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De Florbela para Pessoa, com amor

2015, Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies

DAL FARRA, Maria Lúcia, "De Florbela para Pessoa, com amor" (2015). Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies, No. 7, Spring, pp. 116-131. Brown Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.7301/Z0VQ315V Is Part of: Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies, Issue 7 De Florbela para Pessoa, com amor [From Florbela to Pessoa, with Love] https://doi.org/10.7301/Z0VQ315V ABSTRACT In this series of five poems, published here for the first time, I seek to imagine how Florbela Espanca might have poetically interpolated Fernando Pessoa, had she ever written to him from beyond the grave. My starting-point is the speculation-tantalising indeed-that Fernando Pessoa and Florbela Espanca's paths could have crossed more than once. In real life, there was an overlap of several years during which both of them resided in Lisbon, and there is documental evidence to demonstrate that they frequented similar locations and had several acquaintances in common. Last but not least, even the way in which they conducted their amorous lives, as registered in the love letters between Pessoa and Ophelia Queiroz and Florbela and Antonio Guimarães respectively, suggests some uncanny resemblances. RESUMO Nesta série de cinco poemas, publicados pela primeira vez aqui, procuro imaginar como Florbela Espanca teria interpelado poeticamente Fernando Pessoa, se acaso ela lhe tivesse escrito do além-túmulo. O meu ponto de partida é a especulação-deveras tentadora-de que os caminhos de Fernando Pessoa e Florbela Espanca se possam ter cruzado mais de uma vez. Na vida real, houve vários anos em que os dois viveram em Lisboa, e existe evidência documental para demonstrar que frequentaram os mesmos locais e que tinham vários conhecidos em comum. Até a forma como conduziram as suas vidas amorosas, tal como ficou registado nas correspondências entre Pessoa e Ophelia Queiroz, e Florbela e Antonio Guimarães, respectivamente, sugere algumas semelhanças deveras inesperadas. Palavras-chave Florbela Espanca; Fernando Pessoa; correspondência amorosa; encontros imaginários; diálogos poéticos. BIBLIOGRAFIA DAL FARRA, Maria Lúcia (2012). “À Margem Dum Soneto”, in Florbela Espanca, Afinado Desconcerto. São Paulo: Iluminuras, pp. 104-­‐‑110. ____ (2008). “Judith Teixeira”, in Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português. Fernando Cabral Martins, coordenador. Lisboa: Caminho, pp. 845-­‐‑846. ____ (1996). “Florbela: um caso feminino e poético”, in Florbela Espanca, Poemas. São Paulo: Ática, pp. IX-­‐‑XLIV. ESPANCA, Florbela (2012). Afinado Desconcerto. Organização de Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Iluminuras. ____ (2008). Perdidamente (Correspondência Amorosa 1920-­‐‑1925). Fixação de texto, organização, apresentação e notas de Maria Lúcia Dal Farra; prefácio de Inês Pedrosa. Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi/Câmara Municipal de Matosinhos. ____ (1996). Poemas. Edição de Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Ática. ____ (1994). Trocando Olhares. Estudo introdutório, estabelecimento do texto e notas de Maria Lúcia Dal Farra. Lisboa: Imprensa Nacional-­‐‑Casa da Moeda. LOPES, Teresa Rita (2008). “O falso virgem”, in Egoísta, número especial, Lisboa, Casa Fernando Pessoa, junho, pp.60-­‐‑64. KAMENEZKY, Eliezer (1932). Alma errante: poemas. Prefácio de Fernando Pessoa. Lisboa: Empresa do Anuário Comercial. PESSOA, Fernando (1996). Correspondência inédita. Organização de Manuela Parreira da Silva; prefácio de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Livros Horizonte. ____ (1978). Cartas de amor. Organização, posfácio e notas de David Mourão-­‐‑Ferreira; preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queirós. Lisboa: Ática / /Rio de Janeiro: Livraria Camões. [Cf. Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz. Correspondência amorosa completa 1919-­‐‑1920. Organização de Richard Zenith. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.] PESSOA, Fernando; CROWLEY, Aleister (2010). Encontro Magick, seguido de A Boca do Inferno (novela policiária). Compilação e considerações de Miguel Roza. Lisboa: Assírio & Alvim. ____ (2001). Encontro “Magick” de Fernando Pessoa e Aleister Crowley. Compilação e considerações de Miguel Roza. Lisboa: Hugin Editores. PIZARRO, Jerónimo; FERRARI, Patricio; e CARDIELLO, Antonio (2013). “Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz: objectos de amor”, in Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 4, Outono, pp. 152-­‐‑195. TEIXEIRA, Judith (2015). Poesia e Prosa. Organização e estudos introdutórios de Cláudia Pazos Alonso e Fabio Mario da Silva. Lisboa: Dom Quixote. ____ (1996). Poemas. Prefácio de V. S. T. e “Scriptorium” de Maria Jorge. Lisboa: & etc.

De  Florbela  para  Pessoa,   com  amor     Maria Lúcia Dal Farra*   Abstract     In  this  series  of  five  poems,  published  here  for  the  first  time,  I  seek  to  imagine  how  Florbela   Espanca  might  have  poetically  interpolated  Fernando  Pessoa,  had  she  ever  written  to  him   from   beyond   the   grave.   My   starting-­‐‑point   is   the   speculation   –   tantalising   indeed   –   that   Fernando  Pessoa  and  Florbela  Espanca’s  paths  could  have  crossed  more  than  once.  In  real   life,  there  was  an  overlap  of  several  years  during  which  both  of  them  resided  in  Lisbon,  and   there  is  documental  evidence  to  demonstrate  that  they  frequented  similar  locations  and  had   several  acquaintances  in  common.  Last  but  not  least,  even  the  way  in  which  they  conducted   their   amorous   lives,   as   registered   in   the   love   letters   between   Pessoa   and   Ophelia   Queiroz   and  Florbela  and  Antonio  Guimarães  respectively,  suggests  some  uncanny  resemblances.     Keywords       Florbela  Espanca;  Fernando  Pessoa;  love  letters;  imaginary  encounters;  poetic  dialogues.     Resumo     Nesta   série   de   cinco   poemas,   publicados   pela   primeira   vez   aqui,   procuro   imaginar   como   Florbela   Espanca   teria   interpelado   poeticamente   Fernando   Pessoa,   se   acaso   ela   lhe   tivesse   escrito  do  além-­‐‑túmulo.  O  meu  ponto  de  partida  é  a  especulação  –  deveras  tentadora  –  de   que   os   caminhos   de   Fernando   Pessoa   e   Florbela   Espanca   se   possam   ter   cruzado   mais   de   uma   vez.   Na   vida   real,   houve   vários   anos   em   que   os   dois   viveram   em   Lisboa,   e   existe   evidência   documental   para   demonstrar   que   frequentaram   os   mesmos   locais   e   que   tinham   vários   conhecidos   em   comum.   Até   a   forma   como   conduziram   as   suas   vidas   amorosas,   tal   como   ficou   registado   nas   correspondências   entre   Pessoa   e   Ophelia   Queiroz,   e   Florbela   e   Antonio  Guimarães,  respectivamente,  sugere  algumas  semelhanças  deveras  inesperadas.     Palavras-­‐‑chave     Florbela   Espanca;   Fernando   Pessoa;   correspondência   amorosa;   encontros   imaginários;   diálogos  poéticos.                                                                                                                             *  Universidade  Federal  de  Sergipe  /  CNPq.   Dal Farra De Florabel para Pessoa Teriam  Pessoa  e  Florbela  se  conhecido?1  Teriam,  ao  menos,  ouvido  falar  um   do   outro?   Viveram   ambos   na   mesma   Lisboa   em   trânsito   da   República   para   o   Salazarismo,   freqüentando   os   mesmos   ambientes:   o   Chiado,   a   Brazileira,   o   Martinho   da   Arcada   e   o   Martinho   do   Chiado,   a   Bertrand   e   a   Livraria   Inglesa2.   Todavia,  nunca  houve,  até  onde  se  saiba,  comprovação  alguma  sobre  um  pretenso   conhecimento   mútuo.   Nem   Florbela   o   menciona   nos   seus   escritos,   nem   Pessoa   a   menciona  nos  seus,  muito  embora  a  poetisa  esteja  inserida  na  edição  póstuma  (de   1944)   da   Antologia   de   Poemas   Portugueses   Modernos,   organizada   por   ele   e   António   Botto  (Fig.  1)3;  muito  embora  haja  no  espólio  de  Pessoa  um  poema  encontrado  em   1985  (por  Teresa  Sobral  Cunha)  dedicado  à  poetisa,  e  posterior  a  1930,  uma  vez  que   consagrado   “à   memória   de   Florbela   Espanca”.   Nessa   peça   datilografada,   sem   indicação  de  autor,  a  poetisa  é  invocada  como  “alma  sonhadora  |  irmã  gêmea  da   minha”.4         Fig.  1.  Soneto  de  Florbela  na  antologia  de  1944.                                                                                                                                O  presente  texto  resulta  da  pesquisa  narrada  em  duas  conferências:  a  de  abertura  da  IV  Abraplip,   em   Manaus,   UEA   (“Florbela   e   Pessoa:   um   caso   de   amor?!”,   em   06-­‐‑11-­‐‑2012)   e   a   do   Festival   do   Desassossego,  na  Casa  Fernando  Pessoa  (“Homenagem  ao  Haquira  Osakabe”,  10-­‐‑06-­‐‑2014,  dedicada   a  Inês  Pedrosa).   2  Ver  alguns  selos  da  Livraria  Inglesa  e  de  outras  livrarias  das  quais  Pessoa  era  comprador  assíduo,   em:  http://casafernandopessoa.cm-­‐‑lisboa.pt/bdigital/index/selos.htm     3  Publicada  em  Coimbra,  pela  Editora  Nobel.  A  primeira  edição  em  fascículos  é  incompleta  e  data   de  1929,  vinda  à  estampa  pelo  Centro  Tipográfico  Colonial  de  Lisboa.   4   Este   poema   (identificado   com   a   cota   BNP/E3,   66A-­‐‑39   da   Biblioteca   Nacional   de   Portugal)   foi   publicado  por  mim  como  epígrafe  de  Florbela  Espanca,  Trocando  Olhares  (1994:  7).  Segundo  Jerónimo   Pizarro,   que   me   faz   a   gentileza   de   esclarecer   por   email   (11-­‐‑05-­‐‑2015),   “o   poema   em   questão   é   de   Eliezer   Kamenezky   e   figura   no   livro  Alma   Errante  (1932),   prefaciado   por   Pessoa”.   Ainda   não   disponível:  http://casafernandopessoa.cm-­‐‑lisboa.pt/bdigital/8-­‐‑293A     1 Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 117 Dal Farra De Florabel para Pessoa Pessoa  nasceu  seis  anos  antes  dela  e  a  ela  sobreviveu  por  cinco  anos.  Criado   na   Cidade   do   Cabo   (África   do   Sul),   ele   retornaria   em   definitivo   a   Lisboa   aos   17   anos   (em   1905).   Florbela,   oriunda   do   Alentejo   (Vila   Viçosa),   freqüenta   de   tempos   em  tempos  a  capital,  aonde  viria  residir  em  1917,  com  23  anos,  ocasião  em  que  vai   se   separar   do   seu   primeiro   marido   (o   professor   Alberto   Moutinho).   Na   altura,   tinha   ela   como   fito   a   freqüentação   da   Faculdade   de   Direito   da   Universidade   de   Lisboa,   onde   será   contemporânea   de   António   Ferro,   de   Alfredo   Pedro   Guisado   (ambos  da  geração  de  Orpheu),  além  de  outros  como  José  Gomes  Ferreira,  Norberto   Lopes,   Botto   de   Carvalho,   Américo   Durão,   José   Schmidt   Rau,   Augusto   d´Ésaguy,   por  exemplo.     Pessoa   viverá   permanentemente   em   Lisboa   até   o   final   da   vida,   enquanto   Florbela  deixará  a  capital  em  meados  de  1920,  ano  em  que  abandona  a  Faculdade   para   conviver   com   aquele   que   vai   se   tornar   o   seu   segundo   marido:   o   alferes   da   Guarda   Nacional   Republicana,   António   Marques   Guimarães.   Segue   para   o   Porto   (Matosinhos   e   Castelo   da   Foz)   retornando   a   Lisboa   em   1922   para   ali   permanecer   até  1924  quando  vai  de  novo  residir  no  Porto  (em  Matosinhos).  Mas  mesmo  nessa   posterior  época  de  sua  vida,  em  que  se  casa  pela  terceira  vez  (com  o  médico  Mário   Lage,  também  do  Porto),  a  poetisa  viaja  com  constância  a  Lisboa,  freqüentando  os   mesmos   ambientes   que   Pessoa,   sempre   atenta   à   vida   literária   do   país,   como   se   pode  constatar  através  da  sua  epistolografia.  Da  sua  parte,  Pessoa  acompanha  em   direto  os  acontecimentos  culturais  não  só  de  Portugal,  como  também  da  África  do   Sul,  da  Inglaterra  e  da  França,  e  participa  ativamente  da  Renascença  Portuguesa,  d´A   Águia,  da  Contemporânea,  da  Athena,  sem  mencionar  que  ele  próprio  cria,  em  1915,  a   mais  significativa  de  todas  elas:  a  revista  Orpheu.     Teria  sido  possível,  então,  que  Florbela  não  tivesse  ao  menos  lido  ou  ouvido   algum  comentário  sobre  Pessoa  aquando  do  escândalo  gerado  pela  revista  Orpheu?   Florbela   conhecia   Fernanda   de   Castro,   esposa   de   António   Ferro,   o   “editor   irresponsável”  de  Orpheu  1,  desde  quando  a  Fernanda  fora  namorada  de  Américo   Durão.  Foi  a  ela  que  Florbela  telefonou  para  se  despedir  antes  de,  ritualisticamente,   se  matar  no  dia  do  seu  aniversário  de  36  anos.     Também  é  de  se  convir  que  a  campanha  a  favor  do  erguimento  do  seu  busto   no   Jardim   Público   de   Évora,   em   que   Ferro   desempenha   dúbio   papel   a   partir   de   1931,  polêmica  que  monopoliza  os  principais  críticos  de  então  (José  Régio,  Jorge  de   Sena,  Vitorino  Nemésio)  –  tenha  sido  pelo  menos  do  conhecimento  de  Pessoa.     Por   outro   lado,   Apeles,   único   irmão   da   poetisa   (desaparecido   precocemente   em  1927),  era  praticante  das  artes  plásticas,  ele  mesmo  pintor  e  acompanhante  cativo   da  irmã  no  tempo  em  que  ela  está  em  Lisboa.  É  de  se  supor  que  ele  a  tenha  levado  a   alguma   exposição   dos   modernistas,   pois   que   trabalhara   na   Ilustração   Portuguesa,   onde   também   Almada   Negreiros   publicava.   Foi,   aliás,   Apeles   quem   projetou   para   Florbela   a   capa   não   aproveitada   para   a   edição   do   seu   Livro   de   Sóror   Saudade,   estampada  depois,  na  Ilustração,  em  que  comparecem  várias  aquarelas  suas.   Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 118 Dal Farra De Florabel para Pessoa Outro  fato  de  grande  repercussão  desse  período  é  o  deplorável  episódio  da   Literatura   de   Sodoma,   que   envolvera,   em   1923   (ano   em   que   Florbela   dava   à   luz   o   referido  Livro),  a  obra  de  dois  amigos  de  Pessoa:  a  Sodoma  Divinizada,  de  Raul  Leal,   e   as   Canções,   de   Antonio   Botto.   Daí   que   Pessoa   se   obrigue   a   uma   intervenção   pública   que   se   fez   notória.   No   olho   deste   furacão   –   um   dos   maiores   escândalos   literários   do   Portugal   Republicano   –,   se   encontrava   uma   terceira   personagem:   Judith   Teixeira.   Ela   viria   a   ser   (dois   anos   depois)   a   primeira   diretora   feminina   de   uma   revista   de   artes,   a   requintada   Europa,   onde   Florbela   publicaria   o   soneto   “Charneca  em  Flor”  e  onde  Almada  Negreiros  estamparia  suas  gravuras.5     No  entanto,  Pessoa  tomara  o  partido  dos  dois  amigos  sem  tocar  no  nome  de   Judith.  Tal  omissão  talvez  se  explique  mercê  da  sua  falta  de  interesse  pelo  trabalho   das  mulheres  escritoras  (que  ele  considerava  invertidas)  ou,  quem  sabe,  da  decisão   de   não   se   manifestar   sobre   a   literatura   que   não   lhe   dizia   respeito.   Aliás,   pela   sua   Correspondência   inédita   (organizada   por   Manuela   Parreira   da   Silva   em   1996),   conhece-­‐‑se  a  carta  destinada  a  Adriano  del  Valle,  em  que  Pessoa  declara  que  Judith   Teixeira  “não  tem  lugar,  abstracta  e  absolutamente  falando”  entre  os  maiores  desse   episódio   (Pessoa,   1996:   61).   Mas   essa   que   não   era   assim   tão   “maior”   quanto   ele   pretendia,   fora   vítima,   como   os   seus   amigos,   desse   estridente   affaire,   sendo   o   seu   livro  recolhido  e  incinerado  pela  mesma  mão  censora...   O  volume  de  poemas  Decadência  (obra  de  estréia  de  Judith)  foi  arrastado  ao   caminho  da  execração  pública.  Ataques  incessantes  desferidos  contra  a  sua  autora   se   sucediam   a   cada   obra   que   ela   insistia   em   publicar   depois.   Passou-­‐‑se   coisa   semelhante   com   Nua   –   Poemas   de   Bizâncio;   com   Castelo   de   Sombras;   com   a   sua   conferência   De   Mim.   Judith   se   viu   então   bombardeada   por   uma   certa   imprensa,   alvo   de   baixas   caricaturas,   onde   é   retratada   de   maneira   indecente,   apodada   de   “desavergonhada”,   de   escrever   “porcarias   sexuais”,   a   ponto   de   Amarelle   (o   caricaturista   de   plantão)   a   encarnar   como   uma   “viande   de   paraître”!   É   bom   não   esquecer   que,   dentre   os   mais   fervorosos   detratores   de   Judith,   se   acha   o   jovem   Marcelo  Caetano.6   Vilipendiada   de   muitas   maneiras,   Judith   desaparece   da   cena   pública   portuguesa,   mudando-­‐‑se   não   se   sabe   para   que   lugar   do   mundo,   só   retornando   a   Portugal   em   1952,   apenas   para   morrer.   O   caso   de   Judith   Teixeira   é   bem   o   de   um   pungente  e  forçado  suicídio  em  vida!  (ver  Dal  Farra,  2008)7.  Por  sua  vez  Florbela,   embora  tivesse  passado  em  brancas  nuvens  pela  crítica  portuguesa  no  transcorrer   de  sua  curta  vida,  fora,  durante  esse  mesmo  sopro  “justiceiro”  do  ano  de  1923,  de   repente   apercebida   e   (por   isso)   muito   ultrajada   pelo   jornal   católico   A   Época.   Seu                                                                                                                             Existe   cópia   da   revista   Europa   na   Biblioteca   Particular   de   Pessoa:   http://casafernandopessoa.cm-­‐‑ lisboa.pt/bdigital/0-­‐‑34LMR     6  Todas  as  informações  em  pauta  foram  colhidas  em  Teixeira  (1996).   7   Lembro   que   em   março   de   2015   foi   publicada   a   obra   completa   da   poetisa,   com   organização   e   estudos  introdutórios  de  Cláudia  Pazos  Alonso  e  Fabio  Mario  da  Silva,  que  achega  mais  luz  à  vida  e   à  produção  desta  (tão  maltratada!)  única  poetisa  portuguesa  modernista.   5 Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 119 Dal Farra De Florabel para Pessoa Livro  de  Sóror  Saudade  é  acusado  de  ser  uma  obra  “pagã”  e  sua  autora  uma  “escrava   de   harém”.   Impingem-­‐‑lhe   (nessa   admoestação)   que   se   purgue   do   que   escreve   pedindo  “perdão”  e  purificando  seus  indignos  lábios  com...  “carvão  ardente”!  (ver   Dal  Farra,  1996).   Se   tais   destratos   não   chamaram   a   atenção   de   Pessoa   para   Florbela,   é   bem   provável   que   uma   matéria   ardente   –   transcorrida   na   mídia   portuguesa   em   1930,   em   sobressaltados   capítulos   alimentados   com   a   presença   da   polícia   internacional   em   Portugal   –   pudesse   ter   atraído   o   olhar   de   Florbela   para   Pessoa.   Refiro-­‐‑me   ao   confuso   “desaparecimento”   do   Mago   inglês   Aleister   Crowley   em   Cascais,   na   Garganta  do  Diabo,  evento  que  contou  com  Pessoa  como  cúmplice  e  coadjuvante.   É   certo   que,   justo   na   altura   deste   episódio   rocambolesco,   Florbela   recebia   em   Matosinhos  o  seu  derradeiro  fã,  o  professor  italiano  Guido  Battelli,  que  se  ocupava   (então)   das   provas   tipográficas   de   Charneca   em   Flor,   volume   que   só   viria   à   luz   postumamente.   Mesmo   assim,   os   ecos   sensacionalistas   de   Pessoa,   transbordantes   do  noticiário  nacional,  não  a  teriam  alcançado  por  lá?   Aleister   Crowley   tinha   55   anos   quando,   em   setembro   de   1930,   chega   a   Lisboa  desembarcado  do  “Alcântara”  e  acompanhado  da  jovem  alemã  de  19  anos,   a  Miss  Jaeger,  conhecida  também  como  a  “monster  escarlate”.  Dias  depois,  com  a   ajuda   de   Pessoa,   o   enigma   é   encenado   nessa   falésia   marítima   rochosa   de   difícil   acesso  (a  Boca  do  Inferno  ou  a  Garganta  do  Diabo)  na  estrada  de  Cascais.  Crowley   planta   ali   pistas   que   apontam   tanto   para   o   seu   suicídio   quanto   para   o   seu   assassinato,  fatos  amplificados  pelos  jornais  em  alvoroço.     O  Notícias  Ilustrado  publica,  em  5  de  Outubro  de  1930,  um  longo  testemunho   de  Pessoa  onde  se  reitera  o  desaparecimento  do  Mestre.  E,  a  partir  daí,  o  poeta  vai   botando  lenha  na  fogueira  por  meio  de  outras  tantas  entrevistas,  acrescentando,  a   cada   vez,   mais   um   e   outro   detalhes.   E   o   suspense   vai   rolando   até   que   a   polícia   constate   que,   numa   fronteira   portuguesa,   fora   registrada   a   passagem   do   Mago   (vivo,   inteiro,   sadio   e   bem-­‐‑acompanhado   da   Miss   Jaeger)   a   caminho   de...   França.   Fica-­‐‑se   então   a   saber   que   Crowley   tinha   sido   agente   duplo   (dos   ingleses   e   dos   alemães)   durante   a   Primeira   Guerra   e   que   usara   o   forfait   português   como   expediente   para   poder   se   mandar   a   salvo   (e   com   a   sua   acompanhante)   para   a   Alemanha,  onde  passara  a  viver.  Pessoa,  no  entanto,  há  de  sustentar  (até  o  fim)  a   morte  e  a  ressurreição  de  Crowley,  chegando  mesmo  a  escrever  uma  novela  sobre   tal  episódio.     Como   é   notório,   na   década   de   sessenta,   Crowley   será   recuperado   pelos   movimentos  de  contra-­‐‑cultura.  Ele  comparece  na  foto  coletiva  do  Sargent  Pepper´s   Lonely   Heart   Club   Band   (o   célebre   LP   dos   Beatles);   é   homenageado   pelos   Rollings   Stones,   pelo   Led   Zepellin,   pelo   Iron   Maiden,   pelo   Black   Sabbat,   por   Ozzie   Osburne,   por  David  Bowie  e  pelo  brasileiro  Raul  Seixas.  E  há  ainda  outros  desdobramentos   que  lhe  dizem  respeito:  Mick  Jagger  (do  Rolling  Stones)  interessa-­‐‑se  até  em  comprar   a   Mansão   Boleskine,   a   célebre   residência   do   Mago   à   beira   do   Lago   Ness   que,   Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 120 Dal Farra De Florabel para Pessoa todavia,  acabou  sendo  vendida  a  Jimmy  Page  (do  Led  Zeppelin)  que,  por  sua  vez,  a   revendeu  ultimamente  a  um  importante  clã  esotérico  da  Escócia.   Sobre   Miss   Jaeger   (a   acompanhante   alemã   de   Crowley   na   travessia   “ocultista”  pela  Boca  do  Inferno),  os  jornais  referem  suas  tiradas  exuberantes  nos   restaurantes   de   Lisboa,   suas   cenas   histéricas   nos   hotéis   da   região,   bem   como   nas   proximidades   de   Cascais.   Teresa   Rita   Lopes   suspeita   mesmo   que   Pessoa   tivesse   ficado  vivamente  impressionado  por  essa  mulher  com  quem  (é  possível)  ele  parece   ter  atuado  nos  rituais  satânico-­‐‑mágico-­‐‑sexuais  de  Crowley.  Sobre  ela,  Pessoa  teria   escrito  um  poema  que  se  conclui  assim:       Apetece  como  um  barco.   Tem  qualquer  coisa  de  gomo.   Meu  Deus,  quando  é  que  eu  embarco?   Ó  fome,  quando  é  que  eu  como?8     Florbela   teria   ignorado   tais   lances   pessoanos?   Difícil   saber.   Em   tempos   diversos   e   por   transversos   caminhos,   ambos   foram   editados   pela   Seara   Nova,   revista   dirigida   (dentre   outros)   por   Raul   Proença.   De   Pessoa,   seria   publicado   postumamente   ali   um   poema   do   ortônimo,   “Liberdade”:   “Ai   que   prazer   |   Não   cumprir   um   dever,   |   Ter   um   livro   pra   ler   |   E   não   o   fazer!”;   e,   de   Florbela,   que   morreu  emm  1930,  um  poema  dedicado  a  Proença,  o  “Prince  Charmant”,  onde  ela   se   queixa   de   nunca   encontrar   aquele   por   quem   vive   aguardando9.   Aliás,   esta   temática  do  desencontro  amoroso  é  uma  das  mais  persistentes  na  obra  da  poetisa,   que  espera  inutilmente  pelo  Amado,  pelo  Eleito,  pelo  Desejado,  pelo  Infante,  pelo   Príncipe   Encantado.   Infelizmente,   é   o   desacerto   que   domina   essa   cena.   Ou   o   Desejado   passa   e   não   a   vê,   pois   que   chega   antes   e   ela   depois;   ou   ambos   se   vêem   mas  não  se  reconhecem;  ou  ambos  nascem  em  épocas  distintas  e,  embora  feitos  um   para  o  outro,  jamais  hão  de  se  topar.     Por  outro  lado,  a  tópica  do  eu  dividido  ou  multiplicado  está  por  toda  a  parte   em   ambos.   Em   Florbela,   a   dispersão   ou   a   presença   de   muita   gente   dentro   de   si   encarna  uma  questão  que  remete  às  fantasmagorias  do  feminino,  aos  desdobramentos   culturais   da   mulher.   Para   Pessoa,   esta   constante   se   põe   de   outra   maneira   (e   também   como   um   topos   da   modernidade),   visto   que,   em   Pessoa,   há   uma   determinação   de   ser   muitos   para   sentir   tudo   de   todas   as   maneiras.   Florbela,   por   seu   turno,   é   imparavelmente   uma   e   outra   e   outra:   é   a   irmã,   a   sedutora,   a   impossuível,   a   voluptuosa,   a   panteísta,   a   amiga,   a   sóror,   a   pária,   a   Princesa                                                                                                                            Citado  por  Teresa  Rita  Lopes,  que  não  resiste  a  “acrescentar  que  esta  mulher  lhe  enviou  cartas  de   grande   intimidade,   o   que   me   leva   a   crer   que   Pessoa   participou   de   alguma   maneira   nos   rituais   satânicos,  mágico-­‐‑sexuais,  que  ela  realizou  com  Crowley  durante  a  estadia  em  Lisboa”  (2008:  62).   9  Segundo  me  esclarece  (no  mesmo  email  de  11/05/2015)  Jerónimo  Pizarro,  “Pessoa  foi  um  searista   póstumo   –   em   1937   –   porque   o   censor   de   1935   percebeu   as   alusões   a   Salazar   em   ‘Liberdade’”.   O   soneto  “Prince  Charmant”  de  Florbela,  dedicado  a  Raul  Proença,  foi  publicado  na  Seara  Nova,  a  1  de   agosto  de  1922.     8 Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 121 Dal Farra De Florabel para Pessoa Desalento,   a   deusa,   a   Infanta   do   Oriente,   a   Castelã   da   Tristeza,   a   Princesa   Encantada.  Ela  sofre,  como  se  identifica,  de  um  “pavoroso  e  atroz  mal”:  o  de  trazer   “tantas  almas”  a  rir  dentro  da  sua.10   Também  surpreende-­‐‑se  outro  ponto  de  contato  entre  ambos  ao  cotejar-­‐‑se  a   correspondência   amorosa   de   Pessoa   a   Ophelia   com   a   de   Florbela   a   Guimarães;   aproximação  que  só  se  tornou  possível  a  partir  de  2008,  quando  foi  dado  a  lume  o   montante   inédito   das   cartas   amorosas   de   Florbela   àquele   que   ia   se   tornar   o   seu   segundo  marido.  Aquando  da  troca  dessa  correspondência,  ambos  os  casais  vivem   na  mesma  cidade,  Lisboa,  e  praticam  –  espantosamente!  –  a  mesmíssima  estratégia   de  encontros  amorosos!   Em  final  de  1919  e  início  de  1920,  Florbela  continua  oficialmente  casada  com   seu   primeiro   marido,   muito   embora   não   viva   mais   com   ele.   É   nessa   data   que   ela   conhece   António   Marques   Guimarães,   solteiro   e   alferes   da   Guarda   Nacional   Republicana,  e  por  ele  se  apaixona,  mas  a  situação  embaraçosa  impede  que  eles  se   vejam  e  se  falem.  Assim,  a  única  maneira  que  engendram  para  estarem  juntos  com   certa  discrição  é  a  de  se  encontrarem  “casualmente”  dentro  de  um  coletivo;  para  o   caso,  dentro  de  um...  elétrico.  De  resto,  a  combinação  é  muito  bem  urdida:  Florbela   toma,   na   frente   da   sua   casa,   um   elétrico   e,   algumas   paragens   depois,   Guimarães   entra   no   mesmo   transporte.   Demonstrando   provável   surpresa   em   vê-­‐‑la   ali,   ele   a   cumprimenta,   acomoda-­‐‑se   a   seu   lado   e   a   acompanha   até   o   final   da   linha,   retornando   em   sua   companhia.   Mas   em   vez   de   descerem,   os   amantes   (de   acordo   com   as   carências   de   momento   e   a   urgência   das   conversas)   prosseguem   no   transporte  até  que  possam  se  despedir  condignamente.  Isso  significa  que  acontece   de   irem   e   virem   (do   início   ao   fim   da   linha)   quantas   vezes   forem   necessárias   para   botarem   os   assuntos   em   dia.   Daí   que   escolham   inapelavelmente   o   trajeto   mais   alongado:  o  do  Dafundo  ou  do  Lumiar  ou  do  Poço  do  Bispo.     Numa  de  suas  cartas,  Florbela,  já  refeita  do  extenso  percurso  diurno,  e  com   muito  bom  humor,  confessa  que  hoje  (11  de  março  de  1920)  está  cansada  de  tanto   “movimento”.  E  pergunta  ao  namorado:     Então,   Vossa   Mercê   digna-­‐‑se   mostrar   satisfeito   do   passeio   à   Conchinchina?   Eu   estou   fatidagíssima,   e   nem   as   extravagantes   e   complicadíssimas   viagens   de   Júlio   Verne,   nem   mesmo  a  da  lua  ou  a  das  cinco  semanas  em  balão,  me  poriam  mais  estafada  e  me  dariam   maior  vontade  de  criar  raízes  num  qualquer  sítio.  Parece-­‐‑me  que  me  curei  da  minha  paixão   pelo   eterno   movimento,   e   que   estou   uma   menina   pacata   e   bem   educada,   pelo   menos   por   três  dias:  achas  pouco?!...     (2008:  107)                                                                                                                                 De   resto,   o   soneto   referido,   o   intitulado   “Loucura”   (constante   do   póstumo   Reliquiae),   é   textualmente   citado   em   “À   Margem   Dum   Soneto”,   conto   de   Florbela,   em   que   se   tematiza   uma   poetisa  e  uma  romancista  que  padecem  literalmente  desse  estado  de  “despersonalização”  (Espanca,   1996:  229).  Cf.  Dal  Farra  (2012).     10 Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 122 Dal Farra De Florabel para Pessoa     Fig.  2.  Papel  amarelado  com  plano  estratégico  (“Strategic”)  que  Pessoa  tinha  desenhado     para  passear  com  Ophelia.  O  mesmo  consta  dos  percursos  possíveis  de  elétrico  mais  compridos     para  poderem  passar  mais  tempo  juntos.  Os  lugares  marcados  são  “Poço  Novo”,     “C[alçada]  [da]  Estrella”,  “S.  Bento”  e  “C[onde]  Barão”   (in  Pizarro,  Ferrari,  Cardiello,  2013:  184).     Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 123 Dal Farra De Florabel para Pessoa O  espantoso  nisso  tudo  é  a  enorme  coincidência.     Logo   no   início   do   namoro,   Pessoa   e   Ophelia   também   atravessam   uma   fase   de  clandestinidade.  As  razões  são  bem  outras:  Pessoa  evita  se  comprometer  e  não   quer   ser   apresentado   à   família   da   namorada;   pretende,   sim,   manter   a   relação   em   sigilo   –   e   se   valem,   ele   e   Ophelia,   de   semelhantes   recursos.   Preferem   trilhar   as   linhas  do...  elétrico  e,  aliás,  as  mesmas  escolhidas  pelo  casal  florbeliano!  Elegem  os   mesmos   trajetos   palmeados   por   Florbela   e   Guimarães   e   (para   culminar!)   os   percorrem  durante  os  mesmos  meses  em  que  também  o  casal  florbeliano  os  perfaz!   Numa   carta   do   poeta   para   Ophelia,   já   da   última   fase   do   namoro   (a   14   de   setembro   de   1929),   ele   relembra   saudoso   essa   prática   do   primeiro   tempo   do   relacionamento,  a  que  apoda  de  encontros...  “ao  acaso”.  Cito-­‐‑o:     Pequenina:   Gostei  muito  da  sua  carta,  mas  gostei  ainda  mais  do  que  veio  antes  da  carta,  que  foi  a  sua   própria  pessoa.  Enfim,  a  viagem  entre  o  Rocio  e  a  Estrela,  que  não  costuma  ser  uma  coisa   muito   transatlântica   de   beleza,   foi   ontem   duas   vezes   agradável,   salvo   no   fim   da   segunda   vez,  porque,  por  ontem,  acabou  ali.  Se  tivesse  sido,  em  vez  de  transatlântica,  transvidiana   (curiosa  e  inexplicável  expressão!),  teria  sido  preferível  até  ao  preferível  a  tudo  que  foi.  [...]     Se  um  dia  qualquer  por  um  daqueles  lapsos  em  que  é  sempre  agradável  cair  de  propósito,   nos  encontrássemos  e  tomássemos  por  engano  o  carro  do  Lumiar  ou  do  Poço  do  Bispo  (35   minutos),  haveria  mais  tempo  para  estarmos  encontrando-­‐‑nos  ao  acaso.     (1978:  139)     Por   outro   lado,   enquanto   Florbela   nomeia   o   destino   sensual   da   sua   viagem   com   Guimarães   como   sendo   aquele   de   ida   à   “Conchinchina”,   no   código   amoroso   do   casal   pessoano,   a   linha   erótica   que   eles   tomam   segue   em   direção   da   “caça   aos   pombos”,  no  rumo  do  “Pombal”  ou  da  “Índia”,  que  é  como  eles  a  mencionam  na   intimidade.   Na   falta   dessas   “viagens”,   Pessoa   confessa   a   Ophelia,   em   carta   de   24   de  setembro  de  1929,  que:     Queria  ir,  ao  mesmo  tempo,  à  Índia  e  a  Pombal.  Curiosa  mistura,  não  é  verdade?  Em  todo  o   caso  é  só  parte  da  viagem.   Recorda-­‐‑se  d´esta  geografia,  Vespa  vespíssima?     (1978:  144)     Nos  testemunhos  de  Ophelia,  que  abrem  a  edição  das  Cartas  de  Amor  (1978)   por   David   Mourão-­‐‑Ferreira,   a   ex-­‐‑namorada   do   Poeta   também   refere   tais   longas   travessias.   Conta   ela   que,   sobretudo   após   a   greve   de   maio   de   1920,   Pessoa   a   convidava   costumeiramente   para   esses   longos   itinerários,   propondo-­‐‑os   desta   maneira:       [...  ]  que  tal  se  nos  enganássemos  e  nos  metêssemos  num  carro  para  o  Poço  do  Bispo?     (1978:  35)     Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 124 Dal Farra De Florabel para Pessoa Tais   testemunhos   podem   levar   a   supor   que,   praticando   o   mesmo   estratagema   amoroso   de   encontro   clandestino   para   iguais   destinos   (e   isso   na   mesma  faixa  temporal  de  meados  de  192011),  os  dois  casais  pudessem  (quem  sabe?)   terem-­‐‑se  visto  ou  se  cruzado  dentro  dos  mesmos  transportes  coletivos...  E  por  que   não?!     A  crer  no  Fado,  não  é  impossível  que  Florbela  e  Pessoa  tenham  se  notado  ou   (mesmo  não  tendo  se  apercebido  um  do  outro)  que  tenham  compartilhado  não  só   de   uma,   mas   de   várias   dessas   viagens   “transvidianas”!   E,   nesse   caso,   a   tópica   do   desencontro  em  Florbela  pode  adquirir  todo  o  sentido  para  além  da  sua  poética,  a   ponto  de  se  ancorar  na  própria  realidade.     Quem   garante   que   Pessoa   não   pudesse   ter   sido,   para   Florbela,   o   tal   Prince   Charmant  tão  aguardado  durante  toda  a  sua  vida?  Quem  garante  que  ela  (por  um   golpe  do  destino)  não  o  pudesse  ter  reconhecido,  en  passant,  como  tal?12     Certamente   há   nisso   delírio.   Mas,   sob   tal   impulso   de   verossimilhança,   eis   aqui   cinco   poemas   que   estimulam   essa   versão.   Compostos   da   perspectiva   da   Florbela   depois   de   morta,   e,   portanto,   de   uma   Florbela   já   conhecedora   destas   derradeiras   especulações   e   suspeitas,   de   uma   Florbela-­‐‑leitora-­‐‑assídua   da   obra   de   Pessoa,   os   poemas   compõem   uma   espécie   de   missiva,   de   fragmentos   de   cartas   escritas  por  ela  para  (desde  a  eternidade)  para  conversar  com  ele.  Podem  (por  isso)   suscitar   uma   nova   epistolografia,   quem   sabe   uma   epistolografia   transcendental,   visto  que  é  plausível  que  Pessoa  (cavalheiro  como  era)  lhe  responda...  O  conjunto  é   dedicado  a  uma  secreta  pessoa  entre  ambos:  o  Eduardo  Lourenço.                                                                                                                               O   período   referido   compreende   o   espaço   temporal   do   final   de   1919   (a   primeira   carta   de   Pessoa   data  de  28  de  novembro  de  1919,  e  a  de  Florbela,  não  sendo  possível  precisar,  data,  pelo  menos,  de   longo  período  antes  de  4  de  março  de  1920)  até  6  de  julho  de  1920,  no  caso  de  Florbela,  ou  até  1  de   dezembro  de  1920,  no  caso  de  Pessoa.     12  Estou  pensando  sobretudo  no  poema  “A  une  passante”,  de  Baudelaire...   11 Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 125 Dal Farra De Florabel para Pessoa 1     No  tempo  em  que  festejavam  o  dia  dos  meus  anos     eu  era  infeliz     e  já  estava  morta.     Filha  ilegítima  de  pai  incógnita,  irmã  de  ninguém  mais,     nunca   (ao  volante  do  chevrolet  pela  estrada  de   Cascais)  tive  direito  a  truques   ou  psicografias.       Nesta  negra  cisterna  em  que  me  afundo   prendi  espinhos     sem  tocar  nas  rosas.  Caro  me  cobraram  a  audácia     mas  nem  o  Crowley  conheci.  Perdi-­‐‑me     para  me  encontrar   e  por  fim  achei-­‐‑me:     ao  pé  de  uma  parede  sem  portas.       Quis  amar,  amar   –  e  amei  perdidamente...     mas  por  dois  maridos  seguidos     (e  desigualmente)     fui  dobrada     à  moda  do  Porto.     Mas  tu,  Fernando,  mesmo     te  afundando  na  garganta  do  diabo       (de  Miss  Jaeger?  Olha  que  não  é  Mick  Jagger     mas  Jimmy  Page  quem  vive  na  Boleskine   à  beira  do  Lago  Ness)       –  sabiamente  te  ocultaste  por  baixo  da   gabardine  e  do  teu  oblíquo  guarda-­‐‑chuva,     seguindo  atento  pra  além  doutro  oceano,  ocultismos  adentro.     Sempre  te  restou  intacto  e  seco  (ó  Pacheco!)   o  digno  fato  negro  de  mago     das  palavras     e  de  cavalheiro  das  moças.     Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 126 Dal Farra De Florabel para Pessoa   Mesmo     dos  teus  flagrantes  delitros  fizeste  humor...  Mas  foi     num  desses  copos  que  afogaste  Ophelia.  E  as  outras  –   Mary  (com  quem  lias  Burns)   Daisy,  Cecily,  Chloe     a  noiva  em  cio  do  epitalâmio     Lídia,  Neera,  Maria     a  monster  escarlate     e  mesmo  as  invertidas  (como  tu  dizias)   –  todas  têm-­‐‑te  em  alto  apreço.     Mas  o  que  foi  feito  de  Freddie,  o  Baby?!   Ignoramos,  Campos.  Somos  estrangeiros  onde  quer  que  estejamos.     2     No  dia  em  que  festejavam  os  meus  anos   festejam     hoje     a  minha  morte.     Já  não  ouço  passos  no  segundo  andar,  estou   sozinha  com  o  universo  inteiro.  Oh  inexplicável  horror     de  saber  que  esta  vida  é  a  verdadeira!  Qualquer  que  seja  ela   é  melhor  que  nada!   Perante  a  única  realidade  que  é  o  mistério  de  tudo     (e  tudo  é  certo,  logo  que  o  não  seja)   confesso-­‐‑te,  Nando:     sempre  te  esperei.       Emissário  de  um  Rei  desconhecido  passaste  (entanto)     ao  largo  desta  Princesa  Desencanto,     órfã  e  órfica!     Jamais  vieste  ter  comigo  naquela  rua  da  Baixa  e  no  entanto  cruzaste  por  mim   que  vim  ao  mundo  só  para  te  achar  –     embora  na  vida  nunca  me  encontrasses!     Prince  Charmant,     vi-­‐‑te  nas  névoas  da  manhã     quando  ias  de  carro  prô  Lumiar.   Seguias  (recordas  tal  estranha  geografia?)  para  o  Pombal  e  para  a  Índia,   Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 127 Dal Farra De Florabel para Pessoa e  eu  para  a  minha  Conchinchina.   Ah,  as  malhas  que  a  República  tece!  Comigo,     o  meu  Alferes;     contigo,  a  tua  Bebé  das  calcinhas  rosas,     a  hamleteana  amorosa.     No  entanto,  Fernando,  jamais  pressentiste     que  fosse  eu     a  Olga  dos  oráculos?!  Aquela     de  que  tens  saudade  sem  saber  por  que?     Aquela  que,  na  noite  voluptuosa  (ó  meu  Poeta!),   é  ainda  o  beijo  que  procuras?     E  entretanto,  tu,  ou  alguém  por  ti  na  tua  arca   (e  é  do  último  sortilégio  que  se  trata)     tem  afirmado  seres  a  alma  gêmea,  igual  a  mim,     nesse  pavoroso  e  atroz  mal  de  trazer  tantas  outras  a  gemer  dentro  da  minha!     Mas  por  que  chegaste  tarde,  ó  meu  Amor?     Que  contas  dás  a  Deus     passando  tão  rente  a  mim       sem  me  encontrares?!     3     E  agora  que  te  vejo  e  que  te  falo     não  sei  se  te  alcancei   se  te  perdi.     É  que  guardo   antiga  zanga  contra  ti,  Fernando.  Deploro  o  que  não  fizeste  por  Judith     e  por  sua  troupe  de  toda  a  Europa   –  gente  que,  afinal,  ficou  sem  eira  nem  Teixeira!       Quem  incinerou-­‐‑lhe  os  versos  só  lhe  viu     a  carne  Nua  que  viande  de  paraître     e  tosquiou-­‐‑a  verrinamente  em  esfinge.  Mas  era  também     De  Mim  que  ela  falava,  de  todas  nós,  as  outras:   do  nosso  direito  à  vida,  à  ética,  à  arte  –  à  luxúria!   E  pensar  que  tu,  Pessoa     (honra  da  Literatura  de  Sodoma!)     Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 128 Dal Farra De Florabel para Pessoa só  foste  leal  ao  Raul  e  ao  Botto  (o  invejoso):   Judith  jamais  te  existiu!     Seria  a  tua  célebre  fobia  a...  trovoadas?     Noto  que  uma  ignota  linguagem  fala  em  nós,  Álvaro!   Sempre  conheceste,  afinal,     alguém  que  tivesse  levado  porrada!     Mas  hoje  que  a  tarde  é  calma  e  o  céu  tranqüilo:   –  cadê  o  teu  decadentismo?   Teus  Poemas  também  são  de  Bizâncio,  caro  Íbis,     e  (talvez  por  isso)     foste  embirrar  com  a  única  mulher  modernista!     Deveras.  O  dia  deu  em  chuvoso.     4     No  tempo  em  que  festejavam  o  dia  dos  meus  anos   uma  como  que  lembrança  do  meu  futuro  féretro  me  estremece  o  peito.   Nesta  hora  absurda   (pousada  sob  o  fausto  do  meu  claustro  de  Sóror  Saudade  –   ó  suntuoso  túmulo  de  morta!)   virada  no  avesso  e  sem  meus  ossos   –  tropeço  na  sombra  lúgubre  da  Lua  que     lá  fora  (Satanás!)     seduz!   Tenho  ódio  à  luz  e  raiva  à  claridade   e  não  estou  de  bem  com  Deus  só  por  medo  do  Inferno.  Que  ninguém   me  faça  a  vida!  Deixem-­‐‑me  ser  eu  mesma!     Esta  sou  eu  –  a  Bela     a  Intangível,  a  leve  águia  na  subida     –  tal  como  resultei  de  tudo.     Ah,  um  verso  meu  de  amor   que  te  fizesse  ser  eterno  por  toda  a  eternidade,   ó  Desejado,  Eleito,  Infante,  Amante!   Minha  boca  guarda  uns  beijos  mudos   minhas  mãos  uns  pálidos  veludos,  e  noite  e  dia     choro  e  rezo  e  grito  e  urro  –   Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 129 Dal Farra De Florabel para Pessoa e  ninguém  ouve...  ninguém  vê...  ninguém...     Se  me  quiseres,  Fernando,   hás  de  ser  Outro  e  Outro  num  momento   princípio  e  fim,  via  láctea  fechando  o  infinito!   Eu  sonho  o  amor  de  um  deus!...     Vê,  repara,  Nando,  dá-­‐‑me  as  tuas  mãos...     Alguma  coisa  em  mim  nasceu  antes  dos  astros     e  viu   lá  muito  ao  longe     começar  o  sol...     5       Se  ridículas  são  todas  as  cartas  de  amor   as  minhas     (em  verdade)   não  passam  de  uma  necessidade  voraz     de  fazer  frases...   Tão  pobres  somos,  Nando,     que  as  mesmas  palavras  usamos     para  afirmar  ou  falsear.     Mas  aclara-­‐‑me,  Fernando:     o  que  impede  um  vero  e  injusto  Fado     de  ser  criado?!       Tudo  coexiste!  O  mundo     é  uma  teia  urdida  só  de  sonho  e  erro.   A  vida...  branco  ou  tinto,  é  o  mesmo:  é   pra  vomitar!     Brindemos  ambos,  inda  que  não  mais  possamos:       –  viva  o  bicarbonato  de  soda!       Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 130 Dal Farra De Florabel para Pessoa Bibliografia     DAL  FARRA,  Maria  Lúcia  (2012).  “À  Margem  Dum  Soneto”,  in  Florbela  Espanca,  Afinado  Desconcerto.   São  Paulo:  Iluminuras,  pp.  104-­‐‑110.   ____   (2008).   “Judith   Teixeira”,   in   Dicionário   de   Fernando   Pessoa   e   do   Modernismo   Português.   Fernando  Cabral  Martins,  coordenador.  Lisboa:  Caminho,  pp.  845-­‐‑846.   ____   (1996).   “Florbela:   um   caso   feminino   e   poético”,   in   Florbela   Espanca,   Poemas.   São   Paulo:   Ática,  pp.  IX-­‐‑XLIV.   ESPANCA,   Florbela   (2012).   Afinado   Desconcerto.   Organização   de   Maria   Lúcia   Dal   Farra.   São   Paulo:   Iluminuras.   ____   (2008).   Perdidamente   (Correspondência   Amorosa   1920-­‐‑1925).   Fixação   de   texto,   organização,   apresentação   e   notas   de   Maria   Lúcia   Dal   Farra;   prefácio   de   Inês   Pedrosa.   Vila   Nova   de   Famalicão:  Edições  Quasi/Câmara  Municipal  de  Matosinhos.   ____   (1996).  Poemas.  Edição  de  Maria  Lúcia  Dal  Farra.  São  Paulo:  Ática.   ____   (1994).   Trocando   Olhares.   Estudo   introdutório,   estabelecimento   do   texto   e   notas   de   Maria   Lúcia  Dal  Farra.  Lisboa:  Imprensa  Nacional-­‐‑Casa  da  Moeda.   LOPES,   Teresa   Rita   (2008).   “O   falso   virgem”,   in   Egoísta,   número   especial,   Lisboa,   Casa   Fernando   Pessoa,  junho,  pp.60-­‐‑64.   KAMENEZKY,  Eliezer  (1932).  Alma  errante:  poemas.  Prefácio  de  Fernando  Pessoa.  Lisboa:  Empresa  do   Anuário  Comercial.   PESSOA,   Fernando   (1996).   Correspondência   inédita.   Organização   de   Manuela   Parreira   da   Silva;   prefácio  de  Teresa  Rita  Lopes.  Lisboa:  Livros  Horizonte.   ____   (1978).  Cartas  de  amor.  Organização,  posfácio  e  notas  de  David  Mourão-­‐‑Ferreira;  preâmbulo   e   estabelecimento   do   texto   de   Maria   da   Graça   Queirós.   Lisboa:   Ática   /   /Rio   de   Janeiro:   Livraria   Camões.   [Cf.   Fernando   Pessoa   &   Ofélia   Queiroz.   Correspondência   amorosa   completa   1919-­‐‑1920.  Organização  de  Richard  Zenith.  Rio  de  Janeiro:  Capivara,  2013.]   PESSOA,   Fernando;   CROWLEY,   Aleister   (2010).   Encontro   Magick,   seguido   de   A   Boca   do   Inferno   (novela   policiária).  Compilação  e  considerações  de  Miguel  Roza.  Lisboa:  Assírio  &  Alvim.   ____   (2001).  Encontro  “Magick”  de  Fernando  Pessoa  e  Aleister  Crowley.  Compilação  e  considerações   de  Miguel  Roza.  Lisboa:  Hugin  Editores.   PIZARRO,   Jerónimo;   FERRARI,   Patricio;   e   CARDIELLO,   Antonio   (2013).   “Fernando   Pessoa   e   Ofélia   Queiroz:   objectos   de   amor”,   in   Pessoa   Plural   –   A   Journal   of   Fernando   Pessoa   Studies,   n.º   4,   Outono,  pp.  152-­‐‑195.   TEIXEIRA,  Judith  (2015).  Poesia  e  Prosa.  Organização  e  estudos  introdutórios  de  Cláudia  Pazos  Alonso   e  Fabio  Mario  da  Silva.  Lisboa:  Dom  Quixote.     ____   (1996).  Poemas.  Prefácio  de  V.  S.  T.  e  “Scriptorium”  de  Maria  Jorge.  Lisboa:  &  etc.   Pessoa Plural: 7 (P./Spring 2015) 131