Marcos Santos/USP imagens
Corrupção: ética ou política
Tercio Sampaio Ferraz Junior
resumo
abstract
Toma-se a corrupção como mito
político, a partir da micropolítica como
instrumento de exploração de espaços
informais na busca de influência (sexo,
status, prestígio, reconhecimento),
não como poder político. Daí o
surgimento da f igura do político
profissional, distinta da do empresário.
Altera-se o ambiente político-social,
manifestando-se crescente integração
entre opinião pública e imprensa.
A corrupção adquire uma nova
lógica, alastrando-se para além das
limitações de classe. Daí o dilema
democrático, envolvendo a violação
de lealdades morais e a negociação de
valores fundamentais como a própria
liberdade, cálculo de sobrevivência
que se mede pelo preço.
This paper discusses corruption as a political
myth, from the idea of micro-politics as a
tool for exploiting informal spaces in the
search for influence (sex, status, prestige,
recognition), not as political power. That
gives rise to the figure of the political
politician, different from the businessman.
In the modern market-based society,
money becomes the hegemonic medium.
Gain and accumulation require efficiency,
which requires a strong functional
differentiation between public and private;
and brings under suspicion the confusion
of papers (the professional politician, the
businessman, public administration). With
the introduction of a new actor − the masses
and the integration between public opinion
and the press − corruption acquires a new
logic: on the one hand, a violation of moral
micro-political loyalties; and on the other
hand, the negotiation of fundamental
values such as one’s freedom and the
calculation of survival, measured by price.
P a l av r a s - c h av e : m i c r o p o l í t i c a
e macropolítica; corrupção e
diferenciação funcional; público e
privado; escândalo e mídia.
Keywords: micro-politics and macropolitics; corruption and functional
differentiation; public and private; scandal
and press.
R
ecebi de um amigo alemão o
seguinte e-mail a propósito
deste tema:
“Sou conselheiro internacional em matér ia de boa
governança local. Aconselho municípios em Madagascar, também em questões
de corrupção.
Faz parte da boa governança combater a corrupção.
Digo, então, aos prefeitos
em Madagascar, que eles devem agir contra
a corrupção, porque ela é danosa. A isso eles
abanam a cabeça, concordando. Mas me olham
com olhos arregalados e amistosos e pensam:
como é possível que esses alemães, que só têm
farofa no cérebro, consigam, apesar disso, fazer
automóveis tão espetaculares.
Perguntam-me, então, o que devem fazer
contra a corrupção. Eu respondo que corrupção
não é um problema de dinheiro, mas de ‘falta
de dinheiro’. E explico: quem paga com bananas
deve trabalhar com macacos. De novo abanam a
cabeça, concordando, e refletem: como poderiam
conseguir bananas para pagar seu pessoal...?
Que é corrupção, prezados amigos filósofos?
Como fazer para explicar a essa gente, nesses
países, que não se deve ajudar os amigos? Corrupção, mesmo para alguém da terra de Kant, é
algo difícil de definir. Corrupção é um daqueles
conceitos que surgem do nada. Como alergia ao
pó de velhos arquivos. Ninguém é capaz de dizer
exatamente o que ela é. Mas, quando ela aparece,
qualquer um sabe do que se trata”.
As observações aí contidas servem para iniciar uma reflexão.
Delas destaco: 1) a dificuldade de um conceito geral; 2) a relação/diferenciação entre corrupção e preferência clientelística; 3) corrupção
e distinção entre progresso e atraso (desenvolvido/subdesenvolvido).
Embora, nos dias de hoje, corrupção seja um
tema corrente, tratado na legislação e verberado
moralmente, é possível dizer que talvez não se
trate propriamente de um problema jurídico,
nem mesmo, em sua essência, de um problema
ético, mas de um mito político. Não mito no
sentido de fabulação, mas de um componente
estrutural de nossa percepção das coisas. Nesse sentido, algo que não pode ser eliminado,
não porque o homem seja moralmente fraco,
mas porque nossa concepção de corrupção não
permite sua eliminação (Engels, 2014, p. 21).
Não se trata r ia, assim, de um conceito
descritivo, mas de um conceito valorativo: é
impossível separar com nitidez o fato da indignação que ele provoca. Nessa linha, a conhecida classificação, popularizada por Arnold
Heidenheimer (1989), entre corrupção negra,
cinzenta e branca, sendo a primeira aquela que
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR é professor
titular aposentado da Faculdade de Direito da USP.
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
17
dossiê ética e sociedade
existe no consenso das elites e da opinião pública na reprovação de um determinado ato ou
comportamento como merecedor de um castigo
(suborno da autoridade para obter um benefício); a segunda, quando há alguns grupos da
elite que veem certos comportamentos como
reprováveis, enquanto a opinião pública mantém uma posição ambígua (por exemplo, o pagamento de transporte para eleitores dispostos
a sufragar determinado candidato ou partido);
a terceira, quando a maioria das elites e da opinião pública considera certos comportamentos
corruptos como toleráveis, como fazer uso de
despachantes para obter serviços, sem perguntar como os conseguem.
Há, assim, uma espécie de jogo dialético entre corrupção e crítica da corrupção, do qual
emergem conceitos de corrupção. Mostrada
no e-mail que reproduzi, essa equação dialética desponta nessa dificuldade de julgar certos
comportamentos: seria um caso de corrupção
os brindes que alguém, como comprador, recebe por sua fidelidade ao vendedor em detrimento dos demais?
Isso seria, por sua vez, um possível motivo
a explicar a dificuldade de uma definição geral
de corrupção, o que não exclui a possibilidade
de elegermos algumas conhecidas práticas como
sinais óbvios de corrupção: suborno, propina,
favorecimento, não obstante seja inseguro às
vezes falar de corrupção quando pensamos em
incentivo, prêmio, reconhecimento, gratidão.
Uma amostra dessa dificuldade está no princípio da troca de presentes, descrito como um
tema fundamental da antropologia na obra de
Marcel Mauss (2002) de 1923-24. Trata-se da
descrição do efeito vinculante que possui um
presente na forma de criação de relações de
compromisso: presentes devem ser retribuídos.
Quem recebe assume uma espécie de débito que
o põe numa posição assimétrica de inferioridade
até que retribua com um presente maior, invertendo as posições. Trata-se de relações que não
se regulam por medidas morais, como as que
presidem a justiça comutativa e distributiva,
nem podem ser reduzidas a questões de gratidão,
muito menos reguladas por normas jurídicas.
No Código de Hamurabi (1711-1669 a.C.)
há punição para o juiz que muda sua decisão.
18
Os intérpretes modernos dizem que a punição
ocorre porque o juiz teria sido subornado. Daí
o título dado pelos editores do Código a essa
seção: “O Juiz Corrupto”. Essa interpretação
etnocêntrica, contudo, passa por cima do fato
do horror que seria para Hamurabi uma decisão levianamente inconstante. Tal inconstância
ofenderia o deus Nunamnir, cujos comandos e
decisões eram inalteráveis. Não é difícil dizer
que dar presentes e recebê-los, mesmo por parte de um juiz, seria um comportamento usual.
Punível, na verdade, seria a inconstância, a falta de firmeza. Donde uma certa inconsistência
observada na tradução dos textos, podendo-se
supor que o uso da palavra “corrupção” poderia apontar para um anacronismo do tradutor
(Noonan Jr., 1984, pp. 9 e seg.).
Na verdade, essa disputa interpretativa acaba por ser um indício de que “corrupção” não é
termo facilmente generalizável na forma de um
conceito universal, podendo ela ser vista antes
como um problema estrutural de um modo de
ser político. É o que se observa no uso que do
tema “corrupção” se faz em nosso tempo, no
quadro das democracias ocidentais.
Inicialmente, falar de um sentido moderno
de corrupção significa distingui-lo do sentido
que ela toma na Antiguidade clássica. Corrupção das espécies, na geração dos corpos, é
tema da bibliografia aristotélica, que faz pensar
em “corrupção” como “decomposição”. Assim,
o engendrado, aquilo que se gera e se corrompe,
é fruto da metamorfose natural que se processa
na microestrutura do ser.
Transportada para a ética, “corrupção”, entre os antigos, se referia à corrupção dos costumes. Sua manifestação patente era percebida
quando uma pessoa – ou uma cidade – abandonava os valores “viris”, austeros, exigentes,
para se “afeminar”, entregando-se ao luxo e à
complacência. Disso é exemplo a acusação a
Sócrates de que, sempre perguntando, sempre
questionando, ele “corromperia” a juventude
(“corrupção”, “φθορας”, “fthorás”), no sentido
de fazê-la perder a crença nos deuses da cidade.
“Corrumpere” é palavra usada por Cícero
para acusar Oppianicus de ter dado bens a um
juiz para decidir em favor de alguém contra o
que é justo. Cícero não fala propriamente em
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
“suborno”, “propina”, mas em “oferendas” (“donum/dona” e “munus/munera”). Mas fica evidente que receber presentes e oferendas não era
um ato repudiável, salvo se para provocar uma
injustiça, no sentido de um atentado contra os
bons costumes. Até porque, embora, em latim,
a palavra “donum” como a palavra “múnus”
possam ter uma conotação pejorativa, “donum”
tem a ver com oferenda, como “múnus” tem
com encargo.
Contudo, certa dubiedade do termo “corrumpere” é percebida num texto atribuído ao
próprio Cícero (sem que se conheça o contexto):
“Dado que nada deva ser tão incorrupto em
uma república do que o voto e o juízo, eu não
entendo porque aquele que corrompe com dinheiro é merecedor de punição, mas aquele que
os corrompe com eloquência é digno de mérito.
Na verdade, parece-me que aquele que corrompe o juiz com oratória faz mais mal do que
corromper um juiz com dinheiro; pois ninguém
pode corromper um homem prudente com dinheiro, mas pode pelo discurso” (apud Noonam
Jr., 1984, pp. 38-45).
Esse uso moral (de “mos/mores”) sofre alguma alteração séculos depois.
Veja-se, por exemplo, que é muito diferente
a condenação do filósofo Bacon no século XVII
(Noonam Jr., 1984, pp. 334 e segs.). Além de
filósofo, Bacon foi político. Serviu ao rei Jaime
I como ministro e dele recebeu o título de visconde. Em 1621, foi denunciado no Parlamento por corrupção, já num sentido moderno, ou
seja, de apropriação de dinheiro público. Confessou ter recebido presentes das partes num
tribunal que presidia, mas jurou que nenhum
suborno afetou suas decisões. Foi perdoado,
mas acabou aí sua carreira política.
Em breve síntese: a corrupção antiga afeta os
costumes; a moderna, o erário. Em que sentido?
O sentido é eminentemente político e afeta
particularmente o exercício da democracia nos
seus contornos liberais (Estado de direito).
Encontra-se aí, aliás, um motivo para voltarmo-nos para aquilo que se pode chamar de
“micropolítica”, enquanto uma técnica política
de exercício de poder. Trata-se, genericamente,
de instrumento para a exploração de espaços
informais na busca de influência, prestígio e
reconhecimento, capazes de gerar redes de relações, embora sem mostrar-se diretamente nessas consequências. O que torna a micropolítica
difícil de ser racionalizada (ao contrário da
macropolítica e seus instrumentos tradicionais:
competência, poder de polícia, impositividade
legal, obediência, uso regulado da força, etc.).
Micropolítica explica, nessa linha, o que se
costuma chamar de “paternalismo” e “clientelismo”, tomados não como distorções da macropolítica, mas como instrumentos necessários ao
exercício do poder político ali onde os instrumentos oficiais não dão conta inteiramente de
produzir coesão social e governabilidade.
Micropolítica, nesse sentido, não se confunde, de plano, com corrupção, mas tem relação
com ela. Pode-se dizer, assim, que o sentido
moderno de corrupção tem a ver com um processo histórico de diferenciação e separação,
em que micro e macropolítica ganham linhas
divisórias, fronteiras que se tornam barreiras
para o exercício do poder.
Esse processo começa com uma sutil percepção da confusão que ocorre na Idade Média
entre a suserania política e a condição de proprietário, mediante a denominação de “dominus” conferida ao senhor feudal. Herança conservada, no espanhol e no português, pelo uso
do título de “Dom” concedido a nobres, reis,
imperadores, senhores. “Dom” vem de “dominus”. Observe-se, porém, que, na Roma antiga,
era título do proprietário, daquele que detinha
o dominium, não do dirigente político.
Dessa confusão resulta, por exemplo, no
passado medievo, a advertência da Igreja aos
príncipes de que eles “seriam protetores, mas
não proprietários” do povo. Dela, porém, resulta também a identificação inicial do tesouro
como um bem do monarca e sua progressiva
distinção como bem do Estado e a concepção
diferente que assume o fisco num e noutro caso.
Nesse quadro, é perceptível toda a estrutura
cortesã que domina a política da era pré-moderna (do século XV ao XVIII) e que mostra,
nesse período, o fator intenso desempenhado
pela micropolítica nos afazeres de Estado. Não
só na troca de favores mediante recompensa em
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
19
dossiê ética e sociedade
dinheiro, mas no papel secundário ou, no máximo equivalente às diferentes “moedas” de troca (parentesco, amizade, sexo, etc.) usadas nas
formas de nepotismo, da escolha dos protegidos
ou favoritos, das amantes, das sinecuras, etc.
Ora, nessa circunstância, uma distinção clara entre a ação política pública e privada era
difícil de ser percebida ou traçada. Por exemplo, na França, a coroa estabelecia uma espécie
de arrendamento fiscal, em que o tributo era
imposto a uma determinada região conferida
a arrendatários que eram, simultaneamente, financiadores privados do Estado e ocupantes de
cargos dotados de poder impositivo.
Essa dificuldade atingia inclusive a corte papal, em que cardeais, bispos e secretários de Estado eram escolhidos entre as grandes famílias
romanas, que ostentavam grande poder e riqueza.
Nas sociedades pré-modernas, uma percepção crítica da corrupção (condenação da
corrupção) aparecia quando as expectativas da
clientela se frustravam. Entre um cliente e um
patrono se estabelecia uma relação de fidelidade/lealdade que, de princípio, era tida como
inegociável, isto é, não podia ser comprada. A
percepção da corrupção aparecia, então, quando entrava o dinheiro como uma forma de dádiva (presente), o que acabava por monetizar as
relações. Ou seja, o dinheiro corrompia porque
tornava obsoletas as máximas fundamentais
do clientelismo: lealdade e fidelidade não se
compram. Pois, para a cultura paternalista, a
mobilidade social não estava ligada ao dinheiro. Nessa sociedade, ainda pré-capitalista do
ponto de vista econômico no sentido de que o
trabalho não era um objeto de troca no mercado, eram os estamentos sociais, divididos entre
aqueles que cultivavam as terras, sem possuí-las, e os que as possuíam, sem cultivá-las, que
estruturavam as relações econômicas (Tocqueville, 1997, p. 43).
Diante disso, é possível perceber, de um
lado, como e por que a micropolítica clientelística acabava por exercer um papel importante
na organização do poder político (hierarquias,
fidelidades, mas também produção de arquivos
e registros: por exemplo, os notários), embora
fosse muitas vezes um inibidor de uma burocracia eficiente e racional, portanto moderni-
20
zadora, e, de outro, de que modo pôde surgir a
chamada política econômica elisabethana (Elisabeth Iª), que responsabilizava as comunidades pela remuneração dos “pobres”, entendidos
como aqueles que ou não tinham meios de subsistência suficientes ou eram desempregados no
sentido moderno da expressão. Essa política,
que ficou mais conhecida como Poor Law, vigorou até 1832, quando o correspondente statute foi revogado sob a alegação de que favorecia
a preguiça e inibia o desenvolvimento.
Esse sistema, conhecido sob formas semelhantes em outras regiões europeias, inibiu, na
Inglaterra, a eclosão de uma revolução que, na
França, porém, redundou na Revolução Francesa.
Explico rapidamente.
A monetarização do trabalho é reconhecida
como um fator fundamental para o advento da
sociedade de mercado, aquela sociedade que
vai se desenvolver a partir de meados do século
XVIII e que culmina, politicamente, na Revolução Francesa. Na sociedade de mercado, a
economia capitalista passa a ver no dinheiro o
meio hegemônico de qualquer troca, neutralizando os objetos e os sujeitos da troca e pondo
as relações micropolíticas sob suspeita.
Em consequência, nos últimos 200 anos,
o favorecimento de parentes e agregados vai
perdendo sua força cultural na determinação da
estrutura social, substituída por uma nova mentalidade: a ação humana movida pelo ganho e
pela acumulação, o que exige eficiência (Estado
burocrático/racional somado à franca liberdade
empresarial) e uma forte diferenciação funcional entre o público e o privado.
Nesse novo contexto, o exercício da micropolítica mediante as antigas formas de mecenato nepotista e clientelista torna-se símbolo
de reacionarismo, conferindo à crítica à corrupção um sentido modernizador (para o que
segue, na perspectiva historiográfica voltada
ao mundo europeu, cf. Engels, 2014). Mas com
isso altera-se o ambiente político-social, pela
generalização dos atores e a introdução de um
ator novo: as massas (política de massas). Não
obstante, nesse ambiente a micropolítica ganha novos contornos: os antigos mecanismos
de oferta de benefícios, enquanto garantia de
confiança e lealdade, são transportados para
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
as políticas sociais em forma de instrumentos
burocráticos para controle de massas (planejamento administrativo), monetarizando-se e
recompondo, em formas alternativas, a antiga
relação paternalismo/clientelismo (ver as diferentes manifestações de caciquismo político,
corrente, aliás, não só na Ibero-América, mas
na Europa também).
A partir da Revolução Francesa introduzem-se, nesse sentido, alguns parâmetros importantes para o exercício do poder. Um deles
está em uma mudança na estrutura temporal da
política, cujo vetor se volta para o futuro, que
passa a ter um papel significativo na formatação de políticas, impondo-se como escolha
entre políticas alternativas, entre programas
políticos ou mesmo entre ideologias, capazes
de alterar, supostamente sempre para melhor, o
status quo. Com isso aparece, já no século XIX,
a conhecida divisão partidária entre conservadores e liberais, que marca a cultura política
europeia e nas Américas, seguida, na segunda
metade daquele século, pela divisão entre direita e esquerda (aquela vista por socialistas
e comunistas como reacionária e ela própria
como progressista).
Com isso cresce, de um lado, o entendimento
da política como uma “questão de consciência”
de cada cidadão, trazendo como consequência
uma crescente integração entre opinião pública
e imprensa (opinião pública midiatizada) – o que
favorecerá a “crítica à corrupção” em novo sentido – e, de outro, uma progressiva diferenciação entre administração e governo, parlamento
e partido, com o surgimento de uma figura até
então desconhecida: o político profissional, figura distinta do empresário, e que torna suspeita
a confusão dos respectivos papéis.
Desse modo o antigo clientelismo entra em
crise como forma aceitável de exercício de micropolítica (ele é identificado com a perversão
política do ancien régime), mas não desaparece
inteiramente do mapa. E é desse modo que a
corrupção e a crítica da corrupção ganham sua
faceta moderna.
“Ele não apenas dava e recebia propinas acidentalmente. Ele elaborou planos e sistemas de
governança com o exato propósito de acumular
propinas e presentes para si mesmo. Ele se rebaixou à imundície e à sujeira da especulação
e da corrupção. Ele não era apenas um ladrão
público, mas o cabeça de um sistema de ladroagem, o capitão geral de uma gangue.”
Com essas palavras, Edmund Burke, filósofo,
membro do Parlamento, descrevia um homem
que, por 13 anos (1772-85), fora o governador
britânico de Bengala (Noonan Jr., 1984, p. 392).
Mas o problema não estava propriamente ou
tão somente nas nomeações e no exercício de
funções executivas de Estado, mas no âmago
mesmo da moderna democracia de sistema de
partidos e eleições.
No início de 1829, Nova York estabelecia um
statute intitulado An Act to Preserve the Purity
of Elections. O alvo era regulamentar as chamadas contributions, modo como se designavam
pagamentos políticos no suporte de campanhas
eleitorais. A dificuldade a enfrentar estava em
distinguir contributions de bribes. Afinal, “contribuição de campanha” era mais um código capaz de encobrir um pagamento destinado a enriquecer um representante oficial para favorecer
um ato oficial que beneficiaria o pagador.
Foi essa inerência do privado no público,
estruturas ideologicamente diferenciadas, que
obrigou a ação política, desde então, a cunhar
um novo conceito de corrupção, ligado especialmente à distinção entre a sociedade civil (econômica) e a sociedade política e correspondente à
sutil confusão dos papéis: político/empresário.
Realço os dois fatores a ensejar a nova circunstância condicionadora da nova percepção
da corrupção: de um lado, a industrialização e,
com ela, o advento da economia de mercado,
fundada no dinheiro como meio hegemônico de
troca, capaz de igualar os agentes econômicos,
neutralizados na condição de sujeitos (sujeitos de direitos), e equiparar todos os produtos,
neutralizados na condição de utilidades, como
objetos de interesse (bens de uso, serviços, o
próprio consumo como objeto de troca e, afinal,
o próprio dinheiro como objeto de si mesmo);
enfim, com a industrialização, a noção de interesse (ganho, vantagem, lucro) se expande e
atinge, assim, todas as relações econômicas. De
outro lado, em paralelo, os próprios detentores
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
21
dossiê ética e sociedade
de poder político, em qualquer escala, passam
a disputar ativamente suas posições quer na sua
conquista, quer na sua manutenção, o que deve
ser assegurado por meios capazes de dar sustentabilidade às campanhas eleitorais, tornando
opaca a distinção entre interesse político e econômico: a própria política na relação empresário/representante parlamentar torna-se opaca.
Essa nova situação recria a micropolítica e
estatui um clientelismo de nova ordem, como
observamos na mudança ocorrida no Brasil por
volta de 1930: com o progressivo enfraquecimento do patriarcalismo (no Brasil, chamado
de “coronelismo”, uma alusão a proprietários
rurais que, na Guerra do Paraguai, recebiam
títulos na condição de reserva militar), a ascensão em paralelo das diferentes formas de
sindicalismo operário submisso ao governo (no
Brasil, conhecido como “peleguismo”, em alusão à cobertura de pele de ovelha usada para a
montaria em cavalos).
Nesse quadro, um novo conceito de corrupção acaba, assim, por ser instrumentalizado como uma recorrente bandeira política:
combate à corrupção no sentido das diferentes manifestações de clientelismo associado a
emprego, trabalho remunerado e a vantagens
empresariais associadas à influência de toda
espécie. Não é preciso ir longe para ver nesse
combate um lema permanente de política partidária no passado recente e no presente, tanto
de partidos à esquerda como à direita, tanto de
movimentos autoritários (Brasil em 1964, por
exemplo) como de restaurações democráticas
(ostensivas, no Brasil, após a ditadura Vargas,
como bandeira do partido União Democrática
Nacional – UDN, donde “udenismo”).
Corrupção não perde as tintas morais que
sempre a acompanham, mas toma, nessa linha, o
sentido de um inibidor do progresso, mediante o
que adquire sua exaustiva conotação de escândalo.
Escândalos incorporam-se à cena política, pela revelação de segredos inconfessáveis,
detalhes picantes de políticos proeminentes,
figuras obscuras ligadas a empresários. Nessa
nova dinâmica, corrupção adquire uma nova
lógica: se no passado era tema circunscrito a
elites sociais, alastra-se a temática para muito
além das limitações de classe. Pois, ao adqui-
22
rir suas bases na política de conscientização
eleitoral das massas, o conceito de corrupção
fortalece o papel da mídia, mormente da mídia
de massas, do que decorre uma nova exigência
constitutiva para o exercício político: a transparência como antídoto contra um desfalecido
interesse/segredo de Estado.
Com isso se fortalecem, de um lado, algumas
concepções difusas, mas que, paradoxalmente,
produzem eficiência política: nos partidos de
esquerda, as teorias da conspiração, com a denúncia de esquemas ocultos ligados ao modo de
produção capitalista, como base da corrupção
inerente ao sistema, mas também suas variantes
de direita, com suas denúncias racistas, especialmente antissemitas no nazismo e no fascismo do
século XX ou, mais recentemente, as denúncias
de subversão, como aconteceu nas ditaduras
latino-americanas na era da Guerra Fria. Tudo
isso faz da ideologia um componente importante
do moderno conceito de corrupção.
Por outro lado, o papel da mídia de massas
envolve uma espécie de dilema autorreflexivo
e paradoxal. De uma parte, a mídia provoca
uma nova diferenciação: a exigência de uma
mídia transparente, politicamente independente
e economicamente autossustentável, fundamento da opinião pública, distinta, ela própria, dos
escândalos que constituem sua contribuição à
transparência. De outra parte, porém, a escandalização da corrupção repousa em valores e
valorações geradores de indignação popular,
que são, assim, maximizados pela própria mídia. Daí o dilema: nos regimes democráticos, a
denúncia da corrupção é uma arma política que
escandaliza quando aponta para personagens
e esquemas que estão dentro dos sistemas de
decisão vigentes, mas fora da sua oficialidade,
o que torna a atuação da mídia um jogo de realimentação sem precedentes de disputas pró e
contra, sob o título de “liberdade de imprensa”.
Lembre-se, para realçar esse papel da mídia democrática, que, nos regimes autoritários,
essa disputa é encarada como corrosiva, devendo escândalos ser eliminados de antemão em
processos de confissão e autoincriminação, ou
divulgados ou abafados na medida em que servem à manutenção do regime. Donde o papel da
mídia estatizada de reforçar o status quo, como
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
se via nas repúblicas socialistas do Leste Europeu ou no regime maoísta da China continental.
Por tudo isso, em breve síntese, pode-se
dizer que o conceito moderno de corrupção
carrega as seguintes qualificações estruturais:
a) é uma técnica de poder intimamente ligada
à crítica e à denúncia do abuso de papéis públicos para uso privado, cujo paradigma histórico se constrói no início do século XIX;
b) surge, assim, de uma condenação da micropolítica (relações pessoais de amizade, favoritismo, pequenas lealdades), vigente até
a Revolução Francesa, e de uma progressiva
diferenciação entre o público e o privado que
alcança a concepção de poder político – a tripartição de poderes – e se instala no interior
dos sistemas jurídicos: direito público e privado, interesse público e autonomia privada,
autonomia do direito processual e neutralização política do Poder Judiciário, etc.;
c) é associado à noção de progresso, donde as
ideologias do seu caráter pernicioso ao desenvolvimento, dando azo a uma conhecida
e criticada distinção entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos;
d) produz uma dinâmica política reformista,
voltada para as massas, que alimenta os embates eleitorais, mas que, de modo paradoxal,
se instala dentro dela; nesse sentido, está presente em todos os grandes movimentos ideológicos de luta pelo poder do século XX, quer
de direita, quer de esquerda – é palavra de
ordem-chave nas lutas pela pureza das democracias parlamentares, mas aparece também
nos expurgos que se observam na China ou
na Coreia do Norte;
e) alimenta-se do escândalo que ultrapassa a
estrita esfera das elites e ganha repercussão
generalizada, donde o papel da mídia e da
opinião pública massificadas;
f) torna-se, em nossos dias, o grande mal político da civilização, capaz de atingir todas as
esferas de interesse público (até as exigências
ecológicas, como se vê nas ações da Transparency International), alimentando-se de uma
diferenciação entre complexidade e transparência que chega até as grandes corporações
privadas com seus programas de compliance.
Entende-se, assim, de parte da literatura
científica, uma tentativa de distanciar-se do
fenômeno, naturalizando-o moralmente, de
certa forma, como fazem os estudos antropológicos na linha de Marcel Mauss (Essai sur le
don), ligando-o às diferentes manifestações de
reciprocidade estrutural, cuja complexidade é
uma variável que vai das observações de comportamentos de sociedades primitivas a uma
generalização explicativa mesmo em sociedades desenvolvidas. Vejam-se, nesse sentido
(Noonam Jr., 1984, p. 392), as observações de
Georg Simmel, em seu Philosophie des Geldes,
ao final do século XIX, em que o suborno e a
propina aparecem como conceitos universais,
intemporalmente aplicáveis a qualquer cultura.
De modo semelhante, Robert Merton, em 1957,
em seu Social Theory and Social Structure,
parte da função-chave do chefe na organização,
centralização e manutenção de fragmentos do
poder, com isso satisfazendo necessidades não
adequadamente satisfeitas pelas estruturas juridicamente dispostas e culturalmente aprovadas
pela sociedade. O que significa que são as deficiências estruturais da estrutura oficial que
geram uma estrutura alternativa (inoficial).
Daí distinções como corrupção integrativa e
desintegrativa (Wilson, 1968), sendo aquela
em benefício da governança política como um
todo, e esta a gerada pela autoridade em benefício próprio e privado.
Interessante, nesse sentido, um testemunho
que recebi de outro amigo alemão, o advogado
de empresa Albrecht Schaefer, que assim principia seu relato sobre a corrupção no mundo
empresarial:
“Corrupção é a Realpolitik da Business Administration. (O conceito de Realpolitik foi
cunhado como reação à revolução fracassada
de 1848-49 e globalizado por Henry Kissinger
para a política externa.)
Realpolitik significa o sacrifício de interesses
permanentes e de longo prazo em favor de vantagens no curto prazo. A Realpolitik é caracterizada mediante déficits normativos.
Sobre o conceito de corrupção deve-se dizer
que, em todos os Estados, corrupção é submetida a penas. As leis criminais estatuem, cada
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
23
dossiê ética e sociedade
qual, o fato-tipo da corrupção. Mesmo quando,
a propósito, possam existir diferenças, o conceito de corrupção é de tal modo suficientemente
estabelecido que, com ele, pode-se trabalhar em
qualquer parte do mundo com tranquilidade.
Por que corrupção é a Realpolitk da Business
Administration?
As raízes para uma corrupção sistemática de
parte de empresários estão em finalidades acima de ambições pessoais e, com isso, em falsos
incentivos para sucessos de curto prazo.
Para esclarecer: quando o orçamento para o
próximo ano fiscal da empresa está submetido a um aumento de faturamento de 30%, mas
o mercado – que um vendedor experimentado conhece muito bem – permite apenas 5%,
então, para a meta proposta, os 25% faltantes
só poderão ser alcançados mediante medidas
anticoncorrenciais, dentre as quais se conta em
larga escala a corrupção. Quando, ademais, ao
alcance dessa meta, se conecta um bônus anual concedido ao funcionário, rompem-se então
todas as comportas morais e jurídicas.
As consequências da sistemática corrupção são,
assim, no fato de que a concorrência submete-se
a uma atrativa formatação dos preços, como se
se tratasse de uma inovação técnica. Isso leva
a que um empresário, mediante contínua corrupção, deixe-se “engraxar” fora do mercado.
Realpolitik empresarial estabelece-se sobre uma
espécie de homenagem ao status quo e restringe
as mudanças na formação dos preços mediante
concorrência, bem como as inovações e melhoramentos técnicos. Como, porém, essas forças
de mercado são mais fortes que uma Realpolitik
míope, a perda em participação de mercado e
mesmo a exclusão do mercado são previsíveis.
Dado que o Estado é o maior cliente da economia, ele acaba por ser o parceiro nato para
a corrupção de parte dos fornecedores. O fato
de que, com isso, ocorre um dano à sociedade,
é algo que não precisa de maiores explicações”.
Não se pode dizer, porém, que o conceito
moderno de corrupção seja totalmente funcional e, nessa medida, amoral ou meramente
convencional. Termos como “propina” e “corrupção” não aparecem na obra de Freud. Mas
há freudianos que deles tratam como formas
24
de psiconeuroses, uma espécie de mecanismo
de compromisso do ego consigo mesmo, com o
objetivo de obter uma simultânea gratificação
para os impulsos proibidos do id e para as exigências do superego (Alexander & Staub, 1931).
Por sua vez, existem trabalhos, por exemplo,
na área econômica, que se recusam a extirpar
da ciência a percepção moral da corrupção.
Susan Rose-Ackerman (1978), economista de
Yale, ao analisar riscos e benefícios da corrupção para um legislador hipotético, concluía que,
“caso se deseje entender o funcionamento da
democracia, não será possível acompanhar a inclinação de economistas convencionalistas em
ignorar constrangimentos morais sobre o comportamento egoísta/interesseiro (self-seeking)”.
O que induz a um momento de reflexão. A
gorjeta que se dá ao garçom não é vista como
propina. Um pouco diferente é o “auxílio” que
se dá ao oficial de justiça para que dê alguma
preferência no esforço de cumprir uma citação.
Mas ambos são ou assumidos ou suportados
socialmente. Talvez se deva notar – positivamente –, num caso como no outro, uma espécie
de ausência de sentimento de obrigação, quer
de contribuir, quer de retribuir, uma forma de
comportamento voluntário e espontâneo. Todavia, importante, mais no primeiro que no
segundo caso, é a transparência. E aí começa
a diferença. Nesse sentido, a propina é sigilosa e interessada, gerando alguma forma de
retribuição na qual, em uma escala crescente,
o propósito de atender satisfatoriamente a uma
reciprocidade é mais forte, criando, porém, no
agente, uma espécie de conflito de deveres.
Nessa escala, porém, a ausência de linhas
divisórias claras é inegável. É o que se vê na
extensa lista de expressões, formulações e reformulações existente no vocabulário brasileiro: “cervejinha”, “molhar a mão”, “lubrificar”,
“conto-do-vigário”, “jeitinho”, “mamata”, “negociata”, “por fora”, “taxa de urgência”, “gorjeta”, “rolo”, “esquema”, “propina”, “falcatrua”,
“peita”, “caixa 2”1. Em outras línguas não é
diferente, como se vê pelo uso de expressões
1 Essa listagem, salvo “caixa 2”, se encontra, em português,
com tradução para o alemão, em: Stierle & Siller (2015,
p. 97).
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
como “lobby”, “advising” (consultoria), “Verrechnungskonto” (conta de compensação), “couvert”, etc. Curiosas formulações aparecem, no
entanto, quando um corruptor ativo inesperadamente se confronta com um incorruptível: “O
senhor não me entendeu bem, foi um mal-entendido”, o que é acompanhado de uma mímica própria (sorrisos disfarçados, surpresa, soft
indignation, seguidos de declarações como “eu
jamais proporia algo assim”, etc.).
Existe, nesses ter mos, uma retór ica da
corrupção que aparece quando ela não é cinicamente escancarada. Exemplo típico são as
formas de “recomendação”: da parte do agente
ativo, “gostaria de trazer as saudações cordiais
de fulano, que muito o recomendou para tratar
desse negócio com o senhor em total confiança” ou “haveria, em seu âmbito de discricionariedade, um modo de decidir a questão de
maneira favorável ao meu cliente” ou “isso me
seria de imenso valor”, e, da parte do agente
passivo, “bem, isso não é comum nem se pode
dizer que faça parte das minhas competências”
ou “eu poderia até fazer, mas o risco é muito
grande, o senhor entende, não é?”.
No último ato do delito, porém, a retórica é
a retórica do silêncio. As pesquisas a respeito
mostram que os participantes de atos de corrupção mostram uma tendência ostensiva em
justificar e neutralizar os comportamentos.
Costuma-se rejeitar a responsabilidade pessoal, o conteúdo imoral do comportamento, bem
como os danos daí resultantes (Stierle & Siller,
2015, p. 95). Ocorre uma espécie de “racionalização” da corrupção, mediante manifestação de
intenções “positivas”, como “o objetivo da lei
não pode ser impedir o atendimento eficiente
das necessidades reais” ou “faz parte da concorrência” ou “todo mundo faz” ou “em outros
países não é diferente” ou “existem coisas piores” ou “é preciso ver que há interesses maiores
da população em jogo”, etc.
Ainda que pareça estranho, as pesquisas
mostram que a integridade é uma chave para
entender a corrupção. Integridade é um conjunto de propriedades e valores positivos, como
consciência moral, confiabilidade, prontidão
para agir, consciência de dever, retidão. Os
comportamentos corruptos se mostram como
variantes desviantes desse conjunto. Esses desvios apontam para certas circunstâncias que
compõem o chamado “Fraud Diamond” (“diamante da fraude”): a pressão ou motivo como
primeiro fator, que pode ser a existência de
problemas financeiros pessoais, mas também
motivos resultantes da relação remuneração/
sobrecarga de exigências, percepção de uma
injustiça social na aquisição de bens valorados
positivamente pela sociedade, etc. O segundo
fator está na oportunidade: o conhecimento de
falhas no sistema de controle, o conhecimento
ou murmúrios sobre comportamentos corruptos
de outros, certa confiança de que o ato receberá
a aprovação superior, etc. O terceiro fator está
na justificação interna dos atos: o agente precisa justificar-se a si mesmo para que ele esteja
ou continue integrado socialmente e disponha
de um bom status social. O “diamante da fraude” está, por fim, na competência (esperteza)
do agente na execução do ato corrupto.
Em suma, há, na (dialética) corrupção e crítica (combate) à corrupção, um dilema moral que
repousa em racionalizações divergentes: no interesse de empreendimentos políticos, econômicos
ou financeiros, a corrupção deve ser banida, pois,
no limite, ela conduz a uma disfunção do sistema
social. Porém, empreendimentos íntegros, incorruptíveis mostram-se, em curto e médio prazo,
ineficientes quando se olha para a sociedade de
mercado em conta do valor interesse.
O que aponta, afinal, para um paradoxo,
próprio do sistema da economia de mercado
(Polanyi, 1978, p. 194): a pretensão de liberdade econômica, livre de influências estatais, é
fruto, historicamente, de massivas intervenções
do Estado, que alcançam a criação de um caminho livre para as transações mediante medidas
protecionistas, até com o estabelecimento de
condicionamentos jurídicos para o exercício da
liberdade de mercado.
Ou seja, a economia de mercado, supostamente um sistema autorregulado, gera uma burocracia (privada e estatal) em que proliferam
as instâncias administrativas, todas com certo
poder discricionário, com certo grau de opacidade (não transparência) e alta possibilidade
de manipulação de informações. E daí a corrupção, que parece acompanhar o poder como
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
25
dossiê ética e sociedade
a sombra acompanha o corpo (Lord Acton:
“Power tends to corrupt and absolute power
corrupts absolutely”).
Trata-se, de um lado, da corrupção jurídica,
tipificada (prevaricação, malversação, fraude,
corrupção ativa e passiva). De outro, a chamada
corrupção sistêmica, que se produz quando as
incorreções se tornam regra e os paradigmas
traçados pela lei viram exceções. É o caso de
condutas tão institucionalizadas (no sentido sociológico da palavra) que raramente se castiga
o corrupto, enquanto até se protege o comportamento indevido.
Nesses termos, na corrupção sistêmica a administração adquire um código oculto, que valida e alimenta as violações do código expresso, a tal ponto que os que não compartilham
das práticas venais são intimidados e obrigados
a guardar silêncio. Esse código oculto gera, por
sua vez, dois tipos de corrupção: a “de cima
para baixo” e a “de baixo para cima” (Ackerman apud Seña, 2002, p. 56).
Na primeira, quem executa os atos de corrupção são burocratas de maior categoria e a
extorsão é centralizada e monopolizada, bem
como a repartição ou não dos ganhos com escalões inferiores, que serve, quando usada, para
comprar cumplicidade e gerar estabilização do
sistema (Susan-Rose Ackerman anota que esse
tipo de corrupção é muito comum nos pagamentos a políticos de alto escalão e efetuados na
indústria do petróleo mediante funcionários até
bem pagos). Na segunda (de baixo para cima)
são os funcionários de baixo escalão que os
planificam e executam, repartindo ganhos com
os de escalão superior, que, assim, acobertam,
garantindo silêncio, estabilidade e impunidade.
Os custos do primeiro tipo são mais visíveis e
previsíveis, enquanto os do segundo são mais
difusos e de contabilidade imprecisa.
E nesse paradoxo reflete-se, afinal, o paradoxo da investigação da corrupção. É o paradoxo percebido em instrumentos como o da
delação premiada (e da leniência de empresas).
A delação premiada repousa, de um lado, na
violação de lealdades morais, próprias do micropoder (traição) e, de outro, na plausibilidade
de negociação monetarizada de valores fundamentais, como a própria liberdade (cálculo de
26
sobrevivência). Aqui, no choque entre éticas de
convicção e de finalidade, o dinheiro volta a
desempenhar um papel fundamental de neutralização moral, tornando a delação algo que se
mede pelo preço. Daí o jogo legal de primeiro,
segundo, terceiro delator, ou da leniência, leniência plus, nesse caso com valores percentuais
até estipulados normativamente em lei.
É, de novo, a corrupção moderna, agora
como cálculo e objeto de negociação. O que
explica o aparecimento das chamadas teorias
revisionistas (Huntington, 1989, p. 381), caso
em que a corrupção apareceria como um remédio contra o excesso de burocracia, impeditivo
do desenvolvimento econômico: por exemplo,
pagamentos por fora para lubrificar a máquina... O que não é exatamente verdade, quando
se pensa no efeito inverso: criar dificuldades
para vender facilidades.
O que nos leva a pensar na direção inversa. Afinal, como diz John Dewey, em uma sociedade dominada pela cultura da corrupção,
a educação de valores efetiva, muito além das
declarações altissonantes contra a corrupção,
tenderá a reproduzi-la.
E aqui a observação histórica nos surpreende, ao mostrar que uma educação cívica,
baseada em valores eticamente incontestáveis,
quando efetuada em um marco institucional e
social inadequado, governado por políticas e
políticos corruptos, pode entrar em colapso e
fracassar. Ou, como recordava Jaspers, referindo-se à Alemanha:
“[...] na época do Império (Kaiserstaat), quisemos formar bons súditos e tivemos a República
de Weimar; na República de Weimar quisemos
formar bons democratas e tivemos o nacional-socialismo. Durante o nacional-socialismo
quis-se formar nazistas convictos e tivemos a
República Federal... E agora, o quê?”.
Volto ao texto recebido de meu amigo alemão, advogado de empresa.
“Como a corrupção pode ser mais bem combatida?
Ao lado das tipificações penais contra o suborno, que são direcionadas contra as pessoas
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
físicas, um direito penal voltado para as pessoas jurídicas é um eficiente complemento.
Certamente não se pode condenar uma pessoa
jurídica à prisão, mas ela pode ser sensivelmente punida, na medida em que os faturamentos
corruptos sejam resgatados.
Mas o direito penal, sozinho, não consegue
combater a corrupção, como mostra, aliás, a
história econômica.
Um importante aliado contra a corrupção pode
ser o mercado financeiro.
Uma administração econômica legal e sustentável deve estar submetida ao juízo centralizado
dos investidores. Para isso são necessários os
auditores independentes, as agências de rating
e as autoridades financeiras.
A experiência mostra que a administração empresarial, que precisa financiar-se no mercado
de capitais [portanto, com domínio de empresas
de capital aberto], nada mais teme do que o
mau juízo de investidores financeiros. Grandes investidores comunitários, como fundos de
pensão, têm, necessariamente, interesses permanentes e de longo prazo. Esse perfil tem,
porém, de ser reforçado.
Muito ajuda, na luta contra a corrupção, uma
imprensa livre, com jornalistas especializados
em questões econômicas. Em uma democracia
que funciona isso é uma obviedade.
Mas onde fica a transparência nas empresas?
Na Alemanha, país em que a cogestão empresarial, a participação do trabalhador na direção
empresarial, mais se desenvolveu, ela fracassa
no combate à corrupção. Estruturas empresariais autocráticas, em razão do que empregados
dotados de senso crítico acabam tão desqualificados como um pau de galinheiro, não resolvem o problema e devem ser criticadas. O que
é, especialmente, uma tarefa para a corporate
governance e para o jornalismo econômico.
Que fazer, então?
A Indonésia, há alguns anos, fez uma proposta
interessante. Funcionários públicos corruptos
deveriam ser castrados. A fundamentação para
essa pena corporal seria: o que se objetiva é
impedir que funcionários públicos corruptos se
multipliquem!”
Não é, certamente, uma solução. Mas como
lidar com ela é um desafio que permanece.
BIBLIOGRAFIA
ALEXANDER, Franz; STAUB, Hugo. The Criminal, the Judge and the Public. New York,
Macmillan, 1931.
ENGELS, Jens Ivo: Die Geschichte der Korruption – Von der Frühen Neuzeit bis ins 20.
Jahrhundert. Frankfurt am Main, S. Fischer, 2014.
HEIDENHEIMER, Arnold. “Perspectives on the Perception of Corruption”, in Heidenheimer;
Johnston; LeVine. Political Corruption. A Handbook. London, Transactor Publishers, 1989.
HUNTINGTON, Samuel. “Modernization and Corruption”, in Heidenheimer; Johnston;
LeVine. Political Corruption. A Handbook. Londres, Transactor Publishers, 1989.
MAUSS, Marcel. Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques.
Édition électronique réalisée par Jean-Marie Tremblay, professeur de sociologie au
Cégep de Chicoutimi. 17 février 2002.
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016
27
dossiê ética e sociedade
NOONAN JR., John. Bribes. New York/London, Macmillan, 1984.
POLANYI, The Great Transformation. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1978.
ROSE-ACKERMAN, Susan. Corruption: A Study in Political Economy. New York, Academic
Press, 1978.
SEÑA, Jorge Malem. La Corrupción. Barcelona, Gedisa, 2002.
STIERLE, Jürgen; SILLER, Helmut. Praxishandbuch der Korruptionscontrolling. Berlin, Schmidt,
2015.
TOCQUEVILLE, Alexis de. Mémoire sur le paupérisme (Memoir on Pauperism). Chicago, Ivan R.
Dee, 1997.
WILSON, James. “Corruption Is Not Always Scandalous”, in New York Times Magazine, 1968.
28
Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 15-28 • julho/agosto/setembro 2016