso (Rücklauf). A condição é formulada a partir de uma consideração sobre o
fenômeno do nascimento. De modo análogo ao fenômeno da morte, o nascimento
precisa ser concebido de modo existencial, e não como um fato, evento ou
acontecimento biológico. O nascimento não é algo que se deixou para trás, como uma
estação pela qual se passou (Heidegger, 2006, p. 140). Ao contrário, o nascimento é
constantemente presente ao longo do existir. Essa característica somente é inteligível
quando se entende o nascimento como fenômeno existencial, ou seja, relacionado com
a determinação modal da existência humana.
O conceito existencial de morte é definido como a possibilidade da
impossibilidade, ou seja, como a perda de toda vinculação à possibilidade existencial
e à correspondente significatividade dos contextos intencionais. Por analogia, o
nascimento consiste na vinculação à significatividade e à dimensão de possibilidades.
Como não há individuação pessoal antes dessa vinculação, ela somente pode resultar
da projeção de outros. Não se trata de uma dependência causal, mas de projeção alheia
no espaço de possibilidades. Diferentemente do que se passa na singularização
provinda da morte, em que o ser com os outros se torna irrelevante (Heidegger, 1979,
pp. 399-40), com o nascimento, a concreção da socialidade evidencia-se como
maximamente relevante. É dos outros, pais e cuidadores, que se origina a inserção em
uma significatividade já particularmente formada e interpretada.
Com o nascimento, o ser-aí chega ao mundo, no sentido de uma ligação inicial
com a dimensão de possibilidades que permite a formação histórica de uma
individuação própria. Sendo constante e não vicária, a primeva inserção concreta em
uma significatividade somente é alcançável para a fenomenologia com um movimento
de recursão ou retrocesso. Esse movimento possui uma posição de partida, cuja
elaboração é especialíssima, diferente da elaboração do ponto de partida da dinâmica
de antecipação precursora da morte, por exemplo. É decisivo Heidegger considerar
que também a interpretação da infância esteja submetida à mesma condição de
elaboração do ponto de partida:
Róbson Ramos dos Reis | 709
Ao nascimento devemos ir necessariamente em um retrocesso. No entanto, esse
retrocesso não é simplesmente a inversão do ser para a morte. Para esse retrocesso
é mister uma elaboração da posição de partida totalmente diversa da que se
empreende em todo outro curso para algum limite do ser-aí. O mesmo vale de
modo correspondente para a interpretação da infância, caso ela não tenha apenas
intuitos psicológicos ou pedagógicos. (Heidegger, 1996, pp. 124-125)
6
A elaboração do ponto de partida da interpretação que retrocede à infância
resulta em três orientações gerais. O período a que deve chegar o retrocesso não é a
infância que já atravessou o portal simbólico com a aquisição da linguagem. Tampouco
são os períodos demarcados com a revolução dos nove meses (entendimento de outras
pessoas como agentes intencionais) e com a revolução dos dois meses (engajamento
ativo e deliberado com o ambiente), mas a fase neonatal do recém-nascido (Rochat &
Striano, 1999). Mais exatamente, Heidegger solicita que se considere o primeiro
momento imediatamente após o parto. Tendo presente a condição neonatal, a
interpretação deve, em segundo lugar, ter em vista o aspecto da disposição afetiva do
bebê. Por fim, a elaboração do ponto de partida da interpretação precisa esclarecer a
estrutura ontológica de certos tipos de movimentos, que em última instância são
fenômenos da intencionalidade.
A consideração do primeiro momento da fase neonatal identifica o choro e o
movimento sem orientação télica como característicos desse modo do ser-aí infantil.
Tal estado é determinado por quietude, calor, alimentação, sono e estado de
sonolência. Nesse ponto, é preciso evitar uma inferência que, tomando por base a
constatação desses aspectos determinantes, conclui que nessa condição o bebê seria
um sujeito encerrado em si. Totalmente imerso em si mesmo, somente com o decorrer
de semanas o bebê chegaria aos objetos. De acordo com Heidegger, esse ponto de
partida é fundamentalmente equivocado. A justificativa para a recusa dessa concepção
consiste numa interpretação do primeiro choro.
Já esse ponto de partida é fundamentalmente equivocado, uma vez que a reação
da criança – caso possamos nos orientar por tal expressão – tem o caráter de
choque, de susto. Talvez o primeiro choro já seja um choque bem determinado.
Susto é uma sensibilidade à perturbação, uma forma originária do deter-se e
reparar em algo, um comportamento do deixar algo ser, mas também um ser
surpreendido e desconcertado por..., sendo que ainda está velado aquilo que
desconcerta. (Heidegger, 1996, p. 125)
710 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Observa-se que Heidegger visa o significado do primeiro choro, e não os seus
aspectos fisiológicos e funcionais. Sendo um tipo de susto, o choro é um
comportamento que deixa algo ser ao modo do que atinge, perturba e desconcerta.
Trata-se de um comportamento intencional, ainda que o correlato da perturbação não
está desvelado como tal para o recém-nascido. Essa interpretação, consistente com
recentes análises fenomenológicas do significado do primeiro choro (Van Manen,
2017), também inclui a indicação de um aspecto estrutural na condição com a qual já
se chega ao mundo:
Esse desconcerto já é, contudo, um encontrar-se (Befindlichkeit). A essência do
choque somente pode ser clarificada em conexão com o fenômeno do susto e da
angústia. O choque significa que o encontrar-se é perturbado, que entra em cena
um mal-estar que deve ser repelido. (Heidegger, 1996, p. 125)
O primeiro choro é o índice de que já no nascimento os neonatos humanos estão
equipados com uma intencionalidade afetiva. Há uma sintonia que permite a
receptividade ao que surpreende e desconcerta, a capacidade de perturbação na
sintonia afetiva que possui a qualidade hedônica do desconforto ou mal-estar.
Portanto, uma interpretação ontológica da infância não pode deixar de considerar a
abertura afetiva dos recém-nascidos. Além disso, a interpretação do choque precisa ser
conduzida em conexão com os fenômenos afetivos do susto (portanto, do medo) e da
angústia. Não se trata da atribuição da angústia adulta aos recém-nascidos, pois ela
supõe a desvinculação completa de uma ligação já alcançada com a significatividade.
Pode-se conjecturar que é a sintonia afetiva da perda da ligação na existência fetal e do
começo da vinculação à significatividade do mundo (Van Manen, 2017, pp. 1073-1074).
Heidegger apenas formulou essa indicação, que integra a preparação da posição de
partida do retrocesso à infância: a interpretação da afetividade neonatal, com o foco
no fenômeno do choque elucidado em conexão com os fenômenos afetivos do susto e
da angústia. É evidente, portanto, que a fenomenologia da afetividade pré-intencional
é um requisito para a interpretação da existência neonatal.
A existência infantil inicial é caracterizada como um estado determinado por
sonolência (Dämmerzustand). Nessa condição, há atividade motora. O movimento
agitado no espaço não é ainda dirigido para algum fim específico. Porém, os
movimentos possuem direção e orientação: dirigido a…, até…, para fora de… Tais
movimentos ainda não podem ser descritos como um voltar-se ativo que faz uso
Róbson Ramos dos Reis | 711
determinado de algo. Contudo, mesmo no estado de sonolência, há um estar dirigido
a algo, de tal modo que, para o recém-nascido, há um tipo peculiar de patentização de
entes. Por certo, é um modo muito peculiar de intencionalidade, não caracterizável
apenas como resposta causal a estímulos ou consequência de instruções selecionadas
evolutivamente. Não estando encerrado em si mesmo, o estado inicial da existência
infantil é dotado de uma maneira própria e peculiar de ser junto aos entes.
O estado de sonolência no qual se acha um tal ser-aí primevo não significa que
ainda não haveria aí nenhuma relação com o ente, mas significa que esse
comportar-se em relação a… ainda não tem um objetivo determinado. O ser junto
aos entes ainda está, em certa medida, nublado, ainda não está aclarado, de modo
que esse ser-aí ainda não pode fazer nenhum uso determinado do ente, junto ao
qual, de acordo com sua essência, ele já sempre se encontra. (Heidegger, 1996, p.
126)
O estado de sonolência não é descrito com mais detalhes. Não há indicações
sobre sua duração, intermitência ou dinâmica. Heidegger registra que a saída da
sonolência é passiva, pois o recém-nascido é arrancado (entrissen) de tal estado. Uma
direção de continuidade na análise é aberta com uma fenomenologia do sono infantil,
como ponto de partida para descrever o estado de sonolência. Nas breves anotações de
Heidegger sobre o sono, resulta que este não pode ser elucidado com base no conceito
de consciência, devendo ser entendido como uma ligação a si de quem dorme, na qual
ainda há um tipo modificado de abertura para entes (Heidegger, 1983, pp. 91-94).
Tanto o sono, quanto o estado de sonolência estão dotados de um tipo de patência de
entes. Portanto, a saída do estado de sonolência não é a primeira manifestação de entes
para o recém-nascido, mas é a emergência de algo que já era presente anteriormente.
A diferença é que, em tal mudança, ocorre uma claridade, o ente é desnublado, e
acontece a primeira percepção, o primeiro ver propriamente dito (Heidegger, 1996, p.
126).
O estado inicial do recém-nascido, na dinâmica da sonolência, não evidencia
ainda um voltar-se para os entes, ainda que estes sejam manifestos de alguma maneira.
Essa forma de patentização é relativa a uma classe de comportamentos determinados
como esquiva e referidos a uma necessidade autocentrada. São os comportamentos de
aversão ou repulsa (Abkehr) e rejeição ou defesa (Abwehr), relacionados com a
necessidade de quietude, calor e sono. Tal necessidade e os comportamentos de
esquiva são dotados de um caráter negativo totalmente peculiar. Há, portanto, uma
712 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
negatividade muito própria na existência infantil primeva. No entanto, apenas com
essa constatação já é possível inferir uma prescrição metodológica básica para a
interpretação do estado em que primeiramente se situa o ser-aí infantil:
A aversão e rejeição e essa necessidade centrada em si mesma de quietude, calor e
sono têm um caráter negativo totalmente peculiar. Enquanto esses fenômenos de
rejeição, aversão e defesa não forem esclarecidos em sua estrutura ontológica, não
poderemos começar a interpretar em sua essência um estado tal como o da criança.
(Heidegger, 1996, pp. 125-126)
7
A clarificação da estrutura ontológica dos fenômenos da aversão, da rejeição e
da defesa, que Heidegger denomina de interpretação primária, deve começar
diferenciando aversão e rejeição. Ambas são instâncias de um fenômeno mais geral, a
esquiva. A aversão é a mera esquiva inqualificada, ao passo que a rejeição é a esquiva
qualificada adicionalmente como recusa. Ambas são maneiras de fuga. O fugir, por sua
vez, tem sempre algo “em contra” de que se efetiva. Aversão e rejeição são esquivas que
fogem em face de algo, mas passivamente. Não são ainda comportamentos ativos. Esse
é o caso com a defesa, que se diferencia da aversão e da rejeição precisamente por ser
uma esquiva ativa diante de algo. A defesa é a base de origem de um contramovimento,
o contrapor-se ativo.
Os três tipos de comportamentos são próprios da existência infantil já em seus
primeiros momentos. Heidegger não hesita em caracterizá-los como fenômenos da
intencionalidade. De acordo com a analítica existencial de Ser e Tempo (§ 29), todos
os comportamentos intencionais são condicionadas por um encontrar-se préintencional em uma situação. Tal encontrar-se é manifesto nos fenômenos afetivos das
sintonias (Stimmungen). É consistente inferir que, se a existência infantil manifesta
fenômenos intencionais em seu primeiro momento neonatal, nela já deve estar
presente um encontrar-se afetivamente afinado numa situação.
A indicação para identificar essa situação é derivada da interpretação do
significado do primeiro choro como sendo um fenômeno relacionado com o choque e,
mais propriamente, como uma perturbação no encontrar-se. O primeiro choro é a
manifestação de uma sintonia afetiva com a entrada em cena de uma mal-estar. O
choque significa que entrou em cena um mal-estar que deve ser rejeitado (ein
Unbehagen eintritt, das abgewehrt werden soll). Acontece um mal-estar diante do
Róbson Ramos dos Reis | 713
qual uma esquiva de recusa passiva precisa suceder. Portanto, a situação da existência
neonatal manifesta fenômenos intencionais de rejeição do mal-estar. O mal-estar pode
ser entendido como o objeto formal da rejeição. Esse fenômeno intencional é possível
porque o recém-nascido já está posto e sintonizado, ele encontra-se em uma situação
qualificada. É a situação primeira da existência infantil, que Heidegger descreve como
entrega desamparada ao mundo (anfänglich hilflose Auslieferung):
Todos esses fenômenos da intencionalidade são ao mesmo tempo de um tal gênero
que em sua execução eles elaboram a primeira situação na qual se encontra um tal
ser-aí na entrega inicialmente desamparada ao mundo. (Heidegger, 1996, p. 126)
8
Os comportamentos aversivos do recém-nascido diante do mal-estar revelam
para a interpretação o encontrar-se em uma situação de primordial entrega
desamparada. As qualidades da situação – inicial desamparo e entrega – também
orientam um passo a mais na interpretação ontológica. Dito de outro modo: como o
recém-nascido deve estar ontologicamente constituído para poder encontrar-se em tal
situação? Novamente, a orientação da interpretação do primeiro choro – o choque em
face do mal-estar e da perturbação – oferece a direção de análise. Heidegger (1996, p.
125) sustenta que a essência do choque precisa ser esclarecida em relação com o susto
e com a angústia.
O susto é uma das variações do fenômeno afetivo do medo. Medo é a
intencionalidade afetiva diante de algo prejudicial e ameaçador. Além disso, o objeto
formal do medo precisa ser dotado de uma qualidade dinâmica de aproximação. O
ameaçador deve estar próximo. O modo como acontece a aproximação admite
variações. Uma delas diz respeito à velocidade da aproximação, que pode ser constante
e progressiva, ou súbita. Quando o ameaçador é súbito, isto é, chega próximo
subitamente, o medo modifica-se em susto (Heidegger, 1989, pp. 147). A angústia, por
sua vez, diferencia-se do medo por não ter um objeto intencional determinado como
intramundano. Ao contrário, o objeto formal da angústia é o próprio existente. A
ameaça origina-se do próprio existente, na medida em que simplesmente é existência
finita e desterrada (unheimlich) no mundo (Heidegger, 1989, pp. 186-189).
No choque em face do mal-estar, apresentam-se aspectos formais do susto e da
angústia. A situação de uma entrega inicial implica que o recém-nascido foi
714 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
subitamente afastado da vida intrauterina e lançado no mundo da significatividade
normativa.
Essa
significatividade
é
sempre
particularizada
concretamente.
Subitamente, o bebê começa a encontrar-se em contextos intencionais, em relação aos
quais ele precisa aprender a compreender as significações. Subitamente, é preciso
aprender a compreender. Subitamente, ele ingressa em uma situação em que a
condição de sonolência é retirada e, progressivamente, os entes começam a se
patentizar como entes determinados. De outro lado, o desamparo da entrega não
derivado de algo da situação, mas é intrínseco ao próprio recém-nascido. Há um
desamparo originado da própria condição do existente infantil. Aqui, a semelhança
com a angústia: há uma vulnerabilidade constitutiva da existência, no sentido de estar
exposta à necessidade de ligar-se à significatividade do mundo para poder existir. Se a
angústia revela que a significatividade pode ser perdida, a vulnerabilidade da
normatividade existencial, o choque diante do mal-estar, manifesta que a ligação à
significatividade precisa mas pode não ser efetuada.
Pode-se concluir que a interpretação da primeira situação identifica uma
negatividade da existência infantil. A vulnerabilidade e a rejeição do mal-estar, assim
como a correspondente ligação à significatividade, não podem ser sustentadas pelo
próprio recém-nascido. Ele não é autor do próprio desamparo. Ele sozinho não
consegue afastar o mal-estar e existir com seu desamparo. Sozinho não é capaz de
ligar-se à significatividade do mundo. Um problema difícil para a fenomenologia da
existência é constatar se essa negatividade é patente no afinamento afetivo do recémnascido à situação de entrega desamparada. O significado afetivo dos comportamentos
de aversão, rejeição e defesa pode, contudo, ser compreendido por cuidadores. Tais
comportamentos formam a base para o fenômeno da sintonia afetiva (Stern, 1985),
que não possui apenas uma função decisiva no desenvolvimento, mas também define
um contexto de compartilhamento que abre uma via para o mundo afetivo do recémnascido.
9
Com base na interpretação do ser-aí infantil esboçada por Heidegger, pode-se
sugerir uma noção existencial de desenvolvimento. O seu domínio de designação não
é o desenvolvimento biológico, motor ou psicossocial. Desenvolvimento existencial
refere-se à dinâmica das estruturas que condicionam a significatividade e a
fenomenalidade. No entanto, dada a copertinência entre o empírico e o ontológico, as
Róbson Ramos dos Reis | 715
investigações sobre o desenvolvimento precisam ser consideradas quando se tem em
vista a elucidação do desenvolvimento especificamente existencial e ontológico. Por
exemplo, se há fenômenos que somente se mostram genuinamente na interação
motora e agencial, então o entendimento do desenvolvimento da postura ereta e da
liberação das mãos para a atividade manual é relevante para o estudo das condições
de constituição da normatividade nesse campo especial de fenômenos.
O estado da existência do recém-nascido em seus primeiríssimos momentos foi
indicado por Heidegger com duas expressões: sonolência e nublagem dos entes. Nesse
sentido, o desenvolvimento existencial corresponderia à progressiva intermitência
dessa condição para um estado de vigília e desnublamento dos entes. Entendido não
metaforicamente, esse processo corresponde ao acontecer da compreensão de ser, no
sentido da aquisição de uma apreensão definida das condições metanormativas de
constituição. O aprendizado da significatividade concreta corresponde a um
aprendizado da significatividade enquanto tal. Para isso, o acontecer da compreensão
de ser, entendido em contexto desenvolvimental, pode ser descrito como a aquisição
de cognição representacional, compreensão narrativa, compreensão direta e
familiaridade com possibilidades de ação (Vasterling, 2015).
Em termos mais abrangentes, e não apenas como desenvolvimento específico
de estruturas existenciais determinadas, o desenvolvimento existencial corresponde a
uma dinâmica de liberação do cuidado a partir do puro ímpeto (Heidegger, 1986, p.
196; 1988, p. 410). O ímpeto, que torna possível a fuga nos comportamentos neonatais
de esquiva, rejeição e recusa, pode desenvolver-se em cuidado, na acepção técnica que
a noção ganhou na analítica existencial. Visto no aspecto da afetividade intrínseca da
existência, o desenvolvimento existencial corresponde a uma modificação na maneira
de estar situado na dimensão de possibilidades. Formalmente, trata-se de uma
dinâmica em que acontece a modificação da situação de entrega desamparada para
uma ligação de familiaridade e confiança no espaço normativo da significatividade.
Somente assim habilita-se aquela dinâmica que promove a experiência do
estranhamento ou desterro (Unheimlichkeit), que pode implicar o reencontro livre
com uma significatividade genuinamente escolhida e, depois, a partida do mundo. Se
nascer é estar na entrega desamparada, crescer é confiar no “eu posso” que acompanha
toda vinculação normativa à significatividade. Se individuar-se é ingressar no desterro
da assignificatividade e na religação a uma herança de possibilidades, e envelhecer é o
716 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
retorno a uma entrega desamparada, uma nova sonolência em que a nublagem dos
entes se origina da perspectiva de partida do mundo e de ingresso na ancestralidade
(Ruin, 2018).
No tocante ao modo como se dá o desenvolvimento existencial, a constituição
histórica do acontecer da existência humana é inteiramente compatível com o
princípio da equifinalidade (Rochat, 2004, pp. 233-234). Contudo, considerando o
impacto que implica o desenvolvimento da compreensão de ser e a ligação à
fenomenalidade normativa, é plausível a conjectura de que o modo do
desenvolvimento existencial é regulado por uma regulação, e não uma instrução, de
comoção. Nesse sentido, uma característica básica que diferencia o ser-para-a-morte
do ser-para-o-nascimento oferece uma direção para compreender a maneira como se
dá o desenvolvimento existencial.
10
O fenômeno existencial da morte é irrelacional, no sentido de que o colapso da
significatividade e a retomada genuína de uma herança de possibilidades é particular
e individualizante. Nessa dinâmica, o papel das outras pessoas não é originário. Outra
pessoa não consegue retirar a individualidade da experiência do desterro e a
responsabilidade da religação à normatividade. O outro é irrelevante no acontecer
irrelacional da morte, ainda que seja esse mesmo acontecer que está na origem da
relação ontologicamente genuína com outras pessoas (Heidegger, 1986, pp. 264, 298).
Nesse sentido, a irrelacionalidade da morte é plenamente compatível com uma noção
relacional de autenticidade (Gallagher et al., 2018). No entanto, mesmo a contribuição
da interação social na revinculação à significatividade também depende da relação a si
mesmo que supõe uma resposta irrelacional à finitude e ao desterro da existência.
Em relação ao nascimento, o arranjo ontológico é distinto. No nascer, a outra
pessoa não é indiferente, no sentido de que a ligação à normatividade é a recepção de
uma significatividade que não pode acontecer sem a interação social. As descobertas
da psicologia experimental do desenvolvimento, especialmente aquelas apanhadas no
conceito de intersubjetividade primária (Trevarthen, 1979), fornecem apoio
justificacional para a assimetria entre os fenômenos existenciais do nascimento e da
morte. Esse ponto pode ser ilustrado com o exame de um aspecto pouco notado da
estrutura existencial do ser-com.
Róbson Ramos dos Reis | 717
Na psicologia do desenvolvimento, foi enfatizada a relevância do fato de que os
recém-nascidos estão equipados com uma forma ainda inicial de intencionalidade
social (por exemplo, no reconhecimento facial e na imitação neonatal). Contudo, há
um aspecto afetivo da estrutura do ser-com, ressaltado por Heidegger, que é decisivo
para compreender por que o ser para o nascimento é intrinsecamente interacional. Na
análise do medo, Heidegger analisa o temer por outros, ou seja, quando alguém é capaz
de temer por outra pessoa. O sentir medo por outra pessoa situa-se em um espaço
lógico de modificações. É possível sentir um medo genuíno por alguém, que não seja
uma forma aparente do temer por si mesmo. Além disso, é possível temer por alguém,
mesmo quando a outra pessoa não sente medo (por exemplo, porque não percebe ou
não reconhece o objeto do medo). O temer por um outro é um fenômeno excepcional
do ser-com (Heidegger, 1988, p. 399), porque implica uma forma afetiva não
autocentrada de estar com outra pessoa. De um lado, não é um medo em relação a
algum dano ou ameaça a si mesmo, mas é o medo em relação ao dano que outra pessoa
pode sofrer. De outro, é um medo que sobrevém mesmo quando a outra pessoa não
sente essa emoção, por não perceber a proximidade do ameaçador. Essa é
precisamente a situação do recém-nascido.
Lançado numa situação de desamparo, o neonato ainda não possui as condições
integrais para a experiência intencional com o objeto do medo, ainda que esteja
exposto ao que pode gerar dano. Não fossem os seus pais e cuidadores equipados com
a estrutura existencial do sentir por outros, não haveria o medo sentido pelo dano a
que o recém-nascido está exposto. Não fosse a afetividade humana intrinsecamente
social, ou seja, não autocentrada, não aconteceria o sentir medo pelo bebê. Sem essa
sintonia, a compreensão dos afetos infantis não seria fenomenalizada, mas apenas o
resultado casual da eventual adoção de uma crença ou das emoções autocentradas.
Com a possibilidade de sentir por outra pessoa está dada a dimensão para o
desenvolvimento da confiança (Bernstein, 2011). Chegar à posição de que as próprias
necessidades serão atendidas por outro depende exatamente de que essa outra pessoa
seja capaz não apenas de crer que o recém-nascido está em perigo: é preciso que tal
pessoa seja capaz de sentir medo pelo bebê. Esse requisito está capturado na estrutura
existencial do ser-com. Se antigas objeções à falta da socialidade fundamental na
analítica existencial não resistem à análise dos documentos (McMullin, 2013; Crowell,
2013; Reis, 2015), as críticas mais recentes, baseadas especialmente nas descobertas
718 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
da psicologia do desenvolvimento (Gallagher e Jacobson, 2012; Langfur, 2014;
Gallagher et al., 2018), não são de modo algum concludentes (Peters, 2019; Dahlstrom,
2015; Hatab, 2014). Ao contrário, as breves indicações de Heidegger sobre a situação
da existência neonatal, em conjunto com a análise da constituição afetiva da
socialidade existencial, oferecem a firme sugestão de que o nascer, entendido como a
recepção da significatividade, depende da interação capaz de doação supererogatória
e da capacidade de sentir por outros. Paradoxalmente, o sentir medo pelo recémnascido, estando na gênese da confiança e da inserção na dimensão da normatividade
das possibilidades existenciais, é também o que entrega aos seres humanos a
capacidade de individuação a partir da experiência do desterro no ser-para-a-morte.
11
Um conhecimento mínimo das descobertas empíricas e das formulações
teóricas na psicologia experimental do desenvolvimento das últimas quadro décadas
promove a sugestão de que as breves indicações de Heidegger, feitas em 1928, são
robustamente incompletas. Os estudos sobre a vida intrauterina, a imitação neonatal,
o reconhecimento facial, a sintonia afetiva, o desenvolvimento da atenção
compartilhada e da consciência de si, por exemplo, sugerem que os fenômenos de
intencionalidade na existência recém-nascida são ricos, diferenciados e complexos,
não se limitando a comportamentos de fuga no mal-estar. Contudo, não é justo exigir
de um programa de ontologia fenomenológica uma contribuição teórica para os
problemas da psicologia do desenvolvimento. Não obstante, há um evidente ponto de
intersecção, que reside no impacto de tais descobertas para os resultados da analítica
existencial. As descobertas experimentais da psicologia do desenvolvimento e os
resultados teóricos nelas implicados promovem as questões de se a ontologia da
existência é incompleta ou mesmo se precisa ser revisada.
Essa não é uma tarefa de simples resolução e seria ligeiro proceder de modo
sobranceiro. Não obstante, duas observações de avaliação merecem registro. Ao não
tomar a psicologia como base para a interpretação das estruturas existenciais,
Heidegger não se comprometeu com noções sobre a existência neonatal, que foram
amplamente refutadas na psicologia experimental do desenvolvimento das últimas
quatro décadas. Em particular, a hipótese da fusão ou indissociação do infante em
relação ao ambiente, endossada por James, Freud, Wallon e outros (Stawarska 2003,
p. 91; Rochat 2004, p. 31-32), não está implicada na interpretação da existência recém-
Róbson Ramos dos Reis | 719
nascida esboçada por Heidegger. Por certo, tal esboço é esquemático, incompleto e
eventualmente anacrônico em face do imenso volume de conhecimentos científicos.
Nele não se evidencia, porém, a adoção da hipótese da fase inicial de indiferenciação
que tem sido decisivamente rejeitada com base em evidências experimentais na teoria
do ego ecológico (Neisser, 1988, p. 40).
A segunda observação refere-se ao tipo de revisão a que deve ser submetida a
interpretação da existência neonatal esboçada por Heidegger. Se, como no caso de
Merleau-Ponty (1964), a revisão é estrutural, porque derivada da inconsistência da
hipótese da socialidade sincrética com os achados experimentais (Gallagher &
Meltzoff, 1996), a fenomenologia hermenêutica da infância, ao contrário, demanda
ampliação e enriquecimento. Contudo, ao admitir que, no primeiro momento de
existência extrauterina, já há fenômenos intencionais, a interpretação de Heidegger
não sofre de anacronismo e inconsistência com a investigação experimental. Essa é
uma condição mínima, mas necessária em uma atitude que admite o mútuo
esclarecimento entre investigação empírica e elucidação ontológica.
O mútuo esclarecimento, por outro lado, também se dá com a contribuição
filosófica no nível superior da metateoria das ciências do desenvolvimento
(Witherington et al. 2018). Nesse sentido, a indicação de que a existência neonatal é
determinada por um encontrar-se afetivo numa situação – a entrega desamparada –
contém uma orientação de esclarecimento de pressupostos metateóricos. Não se trata
apenas da ênfase na condição afetiva dos recém-nascidos, mas na peculiaridade de um
tipo especial de afeto: os sentimentos existenciais (Ratcliffe, 2008). Na teoria
heideggeriana da intencionalidade, os comportamentos para com algo significativo
pressupõem uma abertura pré-intencional, que é dada por sintonias afetivas ou
atmosferas. A despeito de reconhecer as qualidades hedônicas e conativas das
sintonias afetivas, a ênfase dada por Heidegger na análise das Stimmungen recai nos
aspectos de descobrimento e ligação a dimensões de possibilidades. Nesse sentido,
uma contribuição da fenomenologia hermenêutica da existência neonatal reside da
admissão de sentimentos existenciais e cognição modal genuinamente infantis.
Associada com a recomendação metodológica da via privativa na interpretação da
existência infantil, essa contribuição é a sugestão de pôr a atenção naquilo que, no
âmbito dos sentimentos existenciais infantis, tende a ocultar-se progressivamente no
desenvolvimento da existência.
720 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
12
O problema do desenvolvimento da normatividade contém um aspecto
especificamente referido à gênese da diferença formal entre agir em conformidade com
normas e agir segundo normas. No segundo caso, além da obediência a uma regra ou
instrução, há o traço distintivo de reconhecimento da legitimidade da regra. Na
interpretação oferecida por Crowell (2007, 2013), a analítica existencial oferece uma
resposta formal ao problema da origem do traço distintivo fundamental. Agir segundo
normas demanda uma condição de autorreferência prática, ou seja, uma projeção em
uma identidade prática avaliada. Nesse sentido, a condição ontológica exigida é a
dinâmica de colapso da significatividade, que abriria propriamente o espaço de razões
e a possibilidade de ação segundo normas.
Uma abordagem desenvolvimental do problema da origem da normatividade
busca os fatores explicativos da dinâmica de formação da submissão autônoma a
normas. Alguns estudos sugerem, por exemplo, que a origem da normatividade
especificamente humana é correlacionada com o desenvolvimento da consciência de
si com base na capacidade de auto-objetivação a partir da perspectiva avaliativa de
outras pessoas (Rochat, 2015). Em termos de desenvolvimento existencial, o exame
situa-se no plano da modificação nos requisitos metanormativos, ou seja, nas
condições ontológicas que tornam possível a apreensão das condições de constituição
da normatividade. Na orientação da analítica existencial de Ser e Tempo, tais
condições já estão presentes antes mesmo do desenvolvimento da linguagem. O
desenvolvimento da compreensão de ser e da abertura pré-intencional para dimensões
de possibilidades é, assim sendo, o campo para uma investigação fenomenológica
orientada para o problema da origem da normatividade humana.
Esse programa complexo, que não se confunde nem se separa das investigações
nas ciências do desenvolvimento (em especial na psicologia experimental do
desenvolvimento), é um desafio para a fenomenologia hermenêutica. Duas direções
abrem-se como avenidas de investigação. Considerando a socialidade ontológica da
existência humana, resulta a indicação de que o ingresso no espaço de possibilidades
é basicamente interacional. Nesse sentido, os estudos sobre o desenvolvimento da
confiança e da memória corporal parecem exigir uma interpretação dos sentimentos
existenciais especificamente infantis e neonatais (Reis, 2020). Para isso, uma
ontologia da infância ainda precisaria operar com uma análise modal. É certo que esse
Róbson Ramos dos Reis | 721
programa está distante de oferecer recursos para enfrentar o problema crítico da
normatividade, sobre as condições de avaliação da legitimidade das normas. É
discutível se uma abordagem em contexto de desenvolvimento existencial, caso
elaborada em detalhe e em consonância com a melhor ciência do desenvolvimento
psicológico, tem a potência para oferecer condições minimamente necessárias. Como
hipótese, no entanto, essa é uma orientação que restringe a aceitação do mistério na
origem da normatividade.
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39. MORAL, DIREITO E JUSTIÇA EM KANT
https://doi.org/10.36592/9786587424163-39
Thadeu Weber1
1 Introdução
Qual é propriamente a relação entre direito e justiça? Quem define o que é
justo? Qual é o critério? Qual é a relação entre moral e direito? É o direito positivo
capaz de realizar a justiça ou não tem nenhuma relação com ela? Essas são questões
de muita discussão e controvérsia e extrema relevância e atualidade.
Kant, certamente, é um dos autores modernos que mais se dedicou a esses
assuntos
e
influenciou
decisivamente
o
pensamento
político
e
jurídico
contemporâneo. Os temas do direito e da justiça são centrais, notadamente, em sua
Metafísica dos Costumes.
A discussão central gira em torno da fundamentação moral do Direito. Se, por
um lado, Kant distingue leis éticas e leis jurídicas e lhes atribui um fundamento comum
– as leis morais – isto é, defende um conceito moral do Direito, por outro, ignora essa
base comum ao discutir o direito de equidade e o direito de necessidade. Por que
reconhecer um direito e não assegurar sua efetivação? Se esses são reconhecidos como
direitos, ainda que “duvidosos”, dentro do direito em sentido amplo, por que não
assegurá-los a partir dos princípios do direito natural que, segundo o próprio Kant,
orientam e dão conteúdo ao direito positivo? Esse é o foco básico desse artigo.
2 Distinções preliminares
Algumas distinções conceituais são oportunas para entender a Doutrina do
Direito, primeira parte da referida obra. Inicialmente é importante observar o título:
Princípios Metafísicos do Direito. Há que se distinguir a metafísica do direito da
Doutor em Filosofia (UFRGS). Professor dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Direito
(PUCRS). Esse texto, com pequenas alterações e correções, foi originariamente publicado na forma de
artigo na revista RECHTD, da Unisinos, v. 5, nº 1, 2013.
1
726 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
“práxis jurídica empírica”. Ao propor uma metafísica, Kant está se referindo aos
princípios a priori que orientam e dão conteúdo ao direito positivo, existente no
espaço e tempo. Tentativa análoga ocorre na Fundamentação da Metafísica dos
Costumes, só que em relação à moral. Nesta o intuito é a determinação do princípio
supremo de moralidade. Sendo a priori, esses princípios, tanto do Direito quando da
Moral, só podem originar-se da razão. Considerando que o direito positivo (as leis
civis) enuncia o que é lícito ou ilícito, cabe à razão estabelecer, através de princípios, o
critério a partir do qual se pode definir o que é justo ou injusto. Fixar esse critério é o
propósito de uma “metafísica do direito”. Kant a faz preceder por uma “introdução à
metafísica dos costumes”.
Para o que nos interessa quanto à doutrina do direito, importa explicitar os
seguintes conceitos:
a) Arbítrio e desejo. Deve-se observar que quando falamos de relações jurídicas
estamos tratando de arbítrios e não de desejos. Arbítrio é a consciência da capacidade
de produzir determinado objeto e realizar determinado desejo; desejo é a mera
“representação de um objeto determinado colocado como fim” (Bobbio, 1969, p. 68;
ver também Beckenkamp, 2009). É a “faculdade (capacidade) de fazer ou deixar de
fazer o que se tem vontade de fazer” (Kant, 1982, p. 316) e da maneira que se quer
fazer. O arbítrio é a consciência da capacidade de alcançar o objeto desejado. Quando,
portanto, se diz que a relação jurídica é uma relação de arbítrios estamos supondo
tratar-se de “duas capacidades conscientes do poder que cada um tem de alcançar o
objeto de desejo” (Bobbio, 1969, p. 69).
A vontade, por sua vez, é “faculdade de desejar” enquanto “fundamento de
determinação do arbítrio para a ação” (Kant, 1982, p. 317). Ela é razão prática, na
medida em que pode determinar o arbítrio. Vontade pura significa, pois, a capacidade
de determinar imediatamente as ações, sem instâncias mediadoras, tais como as
motivações empíricas. Só que a vontade o faz de acordo com princípios a priori, dados
pela razão. O arbítrio, na medida em que é determinado pela razão pura é arbítrio livre;
enquanto determinado somente pelas inclinações, o arbítrio é bruto (brutum), próprio
dos animais. Para que tenha valor moral, o arbítrio humano certamente pode ser
“afetado” por estímulos sensíveis, mas não pode ser “determinado” por eles. Kant
registra o aspecto positivo e negativo do arbítrio: o negativo refere-se à “independência
de sua determinação por estímulos sensíveis” (Kant, 1982, p. 317); o positivo diz
Thadeu Weber | 727
respeito à determinação da razão pura como prática, isto é, que determina
imediatamente a vontade. É a capacidade autolegisladora da razão. A vontade, por sua
vez, não é livre nem não livre. Somente o arbítrio, considerando que dele provêm as
máximas, pode ser livre.
b) Moralidade e legalidade: essa distinção já é amplamente discutida na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes. No entanto, não se diferencia moral e
ética e uma separação entre moral e direito parece estar claramente configurada. Pelo
menos essa é a leitura que tradicionalmente é feita do filósofo de Königsberg. Na
Metafísica dos Costumes, no entanto, a distinção entre moral e ética passa a ser
decisiva e a fundamentação moral do direito entra em pauta. Diferentemente das leis
naturais (que dizem o que é), as leis da liberdade são as leis morais (moralisch), na
medida em que dizem respeito à autolegislação da razão e enunciam o que deve ser (cf.
Kant, 1982, p. 318). Trata-se da moral em sentido amplo, na medida em que inclui a
legislação prática2. Dessa forma, as leis morais (gênero) dividem-se em leis jurídicas e
leis éticas (espécie). As leis jurídicas referem-se às ações “meramente externas” e a sua
legitimação. É a liberdade externa. As leis éticas têm como fundamento de
determinação das ações o respeito às leis. A conformidade das ações externas às leis
jurídicas é a legalidade; a conformidade das ações às leis éticas é a moralidade
(Moralität). Pela divisão apresentada, as leis jurídicas e as leis éticas são subclasses
das leis morais3. Kant confere, assim, às leis jurídicas um estatuto moral. O imperativo
categórico, enunciado pela razão, diz respeito a ambos, direito e ética.
É fundamental salientar que a demonstração de um conceito moral do direito
passa por essa distinção entre moral e ética. “Na medida em que incidem apenas sobre
as ações meramente externas e sua legalidade, as leis morais se chamam jurídicas;
mas, se exigem também que elas sejam mesmo os fundamentos de determinação das
ações, elas são éticas” (Kant, 1982, p. 318). Se quisermos sustentar um conceito moral
do direito, é essencial observar o aspecto categórico da legislação moral que se aplica
Sobre esse conceito amplo da moral, ver artigo de Ricardo Terra “A distinção entre direito e ética na
filosofia kantiana”. Diz o autor que “moral em sentido amplo compreende a doutrina dos costumes
englobando tanto o direito quanto a ética”, p. 50. Sobre a relação entre moral, ética e direito, embora
não a partir de Kant, ver Forst, R. Contextos da Justiça, principalmente o segundo capítulo.
3 Sobre esse assunto ver os seguintes artigos: Guido Almeida, “Sobre o princípio e a lei universal do
direito em Kant” p.215; Soraya Nour, “O legado de Kant à Filosofia do Direito”, p.96; Joãosinho
Beckenkamp, “Sobre a moralidade do direito em Kant”, p. 68 e “O direito como exterioridade da
legislação prática em Kant”, p. 154.
2
728 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
tanto à legislação ética quanto à jurídica. Ambas decorrem de princípios práticos a
priori da razão.
Pode-se observar que o que propriamente distingue uma legislação de outra é a
motivação, os móbeis das ações ou a distinta maneira pela qual obrigam. Na legislação
ética o móbil da ação é o dever, ao passo que na legislação jurídica a motivação é dada
pelas inclinações ou aversões. Neste caso a legislação é coercitiva. A legalidade,
portanto, diz respeito à mera concordância ou não de uma ação com a lei, sem levar
em conta seu móbil; a moralidade, por sua vez, refere-se à concordância da ação com
a lei, tendo em vista a ideia do dever como móbil. O que caracteriza a legislação ética é
a realização de ações simplesmente por serem deveres, fazendo do princípio do dever
o “móbil suficiente do arbítrio” (Kant, 1982, p. 326). Na legislação jurídica os deveres
são externos, pois não se exige o cumprimento do dever pelo dever. Esta é uma
exigência própria da legislação ética. Nesta o fundamento de determinação do arbítrio
do sujeito agente é o dever.
Se o fundamento é comum, não se trata, obviamente, de estabelecer uma
oposição entre as duas formas de legislação. Se o que as distingue é a motivação das
ações, temos que avaliar até que ponto um determinado tipo de motivação é suficiente.
Segundo Kant, a legislação de que promessas devem ser cumpridas é própria do
Direito e não da ética. A ética ensina que, em não havendo coerção externa, própria da
legislação jurídica, como móbil para o cumprimento de promessas, a ideia do dever,
por si mesma, é suficiente como motivação. Cumprir promessas ou contratos é um
dever; é uma ordem da razão. O que move o seu cumprimento é o que distingue as
duas formas de legislação. Podemos cumprir promessas feitas por coerção externa ou
por respeito ao dever. A primeira (jurídica) é externa; a segunda (ética) é interna. Do
ponto de vista da legislação jurídica, a legislação ética é insuficiente para motivar o
cumprimento dos contratos. Considerando a “insociável sociabilidade” do homem, a
legislação jurídica, mediante coerção externa, é o recurso do Estado para organizar a
vida em sociedade como um sistema cooperativo, isto é, para fazer cumprir os ditames
da razão. Na verdade, é a própria razão que autoriza outro móbil (externo) para fazer
cumprir as obrigações decorrentes da legislação moral. Isso é autonomia. Os que se
submetem às leis são os mesmos que participam de sua elaboração.
Uma metafísica dos costumes se impõe para estabelecer os princípios a priori
de uma legislação universal, que pode ser ética ou jurídica, dependendo do móbil das
Thadeu Weber | 729
ações. Ambas, no entanto, dizem respeito às leis da liberdade, portanto, às leis morais.
Pode-se, então, falar de um conceito moral do direito. É fundamental salientar que o
princípio da autonomia, isto é, a capacidade de se submeter às leis das quais se é autor
ou que se possa dar o seu consentimento, é comum às duas formas de legislação. Tanto
no direito quanto na ética há uma mútua imbricação entre liberdade e a lei a qual se
obedece. Liberdade implica na prescrição da lei para si próprio.
c) Pessoa e personalidade moral: a ideia de pessoa implica em ações passíveis
de imputação (cf. Kant, 1982, p. 329); a personalidade moral indica sujeição da
liberdade de um “sujeito racional” às leis morais. Pessoa é o sujeito com qualidades
morais: a racionalidade e a razoabilidade. Estas capacidades significam que a pessoa
está apta para “ouvir a voz da razão” e está disposta a escutar e levar em consideração
a razão dos outros. O racional e o razoável implicam em “sensibilidade moral e uma
capacidade de juízo moral” (Rawls, 2005, p. 191). Essas capacidades estão
pressupostas na filosofia prática de Kant; são condições de sua possibilidade. Para ser
passível de imputação pressupõe-se competência ético-jurídica. Dessa forma,
personalidade moral importa na ideia de autonomia e, por isso, só ela tem dignidade.
Significa que a pessoa está submetida àquelas leis que ela se dá, tanto jurídicas quanto
éticas. Essa capacidade de justificar suas regras de ação mediante princípios é o que
confere dignidade à pessoa humana. Enquanto capacidade de ter boa vontade é que a
personalidade moral “nos faz fins em nós mesmos e determina a condição de sermos
membros do reino dos fins” (Rawls, 2005, p. 241). Kant busca, em sua filosofia prática,
o autoconhecimento, ou seja, conforme comenta Rawls, “um conhecimento do que
desejamos enquanto pessoas providas das faculdades da razão livre teórica e prática”
(Rawls, 2005, p. 171). Se pessoa é o sujeito com qualidades morais, pessoa de direito é
a portadora de direitos; é “sujeito do direito” (Forst, 2010, p. 38).
3 O conceito do Direito
A definição kantiana do Direito refere-se à ideia de Justiça. A discussão passa,
então, a girar em torno do que é o justo. Temos de ter presente que a doutrina do direito
do autor distingue claramente o direito natural do direito positivo. O primeiro trata
dos princípios a priori, originários da razão. Refere-se ao imperativo categórico do
Direito. O segundo trata das leis positivas, originárias do legislador. Estas são as que
730 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
existem empiricamente; se constituem pelas leis de um determinado espaço e tempo e
cuja fonte é o direito natural. Dessa forma, para não incorrer em falácia naturalista,
fica claro que a definição do que é justo/injusto não pode ser estabelecida a partir do
direito positivo. Não se pode partir do que é para o que deve ser. Para definir o direito
como justiça (uma espécie de dever ser) deve-se abandonar o empírico e recorrer à
razão. Isso mostra que o direito natural é o fundamento racional do direito positivo. É
o imperativo categórico do Direito que enuncia o critério de justiça e é dele que
derivam as leis positivas. Os princípios de justiça que orientam o direito positivo (tanto
o privado como o público) são determinados ou derivados do direito natural.
A razão é, portanto, a fonte da justificação das regras de ação. Estas deixam de
ser arbitrárias quando justificadas pelos princípios, proclamados pela razão. A
experiência diz o que é, mas não o que deve ser. O direito positivo pode dizer o que
“dizem ou disseram as leis em certo lugar e tempo”, isto é, o que é lícito ou ilícito, mas
não se é justo ou injusto. Aliás, ele (o direito positivo) diz o que é lícito/ilícito em
relação ao justo/injusto. Para dizer o que é justo e determinar o “critério universal”
mediante o qual se pode definir o justo ou o injusto, é preciso abandonar o nível da
experiência e recorrer à razão. Soraya Nour comenta: “o direito positivo deve encontrar
seu critério de justiça e seu fundamento no direito natural” (Nour, 2004a, p. 5). Em
outro texto destaca: “se, por um lado, o direito positivo deve buscar seu fundamento
no direito natural, por outro, uma comunidade não pode ser governada apenas pelo
direito natural, e sim pelo direito positivo que o direito natural deve fundar” (Nour,
2004a, p. 94).
Elaborar um critério de justiça para a legislação positiva é o intuito fundamental
da doutrina do direito. O direito natural (a razão) trata dos princípios; o direito
positivo das leis. Estas dizem o que é lícito, aqueles estabelecem o critério de justiça.
Isso indica que a fundamentação do jurídico é a moral. Só a razão pode fornecer “os
princípios imutáveis de toda legislação positiva” (Kant, 1982, p. 336).
A “inversão copernicana” também deve ser aplicada à doutrina do direito. É o
problema do transcendental. A revolução metodológica realizada pelo autor na Crítica
da Razão Pura delineia toda a sua filosofia. O a priori somente é possível na razão
(sujeito) e não no objeto. Dessa forma, o fundamento de uma legislação positiva só
pode ser estabelecido pela razão, uma vez que tem validade apriorística. “Uma
doutrina do direito meramente empírica é [...] uma cabeça, que pode ser bela, mas
Thadeu Weber | 731
infelizmente não tem cérebro” (Kant, 1982, p. 337). Kant, desse modo, faz uma
dedução transcendental do direito. O cérebro de uma doutrina empírica do direito,
nesse caso, é o direito natural.
Isso reporta aos elementos constitutivos do conceito do Direito:
1. O Direito refere-se às relações externas entre as pessoas e não às suas
motivações internas;
2. O Direito se constitui na relação de arbítrios e não de desejos. Numa relação
jurídica é preciso que o arbítrio de um esteja relacionado com o arbítrio de outro e não
com o desejo de outro. A relação jurídica é uma relação de capacidades conscientes, de
alcançar os objetivos desejados. Numa relação de compra e venda, por exemplo, o
arbítrio do comprador deve encontrar-se com o arbítrio do vendedor e não com o seu
mero desejo;
3. O Direito não se preocupa com a matéria do arbítrio, mas com a forma do
mesmo. Na relação de dois arbítrios não são relevantes os fins subjetivos ou as
intenções que movem as vontades dos sujeitos agentes. O importante é a forma do
arbítrio, isto é, na medida em que é livre. Importa saber se a ação de determinada
pessoa é ou não um obstáculo à liberdade de outra, de acordo com uma lei universal.
Bobbio, interpretando Kant, diz que “o Direito, na regulação de uma relação de
arbítrios, não se preocupa em estabelecer quais sejam os fins individuais, utilitários,
que os dois sujeitos pretendem, os interesses que estão em pauta, mas somente em
prescrever a forma, ou seja, as modalidades através das quais aquele fim deve ser
alcançado e aqueles interesses, regulados” (Bobbio, 1969 p. 69). Na regulação dos
contratos de compra e venda, o Direito se preocupa tão somente com as condições
formais dentro das quais eles devem ser cumpridos e não com os interesses e as
vantagens de vendedor e comprador.
O Direito é mais regulador do que emancipador. Esse é o chamado formalismo
kantiano que, segundo alguns, vai inspirar o formalismo jurídico (Bobbio, p, 1969, p.
70). Dar ênfase ao caráter formal significa que tanto o Direito quanto a Ética não
prescrevem o que é ou o que se deve fazer, mas como se deve proceder. O imperativo
categórico, tanto do Direito quanto da Ética, indica basicamente um procedimento. É
o procedimento do imperativo categórico, para usar a expressão de Rawls (Rawls,
2005, p. 188). É uma fórmula que não enuncia conteúdo, mas que se aplica a qualquer
conteúdo moral, seja ético ou jurídico. A partir disso pode-se definir o Direito como “o
732 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com
o arbítrio de outro, segundo uma lei universal da liberdade” (Kant, 1982, p. 337).
Observa-se que: a) trata-se do conjunto das condições, portanto, de aspectos formais
e não de interesses pessoais ou intenções; b) trata-se da relação de arbítrios e não de
desejos; c) trata-se da obediência à lei da liberdade, lei esta que determina os limites
do exercício de cada arbítrio, tendo em vista a compatibilidade das ações. É isso que
diz “a lei universal do direito”: “age externamente de tal maneira que o livre uso de teu
arbítrio possa coexistir (estar de acordo) com a liberdade de qualquer outro segundo
uma lei universal” (Kant, 1982, p. 338). Esta é uma lei da razão, e que estabelece o
critério de justiça/injustiça das ações. É o imperativo categórico do Direito. Está clara
a ideia da coexistência das liberdades externas. São irrelevantes as motivações internas
do sujeito agente. É exatamente nisso que se distingue a legislação jurídica da
legislação ética.
O que é, então, uma ação justa? Para Kant “uma ação é justa, quando por meio
dela, ou segundo a sua máxima, a liberdade do arbítrio de um pode coexistir com a
liberdade de qualquer outro, segundo uma lei universal” (Kant, 1982, p. 337). É
importante salientar que a ênfase de Kant em toda a doutrina do direito refere-se à
ideia de justiça como liberdade, ou mais precisamente, a ideia de justiça como
coexistência de liberdades externas. Se uma ação que pode coexistir com a liberdade
de qualquer um segundo uma lei universal for impedida por alguém, estará
caracterizada a injustiça. A coexistência de liberdades de acordo com leis universais é
o critério de justiça. Colocar obstáculos ao livre exercício das liberdades externas é
cometer uma injustiça. É isso que diz o imperativo categórico do direito, originário da
razão (direito natural). Como visto, é esta que estabelece o critério de justiça. Se, por
um lado, é injusto colocar impedimentos à liberdade do outro, por outro, é justo
colocar um impedimento ao obstáculo de alguém à minha liberdade. Exercer uma
coerção sobre alguém que representa um obstáculo à liberdade segundo leis universais
é justo. É justo coagir alguém que é injusto.
Essa é a função das leis jurídicas. O Direito exerce a função de criar
impedimentos aos obstáculos da liberdade. Ele está autorizado para isso. “Tudo o que
é injusto é um impedimento para a liberdade segundo leis universais” (Kant, 1982, p.
338). Trata-se de um critério fundamentalmente formal, pois não diz o que é
propriamente justo, todavia indica o procedimento mediante o qual se realiza a justiça.
Thadeu Weber | 733
Dessa forma, o direito positivo terá que garantir o exercício dessas liberdades; deverá
estabelecer limites determinando o que é lícito ou ilícito, tendo em vista o critério de
justiça. O Direito, portanto, está autorizado para coagir, ainda que seja uma coerção
externa, e nisso se distingue da legislação ética. Daí ser muito apressado concluir para
qualquer forma de positivismo jurídico, por um lado, ou para um liberalismo, por
outro.
4 A superação do formalismo?
Uma das críticas comuns feitas a Kant diz respeito ao seu excessivo formalismo,
seja do ponto de vista ético seja do ponto de vista jurídico4. Hegel o acusa de cair num
“vazio formalismo”, como decorrência da separação indevida entre forma e matéria de
um princípio ou de uma lei. Para ele, um princípio ético é resultante da determinação
e mediação das vontades livres dos sujeitos agentes. Constitui-se de historicidade e
temporalidade5.
Mas e o positivismo jurídico, tido como de forte influência nos neo-kantianos
do direito, tal como Kelsen, que escreve uma Teoria Pura do Direito? Terão eles razão
ao verem em Kant uma separação entre moral e direito ou não distinguem
devidamente ética e moral? O que significa dar ênfase à forma da lei? Como vimos, há
certamente, em Kant, uma distinção entre legislação ética e legislação jurídica, mas,
pelo visto até aqui, parece não haver uma separação entre moral e direito.
Dará a distinção entre direito estrito e direito em sentido lato feita no “apêndice
à introdução à doutrina do direito”, ao referir-se ao “direito equívoco”, alguma luz às
questões colocadas? Não trará essa distinção ainda mais margem às divergências nas
interpretações referentes à moral e ao direito?
Ao sustentar que no direito estrito todo direito vem “acompanhado da faculdade
de obrigar”, Kant mostra que há um outro direito, no “sentido lato”, onde essa
faculdade não ocorre. Ao definir o primeiro (direito estrito) como sendo “aquele que
não exige outros fundamentos de determinação do arbítrio a não ser os meramente
externos”, o distingue claramente da ética, tendo em vista que na sequência afirma que
4 Soraya Nour chama a atenção para esse equívoco de interpretação em “O legado de Kant à Filosofia
do Direito”, v.3, p.91-103, São Paulo, UNINOVE, 2004.
5 Não entro aqui na crítica de Hegel ao formalismo da moral, pois já foi objeto de outro livro meu. Ver
Ética e Filosofia Política: Hegel e o formalismo kantiano, capítulos 3 e 4. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2009.
734 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
o direito estrito “é aquele em que não se mescla nada de ético” (dem nichts Ethisches
beigemischt ist) (Kant, 1982, p. 339), sendo por isso “puro”. Ao dizer que o direito
estrito é puramente externo o autor salienta que ele não tem por base de motivação do
arbítrio a consciência da obrigação segundo a lei. O direito se fundamenta “no
princípio da possibilidade de uma coação externa, que pode coexistir com a liberdade
de qualquer um segundo leis universais” (Kant, 1982, p. 339). Do ponto de vista do
direito estrito não é a consciência do cumprimento do dever que obriga um devedor ao
pagamento de uma dívida, mas a coerção segundo uma lei externa. No que se refere,
portanto, ao direito estrito não saímos de uma doutrina pura do direito, uma vez não
contém nada de ético. Mas como entender então que seu critério de justiça é moral? É
preciso salientar, mais uma vez, que quando falamos de uma base comum entre moral
e direito estamos nos referindo à moral em sentido amplo, no sentido de legislação
prática. A diferença, então, se dá entre direito e ética. A distinção agora é entre direito
em sentido estrito e direito em sentido amplo.
Se ao direito estrito está ligada a autorização para coagir, no direito em sentido
lato (ius latum) essa autorização “não pode ser determinada por uma lei” (Kant, 1982,
p. 341). É o caso do direito de equidade e do direito de necessidade (Notrecht). No
primeiro temos “um direito sem coerção” (Recht ohne Zwang) e no segundo uma
“coerção sem direito” (Zwang ohne Recht) (Kant, 1982, p. 341). Em outras palavras:
pela equidade admite-se um direito que não pode obrigar; pela necessidade coloca-se
uma exigência sem direito. Concretamente, embora sejam “casos de direito duvidoso”,
como se dá a relação entre moral e direito? Pela equidade se reconhece um direito,
embora estejam ausentes as condições formais requeridas pelo judiciário para efetiválo. Há, dessa forma, um direito que não é assegurado. Pela equidade, aquele que
investiu e produz mais numa determinada empresa deveria poder exigir um retorno
maior, em caso de acidente com grandes perdas. No entanto, pelo direito estrito, esta
exigência não pode ser atendida: o que importa são as cláusulas contratuais. É a justiça
entendida de maneira formal e abstrata. O exemplo do salário corroído pela moeda
inflacionada mostra bem que o critério é o contrato de trabalho previamente assinado.
Pela equidade, no entanto, cria-se um direito de não ser prejudicado. É notório que
nesse caso circunstâncias externas modificaram as condições do contrato e sua
execução acaba por lesar uma das partes. Mas por que as cláusulas contratuais não
previram formas de efetivação desse direito, mesmo por coerção?
Thadeu Weber | 735
Kant reconhece a “contradição” do “tribunal da equidade”, todavia não
considera a equidade como direito a ser efetivado pelo direito estrito, embora seja um
direito presumido pelo direito em sentido lato. Pela equidade há um direito por parte
do assalariado, mas que para a sua efetivação não há coerção possível, pois o “tribunal”
não decide com base na equidade e sim com base no direito estrito (justiça abstrata).
É um direito sem coerção. Mas por quê? Porque não há “condições definidas segundo
as quais o juiz deveria se manifestar” (Gomes e Merle, 2007, p. 140). A equidade, para
Kant, é um direito em sentido amplo e não em sentido estrito. Quando ele diz que “o
ditado da equidade” é o de que “o mais estrito direito é a maior injustiça” (Kant, 1982,
p. 342) e que esse mal não pode ser remediado pela via judicial, ele certamente
desvincula o direito formal da justiça e não considera a efetivação da equidade, embora
a reconheça como um direito. Há um recurso a uma concepção de justiça no nível
moral (dado pela razão), mas não assegurada pela via jurídica, pois diz que nesses
“casos duvidosos” (equidade e necessidade) “não pode ser encontrado um juiz”
(Richter) para a tomada de decisão (Kant, 1982, p. 341).
Mas como então sustentar um conceito moral do direito? A lei jurídica não
deveria, exatamente, garantir o conteúdo da lei moral, isto é, a justiça? Ou os dois casos
(equidade e necessidade) por serem “anômalos”, para usar a expressão de Bobbio, ou
situações de um “direito duvidoso”, devem ser desconsiderados na relação moral e
direito? Todavia, se são direitos em sentido amplo, não é exatamente nesses casos que
precisamos da interpretação e das decisões de juízes? De que critérios estes se
valeriam? Isso nos reporta aos princípios enunciados pela razão, portanto, ao direito
natural.
É precisamente nos hard cases (casos difíceis) que se deve recorrer aos
princípios. É um engano pensar que no direito decorrente da equidade “faltam as
condições requeridas pelo juiz”. Isso significa reduzir a sua atuação ao direito estrito.
Ele deve dizer o direito, sobretudo nos casos difíceis. Quando a aplicação do princípio
do precedente conduz a consequências injustas, o recurso à equidade é “um recurso do
juiz contra a lei” (Perelman, 2005, p.163). O juiz pode e deve recorrer aos princípios
da justiça a fim de assegurar esse direito. Deve fundamentar e justificar suas escolhas.
Segundo Kant, um tribunal sempre decidirá pela justiça abstrata (formal), e não pelo
direito de equidade. No entanto, isso indica a insuficiência da legislação jurídica para
736 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
realizar a justiça e dá margem à leitura de uma separação indevida entre moral e
direito, contradizendo a introdução à doutrina do direito acima referida.
A distinção entre princípios e regras nos ensina que quando a aplicação de
regras trouxer consequências injustas, deve-se recorrer aos princípios que as
fundamentam. Estes não são extralegais, conforme sustenta Dworkin. Assim, o
recurso à equidade poderia justificar a não-aplicação de uma lei com consequências
injustas, ainda que seja um caso de direito duvidoso. Perelman escreve com acerto:
“desejamos, de fato, que o ato justo não se defina simplesmente pela aplicação correta
de uma regra, seja ela qual for, mas pela aplicação de uma regra justa” (Perelman,
2005, p. 167). Kant reconhece o direito de equidade, mas não o contempla na
efetivação do direito estrito. Diz claramente que “o juiz não pode sentenciar de acordo
com condições indeterminadas” (Kant, 1982, p. 342). Logo, o juiz, no caso da equidade,
não pode fazer justiça. Ele decide de acordo com a lei que, nesse caso, tem
consequências injustas. Por que então falar em direito à equidade, já que não tem
eficácia? Se pelo direito estrito não se pode assegurar o direito à equidade, uma vez
que pertence ao direito em sentido amplo, dever-se-ia fazê-lo pelos princípios morais,
já que fundamentam as leis jurídicas. É o próprio Kant que escreve: “Pois se perece a
justiça, não tem mais nenhum valor que existam homens sobre a terra” (Kant, 1982, p.
453) 6 . Por que, então, recorre ao direito estrito, mediante o qual não se resolve o
problema? O critério passa a ser a lei e não a justiça.
Era de se esperar que a distinção entre direito em sentido estrito e direito em
sentido lato trouxesse um encaminhamento para além do meramente legal (jurídico),
ou seja, que se buscasse nos princípios da razão uma forma de fazer justiça. Para
Bobbio, no caso da equidade aplicada ao exemplo da moeda inflacionada, existem dois
direitos concorrendo: um segundo a justiça (abstrata) e outro segundo a equidade e
diz que Kant opta pela prevalência do primeiro (Bobbio, 1969, p. 80). O problema está
exatamente aí: considerar como justa a aplicação de uma lei com consequências
injustas. Até que ponto é possível falar em justiça formal ou abstrata? Como positivista
que é, Bobbio simplesmente endossa Kant. Por um viés hegeliano poder-se-ia dizer
que o problema está na concepção apriorística de justiça formal ou na validade
apriorística da lei. É o problema do formalismo, também no direito.
6
“Den, wenn die Gerechtigkeit untergeht, so hat es keinen Wert mehr, dass Menschen auf Erden leben”.
Thadeu Weber | 737
O imperativo categórico é, por excelência, um princípio metafísico do Direito e
que define o critério de justiça. Ao afirmar que o “o mais estrito direito é a maior
injustiça”, o autor está se valendo desse critério enunciado pela razão e não pelo direito
positivo. Todavia, ao admitir que esse mal não possa ser remediado pela via judicial,
parece ignorar a fundamentação moral do direito. É exatamente nos casos duvidosos
que devemos abandonar as regras e recorrer aos princípios a fim de evitar
consequências injustas. Ao “jogar” o direito de equidade para o tribunal da
consciência, desvincula o direito propriamente dito (estrito) da justiça, isto é, dos
princípios do direito natural, enunciados pela razão.
Já o caso do direito de necessidade é mais emblemático. Kant o define como um
“suposto direito”, que autoriza alguém para, no caso de extremo perigo de perda de
própria vida, pode tirar a vida de alguém, ainda que este alguém não lhe tenha feito
mal algum (Kant, 1982, p. 343). É o famoso caso dos dois náufragos que se seguram
num pedaço de madeira que não os suporta. A necessidade de empurrar o outro é o
caso de sobrevivência de um deles. O que autoriza o ato de violência é o direito de
necessidade. Nesse “ato de autopreservação”, sustenta o autor, certamente há culpa,
embora esse ato não possa ser punido. Daí Kant incorporar o “ditado do direito de
necessidade”: “a necessidade não tem lei” (Not hat kein Gebot) (Kant, 1982, p. 343). A
necessidade é uma exceção. Se nesse caso não pode haver lei que obrigue uma ação ou
a proíba, não pode haver lei que puna um ato resultante do exercício do direito de
necessidade. A necessidade pode tudo, no sentido de se estar autorizado. Só que Kant
acrescenta: “[...] mesmo assim, não pode haver necessidade que tornasse legal o que é
injusto” (Kant, 1982, p. 343). Mas o que, nesse caso, é injusto? Empurrar alguém de
um pedaço de madeira que os segura para salvar a própria vida? Punir alguém com
esse ato? Kant dá a entender que um ato resultante do estado de necessidade pode ser
qualificado de injusto, ainda que não possa ser punido e que isso não significa que se
possa legalizar uma injustiça só por ser originária de uma necessidade extrema. Punir
seria injusto. Além disso, não há lei que autorize a matar alguém para salvar a própria
vida. Isso é próprio do estado de necessidade, que Hegel chamará de “direito de
emergência”. Por isso, não pode haver lei penal que puna uma ação originária do
estado de necessidade. Neste estado a “autorização para coagir não pode ser
estabelecida por uma lei” (Kant, 1982, p. 341).
738 | Sub specie aeternitatis: Festschrift for Nythamar de Oliveira
Mas não é justo matar alguém para defender a própria vida? Ou é apenas lícito?
Ora, ser lícito não significa ser justo; significa apenas estar autorizado. Talvez a
questão devesse ser colocada de outra forma. É lícito (Erlaubt) fazer uso de todos os
meios disponíveis para a autoproteção. A intenção não é matar, mas a autodefesa,
ainda que a consequência seja a morte de alguém. Se lícita é “uma ação que não é nem
ordenada nem proibida”, seria ela uma ação “moralmente indiferente”, tendo em vista
que não há lei restritiva da liberdade? (Kant, 1982, p. 329). Parece que Kant não
admitiria essa possibilidade.
Não se pode esquecer que Kant dá ênfase às condições de responsabilidade
subjetiva, embora aí esteja também sua insuficiência. Propõe uma ética das intenções,
mas não da responsabilidade objetiva. Na verdade, Kant não refere o direito da
legítima defesa, pois fala da autorização para fazer um mal a quem “não fez um mal” e
nem representa uma ameaça. Entretanto, pelo direito de necessidade a conclusão
parece óbvia. Ao afirmar que a necessidade não pode tornar legal algo injusto, Kant
parece não admitir a possibilidade da lei injusta, a qual, portanto, caberia
desobediência. Mas, mais do que isso, está dizendo que a necessidade não precisa de
lei, e mesmo que houvesse necessidade prevista em lei, esta não poderia legalizar uma
injustiça como, por exemplo, penalizar um ato praticado em estado de necessidade.
Nesse contexto compreende-se por que Kant não admite o direito de resistência (a
desobediência civil)7.
Diante disso, parece não haver propriamente uma superação do formalismo,
tendo em vista que nem nos casos de direito duvidoso se amplia o espectro de decisões.
O autor permanece preso ao estritamente previsto pelo direito positivo. Além do mais,
quando se introduzem os conceitos de razão e de justiça, permanece certa ambiguidade
na doutrina do direito kantiana. O autor diz claramente que nos casos de equidade e
necessidade “o que cada um reconhece com boas razões como justo por si mesmo, pode
não ser confirmado por um tribunal e aquilo que ele mesmo deve julgar injusto em si
pode conseguir absolvição perante um tribunal” (Kant, 1982, p. 344). Todos
consideram como justo que se corrija um salário corroído por uma moeda
inflacionada. Contudo, o juiz não tem disposições legais para efetivar este direito. Deve
zelar pelo cumprimento do contrato de trabalho. Problemas de segurança jurídica? O
Sobre a negativa do direito de resistência, ver Metafísica dos Costumes (doutrina do direito) (Kant,
1982, p. 439). Saliente-se que para o autor não é permitida uma “resistência ativa”, mas apenas uma
“resistência negativa” (Kant, 1982, p. 441).
7
Thadeu Weber | 739
problema do direito positivo, portanto, não é a justiça e sim o cumprimento da lei (o
que pode ter consequências injustas).
Todos dirão que é injusto o empregador que apenas paga o salário acordado,
mas que perdeu seu poder aquisitivo por causa da inflação. Dirão também que é injusto
o judiciário que não reconhece o direito de equidade do trabalhador. Embora Kant diga
que do ponto de vista da equidade “o direito estrito é a maior injustiça”, nem com o
direito em sentido lato resolve o problema da injustiça. Era de se esperar que não só
fosse reconhecido o direito de equidade, mas também efetivado. Surpreendentemente
trata-se de uma “divindade muda [a equidade], que não pode ser ouvida” (Kant, 1982,
p. 342). Era de se esperar que nos casos duvidosos o recurso à equidade tivesse o
intuito de mostrar a insuficiência da justiça formal e indicar a necessidade do recurso
ao direito natural. Não há, então, uma incoerência com a fundamentação moral do
direito? Além do mais, do ponto de vista jurídico, o acordo entre empregado e
empregador poderia ter previsto uma atualização monetária caso houvesse uma
depreciação do dinheiro, na execução do contrato (Gomes e Merle, 2007, p.136). As
prescrições do contrato, nesse caso, não são justas, enquanto as de equidade, o sejam.
Para Perelman, “a equidade pode prevalecer sobre a segurança, e o desejo de evitar
consequências iníquas pode levar o juiz a dar nova interpretação da lei, a modificar as
condições de sua aplicação” (Perelman, 2005, p. 166). Considerar a equidade na
aplicação da lei é um recurso para evitar as consequências injustas do “ato
formalmente justo”. A regra da justiça segundo a qual situações semelhantes devem
ter tratamento semelhante, o que se pode chamar de regra de justiça formal, implica
em previsibilidade, todavia nem sempre suficiente para as necessidades da justiça.
Seria o caso do direito de necessidade diferente? O fato de não punir atos
praticados nessa situação mostra que o direito reconhece exceções à lei, em situações
de extrema necessidade. Nesse caso, não se comete uma injustiça, embora o
assassinato seja por definição uma injustiça. É o mesmo caso que prevê o direito de
mentir para a defesa de um inocente, ainda que dizer a verdade seja um preceito
fundamental do Direito. O estado de necessidade justifica uma exceção. Na verdade, a
exceção deixa de ser tal quando a sua máxima puder ser universalizada, ou seja, passar
pelo teste da universalização. Assim, mentir para proteger um inocente está justificado
e, portanto, é legal e eticamente correto. No entanto, ao admitir a culpa no estado de
necessidade, mas não a punição, Kant permanece preso à ideia de justiça puramente
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formal e abstrata. Não reconhece a justiça dos atos praticados em estado de
necessidade, uma vez que não exime de culpa, ainda que não preveja punição.
Ora, tais atos não são passíveis de culpa, muito menos de punição. Não se
deveria, nesses casos, recorrer aos princípios, tendo em vista as consequências injustas
da aplicação das regras do direito positivo?
Embora se possa sustentar um conceito moral do direito na “introdução à
doutrina do direito”, no apêndice da mesma o filósofo de Königsberg parece dar, nos
casos de equidade e de necessidade, margem à interpretação de uma independência
entre moral e direito e, assim, ficar preso ao formalismo jurídico, isto é, a uma doutrina
pura do direito. É curioso que Kant faça a distinção entre direito estrito e direito em
sentido lato, onde trata da equidade e do direito de necessidade (casos de direito
duvidoso), e apresente uma solução para esses casos a partir do direito estrito (positivo
formal). Por que, então, falar em direito em sentido lato? Não se trata de direitos
duvidosos. Tanto o direito de equidade quanto o de necessidade são direitos líquidos
e certos, ainda que em situações concretas nem sempre seja fácil qualificá-las como
tais.
Considerações finais
Na introdução da Doutrina do Direito pode-se efetivamente falar em conceito
moral do direito. Isso não é claro na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na
Crítica da Razão Prática. A legislação jurídica e a legislação ética têm como base
comum as leis morais. O que as distingue é a diferente motivação (móbil). No entanto,
a distinção entre direito em sentido estrito e direito em sentido amplo não contribuiu
para fornecer elementos de garantia de efetivação do direito de equidade e o direito de
necessidade. Kant permanece preso ao formalismo do direito positivo. Qual é então o
sentido dessa distinção? Pela equidade se reconhece um direito, mas que não é direito,
pois não é efetivável pela legislação positiva. Ora, se os princípios do direito natural
dão conteúdo ao direito positivo, conforme claramente sustentado na referida
introdução, por que não buscar nessa fonte a justificação e efetivação dos referidos
direitos? Os princípios não são extralegais, como querem os positivistas, mas são
constitutivos da ciência normativa do Direito. Se os referidos direitos são efetivamente
direitos, já que reconhecidos, é preciso encontrar uma forma de assegurá-los
Thadeu Weber | 741
juridicamente, tendo por base os princípios da razão, fonte da justiça. A não-definição
das condições do ponto de vista jurídico para efetivar aqueles direitos, mostra que não
é possível fazer leis para tudo. Por isso, é na ausência delas que os princípios devem
ser arrolados.
Ao reconhecer o ditado de que “o mais estrito direito é a maior injustiça”, Kant
pressupõe uma concepção de justiça expressa pelos princípios racionais, uma vez que
são estes que dão conteúdo ao direito positivo. Assim, é possível encontrar uma
solução para os problemas da efetivação dos direitos de equidade e de necessidade a
partir da fundamentação moral do direito, expressa na doutrina do direito do filósofo
de Königsberg, coisa que ele não fez. Não aplicar as regras formais, mesmo a regra do
precedente, em vista das consequências injustas, aponta para a supremacia do justo
sobre o legal e mostra claramente que este (o legal) não é critério de justiça.
Temos na introdução da Doutrina do Direito um problema metodológico. O
autor defende uma concepção moral do direito apontando os princípios da razão como
orientadores para o direito positivo; reconhece os direitos de equidade e de
necessidade, todavia não assegura sua efetivação. Reconhece direitos que não são
direitos, isto é, que não têm eficácia. O problema está em defender uma concepção
moral do direito e não se valer dela para garantir direitos tacitamente reconhecidos.
O imperativo categórico do direito “age exteriormente de tal maneira que o livre
uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de qualquer um segundo uma lei
universal” é uma formula que não indica nenhum conteúdo. Indica, apenas, um
procedimento. Não diz o que é justo, mas enuncia como se deve proceder para que uma
ação seja justa. O problema é saber quando e em que circunstâncias uma ação pode
coexistir com a liberdade do outro, enquanto não for apontado um conteúdo
determinado. Ou se pressupõe uma lei que diga o que deve ser feito e então o
imperativo ou princípio universal do direito não diz nada de novo, ou cai-se num vazio
formalismo, tal como imperativo categórico da ética. Temos, então, uma noção de
justiça formal e abstrata. O tratamento dado aos direitos de equidade e de necessidade
é um exemplo disso.
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