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A estrutura urbana da cidade portuária

2020, Lisboa Romana/ Felicitas Iulia Olisipo: A Morfologia Urbana (vol III)

A cidade de Lisboa sofreu grandes transformações urbanísticas ao longo de mais de dois mil anos de evolução. Do oppidum indígena a cabeça de um vasto território em época imperial, tornou-se a mais importante cidade portuária da Lusitânia e da fachada atlântica peninsular. No entanto, persistem as falhas no conhecimento da sua estrutura urbana, dos edifícios e equipamentos públicos e privados que compuseram a cidade antiga, que se devem às subtrações causadas pelas catástrofes naturais e pela contínua ação humana. Da cidade romana de Lisboa, Felicitas Iulia Olisipo, conhecem-se alguns retalhos que apenas permitem continuar a especular sobre a fisionomia do conjunto urbano e sobre as lógicas de apropriação dos espaços, numa abordagem intrinsecamente ligado à topografia do sítio, aos recursos hídricos disponíveis, ao rio, à vocação marítima e comercial que não se extinguiu nas fases mais obscuras da Antiguidade Tardia, chegando aos nossos dias como um desafio de reconstituição histórica, arqueológica, urbanística e arquitetónica. Palavras chave Olisipo, oppidum, urbs, arqueologia, forma urbana

28 A estrutura urbana da cidade portuária NUNO MOTA, PEDRO VASCO MARTINS Recuperar a cidade romana de Lisboa não se afigura tarefa simples nem consensual. Muita desta dificuldade reside na escassez de informação útil que permita percecionar o conjunto urbano nas suas diversas componentes. Embora o atual volume de intervenções arqueológicas no centro histórico, alavancado pela dinâmica de reabilitação urbana, seja elevado, os vestígios estruturais conhecidos continuam a não contemplar equipamentos essenciais para a sua compreensão, como é o caso do fórum, ou insuficientemente identificados para o estabelecimento dos seus limites, como é o caso das muralhas. A estas componentes em falta, juntam-se as vias urbanas e outros circuitos estruturados, como os das águas ou saneamento, os quais ajudam a definir alinhamentos relacionáveis com a implantação dos diversos equipamentos, sejam eles públicos ou privados, da fonte monumental ao quarteirão habitacional. Também as necrópoles, um dos mais abundantes tipos de vestígios exumados nas intervenções arqueológicas lisboetas, que por norma se situam fora do perímetro urbano e permitem aferir limites plausíveis para a cidade, são parcialmente conhecidas na sua extensão, criando dúvidas sobre os limites que permitiriam identificar. Quando se adiciona a incontornável dimensão cronológica à escassa informação útil esta diminui drasticamente passando a distribuir-se por três fases formais distintas que abrangem sete séculos de história urbana sequencial e mutável (cidade Republicana, Imperial e Tardia), não sendo, em boa parte dos casos, clara a sua integração, normalmente devido a limitações dos trabalhos de arqueologia no terreno. Estas limitações, intrinsecamente associadas à arqueologia preventiva e empresarial (por vezes denominada de reativa ou de acompanhamento), dependente das cotas de afetação definidas nos projetos de reabilitação, têm inviabilizado, salvo raras exceções, uma recolha de dados mais exaustiva e, consequentemente, debilitado a investigação arqueológica em pontos-chave para o conhecimento da cidade antiga. Noutra ordem de ideias, e pese embora o aumento da quantidade de intervenções arqueológicas desenvolvidas pelos múltiplos intervenientes, sobretudo privados, as tentativas de sintetização da informação existente esbarram na legítima propriedade científica inerente aos trabalhos no terreno, tornando-se assim indisponível aos demais investigadores e, consequentemente, tornando também as sínteses publicadas incompletas ou desatualizadas. Por outro lado, a realização de uma interpretação do urbanismo da cidade romana a partir da sua morfologia contemporânea, considerando que a constante sobreposição de novas estruturas, intrínseca à construção do objeto urbano tende a preservar parcialmente as estruturas antigas permitindo o seu estudo, é também no caso de Lisboa particularmente difícil. A dificuldade deste tipo FIG . 1 Planta com os vestígios romanos conhecidos no Século XIX (publicada em Castilho, 1884, p. 265). 29 de análise resulta de vários fatores, de entre os quais podemos destacar a antiguidade do aglomerado populacional com a sobreposição de inúmeros momentos construtivos, a sua permanente importância no contexto regional geradora de constantes dinâmicas profundamente transformadoras da sua forma e, finalmente, a existência de um evento de quase total reformulação urbana através da reconstrução pombalina pós sismo de 1755, que terá apagado importantes evidências das “Lisboas” antigas. Se por um lado, após a destruição da cidade joanina, se identificaram pela primeira vez importantes equipamentos da cidade romana como o teatro ou as termas dos Cássios, por outro, os desaterros realizados para a implantação do novo plano urbanístico pombalino, com as inerentes alterações topográficas, erradicaram um enorme e irrecuperável volume de informação quer de natureza arqueológica, quer sobre a morfologia urbana da cidade pré-pombalina e medieval, herdeiras por continuidade da cidade romana. Não obstante os aspetos lacunares que pautam em grande medida a análise dos dados provenientes da arqueologia, fragmentada pela natureza da abordagem no terreno, e da morfologia urbana, numa cidade milenar historicamente sujeita a profundas transformações urbanísticas, importa proceder à interpretação possível e plausível reunindo as peças do “puzzle” disponíveis e relevantes para o efeito. A perceção da fisionomia da cidade antiga O enquadramento geográfico e as características físicas do espaço em que uma cidade se instala condicionam em menor ou maior grau a sua configuração. No caso de Lisboa, a colina do castelo está na génese da ocupação urbana que se viria a estender pelas suas faldas e, mais tarde, pelos vales e colinas circundantes. Esta 30 topografia, do tipo “acrópole”, é caracterizada por uma elevação com plataforma no topo, envolvida por linhas de água e zonas escarpadas em todas as vertentes, desenvolvendo-se para Sul de forma menos acentuada, com terraços naturais, e delimitada pela margem do rio. A geomorfologia da colina, com camadas alternadas de calcário, argila e areias inclinadas na direção do rio, forma um aquífero de infiltração que é carregado na escarpa a Norte e percorre o seu interior. Tradicionalmente aproveitadas para condução e abastecimento em diversos pontos da encosta, é intercetada no sopé pela falha geológica das Alcaçarias, onde brotam as águas quentes que atribuíram em Época Medieval o respetivo topónimo ao bairro de Alfama. Seria esta a área propícia para a instalação de um povoado na Idade do Ferro, que ocuparia em fase pré-romana a colina e as praias flúvio-estuarinas da frente de rio e da margem do “esteiro de Baixa”, marcando o início da instalação urbana (Arruda, 2015, p. 288). Olisipo teria sido, aliás, em termos de área ocupada, o maior povoado orientalizante do atual território português (Arruda, 2002, p. 129). É facilmente constatável a importância estratégica do local quer pelas suas condições defensivas naturais, o domínio visual que detém sobre o território envolvente e sobre a principal via de circulação, o rio Tejo, com o seu estuário, um verdadeiro mar interior ligado ao Oceano por um canal alargado na desembocadura. Esta situação geográfica, um porto natural de eleição na difícil navegação da fachada atlântica e uma entrada para o interior do território através do mais extenso rio da Península Ibérica, estiveram certamente na base da escolha do local para a instalação de Olisipo, um oppidum com evidentes vantagens defensivas e virado para o rio e para o mar, vocacionado para a atividade comercial, atestada nas precoces relações com o Mediterrâneo Oriental. Ao longo do tempo a cidade foi perspetivada por diversos autores com base nas FIG . 2 Planta com os locais dos achados epigráficos, principais vias antigas e perímetro hipotético da cidade romana (publicada em Vieira da Silva, 1944, Anexo). evidências que tinham à sua disposição. Nos séculos XVI, XVII e XVIII estudiosos, como Francisco de Holanda, D. Rodrigo da Cunha, Luís Marinho de Azevedo, D. Tomás Caetano de Bem ou Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, entre outros, dedicaram-se à identificação, recolha e registo de antiguidades romanas numa ótica mais relacionada com o revivalismo da arte e arquitetura clássica. A partir do século XIX, os estudos tenderam a empreender o mapeamento desses vestígios conhecidos e a estruturar o espaço de forma a obter uma imagem urbana. Este novo ciclo foi inaugurado por Júlio de Castilho, o pai da Olisipografia, que coligiu os poucos dados disponíveis pela primeira vez, em 1884, no Tomo I da sua obra enciclopédica Lisboa Antiga (Castilho, 1935², p. 265) (fig. 1). Augusto Vieira da Silva, engenheiro militar de formação e ávido olisipógrafo conhecedor da cidade antiga, dedicou-se à produção das sínteses cartográficas possíveis à época. Em 1939, publicou uma planta baseada na de Júlio de Castilho (Silva, 1987³) e, em 1944, no âmbito do estudo dedicado à epigrafia, uma outra planta onde apresentou a sua visão da cidade romana com os seus limites e traçados urbanos conjeturais definidos a partir das ruas estruturantes da cidade medieval (Silva, 1944), intuindo precocemente a proximidade formal que as mesmas teriam, numa lógica de continuidade por oposição à rutura criada pelo urbanismo pombalino (fig. 2). Foi também a partir desta planta que surgiu no Museu da Cidade de Lisboa uma proposta de carácter expositivo (Moita e Leite, 1986, p. 31 FIG . 3 Planta com os vestígios arqueológicos de Época Romana e indícios de centuriação urbana (publicada em Mantas, 1990, p. 166, Fig. 2). 56), acrescentando mais elementos entretanto identificados e considerados relevantes, que permitia enquadrar o grande público com as peças expostas nas salas do Palácio Pimenta. Em obra consagrada às cidades marítimas da Lusitânia, surge esboçada a primeira tentativa de interpretação do urbanismo com recurso a elementos arqueológicos aparentemente seguros, fotointerpretação e plantas antigas, procurando os indícios da centuriação urbana, ou seja, da malha ortogonal que estaria na base da instalação dos diversos componentes da cidade (Mantas, 1990, p. 166). Esta foi a abordagem que, até então, procuraria a imagem urbana, embora parcial, do que seria a cidade romana (fig. 3). A planta serviria como base para a implantação das estruturas arqueológicas descobertas entre 1990 e 1995, nomeadamente do fragmento de urbanismo patente no claustro da Sé, do circo (hipódromo monumental com outras componentes lúdicas) e dos vestígios 32 de unidades de produção de preparados piscícolas (instalações fabris providas de tanques - cetárias - para o processamento de salgas e molhos de peixe, distribuídas ao redor de um pátio central) na Baixa Pombalina, sobretudo os resultantes da intervenção na Rua Augusta (futuro Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros - NARC) e na Casa dos Bicos (Amaro, 1995, p. 338). Logicamente, a perceção da cidade foi aumentando consoante o acumular da informação arqueológica no terreno. Em 1997, surge uma síntese de natureza quantitativa que, para além de fazer a discussão com os predecessores, pretendeu destrinçar as fases marcantes dos projetos urbanísticos da cidade romana, procurando as inevitáveis transformações urbanas que teriam acompanhado eventos como as reformas jurídico-administrativas e outras dinâmicas funcionais, com base nos dados contextuais disponíveis e na orientação das estruturas conhecidas (Silva, 1997, p. 63). Apoiado em dados publicados e inéditos, surgiu, em 2012, uma abrangente visão de síntese dos vestígios até então identificados em Lisboa e a análise urbana da cidade romana, na qual se conciliam os dados arqueológicos com uma proposta de parcelamento mais desenvolvida (Silva, 2012, p. 198). Com o advento das novas tecnologias, novas abordagens surgiram. Uma maqueta virtual da cidade romana de Lisboa (Figueiredo, 2014, p. 13) fez a sua entrada na sétima arte através do documentário “Fundeadouro Romano em Olisipo” produzido e realizado por Raul Lousada, em 2016. Os vestígios arqueológicos, as interpretações e as supostas localizações Nos últimos anos aumentou exponencialmente a descoberta de estruturas romanas. Este processo gerou uma elevada quantidade de informação de complexa gestão e análise, atrasando a sua divulgação em tempo útil e, consequentemente, a sua disponibilização ao público e à comunidade científica. Se a dificuldade de obtenção no terreno de cronologias finas para as estruturas exumadas, cria um sério obstáculo à definição de sequências na evolução urbana, também, por outro lado, o desconhecimento da localização ou existência de certos edifícios e equipamentos públicos, incontornáveis para a compreensão da cidade romana, dificultam o processo de construção da imagem da cidade que é, afinal, um processo expectante e demorado. Por exemplo, como já foi referido, não se conhece o local onde estava o fórum, a praça principal e o centro político, administrativo e religioso da cidade, onde convergiam as ruas principais, o cardo e o decumanus. Sabendo-se deste equipamento, a visão urbana seria, manifestamente, mais clara. Outro equipamento importante para a definição da cidade e mal caracterizado é a muralha, a qual estabelece, logicamente, o limite da cidade, mas acima de tudo o seu perímetro simbólico e que representava a fronteira sagrada da cidade, o pomerium. A estrutura urbana da Época Romana Republicana, enquadrável entre os anos de 138 a.C. e 27 a.C., o início do Período Imperial, é mal conhecida porque há poucos elementos estruturais que a ilustrem. É certo que os romanos chegados em 138 a.C., liderados por Décimo Júnio Bruto, governador da então Província da Ulterior, impuseram um novo urbanismo. Este fenómeno, ocorrido durante o processo de conquista do território, é visível nos vestígios arqueológicos, nas estruturas edificadas pelo contingente itálico, fortemente relacionáveis com o estabelecimento militar fortificado em áreas anteriormente pertencentes ao povoado indígena, sobretudo no terço superior da colina (Silva, 2014, p. 187; Pimenta et al., 2014, p. 144; Carvalhinhos, Mota e Miranda, 2017, p. 315). Se um certo determinismo geográfico teria até então pautado a instalação humana, assistia-se a partir de agora à capacidade possibilista do novo ocupante com a introdução de um plano divergente e teoricamente padronizado. Daqui em diante o urbanismo e a arquitetura romana iriam tentar manipular o espaço e o ecossistema. Inicialmente, o estabelecimento militar Romano Republicano, o acampamento fortificado instalado na plataforma superior da colina do castelo sobre o povoado indígena pré-existente, ocuparia a área de topo e é plausível pensar que se desenvolveria na direção do rio, delimitando-se na crista de afloramentos calcários da meia encosta Este e Sul, circuito onde séculos mais tarde se iria instalar a muralha tardia e medieval, a julgar pelas evidências de taludes e fossos defensivos romanos identificados na Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva - FRESS (Silva, 2014, p. 187), no Largo do Contador Mor e na Rua Norberto de Araújo (Carvalhinhos, Mota e Miranda, 2017, p. 315). A Oeste é provável 33 FIG . 4 Aspeto hipotético do oppidum Romano Republicano de Olisipo e os vestígios referidos no texto: 1 – Beco do Forno do Castelo; 2 – Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva; 3 – Largo do Contador Mor; 4 – Rua Norberto de Araújo; 5 – Teatro Romano; 6 – claustro da Sé Catedral; 7 – Pátio da Senhora da Murça; 8 – Rua de São João da Praça; 9 – antigos Armazéns Sommer/ Eurostars Museum Hotel; 10 – NARC. Perímetro defensivo identificado - traço contínuo; Perímetro defensivo hipotético - traço descontínuo (© FormaUrbis LAB | CIAUD | FAUL | Pedro Vasco Martins 2019). que se contivesse nas plataformas naturais dos Loios e da Verbena, ladeada pela atual Rua Bartolomeu de Gusmão. A plataforma natural com início a Norte no castelo e término a Sul na zona dos Loios, Rua de Santiago e Miradouro de Santa Luzia apresenta ainda hoje um urbanismo formalmente distinto da restante cidade, podendo este ser dividido em duas unidades morfológicas distintas separadas pelo Largo do Chão da Feira. Por um lado a área de encosta compreendida entre esse Largo e o Miradouro de Santa Luzia apresenta uma disposição aproximadamente radial, desenhando um leque de ruas que convergem em direção ao Largo do Chão da Feira. Por outro lado, o espaço correspondente à Alcáçova islâmica parece ter tido origem num urbanismo ortogonal, desenhando um grande quadrado com 140 m de lado, talvez uma persistência de estruturas urbanas Romanas Republicanas. O vestígio mais relevante desta 34 ocupação foi descoberto na Rua do Beco do Forno do Castelo, onde foi parcialmente escavado um compartimento de planta retangular que utilizava técnicas e materiais construtivos itálicos, sem que no entanto se conseguisse interpretar cabalmente a sua função no interior do estabelecimento militar (Pimenta et al., 2014, p. 144). Ainda antes do final do século II a.C. as estruturas romanas nesta área, pelo menos na plataforma no topo da colina, teriam já sido desmanteladas e a área abandonada em prol da ocupação mais efetiva da encosta e margem do rio, a área portuária (Pimenta, 2014, p. 57). Os contextos arqueológicos na meia encosta e parte baixa, datáveis de finais do século II a.C. e do século I a.C., atestam a nova estruturação urbana e a dinâmica comercial da cidade Romana Republicana de Olisipo. Vestígios estruturais dispersos, como os identificados nas escavações do teatro romano, claustro da Sé Catedral, na Casa dos Bicos, no Pátio da Senhora de Murça e na Rua de São João da Praça (Pimenta, 2014, p. 55), ilustram este fenómeno. A área portuária implantada junto ao rio estaria já certamente provida de instalações de armazenagem associadas a atividades comerciais e industriais que terão provavelmente alavancado o desenvolvimento urbano (Pimenta, Calado e Leitão, 2005, p. 331). Um compartimento datado de Época Romana Republicana edificado junto à praia antiga, sobre as estruturas da Idade do Ferro, nos antigos Armazéns Sommer, atual Hotel Eurostars Museum, situado na Rua do Cais de Santarém (Ribeiro, Neto e Rebelo, 2019, p. 161), poderá ajudar a consubstanciar esta imagem do urbanismo portuário. Esta dinâmica portuária é, porém, extrapolada sobretudo através de contextos com espólios arqueológicos relacionáveis com a importação de produtos com fins comerciais, mas também para o abastecimento institucional das legiões envolvidas na guerra civil romana da qual o território envolvente também foi palco (Pimenta, 2007, p. 230). O urbanismo antigo do espaço compreendido entre a meia-encosta e a margem do rio teria provavelmente uma natureza irregular e pouco consolidada tendo sido parcialmente apagado pela composição da cidade (fig. 4). A Oeste, no que seria ainda a área portuária, na margem esquerda do esteiro, hoje em parte ocupada pela Baixa Pombalina, concretamente no NARC, foi identificada parte de uma necrópole que terá funcionado sobretudo entre os finais do século I a.C. e os meados do século seguinte, sendo provável a utilização do espaço funerário desde os finais da República (Bugalhão et al., 2013, p. 243). Considerando que os espaços funerários são exteriores à cidade, este vestígio restringe a área urbanisticamente ocupada nesta fase pré-imperial, extrapolando-se um limite que seria ainda mais retraído, tendo em conta o desenvolvimento da necrópole ao longo da via para Norte, detetada na Praça da Figueira, aqui já com uma cronologia de instalação a partir de meados do século I (Silva, 2012, p. 120). Após pouco mais de um século passado sobre o primeiro contacto com Roma, a atribuição, algures entre 31 e 27 a.C., do privilegiado estatuto administrativo de Município de Cidadãos Romanos à cidade romanizada, agora chamada de Felicitas Iulia Olisipo (Faria, 2001, p. 354) que mantinha assim o cognome indígena, levaria a uma renovação urbanística consubstanciada na instalação, ou pelo menos na projeção, de equipamentos como um fórum, teatro, anfiteatro, termas públicas, aqueduto, muralhas (Alarcão, 1994, p. 58) e até de um circo. De alguns destes equipamentos existem apenas parcos vestígios arqueológicos e de outros nem isso. No campo das ausências registam-se o fórum, o anfiteatro, o aqueduto e, no caso desta cidade à beira rio, as infraestruturas portuárias, em parte identificáveis nas funções acrescidas do criptopórtico da Rua da Prata (Mota e Martins, 2018, p. 97) e nos vestígios de armazéns (horrea) identificados no NARC (Bugalhão, 2001, p. 66) e na Rua da Madalena (Amaro, Manso e Sepúlveda, 2013, p. 755). Nos séculos I e II d.C., a fase de apogeu da cidade romana, a expansão urbanística terá tido a sua maior expressão e, com certeza, extravasado a mancha de ocupação Republicana. A sua importância económica, enquanto cidade produtora de preparados piscícolas e captadora dos outros produtos provenientes da área periurbana e do território do município (ager), das villæ (residências rurais latifundiárias e agropecuárias), a par do seu posicionamento estratégico na foz do Tejo terão tornado Olisipo a segunda cidade mais importante da Província da Lusitânia, a seguir à capital Augusta Emerita, a atual Mérida. A colónia de Augusta Emerita estava voltada para o interior, para a via da Prata, o principal eixo terrestre de escoamento dos minérios de Norte para Sul na Península, enquanto Olisipo, graças ao seu porto, à sua situação 35 de caput viarum, às atividades económicas e estrutura social, seria uma autêntica capital litoral da Lusitânia (Mantas, 1997, p. 22). A partir de Augusto, primeiro imperador de Roma entre 27 a.C. e 14 d.C., terá ocorrido o início do processo de municipalização de Felicitas Iulia Olisipo, e a planificação de uma urbs dotada de equipamentos de natureza religiosa, político-administrativa e lúdica. Uma vez que o sítio já tinha ocupação, e não obstante a manifesta capacidade para obliterar as pré-existências construídas, o sítio, pela sua topografia, dificilmente permitiria a implantação de uma malha urbanística perfeitamente ortogonal. A topografia e os vestígios conhecidos sugerem uma malha radial tendencialmente ortogonal ajustada à encosta Sul da colina do castelo, aproveitando certamente as plataformas naturais disponíveis e construindo outras para a instalação de equipamentos de maior volumetria arquitetónica e dimensão cénica. Nos vestígios arqueológicos identificados não se reconhece a maior parte dos principais edifícios que seriam componentes essenciais da cidade, como é o caso do fórum, que integraria a basílica, a cúria e o principal templo (dedicado à tríade capitolina e ao culto imperial), entre outros, que provavelmente ocupariam locais de destaque na geografia do sítio. Várias localizações hipotéticas lhe foram alvitradas: o criptopórtico da Rua da Prata, acumulando funções comerciais em área portuária (Ribeiro, 1994, p. 193); o Largo da Madalena, devido à descoberta, no século XVIII, de um possível pódio de templo e de inscrições epigráficas de natureza votiva e honorífica (Alarcão, 1994, p. 58); na plataforma do Largo dos Loios, acima do teatro romano, pela comparação com modelos urbanísticos idênticos (Hauschild, 1994, p. 66) ou pela lógica topográfica e apreciação de elementos construtivos mais antigos no atual edifício (Fabião, 2010, p. 353). Pese embora a ausência de vestígios que comprovem a sua instalação neste último local, afigura-se como 36 o mais plausível, dada a provável dimensão deste tipo de equipamento. Em relação a esta situação particular pode aplicar-se o raciocínio de que a ausência da prova, não é, pelo menos para já, a prova da ausência... Não sendo este o lugar para esmiuçar todas as estruturas arqueológicas identificadas que compõem o conjunto de vestígios da cidade romana, interessa sobretudo vislumbrar as aparentes existências e ausências, de forma a analisar a estrutura urbana e as suas lógicas de implantação. A muralha fundacional da cidade, embora tivesse provavelmente portas fortificadas no alinhamento das ruas principais, não seria uma estrutura defensiva. Com uma espessura que normalmente não ultrapassava um metro, cumpria uma função simbólica de delimitação do espaço urbano, contendo, teoricamente, na sua parte interna uma faixa de terreno não edificado com 9 m de largura, o pomerium. Desta muralha existem alguns troços arqueologicamente atestados na frente ribeirinha, nos antigos Armazéns Sommer, com uma cronologia de primeira metade do século I d.C (Gaspar e Gomes, 2007, p. 693). Embora a mancha de ocupação com vestígios de estruturas Imperiais, suscetíveis de terem pertencido ao espaço interior da cidade, se estender, pelo menos desde a Rua Augusta, a Oeste, até à Rua da Regueira, a Este, e na Rua de Santiago, a Norte, na encosta, os respetivos limites muralhados não são conhecidos. De entre estes equipamentos salienta-se o teatro, as termas e balneários públicos e privados, vestígios de compartimentos pertencentes a habitações (sendo as mais significativas as que foram identificadas nos antigos Armazéns Sommer, na Rua do Cais de Santarém), lojas e troço de rua secundária com uma cloaca (concretamente o caso dos vestígios patentes no claustro da Sé Catedral), estruturas hidráulicas diversas, as unidades de produção de preparados piscícolas e armazéns (fig. 5). FIG . 5 Aspeto hipotético da urbs Imperial de Felicitas Iulia Olisipo e os vestígios referidos no texto: 1 – Rua de São Mamede; 2 – claustro da Sé Catedral; 3 – antigos Armazéns Sommer/ Eurostars Museum Hotel; 4 – Casa dos Bicos; 5 – Rua dos Fanqueiros, 63-76; 6 - Rua da Madalena, via pública; 7 – Rua da Madalena, 54-60; 8 – Rua dos Bacalhoeiros; 9 – Rua dos Fanqueiros, 51-57; 10 – NARC; 11 – Rua da Conceição; 12 - Banco de Portugal (sede); 13 – Rua Augusta; 14 - Rua de Santa Justa; 15 – Praça da Figueira; 16 – Calçada do Garcia; 17 – Rua das Portas de Santo Antão; 18 – Encosta de Santana; 19 – Rua Vitor Cordon; 20 – Largo da Boa Hora; 21 – Porta de Santo André. Perímetro defensivo identificado - traço contínuo; Perímetro defensivo hipotético - traço descontínuo (© FormaUrbis LAB | CIAUD | FAUL | Pedro Vasco Martins 2019). Na definição dos limites da cidade, ganha um papel relevante o conhecimento existente sobre a localização das necrópoles, que se instalavam fora das muralhas e ao longo das vias de saída. Como já foi assinalado, no lado Oeste e Noroeste da colina do castelo, os vestígios de necrópole estudados no NARC indiciam uma fase inicial do desenvolvimento desta necrópole numa cronologia que pode ter início em período Tardo-Republicano mas com clara incidência contextual nos primeiros tempos do império, entre os principados de Augusto e Cláudio (24 a.C. a 54 d.C.). Na continuação para Norte desta necrópole, na Praça da Figueira, os vestígios arqueológicos apontam para uma ocupação funerária que se inicia na segunda metade do século I d.C., concretamente a partir da década de 60 d.C., provavelmente durante o principado de Nero (Silva, 2012, p. 120). Desta necrópole foram encontrados outros vestígios já mais afastados, concretamente na atual Rua das Portas de Santo Antão (Cabaço et al., 2017, p. 1248), na Calçada do Garcia (Silva, 2002, p. 196) e na Encosta de Sant’Ana (Muralha, Costa e Calado, 2002, p. 246). O abandono da mais antiga necrópole identificada no NARC e o início das deposições funerárias na área da Praça da Figueira, 37 acrescidas da monumentalidade funerária aí registada a partir desse momento, preconizam um fenómeno de expansão urbana para Oeste e Norte através da instalação das unidades de produção de preparados piscícolas. No entanto, a relação deste fenómeno com os limites muralhados da cidade não é absolutamente claro. No lado Este da colina os vestígios da necrópole mais próxima da cidade romana foram identificados, pela primeira vez, na segunda metade do século XVI, nas obras de construção do antigo Palácio Cova, abaixo do Campo de Santa Clara. Estes vestígios, descritos como pequenas abóbadas contendo dentro urnas de vidro e de chumbo cheias de carvões e cinzas (Azevedo, 1652, p. 233), sugerem edifícios funerários de tipo mausoléu ou columbários (monumento de forma variada, constituído por uma sucessão de nichos onde eram depositadas as urnas com as cinzas dos defuntos). Mais recentemente, nas obras do antigo Hospital da Marinha, em área contígua ao palácio, foi identificado o vestígio de um monumento funerário com estas características e datas de funcionamento, manifestamente integrável no mesmo espaço funerário (agradecemos a informação ao arqueólogo Vasco Vieira). Este fragmento de necrópole, que tal como a anterior se desenvolveria ao longo de uma via, encontra-se numa área aparentemente periférica, a uma distância considerável da área urbana pertencente ao interior da cidade, o que torna este limite urbano ainda mais difícil de estabelecer nesta fase dos conhecimentos. Na apreciação dos limites da cidade, no que respeita à urbanização dos espaços, verifica-se que um dos fenómenos mais enigmáticos na análise da estrutura da cidade romana é a ausência de vestígios estruturais na plataforma superior da colina após os finais do século II a.C.. Embora tenham sido exumados em diversas escavações arqueológicas espólios integráveis no período Imperial e Tardio, o que indicia que o espaço 38 terá tido algum tipo de uso, eventualmente simbólico-religioso, do qual não se conhece de momento expressão significativa (Mota, Pimenta e Silva, 2014, p. 152). Esta questão espacial parece relacionar-se diretamente com um fator da maior pertinência para a estruturação da cidade: o abastecimento de água. Para este fim, a engenharia hidráulica romana consideraria o aproveitamento dos melhores recursos hídricos do território e também os disponíveis no espaço urbano e envolvente mais próxima. As nascentes do grupo das Alcaçarias, em Alfama, e os aproveitamentos detetados, em pelo menos duas estruturas de captação de águas infiltradas de meia encosta na Rua Norberto de Araújo, atestam um de vários possíveis sistemas subsidiários para uso corrente em diversos equipamentos e no aprovisionamento em cisternas, fenómeno com longa perduração na Época Moderna e Contemporânea em toda a encosta da colina do castelo (Carvalhinhos, Mota e Miranda, 2017, p. 328). Mas este sistema seria manifestamente insuficiente para colmatar as necessidades hidráulicas da cidade. Um possível indicador é a quantidade de equipamentos balneares já identificados que necessitariam de um caudal de água abundante, dificilmente atingível através deste sistema local. Por conseguinte, a cidade romana seria, provavelmente, abastecida de água por um aqueduto, o qual, a ter existido, teria a sua origem provável na barragem romana identificada em Belas. Desta estrutura hidráulica, integrada no território do município e conhecida desde o século XVI, embora com uma data de construção tardia especulada em torno do século III d.C. (Almeida, 1969, p. 179), partiria o aqueduto que, seguindo parcialmente o itinerário do aqueduto das Águas Livres, conforme foi registado pelos seus construtores no século XVIII (Moita, 1990, p. 10), terminaria na Porta de Santo André, na Costa do Castelo (Almeida, 1969, p. 181; Quintela, Cardoso e Mascarenhas, 1987, p. 123), hipótese recentemente testada, com êxito, através de um modelo virtual (Mascarenhas, Bilou e Neves, 2012, p. 258). No entanto, não se detetaram até ao momento indícios desse ou de outro aqueduto no concelho de Lisboa, nem de uma torre de água na área da Porta de Santo André, nem tão pouco existe memória coletiva ou histórica de arcos elevados ou mães de água romanas. Por coincidência ou não, a cota altimétrica de entrada do aqueduto nas portas de Santo André, uma autêntica portela de passagem natural de onde escorrem as águas para as vertentes antagónicas de Alfama e Mouraria, encontra-se acima de equipamentos importantes para a cidade: das Termas dos Cássios, as termas públicas construídas na plataforma natural da atual Rua das Pedras Negras, edificadas provavelmente no século I d.C. e reconstruídas em 336 d.C.; do teatro, construído no início do século I d.C. e renovado em 57 d.C.; de todas as estruturas e contextos romanos imperiais conhecidos na encosta do castelo. Se terá sido a água, o motivo da escassa ocupação não urbanizada da plataforma superior do castelo em Época Imperial, é a questão que permanece. Os vestígios arqueológicos visitáveis no claustro da Sé Catedral ilustram o que seria o aspeto da ocupação urbana da encosta da colina, pontuada por edifícios privados e equipamentos públicos, delimitada na frente de rio pela muralha e por uma cintura de unidades de produção de preparados piscícolas instaladas linearmente entre a atual Casa dos Bicos e o criptopórtico das termas portuárias da Rua da Prata. Nesta parte baixa da cidade, o prolongamento da área ocupada pelas unidades fabris apresenta um alinhamento diferente, ligeiramente desviado para Noroeste. Enquanto o primeiro alinhamento, a frente portuária, parece ajustar-se ao que seria a margem do rio Tejo, o segundo, independentemente da existência ou não de planos urbanísticos distintos, uma vez que a cronologia de instalação é em ambos os casos de meados do século I d.C., terá tido outro fator determinante, talvez uma condicionante natural. E a mais provável condicionante física nesta zona seria o braço de rio que entrava no vale, entre as colinas do castelo e de São Francisco/ Chiado: o denominado “esteiro da Baixa”, confluindo e alimentado nas zona da praça da Figueira/ Rossio, pelos caudais das linhas de água que desciam dos vales de Arroios e Valverde (sensivelmente o percurso definido pela atual Avenida Almirantes Reis e Avenida da Liberdade, respetivamente). Há uma questão fundamental a colocar quando se pretende compreender a ocupação da atual Baixa em Época Romana: como é que o regime hídrico foi controlado de forma a possibilitar a instalação urbana com as suas diversas componentes? A água continuaria a ser um fator preponderante e incontornável na estruturação do espaço urbano. A área da Baixa é reconhecida historicamente como alagadiça devido às águas das marés, mas também devido às torrentes que desciam pelas encostas e vales a Norte, havendo registos de violentas inundações em Época Medieval e Moderna que se tentaram resolver através de pontes e encanamentos, sendo o registo mais antigo referido em 1181 para o Regueirão de Arroios (Azevedo, 1899/1900, p. 221). As caracterizações geológicas já realizadas na área da Baixa permitiram, em termos sintéticos, aferir que há 3200 anos antes do Presente existia uma praia estuarina com uma situação de colmatação natural já muito acentuada e, sequencialmente, uma unidade de topo, formada quase exclusivamente por materiais relacionados com a atividade humana não anteriores à Época Romana (Almeida, 2004, p. 156). A instalação do circo, provavelmente a partir de meados/ finais do século I d.C. (Silva, 2012, p. 203), da via, da necrópole e de toda a área ocupada pelas unidades de produção em terrenos arenosos e pantanosos, apenas seria possível através de um plano prévio de aterros e de controlo das linhas de água a montante. Um dos vestígios relacionados com os aterros antigos na parte baixa foi reconhecido numa obra 39 realizada, no primeiro quartel do século XX, entre as atuais Rua Augusta, Rua de Santa Justa e Rua dos Sapateiros. Neste local foi encontrada uma estrutura de drenagem, constituída por tegulæ (telhas romanas) encaixadas em “v” invertido, instalada sobre a praia antiga e coberta com 8 m de espessura de argila compactada (Silva, 1922, p. 183). Também nas escavações do edifício sede do Banco de Portugal, pese embora a interpretação realizada no terreno como tratando-se de níveis de aluvião sobre um extenso areal (Rocha, 2013, p. 1012), a colmatação de Época Romana apresenta características de aterro programado numa área já muito próxima da colina de São Francisco. Este tipo de aterros programados, por vezes com objetivos urbanísticos e realizados com materiais grosseiramente triados e calibrados, não são inéditos no registo arqueológico da cidade, tendo sido identificados, embora com características distintas, numa colmatação também de carácter urbanístico na meia encosta entre o teatro e as Termas dos Cássios (Mota et al., 2016/2017, p. 198). Por outro lado, a colmatação antrópica nesta área do Banco de Portugal, certamente exterior ao limite Ocidental da cidade, deverá ser apreciada no conjunto de outros três vestígios identificados nas imediações, ficando aqui de fora a presumível Domus (residência) suburbana descoberta na Rua Vítor Cordon (Valongo e Pimenta, 2017, p. 117), e que em Época Romana se encontrariam em área correspondente à margem direita do esteiro: os precários vestígios de muros romanos registados no Largo da Boa-Hora (agradecemos a informação à arqueóloga Alexandra Krus); a estrutura de caráter habitacional ou oficinal escavada na atual Rua do Ouro, 133-145, para a qual foi deduzida uma data de construção dentro do século II d.C. e abandono entre os finais do século III/ inícios do século IV d.C. (Silva e Valongo, 2017, p. 133); a robusta estrutura de 8,24 m de espessura, com talude para Oeste, identificada em 1859 na Rua da Conceição, defronte da Rua dos Sapateiros (Andrade, 40 [1859] 1963, p. II). Com uma orientação NE-SO, provavelmente similar à do criptopórtico e à das estruturas do NARC, de entre as quais se conta uma via secundária lajeada que deverá corresponder a um capilar portuário dificilmente a uma ponte em área tão próxima da margem do rio -, apresenta-se como um claro limite que poderá estar relacionado com o perímetro da cidade romana, deixando no exterior os demais vestígios encontrados no Banco de Portugal e Rua do Ouro. Para além dos aterros programados, o controlo das linhas de água seria essencial, sob pena de toda a parte Baixa ficar exposta às enxurradas constantes. O circo, instalado sobre a linha de água de Valverde, estaria particularmente exposto. De acordo com a hipótese já anteriormente preconizada (Carvalhinhos, Mota e Miranda, 2017, p. 332), esta localização levaria certamente à execução de um plano prévio de obras a montante que poderia passar por soluções de encanamento ou de represamento, entre outras, sendo natural que se utilizassem técnicas térreas típicas dos sistemas de regadio que são muitas vezes impercetíveis no registo arqueológico (Morales Gil, 1992, p. 16). A este propósito, refira-se as descobertas dos vestígios da pars fructuaria (parte produtiva e de armazenagem) de uma villæ romana, no Convento de Santa Joana (Rua de Santa Marta), aparentemente associados aos vestígios de uma provável albufeira de barragem ou represa (agradecemos a informação do arqueólogo Artur Rocha). Num cenário plausível, esta, de várias possíveis estruturas hidráulicas a montante, poderia cumprir uma função de contenção para abastecimento, controlando os caudais, e, simultaneamente, integrar o sistema gravítico de abastecimento de água à cidade. Importa verificar que, após a desativação do equipamento, os níveis de colmatação sobre os vestígios do circo, cuja data de abandono não é clara, eram compostos por depósitos argilosos talvez resultantes das enxurradas cíclicas (Sepúlveda et al., 2002, p. 204). Esta constatação estratigráfica, em níveis isentos de material arqueológico, poderá demonstrar que após o abandono do equipamento público, também se terá descurado o sistema que o servia, voltando as linhas de água aos seus débitos naturais não controlados. Qualquer que tenha sido a solução encontrada, a ocupação da parte baixa da cidade, sobretudo a área da margem do esteiro, teve necessariamente de ser preparada para a instalação das estruturas e equipamentos. O circo romano de Lisboa apresenta-se também como um claro exemplo da notável continuidade formal entre a cidade romana e a cidade medieval, tendo as provavelmente notáveis ruínas deste antigo edifício romano sido suficientes para, e apesar dos elevados níveis de colmatação, em grande medida determinar a configuração espacial da praça medieval do Rossio, sua herdeira. Esta proximidade entre as formas urbanas da cidade romana e as da cidade medieval evidentes no circo, bem como noutros locais, contribuíram para a hipótese de a origem da peculiar configuração semicircular de uma parte do tecido urbano de Alfama resultar da apropriação das ruínas do anfiteatro romano de Felicitas Iulia Olisipo. Ainda que os indícios sejam ténues, é possível através dos mesmos construir uma hipótese coerente sobre a implantação do anfiteatro (Martins, 2014, p. 167). O hipotético edifício teria uma dimensão média, apresentando uma implantação semelhante a outros anfiteatros peninsulares construídos sobre locais com uma topografia acentuada, como nos casos dos anfiteatros de Mérida ou Condeixaa-Velha. Estes locais permitiriam apoiar parte das bancadas (caveæ) sobre o terreno, sendo, no caso de Lisboa, a outra parte suportada através de fortes muros e arcadas, posteriormente desmanteladas para reaproveitamento da sua silharia noutras construções, eventualmente em troços de muralha próximos como o que se contempla na Rua Norberto de Araújo (Carvalhinhos, Mota e Miranda, 2017, p. 333). Teriam contudo subsistido elementos suficientes para influenciar a forma do tecido urbano que se sobrepôs aos vestígios do anfiteatro, e que se mantêm na atualidade. O tecido urbano de Alfama destaca-se em Lisboa pelo pouco impacto que a reconstrução pombalina terá tido, mantendo em grande medida as formas medievais que se sobrepuseram diretamente à cidade Imperial e Tardia. Esta continuidade permitiu a construção de hipóteses tais como a do anfiteatro em Alfama. Contudo é também possível encontrar no atual tecido urbano na encosta do castelo um conjunto de alinhamentos que indicam uma continuidade entre a cidade Romana, Tardia, Medieval e até mesmo, em algumas áreas, Pombalina. Estes alinhamentos sugerem a existência de uma matriz ortogonal onde se pode encontrar uma métrica rigorosa (Silva, 2005, p. 24) que, tal como noutras cidades romanas, estruturaria o urbanismo. Contudo quando esta matriz é confrontada com a grande quantidade de pequenos fragmentos de estruturas já recuperados arqueologicamente, bem como com a cartografia existente pré-reconstrução pombalina torna-se aparente uma outra imagem urbana. Se a preposição de partida assumia a existência de um urbanismo romano ortogonal posteriormente apropriado e deformado pelo urbanismo medieval, tal como inúmeras cidades com origem romana e grega desde a Síria à Grã-Bretanha, na verdade a comparação entre a planimetria arqueológica dos vestígios romanos e a cartografia pré-pombalina permitiu verificar que os alinhamentos destas estruturas se encontram mais próximos dos existentes na cidade medieval e pré-pombalina que da hipotética matriz ortogonal romana. Começa assim a transparecer com cada vez maior clareza a imagem de uma cidade construída segundo o modelo ortogonal romano mas sem o rigor existente, por exemplo, nas cidades coloniais fundadas de raiz (ex nihilo), em que o tecido urbano apresentaria uma composição ligeiramente irregular ou “conformada”, talvez 41 FIG . 6 Pormenor da planta pré e pós terramoto na zona Oriental da Baixa Pombalina com o alinhamento das estruturas romanas conhecidas com o urbanismo medieval na Rua dos Fanqueiros, 51-57, Rua dos Fanqueiros, 68-76; Rua da Madalena (via pública); Rua da Madalena, 54-60; Rua dos Bacalhoeiros, 32-34 (© FormaUrbis LAB | CIAUD | FAUL | Pedro Vasco Martins 2019). a condicionantes topográficas ou ao ajuste a estruturas pré-existentes com origem na cidade Republicana ou mesmo anteriores. Há exemplos claros deste fenómeno na comparação dos alinhamentos existentes nos diversos tanques de cetárias recuperados na Baixa ou mesmo no peculiar desajuste existente entre a orientação do teatro romano e a via imediatamente abaixo no claustro da Sé (fig. 6). Em contraste com a irregularidade do restante tecido, o alinhamento da frente portuária da cidade com início a Oriente na Casa dos Bicos e término a Ocidente no criptóportico das termas portuárias aparece com notável rigor ao longo dos 350 m que medeiam estes dois pontos, um sinal de uma provável operação pensada e construída num único momento, de consolidação ou avanço da margem da cidade sobre o rio. 42 Na Antiguidade Tardia, uma longa fase que se estende desde os finais do século II d.C. ao VII d.C., a cidade imperial de Felicitas Iulia Olisipo, a par de uma extraordinária mas contínua dinâmica económica e comercial, entrará em decadência urbana e arquitetónica, fenómeno rastreável na desmonumentalização e desativação de espaços e equipamentos públicos pagãos. Logo na viragem do século II para o século III d.C., regista-se uma perturbação nos fluxos de exportação de preparados piscícolas, uma contração económica, seguida de uma florescente retoma ao longo da centúria seguinte (Fabião, 2009a, p. 571). Neste quadro económico assiste-se, a partir do século III d.C., a remodelações e transformações nos espaços fabris, integradas numa segunda fase de laboração, ilustradas, a título de exemplo, no caso dos vestígios do NARC, pela desativação de cetárias e áreas de armazenagem para a instalação de um balneário associado a uma habitação (Bugalhão, 2001, p. 66) ou na reorganização do espaço da unidade de produção escavada no interior da Casa dos Bicos (Filipe et al., 2016, p. 431). Embora não se possa generalizar a todo o território nacional, considerando outras cronologias de laboração no século VI d.C. (Fabião, 2009b, p. 29), o abandono destes equipamentos em Olisipo parece ter decorrido no século V d.C.. No NARC constatou-se a continuidade da ocupação do espaço, embora já não associado às cetárias, nos finais do século V d.C. e na centúria seguinte (Grilo, Fabião e Bugalhão, 2013, p. 851). Na área adjacente, também os vestígios das estruturas relacionadas com o criptopórtico, que se sabe agora terem pertencido às termas portuárias, construídas em meados do século I d.C., revelaram terem sido desmanteladas nos finais do século IV/ inícios do século V d.C. (Mota e Martins, 2018, p. 86). Estas áreas agora abandonadas voltariam a ser exteriores à cidade e ao uso sepulcral, fenómeno não datado atestado num tanque abandonado do NARC (Bugalhão, 2001, p. 161), em locais como o cruzamento da Rua de São Nicolau com a Rua dos Douradores, onde foram identificados três enterramentos, datáveis do século VI d.C., eventualmente associados a um templo cristão (Casimiro e Silva, 2013, p. 862) e, no lado Oriental da cidade, uma sepultura instalada nas termas abandonadas da Adiça (Silva e Santos, 2017, p. 249), exterior a uma expectável porta da muralha tardia, e no pátio da FRESS, numa área próxima às medievais Portas do Sol, uma outra sepultura do século III d.C. (Guerra, 2006, p. 277) (fig. 7). De uma forma geral, entre os finais do século III e os inícios do século V d.C., ocorreram vários fenómenos urbanísticos que transformaram a cidade. O mais evidente e estruturante foi a construção da muralha tardia, uma robusta estrutura normalmente com 5 m de espessura, que terá retraído o espaço urbano. A questão torna-se mais complexa quando se tenta compreender quando foi edificada esta estrutura que tradicionalmente se pretende colocar nos finais do século III/inícios do século IV d.C.. O declínio da cidade poderá ter começado logo nos finais do século III d.C., conforme sugere o fenómeno de desmantelamento dos monumentos funerários da necrópole que ladeava a via Norte de saída da cidade, detetada na atual Praça da Figueira, para aproveitamento de pedra noutras construções, provavelmente numa muralha defensiva (Silva, 2012, p. 399). Nos vários locais onde se identificaram os seus vestígios, foram aferidas datas divergentes. Na Casa dos Bicos e no Pátio da Senhora da Murça/ Rua de São João da Praça foi datada nos inícios do século IV d.C. (De Man, 2008, p. 287). Nos antigos Armazéns Sommer, entre o século IV e o século V d.C. (Gaspar e Gomes, 2007, p. 694), assim como na Rua Norberto de Araújo (Mota, Carvalhinhos e Miranda, 2018, p. 505). No Arco de Jesus, local onde a muralha desenha uma inflexão sugestiva em relação à praia antiga, foi também identificada uma porta da muralha tardia (Leitão, 2014, p. 73), sem que se tenha conseguido obter data para a sua construção, embora deva estar cronologicamente associada à muralha contígua que se desenvolve no interior dos antigos Armazéns Sommer. A interpretação cronológica e funcional destes fenómenos de amuralhamento tardios é discutível, tornando-se necessária, como para tantos outros casos em Lisboa, a obtenção de mais informação arqueológica. Não obstante, tentou-se já encontrar noutros locais uma lógica para este fenómeno de finais do século III/ inícios do século IV d.C. na estratégia imperial de arrecadação e transporte da annona militaris (imposto em bens alimentares para o exército romano), aparentemente percetível nas cidades do Norte e Noroeste Peninsular (Fernández Ochoa, Morillo e Salido Domínguez, 2011, p. 266). Esta visão não é consensual, uma vez que esta estratégia imperial não terá sido global, tendo 43 a Hispânia escassa importância neste sistema e total ausência a isso referente nas fontes documentais disponíveis (Arce, 2011, p. 294). Por outro lado, a iniciativa local terá tido um papel importante neste processo, atendendo-se às leis que continuamente exigiam reparações e adornos das muralhas, procurando a recuperação do splendor civitas (Arce, 2011, p. 295). Nesta ordem de ideias, a que se poderia associar no caso olisiponense o já referido reflorescimento económico ocorrido ao longo do século IV d.C., importa notar que foi comemorada em 336 d.C. a reconstrução ou renovação de um dos equipamentos públicos da cidade, as Termas dos Cássios. O fenómeno dos finais do século IV/ inícios do século V d.C., um período de atividade edilícia de caráter defensivo, poderá relacionar-se com a rotura da fronteira renana e com as invasões iminentes (Fernández Ochoa, Morillo e Salido Domínguez, 2011, p. 269). Este contexto de amuralhamento poderia também integrar-se num período pós-romano, do tipo emeritense, à semelhança do que ocorreu na capital provincial (De Man, 2008, p. 291). A retração do perímetro muralhado e a redefinição do uso dos edifícios e espaços urbanos, a partir do século IV, com evidente expressão no século V d.C., pode não ter significado a decadência da cidade. Mas teve certamente consequências urbanísticas diretas. A este respeito detetou-se arqueologicamente a privatização e compartimentação de espaços públicos, como nas bancadas do teatro (Diogo, 1999, p. 87), nas vias públicas descobertas no claustro da Sé (Amaro, 1995, p. 340) e nos antigos Armazéns Sommer (Ribeiro et al., 2017, p. 234) ou nas Termas dos Cássios (Silva, 2012, p. 280), a título de exemplo, fenómeno que pode, eventualmente, ser explicado pela pressão urbana, mas também certamente pela imposição do cristianismo ao paganismo, ao longo do século IV d.C., que haveria de culminar com as destruições massivas de templos, estátuas e outros equipamentos públicos no final da centúria, no tempo de Teodósio (Maraval, 44 1997, p. 40). Os acontecimentos mais fraturantes da época, como a divisão do império entre Ocidental e Oriental, em 395 d.C., a primeira incursão alana, em 409-411 d.C., o domínio suevo da cidade, em 469 d.C., e, poucos anos depois, a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C., marcaram certamente a vida urbana mas não a erradicaram. Paralelamente, a conjuntura económica foi positiva, rastreando-se uma dinâmica visível nos ritmos de comércio do século V e VI d.C. com o Mediterrâneo Oriental (Fabião, 2009b, p. 33). Senão antes, pelo menos a partir de 569 d.C., em plena Época Visigótica, constata-se um período de aparente prosperidade durante o qual se terão erguido diversos edifícios religiosos na cidade que se chamava então Olysipona, talvez até um templo no local onde no século XII se viria a construir a Sé Catedral, a julgar por um dos elementos pétreos integrados na sua parede (Alarcão, 1994, p. 63). Apesar de todos os elementos arquitetónicos e artísticos de edifícios religiosos desta época se encontrarem descontextualizados, o estudo do conjunto existente, apoiado em evidências arqueológicas circunstanciais, indicia programas construtivos com expressão, como a igreja que poderá também ter existido na meia encosta entre o teatro e as Termas dos Cássios, na atual Rua de São Mamede (Fernandes e Fernandes, 2014, p. 239). A partir de 713 d.C., o domínio islâmico traria uma nova orgânica ao urbanismo da cidade tardia, adaptando-a às novas exigências monumentais e da encenação de poder. Entre a continuidade e a rutura, certo é que continuamos a perscrutar o urbanismo medieval inaugurado neste período em busca dos traços que desenharam Felicitas Iulia Olisipo. Considerações finais O conhecimento arqueológico sobre a cidade de Felicitas Iulia Olisipo é ainda insuficiente FIG . 7 Aspeto hipotético de Olysipona e os vestígios referidos no texto: 1 – Largo de São Mamede; 2 – claustro da Sé Catedral; 3 – Pátio da Senhora da Murça; 4 – Rua da Adiça; 5 – Rua de São João da Praça; 6 – antigos Armazéns Sommer/ Eurostars Museum Hotel; 7 – Arco de Jesus; 8 – Casa dos Bicos; 9 – Rua dos Douradores; 10 – NARC; 11 - FRESS. Perímetro defensivo identificado - traço contínuo; Perímetro defensivo hipotético - traço descontínuo (© FormaUrbis LAB | CIAUD | FAUL | Pedro Vasco Martins 2019). para obter uma visão urbana assente em pressupostos científicos obtidos através da pesquisa no terreno. Esboçar a síntese dos conhecimentos, ainda que de uma forma generalista e para um público alargado, continua a ser um exercício especulativo e de reflexão, subsistindo a partir de vários quadrantes a benéfica criação de cenários plausíveis de acordo com perspetivas diversas e consoante as abordagens ao tema. Neste sentido, congregar a informação arqueológica existente pode tornar-se, se devidamente centralizada e disponibilizada institucionalmente, uma ferramenta de trabalho para todos os intervenientes, resultando num processo contínuo que procura ancorar-se nas descobertas de estruturas e contextos essenciais para a extrapolação de outras possíveis realidades urbanísticas numa cidade tão profundamente afetada pelos inúmeros fenómenos de subtração de informação ao subsolo. A resiliência dos traços, ou de alguns deles, permite simultaneamente complementar a visão arqueológica do urbanismo antigo através da recuperação de formas urbanas que resistem ao passar do tempo e da ação humana. Em suma, a compreensão do urbanismo antigo, da cidade passada, está inevitavelmente dependente da futura investigação no terreno e da necessidade de construir modelos de síntese coerentes, com as poucas peças do enorme “puzzle” que existem à disposição, não esquecendo que também a sorte das descobertas fulcrais é um ingrediente fundamental neste processo. 45