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Ética Pública: Corrupção e Democracia

2009, Diversitates

RESUMO: O artigo aborda as relações entre corrupção e demandas associadas ao ideal democrático. Para tanto, parte de uma análise comparativa entre as noções de "bom governo" e "governança". Tendo assumido uma importância estratégica nas discussões sobre corrupção, a noção de governança sugere que a corrupção é antes um problema de gestão, ligada a questões de eficiência e legitimidade do governo. No entanto, deixa de considerar em seu enfoque uma parte importante dos efeitos da corrupção. Ao inverso, a idéia de "bom governo" inclui sempre uma série de crenças e valores associados diretamente à idéia democrática (a crença na soberania do povo, na igualdade, etc.). A corrupção, na medida em que é uma ameaça ao bom governo, é uma ameaça à democracia. A ênfase em um sentido eminentemente político da corrupção impõe-se pela própria complexidade do fenômeno e é necessária para garantir a higidez de nossa vida democrática. ABSTRACT: the article examines the relationship between corruption and popular demands concerning democracy as an issue. A comparative analysis is led between the idea of "good government" and the idea of "governance". As it has assumed a strategic importance in the discussions about corruption since the 1980's, the notion of governance suggests that corruption is rather a matter of management than a matter of politics, that it has to do only with efficiency and legitimacy issues. On the other hand, the notion of "good government" always includes beliefs and values associated with the idea of democracy (the belief in people's sovereignty, in equality, etc.). Corruption, by threatening the idea of good government, reveals itself a threat to democracy as well. Political aspects of corruption must be lighted so as to catch the complexity of such phenomenon and to make our democratic life safer.

Diversitates (2009) vol 1, n. 1: 62-78 Ética Pública: Corrupção e Democracia Cláudio Reis RESUMO: O artigo aborda as relações entre corrupção e demandas associadas ao ideal democrático. Para tanto, parte de uma análise comparativa entre as noções de “bom governo” e “governança”. Tendo assumido uma importância estratégica nas discussões sobre corrupção, a noção de governança sugere que a corrupção é antes um problema de gestão, ligada a questões de eficiência e legitimidade do governo. No entanto, deixa de considerar em seu enfoque uma parte importante dos efeitos da corrupção. Ao inverso, a idéia de “bom governo” inclui sempre uma série de crenças e valores associados diretamente à idéia democrática (a crença na soberania do povo, na igualdade, etc.). A corrupção, na medida em que é uma ameaça ao bom governo, é uma ameaça à democracia. A ênfase em um sentido eminentemente político da corrupção impõe-se pela própria complexidade do fenômeno e é necessária para garantir a higidez de nossa vida democrática. PALAVRAS-CHAVE: democracia, governança, bom governo, corrupção, ética. ABSTRACT: the article examines the relationship between corruption and popular demands concerning democracy as an issue. A comparative analysis is led between the idea of “good government” and the idea of “governance”. As it has assumed a strategic importance in the discussions about corruption since the 1980’s, the notion of governance suggests that corruption is rather a matter of management than a matter of politics, that it has to do only with efficiency and legitimacy issues. On the other hand, the notion of “good government” always includes beliefs and values associated with the idea of democracy (the belief in people’s sovereignty, in equality, etc.). Corruption, by threatening the idea of good government, reveals itself a threat to democracy as well. Political aspects of corruption must be lighted so as to catch the complexity of such phenomenon and to make our democratic life safer. KEYWORDS: democracy, corruption, governance, good government, ethics.  Este texto foi apresentado originalmente no curso “El Derecho al buen governo y a la buena administración: Una visión interdisciplinar”, organizado pela Universidad Rey Juan Carlos , em julho de 2008. ** Professor da Universidade de Brasília e consultor legislativo no senado federal. C. Reis Minha intenção aqui é apresentar algumas reflexões sobre as relações entre a questão da corrupção e as demandas associadas ao ideal democrático. No contexto da reflexão sobre um “direito ao bom governo”, de fato, a questão sobre a ética pública naturalmente se impõe. Há uma clara convergência entre, de um lado, as exigências de “ética na política” e de “integridade no serviço público”, típicas de uma determinada sensibilidade contemporânea a respeito de alguns aspectos de nossa experiência política, e, de outro, os valores transmitidos tanto pela noção clássica de “bom governo” quanto por noções mais contemporâneas, como a de “governança”. Quero tomar como ponto de partida justamente o contraste entre as duas noções – “bom governo” e “governança”. Entre a noção clássica de “bom governo” e a noção contemporânea de “governança” há uma distância que não é negligenciável – na realidade, nela cabe uma boa parte da história da evolução do Estado moderno. Embora minha intenção aqui não seja discutir esse conceito de “governança” e suas implicações, gostaria de começar ressaltando alguns de seus aspectos, dada a importância estratégica que passou a ocupar nas discussões em torno da questão da corrupção. Como se sabe, “governança” é um termo que se popularizou a partir do final dos anos 80, por influência do Banco Mundial, que passou a utilizá-lo sobretudo em conexão com suas análises e propostas relativas à questão do desenvolvimento (ver Pagden 1998, Alcántara 1998). É digno de nota que tanto a palavra inglesa governance, assim como a palavra portuguesa governança, têm uma história bem mais antiga – a palavra “governança” está no idioma português desde o século XV, como sinônimo de “governo” ou, em geral, do exercício de autoridade em determinada esfera (Alcántara, 105). É significativo, portanto, que “governança”, no discurso patrocinado pelo Banco Mundial, tenha ganhado conotações mais precisas. Gostaria de destacar aqui apenas dois aspectos relativos a esse conceito de governança. Por um lado, em contextos como esses dos discursos ligados ao Banco Mundial e a outras agências e organismos internacionais, tende-se a associar ao conceito de “governança”, quando contrastado com “governo” stricto sensu, um sentido pretensamente mais técnico e menos político – até porque a “boa governança”, por ter sentido mais geral, não guarda nenhuma relação necessária com a idéia de Estado, enquanto o “bom governo”, em contraste, parece mais comprometido com a instância político-estatal. 63 ÉTICA PÚBLICA: CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA Essa pretensa neutralidade, no entanto, é mais aparente do que real. Por outro lado – e esse é o segundo aspecto que gostaria de salientar – “boa governança”, ainda nesse mesmo contexto influenciado pelos discursos do Banco Mundial, está, sim, comprometido com uma série de crenças e valores diretamente associados a um tipo muito específico de constelação sócio-política. Em outras palavras: o conceito de governança, se pode ser apresentado como possuindo um sentido (de alguma forma) politicamente mais livre, dado que não se compromete com a idéia de governo, sendo de alcance mais amplo, está igualmente comprometido com valores políticos bem precisos e delimitados. Assim, por exemplo, um documento da Comissão Econômica e Social para a Ásia e o Pacífico, da ONU, que cito aqui apenas como um exemplo arbitrariamente escolhido, mas representativo, diz, por um lado, que “o governo é um dos atores da governança. Outros atores envolvidos na governança variam de acordo com o nível de governo que está em discussão”. Em outras palavras, “governança” carrega um sentido mais amplo do que “governo”, na medida em que o governo é apenas um dos ingredientes que, juntos, garantem a governança. Ao mesmo tempo, o documento da ONU deixa claro o tipo de comprometimento com um ideal político que se esconde por trás da idéia de governança: “Boa governança tem oito características principais. É participatória, orientada ao consenso, accountable, transparente, responsiva, efetiva e eficiente, eqüitativa e inclusiva, e segue o império da lei. Assegura que a corrupção é mínima, que a opinião das minorias são levadas em conta e que as vozes dos mais vulneráveis na sociedade são ouvidas nas tomadas de decisão. É também sensível às necessidades presentes e futuras da sociedade”.1 Seja como for, embora exista, por trás do sentido técnico pretensamente neutro, uma idéia política bem precisa, o conceito de “governança”, tomado genericamente e seguindo-se sua inspiração original, parece implicar um compromisso mais estreito com os valores associados à idéia (menos política do que econômica ou administrativa) de efetividade – de eficiência e eficácia – do poder público. É assim, por exemplo, que a idéia de governança aparece na reflexão exMinistro Bresser Pereira (como se sabe, um dos mais importantes idealizadores e condutores da “reforma do Estado” tentada no Brasil nos anos 90 e só muito 1 Disponível em http://www.unescap.org/pdd/prs/ProjectActivities/Ongoing/gg/governance.asp. Acesso em 28/08/2008. 64 C. Reis parcialmente implantada). Ele diz, por exemplo, em um dos principais textos em que expõe o rationale por trás da reforma do Estado: “Existe governança em um Estado quando seu governo tem as condições financeiras e administrativas para transformar em realidade as decisões que toma”. (Bresser Pereira 1997, 40). As condições institucionais políticas, na reconstrução de Bresser Pereira, ficam em outro domínio (que prefere chamar de “governabilidade”). Ora, vista como uma falha de governança nesse sentido, a corrupção representa um déficit de eficiência ou de efetividade – o que, de resto, não se contesta. Em outras palavras, vista dessa perspectiva da governança, a corrupção se apresenta como um problema que se insere, primariamente, no domínio da gestão. Essa circunscrição ou delimitação do problema tem, sem dúvida, seus atrativos. Vista como sendo essencialmente um problema de gestão, espera-se que a corrupção torne-se, por assim dizer, um fenômeno mais manuseável, mais facilmente identificável e administrado. São bem conhecidas as dificuldades de se fixar adequadamente os contornos do conceito de corrupção, o que, fatalmente, tem reflexos nas tentativas de encontrar para ele uma tradução juridicamente adequada, que permita, por sua vez, circunscrever os esforços de combate ao problema – que é o que interessa mais fortemente, no final das contas. A esperança é que a circunscrição do problema ao domínio da gestão elimine algumas dessas dificuldades. O problema, no entanto, é que boa parte dessa esperança é vã. Há dois problemas conexos. O primeiro é que talvez a artificialidade da separação, no que diz respeito aos assuntos de governo, entre um domínio administrativo e outro político não represente uma solução estável para a dificuldade da tarefa de definir o conceito de corrupção (ver, por exemplo, os argumentos apresentados em Villoria Mendieta 2006). Segundo, mesmo que seja possível estabelecer com clareza a fronteira entre o administrativo e o político, a ênfase exclusiva na efetividade deixa escapar alguns aspectos do fenômeno que são fundamentais. Gostaria de insistir ainda um pouco mais neste ponto, chamando a atenção para uma diferença facilmente identificável nos discursos que se organizam em torno da questão da corrupção, buscando, sobretudo, destacar as razões mais importantes que temos de nos esforçar para combatê-la. Há, basicamente, dois tipos de discurso, que se definem não pela exclusividade, mas pela predominância de um de dois temas. Um dos temas é, 65 ÉTICA PÚBLICA: CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA justamente, o da efetividade da gestão do governo. Desse ponto de vista, a necessidade de se garantir a integridade está em que a sua falta implica um custo adicional, que torna menos eficiente e menos eficaz a realização dos fins próprios do governo. O outro tema é o da legitimidade. Dessa perspectiva, a crença na integridade do serviço público, de um modo geral, é tomada como um componente indispensável da crença na legitimidade do governo. A primeira perspectiva tem uma conotação eminentemente econômica. A segunda, a da legitimidade, tem, por sua vez, uma conotação eminentemente política, mesmo quando se limita, ao focar o problema da corrupção, no serviço público stricto sensu, deixando de lado os agentes políticos mais óbvios. Cada uma delas captura uma dimensão relevante do problema da corrupção, mas há uma diferença significativa entre ambas. Creio que é possível argumentar que a segunda perspectiva, que enfatiza o déficit de legitimidade provocado pela corrupção, permite uma circunscrição mais adequada do problema que é especificamente a corrupção, do que a primeira, que tende a provocar uma indistinção entre problemas como a corrupção propriamente dita e outras questões, como a má gestão, a ineficiência, a incompetência e o mero desperdício. É interessante observar que, por trás da quase unanimidade que muitas vezes leva a que o imperativo da promoção da integridade do serviço público ganhe um lugar de destaque nas agendas políticas, as justificativas variam nos dois sentidos apontados. Significativo também é que essa variação parece algumas vezes seguir um padrão, variando de acordo com o grau de desenvolvimento social, político, econômico do país. Isso fica claro se examinamos os discursos que, ao longo dos anos 90, foram produzidos para justificar os programas de promoção da ética pública, que, então, surgiam em toda parte, incentivados por fontes diversas. Como exemplo, quero citar dois trechos de relatórios apresentados por dois países-membros da OCDE2, em meados dos anos 1990, por ocasião de um levantamento das práticas de gestão da ética pública e da conduta dos servidores públicos. O primeiro trecho que gostaria de citar vem do relatório apresentado pelos Estados Unidos: 2 Ver OCDE 1995. Disponível http://www.oecd.org/document/40/0,3343,fr_2649_34135_2731816_1_1_1_1,00.html. 28/08/2008. Acesso em em 66 C. Reis O governo constitucional nos Estados Unidos está fundado no princípio de que a autoridade governamental é derivada do consentimento dos governados. (...) A noção de que agentes públicos, possuam ou não um cargo eletivo, devem ser responsáveis perante os cidadãos tem, assim, contornos constitucionais. A confiança do público é vital para o sucesso de um governo democrático. Segundo a maioria das medidas objetivas de desempenho, o serviço público federal é hoje mais efetivo, produtivo e profissional do que em qualquer outro período de sua história. Paradoxalmente, há um largo consenso acerca do estado negativo da confiança no governo federal e em suas instituições. Há pouco acordo, no entanto, quanto às causas disso. E o relatório continua, refletindo sobre possíveis causas e sobre o que tem sido feito para que essa confiança no serviço público seja restaurada e mantida. O segundo trecho que eu gostaria de lembrar foi tirado do relatório do México: O México experimentou nos últimos anos uma vasta transformação de suas instituições. De um lado, a economia abriu-se ao livre comércio, aderindo a organizações e tratados internacionais, ao mesmo tempo em que se encorajavam investimentos estrangeiros diretos e a modernização do setor privado. O governo também reduziu seu tamanho por meio da venda de corporações públicas, promovendo a atividade privada, ganhando assim eficiência e aumentando a produtividade geral. Esse processo afetou práticas e hábitos que pareciam invulneráveis há uma década. Por outro lado, grandes mudanças políticas ocorreram. Processos eleitorais estão se desenvolvendo com transparência e pleno reconhecimento da maior parte dos partidos políticos; legislaturas mudaram de um partido para outro sem qualquer restrição, reforçando a vida democrática mexicana. Essas mudanças afetaram profundamente a sociedade mexicana e, em alguma medida, seus valores e princípios, entre os quais aqueles que dizem respeito à ética no setor público. O governo federal tenta consolidar uma responsabilidade compartilhada e uma cultura de cooperação nas tarefas públicas, promovendo a modernização de modo a garantir transparência nas atividades governamentais e eliminar a má conduta dos servidores contra o interesse público. (...) O governo mexicano entendeu ser necessário levar a cabo uma reestruturação de seus processos administrativos, de modo a aprimorar a eficácia de suas ações e a eficiência de suas instituições. Essa reestruturação foi recentemente incorporada no programa de modernização da administração pública (...). O relatório prossegue descrevendo, em linhas gerais, esse programa e como, dentro dele, se encaixa a preocupação com a ética pública. É dessa maneira que Estados Unidos e México introduzem suas respectivas apresentações dos esforços de seus governos de garantir a integridade do serviço público. O que é interessante é perceber como, em cada caso, esse esforço é situado dentro de uma narrativa que, exprimindo uma auto-interpretação, exprime um conjunto de aspirações, de sentidos, de projetos de comprometimentos com valores. 67 ÉTICA PÚBLICA: CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA No caso norte-americano, o discurso sobre a necessidade da ética pública se insere na narrativa do “governo constitucional” e do que isso implica para a relação entre governantes e governados. No caso mexicano, a preocupação com a ética pública é inserida na narrativa da “modernização”, entendida como um misto de abertura econômica e democratização das estruturas e práticas políticas. O esforço de garantir a ética pública se insere justamente nessa encruzilhada de crenças sobre o que somos e sobre o que fomos, e de aspirações, de crenças sobre o que queremos ser e o que não mais gostaríamos de ser. Nos dois discursos, essas narrativas se organizam muito claramente em torno de dois conjuntos de crenças e valores. O primeiro conjunto, ilustrado no discurso norte-americano, remete para as idéias tradicionais do public trust, que, por sua vez, remetem, em última instância, ao misto de contratualismo e liberalismo na filosofia política lockeana, uma das matrizes da ideologia que deu forma ao Estado norteamericano. O segundo conjunto, por sua vez, remete à idéia de uma necessária reestruturação do Estado – entendida, em geral, em termos de “modernização” –, que é percebida, justamente, como meio necessário para garantir a sua efetividade na consecução das finalidades que lhes são próprias e transformá-lo em verdadeiro instrumento de desenvolvimento da sociedade. Esses dois tipos de discurso – o da legitimidade e o da efetividade – combinam-se de formas variadas. As variações dependem de diversos fatores – entre eles, como pode sugerir já os exemplos que escolhi, o grau de desenvolvimento político-institucional e econômico-social do país. Pode-se argumentar sem maiores dificuldades que há uma certa predominância do discurso da legitimidade em países com um maior amadurecimento institucional, enquanto o discurso da efetividade predomina em países com menor grau de desenvolvimento político e econômico. Isso é compatível com os discursos de “modernização”, freqüentes nos anos 80 e 90 em muitos países latino-americanos, por exemplo. O Brasil, em particular, não fugiu à regra. Depois da volta à democracia, em meados dos anos 80, tem crescido a exigência genérica (nem sempre muito bem articulada) de “ética na política”, que se manifesta, naturalmente, na condenação de diversos aspectos da vida política nacional como “corruptos”. Esse clamor por ética pública encontrou também tradução nos discursos produzidos em torno da idéia da “reforma do Estado”, retomada, em meados dos anos 90, depois dos grandes escândalos de corrupção que marcaram o início da década. O tema da “ética” fatalmente aparecia, vinculado não apenas a uma questão 68 C. Reis conjuntural, mas também à rejeição de uma série de aspectos associados à estrutura estatal, aos costumes políticos e à cultura da administração pública brasileira, e atrelado à necessidade de se rediscutir a questão do controle dos agentes públicos no contexto de um novo paradigma gerencial (que previa, entre outras coisas, o aliviamento dos controles burocráticos). Voltando ao contraste entre legitimidade e efetividade, cada um desses discursos abre, sobre a questão da ética pública e, mais especificamente, da corrupção, uma perspectiva diferente – e essa pluralidade de perspectivas é não apenas interessante, no caso da corrupção, é também necessária, dado o caráter múltiplo do fenômeno. Como já sugeri, a ênfase exclusiva, no entanto, na questão da necessidade de uma gestão efetiva tende a mascarar alguns aspectos do problema da corrupção que mereceriam uma atenção mais aprofundada. Deixando agora um pouco de lado a idéia da “boa governança”, os aspectos que gostaria de destacar neste momento constituem, talvez melhor, um ideal de “bom governo” – e a questão é, justamente, em que sentidos a corrupção, que é uma ameaça à “boa governança”, é também uma ameaça ao “bom governo”. Um dos traços marcantes mais característicos da política contemporânea é a quase unanimidade em torno da superioridade da democracia sobre outros regimes ou formas políticas. Nossa idéia de um “bom governo” inclui sempre uma série de crenças e valores associados diretamente à idéia democrática (a crença na soberania do povo, a alta posição, no nosso ranking de valores, da igualdade, etc.). Como se costuma observar, essa convergência não deixa de ter um aspecto notável, revertendo a tradicional desconfiança que, desde a antigüidade, acompanhou a democracia, sempre vista como próxima demais da anarquia e do caos para ser uma forma política apresentável. Um bom governo, portanto, é, independentemente do que mais possa ser, um governo democrático. A corrupção, na medida em que é uma ameaça ao bom governo, é uma ameaça à democracia. Aliás, é possível argumentar que a corrupção é mais danosa à democracia do que a outras formas políticas, dado que seus efeitos perversos afetam diretamente algumas das bases sobre as quais justamente repousa a democracia – entre elas, o valor da igualdade e o imperativo da publicidade, que decorre da idéia de que os agentes públicos estão sob uma responsabilidade especial de prestar contas ao conjunto dos cidadãos (Heywood 1997). Cabe-nos agora estender nossa compreensão da ameaça que é a corrupção para a democracia. 69 ÉTICA PÚBLICA: CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA Antes, porém, talvez valha a pena lembrar algumas características importantes do conceito de corrupção (Abreu e Reis, no prelo). O conceito de corrupção poderia ser incluído naquela classe de conceitos que, em alguns contextos da filosofia moral contemporânea, se costuma chamar de “conceitos densos” (thick concepts) ou seja, conceitos que carregam uma mistura de descritividade e de normatividade que, entre outras conseqüências, implicam algumas dificuldades de uso ou aplicação. Com relação ao sentido normativo de corrupção – a reprovação que em geral exprimimos quando consideramos um ato ou uma pessoa “corruptos” –, podemos dizer que há uma razoável unanimidade: as posições que procuram defender o valor positivo da corrupção, se ainda existem, são claramente marginais e minoritárias; em geral, classificar algo como corrupto implica um sentido normativo negativo – implica exprimir reprovação. O sentido descritivo, por sua vez, é mais complexo. Há um grande número de aspectos que contribuem para tornar corrupto um comportamento ou um ato. Alguns desses aspectos variam de sentido em contextos diferentes. Contextos tipicamente administrativos e contextos tipicamente políticos, por exemplo, supondo que seja possível separá-los com clareza, talvez ponham problemas específicos, alguns deles relacionados às características próprias dessas atividades e à maneira como, em cada uma delas, as ações são valoradas de forma diferente. Outros aspectos, ainda, são difíceis de caracterizar claramente. Há, notoriamente, uma área cinzenta bastante extensa que logo se apresenta, assim que nos afastamos dos casos mais simples e facilmente reconhecíveis de corrupção. Isso é particularmente verdadeiro no caso da corrupção política. Assim, por exemplo, não há muita dificuldade em classificar a atitude de um policial que pede uma propina para não aplicar uma multa ou a de um fiscal que faz chantagem para não registrar uma infração qualquer. Mas diversos aspectos dos tipos de acordos e negociações que se fazem no contexto parlamentar, por exemplo, ou o delicado tema do financiamento da atividade político-partidária ocupam fatalmente uma zona cinzenta em que precisamos, para nos orientar normativamente, exercitar nosso discernimento. Uma das fontes de dificuldade de aplicação do conceito de corrupção está ligada ao fato de que esse conceito tem, eminentemente, um sentido negativo, de modo que, para entender adequadamente em que sentido algo se corrompe, precisamos ter alguma idéia do seu estado de integridade (esse ponto tem sido freqüentemente lembrado: ver, por exemplo, Philp 1997, Heywood 1997, Villoria Mendieta 2006). Corrupção implica degradação. No caso de uma atividade, essa 70 C. Reis degradação pode ser entendida como desvio – no caso dessa atividade definir-se por um fim a ser alcançado – ou como distorção – no caso de considerarmos essa atividade como um fim em si mesmo. Ambas as idéias – corrupção como desvio e corrupção como distorção – podem ser úteis para pensarmos a questão da corrupção política em geral, desde, é claro, que tenhamos sucesso em determinar a finalidade de que se desvia ou o valor que se perde ou que se distorce. Isso dá inevitavelmente ao conceito de corrupção política um caráter contestado bastante acentuado, na medida em que há uma disputa sempre muito aguda em torno do que seja, idealmente, a política (não por acaso, as trocas de acusações de corrupção são sempre comuns nos embates políticos), o que, por sua vez, representa uma dificuldade especialmente importante para os esforços de combate à corrupção. Não precisamos, no entanto, nos envolver muito profundamente na disputa em torno da melhor maneira de conceber a política, se aceitamos, preliminarmente, que o bom governo implica, para boa parte das sociedades políticas contemporâneas, um compromisso fundamental com os valores associados em geral com a idéia de democracia. É bem verdade que o conceito de democracia é também suficientemente controverso e disputado, mas não há necessidade de nos afastarmos muito de um sentido mínimo de democracia para chegarmos a um conjunto de pontos suficientes e operativos, no que se refere à questão da corrupção política e de como enfrentá-la. Não é minha intenção discutir mesmo esse sentido mínimo de democracia. Quero simplesmente partir da idéia de que assumir o ideal democrático é assumir (entre outras coisas, certamente) o compromisso com a realização do ideal da soberania popular, ou seja, a idéia de que a autoridade mais alta está encarnada no próprio conjunto dos cidadãos livres e iguais, que autorizam, direta ou indiretamente, nas formas previstas na constituição da associação política, os diversos agentes públicos que compõem e fazem agir essa associação. O que teríamos de nos perguntar, então, é o que constitui um desvio ou uma distorção desse ideal da soberania popular. Gostaria aqui de destacar três pontos em que essa distorção age, sem pretender com isso esgotar todas as possibilidades, e seguindo de perto as análises propostas por Mark Warren em uma série de textos recentes (especialmente Warren 2004, Warren 2006a e Warren 2006b). O primeiro aspecto é o do ideal de igualdade e inclusão, implícitos no ideal mais amplo de cidadania democrática. Essa primeira distorção, por sua vez, se reflete afetando um mecanismo fundamental para o exercício da soberania popular nas democracias 71 ÉTICA PÚBLICA: CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA modernas, que são os mecanismos de representação. Por fim, a corrupção age afetando diretamente o dever de publicidade, sem o que o exercício efetivo da soberania popular é impossível. Antes, porém, creio que seja importante fixarmos alguns pontos (Abreu e Reis, no prelo). O problema da corrupção é, eminentemente, um problema prático. A questão mais relevante e interessante, no que se refere à corrupção, é a questão prática sobre o que fazer para evitar ou combater esse mal. As questões teóricas assumem, nesse caso, um lugar claramente secundário – o que, no entanto, não implica que não existam ou não possam ser colocadas de maneira interessante, nem que seja pelo fato de que, para responder a questão sobre o que fazer, precisamos ter alguma resposta para duas outras questões prévias e interligadas: precisamos ter alguma resposta para a questão sobre o que é corrupção e alguma clareza sobre o que, exatamente, na corrupção, faz com que ela seja um problema. Com relação à questão sobre o que é corrupção, já tivemos ocasião de levantar alguns problemas. Acrescentemos apenas que, embora haja uma crescente dificuldade de aplicarmos o conceito a casos complexos, há um certo consenso em torno de um sentido nuclear de corrupção, que deriva do conceito moderno clássico do abuso da função pública para obter ganho privado. Também não seria exagerado dizer que há igualmente um consenso em torno da idéia de que devemos perceber a corrupção mais como um problema institucional do que um problema moral, ou seja, a corrupção depende, para sua existência, mais de fatores institucionais do que de fatores ligados, por exemplo, ao caráter moral dos indivíduos. Sendo assim, a resposta à questão sobre o que fazer passa, necessariamente, pela engenharia institucional e não pela formação do caráter dos agentes públicos. Ora, dependendo da resposta que damos à questão sobre o que faz com que a corrupção seja um problema – se é um problema eminentemente político, de gestão ou econômico –, nossa engenharia institucional seguirá um ou outro caminho. Os pontos que quero levantar com relação à corrupção na (ou da) democracia não têm a intenção de problematizar ou polemizar contra aquele sentido nuclear de corrupção que herdamos por influência das forças liberais que ajudaram a dar forma ao Estado moderno. Quero, isto sim, chamar a atenção para uma dimensão eminentemente política do problema da corrupção – ou seja, apresentar uma resposta à questão sobre o que faz da corrupção um problema que a trata como uma distorção 72 C. Reis de nossa experiência política democrática –, o que, por sua vez, terá impacto sobre a questão prática sobre o que podemos ou devemos fazer para enfrentar os males provocados por essa distorção. Voltemos, portanto, aos três aspectos afetados pelo tipo de distorção promovido pela corrupção, entendida como uma distorção dos valores que associamos à idéia de auto-governo ou de soberania popular, implícitas no ideal democrático. O primeiro aspecto, como disse, diz respeito ao cumprimento do compromisso com as idéias de igualdade e inclusão implicados pelo ideal de cidadania democrática. Na base do ideal democrático está, de fato, a crença de que os cidadãos são livres e iguais, de modo que cada um tem um igual direito de participar das tomadas de decisões coletivas que afetam igualmente a todos. As formas e as dimensões segundo as quais esse direito se traduz em práticas concretas são muito variáveis, estendendose desde o mais básico – o direito de voto, por exemplo, na escolha dos governantes e dos representantes legislativos – até canais participativos que levam à influência mais direta dos cidadãos nas tomadas de decisões. Ora, como bem observa Warren, “a lógica mesma da corrupção envolve exclusão: o corrupto usa seu controle sobre recursos para obter ganhos às expensas daqueles excluídos da tomada coletiva de decisões ou da organização das ações coletivas” (Warren 2004, 333). Naturalmente, nem toda exclusão é, em sentido estrito, corrupta: há regimes políticos que são explicitamente baseados na exclusão (e que, por isso, poderiam até mesmo, eventualmente, ser chamados de corrompidos, em sentido largo; mas não é o sentido largo que me interessa neste momento). Dois aspectos caracterizam essa exclusão promovida pela corrupção, no contexto da democracia. O primeiro desses aspectos, que torna o tipo de exclusão promovido pela corrupção especialmente danoso na democracia, é o fato de que ela implica uma espécie de duplicidade ou de hipocrisia: o corrupto, ao mesmo tempo que quebra a regra, professa publicamente sua lealdade a ela (é o que Warren chama de duplicitous exclusion). Mais do que isso: na medida em que, nos regimes democráticos, a autoridade do agente público deve poder ser vista, de alguma forma, como relacionada à fonte originária de toda a autoridade – o próprio povo –, o corrupto conta com a duplicidade para obter a autoridade de que necessita para conseguir seu intento – considerando que corrupção implica, em última análise, abuso da autoridade. Essa condição da duplicidade ou da hipocrisia, nota Warren, “explica por que as 73 ÉTICA PÚBLICA: CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA decisões e os atos corruptos em uma democracia são sempre encobertos: não podem ser justificados em público – isto é, para aqueles afetados –, caso venham a ser conhecidos. A corrupção da democracia diz respeito a ações que são retiradas da vista pública, como um meio de excluir aqueles que têm uma legítima reivindicação de inclusão” (Warren 2004, 333). Isso tem também um reflexo na questão da confiança, a que retornarei mais adiante. O segundo aspecto se refere ao fato de que essa exclusão implicada pela corrupção representa um ganho para os incluídos e uma perda para os excluídos – e poderíamos acrescentar que representa um ganho para alguns na mesma medida em que representa uma perda para outros, ou seja, implica algum tipo de transferência inaceitável. Isso mantém a idéia do ganho impróprio por abuso da autoridade, presente no sentido nuclear de corrupção, sem, no entanto, fazer uso da distinção público-privado, ao mesmo tempo em que aponta para um diagnóstico preciso, do ponto de vista democrático, do que está sendo ameaçado pela corrupção, oferecendo pistas interessantes para, em seguida, pensarmos estratégias institucionais para lidar com o problema. Esse efeito no ideal de inclusão democrática reflete-se também em outro aspecto fundamental do exercício da soberania popular nas democracias modernas, que são os mecanismos de representação. De fato, os efeitos mais graves e duradouros do tipo de exclusão que a corrupção implica vão se fazer sentir nos domínios políticos em que os cidadãos são representados, dado que as ocasiões em que a soberania popular é diretamente exercida são relativamente raras nas democracias modernas. A corrupção começa a distorcer a representação política dos cidadãos já no momento eleitoral. As práticas de compra e venda de votos e as distorções das campanhas eleitorais por abusos econômicos ou dos meios de comunicação, por exemplo, sem mencionar as diversas formas de fraude eleitoral, afetam diretamente a representação, constituindo, assim, exemplos básicos de corrupção política. Mas é sobretudo na arena parlamentar, locus privilegiado da representação política, que encontramos, talvez, os exemplos mais importantes e cheios de conseqüências de corrupção política ligada à distorção da representação. Ao mesmo tempo, essa arena política é especialmente complexa, o que a torna intensamente povoada de “áreas cinzentas”, nas quais algumas vezes é difícil traçar a fronteira entre o corrupto e o aceitável. Práticas de negociação e barganha, próprias da atividade parlamentar, assim como atividades como o lobby, por exemplo, estão sempre perigosamente 74 C. Reis caminhando sobre a tênue linha que separa o aceitável do condenável. As interrelações entre legislativo e executivo, as influências das preocupações eleitorais sobre o comportamento dos políticos, a questão do financiamento dos partidos e das campanhas políticas – tudo isso tem reflexos diretos sobre a forma como estarão representados os cidadãos e seus diversos interesses e opiniões, constituindo também áreas de risco significativo, em termos de corrupção. O parlamento, no entanto, não é apenas o locus da representação: é também, e fundamentalmente, um dos lugares privilegiados, nas democracias representativas modernas, da deliberação – e passo agora ao terceiro aspecto imprescindível para o exercício adequado da soberania popular que é afetado pelo tipo de distorção provocado pela corrupção. A corrupção joga sobre a deliberação um manto de opacidade, escondendo as razões pelas quais as decisões são tomadas, com efeitos nocivos sobre um aspecto especialmente importante da relação entre representantes e cidadãos, geralmente tratado em termos genéricos de “confiança”. É conveniente, no entanto, como nota Warren (2004, 2006a, 2006b) distinguir o tipo de relação que se estabelece entre os cidadãos e seus representantes executivos, de um lado, e seus representantes legislativos, de outro – ambas as relações passíveis de serem descritas em termos de confiança. No caso dos agentes executivos, a confiança do cidadão é honrada na medida em que esses agentes são capazes de apresentar os resultados que se espera de sua ação – ou seja, sejam capazes de executar as políticas públicas decididas coletivamente. Os agentes públicos executivos têm de ser capazes de retribuir a confiança que recebem, e pela qual são autorizados a agir em nome do público, na forma de resultados: a falha em apresentar esses resultados, seja por desídia, por ineficiência ou por corrupção, representa uma quebra da confiança. No caso dos representantes legislativos, o depósito em confiança que está na origem de sua autoridade não pode ser honrado da mesma forma. O parlamentar não pode prometer resultados, dado que não pode assegurar que a posição que representa sempre sairá vitoriosa nos embates políticos no parlamento. O índice de que está honrando a confiança que nele foi depositada pelo cidadão, portanto, deve ser diferente daquele que se aplica aos agentes executivos. Warren sugere que “a confiança em um representante é honrada quando as razões que ele dá para uma posição são, de fato, as razões que motivam seu voto, barganha ou acordo” (Warren 2004, 337). Ora, as razões da corrupção, justamente, não podem, por definição, expor75 ÉTICA PÚBLICA: CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA se, o que causa uma distorção especialmente nociva, abalando a base de confiança que sustenta a deliberação democrática. É interessante notar que essa maneira de pôr o problema justifica, na mesma medida, a regulação das aparências. Como observa Warren, como as democracias lidam com discursos e promessas, a fraude é o caminho primário que leva ao poder mal-adquirido, que é, por sua vez, um meio primário de exclusão. As aparências são um assunto sensível em uma democracia porque elas dão a base epistêmica para os juízos dos cidadãos sobre seus representantes, suas decisões e políticas, e, assim, são uma condição de inclusão democrática. (Warren 2006a). Essa preocupação legítima, do ponto de vista democrático, com a regulação das aparências justifica largamente os esforços de regular, por exemplo, os conflitos de interesses. A existência de conflitos de interesses não implica, necessariamente, corrupção, como é óbvio – mas sua relação não apenas com as condições em que se dá o ato corrupto, como também com a aparência de corrupção é razão suficiente para que nos ocupemos com sua regulação. Para concluir, gostaria de apresentar resumidamente os pontos que pretendi defender. Um primeiro ponto diz respeito à necessidade de tentarmos pensar um conceito eminentemente político de corrupção, que vá além da necessidade de capturarmos esse fenômeno por sua dimensão econômica e administrativa. O problema da corrupção não é apenas um problema de governança, no limite indiscernível de outras falhas de gestão: tem uma dimensão política que é preciso qualificar adequadamente para que possamos, inclusive, pensar mecanismos eficazes para combatê-la. Ao invés de vermos a corrupção apenas a partir do ideal da “boa governança”, vale a pena tentar olhar para ela a partir do ideal do “bom governo”, entendendo essa expressão em um sentido mais próximo ao sentido clássico que tinha na tradição. Um segundo ponto é que esse ideal de “bom governo” se traduz para nós, quase unanimemente, como um ideal democrático. Se, do ponto de vista da governança, corrupção implica uma falha de eficiência, do ponto de vista do bom governo a corrupção deve representar uma falha no exercício democrático do poder político – deve implicar uma falha no exercício da soberania popular. 76 C. Reis Escolhi três pontos – igualdade, representação e deliberação – para ilustrar o tipo de distorção que a corrupção pode provocar na democracia. Em suma, a corrupção implica um tipo de exclusão que põe em xeque nosso comprometimento com os ideais de inclusão próprios do exercício democrático do poder político. Enfim, se retomarmos as três questões que utilizei acima para introduzir a discussão sobre esses três pontos – as questões o que é a corrupção, o que faz dela um problema e o que podemos fazer para resolver esse problema –, podemos apreciar um pouco melhor o tipo de contribuição que a perspectiva que procurei desenvolver pode dar para a abordagem do problema da corrupção. Com relação à primeira pergunta – o que é corrupção –, começamos assumindo o sentido nuclear de corrupção como abuso da função pública para obter ganho privado. Deixei de lado as possibilidades de discussão e de problematização desse sentido nuclear, cuja clareza é mais aparente do que real. Isso se justifica pelo fato de que, com respeito à corrupção, há uma clara prioridade da questão prática – o que fazer quanto a ela – sobre a questão teórica – o que é corrupção. O caminho para abordarmos essas questões do ponto de vista político da corrupção na (ou da) democracia foi aberto com a idéia geral, desenvolvida por Mark Warren, de que corrupção, no contexto democrático, implica um tipo de exclusão. Em outras palavras, o que faz a corrupção ser um problema político especificamente relevante para a democracia é que ela consiste em um tipo de exclusão. Entender isso e as formas que essa exclusão pode assumir, por sua vez, prepara as respostas que podemos encontrar para a questão prática sobre o que devemos fazer para eliminar esse mal. Sem dúvida, algumas das soluções tradicionalmente associadas com o enfrentamento da corrupção política – accountability, transparência, mecanismos de controle e distribuição de poderes, entre outros – estão na ordem do dia, mas a abordagem desenvolvida por Mark Warren nos trabalhos citados – que segui aqui de perto – permite pensar a possibilidade de acrescentarmos a essa lista uma série de outras soluções, que passam pela idéia de reforçar os mecanismos democráticos de inclusão e o poder e a autoridade dos cidadãos. A ênfase em um sentido eminentemente político de corrupção impõe-se pela própria complexidade do fenômeno. Tratar a corrupção exclusivamente como um problema de gestão ou de governança é deixar de considerar uma parte importante dos seus efeitos. Ao mesmo tempo, trazer para o centro a questão da corrupção quando 77 ÉTICA PÚBLICA: CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA pensarmos sobre a democracia é imperativo, se quisermos garantir a higidez de nossa vida democrática. 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