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Joelson Alves Onofre
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Universidade Federal da Paraíba, Brasil
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Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil
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Leia Mayer Eyng
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Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
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Marcio Bernardino Sirino
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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
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Marcos dos Reis Batista
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Francisco Jeimes de Oliveira Paiva
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Universidade Estadual do Ceará, Brasil
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Gabriella Eldereti Machado
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Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
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Fernanda Wanderer
Daiane Martins Bocasanta
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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E244 Educação na contemporaneidade: questões e desafios.
Fernanda Wanderer, Daiane Martins Bocasanta organizadoras. São Paulo: Pimenta Cultural, 2021. 283p..
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5939-140-0 (eBook)
1. Educação. 2. Ensino. 3. Aprendizagem. 4. Escola.
5. Inclusão. 6. Matemática. 7. Pedagogia. I. Wanderer,
Fernanda. II. Bocasanta, Daiane Martins. III. Título.
CDU: 370
CDD: 370
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400
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Telefone: +55 (11) 96766 2200
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2
0
2
1
DEDICATÓRIA
Michel Foucault, ao encerrar a Aula Inaugural proferida no
Collège de France, em 2 de dezembro de 1970, publicada no
livro A Ordem do Discurso, agradece a alguns autores que o
inspiraram e auxiliaram na elaboração de sua aula. Mas, de
forma especial, expressa sua dívida a Jean Hyppolite. Diz
Foucault (2001, p.78): “é porque tomei dele, sem dúvida, o
sentido e a possibilidade do que faço, é porque muitas vezes
ele me esclareceu quando eu tentava às cegas, que eu quis
situar meu trabalho sob seu signo e terminar, evocando-o, a
apresentação de meus projetos”.
Inspiradas nas palavras e na bela homenagem que Foucault
endereça a Jean Hyppolite, dedicamos este livro a Gelsa Knijnik,
que ao longo de sua trajetória profissional nos mobilizou,
impulsionou e nos esclareceu com seu rigor acadêmico, sua
imensa capacidade intelectual e enorme generosidade!
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições
Loyola, 2001.
SUMÁRIO
Apresentação ................................................................................. 13
Prefácio .......................................................................................... 19
Capítulo 1
Trabalhar com a “realidade”
na educação do campo................................................................. 23
Fernanda Wanderer
Daiane Martins Bocasanta
Capítulo 2
Escola de surdos, matemática
e processos de normalização ....................................................... 45
Fernando Henrique Fogaça Carneiro
Capítulo 3
Currículo bilíngue na educação básica ........................................ 63
Maria Luísa Lenhard Bredemeier
Capítulo 4
As questões étnico-raciais
no ensino fundamental .................................................................. 78
Mônica Nunes
Capítulo 5
Práticas de iniciação científica na escola ..................................... 98
Daiane Martins Bocasanta
Luciane Andreia Leite dos Santos
Tanise Müller Ramos
Capítulo 6
Ensinar matemática nos anos iniciais:
enunciados que constituem docências ...................................... 117
Fernanda Longo
Capítulo 7
Governamentalidade e o exame nacional
do ensino médio (ENEM) ............................................................ 135
Marília Dal Moro
Capítulo 8
Redesenhos curriculares
em cenários de pandemia ........................................................... 152
Camila da Silva Fabis
Caroline Brandelli Garziera
Capítulo 9
Literatura potencial: uma aliada
da educação matemática ............................................................ 168
Josaine de Moura
Capítulo 10
Ensinar e aprender
matemática com o Youtube ......................................................... 185
Débora de Lima Velho Junges
Lucas Pereira da Rosa
Capítulo 11
Estratégias de ensino
em tempos de virtualização ........................................................ 201
Ieda Maria Giongo
José Cláudio del Pino
Marli Teresinha Quartieri
Capítulo 12
Educação matemática, currículo
e curso técnico agrícola .............................................................. 217
Neila de Toledo e Toledo
Capítulo 13
Formação de recursos humanos
para as áreas tecnocientíficas .................................................... 236
Giovana Alexandra Stevanato
Capítulo 14
Avanços tecnocientíficos, matemática
escolar e formação de professores ............................................ 255
Fernanda Zorzi
Juliana Meregalli Schreiber
Karine Pertile
Sobre as organizadoras .............................................................. 275
Sobre os autores e as autoras .................................................... 276
Índice remissivo .......................................................................... 281
APRESENTAÇÃO
Daiane Martins Bocasanta
Fernanda Wanderer
Compreendam bem que o compromisso que está em
questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente
no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que
urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a
intempestividade, o anacronismo que nos permite apreender o
nosso tempo na forma de um “muito cedo” que é, também, um
“muito tarde”, de um “já” que é, também, um “ainda não”. E do
mesmo modo, reconhecer nas trevas do presente a luz que,
sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem
até nós (AGAMBEN, 2009, p. 65-66).
O desafio que guiou a construção deste livro foi pensar e discutir a
Educação na contemporaneidade que, para Agamben (2009), pode ser
entendida como uma ligação singular que estabelecemos com o próprio
tempo. Sendo assim, cada um e cada uma de nós mobiliza diferentes
relações com o tempo. Disso resulta que “aqueles que coincidem muito
plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não
conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela” (AGAMBEN,
2009, p. 59). Precisamos ser capazes de enxergar não apenas as luzes
originadas em nossa época, mas antes, descobrir suas trevas, aquilo que
apenas desencaixes com o próprio tempo permitiriam entrever.
É neste jogo entre dissociações e anacronismos temporais que
as pesquisas aqui apresentadas se inspiraram para problematizar
diferentes questões e desafios da Educação. A maioria delas, relativas
aos problemas que a escola – essa instituição eternamente em
crise – enfrenta. Essa crise, entendida como um modo de governo
(DARDOT; LAVAL, 2016), passa-nos a impressão de que a escola já
SUMÁR I O
13
não pertenceria a este tempo e época, devendo ser completamente
reformada (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017).
Podemos dizer que o ano de 2020 marca a imersão do mundo
em uma lógica sem precedentes na história mais recente. Tivemos
a oportunidade de observar como algo minúsculo, impossível de
visualizarmos a olho nu – tal como é um vírus – é capaz de constituirse em elemento poderoso, responsável pela obstrução de fronteiras,
abalos na economia, caos na área da saúde e fechamento de escolas,
privando professores e alunos dos espaços formais de ensino,
aprendizagem e convivência.
Nesse sentido, nós, como docentes pesquisadores(as),
reinventávamos a sala de aula que se deslocou para nossas casas
– e de nossos alunos e alunas também – em meio a rotinas caseiras,
panelas, filhos e reuniões virtuais, enquanto dávamos forma a este livro.
Todo esse contexto, ao invés de nos paralisar, evidenciou ainda mais
a necessidade de nos debruçarmos sobre o que ocorre no campo
educacional na contemporaneidade. Inclusive, alguns dos estudos
que aqui apresentamos se encarregam de refletir precisamente sobre
aspectos emergentes da pandemia causada pela COVID-19. Porém,
cabe ressaltar, os trabalhos aqui reunidos, longe de apontarem erros,
discordâncias, crises e mazelas, inspiram direcionamentos, fomentam
nossas percepções, aguçam nossa crítica, levam-nos a problematizar
e, com isso, fazer frente à constatação de Deleuze e Guattari (1992, p.
139) de que “falta-nos resistência ao presente”.
Mobilizados por esta tentativa de resistir ao presente, os autores
dos capítulos deste livro aceitaram nosso desafio de mostrar algumas
das questões emergentes no campo educacional, produzidas em diferentes espaços. Assim, a obra reúne pesquisas e estudos desenvolvidos por pesquisadoras e pesquisadores de diferentes instituições,
como Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Universidade do Vale do
SUMÁR I O
14
Taquari (UNIVATES), Instituto Federal Catarinense (IFC), Universidade
Federal de Rondônia (UNIR), Universidade La Salle (UNILASALLE), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul
(IFRS), Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Colégio Militar de
Porto Alegre (CPMA), Rede Marista, Colégio de Aplicação da UFRGS
(CAp/UFRGS), Colégio Farroupilha e Colégio Teutônia.
A arquitetura do livro buscou evidenciar a abordagem de diferentes facetas que compõem desafios com os quais nos deparamos
ao discutir a Educação. Destarte, o primeiro capítulo, escrito por Fernanda Wanderer e Daiane Martins Bocasanta, intitulado “Trabalhar
com a ‘realidade’ na Educação do campo” apresenta resultados de
uma pesquisa que examinou enunciações sobre a escola do campo
produzidas por estudantes de um Curso de Licenciatura em Educação do Campo do Rio Grande do Sul. Dentre outros resultados,
esse estudo mostrou a recorrência de enunciados que enfatizam a
necessidade de se “trabalhar com a realidade” dos educandos da
escola do campo. O capítulo seguinte, de Fernando Henrique Fogaça
Carneiro, denominado “Escolas de surdos, matemática e processos
de normalização”, problematiza questões relativas à Educação Matemática escolar e seus processos de normalização na contemporaneidade. Realizada em uma escola bilíngue para alunos surdos,
a investigação mostrou que, de forma recorrente, ao se referirem
aos alunos que não aprendem ou que apresentam “dificuldades de
aprendizagem”, as enunciações examinadas posicionam sempre os
próprios estudantes como responsáveis pelo seu “fracasso”.
“Currículo bilíngue na Educação Básica”, de Maria Luísa Lenhard
Bredemeier, é o terceiro capítulo do livro que toma como temática a
discussão do movimento empreendido nas últimas décadas por escolas
privadas na estruturação e implementação de currículos bilíngues. O
material de pesquisa constitui-se de textos disponíveis em sites de
escolas que divulgam essa metodologia. Logo a seguir, a discussão
SUMÁR I O
15
de questões relacionadas a tensionamentos étnico-raciais na área da
Educação, com a análise de enunciações de alunos dos Anos Finais do
Ensino Fundamental acerca de marcadores étnico-raciais que operam
na escola e no município de Estrela (RS), marca o capítulo de Mônica
Nunes, intitulado “As questões étnico-raciais no Ensino Fundamental”.
Na sequência está o capítulo “Práticas de Iniciação Científica na escola”, no qual Daiane Martins Bocasanta, Luciane Andreia Leite dos Santos e Tanise Müller Ramos examinam efeitos de práticas de Iniciação
Científica realizadas junto ao corpo discente do Colégio de Aplicação
da UFRGS. Buscando refletir acerca de possibilidades de ressignificação da docência na escola contemporânea, as autoras compartilham
algumas experiências gestadas com a intenção de qualificar o trabalho
docente e as condições de permanência dos estudantes.
Na mesma linha do capítulo anterior, o texto “Ensinar matemática
nos Anos Iniciais: enunciados que constituem docências”, Fernanda
Longo também tem como foco práticas pedagógicas colocadas em
funcionamento por professoras que atuam no Ensino Fundamental. A
partir de entrevistas com docentes da rede privada de Porto Alegre/
RS, a autora problematizou enunciados que conformam o discurso
da Educação Matemática, buscando perceber os efeitos de verdade
desses enunciados sobre as práticas pedagógicas. Já o capítulo de
Marília Dal Moro, “Governamentalidade e o Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM)” aborda algumas discussões teóricas levadas a cabo
acerca dos efeitos produzidos pelo ENEM nas escolas, nos cursos de
preparação para vestibulares, nas editoras de materiais didáticos, etc.
Na sequência, temos o estudo “Redesenhos curriculares em
cenários de pandemia”, em que Camila da Silva Fabis e Caroline
Brandelli Garziera discutem acerca das mudanças advindas no
período de paralisação das aulas presenciais nos colégios privados
do Estado do Rio Grande do Sul, durante o ano letivo de 2020,
decorrente da pandemia do COVID-19. Já o capítulo de Josaine
SUMÁR I O
16
de Moura, também gestado em meio a um tempo de restrição da
liberdade regulada, imposto pela pandemia de COVID-19, intitulase “Literatura potencial: uma aliada da educação matemática”.
Nele é possível encontrar reflexões sobre outras formas de ensinar
matemática inspiradas pelo encontro com os escritos de um grupo
criado em 1960, o OuLiPo (Oficina de Literatura Potencial).
A preocupação com os processos de ensino e aprendizagem
de matemática também fazem parte do capítulo denominado “Ensinar
e aprender matemática com o Youtube”. Nesse estudo, Débora de
Lima Velho Junges e Lucas Pereira da Rosa encarregam-se da análise
do Youtube como ferramenta de aprendizagem pelos alunos do
Ensino Médio Integrado de uma instituição de ensino da rede federal.
Na sequência está o estudo “Estratégias de ensino em tempos de
virtualização”, de Ieda Maria Giongo, José Cláudio del Pino e Marli
Teresinha Quartieri no qual refletem sobre as possibilidades e limitações
que a rápida mudança da metodologia de aula de uma disciplina
presencial de um Programa de Pós-Graduação em Ensino para o ensino
virtualizado suscitou a partir do surgimento da pandemia de COVID-19.
Os resultados de uma pesquisa que objetivou analisar os efeitos
do discurso da tecnociência presentes na Educação Matemática praticada na disciplina de matemática e na Educação Matemática gestada
nas disciplinas técnicas do curso Técnico em Agropecuária do IFRS-Sertão, na década de 1980 e na atualidade (entre 2008 e 2015), conformam o capítulo escrito por Neila de Toledo e Toledo. Intitulado “Educação Matemática, Currículo e Curso Técnico Agrícola”, o estudo mostrou
que, nas últimas três décadas, a lista de conteúdos da disciplina de
Matemática não se alterou e que a Educação Matemática da disciplina Matemática manteve sua abordagem abstrata e formal, enquanto a
Educação Matemática presente nas disciplinas técnicas se alinhou com
o discurso da tecnociência, incluindo recursos tecnológicos.
SUMÁR I O
17
Giovana Alexandra Stevanato apresenta, em seu capítulo denominado “Formação de recursos humanos para as áreas tecnocientíficas”, discussões sobre a formação de recursos humanos para
as áreas tecnocientíficas. Para tanto, a autora examinou o Programa
Ciência sem Fronteiras (CsF), tendo como material de pesquisa documentos presentes no site do programa. Finalizamos o livro com o
capítulo “Avanços tecnocientíficos, matemática escolar e formação de
professores”, de Fernanda Zorzi, Juliana Meregalli Schreiber e Karine
Pertile. A investigação visou a problematizar a formação continuada de
professores para a Matemática escolar, refletindo sua relação com os
avanços científicos e tecnológicos contemporâneos, em especial, no
contexto da pandemia causada pelo novo coronavírus.
Desse modo, temos o orgulho de apresentar nossa obra, fruto
do esforço coletivo de um grupo de pesquisadoras e pesquisadores
preocupados em problematizar, discutir, pensar e repensar a Educação
na contemporaneidade. Desejamos a todos uma ótima leitura!
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009.
DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: Uma questão pública.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
SUMÁR I O
18
PREFÁCIO
O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um demônio
lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e
dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você
terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada
haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro
e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno
em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma
sequência e ordem (...). A perene ampulheta do existir será
sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”
– Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o
demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante
imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais
ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta
de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria
talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso
mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus
atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar
bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além
dessa última, eterna confirmação e chancela?
(NIETZSCHE, 2007, §341)
Livros – De que vale um livro que não nos transporte além dos livros?
(NIETZSCHE, 2007, §248)
Co(m)ovida com o convite feito por Fernanda e Daiane para
escrever este prefácio, foi em Nietzsche que busquei inspiração para
dar início à sua escrita. Pelo que conhecia de sua obra, acreditava
que seria ele quem poderia me ajudar a dar início ao texto, um início
que seria o condutor de ideias ainda muito incipientes... Estaria
bem acompanhada por esse filósofo, que viveu na segunda metade
do século XIX, e que trouxe à tona questões vigentes no panorama
histórico e cultural do tempo presente. Formulou conceitos que, de
modo radical, transformaram a filosofia contemporânea, muitos deles
expressos também através de aforismos.
SUMÁR I O
19
Com convicção afirmo que Educação na Contemporaneidade
é um livro que nos transporta para além dele mesmo. Isso porque foi
concebido como um conjunto de capítulos que examinam importantes
temas do tempo presente, discutidos mediante uma literatura atual,
relevante e abrangente, que nos convocam a pensar sobre questões que
extrapolam os contextos específicos ali analisados. Somos instigados
a pensar sobre nosso próprio pensamento, a nos questionar sobre o
que, muitas vezes, tomamos como “dado”, quer seja em nossa prática
docente ou em nossa atividade de pesquisa no âmbito educacional.
Então, pergunto: O que de mais importante pode haver em uma
coletânea do que aguçar nossa atitude reflexiva diante ao que aí está?
Frente ao que somos e o que fazemos como profissionais da Educação?
Mas esta coletânea tem também uma outra dimensão que,
neste prefácio, desejo destacar. Refiro-me ao diversificado conjunto
de instituições aos quais seus autores estão vinculados. Caberia
indagar se Fernanda e Daiane, ao organizarem a obra, tiveram algum
critério para sua escolha. A resposta a essa indagação é positiva. Em
efeito, o que, em um primeiro momento, poderia parecer aleatório,
não ocorreu: os (primeiros)autores de cada capítulo do livro têm
vínculos com o Grupo Interinstitucional de Pesquisas em Educação
Matemática e Sociedade – GIPEMS1, coordenado por mim e com
sede na Unisinos, até a presente data.
A institucionalização do GIPEMS ocorreu em um tempo bem
posterior ao meu início como professora do Programa de PósGraduação em Educação da Unisinos, em 1996, quando orientei as
primeiras dissertações de Mestrado de Fernanda Wanderer e Ieda
Giongo, tendo posteriormente, ambas também realizado doutorado
1
SUMÁR I O
Ao longo do tempo, o GIPEMS foi ampliado para incorporar o Grupo de Pesquisa coordenado
pela Professora Maria da Conceição Reis da Fonseca, do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFMG. No entanto, neste texto, para fins de simplificação de notação, ao
utilizar a expressão GIPEMS estarei me referindo somente ao GIPEMS-Unisinos.
20
sob minha supervisão. A família intelectual2 (Souza et al, 2018) foi se
ampliando, com o “nascimento” da “primeira neta”: Daiane Bocasanta,
que havia feito Trabalho de Conclusão com Fernanda. Ambas, ao se
proporem a organizar este livro, conceberam-no como um conjunto
de textos escritos por membros de nossa família, agora composta por
meus filhos e netos. Sinto-me especialmente orgulhosa ao me dar conta
de como essa família hoje se ampliou rizomaticamente, conformando
núcleos de pesquisa, ensino e extensão em diferentes instituições de
Ensino Superior, inclusive para além do Rio Grande do Sul. Certamente
este é o maior legado que deixo de minha trajetória acadêmica.
Desejo terminar este texto parafraseando o aforismo O
maior dos pesos, de Nietzsche, transcrito em seu início. O que
responderia eu a um demônio que aparecesse furtivamente quando
eu estivesse na minha mais desolada solidão, frente à sua pergunta,
agora restrita à vida acadêmica, construída com meus orientandos
e que foi se transformando, gradativamente, no GIPEMS: Esta vida
acadêmica, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver
mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo
nela, mas cada dor da escrita de um artigo, da orientação de um
estudante e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que
é inefavelmente grande e pequeno em sua vida acadêmica, terão
de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem (...)
A perene ampulheta do existir academicamente será sempre virada
novamente – e você com ela, partícula de poeira!”!
Eu certamente não me prostraria, tampouco tangeria os dentes
e muito menos o amaldiçoaria.
2
SUMÁR I O
O autor utiliza a expressão família intelectual para se referir a um conjunto de produções
acadêmicas que “remetem a uma unidade intelectual, ou seja, a um estilo particular de
pensamento. Daí o uso heurístico atribuído à noção analítica de “família”.” (Souza et al,
2018, p. 109)
21
Mesmo que ele talvez me esmagasse e me transformasse, eu
experimentaria um instante intenso e lhe chamaria de deus, lhe diria
que jamais ouvira coisa tão divina. Isso porque eu tenho convicção de
que desejaria a construção desta família intelectual que leva o nome
de GIPEMS mais uma vez e por incontáveis vezes, mesmo que isso
pesasse sobre os meus atos como o maior dos pesos!
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SOUZA J., OLIVEIRA, V.M., MARCHI JÚNIOR, V. A “família intelectual” marxista
e os estudos sociais do esporte no Brasil – recepção, rotinização e implicações
epistemológicas. Revista Ciência e Movimento, v.26, n.2, 2018, p. 103-112.
Gelsa Knijnik
Dezembro de 2020
SUMÁR I O
22
Capítulo 1
1
TRABALHAR COM A “REALIDADE”
NA EDUCAÇÃO DO CAMPO
Fernanda Wanderer
Daiane Martins Bocasanta
Fernanda Wanderer
Daiane Martins Bocasanta
TRABALHAR
COM A “REALIDADE”
NA EDUCAÇÃO
DO CAMPO
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.23-44
INTRODUÇÃO
A Educação, na contemporaneidade, enfrenta diversos desafios
em suas muitas áreas de atuação perante a população. Uma dessas
áreas, que se encontra envolta em tensionamentos e disputas, é
a da educação do campo. Assim, neste capítulo, apresentamos os
resultados de uma investigação desenvolvida com o propósito de
examinar enunciações sobre a escola do campo3 produzidas por
estudantes de um Curso de Licenciatura em Educação do Campo do
Rio Grande do Sul. Para essa reflexão foram examinados documentos
do referido Curso e questionários aplicados em todas as turmas de
acadêmicos. O referencial teórico utilizado na investigação advém do
pensamento de Michel Foucault e Zygmunt Bauman.
A educação do campo, no Brasil, enfrenta grandes e complexos
desafios que se efetivam na falta de escolas e de professores com
formação específica, nos escassos materiais pedagógicos direcionados
às culturas do campo, em problemas de acesso e permanência da
população rural nas instituições de ensino, entre outros (HAGE, 2011;
ARROYO, 2007). Mesmo assim, ao longo das últimas décadas, podese observar que essa área da Educação tem sido mais discutida,
investigada e debatida. Essas ações emergem, basicamente, com a luta
de militantes e pesquisadores vinculados a movimentos sociais, como
o Movimento Sem Terra, que chamaram a atenção para a situação de
abandono e/ou inferioridade que as formas de vida do campo vinham
assumindo no currículo escolar e na sociedade (ARROYO, 2007;
CALDART, 2000, 2002, 2003; KNIJNIK, 2006).
3
SUMÁR I O
Ao mencionar, neste artigo, “educação do campo” ou “escola do campo”, seguimos
as Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2013, p. 443) que compreendem como
população do campo: “os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais,
os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores
assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros
que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural”.
24
Com isso, no cenário brasileiro contemporâneo, pode-se visualizar a inclusão da educação do campo em documentos oficiais do Ministério da Educação, como nas Diretrizes Curriculares Nacionais, e em
programas endereçados à escolarização básica, como o Programa Escola Ativa e o seu sucessor, Escola da Terra. Recentemente, a educação
do campo passa a ser foco também de políticas públicas cuja abrangência envolve não apenas a Educação Básica, mas também o Ensino
Superior, como o PRONACAMPO (Programa Nacional de Educação do
Campo). Essa política tem como propósito a ampliação e a qualificação
da oferta de Educação Básica e superior às populações localizadas em
zonas rurais. O Programa está organizado em quatro eixos: Gestão e
Práticas Pedagógicas; Formação Inicial e Continuada de Professores;
Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional; Infraestrutura
Física e Tecnológica (BRASIL, 2013b).
Decorre da organização dos eixos e do objetivo geral do
Pronacampo a realização de um conjunto de ações que atuam sobre
as formas de vida do campo. Ao examinarmos detalhadamente
suas medidas, percebemos o propósito de atingir essa esfera da
população por meio de ações como: distribuição de livros didáticos e
obras que contemplem as especificidades do campo e comunidades
quilombolas, promoção da educação integral nas escolas rurais,
criação de cursos de formação inicial e continuada para educadores
do campo, expansão de cursos de qualificação profissional específicos
para o campo, bolsa-formação para estudantes e trabalhadores rurais
e a disponibilização de uma série de recursos financeiros para compra
de móveis e equipamentos (BRASIL, 2013b).
Apoiando-nos nas teorizações foucaultianas sobre as práticas
de governamento e em estudos recentes que se serviram desse referencial para examinar políticas públicas para a educação do campo,
como os desenvolvidos por Knijnik e Wanderer (2013), Wanderer e
Knijnik (2014) e Wanderer (2017), compreendemos o Pronacampo
SUMÁR I O
25
como um conjunto de estratégias que fazem parte de um dispositivo
de governamento da população do campo. Nosso trabalho segue,
especificamente, o apontado por Knijnik e Wanderer (2013) quando
examinaram o Programa Escola Ativa (PEA), endereçado às escolas
multisseriadas do campo no período de 1997 até, aproximadamente,
2014. Analisando materiais disponibilizados pelo PEA aos alunos e
professores, bem como questionários aplicados a educadores que
atuavam no Programa, as autoras mostraram que o discurso do PEA
operava sobre professores, alunos, gestores das escolas multisseriadas do campo e, no limite, sobre a população camponesa no governo de suas condutas. Ao regular as condutas dos sujeitos, o PEA
funcionaria como parte de um dispositivo de governamento da população que institui uma visão despolitizada e romântica do campo e
posiciona a forma de vida camponesa em um patamar inferior ao da
forma de vida urbana (KNIJNIK; WANDERER, 2013).
Inspiradas naquela pesquisa, consideramos o Pronacampo
como uma política pública endereçada à população do campo que
também regula e conduz condutas dos sujeitos capturados por
ela. Nosso empreendimento analítico esteve focado em identificar,
descrever e problematizar enunciações – entendidas como centrais
na operação da razão governamental estabelecida em determinada
época e para certas sociedades (MARÍN-DIAZ, 2012) – engendradas
em uma das instâncias do Pronacampo: os Cursos de Licenciatura
em Educação do Campo. Nesse ínterim, a noção foucaultiana de
governamentalidade é relevante para evidenciar práticas inscritas em
um dispositivo que opera por meio de múltiplas estratégias visando
ao governamento de todos e de cada um. No entanto, em que
consiste a governamentalidade em um registro foucaultiano?
Ao discutir a emergência do conceito de população, Foucault
(2008) problematiza as formas de poder e regulação que passam a
operar sobre ela com o propósito de melhor governá-la. Nesse ponto,
o filósofo introduz o conceito de governamentalidade para abordar as
SUMÁR I O
26
diversas maneiras de governar, destacando “o governo de si mesmo,
que pertence à moral; a arte de governar uma família como convém,
que pertence à economia; enfim a ‘ciência de bem governar’ o Estado,
que pertence à política” (FOUCAULT, 2008, p. 125).
As noções de governo e de governamentalidade, de acordo
com Castro (2009), estão no centro da obra de Foucault. “Quanto à
noção foucaultiana de governo, ela tem, para expressá-lo de alguma
maneira, dois eixos: o governo como relação entre sujeitos e o governo
como relação consigo mesmo” (CASTRO, 2009, p. 190). Pode-se dizer
que, no primeiro eixo, considera-se governar no sentido de conduzir
condutas de um grupo ou indivíduo. E, no segundo, são enfatizadas
as relações estabelecidas consigo mesmo, na medida em que se
trata de dominar prazeres e desejos. Nesta escrita, estamos usando
a noção foucaultiana do primeiro eixo, ou seja, governar no sentido
de conduzir condutas de um grupo ou indivíduo.
A governamentalidade, então, possibilita-nos conceber
o Pronacampo e o conjunto de ações que dele são engendradas
como mecanismos de regulação e controle das condutas dos
sujeitos. Uma dessas ações é a criação e expansão dos Cursos de
Licenciatura em Educação do Campo no País (DUARTE; SANTOS,
2015; SACHS; ELIAS, 2016), lócus de nosso estudo. Esses Cursos
são realizados pelas Universidades Federais e Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia em regime de alternância: tempouniversidade e tempo-comunidade. Oferecem habilitação para
docência multidisciplinar nos Anos Finais do Ensino Fundamental e
Ensino Médio em uma destas áreas: linguagens e códigos, ciências
humanas, ciências da natureza, matemática e ciências agrárias.
Por ser uma política pública presente em todas as regiões
do País, envolvendo professores e estudantes interessados nos
processos educativos das escolas do campo e as comunidades
onde essas instituições se localizam, os Cursos de Licenciatura em
SUMÁR I O
27
Educação do Campo têm sido objeto de pesquisas recentes como
as de Molina e Hage (2016), Sá (2016) e Angelo (2013). Nossa
investigação se aproxima desses estudos pelo fato de examinar
enunciações de acadêmicos do referido Curso sobre a escola do
campo. Porém, a diferença está nas lentes teóricas adotadas e no
lócus da investigação, que será apresentado na próxima seção.
METODOLOGIA
A parte empírica do estudo foi realizada com acadêmicos do
Curso de Licenciatura em Educação do Campo, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Como previsto no Projeto
Político Pedagógico do Curso, o licenciado está habilitado a atuar:
na disciplina de Ciências, nos Anos Finais do Ensino Fundamental;
nas disciplinas de Química, Física e Biologia, no Ensino Médio; na
Modalidade Educação de Jovens e Adultos e na Educação Profissional.
Também poderá executar projetos de desenvolvimento sustentável
utilizando a agroecologia. Em relação à estrutura curricular, o Curso
caracteriza-se pela pedagogia da alternância, dividindo os períodos
de formação entre o “Tempo Comunidade” e o “Tempo Universidade”.
O material de pesquisa examinado é composto por documentos do Curso (como o Projeto Político Pedagógico e as ementas das
disciplinas) e questionários aplicados em todas as turmas. Esse questionário visava, além de conhecer elementos das trajetórias escolar
e profissional dos acadêmicos, a identificar suas concepções sobre
uma escola do campo. No momento da aplicação dos questionários,
três turmas frequentavam a Licenciatura em Educação do Campo, em
Porto Alegre: a primeira, com ingresso em 2014, possuía 6 alunos; a
segunda, com entrada em 2015, tinha 24 alunos, e a terceira, com
ingresso em 2016, era composta por 49 alunos.
SUMÁR I O
28
Nos dias em que os questionários foram aplicados, nem todos
os alunos matriculados estiveram presentes. Desse modo, obtivemos
ao todo 47 questionários. A análise quantitativa desse material mostrou
que todos os estudantes do Curso residem na região metropolitana
de Porto Alegre. Predominam moradores da zona urbana, sendo que
apenas uma aluna reside em uma comunidade quilombola e outra em
um assentamento. Examinando a trajetória acadêmica dos estudantes,
verificou-se que 61% do grupo não possuíam formação anterior
na área da Educação, ou seja, 36% dos alunos não mencionaram
outra formação, e 25% do grupo declararam ter frequentado Cursos
Técnicos Profissionalizantes em áreas como Agropecuária, Logística,
Segurança do Trabalho, Eletrônica, Meio Ambiente, Auxiliar de
Empresa e Gestão – RH. Apenas um aluno possuía Curso Superior
completo, no caso, em Administração de Empresas.
Os demais estudantes possuíam vínculo (anterior ou atual)
com a área da Educação. Desses, alguns declararam que iniciaram
Curso Superior em diferentes Licenciaturas como História, Pedagogia,
Ciências Naturais, Educação Física, Biologia e Letras, mas não
concluíram, basicamente, por problemas financeiros. Atuavam como
professores apenas nove acadêmicos do Curso: três nos Anos Iniciais
do Ensino Fundamental, um na área de História, e cinco afirmaram ser
professores em escolas do campo.
A estratégia analítica posta em ação para operar com o material
de pesquisa reunido foi orientada pela análise do discurso em uma
perspectiva foucaultiana. Na ocasião de uma entrevista concedida a
Claude Bonnefoy, em 1968, Foucault (2016, p. 42) expressou que sua
preocupação, nos últimos dez anos, era entender o que seria, em uma
cultura como a nossa, em uma sociedade, “a existência das falas, da
escrita, do discurso”. Dando continuidade à sua linha de pensamento,
o filósofo argumentou que “os discursos não são apenas uma espécie
de película transparente através da qual se veem as coisas, não são
SUMÁR I O
29
simplesmente o espelho daquilo que se pensa” (FOUCAULT, 2016,
p. 42). Nesse sentido, os discursos – tal como recorrentemente é
citado, quando a arquitetura de uma pesquisa é constituída a partir da
análise do discurso na clave foucaultiana – são “práticas que formam
sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2002, p. 56).
Desse modo, tendo em mãos os questionários e os documentos do
Curso, nossa pretensão foi dar visibilidade e examinar as recorrências,
isto é, buscar pelos enunciados que se faziam presentes naquilo que
os alunos escreveram e no que líamos no PPP do Curso.
Os enunciados, seguindo aquilo que aprendemos com Foucault
e alguns de seus comentadores, como Deleuze (2006), Veiga-Neto
(2003) e Fischer (2012), não seriam palavras, frases ou proposições,
mas formações que se fazem visíveis quando os sujeitos das frases,
os objetos da proposição e os significados das palavras mudam de
natureza. Isso ocorre quando esses elementos tomam o lugar do
“diz-se”, distribuindo-se, dispersando-se na espessura da linguagem
(DELEUZE, 2006). Isso possibilita, como argumenta Fischer (2012, p.
103), questionar “[...] como algumas práticas acabam por objetivar
e nomear de determinada forma os sujeitos, os grupos, suas ações,
gestos, vidas”. No caso deste trabalho, podemos refletir o quanto as
ideias que circulam sobre escola do campo se fazem presentes naquilo
que dizem os licenciandos. Não só naquilo que dizem, mas naquilo
que pode direcionar suas formas de conceber as escolas do campo,
suas ações e gestos como futuros educadores. Por conseguinte, é
isso que buscamos apresentar na próxima seção.
SUMÁR I O
30
ESCOLA DO CAMPO, GESTÃO DO
RISCO E A GUETIZAÇÃO
A análise do material evidenciou algumas recorrências sobre
as concepções dos acadêmicos do Curso de Licenciatura sobre a
escola do campo. Nos questionários, em especial, quando solicitados
a escrever sobre uma escola que atende crianças e jovens das
zonas rurais, eles expressaram a necessidade de valorizar a cultura
presente no campo, levando em conta, no processo de escolarização,
principalmente, a “realidade” do grupo atendido:
Pra mim uma escola do Campo tem que ter, além de estrutura,
salas, pessoal, mas tem que ser uma escola viva, ligada a
realidade dos alunos e para isso acontecer todos, todos,
tem que conhecer as famílias dos alunos, as pessoas que ali
trabalham precisam querer estar ali, respeitar aquelas pessoas
e incentivar as crianças para todas as possibilidades que
existem no mundo.
A escola do campo deveria ser mais próxima à realidade do
campo. Abranger os conhecimentos necessários e de acordo
com os saberes e a cultura desse povo. Utilizar métodos que
sejam reconhecidos por eles. Há diferenças entre a escola
do campo e da cidade. A escola da cidade é voltada para
a formação profissional, e do campo utiliza os saberes já
existentes e através de metodologia deve ensinar respeitando
a cultura já existente.
[A escola do campo é] um território, um espaço no qual valorize a
trajetória daquele indivíduo empoderando-o. Resgatando aquela
cultura daquele campo. Sim, há uma diferença, os indivíduos e
cada comunidade e grupo tem que ter uma metodologia, uma
maneira de lecionar.
Uma escola do campo deve dialogar com o contexto e realidade
das populações e povos do campo. Para além dos conteúdos
que dizem ser essencial para a aprendizagem, tem que dialogar
com os saberes culturais existentes.
SUMÁR I O
31
Os excertos selecionados evidenciam que a escola do campo
precisa estar “ligada à realidade”, “próxima” do campo, mantendo
“diálogo” com os saberes culturais dos alunos. Para isso, é preciso, nas
palavras dos estudantes, conhecer as famílias presentes nas escolas,
utilizar metodologias que sejam reconhecidas pelos discentes e valorizar
suas trajetórias individuais. Chama a atenção a recorrência da ideia de
que a escola do campo “deve” trabalhar com a forma de vida do campo.
Do mesmo modo, a vida no campo e o tipo de trabalho ali
realizado parece ser entendido de uma forma diferente daquele do
meio urbano. Os saberes que circulam na forma de vida do campo, no
dizer dos licenciandos, não precisam de uma “validação acadêmica”,
ao contrário dos saberes necessários ao mundo do trabalho do meio
urbano. Como descreveu uma das participantes da pesquisa: “a
escola da cidade é voltada para a formação profissional, e a do campo
utiliza os saberes já existentes e através de metodologia deve ensinar
respeitando a cultura existente”.
Lendo atentamente as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação do Campo (BRASIL, 2013a), bem como documentos
do Pronacampo (BRASIL, 2013b) e do Curso de Licenciatura,
percebemos que há a constituição de uma verdade relacionada à
ideia de que as escolas do campo precisam contemplar a realidade
do campo. Essa verdade, no sentido analisado por Foucault (2003),
encontra sustentação em diferentes enunciações presentes nos
materiais escrutinados e em documentos oficiais. Excertos das
Diretrizes Curriculares Nacionais evidenciam essa questão:
a identidade da escola do campo é definida pela sua
vinculação com as questões inerentes à sua realidade,
ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos
estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na
rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos
movimentos sociais em defesa de projetos que associem as
SUMÁR I O
32
soluções exigidas por essas questões à qualidade social da
vida coletiva no País (BRASIL, 2013a, p. 45).
A educação para a população rural está prevista no artigo 28
da LDB, em que ficam definidas, para atendimento à população
rural, adaptações necessárias às peculiaridades da vida rural
e de cada região, definindo orientações para três aspectos
essenciais à organização da ação pedagógica: I – conteúdos
curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades
e interesses dos estudantes da zona rural; II – organização
escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às
fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III – adequação
à natureza do trabalho na zona rural (BRASIL, 2013a, p. 45).
As propostas pedagógicas das escolas do campo devem
contemplar a diversidade do campo em todos os seus aspectos:
sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração
e etnia. Formas de organização e metodologias pertinentes
à realidade do campo devem, nesse sentido, ter acolhida
(BRASIL, 2013a, p. 45).
Além das Diretrizes, consideramos pertinente destacar também
alguns fragmentos presentes na Portaria n. 86, de 1º de fevereiro de
2013 (BRASIL, 2013b), que institui o Pronacampo. No texto é expresso
que os princípios da educação do campo consistem em: “respeito à
diversidade do campo em seus aspectos sociais, culturais, ambientais,
políticos, econômicos, de gênero, geracional e de raça e etnia”; “incentivo
à formulação de projetos político-pedagógicos específicos para as
escolas do campo […]”; “valorização da identidade da escola do campo
por meio de projetos pedagógicos com conteúdos e metodologias
adequadas às reais necessidades dos alunos do campo”.
Também, no Projeto Político Pedagógico do Curso de
Licenciatura aqui examinado e em algumas ementas de disciplinas,
observa-se uma forte alusão à importância de que as escolas do
campo trabalhem com essa forma de vida:
SUMÁR I O
33
A proposta curricular do curso possibilitará que o licenciando
vivencie em seu cotidiano acadêmico a valorização e a produção
de conhecimentos e saberes contextualizados no mundo da
vida rural, em particular os mundos do trabalho docente e do
Campo (PPP do Curso).
Constituição da docência, a partir da investigação de
conhecimentos técnico-científicos, de saberes advindos do
exercício profissional escolar e de práticas socioculturais que
se articulam com questões inerentes à realidade do campo.
Possibilidades de recriação de uma docência peculiar do/no
campo (Ementa da disciplina Introdução à Docência no Campo).
Estudo do pensamento educacional curricular, com ênfase na
perspectiva do currículo como produção cultural. Investigação
de saberes e práticas da vida e trabalho no campo, visando
possibilidades de instituí-los como conteúdos escolares (Ementa
da disciplina Currículo para uma Educação do Campo).
Os excertos selecionados ajudam-nos a pensar, pelo menos,
em duas questões. Uma delas diz respeito à constituição da escola
do campo como sendo “definida pela sua vinculação com as
questões inerentes à sua realidade”, ou seja, com a forma de vida
do campo. Que escola seria essa? Os acadêmicos e os documentos
examinados enunciam: uma instituição que aborde saberes, práticas
e metodologias específicas às necessidades e aos interesses dos
estudantes do campo, cujo calendário também se ajuste “às fases
do ciclo agrícola e às condições climáticas”.
Além disso, é preciso que na escola sejam trabalhados vários
elementos da forma de vida do campo, provenientes de questões
sociais, culturais, políticas, econômicas, envolvendo ainda os
marcadores de gênero, geração e etnia. Para isso, é necessário
que os docentes investiguem “saberes e práticas da vida e do
trabalho no campo” para “instituí-los como conteúdos escolares”.
Ou seja, interessa-nos aqui mostrar o quanto a escola do campo é
concebida como uma instituição específica, voltada aos interesses e
às necessidades da comunidade na qual se insere.
SUMÁR I O
34
A segunda questão relaciona-se aos fortes entrelaçamentos
entre as enunciações presentes nos documentos examinados com
aquilo que dizem os alunos (das três turmas) do Curso. Chama a
atenção que a menção à relevância de a escola do campo trabalhar
com a realidade, contexto ou especificidade do campo foi recorrente
nas três turmas de alunos, não sendo possível identificar diferenças,
nesse sentido, entre as enunciações daqueles que estão nas etapas
finais com aqueles que frequentam os semestres iniciais. Isso nos leva
a pensar que os acadêmicos estão capturados pelo enunciado que diz
que a escola do campo deve trabalhar com a forma de vida do campo.
Podemos entender a recorrência desse enunciado de diferentes
modos. Entre eles, a de que essa valorização atende a uma urgência,
ou seja, manter no campo a população do campo. Isso pode ser
evidenciado, por exemplo, no Parecer n. 36, de 4 de dezembro de
2001, que trata das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica
nas Escolas do Campo (BRASIL, 2001). Dentre as razões elencadas
para a aprovação do documento, destaca-se que a forma de vida do
campo – a partir do olhar de estudiosos – tenderia a desaparecer:
Por sua vez, a partir de uma visão idealizada das condições
materiais de existência na cidade e de uma visão particular do
processo de urbanização, alguns estudiosos consideram que a
especificidade do campo constitui uma realidade provisória que
tende a desaparecer, em tempos próximos, face ao inexorável
processo de urbanização que deverá homogeneizar o espaço
nacional. Também as políticas educacionais, ao tratarem o
urbano como parâmetro e o rural como adaptação reforçam
essa concepção (BRASIL, 2001, p. 2).
Examinando esse trecho do parecer, podemos dizer que há
uma crítica ao modelo vigente de escola que, ao tratar o urbano como
parâmetro e o rural como uma adaptação, reforçariam essa visão de
que o campo está em extinção. Esse modelo também está presente
nas escritas dos estudantes do Curso que apregoam a necessidade
de aproximar a escola geograficamente situada no campo, com “a
SUMÁR I O
35
realidade” da forma de vida do campo. Parece haver um esforço
para manter “viva” a cultura do campo, por intermédio de uma escola
“viva”, que residiria na “realidade” dos alunos. Como descreveu uma
das participantes da pesquisa: “[...] tem que ser uma escola viva,
ligada à realidade dos alunos [...]”.
Isso, de certo modo, conecta-se à discussão tecida por
Bauman (2009) acerca da cidade. Trazendo ao seu texto diferentes
autores, o sociólogo polonês edifica seus apontamentos cercandose de diferentes pesquisas que mostram que a falta de trabalho para
todos no campo e o fenômeno da globalização teriam a ver com um
progressivo deslocamento das populações do campo para o espaço
urbano. Tomando o exemplo do Canadá, Bauman (2009) escreve
que um levantamento em Ontário indicou que a cada ano, com o
crescente investimento em tecnologia por parte dos agricultores, é
preciso menos gente para produzir.
O sociólogo prossegue em sua discussão atentando para o
fato de que, ainda que o incremento na produção, com a diminuição
de gastos, possa ter enriquecido a Ontário rural e melhorado a vida
de alguns agricultores, não há sinal de maior opulência, fator devido
principalmente à globalização. Apoiado em Van Donkersgoed, Bauman
(2009, p. 58) destaca que a globalização gerou uma “estrutura feita de
fusões e aquisições por parte das empresas” que fornecem praticamente
tudo aquilo que os agricultores necessitam. Desse fato, resultaria que os
lucros de uma maior produtividade saem das mãos dos trabalhadores
para essas grandes corporações que se apoderam do mercado,
usando seu poder econômico para obter tudo o que pretendem dos
agricultores, acabando inclusive com o comércio espontâneo, ou seja,
a troca de mercadorias entre iguais (BAUMAN, 2009, p. 59).
Outro exemplo que trazemos ao texto por empréstimo de
Bauman (2009) é o da Namíbia, um país que, segundo demonstram
as estatísticas, possui maior bem-estar econômico do continente
africano. Na Namíbia, tradicionalmente um país de camponeses,
SUMÁR I O
36
observa-se um grande decréscimo de sua população rural, ao mesmo
tempo em que a população da capital duplicou (BAUMAN, 2009).
Esse acúmulo populacional nas periferias da cidade, sem renda ou
emprego, teria a ver com a liberação do excesso de mão de obra
agrícola, fruto do crescimento da produtividade na agricultura. Assim
como no caso de Ontário, os grandes lucros não teriam ficado no
campo ou mesmo sido realocados para as cidades. Mais uma vez,
isso seria resultado do processo de globalização. Desse modo, as
cidades acabam transformando-se em “campos de refugiados” dos
que foram expulsos da agricultura (BAUMAN, 2009).
As cidades, segundo afirma Bauman (2009), teriam sido
organizadas com o intuito de manter o perigo afastado. Hoje, ao invés
de representarem defesas contra o perigo, elas estão se convertendo
em perigo. E esse perigo teria a ver com todo um contingente de
pessoas que, desprovidas dos meios para participar de forma efetiva
dos jogos de consumo acumulam-se nas periferias. De certo modo,
então, manter as populações do campo no campo tem implicação
direta com a gestão do risco.
Tomando como apoio as teorizações de Foucault, Fimyar (2009)
destaca que esta busca pela segurança por meio da gestão de risco
é um problema próprio do governo. Sendo a população a fonte do
Estado, para governar adequadamente e garantir sua otimização,
faz-se necessário que o governo se estabeleça como um governo
econômico, tanto no que diz respeito às finanças, quanto no que
concerne à sua forma de exercer poder. O liberalismo, enquanto
racionalidade governamental, tem, na “segurança” do desenvolvimento
socioeconômico da população, sua preocupação fundamental, tendo
em vista que a segurança da população é a base da prosperidade
do Estado (FIMYAR, 2009). Visando a alcançar essas metas, “[...] o
Estado liberal enquadra sua população aos aparatos de segurança –
de um lado, o exército, a polícia e os serviços de inteligência; de outro,
a educação, a saúde e o bem-estar” (FIMYAR, 2009, p. 40).
SUMÁR I O
37
Ao analisarem a inclusão a partir de políticas públicas de
assistência social no Brasil, Lopes et al. (2010, p. 8) consideraram
essas políticas como estratégicas biopolíticas de gerenciamento
do risco social, afirmando que “elas objetivam garantir a segurança
da população através dos programas e ações que colocam em
funcionamento”. Como as autoras argumentam, no Brasil, atualmente,
proliferam-se tais políticas. Desse modo, “não são poucos os benefícios
e programas sociais disponibilizados atualmente para a população
carente, assim como também não é pequeno o número de famílias
beneficiadas” (LOPES et al., 2010, p. 8). Essas políticas de inclusão
não apenas asseguram as necessidades básicas de sobrevivência de
seus beneficiários, mas servem para garantir sua presença em jogos
de marcado e com isso gerenciar os riscos que esse contingente
poderia oferecer para a vida coletiva (LOPES et al., 2010).
Nesse sentido o Pronacampo teria o mesmo papel, peracionalizando estratégias de governamento que visam a gerenciar os riscos
subjacentes à baixa escolaridade dessa população e ao desaparecimento dos vestígios da forma de vida do campo – que, por isso, poderia acabar “fora do campo”. Esse governamento se dá pela condução
da conduta de todos e de cada um. Porém, vale ressaltar que a condução da conduta não se efetiva de forma imposta ou violenta. Ela ocorre
em relação a sujeitos que se deixam conduzir. Isso também envolve
a captura da alma, do desejo e do interesse de todos e de cada um.
Portanto, podemos dizer que todo aparato disposto pelos
documentos que embasam a Educação do campo no Brasil hoje, a
formação docente voltada para a atuação na escola do campo e boa
parte da literatura voltada para esse segmento, captura a alma, os
desejos e o interesse de todos. Nesse sentido, os sujeitos acabariam
sendo envolvidos em tramas que posicionariam a “realidade” do
campo como meio e objetivo de práticas pedagógicas “eficientes”.
SUMÁR I O
38
Em outra aproximação com o pensamento de Bauman (2003),
podemos dizer que esta valorização da forma de vida do campo, tão
presente nos escritos dos participantes da pesquisa e nos documentos
que conformam o Curso de Licenciatura em Educação do Campo, poderia
ser pensada como um processo de guetização. Entretanto, ao contrário
dos verdadeiros guetos, que combinariam o confinamento espacial com
o fechamento social, seria uma tentativa de se estabelecerem guetos
voluntários que difeririam dos verdadeiros em um aspecto decisivo.
Para Bauman (2003), os guetos reais seriam lugares de onde não se
pode sair. Já os guetos voluntários impediriam a entrada de intrusos,
enquanto os de dentro poderiam sair à vontade (BAUMAN, 2003).
Aqui não falamos de uma guetização do espaço, mas do
processo pedagógico. O material produzido na pesquisa leva-nos ao
entendimento de que a educação do campo deveria ser constituída
dentro dos limites seguros do saber forjado nas relações que os
sujeitos do campo alicerçam todos os dias em suas formas de vida.
Desse modo, nos dizeres dos estudantes, “a escola do campo deveria
ser mais próxima à realidade do campo, abranger os conhecimentos
necessários e de acordo com os saberes e cultura desse povo”. Assim,
“uma escola do campo deve dialogar com o contexto e realidade
das populações e povos do campo [...] tem que se dialogar com
os saberes culturais existentes”. Ou, ainda, como outro estudante
discorreu: “a escola do campo deve deliberar sobre seu conteúdo,
metodologias e modos de ser juntamente com a comunidade que
está inserida, com os educandos, pais e responsáveis”.
Diríamos até que, no limite, alguns acadêmicos expressam
que a escola do campo poderia exercer um “autogerenciamento”,
realizando seu trabalho pedagógico de forma a seguir somente aquilo
que faz parte do modo de vida da comunidade onde está inserida.
Como escreveu um acadêmico: “a escola do/no campo deveria ser
como os sujeitos que vivem e trabalham acham que deveria ser”.
SUMÁR I O
39
Neste gueto “pedagógico” formulado pelos licenciandos, parece
haver pouco espaço para se ir além do que a “realidade” dos alunos
das escolas do campo permite. Esse “além” não estaria interditado, mas
não foi mencionado nos questionários gerados em nossa pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o objetivo de examinar enunciações sobre a escola do
campo produzidas por acadêmicos de um Curso de Licenciatura
em Educação do Campo, o trabalho mostrou que os discentes
estão capturados pelo enunciado que diz: “a escola do campo
deve trabalhar com a forma de vida do campo”. Esse enunciado se
sustenta, basicamente, em duas recorrências encontradas no material
examinado: uma valorização exacerbada da cultura do campo e
uma certa guetização do processo pedagógico, o qual “deve estar”
vinculado às formas de vida do campo. Isso nos leva a pensar que
há, no âmbito escolar, uma certa conformação que visa a conduzir a
conduta dos sujeitos que vivem no campo a permanecer e estudar
essa forma de vida. Como anunciamos no início deste texto, tal
conformação, materializada nos documentos sobre a educação do
campo e nas enunciações dos futuros educadores, faz parte de um
dispositivo de governamento das populações do campo.
Ao mesmo tempo, não podemos deixar de observar que
essa valorização exacerbada da cultura do campo e a consequente
guetização do processo pedagógico (restrita aos saberes e práticas
dessas culturas) está alicerçada em uma discursividade pedagógica
redutora, que pouco ou nada “escapa” para além da “realidade” dos
educandos. Essa forma de conceber a educação tem sido objeto de
problematizações, como discutem Masschelein e Simons (2017), no
livro Em defesa da escola. Os autores constroem uma argumentação
SUMÁR I O
40
que, em oposição ao que observamos no material de pesquisa
examinado, atribui outros significados ao processo pedagógico,
tirando o foco de uma suposta “realidade” do educando ou da
comunidade onde a escola está inserida para o estabelecimento de
práticas capazes de tornar diferentes disciplinas, como a matemática
ou a marcenaria, importantes por si mesmas. Para eles, educar não
é apenas abordar ou partir das formas de vida dos estudantes, mas
apresentar “as coisas do mundo (matemática, inglês, culinária,
marcenaria)” e possibilitar às crianças e aos jovens o “contato com
essas coisas, colocando-os em sua companhia, para que essas
coisas – e, com elas, o mundo – comecem a se tornar significativas
para eles” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 99).
Em outro momento, Masschelein e Simons (2017) também
questionam a insistência das práticas pedagógicas contemporâneas
na importância da prática e da utilidade dos conteúdos escolares
que, ao se tornarem parte do currículo, tenderiam a se converter
em quimeras perdendo toda ligação concreta com a realidade. Este
contraste entre o que apregoam Masschelein e Simons (2017) sobre
a escolarização e o que evidenciamos neste estudo poderia render
uma produtiva discussão, o que nos mobiliza a seguir realizando
estudos e investigações nessa área.
Para finalizar, consideramos pertinente destacar que nosso
intuito não é dizer que não devemos valorizar a forma de vida dos
sujeitos aos quais o processo educativo é endereçado. Ou ainda,
dizer que esse processo deva ser padronizado a todos. Isso não
seria coerente com nossas posições políticas e pedagógicas. A
intencionalidade dessa reflexão reside em pensar o impensável em
educação, entender o que faz com que algo se materialize nas falas e
nas ações. E, com isso, relativizar algumas práticas adotadas desde
sempre, sem questionamento.
SUMÁR I O
41
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SUMÁR I O
44
Capítulo 2
2
ESCOLA DE SURDOS, MATEMÁTICA
E PROCESSOS DE NORMALIZAÇÃO
Fernando Henrique Fogaça Carneiro
Fernando Henrique Fogaça Carneiro
ESCOLA DE SURDOS,
MATEMÁTICA
E PROCESSOS
DE NORMALIZAÇÃO
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.45-62
INTRODUÇÃO
O capítulo discute questões relativas à Educação Matemática
escolar e seus processos de normalização na contemporaneidade.
Tais discussões emergem de uma investigação desenvolvida em
uma escola bilíngue para alunos surdos dos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental. Como bases teóricas, foram utilizados estudos recentes
da área da Educação Matemática, alinhados à perspectiva pósestruturalista. De acordo com Williams (2012), o pós-estruturalismo
caracteriza-se como um movimento na filosofia que iniciou na
década de 1960. Desde então, tem influenciado campos temáticos
como literatura, política, arte, história, sociologia, entre outros. Esse
movimento, para o autor, é fortemente marcado por obras de cinco
pensadores: Derrida, Deleuze, Lyotard, Foucault e Kristeva.
Servindo-se de conceitos desenvolvidos por Michel Foucault
como discurso, regimes de verdade, relações de saber e poder, autores
como Díaz (2009, 2012) e Veiga-Neto (1995) destacam que o pósestruturalismo possibilita questionar as metanarrativas iluministas e o
próprio modelo de racionalidade científica sustentado em uma razão
transcendental. Decorre disso que também passam a ser tensionadas
a ciência moderna e as ideias de progresso constante, razão universal,
verdade absoluta, sujeito centrado e único, entre outras asserções que
fundamentam o projeto moderno para a sociedade e para a educação.
Na área da Educação Matemática, essas problematizações têm
sido realizadas por algumas teorizações do campo da Etnomatemática,
perspectiva que emergiu na década de 70 do século passado, com
os estudos do pesquisador brasileiro Ubiratan D’Ambrosio. Conforme
colocação em um de seus trabalhos mais recentes (D’AMBROSIO,
2016, p. 22), após a verificação de que as ciências matemáticas eram
primordialmente permeadas por saberes eurocêntricos, o autor criou o
SUMÁR I O
46
que ele chama de Projeto Etnomatemático com o objetivo de lançar um
outro olhar sobre “[...] as relações da matemática com a satisfação das
necessidades e desejos e com a vida cotidiana, as artes, as religiões,
as ciências, a economia, a política e a arquitetura e a vida urbana.”.
A partir dos estudos de D’Ambrosio, a Etnomatemática foi
expandindo-se enquanto área de investigação, passando a ser
um campo marcado por diferentes bases teóricas e metodológicas
(KNIJNIK, 2016). De um modo geral, os estudos etnomatemáticos
convergem para duas direções: apontar a existência de diferentes
matemáticas produzidas por variadas formas de vida e questionar as
marcas que constituem as matemáticas acadêmica e escolar, como o
formalismo, a abstração e a busca pelas generalizações, asserções
associadas ao modelo de ciência moderna.
Trabalhos recentes, principalmente os produzidos pelos
integrantes do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação
Matemática e Sociedade (GIPEMS), têm compreendido a
Etnomatemática a partir das teorizações de Michel Foucault e da
obra tardia de Ludwig Wittgenstein. Para Knijnik et al. (2012, p.
28), a Etnomatemática pode ser compreendida como uma caixa
de ferramentas que possibilita: “[...] analisar os discursos que
instituem as Matemáticas Acadêmica e Escolar e seus efeitos de
verdade e examinar os jogos de linguagem que constituem cada
uma das diferentes Matemáticas, analisando suas semelhanças
de família.”. Ficam evidentes, no sentido atribuído pelas autoras
à Etnomatemática, alguns dos conceitos centrais da obra de
maturidade de Wittgenstein, como jogos de linguagem, formas de
vida e semelhanças de família, bem como a noção de discurso e
“efeitos de verdade”, amplamente discutidas por Foucault.
As análises efetivadas neste capítulo estão na esteira de estudos
recentes sobre a Educação Matemática que se utilizam das ideias de
Foucault, como os de Knijnik (2016, 2014, 2012), Knijnik et al. (2012),
SUMÁR I O
47
Duarte (2009), Wanderer (2017, 2014), Pinheiro (2014), Junges (2017)
e Carneiro (2017). Essas investigações mostram, pelo menos, duas
questões que foram tomadas como balizas para a realização desta
pesquisa. Uma delas se refere ao significado da expressão Educação
Matemática que passa a ser considerada como um conjunto de processos, envolvendo o aprender e o ensinar, os quais se desenvolvem
em espaços educativos escolares e não escolares. Utilizando a ferramenta da governamentalidade, como analisado por Foucault (2008),
pode-se dizer que a Educação Matemática opera sobre os sujeitos
escolares – alunos, professores, gestores e demais integrantes da comunidade escolar –, disciplinando e controlando saberes, práticas e
seu próprio pensamento. É com esses entendimentos que a Educação
Matemática é analisada neste estudo, considerando-a como tecnologias de poder implicadas na condução de condutas de professores e
alunos, produzindo-os como sujeitos de modos específicos.
Outra questão relevante a ser destacada aqui, como decorrência
das pesquisas acima indicadas, refere-se especificamente à Educação
Matemática praticada nas escolas. Examinando diferentes materiais de
pesquisa (de distintos tempos e espaços), as investigações mostram
que: a) há diferentes jogos de linguagem matemáticos sendo gerados
nas mais distintas formas de vida que apresentam semelhanças de
família e b) os conjuntos de jogos de linguagem que conformam
a matemática escolar atuam como mecanismo de regulação do
pensamento de professores e alunos, instituindo determinados modos
de fazer e pensar, conduzindo a conduta dos sujeitos escolares.
Este capítulo apresenta continuidades e deslocamentos em relação aos trabalhos já realizados e citados anteriormente. As continuidades referem-se, basicamente, ao referencial teórico utilizado, ou seja,
estudos de Michel Foucault, como aqueles vinculados aos processos
de regulação e fabricação dos sujeitos escolares. No entanto, apresenta
deslocamentos que dizem respeito ao lócus da investigação: uma escola bilíngue para alunos surdos, que será descrita na próxima seção.
SUMÁR I O
48
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A ação investigativa, que resultou na escrita deste capítulo, foi
desenvolvida em uma escola especial para surdos, localizada na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Conforme o Projeto Político
Pedagógico (PPP), a escola foi fundada em 1956 com o intuito de “[...]
atender aos mais abandonados; aqueles que não são recebidos nem
nos colégios, nem nos orfanatos: os surdos, mudos, cegos, doentes,
rejeitados em toda parte.”. Inicialmente, o espaço abrigava meninas
surdas na modalidade de internato. Com o passar dos anos, começou
a atender também meninos, teve o regime de internato abolido e, em
2000, ampliou seu atendimento para o Ensino Fundamental.
Atualmente, a instituição oferece o ensino bilíngue. Discussões
sobre o bilinguismo foram inicialmente propostas pelo campo dos
Estudos Surdos. Segundo Lopes (2011), essa área emergiu no Brasil a
partir da vinda do professor argentino Carlos Skliar ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Para Skliar (2013a, 2013b), o surdo era constantemente olhado como
um sujeito que apresentava faltas, um deficiente, e foi a partir dessas
perspectivas que a educação de surdos tradicional foi constituída: uma
pedagogia que buscava apagar essas faltas e aproximar o surdo da
normalidade. Esse olhar e essa aproximação do surdo ao ouvinte é
pelo autor chamada de ouvintismo, processo que acaba focalizando
questões clínico-terapêuticas em detrimento das socioantropológicas.
Em outros lugares do mundo, como nos narra H-Dirksen
Bauman (2008), tensionamentos similares também apareciam.
Conforme o autor, a partir do final da segunda guerra mundial e
das mobilizações das pessoas com deficiência na década de 60 –
período comumente posicionado como marco da pós-modernidade
(LYOTARD, 1990, 1999) –, questões como a afirmação da existência
SUMÁR I O
49
de uma cultura surda e de identidades surdas passaram a figurar na
pauta das lutas do movimento surdo, bem como a legitimação da
língua de sinais como meio natural e completo de comunicação. Com
isso, as filosofias educacionais pautadas pela oralização dos surdos
começaram a ser problematizadas, possibilitando a emergência de
novas práticas conformadas por outros pressupostos. Lopes (2011)
diz que uma das práticas pensadas nesse período foi a Comunicação
Total, método no qual se utilizava quaisquer elementos, inclusive
gestos, para que o surdo pudesse compreender o que era ensinado.
Com a realização de pesquisas na área da linguística, em especial o
trabalho do estadunidense William Stokoe na Universidade Gallaudet,
e o subsequente reconhecimento da língua de sinais como forma
legítima de comunicação, surge o bilinguismo.
Munido das ferramentas teóricas brevemente discutidas, optei
por desenvolver a pesquisa nessa escola. Inicialmente, procurei a
direção a fim de explicar os objetivos da investigação e obter sua
aprovação. Para a realização do estudo, foram examinadas as
observações escritas pelas professoras dos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental sobre os seus alunos durante as aulas de Matemática.
Essas observações estão presentes em um documento que na escola
recebe o nome de Registro de Chamada. Ao todo, foram examinados
31 desses documentos, entre os anos de 2010 e 2015, correspondentes
às turmas de 1º até 5º ano. O Registro é o documento da escola, sob
a responsabilidade de cada professor, no qual constam informações
relevantes sobre a disciplina em questão e os alunos que a frequentam.
Contempla esse registro uma série de documentos e planilhas, todos
voltados para a descrição do cotidiano da sala de aula.
Voltei meu olhar para uma planilha denominada “Observações”,
a qual servia, conforme relatos das profissionais da escola, com
uma espécie de Diário de Classe, em que as professoras escreviam
suas percepções acerca do desenvolvimento dos alunos e das
SUMÁR I O
50
aulas. Sua utilização era facultativa, não sendo algo que deveria ser
obrigatoriamente preenchido diariamente, e por isso era bastante
particular de cada professora – embora figurasse dentro de um
conjunto de documentos oficiais da escola.
Em termos metodológicos, os documentos reunidos foram
considerados como monumentos, no sentido atribuído por Foucault
(2015). O filósofo afirma que não se trata de interpretar os documentos
para buscar por uma “verdade”, mas tomá-los como “[...] massa de
elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes,
inter-relacionados, organizados em conjuntos [...]” (FOUCAULT, 2015,
p. 8), fazendo com que os documentos sejam, então, transformados
em monumentos. Nessa operação, de acordo com Veiga-Neto (2014,
p. 125-126), a leitura dos enunciados presentes nos documentos passa
a ser realizada “[...] pela exterioridade do texto, sem entrar na lógica
interna que comanda a ordem dos enunciados [...]”, estabelecendo
“[...] as relações entre os enunciados e o que eles descrevem, para,
a partir daí, compreender a que poder (es) atendem tais enunciados,
qual/quais poder (es) os enunciados ativam e colocam em circulação”.
Na leitura que passei a realizar sobre os documentos escolares,
busquei estabelecer algumas relações entre os enunciados
encontrados a fim de identificar os modos de ser aluno surdo da área
da Matemática postos em funcionamento na escola investigada. Para
isso, foi utilizada como estratégia metodológica a análise do discurso
na perspectiva de Michel Foucault. O filósofo, na obra Arqueologia
do Saber, destaca que na análise do campo discursivo “[...] trata-se
de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua
situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus
limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com
outros enunciados” (FOUCAULT, 2015, p. 34, grifo do autor).
Os atos de fala são permeados por um agrupamento de
enunciados e um conjunto de discursos. Mas, ao mesmo tempo em
SUMÁR I O
51
que esses atos são regulados pelos enunciados e discursos, também
os constituem – sempre mediante a aceitação, repetição e transmissão.
A estes atos de fala, Foucault (2015) dá o nome de enunciações, as
quais são abundantes e múltiplas. Cada enunciação produz efeitos em
quem ouve e em quem fala. Por esse motivo, está sempre reforçando
ou atenuando enunciados, constituindo ou reconfigurando discursos.
Utilizando essas balizas teóricas e metodológicas, o material
de pesquisa foi examinado. O resultado desse exercício analítico será
apresentado na próxima seção.
MATEMÁTICA ESCOLAR E OS
PROCESSOS DE NORMALIZAÇÃO
Uma das recorrências encontradas no material examinado
refere-se à constituição de modos de ser aluno que passam a ser
fabricados pelas enunciações das educadoras da instituição. Em seus
relatos, evidenciam-se marcas associadas ao modelo de aluno surdo
desejado por elas:
Felipe tem muita dificuldade no desenvolvimento da
aprendizagem. Não evolui cognitivamente. Não consegue prestar
atenção nas atividades e rasga as folhas (Professora F, 2011).
A Cássia continua conversando demais e consequentemente está
sempre atrasada com suas atividades. A Jéssica não apresenta
autonomia para realizar as atividades, está sempre esperando
alguém (professora ou colega) auxiliá-la (Professora L, 2012).
O Tiago continua muito inseguro na hora de realizar as atividades
para entregar. Demorou 55 minutos para tentar resolver 6
exercícios de multiplicação e só fez 2 (Professora L, 2012).
A aluna Melissa perdeu a folha de tema da história que precisava
colocar em sequência e resistiu ao pedido para fazer as
SUMÁR I O
52
atividades de matemática (matéria que tem mais dificuldade).
Depois fez com meu apoio (Professora A, 2013).
Mirian faz as atividades de qualquer jeito para terminar rápido
e acaba errando e se irritando ao ser solicitado que faça
novamente. Cláudio tem falta de atenção. Lilian e Ana se
confundem quanto ao valor do número ao ter um 0 na frente
como foi o caso do “02” e do “20”, percebem a diferença de
posição e valor desses números, porém teimam em sinalizar e
quantificar esses dois como “20” (Professora P, 2014).
Ficam evidentes, nesses fragmentos, as características que
conformam modos de ser aluno na escola de surdos, os quais apresentam
fortes semelhanças de família com o sujeito aluno idealizado pela
escola moderna. Quando as professoras expressam: “não consegue
prestar atenção nas atividades e rasga as folhas”, “conversa demais e,
consequentemente, está sempre atrasada”, “não apresenta autonomia
e está sempre esperando alguém para auxiliar”, “resistiu ao pedido para
fazer as atividades”, “fez de qualquer jeito para terminar rápido e acaba
errando e se irritando ao ser solicitado que faça novamente”, produzem
aquilo que seria considerado como “bom aluno” e, ao mesmo tempo,
quem está afastado da zona da normalidade. São posicionados como
“bons” aqueles que prestam atenção, não rasgam folhas do material,
não conversam, apresentam “autonomia” – ou seja, realizam as
atividades sem pedir auxílio –, não resistem aos pedidos e solicitações
das educadoras, efetuam as tarefas com cuidado e respeitam um tempo
delimitado para isso: não demoram, nem realizam rápido demais.
Diria que as educadoras estão capturadas pelos ideais da
escola moderna, como discutido por Immanuel Kant (2002) e,
mais tarde, por Foucault (2002). Em efeito, Kant (2002), em Sobre
a Pedagogia, destaca que o homem é o único ser que precisa da
educação, compreendendo-a como um campo que abrange três
dimensões: o cuidado com a sobrevivência, a disciplina e a instrução
formal. Ao refletir sobre a disciplina, afirma que deveria iniciar bem
SUMÁR I O
53
cedo, uma vez que “[...] a falta de disciplina é um mal pior que falta de
cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo que não
se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina.”
(KANT, 2002, p. 16). A escola moderna, seguindo princípios kantianos,
engendra-se como um dos mecanismos capazes de formar sujeitos,
isto é, garantir a instrução e disciplinar os alunos.
Situado em outro período e usando uma perspectiva teórica
diferente, Michel Foucault (2002), em sua obra Vigiar e Punir,
compreende a escola como uma instituição moderna diretamente
implicada na produção de corpos dóceis. Em seu estudo, o filósofo
aponta para três instrumentos que se fazem presentes em instituições
disciplinares, como hospitais, fábricas e a escola: a vigilância, a sanção
normalizadora e o exame. Percebe-se, aqui, que as enunciações das
professoras acima apresentadas mostram mecanismos de vigilância
sobre os alunos e, ao mesmo tempo, processos que engendram um
controle em relação ao desempenho escolar.
Um olhar mais atento às enunciações das educadoras levoume a pensar que, por meio dos mecanismos de vigilância postos em
ação na escola, constituem-se saberes sobre os indivíduos, saberes
relacionados às aprendizagens (ou não) de conhecimentos provenientes
das diferentes áreas curriculares e aos modos de ser e agir na sala de
aula. A produção desses saberes, de acordo com Foucault, vai sendo
moldada e organizada em torno da norma, a qual estabelece, como já
citado, “[...] quem é normal e quem não é, que coisa é incorreta e que
outra coisa é correta, o que se deve ou não fazer”. E, nesse sentido, as
professoras que participaram deste estudo são claras ao definir as coisas
corretas – demonstrar autonomia, atender às solicitações e realizar as
atividades em um certo tempo – e aquilo que os estudantes não devem
fazer – conversar, solicitar auxílio e concluir as tarefas rapidamente.
SUMÁR I O
54
Além disso, pode-se dizer que não são apenas os indivíduos
capturados pelos processos de vigilância e controle, mas o conjunto
dos alunos, como mostram estes excertos:
Foi um dia bem difícil, os alunos não paravam sentados, nem
faziam as atividades. Não consegui dar praticamente nenhuma
atenção para Rita, pedi que Sofia [professora auxiliar] me
auxiliasse nisso. Todos alunos, praticamente, ficaram me
chamando de chata. Elisa me disse que eu não sou a mãe dela
e que, portanto, não tem que fazer o que eu peço. No momento
do jogo, no início da aula, todos estavam felizes, mas quando
não é jogo ou brincadeira, eles não querem fazer. Acho que não
consegui cativá-los para o estudo (Professora J, 2011).
Na atividade de matemática (subtração com retorno): Anita e
Elias realizaram com facilidade; Luísa e Virgínia apresentaram
dificuldades, porém Virgínia copiou algumas de Anita. Alice
demonstrou muita dificuldade de compreensão, porém depois
de muito “treino” e ter a sequência do 1 ao 9 exposta no quadro,
conseguiu fazer as duas últimas sozinha (Professora P, 2014).
Percebe-se, nesses fragmentos, o quanto cada aluno é
vigiado e tem seus saberes minuciosamente examinados (quem tem
facilidade, quem apresenta dificuldades, quem copia dos colegas,
quem é bagunceiro, quem tem interesse), ao mesmo tempo em que
há uma análise da turma como um todo. E, nessas situações, pode-se
identificar que a norma passa a ter um caráter prescritivo, anunciando
aquilo que todos e cada um “deve” fazer.
Analisando uma das políticas públicas mais disseminadas na
atualidade, a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas
(OBMEP), Pinheiro (2014) faz uso de algumas ferramentas foucaultianas como norma e normalização para evidenciar táticas de governamento e de inclusão colocadas em movimento por essa política. Ao
longo de sua discussão, a autora evidencia que a escola, uma instituição diretamente implicada com os mecanismos de disciplinamento
dos corpos dos sujeitos escolares, busca “[...] conduzir a população
SUMÁR I O
55
escolar de maneira a normalizar as multiplicidades, para que, dessa
forma, os sujeitos-alunos, que fazem parte da população escolar, estejam aptos a deixar-se regular e conduzir.” (PINHEIRO, 2014, p. 39-40).
Esse processo de regulação, que conduz os diferentes sujeitos
escolares, está diretamente implicado com os mecanismos de normalização disciplinar, como discutidos por Foucault (2008). Em sua reflexão, o filósofo destaca que a normalização disciplinar traça um modelo
“[...] que será constituído em função de um determinado resultado, e a
operação de normalização disciplinar consiste em tratar de conformar
as pessoas, os gestos, os atos a este modelo.” (FOUCAULT, 2008, p.
75). Mais adiante, expressa: “Para dizer de outra maneira, a norma tem
um caráter primariamente prescritivo, e a determinação e distinção entre
o normal e o anormal resultam em possibilidades decorrentes dessa
norma postulada.” (FOUCAULT, 2008, p. 75). Os excertos mostram o
modelo de aluno surdo esperado pela escola investigada.
Mas os processos de normalização não operam apenas na
constituição de modos de ser aluno. A análise do material de pesquisa
mostrou que, especificamente na matemática escolar, há a produção
de uma norma capaz de determinar e, ao mesmo tempo, distinguir os
normais e os anormais nessa área do conhecimento. Os seguintes
fragmentos ajudam a evidenciar essas relações:
Cátia apresentou bastante dificuldade em compreender o
transporte da unidade para dezena, se apresentou bastante
dependente da professora para realizar qualquer atividade
(Professora J, 2011).
Novamente Cátia demorou muito para copiar, eu chamei sua
atenção várias vezes, mas ela não está conseguindo aprender
multiplicação devido a esta falta de atenção (Professora J, 2011).
A Maria e a Jéssica apresentaram muita dificuldade em realizar
as operações de adição com transporte, só fizeram com o
auxílio da professora (Professora L, 2012).
SUMÁR I O
56
Marta realizou a atividade de matemática com perfeição, em que
eu apontava as imagens e ela contava e localizava o número
sozinha (Professora P, 2015).
Aula apenas com o aluno Kauan: verificação adição e subtração
simples que realiza tranquilamente, mas adição com transporte
e subtração com retorno muita resistência ao erro, pelas
dificuldades de compreensão (Professora P, 2014).
Os alunos Robson, Hélio e Graziela estão com muita dificuldade
em contar e registrar números até 20/10 (Professora K, 2013).
Enviando atividade extra até 10 para Hélio e Graziela e até 20
para Robson (Professora K, 2013).
Inicialmente, percebe-se que, quando as professoras descrevem
os estudantes e suas práticas pedagógicas, está novamente presente
o ideal de bom aluno: aquele que não depende de auxílio, presta
atenção e não demora para copiar. Mais do que isso, o conjunto dos
fragmentos selecionados evidencia, também, um modo de ensinar
matemática presente na instituição, visto que se trata das falas de
diversas professoras, atuantes em diferentes tempos e séries/anos.
Contudo, o que mais chama a atenção é a importância que
parece ser concedida à matemática escrita, seja usando o quadro ou
folhas de atividades. As menções aos algoritmos escritos levam-me
a pensar que a escola potencializa os processos de formalização e
abstração, e isso parece mostrar o objetivo que as professoras tinham
ao ensinar matemática: que os alunos pudessem realizar os algoritmos
escritos corretamente. Esses algoritmos fazem parte do que se costuma
chamar de formalismo, o qual Lizcano (2006) entende como uma série
de regras estipuladas por uma determinada tribo europeia e que servem
como base para a Matemática Escolar, ou seja, um conjunto de saberes
posicionado como transcendental e, por isso, superior aos demais.
Além disso, os comentários mostram sempre a presença de um
grupo de alunos desviantes, que não conseguem atingir o esperado,
SUMÁR I O
57
enquanto os demais – quando citados – são os que “compreenderam”.
A partir desses entraves, pode-se ver um esforço por parte das
professoras em fazer com que seus alunos se apropriem do que se
quer ensinar. Nesse momento surgem metodologias específicas, como
aquelas que utilizam os materiais concretos.
Na atividade de quantificar com tampas, Manoela demonstrou
que não sabe quantificar, consegue até o 5, mas após este
não consegue fazer a relação sinal-quantificação ou númeroquantidade (Professora P, 2015).
Notei que Helen tem dificuldade para quantificar e quando
penso que ela compreendeu noto que me equivoquei: Antes
dela representar através de desenho a quantificação no
caderno, pela aula de ontem, contamos juntas até 9 através do
material fixado na parede de relação número/nome-quantidade.
Após peguei tampas e fomos do 0 até o nome fazendo a relação
número quantidade. Percebi que ela consegue até o 3, no
máximo 4, e no resto não segue a sequência começando tudo
de novo ou quantificando com pulos. Fico bem triste por este
atraso tão evidente na aprendizagem (Professora P, 2015).
Essas falas mostram o funcionamento de práticas educativas
ou metodologias específicas para a “compreensão” dos conceitos
matemáticos. Isso mostra a importância concedida aos materiais
visuais e concretos nas aulas para surdos. O imperativo do uso dos
materiais concretos nas aulas de matemática já foi extensivamente
discutido em trabalhos anteriores (KNIJNIK et al., 2012; KNIJNIK et
al., 2010; CARNEIRO, 2017), os quais apontam para sua utilização
como um meio para garantir a abstração, posicionada como o auge
do pensamento lógico-matemático. Utilizando-se de ferramentas
foucaultianas, Walkerdine (1995) problematiza os processos que
produziram a ideia de que a escola precisa garantir a aquisição do
pensamento abstrato, considerado como “pináculo do pensamento
intelectual”. Para ela, podemos tomar o raciocínio abstrato como
uma fantasia “[...] da onipotência de um discurso científico que pode
controlar o mundo.” (WALKERDINE, 1995, p. 225).
SUMÁR I O
58
Em síntese, a análise realizada sobre as enunciações das
docentes permite entender que suas práticas colocam em ação
processos de normalização que classificam e hierarquizam não só os
alunos, mas também os saberes matemáticos a serem trabalhados e
as metodologias que “devem” ser realizadas na escola. Desta forma,
pode-se dizer que a matemática escolar se torna um mecanismo que
conduz não só as condutas dos estudantes, mas também as das
professoras que atuam na área da educação de surdos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, tive a intenção de discutir questões relativas à
Educação Matemática escolar e seus processos de normalização,
utilizando dados de uma investigação desenvolvida em uma escola
bilíngue para alunos surdos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.
O estudo evidenciou que, além dos processos de normalização,
produzem efeitos de verdade sobre aquilo que passa a ser tomado
como um bom aluno de matemática e sobre os saberes que deverão
ser ensinados nas escolas, incluindo as “melhores” metodologias,
um aspecto ainda pode ser mencionado: a responsabilidade do
sujeito-aluno sobre a aprendizagem da matemática. Ao se referirem
aos alunos que não aprendem, ou que apresentam “dificuldades de
aprendizagem”, as enunciações examinadas posicionam sempre os
próprios estudantes como os responsáveis pelo seu “fracasso”.
Estudos da área da inclusão escolar sustentados pelo
pensamento de Foucault, como os compilados em coletâneas
como a de Fabris e Klein (2013), mostram alguns aspectos desse
fenômeno do posicionamento do aluno – capturado pelas técnicas
convergentes com o pensamento biopolítico – como responsável por
seus próprios conhecimentos. Para os quinze autores que compõem
SUMÁR I O
59
os capítulos dessa coletânea, esse entendimento é visto como um
eco do neoliberalismo na educação moderna, no qual cada um se
responsabiliza por suas “conquistas” e suas “derrotas”, fazendo do
aluno, nas palavras de Foucault (2004, p. 232), um “empresário de si”.
Acredito que, na área da Educação Matemática para alunos
surdos, essa questão esteja potencializada, sempre acompanhada
de uma justificativa sustentada por diferentes enunciados: a falta de
atenção, por conta do excesso de informações visuais e ausência de
materiais pedagógicos específicos para o surdo; a falta de interesse,
por conta da falta de comunicação na sociedade e das poucas
oportunidades dadas às pessoas com deficiência. Entretanto, essas
afirmações, ainda que alimentadas pelas falas das professoras dessa
escola, extrapolam o que foi definido como objetivo deste trabalho,
mas servem como propulsoras para novas investigações. E é nesse
movimento que termino a escrita deste capítulo: finalizando uma
caminhada, mas vislumbrando várias outras possibilidades.
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SUMÁR I O
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Capítulo 3
3
CURRÍCULO BILÍNGUE NA
EDUCAÇÃO BÁSICA
Maria Luísa Lenhard Bredemeier
Maria Luísa Lenhard Bredemeier
CURRÍCULO
BILÍNGUE
NA EDUCAÇÃO
BÁSICA
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.63-77
INTRODUÇÃO
Este capítulo, em consonância com a proposta deste livro, a
saber, debater a educação na contemporaneidade, tem como objetivo
examinar o movimento empreendido nas últimas décadas por escolas
privadas de Ensino Fundamental e Médio na região da Grande Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, na estruturação e implementação de
currículos bilíngues. Os primeiros passos nessa direção podem ser
identificados na região metropolitana na década de 1990, caso do
Colégio Pastor Dohms - Higienópolis, localizado em Porto Alegre,
sendo seguidos por outras escolas tais quais a Instituição Evangélica
em Novo Hamburgo, o Colégio Sinodal de São Leopoldo e o Instituto
de Educação Ivoti, em Ivoti.
Seguindo movimentos semelhantes verificados em metrópoles
brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro, em que se localizam,
via de regra, mais de uma escola com proposta de currículo bilíngue,
é, portanto, possível identificar desde a década de 1990 que escolas
privadas na região de Porto Alegre passaram a oferecer a famílias
interessadas a oportunidade de matricular seus filhos em currículos
bilíngues. Contudo, não se pode deixar de mencionar que há uma
tradição bem mais longa de ensino bilíngue no Rio Grande do Sul,
assim como em outras regiões brasileiras, que deve ser compreendida
no âmbito da formação socioeconômica deste País, marcada pela
pluralidade tanto linguística como cultural.
Autores como Fritzen (2012), Altenhofen (2002), Klug (2004),
Staudt (2018) e Spinassé (2009) têm analisado aspectos relacionados
ao bilinguismo e à situação do alemão como língua minoritária em
regiões de imigração alemã no sul do Brasil. Outros concentraram
suas pesquisas nas questões escolares envolvendo esses imigrantes,
como Breunig (2007), Markmann Messa (2009), Wanderer (2007),
e Bredemeier (2010). Ademais, há aqueles que se dedicaram aos
SUMÁR I O
64
processos escolares em regiões de imigração italiana ou japonesa,
como Lucchese (2007) e Uyeno (2003) ou ainda aqueles que analisam a
situação linguística no Brasil sem vinculação a movimentos migratórios
específicos, como é o caso de Cavalcanti (1999).
Um aspecto que será destacado, entre outros, é a opção pela
substituição da língua dos imigrantes, que, muitas vezes, determinou e marcou o processo de implantação da escola pelo inglês, uma
tendência que pode ser observada em vários setores da sociedade
moderna, ou seja, a valorização da língua inglesa em detrimento de
outras. Por fim, este texto também apontará para processos e mecanismos que se estabelecem com o intuito de trazer inovação para a
escola, mesmo quando não há legislação específica e, consequentemente, diretrizes a serem consideradas. Cabe, ainda, salientar que
desafios ligados ao ensino de idiomas estrangeiros em escolas se encontram em muitos países como decorrências de movimentos migratórios mais recentes. Trata-se, portanto, de temática relevante e atual.
Os excertos da análise constituem-se a partir dos textos
disponíveis nos sites das escolas em que essas divulgam seus
currículos bilíngues, apontando para os motivadores de sua
implantação, suas principais tendências e vantagens em termos da
sólida formação oferecida aos jovens.
REFERENCIAL TEÓRICO E DESCRIÇÃO
DO MATERIAL DE PESQUISA
Embora o foco deste capítulo não seja uma profunda nem ampla
discussão acerca do termo bilinguismo, cabe uma breve reflexão quanto
a definições desse conceito consideradas adequadas atualmente por
permitirem/acolherem a variedade de situações que se configuram no
que diz respeito a indivíduos e o uso que fazem de duas ou mais línguas.
SUMÁR I O
65
A linguista Li Wei (2005) opta por englobar em sua proposta
tanto uma definição clássica quanto incluir as inúmeras variedades de
situações de línguas em contato e, assim, as diferentes composições
que falantes de duas ou mais línguas podem estabelecer.
A palavra “bilíngue” descreve principalmente alguém que possui
duas línguas. No entanto, também pode ser considerado como
incluindo as muitas pessoas no mundo que têm vários graus
de proficiência e usam de forma intercambiável três, quatro ou
até mais idiomas. Em muitos países da África e da Ásia, várias
línguas coexistem e grande parte da população fala três ou
mais línguas. O multilinguismo individual nesses países é um
fato da vida. Muitas pessoas falam uma ou mais línguas locais
ou étnicas, bem como outra língua indígena que se tornou o
meio de comunicação entre diferentes grupos étnicos ou
comunidades de fala. Esses indivíduos também podem falar
uma língua estrangeira - como inglês, francês ou espanhol
- que foi introduzida na comunidade durante o processo
de colonização. Esta última linguagem é frequentemente a
linguagem da educação, burocracia e privilégio. [...] É importante
reconhecer que um falante multilíngue usa idiomas diferentes
para propósitos diferentes e normalmente não possui o mesmo
nível ou tipo de proficiência em cada idioma (WEI, 2005, p. 6)4
Paralelamente, destaca-se a compreensão ampliada do
conceito de “educação bilíngue” como a proposta por Mello (2010). A
autora salienta que
a expressão educação bilíngue tem sido frequentemente usada
na sua acepção mais abrangente para incluir todas as situações
4
SUMÁR I O
The word ‘bilingual’ primarily describes someone with the possession of two languages.
It can, however, also be taken to include the many people in the world who have varying
degrees of proficiency in and interchangeably use three, four or even more languages. In
many countries of Africa and Asia, several languages co-exist and large sections of the
population speak three or more languages. Individual multilingualism in these countries
is a fact of life. Many people speak one or more local or ethnic languages, as well as
another indigenous language which has become the medium of communication between
different ethnic groups or speech communities. Such individuals may also speak a foreign
language—such as English, French or Spanish—which has been introduced into the
community during the process of colonization. This latter language is often the language
of education, bureaucracy and privilege. [...] It is important to recognize that a multilingual
speaker uses different languages for different purposes and does not typically possess the
same level or type of proficiency in each language (WEI, 2005, p. 6).
66
em que duas ou mais línguas estão em contato, fazendo-se a
distinção entre as suas diversas tipologias somente quando o
contexto ou a situação requer um maior detalhamento técnico.
De maneira semelhante, quando se usam as expressões
escola bilíngue e/ou sala de aula bilíngue, faz-se referência
à possibilidade de ocorrência de uso de mais de uma língua
nesses contextos, mesmo quando se espera que uma única
língua seja usada na maior parte das interações que ocorrem
nesses contextos. [...] Portanto, o conceito de bilinguismo,
nesse sentido, reflete tanto as características do indivíduo (graus
variados de competência e diferentes modos de fala) quanto as
características sociológicas do contexto (local, participantes,
situação, tópico e a função da interação). (MELLO, 2010, p. 5).
Mello (2010) enfatiza, ainda, o papel do contexto socioeconômico
e histórico de inserção da escola que propõe currículo bilíngue, por
ser ele fator determinante na tomada da decisão por esse tipo de
currículo. Aproximar-se de definições que ampliam o entendimento de
bilinguismo como a de Wei e de definições que igualmente propõem
uma concepção abrangente de educação bilíngue como a proposta
por Mello permite posicionamento crítico em relação a movimentos
que, por muito tempo, colocaram em destaque o assim chamado
“bilinguismo de elites” que, de acordo com Megale e Liberali (2016),
apresenta-se novamente quando é somente em escolas privadas que
se propõe a educação bilíngue de jovens.
As linguistas, em teorizações que propõem alternativas ao
“bilinguismo de elites”, identificam quatro propostas de educação
bilíngue no Brasil: i) educação bilíngue com a língua brasileira de sinais
(LIBRAS); ii) educação bilíngue com línguas indígenas; iii) educação
bilíngue em contextos multilíngues e iv) educação bilíngue de elite ou
de prestígio, assim denominada em razão da condição financeira dos
alunos que podem frequentar esses estabelecimentos escolares em
que a instrução ocorre em dois idiomas simultaneamente (LIBERALI/
SUMÁR I O
67
MEGALE, 2016, p. 55; MEGALE, 2018). Cabe salientar, ainda, que,
ao se fazer referência à educação bilíngue, tem-se como objeto um
currículo em que dois ou mais idiomas têm o papel de ferramenta de
aprendizagem, sendo usados para o ensino e a aprendizagem de
outras áreas do conhecimento e não somente em aulas de inglês, por
exemplo, em que esse idioma é tematizado.
No que diz respeito à legislação escolar brasileira tangente ao
ensino de línguas estrangeiras nas últimas décadas, merecem destaque: i) a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9304 de
1996, que estabeleceu a oferta de uma LE a partir da quinta série e outra no Ensino Médio, ambas obrigatórias, acrescentando-se, no Ensino
Médio, mais uma língua estrangeira optativa; ii) as Bases Curriculares
Nacionais de 2017, que indicam o inglês como idioma de oferta obrigatória nas escolas; iii) o Parecer CNE/CEB Nº: 2/2020, aprovado, mas
ainda não homologado, que propõe Diretrizes Curriculares Nacionais
para a oferta de Educação Plurilíngue, impulsionado fortemente pelo
aumento de escolas que propõem currículos bilíngues.
O material escrutinado, por sua vez, é constituído por
informações que as próprias escolas disponibilizam em seus sites e
em que se posicionam, com mais ou menos detalhes, em relação à
sua proposta de currículo bilíngue. Elas apresentam os motivos que
as levaram a optar por essa reestruturação de seu trabalho, as etapas
e os processos conduzidos e destacam as vantagens, os ganhos
proporcionados aos jovens que cursam esses currículos bilíngues.
5
SUMÁR I O
[...] there are four Brazilian bilingual education proposals: bilingual education with sign
language, indigenous bilingual education, bilingual education in multilingual contexts, and
elite or prestigious bilingual education whose name was given due to the favorable financial
conditions of students who can attend these schools, in them instruction occurs in two
languages simultaneously (LIBERALI/MEGALE, 2016, p. 5).
68
ANÁLISE E APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS
Como indicado acima, o material escrutinado para a
preparação deste capítulo é constituído por informações extraídas das
apresentações que as próprias escolas disponibilizam em seus sites.
Nesses espaços, têm relevância a indicação das razões da escolha
pela implantação de um currículo bilíngue, a história da escola e o papel
das línguas estrangeiras nela, aspectos do trabalho conduzido, bem
como informações sobre os professores que atuam nesses currículos.
Instituição Evangélica de Novo Hamburgo (IENH)
O mundo mudou muito nos últimos anos e a escola preparada
para o século XXI precisa auxiliar na formação de um sujeito
mais competente para as demandas do mercado e da vida; um
cidadão que possa entender e se adaptar à complexidade deste
mundo plural e em constante transformação, para comunicarse de forma global e interagir na multiplicidade de cenários com
os quais venha a se deparar. A IENH, sempre atenta aos novos
cenários, foi se adaptando a essas mudanças sem perder
sua essência, que é embasada nos valores e nas vivências
cristãs, com ênfase na liderança, no empreendedorismo e na
responsabilidade socioambiental. Por ser uma instituição que
tem em seu DNA o pioneirismo e a inovação, em 2005 iniciamos
um projeto muito arrojado para o Vale do Sinos: nos tornamos
a primeira escola bilíngue português-inglês da região. Até o 4º
ano do Ensino Fundamental, as propostas são estruturadas
por dois professores (Língua Inglesa e Língua Portuguesa)
e nessa dinâmica são estabelecidos os conhecimentos e
projetos que serão trabalhados. Do 5º ao 9º ano, é oferecida
uma proposta diferenciada em termos de componentes
curriculares, contando com dois professores de Língua Inglesa:
um responsável pelos conteúdos gramaticais e linguísticos e o
outro pelos projetos em parceria, chamado de Inglês Aplicado.
Neste componente são trabalhados os conteúdos das diversas
ações do conhecimento em Inglês. (https://educacaobasica.
ienh.com.br/br/apresentacao-educacao-bilingue).
SUMÁR I O
69
Colégio Pastor Dohms – Higienópolis
Introduz, paralelamente ao currículo convencional, o Currículo
Bilíngue (Português e Alemão), respondendo favoravelmente a
um significativo grupo de famílias que buscava para seus filhos
um ensino voltado para a valorização da Língua e da cultura
alemã (http://www.dohms.org.br/higienopolis5/).
Colégio Sinodal de São Leopoldo
O aluno do Sinodal Bilíngue, através da sua imersão no segundo
idioma, prepara-se, desde cedo, para o mercado e o estudo
que se seguirão após sua passagem no Ensino Médio. Ele
vai estar apto às provas de língua inglesa dos vestibulares de
universidades públicas e do Exame Nacional do Ensino Médio
sem necessitar de apoio de cursos de idiomas. Na educação
bilíngue, a língua é tanto o objetivo a ser alcançado quanto a
ferramenta para se alcançar esse objetivo. As disciplinas têm
como base a estrutura curricular regular do nível e, para cursar o
Bilíngue, é preciso estar matriculado na educação básica (http://
web.sinodal.com.br/sao-leopoldo-1/n/bilingue-44).
Instituto de Educação Ivoti
No programa de educação bilíngue do Instituto Ivoti, os alunos,
a partir dos três anos de idade, vivenciam as atividades em
Língua Alemã e habituam-se ludicamente à sonoridade e ao
uso do idioma. Aprendizagens são consolidadas com auxílio
de música, canto e escuta de histórias narradas de livros
de literatura infantil alemã. Jogos e atividades, tanto digitais
como analógicas, são outras vivências que auxiliam os alunos
na construção de seus conhecimentos. Rotinas estruturadas
consolidam a aquisição e naturalizam o uso do idioma em
contexto social e em situações do dia a dia (https://www.
institutoivoti.com.br/educacao-basica/ensino-fundamental).
Colégio Metodista/Americano em Porto Alegre
O ensino tem por objetivo potencializar o processo de aquisição
da língua inglesa e as situações didáticas visam ampliar
o vocabulário relacionado ao universo infanto-juvenil e às
estruturas que fazem parte da comunicação rotineira da sala
de aula. Elas guardam características de ludicidade e envolvem
SUMÁR I O
70
a integração de conteúdos curriculares através de jogos
educativos, músicas, tarefas de compreensão oral, contação
de histórias e outras atividades que estimulam o uso da língua
(http://colegiometodista.g12.br/americano).
Desses excertos, merecem destaques ideias como a valorização da aquisição da língua inglesa ou alemã e de seu respectivo vocabulário, a preparação para os estudos e a profissão, as metodologias
colocadas em prática, tais quais o lúdico e as brincadeiras, a música e
a inserção de histórias, mas também as competências de comunicação e a naturalização do uso do idioma estrangeiro.
Os trechos a seguir, por sua vez, apontam para alguns dos
objetivos que as escolas listam como sendo determinantes para a
decisão de oferecer currículos bilíngues, bem como determinantes
para a opção das famílias que decidem matricular os jovens em tais
currículos. O sucesso em exames de proficiência reconhecidos no
mundo inteiro e a participação em intercâmbios salientam-se:
Colégio Metodista/Americano em Porto Alegre
Desde 2013, os estudantes realizam provas de Certificação em
língua inglesa.
TOEFL – Test of English as a Foreign Language. O Teste TOEFL
Junior é um certificado internacional em inglês que avalia o
nível de proficiência de estudantes a partir de 11 anos de idade
até o Ensino Médio. O TOEFL Junior proporciona a escolas,
professores, pais e alunos uma avaliação objetiva do progresso
na proficiência em inglês dos alunos, sendo aceito por escolas
em todo o mundo para admissão em programas de intercâmbio.
Colégio Sinodal de São Leopoldo
Ele também vai estar preparado para o teste TOEFL®,
reconhecido por mais de 9.000 instituições de ensino superior,
universidades e agências em mais de 130 países, como
Austrália, Canadá, Reino Unido e Estados Unidos. A aplicação
do TOEFL® e TOEFL® Junior possibilita que o aluno acompanhe
SUMÁR I O
71
seu desempenho com referências mundiais, tendo como
finalidade comum o estudo e a inserção na vida acadêmica e
no mercado de trabalho em nível global.
Instituição Evangélica de Novo Hamburgo (IENH)
Os alunos são preparados para certificação internacional da
Universidade de Cambridge, com avaliação no 4º, 6º e 9º
ano do Ensino Fundamental. Todos os alunos avaliados até
o momento obtiveram resultados acima da média brasileira
e no mesmo nível de países europeus, comprovando seus
conhecimentos e o know how da IENH em prepará-los para os
desafios da língua estrangeira.
Outro elemento que merece atenção são os professores que
ministram as aulas nesses currículos bilíngues. Essa temática merece
destaque em razão de ser um dos grandes desafios que se colocam
nos currículos bilíngues que, como indicado nos trechos acima, dão
preferência ao início precoce da aprendizagem da língua estrangeira,
uma vez que os professores habilitados para o trabalho nos anos
iniciais devem ter formação superior em Pedagogia, mas, geralmente,
não têm formação na área das línguas estrangeiras, nem no que
concerne aos conhecimentos do idioma em si, nem no que tange às
competências necessárias para o ensino de língua estrangeira. Os
formados em Letras, por sua vez, raramente têm preparação para
o trabalho com os anos iniciais do Ensino Fundamental. A seguir,
são apresentados os enunciados que se podem localizar nos sites
das escolas analisadas e que fazem referência aos professores que
conduzem o trabalho nos currículos bilíngues:
Instituição Evangélica de Novo Hamburgo (IENH)
O incentivo às práticas tecnológicas, a partir da implantação das
aulas de Programação foi uma das reformulações inovadoras
do Currículo Bilíngue. Aplicadas na Língua Inglesa, as aulas de
Programação já estão ocorrendo nas turmas de 1º ano 4º ano
do Ensino Fundamental. Para estarem aptos a desenvolverem
o Componente Curricular, durante dois anos, os Professores
SUMÁR I O
72
foram capacitados com as ferramentas tecnológicas da Google
e um programa específico de programação para crianças.
Colégio Sinodal de São Leopoldo
Os professores que atuam no Sinodal Bilíngue têm formação
pedagógica e linguística. Os planos de aula do ensino bilíngue
são planejados por eles, com o apoio e a revisão da coordenação
pedagógica do nível.
Reagindo a esse desafio referente à formação inicial dos
professores, os interessados procuraram e constituíram caminhos
alternativos que passam por cursos de extensão, cursos livres,
formações internas e cursos de Pós-Graduação Lato sensu. Nos
últimos anos, pode-se observar a inserção de questões tais como o
bilinguismo e os processos de ensino e aprendizagem nos currículos
dos Cursos de Letras indicando o reconhecimento da discussão e
de sua relevância. Paralelamente, pode-se identificar incremento da
produção científica e das publicações acerca da temática, seja de
artigos em periódicos, seja de livros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise dos textos de sites de escolas que se
posicionam como escolas com currículo bilíngue na região da Grande
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, foi possível, mesmo que partindo
de material de pesquisa não extenso, identificar os principais pontos
de discussão e desafio da educação bilíngue presentes na produção
científica sobre esse assunto. Durante muito tempo, foi possível
identificar um certo vácuo em termos de legislação e de formação de
professores no que concerne à educação bilíngue no Brasil, mas a
aprovação de novos parâmetros curriculares e movimentos relativos à
formação de professores, bem como o aprofundamento dos estudos
SUMÁR I O
73
nessa área apontam para a importância da temática e para seu lugar
na sociedade contemporânea. De uma oferta de cursos de extensão e
de pós-graduação, passou-se, em algumas universidades, a integrar
discussões acerca do bilinguismo e do letramento bilíngue ao currículo.
Entende-se, ainda, que outros aspectos podem ser tematizados
dentro dessa discussão, uma vez que se constata que há escolas que,
apesar de toda sua história e vinculação a movimentos migratórios, optam
pelo idioma inglês como língua estrangeira componente do currículo
bilíngue e não pelo alemão, ou italiano, seguindo tendências que valorizam
o status de um idioma no contexto internacional e seu valor na sociedade.
A perspectiva de Megale (2018), que, em vários textos,
denomina essa tendência rumo ao currículo bilíngue de “bilinguismo
de elite” igualmente anuncia outras possibilidades de pesquisa,
reforçadas por análises como as de Staudt (2018), que descreve a
importância do bilinguismo em localidade do interior do Rio Grande
do Sul, em que a competência de comunicar em língua alemã é
crucial no trabalho de agente de saúde. Contudo, não há currículos
bilíngues na localidade em questão, havendo, todavia, ensino de
alemão como língua estrangeira em escolas do município. Por fim,
merece destaque a sugestão de Megale (2014) de que um dos
elementos cruciais em um currículo bilíngue seja o “desenvolvimento
de práticas linguísticas complexas” (MEGALE, 2014, p. 4) permitindo
o desenvolvimento de competências que levem o aluno a realmente
usar a língua em situações significativas e de forma significativa.
SUMÁR I O
74
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SUMÁR I O
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SUMÁR I O
77
Capítulo 4
4
AS QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS
NO ENSINO FUNDAMENTAL
Mônica Nunes
Mônica Nunes
AS QUESTÕES
ÉTNICO-RACIAIS
NO ENSINO
FUNDAMENTAL
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.78-97
DESENHANDO OS CENÁRIOS
O presente capítulo discute questões relacionadas aos
tensionamentos étnico-raciais na área da Educação. Em especial, o
intuito é examinar enunciações de alunos dos Anos Finais do Ensino
Fundamental sobre os marcadores étnico-raciais que operam na escola
e na cidade onde residem: o município de Estrela, pertencente ao Vale
do Taquari (RS), uma região fortemente vinculada aos processos de
colonização alemã. Como aportes teóricos, o estudo sustenta-se em
teorizações contemporâneas sobre raça, etnia e a constituição do
sujeito, como analisado por Michel Foucault.
Estudos recentes como os de Weschenfelder (2012) e
Wanderer (2014), apoiados no pensamento de Michel Foucault,
problematizam as relações étnico-raciais em regiões do Rio Grande
do Sul fortemente marcadas pela colonização alemã, como os Vales
do Rio Pardo e Taquari. Weschenfelder (2012), quando se refere
à historiografia de cidades como Santa Cruz do Sul e Venâncio
Aires, pertencentes ao Vale do Rio Pardo, que é muito próximo,
geograficamente, ao Vale do Taquari, destaca a presença de uma
narrativa identitária que valorizou os colonos alemães e acabou por
ignorar a presença de outros grupos étnicos, como os negros.
Já o trabalho de Wanderer (2014), focado nas tensões étnicoraciais que constituíram subjetividades específicas para alunos de
Estrela que frequentavam uma escola rural no período da Campanha
de Nacionalização (1937-1945), mostra que as relações entre
brancos e negros eram marcadas por preconceito e desigualdades.
Nas entrevistas realizadas pela autora com homens e mulheres que
estudaram naquele período, foram recorrentes enunciações dizendo
que os alunos negros foram aceitos na escola para amenizar os
efeitos da fiscalização do governo, que exigia que as aulas fossem
SUMÁR I O
79
direcionadas à promoção dos elementos nacionais e, portanto, não
enaltecessem elementos de outras culturas, no caso, a germânica.
Naquele contexto, os negros também eram aceitos na escola para
ensinar a língua portuguesa aos colegas, os quais, em suas famílias, só
falavam em alemão. A pesquisa mostra que as discriminações raciais
impediam o acesso das crianças negras à escola antes do período
da Campanha de Nacionalização. Porém, a partir do final da década
de 30, com a efetivação dos decretos da Campanha, as crianças
negras passaram a frequentar a escola, mas, a todo instante, eram
posicionadas como “burras” ou “causadoras de pequenos furtos”.
Apoiando-se em Hardt e Negri, Wanderer argumenta, então, que
operava nas escolas um mecanismo de inclusão diferenciada, ou seja,
todas as crianças (brancas e negras) entravam na escola, no entanto,
as relações entre elas, bem como o trabalho pedagógico realizado,
posicionavam de diferentes formas brancos e negros.
A pesquisa apresentada neste capítulo segue na esteira desse
trabalho, uma vez que foi realizada na mesma cidade, Estrela-RS,
e analisa enunciações de alunos sobre as questões étnico-raciais.
No entanto, a diferença encontra-se no espaço-tempo examinado:
enquanto Wanderer (2014) investigou esses processos no período da
Campanha de Nacionalização, este trabalho está focado no tempo
presente, em uma escola pública municipal que atende diferentes
grupos étnicos, incluindo os haitianos que, a partir de 2012, chegaram
na Região e provocaram novas e complexas relações entre os
moradores das cidades e seus novos habitantes.
METODOLOGIA E MATERIAL DE PESQUISA
A parte empírica da investigação foi realizada em uma escola municipal da cidade de Estrela-RS, no ano de 2016. A instituição atende o
SUMÁR I O
80
maior número de alunos da cidade e enfrenta problemas que se fazem
presentes no cenário educacional: violência, pouca relação entre a escola e os pais dos alunos, evasão e repetência. Este trabalho foi realizado
em uma turma do 8º ano, formada por 19 alunos que frequentavam a
escola no período diurno. Essa escolha não foi aleatória. Segundo relato
da direção, era a que tinha o maior número de negros naquele período.
O início do trabalho de campo envolveu contatos com a Secretaria Municipal de Educação e, após sua aprovação, a direção da escola
foi contatada para perguntar sobre a disponibilidade de realizar a parte
empírica do estudo com os alunos. Cabe ressaltar que, de acordo com
as normas de ética nas pesquisas em Educação, a direção assinou
o Termo de Assentimento da Instituição, e os responsáveis por todos
os alunos entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, após serem informados sobre os objetivos da pesquisa.
A investigação envolveu técnicas de inspiração etnográfica,
como Diário de Campo, entrevistas, observações e aplicação de
questionários. A emergência da pesquisa de caráter etnográfico nas
escolas é um fenômeno recente. Segundo observam Green, Dixon e
Zaharlick (2005), o reconhecimento da etnografia como abordagem
de pesquisa para os problemas e as investigações pertinentes à
educação iniciou na metade do século XX. As autoras afirmam que
a tarefa do etnógrafo dentro da escola é apontar “as maneiras pelas
quais os membros do grupo estudado percebem sua realidade e
seu mundo, e como, por intermédio de suas ações (e interações)
constituem seus valores, crenças, ideias e sistemas simbólicos
significativos.” (GREEN; DIXON; ZAHARLICK, 2005, p. 13).
O trabalho de campo envolveu diferentes estratégias, que se
configuraram no decorrer da investigação. Ao todo foram oito meses
em que estivemos envolvidas com o objeto de estudo, realizando
movimentos como: observações de aulas com registros no Diário de
Campo, entrevistas com quatro alunos e aplicação de um questionário.
SUMÁR I O
81
Foram observadas aulas que ocorriam nas quartas-feiras, uma vez que
esse era o dia disponível para frequentarmos a escola. Busquei, sempre,
permanecer na turma, observando as aulas e, mais do que isso, atentar
para os diálogos e as conversas que ocorriam entre os estudantes.
Essas observações foram registradas no Diário de Campo. Estou
ciente de que essa descrição sempre corresponderá a uma interpretação. Nesse sentido, Geertz (1989) nos lembra que toda descrição etnográfica é, sempre, a descrição de quem descreve, e não a de quem é
descrito. Portanto, por mais inserido que o investigador esteja na cultura
que deseja analisar ou no cotidiano dos sujeitos que pretende descrever,
seu trabalho corresponde ao que ele próprio julga como relevante para
ser interpretado a partir dos aportes teóricos que utiliza.
A seleção dos alunos entrevistados, em um primeiro momento,
foi definida pelo marcador étnico-racial, sendo escolhidos uma aluna
e um aluno negros. Posteriormente, outros foram entrevistados; desta
vez, estudantes brancos. As entrevistas realizaram-se durante o período
de aulas, conforme sugestão da direção, visto que os alunos não
possuem o hábito de frequentar a escola em outro turno. Os encontros
duraram, em média, meia hora cada um. O propósito era “mapear”
o contexto dos alunos, a fim de identificar a forma pela qual eles se
nomeiam e como interagem em seu mundo. Foram feitas perguntas
sobre a família, seus gostos, a relação com os colegas, com os amigos
e moradores do bairro e da cidade, bem como a entrada de alunos
haitianos na escola e possíveis tensionamentos étnico-raciais.
O material de pesquisa reunido envolveu também questionários
aplicados a todos os alunos da turma. As questões presentes
abrangeram tópicos como: descrições do modo de ser enquanto
jovem aluno; casos de bullying que já sofreu ou conheceu; atitudes
racistas na escola e na cidade. Os questionários foram respondidos
individualmente, durante uma das aulas em que estivemos presentes.
SUMÁR I O
82
A estratégia analítica utilizada para operar sobre os materiais
é a análise do discurso, na perspectiva de Michel Foucault (2009).
Na entrevista sobre o lançamento da obra A Arqueologia do Saber, o
filósofo buscou explicar quais são os objetivos da análise do discurso,
deixando evidente que não se trata puramente de descrever um
discurso ou buscar fatos “escondidos”, como se algo devesse ser
escavado. “Tento, ao contrário, definir relações que estão na superfície
dos discursos; tento tornar visível o que só é invisível por estar muito
na superfície das coisas.” (FOUCAULT, 2000, p. 56).
Mas de que forma analisar as enunciações dos alunos
entrevistados ou escritas nos questionários? Qual é o procedimento que
Foucault nos recomenda? Para ele, de acordo com Fischer (2012, p.
74), “nada há por trás das cortinas, nem sob o chão que pisamos. Há
enunciados e relações, que o próprio discurso põe em funcionamento.
Analisar o discurso seria dar conta exatamente disso: de relações
históricas, de práticas muito concretas, que estão ‘vivas’ nos discursos.”.
Seguindo a inspiração foucaultiana, analisei as enunciações produzidas
pelos alunos, não no sentido de encontrar o que está oculto, mas de
dar ênfase a certos enunciados que costumam ser esquecidos ou
ignorados. O resultado dessa operação será apresentado a seguir.
AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Michel Foucault (1995), um dos filósofos mais utilizados nas
pesquisas contemporâneas da área da Educação (AQUINO, 2013),
dedicou-se a examinar, entre outros, processos vinculados à constituição do sujeito. Em O sujeito e o poder, Foucault (1995, p. 231) afirma
que é o sujeito o tema geral de suas pesquisas, expressando que o
objetivo de sua obra foi “criar uma história dos diferentes modos pelos
quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos”. Nes-
SUMÁR I O
83
se sentido, Fischer (2012) apresenta duas razões pelas quais Foucault
tem o sujeito e as diversas formas de assujeitamento como o tema
geral de suas investigações. A primeira é o entendimento de que os
mecanismos de sujeição do indivíduo não constituiriam um momento final, “mas sim processos circularmente relacionados com outras
formas de dominação, de tal forma que um ou outro desses tipos de
dominação poderia prevalecer, conforme o momento histórico.” (FISCHER, 2012, p. 56). A segunda razão seria a ideia de que o Estado ocidental moderno alcançou “uma combinação complexa de técnicas de
individualização e procedimentos totalizantes” (FISCHER, 2012, p. 56).
Dessa forma, seguindo os argumentos de Foucault, no Estado
ocidental moderno estaria prevalecendo um poder pulverizado,
presente em todas as relações e em todos os lugares. Um poder que
atinge o cotidiano imediato das pessoas, “preocupado com o bemestar da população e a saúde de cada um em particular, um poder que
se reveste de bondade e sincera dedicação a toda a comunidade”
e por isso não tem condições de se exercer, “senão munindo-se de
toda a informação sobre cada grupo, sobre o que pensam e sentem
todos os indivíduos e como eles podem ser mais bem dirigidos.”
(FISCHER, 2012, p. 56). Seguindo esse entendimento, os sujeitos são
resultado de um processo que se dá no interior das redes de poderes
que os capturam, dividem, classificam.
Os processos de constituição do sujeito, segundo refere Foucault,
passam pelos processos de objetivação e subjetivação. Esses processos são contínuos de ida e vinda entre o interior e o exterior, entre o eu
e o outro. A objetivação corresponderia à construção e identificação de
representações sociais e coletivas. Conforme observar Fonseca (2003,
p. 35), esse processo constrói e mantém funções sociais a serem ocupadas pelos sujeitos a partir de “formas estáveis do visível e do enunciável”. A subjetivação corresponderia a processos pelos quais o indivíduo
se identifica ou não com essas objetivações, essas representações, ou
a forma como ele se identifica às suas singularidades.
SUMÁR I O
84
A parte da obra em que Foucault trabalha o conceito de subjetivação é classificada por Veiga-Neto (2014) como o domínio foucaultiano
da ética. Contudo, o autor salienta que a ética, entendida “como cada
um se vê a si mesmo” (VEIGA-NETO, 2014, p. 82), só pode ser colocada
em movimento a partir dos eixos dos outros dois domínios: o “ser-saber”
e o “ser-poder”. Em outras palavras, “o sujeito é um produto, ao mesmo
tempo, dos saberes, dos poderes e da ética” (VEIGA-NETO, 2014, p.
82). Com ênfase na subjetivação, Foucault escreve sobre um conjunto
de tecnologias, destacando-se as tecnologias do eu que foram reunidas
nos segundo e terceiro volumes da obra História da sexualidade.
Relacionando a discussão até aqui empreendida com esta investigação, diria que os alunos (brancos, negros, indígenas, entre outros) são produzidos pelas diferentes experiências dentro e fora da
sala de aula, pelas diferentes linguagens por meio das quais são nomeados, descritos, tipificados. Há, portanto, uma constante luta entre
discursos que pretendem capturar os sujeitos que, ao mesmo tempo,
são interpelados por diversas narrativas, transformam-se de acordo
com as narrativas que eles próprios produzem sobre suas histórias
de vida. Nesse processo, complexo e instável, a escola constitui-se
como o espaço em que os alunos articulam muitas posições, rejeitam
e abandonam algumas e assumem outras que lhes conferem provisoriamente um sentido de pertencimento a um determinado grupo social.
Analisando o material de pesquisa reunido, percebe-se um
grande tensionamento presente nas formas pelas quais os alunos
negros são subjetivados dentro e fora da escola. Esse tensionamento
permitiu construir uma analítica que evidencia três resultados para
esta pesquisa, os quais estão articulados. O primeiro deles refere-se
à autodenominação. Nenhum dos alunos pertencentes ao grupo que,
inicialmente, reconheceríamos como sendo negros, autodenominouse dessa forma. A maior ocorrência foi nomearem-se “morenos”.
Isso ocorreu, principalmente, nas respostas de uma das questões do
questionário, a qual se referia a uma descrição de cada estudante:
SUMÁR I O
85
Eu sou uma menina de pele de cor morena, meus cabelos são
pretos, lisos e longos. Eu gosto de jogar vôlei e eu penso em
fazer uma faculdade e ser bióloga marinha.
Sou alto, moreno e tenho cabelo crespo. Gosto de ouvir música,
jogar videogame, praticar esportes, gosto de dar um rolé com
os parça e andar de skate.
Eu sou uma menina que tem cabelo cacheado, meio morena,
não sou muito alta, e sou magra, tenho olhos castanhos claros.
Gosto muito de amizades novas, de comer doces e músicas
internacionais.
Sou uma menina meio escurinha, tenho olhos verdes, sou
muito “8” ou “80”, não gosto de “ah, talvez, não sei”, sou muito
perfeccionista. Gosto muito mesmo de passear e de passar
minha tarde nas redes sociais: WhatsApp, Instagram, Snapchat
e a que sou mais viciada: Youtube.
No primeiro excerto, a aluna refere-se especificamente à cor
de sua pele, e indica que se percebe como “menina de pele de cor
morena”. O segundo, por sua vez, autodenomina-se, simplesmente,
“moreno”, termo que, no contexto, pode ser entendido como se
referindo à cor de sua pele ou, de maneira mais ampla, à de seu
cabelo. Já os demais estudantes narraram-se como “meio” morenos,
uma palavra que, de certa maneira, parece corresponder a mais
uma forma de, como afirmou Silva (2007), “amolecer” a rigidez das
polarizações. As alunas usam a palavra “meio”, um advérbio de
intensidade que, no caso, atenua o adjetivo empregado na sequência:
“meio morena”, “meio escurinha” (neste último caso, o diminutivo é
outro atenuante). Dessa forma, demonstram que não se reconhecem
simplesmente como “morenas”, mas como pertencentes a um grupo
menos “escuro” do que este. Essa dificuldade de identificar-se com
um grupo étnico-racial é própria dos tensionamentos relativos a essa
questão, conforme explicado por Kaercher (2010).
SUMÁR I O
86
Durante as observações de aulas, ocorreu um diálogo que
merece destaque. Um dos alunos disse que era moreno. E continuou:
“Não sei porque me chamam de preto. Eu não sou preto, sou
moreno. Preto é quando não dá para enxergar”. E, na sequência,
afirmou: “os pretos são os haitianos”. Percebemos, novamente, que
o pertencimento étnico-racial se constitui em um processo envolto em
tensões que frequentemente geram negação ou rejeição ao sentimento
de pertença a um determinado grupo. Nesse caso, mais uma vez,
emerge a enunciação de que os alunos da escola não são negros, e a
justificativa está na comparação que estes realizam com os haitianos,
cuja cor da pele identificam como sendo “mais escura”.
Nas falas dos alunos é possível notar um traço bastante
característico da questão racial no Brasil. Diferentemente do que
acontece em outros países, nos quais as diferenças raciais se limitam a
grandes grupos, como brancos, negros e amarelos, no Brasil criaramse diversas outras denominações para, supostamente, referir-se às
muitas configurações raciais provenientes do complexo processo de
miscigenação que produziu o nosso povo. Silva (2007), no entanto,
chama a atenção para o fato de que há, na criação dessas novas
denominações, um aspecto igualmente cultural, não relacionado
apenas à cor da pele, mas contendo uma acepção que diz respeito às
representações sociais, e que, em certo sentido, indicam as tensões
étnico-raciais presentes em nosso País. Segundo menciona ele, merece
justamente “atenção especial a categoria ‘moreno(a)’, ‘claro(a)’ ou
‘escuro(a)’” (SILVA, 2007, p. 74). Isso porque, de acordo com o autor, o
“moreno não apenas amolece a rigidez das polarizações, mas também
implica um processo de deslizamento do ‘preto’ para o ‘branco’” (SILVA,
2007, p. 74). Nesse sentido, percebe-se, nessa visão, a ideia de que ser
negro é algo negativo, enquanto ser “moreno” reduz essa negatividade.
Como as histórias pessoais desses alunos estavam marcadas
pelos tensionamentos étnico-raciais, uma das perguntas do
SUMÁR I O
87
questionário aplicado era “O que você entende por racismo?”. As
respostas mostram diferentes pontos de vista acerca da questão: “Eu
sei que racismo é feito por pessoas que não têm caráter, que racismo
é desnecessário e que normalmente quem sofre racismo são os
morenos”. Outro aluno respondeu: “Sei que racismo é crime”. A fala do
primeiro aluno indica três dimensões importantes: em primeiro lugar, o
aluno relaciona o racismo a um defeito de caráter de quem o pratica; em
segundo, afirma que se trata de algo “desnecessário”; por fim, repete
a designação de “morenos” para referir-se às pessoas que sofrem
discriminação racial, evitando utilizar-se da palavra “negros”. Dessa
forma, reforça-se a ideia de que há, também entre os alunos dessa
escola, uma tendência para “amolecer a rigidez das polarizações”,
mediante o uso do termo “moreno”. Já a resposta do outro aluno
mostrou-se, de certa forma, capturada por marcas de caráter político e
jurídico. Em sua enunciação, percebem-se as capilaridades do poder,
mais precisamente do poder jurídico, cujo discurso, como visto, é
capaz de capturar inclusive os adolescentes em questão.
O segundo resultado deste estudo diz respeito à discriminação
racial presente na cidade de Estrela. Nas entrevistas, essa questão foi
evidenciada quando questionados sobre a vivência de práticas racistas
no município: “Junto com meu primo, que é negro, dentro do mercado.
A dona do mercado começou a nos seguir achando que nós ia roubar
alguma coisa. Nós nos indignemos e falemos umas verdades pra ela”.
Outro aluno, na mesma direção, explicitou: “Não tem motivo especial
para ter racismo aqui [em Estrela], mas a gente consegue ver pela
reação das pessoas quando a gente passa. Muitas vezes as pessoas
te olham torto, ou elas começam a cochichar, ou alguma coisa assim”.
Nesse sentido, é importante notar o quanto o “olhar torto” e os
comentários dessas pessoas podem deixar marcas na identidade dos
sujeitos negros, isso porque, conforme enfatizam Ramos, Santana
e Santana (2011, p. 17): “É pelo olhar do outro que me constituo
SUMÁR I O
88
como sujeito. É a qualidade desse olhar que contribui para o grau de
autoestima da criança”, no caso, os estudantes negros da escola. No
excerto a seguir, um aluno relaciona o preconceito que percebe estar
presente nas relações sociais da cidade à história da colonização
do município. Segundo relata ele, “eu acho que os negros sofrem
preconceito. Ainda mais que aqui em Estrela foi colonização alemã,
então as pessoas não estão acostumadas com algo diferente. Isso vai
melhorar com o tempo, com a cabeça das pessoas”.
Nessa enunciação, fica evidente que o negro é o “diferente”,
assim identificado porque os descendentes de alemães se constituem
como a norma. Conforme refere Silva (2007), nas regiões do Estado
do Rio Grande do Sul marcadas pela colonização alemã, essa forma
de vida se estabeleceu como a norma que posiciona os indivíduos de
outras etnias como sendo “os diferentes”. Segundo observa ele, criouse um “discurso mítico” fundador da identidade germânica. Nessa
perspectiva, o autor destaca que “a naturalização da identidade cultural
permite, assim, o estabelecimento de fronteiras culturais/étnicas fixas,
coexistentes no mesmo espaço” (SILVA, 2007, p. 125), como é o caso
dos descendentes de imigrantes alemães e os negros.
Para os estudantes entrevistados, os imigrantes haitianos
sofrem discriminação, inclusive dentro do bairro onde residem. Neste
excerto, um aluno destaca que os haitianos não são vistos apenas
como pessoas negras, mas que há, em sua negritude, algo “diferente”:
Acho que [os haitianos] estão sofrendo bastante racismo.
Porque, tipo, além deles, tá, eles são negros, mas de uma forma
um pouco diferente, vamos dizer, e todo mundo faz chacota,
“ah, olha só, quando acabar a luz não vamos ver mais ele”, tipo,
isso é uma coisa chata pra eles, e pra gente também, tipo, a
gente acaba sentido por eles, daí isso é chato.
Evidencia-se que o racismo praticado contra os haitianos diz
respeito ao fato de estes serem “mais negros”. Dessa forma, pode-se
SUMÁR I O
89
traçar um paralelo entre essa situação e os tensionamentos étnicoraciais presentes em relação aos que se autodenominam morenos,
bem como ao mito da democracia racial, pois fica claro que ela é uma
criação discursiva. Ideia semelhante foi defendida por Schwarcz (1998),
que reflete sobre o modo como o racismo está presente na vida privada
dos brasileiros, bem como em sua intimidade. Segundo refere ela, na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio consolidada em 1976,
na qual os respondentes diziam qual era a sua cor sem que houvesse
termos pré-estabelecidos, houve 136 denominações diferentes, o que
a autora chamou de “aquarela do Brasil”, e que corroborou suas ideias
acerca do caráter íntimo e privado do racismo no País. Para a autora, a
raça e a etnia dos sujeitos dependem de uma série de elementos muito
mais complexos do que um dado supostamente objetivo proveniente
da observação da cor da pele, uma vez que esta não depende de uma
“essência”, mas da relação social e cultural entre diversos sujeitos que,
continuamente, colocam-se comparativamente aos outros.
O terceiro resultado desta pesquisa se relaciona às práticas
racistas na escola. Quando questionados sobre as tensões étnicoraciais no interior da escola, os alunos foram unânimes em afirmar
que nela as práticas discriminatórias não ocorrem. Um dos alunos foi
enfático: “Não! Não! Nunca vi! Nunca fizeram comigo! Nunca senti nada
diferente, tipo em relação à minha cor”. Outro destacou: “Racismo,
não, aqui [na escola] não tem racismo. Acho que todo mundo é
aceito assim”. Contudo, é preciso observar algumas enunciações
que carregam uma maior complexidade. O aluno a seguir refere-se
ao fato de que a presença de negros na escola é pequena. Em sua
fala, refere-se ainda aos que denomina como mulatos: “Nós somos
amigos, mesmo tendo poucos negros, né? Tem até uns três ou quatro
que são mulatos também, sabe!? Mas nada de preconceito [...] Daí
todos aqueles lá são amigos faz tempo”. O aluno explica que não há
preconceito, porque são todos “amigos”, e isso porque estudam juntos
“desde o primeiro ano”. Dessa forma, percebe-se que sua enunciação
SUMÁR I O
90
demonstra que a discriminação racial é evitada pelo fato de os alunos
estudarem juntos durante vários anos, desde muito jovens.
Nos questionários, a maior parte das respostas apontou ideias
muito semelhantes às desenvolvidas anteriormente: “Que eu saiba
não existe racismo na nossa escola, mas na nossa cidade existe, pois
já vi várias pessoas sofrendo racismo ou algo parecido”. “Eu acho
que aqui na escola não existe racismo, pois quase todos nós somos
iguais, pelo menos eu nunca vi”. Tal como observado nas entrevistas,
o primeiro aluno menciona duas realidades distintas: o racismo
enfrentado na cidade e a ausência dele na escola. O segundo, por
sua vez, procura explicar por que não há racismo na escola. Notase, em sua fala, que o racismo supostamente não existe na escola,
porquanto os alunos se identificam como pertencentes a um mesmo
grupo étnico-racial: “pois quase todos nós somos iguais”.
Por outro lado, há enunciações que apresentam perspectivas
diferentes daquelas que apontam para a não existência de práticas de
discriminação racial, como se observa nestas falas: “Racismo existe em
todo lugar, tanto na fila do supermercado, no banco, na rua, na escola,
e os exemplos é só acompanhar as notícias”. “Na minha escola, acho
que é pouco racismo, é só quando o preto tem cabelo feio, daí acontece
por isso”. “Na minha cidade acho que não, nunca me deparei com algo
assim”. O primeiro aluno generaliza a presença do racismo em nossa
sociedade, e cita alguns lugares para exemplificar sua ocorrência.
Entre estes a escola e, portanto, na sua concepção, percebe o racismo
presente também nesse ambiente. O segundo aluno parece corroborar
essa opinião, pois, ao afirmar que, na escola, há “pouco racismo”,
mostra que intui a existência de racismo nesse ambiente, embora
reconheça sua reduzida ocorrência. No entanto, é importante perceber
o que ele afirma na sequência, isto é, que o racismo ocorre “só quando
o preto tem cabelo feio, daí acontece por isso”. Depreende-se que,
nesse contexto, o racismo não diz respeito à cor da pele, mas a algo
que os estudantes relacionam à “estética” do cabelo.
SUMÁR I O
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Podemos, por um lado, explicar a ausência de racismo na
escola pelo modo como os alunos se descrevem. Eles não se
reconhecem como negros, autodenominando-se “morenos” e “meio
morenos”. Logo, ao não se identificarem como negros, não se
observa a possibilidade, em um primeiro momento, de práticas de
discriminação racial. Contudo, há existência de tensionamentos, como
ficou exemplificado no caso do aluno que se mostra incomodado ao
chamarem-no de preto, pois ele se considera moreno. Ao mesmo
tempo, estes mesmos alunos, que não se reconhecem como negros,
relatam sofrer preconceito racial quando circulam em ambientes fora
da escola. Essa diferença de percepção ocorre devido à produção da
identificação racial, que é contingente e depende do contexto em que
estamos inseridos. Conforme Kaercher (2010, p. 87):
A cor da pele é o fator que determina, para esse sujeito branco que
julga, e para quase todos nós, negros e brancos educados dentro
de uma pedagogia da racialização voltada para a construção
de um determinado tipo de brancos e negros, um elemento que
indica e, por fim, define quem é branco(a), quem é negro(a).
Para os alunos que participaram deste estudo, os “tipos” de
brancos e negros parecem ser diferentes dos “tipos” de brancos
e negros percebidos pelas pessoas de ascendência alemã que
os discriminam na cidade, seguindo-os no interior dos mercados,
olhando-os “torto” e “cochichando” na rua quando os veem passar.
Para estas pessoas, esses estudantes são negros, enquanto, para
eles, não são. Isso porque o contexto onde vivem aquelas pessoas é
diferente do contexto em que vivem esses alunos.
Os descendentes de alemães têm a sua cor como marca de
branquitude e, por conseguinte, consideram como negros todos aqueles que não correspondem à sua cor de pele, inclusive, portanto, os
alunos referidos. Enquanto isso, estes, por sua vez, colocam em rasura
a sua cor e, como observamos, consideram, por exemplo, os haitianos como sendo negros. Além disso, autodenominam-se “morenos”,
SUMÁR I O
92
como uma forma de “amolecer a rigidez das polarizações”, conforme
refere Silva (2007). No mesmo sentido, Kaercher (2010, p. 87) afirma
que “não é necessário um esforço muito grande para que possamos
localizar um punhado de exemplos onde, por força dos modos como
nos educou a pedagogia da racialização, temos dificuldade de lidar
com a pertença racial [...]”, como é o caso dos alunos em questão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No encerramento deste capítulo, não tenho a pretensão de
apresentar possíveis conclusões, no sentido de indicar um “ponto
final” ou resultados gerais que possam ser aplicados a outros
contextos educacionais. Seguindo o referencial teórico adotado nesta
investigação, estou ciente de que o estudo gerou, apenas, algumas
possibilidades de discutirmos e pensarmos mais sobre as formas pelas
quais a temática étnico-racial se articula com o campo da Educação.
Interessada em dar visibilidade ao modo pelos quais os
alunos de uma escola pública estão subjetivados, em especial pelos
marcadores étnico-raciais, busquei respaldo nas teorizações de
Foucault, dado que, em grande parte de sua obra, o filósofo dedicouse a mostrar de que maneiras nos constituímos como sujeitos. Para
ele, o sujeito é entendido como um artifício da linguagem, uma
produção discursiva e um efeito de relações de poder-saber. Enfim,
a partir da obra de Foucault, pode-se dizer que “o sujeito passa a ser
[...] aquilo que dele se diz.” (MEYER; PARAÍSO, 2014, p. 29).
Sobre esse aspecto, a investigação mostrou três resultados,
os quais estão diretamente implicados com as formas pelas quais
os alunos se identificam e percebem as relações étnico-raciais na
escola e na cidade onde residem. Em primeiro lugar, as enunciações
SUMÁR I O
93
examinadas mostraram um não reconhecimento da negritude
dos estudantes que preferem denominar-se como “morenos” ou
“escuros”. Este aspecto corroborou as afirmações de Silva (2007),
quando menciona que, no Brasil, há um “amolecimento” da rigidez
das polarizações, o qual se materializa em novas denominações,
como é o caso do “moreno” e da “meio escurinha”. Para os discentes
entrevistados, negros são apenas os haitianos, em função do tom
mais escuro de sua pele. Além disso, a pesquisa destaca que os
alunos negam a existência de racismo na escola, mesmo afirmando
que práticas racistas são vivenciadas no município.
A partir desses resultados, outras questões podem ser
destacadas. Uma delas é que o trabalho, de certa forma, ajuda a
sustentar as discussões já empreendidas sobre os conceitos de “raça”
e “etnia”. De acordo com Meyer (2011, p. 47), tais conceitos podem ser
compreendidos como “contingências históricas, produzidas umas em
relação a outras, em contextos sociais específicos”. São, dessa forma,
“construções que se dão no interior dos processos sociais, resultados
de uma relação de poder entre forças que se exercem tanto para a
dominação como para a resistência” (MEYER, 2011, p. 47). Ciente de
que essas definições estão carregadas de tensionamentos políticos e
atravessadas por relações de poder, este estudo procurou justamente
entender como essas categorias operam no sentido de construir as
subjetividades dos alunos. Assim, estive interessada em analisar os
modos pelos quais os alunos se identificam e se percebem como
moradores de uma cidade marcada pela colonização alemã.
Por fim, ressalto que nestes tempos líquidos em que vivemos,
a escola pós-moderna tem-se configurado como um espaço de
problematização de algumas das grandes “verdades” que aceitamos
e tomamos como naturais, sem questionamento. Nesse sentido,
não temos como pensar a Educação de modo desarticulado das
questões da diferença, cultura, raça, etnia, gênero e tantas outras.
SUMÁR I O
94
Desta forma, considero que a pesquisa contribuiu abrindo espaço
para narrativas dos alunos acerca das questões étnico-raciais. Essa
abordagem possibilitou aos discentes refletirem sobre si mesmos e
sobre questões mais amplas relativas à sociedade em que vivem. Este
exercício de questionamento, quem sabe, pode abrir espaço para
outras possibilidades de pensarmos a sociedade e nós mesmos.
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Debates e Tendências, Passo Fundo, v. 14, n. 1, p. 21-35, 2014.
SUMÁR I O
97
Capítulo 5
5
PRÁTICAS DE INICIAÇÃO
CIENTÍFICA NA ESCOLA
Daiane Martins Bocasanta
Luciane Andreia Leite dos Santos
Tanise Müller Ramos
Daiane Martins Bocasanta
Luciane Andreia Leite dos Santos
Tanise Müller Ramos
PRÁTICAS
DE INICIAÇÃO
CIENTÍFICA
NA ESCOLA
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.98-116
INTRODUÇÃO
O capítulo aqui apresentado nasceu da discussão levantada
por três professoras pesquisadoras do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAp/UFRGS), tendo como
base seus interesses de estudos. Esta escrita tem por objetivo geral
apresentar algumas reflexões acerca de práticas pedagógicas realizadas nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (EF) e na Educação
de Jovens e Adultos (EJA), suscitadas por desafios com os quais
nos deparamos todos os dias na instituição escolar, em especial, os
processos de in/exclusão. Especificamente, o objetivo desta investigação foi examinar efeitos de práticas de Iniciação Científica (IC)
realizadas junto a crianças, adolescentes e adultos no CAp/UFRGS
que, em nosso entendimento, ajudam-nos a refletir acerca de possibilidades de ressignificação da docência na escola contemporânea.
Nosso exercício analítico se estruturou desta forma: primeiramente, na introdução, descrevemos de modo breve o contexto institucional onde estamos inseridas e alguns desafios ligados às condições de
permanência que alunos e professores enfrentam em seu cotidiano. Na
seção seguinte, discutimos os caminhos da pesquisa. Após, o capítulo
passa a ocupar-se das práticas pedagógicas propriamente ditas, tanto aquelas já consagradas no currículo da instituição, quanto algumas
que consideramos representativas de nossas intenções em qualificar o
trabalho docente e as condições de permanência do corpo discente.
Encerramos o texto com considerações finais, as quais sinalizam o caráter não-prescritivo de nossas análises, sugerindo a abertura de nossas
produções para a inclusão de novos olhares e novas discussões.
SUMÁR I O
99
SITUANDO O LOCAL DE PESQUISA: O
COLÉGIO DE APLICAÇÃO DA UFRGS
O CAp/UFRGS é uma escola de Educação Básica que tem
entre seus objetivos servir como laboratório de práticas pedagógicas
inovadoras e como campo de estágio para alunos das diferentes
licenciaturas e cursos da instituição. A escola foi fundada em 1954,
pelo Decreto Lei 9.043, de 1946, e desde então se firmou na sociedade
porto-alegrense como uma instituição de ensino público de qualidade.
O ingresso na escola dava-se mediante aprovação em “rigorosos testes
de seleção” ou pela reserva de vagas para os filhos de professores ou
de “famílias ligadas à Universidade e de reconhecida importância social”
(SAENGER, 1999, p. 34-35). Em 1981, por meio de ação judicial, essas
formas de acesso à escola foram contestadas, o que obrigou a instituição
a optar por caminhos mais democráticos de ingresso. Como alternativa,
o CAp/UFRGS passou a adotar o sorteio público, pois possibilitaria o
preenchimento das vagas “em igualdade de condições para todos”
(MORAES; TEIXEIRA, 1983, p. 88). Essa mudança na forma de ingresso
repercutiu significativamente na composição do quadro discente.
Dados do Serviço de Orientação e Psicologia Educacional
mostraram que a partir de 1982, o nível de escolaridade dos pais,
em sua maioria, até aquele momento com ensino superior completo,
mudou consideravelmente, bem como a forma da organização
familiar (STUMPF, 1995). Essa nova forma de acesso também refletiu
mudanças em outros dois aspectos: o local de moradia dos alunos,
o qual se ampliou para outros bairros da cidade de Porto Alegre e
área metropolitana, e as motivações para a escolha dessa escola.
Primeiramente, essa escolha era centrada na questão da qualidade do
ensino ou aprovação no vestibular, porém, nessa nova configuração,
ocorre por ser uma escola pública, gratuita e com o 2º Grau completo
(atual Ensino Médio) (BRUGALLI et al., 1998). Tais mudanças foram
SUMÁR I O
100
intensificadas, segundo observa Mutti (2004, p. 48), com a transferência
da escola, ocorrida no ano de 1996, do centro da capital gaúcha, para
o Campus do Vale, no bairro Agronomia.
Podemos dizer que isso contribuiu para que o perfil dos alunos se tornasse “mais heterogêneo, semelhante ao de outras escolas públicas”. Ao receber esses grupos cada vez mais heterogêneos,
principalmente no que concerne aos aspectos socioculturais, o CAp/
UFRGS enfrentou (e enfrenta) algo semelhante ao que outras escolas
já enfrentavam: a dificuldade em trabalhar com alunos que possuem
referenciais culturais diversos, principalmente referenciais que divergem daqueles historicamente valorizados pela escola.
Nossa observação sobre o trabalho desenvolvido na instituição,
a partir da vivência como professoras dos Anos Iniciais, levou-nos a
perceber que vários estudantes que ingressavam nas diferentes etapas
de ensino não concluíam seus estudos no CAp/UFRGS. Buscando
compreender os motivos que justificavam a saída dos alunos, uma
vez que as vagas eram (e ainda são) muito disputadas, surgiu o
interesse pelo estudo das trajetórias de um grupo de alunos para
entender as permanências ou as transferências ocorridas. Este estudo
nos possibilitou conhecer um pouco da história desses estudantes e
como suas trajetórias foram sendo constituídas a partir das práticas
escolares, que por sua vez eram pautadas em concepções de escola,
aluno e família, às quais alguns alunos sorteados “se adequavam” e
outros não. Embora se entenda, na perspectiva teórica que embasou
este trabalho, que nenhum sujeito está totalmente incluído ou excluído,
seja em ações, práticas ou espaços (LOPES, 2010; LUNARDI, 2001),
problematizar situações como essas contribuiu para desnaturalizar
justificativas pautadas na responsabilização apenas dos alunos e de
suas famílias frente aos insucessos escolares, bem como permitiu a
reflexão acerca de uma possível desresponsabilização da instituição
no processo ocorrido (DOEBBER, 2011).
SUMÁR I O
101
Dado esse contexto, temos discutido, especialmente entre
as professoras que compõem a área dos Anos Iniciais, acerca
da elaboração e realização de práticas pedagógicas alternativas,
significativas e inclusivas, que possam contribuir para garantir as
condições de permanência dos estudantes do CAp/UFRGS. Assim,
após a descrição dos caminhos da pesquisa, passaremos para a
discussão de algumas ações que temos posto em prática.
TRILHANDO CAMINHOS DE PESQUISA
Esta pesquisa se ampara em uma metodologia de inspiração
etnográfica. O referencial teórico situa-se no campo dos Estudos Culturais em Educação, em seus entrecruzamentos com o campo dos
Estudos Foucaultianos. Para iniciar, é preciso situar que nesse referencial teórico não existe uma metodologia específica ou única, podendo
o pesquisador, em seu percurso, construir/reconstruir sua trajetória
e, ainda, fazer uso de diferentes metodologias, independentemente
do campo de estudos das mesmas: o estudo de caso, a etnografia,
a pesquisa qualitativa, entre outras. Isto é, os “Estudos Culturais se
aproveitam de quaisquer campos que forem necessários para produzir o conhecimento exigido por um projeto particular [...] sua metodologia, ambígua desde o início, pode ser mais bem entendida como
uma bricolage” (NELSON; TREICCHLER; GROSSBERG, 2008, p. 9).
Nesse movimento, de acordo com Wortmann (2010), ao buscar contribuições de outros campos e parcerias, as próprias possibilidades
interpretativas do que se entende por pedagógico se ampliam.
Apoiando-nos em formulações foucaultianas, podemos
dizer que a abordagem escolhida nos retira a estabilidade do solo
firme proporcionado pela escolha a priori de uma determinada
metodologia de pesquisa. Seguindo Veiga-Neto e Lopes (2010,
SUMÁR I O
102
p. 7), “[...] não há um solo-base por onde caminhar, senão que,
mais do que o caminho, é o próprio solo sobre o qual repousa
esse caminho é que é feito durante o ato de caminhar”. Assim, se
há disposição de escutar Foucault, “o método não é o caminho
seguro como queriam Descartes e Ramus, até porque nada mais
é seguro, previsível: nem os pontos de partida, nem o percurso,
nem os pontos de chegada” (VEIGA-NETO; LOPES, 2010, p. 6).
A temática desta investigação surgiu a partir do diálogo entre as
autoras do presente capítulo, três pesquisadoras/docentes atuantes
no CAp/UFRGS, que, ao compartilharem suas dúvidas, interesses
de pesquisa e projetos investigativos individuais, perceberam a
produtividade de realizar uma escrita que conectasse tudo isso. Dentre
os pontos de encontro dessas pesquisas, é preciso evidenciar a atitude
de questionamento frente a crenças e objetos naturalizados. Isso
possibilita, como argumenta Fischer (2012, p. 103), questionar “como
algumas práticas acabam por objetivar e nomear de determinada
forma os sujeitos, os grupos, suas ações, gestos, vidas”.
Guiadas por tais pressupostos, colocamos em prática um
percurso investigativo que visou a identificar no material de pesquisa
– composto por observações e anotações em Diário de Campo de
atividades escolares, documentos e entrevistas produzidas com
professores, alunos e ex-alunos da instituição – as recorrências, as
rupturas, as continuidades e descontinuidades presentes, amparadas
sobretudo pelas contribuições de Michel Foucault.
ANALISANDO A INICIAÇÃO
CIENTÍFICA NA ESCOLA
Há alguns anos, o CAp/UFRGS tem a IC como parte do currículo
escolar, realizada desde o primeiro ano dos Anos Iniciais do EF até o
SUMÁR I O
103
final do Ensino Médio e na EJA6. Nos Anos Iniciais, além de ocupar
três períodos semanais da carga-horária em todas as turmas, a IC
geralmente acontece com a atuação de mais de um professor por
turma. A escolha das questões de pesquisa a serem estudadas é
feita de diferentes modos, como, por exemplo, a partir de atividades
disparadoras. O Manual do Novato no CAp/UFRGS (2018), que está
presente no site da instituição, evidencia a ideia de que há a necessidade
de engajamento de todos os sujeitos em atividades de ensino, pesquisa
e extensão, como forma de alcançar uma formação plena. Nesse
texto está presente a argumentação de que esse engajamento seria
essencial para o cumprimento do potencial de criação de conhecimento
e de transformação social da escola. Podemos inferir, a partir desse
documento e da inserção da IC como atividade semanal presente no
currículo escolar desde os Anos Iniciais do EF, que se espera, portanto,
que professores e estudantes do CAp/UFRGS sejam comprometidos
com uma formação voltada para o aprender a pesquisar.
Para Noguera-Ramírez (2011), o conhecimento, em nossa
sociedade pós-capitalista, ocupa um lugar de extrema relevância, o
que implica uma nova forma de pensarmos a educação como algo que
deixa de ser um monopólio das escolas. Ele destaca que o relatório
apresentado à UNESCO pela Comissão Internacional sobre Educação
para o Século XXI, sob a presidência de J. Delors, demarca que o
ingresso para o século XXI se daria pelo conceito de “educação ao
longo da vida”. Esse conceito supõe a capacidade de “aprender a
aprender”, visando a aproveitar todas as possibilidades ofertadas pela
educação permanente (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011).
Esse discurso, presente em documentos como os que
Noguera-Ramirez (2011) analisou e os documentos escolares que
guiam as atividades realizadas no âmbito da instituição escolar a qual
6
SUMÁR I O
Na Educação de Jovens e Adultos, são realizados os Projetos de Investigação (PI), que,
mesmo sendo semelhantes à IC realizada nos outros segmentos da escola, possuem suas
particularidades.
104
pertencemos, está presente também em publicações voltadas a formar
professores capazes de utilizar a IC em sala de aula, como mostraremos
a seguir. Observamos que esses documentos posicionam o uso da
metodologia científica como um caminho de via única para a realização
desse tipo de trabalho nas instituições escolares.
Dito isso, cabe trazermos ao texto um breve exame da obra
de Celicina B. Azevedo, Metodologia científica ao alcance de todos,
que se mostra elucidativa a esse respeito. Conforme explica a
autora, o objetivo de sua obra seria disseminar a ideia de que o
trabalho com a metodologia científica deveria ser expandido desde
os laboratórios onde atuam pesquisadores para todas as salas de
aula, inclusive as da Educação Infantil. Ademais, Azevedo (2013,
p. XVII) explica que escreveu o livro por acreditar “[...] que um
estudante - do ensino fundamental à pós-graduação - pode aplicar
o método científico nos seus trabalhos escolares sem que para
tanto necessite ter profundos conhecimentos científicos”.
Desse modo, aprender a pensar teria a ver com “dar asas à
imaginação”, “não impor limites ao pensamento”, “pensar qualquer
coisa, por mais absurda que ela possa parecer”, pois, “como você já
sabe, pensar sem bloqueios é muito importante para ser um cientista”
(AZEVEDO, 2013, p. 5). Entretanto, conforme nossa análise, podemos
inferir que a autora argumenta que esse pensar necessariamente
deveria estar circunscrito aos ditames do método científico, isto é,
o pensar precisaria estar subordinado à racionalidade científica da
Modernidade. Azevedo (2013, p. 6) explicaria inclusive como devem
ser feitas as perguntas: “[...] você precisa ser mais objetivo na sua
pergunta, isto é, a pergunta deve ser clara e precisa, por exemplo:
‘Quais doenças parasitárias incidem com maior frequência nas crianças
da sua cidade?’”. E, complementa dizendo: “observe que a pergunta
deve ter uma solução possível, isto é, por meio da questão formulada
você deve chegar a uma resposta [...]” (AZEVEDO, 2013, p. 6).
SUMÁR I O
105
Embora argumente que aprender a pensar seria o primeiro passo para se fazer pesquisa e que isso estaria fortemente relacionado
a “ter mais coragem de emitir nossa opinião sobre as coisas” (AZEVEDO, 2013, p. 4), em seu texto, a autora mostra como alguém que
vai fazer uma pesquisa deve formular suas perguntas e, desse modo,
como deve pensar suas curiosidades. Ao mesmo tempo, mostra que
as curiosidades que “valem a pena” são aquelas que têm uma solução possível. Não bastaria saber formular a pergunta: “você precisa
também formular uma possível resposta por meio de uma proposição,
isto é, uma frase que possa ser declarada falsa ou verdadeira após
uma investigação” (AZEVEDO, 2013, p. 7). A autora define o Método
Científico como “um processo rigoroso pelo qual são testadas novas
ideias acerca de como a natureza funciona” (AZEVEDO, 2013, p. 11).
Nesse sentido, nossas tentativas têm se centrado na possibilidade
de realizarmos práticas pedagógicas investigativas que não sigam
passos homogêneos e absolutos como os que apontam manuais como
os que aqui analisamos. Assim, perguntas que não sejam do campo das
Ciências Exatas ou Naturais, ou ainda, que não tenham uma solução
única possível, mas que abram um leque de reflexões que levem os
alunos a repensar o mundo em que vivem sob diferentes perspectivas,
tem pautado algumas das práticas pedagógicas de IC que buscamos
implementar no CAp/UFRGS, como apresentaremos a seguir.
DESENCAIXANDO PRÁTICAS
É interessante considerar que todas essas conceptualizações
aqui trazidas são produzidas também pelo cenário brasileiro
contemporâneo, no que concerne especialmente às políticas em
Educação. Desde 2003, temos no Brasil uma reorientação nas bases
legais educacionais, no que diz respeito à inclusão obrigatória do ensino
SUMÁR I O
106
de história e cultura africana e afro-brasileira, ampliada em 2008 para
história e cultura indígena, nos currículos escolares de abrangência
nacional. Alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB, 1996), as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 produziram como um
de seus importantes efeitos a reorientação e a produção de práticas
pedagógicas atentas à educação das relações étnico-raciais (ERER).
Assim, as novas bases legais terminaram por gerar deslocamentos
curriculares e novas práticas pedagógicas, que colocam a escola
enquanto um espaço em que se educa para uma ação antirracista.
Nos Anos Iniciais do CAp/UFRGS, essas novas orientações
legais vêm direcionando o foco dos professores para suas práticas
pedagógicas, as quais cada vez mais vêm sendo provocadas pelo
desafio da inclusão da história e cultura africana, afro-brasileira e
indígena nas rotinas escolares. A IC, deste modo, também vem
sendo repensada em função desses novos desafios e indagações
curriculares, principalmente no que concerne à seleção e organização
dos saberes e conteúdos valorizados na escola. Atentos à construção
de uma proposta de ERER, os professores vêm reinventando suas
próprias práticas docentes, no sentido de romper com abordagens
curriculares eurocentradas e valorizando conhecimentos oriundos dos
modos de pensar e fazer de matrizes africanas e indígenas.
Sobre tais desencaixes curriculares, optamos por destacar
uma experiência com uma turma de quinto ano do EF, cujo projeto
de pesquisa de IC em 2017 partiu da pergunta de pesquisa “Como
fazer um mundo melhor para todos?”, sob orientação da professora
Tanise Müller Ramos. Essa pergunta nasceu após uma saída de
campo a uma aldeia indígena, em que os alunos tiveram contato com
alguns aspectos da cultura mbya-guarani, um dos povos fundantes
da história e cultura brasileira. Guiadas pela obrigatoriedade do
ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, as
professoras planejaram como atividade disparadora essa visita a
SUMÁR I O
107
um lugar considerado “fora” da ordem escolar, rompendo com a
invisibilidade da história e cultura dos povos originários no currículo.
Desta forma, as relações entre os seres que habitam o planeta
acabaram sendo o centro deste projeto, não na perspectiva tradicional
da ciência escolar, que tende a focar no viés biológico dessas relações,
mas, sim, no enfoque histórico-cultural, em que as relações étnicoraciais, de gênero, de classe, de geração, de culturas familiares, dentre
outras, acabaram por interessar muito aquele grupo. Problemas sociais
contemporâneos, tais como o racismo, a desigualdade de gênero, a
violência, as ameaças aos direitos humanos, a demarcação de terras
indígenas, a homofobia, o machismo, a intolerância religiosa, dentre
outras questões, foram pensadas como motes para se discutir ações
alternativas para a consecução de um mundo mais justo e igualitário.
Além disto, continuamos investindo durante todo o projeto em
práticas intersetoriais, que extravasavam os muros escolares, por meio
de saídas de campo e apoio de parceiros para dialogar com a turma.
Neste sentido, merece destaque nossa visita a uma comunidade
quilombola, além da visita de lideranças negras, lideranças indígenas
e lideranças femininas no Colégio, em que os alunos foram analisando
cada temática sob múltiplas perspectivas, percebendo o quanto um
mesmo problema social pode ser percebido e interpretado a partir de
diferentes concepções e paradigmas. Essas experiências nos levam
a afirmar que é preciso, pois, “visibilizar outras narrativas dentro da
escola, as quais acabam por romper com formas de narrar únicas e
excludentes já consolidadas no espaço escolar” (RAMOS, 2015, p. 18),
o que impõe à escola um movimento profundo de revisão de suas
práticas, de seus saberes arraigados, de seus espaços e tempos, de
seus objetivos e de suas concepções.
A conclusão do grupo com este estudo foi a de que as ciências,
em suas diferentes áreas, ajudam-nos a analisar os problemas
ambientais, sociais, históricos e culturais do planeta, contribuindo para
SUMÁR I O
108
ações e tomadas de decisões cada vez mais plurais e interessadas
pela diversidade. Para esse grupo, o projeto de IC naquele contexto
esteve o tempo todo imbricado com a educação das relações entre os
sujeitos, submetendo as “verdades científicas” aos atravessamentos
de ordem social, histórico e cultural. Pensando em “ações para um
mundo melhor”, a turma acabou por construir relações mais éticas e
respeitosas entre si, evidenciando a relevância que possuem as ciências
para a visibilidade de saberes e fazeres silenciados ou excluídos,
capazes de potencializarem o diálogo, o respeito e a tolerância. Neste
processo, a atitude de indagar o currículo escolar (GOMES, 2008)
esteve presente enquanto estratégia para a construção de práticas
alternativas àquelas já consagradas no espaço escolar, rompendo
com verdades cristalizadas e, assim, ampliando a visibilidade de
outras possibilidades para a produção do conhecimento.
O resultado deste trabalho, além de um prêmio destaque
conquistado pelas crianças e por uma de suas professoras ao
apresentarem estes estudos no maior evento de IC da Universidade da
qual o Colégio faz parte, foi a formação de posicionamentos daqueles
sujeitos em uma perspectiva de combate à violência, à intolerância e à
desigualdade em suas diferentes nuances. Considerando o conceito
de identidade de Stuart Hall (1998), nós, professoras, conduzimos este
projeto todo o tempo pela afirmação de que as identidades culturais
são construções contingentes, portanto, sujeitas a deslocamentos
e reconfigurações dependentes dos diferentes contextos sociais.
Dessa forma, somos levadas a afirmar que as identidades dos alunos
também podem ser construídas. Acreditamos, portanto, que a escola
funciona como um contexto cultural produtor de identidades, em
que operam condições de classe, gênero, sexualidade, raça, etnia
e nacionalidade, dentre tantas. Em outras palavras, terminamos por
produzir identidades negras, indígenas, antirracistas, feministas e de
combate à intolerância e à desigualdade naquele projeto.
SUMÁR I O
109
Para encerrar a análise desta experiência, associamo-nos a
Jorge Larrosa (1996, p. 147), quando diz que “o sentido de quem
somos está construído narrativamente”. Ao sustentarmos uma
saída de campo a um local que rompia com a “ordem” escolar, ao
autorizar as crianças a levarem adiante uma pergunta de pesquisa
complexa, que extravasava as fronteiras daqueles conteúdos que
eram tradicionalmente eleitos para o trabalho nos Anos Iniciais, ao
selecionar, planejar e organizar experiências para além dos muros
escolares, percebemos que estávamos produzindo novas narrativas,
as quais visibilizavam de modo afirmativo as histórias e culturas
africanas, afro-brasileiras e indígenas em especial, concebendo
que tais formas de narrar possuíam potencial para constituir as
identidades dos alunos dos Anos Iniciais do CAp/UFRGS.
PROBLEMATIZANDO O SALÃO UFRGS JOVEM
Nesta seção, descrevemos outra experiência que nos levou a
“desencaixar” nosso pensamento acerca da IC escolar. A experiência
aqui descrita se refere à orientação de uma estudante de 50 anos,
aluna do Ensino Médio da EJA, do CAp/UFRGS. Em meados de
2017, essa estudante foi selecionada por uma das autoras deste
artigo para ser bolsista de Iniciação Científica Júnior ligada a uma
pesquisa desenvolvida no âmbito da instituição. O tipo de bolsa a
que essa aluna foi vinculada só pode ser concedido a alguém que
não tenha vínculo profissional formal, o que geralmente já é um
impeditivo para que alunos da EJA possam ser contemplados nesse
sentido. O trabalho de pesquisa desenvolvido pela aluna consistia
em examinar livros didáticos voltados para os Anos Iniciais da EJA,
objetivando identificar como esses alunos eram posicionados em
relação ao que consideramos conhecimentos tecnocientíficos. A
diferença de idade entre a aluna e sua orientadora era significativa
SUMÁR I O
110
e sempre gerava, nos encontros de orientação, comentários da
estudante, tais como: “minha cabeça já não ajuda”, “eu não entendo
por que tu me escolheste e não um mais novinho” ou “será que eu
vou conseguir? Eu já não tenho a mesma cabeça de um jovem”.
As falas da estudante, que eram sempre colocadas em questão,
refletem um discurso presente em materiais didáticos, documentos
governamentais e regulamentos de eventos de IC, que garantem um
papel de protagonismo aos jovens, como produtores de inovação no
campo científico. Como escrevemos em outro espaço:
Ao mesmo tempo em que o jovem aparece como alvo a ser
atingido pelas políticas de desenvolvimento de ciência e
tecnologia, ele é apresentado, nos documentos, como o
produtor por excelência da C&T brasileira: “o sistema [de
C&T brasileiro] é jovem, também em termos de idade média
de seus pesquisadores. Esta juventude é uma das grandes
forças do Brasil” (BRASIL, 2001, p. 256). [...] Esse processo de
valorização das culturas juvenis, em que “atributos associados a
ideias de juventude, como beleza, saúde, estilos de vestimenta,
acessórios e práticas identificadas como juvenis ganham força
e relevância cultural na sociedade contemporânea” (SILVA,
2009), está diretamente implicado em um fenômeno bem maior
que tem tomado conta do mundo ocidental nos últimos anos
(BOCASANTA, 2013, p. 88).
Apesar das dificuldades enfrentadas e, principalmente, contra
um discurso corrente que a aluna assumia, a pesquisa foi realizada
com grande qualidade. Surgiu então, a ideia de divulgar a pesquisa,
inscrevendo-a no Salão UFRGS Jovem. Ao conversar sobre essa
possibilidade com a bolsista, mais uma vez ela questionou se deveria
participar dessa atividade. Explicou-se, então, que, apesar do título,
o evento era voltado para alunos da Educação Básica e, por estar
cursando o Ensino Médio, nada mais justo do que ela participar.
Criado em 2006, o Salãozinho, como é popularmente chamado,
surgiu em consequência de uma mostra realizada para alunos da
Educação Básica durante a semana acadêmica da universidade. Na
SUMÁR I O
111
chamada para o VII Salão UFRGS Jovem, ocorrido em 2012, já na
chamada do evento, os jovens eram colocados como o público-alvo,
ignorando-se o fato de que a EJA, composta majoritariamente por
adultos e idosos, também é espaço onde ocorre a Educação Básica.
Realizado de forma integrada ao Salão UFRGS 2012, este
evento buscar estimular os jovens a aprenderem a interagir
de forma crítica e criativa com o mundo que os cerca. [...]
É muito importante que a pesquisa possa acontecer desde
muito cedo, mesmo no âmbito da educação fundamental,
pois é neste estágio inicial da formação do ser humano que
se potencializa a sua capacidade criativa. [...] É tocante ver as
crianças e adolescentes apresentando os seus resultados da
sua pesquisa na escola! (UFRGS, 2012)
No dia da apresentação do trabalho da bolsista, observamos que
ela era a única aluna da EJA participando do evento e, com certeza, a
estudante mais velha entre todos ali presentes. Como reconhecimento
de nossos intentos, o trabalho recebeu premiação de destaque, que
consiste em um troféu, entregue ao final do evento, em cerimônia
própria. Logo após o recebimento do prêmio, a aluna foi chamada a dar
uma entrevista para o jornal da universidade, que publicou o seguinte:
No conjunto de destaques premiados, uma pesquisa chamou
a atenção por ser realizada no Colégio de Aplicação da UFRGS
por uma aluna do Ensino Médio na modalidade de Educação de
Jovens e Adultos (EJA). Aos 50 anos de idade, a estudante Odete
Bernardo subiu ao palco acompanhada da professora Daiane
Martins Bocasanta para receber seu troféu. [...] Revelando que
pretende continuar estudando e pesquisando, Odete disse que
a experiência com a pesquisa e no Salão Jovem mostrou a ela
sua capacidade: “vejo que, aos 50 anos, tenho as mesmas
condições que os jovens. Quero ir além” (UFRGS, 2018).
É interessante notar que, por não ser comum a participação de
adultos nesse tipo de evento, a presença da aluna causou um certo
tipo de “comoção”, que levou sua situação a se constituir como uma
“notícia” que “chamou atenção”. Nesse sentido, entendemos que isso
SUMÁR I O
112
provoca desacomodações curriculares também, afinal, problematiza a
não participação dos adultos e idosos em um evento que, apesar de
voltado também para estudantes da EJA, já os exclui de antemão pelo
próprio título que o constitui.
APONTANDO ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como conclusão, afirmamos a necessidade de reorganização
do cotidiano da escola na contemporaneidade, levando em
consideração os aspectos legais e problematizando os discursos e
as práticas historicamente arraigados à cultura escolar, como foi o
foco deste estudo. Assim, é possível criar canais de visibilidade para
outras abordagens científicas até então silenciadas ou marginalizadas,
desconstruindo os esquemas únicos com os quais estamos habituados
a enxergar o mundo em nosso contexto ocidental (RAMOS, 2015).
Questionar a ciência em sua abordagem única e ampliá-la por meio
de outras perspectivas potencializa nossa capacidade de pensar
e agir em um mundo marcado pela diversidade. Para a escola, isso
possibilita condições de permanência e sucesso para todos os alunos,
pois o público que a acessa é marcado por trajetórias, experiências
e pertencimentos diversos, demandando práticas pedagógicas
alternativas para a garantia do direito de aprendizagem de todos. Isso
remete à necessidade de repensarmos e discutirmos o que foi se
constituindo como conhecimento válido dentro da escola. Além disso,
provoca-nos a pensar sobre a relevância do conhecimento científico
que investigamos, transmitimos e produzimos com nossos alunos e
formas de potencializar seu uso no combate às desigualdades e para
a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
SUMÁR I O
113
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de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
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SUMÁR I O
116
Capítulo 6
6
ENSINAR MATEMÁTICA NOS
ANOS INICIAIS: ENUNCIADOS
QUE CONSTITUEM DOCÊNCIAS
Fernanda Longo
Fernanda Longo
ENSINAR MATEMÁTICA
NOS ANOS INICIAIS:
enunciados
que constituem
docências
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.117-134
Neste capítulo se apresenta uma pesquisa desenvolvida com
professoras que atuam no Ensino Fundamental sobre as práticas
pedagógicas colocadas em funcionamento ao ensinarem a disciplina
Matemática7 nos anos iniciais. Por meio da problematização de
enunciados que conformam o discurso da Educação Matemática,
com as lentes do pós-estruturalismo e dos estudos de Michel
Foucault, foram realizadas entrevistas com docentes da rede privada
do município de Porto Alegre/RS, buscando perceber os efeitos de
verdade de tais enunciados sobre as práticas pedagógicas.
ENUNCIADOS DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
“Como fazer meu estudante aprender a fazer cálculo? O que tu
achas sobre ‘decorar a tabuada’? Qual é a melhor forma de ensinar
matemática para meus estudantes? Como posso fazer meus estudantes se interessarem pelas minhas aulas? Qual é o melhor método?
Ainda pode-se usar o método tradicional?” Quando um pesquisador
diz, em meio a um grupo de professores e professoras, que estuda
a docência e as formas de ser professor, o diálogo segue por esse
caminho de forma automática. Falar em docência no século XXI traz
alguns desafios que ultrapassam a opinião sobre qual método seria
o melhor para um estudante da escola de modo geral, já que temos
uma sociedade bem mais complexa e que demonstra a incapacidade
da prescrição de métodos, por exemplo. O que funciona em uma
escola da rede privada de uma cidade grande não necessariamente
faz sentido e adquire significado na escola pública no meio rural.
7
SUMÁR I O
Neste texto, a palavra Matemática será usada com letra maiúscula quando tratar da
disciplina Matemática e com letra minúscula quando tratar do conjunto de saberes
matemáticos institucionalizados ou não.
118
Essas considerações colocam a escola e a docência em uma
perspectiva diferente da escola moderna, onde tudo e todos teriam
acesso aos mesmos conceitos e abordagens transcendentais e que
funcionariam para todos. As respostas para aquelas perguntas são
ditas e repetidas continuamente e, aos poucos, vão compondo os
discursos escolares e compondo formas de ser professor e professora
na escola. Ao mesmo tempo que perguntam, os docentes compõem
modos de ser e de agir, ou seja, estabelecem uma relação com
verdades do discurso pedagógico.
Os estudos realizados pelo filósofo Michel Foucault e seus
comentadores compõem o solo teórico deste texto. Estudar a docência
em uma perspectiva foucaultiana significa algo muito diferente de
afirmar quem é esse sujeito, descrever o que o(a) professor(a) faz
ao dar aulas ou prescrever métodos a serem seguidos. Escrever,
pensar, ler, buscar entender o fazer docente significa pensar em
modos de subjetivação, pensar na relação que existe entre as
verdades que fazem parte do discurso escolar. Busca-se, portanto,
neste texto analisar algumas verdades e enunciados que, de alguma
maneira, acabam por reger o modo de ser e de agir enquanto sujeitos
professores que dão aula de matemática nos Anos Iniciais.
Nos últimos anos, a área da Educação Matemática tem se
servido das ferramentas foucaultianas para discutir e problematizar
questões que envolvem tanto o currículo escolar (KNIJNIK, 2012;
KNIJNIK; WANDERER, 2015), como as relações mais amplas entre o
conhecimento matemático e a sociedade neoliberal (VALERO, 2013;
KNIJNIK, 2017; SANTOS, 2019). Nessas pesquisas, os conceitos
foucaultianos de discurso, governamentalidade, relações de poder/
saber e regimes de verdade, basicamente, constituíram-se em vetores
analíticos com o propósito de potencializar reflexões desenvolvidas em
diferentes formas de vida, incluindo a escolar.
SUMÁR I O
119
Ao entrevistar algumas professoras da rede privada de Porto
Alegre/RS, que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, sobre
as suas aulas de Matemática, algumas enunciações acerca do uso de
material concreto como forma de facilitar a compreensão de conceitos
matemáticos, sobre a dificuldade de aprender e ensinar Matemática e
sobre a importância da contextualização e aproximação da realidade
foram ditas de forma recorrente. Tais enunciações não são novas; são
repetições, recorrências de legislações, textos teóricos, orientações
metodológicas de livros didáticos. Estas enunciações podem ser
consideradas enunciados que, para Foucault, não necessariamente é
um ato de fala, ou seja, “[...] uma fotografia ou um mapa podem ser
um enunciado, desde que funcionem como tal, ou seja, desde que
sejam tomados como manifestações de um saber e que, por isso,
sejam aceitos, repetidos e transmitidos” (VEIGA-NETO, 2007, p. 94).
Desse modo, pensar em enunciado é considerar um ato raro, que não é
facilmente visto, mas torna-se visível nas recorrências daquilo que é dito.
Pesquisas como as de Valero (2013), Knijnik e Duarte (2010)
e Knijnik e Wanderer (2007) demonstram que efeitos tais enunciados
provocam na escola. Por meio da análise de anais de eventos nacionais
com enfoque na Etnomatemática, Knijnik e Duarte (2010) evidenciaram
que o enunciado “trazer a realidade para as aulas de matemática” é
recorrente e justificaria a incorporação de diferentes contextos em sala de
aula com o enfoque na assimilação de conteúdos com mais facilidade.
Assim, enfatizam que o movimento de trazer a realidade do aluno para
a escola está vinculado ao propósito de ensinar os jogos de linguagem
da escola, não para valorizar ou legitimar a cultura dos alunos.
Especificamente nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental
predomina um enunciado que afirma “a importância de trabalhar
com materiais concretos nas aulas de matemática”, problematizado
por Knijnik e Wanderer (2007). Segundo observam elas, os materiais
manipuláveis ganham espaço nas orientações para o ensino de
SUMÁR I O
120
Matemática nos Anos Iniciais, pois funcionariam como uma ponte entre
o “concreto” e o “abstrato”. Tal ponte torna-se quase obrigatória durante
as aulas, enredando-se em uma verdade do discurso psicológico:
apenas se aprende o abstrato a partir da sua relação com o concreto. No
entrecruzamento dessas verdades, o discurso da Educação Matemática
acaba por posicionar os conceitos matemáticos como únicos, universais
e não construídos conforme o contexto em que se desenvolvem.
Sobre esse aspecto, Foucault nos ajuda a compreender a
Educação Matemática como um discurso que forma os objetos de
que falam. Essa ideia nos possibilita pensar que somos regulados
e constituídos continuamente pelos discursos que nos perpassam
e regulam nossa forma de ser e de agir. Para o filósofo (FOUCAULT,
2007), o discurso vai além do que é dito, além do que é visível a ‘olho
nu’, sendo compreendido como práticas que formam e regulam as
formas de agir em diferentes formas de vida, como aqueles presentes
na rede privada de ensino de Porto Alegre.
Nesse sentido, “aprender matemática é difícil”, “’é importante trabalhar com a realidade nas aulas de matemática” e “para aprender matemática é preciso usar materiais concretos” são enunciados que conformam o discurso da Educação Matemática e que, ao serem proferidos,
acabam por produzir efeitos de verdade em quem ouve e em quem fala.
Os trabalhos referidos serviram de inspiração para a
composição desta investigação. Assim como nas pesquisas descritas,
em nosso estudo, buscamos analisar o discurso da Educação
Matemática assumindo que existiram condições de possibilidade
para a constituição de práticas discursivas que fizeram sentido em
um determinado tempo e espaço. Na próxima seção, o material
empírico examinado e a metodologia empreendida para a realização
da pesquisa que envolveu um grupo de professoras que atuam nos
Anos Iniciais do Ensino Fundamental serão apresentados.
SUMÁR I O
121
CONHECENDO OS CENÁRIOS
E AS METODOLOGIAS
Para realizar este estudo, foram entrevistadas professoras que
atuavam, durante o ano de 2017, nos 4º e 5º anos do Ensino Fundamental
em escolas da rede privada da cidade de Porto Alegre. Tais professoras
foram selecionadas por estarem atuando em mais de uma escola da
rede privada, ou seja, em escolas diferentes nos diferentes turnos. Dessa
forma, essas docentes estariam circulando por diferentes ambientes,
sendo expostas a diferentes regramentos e projetos pedagógicos.
A escolha pela etapa justifica-se pelo fato de ser um importante
momento de sistematização dos conhecimentos matemáticos
apresentados nos Anos Iniciais. Segundo a apresentação encontrada
na Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018), o trabalho
nessa faixa etária fica responsável pela “progressiva sistematização”
das experiências desenvolvidas na Educação Infantil bem como por
“[...] novas formas de relação com o mundo, novas possibilidades de
ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá-las, de refutálas, de elaborar conclusões” (BRASIL, 2018, p. 55-56).
Ao todo, participaram da pesquisa quatro educadoras com
diferentes formações, diferentes experiências como docentes e aqui
denominadas, de forma fictícia, por: Paula, 16 anos atuando no
magistério; Julia, 8 anos de atuação; Helena, 25 anos de atuação na
rede privada, e Gabriela, 9 anos atuando como professora da rede
privada. Dentre as formações, encontram-se os cursos de Pedagogia
com ênfase em Orientação Educacional, Pedagogia com habilitação
em Educação Infantil e Anos Iniciais, Ciências Sociais, Letras e Curso
Normal de Nível Médio. Essas professoras também estudaram em três
diferentes instituições de Ensino Superior.
SUMÁR I O
122
O contato com as educadoras que participaram do estudo foi
feito por intermédio de um convite para que participassem do estudo.
A entrevista tinha alguns tópicos, planejados anteriormente como
a trajetória pessoal e formação da entrevistada, opinião sobre as
melhores estratégias e atividades utilizadas nessa faixa etária e recursos
utilizados para o ensino, que facilidades e dificuldades são percebidas
no processo de aprendizagem da Matemática pelos alunos.
Cada entrevista teve duração média de 40 minutos e, ao
todo, foram transcritas um pouco mais de duas horas corridas de
gravação. Em alguns casos, foi realizada mais de uma entrevista com
a mesma participante, a fim de complementar algumas discussões
iniciadas e rever pontos que foram pouco discutidos. As escolas
onde as entrevistadas lecionavam não eram, segundo relataram elas,
capturadas por avaliações externas como a Prova Brasil ou o PISA,
mas respondiam à necessidade das aprovações nas universidades
(principalmente as federais) por meio do Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM) e dos vestibulares. As escolas apresentavam uma
infraestrutura considerada adequada ao desenvolvimento de um
leque de escolhas pedagógicas, com acesso a diversos materiais
pedagógicos, salas com tecnologias de ensino de ponta.
A escolha pelas entrevistas foi mobilizada em função da
necessidade de mapear práticas e enunciações acerca do ensino
de Matemática nos Anos Iniciais. Autores como Paz e Frade (2016)
destacam que a entrevista consiste em um dos melhores recursos
capazes de apreender os sentidos atribuídos pelos sujeitos, no
nosso caso, as professoras, às suas realidades, seus modos de ver e
conceber as práticas pedagógicas que produzem nas escolas e àquilo
que pensam sobre a Educação Matemática que praticam.
O material foi organizado em agrupamentos temáticos, a
partir do referencial teórico apresentado, atribuindo-lhes sentido. O
conjunto de falas das professoras foi sendo examinado de acordo
SUMÁR I O
123
com a análise do discurso, como discutido anteriormente, com a
intenção de delinear alguns enunciados que têm se naturalizado
como verdadeiros no ensino de Matemática. A partir das recorrências,
foi possível perceber as descontinuidades e continuidades que
os enunciados mantêm com outros enunciados. Não se trata de
encontrar explicações nas falas, mas examinar quais regras estão
sendo colocadas em funcionamento para que as professoras possam
falar sobre a Educação Matemática, formular determinadas perguntas
e ocupar uma determinada posição no interior desse discurso. O
resultado desse exercício analítico será apresentado a seguir.
ENSINAR MATEMÁTICA: O MATERIAL
CONCRETO E A TECNOLOGIA
Os enunciados problematizados aqui, dentre outros, acabam
por prescrever formas de agir e regulam escolhas pedagógicas
nas aulas de Matemática (BELLO; AURICH, 2018). Tais prescrições
tanto incluem, quanto excluem determinadas práticas, visibilizando
e inibindo certas formas de ser professor. Buscando atribuir alguns
sentidos ao material empírico examinado, a análise apresentou a
presença de dois enunciados: “a importância do uso do material
concreto e dos recursos digitais nas aulas de Matemática” e “a
relevância do registro e da formalização do conhecimento matemático
como garantia da aprendizagem”.
O primeiro enunciado citado apareceu de forma recorrente nas
entrevistas das educadoras. O trabalho com os chamados materiais
concretos em sala de aula fora descrito como uma necessidade,
conforme podemos observar nos excertos a seguir:
A gente tenta usar vários materiais, eu gosto bastante do material
concreto, que é a base 10. A gente trabalha também com ábaco,
SUMÁR I O
124
tem trabalhado pouco, mas a gente trabalha. A gente trabalha
com QVL [quadro valor-lugar], que também faz com que o aluno
entenda a questão da posição do valor do numeral, enfim, e
a gente trabalha com outros materiais. [...] Trabalhamos com
a tabela pitagórica, trabalhamos com livrinhos, vários materiais
[...] (Entrevista com Gabriela, 2017).
Eu acho que a gente tem que fazer uma mistura dos recursos
mais lúdicos, uma aula mais lúdica, mais concreta, que vá para
o concreto, que vai relacionar com o dia- a- dia e usar aquele
método mais tradicional mesmo, mais de sistematização no
caderno. Eu acho que tem que ter os dois, [...] aqueles que
têm mais dificuldade precisam de coisas mais objetivas, mais
básicas e nós temos que realmente fazer o aluno refletir mais
sobre a matemática e botar ela para o dia- a- dia. [...] Eu gosto
de fazer essa relação mais concreta com os alunos, que eles
tenham esse tipo de conhecimento, mas sem deixar o método
um pouco mais tradicional de sistematização, principalmente
pensando no aluno que precisa (Entrevista com Julia, 2017).
Quando o aluno tem dificuldade eu acho importante uma
intervenção de desenhar, o Material Dourado ou alguma coisa
assim, ele dá um clique (Entrevista com Paula, 2017).
Ábaco, Material Dourado (Base 10), desenho, livrinhos de
tabuada, tabelas pitagóricas são alguns dos instrumentos que constituem o leque de materiais concretos citados e utilizados pelas entrevistadas como forma de garantir a aprendizagem de conteúdos da matemática escolar, uma vez que o uso dessas ferramentas é associado
aos momentos de construção do conhecimento. Mais do que isso,
para elas, essa garantia ocorre pelo fato de os materiais potencializarem a passagem do concreto (manuseio de objetos) para o próximo
estágio, a abstração, permitindo aos estudantes a compreensão desse
processo. A fala de Gabriela expressa essa verdade ao afirmar que “O
primeiro ano trabalha tudo com material concreto, porque na verdade eles estão na fase da construção” “no terceiro [ano], quando eles
começam a entender o processo, a gente começa então a deixar o
material concreto de lado e eles já vão pra parte da abstração”.
SUMÁR I O
125
Percebe-se nessas falas uma forte relação desse enunciado
com as teorias construtivistas de aprendizagem e as ideias de Jean
Piaget sobre o processo de aprendizagem. A relevância dos materiais
para a construção do conhecimento e o uso do concreto para sanar
as dificuldades de aprendizagem dos alunos é uma regra que tem se
instituído e circulado no discurso da Educação Matemática proveniente
das teorias construtivistas, como apresentam Knijnik e Wanderer (2007).
Além disso, evidencia-se um forte entrelaçamento entre o
enunciado que traz a importância de se trabalhar com materiais
concretos nas aulas de Matemática com o que diz “é relevante usar
as tecnologias na escola”. Nas falas a seguir, podemos perceber que
os alunos dos Anos Iniciais, na rede privada, são posicionados como
sujeitos tecnológicos. Desta forma, os recursos digitais (o computador,
a calculadora) estão no rol de falas das entrevistadas como mais um
apoio ao aprendizado do aluno:
A gente trabalha às vezes integrado ao trabalho da informática,
daí, então, a professora de informática, dependendo do que nós
estamos trabalhando, algumas situações, ela usa. Calculadora
a gente não usa muito, a gente quase não usa. Isso até é bem
legal, de repente de usar, mas a gente não usa... porque eles
são tecnológicos! (Entrevista com Gabriela, 2017).
Eu tenho recursos digitais nas duas escolas e eu tenho livros
didáticos que eu gosto muito [...] eu vejo como foram bons
professores de matemática que fizeram esses materiais e que
realmente me auxiliam a dar uma aula melhor. Então nem é tanto
mérito meu, mas também de onde eu falo. Eu estou há oito anos
numa escola particular e três na outra e eu sinto que realmente
eu fui beneficiada como docente com esse tipo de recurso que
eu tenho nas duas escolas. Eu tenho um livro digital, eu tenho o
projetor [...] (Entrevista com Julia, 2017).
Com o acesso fácil às tecnologias educacionais, o material
concreto ganha novos portadores, como os recursos digitais. Nos
documentos do Ministério da Educação, em especial nas Diretrizes
SUMÁR I O
126
Curriculares Nacionais, aparece a importância de se oferecerem
processos formativos aos professores para um uso mais efetivo dos
recursos digitais em sala de aula a fim de aproximar aluno e professor:
É importante que a escola contribua para transformar os alunos
em consumidores críticos dos produtos oferecidos por esses
meios, ao mesmo tempo em que se vale dos recursos midiáticos
como instrumentos relevantes no processo de aprendizagem, o
que também pode favorecer o diálogo e a comunicação entre
professores e alunos. Para tanto, é preciso que se ofereça aos
professores formação adequada para o uso das tecnologias da
informação e comunicação e que seja assegurada a provisão
de recursos midiáticos atualizados e em número suficiente para
os alunos (BRASIL, 2013, p. 111).
Os ditos presentes nas Diretrizes nacionais relacionam-se às
enunciações das entrevistadas, principalmente no que diz respeito ao
uso do recurso tecnológico como uma forma de atribuir sentido aos
conhecimentos matemáticos. Acontece uma relação do sujeito com
essa verdade, que conduz e que dá regramento às ações, neste caso,
em sala de aula. Julia diz que a tecnologia “realmente auxilia a dar uma
aula melhor” e, ao mesmo tempo, sente-se “beneficiada como docente
com esse tipo de recurso”. As outras entrevistadas também trazem
palavras relacionadas ao uso dos recursos tecnológicos como algo que
“favorecem”, “facilitam” ou “estimulam” o ensino de Matemática. Essa
recorrência, normalmente utilizada como uma forma de dar sentido
aos conteúdos, reforça a ideia de que a articulação entre a inovação
tecnológica e a Educação Matemática promove uma educação com
mais qualidade, satisfazendo as necessidades atuais do País.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) também incentiva
o uso da tecnologia como uma ferramenta importante no processo do
ensino de Matemática. No documento há uma forte indicação aos professores: “Utilizar processos e ferramentas matemáticas, inclusive tecnologias digitais disponíveis, para modelar e resolver problemas cotidianos, sociais e de outras áreas de conhecimento, validando estratégias
e resultados” (BRASIL, 2018, p. 265). Além disso, a BNCC orienta que:
SUMÁR I O
127
Os recursos didáticos como malhas quadriculadas, ábacos,
jogos, livros, vídeos, calculadoras, planilhas eletrônicas e
softwares de geometria dinâmica têm um papel essencial
para a compreensão e utilização das noções matemáticas.
Entretanto, esses materiais precisam estar integrados a
situações que levem à reflexão e à sistematização, para que
se inicie um processo de formalização (BRASIL, 2018, p. 274).
Em uma pesquisa realizada por Santos (2009) com professoras
alunas de um curso de Pedagogia à distância, a autora percebe
que a necessidade da inovação do ensino está sempre atrelada ao
uso de computadores, softwares, calculadoras. Milano et al. (2016),
ao examinarem artigos da Revista BOLEMA (Boletim de Educação
Matemática) que traziam a temática da tecnologia em articulação
com a Educação Matemática, publicados entre 2010 e 2016,
destacam que uma das recorrências encontradas diz respeito ao
uso dos recursos digitais como uma forma de “[...] despertar nos
alunos o interesse pelo conhecimento, proporcionando significado
ao aprendizado” (MILANO et al., 2016, p. 100). Em consonância com
os autores, pode-se dizer que as pesquisas sobre as tecnologias na
escola esboçam um perfil de professor de Matemática inovador, que
renova a sua prática para responder a uma cultura informatizada.
Levando em conta as reflexões propostas até o momento,
podemos perceber fortes semelhanças nas enunciações das
educadoras, das legislações e de outras pesquisas da área
acerca do uso do material concreto e dos recursos digitais, já
que ambos são colocados como apoio, como facilitadores do
processo de aprendizagem dos conteúdos da matemática escolar.
Estas enunciações, que acabam constituindo o enunciado acerca
da “importância de trabalhar com materiais concretos nas aulas
de Matemática”, funcionam como engrenagens do discurso da
Educação Matemática e que se alimentam de maneira indissociável,
demonstrando o quanto os sujeitos desta pesquisa estão capturados
SUMÁR I O
128
pelos discursos dos quais esses enunciados fazem parte. Ao mesmo
tempo, tanto as educadoras entrevistadas, quanto documentos
oficiais, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mostram
que o uso dos recursos didáticos serve para levar a situações de
sistematização, etapa fundamental no processo de formalização que
irá conduzir à abstração, tema discutido na próxima seção.
ENSINAR MATEMÁTICA: FORMALIZAÇÃO
E ABSTRACIONISMO
Ao mesmo tempo que a preocupação das entrevistadas é com o
uso de material concreto, seja ele concreto ou digital, a vontade de dar
sentido aos conceitos matemáticos apareceu de forma recorrente nas
falas das entrevistadas. Quando falamos de dar sentido aos conceitos,
estamos assumindo de antemão que tais conceitos estão em algum lugar
a-histórico, universal, a priori, pronto e que não teriam um sentido próprio.
As falas das educadoras levam-nos a pensar que a finalidade do processo
de ensino em Matemática no contexto pesquisado é a formalização
como etapa para alcançar a abstração e o caminho para tal inicia com
a manipulação do material concreto e segue-se com o registro escrito, o
objetivo é a abstração. Os excertos a seguir indicam essa questão:
Lá no algoritmo eles precisam também mostrar de que forma
pensam, então tem que ter também um modelo do professor,
tem que ir pra quadro, tem que fazer, aí eles fazem o registro
coletivo, [...] eu acho que é importantíssimo, até por que alguns
alunos, não a maioria, mas alguns, voltam às vezes para a pasta
e pegam o registro para olhar [...] (Entrevista com Gabriela, 2017).
Eu acho que a criança deve saber todas as quatro operações,
que é o básico, a técnica operatória... tem que saber o que
aquilo significa, o que cada parte significa, que aquele 2 é
duas dezenas e não é 2 unidades, enfim... Eu digo a técnica no
SUMÁR I O
129
sentido de ele identificar, usar o raciocínio, não sei como é que
a gente diria isso... (Entrevista com Paula, 2017).
Tenho uma experiência que eu faço e acho que dá resultado:
eles [os alunos] leem matemática. Pergunto “o que tu fez, ‘ah
eu agrupei aqui’, porque tu agrupou? Então escreve isso’”.
Eu consegui que um aluno entendesse a divisão desta forma.
Ele não conseguia entender a técnica. ‘Então tu escreve: por
que tu fez isso? Qual foi o segundo passo? E o terceiro?
Tem crianças que têm que entender que eles podem ler
matemática. Eu acho que é importante esse registro, acho
importante (Entrevista com Helena, 2017).
Nessas falas está evidenciada a importância dada aos
registros, sejam eles orientados ou não. A palavra técnica parece
adquirir um status importante dentro do contexto da escola privada.
Cabe perguntar o motivo de esses aspectos ainda terem força nas
salas de aula, apesar da emergência de teorizações que enxergam
os conhecimentos matemáticos como resultados de práticas sociais,
que devem valorizar as diferentes formas de se pensar e fazer
matemática ou matemáticas de acordo com a Etnomatemática.
A abstração e a formalização, traduzidas nas falas das
entrevistadas como ‘técnicas’ ou ‘registros’, remontam a uma
postura platônica de enxergar a Matemática como aquilo que existe
independente dos seres humanos. Sobre esse ponto, Quartieri
(2012) realiza uma discussão que nos ajuda a compreender as
semelhanças de família que os jogos de linguagem emergentes
das falas das educadoras mantêm com a filosofia de Platão. Nessa
filosofia, os conhecimentos matemáticos são concebidos como
uma verdade que independe da realidade, os objetos matemáticos
servem como um modelo. Nesse sentido, o estudante descobre os
objetos que estão em algum lugar prontos para serem acessados e
não os cria ou inventa. “A Matemática era considerada um elemento
fundamental para todos, sendo concebida como um conhecimento
importante não pelo valor prático, mas pela sua capacidade de
SUMÁR I O
130
acessar o potencial do ser humano” (QUARTIERI, 2012, p. 154).
Além disso, a filosofia platônica posiciona o conceito, a ideia como
“[...] uma verdade atemporal, universal, que o pensamento descobre
por meio da razão” (QUARTIERI, 2012, p. 141).
“Seguir um modelo” é uma das regras que conformam o
discurso da Educação Matemática que emerge do formalismo,
fortemente associado aos princípios das filosofias de Platão e Kant
(MONTEIRO; POMPEU, 2001). Enquanto o formalismo kantiano
consiste em imitar ou prever um comportamento humano a partir
de um modelo, o formalismo platônico postula que o conjunto de
conhecimentos (matemáticos) é pré-existente ao mundo. Ambos,
entretanto, sustentam que a Matemática é única e que todos podem
chegar a mesma conclusão. Ao encontro disso, vemos nos excertos
que as professoras entrevistadas utilizam várias vezes a palavra
“repetição” como forma de garantia da aprendizagem. O relato de
Gabriela ilustra bem o exposto ao dizer que “Mesmo com material
concreto, com exploração no quadro, com atendimento individual,
alguns não conseguem... então tu vais ter que achar uma outra
estratégia, ou de novo repetir, porque alguns alunos precisam de
muita repetição pra tu chegar neles” [grifos meus] (LONGO, 2019).
A escola privada busca sempre estar à frente, apresentarse como um espaço de inovação, de novas estratégias de ensino
e de infraestrutura. Porém, ao longo da pesquisa, percebemos que
determinadas verdades são tão fortemente arraigadas que acabam
sendo reproduzidas sem questionamentos ou reflexões. Neste caso,
ao observarmos as análises, observou-se que os materiais concretos,
sejam eles tecnológicos ou não, têm o seu espaço de importância na
sala de aula, mas apenas nos primeiros anos da escolarização, pois
o desejo das professoras é que os alunos possam abandoná-los ao
longo do percurso. As entrevistadas acreditam que a aprendizagem
acontece quando os alunos abstraem ou quando são capazes de
SUMÁR I O
131
representar as técnicas que são próprias da linguagem matemática sem
apoio do material. Nesse sentido, suas ações e escolhas pedagógicas
respondem a regras de discursos piagetianos e platônicos, constituindo,
assim, uma forma de ser professor de Matemática nos Anos Iniciais.
Ainda inspiradas nos estudos foucaultianos, podemos afirmar que
não só o discurso da Educação Matemática é continuamente produzido,
como produz os sujeitos que dele fazem parte. A docência configura-se
como um efeito do discurso, como uma invenção. “Se nós acreditamos
que, quando se fala de algo, também se inventa, institui-se esse algo,
é porque aquilo só pode ser pensado em estreita dependência e
correlação com o que pode ser ‘dito’” (BELLO, 2010, p. 550).
O uso dos materiais como apoio, facilitador ou sistematização
ainda é uma verdade inquestionável. No entanto, cabe perguntar
se os artefatos tecnológicos, que são utilizados como facilitadores
ou para substituir os materiais concretos, não produzem novos
conhecimentos e mobilizam outras racionalidades? Aparece também,
como resultado do trabalho, a formalização e abstração como algo
que não se questiona, materializado nas falas das entrevistadas
nas palavras treinar, sistematizar, formalizar, registrar. A ideia de
que só aprende matemática quem escreve em contraponto ao uso
do concreto posiciona as ações das professoras entrevistadas na
intersecção de dois grandes campos teóricos que conformam o
discurso da Educação Matemática: o construtivista e o platônico.
Percebe-se também que as práticas do campo da Pedagogia
estão se produzindo e se reatualizando constantemente, não no sentido
de inventar coisas novas, mas no sentido de (re)ver, (re)viver e, até
mesmo, (re)inventar saberes sobre as melhores formas de se ensinar
Matemática para crianças entre oito e dez anos de idade. Assim, podese configurar a sala de aula, em uma perspectiva foucaultiana, como
uma tecnologia que se utiliza da produção de saberes para estabelecer
verdades, as quais passam a ser tomadas como inquestionáveis. O
SUMÁR I O
132
estudo realizado buscou perceber algumas dessas verdades que
circulam nos Anos Iniciais, que encontram terreno para irromper nas
escolas e se configuram como inquestionáveis no campo da Educação.
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SUMÁR I O
134
Capítulo 7
7
GOVERNAMENTALIDADE
E O EXAME NACIONAL DO
ENSINO MÉDIO (ENEM)
Marília Dal Moro
Marília Dal Moro
GOVERNAMENTALIDADE
E O EXAME NACIONAL
DO ENSINO
MÉDIO (ENEM)
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.135-151
INTRODUÇÃO
Em um artigo que aborda as possibilidades e reflexões acerca
da filosofia de Michel Foucault, Sílvio Gallo e Alfredo Veiga-Neto (2007)
discutem que o objetivo do filósofo foi o de “[...] trazer problematizações
sobre o que se considerava verdadeiro em determinado campo do saber
e em determinado momento histórico.” (GALLO; VEIGA-NETO, 2007, p.
3). Em algumas pesquisas realizadas no campo dos Estudos Culturais,
a problematização está justamente na tentativa de olhar, de forma
diferenciada, para uma prática instituída e que dita determinados modos
de operação. Um exemplo são as problematizações empreendidas em
relação às avaliações externas brasileiras, aplicadas em larga escala,
que não se comportam apenas como um instrumento para obtenção
de um diagnóstico do ensino brasileiro, mas, sim, como um conjunto de
avaliações que geram efeitos em todo um sistema educacional.
É o caso do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)
que produz efeitos nas escolas, nos cursos de preparação para
vestibulares, nas editoras de materiais didáticos, na formação dos
professores da Educação Básica, e também nos modos pelos quais
os estudantes que se preparam para o Exame são conduzidos por
meio de mecanismos que os fazem “ser” e “se comportarem” de
determinadas formas em detrimento de outras. Na esteira dessas
problematizações, este texto é um recorte de minha pesquisa
de mestrado intitulada “O Exame Nacional do Ensino Médio e a
constituição do estudante nota 1000: Seja qual for a sua escolha,
preste o ENEM!” (DAL MORO, 2017) e tem como objetivo dar luz
a algumas discussões teóricas realizadas acerca dos processos
envolvendo a governamentalidade que fundamentaram a pesquisa.
Na dissertação, procurei observar o Enem não para analisar sua
eficiência enquanto avaliação em larga escala ou enquanto processo
SUMÁR I O
136
seletivo para ingresso em Universidades ou como meio de diagnóstico
da educação brasileira, mas, sim, busquei colocar sob suspeição o
olhar naturalizado sobre a funcionalidade desse Exame. Ao longo dos
anos de atuação do Enem no cenário educacional brasileiro, estudos
e pesquisas com foco nessa política passaram a ser produzidos, com
diversas matrizes teórico-metodológicas: alguns trabalhos analisam o
Exame enquanto política de avaliação (DIAS, 2013; MACHADO, 2012;
SARAIVA, 2015) e outros abordam as suas relações com o currículo
escolar e as áreas do conhecimento (SERRA, 2015; LUFT, 2014;
MIRAGEM, 2013; LERINA, 2013).
Seguindo as discussões foucaultianas sobre a governamentalidade, considerei o Enem um mecanismo de condução de condutas que
captura os sujeitos escolares e produz efeitos sobre o currículo escolar,
a formação inicial e continuada de professores e também sobre os candidatos que se preparam para sua realização. Nessa direção, o estudo
se aproximou de trabalhos que usaram como referencial teórico a matriz
foucaultiana para analisar, especificamente, ações de programas do Governo Federal sobre a população, como evidenciado nas pesquisas de
Anadon (2012), Pinheiro (2014) e Lockmann (2013).
Como o próprio Foucault destaca, sua obra indica um viés
da desacomodação e da transgressão, mas não com a finalidade
de apenas contestar ou contrariar, “mas para instigar e desconstruir
determinadas maneiras tradicionais de pensar.” (GALLO; VEIGANETO, 2007, p. 3). Nesse sentido, tomando como pano de fundo a
intenção foucaultiana de enxergar determinadas “verdades” que
circulam no campo da Educação e nas enunciações difundidas pela
mídia, busquei, em sua obra e nas produções arquitetadas a partir
dela, outras possibilidades de olhar para o Exame Nacional do Ensino
Médio e sua relação com os sujeitos que com ele se envolvem.
SUMÁR I O
137
AS AVALIAÇÕES EM LARGA ESCALA
NO BRASIL E O ENEM
Analisando essa questão, Werle (2010) explica que as
avaliações externas são todas aquelas realizadas por uma empresa
ou profissionais especializados, contratados para tal fim, que
podem abranger toda ou parte da instituição. Já as avaliações
em larga escala fazem parte de um procedimento mais amplo,
realizado também por agências reconhecidas e especializadas, que
abarcam todo um sistema de ensino. A autora destaca, ainda, que,
geralmente, essas avaliações em larga escala se preocupam em
obter dados generalizáveis sobre determinado sistema. Argumenta,
ademais, que as avaliações externas e de larga escala não eliminam
a importância de outras formas de avaliação, pois são considerados
níveis diferentes de avaliação. Baseada em Werle (2010), optei por
utilizar, na pesquisa, o termo avaliação em larga escala para referirme ao modelo de programa de avaliação no qual o Enem se insere.
No Brasil, essas avaliações são geralmente organizadas
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep) – atingindo instituições públicas e privadas – ou por
institutos privados como o Instituto de Avaliação e Desenvolvimento
Educacional (Inade) e como o Avalia Educacional. Internacionalmente,
avaliações desse tipo são realizadas pelo Programa Internacional de
Avaliação de Estudante (PISA).
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é uma política de
avaliação em larga escala, criada em 1998 pelo Inep, com o objetivo
de diagnosticar a aprendizagem dos estudantes que finalizam o
Ensino Médio. O Exame insere-se no conjunto de avaliações externas
presentes no Brasil, que busca analisar o sistema de educação do País.
As avaliações em larga escala, na concepção do Governo Federal,
SUMÁR I O
138
“possibilitam a produção de dados em nível nacional/regional/local,
subsidiando as políticas públicas para o desenvolvimento de estratégias
de intervenção em possíveis dificuldades [...]” (BRASIL, 2013, p. 13).
DISCUSSÕES ACERCA DA
GOVERNAMENTALIDADE
Em efeito, à medida que as avaliações em larga escala
passaram a se difundir no Brasil, percebemos manifestações do que
Foucault (1995) expressa como sendo modos de conduzir condutas
ou como uma prática de governamento, discussão realizada pelo
filósofo ao final da década de 1970. Na obra Segurança, Território
e População, Foucault (2008a) problematiza questões acerca do
problema do governo no século XVI, não limitadas à concepção de
governo do Estado. Em especial, na aula de primeiro de fevereiro de
1978, define o conceito de governamentalidade, que seria:
1. O conjunto constituído pelas instituições, procedimentos,
análises e reflexões, cálculos e táticas que permite exercer esta
forma bastante específica e complexa de poder, que tem por
alvo a população, por forma principal de saber a economia
política e por instrumentos técnicos essenciais: os dispositivos
de segurança. 2. A tendência que em todo o Ocidente conduziu
incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste
tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os
outros – soberania, disciplina etc. – e levou ao desenvolvimento
de uma série de aparelhos específicos de governo e de um
conjunto de saberes. 3. O resultado do processo através do
qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos
séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco
governamentalizado (FOUCAULT, 2008a, p. 143-144).
Em sua argumentação, o autor explica que o conceito de
governar é diferente do conceito de reinar ou comandar, sendo
SUMÁR I O
139
este ato de governo específico devido a uma forma peculiar de
poder. Assim, Foucault (2008a) passa a analisar as relações de
poder, focando no problema do Estado e da população, a partir da
perspectiva da governamentalidade. Por meio de uma descrição sobre
o funcionamento do hospital psiquiátrico e da prisão, ele fundamenta
a questão da ordem existente na organização estratégica dessas
instituições, que seria externa a elas. Faz, então, um resgate histórico
dos conceitos de governo concebidos ao longo da história, desde
sua concepção material e moral até no sentido de seguir um caminho
ou conduzir alguém. Foucault (2008a) descreve a metáfora do pastor
(remetendo-se a um poder da Igreja Cristã), a partir da qual é analisada
a ideia de conduzir os homens como se conduz um rebanho.
Para minha pesquisa, interessou-me destacar uma das
definições do poder pastoral que mostra o poder individualizante:
É verdade que o pastor dirige todo o rebanho, mas ele só pode
dirigi-lo bem na medida em que não haja uma só ovelha que lhe
possa escapar. O pastor conta as ovelhas, conta-as de manhã,
na hora de levá-las a campina, conta-as à noite, para saber se
estão todas ali, e cuida delas uma a uma. Ele faz tudo pela
totalidade do rebanho, mas faz tudo também para cada uma
das ovelhas do rebanho (FOUCAULT, 2008a, p. 172).
Ou seja, esse poder pastoral, como um poder individualizante
(de estar preocupado com a totalidade do rebanho, mas também
com a individualidade de cada sujeito), é um dos grandes paradoxos
do pastor e pode ser vinculado, na investigação realizada, à
necessidade de governo e condução de condutas de uma parcela
da população brasileira por meio do Enem, mas que exige também
um cuidado com cada indivíduo que será avaliado (pessoas com
necessidades especiais, lactantes, sabatistas, entre outros). Em
suma, o filósofo esclarece que o poder pastoral é o poder sobre
uma multiplicidade e que guia a população a um objetivo, sendo
assim, um poder que visa a todos e, ao mesmo tempo, a cada um.
SUMÁR I O
140
Autores como Veiga-Neto e Lopes (2007), ao discutirem sobre
a governamentalidade, destacam que, para evitar possíveis equívocos
entre os diferentes tipos de governo, utilizam a palavra “governamento”
para designar um conjunto de ações de conduta sobre si ou sobre os
outros e “governo” para referirem-se às instâncias do Estado. Para eles,
“[...] pode-se dizer então que, de certa maneira, o governamento é a
manifestação ‘visível’, ‘material’, do poder” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007,
p. 953). Baseada nessas afirmações, utilizo a expressão “governamento”
para referir-nos aos mecanismos de regulação de condutas traduzidos
pelos programas de avaliação externa, como o Enem.
Na área da Educação, discussões envolvendo a governamentalidade tornaram-se potentes nos últimos anos, como evidenciam Veiga-Neto e Lopes (2007) e Traversini e Bello (2009). Seguindo essas
teorizações, é possível dizer que, de um modo geral, o conceito de governamentalidade pode ser entendido como um conjunto de práticas
de condução de conduta, ou então: “o encontro entre as técnicas de
dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si” (FOUCAULT
apud VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 954). Na esteira dessas produções, entendo o Enem como um mecanismo de captura dos sujeitos
escolares por meio de determinadas técnicas de dominação.
Fimyar (2009) destaca que Foucault, “ao fundir o governar
(gouverner) e a mentalidade (mentalité) no neologismo governamentalidade”, enfatizou a relação direta entre as práticas – que seria o
exercício de governamento – e as “mentalidades que sustentam tais
práticas.” (FIMYAR, 2009, p. 38). A governamentalidade seria o “esforço de criar sujeitos governáveis através de várias técnicas desenvolvidas de controle, normalização e moldagem das condutas das pessoas.” (FIMYAR, 2009, p. 38). Outro destaque importante dado pela
autora, é que “[...] a governamentalidade enfatiza a interdependência
entre as práticas governamentais e as mentalidades de governamento
que racionalizem e com frequência perpetuem práticas existentes de
conduta da conduta [...]” (FIMYAR, 2009, p. 41, grifos do autor).
SUMÁR I O
141
GOVERNAMENTALIDADE NOS
ESTUDOS EDUCACIONAIS
Nesta seção, destaco alguns estudos da área da Educação,
que utilizaram elementos do governamento e da governamentalidade
como arcabouço teórico. Entre eles, Knijnik e Wanderer (2013) construíram uma análise acerca do Programa Escola Ativa (PEA), política
pública federal endereçada às escolas multisseriadas do campo, especialmente no âmbito da Educação Matemática. As autoras, ao analisarem os documentos do PEA e também os questionários respondidos pelos professores que participaram dos encontros de capacitação
oferecidos por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, percebem que “[...] há um tensionamento entre as orientações
pedagógicas oferecidas aos professores e as atividades propostas
aos alunos na área da matemática [...]” (KNIJNIK; WANDERER, 2013,
p. 211) e que, a partir dessas orientações e propostas, “[...] o programa
conduz a conduta dos professores, dos alunos e, de modo mais amplo, da população camponesa.” (KNIJNIK; WANDERER, 2013, p. 211).
As autoras perceberam esse tensionamento, por exemplo,
nas falas dos professores, quando eles demonstram que há uma
valorização da cultura urbana em relação à cultura rural, na qual
a maioria das crianças das escolas do PEA se inserem. Conforme
mostra o material empírico da pesquisa, existe uma tendência dos
professores a acreditarem que é na escola que as crianças das
zonas rurais têm acesso à informação e à cultura. Ao mesmo tempo,
os professores também representam as crianças como “ativas”;
“criativas, alegres, meigas”; “com receptividade imensa”; “carentes,
mas com bastante potencial, que até então não foi trabalhado”;
que “respeitam o professor e a escola” (KNIJNIK; WANDERER,
2013, p. 219), instituindo e reforçando o que seria uma forma de
vida camponesa, diferente da configuração de vida dos estudantes
de zonas urbanas. Compreendo, a partir da discussão tratada por
SUMÁR I O
142
Knijnik e Wanderer, que as práticas dos professores das escolas do
PEA acabam por alimentar um ciclo de condução de condutas, dos
próprios professores e também das crianças e de suas famílias.
Outro estudo que destaco é o de Marín-Díaz (2012), que
realizou uma pesquisa sobre práticas difundidas na literatura de
autoajuda. Em sua tese de doutorado, a autora construiu uma análise
sobre exercícios e técnicas presentes nos discursos de autoajuda,
sendo esta uma forte estratégia de condução de condutas de si e dos
outros, muito difundida no atual século. Como material de pesquisa,
Marín-Díaz analisou uma série de obras de autoajuda, pois, de acordo
com ela, esses livros “[...] permitem perceber o funcionamento de
práticas dirigidas para o autogoverno, isto é, para a condução da
própria conduta.” (MARÍN-DÍAZ, 2012, p. 20). A autora, ao tratar
da desinstitucionalização do poder, com inspiração foucaultiana,
destaca que esse tipo de análise sobre a qual ela se debruçou:
Trata-se de identificar e descrever práticas de governamento
que nem sempre estão vinculadas de forma direta e explícita
às instituições de Governo e seus discursos, mas que são
centrais na operação da razão governamental, constituída
numa determinada época e para certas sociedades.
Então, é possível pensar algumas formas de governamento
contemporâneas através da análise dos discursos educativos
que circulam amplamente e que não necessariamente são
produzidos por instituições estatais ou circulam através delas
(MARÍN-DÍAZ, 2012, p. 24).
Penso que os discursos8 circulantes sobre o Enem não
são todos, necessariamente, produzidos por instituições estatais
(embora muitos materiais empíricos da pesquisa são veiculados
pelo próprio Ministério da Educação), mas que estão presentes em
8
SUMÁR I O
Utilizo aqui o conceito de discurso no sentido foucaultiano, mas que se configura “[...]
como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam [...]” (FOUCAULT,
2008b, p. 55), ou seja, constituem objetos e sujeitos imbricados nas produções que a
linguagem estabelece (no caso, sobre o Enem).
143
inúmeros lugares frequentados pelos sujeitos que, de alguma forma,
são capturados pelo Exame. Nas empirias investigadas, percebi
inúmeras estratégias que visam à regulação de condutas, sejam
estas veiculadas pelo Estado ou por outras instituições.
Inspiradas também nos conceitos foucaultianos de
governamento e governamentalidade, Loureiro e Lopes (2015)
buscam problematizar os discursos que difundem os usos das
Tecnologias Digitais nas escolas. Conforme as autoras, tais
discursos, mobilizados pelas políticas públicas analisadas no
estudo9, criam “as condições de possibilidade para a condução
eletrônica das condutas e operam na constituição de sujeitos, cujo
comportamento deve afinar-se com as condições de vida próprias
da contemporaneidade.” (LOUREIRO; LOPES, 2015, p. 359). Essa
necessidade de os comportamentos dos sujeitos estarem afinados
às condições da vida contemporânea é representada pela ideia
de que todas as pessoas devem estar digitalmente incluídas, pois
somente assim elas estariam participando de forma integral da
sociedade. Nesse sentido, é preciso assegurar, de acordo com
as autoras, que todos tenham acesso ao mundo digital, sendo as
intervenções na maquinaria escolar – por intermédio de inúmeras
políticas públicas – possibilidades de garantia para esse acesso.
Loureiro e Lopes (2015) destacam que é necessária, para o
exercício da governamentalidade, a existência de tecnologias de
governamento (ações dos outros) e práticas de subjetivação (nas
quais cada indivíduo é responsável pela sua conduta, ou seja, pelo
autogoverno). Justamente à escola, como uma das poucas instituições
em que circula obrigatoriamente grande parte da população, foi
concedida a tarefa de ensinar as crianças a se disciplinarem por
si mesmas. As autoras recordam que é na escola moderna que as
9
SUMÁR I O
Projeto EDUCOM, Programa Nacional de Informática Educativa (PRONINFE), Programa
Nacional de Informática na Educação (PROINFO) e Programa Um Computador por Aluno
(PROUCA).
144
crianças aprendem a disciplinar seus corpos, por meio de regras,
horários, espaços e avaliações. Apoiadas em Foucault (2014),
ressaltam que esses investimentos direcionados à escola buscam
organizar as multidões confusas, perigosas, para que estas entendem
as regras sociais de condutas as quais estão submetidas.
Entendo que não somente a escola propriamente dita, mas os
mecanismos criados para avaliá-la, controlá-la e gerenciá-la, de acordo
com os interesses das “multiplicidades organizadas”, também operam
como práticas do exercício da governamentalidade. Estudos como o
de Lockmann (2013) e Santaiana (2015), por exemplo, preocuparam-se
em discutir acerca dessas práticas, seja por intermédio dos programas
de assistência social que são direcionados à escola, como é o caso
de Lockmann, seja por meio das políticas de Educação Integral que
também possibilitam que as áreas da saúde e da assistência social
ganhem espaço de controle na escola, como enfatizou Santaiana.
Busquei também inspirar-me em estudos em que o conceito
de governamentalidade estava mais diretamente relacionado com o
ENEM, meu interesse de pesquisa, e deparei-me com o estudo de
Roberto Silva (2011). O autor, em sua tese de doutorado, discute algumas tecnologias de governo que operam na constituição dos docentes
do Ensino Médio e utiliza como material empírico um conjunto de 45
edições da revista Carta na Escola (publicadas entre 2005 e 2010). Ao
utilizar um periódico destinado a professores de Ensino Médio como
superfície analítica, o estudo inspirou-me também ao apresentar estratégias metodológicas que se aproximavam do meu interesse de pesquisa. Assim, Silva (2011) procurou mapear “algumas dessas tecnologias que operam na produção de sujeitos contemporâneos e de suas
formas de condução das condutas” (SILVA, 2011, p. 15), sempre tendo
como enfoque os docentes do Ensino Médio.
Embora o foco da tese não seja o ENEM, Silva estende seu olhar
para essa política, por entendê-la como uma tendência dos currículos
SUMÁR I O
145
do Ensino Médio. Silva problematiza alguns textos de um Relatório
Pedagógico do Enem publicado em 2008 e afirma que este documento
“visibiliza que tais pressupostos [citados no documento] devem orientar
não apenas a organização da avaliação em larga escala, mas também
encaminhar rápidas e profundas reformas dos sistemas de ensino do
Ensino Médio.” (SILVA, 2011, p. 42). Por meio dessas e de outras análises,
Silva (2011), utilizando como ferramenta analítica a governamentalidade,
identifica três tecnologias de governo – a inovação, a interatividade e
as proteções – que demarcam a constituição da docência do Ensino
Médio que, de acordo com o autor, deve manifestar-se como sendo uma
docência politicamente útil e economicamente produtiva.
ALGUMAS COSTURAS ANALÍTICAS
Em uma das reportagens analisadas, publicada pelo portal
G1, em agosto de 2015, destaca-se a importância dada por escolas
consideradas de referência aos resultados alcançados pelos estudos
no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A reportagem menciona
uma escola de Manaus que obteve a melhor nota do Amazonas no
Enem 2014 e que trabalha com carga horária estendida. Além disso,
a coordenadora pedagógica da escola destaca os investimentos e
as mudanças curriculares feitas pela instituição, com o objetivo de
melhorar o desempenho dos estudantes no Exame e também em
outros vestibulares. A coordenadora exemplifica uma das mudanças
ocorridas no currículo do Ensino Médio, em que a carga horária da
disciplina de Química passou de três horas semanais para cinco
horas semanais. Outro exemplo trazido por ela é a metodologia da
realização de Simulados que “são realizados com frequência para
‘iniciar’ o aluno como vestibulando”. De acordo com ela, tal prática
se aplica desde a Educação Infantil.
SUMÁR I O
146
Esse recorte de material empírico aponta uma pequena fração
dos efeitos que o Exame Nacional do Ensino Médio tem gerado
nas escolas de Educação Básica, confirmando o que Werle (2011)
discute sobre o espaço que o Exame foi adquirindo ao longo dos
anos. Mesmo que, no início de sua concepção, na década de 90,
o Enem foi pouco valorizado por Universidades e estudantes (um
dos questionamentos eram as taxas cobradas para a participação),
o Exame progressivamente adquiriu um status de maior importância.
Werle (2011) identifica três razões para essa situação:
Primeiro, com a adesão de Universidades que passaram a
considerar os resultados obtidos pelos estudantes para o
ingresso no Ensino Superior, em segundo lugar, com o Programa
Universidade para Todos (ProUni) cujo critério de ingresso no
Ensino Superior apenas considera os resultados do Enem e,
em terceiro lugar, com a implantação do Sistema de Seleção
Unificada (Sisu) (WERLE, 2011, p. 776).
Ao governar condutas, o currículo produz modos de ser sujeitos e intervém nas dinâmicas escolares. Ainda na reportagem mencionada, a coordenadora pedagógica ressalta que, para obtenção
do resultado esperado, o trabalho com os estudantes iniciais “na
base”, de acordo com ela, “desde o maternal um com crianças de
dois anos até a terceira série”. Percebemos, assim, que as intervenções curriculares atingem toda a Educação Básica e, embora não
estejam diretamente vinculadas ao Exame e a outras avaliações em
larga escala, fazem parte de uma tendência à formação de determinados sujeitos que essas avaliações ajudam a formar.
Instituições investem em estratégias curriculares e de formação
de professores, por exemplo, para garantirem os resultados dos
estudantes e uma posição de destaque nos rankings que são
divulgados. Além disso, os candidatos também conduzem seus
estudos tendo como base os conteúdos exigidos no Exame. Outra
dimensão da governamentalidade que se faz presente nas teias do
SUMÁR I O
147
Enem se refere ao uso de números e medidas, como bem discutido
por Traversini e Bello (2009). Para os autores, conduzir e normalizar
uma população não exige apenas o conhecimento sobre suas
características, mas, sim, a criação de registros sobre as intervenções
e ações realizadas, a fim de que elas possam ser acompanhadas e
avaliadas. Uma das técnicas que permitem que esses programas
tenham continuidade são os processos de auditoria.
Este “formato auditável” (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 147)
pode ser visto nas avaliações em larga escala, pois os resultados
são analisados de acordo com os objetivos e, no caso do Enem,
por meio da Teoria de Resposta ao Item, podem ser comparados ao
longo dos anos. “Esta maquinaria avaliativa opera utilizando o saber
estatístico que gera comparabilidade entre o investimento público e
os resultados apresentados” (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 147). A
partir dos índices obtidos, são valorizadas determinadas práticas
pedagógicas e modelos de educação, como é o caso de sistemas
de ensino que utilizam o desempenho das escolas parceiras no Enem
como marketing de venda para prospecção de novas parcerias.
Entendo o Enem como uma das técnicas que, por intermédio
da sua condição de auditoria e das possibilidades de comparação
atreladas a ele, acabam por contribuir com os processos de governamento e de engrenagem da governamentalidade. A comparação
entre diferentes grupos de candidatos que realizaram a prova em anos
distintos permite que se tenha um acompanhamento dos desempenhos dos estudantes, ou seja, possibilita que os gestores das escolas,
dos municípios e estados “auditem” seus processos pedagógicos,
fazendo mudanças e avaliando se estas foram adequadas ou não,
conforme o desempenho de sua escola ou rede.
Do exposto até aqui, pode-se dizer que o Exame tem
funcionado como um mecanismo de captura das populações, pois
é considerado etapa praticamente “obrigatória” para quem deseja
SUMÁR I O
148
ingressar no Ensino Superior. Além disso, seus efeitos são vistos
à medida que escolas, sistemas de ensino e empresas do ramo
educacional vêm criando estratégias para auxiliar os estudantes a
obterem desempenhos cada vez mais altos.
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SUMÁR I O
151
Capítulo 8
8
REDESENHOS CURRICULARES
EM CENÁRIOS DE PANDEMIA
Camila da Silva Fabis
Caroline Brandelli Garziera
Camila da Silva Fabis
Caroline Brandelli Garziera
REDESENHOS
CURRICULARES
EM CENÁRIOS
DE PANDEMIA
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.152-167
Neste capítulo discutiremos sobre as mudanças advindas do
período de paralisação das aulas presenciais nos colégios privados
do Estado de Rio Grande do Sul, durante o ano letivo de 2020, decorrente da pandemia do Coronavírus/COVID-19. Ao tomarmos o neoliberalismo como racionalidade condutora de vidas contemporâneas, a
partir dos estudos de Michel Foucault e seus comentadores, discutiremos os efeitos da crise como operador estratégico (DARDOT; LAVAL,
2014), fabricando formas escolares que se tramam nesse contexto
com ênfase no capital. Propomo-nos a problematizar como as interfaces de mercado, caracterizadas pelo debate sociológico acerca da
cultura de um novo capitalismo contemporâneo (SENNET, 2006), impulsionaram escolhas, tensionaram desenhos e tornaram a manutenção do vínculo com a escola uma oferta pautada pela intensidade nos
tempos de conexão, pela quantidade de propostas ofertadas, pela
competitividade na personalização dos atendimentos junto às famílias
e estudantes e pela retórica de reinvenção permanente da docência.
DISCUSSÕES CONTEXTUAIS: A
CRISE COMO ESTRATÉGIA
Mencionar os contornos realizados pelo cenário educacional
diante de uma das crises sanitárias mais sérias que a população
mundial já viveu é referir que as instituições de educação, de um modo
geral, seja em nível básico ou superior, precisaram reconfigurar modos
de dar aulas e de interagir com seus estudantes desde a chegada do
Coronavírus/Covid-19, em território mundial. Em cada contexto, seja
público ou privado, a paralisação imediata das atividades escolares
foi a estratégia da maioria dos governantes de todo o mundo para
a não proliferação do contágio do vírus. Em obra recente intitulada:
A Cruel Pedagogia do Vírus, o autor português Boaventura de Sousa
Santos discute a atual situação de pandemia por meio de uma análise
SUMÁR I O
153
sociológica, que problematiza o contexto neoliberal. Santos (2020)
destaca que, desde a década de 1980, quando o neoliberalismo se
impôs como versão predominante do capitalismo e este se sujeitando
cada vez mais à lógica do setor financeiro, o mundo tem passado
por estados permanentes de crise. Para o autor, essa é uma situação
duplamente anômala; pois, no sentido etimológico da palavra crise,
temos a excepcionalidade e a brevidade, tendo a natureza da palavra
vinculada a algo que é passageiro, constituindo-se como oportunidade
de superação, para dar origem a uma melhoria do estado das coisas.
Visto por outra perspectiva, também para Santos (2020, p. 5), “quando
a crise é passageira, ela deve ser explicada pelos factores que a
provocam. Mas quando se torna permanente, a crise transformase na causa que explica todo o resto”. A título de exemplo, Santos
(2020) destaca as crises financeiras permanentes que têm servido
de justificativa para os cortes em políticas públicas em setores como
a saúde, a educação, a previdência e a precarização dos salários.
Ainda, para o mesmo autor, “o objetivo da crise permanente é não ser
resolvida” (SANTOS, 2020, p. 6).
Estudos de grande relevância, como os de Dardot e Laval
(2016, p. 7), destacam que a lógica neoliberal é um tipo de política
econômica cujo sistema normativo com abrangência ampliada no
mundo inteiro estende “a lógica do capital a todas as relações sociais
e todas as esferas da vida”. E, sublinham, ainda, que a crise global do
neoliberalismo opera como modo de governo das sociedades. Assim
sendo, “A crise mundial é uma crise geral da “governamentalidade
neoliberal”, isto é, de um modo de governo das economias e das
sociedades baseado na generalização do mercado de concorrência”
(DARDOT; LAVAL, 2008, p. 27).
Nesta direção, para Santos (2020), ao vivermos há mais de
quarenta anos sob essas lógicas de operação, uma pandemia como
essa só agrava uma situação de crise na qual todos já estávamos
sujeitos. Nos contextos de escolarização, a notícia da pandemia gerou
SUMÁR I O
154
a primeira ação de suspensão imediata das atividades escolares,
para a migração das atividades domiciliares associadas ao ensino
remoto. Essas ações passaram a ser as estratégias recorrentes
para a chegada das atividades pedagógicas até as residências
dos estudantes. Propomo-nos, neste breve estudo, a debater as
pertinências dessas discussões a partir das condições culturais do
capitalismo contemporâneo cujos tensionamentos redesenharam a
operacionalização das práticas pedagógicas. De tal modo, a partir
de uma análise crítica sobre as mudanças advindas do período de
paralisação das aulas presenciais, decorrentes da pandemia, o
presente capítulo discute a lógica que pautou as mudanças curriculares
realizadas pelos colégios privados do Estado de Rio Grande do Sul, no
ano letivo de 2020. Ao tomarmos o neoliberalismo como racionalidade
condutora de vidas contemporâneas, discutiremos os efeitos da crise
como operador estratégico (DARDOT; LAVAL, 2014), fabricando formas
escolares que se tramam neste contexto com ênfase no capital.
Ao examinarmos uma pesquisa recente realizada pelo Sindicato
do Ensino Privado do RS – SINEPE/RS –, os colégios respondentes
mencionam como realizaram as mudanças para manter os estudantes
vinculados às atividades escolares. O que foi possível perceber é que a
ênfase na (re)organização das práticas pedagógicas teve como focos:
a manutenção no contato com os discentes; a realização expressiva de
aulas online, e o desenvolvimento misto de atividades síncronas e/ou
assíncronas, durante o período de paralisação. Neste trabalho, discutimos
como as interfaces de mercado impulsionaram escolhas, tensionaram
desenhos e tornaram a manutenção do vínculo dos colégios uma oferta
pautada pela intensidade nos tempos de conexão, pela quantidade de
propostas ofertadas e pelos atendimentos realizados pelos professores
aos estudantes e suas famílias, tensionados pela retórica da reinvenção
e da capacitação. Em um contexto em que a pauta econômica deu
o “tom” para os redesenhos das práticas educacionais, a oferta
pedagógica organizou-se em perspectiva relacionadas às condições,
SUMÁR I O
155
insumos, recursos e possibilidades, tramando outras modalidades de
educação remota e online em uma transposição didática aproximada
das práticas expositivas do cenário presencial para o online.
REDESENHOS CURRICULARES NA PANDEMIA
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da
Saúde – OMS – caracterizou a COVID-19 como uma pandemia. Na
semana seguinte a essa declaração, os colégios do estado do RS,
orientados por legislações estaduais e municipais, paralisaram as
atividades escolares presenciais no contexto das escolas. No contexto
privado, de forma rápida e imediata, as atividades remotas tornaramse estratégias cotidianas de manutenção do vínculo dos estudantes
com a escola. Escolas privadas que já utilizavam plataformas online
passaram a ter esse espaço como intermédio exclusivo de interação
com os estudantes. No dia 18 de março de 2020, o Conselho Estadual
de Educação – CEEd RS – exarou o Parecer nº 01/2020 que “Orienta
as Instituições integrantes do Sistema Estadual de Ensino sobre
o desenvolvimento das atividades escolares, excepcionalmente,
enquanto permanecerem as medidas de prevenção ao novo
Coronavírus – COVID-19” (CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO/
RS, 2020, fl. 1). Ainda, nesse documento, o CEE sergio.franco@ufrgs.
br d RS, em caráter de excepcionalidade, orienta os colégios do RS a
desenvolverem atividades domiciliares, conforme o excerto a seguir:
[...] este Colegiado entende que se caracteriza a situação
emergencial para o momento atual e que as alternativas
possíveis, para validação do ano letivo 2020, podem ser
por meio das atividades domiciliares e/ou de reorganização
do Calendário Escolar com atividades presenciais, findo o
período de excepcionalidade (CONSELHO ESTADUAL DE
EDUCAÇÃO/RS, 2010, fl. 2).
SUMÁR I O
156
A situação da pandemia mobilizou os órgãos normativos
a regulamentarem medidas para condução das situações de
substituições das atividades presenciais nos níveis de Educação
Básica, Profissional e Superior. Essa medida desenhou contornos
abrangentes de possibilidades às instituições de ensino, e, em
particular, às escolas, permitindo uma abrangência de ações cujos
delineamentos foram pautados pelos desenhos organizados aos
públicos matriculados nas escolas privadas.
Em estudos recentes sobre políticas curriculares, os autores
Ball; Maguir e Braun (2016, p. 173), em uma perspectiva foucaultiana,
referem que “as políticas são formações discursivas; [...] conjuntos
de textos, eventos e práticas que falam com processos sociais mais
amplos de escolaridade, tais como a produção do “aluno”, o “propósito
da escolaridade” e a construção do “professor”. Os mesmos autores,
ao citarem Foucault (1986, p. 118), referem que, na compreensão do
filósofo, as formações discursivas “[...] convergem com instituições e
práticas, e carregam significados que podem ser comuns a um período
inteiro”. De tal modo, poderemos perceber “em discursos educacionais
a necessidade de gerenciar comportamentos, para promover
aprendizagem efetiva [..]” (BALL; MAGUIR; BRAUN; 2016, p. 173).
Na esteira dessas reflexões, podemos inserir o debate sobre as
políticas normativas escritas pelos órgãos reguladores no cenário de
pandemia, cuja flexibilidade e abertura acerca dos modos de operar
as práticas pedagógicas nas escolas estiveram em destaque. A opção
por não normatizar a Educação a distância – EAD –, nos moldes como
a conhecemos no Ensino Superior, podendo ser ofertada em caráter
de excepcionalidade na Educação Básica no momento da paralisação,
parece ter ocorrido em decorrência da possibilidade de não burocratizar
e simplificar um processo que exigiria uma série de regulamentações,
direitos e políticas, presentes atualmente nas políticas de educação a
distância. Diante desse cenário, o que foi possível evidenciar, devido
ao curto espaço de tempo, foi uma transposição de práticas que
SUMÁR I O
157
estavam sendo realizadas no ensino presencial para a modalidade
virtual, redesenhando as interações entre professores e estudantes em
ambientes virtuais de aprendizagem. No contexto da educação privada,
ocorreu o predomínio de interações síncronas, como veremos mais
adiante em uma enquete realizada pelo Sindicato do Ensino Privado.
A partir da publicação do Parecer CEEd RS de nº 01/2020,
anteriormente mencionado, o rápido desenho das atividades
domiciliares, por meio de interações síncronas e assíncronas,
ocorreu de diversas formas com predomínio da oferta de atividades
síncronas. A enquete intitulada: “Pesquisa sobre aulas remotas”,
realizada pelo SINEPE/RS com instituições associadas, teve por
objetivo compreender como as instituições seguiram com suas
atividades domiciliares e/ou ensino remoto no período de suspensão
das aulas presenciais. Sobre os recursos utilizados, um mês após
o período de paralisação (abril de 2020), observa-se na Figura 1, a
seguir, as modalidades utilizadas com maior recorrência.
Figura 1: Recursos tecnológicos usados pelas escolas
Fonte: SINEPE/RS10
10
SUMÁR I O
Os dados desta pesquisa foram enviados aos colégios associados ao Sindicato e parte
dos dados publicados no site: https://www.sinepe-rs.org.br/ . Acesso em: maio/2020.
158
O SINEPE/RS realizou a pesquisa com um conjunto de 131
escolas associadas, que representam um pouco mais de 50%
do total de escolas privadas no Estado do Rio Grande do Sul. Ao
evidenciar os meios pelos quais os colégios mobilizaram suas
práticas pedagógicas, observamos um predomínio de plataformas
online e aplicativos como recursos utilizados.
Figura 2: Períodos de aulas online
Fonte: SINEPE/RS
Nessa perspectiva, observamos que as escolas mencionaram
um significativo volume de horas ofertadas às atividades síncronas (aula
online) na Figura 2; e, embora, a orientações do CEEd RS tenham sido
sobre o desenvolvimento de atividades domiciliares, sem mencionar
interações ou meios digitais, o predomínio ocorreu com a mediação
online dos professores regentes, conforme a Figura 3.
SUMÁR I O
159
Figura 3: Interação professor e aluno
Fonte: SINEPE/RS
Os colégios privados mantinham algum tipo de vinculação com
plataforma ou recursos educacionais de modalidade online, o que ficou
evidenciado pala rapidez com que a oferta de atividades pedagógicas
mediadas por tecnologias digitais foi disponibilizada para os estudantes
matriculados nessas escolas. Ao descrever que as interações entre
professor e aluno ocorreram com 100% das atividades síncronas
planejadas, observamos que a disponibilidade do docente na cargahorária contratada foi transposta das atividades presenciais para o online.
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
E A CRISE COMO ESTRATÉGIA
Há um pouco mais de uma década, Pierre Dardot e Laval
(2008) publicaram uma relevante obra intitulada A nova Razão do
Mundo, a partir de uma releitura dos estudos de Karl Marx e da obra O
Nascimento da Biopolítica de Michel Foucault. No cruzamento dessas
abordagens transfronteiriças, examinaram a sociedade neoliberal,
ampliando o debate acerca de uma racionalidade política que se
engendra em diversas dimensões da vida humana.
SUMÁR I O
160
Na sequência da crise econômica de 2008, em âmbito americano
e europeu, cogitava-se o fim do neoliberalismo, traçando a hipótese de
um possível “retorno do estado” e de uma regulação dos mercados.
O cenário sensível de queda dos bancos e o fortalecimento da esfera
econômica estatal impulsionou essa crença. Contudo, distante de
provocar o abrandamento das políticas neoliberais, “a crise conduziu a
seu brutal fortalecimento, na forma de planos de austeridade adotados
por Estados cada vez mais ativos na promoção da lógica da concorrência
dos mercados financeiros” (DARDOT; LAVAL, 2008, p. 14).
Nessa perspectiva, para além da compreensão de que o
neoliberalismo possa ser configurado como uma ideologia ou uma
política econômica, o conceito passa a ser compreendido como uma
racionalidade, um modo de conduzir vidas, estruturando as ações de
quem governa, perpassando a conduta dos governados (DARDOT;
LAVAL, 2008). Sendo assim, o neoliberalismo para Dardot e Laval
(2008, p. 17) é “a razão do capitalismo contemporâneo” uma vez que
este capitalismo desmedido tem sua referência nos modos de atuação
histórica e enquanto regra geral de vida.
Ampliando essas discussões, para os autores, o que está em jogo
nesta racionalidade neoliberal “é nada mais nada menos que a forma de
nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar,
a nos relacionar com os outros e com nós mesmos” (DARDOT; LAVAL,
2008, p. 16). Essa definição acerca de uma norma de vida potencializa
a generalização da competição nas sociedades ocidentais, pois impõe
relações sociais que se regulam por meio dos jogos do mercado. O
indivíduo tende a comportar-se como uma empresa, no contexto da
competição, tensionado por uma norma que orienta as políticas públicas,
conduz as relações econômicas mundiais, produzindo transformações
na sociedade, modelando as subjetividades e fazendo surgir um novo
sujeito. Todas essas perspectivas são oriundas e complementares a esta
nova razão do mundo. Pois, para Dardot e Laval (2008):
SUMÁR I O
161
Devemos entender, [...] que essa razão é global, nos dois
sentidos que pode ter o termo: é “mundial”, no sentido de
que vale de imediato para o mundo todo; e, ademais, longe
de limitar-se à esfera econômica, tende à totalização, isto é,
a “fazer o mundo” por seu poder de integração de todas as
dimensões da existência humana. Razão do mundo, mas ao
mesmo tempo uma razão-mundo” (DARDOT; LAVAL, 2008, p.
16 – grifos do autor).
Ademais, o neoliberalismo pode ser definido como “[...] o conjunto
de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de
governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência”
(DARDOT; LAVAL, 2008, p. 17). Ao considerar esses modos de operação
do neoliberalismo, faz-se importante atentarmo-nos para a ênfase
específica da crise como modo de vida permanente, tomada como
um operador estratégico com efeitos subjetivos. Diante de uma crise
causada por um vírus, quando o índice de mortalidade aumentava
no Estado e no Brasil, no cenário escolar, os efeitos da liberdade de
mercado, no contexto privado, e a não regulação dos moldes de oferta
do ensino remoto criaram condições de acesso pautadas pelo aumento
de interações síncronas, quantidade de horas/aulas disponibilizadas aos
estudantes, disponibilidade do tempo nas interações com os estudantes.
O mercado opera sua própria regulação nesse contexto de crise,
e o desenho das propostas pedagógicas permite a comparabilidade
entre escolas e entre famílias para a avaliação de quem produz mais
interações online. A pauta das questões educacionais fica a cargo da
perspectiva do negócio. O regulador das práticas direciona-se aos
índices de oferta com maior ou menor intensidade de tempo.
Pesquisadores de referência da área (SANTOS, 2009; LEMOS,
2015) destacam que a Educação Online, enquanto fenômeno da
cibercultura, torna-se potente quando mediada por tecnologias
digitais, em perspectiva de hibridismo tecnológico, promovendo
“conteúdos e situações de aprendizagem baseados nos conceitos
de interatividade e hipertexto” (SANTOS, 2009).
SUMÁR I O
162
Estudos dessa natureza referem que a opção pela diversificação
metodológica na educação online permite atingir espaços de cocriação,
autoria e participação em ambientes virtuais de aprendizagem – AVA
–, no sentido de alcançar a diversidade de aprendizagens presentes
em um grupo de estudantes, uma vez que as singularidades são
marcas importantes na multiplicidade de processos e de dimensões
do aprender (GALLO, 2012). De tal modo, o equilíbrio entre atividades
síncronas e assíncronas e as diferenciações das ofertas estariam
entre as propostas que melhor corroboram para as aprendizagens no
ensino remoto, produzindo uma espécie de bricolagem nas escolhas
para interação e comunicabilidade (SANTOS, 2009). Debates que
cotejam e evidenciam a dimensão da proposta educacional, diante
de um cenário de paralisação das atividades presenciais, entram em
cena em paralelo às questões relacionadas à sustentabilidade a ao
contexto de mercado que atravessa a iniciativa privada, esmaecendo
intencionalidades importantes da pauta pedagógica.
Em um estado de exceção, as preocupações que se acentuam
perpassam pela dinamicidade da eficiência e da eficácia das
entregas dos serviços contratados e as quantidades dos tempos de
interação, os tempos em que os docentes se dedicam às tarefas
de atendimentos de estudantes e famílias. Ampliando esse debate,
destaca-se o redesenho dos processos educativos fabricados no
emaranhado das racionalidades emergentes da vida contemporânea.
Em sua obra A cultura do novo Capitalismo, Sennet (2006), nos quatro
capítulos organizados com propostas temáticas que visam a tornar
compreensível a cultura deste capitalismo contemporâneo, assinala
três importantes mudanças que deslocam as sólidas pilastras do
capitalismo social. Silva e Fabris (2010) ao realizarem a resenha da
obra, pontuam que a primeira se refere a uma transferência do poder
gerencial ou acionário ao dos grandes burocratas e investidores,
e que a segunda é preferência por resultados breves, insurge pelo
apelo das permanentes atualizações e constantes reengenharias.
SUMÁR I O
163
Neste ponto, o autor sublinha sobre reinventar-se permanentemente
ou sobre fenecer no mercado (SENNET, 2006). E a terceira mudança
recai sobre as novas tecnologias que seguem amplificando suas
comunicações instantâneas em escala mundial.
As marcas desta cultura de um novo capitalismo se engendram
nas relações e nos modos de fazer escola. No cenário de criação
de meios para as interações online entre estudantes e professores,
observamos a retórica da reinvenção docente se intensificar
ao mesmo tempo que a pauta da atualização e dos espaços de
formação e capacitação ganham novas ênfases e novos contornos.
A crise vivida acelera processos de desenvolvimento profissional
no que concerne à interação com as tecnologias digitais, ao
mesmo tempo, intensifica o risco da precarização dos processos
pedagógicos, marcados pela intensidade, quantidade e eficácia.
Na esteira dessas reflexões, em fevereiro de 2020, a Sociedade
Brasileira de Pediatria11 emitiu uma nota em seu site recomendando a não
exposição de crianças pequenas em frente às telas por tempo excessivo.
Destacamos, a seguir, as três primeiras notas referentes ao tema:
Essa publicação foi realizada em contexto anterior ao da
pandemia, e a inclusão dessa notícia neste estudo tem a intenção de
evidenciar as produções discursivas acerca da temática dos tempos
de conexão com crianças e jovens. Não pretendemos neste estudo
nos posicionarmos sobre essa questão, mas, mostrar como circulam
as discursividades relacionadas à exposição às tecnologias digitais.
Nesse contexto, importa salientar que a Sociedade Brasileira de
Oftalmologia12 também emitiu nota e mantém uma matéria no site sobre
SUMÁR I O
11
Recomendação retirada do site: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sbpatualiza-recomendacoes-sobre-saude-de-criancas-e-adolescentes-na-era-digital/
da
Sociedade Brasileira de Pediatria sobre a saúde de crianças e adolescentes na era digital
Acesso em: maio/2020.
12
https://www.sboportal.org.br/imprensa/sindrome-visual-relacionada-a-computadores.
Acesso em: outubro/2020.
164
uma síndrome relacionada ao uso de computadores. Junto à mídia,
especialistas dessa área, inclusive, recomendaram pausas e exercícios
oculares neste momento em que crianças, jovens e adultos estão com
aulas online e atividades profissionais, respectivamente, e, por isso,
mais expostos à atividades de leitura e interação diante das telas.
Na pesquisa do SINEPE/RS, referida anteriormente, nos
itens por etapas de ensino não divulgados aqui – há um mês da
suspensão das aulas (em abril) – a enquete mencionava que 50%
das escolas que responderam as questões já ofertavam mais de
10 períodos por semana de atividades síncronas e 30% mais de 20
períodos por semana. Nos Anos Iniciais o percentual era de 72% de
atividades síncronas e mais de 50% dos estudantes com mais de
20 períodos por semana. Isso corresponderia a um percentual de
exposição de em média 3 a 4 horas por dia frente às telas. Vemos
nessa perspectiva os efeitos da produtividade e da eficiência no
atendimento dos objetivos pedagógicos se sobreporem às questões
relacionadas às dimensões educacionais e de saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste capítulo, procuramos construir um debate
crítico em relação aos redesenhos realizados pelos colégios privados
do RS no cenário de pandemia, trazendo ênfase para as marcas dos
cenários contemporâneos que ganham novos tons no contexto de
Educação Online. Em aproximação aos estudos de inspiração foucaultiana, a partir do pensamento de Dardot e Laval (2008), percebemos as marcas do neoliberalismo e do capitalismo contemporâneo
como modos de vida engendrados nas escolhas curriculares, nas
decisões pedagógicas e nas reconfigurações das interações entre
professores e estudantes, em especial neste momento de pandemia.
SUMÁR I O
165
Para Dardot e Laval (2008, p. 21), “trata-se de compreender como a
governamentalidade neoliberal escora-se num quadro normativo global” e, assim, “em nome da liberdade e apoiando-se nas margens
de manobra concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as
condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos”.
No funcionamento da racionalidade neoliberal como modo
de vida, a crise instaura-se como operador estratégico que atua nos
cenários sociais, econômicos e subjetivos dos sujeitos. Destarte,
cotejamos que, a partir das políticas curriculares condutoras da
organização das práticas pedagógicas (BALL; MAGUIRE; BRAUN,
2016), os arranjos curriculares emergentes advindos deste ano
letivo, um tanto incomum, sublinharam-se com ênfase pelas
demandas advindas do capital. Por fim, para pensar as relações
entre os redesenhos decorrentes da educação online e os cenários
contemporâneos, buscamos alguns traços conceituais que emergem
dessas experiências pedagógicas, tais como as ofertas pautadas pela
intensidade nos tempos de conexão, pela quantidade de propostas
disponibilizadas e pela competitividade na personalização dos
atendimentos, além da retórica de reinvenção das práticas docentes.
SUMÁR I O
166
REFERÊNCIAS
BALL, S. MAGUIRE, M. BRAUN, A. Como as escolas fazem políticas: atuação
em escolas secundárias. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016.
CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO (Rio Grande do Sul). Parecer CEEd RS
de nº 01/2020 de 18 de março de 2020. Orienta as Instituições integrantes do
Sistema Estadual de Ensino sobre o desenvolvimento das atividades escolares,
excepcionalmente, enquanto permanecerem as medidas de prevenção ao novo
Coronavírus – COVID-19. Comissão de Legislação e Normas, fl.3, 2020.
DARDOT, P. LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2009.
GALLO, S. As múltiplas dimensões do aprender. COEB, 2012. Disponível
em: http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/13_02_2012_10.54.50.
a0ac3b8a140676ef8ae0dbf32e662762.pdf Acesso em: Jan/2019.
LEMOS. A. O que é cibercultura? Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=hCFXsKeIs0w&t=1s. TV UFBA conecta, 2005. Acesso em: maio/2020.
SANTOS, E. Actas do X Congresso Internacional Galego-Português de
Psicopedagogia. Braga: Universidade do Minho, 2009. Disponível em: https://
www.educacion.udc.es/grupos/gipdae/documentos/congreso/xcongreso/
pdfs/t12/t12c427.pdf. Acesso em: maio/2020.
SENNET, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.
SUMÁR I O
167
Capítulo 9
9
LITERATURA POTENCIAL: UMA
ALIADA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
Josaine de Moura
Josaine de Moura
LITERATURA
POTENCIAL:
uma aliada
da Educação
Matemática
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.168-184
RECOMEÇAMOS A COMEÇAR UM
COMEÇO SEM INÍCIO: PELO MEIO
Não há como deixar de apontar o momento único que foi o
da invenção do estudo que motivou a escrita deste capítulo. Esse
momento foi gestado em um solo não imaginado, nem pensado, nem,
quiçá, hipoteticamente cogitado, mas que estamos sendo obrigados a
viver – ou seria mais adequado dizer que estamos sendo obrigados a
não morrer, ou ainda, a panviver?
Há que reinventar a cada amanhecer outra maneira, nunca
vivida, nem pensada, de desconstruir rotinas que não podem ser
seguidas, para construir não rotinas. É nestas idas e vindas, sem
nenhum ponto de chegada conhecido e almejado, que podemos
pensar o quão potente pode ser esse estado de restrição. Restrição da
liberdade regulada, restrição das possibilidades que estavam à nossa
disposição e foram reduzidas a quase apenas uma: “ficar em casa”.
Fomos obrigados a aceitar que o que pensávamos poder controlar, o
futuro, é algo incontrolável que está em devir.
Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou
assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente.
A fatalidade do seu ser não pode ser destrinchada da
fatalidade de tudo o que foi e será. Ele não é consequência de
uma intenção, uma vontade, uma finalidade própria, com ele
não se faz a tentativa de alcançar um “ideal de ser humano”
ou um “ideal de felicidade” ou um “ideal de moralidade” – é
absurdo querer empurrar o ser para uma finalidade qualquer.
Nós é que inventamos o conceito de “finalidade” [...] O fato
de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo do
ser não pode ser remontado a uma causa prima, [...] somente
com isso é novamente estabelecida a inocência do vir-a-ser
(NIETZSCHE, 2006, p. 46-47).
SUMÁR I O
169
Para além de nosso ego de deuses, o que existe é um caos13
em que estamos imersos e onde apenas podemos “continuar a nadar”,
como diz a Dore, do filme Procurando Nemo. Dore, aquela peixinha
azulzinha, aprendeu uma maneira não deusa de viver o caos, que é
a vida. Imersos em um caos que difere do caos com que estávamos
acostumados, deparamo-nos com a possibilidade de inventar outras
formas de utilizar restrições para potencializar maneiras de ensinar.
Neste momento de aparente inércia, calmaria, passividade
e incapacidade de ir e vir, reinventamos uma prática que parecia
estar esquecida: pensar – e com tempo, não tendo o relógio como
carrasco. Muito pelo contrário, o relógio tornou-se um aliado para nos
tornar alienados dos controles das horas e das demandas de uma
sociedade que, até há pouco tinha como mantra “tempo é dinheiro”,
mas agora “é o instante que não sabemos se é longo demais ou curto
demais para o tempo” (DELEUZE, 1992, p. 259).
Agora que o relógio não controla mais, a mente volta a pensar.
[...] é, às vezes, no justo momento em que tudo nos parece perdido, que ocorre o aviso que nos pode salvar; batemos a todas as
portas que não abrem para nada, e na única pela qual podemos
entrar, e que teríamos buscado em vão durante um século, esbarramos por acaso e ela se abre (PROUST, 2002, p. 661).
Pensar exige um tempo não controlado, e começamos a perdêlo com inquietações que já nem mais sabíamos que existiam, mas
que estavam imersas no caos de nossos pensamentos e sufocadas
pelas demandas de uma vida controlada pelo tempo cronológico. Com
essa outra forma inventada de viver, passamos a prestar atenção aos
barulhos que alguns rastros de nossas constituições estão fazendo e
13
SUMÁR I O
“Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso,
mais angustiante do que o pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que
desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em
outras, que também não dominamos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição
coincidem. São velocidades infinitas, que se confundem com a imobilidade do nada incolor e
silencioso que percorrem, sem natureza nem pensamento” (DELEUZE, 1992, p. 259).
170
a nos permitir rasgar os silêncios que estavámos impondo ao filósofo,
ao cientista e ao artista que habitam em nós, professores.
Podemos, então, mergulhar no caos que insurgiu desse nosso
encontro com as restrições impostas pela pandemia, e cada faceta
nossa, quando sai desse mergulho, traz
[...] variações que permanecem infinitas, mas tornam-se
inseparáveis sobre superfícies ou em volumes absolutos,
que traçam um plano de imanência secante: não mais são
associações de ideias distintas, mas re-encadeamentos,
por zona de distinção, num conceito. [...] variáveis, tornadas
independentes por desaceleração, isto é, por eliminação de
outras variabilidades quaisquer, suscetíveis de intervir, de modo
que as variáveis retidas entram em relações determináveis
numa função: [...], mas coordenadas finitas sobre um plano
secante de referência. [...] variedades que não constituem mais
uma reprodução do sensível no órgão, mas erigem um ser do
sensível, um ser da sensação sobre um plano de composição
(DELEUZE, 1992, p. 260).
Munidos de uma escuta e escolhendo um, dentre inúmeros,
dos desassossegos que são compartilhados por muitos colegas professores na educação contemporânea, particularmente na Educação
Matemática, queremos perquirir alternativas para que os alunos participem do processo de aprendizagem de maneira a protagonizar essa
prática. A Educação Matemática está em consonância com esse desassossego, pois se alia a outras áreas de conhecimentos a fim de
tornar o ensinar e o aprender afinados e próximos. Este movimento
de inventar14 outras formas de construir os conhecimentos matemáticos resulta nas tendências da Educação Matemática.
Na medida em que a área da Educação Matemática se
apresenta como uma área interdisciplinar, podemos enumerar
14
SUMÁR I O
Aventuramo-nos a utilizar o termo inventar “[...] para reforçar a ideia de que os objetos de
estudo não estão aí à espera para serem descobertos (não há problemas esperando por
nós para serem resolvidos). Todavia, essa invenção (construção) depende da forma como
examinamos, escrutinamos ou olhamos alguma coisa.” (PINHEIRO, 2014, p. 22).
171
uma variedade de tendências de estudos e pesquisas na
confluência com as diversas áreas as quais ela compartilha
pressupostos e interesses. [...] tendências que ocupam
lugares de destaque no campo acadêmico, tais como, a
Modelagem Matemática, a Resolução de Problemas, a
História da Matemática, a Interdisciplinaridade, a Ludicidade,
a Etnomatemática, as linhas cognitivistas e as especificamente
construtivistas (SANTOS, 2017, p. 58).
O mosaico formado pelas tendências da Educação Matemática
está em constante movimento, pois a escola é um espaço que
transborda os limites dos muros da instituição, e esse excesso
impulsiona demandas de outras maneiras de ensinar, do que ensinar,
de como aprender e do que aprender. Não estamos procurando
recomeçar pelo início; queremos começar pelo meio, sem que este
seja a média, a metade do tempo, o ponto central, mas que seja o que
movimenta, o que impulsiona, o que deixa sem fôlego e faz transbordar.
[...] Ora, o meio não quer dizer absolutamente estar dentro
de seu tempo, ser de seu tempo, ser histórico; ao contrário: é
aquilo por meio do qual os tempos mais difíceis se comunicam.
Não é nem o histórico nem o eterno, mas o intempestivo. E um
autor menor é justamente isso: sem futuro nem passado, ele só
tem um devir, um meio pelo qual se comunica com outro tempo,
outros espaços (DELEUZE, 2010, p. 35).
Começamos, então, a afundar no turbilhão de sensações
despertadas pelos encontros com os escritos do OuLiPo (Oficina
de Literatura Potencial) e a comunicar-nos com outra maneira de
ensinar matemática, utilizando as variações, variáveis e variedades que
emergiram de nosso mergulho na literatura potencial.
SUMÁR I O
172
OuLiPo (OUVROIR DE LITTÉRATURE
POTENTIELLE)
Para iniciar, descrevemos brevemente o grupo OuLiPo, por
ter sido no encontro15 com os escritos produzidos pelos integrantes
desse grupo que começamos a inventar outra forma de ensinar
matemática, que aproxima a literatura potencial e a Educação
Matemática. O OuLiPo foi criado em 1960 e inicialmente era
composto apenas por escritores franceses, tendo como fundadores
Raymond Queneau16 e François Le Lionnais. Queneau rompeu com
o movimento surrealista17 da época e inventou uma alternativa para
produzir seus escritos, indo pela contramão da literatura espontânea.
Uma das características principais dos escritos produzidos pelos
integrantes do OuLiPo é o uso de restrições prévias na construção de
seus textos. Essas restrições podem ser restrições matemáticas ou
de outros tipos. A literatura produzida por esse grupo é denominada
literatura potencial e busca formas, estruturas, fórmulas matemáticas,
entre outras coisas, como fios condutores para ser produzida.
O grupo negava-se a reconhecer que o que estava propondo
seria um novo movimento literário. Os oulipianos poderiam ser ditos
SUMÁR I O
15
“E não se têm encontros com pessoas. As pessoas acham que é com pessoas que se têm
encontros. É terrível, isso faz parte da cultura, intelectuais que se encontram, essa sujeira de
colóquios, essa infâmia, mas não se tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com
obras: encontro um quadro, encontro uma ária de música, uma música, assim entendo o
que quer dizer um encontro. Quando as pessoas querem juntar a isso um encontro com
elas próprias, com pessoas, não dá certo. Isso não é um encontro. Daí os encontros serem
decepcionantes, é uma catástrofe os encontros com pessoas.” (DELEUZE, 2005, p. 10).
16
Raymond Queneau foi escritor, poeta, ensaísta, humorista, crítico literário e interessado em
jogos matemáticos. Foi um dos fundadores do movimento surrealista na década de 20,
mas acabou dando as costas ao movimento em 1958 e criou o OuLiPo, no qual se produzia
literatura não espontânea, por meio de experiências matemático-literárias.
17
“O surrealismo é concebido por seus fundadores não como uma nova escola artística, mas
como um meio de conhecimento, em particular de continentes que até então não tinham
sido sistematicamente explorados: o inconsciente, o maravilhoso, o sonho, a loucura, os
estados alucinatórios, em resumo, o avesso do que se apresenta como cenário lógico.”
(NADEAU, 1958, p. 46).
173
escritores que eram contra a espontaneidade. Seus escritos eram
regidos por regras conhecidas como travas, constrições ou restrições
iniciais (contraintes), tornando o escrever algo não espontâneo – algo
controlável, estruturado, regulado e previsível.
O OuLipo reuniu e reúne nomes de destaques, sendo que, para
integrá-lo, o indivíduo deve ser convidado formalmente pelo grupo;
mesmo que venha a falecer, ele não deixa de ser oulipiano. Nem
todas as produções de seus integrantes são gestadas por restrições.
Atualmente, há 41 integrantes no OuLipo18, a saber: Noël Arnaud
(1919-2003), Michèle Audin (1954), Valérie Beaudouin (1968), Marcel
Bénabou (1939), Jacques Bens (1931-2001), Claude Berge (19262002), Eduardo Berti (1964), André Blavier (1922-2001), Paul Braffort
(1923), Italo Calvino (1923-1985), François Caradec (1924-2008),
Bernard Cerquiglini (1947), Ross Chambers (1932-2017), Stanley
Chapman (1925-2009), Marcel Duchamp (1887-1968), Jacques
Duchateau (1929-2017), Luc Etienne (1908-1984), Frédéric Forte (1973),
Paul Fournel (1947), Anne F. Garréta (1962), Michelle Grangaud (1941),
Jacques Jouet (1947), Latis (1913-1973), François Le Lionnais (19011984), Hervé Le Tellier (1957), Étienne Lécroart (1960), Jean Lescure
(1912-2005), Daniel Levin Becker (1984), Pablo Martín Sánchez (1977),
Harry Mathews (1930-2017), Clémentine Mélois (1980), Michèle Métail
(1950), Ian Monk (1960), Oskar Pastior (1927-2006), Georges Perec
(1936-1982), Raymond Queneau (1903-1976), Jean Queval (19131990), Pierre Rosenstiehl (1933), Jacques Roubaud (1932), Olivier Salon
(1955) e Albert-Marie Schmidt (1901-1966). Não há registro de algum
integrante do grupo ser lusófono19, mas existem escritores brasileiros
que têm produções regidas por restrições, tais como: Osman Lins, de
Avalovara; Alberto Mussa, de O Movimento Pendular; José Castello de
Ribamar e Jacques Fux, de Antiterapias e Brochadas20.
18
SUMÁR I O
https://www.oulipo.net acessado no dia 5 de outubro de 2020.
19
Aquele que fala português.
20
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/ratos-no-labirinto-2/ acessado em 5 de outubro de
2020.
174
Na produção textual dos integrantes do OuLiPo, as estruturas
previamente definidas evitam a escrita espontânea e, segundo aponta
Queneau, ajudam no desenvolvimento do trabalho.
[...] inspiração que consiste em obedecer cegamente a
qualquer impulso é na realidade uma escravidão. O clássico
que escreve a sua tragédia observando um certo número de
regras que conhece é mais livre que o poeta que escreve
aquilo que se passa pela cabeça e é escravo de outras regras
que ignora (QUENEAU apud CALVINO, 1993, p. 261).
A inspiração, para o OuLiPo, é algo a ser evitado a qualquer
custo, pois ela escraviza quem escreve, deixando o ato de escrever
como uma ação feita para poucos e na esfera da metafísica.
[...] diversas teorias estéticas afirmavam que a poesia era
uma questão de inspiração vinda de sabe-se lá que alturas
ou brotada de sabe-se lá que profundidade ou intuição pura
ou instante não identificado da vida do espírito; ou uma voz
dos tempos com que o espírito do mundo decida falar por
intermédio do poeta (CALVINO, 2009, p. 205).
Contrapondo a escrita movida pela espontaneidade e dando
as costas ao movimento surrealista, Calvino (2009) descreve que,
para ele, fazer literatura é uma ação regida por restrições iniciais que
tornam a escrita possível, mas múltipla. “[...] a literatura, da maneira
como eu a conhecia, era obstinada série de tentativas de colocar
uma palavra atrás da outra, conforme determinadas regras definidas”
(CALVINO, 2009, p. 205).
A imposição de restrições para escrever os textos pode parecer
uma forma de limitar a escrita, porém, para o OuLiPo, as limitações propostas voluntariamente são multiplicadores de maneiras de se escrever.
Está aí um paradoxo! As restrições não restringem, e, sim, multiplicam.
Com as restrições, multiplicam-se os textos que podem ser produzidos.
As produções literárias do OuLiPo estão divididas em duas linhas,
segundo descreve Le Lionnais. São elas: anulipismo e sintulipismo.
SUMÁR I O
175
[...] nas pesquisas que pretende começar o Ouvroir, duas
tendências principais, torneadas respectivamente, acerca da
Análise e da Síntese. A tendência analítica trabalha sobre as
obras do passado, a fim de pesquisar as possibilidades que
ultrapassaram frequentemente as possibilidades que os autores
tinham asssumido. [...] A tendência sintética é mais ambiciosa;
ela constitui a vocação essencial do OuLiPo. Trata-se de
propor novas vias desconhecidas dos nossos predecessores
(LIONNAIS apud FUX, 2016, p. 46).
Neste estudo, inspiramo-nos no anulipismo; em outras palavras,
tomamos textos já escritos e, a partir deles, propomos restrições
matemáticas para que sejam produzidos outros textos. Para ler as
obras desses escritores, pode-se pensar que teríamos de possuir um
conhecimento matemático avançado, mas isso é um engano. Mesmo
não conhecendo as restrições impostas pelo autor para produzir sua
obra, seu escrito pode ser lido por quem não tem um conhecimento
matemático, sem nenhum prejuízo. Quem gosta de matemática
pode desafiar-se a procurar, durante a leitura das obras do OuLiPo,
as restrições que foram usadas. Vários dos integrantes do grupo
explicitam suas restrições. Por exemplo, o livro escrito por George
Perec, La Disparition, lançado em 1969, não utiliza, em nenhuma das
220 páginas, a letra “e”, que no francês é a vogal mais usada.
Teria muito mais a descrever sobre o OuLiPo e, principalmente,
sobre as produções de seus integrantes, as quais são de uma
complexidade e inventividade sem iguais, porém, com o que foi
descrito, já se pode ter uma ideia da produção literária do grupo.
LITERATURA POTENCIAL
A combinação de matemática e literatura parece ser uma
maneira de utilizar a escrita e a leitura com outra lógica. Utilizam-se
SUMÁR I O
176
conceitos, fórmulas, equações, contextualização e problemas advindos
da matemática para potencializar a produção literária, ou buscam-se,
em diversos tipos de textos, modos de impulsionar a invenção de uma
matemática que tenha múltiplos significados.
Propomos, neste estudo, outra forma de aproximar a literatura
e a matemática, a saber, a literatura potencial. Não pretendemos
definir literatura potencial, visto que isso não era uma preocupação
do OuLiPo em seus escritos, mas Meira (2008, p. 3) aventura-se a
pontuar que, por literatura potencial, “entenda-se, finalmente, o
conjunto de procedimentos de que se servem os matemáticos e
escritores do grupo OuLiPo para produzir textos, guiados por um
protocolo, uma equação, uma forma qualquer que se defina como
regra”. Essa maneira de entender a literatura potencial parece ser
adequada para o estudo que aqui se realiza.
Muitas são as formas de se escrever utilizando restrições
voluntárias iniciais. Algumas delas estão categorizadas, e as
descrevemos a seguir.
MÉTODO M +/-N
Essa forma de escrever, sugerida por Jean Lescure, implica
que a produção textual consiste em trocar palavras da mesma
classe gramatical, de um dado texto, por outras palavras da mesma
classe que as sucedem ou as precedem no dicionário. Nessa forma
de restrição inicial, a modificação ocorre apenas em palavras de
uma mesma classe de palavras (substantivo, verbo, adjetivo). Essa
restrição pode ser vista como uma relação matemática, sucessor ou
antecessor, ou até como uma função afim.
SUMÁR I O
177
Particularmente, quando se usa S+/-n, modificam-se todos
os substantivos do parágrafo pelo n-ésimo substantivo posterior ou
anterior ao que aparece no dicionário.
Exercício matemático-literário utilizando o método M+/-n
Toma-se a restrição S – 1, ou seja, vamos substituir todos os
substantivos do parágrafo pelo primeiro substantivo anterior do dicionário.
PARÁGRAFO ORIGINAL: “Não tenho medo nem de chuvas
tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou
o escuro da noite. Embora não aguente bem ouvir um assovio no
escuro, e passos.” (LISPECTOR, 1998, p. 18).
USO DA RESTRIÇÃO
a.
21
SUMÁR I O
Primeiro passo: listar os substantivos do parágrafo e encontrar
no dicionário21 o primeiro substantivo antecedente de cada
substantivo listado
substantivo
S–1
medo
medinuidade
chuvas
chuteiras
ventanias
ventas
escuro
escuridão
noite
noitada
assovio
assoviador
passos
passividades
O dicionário utilizado foi o Silveira Bueno.
178
b.
Segundo passo: reescrever a frase com os novos substantivos.
Poderíamos tomar V – 1, no qual trocaríamos os verbos do
parágrafo pelos primeiros verbos antecessores no dicionário; ou A – 1,
em que trocaríamos os adjetivos do parágrafo pelos primeiros adjetivos
antecessores no dicionário.
MÉTODO DAS PERMUTAÇÕES
Essa forma de escrever, sugerida por Jean Lescure, implica que
a produção textual consiste em permutar as palavras da mesma classe
gramatical no parágrafo dado. É uma permuta de palavras em certa
ordem previamente definida, o que faz obter impactantes surpresas
no novo parágrafo. Nada é mais fácil de permutar do que adjetivos,
no entanto, permutar substantivos é algo mais complexo, visto que o
parágrafo resultante pode ter um resultado estranho.
Vamos aplicar o que não é o mais fácil no método das permutações: permutar os substantivos, ou seja, o primeiro substantivo da frase
pelo segundo substantivo, o terceiro pelo quarto, e assim sucessivamente; ou ainda, permutar o primeiro com o terceiro e o segundo com o quarto; ou o primeiro com o quarto, e o segundo com o terceiro. Esse método
é indicado para parágrafos longos formados por numerosas frases.
Pode-se realizar a mais variada combinação de permutação,
como, por exemplo, permutar o primeiro substantivo pelo último
substantivo, o segundo pelo antepenúltimo, e assim por diante. Esse
SUMÁR I O
179
tipo de permutação se desenvolve adequadamente se a quantidade
de substantivos envolvidos for um número par; caso for ímpar, o
substantivo do meio não será permutado.
Exercício matemático-literário utilizando o método das permutações
PARÁGRAFO ORIGINAL
Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho.
Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca para
comer. Então a menina inventou que só cabia criar as pulgas
pois não merecia o amor de um cão. Do contato com a tia ficaralhe a cabeça baixa. Mas a sua beatice não lhe pegara: morta a
tia, ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e
as divindades lhe eram estranhas (LISPECTOR, 1998, p. 29).
USO DA PERMUTAÇÃO
a.
Primeiro passo: numerar os substantivos.
substantivo
SUMÁR I O
ordenação
vontade
primeiro
bicho
segundo
tia
terceiro
bicho
quarto
boca
quinto
menina
sexto
pulgas
sétimo
amor
oitavo
cão
nono
180
b.
tia
décimo
cabeça
décimo primeiro
beatice
décimo segundo
tia
décimo terceiro
igreja
décimo quarto
divindades
décimo quinto
Segundo passo: escolher a permutação que será realizada,
observando que temos um número ímpar de substantivos,
assim, o substantivo cão não será permutado.
b.1 permutar: o primeiro substantivo com o segundo substantivo,
o terceiro substantivo com o quarto substantivo, o quinto substantivo
com o sexto substantivo, o sétimo substantivo com o oitavo substantivo,
o nono substantivo não permuta com nenhum, o décimo substantivo
com o décimo primeiro substantivo, o décimo segundo substantivo
com o décimo terceiro substantivo, o décimo quarto substantivo com
o décimo quinto substantivo.
PARÁGRAFO MODIFICADO
b.2 permutar: o primeiro substantivo com o terceiro substantivo,
o segundo substantivo com o quarto substantivo, o quinto substantivo
com o sétimo substantivo, o sexto substantivo não permuta com
nenhum, o oitava substantivo com o décimo substantivo, o nono
substantivo com o décimo primeiro substantivo, o décimo segundo
substantivo com o décimo quarto substantivo, e o décimo terceiro
substantivo com o décimo quinto substantivo.
SUMÁR I O
181
PARÁGRAFO MODIFICADO
Podem-se explorar inúmeras restrições e inúmeros textos. Essas
escolhas devem estar em consonância com a idade do aluno, os
objetos de conhecimentos matemáticos, os tipos de escrita que devem
ser aprendidos e o interesse do aluno, dentre tantos outros requisitos
que o professor deve considerar, de acordo com seu planejamento.
REVERBERAÇÕES DOS BARULHOS
QUE POSSIBILITARAM PENSAR
O estudo realizado até o momento mostra que ensinar matemática é uma prática que está em constante movimento. Quando se
ensina algo a alguém, utiliza-se a linguagem como uma das maneiras
de comunicação. Particularmente, quando se ensina matemática, utilizam-se duas linguagens diferentes, a saber, a linguagem que usamos
para nos comunicar com outras pessoas e a linguagem própria da
matemática. Esta última é carregada de significados e significantes
que são inventados e fazem sentido no campo da matemática.
Como a prática de ensinar tem o objetivo principal de fazer com
que o outro aprenda, e há um abismo entre o que pensamos estar
ensinando e o que o outro realmente está aprendendo, a necessidade
de outras maneiras de ensinar se faz presente – uma demanda cada
vez mais urgente. Mesmo as metodologias já existentes estão sendo
atualizadas para que possam desempenhar da melhor forma a sua
função: facilitar o ensino para que a aprendizagem aconteça para o
maior número possível de alunos, quiçá, todos.
SUMÁR I O
182
Atentando-se às demandas da escola e às mudanças cada dia
mais rápidas, buscou-se mostrar a literatura potencial, desenvolvida
pelo OuLiPo, como uma alternativa para o ensino de matemática.
Abordaram-se duas dentre as muitas restrições inventadas pelos
integrantes do OuLiPo, que resultaram no método M+/-n e no método
das permutações. Cada uma dessas maneiras de produção textual,
além da restrição inicial, possui outro ponto em comum, que é a
necessidade da escolha de um texto, no qual será aplicada a restrição.
Qualquer uma das maneiras descritas no trabalho demonstra a
necessidade de utilização do dicionário e do conhecimento de classes
gramaticais, sinônimos, sucessor, antecessor, permutações e relações
matemáticas. A criação de outras restrições pode vir a ser outro modo de
utilizar a literatura potencial no ensino da matemática, com a produção
textual a partir dessas restrições espontâneas, sem texto prévio.
Inspirados na literatura potencial para estudar como ensinar
matemática utilizando restrições, pode ser que somente com um
tempo sem tempo possamos inventar algo potente, ou ainda, perigoso.
Este estudo quer fugir da cilada da totalidade, que procura uma
resposta para saber se a literatura potencial serve ou não para ensinar
matemática. Queremos pensar e seguir inventando outras formas de
ensinar que levem tempo e que sejam no tempo de cada um.
REFERÊNCIAS
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CALVINO, Í. Assunto encerrado: Discursos sobre literatura e sociedade. São
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SUMÁR I O
183
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do XI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura
Comparada, São Paulo, 2008. Disponível em https://abralic.org.br/eventos/
cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/066/VINICIUS_MEIRA.pdf Acessado
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pesquisas, tendências e propostas. Porto Alegre: Canto - Cultura e Arte, 2017.
SUMÁR I O
184
Capítulo 10
10
ENSINAR E APRENDER
MATEMÁTICA COM O YOUTUBE
Débora de Lima Velho Junges
Lucas Pereira da Rosa
Débora de Lima Velho Junges
Lucas Pereira da Rosa
ENSINAR
E APRENDER
MATEMÁTICA
COM O YOUTUBE
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.185-200
Na contemporaneidade, Educação e sociedade têm passado
por transformações decorrentes das inovações tecnológicas
relacionadas com o acesso à informação e às formas de comunicação
e de interação entre as pessoas, que se encontram cada vez mais
inseridas no ambiente digital. Nos últimos anos, o debate sobre
o uso de tecnologias na Educação cresceu, impulsionado pela
popularização das graduações e cursos técnicos na modalidade
Educação a Distância (EAD) (SIBILIA, 2012).
Essa discussão foi reforçada com a disseminação de conceitos
como a “sala de aula invertida”, e o uso consciente da internet e todo
o seu potencial para a educação (PACHECO, 2014). Isso se deu tanto
no meio acadêmico, em pesquisas e publicações que analisam como
é possível adaptar para essa nova realidade práticas pedagógicas
estabelecidas e reconhecidas no contexto escolar, e como criar
novas formas de ensinar (AMANTE, 2011; ARRUDA, 2013), quanto
por uma iniciativa dos alunos, que desenvolveram maneiras próprias
de buscar conhecimento (CANDAU, 2014).
Os novos ambientes digitais, em que a aprendizagem
ganha espaço, têm possibilitado a observação de uma série de
experiências educacionais vinculadas ao desenvolvimento de
diferentes processos e ferramentas, sejam estas originalmente
pensadas e criadas para serem utilizadas com propósito educativo
ou não (BURGESS; GREEN, 2009). Uma dessas ferramentas é o
Youtube, plataforma de compartilhamento de vídeos consolidada
como um dos maiores serviços de Internet do mundo.
Com mais de 2 bilhões de usuários ativos mensais ao redor do
mundo e cerca de 100 milhões apenas no Brasil, o Youtube exerce grande influência cultural e social (YOUTUBE, 2020). Um dos motivos identificados para o sucesso da plataforma colaborativa deve-se pela facilidade com que os usuários podem hospedar e divulgar vídeos produzidos,
principalmente, para fins de entretenimento (BAREFOOT; SZABO, 2016).
SUMÁR I O
186
No entanto, cada vez mais, o Youtube tem sido utilizado como uma ferramenta de ensino e de aprendizagem de conteúdos curriculares.
Em termos de uso, o Youtube pode ter fins diversos. No
sentido de distribuição de um conteúdo criado – funcionalidade
primordial –, pode ser compreendido como uma plataforma, na
qual o vídeo está hospedado, e, por meio da ferramenta de player
de vídeo, outros usuários podem acessá-lo. Entretanto, o Youtube
é compreendido como uma ferramenta quando passa a ter uma
usabilidade específica. No contexto educacional, uma ferramenta
de aprendizagem (CORREA; PEREIRA, 2016). Assim, o Youtube não
foi criado inicialmente com o intuito de educar, mas os criadores de
conteúdo e os usuários aproveitaram do seu potencial e de seus
recursos para tal objetivo. Ele se tornou “[...] fascinante, pois, expor
a opinião, produzir informação, debates, conteúdos científicos,
educacionais, humorístico entre outros […] o torna útil para a
compreensão das relações sociais, evolução das tecnologias e das
mídias, auxiliando na práxis escolar” (ALMEIDA et al., 2016, p. 4).
Essa consideração corrobora os dados de uma pesquisa
realizada por nós em 2018 que procurou analisar a utilização do Youtube
como ferramenta de aprendizagem pelos alunos do Ensino Médio
Integrado de uma instituição de ensino da rede federal no município
brasileiro de Fraiburgo, estado de Santa Catarina (SC) (JUNGES; GATTI,
2019). Nesse estudo, observou-se que 96% dos alunos acessavam
o Youtube e, destes, 89% utilizavam o Youtube para aprender/buscar
conhecimento. Esse resultado significativo apresenta proximidades
com outras pesquisas (KAMERS, 2013; OLIVEIRA, 2016; SILVA, 2016),
as quais evidenciam que a linguagem audiovisual, presente nos vídeos
postados no Youtube, pode ser considerada como um formato mediador
de conhecimento para os alunos que frequentam a Educação Básica.
Ainda com relação aos resultados da pesquisa, constatou-se
que 98% dos alunos que faziam uso do Youtube para fins educacionais
SUMÁR I O
187
acreditavam que o acesso e a visualização de vídeos relacionados
à aprendizagem e à construção do conhecimento influenciavam
de forma positiva em seu desempenho escolar. Ao considerarem o
Youtube como uma ferramenta capaz de qualificar o seu próprio
processo de ensino e de aprendizagem, é possível inferir que esta
prática, para além de uma escolha pessoal, repercute nos processos
educacionais inseridos no espaço escolar, promove uma alteração na
dinâmica da sala de aula (tendo em vista um provável desempenho
melhor dos alunos nos conteúdos curriculares) e demonstra que, para
aquele grupo de jovens, a web também se constituía como um espaço
que promove a aprendizagem e a construção do conhecimento.
Neste sentido, o uso de diferentes recursos digitais, como o Youtube,
“aproxima a juventude das formas de aprender intimamente vinculadas
às tecnologias digitais” (SILVA, 2016, p. 69).
YOUTUBE E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
Diversos autores têm defendido o uso das mídias sociais (como
o Youtube) como instrumento de ensino e de aprendizagem (PECHANSKY, 2016; ALMEIDA et al., 2016; CORREA, PEREIRA, 2016). Isso
ocorre porque as mídias sociais, enquanto ferramentas de comunicação por meio da web, “permitem criar e transmitir facilmente o conteúdo na forma de palavras, imagens, vídeos e áudios” (SAFKO; BRAKE,
2010, p. 5). Gomez (2004), por exemplo, elenca como pontos positivos
do uso das mídias sociais para fins educacionais os seguintes aspectos: possibilidade de construção de conhecimentos, estabelecimento
de espaços colaborativos e a abordagem de assuntos que vão além do
conhecimento em si e que passam por questões éticas e legais. Além
desses pontos, para a prática educativa, as mídias sociais permitem
“a troca de conhecimentos entre pessoas de diversos níveis sociais,
educacionais, culturais, políticos e econômicos” (RIBEIRO et al., 2016,
SUMÁR I O
188
p. 3), ou seja, as mídias sociais podem ser compreendidas como uma
forma de democratização do acesso e da divulgação do conhecimento.
A própria plataforma do Youtube possui iniciativas voltadas,
especificamente, à questão educacional. Lançada em 2013, a versão
brasileira do Youtube Edu é fruto de uma parceria entre Google, Youtube
e Fundação Lemann, com a participação de equipes de curadoria
formadas por profissionais do Sistema de Ensino Poliedro (SEP) e
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Essa iniciativa
consiste em uma página exclusiva na plataforma, totalmente gratuita
e em português, que disponibiliza conteúdos educacionais. “Os
vídeos educativos são voltados para os Ensino Fundamental e Médio
e englobam as seguintes disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática,
Ciências (Química, Física e Biologia), História, Geografia, Filosofia,
Sociologia, Língua Espanhola e Língua Inglesa” (YOUTUBE EDU, 2020).
Atualmente, o Youtube Edu possui, aproximadamente, 422 mil usuários
inscritos e 22 milhões de visualizações (YOUTUBE EDU, 2020).
Das diversas temáticas encontradas na referida plataforma, o
Youtube Edu contém canais que procuram disponibilizar videoaulas
focadas em conteúdo da matemática escolar. Vale a pena destacar que
os canais que compõem a plataforma foram avaliados por professores
especialistas selecionados pelo Sistema de Ensino Poliedro e
coordenados pela Fundação Lemann (YOUTUBE EDU, 2020).
Estudos relacionados ao campo da Educação Matemática
têm focado em discutir a utilização de Tecnologias da Informação e
Comunicação (TICs) como recurso didático dos professores. Com o
propósito de qualificar o ensino, na busca de torná-lo mais atrativo para
os jovens que cresceram em um período no qual as tecnologias digitais
são presentes e fazem parte de suas vidas, há uma preocupação por
parte dos educadores quanto à adequação dos recursos disponíveis
para integrá-los ao processo de ensino. A utilização de vídeos no
contexto da Educação Matemática é um desses recursos.
SUMÁR I O
189
Contudo, na área da pesquisa em Educação Matemática,
observa-se um número reduzido de produções que têm focado
na questão da busca pela aprendizagem dos conteúdos de
Matemática fora do ambiente escolar por meio da utilização de
vídeos (JUNGES, ROSA, 2020). Podemos citar, por exemplo, os
estudos produzidos por Santos et al. (2014) e Vieira (2017). Na
pesquisa desenvolvida por Santos et al. (2014), buscou-se analisar
o uso da mesa digitalizadora como recurso à produção de vídeos,
visando a proporcionar aos alunos do Ensino Médio uma fonte de
pesquisa e aprendizagem em Matemática. Enquanto a pesquisa de
Vieira (2017) procurou investigar a percepção dos alunos do Ensino
Médio Integrado, de uma escola pública, quanto à relação entre o
uso de videoaulas e o seu desempenho em Matemática.
Conforme apontado pelo relatório do movimento Todos Pela
Educação (2020), somente 9% dos estudantes concluintes do Ensino
Médio atingem níveis satisfatórios de aprendizado em Matemática.
Um dado alarmante da Educação no Brasil relacionado a esse
componente curricular.
Considerados como de difícil aprendizagem por muitas pessoas,
os conteúdos da Matemática escolar são tratados em diversos vídeos
no Youtube. Inclusive, há uma quantidade significativa de canais que
focam na questão do ensino da Matemática. Neste contexto, em que
se verifica que os jovens têm utilizado o Youtube para fins educacionais
(JUNGES; GATTI, 2019), faz sentido compreender como a Matemática
escolar tem sido abordada pelos canais que focam na apresentação
dos conteúdos relacionados a esse componente.
Assim, nas páginas que seguem, iremos apresentar os dados
produzidos por duas pesquisas desenvolvidas por nós. Na primeira,
o estudo é fruto de um projeto que teve como objetivo analisar as
principais características de cinco canais brasileiros, vinculados
ao Youtube Edu, especializados em transmitir/ensinar conteúdos
SUMÁR I O
190
matemáticos, com maior número de inscritos. Enquanto na segunda,
relatamos brevemente a história da Khan Academy e discutimos como
tal iniciativa se utilizou do Youtube para ensinar Matemática
CANAIS ESPECIALIZADOS NA
MATEMÁTICA ESCOLAR
Tomando como tema de pesquisa o cenário do ciberespaço
vinculado ao ensino e à aprendizagem da Matemática por meio
do Youtube, o projeto de pesquisa intitulado “Youtube e Educação
Matemática: um estudo dos canais especializados em ensinar
matemática escolar”, desenvolvido em 2019, procurou responder
ao seguinte questionamento: quais são as principais características
dos canais brasileiros especializados em transmitir/ensinar
conteúdos matemáticos? A fim de produzir dados que viessem a
responder à questão de pesquisa, foi utilizada como metodologia a
netnografia, um método de pesquisa aplicado em estudos que têm
como contexto o cenário digital (HINE, 2000).
A netnografia é compreendida como uma metodologia de
pesquisa de culturas presentes na internet (HINE, 2000), um método
que se utiliza das comunicações mediadas por computador como
fonte de dados para a compreensão e para a representação de um
determinado comportamento ou fenômeno cultural no ciberespaço e
de comunidades online (KOZINETS, 2014). Os estudos netnográficos
voltam-se “para a descrição de realidades sociais virtualizadas, ou seja,
de compreensão das novas formas de sociabilidade no ciberespaço”
(REBS, 2011, p. 81). Assim, é preciso atentar para que não se cause
nenhum dano ou prejuízo tanto à comunidade pesquisada quanto aos
seus membros (HINE, 2000), que, no caso específico desta pesquisa,
foram os canais brasileiros vinculados ao Youtube Edu.
SUMÁR I O
191
Na parte empírica da pesquisa, selecionamos os cinco canais
com maior número de inscritos vinculados ao Youtube Edu, especializados em transmitir/ensinar conteúdos matemáticos. Em uma das fases
de análise dos canais, identificamos os cinco vídeos mais visualizados
pelos usuários do Youtube de cada um deles. Desta forma, conseguimos
observar as características que aproximavam cada um dos canais e que
se estabeleceram como pontos recorrentes nas videoaulas analisadas.
Um ponto a ser destacado refere-se, justamente, às formas
de apresentação dos conteúdos matemáticos. De maneira geral, os
youtubers fizeram uso de apenas três estratégias metodológicas e
didáticas em seus vídeos: o espelhamento de tela do computador/
notebook com o uso de slides, a fim de apresentar o desenvolvimento
de cálculos matemáticos, ao mesmo tempo em que as resoluções
são explicadas verbalmente; o uso de uma folha e uma caneta,
mostrando apenas as mãos dos youtubers para a realização dos
cálculos matemáticos junto com a explicação verbal; ou ainda,
a apresentação do youtuber com a utilização de uma lousa e um
canetão para explicar o tema abordado.
“Como complemento à escrita, a explanação é realizada ou
apenas pela fala do professor ou com aparições pontuais do docente
em alguns momentos de explicação do conteúdo matemático”
(SANTOS; GONÇALVES, 2017, p. 11). Diante disso, percebe-se que
as estratégias e os recursos utilizados pelos youtubers se assemelham
àquelas comumente utilizadas no ensino presencial, fortemente
pautadas em aulas ditas como “expositivas”. Ou seja, não há uma
significativa diferenciação entre o ensino presencial e o ensino à
distância no que se refere à transmissão dos conteúdos matemáticos.
Contudo, uma diferença bastante significativa se refere à
duração das videoaulas, quando comparadas com a duração
padrão das aulas presenciais. Enquanto, em sua grande maioria,
as videoaulas possuem de 8 a 14 minutos, a duração de aulas
SUMÁR I O
192
presenciais, em média, é de 40 a 50 minutos. Este dado indica uma
tendência no momento do planejamento e elaboração das videoaulas
de que estas não sejam muito longas.
Quanto à participação dos usuários dos canais, é importante
ressaltar a grande diferença entre os canais com maior número de
inscritos e os com menor número. Isto porque, nos canais mais
“famosos”, a quantidade de comentários foi maior e mais distribuída
entre as videoaulas no período de produção dos materiais deste
estudo. Esses dados nos levam a inferir que, por mais que alguns
vídeos tenham mais visualizações que outros, nos canais cujo
número de inscritos era superior a um milhão (Ferretto Matemática
e Matemática Rio com Prof. Rafael Procopio), grande parte das
videoaulas postadas são visualizadas pelos usuários. Possíveis
motivadores para esses dados se devem à regularidade das
postagens, à metodologia utilizada e à produção/edição aplicada.
Em contrapartida, nos canais que possuem menor número
de inscritos, foi possível observar que, enquanto algumas videoaulas
apresentaram uma quantidade razoavelmente significativa de
comentários, outros não computaram interações. Uma explicação para
esses dados pode estar relacionada ao conteúdo matemático abordado.
Em relação à natureza dos comentários, é interessante
considerar a grande presença de agradecimentos e, diretamente
relacionado a este ponto, a necessidade dos usuários em afirmar
aos desenvolvedores dos canais que sua atividade tem gerado frutos
em suas vidas acadêmicas e suas rotinas de estudo. Cabe ressaltar,
também, que os internautas, com frequência, buscam tirar dúvidas
vinculadas ao conteúdo, por meio dos comentários.
Por fim, outro destaque se relaciona com os comentários que
indicam “problemas” que, na opinião de determinados usuários, a(s)
videoaula(s) apresentam, principalmente em relação à metodologia
SUMÁR I O
193
utilizada. Uma constatação interessante a esse respeito é que tais
comentários não se assemelham aos feitos pelos haters (“odiadores”,
pessoas que praticam o bullying virtual e têm como objetivo principal
desestabilizar o canal ou o youtuber em questão (CAMINADA et al.,
2016)), pelo contrário, são comentários de natureza construtiva, a fim
de agregar/sugerir mudanças positivas.
KHAN ACADEMY E A EXPERIÊNCIA DO ALUNO
A Khan Academy, hoje uma organização com foco em
educação, começou de forma bastante informal em 2004, quando
Salman Khan, durante o seu casamento, encontrou-se com a sua
prima Nadia. Ele via grande potencial nela, que na época cursava
a sexta série, mas estava passando por dificuldades nas aulas de
matemática. Por isso, mesmo separados por milhares de quilômetros
(ele morava em Boston; ela, em Nova Orleans), Khan começou a
dar aulas particulares à Nadia, utilizando uma ferramenta chamada
Yahoo Doodle e o seu telefone (KHAN ACADEMY, 2020). Essas aulas
eram realizadas com o uso de uma mesa digitalizadora, para que
Khan pudesse escrever como no uso de uma lousa digital.
Anos depois, em 2006, conforme o desempenho escolar de
Nadia foi melhorando, surgiu o interesse de seus colegas de escola, que
também queriam participar das aulas de matemática com o seu primo.
Ao perceber isso, e vendo que teria muito mais alunos do que poderia
dar conta com o formato inicial de suas aulas, Salman Khan adotou
a prática do compartilhamento dessas aulas da seguinte maneira: a
tela e a explicação eram gravadas e transformadas em videoaulas que
eram postadas em um canal do Youtube. A partir daí, os colegas de
Nadia também poderiam ter acesso às explicações de Salman Khan
sobre os conteúdos da matemática escolar (KHAN ACADEMY, 2012).
SUMÁR I O
194
A metodologia de Salman Khan atraiu a atenção de diversos
alunos da escola de sua prima, e depois de seus amigos que
estudavam em outras escolas. O Youtube foi a plataforma de
lançamento da filosofia de ensino da Khan Academy, que foi
fundada oficialmente em 2008, e recebeu aportes da Fundação Bill e
Melinda Gates e da Google que, somadas, chegaram a 3,5 milhões
de dólares, permitindo que o canal de Youtube se transformasse
em uma plataforma para o ensino (KHAN ACADEMY, 2020). Hoje
em dia, além de ter uma plataforma própria, a Khan Academy não
ensina mais apenas Matemática, ofertando cursos de história e de
cinema (como o curso desenvolvido em uma parceria com a Pixar).
Mas, mesmo assim, o Youtube ainda é utilizado pela iniciativa.
A plataforma, mesmo tendo adotado diversos novos formatos
de vídeo, que fazem uso de outras linguagens, quando se trata dos
conteúdos de Matemática, ainda faz uso das técnicas de vídeo que
deram início a tudo. Seja quando ele é o recurso principal, e será
obrigatoriamente assistido pelo aluno, seja como no curso World
of Mathematics, em que o aluno é apresentado aos problemas que
deve resolver, e só assistirá aos vídeos com as explicações, caso
deseje. Entretanto, apesar de este breve relato a respeito da história
da Khan Academy demonstrar evidências do interesse dos alunos
em aprender através do Youtube, um dos pontos que talvez seja o
mais interessante, refere-se a algumas das características que se
observam nas videoaulas elaboradas por Salman Khan.
Em seu livro, Salman Khan (2012) compartilha que as aulas
gravadas duravam, no máximo, 10 minutos. E, o que antes era uma
restrição que o Youtube aplicava na época, acabou se mostrando
uma vantagem quando ele teve acesso a um estudo de 1996 sobre a
capacidade de manutenção da atenção dos alunos (MIDDENDORF;
KALISH, 1996). Segundo a publicação, os alunos universitários não
conseguiam se manter focados por mais que 10 ou 15 minutos.
SUMÁR I O
195
Estudos mais recentes demonstram que o aluno tem dois
momentos principais de fadiga, em que ele tem maiores chances de
perder o foco. O primeiro é entre 10 e 13 minutos de vídeo. Neste
momento, o aluno ainda pode ter a sua atenção recuperada de
maneira mais fácil. No segundo momento, a partir dos 22 minutos,
é bem mais difícil fazer com que o aluno continue a dar atenção ao
vídeo (PI; HONG, 2015). Contudo não é incomum que os alunos vejam
menos do que 10 minutos de um vídeo (BAUER; MALCHOW; MEINEL,
2019). Portanto, mesmo que o Youtube não tenha mais esta restrição
em relação ao tempo, buscar manter a duração das videoaulas em, no
máximo, 10 minutos parece uma boa decisão ainda hoje.
Esses são alguns estudos, e a Khan Academy é apenas um
exemplo dentre vários sobre como é importante compreender a
existência de uma adaptação na transposição das aulas comumente
realizadas em um modelo mais “tradicional” e de forma presencial,
para aquelas que fazem uso de uma plataforma como o Youtube
para alcançar os seus estudantes. Simplesmente gravar uma aula
presencial, com duração de tempo que pode ultrapassar 40 minutos,
não parece ser uma boa opção. É preciso que aqueles decididos a
tirar proveito das vantagens apresentadas pela plataforma saibam
levar em conta a experiência que o estudante terá ao acessar o
vídeo. E a Khan Academy, na nossa opinião, continua sendo uma boa
referência para quem se interesse por um exemplo que demonstre
boas práticas na utilização do Youtube para a Educação Matemática.
Mais do que isso. A Khan Academy pode ser um exemplo seminal
sobre como a educação contemporânea vem se transformando, em
parte, pela utilização das tecnologias digitais. Ao levarmos em conta
os aspectos relacionados à experiência dos alunos, seja em relação
à forma com que aprendem, seja em relação ao uso da tecnologia,
podemos criar conteúdos e experiências de ensino-aprendizagem que
foquem nas características de cada um. Isso auxilia a personalizar a
SUMÁR I O
196
forma com que cada aluno constrói o conhecimento, além de permitir
que ele tenha mais autonomia na hora de aprender.
MATEMÁTICA ESCOLAR “FORA DA CAIXA”
Considerando o momento que se faz presente e o futuro
da Educação (em um cenário com e pós-pandemia), reflexões
sobre o uso das plataformas digitais como recursos educacionais
disponíveis gratuitamente para ensinar e aprender se fazem urgentes
e necessárias. Isto porque a instituição escolar “deixou de ser o único
lugar de legitimação de saber, pois existe uma multiplicidade de
saberes que circulam por outros canais, difusos, descentralizados”
(MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 126), como é o caso do Youtube.
A sociedade está utilizando cada vez mais a interação social em
um contexto midiático. Por isso, é necessário que a escola, como uma
das instituições que promovem a interação entre pessoas, acompanhe
esse desenvolvimento. As linguagens multimídia fazem parte do
cotidiano de todos e repercutem no contexto das instituições escolares.
Acreditamos que, diante de uma sociedade que valoriza e
utiliza as mais diversas tecnologias, a educação e, mais especificamente, o ambiente escolar, não deveriam permanecer indiferentes ao
uso destes recursos que podem contribuir para a qualificação dos
processos de ensino e de aprendizagem. Ao contrário, a compreensão desse fenômeno deveria instigar ações que procurassem inserir,
cada vez mais, o Youtube e outras tecnologias de informação e comunicação como ferramentas pedagógicas, principalmente, porque,
o uso intencional e criterioso dessas ferramentas tende a tornar as
aulas mais criativas e interessantes, facilitando o processo de ensino
e auxiliando na compreensão de conteúdo.
SUMÁR I O
197
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SUMÁR I O
200
Capítulo 11
11
ESTRATÉGIAS DE ENSINO EM
TEMPOS DE VIRTUALIZAÇÃO
Ieda Maria Giongo
José Cláudio del Pino
Marli Teresinha Quartieri
Ieda Maria Giongo
José Cláudio del Pino
Marli Teresinha Quartieri
ESTRATÉGIAS
DE ENSINO
EM TEMPOS
DE VIRTUALIZAÇÃO
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.201-216
PANDEMIA E VIRTUALIZAÇÃO: OUTROS
RUMOS PARA OS PROCESSOS DE ENSINO
A professora prepara seu material para iniciar mais uma aula.
Faz um check list: câmera, microfone, materiais disponibilizados
(inclusive vídeos) no ambiente virtual, slides, internet funcionando,
sala organizada. Em poucos minutos, iniciará mais uma aula. Para um
momento e pensa: Será que, hoje, os alunos abrirão suas câmeras,
interagindo? Poderei ver todos? E as aprendizagens? Os materiais que
postei são adequados? E as avaliações? Conseguirei avaliar o que
aprenderam? Provas? Trabalhos? Chats….
Essa cena, impensável há poucos meses, tornou-se recorrente
em muitos lares. Em todos os níveis de ensino, as salas de aula, como
as conhecíamos, mudaram seus espaços, passando a figurar, muitas
vezes, em pequenos cômodos das residências dos professores e
alunos. E os recursos tecnológicos passam a configurar-se como
imprescindíveis para o “sucesso” da aula. Barbosa, Viegas e Batista
(2020, p. 1) problematizam essa questão, enfatizando que “em um
mundo em que a tecnologia é a ferramenta que tanto ansiamos
e necessitamos para a solução de problemas, seja de ordem
profissional, sentimental e/ou familiar, esta torna-se a única aliada”
[para ministrar aulas]. Nesse sentido, pesquisadores advertem que,
no panorama da cultura da interatividade, é imprescindível destacar
a importância do elo entre pedagogia e informação.
Nessa ótica, a sala de aula deveria estar sintonizada com essa
emergência da interatividade, de acordo com a postura da nova
dimensão da comunicação. Takahashi (2000, p. 3) já referenciava que
“uma nova era em que a informação flui a velocidades e em quantidades
há apenas poucos anos inimagináveis, assumindo valores sociais e
econômicos fundamentais”, parece cada vez mais disseminada no
SUMÁR I O
202
contexto atual. Assim, as expressões “sociedade da informação” e
“sociedade do conhecimento” têm sido utilizadas para caracterizar,
entre outros, o conjunto dessas relações, a inexorabilidade de suas
cristalizações e a anunciação de um novo horizonte da humanidade.
Nesse desenho, apregoam enunciações aludindo que as
redes sociais são aliadas dos processos de ensinar e aprender, já
que se configuram como aparatos inovadores, possibilitando novas
estratégias aos professores. Segundo referem Silva e Cogo (2007),
essas tecnologias estão transformando a maneira de ensinar e de
aprender, oferecendo maior versatilidade, interatividade e flexibilidade
de tempo e de espaço no processo educacional. Ao corroborar essas
concepções, Balbino e Anacleto (2011) refletem que o ambiente das
redes sociais na internet se caracteriza como um meio potencial
para a extensão de práticas educativas. Nessa linha argumentativa,
Werhmuller e Silveira (2012) afirmam que esse espaço virtual abre a
oportunidade de alunos e professores interagirem entre si, trocando
informações, experiências pessoais e profissionais, compartilhando
conhecimentos de forma colaborativa, dinâmica.
Essa sociedade em rede pode, de certa forma, favorecer o elo
existente entre professor e aluno, pois, de acordo com os autores, essa
associação moderna de afinidades e tecnologias permite uma liberdade
e/ou uma configuração variável que dependem, quase exclusivamente,
da vontade dos sujeitos em formação, extensão ou extinção. Rosa e
Cecílio (2010) inferem que, nessa perspectiva, podem ser introduzidas
novas formas de socializar informações e de se produzirem conhecimento
e cultura no mundo contemporâneo por meio das tecnologias.
Imersos em tais enunciações, poder-se-ia questionar outras, tais
como as que problematizam o acesso dos estudantes a ferramentas
que lhes possibilitem a interagir, local adequado para eles e seus
professores desenvolverem suas tarefas. Entretanto, o que se propõe
aqui é evidenciar possibilidades e limitações de, em um curto espaço de
SUMÁR I O
203
tempo, modificar a metodologia de aula de uma disciplina presencial –
vinculada a um Programa de Pós-Graduação em Ensino, consolidada
e bem avaliada entre os estudantes – para o ensino virtualizado.
(RE)PENSANDO A AULA EM
TEMPOS DE VIRTUALIZAÇÃO
Diante desse contexto, este capítulo pretende socializar uma
experiência realizada na disciplina de Estratégias de Ensino I, que
faz parte do currículo do Programa de Pós-Graduação em Ensino
(Mestrado e Doutorado), de uma Instituição Comunitária do interior do
Rio Grande do Sul. Obrigatória para mestrandos e doutorandos, com
carga horária de trinta horas, seu intuito é discutir e analisar relações
entre ensino e aprendizagem, problematizar o uso de estratégias e de
recursos tecnológicos nos processos de ensino e de aprendizagem,
implementar e avaliar o uso de diferentes estratégias de ensino e/ou
recursos tecnológicos na prática pedagógica, investigar diferentes
formas de integrar atividades no contexto de sala de aula. Aliados a
isso, são proporcionados momentos constantes de reflexão sobre a
prática pedagógica, focando-se a importância do uso de diferentes
estratégias de ensino em espaços formais ou não formais.
Anastasiou e Alves (2015) fazem uso do termo “estratégias
de ensinagem” para ampliar as possibilidades de um trabalho em
sala de aula com atividades diferenciadas; porém, elas não podem
estar distanciadas da compreensão do que seja ensinar e aprender,
das concepções do curso, do contexto e organização do currículo,
entre outros aspectos. Ainda afirmam que é dentro desse universo de
possibilidades que “[...] se constrói o trabalho docente e que o professor
se vê frente a frente com a necessidade e o desafio de organizá-lo e
operacionalizá-lo. É também nesse contexto relacional que se inserem
as estratégias de ensinagem” (ANASTASIOU e ALVES, 2015, p. 68).
SUMÁR I O
204
Portanto, de acordo com as autoras, nos processos de ensinar e aprender, compete ao professor planejar as atividades, tendo o
cuidado de orientar e auxiliar os alunos, levando-os à construção de
seus conhecimentos. Assim, é produtivo o docente estudar, selecionar, organizar e propor as melhores ferramentas facilitadoras para que
os estudantes se apropriem do conhecimento” (ANASTASIOU, ALVES,
2015, p. 76). Nessa ótica, é fundamental o professor conhecer seus
discentes para utilizar a estratégia mais adequada conforme o contexto
em que estão inseridos. Além disso, é necessário conhecer a lógica do
conteúdo para identificar a melhor estratégia a ser utilizada. Por exemplo, “um conteúdo predominantemente factual exigirá uma estratégia
diferente de um procedimental” (ANASTASIOU, ALVES, 2015, p. 77).
Diante desse contexto, na disciplina de Estratégias de
Ensino I, o propósito é que os estudantes (que já são docentes
de diversos níveis de escolaridade – desde a Educação Infantil até
o Ensino Superior) vivenciem diversas estratégias de ensino para
que possam utilizá-las em sua prática pedagógica. Desse modo, a
metodologia da referida disciplina consta de levantamento de ideias
dos alunos sobre estratégias de ensino, recursos tecnológicos no
ensino, planejamento de aulas, concepção sobre uma “boa aula”,
experiências em relação ao uso de diferentes estratégias tanto na
vivência do discente como na de professor.
Além disso, são proporcionados diversos momentos de leitura,
discussão e reflexão de textos referentes a distintas estratégias de
ensino, relacionando-as aos processos de ensino e de aprendizagem;
estudos de artigos acadêmicos com relatos de experiências “bemsucedidas” com o uso de diversas estratégias de ensino; aplicação de
diferentes estratégias na turma por grupo de alunos; desenvolvimento
de estratégias diferenciadas na prática pedagógica dos discentes
e relato, por escrito, dos resultados. Salienta-se que a maioria das
atividades da disciplina são efetivadas em grupos, pois acredita-se que
elas possibilitam ações colaborativas que se ampliam e se desenvolvem
SUMÁR I O
205
de forma cooperativa, proporcionando o compartilhamento de ideias;
o redimensionamento dos saberes já existentes e o desenvolvimento
de novos e o comprometimento com os envolvidos. Importa também
destacar que, na sua forma presencial, a disciplina em questão
previa que as estratégias problematizadas fossem efetivamente
disponibilizadas em turmas nas quais os docentes atuassem.
No decorrer da disciplina, uma das tarefas é a divisão da
turma de alunos em pequenos grupos, em que cada um destes fica
responsável por aplicar uma estratégia aos demais colegas. Estas são
escolhidas após a leitura de artigos, sendo diversas delas citadas, e
cada aluno escolhe duas que não conhece ou esteja disposto a saber
mais detalhes. As mais votadas são desenvolvidas pelos pequenos
grupos em sala de aula. A ideia é que o estudante seja agente
participante e, ao final da aplicação, ocorre uma discussão em relação
à viabilidade, produtividade e dificuldades da estratégia. Mas, em se
tratando de aulas virtualizadas relativas às discussões e atividades
em pequenos grupos, qual a dinâmica mais apropriada para que
continuem produtivas? E como tornar viável a aplicação de estratégias
pelos grupos? Quais destas são viáveis em um ensino virtualizado?
Nas aulas virtualizadas, em todos os níveis de ensino, o aluno é acompanhado constantemente pelo professor. Na disciplina em
questão, três docentes a ministram. Nessa perspectiva, ocorrem as interações virtuais síncronas em que os participantes estão conectados
em tempo real de forma simultânea, e o acesso é possibilitado pelas
tecnologias digitais (bate-papos virtuais, webconferências, videoconferências, lives). De acordo com os autores anteriormente citados, o
ensino remoto não envolve simplesmente a transposição de “modelos
educativos presenciais para espaços virtuais, pois requer adaptações
de planejamentos didáticos, estratégias, metodologias, recursos educacionais, no sentido de apoiar os estudantes na construção de percursos ativos de aprendizagem” (OLIVEIRA et al., 2020, p. 12).
SUMÁR I O
206
A pandemia ocasionou a reformulação da disciplina para essa
nova forma de ensino. A Instituição usa o Google Meet (https://meet.
google.com) para as aulas virtualizadas, plataforma com uma interface
rápida que promove encontros virtuais e possibilita que, mesmo
geograficamente distantes, os participantes mantenham interações
on-line, compartilhando telas do computador, áudios, vídeos, textos,
imagens. Além disso, permite a criação de salas para videochamadas
e a ferramenta chat para bate-papo.
Diante desse contexto, foi necessário pensar e (re)planejar
ações, fazendo surgir outras formas de ensinar. Assim, na disciplina
de Estratégias de Ensino I, em alguns momentos, criaram-se diversas
salas no Google Meet para os trabalhos e discussões em pequenos
grupos. Essa possibilidade auxiliou nas atividades em grupo, mas fica
a questão: como viabilizar as diferentes estratégias de ensino?
Na primeira aula da disciplina de forma virtualizada, após a leitura
dos textos, contendo diferentes estratégias de ensino, solicitou-se que
os alunos citassem as discutidas nos referidos textos. Como não havia um quadro (como em aula de formato presencial), pediu-se que um
aluno compartilhasse a tela do computador e fosse escrevendo em um
arquivo no word as estratégias que iam sendo citadas pelos colegas.
Em seguida, cada estudante escolheu duas de que desejava obter um
conhecimento maior. A turma continha vinte alunos; assim foram criados
seis grupos (dois com quatro componentes; quatro, com três) e escolhidas as seis estratégias mais citadas: tempestade cerebral, grupo de verbalização e observação, seis chapéus do pensamento, painel integrado ou grupos com integração horizontal e vertical, portfólio, Phillips 66.
Cumpre informar que as estratégias foram sorteadas entre os grupos.
No seguimento, lançou-se o desafio para a turma: cada grupo
deveria aplicar a estratégia em uma aula subsequente da disciplina,
podendo escolher o tema. Além disso, cada equipe disporia de
vinte a trinta minutos para desenvolver a estratégia de acordo com
SUMÁR I O
207
os autores estudados. Se necessário, deveriam adequá-la de acordo
com a virtualização e o número de alunos. Então, foi disponibilizado
um tempo para os grupos conversarem. Destaca-se que o professor
da disciplina percorreu as seis salas com o intuito de orientar os
estudantes quanto à estratégia. A princípio, alguns grupos, perplexos,
questionaram como seria possível desenvolvê-la de forma virtualizada;
outros comentaram que não havia como aplicá-la. Entretanto,
paulatinamente, foram pensando em conjunto e expondo ideias de
adequações e possibilidades de efetivar a proposta.
Assim, como para os professores da disciplina, os alunos
também se sentiram desafiados a encontrar uma forma de aplicar as
estratégias, que foram criadas para o ensino presencial, na forma de
ensino virtualizado. Este fazer diferente nos deixa inseguros, mas, ao
mesmo tempo, provoca-nos (OLIVEIRA et al., 2020).
Destaca-se que, no dia do desenvolvimento das estratégias, todos
os grupos estavam ansiosos por aplicar as tarefas planejadas e participar
ativamente das atividades dos demais grupos. A seguir, relatam-se as
estratégias exploradas, bem como a síntese das discussões referente
à viabilidade e adequabilidade ao ensino remoto. As seis estratégias
selecionadas foram: tempestade cerebral, painel integrado ou grupos com
integração horizontal e vertical, portfólio, seis chapéus do pensamento,
grupo de verbalização e de observação (GV/GO), Phillips 66.
A tempestade cerebral, de acordo com Anastasiou e Alves (2015,
p. 89), “é uma possibilidade de estimular a geração de novas ideias de
forma espontânea e natural, deixando funcionar a imaginação. Não há
certo ou errado. Tudo o que for levantado será considerado, solicitando-se, se necessário, uma explicação posterior do estudante”. A dinâmica
dessa estratégia é que os estudantes, ao serem questionados sobre um
tema ou problema, expressem, em palavras ou frases, o que pensam
sobre a questão/situação. O professor deve evitar uma atitude crítica; limita-se a registrar todas as ideias; fazer uma organização final das ideias
SUMÁR I O
208
apresentadas para identificar o que os alunos já possuem sobre determinado tema. Esta pode ser realizada no coletivo, com participações
individuais ou em pequenos grupos, e, posteriormente, a socialização.
O grupo, ao aplicar a estratégia da Tempestade Cerebral,
solicitou que os colegas pegassem uma folha de ofício, dividindo-a
em oito partes iguais, e, em cada uma, escrevessem sobre o tema
dado. Finda essa etapa, reuniram-se em pequenos grupos em que
discutiram e sintetizaram as ideias e, no final, socializaram no coletivo,
e os componentes do grupo proponente fizeram o fechamento da
atividade. Para a discussão, as professoras criaram salas paralelas, e
os grupos foram os mesmos da atividade de aplicação das estratégias.
Terminada a aplicação, ocorreu a discussão sobre a viabilidade da
estratégia, pontos produtivos e dificuldades. A turma concluiu que
essa estratégia pode ser desenvolvida de forma virtualizada, inclusive
em pequenos grupos conforme o proposto. Ademais, destacaram que
coletivamente também seria possível, cabendo ao docente, em um
texto na forma .doc, expor as ideias dos alunos.
A estratégia “painel integrado ou grupos com integração
horizontal e vertical” é realizada em três momentos. No primeiro, dividese a turma em grupos de, no máximo seis pessoas, sendo indicada a
tarefa a ser realizada. A resolução da atividade deve ser anotada por
todos os componentes do grupo. Cada integrante recebe um número
– de um a seis – (ou até o número de alunos no grupo). No segundo
momento, reúnem-se em pequenos grupos todos os números um,
os números dois, e assim sucessivamente. Nessa etapa, acontece a
troca de informações, pois cada componente relata o que ocorreu no
primeiro grupo e, ao final, é feita uma síntese, a ser anotada por todos
os participantes. O terceiro momento é o do professor, que, no decorrer
do segundo momento, participa dos grupos e anota as dificuldades e os
avanços sobre o tema proposto. Nessa fase, ele cita as dificuldades que
observou, expõe conclusões, debate pontos que ficaram duvidosos. De
SUMÁR I O
209
acordo com Masetto (2003, p. 115), essa estratégia é uma “forma de
naturalmente se quebrarem “as panelas” existentes nas turmas, levando
aleatoriamente os alunos a se encontrarem com os colegas junto aos
quais até esse instante não haviam trabalhado e que nem conheciam”.
O grupo que aplicou essa estratégia dividiu a turma de alunos
em quatro grupos, sendo que cada um foi para uma sala diferente,
criada no Google Meet, e a tarefa foi dada por um dos componentes
da equipe proponente. Após um tempo determinado, os estudantes
deveriam se dirigir a outra sala do Google Meet para o segundo
momento da estratégia. Nesse momento, houve muita confusão,
pois, no início, o grupo proponente não deixou explícito para qual
sala do Google Meet cada estudante deveria ir, além de não explicar
que, no primeiro momento, todos deveriam anotar as conclusões (no
primeiro grupo). Assim, as discussões do segundo momento não
aconteceram conforme proposto pela estratégia.
Ao fazerem a análise dessa estratégia, os alunos destacaram
a importância das orientações iniciais, fato também destacado por
Masetto (2003) quando salienta que, para o bom funcionamento de
uma estratégia, é importante que o professor organize o ambiente e
explique os passos antes de iniciar sua aplicação. Os participantes
destacaram que, se fosse em ambiente presencial de sala de aula,
a confusão do segundo momento teria sido logo resolvida, pois o
docente informaria ao aluno qual o seu grupo, caso não soubesse.
Ao final, o grupo conclui que essa estratégia, em ambiente
virtualizado, pode ser usada, mas deve ser melhor orientada no início.
Entretanto, explicitaram que é difícil para um único professor estar
com todos os grupos no segundo momento, pois as salas dos Google
Meet são em locais separados. Como três professores atuavam na
disciplina, foi possível um acompanhamento mais sistematizado nos
pequenos grupos. No entanto, os estudantes acreditam que, em sala
presencial, a citada estratégia é mais produtiva e de simples execução.
SUMÁR I O
210
O portfólio é uma estratégia que “possibilita o acompanhamento
de construção do conhecimento do docente e do discente durante o
próprio processo, e não apenas ao final deste” (ANASTASIOU E ALVES,
2015, p. 88), pois é a construção de registro, análise, seleção e reflexão
dos avanços e das dificuldades em relação ao objeto de estudo, assim
como das formas de superação das dificuldades. De acordo com as
autoras, a preparação do portfólio pode seguir estes passos: combinar
as formas de registro (manual, digital, caderno, dentre outras); escrever
apenas em um lado da página para que o professor escreva no outro;
nomear todos os relatos; registros podem ser em forma de textos
individuais ou coletivos, acrescidos de reflexão; inserir avaliação do
desempenho pessoal do professor. Este deve ler as produções e fazer
apontamentos, estabelecendo diálogo com os alunos.
O grupo que aplicou o portfólio utilizou como tema os estudos
efetivados na primeira aula da disciplina sobre o que são estratégias de
ensino e recursos didáticos, usando o aplicativo Padlet22, uma ferramenta
que possibilita a criação de quadros virtuais para organizar estudos
ou rotinas de trabalho. Tais quadros podem ser compartilhados com
outros usuários, o que facilita a visualização das tarefas em equipes de
trabalho. A turma foi dividida em pequenos grupos, e os componentes,
em conjunto, compartilharam suas aprendizagens e dificuldades no
aplicativo, o que possibilitou um portfólio virtual colaborativo. Essa
estratégia foi considerada viável para o uso em aulas virtualizadas, não
ocorrendo dificuldades no decorrer da aplicação. Os alunos destacaram
que o uso do aplicativo Padlet (que a maioria deles não conhecia) foi o
diferencial da proposta e que este poderia ser mais usado pelo professor.
A estratégia denominada “seis chapéus do pensamento” tem
como objetivo analisar tomadas de decisão, considerando diferentes
pontos de vista, ou seja, seis formas de pensar sobre um determinado
assunto. Assim, são usados seis chapéus de cores diferentes e, de
22
SUMÁR I O
O site pode ser acessado em https://ptbr.padlet.com/
211
acordo com cada momento/situação, é utilizado o mais apropriado, pois
cada cor representa um estilo diferente de pensar. Dessa forma, quando
é usada determinada cor do chapéu de pensamento, muda-se também
a forma habitual de pensar para o que a cor do chapéu representa.
O grupo proponente, que ficou com a cor azul, dividiu a turma em
cinco grupos, designando uma cor para cada um. Seus componentes
solicitaram que cada colega viesse para a aula vestindo uma camisa
ou algum objeto que identificasse a cor que lhe foi determinada, bem
como enviou o estilo de pensamento que deveria ser adotado no
decorrer da análise do problema a ser proposto.
A primeira tarefa do grupo proponente foi solicitar que todos
os alunos abrissem a câmara para que as pessoas identificassem os
componentes das respectivas cores (branco, preto, azul, vermelho,
amarelo e verde). Então, um dos proponentes leu a situação
problema a ser analisada e resolvida e solicitou que os colegas
que vestiam ou carregavam algo de cor branca fizessem a sua
análise conforme descrição da cor (fatos concretos). Em seguida, o
grupo com a cor verde analisou a situação de acordo com o estilo
proposto (apresentação de ideias criativas); após os de cor amarela
(enumerar vantagens), os de cor preta (enumerar desvantagens), os
de cor vermelha (uso da emoção/sentimentos). E, no final, o grupo
proponente, que tinha a cor azul, fez um fechamento da situação.
A maioria dos alunos não conhecia a estratégia, inclusive
os componentes do grupo proponente. Os alunos observaram a
dificuldade de alguns colegas em adotar o estilo de pensamento
determinado pela cor. Nesses momentos, o grupo que estava no papel
de professor relembrava que era necessário se concentrar no estilo
definido pela cor. Todos consideraram a estratégia viável para as aulas
virtualizadas. Como dificuldades, apontaram-se algumas situações,
como a não abertura da câmara, podendo prejudicar em parte o
desenvolvimento dessa estratégia.
SUMÁR I O
212
A estratégia grupo de verbalização e observação (GV/GO)
possibilita “o desenvolvimento de várias habilidades, tais como: verbalizar,
ouvir, observar, dialogar, trabalhar em grupo” (MASETTO, 2003, p. 115).
Nessa estratégia, o professor divide a turma em dois grupos de alunos,
sendo um de verbalização (GV) de um tema/problema, e o outro de
observação (GO). Ato contínuo, organiza a sala em dois círculos, um
interno, em que fica o GV; outro externo, o GO. Então, aquele verbaliza,
expõe, discute um tema, enquanto este observa, registra conforme
a tarefa que o professor atribuiu a esse grupo. Em seguida, o GO
apresenta as considerações de acordo com a tarefa proposta. Depois,
podem-se inverter os papéis dos dois grupos. Ao final, o professor faz o
fechamento, discutindo os principais pontos do tema em estudo.
A preocupação maior desse grupo era o planejamento, em
como aplicar essa estratégia, uma vez que, no ambiente do Google
Meet, não seria possível organizar os dois círculos. Assim, aplicou-a,
usando como tema central uma discussão acerca do retorno
presencial às aulas, por meio de uma notícia veiculada em site da
Web. Os colegas foram divididos em duas salas e, nelas, em dois
outros grupos (GV e GO). Ao final, as quatro equipes se reuniram
novamente em uma única sala, e os proponentes procederam às
discussões finais. Mesmo com a constante troca de ambientes, os
estudantes alegaram que tal estratégia pode ser muito produtiva
em todos os níveis de ensino desde que o tema escolhido esteja de
acordo com os interesses e a faixa etária dos alunos.
A estratégia Phillips 66, conforme Anastasiou e Alves (2015), é
uma atividade em grupos em que são realizadas a análise e a discussão
de um tema/problema. Ela consiste em dividir a turma em seis grupos,
com seis membros, que, durante seis minutos, discutem um tema/
problema, dispondo de seis minutos para apresentar as conclusões.
Essa estratégia pode ser usada tanto “para momentos de mobilização
quanto para a elaboração de sínteses. Permite feedback ao professor
SUMÁR I O
213
a respeito de dúvidas dos estudantes sobre um assunto estudado ou
em discussão” (ANASTASIOU; ALVES, 2015, p. 94).
O grupo proponente dessa estratégia fez uso de uma
entrevista acerca dos problemas econômicos gerados pela
pandemia em função do distanciamento social e a impossibilidade
de determinadas áreas econômicas seguirem operando. Ela
proporcionou ampla discussão, inicialmente em pequenos grupos
e, por fim, em grande grupo. No entanto, a avaliação final evidenciou
que os seis minutos não foram respeitados por todos, razão por que
o debate se estendeu mais do que o previsto.
CONCLUINDO
A oferta da disciplina de modo virtualizado permitiu que fossem
elencadas algumas possibilidades e limitações. Com relação às
primeiras, tanto no ensino presencial como na forma virtualizada, as
estratégias têm suas potencialidades e desafios. Há que se atentar
para a importância de o professor conhecer os passos da estratégia
antes de usá-la, bem como ter definido os objetivos que pretende atingir
e o contexto em que será desenvolvida. Além disso, é fundamental
que ele selecione e combine estratégias, identificando as principais
dificuldades nos percursos de aprendizagens dos discentes. Assim,
terá chances de adaptá-la à sua prática pedagógica de forma que seus
resultados sejam produtivos à aprendizagem do aluno.
Entende-se que os resultados adquiridos superaram as
expectativas, tendo em vista que os estudantes – eles também
professores – esperavam, com o curso da disciplina, obter
informações/ideias acerca de estratégias de ensino. Por esse motivo,
reitera-se que este estudo é parcial e datado, não sendo possível
SUMÁR I O
214
emitir generalizações. Não se pode afirmar que, caso fosse aplicada
a estudantes dos Ensinos Fundamental e Médio, por exemplo,
produziria os mesmos resultados. Entretanto, configura-se em mais
um elemento a ser utilizado na virtualização, pois, em meio a tantas
incertezas, desafios, alterações, mudanças, estamos, segundo
considera Wandscheer (2020, p. 245), em processo de reinvenção
“diariamente, viramos youtubers, editores de vídeos, com os celulares
que temos, com a qualidade de internet que disponibilizamos”.
As limitações foram evidenciadas quando os estudantes não
conseguiam acompanhar adequadamente as aulas, em função
de problemas com conexão. Em determinados momentos, alguns
não tinham acesso à sala virtual, relatando que, em seus locais de
moradia, o sinal era restrito e, em algumas horas do dia, inexistente.
Outros, frequentemente, não faziam uso do vídeo, restringindo-se ao
microfone, pois, desse modo, poderiam interagir com os colegas e
professores. Houve momentos em que compartilhar documentos na
tela também se mostrou difícil e demandou tempo, já que o sinal de
internet era considerado “fraco” pelos estudantes.
Em síntese, diante deste cenário de pandemia em que estamos
vivendo, seguimos (re)pensando os processos de ensino, pois, de
acordo com Valle e Marcom (2020, p. 151),
Neste momento histórico os professores têm se constituído
artesãos da sua prática, descobrindo caminhos, possibilidades,
inventando, adaptando e experimentando recursos e diferentes
formas de intervenção num processo de tentativa x erro x
acerto. Afinal, estamos vivenciando um processo permeado por
incertezas, fragilidades, desafios, para o qual não estávamos
preparados para exercer a docência, onde certezas, crenças,
concepções e práticas se tornaram instáveis, voláteis,
colocadas em evidência e muitas vezes em questionamento
pela sociedade, mas que merecem ser revisitadas, refletidas e
ressignificadas diante do tão propagado “novo normal”.
SUMÁR I O
215
REFERÊNCIAS
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processos de ensinagem. Joinville: Univille. p. 11-38, 2015.
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de Inovações como Suporte à Extensão de Práticas Educativas. Anais... do
XXII SBIE – XVII WIE, 2011.
MASETTO, M. T. Competência pedagógica do professor universitário. São
Paulo, SP: Summus, 2003.
OLIVEIRA, M. S. L. et al. Diálogos com docentes sobre ensino remoto e
planejamento didático. Recife: EDUFRPE, 2020.
ROSA, R.; CECÍLIO, S. Educação e o uso pedagógico das tecnologias
da informação e comunicação: a produção do conhecimento em análise.
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objeto educacional digital no curso de graduação em enfermagem. Revista
Gaúcha de Enfermagem. Porto Alegre, v. 28, n. 2, p.185-192, 2007.
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Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000.
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competências para ensinar em tempos de pandemia. In: PALÚ, J., SCHÜTZ,
J. A., MAYER, L. (Org.) Desafios da educação em tempos de pandemia. Cruz
Alta: Ilustração, p. 139-153, 2020.
WANDSCHEER, K. T. Ensino Remoto: um caminhar de possibilidades
educativas. In: PALÚ, J., SCHÜTZ, J. A., MAYER, L. (Org.) Desafios da
educação em tempos de pandemia. Cruz Alta: Ilustração, p. 235-246, 2020.
SUMÁR I O
216
Capítulo 12
12
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA,
CURRÍCULO E CURSO
TÉCNICO AGRÍCOLA
Neila de Toledo e Toledo
Neila de Toledo e Toledo
EDUCAÇÃO
MATEMÁTICA,
CURRÍCULO E CURSO
TÉCNICO AGRÍCOLA
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.217-235
INTRODUÇÃO
Este capítulo apresenta os resultados de uma pesquisa
desenvolvida com o propósito de analisar os efeitos do discurso
da tecnociência presentes na Educação Matemática praticada na
disciplina de Matemática e na Educação Matemática gestada nas
disciplinas técnicas do curso Técnico em Agropecuária do IFRSSertão23, na década de 198024 e na atualidade (no período de 2008
até 2015). Para isso, o material de pesquisa foi produzido a partir de
entrevistas25 com egressos desses dois momentos, de documentos
institucionais e de materiais escolares. As bases teóricas que, neste
estudo, sustentam o exercício analítico empreendido sobre o material
de pesquisa estão construídas a partir, principalmente, de noções
advindas das ideias de Ludwig Wittgenstein, que correspondem ao
que é conhecido como período tardio de sua obra.
Nas últimas décadas, o capitalismo e a ciência, por meio da
nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia digital etc. interferem em e
acarretam transformações nos modos de conceber a vida e de fazer
ciência (BOCASANTA; KNIJNIK, 2016). Este novo entendimento de
ciência que emergiu junto com a modernidade, nomeada por Latour
(2011) como tecnociência, provocou mudanças na prática científica,
SUMÁR I O
23
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Campus
Sertão (IFRS-Sertão) originou-se da Escola Agrotécnica Federal de Sertão (EAFS), em
decorrência do plano de reconfiguração da Rede Federal de Educação Profissional e
Tecnológica (RFEPT), desencadeado juntamente com a política de sua expansão, na
criação dos Institutos Federais no Brasil. A instituição localiza-se no munícipio de Sertão RS (TOLEDO, 2017).
24
A escolha por esse recorte temporal e não outro se deu em função de ter sido os anos 80
o marco principal da modernização do campo brasileiro. Já a opção pelo momento atual,
a partir dos anos de 2000, porque foi nesse momento que ocorreu a significativa expansão
dessa modernização (FILHO, 2014).
25
Este estudo tem o parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Unisinos, e o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, deliberado pelo Comitê. Para preservar o
anonimato dos participantes da pesquisa, escolhi identificá-los ao longo da pesquisa como
Carlos e Luis, quando se trata do período da década de 1980, e como Jean, Gabriel e
Maria, quando analiso o que chamo de momento atual (de 2008 até 2015).
218
de modo que o conhecimento científico deixou de ser entendido como
um fim e um bem em si mesmo para se transformar em um meio para
outras finalidades (econômicas, políticas e sociais).
A tecnociência contemporânea representa o entrelaçamento da
produção de conhecimento científico, das técnicas e do capitalismo no
interior da racionalidade neoliberal vigente (TOLEDO et al., 2018). Na
atualidade, estudos (BOCASANTA; KNIJNIK, 2016) mostram o lugar
privilegiado que a educação escolarizada e não escolarizada ocupa na
busca por tecnocientifizar (todos) os indivíduos e a sociedade, ou seja,
a tecnociência em nossos tempos é posicionada no centro do processo
educativo como um meio de garantia do progresso socioeconômico
do indivíduo e da nação. Cabe, então, indagar: como a formação do
técnico agrícola do IFRS-Sertão é atingida por essas configurações?
Em particular, na área da Educação Matemática, como isso se realiza?
Conforme mostra o trabalho de Valero (2013a), na
contemporaneidade, os discursos da Educação Matemática, por
meio da matemática escolar, fabricam um “sujeito racional, objetivo,
universal” comprometido em tornar-se um “cidadão cosmopolita
moderno” (VALERO, 2013b, p. 9, tradução minha). Assim, analiso
os efeitos produzidos pelo discurso da Educação Matemática na
produção das subjetividades dos sujeitos escolares, bem como os
modos como esse discurso agiu sobre os estudantes, conduzindo as
suas condutas e fazendo-os conduzir a si mesmos (autogovernar-se),
ou seja, governando a todos e a cada um, subjetivando-os de acordo
com a racionalidade de seu tempo.
Nessa linha de entendimento, uma das verdades postas em
movimento na área da Educação Matemática é a de “que a matemática
é poderosa e a Educação Matemática empodera” (KNIJNIK; VALERO;
JØRGENSEN, 2014, p. 2, tradução minha). Na analítica realizada por
alguns pesquisadores (VALERO; KNIJNIK, 2015; KNIJNIK; VALERO;
JØRGENSEN, 2014), fazer uso dessas discussões na área da
SUMÁR I O
219
Educação Matemática possibilita expandir o entendimento de como
a Educação Matemática “fabrica a criança desejada nas sociedades
contemporâneas” (VALERO; KNIJNIK, 2015, p. 33).
Em outras palavras, trata-se de considerar “[...] um discurso
produzido em diferentes esferas da vida social, por meio de políticas
da educação pública, programas escolares, livros didáticos, de
pesquisa, a prática de sala de aula, exames e assim por diante”
(KNIJNIK; VALERO; JØRGENSEN, 2014, p. 3, tradução minha). Essas
áreas não se apresentam isoladas; pelo contrário, interagem umas
com as outras na produção de verdades que moldam e compõem o
discurso da Educação Matemática (KNIJNIK; VALERO; JØRGENSEN,
2014). A seguir, discorro sobre o processo de produção do material
de pesquisa e o referencial teórico-metodológico.
CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO
Para fins de análise, no presente estudo, considerei como material de pesquisa entrevistas (realizadas no período de maio de 2015
a dezembro de 2016) com três recém-formados e dois ex-alunos que
frequentaram o curso nos anos 80, documentos institucionais e materiais escolares (cadernos e avaliações da disciplina de Matemática)
desses alunos. A estratégia analítica posta em ação para operar com
esse material se orientou pela análise do discurso em uma perspectiva foucaultiana. Seguindo as formulações de Foucault, considero a
noção de discurso “como práticas que formam sistematicamente os
objetos de que falam” (FOUCAULT, 2013, p. 60), e não como um “[...]
puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras: trama obscura
das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras” (FOUCAULT, 2013, p. 59). Para o filósofo, discurso é “[...] um conjunto de
enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva” ou um
SUMÁR I O
220
“número limitado de enunciados para os quais podemos definir um
conjunto de condições de existência” (FOUCAULT, 2013, p. 143).
No decorrer das entrevistas, escolhi, inspirada em Souza (2015,
p. 48), formular uma questão (chamada pelo autor de “motivadora”) para
dar início às entrevistas, seguida de outras perguntas cujas respostas
poderiam contribuir para a investigação. A questão “motivadora” foi:
“relate sobre a sua formação no curso Técnico em Agropecuária
– IFRS-Sertão: que lembranças o curso traz à tona?”. A partir dela,
os participantes narraram sua trajetória profissional como técnicos
agrícolas e detalharam sua formação no IFRS, comentando sobre as
aulas das disciplinas da formação técnica e da formação básica.
Cada uma das entrevistas foi gravada após autorização para
tal e todas as entrevistas foram transcritas na íntegra. Além disso,
cada uma das entrevistas teve duração aproximada de 200 minutos.
A respeito da escolha dos recém-formados técnicos agrícolas
do Campus Sertão, destaco que os três foram indicados por um
professor da instituição, da área de formação técnica, que os
conhecia por terem sido alunos que se destacavam na participação,
muitas vezes voluntária, em projetos de pesquisa e extensão e em
monitorias das disciplinas. Os egressos da década de 1980 foram
selecionados a partir da indicação de uma professora do Campus
que estudou na época na instituição. Decidi entrevistar só as
pessoas que residiam no mesmo município do Rio Grande do Sul,
pois ficaria mais acessível o deslocamento para as entrevistas.
Logo após as primeiras análises das transcrições, organizei
os dados em uma tabela que possibilitou conhecer de forma mais
detalhada as informações contidas nas entrevistas, o que foi me
oportunizando fazer cruzamentos e perceber recorrências discursivas
entre esses dados. Em seguida, resolvi voltar a entrar em contato com
os entrevistados com a finalidade de esclarecer melhor alguns aspectos
e fazer “novas” perguntas. Alguns sujeitos da pesquisa entregaram a
SUMÁR I O
221
mim, no primeiro contato que fiz com eles, em agosto de 2015, alguns
cadernos, provas e trabalhos de várias disciplinas cursadas durante
o Ensino Técnico Agrícola no IFRS-Sertão. Na segunda rodada de
entrevistas que realizei com os participantes do estudo, utilizei esse
material escolar na tentativa de fazê-los relembrar das aulas, de suas
vivências escolares etc. Além disso, para essas “novas” entrevistas, usei
a seguinte estratégia: apresentei a entrevista transcrita ao entrevistado
e solicitei que lesse e completasse (ou suprimisse) alguma ideia. A
partir disso, novas questões eram feitas por mim. Na próxima sessão,
mostro alguns resultados e discussões deste estudo.
ALGUNS RESULTADOS E DISCUSSÕES
Na análise do material de pesquisa que a seguir apresento,
examino os efeitos do discurso da tecnociência presentes na Educação
Matemática praticada na disciplina de Matemática e da Educação
Matemática gestada nas disciplinas técnicas do curso Técnico em
Agropecuária do IFRS-Sertão. Levando em conta essa analítica, a
questão a ser respondida refere-se a como “[...] a maquinaria escolar está
instituindo novos processos de subjetivação e fabricando novos sujeitos”
(VEIGA-NETO, 2008, p. 55), em particular, com relação à Educação
Matemática presente no espaço e tempos estudados nesta pesquisa.
Trata-se de pesquisar as mudanças que estão acontecendo
“[...] nas máquinas, artefatos e dispositivos que, ao mesmo tempo que
transformam a si mesmos, transformam (diretamente) os sujeitos que
tomam para si e (indiretamente) a sociedade” (VEIGA-NETO, 2008,
p. 55). Veiga-Neto (2008, p. 5) enfatiza que é por meio da educação
que os indivíduos na contemporaneidade são “[...] introduzidos em
um grupo social e moldados pelas formas-de-vida ali partilhadas, de
modo a imergir nas condições materiais e nos jogos de linguagem que
são singulares e próprios do grupo que os recebe”.
SUMÁR I O
222
Um primeiro resultado produzido pelo exercício analítico que
realizei com os documentos – Projeto Pedagógico do Curso (IFRS,
2011) e Plano Pedagógico (BRASIL, 1980) – e, em especial, os
documentos relativos à disciplina de Matemática, constatei que tanto
no material atual como no que estava em vigor nos anos de 1980, a
lista de conteúdos da disciplina Matemática coincidia. No documento
dos anos de 1980, não se especificam detalhes, como objetivo(s) da
disciplina ou referências bibliográficas, ao contrário do documento
atual, que apresenta essas especificações.
Os trechos retirados dos cadernos de Matemática do segundo
ano do curso – do recém-formado e do egresso de 1983 – indicam a
presença do formalismo nas definições de ciclo trigonométrico e de
circunferência e suas medidas, bem como na explicitação do conceito
de cilindro. Considerando os dois tempos analisados no trabalho,
uma mesma ordenação no processo de ensino se faz presente
em cada conteúdo abordado: primeiro, o conceito é enunciado; a
seguir, há um ou mais exemplos e, em seguida, listas de exercícios,
pautadas por questões, na maioria das vezes, semelhantes ou iguais
aos exemplos. Assim como apontado por Giongo (2008), também
em minha análise documental percebi o estabelecimento de uma
ordem, uma hierarquia e uma sequência para a Matemática escolar,
que regula o modo de pensar dos futuros técnicos agrícolas. Isso me
fez pensar que “operações de seleção e hierarquização foram postas
em ação” (GIONGO, 2008, p. 141) no curso, em ambos os momentos
estudados, as quais acabaram instituindo uma determinada maneira
de ministrar os conteúdos da disciplina Matemática.
Nos dois períodos estudados neste estudo, identifiquei
uma quantidade significativa de exercícios após cada conteúdo
apresentado. Esses exercícios eram semelhantes aos exemplos
trabalhados pela professora e, por isso, prezavam por rigor, ordem,
abstração e formalismo. Quando me refiro a exercícios semelhantes,
SUMÁR I O
223
digo que eles tinham um enunciado similar, ou o enunciado idêntico
ao dos exemplos, somente com alteração dos valores numéricos. As
operações matemáticas expressas no material escolar analisado foram
efetuadas com o auxílio de “algoritmos escritos, que se sustentam por
uma racionalidade específica, que exige o cumprimento de regras”
(WANDERER; KNIJNIK, 2008, p. 561).
Essa procura incessante pela ordem e por um saber rigoroso,
preciso, exato e absoluto fez com que a matemática, desde o século
XIX, fosse vista como “um instrumento essencial e poderoso no mundo
moderno”, o que a tornou um meio de validação em todas as áreas do
conhecimento (D’AMBROSIO, 2011, p. 75). A repetição exigida pelas listas
de exercícios da matemática conduz ao domínio dessa gramática: o uso,
ainda que, em certo sentido, livre, “é regido por regras que distinguem o
uso correto do incorreto das palavras” (CONDÉ, 2004, p. 89).
A seguir, apresento um conjunto de excertos que me
possibilitaram perceber como se dá o processo de aprender e ensinar
na disciplina de Matemática. Esse material também permite identificar
as enunciações recorrentes que circulavam no discurso da Educação
Matemática da disciplina de Matemática que indicam os jogos de
linguagem26 praticados ali.
Com relação à Educação Matemática praticada na disciplina
de Matemática no curso atual, fica evidenciada a existência de
26
SUMÁR I O
Para Wittgenstein, a concepção de linguagem está associada ao uso feito da palavra ou
expressão em determinado contexto, isto é, em uma específica forma de vida (CONDÉ,
1998). A significação de uma palavra emerge do uso que dela fazemos nas variadas
situações. Portanto, não existe uma única linguagem, mas “simplesmente linguagens”, isto
é, “uma variedade imensa de usos, uma pluralidade de funções ou papéis que poderíamos
compreender como jogos de linguagem” (CONDÉ, 1998, p. 86, grifos do autor). “Se a mesma
expressão linguística for usada de outra forma ou em outro contexto, sua significação poderá
ser outra, isto é, poderá ter uma significação totalmente diversa da anterior, dependendo do
uso no novo contexto” (CONDÉ, 1998, p. 89). A esse respeito, Wittgenstein salienta que se
pode, “para uma grande classe de casos de utilização da palavra ‘significação’ – se não para
todos os casos de sua utilização –, explicá-la assim: a significação de uma palavra é seu uso
na linguagem” (WITTGENSTEIN, 1999, § 43, p. 43, grifos do autor).
224
“bastante exercício”. Maria pontua que as listas de exercícios eram
“pra nós fazermos como tema de casa” e, “na próxima aula, a gente
corrigir junto” com a professora. Com relação ao número significativo
de “exercícios”, a recém-formada considera que “ajudava muito,
mas muito mesmo, a gente a aprender”. Desse modo, por meio
da lista de exercícios como tarefa de casa, “o professor conseguia
meio que analisar como que estava o andamento, como que estava
o nível da turma”. O quadro era o recurso usado com frequência
nas aulas de matemática. O livro didático é enfatizado pelos recémformados como ferramenta utilizada pelos professores em suas aulas
de matemática. Eles expressam, de modo recorrente, a ausência de
recursos tecnológicos nas aulas da disciplina de Matemática.
Outra questão pertinente, que emergiu do material de pesquisa
analisado, diz respeito aos jogos de linguagem que circulavam na
disciplina de Matemática nos dois momentos estudados. Com relação
a isso, apresento algumas enunciações extraídas do material de
pesquisa dos dois tempos estudados:
[...] eu decorava as fórmulas [...] se não for fazendo passo por
passo, se perde viu, se perde mesmo, tem que fazer passo
por passo mas, mesmo assim, tinha que decorar as fórmulas;
tem que ler o problema e prestar atenção, entender o que pede
no problema, pra ver qual usar [fórmula] (Carlos - Entrevista
realizada em fevereiro de 2016).
[...] colocando a fórmula primeiro e, no lugar do seno, quanto ele
vale, de acordo com o que a professora deu aqui no começo,
no enunciado da questão; por fim, vai fazendo, fazendo a conta,
e coloca aqui e passa pra cá [detalhes da resolução que ele
estava olhando no caderno] e até chegar à resposta (Jean Entrevista realizada em fevereiro de 2016).
[...] tem que fazer passo por passo e tem que seguir certinho
em cada linha, fazer uma coisa de cada vez [refere-se a uma
parte do cálculo] (Maria - Entrevista realizada em abril de 2016).
SUMÁR I O
225
[...] nas provas de matemática a professora cobrava tudo [...],
fórmulas de seno, cosseno; a exigência era a questão toda,
toda ela feita, todos os passos. Caso o aluno não seguisse o
modelo de resolução visto nas aulas, isto é, as orientações da
professora para resolver um cálculo, ela [professora] dava meia
questão (Luis - Entrevista realizada em fevereiro de 2016).
Acompanhando as ideias do segundo Wittgenstein (1999), ao
examinar esses fragmentos, observo que, nos jogos de linguagem
matemáticos praticados na disciplina de Matemática, é priorizado o
uso da escrita, da exatidão, da abstração e do formalismo, presentes
na matemática escolar. Assim, em conformidade com os critérios de
racionalidade gestados na forma de vida escolar.
Conforme observa Condé (2004), seguindo Wittgenstein,
o modelo de racionalidade é, em parte, resultado das “interações
entre os jogos de linguagem” (CONDÉ, 2004, p. 58). A linguagem
articula-se no “interior de uma forma de vida”, estabelecendo “[...]
a racionalidade que nos possibilita determinar o que aceitamos, de
acordo com os jogos de linguagem e sua gramática, como correto
ou não”. Sobre a gramática de uma forma de vida, ela “[...] não é
fechada e é a partir desse aspecto que ela possui, em medidas
diversas, ramificações que se constituem como ‘semelhanças de
família’, podendo interconectar-se com gramáticas de outras formas
de vida” (CONDÉ, 2004, p. 29-30). É por meio da “[...] gramática e dos
jogos de linguagem que se situa a possibilidade do estabelecimento
de critérios de racionalidade que possam ser compreendidos e até
mesmo aceitos por diferentes formas de vida” (CONDÉ, 2004, p. 30).
As pesquisas produzidas pela autora (KNIJNIK, 2015) têm
mostrado que “[...] a lógica que rege os jogos de linguagem
matemáticos da forma de vida escolar é bem outra da lógica que rege
os jogos de fora da escola” (KNIJNIK, 2015, p. 18), visto que a “primeira
tem as marcas da abstração, do formalismo, da transcendência,
enquanto a lógica da vida cotidiana não escolar, por exemplo, é
SUMÁR I O
226
marcada pela contingência...” (KNIJNIK, 2015, p. 18). Pode-se pensar
as matemáticas produzidas nas diferentes formas de vida como jogos
de linguagem que se constituem por meio de “múltiplos usos” e,
assim, ganham sentido em seus usos (KNIJNIK, 2015, p. 14).
Volta-se agora a atenção às disciplinas que compõem o currículo
da formação técnica do curso analisado neste estudo, em especial, sobre
a Educação Matemática presente nas disciplinas técnicas. A partir do
exame das entrevistas, concluí que, enquanto a Educação Matemática
da disciplina de Matemática manteve a sua abordagem abstrata e formal
tradicional, a Educação Matemática associada às tarefas agrícolas,
praticada nas disciplinas técnicas, passou a incluir novos recursos
tecnológicos. Estes excertos apontam para essa conclusão:
O professor de mecanização agrícola trabalhava bastante com
GPS até, como na matéria dele nós tínhamos que usa muito
GPS, ele incentivava muito e ensinava usar os aplicativos de
celular pra usar no trabalho. [...] também em Gestão rural, o
professor usava o Excel pra controle dos gastos e tudo tipo
fazer a contabilidade da nossa propriedade rural. [...] Ah!
A disciplina de topografia, assim, a gente tirava os pontos
pelo teodolito moderno, o professor disse que eram os mais
modernos e tinham comprado novinhos a pouco tempo, [...]
mas esses aparelhos também dão os cálculos mais exatos
(Maria - Entrevista realizada em fevereiro de 2016).
Eu tive que fazer um dimensionamento de sistema de irrigação
na aula de irrigação, por exemplo, eu dizia pra o professor é muito
mais fácil fazer uma planilha no Excel, tu digita a fórmula e os
dados e ele dá pronto. [...] Por exemplo em irrigação tem muito
cálculo pra fazer, tem muita fórmula, você precisa dimensionar
reservatório, precisa dimensionar bomba, [...] teve algumas
aulas que nós fazíamos os cálculos no Excel, o professor levava
nós no laboratório de informática e ensinava nós fazer no Excel
(Gabriel - 2ª Entrevista realizada em novembro de 2015).
O fato de a Educação Matemática das disciplinas técnicas
ter incluído novas tecnologias em suas práticas pedagógicas me
SUMÁR I O
227
fez questionar o que foi indagado por Veiga-Neto (1999, p. 5): nos
tempos e espaços estudados nesta pesquisa, é possível dizer que
o currículo das disciplinas técnicas é um “artefato que em termos
gerais, quais (seriam) os objetivos da escolarização na e para a
lógica neoliberal?”. Acompanhando o autor, considero que a escola,
inserida nas tramas do neoliberalismo, tem como uma das suas
funções “criar/moldar o sujeito-cliente” (VEIGA-NETO, 1999, p. 15).
Isso não implica, necessariamente, a demissão daquele
propósito que conduziu a escolarização na “[...] Modernidade: uma
escola pensada – e ainda vem funcionando – como uma imensa
maquinaria de confinamento disciplinar, a maior encarregada pela
ampla normalização das sociedades modernas” (VEIGA-NETO, 1999,
p. 15). Em ambos os casos, a escola deve desempenhar papéis
fundamentais, de modo que prepare sujeitos que sejam capazes de
“[...] compreender e manejar — ou, pelo menos, sobreviver em... —
cenários fantasmagóricos e de constante tensão entre o individual e o
cooperativo, entre o local e o global” (VEIGA-NETO, 1999, p. 18).
Nessa linha de entendimento, Knijnik (2015, p. 12) afirma
que a “lógica neoliberal que conforma o mundo globalizado de
hoje opera em cada um de nós”. Nesse sentido, cada uma de
nós está diretamente envolvido na condução da conduta das “[...]
novas gerações e na condução de nossas próprias condutas em
uma determinada direção, a saber, na constituição de indivíduos
que aprendam, por exemplo, a ser flexíveis, competitivos,
empreendedores de si mesmos...” (KNIJNIK, 2015, p. 12).
A seguir, apresento alguns fragmentos extraídos das entrevistas
realizadas com um egresso da década de 1980, a fim de evidenciar
aspectos dos modos como a Educação Matemática operava nas
disciplinas técnicas nos anos de 1980.
SUMÁR I O
228
Pesquisadora: Estou olhando aqui, o caderno de topografia de
um aluno que estudou na mesma época que o senhor. Deixa
lhe mostrar [mostrei]. Será que o profissional, o técnico agrícola,
faz todos esses cálculos como está aqui [mostrei] no caderno?
Luis: Hum! Mas hoje o profissional não faz mais à mão, tudo
é informatizado, tem programa de computador pra fazer tudo,
tem GPS, aparelhos modernos. Lá em 1988 e 89, quando eu
comecei como técnico na cooperativa, nessa época, a topografia
era assim, óh! Eu caminhava 7 dias pra fazer demarcação dos
limites das propriedades, fazendo terraço. E [pensativo] na aula
dessa matéria tinha umas quantas fórmulas e eu resolvia a mão
esses cálculos e eu sabia resolver tudo [mostrou no caderno
de topografia], com tudo isso de cálculo como aparece aqui
[mostrou no caderno].
Pesquisadora: Era usado algum instrumento nas aulas práticas
de topografia?
Luis: Hum! Às vezes, tinha um ou outro teodolito simples [...].
Olha aí o caderno [mostrou o caderno], tinham muitas fórmulas
pra resolver à mão e nós encontrávamos uns valores altos e
na aula prática nós usávamos um teodolito simples e básico e
esses valores encontrados no caderno nós ajustava, deixava
redondinho! Mas nem sempre nós usávamos o teodolito, porque
[pensativo] tinham poucos, poucos mesmo [teodolitos] e, a turma
era grande. Acho que por isso o professor quase nem levava
o teodolito pra aula no campo [aula prática]. Eu sei que tinha
fórmulas pra calcular. Daí como nós fazíamos? O professor levava
nós pra o campo [refere-se as aulas práticas] e nós fazíamos
tudo a mão, com trena grande, contando os passos, marcando
os pontos com umas estacas e tal. Hoje em dia, você digita os
pontos no GPS e pronto! Na época que eu estudava [na EAFS]
e me formei, e logo que comecei a trabalha a gente calculava a
mão. Tinha que entrar no mato, atravessar rio e marcar os pontos,
levava dias pra fazer o que hoje se faz numa tarde. [...]. Era muito
precário os instrumentos na minha época de escola [EAFS]. Luis
- 2ª Entrevista realizada em outubro de 2015).
Esses excertos estão em conformidade no que se refere
ao processo de modernização do campo, iniciado na década de
SUMÁR I O
229
1960 e intensificado nos anos 1980. Segundo referem autores
como Pizzolatti (2004) e Buainain (et al., 2014), a tecnologia no
setor agropecuário brasileiro e mundial continua avançando
significativamente nas últimas três décadas e, com isso,
modifica os processos de produzir no campo. Isso faz com que o
produtor rural e os profissionais envolvidos com o setor busquem
aperfeiçoamento constante, para que aprendam por toda a vida.
Nesse cenário, as “práticas de gestão” da propriedade rural são
fundamentais para que o agricultor possa competir e manter-se competitivo no mercado agrícola vigente (PIZZOLATTI, 2004, p. 10), ou seja,
os “empreendimentos rurais precisam ter características empresariais”
para se manterem “viáveis técnica e economicamente” (PIZZOLATTI,
2004, p. 10). Essas considerações me levam a afirmar que, no passado,
as práticas pedagógicas na Educação Matemática gestada nas disciplinas técnicas acompanharam o processo inicial de modernização do
campo, uma vez que elas estavam em sintonia com a racionalidade daquela época, em que os recursos tecnológicos eram ainda incipientes.
Na atualidade, a Educação Matemática presente na formação
técnica está em concordância com o discurso da tecnociência. Isso
não é surpreendente, tendo em vista o cenário atual de modernização
e os efeitos produzidos pelo discurso da tecnociência. As práticas
pedagógicas governam os sujeitos escolares na tentativa de produzir
um futuro técnico agrícola com condições de atuar no cenário atual
do campo brasileiro. Trata-se de um contexto inserido nas tramas
da racionalidade neoliberal, que indicam ao profissional do setor
agropecuário que, para jogar o jogo neoliberal, é necessário ser um
sujeito que “aprenda para toda a vida”.
Em consonância com as ideias acima expostas, afirmo que, na
Educação Matemática gestada nas disciplinas técnicas em sala de
aula, era priorizado o uso da escrita e o formalismo, presentes também
na disciplina de Matemática. Mas não só isso. Também ali estavam
SUMÁR I O
230
presentes jogos de linguagem que, por exemplo, realizavam um “ajuste”
dos valores numéricos encontrados. Acompanhando Knijnik e Giongo
(2009), afirmo que, nas disciplinas técnicas, eram postos em prática
jogos de linguagem associados a duas diferentes lógicas: aqueles
praticados nas aulas teóricas, que possuíam semelhanças de família
com os da matemática escolar. Por sua vez, os jogos de linguagem
matemáticos presentes nas atividades agropecuárias, ou seja, nas
aulas práticas, apresentavam semelhanças de família com aquelas
gestadas na forma de vida camponesa (KNIJNIK, 2006a, 2006b).
A esse respeito, a chamada “matemática das disciplinas
técnicas” coloca em uso a aproximação – o “olhômetro” para referir-se às
estimativas – e a oralidade. Essa expressão foi referenciada por alunos
e professores entrevistados no estudo realizado por Knijnik e Giongo
(2009). Diferentemente da assepsia, do formalismo e da abstração
presentes na Educação Matemática da disciplina Matemática, os
alunos “[...] valiam-se de regras diferentes daquelas conformadas
nessa disciplina, quando lhes era solicitado que resolvessem, nas
disciplinas técnicas, problemas ligados à lida do campo” (KNIJNIK;
GIONGO, 2009, p. 71). Assim, mais do que obedecer às regras
ditadas pela matemática da disciplina Matemática, “[...] a matemática
das disciplinas técnicas estava amalgamada às práticas cotidianas
produtivas e sustentada por uma gramática cujas regras incluíam
arredondamentos e estimativas” (KNIJNIK; GIONGO, 2009, p. 72).
PALAVRAS FINAIS
Nesta seção, que encerra o artigo, destaco mais uma vez
que o propósito deste estudo foi examinar os efeitos do discurso
da tecnociência presentes na Educação Matemática praticada na
disciplina de Matemática e nas disciplinas técnicas do Curso Técnico
SUMÁR I O
231
em Agropecuária do IFRS-Sertão. A análise do material de pesquisa
– entrevistas com egressos do curso, documentos institucionais e
materiais escolares – que teve, principalmente, como balizas teóricas
as noções advindas das ideias de Ludwig Wittgenstein, mostrou que,
nas últimas três décadas, a listagem de conteúdos da disciplina de
Matemática não se alterou. A Educação Matemática da disciplina
Matemática manteve sua abordagem abstrata e formal, e a Educação
Matemática presente nas disciplinas técnicas alinhou-se com o
discurso da tecnociência, incluindo recursos tecnológicos.
Resumidamente, no mundo globalizado em que vivemos, a
tecnociência vinculada à racionalidade neoliberal é sustentada por
determinadas verdades que atuam sobre os sujeitos, conduzindo-os
e fazendo-os conduzir a si mesmos. Nesse contexto, a tecnociência
assume uma posição de destaque na produção do conhecimento
científico e é concebida como fundamental para que indivíduos e a
nação tenham um futuro próspero. Dessa forma, como apresentei ao
longo do texto, esse cenário reverbera no currículo escolar de curso
Técnico Agrícola do IFRS-Sertão, de modo que “[...] a tecnociência
é inevitável. Ela é uma máquina, uma locomotiva em marcha, e sua
marcha e neutral e imanente: não pode e não deve ser interrompida.
Não pode e não deve ser obstaculizada, dirigida, politizada”. Em
outras palavras, é parte do “[...]funcionamento de um dispositivo que
contribui, ao mesmo tempo, para modular a construção dos saberes,
a constituição dos sujeitos, o funcionamento do governo de si e dos
outros” (CASTELFRANCHI, 2008, p. 10).
SUMÁR I O
232
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SUMÁR I O
235
Capítulo 13
13
FORMAÇÃO DE RECURSOS
HUMANOS PARA AS ÁREAS
TECNOCIENTÍFICAS
Giovana Alexandra Stevanato
Giovana Alexandra Stevanato
FORMAÇÃO
DE RECURSOS HUMANOS
PARA AS ÁREAS
TECNOCIENTÍFICAS
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.236-254
INTRODUÇÃO
Este capítulo apresenta algumas reflexões sobre a formação de
recursos humanos para as áreas tecnocientíficas na contemporaneidade. Tais reflexões foram construídas na pesquisa de doutorado, realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no período de 2014 a 2018, que resultou na tese intitulada “Formação de recursos humanos para as áreas
tecnocientíficas: uma análise do Programa Ciência sem Fronteiras”.
O objetivo do estudo era analisar o Programa Ciência sem Fronteiras
(CsF), buscando compreender seu caráter performativo e sua relação
com o Dispositivo da Tecnocientificidade. O material de pesquisa foram
os documentos do Programa “Ciência Sem Fronteira” (CsF) disponibilizados no site do Programa. A estratégia analítica utilizada para examinar o material de pesquisa foi a análise do discurso em Foucault e a
governamentalidade, como uma ferramenta analítica, para compreender a proveniência e emergência do Programa Ciência sem Fronteiras.
O filósofo Michel Foucault (2008, p. 55) trata os discursos
não mais como “conjuntos de signos (elementos significantes que
remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que
formam sistematicamente os objetos de que falam”. Para o filósofo,
“certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais
que utilizar esses signos para designar coisas” (FOUCAULT, 2008, p.
55). As condições que possibilitam o aparecimento de um determinado
objeto de discurso são importantes para se “dizer alguma coisa” sobre
ele, ou ainda para possibilitar que várias pessoas possam dizer coisas
diferentes, em uma determinada época (FOUCAULT, 2008).
As estratégias criadas pelo Governo Federal podem ser
entendidas como uma rede que compõe determinados dispositivos,
que tem como finalidade conduzir a conduta de todos e de cada
SUMÁR I O
237
um para um determinado fim. As tecnologias governamentais podem
ser tanto do governo da educação quanto da transformação dos
indivíduos, ao governo das relações familiares e ao governo das
instituições (REVEL, 2011, p. 74). Uma das justificativas para esta
pesquisa se refere à importância que a tecnociência vem assumindo,
de modo cada vez mais radical, na contemporaneidade, e os esforços,
em nível global, que têm sido feitos pelos governos, em anos mais
recentes, para educar cientificamente as novas gerações.
EDUCAÇÃO PARA AS ÁREAS
TECNOCIENTÍFICAS
Na contemporaneidade, no plano mundial, ciência, tecnologia
e inovação são consideradas alavancas que serviriam para
impulsionar o desenvolvimento e o progresso científico e tecnológico
das nações. No Brasil estudos demonstram que existe uma “fé” que
a ciência é responsável pelo progresso do País e que irá resolver e
atender aos anseios da sociedade (BOCASANTA, 2014), e, portanto,
que a “a ciência, a tecnologia e a inovação são imperativas para o
desenvolvimento do País” (ALMEIDA, 2012, p. 22).
Há três décadas, o Brasil desenvolve uma política de ciência e
tecnologia e mais recentemente de inovação, que tem favorecido
o aumento da qualificação do parque de pesquisa e de inovação
tecnológica e, consequentemente, vem gerando riquezas ao País,
resultado de um trabalho conjunto entre inúmeros atores: governo
e sociedade, essa representada, dentre outros, pela academia,
setor empresarial, entidades de categorias profissionais e do
terceiro setor (ALMEIDA, 2012, p. 22).
Segundo evidencia a autora, o Governo Federal Brasileiro
investiu, nas últimas décadas, fortemente nas políticas e nos
programas de formação de recursos humanos qualificados nas
SUMÁR I O
238
competências e habilidades necessárias para o avanço da ciência
na “Sociedade do Conhecimento”27. Sobre o tema, Silva (2015a,
p. 385) escreve que “nas condições da nomeada sociedade do
conhecimento, aspira-se que a formação de jovens estabeleça maior
aproximação com as questões de seus interesses, com os avanços
tecnológicos e com o mercado profissional”. Uma das estratégias para
o avanço do conhecimento tecnocientífico e inovador é a formação
de recursos humanos, pois nessa sociedade o conhecimento é o
capital mais importante do trabalhador (SILVA, 2015a).
Uma das características da sociedade contemporânea é o
papel central do conhecimento nos processos de produção, ao
ponto do qualificativo mais freqüente hoje empregado ser o de
sociedade do conhecimento. Estamos assistindo à emergência
de um novo paradigma econômico e produtivo no qual o fator
mais importante deixa de ser a disponibilidade de capital, trabalho,
matérias-primas ou energia, passando a ser o uso intensivo de
conhecimento e informação (BERNHEIM, 2008, p. 7).
Sobre essa questão, Gadelha (2009) evidencia que, nesta
nova “modalidade de governamentalidade” onde se produz e se
acumula o chamado “capital humano”, a formação e capacitação
são tidas como elementos estratégicos, pois, não só aumentam a
produtividade do “indivíduo-trabalhador, mas também a maximização
crescente de seus rendimentos ao longo da vida” (GADELHA, 2009,
p. 177). Nesta governamentalidade centrada na economia e no
mercado, o princípio de inteligibilidade busca:
(...) programar estrategicamente as atividades e os
comportamentos dos indivíduos; trata-se, em última instância,
de um tipo de governamentalidade que busca programá-los e
controlá-los em suas formas de agir, de sentir, de pensar e de
situar-se diante de si mesmos, da vida que levam e do mundo
em que vivem, através de determinados processos e políticas
27
SUMÁR I O
Peter Drucker foi um dos primeiros a discutir o tema “Sociedade do Conhecimento”,
no período de 1964 a 1998. Para o autor, tratava-se de uma sociedade baseada no
conhecimento, na produção e distribuição de informação e conhecimento.
239
de subjetivação: novas tecnologias gerenciais no campo da
administração (management), práticas e saberes psicológicos
voltados à dinâmica e à gestão de grupos e das organizações,
propaganda, publicidade, marketing, branding, literatura de
autoajuda etc. Esses processos e políticas de subjetivação,
traduzindo um movimento mais amplo e estratégico que
faz dos princípios econômicos (de mercado) os princípios
normativos de toda a sociedade, por sua vez, transformam o
que seria uma sociedade de consumo numa sociedade de
empresa (sociedade empresarial, ou de serviços), induzindo
os indivíduos a modificarem a percepção que têm de suas
escolhas e atitudes referentes às suas próprias vidas e às de
seus pares, de modo a que estabeleçam cada vez mais entre si
relações de concorrência (GADELHA, 2009. p. 178).
Nesse sentido, o Governo, as instituições de ensino, as
empresas e organizações não governamentais estão desenvolvendo
políticas públicas, programas, estratégias e ações voltadas à formação
educacional e profissional dos indivíduos. “[...] num curto espaço de
tempo, solucionar problemas de interesse nacional” (ALMEIDA, 2012,
p. 22). Serão essas pessoas com qualificação que posicionarão o
Brasil em um lugar estratégico para competir internacionalmente
com os países desenvolvidos. A autora aponta ainda que os países
que investem no fortalecimento e na ampliação de capital humano
altamente qualificado “se destacam científica e tecnologicamente em
relação aos demais” (ALMEIDA, 2012, p. 22).
Em relação aos investimentos em Educação Científica, Silva
(2015a, p. 396) destaca que estes “investimentos no Ensino Médio
têm se constituído como um dos principais campos de investimento
das atividades atuais da Unesco”, que tem duas possibilidades de
ação: “ora contribuindo para o desenvolvimento econômico do País,
ora desencadeando práticas que popularizem o acesso à ciência e à
tecnologia como forma de despertar talentos” (SILVA, 2015a, p. 396). O
autor observou que, nas duas ênfases, existe um entrelaçamento entre
as práticas educativas tecnocientíficas e o desenvolvimento econômico.
SUMÁR I O
240
Países como o Brasil têm que realizar um enorme esforço para
avançar na geração e utilização do conhecimento científico e tecnológico,
criando capacidades e competências em áreas estratégicas e produzindo estratégias para avançar na estruturação de uma base econômica
apoiada em um processo endógeno e dinâmico de inovação (BRASIL,
2012). Esse avanço só será possível se a industrialização se apoiar no
desenvolvimento científico e tecnológico e avançar nas políticas de CT&I:
“O avanço da industrialização tem que se apoiar fundamentalmente, no
desenvolvimento científico e tecnológico endógeno e em sua incorporação crescente ao processo produtivo” (BRASIL, 2012, p. 11).
Neste contexto, onde ciência, tecnologia e inovação são predominantes para o avanço técnico e para o desenvolvimento do país,
o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante, em
seu discurso de posse, em janeiro de 2011, assinalou que o principal
desafio do Brasil para se tornar efetivamente desenvolvido e com uma
economia eficaz e competitiva é se preparar para a “sociedade do
conhecimento” e que alcançar esse desafio envolve combinar educação de qualidade para todos, pesquisa científica, inovação e inclusão
social (BRASIL, 2012, p. 9). Nessa perspectiva, o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (MCTI) ampliou, no período dos governos
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), o
apoio à infraestrutura de pesquisa no Brasil mediante a implantação
de políticas públicas voltadas ao incentivo da ciência e da tecnologia,
investindo em novos projetos e programas que fomentassem o desenvolvimento científico e tecnológico, como por exemplo, o Programa
Ciência sem Fronteiras (CsF), como uma estratégia de governo, para
formação de recursos humanos para as áreas tecnocientíficas.
SUMÁR I O
241
POLÍTICAS DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Nas últimas décadas, o mundo presenciou uma notável
ampliação da utilização na produção industrial, dos avanços realizados
em diversas esferas do conhecimento científico, especialmente nas
áreas de automação, microeletrônica e informatização. Esta nova onda
de inovação, a chamada “Terceira Revolução Industrial”28, ocorreu
em um grupo pequeno de países que estiveram na vanguarda do
desenvolvimento científico: os Estados Unidos, o Japão e as principais
economias da Europa, principalmente a Alemanha, expandindose mais recentemente a Coréia e a China (BRASIL, 2012, p. 9). O
progresso técnico penetrou transversalmente em diversos segmentos
da estrutura produtiva desses países, modificando os padrões de
organização, “gerando aumento da produtividade e redução dos
custos unitários de produção, aumentando o campo tecnológico e a
competitividade entre esse núcleo e as economias emergentes ou de
menor desenvolvimento relativo” (BRASIL, 2012, p. 9).
Nesse contexto, o Brasil vem, no decorrer de décadas,
realizando esforços para se enquadrar nos moldes em que se encontra
organizada a economia mundial moderna, no sentido de avançar na
produção e utilização de conhecimentos técnicos e científicos, criando
capacidades e competências em áreas consideradas estratégicas
para atingir tal patamar tecnocientífico. Uma das linhas de ação para
esse fim é por meio da formação de recursos humanos (BRASIL, 2012).
Na contemporaneidade, o discurso tecnocientífico está
entranhado em todos os setores da sociedade, nas escolas, nas
universidades, nas empresas, nos meios de comunicação e em
diversas áreas do conhecimento, como aquele que será responsável
pelo progresso dos sujeitos e consequentemente da nação. A ciência
28
SUMÁR I O
O que Echeverría (2003) chama de Revolución tecnocientífica.
242
e tecnologia, nos últimos trinta anos, vêm passando por inúmeras
transformações gerando avanços, principalmente nas áreas das
Ciências da Saúde, das Engenharias e das tecnológicas. A relação
entre ciência e tecnologia está cada vez mais imbricada o que levou
alguns teóricos a denominarem de Tecnociência. O uso do termo
Tecnociência29 vem sendo usado na sociedade contemporânea em
substituição do binômio, ciência e tecnologia, entretanto, muitas vezes,
sem a reflexão devida dada a complexidade que o termo aborda.
As políticas públicas são “manifestações da governamentalização do Estado moderno, envolvidas com (e destinadas a) uma
maior economia entre a mobilização dos poderes e a condução das
condutas humanas” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 955). Neste
contexto, o CsF se apresentou como uma política pública em ciência, tecnologia e inovação destinada a conduzir as condutas de seus
participantes. Como observa Pereira (2013, p. 57), o Programa “[...]
é um conjunto de ações introduzidas para a solução de problemas
políticos, que incorporam a agenda governamental [...]”. As políticas
públicas são criadas para “[...] solucionar problemas e dar resposta
a demanda social [...]”, portanto, pode-se dizer que o CsF foi criado
para atender a uma “urgência” de promover a internacionalização da
ciência, tecnologia e inovação, bem como contribuir para o desenvolvimento científico, tecnológico e competitivo do País, na tentativa
de alavancar ranking de produção científica mundial (CsF, 2011a).
29
SUMÁR I O
O termo “Tecnociência”, mesmo sendo usado com muita frequência nos últimos anos,
pelos pesquisadores e cientistas, nos meios acadêmicos, de pesquisa, de laboratório,
nas indústrias e na sociedade em geral, não é referendado em nenhum momento nos
documentos oficiais do Governo Federal, entre eles do Ministério da Ciência e Tecnologia e
do Ministério da Educação, nos programas e nas políticas de governo, analisados nesta tese.
243
O PROGRAMA CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS
O Programa Ciência sem Fronteiras (CsF) foi lançado em dia
26 de julho de 2011, na 38ª reunião do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social (CDES), em Brasília, com a presença da,
então, presidenta da República, Dilma Rousseff, do ministro Aloízio
Mercadante, do MCTI, do presidente do CNPq, Glaucius Oliva, entre
outras autoridades e empresários (CsF, 2011a). O Programa foi uma
iniciativa do Governo Federal em parceria com o MCTI e MEC, por
meio de suas respectivas instituições de fomento, Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e
Secretarias de Ensino Superior e de Ensino Tecnológico.
Uma das finalidades era promover a consolidação, expansão
e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da
competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade
internacional (CsF, 2011a). Foi oficialmente instituído pela Presidência
da República por meio do Decreto n. 7.642, de 13 de dezembro de
2011, com os objetivos de:
I - promover, por meio da concessão de bolsas de estudos,
a formação de estudantes brasileiros, conferindo-lhes
a oportunidade de novas experiências educacionais e
profissionais voltadas para a qualidade, o empreendedorismo,
a competitividade e a inovação em áreas prioritárias e
estratégicas para o Brasil;
II - ampliar a participação e a mobilidade internacional de
estudantes de cursos técnicos, graduação e pós-graduação,
docentes, pesquisadores, especialistas, técnicos, tecnólogos e
engenheiros, pessoal técnico-científico de empresas e centros
de pesquisa e de inovação tecnológica brasileiros, para o
desenvolvimento de projetos de pesquisa, estudos, treinamentos
e capacitação em instituições de excelência no exterior;
SUMÁR I O
244
III - criar oportunidade de cooperação entre grupos de pesquisa
brasileiros e estrangeiros de universidades, instituições de
educação profissional e tecnológica e centros de pesquisa de
reconhecido padrão internacional;
IV – promovera cooperação técnico-científica entre pesquisadores brasileiros e pesquisadores de reconhecida liderança científica residentes no exterior por meio de projetos de cooperação
bilateral e programas para fixação no País, na condição de pesquisadores visitantes ou em caráter permanente;
V - promover a cooperação internacional na área de ciência,
tecnologia e inovação;
VI - contribuir para o processo de internacionalização das instituições de ensino superior e dos centros de pesquisa brasileiros;
VII - propiciar maior visibilidade internacional à pesquisa
acadêmica e científica realizada no Brasil;
VIII - contribuir para o aumento da competitividade das empresas
brasileiras; IX - estimular e aperfeiçoar as pesquisas aplicadas
no País, visando ao desenvolvimento científico e tecnológico e
à inovação (BRASIL, 2011).
Esses objetivos convergem em uma mesma rede discursiva
os objetivos do CsF apresentados na Página do Programa30: investir
na formação de pessoal altamente qualificado nas competências
e habilidades necessárias para o avanço da sociedade do
conhecimento; aumentar a presença de pesquisadores e estudantes
de vários níveis em instituições de excelência no exterior; promover
a inserção internacional das instituições brasileiras pela abertura de
oportunidades semelhantes para cientistas e estudantes estrangeiros;
ampliar o conhecimento inovador de pessoal das indústrias
tecnológicas; atrair jovens talentos científicos e investigadores
altamente qualificados para trabalhar no Brasil (CsF, 2016).
30
SUMÁR I O
http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf
245
Para atingirem essas propostas, foram elencadas algumas
áreas de conhecimento consideradas prioritárias e estratégicas:
Engenharias e demais áreas tecnológicas; Ciências Exatas e da
Terra; Biologia, Ciências Biomédicas e da Saúde; Computação e
Tecnologias da Informação; Tecnologia Aeroespacial; Fármacos;
Produção Agrícola Sustentável; Petróleo, Gás e Carvão Mineral;
Energias
Renováveis;
Tecnologia
Mineral;
Biotecnologia;
Nanotecnologia e Novos Materiais; Tecnologias de Prevenção e
Mitigação de Desastres Naturais; Biodiversidade e Bioprospecção;
Ciências do Mar; Indústria Criativa (voltada a produtos e processos
para desenvolvimento tecnológico e inovação); Novas Tecnologias
de Engenharia Construtiva; Formação de Tecnólogos (CsF, 2016).
Quando de sua emergência, o CsF foi apresentado com uma
previsão de atingir a meta de até 101 mil bolsas, entre seu período de
lançamento e o ano de 2015. Essa meta tinha o intuito de promover
intercâmbio, de modo que alunos da Graduação e Pós-Graduação
pudessem realizar estágio no exterior, com a finalidade de manter
contato com sistemas educacionais competitivos em relação à
tecnologia e inovação. Além disso, buscava atrair pesquisadores do
exterior que quisessem se fixar no Brasil ou estabelecer parcerias
com os pesquisadores brasileiros nas áreas prioritárias definidas no
Programa, bem como criar oportunidade para que pesquisadores
de empresas recebessem treinamento especializado no exterior. Das
101.000 bolsas oferecidas, 75.000 foram financiadas com recursos
do Governo Federal e 26.000 concedidas com recursos da iniciativa
privada. No planejamento traçado pelo Governo Federal para o
período entre 2011 e 2015, o CsF ocupou posição de destaque com
um investimento inicial previsto de R$ 3,2 bilhões (CsF, 2016).
O CsF possuiu acordos e parcerias com diversas instituições
de ensino, programas de intercâmbio e institutos de pesquisa
de diversos países ao redor do mundo. A ideia, como consta nos
SUMÁR I O
246
documentos, seria que os estudantes e pesquisadores tivessem
formação nas melhores instituições e grupos de pesquisa, os mais
bem-conceituados para cada grande área do conhecimento de
acordo com os principais rankings internacionais.
Podiam participar do CsF Instituições de Ensino Superior
(IES), públicas ou privadas, constituídas sob as leis brasileiras e
com sede administrativa no Brasil, vinculadas ao Acordo de Adesão
ao Programa Ciência sem Fronteiras (SILVA, 2012). A IES teria que
assumir o compromisso de reconhecimento dos créditos obtidos
pelos estudantes na instituição estrangeira, como parte do currículo
disciplinar de formação dos seus estudantes nos respectivos cursos
de graduação no Brasil, ficando responsável por acompanhar todo o
processo de seleção, estadia e retorno dos participantes.
Foram oferecidas várias modalidades de bolsas no exterior: graduação sanduíche, para acadêmicos(as) de cursos de graduação nas
áreas prioritárias do CsF; tecnólogo, para acadêmicos(as) de cursos superiores de tecnologia nas áreas prioritárias do CsF; desenvolvimento
tecnológico e inovação, para pesquisadores, especialistas e técnicos
em atividades de aperfeiçoamento, reciclagem ou treinamento no exterior, por meio da realização de estágios e cursos; e ainda para, doutorado sanduíche, doutorado pleno e mestrado profissional. O principal
critério de seleção para os participantes do CsF foi o mérito acadêmico.
Para os alunos da Graduação, foi a nota do Exame Nacional de Ensino
Médio (ENEM) e do Sistema de Seleção Unificada (SISU). A pontuação
mínima para participar era de 600 pontos (CsF, 2016).
Também foram oferecidas modalidades de bolsas no país,
para Pesquisador Visitante Especial e para Jovens Talentos. Para
Pesquisador visitante Especial, teria que ser pesquisador com liderança
internacional, que viria ao Brasil por pelo menos um mês a cada ano
por, no máximo, três anos, e para Jovens Talentos eram para jovens
pesquisadores doutores com atuação altamente relevante em pesquisa
nas áreas e nos temas definidos como prioritários no CsF (CsF, 2016).
SUMÁR I O
247
Os documentos de avaliação do Programa Ciência sem
Fronteiras, Documento Técnico contendo estudo analítico, teórico
e metodológico sobre o impacto e a organização do Programa
Ciência sem Fronteiras nas políticas públicas da Educação Superior”
(BRASIL, 2013), e o Relatório Nº 21 - CCT, de 2015, Avaliação de
Políticas Públicas, Programa Ciência sem Fronteiras (BRASIL,
2015) apontam vários problemas durante a execução do Programa.
Esses documentos apontaram muitos pontos que deveriam ser
reformulados, abrangendo desde a saída dos brasileiros do país,
durante a estadia no exterior e depois no retorno ao Brasil. Segundo
consta nos documentos, não houve um sistema de acompanhamento
e acolhimento, faltaram orientações adequadas quanto às atividades
disponibilizadas pelas universidades no exterior, para subsidiar os
bolsistas nas suas atividades, bem como quando do retorno, da
aplicabilidade dos conhecimentos adquiridos aqui no país. Outro
ponto foi a barreira com o idioma, nesse caso, durante o Programa foi
criado o Idioma sem Fronteiras, para sanar ou amenizar o problema.
Quanto à distribuição das bolsas nas modalidades, o que se
pode perceber foi que a ênfase do CsF foi realmente a modalidade
Graduação. Esse fato mereceu bastante destaque nos relatórios
de avaliação, pois se questionou o fato de os cursos de PósGraduação, onde supostamente se faz pesquisa, não terem uma
maior concentração de bolsas. Ademais, um fato que percebi durante
a análise dos documentos do CsF foi que, nos critérios para participar
do Programa, não havia a necessidade de participar de um grupo de
pesquisa no Brasil. Enviar estudantes com vínculos em grupos de
pesquisa iria contribuir para a internacionalização, não só individual
como foi o caso do Programa, mas das universidades como um todo,
trazendo resultados mais concretos ao país.
Os documentos de avaliação não tiveram o objetivo somente de
apontar problemas; muitos pontos positivos do CsF foram levantados
SUMÁR I O
248
e devem ser levados em consideração. O Programa Ciência sem
Fronteiras foi o maior programa de formação de recursos humanos para
a ciência e para a tecnologia, não só em investimentos financeiros, mas
também em termos de abrangência. O CsF atingiu todas os níveis de
ensino, todas as regiões do Brasil, e enfim todo o continente, com mais
de 101.000 estudantes e um investimento financeiro no montante de R$
10,5 bilhões, valor bem maior do que o estipulado no seu lançamento.
Esse investimento se justificou quando se pensa em tratar o
campo da Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) como uma opção
estratégica para o desenvolvimento científico e tecnológico do país.
Ademais, diante dos números apresentados nos documentos, a
participação de estudantes brasileiros sai de 2.977 estudantes em 2004,
para 43.900 em 2014 e 101.446 em 2016, em universidades do exterior.
Por exemplo, o Documento Técnico (BRASIL, 2013) apresenta um
ranking dos países que mais enviaram estudantes aos EUA, no período
de 2010 a 2011. Os três primeiros colocados neste ranking são a China,
a Índia e a Coréia do Sul, países com amplo desenvolvimento técnicocientífico e econômico. Em 2011, o Brasil encontrava-se em 14º lugar
do ranking dos países, com 8.777 estudantes enviados aos EUA. Em
2013/14, o Brasil ficou em 6º lugar no mesmo ranking das universidades
que enviam estudantes aos Estados Unidos, com 13.286 estudantes e,
em 2014/15, com 23.675 estudantes. No total, foram 27.821 estudantes
somente aos EUA, no período de vigência do Programa (BRASIL,
2013). Para a Comissão responsável pelas avaliações, ainda seria uma
situação muito inferior em relação aos quatro primeiros colocados do
ranking, mas o avanço foi, sem dúvidas, produto do CsF.
Diante desses dados, o Documento Técnico (BRASIL, 2013)
aponta que o CsF causou impactos considerados significativos em
relação ao incremento das bolsas para cursos no exterior. Ademais,
também causou impacto na ampliação dos convênios entre
agências de pesquisa e universidades; no aumento da visibilidade
SUMÁR I O
249
internacional do Brasil; no interesse das universidades de outros
países em abrirem escritórios no Brasil, e inicia uma forte jornada
na área das relações internacionais (BRASIL, 2013). Nesse sentido,
“permitir que esse impulso se enfraqueça seria lamentável para
a internacionalização da educação superior brasileira e para o
desenvolvimento da CT&I em nosso País” (BRASIL, 2015, p. 42).
O Programa Ciência sem Fronteiras constituiu-se como uma das
estratégias utilizadas pelo Governo Federal para ampliar e fortalecer
o avanço da pesquisa científica e tecnológica, da inovação e da
competitividade, por meio da mobilidade internacional (CsF, 2011a),
compondo, desse modo, o que Bocasanta (2014, p. 104) nomeou de
dispositivo da tecnocientificidade, no sentido de que “[...] conduz a
conduta dos sujeitos e, para isso, utiliza-se, dentre outras estratégias, da
disseminação de uma ideia de universalização do progresso individual
e social a partir da democratização do acesso à ciência e tecnologia”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O CsF emergiu em um cenário de contínuo e crescente incentivo
às políticas públicas de formação de recursos humanos voltados para
a ciência e para a tecnologia, constituindo-se como uma estratégia
do Governo concebida com o objetivo de ampliar a base de recursos
humanos qualificados do país. O foco foi ampliar o conhecimento
tecnológico, científico e inovador, por meio da cooperação entre países
com reconhecimento científico de alto padrão, o que poderia propiciar
desenvolvimento científico e tecnológico, maior visibilidade e maior
competitividade do Brasil em relação a outros países, com ênfase na
mobilidade internacional de estudantes.
SUMÁR I O
250
Os documentos do CsF enunciaram que o desenvolvimento
científico e tecnológico é o responsável por colocar o país em um
patamar competitivo economicamente e que uma das estratégias para
isso seria a formação de recursos humanos “altamente qualificados”.
Desse modo, a análise dos documentos me proporcionou compreender
que a finalidade do CSF foi a formação e capacitação de recursos
humanos, com elevada qualificação, em universidades estrangeiros,
oferecendo formação técnico-científica em áreas de conhecimento
definidas como prioritárias e estratégicas para o suprimento das
demandas de crescimento e desenvolvimento do Brasil.
Também ficou evidenciado que os estudantes brasileiros tiveram a oportunidade de novas experiências educacionais e profissionais voltadas para a qualidade, o empreendedorismo, a competitividade e a inovação em áreas prioritárias e estratégicas para o Brasil,
visando ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação por
meio do intercâmbio e da mobilidade internacional. Conhecer profundamente o Programa, com base em seus documentos e documentos
correlatos, assim como produções acadêmicas relacionadas a ele,
acompanhado de um grande esforço intelectual, possibilitou-me entendê-lo como uma estratégia de Governo, criada para promover o
desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da inovação. Ficou também evidenciado na construção da tese que o Programa Ciência sem
Fronteiras é uma das linhas de força do dispositivo da tecnocientificidade, que opera, via performatividade, na condução das condutas da
população no sentido de encaminhar as novas gerações para as carreiras técnico-científicas, que possibilitarão ao País se desenvolver em
áreas estratégicas, melhor se posicionando no cenário internacional.
Corroborando com o que Bocasanta (2014, p. 29) escreveu,
entendo que o dispositivo da tecnocientificidade “opera por meio
de múltiplas estratégias que visam ao governamento de todos e de
cada um” e, como a autora ressalta, “a condução da conduta não se
SUMÁR I O
251
efetiva de forma imposta ou violenta. Ela ocorre em relação a sujeitos
que se deixam conduzir. Isso também envolve a captura da alma,
do desejo e do interesse de todos e de cada um” (2014, p. 108).
A autora ainda conclui que o dispositivo da tecnocientificidade visa
a “subjetivar os indivíduos de determinado modo”, a partir de um
conjunto de estratégias (BOCASANTA, 2014, p. 189).
O Programa Ciências sem Fronteiras é parte do dispositivo de
tecnocientificidade, pois faz parte das estratégias que o compõem,
porquanto teve como finalidade inserir o maior número possível de
indivíduos nas carreiras tecnocientíficas. Durante a pesquisa, no
escrutínio do material de pesquisa, ao analisar depoimentos dados
pelos bolsistas, inseridos nas notícias do Programa, na página
oficial do CsF, nos projetos realizados no exterior pelos bolsistas,
e o que eles têm desenvolvido, quando de seu retorno ao Brasil,
compreendi que o CsF, como parte da rede que compõe o dispositivo
da tecnocientificidade, opera na constituição do que nomeei de
subjetividades tecnocientificizadas.
REFERÊNCIAS
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e da CAPES dos Programas em Engenharias e Ciência da Computação
no período de 1996 a 2006. (Doutorado em Políticas Públicas, Cultura e
Sustentabilidade). Universidade de Brasília, Brasília: 2012.
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Adultos e os conhecimentos tecnocientíficos: analisando as relações entre
Ciência, Tecnologia e Matemática. Horizontes, v. 34, número temático, p. 8192, dez. 2016.
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dezembro de 2011. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2011-2014/2011/Decreto/D7642.htm> Acesso em: 10 nov. 2015.
SUMÁR I O
252
BRASIL. Ministério de Ciência Tecnologia e Inovação. Estratégia Nacional
de Ciência, Tecnologia e Inovação 2012-2015. Balanço das Atividades
Estruturantes 2011. Brasília-DF: MCTI, 2012. Disponível em: < ttp://
livroaberto.ibict.br/218981.pdf> Acesso em: mar. 2018
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Documento
Técnico contendo estudo analítico, teórico e metodológico sobre o impacto e
a organização do Programa Ciência sem Fronteiras nas políticas públicas da
Educação Superior. Brasília-DF: MEC, 2013. Disponível em: <http://portal.
mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13938produto-1-ciencia-sem-fronteira-pdf&category_slug=setembro-2013pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 23 abr. 2016.
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Comunicação e Informática. Relatório Nº 21 CCT, de 2015. Avaliação
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cienciasemfronteiras.gov.br%2Fweb%2Fcsf%2Fnoticias%3Fp_p_id%3D101_
INSTANCE_Dh91%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_
mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-2%26p_p_col_
count%3D1%26_101_INSTANCE_Dh91_advancedSearch%3Dfalse%26_101_
INSTANCE_Dh91_keywords%3D%26_101_INSTANCE_Dh91_
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REVEL, J. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
SUMÁR I O
253
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educação (matemática). In: WANDERER, F.; KNIJNIK, G. (org.). Educação
matemática e sociedade. São Paulo: Editora da Física, 2016, p. 37-53.
SUMÁR I O
254
Capítulo 14
14
AVANÇOS TECNOCIENTÍFICOS,
MATEMÁTICA ESCOLAR E
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Fernanda Zorzi
Juliana Meregalli Schreiber
Karine Pertile
Fernanda Zorzi
Juliana Meregalli Schreiber
Karine Pertile
AVANÇOS TECNOCIENTÍFICOS,
MATEMÁTICA ESCOLAR
E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.255-274
INTRODUÇÃO
Neste capítulo, buscamos problematizar a formação continuada
de professores para a Matemática escolar pensando na sua relação com
os avanços científicos e tecnológicos contemporâneos, em especial, no
contexto atual vivido no ano de 2020 - a pandemia causada pelo novo
coronavírus. Bocasanta e Knijnik (2018) explicitam que a tecnologia é, ao
mesmo tempo, decorrência dos avanços científicos e suas condições
de possibilidade, ou seja, a tecnologia não é uma aplicação nos processos investigativos, mas os avanços tecnológicos têm oferecido possibilidades para novas pesquisas nas mais variadas áreas do conhecimento.
A dependência da tecnologia na realização de atividades
cotidianas está ainda mais acentuada no contexto pandêmico. Hoje,
essa ênfase ocorre, mais fortemente, também no contexto escolar.
As mudanças decorrentes desse processo fazem emergir e acentuar
discussões sobre os conhecimentos científico e tecnológico. Autores
como Latour (2000) e Díaz (2007) aprofundaram essas discussões ao
inaugurarem os termos tecnociência e pós-ciência, respectivamente.
Silva (2012) ajuda-nos a entender que a ciência e seus diferentes
modos de organização e expressão estão em constante modificação
e andam na direção de uma articulação com a produção tecnológica.
Díaz (2000), ao definir a pós-ciência, diz-nos que a tecnologia
marca os rumos da ciência “não só porque a tecnologia digital com
enorme potencialidade atravessa absolutamente todas as disciplinas
científicas, mas também porque a informática surgiu diretamente como
tecnologia” (DÍAZ, 2000, p. 20). Essa autora explora a mudança de
ênfase da ciência na atualidade no sentido de que, embora a tecnologia
seja filha da ciência, ela “[...] tem ocupado o lugar de verdade-poder
que, até meados do século passado, ocupava a ciência, entendida
como busca do conhecimento pelo conhecimento” (DÍAZ, 2000, p. 35).
SUMÁR I O
256
Knijnik (2016), ao mostrar que a tecnociência tem ocupado um
lugar central no mundo globalizado, salienta que não se pode, nos dias
de hoje, negar a introdução das novas gerações nos avanços científicos
e tecnológicos, ou seja, não há como impedir que aprendam a interpretar
cientificamente o mundo, no entanto, há de se questionar o fato de que
esse seja o único modo de interpretação. Ainda, para a referida autora,
é preciso possibilitar que as novas gerações questionem os riscos, as
vantagens e as transformações que esse “mundo tecnocientificizado”
pode trazer para suas vidas e para a sociedade.
De fato, não há como imaginar a vida, especialmente no
momento atual de isolamento social, sem os avanços e benefícios
que a ciência e a tecnologia proporcionaram, proporcionam e ainda
proporcionarão, nem deixar de considerar suas consequências.
Resta-nos, como sugere Martins (2012), participar das discussões
conceituais e morais a respeito da ciência atual, para pensar como
os jovens estão sendo introduzidos no mundo tecnocientífico
contemporâneo e, no contexto da educação escolar e da formação
de professores, pensar em como essas relações alteraram as
práticas pedagógicas, as relações sociais e de poder, dentro e fora
da escola. Com relação à constituição da docência, é necessário,
como sugerem Masschelein e Simons (2017, p. 109), “buscar que a
pedagogia se redesenhe à luz dos desafios contemporâneos”.
Para esses autores, a escola não é mais o único lugar onde se
aprende, mas “o lugar onde a sociedade se renova” (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2017, p. 161). Eles defendem que “o que estamos enfrentando
é a própria reinvenção da escola” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p.
161), na perspectiva do estudo, prática e pensamento. Considerando
o contexto pandêmico e as perspectivas sobre o retorno ao
convívio nas escolas no chamado “novo normal”, esses autores nos
conduzem a reflexões necessárias acerca dos processos de ensino
e de aprendizagem, especialmente no que concerne à autonomia, à
artesania e à autoria do pensamento intelectual do professor.
SUMÁR I O
257
No que diz respeito à relação entre a Matemática e o desenvolvimento científico e tecnológico, os estudos de Kalinke, Mocrosky
e Estephan (2013) mostraram que os matemáticos tiveram participação decisiva no desenvolvimento das novas tecnologias, de modo que
alguns matemáticos contribuíram para o nível de tecnocientificidade
que o mundo atual atingiu. De acordo com o estudo desenvolvido por
esses pesquisadores, a articulação entre Matemática e tecnologia
também repercutiu no contexto educacional, pois alguns educadores
matemáticos passaram, nas últimas décadas, a desenvolver estudos
e aplicar metodologias que fazem uso das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs), as quais interferem e modificam
as relações entre a Educação Matemática escolar e a tecnologia, e
podem promover melhorias no ensino de Matemática.
Na perspectiva desses autores, as TDICs são o modo mais evidente da presença, na sociedade contemporânea, da tecnologia, a qual
cresce em ritmo acelerado e vem se popularizando a cada dia. No que
concerne ao uso de tecnologias no âmbito escolar, esses autores afirmam que “os desenvolvimentos matemático e tecnológico acontecem
juntos” e, mais do que isso, “pode-se observar que sem o primeiro não
havia o segundo” (KALINKE; MOCROSKY; ESTEPHAN, 2013, p. 361).
Feitas essas considerações e na perspectiva de contribuir com
o campo da formação de professores e com a Matemática no contexto
escolar, neste capítulo problematizamos o que expressaram os professores que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental da Educação
Básica brasileira e estão em processo de formação continuada acerca
do ensino remoto em tempos de impedimento de interação social com
os estudantes, em tempos de pandemia de Covid-19.
O capítulo está assim organizado: na primeira seção,
apresentamos os caminhos metodológicos percorridos durante a
pesquisa; na segunda, as relações entre a Matemática escolar e as
SUMÁR I O
258
TDICs, e, por último, a análise das narrativas dos participantes na
perspectiva do referencial teórico aqui abordado.
CAMINHOS METODOLÓGICOS
O material de pesquisa examinado consiste em um conjunto de
narrativas sobre a Educação Matemática produzidas por professores
de Matemática de escolas públicas da Região Metropolitana da Serra
Gaúcha, com maior participação de docentes do município de Bento
Gonçalves – RS, os quais participaram de um curso de extensão
ofertado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Sul (IFRS) – Campus Bento Gonçalves, em 2020. Nossa
surpresa, ao analisar os dados informados pelos participantes, foi
que, além dos municípios para o qual o curso foi proposto, tais como
Bento Gonçalves, Boa Vista do Sul, Garibaldi, Nova Bassano, Nova
Prata, Santa Tereza e Veranópolis, todos da região, tínhamos um
participante de São Borja, município também do Rio Grande do Sul.
Pode-se dizer que a formação obteve uma boa abrangência
regional e contemplou o universo dos Anos Finais do Ensino
Fundamental, pois, dos 39 professores inscritos (64,1% de servidores
municipais e 35,9%, estaduais), 32 acessaram a plataforma Moodle
e, no momento da análise, 19 professores haviam respondido o
questionário inicial no Google Formulários. Os professores declararam
ter vínculo com 6 escolas da rede estadual, 11 da municipal, além de
três docentes atuarem nas duas redes e atuarem de 6º a 9º ano (12 em
6º, 12 em 7º, 17 em 8º e 12 em 9º).
O processo de formação continuada denominado
“Matemática Escolar e uso das TDICs: Formação de Professores”
ocorreu de forma remota, com reuniões quinzenais no Google Meet
SUMÁR I O
259
e acompanhamento de atividades na plataforma Moodle. Nos anos
anteriores, ocorreram formações voltadas para os docentes da
rede municipal da cidade de Bento Gonçalves – RS na modalidade
presencial, e o foco não era, especificamente, o uso de TDICs. Em
razão da pandemia, ocorreu a ampliação de vagas, com a inclusão
dos docentes da rede estadual, e as discussões foram direcionadas
para a temática em voga: o uso de tecnologias no ensino remoto.
O curso teve uma carga horária total de 30 horas e objetivou
dialogar com os docentes sobre a atualidade do uso das TDICs nas aulas
de Matemática e ampliar as possibilidades dos processos de ensino e de
aprendizagem por meio da proposição de alternativas diferenciadas para
o ensino de Matemática. Acompanharam o planejamento, a organização e
a avaliação do curso de extensão três estudantes do curso de Licenciatura
em Matemática e um licenciando em Pedagogia do Campus.
Para examinar o material empírico, foi utilizada a análise do
discurso, discutida pelo filósofo Michel Foucault, já amplamente
difundida em pesquisas da área da Educação. O discurso, segundo
evidencia o filósofo, geralmente designa “um conjunto de enunciados
que podem pertencer a campos diferentes, mas que obedecem,
apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns” (REVEL, 2011,
p. 41). Tais regras reproduzem “uma série de divisões historicamente
determinadas”, constituindo uma “ordem do discurso” que é “própria de
um período particular” e que tem uma “função normativa e reguladora”,
estabelecendo “mecanismos de organização real por meio da produção
de saberes, de estratégias e de práticas” (REVEL, 2011, p. 41). Uma
prática discursiva “não é uma ação concreta e individual de pronunciar
discursos” (VEIGA-NETO, 2011, p. 93), mas o conjunto de enunciados
que compõe o discurso e que se conecta com outros e mais outros.
Como instrumento de pesquisa, utilizamos questionários
semiestruturados, caracterizando-se por ter uma abordagem qualitativa.
O questionário foi criado e disponibilizado online, por intermédio do
SUMÁR I O
260
Google Formulários, um serviço gratuito para criação de formulários
on-line. O serviço é bastante eficiente, e a ideia de realizar a pesquisa
por meio dessa ferramenta permitiu o anonimato dos entrevistados de
forma a manter sigilo das respostas.
Na seção referente à análise do material de pesquisa,
apresentamos excertos das narrativas produzidas pelos participantes,
os quais estão identificados com números de acordo com a
classificação alfabética organizada pelo próprio Google Formulários,
no qual foi realizado o questionário. As narrativas selecionadas foram
colocadas na íntegra e aparecem no texto em itálico.
Para pensarmos sobre o âmbito da Matemática escolar na
contemporaneidade, traremos na próxima seção contribuições de
autores que apontam para o uso das TDICs na escola.
MATEMÁTICA ESCOLAR E TDICS
Nas últimas décadas, pesquisadores vêm discutindo o uso
de tecnologias em sala de aula e, também, no ensino a distância.
No entanto, nunca a preocupação sobre como inserir as TDICs no
processo de aprendizagem esteve tão destacada quanto no momento
atual, em que o processo de ensino não pode apenas deter-se em
aulas presenciais expositivas. Os professores têm buscado novas
formas de ensinar, por meio dessas tecnologias, já que a interação
presencial e o uso de material manipulativo com a supervisão dos
professores não são possíveis no atual cenário. Todavia, é neste
momento que os docentes estão pensando com mais propriedade
sobre o uso das TDICs no ensino da Matemática como um avanço
para o desenvolvimento do pensamento matemático.
SUMÁR I O
261
Borba e Villarreal (2005), ao apresentarem o conceito de seres-humanos-com-mídias, afirmam que o pensamento matemático se modifica
frente às tecnologias utilizadas, apontando uma série de aplicações para
novas tecnologias em atividades educacionais. Na perspectiva desses
autores, as TDICs podem ser geradores de novas formas de pensar e
abordar problemas matemáticos, dentre outras possibilidades.
Para Gravina e Basso (2011, p. 13), as TDICs disponibilizam
“diferentes ferramentas interativas que descortinam na tela do
computador objetos dinâmicos e manipuláveis”. Os autores afirmam
que a variedade de recursos tecnológicos disponíveis permite discutir
a inserção da escola na “cultura do virtual” (GRAVINA; BASSO, 2011,
p. 14, grifo dos autores). Quase uma década depois, os recursos e
a acessibilidade a eles tornam-se cada vez mais acessíveis. Temos
à disposição ferramentas interativas, capazes de representar objetos
denominados pelos autores como concretos-abstratos.
São concretos porque existem na tela do computador e
podem ser manipulados e são abstratos porque respondem
às nossas elaborações e construções mentais. Isto porque
consideramos que as mídias digitais se tornam realmente
interessantes quando elas nos ajudam a mudar a dinâmica
da sala de aula na direção de valorizar o desenvolvimento de
habilidades cognitivas com a concomitante aprendizagem da
Matemática (GRAVINA; BASSO, 2011, p. 14).
A partir dessa breve contextualização, sem nos estendermos
muito sobre os estudos realizados acerca do uso das TDICs para
o ensino de Matemática na Educação Básica, podemos dizer que
concordamos com os teóricos. Isso porque eles defendem o uso de
tecnologias como modo de mudar a dinâmica das aulas, valorizar
o desenvolvimento do pensamento matemático e de habilidades
cognitivas, pois podem fortemente contribuir para o processo de
ensino e de aprendizagem no contexto escolar.
SUMÁR I O
262
Contudo, não podemos perder de vista a necessária crítica acerca da perspectiva da lógica neoliberal. É ela que rege o mundo globalizado e os pilares atuais da educação brasileira, que se sustentam na
cultura da performatividade e da prescrição prevista na Base Nacional
Comum Curricular (BRASIL, 2017) voltada para o ensino de conteúdos,
esvaziada de conhecimentos. Essa perspectiva pode dificultar a artesania docente, principalmente na perspectiva de comprometer a autonomia intelectual do professor ao desenvolver sua prática pedagógica.
Outra questão importante a ser considerada na contemporaneidade é que a escola, como parte dessa sociedade, e o professor, em particular, têm sido, frequentemente, responsabilizados pelo
insucesso da educação, na perspectiva de tirar a responsabilidade
do Estado pelos índices insuficientes apresentados pelos estudantes
nas avaliações em larga escala. Nosso objetivo, a partir da articulação entre as ações realizadas no âmbito da Universidade e da escola
de Educação Básica, é pensar em caminhos possíveis para auxiliar
o professor que está em sala de aula a refletir sobre sua prática à luz
dos avanços científicos e tecnológicos. O próximo tópico apresenta
as impressões dos participantes da formação acerca do uso das tecnologias para o ensino de Matemática na sala de aula.
DO EXERCÍCIO ANALÍTICO
As expectativas e as razões que levaram os professores a
procurar esse curso de formação continuada podem ser definidas pelo
interesse no uso das tecnologias, para conhecer novas tecnologias,
possibilidade do uso interdisciplinar e troca de experiências e
ideias com outros professores que atuam na área da Matemática.
Destacamos três narrativas que mostram as expectativas: (a) participar
da formação para ampliar o conhecimento sobre TDICs e seu uso no
SUMÁR I O
263
ensino: “Conhecer apps e softwares que atraem os estudantes para
após utilizá-los em minha prática tanto no ensino presencial quanto
neste momento de ensino remoto” (P-01); (b) promover a articulação
com as demais áreas do conhecimento: “Espero ampliar meu
conhecimento a fim de aplicar de forma interdisciplinar” (P-02); (c)
socializar experiências de uso de tecnologias: “Conhecer a aprender
sobre possíveis recursos tecnológicos a serem usados em sala de
aula e trocar experiências e ideias sobre essas possibilidades” (P-03).
É perceptível a busca dos professores por conhecimentos
sobre as TDICs, a fim de dominar as tecnologias, e fazer destas um
bom recurso para o desenvolvimento de competências. Esse saber é
descrito por Mishra e Koehler (2006) como conhecimento tecnológico
e pedagógico de conteúdo, e vai muito além de apenas aprender a
usar ferramentas disponíveis.
O conhecimento tecnológico e pedagógico do conteúdo é a
base de um bom ensino com tecnologia e requer um entendimento
da representação de conceitos por meio de tecnologias; técnicas
pedagógicas que usam tecnologias de forma construtiva para
ensinar conteúdos; conhecimento do que torna os conceitos difíceis
ou fáceis de aprender e como a tecnologia pode ajudar a corrigir
alguns dos problemas que os alunos enfrentam; conhecimento
dos conhecimentos prévios dos alunos e teorias de epistemologia,
e conhecimento de como as tecnologias podem ser usadas para
construir sobre o conhecimento existente e para desenvolver novas
epistemologias ou fortalecer as antigas (MISHRA; KOEHLER, 2006).
Como os próprios autores apontam, da mesma forma que o
conhecimento de conteúdo e o conhecimento pedagógico eram
vistos como independentes antes dos estudos de Shulman (1986),
que discorrem sobre o conhecimento pedagógico do conteúdo, o
conhecimento da tecnologia é frequentemente considerado separado
do conhecimento pedagógico e do conteúdo (MISHRA; KOEHLER,
2006), o que é refutado pelos autores.
SUMÁR I O
264
Também analisamos as narrativas que expressam tensionamentos acerca do “ser professor” na contemporaneidade, em tempos de
isolamento social, fechamento (prudente) das escolas e ensino remoto.
Desse modo, buscamos entender o que expressam os professores que
atuam na Educação Básica que estiveram em processo de formação
continuada, quanto ao ensino remoto em tempos de impedimento de
interação social com os alunos, em função da Covid-19.
Quando questionados sobre os conhecimentos que mobilizaram para a efetivação do ensino remoto, os participantes mencionaram, majoritariamente, o conhecimento sobre ferramentas
tecnológicas e seu uso para tornar as aulas dinâmicas e atrativas.
As principais ferramentas mencionadas foram as plataformas Google Meet, Zoom, Jambord, Google Classroom, Mentimeter, oCam,
Zoom, Kahoot, pesquisa virtual, uso de formulários, organização de
apresentações, criação de vídeos, uso do WhatsApp, softwares matemáticos adequados para o ensino de cada conteúdo, além do uso
do computador ou do aparelho celular como “instrumento de trabalho”.Com relação à Matemática, foram citados o Geogebra e o Graphmática como ferramentas usadas para o planejamento das aulas.
Os excertos que seguem sintetizam as angústias e as
preocupações em relação ao ensino e à aprendizagem dos conceitos
matemáticos propostos pelos professores de maneira remota. As
narrativas expressam alguns tensionamentos, tais como a mudança
repentina dos processos educacionais e a falta de domínio de
ferramentas tecnológicas e o modo de pensar o tempo do professor
(planejamento, ensino, avaliação) e o tempo do aluno. Esses aspectos
são muito relevantes, também, para o contexto do ensino presencial.
Nesse sentido, a formação pode ser uma contribuição importante para
o “novo normal” para o período pós-pandemia, como expressam as
professoras nos excertos que seguem:
SUMÁR I O
265
Foi uma mudança repentina fazendo com que eu utilizasse
outras estratégias de aprendizagem para ensinar meus
alunos. Além de utilizar muitos vídeos no YouTube, vídeos
caseiros realizados por mim, tive que aprender a ser mais ágil
e valorizar o tempo, além de aprender a pensar o processo de
ensino e de aprendizagem de forma remota, sem interação
presencial com o aluno. Sinto-me um pouco frustrada por não
ter conhecimento dos instrumentos utilizados na tecnologia
de informação e comunicação, o que poderia auxiliar muito
nas minhas aulas de matemática. Com base nisso, este curso
será uma ótima oportunidade para obter esse conhecimento
e conseguir utilizar a tecnologia em minhas aulas ajudando na
contextualização do conteúdo (P-04).
Foi necessário pesquisar novas estratégias para não trocar o
quadro por simples arquivos com atividades (P-05).
Nessas narrativas, observamos a preocupação dos
professores com o processo de aprendizagem. Ponte e Oliveira
(2002) enfatizam que uma parte do conhecimento profissional do
professor intervém diretamente em sua prática letiva, denominado
pelos autores como conhecimento didático. Os autores desdobram
tal conhecimento em quatro vertentes: o conhecimento da
Matemática, do currículo, dos processos de aprendizagem dos
alunos sob sua responsabilidade – o que inclui o conhecimento do
aluno – e o conhecimento do processo instrucional.
O conhecimento do processo instrucional contempla tudo o
que diz respeito à condução efetiva das situações de aprendizagem.
Aqui, são incluídos os planejamentos, tanto de curto quanto de médio
e longo prazos, bem como tudo o que envolve a estruturação e
condução das aulas de Matemática. Esse conhecimento é fundamental
para a organização dos trabalhos dos alunos, a criação e variação de
métodos de aprendizagem em sala de aula, bem como a avaliação da
aprendizagem dos alunos e do ensino (PONTE; OLIVEIRA, 2002).
SUMÁR I O
266
A formação continuada, de acordo com o que expressaram os
participantes, assume um caráter de qualificação instrumental e técnica, por vezes salvacionista, mas, também, como algo que abre possibilidades de qualificação da prática por meio da utilização de novas técnicas e novos métodos para a condução da prática educativa. Também
é vista como um momento de formação intelectual, pessoal, tanto para
o professor, quanto para seu aluno a partir de suas novas formas de
adquirir conhecimentos e estudar conteúdos matemáticos escolares.
As teorizações de António Nóvoa ajudam a compreender essa relação:
[...] a formação do professor é, por vezes, excessivamente
teórica, outras vezes metodológica, mas há um déficit de
práticas, de saber como fazer. É desesperante ver como certos
professores que têm genuinamente uma enorme vontade de
fazer de outro modo e não sabem como (NÓVOA, 2007, p. 14).
Nesse mesmo viés, encontram-se os estudos de Shulman
(1986, 2014), que buscou compreender como os conhecimentos
dos professores são adquiridos e como os novos conhecimentos se
combinam com os velhos, para formar uma base de conhecimentos.
Enfatizamos aqui os conhecimentos que corroboram a citação de
Nóvoa (2007): o conhecimento do conteúdo e o conhecimento
pedagógico do conteúdo. O primeiro refere-se às compreensões do
professor sobre a estrutura da disciplina, à forma como ele entende o
conhecimento que será objeto de ensino. O conhecimento pedagógico
do conteúdo refere-se aos modos de formular e apresentar o conteúdo,
para torná-lo compreensível aos alunos. A comunicação do professor
deve prever a diversidade de alunos e ser flexível, para conceber
explicações alternativas de conceitos e princípios (SHULMAN, 1986).
Outro desafio destacado pelos participantes relaciona-se à
dificuldade de acesso dos estudantes aos meios digitais e retorno da
aprendizagem propostas aos estudantes, como pode ser observado
nestes excertos:
SUMÁR I O
267
Estou sempre à disposição deles, mas são poucos que
procuram para tirar dúvidas. Na minha opinião, nem todos os
alunos possuem as mesmas condições, muitos não têm acesso
à internet, tendo que retirar as atividades impressas na escola.
Muitas famílias não se organizaram para retirar o material, o que
gerou acúmulo para as crianças (P-09).
Bem como as dificuldades relativas à organização e proposição
das tarefas pelo professor, como está expresso nas seguintes narrativas:
Tive dificuldade em ser clara e objetiva nas atividades
propostas (P-06).
Dificuldade de compreender onde o aluno está no processo
de aprendizagem. Se ele compreendeu, se não compreendeu,
quais as dificuldades para que se possa supri-las. Do meu
ponto de vista, as explicações de conteúdo precisam de
contato, do olho no olho (P-07).
O planejamento das atividades precisou ser remodelado, pois
o volume do conteúdo foi reduzido. Avaliar a aprendizagem
também tem sido um desafio (P-08).
Com relação ao que os professores consideravam como
boas práticas que teriam realizado nesse período, os participantes
narraram as seguintes situações: (a) uso de ferramentas e tecnologias
digitais: “Utilização de Kahoot, nuvem de palavras, jamboard de forma
colaborativa e google forms, geralmente trazem melhores resultado,
ou seja, o número de participantes é sempre maior do que nas aulas
que se solicita a resolução de exercícios do livro, por exemplo” (P01); “O Google formulários, não que seja totalmente adequado, mas
está proporcionando uma boa participação e retorno dos alunos” (P11); (b) abordagem de temáticas do cotidiano como estratégia para
abordar os conteúdos matemáticos: “Pensando em algo que fizesse
parte do dia a dia deles, resolvi trabalhar com a conta de água com a
turma do 6º ano, eles tinham que verificar as informações da conta, a
média de consumo dos últimos meses, fazer o gráfico, a média diária e
verificar se ela estava de acordo com as regras dos órgãos brasileiros.
SUMÁR I O
268
Verificando essas informações eles elencaram ações para diminuir
o consumo de água de sua casa. Foi uma atividade muito legal e
proveitosa” (P-06); (c) manter, permanentemente, contato síncronos
para que os estudantes desenvolvessem as propostas assíncronas:
“O que percebi nas minhas aulas é que a maioria das atividades
realizadas pelos alunos foram entregues após ter realizado uma aula
online e que, de modo indireto, houve uma interação com eles o que
os torna mais motivados em realizar as tarefas propostas” (P-07).
A partir da análise das narrativas, podemos dizer que, na
perspectiva dos participantes, alguns elementos da prática pedagógica
foram atenuados no contexto atual e necessitam da articulação com
as tecnologias:
(1) é preciso conhecer além do objeto de conhecimento,
caracterizando o conhecimento pedagógico do conteúdo (SHULMAN,
1986), como afirma a participante: “Não basta que ele [o professor]
saiba apenas o conteúdo que irá apresentar. É preciso ir além, conhecer
diversos conceitos matemáticos, bem como utilizar a linguagem
específica e dominar ferramentas para abordar” (P-10).
(2) a importância do planejamento docente: “Quando um
professor estrutura sua aula buscando promover a articulação do que
havia sido aprendido anteriormente com um objetivo a ser atingido,
ele está oferecendo a seus alunos a oportunidade de construir as
relações necessárias para a compreensão e a aquisição de novos
conteúdos. Assim o aluno vai saber onde e o que pesquisar para
complementar seus estudos” (P-04). O que verificamos aqui é o que
Shulman (1986) define como conhecimento do currículo, que se refere
ao conhecimento do professor acerca dos programas de ensino, dos
recursos didáticos que podem ser utilizados, o conhecimento das
relações entre conteúdos e contextos, e a familiaridade com os outros
tópicos desse conteúdo que já foram ou serão estudados na mesma
disciplina nos anos anteriores e posteriores.
SUMÁR I O
269
(3) contextualização da aprendizagem: “É fundamental
contextualizar o conteúdo a ser apresentado para que os alunos
atribuam sentido ao que estão aprendendo. Um dos grandes
problemas é a dificuldade dos alunos em compreender os textos
matemáticos, principalmente os enunciados de situações problema”
(P-05). Este é o saber docente caracterizado por Shulman (1986,
2014) como conhecimento pedagógico do conteúdo, que se refere
aos modos de formular e apresentar o conteúdo, para torná-lo
compreensível aos alunos. Para Shulman (2014), o conhecimento
pedagógico de conteúdo é o que distingue a compreensão de um
especialista em um assunto da de um professor.
(4) respeito ao tempo de aprendizagem do estudante: “É
essencial que o professor reserve um tempo para que os alunos
pensem sobre o desafio proposto. Isso quer dizer que eles precisam
ter espaço para pensar, ensaiar, errar, comparar seu procedimento
com o dos colegas” (P-06).
Para Ponte e Oliveira (2002), o conhecimento dos processos de
aprendizagem, que dizem respeito ao saber do professor sobre o seu
aluno e sobre a forma pela qual ele aprende, compõe o conhecimento
didático necessário à prática docente. Esse conhecimento é fundamental
para o sucesso na atividade de ensinar e, consequentemente, para o
processo de aprendizagem. Não basta cumprir integralmente o currículo
se os alunos não conseguiram aprender os conteúdos ensinados. Os
autores (PONTE; OLIVEIRA, 2002) ainda indicam que o professor deve
ter conhecimento instrucional, que contempla tudo o que diz respeito à
condução efetiva das situações de aprendizagem. Aqui, são incluídos
os planejamentos, tanto de curto quanto de médio e longo prazos, bem
como tudo o que envolve a estruturação das aulas de Matemática.
(5) o valor da comunicação: “Os professores utilizam com
muita frequência a exposição oral do conteúdo com o auxílio do
quadro ou do projetor na sala de aula e agora com uso de vídeos.
SUMÁR I O
270
[...]. Com frequência, os alunos jovens dispersam facilmente
sua atenção se a exposição for muito longa” (P-08). Novamente
identificamos referências ao conhecimento pedagógico do conteúdo.
A comunicação do professor deve prever a diversidade de alunos
e ser flexível, para conceber explicações alternativas de conceitos
e princípios. Em outras palavras, deve incluir analogias, ilustrações,
exemplos, explanações e demonstrações (SHULMAN, 1986).
(6) a falta que a interação social faz: “O trabalho em grupos
favorece a troca e a negociação de ideias entre os pares, estimula o
uso de argumentação, fundamentação e justificativa para convencer
o outro e ativa comportamentos cooperativos que resultam em aprendizagem” (P-09). Em tempos de isolamento social e fechamento das
escolas, os professores expressaram a dificuldade de “dar aula” sem
ver os estudantes e, sem ter o retorno imediato de sua aprendizagem.
Embora o uso das tecnologias possibilite o desenvolvimento das atividades escolares, na perspectiva dos professores, não substitui a
intensidade das relações pessoais que se estabelecem no contexto
da sala de sala, como disse P-07, do “contato”, do “olho no olho”.
Nesse mesmo sentido, expressam Dussel e Caruso (2003, p. 237):
[...] a função de transmitir a cultura provavelmente continuará
existindo; e até o momento, por muitos motivos, e apesar de
sua crise, a escola é a instituição mais eficaz e poderosa para
produzir este efeito. Desejamos que o faça melhor, que o faça
integrando os novos saberes e indivíduos que hoje pululam em
nossos mundos, que o faça repensando suas próprias tradições.
Os participantes expressam que a escola é um lugar importante
para que a cultura tenha continuidade através do processo de sua
transmissão, mas também é o lugar que pode integrar os saberes
do nosso tempo, caracterizado por um crescimento tecnocientífico
acelerado, ou seja, a escola pode cumprir com o seu papel de
transmitir os novos e diferentes saberes sem deixar de repensar as
suas tradições, especialmente com o conhecimento, não somente
com o repasse de informações, como defendem os autores citados.
SUMÁR I O
271
PALAVRAS FINAIS
Ao concluir este capítulo, podemos dizer que, na perspectiva dos
participantes do curso de formação continuada, docentes de Matemática
dos anos finais do Ensino Fundamental, a tecnologia está cada vez mais
inserida em todos os espaços e tempos. As TDICs podem contribuir
para a aprendizagem de Matemática de modo autônomo, a partir da
pesquisa e baseada na metodologia proposta para a aprendizagem do
estudante, tendo em vista que a tecnologia em si não é a metodologia
do professor, assim como o livro didático, no contexto da sala de aula,
não o é. Ela é uma ferramenta para que o professor organize sua prática.
Esse pensamento é exposto por Silva (2008) quando explora o
uso das TDICs como uma linguagem diferente para representação do
conhecimento, como o som, a imagem e a animação.
É preciso considerar que as tecnologias - sejam elas novas
(como o computador e a Internet) ou velhas (como o giz e a
lousa) condicionam os princípios, a organização e as práticas
educativas e impõem profundas mudanças na maneira de
organizar os conteúdos a serem ensinados, as formas como
serão trabalhadas e acessadas as fontes de informação,
e os modos, individuais e coletivos, como irão ocorrer as
aprendizagens (SILVA, 2008, p. 76).
O momento atual permite outras perspectivas em relação
aos fenômenos científicos e tecnológicos, pois permite um ensino
mais interativo e processual, mesmo que virtual, visto que o
conhecimento pode abranger a escola e outros espaços possíveis,
por consequência, a tecnologia pode possibilitar novas perspectivas
de aprendizagem por intermédio da autoria individual e/ou coletiva
dos estudantes e dos docentes.
Também enfatizamos a importância da aproximação entre as
Universidades e as escolas de Educação Básica, por meio da oferta
SUMÁR I O
272
de ações de extensão para a formação continuada de professores,
a fim de aprimorar e ressignificar os conhecimentos destes acerca
das TDICs e de suas aplicações pedagógicas. Por fim, é importante
destacar que, no cenário em que vivemos, “questionar as premissas
supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos” (BAUMAN, 1999, p. 11).
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VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
SUMÁR I O
274
SOBRE AS ORGANIZADORAS
Daiane Martins Bocasanta
Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e
Licenciada em Pedagogia (UNISINOS). Atua como docente no Colégio de
Aplicação da UFRGS (CAp/UFRGS), lotada no Departamento de Humanidades,
Área dos Anos Iniciais. Pesquisadora do Grupo Interinstitucional de Pesquisa
em Educação Matemática e Sociedade (GIPEMS). Seu interesse investigativo
se conecta aos processos educativos dos Anos Iniciais e Educação de Jovens
e Adultos, em especial, na Iniciação Científica na Educação Básica. Coordena
o projeto “Tecnocientificidade, Matemática e Educação de Jovens e Adultos”
e participa como colaboradora em outros projetos de pesquisa na área da
Educação. E-mail: professoradaianecap@gmail.com
Fernanda Wanderer
Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e
Licenciada em Matemática (UFRGS). Atualmente é professora permanente
do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFRGS), integrada à
Linha de Pesquisa “Estudos Culturais em Educação”. Tem experiência
na área de Educação, com ênfase em Educação Matemática e Estudos
Foucaultianos. Os trabalhos mais recentes incluem a organização dos livros:
WANDERER, Fernanda; KNIJNIK, Gelsa (Org.). Educação e tecnociência
na contemporaneidade. São Paulo: Pimenta Cultural, 2018, e WANDERER,
Fernanda; KNIJNIK, Gelsa (Org.). Educação Matemática e Sociedade. São
Paulo: Livraria da Física, 2016. E-mail: fernandawanderer@gmail.com
SUMÁR I O
275
SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS
Camila da Silva Fabis
Doutoranda em Educação (UFRGS), Mestra em Educação (PUC-RS) e
graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional (PUC-RS). Atua como
Supervisora Pedagógica da Rede Marista de Colégios. Entre seus interesses
de pesquisa estão as Políticas Curriculares, os Estudos Foucaultianos, o
Ensino Médio e as Juventudes. E-mail: fabiscamila@gmail.com
Caroline Brandelli Garziera
Mestranda em Educação (UFRGS), Especialista em Psicopedagogia Clínica
(UNIVILLE/ISEPG) e graduada em Pedagogia (UNISINOS). Atualmente, atua
como Coordenadora Pedagógica no Colégio Marista Rosário (Porto Alegre /
RS). Entre seus temas de interesses estão os Estudos Curriculares, os Estudos
Foucaultianos e as pesquisas sobre a escola na contemporaneidade. E-mail:
carolinebrandelligarziera@gmail.com
Débora de Lima Velho Junges
Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e
Licenciada em Matemática (UNISINOS). Atualmente, é Técnica em Assuntos
Educacionais, atuando no cargo de Diretora de Ensino, Pesquisa e Extensão
junto ao Instituto Federal Catarinense (IFC). Também atua como professora
conteudista, colaboradora, revisora técnica e avaliadora de materiais
didáticos. É líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar Educação, Sociedade
e Tecnologias (GESTEC: http://gestec.fraiburgo.ifc.edu.br) e membro do
Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade
(GIPEMS) e do Grupo Interdisciplinar Pomares do Saber (GIPS) que integram
o Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Interessada nos seguintes
temas: Educação, Educação Matemática, Práticas Pedagógicas, Mulheres nas
Ciências. E-mail: deborajunges@gmail.com
Fernanda Longo
Doutoranda em Educação (UFRGS), Mestre em Educação (UFRGS),
Especialista em Estudos Culturais na Educação Básica (UFRGS) e Licenciada
em Matemática (UFRGS). Atua como professora dos Anos Iniciais, na rede
privada de Porto Alegre. Desenvolve pesquisas relacionadas aos processos de
docência dos saberes matemáticos escolares nessa faixa etária com as lentes
teóricas do pós-estruturalismo. E-mail: fernandalongo25@gmail.com
SUMÁR I O
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Fernanda Zorzi
Doutora em Educação (UNISINOS), Mestra em Educação (PUC-GO),
Especialista em Matemática (UNISINOS) e licenciada em Matemática (UCS).
Professora de Matemática no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Bento Gonçalves. Atua com
projetos de ensino, pesquisa e extensão na área de ensino e aprendizagem de
Matemática, com foco na formação de professores. E-mail: fernanda.zorzi@
bento.ifrs.edu.br
Fernando Henrique Fogaça Carneiro
Doutorando em Educação (UFRGS), Mestre em Educação (UFRGS) e
licenciado em Matemática (UFRGS). Professor do Departamento de Estudos
Especializados da UFRGS, área de Libras e Educação Especial. Temáticas
abordadas nos últimos anos: Estudos Foucaultianos, Educação Matemática
para Surdos, Escrita da Língua de Sinais. E-mail: fernando.carneiro@ufrgs.br
Giovana Alexandra Stevanato
Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UCLV), graduada
em Pedagogia (FACEDUTS). Atualmente é professora na UNIR, Campus de
Vilhena, no Departamento Acadêmico de Ciências da Educação. Participa do
Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade
(GIPEMS), do Grupo de Pesquisa em Educação (GEP) e do HUMANIZE
– Grupo de Pesquisa sobre História, Educação Social e Vida Cotidiana. É
professora pesquisadora no Projeto “Educação Infantil: políticas e práticas”,
na UFAM. E-mail: giovanastevanato@gmail.com
Ieda Maria Giongo
Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e
licenciada em Matemática (FURG). Professora da UNIVATES vinculada aos
Programas de Pós-Graduação em Ensino e em Ensino de Ciências Exatas.
Bolsista Produtividade do CNPq, nível 2. E-mail: igiongo@univates.br
Josaine de Moura
Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Matemática Aplicada (UFRGS)
e licenciada em Matemática (UFSM). Atuou durante 20 anos no Ensino
Superior. Atualmente, é professora do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
e colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências
Exatas (FURG). Pesquisadora do GEEMCO-UFRGS: Grupo de Estudos em
Educação Matemática e Contemporaneidade. Seu interesse investigativo
tem como focos a Literatura Potencial e questões da constituição de sujeitos,
em sua relação com a Educação Matemática, inserida na perspectiva pósestruturalista. E-mail: josainemoura@icloud.com
SUMÁR I O
277
José Cláudio del Pino
Doutor em Engenharia de Biomassa e professor da UNIVATES vinculado aos
Programas de Pós-Graduação em Ensino e em Ensino de Ciências Exatas.
Bolsista Produtividade do CNPq, nível 1D. E-mail: jose.pino@univates.br
Juliana Meregalli Schreiber
Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e
licenciada em Matemática (UNISINOS). Atualmente é Líder do Projeto ENADE
e ministra disciplinas da área da Matemática na UNILASSALE. Participa do
Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade
(GIPEMS). Desenvolve trabalhos vinculados à Educação Matemática, Formação
de Professores e Práticas Pedagógicas. E-mail: julianamsm2@gmail.com
Karine Pertile
Doutora em Ensino de Ciências e Matemática (ULBRA), Mestra em Educação
em Ciências e Matemática (PUC-RS) e licenciada em Matemática (UNISINOS).
Professora de Matemática no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Bento Gonçalves. Atua com
projetos de ensino, pesquisa e extensão na área de ensino e aprendizagem
de Matemática, com foco na formação de professores. E-mail: karine.pertile@
bento.ifrs.edu.br
Lucas Pereira da Rosa
Mestrando em Indústria Criativa (FEEVALE), Especialista em Comunicação
Empresarial e Marketing Digital (UNICESUMAR) e graduado em Marketing
(UNICID). Em 2018, fundou o Lernen Edtech, focando na pesquisa e
desenvolvimento de tecnologias educacionais para instituições de ensino e
empresas. Já atuou no desenvolvimento de projetos com grandes marcas
nacionais e internacionais, principalmente nas áreas de tecnologia, varejo
e educação. Interessado, principalmente, nas seguintes áreas: Educação,
Realidade Virtual, Realidade Estendida, User Experience (UX) para realidade
estendida e Game Design para serious games. E-mail: lucaseditor@gmail.com
SUMÁR I O
278
Luciane Andreia Leite dos Santos
Mestre em Educação (UFRGS), Especialista em Psicopedagogia (UCB) e
graduada em Pedagogia (UFRGS). Atua como docente no Colégio de Aplicação
da UFRGS (CAp/UFRGS), lotada no Departamento de Humanidades, Área dos
Anos Iniciais. Atualmente coordena a Equipe de professores do Projeto Unialfas
dos Anos Inicias do Colégio de Aplicação. Coordena o projeto “Abordagens
inclusivas e recursos concretos para o ensino da matemática nos anos iniciais”.
Participa do projeto “Contratempos no percurso: análise e compreensão das
taxas de reprovação nos anos finais do Ensino Fundamental (Ivoti/RS)”. Seu
interesse de pesquisa se foca nas práticas inclusivas, o acesso e a permanência
dos alunos ingressantes na escola pública. E-mail: luciane.leite@ufrgs.br
Maria Luísa Lenhard Bredemeier
Doutora em Educação (UNISINOS), com estágio de pesquisa na Universidade
Koblenz-Landau (Alemanha), Mestre em Germanística na Universidade
Koblenz-Landau (Alemanha) e graduada em Letras (UNISINOS). Atua junto
aos cursos de Letras e Relações Internacionais (UNISINOS). Coordenadora de
oferta e matrícula da Unidade Acadêmica de Graduação dessa universidade.
Interesses de pesquisa são a Linguística Aplicada e a Educação Bilíngue. E-mail:
mlbredemeier@unisinos.br
Marília Bervian Dal Moro
Mestre em Educação (UFRGS), Especialista em Gestão da Educação (PUCRS) e graduada em Pedagogia (UFRGS). Atualmente é Orientadora Pedagógica
no Colégio Farroupilha de Porto Alegre. Seus interesses de pesquisa têm
circulado no viés do Currículo, dos Processos Pedagógicos e da Gestão de
Espaços Escolares. E-mail: dalmoro.marilia@gmail.com
Marli Teresinha Quartieri
Doutora em Educação (UNISINOS). Professora da UNIVATES, vinculada aos
Programas de Pós-Graduação em Ensino e em Ensino de Ciências Exatas.
Bolsista Produtividade do CNPq, nível 2. E-mail: mtquartieri@univates.br
Mônica Nunes
Mestra em Educação (UFRGS), Especialista em Psicopedagogia Institucional
(UCB) e graduada em História (UNISINOS). Atualmente, é professora
alfabetizadora no Colégio Teutônia, em Teutônia – RS. Tem experiência na área de
Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: relações étnico-raciais,
Práticas Pedagógicas e Alfabetização. E-mail: monicanunes150@gmail.com
SUMÁR I O
279
Neila de Toledo e Toledo
Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Modelagem Matemática (UNIJUI)
e graduada em Ciências/Matemática (UNICRUZ). Atualmente, é professora do
Instituto Federal Catarinense – Campus Rio do Sul (SC). Tem experiência na área
de Educação, com ênfase em Educação Matemática, atuando principalmente
nos seguintes temas: Formação de Professores, Práticas Pedagógicas,
Currículo e Etnomatemática. E-mail: neila.toledo@ifc.edu.br
Tanise Müller Ramos
Doutora em Educação (UFRGS), Mestre em Educação (UFRGS) e graduada
em Pedagogia (UFRGS). Atua como docente no Colégio de Aplicação da
UFRGS (CAp/UFRGS), lotada no Departamento de Humanidades, Área dos
Anos Iniciais. Desenvolve projetos de ensino, pesquisa e extensão com o foco
na Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) e na Educação Antirracista.
Compõe a coordenação do Grupo de Trabalho ERER no CAp e é integrante do
Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros (NEAB) da UFRGS. Coordena
o projeto de pesquisa “A construção de metodologias de ensino para a ERER
no cotidiano escolar” e o projeto de extensão “Diálogos Interculturais para a
ERER”. E-mail: tanisemr@gmail.com
SUMÁR I O
280
ÍNDICE REMISSIVO
SUMÁR I O
A
B
agrícola 12, 33, 34, 37, 219, 227, 229, 230,
233, 234, 235
Agropecuária 17, 29, 218, 221, 222,
232, 234
alunos 14, 15, 16, 17, 26, 28, 29, 30, 31,
32, 33, 35, 36, 40, 46, 48, 50, 54, 55, 56,
57, 58, 59, 60, 67, 70, 71, 72, 77, 79, 80,
81, 82, 83, 85, 87, 88, 90, 91, 92, 93, 94,
95, 99, 100, 101, 103, 106, 107, 108, 109,
110, 111, 113, 115, 120, 123, 125, 126,
127, 128, 129, 130, 131, 133, 142, 171,
182, 186, 187, 188, 190, 194, 195, 196,
202, 203, 205, 206, 207, 208, 209, 210,
211, 212, 213, 220, 221, 231, 246, 247,
264, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 271, 279
anacronismos 13
aprender 11, 17, 48, 56, 104, 105, 106, 118,
120, 121, 163, 167, 171, 172, 185, 187,
188, 195, 197, 203, 204, 205, 216, 224,
225, 235, 264, 266, 270
aprendizagem 14, 15, 17, 31, 52, 58, 59, 68,
72, 73, 113, 123, 124, 125, 126, 127, 128,
131, 138, 157, 158, 162, 163, 171, 182,
186, 187, 188, 190, 191, 196, 197, 198,
199, 200, 204, 205, 206, 214, 257, 260,
261, 262, 265, 266, 267, 268, 270, 271,
272, 277, 278
aulas 16, 50, 51, 58, 61, 68, 72, 79, 81, 82,
87, 118, 119, 120, 121, 124, 126, 128, 133,
153, 155, 158, 159, 162, 165, 192, 194,
195, 196, 197, 199, 202, 205, 206, 207,
211, 212, 213, 215, 221, 222, 225, 226,
227, 229, 231, 260, 261, 262, 265, 266,
268, 269, 270
aulas presenciais 16, 153, 155, 158,
192, 261
bilíngue 10, 15, 46, 48, 49, 59, 63, 64, 66,
67, 68, 69, 70, 73, 74, 75, 76, 281
C
campo 10, 14, 15, 24, 25, 26, 27, 28, 29,
30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40,
42, 43, 46, 47, 49, 51, 53, 81, 93, 100, 102,
106, 107, 108, 110, 111, 132, 133, 136,
137, 142, 150, 172, 182, 189, 218, 229,
230, 231, 240, 242, 249, 258
contemporaneidade 13, 14, 15, 18, 24, 46,
61, 64, 113, 144, 186, 219, 222, 237, 238,
242, 261, 263, 265, 273, 275, 276
convivência 14
coronavírus 18, 256
COVID-19 14, 16, 17, 153, 156, 167
Currículo 10, 15, 17, 34, 43, 63, 70, 72,
217, 233, 279, 280
curso técnico 12
Curso Técnico 17, 217, 231, 234
D
desafios 13, 15, 24, 61, 65, 72, 99, 107,
114, 118, 150, 198, 214, 215, 257
discente 16, 99, 100, 205, 211
disciplina 17, 28, 34, 50, 53, 54, 118, 139,
146, 150, 204, 205, 206, 207, 208, 210,
211, 214, 218, 220, 222, 223, 224, 225,
226, 227, 230, 231, 232, 235, 267, 269
dissociações 13
docências 11, 16, 117
E
educação 10, 11, 17, 24, 25, 33, 37, 39,
40, 41, 43, 44, 46, 49, 53, 59, 60, 61, 62,
64, 66, 67, 68, 70, 73, 75, 76, 81, 95, 96,
281
97, 104, 107, 109, 112, 114, 115, 127, 133,
137, 138, 148, 150, 151, 153, 154, 156,
157, 158, 163, 166, 171, 186, 194, 196,
197, 198, 216, 219, 220, 222, 233, 234,
238, 241, 245, 250, 253, 254, 257, 263,
273, 278
educação básica 10, 70, 151, 233, 273
educação do campo 10, 24, 25, 33, 39, 40
ENEM 11, 16, 123, 134, 135, 136, 138, 145,
149, 150, 151, 247
Ensinar 11, 16, 17, 117, 150, 185, 216
ensino 10, 11, 14, 17, 21, 24, 43, 49, 60,
64, 65, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 76, 100, 101,
104, 105, 106, 107, 114, 120, 121, 123,
124, 127, 128, 129, 131, 136, 138, 146,
148, 149, 150, 151, 155, 157, 158, 162,
163, 165, 182, 183, 187, 188, 189, 190,
191, 192, 195, 196, 197, 199, 200, 201,
202, 204, 205, 206, 207, 208, 211, 213,
214, 215, 216, 223, 240, 245, 246, 249,
257, 258, 260, 261, 262, 263, 264, 265,
266, 267, 269, 272, 274, 277, 278, 279, 280
ensino fundamental 10, 105, 199
ensino médio 11
enunciados 11, 15, 16, 30, 51, 52, 60, 72,
83, 117, 118, 119, 120, 121, 124, 129, 133,
134, 220, 221, 260, 270
Escola 10, 25, 26, 43, 44, 45, 62, 77, 98,
134, 142, 145, 150, 218, 234
escola do campo 15, 24, 28, 30, 31, 32, 33,
34, 35, 38, 39, 40, 42, 43
escolar 12, 15, 18, 24, 28, 33, 34, 40, 46,
47, 48, 54, 56, 59, 68, 76, 77, 97, 99, 103,
104, 108, 109, 110, 113, 119, 125, 128,
133, 134, 137, 144, 162, 186, 187, 188,
189, 190, 191, 194, 197, 198, 219, 222,
223, 224, 226, 231, 232, 234, 235, 255,
256, 257, 258, 261, 262, 280
estudantes 15, 16, 24, 25, 27, 29, 32, 33,
34, 35, 39, 41, 42, 44, 54, 57, 59, 71, 82,
86, 89, 91, 92, 94, 101, 102, 104, 113, 114,
SUMÁR I O
118, 125, 136, 138, 142, 146, 147, 148,
149, 153, 155, 156, 158, 160, 162, 163,
164, 165, 190, 196, 203, 204, 205, 206,
208, 210, 213, 214, 215, 219, 244, 245,
247, 248, 249, 250, 251, 258, 260, 263,
264, 267, 269, 271, 272
estudos 14, 22, 25, 28, 41, 46, 47, 48, 71,
73, 76, 99, 101, 102, 109, 116, 118, 119,
132, 137, 142, 145, 146, 147, 153, 157,
160, 165, 172, 190, 191, 196, 205, 211,
219, 238, 244, 258, 262, 264, 267, 269, 274
étnico-raciais 10, 16, 78, 79, 80, 82, 87, 90,
93, 95, 96, 97, 107, 108, 279
exame nacional 11
F
ferramenta 17, 43, 48, 68, 70, 127, 146,
149, 187, 188, 194, 198, 202, 207, 211,
225, 237, 261, 272
Formação 12, 18, 25, 42, 44, 236, 237, 246,
254, 259, 278, 280
formação de professores 12, 18, 73, 96, 147,
255, 257, 258, 273, 277, 278
G
Governamentalidade 11, 16, 43, 135, 149,
151, 254
I
iniciação científica 10, 114, 233, 274
L
Literatura 11, 17, 115, 150, 168, 172, 184,
277, 282
M
matemática 10, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 27,
41, 43, 44, 45, 47, 48, 53, 55, 56, 57, 58,
59, 60, 61, 62, 77, 117, 118, 119, 120, 121,
125, 126, 128, 130, 132, 133, 134, 142,
150, 151, 172, 173, 176, 177, 182, 183,
282
185, 189, 191, 194, 198, 200, 219, 224,
225, 226, 231, 234, 235, 254, 255, 266, 279
materiais didáticos 16, 111, 136, 276
metodologia 15, 17, 31, 32, 102, 105, 121,
146, 191, 193, 195, 204, 205, 272
R
paralisação 16, 153, 155, 157, 158, 163
pesquisas 13, 14, 28, 36, 48, 50, 64, 81, 83,
96, 103, 119, 121, 128, 136, 137, 172, 176,
184, 186, 187, 190, 226, 245, 256, 260, 276
potencial 11, 17, 104, 110, 131, 142, 168,
172, 173, 177, 183, 184, 186, 187, 194, 203
práticas 16, 25, 26, 30, 34, 38, 40, 41, 42,
48, 50, 57, 58, 59, 72, 74, 83, 88, 90, 91,
92, 94, 99, 100, 101, 102, 103, 106, 107,
108, 109, 111, 113, 114, 115, 118, 121,
123, 124, 130, 132, 133, 141, 143, 144,
145, 148, 150, 155, 156, 157, 159, 162,
166, 186, 196, 203, 215, 220, 227, 229,
230, 231, 237, 240, 257, 260, 267, 268,
272, 277, 279
práticas pedagógicas 16, 38, 41, 57, 99,
100, 102, 106, 107, 113, 115, 118, 123,
148, 155, 157, 159, 166, 186, 227, 230, 257
professores 12, 14, 18, 24, 26, 27, 29, 48,
69, 71, 72, 73, 96, 99, 100, 103, 104, 105,
107, 118, 119, 126, 127, 136, 137, 142,
143, 145, 147, 150, 155, 158, 159, 164,
165, 171, 189, 202, 203, 208, 210, 214,
215, 225, 231, 255, 256, 257, 258, 259,
261, 263, 264, 265, 266, 267, 268, 270,
271, 273, 277, 278, 279, 282
S
realidade 10, 15, 23, 31, 32, 33, 34, 35, 36,
38, 39, 40, 41, 60, 81, 120, 121, 130, 133,
175, 186, 278
recursos 12, 17, 18, 25, 123, 124, 125, 126,
127, 128, 129, 156, 158, 159, 160, 187,
N
188, 189, 192, 197, 202, 204, 205, 206,
normalização 10, 15, 45, 46, 55, 56, 59,
211, 215, 225, 227, 230, 232, 236, 237,
141, 228
238, 239, 241, 242, 246, 249, 250, 251,
262, 264, 269, 279, 282
P
pandemia 11, 14, 16, 17, 18, 152, 153, 154, recursos humanos 12, 18, 236, 237, 238,
239, 241, 242, 249, 250, 251, 282
155, 156, 157, 164, 165, 171, 197, 207,
resistência 14, 57, 94, 234
214, 215, 216, 256, 258, 260, 265
SUMÁR I O
surdos 10, 15, 45, 46, 48, 49, 50, 53, 58,
59, 60
T
tecnociência 17, 218, 219, 222, 230, 231,
232, 233, 238, 256, 257, 273, 274, 275
tecnocientíficas 12, 18, 236, 237, 240, 241,
252, 254
tempo 13, 14, 17, 19, 20, 27, 37, 40, 51, 53,
54, 55, 56, 67, 73, 80, 85, 89, 90, 92, 106,
109, 111, 119, 121, 127, 129, 139, 140,
142, 157, 162, 164, 170, 172, 183, 184,
192, 196, 203, 204, 206, 208, 210, 215,
219, 222, 227, 232, 235, 240, 256, 265,
266, 270, 271
V
vestibulares 16, 70, 123, 136, 146
virtualização 11, 17, 201, 208, 215
Y
Youtube 11, 17, 86, 185, 186, 187, 188,
189, 190, 191, 192, 194, 195, 196, 197,
198, 199, 200
283