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O Arco e a Voz

Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação (RESAFE)

O ARCO E A VOZ: A INTENCIONALIDADE TRANSFORMANDO O MUNDO  

Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE O ARCO E A VOZ: A INTENCIONALIDADE TRANSFORMANDO O MUNDO Aimberê Quintiliano 1 Thunder and lightning. Enter three Witches First Witch When shall we three meet again In thunder, lightning, or in rain? Second Witch When the hurlyburly's done, When the battle's lost and won. Third Witch That will be ere the set of sun. First Witch Where the place? Second Witch Upon the heath. Third Witch There to meet with Macbeth. First Witch I come, Graymalkin! Second Witch Paddock calls. Third Witch Anon. ALL Fair is foul, and foul is fair: Hover through the fog and filthy air. Numa planície. Raios e Trovões. Entram três bruxas. 1ª Bruxa: Quando vamos nos reencontrar Na chuva, no raio, ao trovejar? 2ª Bruxa: Quando o tumulto terminar. E a batalha for perdida, e ganha. 3ª Bruxa: Pouco antes que o sol se ponha. 1ª Bruxa: E onde será essa façanha? 2ª Bruxa: Num descampado. 3ª Bruxa: Lá Macbeth será encontrado. 1ª Bruxa: Aí vou eu, gato malhado! 2ª Bruxa: O sapo diz: bem-vindo. 3ª Bruxa: Estou indo! Todas: O bem é o mal, o mal é o bem, O lusco-fusco não poupa ninguém Assim selam as três Parcas shakespearianas o trágico destino de Macbeth, pelas suas vozes que encantam ou desencantam o mundo, atravessando o tempo e o espaço com destino a transformar ou realizar aquilo que, sem a voz, sem ser proferido, talvez não existisse, não ganhasse o valor de efetividade simbólica e de determinação valorativa ou significativa dos eventos da história. Tal como essas frases que pronunciamos para tornar presente uma situação somente possível, ou para que o acontecido se torne consciente e compreensível, a magia opera pela linguagem, uma linguagem poética, que transforma o mundo instituindo um sentido em meio às inúmeras possibilidades que nos apresenta a existência humana. Desde a origem do universo, a criação divina, a palavra é ação – verbo: 1 Universidade Federal de Juiz de Fora QUINTILIANO, Aimberê. O arco e a voz: a intencionalidade transformando o mundo. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 23: nov/2014-abr/2015, p. 319-335. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 320 um vocábulo que opera um movimento –, sopro criador que institui o que somente era possibilidade, desejo, tensão, energia, forças explosivas sem ordem e sem sentido. A palavra estrutura. A palavra age. A palavra cria. Esse poder transformador, essa potência de elaboração dos significados oriundos do sentido profundo a nós revelado no contato sensível e encarnado com o mundo, esse resgate daquilo que nos é oferecido como múltipla abertura, como presença profusa e complexa, como experiência vivida, é o poder da poesia, dos mitos, dessa linguagem originária que estabeleceu as significações culturais que atribuímos ao nosso estar aí, ao nosso ser. A poesia rasga o tecido da realidade, transgrede e transtorna a gramática e a semântica, desvela e revela sentidos mais originais, costura uma nova presença, uma nova compreensão, uma nova dimensão da nossa relação ao que se apresenta. Ela abole a diferença entre o eu e o mundo, instaurando um meio termo que marca a pertença de um ao outro, que faz com que o ego se expresse no seio do universo, e que este se reflita no âmago do sujeito. Il pleure dans mon cœur – Comme il pleut sur la ville (Chora no meu coração – Como chove sobre a cidade), escreve Verlaine, colocando em paralelo o interior e o exterior, fazendo com que os sentidos transitem entre duas dimensões separadas pelo conhecimento científico, abstrato e dicotômico. Como uma ponte que ao se curvar entre as duas margens do Lethe (λήθη) nos devolve esse conhecimento primordial: tudo é uno. Tudo é entre-expressão, sem separação que permitiria a realização completa do conhecimento formal. A palavra, que se oferece na poesia como um de seus veículos mais poderosos, é mais do que sentença performativa, mais do que expressão somente objetiva, mais do que simples apresentação do interior para outrem, comunicação de realidades ocultas e íntimas, mais do que imitação. Ela age, mas age além do que se pode dizer, por excesso sobre ela mesma, profícua criação de possíveis que não se esgota no que se pode dela descrever. Em ressonância com nossa mais genuína interioridade, com nossos sentimentos e pensamentos mais subterrâneos, a poesia revela o mundo e nos revela a nós mesmos, trazendo ao que somos o que outrem poderia ser, fazendo com que tenhamos a experiência de outra vida, de outra alma, de outras paixões e aventuras. Desde nossas origens, o mito, Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 321 estruturado simbolicamente, poeticamente, carrega o tesouro que a filosofia vai descobrir e configurar como seu conteúdo, transfigurado pela lógica: é possível dizer o que é real, é possível conhecer a complexidade do mundo pelas palavras, desde que se esteja à escuta de seus significados múltiplos e diversos. A filosofia, diremos, é um dos redutos possíveis desse sentido amplo e desobstruído que a poesia nos mostra como plena manifestação do ser, como sua expressão. A palavra que transforma o mundo Platão, apesar de sua célebre crítica aos poetas na República, nos transmite no Fedro e no Íon o discurso de Sócrates, que afirma que a rapsódia (exemplo de uma linguagem poética) se apresenta como uma fala que se dá em função de uma “potência divina”, a partir de uma alteridade ou “força maior”. Porém, afirma Sócrates, ela não é capaz de exercer a tarefa reservada ao diálogo, a demonstração, mas se configura como uma atividade inspirada que oferece os temas primitivos da filosofia 2. A linguagem metafórica do poeta o transporta com entusiasmo, diz Sócrates, “fora de si”, “em deus” (én-theos). Nesse sentido, o poeta é detentor de uma palavra que lhe permite falar de “todas as coisas”, mas a partir do desenvolvimento do pensamento socrático, ela não pode ser mais considerada como a origem de todas as technai, e passa a ser pensada como uma técnica particular, distinta de todas as outras, e principalmente da filosofia. Assim se rompe o elo originário entre as duas formas de relação ao mundo instituindo os sentidos que alicerçam a cultura contemporânea. Pautado nas distinções de Platão, Aristóteles vai definir a epopeia, a poesia trágica, a comédia, a poesia ditirâmbica, a aulética, a citarística, como imitações do real. 3 No entanto, afirma Aristóteles, os poetas operam sob a forma do drama (δράματα), pois imitam agindo (δρῶντες). 4 Logo, trata-se também da possibilidade de produzir conhecimentos, ações, eventos tanto internos às obras quanto no mundo, no palco, na plateia, nos corações e nas mentes do público. Longe de uma 2 Platão, Fedro, 244a. Aristóteles, Poética, C. 1, I. 4 Aristóteles, Poética, C. 3, II. 3 Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 322 simples imitação, a representação dos objetos oferece um tema para a contemplação 5, nos instruindo e nos fazendo raciocinar sobre a natureza de cada coisa. O artifício, a cor, o jogo dos atores, são instrumentos para a exposição daquilo que não aparece imediatamente, do que se esconde no invisível: são sinais, símbolos sensíveis dos infra-mundos que povoam e constituem nosso solo existencial. O poeta cria modelos, de honestidade ou de rudeza, heróis e deuses, homens e seres mistos e místicos que representam dimensões dos possíveis devires que habitam nossa existência 6. Assim eles usam os fatos para produzir os efeitos apropriados que suscitem piedade ou terror, que sejam imponentes e verossímeis 7. A palavra transforma, escapando do reino mudo das coisas silenciosas para dar a fala ao mundo, para que, pela linguagem, o real seja alterado, modificado, descodificado e compreendido em sua ampla significação. Ela revela, mas revela o que não estava presente, cria o que nela se instancia, reelabora em outra dimensão a significabilidade pura do sensível e do que precede a linguagem articulada pelo logos. A poesia é presença, ela atinge o corpo e encarna outra realidade, ou a realidade dos sentimentos, das e-moções. Vemos nas epopeias e nas poesias um presente eterno, independente do tempo gramatical, pois somos convidados a participar dos eventos que ocorrem como se estivéssemos lá, sentindo e reagindo, sofrendo ou nos alegrando, conduzindo a espada cujo gume irá lacerar a história levando a morte consigo ou defendendo a vida, cortando a estofa das paixões ou as cortinas do significado profundo das ações humanas. A poiesis é mais do que de seu procedimento imitativo, é um fazer, uma criação que vai muito além da obra, muito além do dito ou do compreendido, muito além do consciente, atingindo as camadas inferiores do nosso ser composto. Ela faz surgir, figura algo a partir do nada, ou a partir da terra, do solo fundamental que nos sustenta e define, a partir da physis, da nossa natureza mais autêntica e própria. A poiesis é um agir, criativo ou essencial. O poeta, dessarte, é um eîdolou poietés, um construtor de imagens, de sentidos e de significados, mas também de sentimentos e de ações, mesmo que usando da mimesis como instrumento de sua potência criativa. 5 Aristóteles, Poética, C. 4, V. Aristóteles, Poética, C. 15, X. 7 Aristóteles, Poética, C. 19, IV. 6 Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 323 Nesse jogo de significados e formas, a poesia vive no contraste entre som e sentido, entre semiótica e semântica, como expõe Agamben. 8 Ele nos lembra a frase de Valéry: “Le poème, hésitation prolongée entre le son et le sens” (“O poema, hesitação prolongada entre o som e o sentido”). O que define o poema, em contraste com a prosa, diz Agamben, é o enjambement, a oposição entre os limites métricos e os limites sintáxicos dos versos. Quando a consonância está encerrada e o sentido se alastra além de seu corpo sintáxico, já dizia Nicolò Tibino no século XIV, cria-se um cisma entre o som e o sentido, fazendo com que a rima induza uma continuidade onde o sentido se rompeu, ou vice versa. O verso se configura assim como um “ser de suspense” (“un être de suspens”) segundo Mallarmé, reforçando a diferença entre a semiótica e a semântica. O poema, conclui Agamben, “é um organismo que se funda sobre a percepção de limites e terminações, que definem – sem jamais coincidir completamente e quase em oposta divergência – unidades sonoras (ou gráficas) e unidades semânticas.” 9 Dante, igualmente, denota a diferença entre os elementos constitutivos da canção, opondo a cantio como unidade de sentido (sentencia), à stancia como unidade pertencendo à métrica. Ele separa portanto uma unidade global semântica (“seio de todo o sentido”) e unidades métricas por essência (que recolhem, diz ele “no seu seio toda a arte”) 10. Não obstante, o próprio Dante nos mostra o sentido profundo do mundo supranatural pela poesia, abrindo assim o caminho para uma compreensão mais vasta do que está em questão nessa figura do enjambement. Agamben conclui no seu texto sobre o fim do poema que o último verso não é um verso, pois o enjambement não é mais possível. Dante, no entanto, insiste em usar o mesmo termo no fim de cada canto de sua Divina Comédia: stella, estrela. Talvez esteja ele indicando deste modo que o enjambement não é uma figura interna somente, que se limitaria pela estrutura estilística e sintáxica, findando-se pelo fim material do que está escrito. Assim como opera de um verso para outro, ele age do poema para o mundo: ele perpassa e ultrapassa ao mesmo tempo a linguagem, se estende além do poema, cria sentidos coesos entre todos os textos e entre os textos 8 Agamben, La fine del poema, p. 113-119. Agamben, La fine del poema, p. 143. 10 Dante, De vulgari Eloquencia (II, ix). 9 Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 324 e o mundo, ele fala mais alto e mais longe que qualquer língua, ressoa e ecoa em nós por muitos tempos e em muitos espaços. Agamben explica que o som e o sentido devem ser considerados não como duas substâncias, mas como dois tónoi (tonalidades em tensão) de uma única substância. É necessário todavia, para que possamos compreender toda a frutífera essência que opera na linguagem poética, que pensemos em outras possibilidades. Assim, sentido, som, significação, intenção, corpo, sujeito, sentimento, contexto, experiência, todos são diferentes tónoi que animam a linguagem, diferentes cordas que o arco da vida pode tencionar para atirar suas flechas em direção ao mundo e ao pensamento, para atingir o real ou o outro, para modificar e perfurar a tela do sensível, revelando assim toda a dimensão do que permanece escondido à nossa sensibilidade corporal. Ir longe demais nessa distinção entre som e sentido, no entanto, poderia nos fazer perder o ponto onde a poesia é também transição entre o sentido e a significação. A poesia se encontra além das rupturas semânticas ou sintáticas, ela escapa à gramática e sua significação e vai mais longe que o som e o sentido, ela é múltipla e ao mesmo tempo localizada, espiritual e não obstante corporal. Por isso o máthema não substitui o poiêma, mas estabelece-se uma ligação entre um e outro, de tal forma que se poderia falar, à beira dos limites entre essas diferentes dimensões, de um poiêma a serviço do máthema. 11 Santo Agostinho, para compreender a questão do tempo 12, usa a comparação entre dois versos ou duas sílabas, fazendo da manifestação sensível da linguagem, da escanção ritmada do poema, uma medida para a temporalidade. Eis outra característica importante da linguagem: ela permite uma estruturação do mundo que o prepara para a compreensão intelectual. Mas o essencial é esse elo que ela cria entre o mundo e o pensamento, verdadeiro motor de sua potência transformadora, de sua performatividade. A noção de performatividade foi desenvolvida por Austin 13, e refere a certas expressões que fazem literalmente o que elas enunciam, não se limitando a descrever, mas modificando o mundo. Nesse sentido, as declarações oficiais, os 11 Agamben, Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura. 12 Saint Augustin, Confessions, Livre XI, XXVII, 35, p. 331. 13 John Langshaw Austin, Quand dire c'est faire. Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 325 gestos de linguagem que institucionalizam ou determinam novas realidades, mudam a realidade, executam certa ação. Mas o conceito de Austin e Searle é limitado demais para que possamos aplicá-lo diretamente à poesia. Uma das questões que se colocam é a consideração quase exterior do contexto, que deve ser determinado para que possamos dizer se a enunciação tem um fim “feliz” ou “infeliz”, como diz Austin para evitar a questão da verdade ou da falsidade da linguagem natural. Isso implica, segundo ele, que a pessoa que pronuncia a frase tenha realmente a intenção de produzir o ato e que os diferentes protagonistas respeitem os critérios de autenticidade. São esses dois pontos, essencialmente, que lhe valeram a crítica de Derrida. Austin considera que as circunstâncias que fariam que o enunciado não produzisse o efeito desejado são simples contingências, e exclui de seu estudo todos os casos conflituosos. Mas para Derrida, essas contingências são inerentes à linguagem enquanto “marca” que pode ser reiterada. A força da linguagem é justamente que ela pode ser reproduzida, apesar de seu significado existencial ou performativo ser diferente quando proferido em locais ou tempos diferentes. Antes de aprofundar essa questão, que envolve o outro, vamos situar a linguagem em sua plena dimensão, articulando a enunciação com uma corporeidade que, apesar de não esgotá-los, permite que a linguagem produza sentidos determinados, em relação à nossa existência concreta, pois essa é a condição da verdadeira performatividade linguística. O corpo que fala O corpo se revela, para o organismo vivo, como uma experiência instantânea e plena, como uma certa generalidade, como um ser impessoal. Ele é meio de comunicação com o mundo como horizonte latente de nossa experiência, sempre presente, antes de qualquer pensamento determinante. Merleau-Ponty, referindo-se aos segundos Ideen de Husserl, nos diz que o que impede que o corpo seja totalmente constituído, como outro objeto qualquer, é o fato dele ser aquilo que permite que existam objetos para nós, se configurando assim como um ponto Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 326 cego para nossa consciência. 14 O corpo, porém, fornece a armação que fundamenta a inteligência enquanto expressa uma potência, um “eu posso”, criando um arco intencional, possível e real, que nos situa geograficamente, culturalmente, historicamente e que projeta, além de sua extensão física, sua intencionalidade, em outros tempos e espaços. O sujeito da percepção é essa unidade aberta e indefinida do esquema corporal, em torno do qual se faz a percepção. Não é uma unidade formal, mas uma organização autóctone, um sistema de equivalências e de transposições inter-sensoriais, a própria atualidade do fenômeno de expressão (ausdrück): “Nele, escreve Merleau-Ponty, a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são impregnadas uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido e, por ela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutung).” 15 Ele se apresenta como uma Gestalt, um princípio de distribuições de valores e sentidos, que perpassa a individualidade espaciotemporal (“enjambe” escreve Merleau-Ponty, como para o verso que ultrapassa o seu lugar na poesia), estando ao mesmo tempo aqui e lá, presente em todo lugar e ausente ao mesmo tempo, ele é transcendência como potência de transposição (transponierbarkeit). Sua ubiquidade, contudo, não é a liberdade da ideia, a-temporal e aespacial. Ele se insere num mundo que o liga aos “preconceitos de campo”, às forças que o fazem se situar e se comportar, acompanhar as dobras do mundo ou resistir às suas inclinações. 16 Por essa inserção ele cria um sistema diacrítico que se articula nos “alguma coisa” que a ele se apresentam, fazendo da ideia esse elemento no qual ele se centra, não mais sob sua figura sensível, mas como corpo que fala, usando suas próprias partes como simbólica geral do mundo, permitindo que o frequentemos, compreendendo-o e encontrando significações em seu seio, revelando seu interior ao exterior, produzindo esse milagre, diz Merleau-Ponty, que faz do nosso corpo o fundamento do que no entanto se opõe a ele: as ideias. A linguagem proferida, afirma Merleau-Ponty, é somente “um caso particular, uma 14 Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, p. 108. cf. Ricœur, A l’école de la phénoménologie, p. 118. 15 Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, p. 272. 16 Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, p. 259. Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 327 forma expressiva, desse modo de ser essencialmente projetivo do sujeito.”17 Falar ou escutar, entender, não são processos de representação do que é produzido ou recebido, pois implicam uma intercorporeidade e uma possibilidade de comunicação universal que se manifesta na situação de linguagem, um inter-esse que faz do mundo e do outro objetos de nossa preocupação, de nossa atenção e de nossa curiosidade. A palavra, antes de ser o indício de um conceito, é primeiro um evento que toma o corpo, e sua maneira de se relacionar com ele define a zona de significação à qual ela refere. Sua presença prolongada faz ela aparecer como uma imagem exterior e sua significação como pensamento, que tende à expressão como se fosse seu destino e finalização. A palavra, instrumento que permite ao sujeito tomar posição no mundo das significações, mora nas coisas e veicula significações, fazendo com que aquele que a recebe perceba o sentido como se dela ele escapasse para ser entregue diretamente, sob a espécie de uma ideia ou conceito. Então, a presença sensível da palavra se ressorve em sua significação, do mesmo modo que numa peça de teatro, não é o ator que nós vemos no palco, mas a personagem, em seu mundo. O corpo realiza essa passagem, tornando-se o pensamento ou a intenção que ele traz do mundo como sentido pré-objetivo. É nessa possibilidade de transposição, nessa capacidade metafórica de expressão do mundo, como entreexpressão do sujeito e do mundo, fundada na formação simultânea do corpo e do mundo na emoção, que a poesia busca a sua força evocativa, utilizando todos os recursos que nosso corpo, como ativo e dotado de memória, nos permite utilizar.18 O corpo, como “nó de significações vivas”, habita um mundo que se dá numa linguagem impessoal, como expressão do ser na terceira pessoa, independente do sujeito que a profere e daquele que a recebe. Esse mundo perceptivo, é o mesmo que nos representa a música ou a pintura: ele não contém em si nenhum modo de expressão e contudo os invoca todos, ressuscitando com 17 Yves Thierry, Du corps parlant, le langage chez Merleau-Ponty, p. 50. Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, p. 230. O próprio Husserl afirma que a percepção funda os atos significantes, pois ela oferece a “matéria” (Stoff) determinada ao ato intencional que fará dela seu objeto. Ela determina o sentido, sem no entanto produzir a significação. Ver Husserl, Logische Untersuchungen, VI, éd. Max Niemeyer, Tübingen, 1993, p. 9. 18 Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 328 cada esforço de expressão toda a significabilidade de nossa presença, de nossa existência comum.19 O outro, ou a possibilidade da educação Um ser vivo é uma melodia que canta a si própria, diz Uexküll 20, uma realidade que se autoconstrói. Nos termos de Maturana, Varela e Uribe, é uma rede fechada de produções moleculares, um sistema autopoiético molecular que se conserva e se reproduz. Mas a autopoiesis é ao mesmo tempo ontopoiesis e filopoiesis: o ser vivo cria a si mesmo, o mundo e o outro, a espécie e a cultura, transcendendo assim o seu próprio ser em direção ao que para ele é outro, fazendo do mundo o seu lar e o seu meio, um tecido intersticial entre todos os seres com os quais ele coabita. As relações internas e externas desses sistemas não são lineares, mais globais e complexas, rizomáticas diria Deleuze, mas em uma estrutura feita de múltiplas camadas, distintas porém coincidentes, criando uma identidade da diferença, uma unidade do diverso. Por isso, o observador nunca é separável dos sistemas que ele observa, e nossa percepção do mundo se encontra circunscrita pela nossa configuração corporal, pelas potencialidades e tendências do nosso organismo, da nossa presença ao mundo-da-vida, pela nossa cultura e pela nossa história. Isso significa, transpondo ao campo da linguagem, que para um ser humano, o sentido se cria e se recria em permanência, sempre se reestruturando segundo as condições em que se realiza. Se a linguagem objetiva opera uma separação entre o ego e o mundo, fragmentando e restringindo o mundo ao universo das formas e da matéria, a poesia configura uma unidade entre sentido, sujeito e mundo, uma entre-expressão que atravessa toda a extensão do ser, que unifica pela metáfora e por uma pertença aos sentidos mais originários, ao préobjetivo. A linguagem pode ser vista como uma forma desse “acoplamento 19 Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, pp. 223-224. Trazido por Merleau-Ponty, em La Structure du Comportement, p. 172 ; citado sem referência por Buytendijk em Les Différences essentielles des fonctions psychiques chez l’homme et les animaux ; Cahiers de Philosophie de la Nature, IV, p. 131. 20 Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 329 estrutural”, no sentido em que o diálogo entre os organismos ou entre um organismo e o mundo produz correspondências sensíveis, criando assim um domínio linguístico fundado na interdependência dos seres. É porque a linguagem passa também pelo corpo, encarnando-se para se propagar entre os seres capazes de compreensão, modificando suas realidades e permitindo a comunicação, que nós podemos transformar pela expressão outrem, revelar a outra consciência os segredos de nosso interior, as verdades que nos constroem. Para compreender melhor essa dimensão transformadora da linguagem, a crítica que faz Derrida ao conceito de performativo de Austin deve ser aqui relembrada. Ela se apoia em dois pontos essenciais: primeiro, a possibilidade de ausência do destinatário, do emissor, ou do objeto, à percepção presente. Segundo, a iteratividade 21 estrutural que permite sua utilização em outro contexto. Essa propriedade é consubstancial tanto à linguagem falada quanto à escrita, simplesmente porque o mesmo signo pode ser utilizado em contextos diferentes e que o seu sentido, logo, pode ser modificado. Essa indeterminação do contexto, que para os linguistas ou os filósofos analíticos é um pesadelo, é no entanto o que impede que a significação seja totalmente determinada ou saturada, deixando assim aberta uma brecha para que o sentido poético possa existir. A performatividade não funciona como com uma ferramenta, que produz efeitos previsíveis em condições determinadas. A essência da linguagem falada ou proferida, principalmente, é próxima aos gestos ou aos atos corporais: ela acontece entre o eu e o outro, como transformação conjunta de dois seres que se centram num único sentido a determinar, segundo a posição e a subjetividade de cada um. Admitindo que existem atos específicos de linguagem que poderíamos chamar de performativos, Derrida pondera que sua estrutura não deve ser procurada do lado da consciência do emissor ou dos destinatários. Não são ideias, nem representações que são transmitidas, mas “marcas”. Assim, dizer que a linguagem é performativa, não é simplesmente estabelecer regras para certas proposições. O contexto em que essas marcas serão transmitidas é imprevisível, e o 21 Do sânscrito itéra, que quer dizer outro. Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 330 que se revela é a potência infinita da linguagem em oferecer significados em qualquer situação, adaptando-se ao que o outro pode perceber, sentir ou compreender. Não contestamos a necessidade de uma consciência, de uma intenção, para que o ato de linguagem funcione, mas essa intenção não tem presença a si mesma, ela é palavra viva, limitada, como toda palavra atual, por uma irredutível dimensão de ausência. O contexto de um ato de palavra nunca sendo determinável ou previsível, a transmissão implica uma ruptura do horizonte do sentido, uma quebra ou rasgadura que é também abertura, uma identidade e uma diferença presentes na linguagem, um espaçamento entre o sentido e a significação que torna possível a poesia, mas também a educação. Pela fala proferida, outrem é transformado, pois ouvindo de sua posição, com sua história, sua cultura, seus sentimentos, desejos e medos, ele é contudo capaz de se apropriar o que foi dito, de transformá-lo do seu ponto de vista, de compreender. Para isso, ele também se transforma, se adapta e se conforma ao que é recebido. Um ato performativo só acontece uma vez. Ele corresponde a um evento específico, situado no tempo e no espaço e, quando repetido, nem que pela mesma pessoa, o seu efeito será outro. A frase pronunciada no tribunal: “A sessão está aberta”, quando repetida ulteriormente, abre uma nova sessão, e não a mesma. Derrida vai mais longe: existiria no enunciado performativo certa imprecisão, fazendo com que ele escape à jurisdição da verdade. Ele se erige em lei inscrevendo, irredutivelmente, a alteridade na repetição, pois a marca que ele repete transgrede o código, carrega em si seu outro, escapando assim de qualquer ciência. As regras que poderiam estabilizar os atos de linguagem (reduzindo-os a fórmulas estabelecidas em situações adequadas), são arruinadas pela citacionalidade geral da linguagem. Assim, sempre que proferida uma marca de linguagem em certo contexto, contexto que inevitavelmente perturba o sentido a cada vez, “algo de novo acontece”, diz Derrida. 22 Desta forma, o ato de educar, cujo veículo é a linguagem, deve se inscrever sempre como novo, inusitado, inaugurando novamente o primeiro gesto que conduziu outrem a buscar por si próprio os caminhos complexos das significações e do mundo. O professor, diz 22 Derrida, Limited Inc., p. 82. Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 331 Derrida, deve se engajar além do performativo, usar a língua como a capacidade de produzir um evento, de fazer algo acontecer, produzindo um fato que se parece com um ato de linguagem performativo, mais o transborda. Tal evento compromete, transforma o sentido e o uso das palavras e das imagens, mobiliza afetos. Ensinar, é estar implicado num ato de linguagem, é se declarar, se engajar, transpor o uso e o sentido das palavras, sem guia, sem horizonte visível. 23 A linguagem poética constitui representações encarnadas, sensíveis, afetivas, e se opõe assim ao puro significado da representação abstrata. Talvez por isso Nietsche não tenha usado do estilo sistemático da filosofia racionalista, buscando um modo alternativo para a expressão de um fundo não puramente racional, um uso da linguagem que soe como ressonância, que imite a entre-expressividade do mundo, do corpo, da consciência e do outro. Do mesmo modo, Wittgenstein, após sua constatação do fracasso da linguagem em sua pretensão a enunciar corretamente os problemas da filosofia 24, renuncia a falar do que a linguagem é incapaz de formular corretamente e declara: “a filosofia deve-se apenas propriamente poetá-la” 25 Descartes, considerado como responsável pela ruptura do mundo em substância pensante e substância extensa, adverte a Princesa Elisabete, leitora das Meditações, sobre a união da alma e do corpo 26: as dicotomias da linguagem do conhecimento não significam a ruptura real da unidade do ser, que se apresenta na vida, como unidade efetiva de um ente que conjuga as diversas dimensões da existência, o próprio ser humano. Rancière enfim declara que a linguagem poética que se conhece como tal não contradiz a razão. A retórica, diz ele, se constitui assim como uma “palavra em revolta contra a condição poética do 23 Derrida, Marge de la philosophie, pp. 367-393. Wittgenstein, Tractatus. 25 Wittgenstein, Culture and Value. 26 Descartes, carta a Élisabeth de 1634. 24 Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 332 ser falante” 27, tentando circunscrever e limitar a liberdade infinita que representa a possibilidade de significar o mundo em toda a sua profundidade, mesmo que com uma linguagem de natureza menos rígida e estruturada que a linguagem científica, que por impossibilidade de expressar parte do mundo o abandona à mais profunda escuridão e ao esquecimento, abrindo as portas à instrumentalização generalizada da natureza, das mulheres e dos homens, ao embrutecimento das populações e à impossibilidade da educação, que depende da confiança que o aluno deposita nas palavras, num mundo em que a palavra perdeu grande parte de seu sentido. Díke, peithós e pístis, – justiça, persuasão e confiança –, que constituem para Platão a palavra poética, não são ideias ou conceitos destinados à reflexão teórica ou abstrata, mas forças que se apropriam da palavra, a preenchem com o entusiasmo daquele que, inspirado, as pronuncia. 28 São forças que se sobrepõem ao real bruto, que “medem” e “desmedem”, velam e desvelam, criam valores e verdades, fornecendo às palavras poéticas (não somente às palavras da poesia) o estatuto de palavra efetiva, de um evento no mundo que pode transformar o outro, orientá-lo ou educá-lo. Em suma, o poeta cria, usando a força de analogia das imagens e dos símbolos, mas também a sua própria pertença corporal ao mundo sensível, uma área de experiência intersubjetiva, uma imaginação compartilhada, onde indivíduos podem se encontrar além do espaço e do tempo, rompendo no imaginário as barreiras que os separam no mundo material e temporal, oferecendo o ensejo de uma intercomunicação entre todos os seres dotados de sensibilidade e de inteligência. Daí a característica curativa, mágica e apaziguadora da linguagem poética, sua catharsis. Segundo a teoria das cordas, último paradigma da ciência contemporânea, o mundo material pode ser representado como um conjunto de vibrações, localizadas e de extensão infinita, com múltiplas dimensões, produzindo assim uma sinfonia geral que se desdobra em infinitos universos. No âmbito da linguagem, onde os sentidos se configuram como a matéria prima da filosofia, talvez 27 28 Rancière, Le maître ignorant, cinq leçons sur l’émancipation intellectuelle, p. 141. Pinheiro, Poesia e filosofia em Platão, Anais de Filosofia Clássica, p. 47. Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 333 devêssemos então falar, quando queremos expressar a totalidade que eles constituem, de uma poesia geral do mundo que, reunindo sensibilidades e significações, se desdobra na unidade parcial entre as diversas e incomensuráveis vivências de cada um de nós: mais do que uma sinfonia, o mundo é um canto, uma melodia ritmada tanto pelos eventos naturais quanto pelas vozes que interpelam nosso ser e fazem de cada um de nós uma parte inesgotável da totalidade. Referências Agamben, G., La fine del poema, Categorie italiane. Studi di poética. Venezia: Marsilio, 1996. ________________, Categorie Italiane. 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