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A estrutura urbana
da cidade portuária
NUNO MOTA,
PEDRO VASCO MARTINS
Recuperar a cidade romana de Lisboa não
se afigura tarefa simples nem consensual.
Muita desta dificuldade reside na escassez de
informação útil que permita percecionar o
conjunto urbano nas suas diversas componentes. Embora o atual volume de intervenções
arqueológicas no centro histórico, alavancado
pela dinâmica de reabilitação urbana, seja
elevado, os vestígios estruturais conhecidos
continuam a não contemplar equipamentos
essenciais para a sua compreensão, como é o
caso do fórum, ou insuficientemente identificados para o estabelecimento dos seus limites,
como é o caso das muralhas. A estas componentes em falta, juntam-se as vias urbanas e
outros circuitos estruturados, como os das
águas ou saneamento, os quais ajudam a definir alinhamentos relacionáveis com a implantação dos diversos equipamentos, sejam eles
públicos ou privados, da fonte monumental ao
quarteirão habitacional. Também as necrópoles, um dos mais abundantes tipos de vestígios
exumados nas intervenções arqueológicas
lisboetas, que por norma se situam fora do
perímetro urbano e permitem aferir limites plausíveis para a cidade, são parcialmente
conhecidas na sua extensão, criando dúvidas
sobre os limites que permitiriam identificar.
Quando se adiciona a incontornável dimensão cronológica à escassa informação útil esta
diminui drasticamente passando a distribuir-se por três fases formais distintas que abrangem sete séculos de história urbana sequencial
e mutável (cidade Republicana, Imperial e
Tardia), não sendo, em boa parte dos casos,
clara a sua integração, normalmente devido
a limitações dos trabalhos de arqueologia no
terreno. Estas limitações, intrinsecamente
associadas à arqueologia preventiva e empresarial (por vezes denominada de reativa ou de
acompanhamento), dependente das cotas de
afetação definidas nos projetos de reabilitação,
têm inviabilizado, salvo raras exceções, uma
recolha de dados mais exaustiva e, consequentemente, debilitado a investigação arqueológica em pontos-chave para o conhecimento da
cidade antiga. Noutra ordem de ideias, e pese
embora o aumento da quantidade de intervenções arqueológicas desenvolvidas pelos
múltiplos intervenientes, sobretudo privados,
as tentativas de sintetização da informação
existente esbarram na legítima propriedade
científica inerente aos trabalhos no terreno,
tornando-se assim indisponível aos demais
investigadores e, consequentemente, tornando
também as sínteses publicadas incompletas
ou desatualizadas.
Por outro lado, a realização de uma interpretação do urbanismo da cidade romana
a partir da sua morfologia contemporânea,
considerando que a constante sobreposição
de novas estruturas, intrínseca à construção
do objeto urbano tende a preservar parcialmente as estruturas antigas permitindo o seu
estudo, é também no caso de Lisboa particularmente difícil. A dificuldade deste tipo
FIG . 1
Planta com os vestígios romanos conhecidos no Século XIX (publicada em Castilho, 1884, p. 265).
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de análise resulta de vários fatores, de entre
os quais podemos destacar a antiguidade do
aglomerado populacional com a sobreposição de inúmeros momentos construtivos, a sua
permanente importância no contexto regional
geradora de constantes dinâmicas profundamente transformadoras da sua forma e, finalmente, a existência de um evento de quase total
reformulação urbana através da reconstrução
pombalina pós sismo de 1755, que terá apagado
importantes evidências das “Lisboas” antigas.
Se por um lado, após a destruição da cidade
joanina, se identificaram pela primeira vez
importantes equipamentos da cidade romana
como o teatro ou as termas dos Cássios, por
outro, os desaterros realizados para a implantação do novo plano urbanístico pombalino,
com as inerentes alterações topográficas, erradicaram um enorme e irrecuperável volume
de informação quer de natureza arqueológica, quer sobre a morfologia urbana da cidade
pré-pombalina e medieval, herdeiras por
continuidade da cidade romana.
Não obstante os aspetos lacunares que
pautam em grande medida a análise dos
dados provenientes da arqueologia, fragmentada pela natureza da abordagem no terreno,
e da morfologia urbana, numa cidade milenar historicamente sujeita a profundas transformações urbanísticas, importa proceder à
interpretação possível e plausível reunindo
as peças do “puzzle” disponíveis e relevantes
para o efeito.
A perceção da fisionomia
da cidade antiga
O enquadramento geográfico e as características físicas do espaço em que uma cidade se
instala condicionam em menor ou maior grau
a sua configuração. No caso de Lisboa, a colina
do castelo está na génese da ocupação urbana
que se viria a estender pelas suas faldas e, mais
tarde, pelos vales e colinas circundantes. Esta
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topografia, do tipo “acrópole”, é caracterizada
por uma elevação com plataforma no topo,
envolvida por linhas de água e zonas escarpadas em todas as vertentes, desenvolvendo-se para Sul de forma menos acentuada, com
terraços naturais, e delimitada pela margem
do rio. A geomorfologia da colina, com camadas alternadas de calcário, argila e areias inclinadas na direção do rio, forma um aquífero de
infiltração que é carregado na escarpa a Norte
e percorre o seu interior. Tradicionalmente
aproveitadas para condução e abastecimento
em diversos pontos da encosta, é intercetada
no sopé pela falha geológica das Alcaçarias,
onde brotam as águas quentes que atribuíram
em Época Medieval o respetivo topónimo ao
bairro de Alfama.
Seria esta a área propícia para a instalação
de um povoado na Idade do Ferro, que ocuparia
em fase pré-romana a colina e as praias flúvio-estuarinas da frente de rio e da margem do
“esteiro de Baixa”, marcando o início da instalação urbana (Arruda, 2015, p. 288). Olisipo
teria sido, aliás, em termos de área ocupada,
o maior povoado orientalizante do atual território português (Arruda, 2002, p. 129). É facilmente constatável a importância estratégica
do local quer pelas suas condições defensivas
naturais, o domínio visual que detém sobre o
território envolvente e sobre a principal via de
circulação, o rio Tejo, com o seu estuário, um
verdadeiro mar interior ligado ao Oceano por
um canal alargado na desembocadura. Esta
situação geográfica, um porto natural de eleição na difícil navegação da fachada atlântica e
uma entrada para o interior do território através do mais extenso rio da Península Ibérica,
estiveram certamente na base da escolha do
local para a instalação de Olisipo, um oppidum com evidentes vantagens defensivas e
virado para o rio e para o mar, vocacionado
para a atividade comercial, atestada nas precoces relações com o Mediterrâneo Oriental.
Ao longo do tempo a cidade foi perspetivada por diversos autores com base nas
FIG . 2
Planta com os locais dos achados epigráficos, principais vias antigas e perímetro hipotético da cidade romana
(publicada em Vieira da Silva, 1944, Anexo).
evidências que tinham à sua disposição. Nos
séculos XVI, XVII e XVIII estudiosos, como
Francisco de Holanda, D. Rodrigo da Cunha,
Luís Marinho de Azevedo, D. Tomás Caetano
de Bem ou Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, entre outros, dedicaram-se à identificação, recolha e registo de antiguidades romanas
numa ótica mais relacionada com o revivalismo da arte e arquitetura clássica. A partir do
século XIX, os estudos tenderam a empreender o mapeamento desses vestígios conhecidos e a estruturar o espaço de forma a obter
uma imagem urbana. Este novo ciclo foi inaugurado por Júlio de Castilho, o pai da Olisipografia, que coligiu os poucos dados disponíveis
pela primeira vez, em 1884, no Tomo I da sua
obra enciclopédica Lisboa Antiga (Castilho,
1935², p. 265) (fig. 1).
Augusto Vieira da Silva, engenheiro militar de formação e ávido olisipógrafo conhecedor da cidade antiga, dedicou-se à produção
das sínteses cartográficas possíveis à época.
Em 1939, publicou uma planta baseada na de
Júlio de Castilho (Silva, 1987³) e, em 1944, no
âmbito do estudo dedicado à epigrafia, uma
outra planta onde apresentou a sua visão da
cidade romana com os seus limites e traçados urbanos conjeturais definidos a partir das
ruas estruturantes da cidade medieval (Silva,
1944), intuindo precocemente a proximidade
formal que as mesmas teriam, numa lógica
de continuidade por oposição à rutura criada
pelo urbanismo pombalino (fig. 2).
Foi também a partir desta planta que surgiu
no Museu da Cidade de Lisboa uma proposta
de carácter expositivo (Moita e Leite, 1986, p.
31
FIG . 3
Planta com os vestígios arqueológicos de Época Romana e indícios de centuriação urbana
(publicada em Mantas, 1990, p. 166, Fig. 2).
56), acrescentando mais elementos entretanto
identificados e considerados relevantes, que
permitia enquadrar o grande público com as
peças expostas nas salas do Palácio Pimenta.
Em obra consagrada às cidades marítimas da Lusitânia, surge esboçada a primeira
tentativa de interpretação do urbanismo com
recurso a elementos arqueológicos aparentemente seguros, fotointerpretação e plantas
antigas, procurando os indícios da centuriação urbana, ou seja, da malha ortogonal
que estaria na base da instalação dos diversos componentes da cidade (Mantas, 1990,
p. 166). Esta foi a abordagem que, até então,
procuraria a imagem urbana, embora parcial,
do que seria a cidade romana (fig. 3).
A planta serviria como base para a implantação das estruturas arqueológicas descobertas entre 1990 e 1995, nomeadamente do
fragmento de urbanismo patente no claustro
da Sé, do circo (hipódromo monumental com
outras componentes lúdicas) e dos vestígios
32
de unidades de produção de preparados piscícolas (instalações fabris providas de tanques
- cetárias - para o processamento de salgas
e molhos de peixe, distribuídas ao redor de
um pátio central) na Baixa Pombalina, sobretudo os resultantes da intervenção na Rua
Augusta (futuro Núcleo Arqueológico da Rua
dos Correeiros - NARC) e na Casa dos Bicos
(Amaro, 1995, p. 338).
Logicamente, a perceção da cidade foi
aumentando consoante o acumular da informação arqueológica no terreno. Em 1997, surge
uma síntese de natureza quantitativa que, para
além de fazer a discussão com os predecessores, pretendeu destrinçar as fases marcantes
dos projetos urbanísticos da cidade romana,
procurando as inevitáveis transformações
urbanas que teriam acompanhado eventos como as reformas jurídico-administrativas e outras dinâmicas funcionais, com base
nos dados contextuais disponíveis e na orientação das estruturas conhecidas (Silva, 1997,
p. 63). Apoiado em dados publicados e inéditos, surgiu, em 2012, uma abrangente visão de
síntese dos vestígios até então identificados em
Lisboa e a análise urbana da cidade romana, na
qual se conciliam os dados arqueológicos com
uma proposta de parcelamento mais desenvolvida (Silva, 2012, p. 198).
Com o advento das novas tecnologias, novas
abordagens surgiram. Uma maqueta virtual
da cidade romana de Lisboa (Figueiredo, 2014,
p. 13) fez a sua entrada na sétima arte através do documentário “Fundeadouro Romano
em Olisipo” produzido e realizado por Raul
Lousada, em 2016.
Os vestígios arqueológicos,
as interpretações e as supostas
localizações
Nos últimos anos aumentou exponencialmente a descoberta de estruturas romanas.
Este processo gerou uma elevada quantidade
de informação de complexa gestão e análise,
atrasando a sua divulgação em tempo útil e,
consequentemente, a sua disponibilização ao
público e à comunidade científica. Se a dificuldade de obtenção no terreno de cronologias finas para as estruturas exumadas, cria
um sério obstáculo à definição de sequências
na evolução urbana, também, por outro lado,
o desconhecimento da localização ou existência de certos edifícios e equipamentos públicos, incontornáveis para a compreensão da
cidade romana, dificultam o processo de construção da imagem da cidade que é, afinal, um
processo expectante e demorado. Por exemplo,
como já foi referido, não se conhece o local onde
estava o fórum, a praça principal e o centro
político, administrativo e religioso da cidade,
onde convergiam as ruas principais, o cardo
e o decumanus. Sabendo-se deste equipamento, a visão urbana seria, manifestamente,
mais clara. Outro equipamento importante
para a definição da cidade e mal caracterizado
é a muralha, a qual estabelece, logicamente, o
limite da cidade, mas acima de tudo o seu perímetro simbólico e que representava a fronteira
sagrada da cidade, o pomerium.
A estrutura urbana da Época Romana Republicana, enquadrável entre os anos de 138 a.C.
e 27 a.C., o início do Período Imperial, é mal
conhecida porque há poucos elementos estruturais que a ilustrem. É certo que os romanos
chegados em 138 a.C., liderados por Décimo
Júnio Bruto, governador da então Província
da Ulterior, impuseram um novo urbanismo.
Este fenómeno, ocorrido durante o processo
de conquista do território, é visível nos vestígios arqueológicos, nas estruturas edificadas
pelo contingente itálico, fortemente relacionáveis com o estabelecimento militar fortificado em áreas anteriormente pertencentes ao
povoado indígena, sobretudo no terço superior
da colina (Silva, 2014, p. 187; Pimenta et al.,
2014, p. 144; Carvalhinhos, Mota e Miranda,
2017, p. 315). Se um certo determinismo
geográfico teria até então pautado a instalação
humana, assistia-se a partir de agora à capacidade possibilista do novo ocupante com a
introdução de um plano divergente e teoricamente padronizado. Daqui em diante o urbanismo e a arquitetura romana iriam tentar
manipular o espaço e o ecossistema.
Inicialmente, o estabelecimento militar
Romano Republicano, o acampamento fortificado instalado na plataforma superior da
colina do castelo sobre o povoado indígena
pré-existente, ocuparia a área de topo e é
plausível pensar que se desenvolveria na direção do rio, delimitando-se na crista de afloramentos calcários da meia encosta Este e
Sul, circuito onde séculos mais tarde se iria
instalar a muralha tardia e medieval, a julgar
pelas evidências de taludes e fossos defensivos
romanos identificados na Fundação Ricardo
Espírito Santo e Silva - FRESS (Silva, 2014,
p. 187), no Largo do Contador Mor e na Rua
Norberto de Araújo (Carvalhinhos, Mota
e Miranda, 2017, p. 315). A Oeste é provável
33
FIG . 4
Aspeto hipotético do oppidum Romano Republicano de Olisipo e os vestígios referidos no texto:
1 – Beco do Forno do Castelo; 2 – Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva; 3 – Largo do Contador Mor;
4 – Rua Norberto de Araújo; 5 – Teatro Romano; 6 – claustro da Sé Catedral; 7 – Pátio da Senhora da Murça;
8 – Rua de São João da Praça; 9 – antigos Armazéns Sommer/ Eurostars Museum Hotel; 10 – NARC. Perímetro
defensivo identificado - traço contínuo; Perímetro defensivo hipotético - traço descontínuo
(© FormaUrbis LAB | CIAUD | FAUL | Pedro Vasco Martins 2019).
que se contivesse nas plataformas naturais
dos Loios e da Verbena, ladeada pela atual Rua
Bartolomeu de Gusmão. A plataforma natural com início a Norte no castelo e término
a Sul na zona dos Loios, Rua de Santiago e
Miradouro de Santa Luzia apresenta ainda
hoje um urbanismo formalmente distinto da
restante cidade, podendo este ser dividido em
duas unidades morfológicas distintas separadas pelo Largo do Chão da Feira. Por um lado
a área de encosta compreendida entre esse
Largo e o Miradouro de Santa Luzia apresenta
uma disposição aproximadamente radial,
desenhando um leque de ruas que convergem em direção ao Largo do Chão da Feira.
Por outro lado, o espaço correspondente à
Alcáçova islâmica parece ter tido origem num
urbanismo ortogonal, desenhando um grande
quadrado com 140 m de lado, talvez uma
persistência de estruturas urbanas Romanas
Republicanas. O vestígio mais relevante desta
34
ocupação foi descoberto na Rua do Beco do
Forno do Castelo, onde foi parcialmente escavado um compartimento de planta retangular
que utilizava técnicas e materiais construtivos itálicos, sem que no entanto se conseguisse interpretar cabalmente a sua função no
interior do estabelecimento militar (Pimenta
et al., 2014, p. 144). Ainda antes do final do
século II a.C. as estruturas romanas nesta
área, pelo menos na plataforma no topo da
colina, teriam já sido desmanteladas e a área
abandonada em prol da ocupação mais efetiva
da encosta e margem do rio, a área portuária
(Pimenta, 2014, p. 57).
Os contextos arqueológicos na meia
encosta e parte baixa, datáveis de finais do
século II a.C. e do século I a.C., atestam a nova
estruturação urbana e a dinâmica comercial
da cidade Romana Republicana de Olisipo.
Vestígios estruturais dispersos, como os identificados nas escavações do teatro romano,
claustro da Sé Catedral, na Casa dos Bicos,
no Pátio da Senhora de Murça e na Rua de
São João da Praça (Pimenta, 2014, p. 55), ilustram este fenómeno. A área portuária implantada junto ao rio estaria já certamente provida
de instalações de armazenagem associadas a atividades comerciais e industriais que
terão provavelmente alavancado o desenvolvimento urbano (Pimenta, Calado e Leitão,
2005, p. 331). Um compartimento datado de
Época Romana Republicana edificado junto à
praia antiga, sobre as estruturas da Idade do
Ferro, nos antigos Armazéns Sommer, atual
Hotel Eurostars Museum, situado na Rua do
Cais de Santarém (Ribeiro, Neto e Rebelo,
2019, p. 161), poderá ajudar a consubstanciar
esta imagem do urbanismo portuário. Esta
dinâmica portuária é, porém, extrapolada
sobretudo através de contextos com espólios
arqueológicos relacionáveis com a importação
de produtos com fins comerciais, mas também
para o abastecimento institucional das legiões
envolvidas na guerra civil romana da qual
o território envolvente também foi palco
(Pimenta, 2007, p. 230). O urbanismo antigo
do espaço compreendido entre a meia-encosta
e a margem do rio teria provavelmente uma
natureza irregular e pouco consolidada tendo
sido parcialmente apagado pela composição
da cidade (fig. 4).
A Oeste, no que seria ainda a área portuária, na margem esquerda do esteiro, hoje em
parte ocupada pela Baixa Pombalina, concretamente no NARC, foi identificada parte de
uma necrópole que terá funcionado sobretudo
entre os finais do século I a.C. e os meados do
século seguinte, sendo provável a utilização
do espaço funerário desde os finais da República (Bugalhão et al., 2013, p. 243). Considerando que os espaços funerários são exteriores
à cidade, este vestígio restringe a área urbanisticamente ocupada nesta fase pré-imperial, extrapolando-se um limite que seria
ainda mais retraído, tendo em conta o desenvolvimento da necrópole ao longo da via para
Norte, detetada na Praça da Figueira, aqui já
com uma cronologia de instalação a partir de
meados do século I (Silva, 2012, p. 120).
Após pouco mais de um século passado
sobre o primeiro contacto com Roma, a atribuição, algures entre 31 e 27 a.C., do privilegiado estatuto administrativo de Município
de Cidadãos Romanos à cidade romanizada,
agora chamada de Felicitas Iulia Olisipo (Faria,
2001, p. 354) que mantinha assim o cognome
indígena, levaria a uma renovação urbanística consubstanciada na instalação, ou pelo
menos na projeção, de equipamentos como
um fórum, teatro, anfiteatro, termas públicas,
aqueduto, muralhas (Alarcão, 1994, p. 58) e
até de um circo. De alguns destes equipamentos existem apenas parcos vestígios arqueológicos e de outros nem isso. No campo das
ausências registam-se o fórum, o anfiteatro, o
aqueduto e, no caso desta cidade à beira rio, as
infraestruturas portuárias, em parte identificáveis nas funções acrescidas do criptopórtico
da Rua da Prata (Mota e Martins, 2018, p. 97) e
nos vestígios de armazéns (horrea) identificados no NARC (Bugalhão, 2001, p. 66) e na Rua
da Madalena (Amaro, Manso e Sepúlveda,
2013, p. 755). Nos séculos I e II d.C., a fase de
apogeu da cidade romana, a expansão urbanística terá tido a sua maior expressão e, com
certeza, extravasado a mancha de ocupação
Republicana. A sua importância económica,
enquanto cidade produtora de preparados
piscícolas e captadora dos outros produtos
provenientes da área periurbana e do território do município (ager), das villæ (residências
rurais latifundiárias e agropecuárias), a par do
seu posicionamento estratégico na foz do Tejo
terão tornado Olisipo a segunda cidade mais
importante da Província da Lusitânia, a seguir
à capital Augusta Emerita, a atual Mérida. A
colónia de Augusta Emerita estava voltada
para o interior, para a via da Prata, o principal eixo terrestre de escoamento dos minérios de Norte para Sul na Península, enquanto
Olisipo, graças ao seu porto, à sua situação
35
de caput viarum, às atividades económicas e
estrutura social, seria uma autêntica capital
litoral da Lusitânia (Mantas, 1997, p. 22).
A partir de Augusto, primeiro imperador
de Roma entre 27 a.C. e 14 d.C., terá ocorrido o início do processo de municipalização
de Felicitas Iulia Olisipo, e a planificação de
uma urbs dotada de equipamentos de natureza religiosa, político-administrativa e lúdica.
Uma vez que o sítio já tinha ocupação, e não
obstante a manifesta capacidade para obliterar as pré-existências construídas, o sítio,
pela sua topografia, dificilmente permitiria a
implantação de uma malha urbanística perfeitamente ortogonal. A topografia e os vestígios conhecidos sugerem uma malha radial
tendencialmente ortogonal ajustada à encosta
Sul da colina do castelo, aproveitando certamente as plataformas naturais disponíveis e
construindo outras para a instalação de equipamentos de maior volumetria arquitetónica
e dimensão cénica. Nos vestígios arqueológicos identificados não se reconhece a maior
parte dos principais edifícios que seriam
componentes essenciais da cidade, como é
o caso do fórum, que integraria a basílica, a
cúria e o principal templo (dedicado à tríade
capitolina e ao culto imperial), entre outros,
que provavelmente ocupariam locais de destaque na geografia do sítio. Várias localizações
hipotéticas lhe foram alvitradas: o criptopórtico da Rua da Prata, acumulando funções
comerciais em área portuária (Ribeiro, 1994,
p. 193); o Largo da Madalena, devido à descoberta, no século XVIII, de um possível pódio
de templo e de inscrições epigráficas de natureza votiva e honorífica (Alarcão, 1994, p. 58);
na plataforma do Largo dos Loios, acima do
teatro romano, pela comparação com modelos urbanísticos idênticos (Hauschild, 1994,
p. 66) ou pela lógica topográfica e apreciação de
elementos construtivos mais antigos no atual
edifício (Fabião, 2010, p. 353). Pese embora a
ausência de vestígios que comprovem a sua
instalação neste último local, afigura-se como
36
o mais plausível, dada a provável dimensão
deste tipo de equipamento. Em relação a esta
situação particular pode aplicar-se o raciocínio de que a ausência da prova, não é, pelo
menos para já, a prova da ausência...
Não sendo este o lugar para esmiuçar
todas as estruturas arqueológicas identificadas que compõem o conjunto de vestígios da
cidade romana, interessa sobretudo vislumbrar as aparentes existências e ausências, de
forma a analisar a estrutura urbana e as suas
lógicas de implantação.
A muralha fundacional da cidade, embora
tivesse provavelmente portas fortificadas no
alinhamento das ruas principais, não seria
uma estrutura defensiva. Com uma espessura que normalmente não ultrapassava um
metro, cumpria uma função simbólica de
delimitação do espaço urbano, contendo,
teoricamente, na sua parte interna uma faixa
de terreno não edificado com 9 m de largura,
o pomerium. Desta muralha existem alguns
troços arqueologicamente atestados na frente
ribeirinha, nos antigos Armazéns Sommer,
com uma cronologia de primeira metade do
século I d.C (Gaspar e Gomes, 2007, p. 693).
Embora a mancha de ocupação com vestígios de estruturas Imperiais, suscetíveis de
terem pertencido ao espaço interior da cidade,
se estender, pelo menos desde a Rua Augusta,
a Oeste, até à Rua da Regueira, a Este, e na
Rua de Santiago, a Norte, na encosta, os
respetivos limites muralhados não são conhecidos. De entre estes equipamentos salienta-se o teatro, as termas e balneários públicos
e privados, vestígios de compartimentos
pertencentes a habitações (sendo as mais
significativas as que foram identificadas nos
antigos Armazéns Sommer, na Rua do Cais
de Santarém), lojas e troço de rua secundária
com uma cloaca (concretamente o caso dos
vestígios patentes no claustro da Sé Catedral),
estruturas hidráulicas diversas, as unidades
de produção de preparados piscícolas e armazéns (fig. 5).
FIG . 5
Aspeto hipotético da urbs Imperial de Felicitas Iulia Olisipo e os vestígios referidos no texto: 1 – Rua de São
Mamede; 2 – claustro da Sé Catedral; 3 – antigos Armazéns Sommer/ Eurostars Museum Hotel; 4 – Casa dos
Bicos; 5 – Rua dos Fanqueiros, 63-76; 6 - Rua da Madalena, via pública; 7 – Rua da Madalena, 54-60; 8 – Rua dos
Bacalhoeiros; 9 – Rua dos Fanqueiros, 51-57; 10 – NARC; 11 – Rua da Conceição; 12 - Banco de Portugal (sede);
13 – Rua Augusta; 14 - Rua de Santa Justa; 15 – Praça da Figueira; 16 – Calçada do Garcia; 17 – Rua das Portas
de Santo Antão; 18 – Encosta de Santana; 19 – Rua Vitor Cordon; 20 – Largo da Boa Hora; 21 – Porta de Santo
André. Perímetro defensivo identificado - traço contínuo; Perímetro defensivo hipotético - traço descontínuo
(© FormaUrbis LAB | CIAUD | FAUL | Pedro Vasco Martins 2019).
Na definição dos limites da cidade, ganha
um papel relevante o conhecimento existente
sobre a localização das necrópoles, que se instalavam fora das muralhas e ao longo das vias de
saída. Como já foi assinalado, no lado Oeste e
Noroeste da colina do castelo, os vestígios de
necrópole estudados no NARC indiciam uma
fase inicial do desenvolvimento desta necrópole numa cronologia que pode ter início em
período Tardo-Republicano mas com clara
incidência contextual nos primeiros tempos
do império, entre os principados de Augusto e
Cláudio (24 a.C. a 54 d.C.). Na continuação para
Norte desta necrópole, na Praça da Figueira,
os vestígios arqueológicos apontam para uma
ocupação funerária que se inicia na segunda
metade do século I d.C., concretamente a partir
da década de 60 d.C., provavelmente durante o
principado de Nero (Silva, 2012, p. 120). Desta
necrópole foram encontrados outros vestígios
já mais afastados, concretamente na atual Rua
das Portas de Santo Antão (Cabaço et al., 2017,
p. 1248), na Calçada do Garcia (Silva, 2002, p.
196) e na Encosta de Sant’Ana (Muralha, Costa
e Calado, 2002, p. 246).
O abandono da mais antiga necrópole
identificada no NARC e o início das deposições funerárias na área da Praça da Figueira,
37
acrescidas da monumentalidade funerária aí
registada a partir desse momento, preconizam
um fenómeno de expansão urbana para Oeste
e Norte através da instalação das unidades de
produção de preparados piscícolas. No entanto,
a relação deste fenómeno com os limites muralhados da cidade não é absolutamente claro.
No lado Este da colina os vestígios da
necrópole mais próxima da cidade romana
foram identificados, pela primeira vez, na
segunda metade do século XVI, nas obras de
construção do antigo Palácio Cova, abaixo
do Campo de Santa Clara. Estes vestígios,
descritos como pequenas abóbadas contendo
dentro urnas de vidro e de chumbo cheias
de carvões e cinzas (Azevedo, 1652, p. 233),
sugerem edifícios funerários de tipo mausoléu ou columbários (monumento de forma
variada, constituído por uma sucessão de
nichos onde eram depositadas as urnas com
as cinzas dos defuntos). Mais recentemente,
nas obras do antigo Hospital da Marinha,
em área contígua ao palácio, foi identificado
o vestígio de um monumento funerário com
estas características e datas de funcionamento, manifestamente integrável no mesmo
espaço funerário (agradecemos a informação ao arqueólogo Vasco Vieira). Este fragmento de necrópole, que tal como a anterior
se desenvolveria ao longo de uma via, encontra-se numa área aparentemente periférica,
a uma distância considerável da área urbana
pertencente ao interior da cidade, o que torna
este limite urbano ainda mais difícil de estabelecer nesta fase dos conhecimentos.
Na apreciação dos limites da cidade, no
que respeita à urbanização dos espaços, verifica-se que um dos fenómenos mais enigmáticos na análise da estrutura da cidade
romana é a ausência de vestígios estruturais na plataforma superior da colina após os
finais do século II a.C.. Embora tenham sido
exumados em diversas escavações arqueológicas espólios integráveis no período
Imperial e Tardio, o que indicia que o espaço
38
terá tido algum tipo de uso, eventualmente
simbólico-religioso, do qual não se conhece
de momento expressão significativa (Mota,
Pimenta e Silva, 2014, p. 152).
Esta questão espacial parece relacionar-se
diretamente com um fator da maior pertinência para a estruturação da cidade: o abastecimento de água. Para este fim, a engenharia
hidráulica romana consideraria o aproveitamento dos melhores recursos hídricos do território e também os disponíveis no espaço urbano
e envolvente mais próxima. As nascentes do
grupo das Alcaçarias, em Alfama, e os aproveitamentos detetados, em pelo menos duas estruturas de captação de águas infiltradas de meia
encosta na Rua Norberto de Araújo, atestam
um de vários possíveis sistemas subsidiários
para uso corrente em diversos equipamentos e
no aprovisionamento em cisternas, fenómeno
com longa perduração na Época Moderna e
Contemporânea em toda a encosta da colina do
castelo (Carvalhinhos, Mota e Miranda, 2017,
p. 328). Mas este sistema seria manifestamente
insuficiente para colmatar as necessidades
hidráulicas da cidade. Um possível indicador é a quantidade de equipamentos balneares já identificados que necessitariam de um
caudal de água abundante, dificilmente atingível através deste sistema local. Por conseguinte,
a cidade romana seria, provavelmente, abastecida de água por um aqueduto, o qual, a ter existido, teria a sua origem provável na barragem
romana identificada em Belas. Desta estrutura
hidráulica, integrada no território do município e conhecida desde o século XVI, embora
com uma data de construção tardia especulada
em torno do século III d.C. (Almeida, 1969, p.
179), partiria o aqueduto que, seguindo parcialmente o itinerário do aqueduto das Águas
Livres, conforme foi registado pelos seus construtores no século XVIII (Moita, 1990, p. 10),
terminaria na Porta de Santo André, na Costa
do Castelo (Almeida, 1969, p. 181; Quintela,
Cardoso e Mascarenhas, 1987, p. 123), hipótese
recentemente testada, com êxito, através de um
modelo virtual (Mascarenhas, Bilou e Neves,
2012, p. 258). No entanto, não se detetaram até
ao momento indícios desse ou de outro aqueduto no concelho de Lisboa, nem de uma torre
de água na área da Porta de Santo André, nem
tão pouco existe memória coletiva ou histórica
de arcos elevados ou mães de água romanas.
Por coincidência ou não, a cota altimétrica de entrada do aqueduto nas portas de
Santo André, uma autêntica portela de passagem natural de onde escorrem as águas para as
vertentes antagónicas de Alfama e Mouraria,
encontra-se acima de equipamentos importantes para a cidade: das Termas dos Cássios,
as termas públicas construídas na plataforma
natural da atual Rua das Pedras Negras, edificadas provavelmente no século I d.C. e reconstruídas em 336 d.C.; do teatro, construído no
início do século I d.C. e renovado em 57 d.C.; de
todas as estruturas e contextos romanos imperiais conhecidos na encosta do castelo. Se terá
sido a água, o motivo da escassa ocupação não
urbanizada da plataforma superior do castelo
em Época Imperial, é a questão que permanece.
Os vestígios arqueológicos visitáveis no
claustro da Sé Catedral ilustram o que seria
o aspeto da ocupação urbana da encosta da
colina, pontuada por edifícios privados e equipamentos públicos, delimitada na frente de rio
pela muralha e por uma cintura de unidades
de produção de preparados piscícolas instaladas linearmente entre a atual Casa dos Bicos e
o criptopórtico das termas portuárias da Rua
da Prata. Nesta parte baixa da cidade, o prolongamento da área ocupada pelas unidades fabris
apresenta um alinhamento diferente, ligeiramente desviado para Noroeste. Enquanto
o primeiro alinhamento, a frente portuária,
parece ajustar-se ao que seria a margem do rio
Tejo, o segundo, independentemente da existência ou não de planos urbanísticos distintos, uma vez que a cronologia de instalação
é em ambos os casos de meados do século I
d.C., terá tido outro fator determinante, talvez
uma condicionante natural. E a mais provável
condicionante física nesta zona seria o braço
de rio que entrava no vale, entre as colinas do
castelo e de São Francisco/ Chiado: o denominado “esteiro da Baixa”, confluindo e alimentado nas zona da praça da Figueira/ Rossio,
pelos caudais das linhas de água que desciam
dos vales de Arroios e Valverde (sensivelmente o percurso definido pela atual Avenida
Almirantes Reis e Avenida da Liberdade,
respetivamente).
Há uma questão fundamental a colocar
quando se pretende compreender a ocupação
da atual Baixa em Época Romana: como é que o
regime hídrico foi controlado de forma a possibilitar a instalação urbana com as suas diversas componentes? A água continuaria a ser um
fator preponderante e incontornável na estruturação do espaço urbano. A área da Baixa
é reconhecida historicamente como alagadiça devido às águas das marés, mas também
devido às torrentes que desciam pelas encostas e vales a Norte, havendo registos de violentas inundações em Época Medieval e Moderna
que se tentaram resolver através de pontes e
encanamentos, sendo o registo mais antigo
referido em 1181 para o Regueirão de Arroios
(Azevedo, 1899/1900, p. 221). As caracterizações geológicas já realizadas na área da Baixa
permitiram, em termos sintéticos, aferir que
há 3200 anos antes do Presente existia uma
praia estuarina com uma situação de colmatação natural já muito acentuada e, sequencialmente, uma unidade de topo, formada
quase exclusivamente por materiais relacionados com a atividade humana não anteriores à Época Romana (Almeida, 2004, p. 156).
A instalação do circo, provavelmente a partir
de meados/ finais do século I d.C. (Silva, 2012,
p. 203), da via, da necrópole e de toda a área
ocupada pelas unidades de produção em terrenos arenosos e pantanosos, apenas seria possível através de um plano prévio de aterros e de
controlo das linhas de água a montante. Um
dos vestígios relacionados com os aterros antigos na parte baixa foi reconhecido numa obra
39
realizada, no primeiro quartel do século XX,
entre as atuais Rua Augusta, Rua de Santa Justa
e Rua dos Sapateiros. Neste local foi encontrada uma estrutura de drenagem, constituída por tegulæ (telhas romanas) encaixadas
em “v” invertido, instalada sobre a praia antiga
e coberta com 8 m de espessura de argila
compactada (Silva, 1922, p. 183). Também nas
escavações do edifício sede do Banco de Portugal, pese embora a interpretação realizada no
terreno como tratando-se de níveis de aluvião
sobre um extenso areal (Rocha, 2013, p. 1012), a
colmatação de Época Romana apresenta características de aterro programado numa área já
muito próxima da colina de São Francisco. Este
tipo de aterros programados, por vezes com
objetivos urbanísticos e realizados com materiais grosseiramente triados e calibrados, não
são inéditos no registo arqueológico da cidade,
tendo sido identificados, embora com características distintas, numa colmatação também
de carácter urbanístico na meia encosta entre
o teatro e as Termas dos Cássios (Mota et al.,
2016/2017, p. 198). Por outro lado, a colmatação antrópica nesta área do Banco de Portugal, certamente exterior ao limite Ocidental
da cidade, deverá ser apreciada no conjunto de
outros três vestígios identificados nas imediações, ficando aqui de fora a presumível Domus
(residência) suburbana descoberta na Rua Vítor
Cordon (Valongo e Pimenta, 2017, p. 117), e que
em Época Romana se encontrariam em área
correspondente à margem direita do esteiro:
os precários vestígios de muros romanos registados no Largo da Boa-Hora (agradecemos a
informação à arqueóloga Alexandra Krus); a
estrutura de caráter habitacional ou oficinal
escavada na atual Rua do Ouro, 133-145, para
a qual foi deduzida uma data de construção
dentro do século II d.C. e abandono entre os
finais do século III/ inícios do século IV d.C.
(Silva e Valongo, 2017, p. 133); a robusta estrutura de 8,24 m de espessura, com talude para
Oeste, identificada em 1859 na Rua da Conceição, defronte da Rua dos Sapateiros (Andrade,
40
[1859] 1963, p. II). Com uma orientação
NE-SO, provavelmente similar à do criptopórtico e à das estruturas do NARC, de entre as
quais se conta uma via secundária lajeada que
deverá corresponder a um capilar portuário dificilmente a uma ponte em área tão próxima
da margem do rio -, apresenta-se como um
claro limite que poderá estar relacionado com
o perímetro da cidade romana, deixando no
exterior os demais vestígios encontrados no
Banco de Portugal e Rua do Ouro.
Para além dos aterros programados, o
controlo das linhas de água seria essencial,
sob pena de toda a parte Baixa ficar exposta
às enxurradas constantes. O circo, instalado
sobre a linha de água de Valverde, estaria particularmente exposto. De acordo com a hipótese
já anteriormente preconizada (Carvalhinhos,
Mota e Miranda, 2017, p. 332), esta localização levaria certamente à execução de um plano
prévio de obras a montante que poderia passar
por soluções de encanamento ou de represamento, entre outras, sendo natural que se utilizassem técnicas térreas típicas dos sistemas
de regadio que são muitas vezes impercetíveis
no registo arqueológico (Morales Gil, 1992, p.
16). A este propósito, refira-se as descobertas
dos vestígios da pars fructuaria (parte produtiva e de armazenagem) de uma villæ romana,
no Convento de Santa Joana (Rua de Santa
Marta), aparentemente associados aos vestígios de uma provável albufeira de barragem ou
represa (agradecemos a informação do arqueólogo Artur Rocha). Num cenário plausível,
esta, de várias possíveis estruturas hidráulicas
a montante, poderia cumprir uma função de
contenção para abastecimento, controlando os
caudais, e, simultaneamente, integrar o sistema
gravítico de abastecimento de água à cidade.
Importa verificar que, após a desativação do
equipamento, os níveis de colmatação sobre os
vestígios do circo, cuja data de abandono não
é clara, eram compostos por depósitos argilosos talvez resultantes das enxurradas cíclicas
(Sepúlveda et al., 2002, p. 204). Esta constatação
estratigráfica, em níveis isentos de material
arqueológico, poderá demonstrar que após o
abandono do equipamento público, também se
terá descurado o sistema que o servia, voltando
as linhas de água aos seus débitos naturais não
controlados. Qualquer que tenha sido a solução encontrada, a ocupação da parte baixa da
cidade, sobretudo a área da margem do esteiro,
teve necessariamente de ser preparada para a
instalação das estruturas e equipamentos.
O circo romano de Lisboa apresenta-se
também como um claro exemplo da notável
continuidade formal entre a cidade romana e a
cidade medieval, tendo as provavelmente notáveis ruínas deste antigo edifício romano sido
suficientes para, e apesar dos elevados níveis
de colmatação, em grande medida determinar a configuração espacial da praça medieval do Rossio, sua herdeira. Esta proximidade
entre as formas urbanas da cidade romana e
as da cidade medieval evidentes no circo, bem
como noutros locais, contribuíram para a
hipótese de a origem da peculiar configuração
semicircular de uma parte do tecido urbano
de Alfama resultar da apropriação das ruínas
do anfiteatro romano de Felicitas Iulia Olisipo.
Ainda que os indícios sejam ténues, é possível
através dos mesmos construir uma hipótese
coerente sobre a implantação do anfiteatro
(Martins, 2014, p. 167). O hipotético edifício teria uma dimensão média, apresentando
uma implantação semelhante a outros anfiteatros peninsulares construídos sobre locais
com uma topografia acentuada, como nos
casos dos anfiteatros de Mérida ou Condeixaa-Velha. Estes locais permitiriam apoiar parte
das bancadas (caveæ) sobre o terreno, sendo,
no caso de Lisboa, a outra parte suportada
através de fortes muros e arcadas, posteriormente desmanteladas para reaproveitamento
da sua silharia noutras construções, eventualmente em troços de muralha próximos
como o que se contempla na Rua Norberto de
Araújo (Carvalhinhos, Mota e Miranda, 2017,
p. 333). Teriam contudo subsistido elementos
suficientes para influenciar a forma do tecido
urbano que se sobrepôs aos vestígios do anfiteatro, e que se mantêm na atualidade.
O tecido urbano de Alfama destaca-se
em Lisboa pelo pouco impacto que a reconstrução pombalina terá tido, mantendo em
grande medida as formas medievais que se
sobrepuseram diretamente à cidade Imperial
e Tardia. Esta continuidade permitiu a construção de hipóteses tais como a do anfiteatro em Alfama. Contudo é também possível
encontrar no atual tecido urbano na encosta
do castelo um conjunto de alinhamentos que
indicam uma continuidade entre a cidade
Romana, Tardia, Medieval e até mesmo, em
algumas áreas, Pombalina. Estes alinhamentos
sugerem a existência de uma matriz ortogonal onde se pode encontrar uma métrica rigorosa (Silva, 2005, p. 24) que, tal como noutras
cidades romanas, estruturaria o urbanismo.
Contudo quando esta matriz é confrontada
com a grande quantidade de pequenos fragmentos de estruturas já recuperados arqueologicamente, bem como com a cartografia
existente pré-reconstrução pombalina torna-se aparente uma outra imagem urbana. Se
a preposição de partida assumia a existência
de um urbanismo romano ortogonal posteriormente apropriado e deformado pelo urbanismo medieval, tal como inúmeras cidades
com origem romana e grega desde a Síria à
Grã-Bretanha, na verdade a comparação entre
a planimetria arqueológica dos vestígios romanos e a cartografia pré-pombalina permitiu
verificar que os alinhamentos destas estruturas se encontram mais próximos dos existentes na cidade medieval e pré-pombalina que da
hipotética matriz ortogonal romana. Começa
assim a transparecer com cada vez maior
clareza a imagem de uma cidade construída
segundo o modelo ortogonal romano mas sem
o rigor existente, por exemplo, nas cidades
coloniais fundadas de raiz (ex nihilo), em que
o tecido urbano apresentaria uma composição
ligeiramente irregular ou “conformada”, talvez
41
FIG . 6
Pormenor da planta pré e pós terramoto na zona Oriental da Baixa Pombalina com o alinhamento das estruturas
romanas conhecidas com o urbanismo medieval na Rua dos Fanqueiros, 51-57, Rua dos Fanqueiros, 68-76;
Rua da Madalena (via pública); Rua da Madalena, 54-60; Rua dos Bacalhoeiros, 32-34
(© FormaUrbis LAB | CIAUD | FAUL | Pedro Vasco Martins 2019).
a condicionantes topográficas ou ao ajuste
a estruturas pré-existentes com origem na
cidade Republicana ou mesmo anteriores. Há
exemplos claros deste fenómeno na comparação dos alinhamentos existentes nos diversos
tanques de cetárias recuperados na Baixa ou
mesmo no peculiar desajuste existente entre a
orientação do teatro romano e a via imediatamente abaixo no claustro da Sé (fig. 6).
Em contraste com a irregularidade do
restante tecido, o alinhamento da frente
portuária da cidade com início a Oriente na
Casa dos Bicos e término a Ocidente no criptóportico das termas portuárias aparece com
notável rigor ao longo dos 350 m que medeiam
estes dois pontos, um sinal de uma provável
operação pensada e construída num único
momento, de consolidação ou avanço da
margem da cidade sobre o rio.
42
Na Antiguidade Tardia, uma longa fase que
se estende desde os finais do século II d.C. ao
VII d.C., a cidade imperial de Felicitas Iulia
Olisipo, a par de uma extraordinária mas contínua dinâmica económica e comercial, entrará
em decadência urbana e arquitetónica, fenómeno rastreável na desmonumentalização e
desativação de espaços e equipamentos públicos pagãos. Logo na viragem do século II para
o século III d.C., regista-se uma perturbação
nos fluxos de exportação de preparados piscícolas, uma contração económica, seguida de
uma florescente retoma ao longo da centúria
seguinte (Fabião, 2009a, p. 571). Neste quadro
económico assiste-se, a partir do século III
d.C., a remodelações e transformações nos
espaços fabris, integradas numa segunda fase
de laboração, ilustradas, a título de exemplo, no caso dos vestígios do NARC, pela
desativação de cetárias e áreas de armazenagem para a instalação de um balneário associado a uma habitação (Bugalhão, 2001, p. 66)
ou na reorganização do espaço da unidade de
produção escavada no interior da Casa dos
Bicos (Filipe et al., 2016, p. 431). Embora não
se possa generalizar a todo o território nacional, considerando outras cronologias de laboração no século VI d.C. (Fabião, 2009b, p. 29),
o abandono destes equipamentos em Olisipo
parece ter decorrido no século V d.C.. No
NARC constatou-se a continuidade da ocupação do espaço, embora já não associado às
cetárias, nos finais do século V d.C. e na centúria seguinte (Grilo, Fabião e Bugalhão, 2013,
p. 851). Na área adjacente, também os vestígios das estruturas relacionadas com o criptopórtico, que se sabe agora terem pertencido às
termas portuárias, construídas em meados do
século I d.C., revelaram terem sido desmanteladas nos finais do século IV/ inícios do século
V d.C. (Mota e Martins, 2018, p. 86). Estas
áreas agora abandonadas voltariam a ser exteriores à cidade e ao uso sepulcral, fenómeno
não datado atestado num tanque abandonado
do NARC (Bugalhão, 2001, p. 161), em locais
como o cruzamento da Rua de São Nicolau com a Rua dos Douradores, onde foram
identificados três enterramentos, datáveis do
século VI d.C., eventualmente associados a
um templo cristão (Casimiro e Silva, 2013, p.
862) e, no lado Oriental da cidade, uma sepultura instalada nas termas abandonadas da
Adiça (Silva e Santos, 2017, p. 249), exterior a
uma expectável porta da muralha tardia, e no
pátio da FRESS, numa área próxima às medievais Portas do Sol, uma outra sepultura do
século III d.C. (Guerra, 2006, p. 277) (fig. 7).
De uma forma geral, entre os finais do século
III e os inícios do século V d.C., ocorreram
vários fenómenos urbanísticos que transformaram a cidade. O mais evidente e estruturante foi a construção da muralha tardia, uma
robusta estrutura normalmente com 5 m de
espessura, que terá retraído o espaço urbano.
A questão torna-se mais complexa quando se
tenta compreender quando foi edificada esta
estrutura que tradicionalmente se pretende
colocar nos finais do século III/inícios do
século IV d.C.. O declínio da cidade poderá
ter começado logo nos finais do século III d.C.,
conforme sugere o fenómeno de desmantelamento dos monumentos funerários da necrópole que ladeava a via Norte de saída da cidade,
detetada na atual Praça da Figueira, para aproveitamento de pedra noutras construções,
provavelmente numa muralha defensiva (Silva,
2012, p. 399). Nos vários locais onde se identificaram os seus vestígios, foram aferidas datas
divergentes. Na Casa dos Bicos e no Pátio da
Senhora da Murça/ Rua de São João da Praça
foi datada nos inícios do século IV d.C. (De
Man, 2008, p. 287). Nos antigos Armazéns
Sommer, entre o século IV e o século V d.C.
(Gaspar e Gomes, 2007, p. 694), assim como na
Rua Norberto de Araújo (Mota, Carvalhinhos e
Miranda, 2018, p. 505). No Arco de Jesus, local
onde a muralha desenha uma inflexão sugestiva em relação à praia antiga, foi também identificada uma porta da muralha tardia (Leitão,
2014, p. 73), sem que se tenha conseguido obter
data para a sua construção, embora deva estar
cronologicamente associada à muralha contígua que se desenvolve no interior dos antigos
Armazéns Sommer. A interpretação cronológica e funcional destes fenómenos de amuralhamento tardios é discutível, tornando-se
necessária, como para tantos outros casos em
Lisboa, a obtenção de mais informação arqueológica. Não obstante, tentou-se já encontrar
noutros locais uma lógica para este fenómeno
de finais do século III/ inícios do século IV d.C.
na estratégia imperial de arrecadação e transporte da annona militaris (imposto em bens
alimentares para o exército romano), aparentemente percetível nas cidades do Norte e
Noroeste Peninsular (Fernández Ochoa,
Morillo e Salido Domínguez, 2011, p. 266).
Esta visão não é consensual, uma vez que esta
estratégia imperial não terá sido global, tendo
43
a Hispânia escassa importância neste sistema e
total ausência a isso referente nas fontes documentais disponíveis (Arce, 2011, p. 294). Por
outro lado, a iniciativa local terá tido um papel
importante neste processo, atendendo-se às leis
que continuamente exigiam reparações e adornos das muralhas, procurando a recuperação
do splendor civitas (Arce, 2011, p. 295). Nesta
ordem de ideias, a que se poderia associar no
caso olisiponense o já referido reflorescimento
económico ocorrido ao longo do século IV d.C.,
importa notar que foi comemorada em 336 d.C.
a reconstrução ou renovação de um dos equipamentos públicos da cidade, as Termas dos
Cássios. O fenómeno dos finais do século IV/
inícios do século V d.C., um período de atividade edilícia de caráter defensivo, poderá relacionar-se com a rotura da fronteira renana e
com as invasões iminentes (Fernández Ochoa,
Morillo e Salido Domínguez, 2011, p. 269). Este
contexto de amuralhamento poderia também
integrar-se num período pós-romano, do tipo
emeritense, à semelhança do que ocorreu na
capital provincial (De Man, 2008, p. 291).
A retração do perímetro muralhado e a
redefinição do uso dos edifícios e espaços
urbanos, a partir do século IV, com evidente
expressão no século V d.C., pode não ter significado a decadência da cidade. Mas teve certamente consequências urbanísticas diretas. A
este respeito detetou-se arqueologicamente a
privatização e compartimentação de espaços
públicos, como nas bancadas do teatro (Diogo,
1999, p. 87), nas vias públicas descobertas no
claustro da Sé (Amaro, 1995, p. 340) e nos antigos Armazéns Sommer (Ribeiro et al., 2017, p.
234) ou nas Termas dos Cássios (Silva, 2012, p.
280), a título de exemplo, fenómeno que pode,
eventualmente, ser explicado pela pressão
urbana, mas também certamente pela imposição do cristianismo ao paganismo, ao longo
do século IV d.C., que haveria de culminar
com as destruições massivas de templos, estátuas e outros equipamentos públicos no final
da centúria, no tempo de Teodósio (Maraval,
44
1997, p. 40). Os acontecimentos mais fraturantes da época, como a divisão do império entre
Ocidental e Oriental, em 395 d.C., a primeira
incursão alana, em 409-411 d.C., o domínio suevo da cidade, em 469 d.C., e, poucos
anos depois, a queda do Império Romano do
Ocidente, em 476 d.C., marcaram certamente
a vida urbana mas não a erradicaram. Paralelamente, a conjuntura económica foi positiva, rastreando-se uma dinâmica visível nos
ritmos de comércio do século V e VI d.C. com
o Mediterrâneo Oriental (Fabião, 2009b, p.
33). Senão antes, pelo menos a partir de 569
d.C., em plena Época Visigótica, constata-se
um período de aparente prosperidade durante
o qual se terão erguido diversos edifícios religiosos na cidade que se chamava então Olysipona, talvez até um templo no local onde no
século XII se viria a construir a Sé Catedral,
a julgar por um dos elementos pétreos integrados na sua parede (Alarcão, 1994, p. 63).
Apesar de todos os elementos arquitetónicos
e artísticos de edifícios religiosos desta época
se encontrarem descontextualizados, o estudo
do conjunto existente, apoiado em evidências
arqueológicas circunstanciais, indicia programas construtivos com expressão, como a
igreja que poderá também ter existido na meia
encosta entre o teatro e as Termas dos Cássios,
na atual Rua de São Mamede (Fernandes e
Fernandes, 2014, p. 239).
A partir de 713 d.C., o domínio islâmico
traria uma nova orgânica ao urbanismo da
cidade tardia, adaptando-a às novas exigências
monumentais e da encenação de poder. Entre
a continuidade e a rutura, certo é que continuamos a perscrutar o urbanismo medieval
inaugurado neste período em busca dos traços
que desenharam Felicitas Iulia Olisipo.
Considerações finais
O conhecimento arqueológico sobre a cidade
de Felicitas Iulia Olisipo é ainda insuficiente
FIG . 7
Aspeto hipotético de Olysipona e os vestígios referidos no texto: 1 – Largo de São Mamede; 2 – claustro da Sé
Catedral; 3 – Pátio da Senhora da Murça; 4 – Rua da Adiça; 5 – Rua de São João da Praça; 6 – antigos Armazéns
Sommer/ Eurostars Museum Hotel; 7 – Arco de Jesus; 8 – Casa dos Bicos; 9 – Rua dos Douradores; 10 – NARC;
11 - FRESS. Perímetro defensivo identificado - traço contínuo; Perímetro defensivo hipotético - traço
descontínuo (© FormaUrbis LAB | CIAUD | FAUL | Pedro Vasco Martins 2019).
para obter uma visão urbana assente em
pressupostos científicos obtidos através da
pesquisa no terreno. Esboçar a síntese dos
conhecimentos, ainda que de uma forma
generalista e para um público alargado, continua a ser um exercício especulativo e de reflexão, subsistindo a partir de vários quadrantes
a benéfica criação de cenários plausíveis de
acordo com perspetivas diversas e consoante
as abordagens ao tema.
Neste sentido, congregar a informação arqueológica existente pode tornar-se,
se devidamente centralizada e disponibilizada institucionalmente, uma ferramenta de
trabalho para todos os intervenientes, resultando num processo contínuo que procura
ancorar-se nas descobertas de estruturas
e contextos essenciais para a extrapolação
de outras possíveis realidades urbanísticas numa cidade tão profundamente afetada
pelos inúmeros fenómenos de subtração de
informação ao subsolo.
A resiliência dos traços, ou de alguns deles,
permite simultaneamente complementar a
visão arqueológica do urbanismo antigo através
da recuperação de formas urbanas que resistem
ao passar do tempo e da ação humana.
Em suma, a compreensão do urbanismo
antigo, da cidade passada, está inevitavelmente dependente da futura investigação no
terreno e da necessidade de construir modelos de síntese coerentes, com as poucas peças
do enorme “puzzle” que existem à disposição, não esquecendo que também a sorte das
descobertas fulcrais é um ingrediente fundamental neste processo.
45