Academia.eduAcademia.edu

Educação na contemporaneidade: questões e desafios.

2021, Educação na contemporaneidade: questões e desafios.

https://doi.org/10.31560/pimentacultural/2021.400

O livro apresenta um conjunto de pesquisas que problematizam questões e desafios da Educação na contemporaneidade conduzidas por educadores de diferentes instituições brasileiras, como Universidades, Institutos Federais e escolas. A primeira parte da obra engloba discussões pertinentes a áreas como Educação do Campo, Educação Matemática, Educação de Surdos, Currículo, Literatura potencial e temáticas presentes na esfera educacional envolvendo as relações étnico-raciais, a Iniciação Científica e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A segunda parte contempla aspectos que circulam nas escolas, universidades e cursos técnicos como os redesenhos curriculares e estratégias de ensino em cenários de pandemia, ensino e aprendizagem com o Youtube, a tecnociência, formação de professores e a matemática escolar.

Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados. Copyright do texto © 2021 os autores e as autoras. Copyright da edição © 2021 Pimenta Cultural. Esta obra é licenciada por uma Licença Creative Commons: Atribuição-NãoComercialSemDerivações 4.0 Internacional - CC BY-NC (CC BY-NC-ND). Os termos desta licença estão disponíveis em: <https://creativecommons.org/licenses/>. Direitos para esta edição cedidos à Pimenta Cultural. O conteúdo publicado não representa a posição oficial da Pimenta Cultural. CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO Doutores e Doutoras Airton Carlos Batistela Breno de Oliveira Ferreira Universidade Católica do Paraná, Brasil Universidade Federal do Amazonas, Brasil Alaim Souza Neto Carla Wanessa Caffagni Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Alessandra Regina Müller Germani Carlos Adriano Martins Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil Alexandre Antonio Timbane Caroline Chioquetta Lorenset Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Alexandre Silva Santos Filho Cláudia Samuel Kessler Universidade Federal de Goiás, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Aline Daiane Nunes Mascarenhas Daniel Nascimento e Silva Universidade Estadual da Bahia, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Aline Pires de Morais Daniela Susana Segre Guertzenstein Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Aline Wendpap Nunes de Siqueira Danielle Aparecida Nascimento dos Santos Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Ana Carolina Machado Ferrari Delton Aparecido Felipe Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Universidade Estadual de Maringá, Brasil Andre Luiz Alvarenga de Souza Dorama de Miranda Carvalho Emill Brunner World University, Estados Unidos Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Andreza Regina Lopes da Silva Doris Roncareli Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Antonio Henrique Coutelo de Moraes Elena Maria Mallmann Universidade Católica de Pernambuco, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Arthur Vianna Ferreira Emanoel Cesar Pires Assis Universidade Católica de São Paulo, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Bárbara Amaral da Silva Erika Viviane Costa Vieira Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Brasil Beatriz Braga Bezerra Everly Pegoraro Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Bernadétte Beber Fábio Santos de Andrade Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Fauston Negreiros Leandro Fabricio Campelo Universidade Federal do Ceará, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Felipe Henrique Monteiro Oliveira Leonardo Jose Leite da Rocha Vaz Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Fernando Barcellos Razuck Leonardo Pinhairo Mozdzenski Universidade de Brasília, Brasil Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Francisca de Assiz Carvalho Lidia Oliveira Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil Universidade de Aveiro, Portugal Gabriela da Cunha Barbosa Saldanha Luan Gomes dos Santos de Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Gabrielle da Silva Forster Luciano Carlos Mendes Freitas Filho Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Guilherme do Val Toledo Prado Lucila Romano Tragtenberg Universidade Estadual de Campinas, Brasil Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil Hebert Elias Lobo Sosa Lucimara Rett Universidad de Los Andes, Venezuela Universidade Metodista de São Paulo, Brasil Helciclever Barros da Silva Vitoriano Marceli Cherchiglia Aquino Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Helen de Oliveira Faria Universidade Federal do Piauí, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Marcos Uzel Pereira da Silva Heloisa Candello Universidade Federal da Bahia, Brasil IBM e University of Brighton, Inglaterra Marcus Fernando da Silva Praxedes Heloisa Juncklaus Preis Moraes Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil Margareth de Souza Freitas Thomopoulos Ismael Montero Fernández, Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade Federal de Roraima, Brasil Maria Angelica Penatti Pipitone Jeronimo Becker Flores Universidade Estadual de Campinas, Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil Maria Cristina Giorgi Jorge Eschriqui Vieira Pinto Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Brasil Jorge Luís de Oliveira Pinto Filho Maria de Fátima Scaffo Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil José Luís Giovanoni Fornos Pontifícia Maria Isabel Imbronito Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Josué Antunes de Macêdo Maria Luzia da Silva Santana Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil Júlia Carolina da Costa Santos Maria Sandra Montenegro Silva Leão Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil Juliana de Oliveira Vicentini Michele Marcelo Silva Bortolai Universidade de São Paulo, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Juliana Tiburcio Silveira-Fossaluzza Miguel Rodrigues Netto Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil Julierme Sebastião Morais Souza Nara Oliveira Salles Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Karlla Christine Araújo Souza Neli Maria Mengalli Universidade Federal da Paraíba, Brasil Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil Laionel Vieira da Silva Patricia Bieging Universidade Federal da Paraíba, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Marcia Raika Silva Lima Patrícia Helena dos Santos Carneiro Sebastião Silva Soares Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Federal do Tocantins, Brasil Patrícia Oliveira Simone Alves de Carvalho Universidade de Aveiro, Portugal Universidade de São Paulo, Brasil Patricia Mara de Carvalho Costa Leite Stela Maris Vaucher Farias Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Paulo Augusto Tamanini Tadeu João Ribeiro Baptista Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal de Goiás, Brasil Priscilla Stuart da Silva Tania Micheline Miorando Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Radamés Mesquita Rogério Tarcísio Vanzin Universidade Federal do Ceará, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Ramofly Bicalho Dos Santos Thiago Barbosa Soares Universidade de Campinas, Brasil Universidade Federal de São Carlos, Brasil Ramon Taniguchi Piretti Brandao Thiago Camargo Iwamoto Universidade Federal de Goiás, Brasil Universidade de Brasília, Brasil Rarielle Rodrigues Lima Thyana Farias Galvão Universidade Federal do Maranhão, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Raul Inácio Busarello Valdir Lamim Guedes Junior Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Renatto Cesar Marcondes Valeska Maria Fortes de Oliveira Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Ricardo Luiz de Bittencourt Vanessa Elisabete Raue Rodrigues Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Rita Oliveira Vania Ribas Ulbricht Universidade de Aveiro, Portugal Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Robson Teles Gomes Wagner Corsino Enedino Universidade Federal da Paraíba, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil Rodiney Marcelo Braga dos Santos Wanderson Souza Rabello Universidade Federal de Roraima, Brasil Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Rodrigo Amancio de Assis Washington Sales do Monte Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidade Federal de Sergipe, Brasil Rodrigo Sarruge Molina Wellington Furtado Ramos Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil Rosane de Fatima Antunes Obregon Universidade Federal do Maranhão, Brasil PARECERISTAS E REVISORES(AS) POR PARES Avaliadores e avaliadoras Ad-Hoc Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos Aguimario Pimentel Silva Universidade Federal da Paraíba, Brasil Instituto Federal de Alagoas, Brasil Adilson Cristiano Habowski Alessandra Dale Giacomin Terra Universidade La Salle - Canoas, Brasil Universidade Federal Fluminense, Brasil Adriana Flavia Neu Alessandra Figueiró Thornton Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Luterana do Brasil, Brasil Alessandro Pinto Ribeiro Camila Amaral Pereira Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil Universidade Estadual de Campinas, Brasil Alexandre João Appio Carlos Eduardo Damian Leite Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Aline Corso Carlos Jordan Lapa Alves Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Aline Marques Marino Carolina Fontana da Silva Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Aline Patricia Campos de Tolentino Lima Carolina Fragoso Gonçalves Centro Universitário Moura Lacerda, Brasil Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Ana Emidia Sousa Rocha Cássio Michel dos Santos Camargo Universidade do Estado da Bahia, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul-Faced, Brasil Ana Iara Silva Deus Cecília Machado Henriques Universidade de Passo Fundo, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Ana Julia Bonzanini Bernardi Cíntia Moralles Camillo Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Ana Rosa Gonçalves De Paula Guimarães Claudia Dourado de Salces Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade Estadual de Campinas, Brasil André Gobbo Cleonice de Fátima Martins Universidade Federal da Paraíba, Brasil Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Andressa Antonio de Oliveira Cristiane Silva Fontes Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Andressa Wiebusch Cristiano das Neves Vilela Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal de Sergipe, Brasil Angela Maria Farah Daniele Cristine Rodrigues Universidade de São Paulo, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil Anísio Batista Pereira Daniella de Jesus Lima Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade Tiradentes, Brasil Anne Karynne da Silva Barbosa Dayara Rosa Silva Vieira Universidade Federal do Maranhão, Brasil Universidade Federal de Goiás, Brasil Antônia de Jesus Alves dos Santos Dayse Rodrigues dos Santos Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal de Goiás, Brasil Antonio Edson Alves da Silva Dayse Sampaio Lopes Borges Universidade Estadual do Ceará, Brasil Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Ariane Maria Peronio Maria Fortes Deborah Susane Sampaio Sousa Lima Universidade de Passo Fundo, Brasil Universidade Tuiuti do Paraná, Brasil Ary Albuquerque Cavalcanti Junior Diego Pizarro Universidade do Estado da Bahia, Brasil Instituto Federal de Brasília, Brasil Bianca Gabriely Ferreira Silva Diogo Luiz Lima Augusto Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil Bianka de Abreu Severo Ederson Silveira Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Bruna Carolina de Lima Siqueira dos Santos Elaine Santana de Souza Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Bruna Donato Reche Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Universidade Estadual de Londrina, Brasil Eleonora das Neves Simões Bruno Rafael Silva Nogueira Barbosa Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil Elias Theodoro Mateus Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Elisiene Borges Leal Inara Antunes Vieira Willerding Universidade Federal do Piauí, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Elizabete de Paula Pacheco Ivan Farias Barreto Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Elizânia Sousa do Nascimento Jacqueline de Castro Rimá Universidade Federal do Piauí, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil Elton Simomukay Jeane Carla Oliveira de Melo Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Universidade Federal do Maranhão, Brasil Elvira Rodrigues de Santana João Eudes Portela de Sousa Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Tuiuti do Paraná, Brasil Emanuella Silveira Vasconcelos João Henriques de Sousa Junior Universidade Estadual de Roraima, Brasil Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Érika Catarina de Melo Alves Joelson Alves Onofre Universidade Federal da Paraíba, Brasil Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil Everton Boff Juliana da Silva Paiva Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil Fabiana Aparecida Vilaça Junior César Ferreira de Castro Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil Universidade Federal de Goiás, Brasil Fabiano Antonio Melo Lais Braga Costa Universidade Nova de Lisboa, Portugal Universidade de Cruz Alta, Brasil Fabrícia Lopes Pinheiro Leia Mayer Eyng Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Fabrício Nascimento da Cruz Manoel Augusto Polastreli Barbosa Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Francisco Geová Goveia Silva Júnior Marcio Bernardino Sirino Universidade Potiguar, Brasil Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Francisco Isaac Dantas de Oliveira Marcos dos Reis Batista Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Universidade Federal do Pará, Brasil Francisco Jeimes de Oliveira Paiva Maria Edith Maroca de Avelar Rivelli de Oliveira Universidade Estadual do Ceará, Brasil Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Gabriella Eldereti Machado Michele de Oliveira Sampaio Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Gean Breda Queiros Miriam Leite Farias Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Germano Ehlert Pollnow Natália de Borba Pugens Universidade Federal de Pelotas, Brasil Universidade La Salle, Brasil Glaucio Martins da Silva Bandeira Patricia Flavia Mota Universidade Federal Fluminense, Brasil Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Graciele Martins Lourenço Raick de Jesus Souza Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Fundação Oswaldo Cruz, Brasil Handherson Leyltton Costa Damasceno Railson Pereira Souza Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal do Piauí, Brasil Helena Azevedo Paulo de Almeida Rogério Rauber Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Heliton Diego Lau Samuel André Pompeo Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Hendy Barbosa Santos Simoni Urnau Bonfiglio Faculdade de Artes do Paraná, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil Tayson Ribeiro Teles Wellton da Silva de Fátima Universidade Federal do Acre, Brasil Universidade Federal Fluminense, Brasil Valdemar Valente Júnior Weyber Rodrigues de Souza Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil Wallace da Silva Mello Wilder Kleber Fernandes de Santana Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil PARECER E REVISÃO POR PARES Os textos que compõem esta obra foram submetidos para avaliação do Conselho Editorial da Pimenta Cultural, bem como revisados por pares, sendo indicados para a publicação. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001 Direção editorial Diretor de sistemas Patricia Bieging Raul Inácio Busarello Marcelo Eyng Diretor de criação Raul Inácio Busarello Assistente de arte Ligia Andrade Machado Editoração eletrônica Editora executiva Assistente editorial Imagens da capa Peter Valmorbida Patricia Bieging Landressa Schiefelbein Dashu83, Kwangmoop, Freepik - Freepik.com Revisão Manoel Weinheimer Organizadoras Fernanda Wanderer Daiane Martins Bocasanta Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ___________________________________________________________________________ E244 Educação na contemporaneidade: questões e desafios. Fernanda Wanderer, Daiane Martins Bocasanta organizadoras. São Paulo: Pimenta Cultural, 2021. 283p.. Inclui bibliografia. ISBN: 978-65-5939-140-0 (eBook) 1. Educação. 2. Ensino. 3. Aprendizagem. 4. Escola. 5. Inclusão. 6. Matemática. 7. Pedagogia. I. Wanderer, Fernanda. II. Bocasanta, Daiane Martins. III. Título. CDU: 370 CDD: 370 DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400 ___________________________________________________________________________ PIMENTA CULTURAL São Paulo - SP Telefone: +55 (11) 96766 2200 livro@pimentacultural.com www.pimentacultural.com 2 0 2 1 DEDICATÓRIA Michel Foucault, ao encerrar a Aula Inaugural proferida no Collège de France, em 2 de dezembro de 1970, publicada no livro A Ordem do Discurso, agradece a alguns autores que o inspiraram e auxiliaram na elaboração de sua aula. Mas, de forma especial, expressa sua dívida a Jean Hyppolite. Diz Foucault (2001, p.78): “é porque tomei dele, sem dúvida, o sentido e a possibilidade do que faço, é porque muitas vezes ele me esclareceu quando eu tentava às cegas, que eu quis situar meu trabalho sob seu signo e terminar, evocando-o, a apresentação de meus projetos”. Inspiradas nas palavras e na bela homenagem que Foucault endereça a Jean Hyppolite, dedicamos este livro a Gelsa Knijnik, que ao longo de sua trajetória profissional nos mobilizou, impulsionou e nos esclareceu com seu rigor acadêmico, sua imensa capacidade intelectual e enorme generosidade! FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2001. SUMÁRIO Apresentação ................................................................................. 13 Prefácio .......................................................................................... 19 Capítulo 1 Trabalhar com a “realidade” na educação do campo................................................................. 23 Fernanda Wanderer Daiane Martins Bocasanta Capítulo 2 Escola de surdos, matemática e processos de normalização ....................................................... 45 Fernando Henrique Fogaça Carneiro Capítulo 3 Currículo bilíngue na educação básica ........................................ 63 Maria Luísa Lenhard Bredemeier Capítulo 4 As questões étnico-raciais no ensino fundamental .................................................................. 78 Mônica Nunes Capítulo 5 Práticas de iniciação científica na escola ..................................... 98 Daiane Martins Bocasanta Luciane Andreia Leite dos Santos Tanise Müller Ramos Capítulo 6 Ensinar matemática nos anos iniciais: enunciados que constituem docências ...................................... 117 Fernanda Longo Capítulo 7 Governamentalidade e o exame nacional do ensino médio (ENEM) ............................................................ 135 Marília Dal Moro Capítulo 8 Redesenhos curriculares em cenários de pandemia ........................................................... 152 Camila da Silva Fabis Caroline Brandelli Garziera Capítulo 9 Literatura potencial: uma aliada da educação matemática ............................................................ 168 Josaine de Moura Capítulo 10 Ensinar e aprender matemática com o Youtube ......................................................... 185 Débora de Lima Velho Junges Lucas Pereira da Rosa Capítulo 11 Estratégias de ensino em tempos de virtualização ........................................................ 201 Ieda Maria Giongo José Cláudio del Pino Marli Teresinha Quartieri Capítulo 12 Educação matemática, currículo e curso técnico agrícola .............................................................. 217 Neila de Toledo e Toledo Capítulo 13 Formação de recursos humanos para as áreas tecnocientíficas .................................................... 236 Giovana Alexandra Stevanato Capítulo 14 Avanços tecnocientíficos, matemática escolar e formação de professores ............................................ 255 Fernanda Zorzi Juliana Meregalli Schreiber Karine Pertile Sobre as organizadoras .............................................................. 275 Sobre os autores e as autoras .................................................... 276 Índice remissivo .......................................................................... 281 APRESENTAÇÃO Daiane Martins Bocasanta Fernanda Wanderer Compreendam bem que o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade, o anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um “muito cedo” que é, também, um “muito tarde”, de um “já” que é, também, um “ainda não”. E do mesmo modo, reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós (AGAMBEN, 2009, p. 65-66). O desafio que guiou a construção deste livro foi pensar e discutir a Educação na contemporaneidade que, para Agamben (2009), pode ser entendida como uma ligação singular que estabelecemos com o próprio tempo. Sendo assim, cada um e cada uma de nós mobiliza diferentes relações com o tempo. Disso resulta que “aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela” (AGAMBEN, 2009, p. 59). Precisamos ser capazes de enxergar não apenas as luzes originadas em nossa época, mas antes, descobrir suas trevas, aquilo que apenas desencaixes com o próprio tempo permitiriam entrever. É neste jogo entre dissociações e anacronismos temporais que as pesquisas aqui apresentadas se inspiraram para problematizar diferentes questões e desafios da Educação. A maioria delas, relativas aos problemas que a escola – essa instituição eternamente em crise – enfrenta. Essa crise, entendida como um modo de governo (DARDOT; LAVAL, 2016), passa-nos a impressão de que a escola já SUMÁR I O 13 não pertenceria a este tempo e época, devendo ser completamente reformada (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017). Podemos dizer que o ano de 2020 marca a imersão do mundo em uma lógica sem precedentes na história mais recente. Tivemos a oportunidade de observar como algo minúsculo, impossível de visualizarmos a olho nu – tal como é um vírus – é capaz de constituirse em elemento poderoso, responsável pela obstrução de fronteiras, abalos na economia, caos na área da saúde e fechamento de escolas, privando professores e alunos dos espaços formais de ensino, aprendizagem e convivência. Nesse sentido, nós, como docentes pesquisadores(as), reinventávamos a sala de aula que se deslocou para nossas casas – e de nossos alunos e alunas também – em meio a rotinas caseiras, panelas, filhos e reuniões virtuais, enquanto dávamos forma a este livro. Todo esse contexto, ao invés de nos paralisar, evidenciou ainda mais a necessidade de nos debruçarmos sobre o que ocorre no campo educacional na contemporaneidade. Inclusive, alguns dos estudos que aqui apresentamos se encarregam de refletir precisamente sobre aspectos emergentes da pandemia causada pela COVID-19. Porém, cabe ressaltar, os trabalhos aqui reunidos, longe de apontarem erros, discordâncias, crises e mazelas, inspiram direcionamentos, fomentam nossas percepções, aguçam nossa crítica, levam-nos a problematizar e, com isso, fazer frente à constatação de Deleuze e Guattari (1992, p. 139) de que “falta-nos resistência ao presente”. Mobilizados por esta tentativa de resistir ao presente, os autores dos capítulos deste livro aceitaram nosso desafio de mostrar algumas das questões emergentes no campo educacional, produzidas em diferentes espaços. Assim, a obra reúne pesquisas e estudos desenvolvidos por pesquisadoras e pesquisadores de diferentes instituições, como Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Universidade do Vale do SUMÁR I O 14 Taquari (UNIVATES), Instituto Federal Catarinense (IFC), Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Universidade La Salle (UNILASALLE), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Colégio Militar de Porto Alegre (CPMA), Rede Marista, Colégio de Aplicação da UFRGS (CAp/UFRGS), Colégio Farroupilha e Colégio Teutônia. A arquitetura do livro buscou evidenciar a abordagem de diferentes facetas que compõem desafios com os quais nos deparamos ao discutir a Educação. Destarte, o primeiro capítulo, escrito por Fernanda Wanderer e Daiane Martins Bocasanta, intitulado “Trabalhar com a ‘realidade’ na Educação do campo” apresenta resultados de uma pesquisa que examinou enunciações sobre a escola do campo produzidas por estudantes de um Curso de Licenciatura em Educação do Campo do Rio Grande do Sul. Dentre outros resultados, esse estudo mostrou a recorrência de enunciados que enfatizam a necessidade de se “trabalhar com a realidade” dos educandos da escola do campo. O capítulo seguinte, de Fernando Henrique Fogaça Carneiro, denominado “Escolas de surdos, matemática e processos de normalização”, problematiza questões relativas à Educação Matemática escolar e seus processos de normalização na contemporaneidade. Realizada em uma escola bilíngue para alunos surdos, a investigação mostrou que, de forma recorrente, ao se referirem aos alunos que não aprendem ou que apresentam “dificuldades de aprendizagem”, as enunciações examinadas posicionam sempre os próprios estudantes como responsáveis pelo seu “fracasso”. “Currículo bilíngue na Educação Básica”, de Maria Luísa Lenhard Bredemeier, é o terceiro capítulo do livro que toma como temática a discussão do movimento empreendido nas últimas décadas por escolas privadas na estruturação e implementação de currículos bilíngues. O material de pesquisa constitui-se de textos disponíveis em sites de escolas que divulgam essa metodologia. Logo a seguir, a discussão SUMÁR I O 15 de questões relacionadas a tensionamentos étnico-raciais na área da Educação, com a análise de enunciações de alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental acerca de marcadores étnico-raciais que operam na escola e no município de Estrela (RS), marca o capítulo de Mônica Nunes, intitulado “As questões étnico-raciais no Ensino Fundamental”. Na sequência está o capítulo “Práticas de Iniciação Científica na escola”, no qual Daiane Martins Bocasanta, Luciane Andreia Leite dos Santos e Tanise Müller Ramos examinam efeitos de práticas de Iniciação Científica realizadas junto ao corpo discente do Colégio de Aplicação da UFRGS. Buscando refletir acerca de possibilidades de ressignificação da docência na escola contemporânea, as autoras compartilham algumas experiências gestadas com a intenção de qualificar o trabalho docente e as condições de permanência dos estudantes. Na mesma linha do capítulo anterior, o texto “Ensinar matemática nos Anos Iniciais: enunciados que constituem docências”, Fernanda Longo também tem como foco práticas pedagógicas colocadas em funcionamento por professoras que atuam no Ensino Fundamental. A partir de entrevistas com docentes da rede privada de Porto Alegre/ RS, a autora problematizou enunciados que conformam o discurso da Educação Matemática, buscando perceber os efeitos de verdade desses enunciados sobre as práticas pedagógicas. Já o capítulo de Marília Dal Moro, “Governamentalidade e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)” aborda algumas discussões teóricas levadas a cabo acerca dos efeitos produzidos pelo ENEM nas escolas, nos cursos de preparação para vestibulares, nas editoras de materiais didáticos, etc. Na sequência, temos o estudo “Redesenhos curriculares em cenários de pandemia”, em que Camila da Silva Fabis e Caroline Brandelli Garziera discutem acerca das mudanças advindas no período de paralisação das aulas presenciais nos colégios privados do Estado do Rio Grande do Sul, durante o ano letivo de 2020, decorrente da pandemia do COVID-19. Já o capítulo de Josaine SUMÁR I O 16 de Moura, também gestado em meio a um tempo de restrição da liberdade regulada, imposto pela pandemia de COVID-19, intitulase “Literatura potencial: uma aliada da educação matemática”. Nele é possível encontrar reflexões sobre outras formas de ensinar matemática inspiradas pelo encontro com os escritos de um grupo criado em 1960, o OuLiPo (Oficina de Literatura Potencial). A preocupação com os processos de ensino e aprendizagem de matemática também fazem parte do capítulo denominado “Ensinar e aprender matemática com o Youtube”. Nesse estudo, Débora de Lima Velho Junges e Lucas Pereira da Rosa encarregam-se da análise do Youtube como ferramenta de aprendizagem pelos alunos do Ensino Médio Integrado de uma instituição de ensino da rede federal. Na sequência está o estudo “Estratégias de ensino em tempos de virtualização”, de Ieda Maria Giongo, José Cláudio del Pino e Marli Teresinha Quartieri no qual refletem sobre as possibilidades e limitações que a rápida mudança da metodologia de aula de uma disciplina presencial de um Programa de Pós-Graduação em Ensino para o ensino virtualizado suscitou a partir do surgimento da pandemia de COVID-19. Os resultados de uma pesquisa que objetivou analisar os efeitos do discurso da tecnociência presentes na Educação Matemática praticada na disciplina de matemática e na Educação Matemática gestada nas disciplinas técnicas do curso Técnico em Agropecuária do IFRS-Sertão, na década de 1980 e na atualidade (entre 2008 e 2015), conformam o capítulo escrito por Neila de Toledo e Toledo. Intitulado “Educação Matemática, Currículo e Curso Técnico Agrícola”, o estudo mostrou que, nas últimas três décadas, a lista de conteúdos da disciplina de Matemática não se alterou e que a Educação Matemática da disciplina Matemática manteve sua abordagem abstrata e formal, enquanto a Educação Matemática presente nas disciplinas técnicas se alinhou com o discurso da tecnociência, incluindo recursos tecnológicos. SUMÁR I O 17 Giovana Alexandra Stevanato apresenta, em seu capítulo denominado “Formação de recursos humanos para as áreas tecnocientíficas”, discussões sobre a formação de recursos humanos para as áreas tecnocientíficas. Para tanto, a autora examinou o Programa Ciência sem Fronteiras (CsF), tendo como material de pesquisa documentos presentes no site do programa. Finalizamos o livro com o capítulo “Avanços tecnocientíficos, matemática escolar e formação de professores”, de Fernanda Zorzi, Juliana Meregalli Schreiber e Karine Pertile. A investigação visou a problematizar a formação continuada de professores para a Matemática escolar, refletindo sua relação com os avanços científicos e tecnológicos contemporâneos, em especial, no contexto da pandemia causada pelo novo coronavírus. Desse modo, temos o orgulho de apresentar nossa obra, fruto do esforço coletivo de um grupo de pesquisadoras e pesquisadores preocupados em problematizar, discutir, pensar e repensar a Educação na contemporaneidade. Desejamos a todos uma ótima leitura! REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: Uma questão pública. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. SUMÁR I O 18 PREFÁCIO O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem (...). A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 2007, §341) Livros – De que vale um livro que não nos transporte além dos livros? (NIETZSCHE, 2007, §248) Co(m)ovida com o convite feito por Fernanda e Daiane para escrever este prefácio, foi em Nietzsche que busquei inspiração para dar início à sua escrita. Pelo que conhecia de sua obra, acreditava que seria ele quem poderia me ajudar a dar início ao texto, um início que seria o condutor de ideias ainda muito incipientes... Estaria bem acompanhada por esse filósofo, que viveu na segunda metade do século XIX, e que trouxe à tona questões vigentes no panorama histórico e cultural do tempo presente. Formulou conceitos que, de modo radical, transformaram a filosofia contemporânea, muitos deles expressos também através de aforismos. SUMÁR I O 19 Com convicção afirmo que Educação na Contemporaneidade é um livro que nos transporta para além dele mesmo. Isso porque foi concebido como um conjunto de capítulos que examinam importantes temas do tempo presente, discutidos mediante uma literatura atual, relevante e abrangente, que nos convocam a pensar sobre questões que extrapolam os contextos específicos ali analisados. Somos instigados a pensar sobre nosso próprio pensamento, a nos questionar sobre o que, muitas vezes, tomamos como “dado”, quer seja em nossa prática docente ou em nossa atividade de pesquisa no âmbito educacional. Então, pergunto: O que de mais importante pode haver em uma coletânea do que aguçar nossa atitude reflexiva diante ao que aí está? Frente ao que somos e o que fazemos como profissionais da Educação? Mas esta coletânea tem também uma outra dimensão que, neste prefácio, desejo destacar. Refiro-me ao diversificado conjunto de instituições aos quais seus autores estão vinculados. Caberia indagar se Fernanda e Daiane, ao organizarem a obra, tiveram algum critério para sua escolha. A resposta a essa indagação é positiva. Em efeito, o que, em um primeiro momento, poderia parecer aleatório, não ocorreu: os (primeiros)autores de cada capítulo do livro têm vínculos com o Grupo Interinstitucional de Pesquisas em Educação Matemática e Sociedade – GIPEMS1, coordenado por mim e com sede na Unisinos, até a presente data. A institucionalização do GIPEMS ocorreu em um tempo bem posterior ao meu início como professora do Programa de PósGraduação em Educação da Unisinos, em 1996, quando orientei as primeiras dissertações de Mestrado de Fernanda Wanderer e Ieda Giongo, tendo posteriormente, ambas também realizado doutorado 1 SUMÁR I O Ao longo do tempo, o GIPEMS foi ampliado para incorporar o Grupo de Pesquisa coordenado pela Professora Maria da Conceição Reis da Fonseca, do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMG. No entanto, neste texto, para fins de simplificação de notação, ao utilizar a expressão GIPEMS estarei me referindo somente ao GIPEMS-Unisinos. 20 sob minha supervisão. A família intelectual2 (Souza et al, 2018) foi se ampliando, com o “nascimento” da “primeira neta”: Daiane Bocasanta, que havia feito Trabalho de Conclusão com Fernanda. Ambas, ao se proporem a organizar este livro, conceberam-no como um conjunto de textos escritos por membros de nossa família, agora composta por meus filhos e netos. Sinto-me especialmente orgulhosa ao me dar conta de como essa família hoje se ampliou rizomaticamente, conformando núcleos de pesquisa, ensino e extensão em diferentes instituições de Ensino Superior, inclusive para além do Rio Grande do Sul. Certamente este é o maior legado que deixo de minha trajetória acadêmica. Desejo terminar este texto parafraseando o aforismo O maior dos pesos, de Nietzsche, transcrito em seu início. O que responderia eu a um demônio que aparecesse furtivamente quando eu estivesse na minha mais desolada solidão, frente à sua pergunta, agora restrita à vida acadêmica, construída com meus orientandos e que foi se transformando, gradativamente, no GIPEMS: Esta vida acadêmica, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor da escrita de um artigo, da orientação de um estudante e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida acadêmica, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem (...) A perene ampulheta do existir academicamente será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”! Eu certamente não me prostraria, tampouco tangeria os dentes e muito menos o amaldiçoaria. 2 SUMÁR I O O autor utiliza a expressão família intelectual para se referir a um conjunto de produções acadêmicas que “remetem a uma unidade intelectual, ou seja, a um estilo particular de pensamento. Daí o uso heurístico atribuído à noção analítica de “família”.” (Souza et al, 2018, p. 109) 21 Mesmo que ele talvez me esmagasse e me transformasse, eu experimentaria um instante intenso e lhe chamaria de deus, lhe diria que jamais ouvira coisa tão divina. Isso porque eu tenho convicção de que desejaria a construção desta família intelectual que leva o nome de GIPEMS mais uma vez e por incontáveis vezes, mesmo que isso pesasse sobre os meus atos como o maior dos pesos! REFERÊNCIAS NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SOUZA J., OLIVEIRA, V.M., MARCHI JÚNIOR, V. A “família intelectual” marxista e os estudos sociais do esporte no Brasil – recepção, rotinização e implicações epistemológicas. Revista Ciência e Movimento, v.26, n.2, 2018, p. 103-112. Gelsa Knijnik Dezembro de 2020 SUMÁR I O 22 Capítulo 1 1 TRABALHAR COM A “REALIDADE” NA EDUCAÇÃO DO CAMPO Fernanda Wanderer Daiane Martins Bocasanta Fernanda Wanderer Daiane Martins Bocasanta TRABALHAR COM A “REALIDADE” NA EDUCAÇÃO DO CAMPO DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.23-44 INTRODUÇÃO A Educação, na contemporaneidade, enfrenta diversos desafios em suas muitas áreas de atuação perante a população. Uma dessas áreas, que se encontra envolta em tensionamentos e disputas, é a da educação do campo. Assim, neste capítulo, apresentamos os resultados de uma investigação desenvolvida com o propósito de examinar enunciações sobre a escola do campo3 produzidas por estudantes de um Curso de Licenciatura em Educação do Campo do Rio Grande do Sul. Para essa reflexão foram examinados documentos do referido Curso e questionários aplicados em todas as turmas de acadêmicos. O referencial teórico utilizado na investigação advém do pensamento de Michel Foucault e Zygmunt Bauman. A educação do campo, no Brasil, enfrenta grandes e complexos desafios que se efetivam na falta de escolas e de professores com formação específica, nos escassos materiais pedagógicos direcionados às culturas do campo, em problemas de acesso e permanência da população rural nas instituições de ensino, entre outros (HAGE, 2011; ARROYO, 2007). Mesmo assim, ao longo das últimas décadas, podese observar que essa área da Educação tem sido mais discutida, investigada e debatida. Essas ações emergem, basicamente, com a luta de militantes e pesquisadores vinculados a movimentos sociais, como o Movimento Sem Terra, que chamaram a atenção para a situação de abandono e/ou inferioridade que as formas de vida do campo vinham assumindo no currículo escolar e na sociedade (ARROYO, 2007; CALDART, 2000, 2002, 2003; KNIJNIK, 2006). 3 SUMÁR I O Ao mencionar, neste artigo, “educação do campo” ou “escola do campo”, seguimos as Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2013, p. 443) que compreendem como população do campo: “os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural”. 24 Com isso, no cenário brasileiro contemporâneo, pode-se visualizar a inclusão da educação do campo em documentos oficiais do Ministério da Educação, como nas Diretrizes Curriculares Nacionais, e em programas endereçados à escolarização básica, como o Programa Escola Ativa e o seu sucessor, Escola da Terra. Recentemente, a educação do campo passa a ser foco também de políticas públicas cuja abrangência envolve não apenas a Educação Básica, mas também o Ensino Superior, como o PRONACAMPO (Programa Nacional de Educação do Campo). Essa política tem como propósito a ampliação e a qualificação da oferta de Educação Básica e superior às populações localizadas em zonas rurais. O Programa está organizado em quatro eixos: Gestão e Práticas Pedagógicas; Formação Inicial e Continuada de Professores; Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional; Infraestrutura Física e Tecnológica (BRASIL, 2013b). Decorre da organização dos eixos e do objetivo geral do Pronacampo a realização de um conjunto de ações que atuam sobre as formas de vida do campo. Ao examinarmos detalhadamente suas medidas, percebemos o propósito de atingir essa esfera da população por meio de ações como: distribuição de livros didáticos e obras que contemplem as especificidades do campo e comunidades quilombolas, promoção da educação integral nas escolas rurais, criação de cursos de formação inicial e continuada para educadores do campo, expansão de cursos de qualificação profissional específicos para o campo, bolsa-formação para estudantes e trabalhadores rurais e a disponibilização de uma série de recursos financeiros para compra de móveis e equipamentos (BRASIL, 2013b). Apoiando-nos nas teorizações foucaultianas sobre as práticas de governamento e em estudos recentes que se serviram desse referencial para examinar políticas públicas para a educação do campo, como os desenvolvidos por Knijnik e Wanderer (2013), Wanderer e Knijnik (2014) e Wanderer (2017), compreendemos o Pronacampo SUMÁR I O 25 como um conjunto de estratégias que fazem parte de um dispositivo de governamento da população do campo. Nosso trabalho segue, especificamente, o apontado por Knijnik e Wanderer (2013) quando examinaram o Programa Escola Ativa (PEA), endereçado às escolas multisseriadas do campo no período de 1997 até, aproximadamente, 2014. Analisando materiais disponibilizados pelo PEA aos alunos e professores, bem como questionários aplicados a educadores que atuavam no Programa, as autoras mostraram que o discurso do PEA operava sobre professores, alunos, gestores das escolas multisseriadas do campo e, no limite, sobre a população camponesa no governo de suas condutas. Ao regular as condutas dos sujeitos, o PEA funcionaria como parte de um dispositivo de governamento da população que institui uma visão despolitizada e romântica do campo e posiciona a forma de vida camponesa em um patamar inferior ao da forma de vida urbana (KNIJNIK; WANDERER, 2013). Inspiradas naquela pesquisa, consideramos o Pronacampo como uma política pública endereçada à população do campo que também regula e conduz condutas dos sujeitos capturados por ela. Nosso empreendimento analítico esteve focado em identificar, descrever e problematizar enunciações – entendidas como centrais na operação da razão governamental estabelecida em determinada época e para certas sociedades (MARÍN-DIAZ, 2012) – engendradas em uma das instâncias do Pronacampo: os Cursos de Licenciatura em Educação do Campo. Nesse ínterim, a noção foucaultiana de governamentalidade é relevante para evidenciar práticas inscritas em um dispositivo que opera por meio de múltiplas estratégias visando ao governamento de todos e de cada um. No entanto, em que consiste a governamentalidade em um registro foucaultiano? Ao discutir a emergência do conceito de população, Foucault (2008) problematiza as formas de poder e regulação que passam a operar sobre ela com o propósito de melhor governá-la. Nesse ponto, o filósofo introduz o conceito de governamentalidade para abordar as SUMÁR I O 26 diversas maneiras de governar, destacando “o governo de si mesmo, que pertence à moral; a arte de governar uma família como convém, que pertence à economia; enfim a ‘ciência de bem governar’ o Estado, que pertence à política” (FOUCAULT, 2008, p. 125). As noções de governo e de governamentalidade, de acordo com Castro (2009), estão no centro da obra de Foucault. “Quanto à noção foucaultiana de governo, ela tem, para expressá-lo de alguma maneira, dois eixos: o governo como relação entre sujeitos e o governo como relação consigo mesmo” (CASTRO, 2009, p. 190). Pode-se dizer que, no primeiro eixo, considera-se governar no sentido de conduzir condutas de um grupo ou indivíduo. E, no segundo, são enfatizadas as relações estabelecidas consigo mesmo, na medida em que se trata de dominar prazeres e desejos. Nesta escrita, estamos usando a noção foucaultiana do primeiro eixo, ou seja, governar no sentido de conduzir condutas de um grupo ou indivíduo. A governamentalidade, então, possibilita-nos conceber o Pronacampo e o conjunto de ações que dele são engendradas como mecanismos de regulação e controle das condutas dos sujeitos. Uma dessas ações é a criação e expansão dos Cursos de Licenciatura em Educação do Campo no País (DUARTE; SANTOS, 2015; SACHS; ELIAS, 2016), lócus de nosso estudo. Esses Cursos são realizados pelas Universidades Federais e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia em regime de alternância: tempouniversidade e tempo-comunidade. Oferecem habilitação para docência multidisciplinar nos Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio em uma destas áreas: linguagens e códigos, ciências humanas, ciências da natureza, matemática e ciências agrárias. Por ser uma política pública presente em todas as regiões do País, envolvendo professores e estudantes interessados nos processos educativos das escolas do campo e as comunidades onde essas instituições se localizam, os Cursos de Licenciatura em SUMÁR I O 27 Educação do Campo têm sido objeto de pesquisas recentes como as de Molina e Hage (2016), Sá (2016) e Angelo (2013). Nossa investigação se aproxima desses estudos pelo fato de examinar enunciações de acadêmicos do referido Curso sobre a escola do campo. Porém, a diferença está nas lentes teóricas adotadas e no lócus da investigação, que será apresentado na próxima seção. METODOLOGIA A parte empírica do estudo foi realizada com acadêmicos do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Como previsto no Projeto Político Pedagógico do Curso, o licenciado está habilitado a atuar: na disciplina de Ciências, nos Anos Finais do Ensino Fundamental; nas disciplinas de Química, Física e Biologia, no Ensino Médio; na Modalidade Educação de Jovens e Adultos e na Educação Profissional. Também poderá executar projetos de desenvolvimento sustentável utilizando a agroecologia. Em relação à estrutura curricular, o Curso caracteriza-se pela pedagogia da alternância, dividindo os períodos de formação entre o “Tempo Comunidade” e o “Tempo Universidade”. O material de pesquisa examinado é composto por documentos do Curso (como o Projeto Político Pedagógico e as ementas das disciplinas) e questionários aplicados em todas as turmas. Esse questionário visava, além de conhecer elementos das trajetórias escolar e profissional dos acadêmicos, a identificar suas concepções sobre uma escola do campo. No momento da aplicação dos questionários, três turmas frequentavam a Licenciatura em Educação do Campo, em Porto Alegre: a primeira, com ingresso em 2014, possuía 6 alunos; a segunda, com entrada em 2015, tinha 24 alunos, e a terceira, com ingresso em 2016, era composta por 49 alunos. SUMÁR I O 28 Nos dias em que os questionários foram aplicados, nem todos os alunos matriculados estiveram presentes. Desse modo, obtivemos ao todo 47 questionários. A análise quantitativa desse material mostrou que todos os estudantes do Curso residem na região metropolitana de Porto Alegre. Predominam moradores da zona urbana, sendo que apenas uma aluna reside em uma comunidade quilombola e outra em um assentamento. Examinando a trajetória acadêmica dos estudantes, verificou-se que 61% do grupo não possuíam formação anterior na área da Educação, ou seja, 36% dos alunos não mencionaram outra formação, e 25% do grupo declararam ter frequentado Cursos Técnicos Profissionalizantes em áreas como Agropecuária, Logística, Segurança do Trabalho, Eletrônica, Meio Ambiente, Auxiliar de Empresa e Gestão – RH. Apenas um aluno possuía Curso Superior completo, no caso, em Administração de Empresas. Os demais estudantes possuíam vínculo (anterior ou atual) com a área da Educação. Desses, alguns declararam que iniciaram Curso Superior em diferentes Licenciaturas como História, Pedagogia, Ciências Naturais, Educação Física, Biologia e Letras, mas não concluíram, basicamente, por problemas financeiros. Atuavam como professores apenas nove acadêmicos do Curso: três nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, um na área de História, e cinco afirmaram ser professores em escolas do campo. A estratégia analítica posta em ação para operar com o material de pesquisa reunido foi orientada pela análise do discurso em uma perspectiva foucaultiana. Na ocasião de uma entrevista concedida a Claude Bonnefoy, em 1968, Foucault (2016, p. 42) expressou que sua preocupação, nos últimos dez anos, era entender o que seria, em uma cultura como a nossa, em uma sociedade, “a existência das falas, da escrita, do discurso”. Dando continuidade à sua linha de pensamento, o filósofo argumentou que “os discursos não são apenas uma espécie de película transparente através da qual se veem as coisas, não são SUMÁR I O 29 simplesmente o espelho daquilo que se pensa” (FOUCAULT, 2016, p. 42). Nesse sentido, os discursos – tal como recorrentemente é citado, quando a arquitetura de uma pesquisa é constituída a partir da análise do discurso na clave foucaultiana – são “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2002, p. 56). Desse modo, tendo em mãos os questionários e os documentos do Curso, nossa pretensão foi dar visibilidade e examinar as recorrências, isto é, buscar pelos enunciados que se faziam presentes naquilo que os alunos escreveram e no que líamos no PPP do Curso. Os enunciados, seguindo aquilo que aprendemos com Foucault e alguns de seus comentadores, como Deleuze (2006), Veiga-Neto (2003) e Fischer (2012), não seriam palavras, frases ou proposições, mas formações que se fazem visíveis quando os sujeitos das frases, os objetos da proposição e os significados das palavras mudam de natureza. Isso ocorre quando esses elementos tomam o lugar do “diz-se”, distribuindo-se, dispersando-se na espessura da linguagem (DELEUZE, 2006). Isso possibilita, como argumenta Fischer (2012, p. 103), questionar “[...] como algumas práticas acabam por objetivar e nomear de determinada forma os sujeitos, os grupos, suas ações, gestos, vidas”. No caso deste trabalho, podemos refletir o quanto as ideias que circulam sobre escola do campo se fazem presentes naquilo que dizem os licenciandos. Não só naquilo que dizem, mas naquilo que pode direcionar suas formas de conceber as escolas do campo, suas ações e gestos como futuros educadores. Por conseguinte, é isso que buscamos apresentar na próxima seção. SUMÁR I O 30 ESCOLA DO CAMPO, GESTÃO DO RISCO E A GUETIZAÇÃO A análise do material evidenciou algumas recorrências sobre as concepções dos acadêmicos do Curso de Licenciatura sobre a escola do campo. Nos questionários, em especial, quando solicitados a escrever sobre uma escola que atende crianças e jovens das zonas rurais, eles expressaram a necessidade de valorizar a cultura presente no campo, levando em conta, no processo de escolarização, principalmente, a “realidade” do grupo atendido: Pra mim uma escola do Campo tem que ter, além de estrutura, salas, pessoal, mas tem que ser uma escola viva, ligada a realidade dos alunos e para isso acontecer todos, todos, tem que conhecer as famílias dos alunos, as pessoas que ali trabalham precisam querer estar ali, respeitar aquelas pessoas e incentivar as crianças para todas as possibilidades que existem no mundo. A escola do campo deveria ser mais próxima à realidade do campo. Abranger os conhecimentos necessários e de acordo com os saberes e a cultura desse povo. Utilizar métodos que sejam reconhecidos por eles. Há diferenças entre a escola do campo e da cidade. A escola da cidade é voltada para a formação profissional, e do campo utiliza os saberes já existentes e através de metodologia deve ensinar respeitando a cultura já existente. [A escola do campo é] um território, um espaço no qual valorize a trajetória daquele indivíduo empoderando-o. Resgatando aquela cultura daquele campo. Sim, há uma diferença, os indivíduos e cada comunidade e grupo tem que ter uma metodologia, uma maneira de lecionar. Uma escola do campo deve dialogar com o contexto e realidade das populações e povos do campo. Para além dos conteúdos que dizem ser essencial para a aprendizagem, tem que dialogar com os saberes culturais existentes. SUMÁR I O 31 Os excertos selecionados evidenciam que a escola do campo precisa estar “ligada à realidade”, “próxima” do campo, mantendo “diálogo” com os saberes culturais dos alunos. Para isso, é preciso, nas palavras dos estudantes, conhecer as famílias presentes nas escolas, utilizar metodologias que sejam reconhecidas pelos discentes e valorizar suas trajetórias individuais. Chama a atenção a recorrência da ideia de que a escola do campo “deve” trabalhar com a forma de vida do campo. Do mesmo modo, a vida no campo e o tipo de trabalho ali realizado parece ser entendido de uma forma diferente daquele do meio urbano. Os saberes que circulam na forma de vida do campo, no dizer dos licenciandos, não precisam de uma “validação acadêmica”, ao contrário dos saberes necessários ao mundo do trabalho do meio urbano. Como descreveu uma das participantes da pesquisa: “a escola da cidade é voltada para a formação profissional, e a do campo utiliza os saberes já existentes e através de metodologia deve ensinar respeitando a cultura existente”. Lendo atentamente as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação do Campo (BRASIL, 2013a), bem como documentos do Pronacampo (BRASIL, 2013b) e do Curso de Licenciatura, percebemos que há a constituição de uma verdade relacionada à ideia de que as escolas do campo precisam contemplar a realidade do campo. Essa verdade, no sentido analisado por Foucault (2003), encontra sustentação em diferentes enunciações presentes nos materiais escrutinados e em documentos oficiais. Excertos das Diretrizes Curriculares Nacionais evidenciam essa questão: a identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação com as questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as SUMÁR I O 32 soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no País (BRASIL, 2013a, p. 45). A educação para a população rural está prevista no artigo 28 da LDB, em que ficam definidas, para atendimento à população rural, adaptações necessárias às peculiaridades da vida rural e de cada região, definindo orientações para três aspectos essenciais à organização da ação pedagógica: I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos estudantes da zona rural; II – organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III – adequação à natureza do trabalho na zona rural (BRASIL, 2013a, p. 45). As propostas pedagógicas das escolas do campo devem contemplar a diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia. Formas de organização e metodologias pertinentes à realidade do campo devem, nesse sentido, ter acolhida (BRASIL, 2013a, p. 45). Além das Diretrizes, consideramos pertinente destacar também alguns fragmentos presentes na Portaria n. 86, de 1º de fevereiro de 2013 (BRASIL, 2013b), que institui o Pronacampo. No texto é expresso que os princípios da educação do campo consistem em: “respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais, culturais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero, geracional e de raça e etnia”; “incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos específicos para as escolas do campo […]”; “valorização da identidade da escola do campo por meio de projetos pedagógicos com conteúdos e metodologias adequadas às reais necessidades dos alunos do campo”. Também, no Projeto Político Pedagógico do Curso de Licenciatura aqui examinado e em algumas ementas de disciplinas, observa-se uma forte alusão à importância de que as escolas do campo trabalhem com essa forma de vida: SUMÁR I O 33 A proposta curricular do curso possibilitará que o licenciando vivencie em seu cotidiano acadêmico a valorização e a produção de conhecimentos e saberes contextualizados no mundo da vida rural, em particular os mundos do trabalho docente e do Campo (PPP do Curso). Constituição da docência, a partir da investigação de conhecimentos técnico-científicos, de saberes advindos do exercício profissional escolar e de práticas socioculturais que se articulam com questões inerentes à realidade do campo. Possibilidades de recriação de uma docência peculiar do/no campo (Ementa da disciplina Introdução à Docência no Campo). Estudo do pensamento educacional curricular, com ênfase na perspectiva do currículo como produção cultural. Investigação de saberes e práticas da vida e trabalho no campo, visando possibilidades de instituí-los como conteúdos escolares (Ementa da disciplina Currículo para uma Educação do Campo). Os excertos selecionados ajudam-nos a pensar, pelo menos, em duas questões. Uma delas diz respeito à constituição da escola do campo como sendo “definida pela sua vinculação com as questões inerentes à sua realidade”, ou seja, com a forma de vida do campo. Que escola seria essa? Os acadêmicos e os documentos examinados enunciam: uma instituição que aborde saberes, práticas e metodologias específicas às necessidades e aos interesses dos estudantes do campo, cujo calendário também se ajuste “às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas”. Além disso, é preciso que na escola sejam trabalhados vários elementos da forma de vida do campo, provenientes de questões sociais, culturais, políticas, econômicas, envolvendo ainda os marcadores de gênero, geração e etnia. Para isso, é necessário que os docentes investiguem “saberes e práticas da vida e do trabalho no campo” para “instituí-los como conteúdos escolares”. Ou seja, interessa-nos aqui mostrar o quanto a escola do campo é concebida como uma instituição específica, voltada aos interesses e às necessidades da comunidade na qual se insere. SUMÁR I O 34 A segunda questão relaciona-se aos fortes entrelaçamentos entre as enunciações presentes nos documentos examinados com aquilo que dizem os alunos (das três turmas) do Curso. Chama a atenção que a menção à relevância de a escola do campo trabalhar com a realidade, contexto ou especificidade do campo foi recorrente nas três turmas de alunos, não sendo possível identificar diferenças, nesse sentido, entre as enunciações daqueles que estão nas etapas finais com aqueles que frequentam os semestres iniciais. Isso nos leva a pensar que os acadêmicos estão capturados pelo enunciado que diz que a escola do campo deve trabalhar com a forma de vida do campo. Podemos entender a recorrência desse enunciado de diferentes modos. Entre eles, a de que essa valorização atende a uma urgência, ou seja, manter no campo a população do campo. Isso pode ser evidenciado, por exemplo, no Parecer n. 36, de 4 de dezembro de 2001, que trata das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (BRASIL, 2001). Dentre as razões elencadas para a aprovação do documento, destaca-se que a forma de vida do campo – a partir do olhar de estudiosos – tenderia a desaparecer: Por sua vez, a partir de uma visão idealizada das condições materiais de existência na cidade e de uma visão particular do processo de urbanização, alguns estudiosos consideram que a especificidade do campo constitui uma realidade provisória que tende a desaparecer, em tempos próximos, face ao inexorável processo de urbanização que deverá homogeneizar o espaço nacional. Também as políticas educacionais, ao tratarem o urbano como parâmetro e o rural como adaptação reforçam essa concepção (BRASIL, 2001, p. 2). Examinando esse trecho do parecer, podemos dizer que há uma crítica ao modelo vigente de escola que, ao tratar o urbano como parâmetro e o rural como uma adaptação, reforçariam essa visão de que o campo está em extinção. Esse modelo também está presente nas escritas dos estudantes do Curso que apregoam a necessidade de aproximar a escola geograficamente situada no campo, com “a SUMÁR I O 35 realidade” da forma de vida do campo. Parece haver um esforço para manter “viva” a cultura do campo, por intermédio de uma escola “viva”, que residiria na “realidade” dos alunos. Como descreveu uma das participantes da pesquisa: “[...] tem que ser uma escola viva, ligada à realidade dos alunos [...]”. Isso, de certo modo, conecta-se à discussão tecida por Bauman (2009) acerca da cidade. Trazendo ao seu texto diferentes autores, o sociólogo polonês edifica seus apontamentos cercandose de diferentes pesquisas que mostram que a falta de trabalho para todos no campo e o fenômeno da globalização teriam a ver com um progressivo deslocamento das populações do campo para o espaço urbano. Tomando o exemplo do Canadá, Bauman (2009) escreve que um levantamento em Ontário indicou que a cada ano, com o crescente investimento em tecnologia por parte dos agricultores, é preciso menos gente para produzir. O sociólogo prossegue em sua discussão atentando para o fato de que, ainda que o incremento na produção, com a diminuição de gastos, possa ter enriquecido a Ontário rural e melhorado a vida de alguns agricultores, não há sinal de maior opulência, fator devido principalmente à globalização. Apoiado em Van Donkersgoed, Bauman (2009, p. 58) destaca que a globalização gerou uma “estrutura feita de fusões e aquisições por parte das empresas” que fornecem praticamente tudo aquilo que os agricultores necessitam. Desse fato, resultaria que os lucros de uma maior produtividade saem das mãos dos trabalhadores para essas grandes corporações que se apoderam do mercado, usando seu poder econômico para obter tudo o que pretendem dos agricultores, acabando inclusive com o comércio espontâneo, ou seja, a troca de mercadorias entre iguais (BAUMAN, 2009, p. 59). Outro exemplo que trazemos ao texto por empréstimo de Bauman (2009) é o da Namíbia, um país que, segundo demonstram as estatísticas, possui maior bem-estar econômico do continente africano. Na Namíbia, tradicionalmente um país de camponeses, SUMÁR I O 36 observa-se um grande decréscimo de sua população rural, ao mesmo tempo em que a população da capital duplicou (BAUMAN, 2009). Esse acúmulo populacional nas periferias da cidade, sem renda ou emprego, teria a ver com a liberação do excesso de mão de obra agrícola, fruto do crescimento da produtividade na agricultura. Assim como no caso de Ontário, os grandes lucros não teriam ficado no campo ou mesmo sido realocados para as cidades. Mais uma vez, isso seria resultado do processo de globalização. Desse modo, as cidades acabam transformando-se em “campos de refugiados” dos que foram expulsos da agricultura (BAUMAN, 2009). As cidades, segundo afirma Bauman (2009), teriam sido organizadas com o intuito de manter o perigo afastado. Hoje, ao invés de representarem defesas contra o perigo, elas estão se convertendo em perigo. E esse perigo teria a ver com todo um contingente de pessoas que, desprovidas dos meios para participar de forma efetiva dos jogos de consumo acumulam-se nas periferias. De certo modo, então, manter as populações do campo no campo tem implicação direta com a gestão do risco. Tomando como apoio as teorizações de Foucault, Fimyar (2009) destaca que esta busca pela segurança por meio da gestão de risco é um problema próprio do governo. Sendo a população a fonte do Estado, para governar adequadamente e garantir sua otimização, faz-se necessário que o governo se estabeleça como um governo econômico, tanto no que diz respeito às finanças, quanto no que concerne à sua forma de exercer poder. O liberalismo, enquanto racionalidade governamental, tem, na “segurança” do desenvolvimento socioeconômico da população, sua preocupação fundamental, tendo em vista que a segurança da população é a base da prosperidade do Estado (FIMYAR, 2009). Visando a alcançar essas metas, “[...] o Estado liberal enquadra sua população aos aparatos de segurança – de um lado, o exército, a polícia e os serviços de inteligência; de outro, a educação, a saúde e o bem-estar” (FIMYAR, 2009, p. 40). SUMÁR I O 37 Ao analisarem a inclusão a partir de políticas públicas de assistência social no Brasil, Lopes et al. (2010, p. 8) consideraram essas políticas como estratégicas biopolíticas de gerenciamento do risco social, afirmando que “elas objetivam garantir a segurança da população através dos programas e ações que colocam em funcionamento”. Como as autoras argumentam, no Brasil, atualmente, proliferam-se tais políticas. Desse modo, “não são poucos os benefícios e programas sociais disponibilizados atualmente para a população carente, assim como também não é pequeno o número de famílias beneficiadas” (LOPES et al., 2010, p. 8). Essas políticas de inclusão não apenas asseguram as necessidades básicas de sobrevivência de seus beneficiários, mas servem para garantir sua presença em jogos de marcado e com isso gerenciar os riscos que esse contingente poderia oferecer para a vida coletiva (LOPES et al., 2010). Nesse sentido o Pronacampo teria o mesmo papel, peracionalizando estratégias de governamento que visam a gerenciar os riscos subjacentes à baixa escolaridade dessa população e ao desaparecimento dos vestígios da forma de vida do campo – que, por isso, poderia acabar “fora do campo”. Esse governamento se dá pela condução da conduta de todos e de cada um. Porém, vale ressaltar que a condução da conduta não se efetiva de forma imposta ou violenta. Ela ocorre em relação a sujeitos que se deixam conduzir. Isso também envolve a captura da alma, do desejo e do interesse de todos e de cada um. Portanto, podemos dizer que todo aparato disposto pelos documentos que embasam a Educação do campo no Brasil hoje, a formação docente voltada para a atuação na escola do campo e boa parte da literatura voltada para esse segmento, captura a alma, os desejos e o interesse de todos. Nesse sentido, os sujeitos acabariam sendo envolvidos em tramas que posicionariam a “realidade” do campo como meio e objetivo de práticas pedagógicas “eficientes”. SUMÁR I O 38 Em outra aproximação com o pensamento de Bauman (2003), podemos dizer que esta valorização da forma de vida do campo, tão presente nos escritos dos participantes da pesquisa e nos documentos que conformam o Curso de Licenciatura em Educação do Campo, poderia ser pensada como um processo de guetização. Entretanto, ao contrário dos verdadeiros guetos, que combinariam o confinamento espacial com o fechamento social, seria uma tentativa de se estabelecerem guetos voluntários que difeririam dos verdadeiros em um aspecto decisivo. Para Bauman (2003), os guetos reais seriam lugares de onde não se pode sair. Já os guetos voluntários impediriam a entrada de intrusos, enquanto os de dentro poderiam sair à vontade (BAUMAN, 2003). Aqui não falamos de uma guetização do espaço, mas do processo pedagógico. O material produzido na pesquisa leva-nos ao entendimento de que a educação do campo deveria ser constituída dentro dos limites seguros do saber forjado nas relações que os sujeitos do campo alicerçam todos os dias em suas formas de vida. Desse modo, nos dizeres dos estudantes, “a escola do campo deveria ser mais próxima à realidade do campo, abranger os conhecimentos necessários e de acordo com os saberes e cultura desse povo”. Assim, “uma escola do campo deve dialogar com o contexto e realidade das populações e povos do campo [...] tem que se dialogar com os saberes culturais existentes”. Ou, ainda, como outro estudante discorreu: “a escola do campo deve deliberar sobre seu conteúdo, metodologias e modos de ser juntamente com a comunidade que está inserida, com os educandos, pais e responsáveis”. Diríamos até que, no limite, alguns acadêmicos expressam que a escola do campo poderia exercer um “autogerenciamento”, realizando seu trabalho pedagógico de forma a seguir somente aquilo que faz parte do modo de vida da comunidade onde está inserida. Como escreveu um acadêmico: “a escola do/no campo deveria ser como os sujeitos que vivem e trabalham acham que deveria ser”. SUMÁR I O 39 Neste gueto “pedagógico” formulado pelos licenciandos, parece haver pouco espaço para se ir além do que a “realidade” dos alunos das escolas do campo permite. Esse “além” não estaria interditado, mas não foi mencionado nos questionários gerados em nossa pesquisa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o objetivo de examinar enunciações sobre a escola do campo produzidas por acadêmicos de um Curso de Licenciatura em Educação do Campo, o trabalho mostrou que os discentes estão capturados pelo enunciado que diz: “a escola do campo deve trabalhar com a forma de vida do campo”. Esse enunciado se sustenta, basicamente, em duas recorrências encontradas no material examinado: uma valorização exacerbada da cultura do campo e uma certa guetização do processo pedagógico, o qual “deve estar” vinculado às formas de vida do campo. Isso nos leva a pensar que há, no âmbito escolar, uma certa conformação que visa a conduzir a conduta dos sujeitos que vivem no campo a permanecer e estudar essa forma de vida. Como anunciamos no início deste texto, tal conformação, materializada nos documentos sobre a educação do campo e nas enunciações dos futuros educadores, faz parte de um dispositivo de governamento das populações do campo. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de observar que essa valorização exacerbada da cultura do campo e a consequente guetização do processo pedagógico (restrita aos saberes e práticas dessas culturas) está alicerçada em uma discursividade pedagógica redutora, que pouco ou nada “escapa” para além da “realidade” dos educandos. Essa forma de conceber a educação tem sido objeto de problematizações, como discutem Masschelein e Simons (2017), no livro Em defesa da escola. Os autores constroem uma argumentação SUMÁR I O 40 que, em oposição ao que observamos no material de pesquisa examinado, atribui outros significados ao processo pedagógico, tirando o foco de uma suposta “realidade” do educando ou da comunidade onde a escola está inserida para o estabelecimento de práticas capazes de tornar diferentes disciplinas, como a matemática ou a marcenaria, importantes por si mesmas. Para eles, educar não é apenas abordar ou partir das formas de vida dos estudantes, mas apresentar “as coisas do mundo (matemática, inglês, culinária, marcenaria)” e possibilitar às crianças e aos jovens o “contato com essas coisas, colocando-os em sua companhia, para que essas coisas – e, com elas, o mundo – comecem a se tornar significativas para eles” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 99). Em outro momento, Masschelein e Simons (2017) também questionam a insistência das práticas pedagógicas contemporâneas na importância da prática e da utilidade dos conteúdos escolares que, ao se tornarem parte do currículo, tenderiam a se converter em quimeras perdendo toda ligação concreta com a realidade. Este contraste entre o que apregoam Masschelein e Simons (2017) sobre a escolarização e o que evidenciamos neste estudo poderia render uma produtiva discussão, o que nos mobiliza a seguir realizando estudos e investigações nessa área. Para finalizar, consideramos pertinente destacar que nosso intuito não é dizer que não devemos valorizar a forma de vida dos sujeitos aos quais o processo educativo é endereçado. Ou ainda, dizer que esse processo deva ser padronizado a todos. Isso não seria coerente com nossas posições políticas e pedagógicas. A intencionalidade dessa reflexão reside em pensar o impensável em educação, entender o que faz com que algo se materialize nas falas e nas ações. E, com isso, relativizar algumas práticas adotadas desde sempre, sem questionamento. SUMÁR I O 41 REFERÊNCIAS ANGELO, A. A. O que é ser educador do campo: os sentidos construídos pelos estudantes do Curso de Licenciatura em Educação do Campo da FaE/ UFMG. Dissertação (Mestrado em Processos Socioeducativos e práticas escolares). Universidade Federal de São João Del-Rei. São João Del-Rei: UFSJ, 2013. ARROYO, M. Políticas de Formação de Educadores (as) do campo. Cadernos Cedes, Campinas, vol. 27, n. 72, p. 157-176, maio/ago. 2007. BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013a. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizeseducacao-basica-2013-pdf/file>. Acesso em: 20 jun. 2017. BRASIL. Parecer 36/2001, do Conselho Nacional de Educação, de 04 de dezembro de 2001. Ministério da Educação, Poder Executivo, Brasília, DF. Disponível em: < http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/mn_parecer_36_ de_04_de_dezembro_de_2001.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017. BRASIL. Portaria nº 86, de 1º de fevereiro de 2013. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, Seção 1, p. 28, 2013b. Disponível em: <http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/ port_86_01022013.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017. CALDART, R. S. A escola do campo em movimento. In: BENJAMIN, C.; CALDART, R. S. (Org.). Projeto popular e escolas do campo: Articulação Nacional Por uma Educação Básica do Campo. Coleção Por uma Educação Básica do Campo, n° 3. Brasília, DF: Articulação Nacional Por uma Educação Básica do Campo, 2000. p. 26-57. CALDART, R. S. Por Uma Educação do Campo: traços de uma identidade em construção. In: KLLING, E. J.; CERIOLI, P. R.; CALDART, R. S. (Org.). Educação do Campo: identidades e políticas públicas. Coleção Por uma Educação do Campo, n° 4. Brasília, DF: Articulação Nacional Por uma Educação Básica do Campo, 2002. p. 18-25. SUMÁR I O 42 CALDART, R. S. A escola do campo em movimento. Currículo sem Fronteiras, v.3, n.1, p. 60-81, jan./jun. 2003. CASTRO, E. Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2006. DUARTE, C. G.; SANTOS, S. V. Apresentação da Seção Temática – Educação do Campo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 40, n. 3, p. 659-666, jul./ set. 2015. FIMYAR, O. Governamentalidade como ferramenta conceitual na pesquisa de políticas educacionais. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 35–56, maio/ago. 2009. FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003. FOUCAULT, M. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT, M. O belo perigo. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. HAGE, S. M. Por uma escola do campo de qualidade social: transgredindo o paradigma (multi)seriado de ensino. Em Aberto, Brasília, v. 24, n. 85, p. 97113, abr. 2011. KNIJNIK, G. Educação Matemática, cultura e conhecimento na luta pela terra. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006. KNIJNIK, G.; WANDERER, F. Programa Escola Ativa, escolas multisseriadas do campo e educação matemática. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 211-225, jan./mar. 2013. LOPES, M. C. et al. Inclusão e Biopolítica. Cadernos IHU ideias. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 2010. MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: Uma questão pública. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. MARÍN-DÍAZ, D. L. Autoajuda e educação: uma genealogia das antropotécnicas contemporâneas. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2012. SUMÁR I O 43 MOLINA, M. C.; HAGE, S. M. Riscos e potencialidades na expansão dos cursos de licenciatura em Educação do Campo. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Goiânia, v. 32, n. 3, p. 805-828, set./dez. 2016. SÁ, J. R. Licenciatura em Educação do Campo: propostas em disputa na perspectiva de estudantes do Curso de Matemática da UFMG. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2016. SACHS, L.; ELIAS, H. R. A Formação Matemática nos Cursos de Licenciatura em Educação do Campo. Bolema, Rio Claro, v. 30, n. 55, p. 439-454, ago. 2016. VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. WANDERER, F. Educação Matemática, processos de regulação e o Programa Escola Ativa. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 26, n.61, p. 201-221, jan./abril. 2017. WANDERER, F.; KNIJNIK, G. Processos avaliativos e/na educação matemática: um estudo sobre o Programa Escola Ativa. Educação, Porto Alegre, v. 37, n.1, p. 92-100, jan./abril. 2014. SUMÁR I O 44 Capítulo 2 2 ESCOLA DE SURDOS, MATEMÁTICA E PROCESSOS DE NORMALIZAÇÃO Fernando Henrique Fogaça Carneiro Fernando Henrique Fogaça Carneiro ESCOLA DE SURDOS, MATEMÁTICA E PROCESSOS DE NORMALIZAÇÃO DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.45-62 INTRODUÇÃO O capítulo discute questões relativas à Educação Matemática escolar e seus processos de normalização na contemporaneidade. Tais discussões emergem de uma investigação desenvolvida em uma escola bilíngue para alunos surdos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Como bases teóricas, foram utilizados estudos recentes da área da Educação Matemática, alinhados à perspectiva pósestruturalista. De acordo com Williams (2012), o pós-estruturalismo caracteriza-se como um movimento na filosofia que iniciou na década de 1960. Desde então, tem influenciado campos temáticos como literatura, política, arte, história, sociologia, entre outros. Esse movimento, para o autor, é fortemente marcado por obras de cinco pensadores: Derrida, Deleuze, Lyotard, Foucault e Kristeva. Servindo-se de conceitos desenvolvidos por Michel Foucault como discurso, regimes de verdade, relações de saber e poder, autores como Díaz (2009, 2012) e Veiga-Neto (1995) destacam que o pósestruturalismo possibilita questionar as metanarrativas iluministas e o próprio modelo de racionalidade científica sustentado em uma razão transcendental. Decorre disso que também passam a ser tensionadas a ciência moderna e as ideias de progresso constante, razão universal, verdade absoluta, sujeito centrado e único, entre outras asserções que fundamentam o projeto moderno para a sociedade e para a educação. Na área da Educação Matemática, essas problematizações têm sido realizadas por algumas teorizações do campo da Etnomatemática, perspectiva que emergiu na década de 70 do século passado, com os estudos do pesquisador brasileiro Ubiratan D’Ambrosio. Conforme colocação em um de seus trabalhos mais recentes (D’AMBROSIO, 2016, p. 22), após a verificação de que as ciências matemáticas eram primordialmente permeadas por saberes eurocêntricos, o autor criou o SUMÁR I O 46 que ele chama de Projeto Etnomatemático com o objetivo de lançar um outro olhar sobre “[...] as relações da matemática com a satisfação das necessidades e desejos e com a vida cotidiana, as artes, as religiões, as ciências, a economia, a política e a arquitetura e a vida urbana.”. A partir dos estudos de D’Ambrosio, a Etnomatemática foi expandindo-se enquanto área de investigação, passando a ser um campo marcado por diferentes bases teóricas e metodológicas (KNIJNIK, 2016). De um modo geral, os estudos etnomatemáticos convergem para duas direções: apontar a existência de diferentes matemáticas produzidas por variadas formas de vida e questionar as marcas que constituem as matemáticas acadêmica e escolar, como o formalismo, a abstração e a busca pelas generalizações, asserções associadas ao modelo de ciência moderna. Trabalhos recentes, principalmente os produzidos pelos integrantes do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade (GIPEMS), têm compreendido a Etnomatemática a partir das teorizações de Michel Foucault e da obra tardia de Ludwig Wittgenstein. Para Knijnik et al. (2012, p. 28), a Etnomatemática pode ser compreendida como uma caixa de ferramentas que possibilita: “[...] analisar os discursos que instituem as Matemáticas Acadêmica e Escolar e seus efeitos de verdade e examinar os jogos de linguagem que constituem cada uma das diferentes Matemáticas, analisando suas semelhanças de família.”. Ficam evidentes, no sentido atribuído pelas autoras à Etnomatemática, alguns dos conceitos centrais da obra de maturidade de Wittgenstein, como jogos de linguagem, formas de vida e semelhanças de família, bem como a noção de discurso e “efeitos de verdade”, amplamente discutidas por Foucault. As análises efetivadas neste capítulo estão na esteira de estudos recentes sobre a Educação Matemática que se utilizam das ideias de Foucault, como os de Knijnik (2016, 2014, 2012), Knijnik et al. (2012), SUMÁR I O 47 Duarte (2009), Wanderer (2017, 2014), Pinheiro (2014), Junges (2017) e Carneiro (2017). Essas investigações mostram, pelo menos, duas questões que foram tomadas como balizas para a realização desta pesquisa. Uma delas se refere ao significado da expressão Educação Matemática que passa a ser considerada como um conjunto de processos, envolvendo o aprender e o ensinar, os quais se desenvolvem em espaços educativos escolares e não escolares. Utilizando a ferramenta da governamentalidade, como analisado por Foucault (2008), pode-se dizer que a Educação Matemática opera sobre os sujeitos escolares – alunos, professores, gestores e demais integrantes da comunidade escolar –, disciplinando e controlando saberes, práticas e seu próprio pensamento. É com esses entendimentos que a Educação Matemática é analisada neste estudo, considerando-a como tecnologias de poder implicadas na condução de condutas de professores e alunos, produzindo-os como sujeitos de modos específicos. Outra questão relevante a ser destacada aqui, como decorrência das pesquisas acima indicadas, refere-se especificamente à Educação Matemática praticada nas escolas. Examinando diferentes materiais de pesquisa (de distintos tempos e espaços), as investigações mostram que: a) há diferentes jogos de linguagem matemáticos sendo gerados nas mais distintas formas de vida que apresentam semelhanças de família e b) os conjuntos de jogos de linguagem que conformam a matemática escolar atuam como mecanismo de regulação do pensamento de professores e alunos, instituindo determinados modos de fazer e pensar, conduzindo a conduta dos sujeitos escolares. Este capítulo apresenta continuidades e deslocamentos em relação aos trabalhos já realizados e citados anteriormente. As continuidades referem-se, basicamente, ao referencial teórico utilizado, ou seja, estudos de Michel Foucault, como aqueles vinculados aos processos de regulação e fabricação dos sujeitos escolares. No entanto, apresenta deslocamentos que dizem respeito ao lócus da investigação: uma escola bilíngue para alunos surdos, que será descrita na próxima seção. SUMÁR I O 48 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS A ação investigativa, que resultou na escrita deste capítulo, foi desenvolvida em uma escola especial para surdos, localizada na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Conforme o Projeto Político Pedagógico (PPP), a escola foi fundada em 1956 com o intuito de “[...] atender aos mais abandonados; aqueles que não são recebidos nem nos colégios, nem nos orfanatos: os surdos, mudos, cegos, doentes, rejeitados em toda parte.”. Inicialmente, o espaço abrigava meninas surdas na modalidade de internato. Com o passar dos anos, começou a atender também meninos, teve o regime de internato abolido e, em 2000, ampliou seu atendimento para o Ensino Fundamental. Atualmente, a instituição oferece o ensino bilíngue. Discussões sobre o bilinguismo foram inicialmente propostas pelo campo dos Estudos Surdos. Segundo Lopes (2011), essa área emergiu no Brasil a partir da vinda do professor argentino Carlos Skliar ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Para Skliar (2013a, 2013b), o surdo era constantemente olhado como um sujeito que apresentava faltas, um deficiente, e foi a partir dessas perspectivas que a educação de surdos tradicional foi constituída: uma pedagogia que buscava apagar essas faltas e aproximar o surdo da normalidade. Esse olhar e essa aproximação do surdo ao ouvinte é pelo autor chamada de ouvintismo, processo que acaba focalizando questões clínico-terapêuticas em detrimento das socioantropológicas. Em outros lugares do mundo, como nos narra H-Dirksen Bauman (2008), tensionamentos similares também apareciam. Conforme o autor, a partir do final da segunda guerra mundial e das mobilizações das pessoas com deficiência na década de 60 – período comumente posicionado como marco da pós-modernidade (LYOTARD, 1990, 1999) –, questões como a afirmação da existência SUMÁR I O 49 de uma cultura surda e de identidades surdas passaram a figurar na pauta das lutas do movimento surdo, bem como a legitimação da língua de sinais como meio natural e completo de comunicação. Com isso, as filosofias educacionais pautadas pela oralização dos surdos começaram a ser problematizadas, possibilitando a emergência de novas práticas conformadas por outros pressupostos. Lopes (2011) diz que uma das práticas pensadas nesse período foi a Comunicação Total, método no qual se utilizava quaisquer elementos, inclusive gestos, para que o surdo pudesse compreender o que era ensinado. Com a realização de pesquisas na área da linguística, em especial o trabalho do estadunidense William Stokoe na Universidade Gallaudet, e o subsequente reconhecimento da língua de sinais como forma legítima de comunicação, surge o bilinguismo. Munido das ferramentas teóricas brevemente discutidas, optei por desenvolver a pesquisa nessa escola. Inicialmente, procurei a direção a fim de explicar os objetivos da investigação e obter sua aprovação. Para a realização do estudo, foram examinadas as observações escritas pelas professoras dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental sobre os seus alunos durante as aulas de Matemática. Essas observações estão presentes em um documento que na escola recebe o nome de Registro de Chamada. Ao todo, foram examinados 31 desses documentos, entre os anos de 2010 e 2015, correspondentes às turmas de 1º até 5º ano. O Registro é o documento da escola, sob a responsabilidade de cada professor, no qual constam informações relevantes sobre a disciplina em questão e os alunos que a frequentam. Contempla esse registro uma série de documentos e planilhas, todos voltados para a descrição do cotidiano da sala de aula. Voltei meu olhar para uma planilha denominada “Observações”, a qual servia, conforme relatos das profissionais da escola, com uma espécie de Diário de Classe, em que as professoras escreviam suas percepções acerca do desenvolvimento dos alunos e das SUMÁR I O 50 aulas. Sua utilização era facultativa, não sendo algo que deveria ser obrigatoriamente preenchido diariamente, e por isso era bastante particular de cada professora – embora figurasse dentro de um conjunto de documentos oficiais da escola. Em termos metodológicos, os documentos reunidos foram considerados como monumentos, no sentido atribuído por Foucault (2015). O filósofo afirma que não se trata de interpretar os documentos para buscar por uma “verdade”, mas tomá-los como “[...] massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos [...]” (FOUCAULT, 2015, p. 8), fazendo com que os documentos sejam, então, transformados em monumentos. Nessa operação, de acordo com Veiga-Neto (2014, p. 125-126), a leitura dos enunciados presentes nos documentos passa a ser realizada “[...] pela exterioridade do texto, sem entrar na lógica interna que comanda a ordem dos enunciados [...]”, estabelecendo “[...] as relações entre os enunciados e o que eles descrevem, para, a partir daí, compreender a que poder (es) atendem tais enunciados, qual/quais poder (es) os enunciados ativam e colocam em circulação”. Na leitura que passei a realizar sobre os documentos escolares, busquei estabelecer algumas relações entre os enunciados encontrados a fim de identificar os modos de ser aluno surdo da área da Matemática postos em funcionamento na escola investigada. Para isso, foi utilizada como estratégia metodológica a análise do discurso na perspectiva de Michel Foucault. O filósofo, na obra Arqueologia do Saber, destaca que na análise do campo discursivo “[...] trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com outros enunciados” (FOUCAULT, 2015, p. 34, grifo do autor). Os atos de fala são permeados por um agrupamento de enunciados e um conjunto de discursos. Mas, ao mesmo tempo em SUMÁR I O 51 que esses atos são regulados pelos enunciados e discursos, também os constituem – sempre mediante a aceitação, repetição e transmissão. A estes atos de fala, Foucault (2015) dá o nome de enunciações, as quais são abundantes e múltiplas. Cada enunciação produz efeitos em quem ouve e em quem fala. Por esse motivo, está sempre reforçando ou atenuando enunciados, constituindo ou reconfigurando discursos. Utilizando essas balizas teóricas e metodológicas, o material de pesquisa foi examinado. O resultado desse exercício analítico será apresentado na próxima seção. MATEMÁTICA ESCOLAR E OS PROCESSOS DE NORMALIZAÇÃO Uma das recorrências encontradas no material examinado refere-se à constituição de modos de ser aluno que passam a ser fabricados pelas enunciações das educadoras da instituição. Em seus relatos, evidenciam-se marcas associadas ao modelo de aluno surdo desejado por elas: Felipe tem muita dificuldade no desenvolvimento da aprendizagem. Não evolui cognitivamente. Não consegue prestar atenção nas atividades e rasga as folhas (Professora F, 2011). A Cássia continua conversando demais e consequentemente está sempre atrasada com suas atividades. A Jéssica não apresenta autonomia para realizar as atividades, está sempre esperando alguém (professora ou colega) auxiliá-la (Professora L, 2012). O Tiago continua muito inseguro na hora de realizar as atividades para entregar. Demorou 55 minutos para tentar resolver 6 exercícios de multiplicação e só fez 2 (Professora L, 2012). A aluna Melissa perdeu a folha de tema da história que precisava colocar em sequência e resistiu ao pedido para fazer as SUMÁR I O 52 atividades de matemática (matéria que tem mais dificuldade). Depois fez com meu apoio (Professora A, 2013). Mirian faz as atividades de qualquer jeito para terminar rápido e acaba errando e se irritando ao ser solicitado que faça novamente. Cláudio tem falta de atenção. Lilian e Ana se confundem quanto ao valor do número ao ter um 0 na frente como foi o caso do “02” e do “20”, percebem a diferença de posição e valor desses números, porém teimam em sinalizar e quantificar esses dois como “20” (Professora P, 2014). Ficam evidentes, nesses fragmentos, as características que conformam modos de ser aluno na escola de surdos, os quais apresentam fortes semelhanças de família com o sujeito aluno idealizado pela escola moderna. Quando as professoras expressam: “não consegue prestar atenção nas atividades e rasga as folhas”, “conversa demais e, consequentemente, está sempre atrasada”, “não apresenta autonomia e está sempre esperando alguém para auxiliar”, “resistiu ao pedido para fazer as atividades”, “fez de qualquer jeito para terminar rápido e acaba errando e se irritando ao ser solicitado que faça novamente”, produzem aquilo que seria considerado como “bom aluno” e, ao mesmo tempo, quem está afastado da zona da normalidade. São posicionados como “bons” aqueles que prestam atenção, não rasgam folhas do material, não conversam, apresentam “autonomia” – ou seja, realizam as atividades sem pedir auxílio –, não resistem aos pedidos e solicitações das educadoras, efetuam as tarefas com cuidado e respeitam um tempo delimitado para isso: não demoram, nem realizam rápido demais. Diria que as educadoras estão capturadas pelos ideais da escola moderna, como discutido por Immanuel Kant (2002) e, mais tarde, por Foucault (2002). Em efeito, Kant (2002), em Sobre a Pedagogia, destaca que o homem é o único ser que precisa da educação, compreendendo-a como um campo que abrange três dimensões: o cuidado com a sobrevivência, a disciplina e a instrução formal. Ao refletir sobre a disciplina, afirma que deveria iniciar bem SUMÁR I O 53 cedo, uma vez que “[...] a falta de disciplina é um mal pior que falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina.” (KANT, 2002, p. 16). A escola moderna, seguindo princípios kantianos, engendra-se como um dos mecanismos capazes de formar sujeitos, isto é, garantir a instrução e disciplinar os alunos. Situado em outro período e usando uma perspectiva teórica diferente, Michel Foucault (2002), em sua obra Vigiar e Punir, compreende a escola como uma instituição moderna diretamente implicada na produção de corpos dóceis. Em seu estudo, o filósofo aponta para três instrumentos que se fazem presentes em instituições disciplinares, como hospitais, fábricas e a escola: a vigilância, a sanção normalizadora e o exame. Percebe-se, aqui, que as enunciações das professoras acima apresentadas mostram mecanismos de vigilância sobre os alunos e, ao mesmo tempo, processos que engendram um controle em relação ao desempenho escolar. Um olhar mais atento às enunciações das educadoras levoume a pensar que, por meio dos mecanismos de vigilância postos em ação na escola, constituem-se saberes sobre os indivíduos, saberes relacionados às aprendizagens (ou não) de conhecimentos provenientes das diferentes áreas curriculares e aos modos de ser e agir na sala de aula. A produção desses saberes, de acordo com Foucault, vai sendo moldada e organizada em torno da norma, a qual estabelece, como já citado, “[...] quem é normal e quem não é, que coisa é incorreta e que outra coisa é correta, o que se deve ou não fazer”. E, nesse sentido, as professoras que participaram deste estudo são claras ao definir as coisas corretas – demonstrar autonomia, atender às solicitações e realizar as atividades em um certo tempo – e aquilo que os estudantes não devem fazer – conversar, solicitar auxílio e concluir as tarefas rapidamente. SUMÁR I O 54 Além disso, pode-se dizer que não são apenas os indivíduos capturados pelos processos de vigilância e controle, mas o conjunto dos alunos, como mostram estes excertos: Foi um dia bem difícil, os alunos não paravam sentados, nem faziam as atividades. Não consegui dar praticamente nenhuma atenção para Rita, pedi que Sofia [professora auxiliar] me auxiliasse nisso. Todos alunos, praticamente, ficaram me chamando de chata. Elisa me disse que eu não sou a mãe dela e que, portanto, não tem que fazer o que eu peço. No momento do jogo, no início da aula, todos estavam felizes, mas quando não é jogo ou brincadeira, eles não querem fazer. Acho que não consegui cativá-los para o estudo (Professora J, 2011). Na atividade de matemática (subtração com retorno): Anita e Elias realizaram com facilidade; Luísa e Virgínia apresentaram dificuldades, porém Virgínia copiou algumas de Anita. Alice demonstrou muita dificuldade de compreensão, porém depois de muito “treino” e ter a sequência do 1 ao 9 exposta no quadro, conseguiu fazer as duas últimas sozinha (Professora P, 2014). Percebe-se, nesses fragmentos, o quanto cada aluno é vigiado e tem seus saberes minuciosamente examinados (quem tem facilidade, quem apresenta dificuldades, quem copia dos colegas, quem é bagunceiro, quem tem interesse), ao mesmo tempo em que há uma análise da turma como um todo. E, nessas situações, pode-se identificar que a norma passa a ter um caráter prescritivo, anunciando aquilo que todos e cada um “deve” fazer. Analisando uma das políticas públicas mais disseminadas na atualidade, a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), Pinheiro (2014) faz uso de algumas ferramentas foucaultianas como norma e normalização para evidenciar táticas de governamento e de inclusão colocadas em movimento por essa política. Ao longo de sua discussão, a autora evidencia que a escola, uma instituição diretamente implicada com os mecanismos de disciplinamento dos corpos dos sujeitos escolares, busca “[...] conduzir a população SUMÁR I O 55 escolar de maneira a normalizar as multiplicidades, para que, dessa forma, os sujeitos-alunos, que fazem parte da população escolar, estejam aptos a deixar-se regular e conduzir.” (PINHEIRO, 2014, p. 39-40). Esse processo de regulação, que conduz os diferentes sujeitos escolares, está diretamente implicado com os mecanismos de normalização disciplinar, como discutidos por Foucault (2008). Em sua reflexão, o filósofo destaca que a normalização disciplinar traça um modelo “[...] que será constituído em função de um determinado resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em tratar de conformar as pessoas, os gestos, os atos a este modelo.” (FOUCAULT, 2008, p. 75). Mais adiante, expressa: “Para dizer de outra maneira, a norma tem um caráter primariamente prescritivo, e a determinação e distinção entre o normal e o anormal resultam em possibilidades decorrentes dessa norma postulada.” (FOUCAULT, 2008, p. 75). Os excertos mostram o modelo de aluno surdo esperado pela escola investigada. Mas os processos de normalização não operam apenas na constituição de modos de ser aluno. A análise do material de pesquisa mostrou que, especificamente na matemática escolar, há a produção de uma norma capaz de determinar e, ao mesmo tempo, distinguir os normais e os anormais nessa área do conhecimento. Os seguintes fragmentos ajudam a evidenciar essas relações: Cátia apresentou bastante dificuldade em compreender o transporte da unidade para dezena, se apresentou bastante dependente da professora para realizar qualquer atividade (Professora J, 2011). Novamente Cátia demorou muito para copiar, eu chamei sua atenção várias vezes, mas ela não está conseguindo aprender multiplicação devido a esta falta de atenção (Professora J, 2011). A Maria e a Jéssica apresentaram muita dificuldade em realizar as operações de adição com transporte, só fizeram com o auxílio da professora (Professora L, 2012). SUMÁR I O 56 Marta realizou a atividade de matemática com perfeição, em que eu apontava as imagens e ela contava e localizava o número sozinha (Professora P, 2015). Aula apenas com o aluno Kauan: verificação adição e subtração simples que realiza tranquilamente, mas adição com transporte e subtração com retorno muita resistência ao erro, pelas dificuldades de compreensão (Professora P, 2014). Os alunos Robson, Hélio e Graziela estão com muita dificuldade em contar e registrar números até 20/10 (Professora K, 2013). Enviando atividade extra até 10 para Hélio e Graziela e até 20 para Robson (Professora K, 2013). Inicialmente, percebe-se que, quando as professoras descrevem os estudantes e suas práticas pedagógicas, está novamente presente o ideal de bom aluno: aquele que não depende de auxílio, presta atenção e não demora para copiar. Mais do que isso, o conjunto dos fragmentos selecionados evidencia, também, um modo de ensinar matemática presente na instituição, visto que se trata das falas de diversas professoras, atuantes em diferentes tempos e séries/anos. Contudo, o que mais chama a atenção é a importância que parece ser concedida à matemática escrita, seja usando o quadro ou folhas de atividades. As menções aos algoritmos escritos levam-me a pensar que a escola potencializa os processos de formalização e abstração, e isso parece mostrar o objetivo que as professoras tinham ao ensinar matemática: que os alunos pudessem realizar os algoritmos escritos corretamente. Esses algoritmos fazem parte do que se costuma chamar de formalismo, o qual Lizcano (2006) entende como uma série de regras estipuladas por uma determinada tribo europeia e que servem como base para a Matemática Escolar, ou seja, um conjunto de saberes posicionado como transcendental e, por isso, superior aos demais. Além disso, os comentários mostram sempre a presença de um grupo de alunos desviantes, que não conseguem atingir o esperado, SUMÁR I O 57 enquanto os demais – quando citados – são os que “compreenderam”. A partir desses entraves, pode-se ver um esforço por parte das professoras em fazer com que seus alunos se apropriem do que se quer ensinar. Nesse momento surgem metodologias específicas, como aquelas que utilizam os materiais concretos. Na atividade de quantificar com tampas, Manoela demonstrou que não sabe quantificar, consegue até o 5, mas após este não consegue fazer a relação sinal-quantificação ou númeroquantidade (Professora P, 2015). Notei que Helen tem dificuldade para quantificar e quando penso que ela compreendeu noto que me equivoquei: Antes dela representar através de desenho a quantificação no caderno, pela aula de ontem, contamos juntas até 9 através do material fixado na parede de relação número/nome-quantidade. Após peguei tampas e fomos do 0 até o nome fazendo a relação número quantidade. Percebi que ela consegue até o 3, no máximo 4, e no resto não segue a sequência começando tudo de novo ou quantificando com pulos. Fico bem triste por este atraso tão evidente na aprendizagem (Professora P, 2015). Essas falas mostram o funcionamento de práticas educativas ou metodologias específicas para a “compreensão” dos conceitos matemáticos. Isso mostra a importância concedida aos materiais visuais e concretos nas aulas para surdos. O imperativo do uso dos materiais concretos nas aulas de matemática já foi extensivamente discutido em trabalhos anteriores (KNIJNIK et al., 2012; KNIJNIK et al., 2010; CARNEIRO, 2017), os quais apontam para sua utilização como um meio para garantir a abstração, posicionada como o auge do pensamento lógico-matemático. Utilizando-se de ferramentas foucaultianas, Walkerdine (1995) problematiza os processos que produziram a ideia de que a escola precisa garantir a aquisição do pensamento abstrato, considerado como “pináculo do pensamento intelectual”. Para ela, podemos tomar o raciocínio abstrato como uma fantasia “[...] da onipotência de um discurso científico que pode controlar o mundo.” (WALKERDINE, 1995, p. 225). SUMÁR I O 58 Em síntese, a análise realizada sobre as enunciações das docentes permite entender que suas práticas colocam em ação processos de normalização que classificam e hierarquizam não só os alunos, mas também os saberes matemáticos a serem trabalhados e as metodologias que “devem” ser realizadas na escola. Desta forma, pode-se dizer que a matemática escolar se torna um mecanismo que conduz não só as condutas dos estudantes, mas também as das professoras que atuam na área da educação de surdos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, tive a intenção de discutir questões relativas à Educação Matemática escolar e seus processos de normalização, utilizando dados de uma investigação desenvolvida em uma escola bilíngue para alunos surdos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. O estudo evidenciou que, além dos processos de normalização, produzem efeitos de verdade sobre aquilo que passa a ser tomado como um bom aluno de matemática e sobre os saberes que deverão ser ensinados nas escolas, incluindo as “melhores” metodologias, um aspecto ainda pode ser mencionado: a responsabilidade do sujeito-aluno sobre a aprendizagem da matemática. Ao se referirem aos alunos que não aprendem, ou que apresentam “dificuldades de aprendizagem”, as enunciações examinadas posicionam sempre os próprios estudantes como os responsáveis pelo seu “fracasso”. Estudos da área da inclusão escolar sustentados pelo pensamento de Foucault, como os compilados em coletâneas como a de Fabris e Klein (2013), mostram alguns aspectos desse fenômeno do posicionamento do aluno – capturado pelas técnicas convergentes com o pensamento biopolítico – como responsável por seus próprios conhecimentos. Para os quinze autores que compõem SUMÁR I O 59 os capítulos dessa coletânea, esse entendimento é visto como um eco do neoliberalismo na educação moderna, no qual cada um se responsabiliza por suas “conquistas” e suas “derrotas”, fazendo do aluno, nas palavras de Foucault (2004, p. 232), um “empresário de si”. Acredito que, na área da Educação Matemática para alunos surdos, essa questão esteja potencializada, sempre acompanhada de uma justificativa sustentada por diferentes enunciados: a falta de atenção, por conta do excesso de informações visuais e ausência de materiais pedagógicos específicos para o surdo; a falta de interesse, por conta da falta de comunicação na sociedade e das poucas oportunidades dadas às pessoas com deficiência. Entretanto, essas afirmações, ainda que alimentadas pelas falas das professoras dessa escola, extrapolam o que foi definido como objetivo deste trabalho, mas servem como propulsoras para novas investigações. E é nesse movimento que termino a escrita deste capítulo: finalizando uma caminhada, mas vislumbrando várias outras possibilidades. REFERÊNCIAS BAUMAN, H. L. (Ed.). Open your eyes: Deaf Studies talking. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2008. CARNEIRO, F. H. F. O ensino da matemática para alunos surdos bilíngues: uma análise a partir das teorizações de Michel Foucault e Ludwig Wittgenstein. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. D’AMBROSIO, U. The Ethnomathematics Program as a proposal for peace. RIPEM, Brasília, DF, v. 6, n. 1, p. 8-25, 2016. DÍAZ, E. Posmodernidad. Buenos Aires: Biblos, 2009. DÍAZ, E. A filosofia de Michel Foucault. São Paulo: Editora Unesp, 2012. DUARTE, C. G. A “realidade” nas tramas discursivas da Educação Matemática Escolar. Tese (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2009. SUMÁR I O 60 FABRIS, E. T. H.; KLEIN, R. R. (Org.). Inclusão e biopolítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. FOUCAULT, M. La verdad y las formas jurídicas. Barcelona: Gedisa editorial, 1995a. FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995b. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2002. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. FOUCAULT, M. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. JUNGES, D. L. V. Educação Matemática e subjetivação em formas de vida da imigração alemã no Rio Grande do Sul no período da Campanha de Nacionalização. Tese (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2017. KANT, I. Sobre a pedagogia. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2002. KNIJNIK, G. Differentially positioned language games: ethnomathematics from a philosophical perspective. Educational Studies in Mathematics, New York, United States, v. 80, n. 1-2, p. 87-100, May 2012. KNIJNIK, G. Juegos de lenguaje matemáticos de distintas formas de vida: contribuciones de Wittgenstein y Foucault para pensar la educación matemática. Educación Matemática, Mexico, v. 26, n. especial, p. 146-161, marzo 2014. KNIJNIK, G. Pesquisar em educação matemática na contemporaneidade: perspectivas e desafios. Jornal Internacional de Estudos em Educação Matemática, São Paulo, v. 9, n. 3, p. 1-14, 2016. KNIJNIK, G. et al. De las invenciones pedagógicas: la importancia del uso de materiales concretos en las aulas de matemática. Uno (Barcelona), v. 55, p. 81-93, 2010. KNIJNIK, G. et al. Etnomatemática em movimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. LIZCANO, E. Metáforas que nos piensan. Sobre ciencia, democracia y otras poderosas ficciones. Madrid: Ediciones Bajo Cero, 2006. LOPES, M. C. Surdez e Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. LYOTARD, J. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. SUMÁR I O 61 LYOTARD, J. O pós-modernismo explicado às crianças. Lisboa: Dom Quixote, 1999. PINHEIRO, J. M. Estudantes forjados nas arcadas do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA): “novos talentos” da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2014. SKLIAR, C. Os Estudos Surdos em educação: problematizando a normalidade. In: SKLIAR, C. (Org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2013a. p. 7-32. SKLIAR, C. Abordagens socioantropológicas em Educação Especial. In: SKLIAR, C. (Org.). Educação & exclusão: abordagens socioantropológicas em educação especial. Porto Alegre: Mediação, 2013b. p. 5-18. VEIGA-NETO, A. Michel Foucault e educação: há algo de novo sob o sol? In: VEIGA-NETO, A. (Org.). Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Sulina, 1995. p. 9-56. VEIGA-NETO, A. Foucault & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. WALKERDINE, V. O raciocínio em tempos pós-modernos. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 2, n. 20, p. 207-226, 1995. WANDERER, F. Educação matemática, jogos de linguagem e regulação. São Paulo: LF Brasil, 2014. WANDERER, F. Educação Matemática, processos de regulação e o Programa Escola Ativa. Revista Educação Pública, Cuiabá, v. 26, n. 61, p. 201-221, jan./abr. 2017. WILLIAMS, J. Pós-estruturalismo. Série Pensamento Moderno. Petrópolis: Vozes, 2012. SUMÁR I O 62 Capítulo 3 3 CURRÍCULO BILÍNGUE NA EDUCAÇÃO BÁSICA Maria Luísa Lenhard Bredemeier Maria Luísa Lenhard Bredemeier CURRÍCULO BILÍNGUE NA EDUCAÇÃO BÁSICA DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.63-77 INTRODUÇÃO Este capítulo, em consonância com a proposta deste livro, a saber, debater a educação na contemporaneidade, tem como objetivo examinar o movimento empreendido nas últimas décadas por escolas privadas de Ensino Fundamental e Médio na região da Grande Porto Alegre, Rio Grande do Sul, na estruturação e implementação de currículos bilíngues. Os primeiros passos nessa direção podem ser identificados na região metropolitana na década de 1990, caso do Colégio Pastor Dohms - Higienópolis, localizado em Porto Alegre, sendo seguidos por outras escolas tais quais a Instituição Evangélica em Novo Hamburgo, o Colégio Sinodal de São Leopoldo e o Instituto de Educação Ivoti, em Ivoti. Seguindo movimentos semelhantes verificados em metrópoles brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro, em que se localizam, via de regra, mais de uma escola com proposta de currículo bilíngue, é, portanto, possível identificar desde a década de 1990 que escolas privadas na região de Porto Alegre passaram a oferecer a famílias interessadas a oportunidade de matricular seus filhos em currículos bilíngues. Contudo, não se pode deixar de mencionar que há uma tradição bem mais longa de ensino bilíngue no Rio Grande do Sul, assim como em outras regiões brasileiras, que deve ser compreendida no âmbito da formação socioeconômica deste País, marcada pela pluralidade tanto linguística como cultural. Autores como Fritzen (2012), Altenhofen (2002), Klug (2004), Staudt (2018) e Spinassé (2009) têm analisado aspectos relacionados ao bilinguismo e à situação do alemão como língua minoritária em regiões de imigração alemã no sul do Brasil. Outros concentraram suas pesquisas nas questões escolares envolvendo esses imigrantes, como Breunig (2007), Markmann Messa (2009), Wanderer (2007), e Bredemeier (2010). Ademais, há aqueles que se dedicaram aos SUMÁR I O 64 processos escolares em regiões de imigração italiana ou japonesa, como Lucchese (2007) e Uyeno (2003) ou ainda aqueles que analisam a situação linguística no Brasil sem vinculação a movimentos migratórios específicos, como é o caso de Cavalcanti (1999). Um aspecto que será destacado, entre outros, é a opção pela substituição da língua dos imigrantes, que, muitas vezes, determinou e marcou o processo de implantação da escola pelo inglês, uma tendência que pode ser observada em vários setores da sociedade moderna, ou seja, a valorização da língua inglesa em detrimento de outras. Por fim, este texto também apontará para processos e mecanismos que se estabelecem com o intuito de trazer inovação para a escola, mesmo quando não há legislação específica e, consequentemente, diretrizes a serem consideradas. Cabe, ainda, salientar que desafios ligados ao ensino de idiomas estrangeiros em escolas se encontram em muitos países como decorrências de movimentos migratórios mais recentes. Trata-se, portanto, de temática relevante e atual. Os excertos da análise constituem-se a partir dos textos disponíveis nos sites das escolas em que essas divulgam seus currículos bilíngues, apontando para os motivadores de sua implantação, suas principais tendências e vantagens em termos da sólida formação oferecida aos jovens. REFERENCIAL TEÓRICO E DESCRIÇÃO DO MATERIAL DE PESQUISA Embora o foco deste capítulo não seja uma profunda nem ampla discussão acerca do termo bilinguismo, cabe uma breve reflexão quanto a definições desse conceito consideradas adequadas atualmente por permitirem/acolherem a variedade de situações que se configuram no que diz respeito a indivíduos e o uso que fazem de duas ou mais línguas. SUMÁR I O 65 A linguista Li Wei (2005) opta por englobar em sua proposta tanto uma definição clássica quanto incluir as inúmeras variedades de situações de línguas em contato e, assim, as diferentes composições que falantes de duas ou mais línguas podem estabelecer. A palavra “bilíngue” descreve principalmente alguém que possui duas línguas. No entanto, também pode ser considerado como incluindo as muitas pessoas no mundo que têm vários graus de proficiência e usam de forma intercambiável três, quatro ou até mais idiomas. Em muitos países da África e da Ásia, várias línguas coexistem e grande parte da população fala três ou mais línguas. O multilinguismo individual nesses países é um fato da vida. Muitas pessoas falam uma ou mais línguas locais ou étnicas, bem como outra língua indígena que se tornou o meio de comunicação entre diferentes grupos étnicos ou comunidades de fala. Esses indivíduos também podem falar uma língua estrangeira - como inglês, francês ou espanhol - que foi introduzida na comunidade durante o processo de colonização. Esta última linguagem é frequentemente a linguagem da educação, burocracia e privilégio. [...] É importante reconhecer que um falante multilíngue usa idiomas diferentes para propósitos diferentes e normalmente não possui o mesmo nível ou tipo de proficiência em cada idioma (WEI, 2005, p. 6)4 Paralelamente, destaca-se a compreensão ampliada do conceito de “educação bilíngue” como a proposta por Mello (2010). A autora salienta que a expressão educação bilíngue tem sido frequentemente usada na sua acepção mais abrangente para incluir todas as situações 4 SUMÁR I O The word ‘bilingual’ primarily describes someone with the possession of two languages. It can, however, also be taken to include the many people in the world who have varying degrees of proficiency in and interchangeably use three, four or even more languages. In many countries of Africa and Asia, several languages co-exist and large sections of the population speak three or more languages. Individual multilingualism in these countries is a fact of life. Many people speak one or more local or ethnic languages, as well as another indigenous language which has become the medium of communication between different ethnic groups or speech communities. Such individuals may also speak a foreign language—such as English, French or Spanish—which has been introduced into the community during the process of colonization. This latter language is often the language of education, bureaucracy and privilege. [...] It is important to recognize that a multilingual speaker uses different languages for different purposes and does not typically possess the same level or type of proficiency in each language (WEI, 2005, p. 6). 66 em que duas ou mais línguas estão em contato, fazendo-se a distinção entre as suas diversas tipologias somente quando o contexto ou a situação requer um maior detalhamento técnico. De maneira semelhante, quando se usam as expressões escola bilíngue e/ou sala de aula bilíngue, faz-se referência à possibilidade de ocorrência de uso de mais de uma língua nesses contextos, mesmo quando se espera que uma única língua seja usada na maior parte das interações que ocorrem nesses contextos. [...] Portanto, o conceito de bilinguismo, nesse sentido, reflete tanto as características do indivíduo (graus variados de competência e diferentes modos de fala) quanto as características sociológicas do contexto (local, participantes, situação, tópico e a função da interação). (MELLO, 2010, p. 5). Mello (2010) enfatiza, ainda, o papel do contexto socioeconômico e histórico de inserção da escola que propõe currículo bilíngue, por ser ele fator determinante na tomada da decisão por esse tipo de currículo. Aproximar-se de definições que ampliam o entendimento de bilinguismo como a de Wei e de definições que igualmente propõem uma concepção abrangente de educação bilíngue como a proposta por Mello permite posicionamento crítico em relação a movimentos que, por muito tempo, colocaram em destaque o assim chamado “bilinguismo de elites” que, de acordo com Megale e Liberali (2016), apresenta-se novamente quando é somente em escolas privadas que se propõe a educação bilíngue de jovens. As linguistas, em teorizações que propõem alternativas ao “bilinguismo de elites”, identificam quatro propostas de educação bilíngue no Brasil: i) educação bilíngue com a língua brasileira de sinais (LIBRAS); ii) educação bilíngue com línguas indígenas; iii) educação bilíngue em contextos multilíngues e iv) educação bilíngue de elite ou de prestígio, assim denominada em razão da condição financeira dos alunos que podem frequentar esses estabelecimentos escolares em que a instrução ocorre em dois idiomas simultaneamente (LIBERALI/ SUMÁR I O 67 MEGALE, 2016, p. 55; MEGALE, 2018). Cabe salientar, ainda, que, ao se fazer referência à educação bilíngue, tem-se como objeto um currículo em que dois ou mais idiomas têm o papel de ferramenta de aprendizagem, sendo usados para o ensino e a aprendizagem de outras áreas do conhecimento e não somente em aulas de inglês, por exemplo, em que esse idioma é tematizado. No que diz respeito à legislação escolar brasileira tangente ao ensino de línguas estrangeiras nas últimas décadas, merecem destaque: i) a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9304 de 1996, que estabeleceu a oferta de uma LE a partir da quinta série e outra no Ensino Médio, ambas obrigatórias, acrescentando-se, no Ensino Médio, mais uma língua estrangeira optativa; ii) as Bases Curriculares Nacionais de 2017, que indicam o inglês como idioma de oferta obrigatória nas escolas; iii) o Parecer CNE/CEB Nº: 2/2020, aprovado, mas ainda não homologado, que propõe Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue, impulsionado fortemente pelo aumento de escolas que propõem currículos bilíngues. O material escrutinado, por sua vez, é constituído por informações que as próprias escolas disponibilizam em seus sites e em que se posicionam, com mais ou menos detalhes, em relação à sua proposta de currículo bilíngue. Elas apresentam os motivos que as levaram a optar por essa reestruturação de seu trabalho, as etapas e os processos conduzidos e destacam as vantagens, os ganhos proporcionados aos jovens que cursam esses currículos bilíngues. 5 SUMÁR I O [...] there are four Brazilian bilingual education proposals: bilingual education with sign language, indigenous bilingual education, bilingual education in multilingual contexts, and elite or prestigious bilingual education whose name was given due to the favorable financial conditions of students who can attend these schools, in them instruction occurs in two languages simultaneously (LIBERALI/MEGALE, 2016, p. 5). 68 ANÁLISE E APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS Como indicado acima, o material escrutinado para a preparação deste capítulo é constituído por informações extraídas das apresentações que as próprias escolas disponibilizam em seus sites. Nesses espaços, têm relevância a indicação das razões da escolha pela implantação de um currículo bilíngue, a história da escola e o papel das línguas estrangeiras nela, aspectos do trabalho conduzido, bem como informações sobre os professores que atuam nesses currículos. Instituição Evangélica de Novo Hamburgo (IENH) O mundo mudou muito nos últimos anos e a escola preparada para o século XXI precisa auxiliar na formação de um sujeito mais competente para as demandas do mercado e da vida; um cidadão que possa entender e se adaptar à complexidade deste mundo plural e em constante transformação, para comunicarse de forma global e interagir na multiplicidade de cenários com os quais venha a se deparar. A IENH, sempre atenta aos novos cenários, foi se adaptando a essas mudanças sem perder sua essência, que é embasada nos valores e nas vivências cristãs, com ênfase na liderança, no empreendedorismo e na responsabilidade socioambiental. Por ser uma instituição que tem em seu DNA o pioneirismo e a inovação, em 2005 iniciamos um projeto muito arrojado para o Vale do Sinos: nos tornamos a primeira escola bilíngue português-inglês da região. Até o 4º ano do Ensino Fundamental, as propostas são estruturadas por dois professores (Língua Inglesa e Língua Portuguesa) e nessa dinâmica são estabelecidos os conhecimentos e projetos que serão trabalhados. Do 5º ao 9º ano, é oferecida uma proposta diferenciada em termos de componentes curriculares, contando com dois professores de Língua Inglesa: um responsável pelos conteúdos gramaticais e linguísticos e o outro pelos projetos em parceria, chamado de Inglês Aplicado. Neste componente são trabalhados os conteúdos das diversas ações do conhecimento em Inglês. (https://educacaobasica. ienh.com.br/br/apresentacao-educacao-bilingue). SUMÁR I O 69 Colégio Pastor Dohms – Higienópolis Introduz, paralelamente ao currículo convencional, o Currículo Bilíngue (Português e Alemão), respondendo favoravelmente a um significativo grupo de famílias que buscava para seus filhos um ensino voltado para a valorização da Língua e da cultura alemã (http://www.dohms.org.br/higienopolis5/). Colégio Sinodal de São Leopoldo O aluno do Sinodal Bilíngue, através da sua imersão no segundo idioma, prepara-se, desde cedo, para o mercado e o estudo que se seguirão após sua passagem no Ensino Médio. Ele vai estar apto às provas de língua inglesa dos vestibulares de universidades públicas e do Exame Nacional do Ensino Médio sem necessitar de apoio de cursos de idiomas. Na educação bilíngue, a língua é tanto o objetivo a ser alcançado quanto a ferramenta para se alcançar esse objetivo. As disciplinas têm como base a estrutura curricular regular do nível e, para cursar o Bilíngue, é preciso estar matriculado na educação básica (http:// web.sinodal.com.br/sao-leopoldo-1/n/bilingue-44). Instituto de Educação Ivoti No programa de educação bilíngue do Instituto Ivoti, os alunos, a partir dos três anos de idade, vivenciam as atividades em Língua Alemã e habituam-se ludicamente à sonoridade e ao uso do idioma. Aprendizagens são consolidadas com auxílio de música, canto e escuta de histórias narradas de livros de literatura infantil alemã. Jogos e atividades, tanto digitais como analógicas, são outras vivências que auxiliam os alunos na construção de seus conhecimentos. Rotinas estruturadas consolidam a aquisição e naturalizam o uso do idioma em contexto social e em situações do dia a dia (https://www. institutoivoti.com.br/educacao-basica/ensino-fundamental). Colégio Metodista/Americano em Porto Alegre O ensino tem por objetivo potencializar o processo de aquisição da língua inglesa e as situações didáticas visam ampliar o vocabulário relacionado ao universo infanto-juvenil e às estruturas que fazem parte da comunicação rotineira da sala de aula. Elas guardam características de ludicidade e envolvem SUMÁR I O 70 a integração de conteúdos curriculares através de jogos educativos, músicas, tarefas de compreensão oral, contação de histórias e outras atividades que estimulam o uso da língua (http://colegiometodista.g12.br/americano). Desses excertos, merecem destaques ideias como a valorização da aquisição da língua inglesa ou alemã e de seu respectivo vocabulário, a preparação para os estudos e a profissão, as metodologias colocadas em prática, tais quais o lúdico e as brincadeiras, a música e a inserção de histórias, mas também as competências de comunicação e a naturalização do uso do idioma estrangeiro. Os trechos a seguir, por sua vez, apontam para alguns dos objetivos que as escolas listam como sendo determinantes para a decisão de oferecer currículos bilíngues, bem como determinantes para a opção das famílias que decidem matricular os jovens em tais currículos. O sucesso em exames de proficiência reconhecidos no mundo inteiro e a participação em intercâmbios salientam-se: Colégio Metodista/Americano em Porto Alegre Desde 2013, os estudantes realizam provas de Certificação em língua inglesa. TOEFL – Test of English as a Foreign Language. O Teste TOEFL Junior é um certificado internacional em inglês que avalia o nível de proficiência de estudantes a partir de 11 anos de idade até o Ensino Médio. O TOEFL Junior proporciona a escolas, professores, pais e alunos uma avaliação objetiva do progresso na proficiência em inglês dos alunos, sendo aceito por escolas em todo o mundo para admissão em programas de intercâmbio. Colégio Sinodal de São Leopoldo Ele também vai estar preparado para o teste TOEFL®, reconhecido por mais de 9.000 instituições de ensino superior, universidades e agências em mais de 130 países, como Austrália, Canadá, Reino Unido e Estados Unidos. A aplicação do TOEFL® e TOEFL® Junior possibilita que o aluno acompanhe SUMÁR I O 71 seu desempenho com referências mundiais, tendo como finalidade comum o estudo e a inserção na vida acadêmica e no mercado de trabalho em nível global. Instituição Evangélica de Novo Hamburgo (IENH) Os alunos são preparados para certificação internacional da Universidade de Cambridge, com avaliação no 4º, 6º e 9º ano do Ensino Fundamental. Todos os alunos avaliados até o momento obtiveram resultados acima da média brasileira e no mesmo nível de países europeus, comprovando seus conhecimentos e o know how da IENH em prepará-los para os desafios da língua estrangeira. Outro elemento que merece atenção são os professores que ministram as aulas nesses currículos bilíngues. Essa temática merece destaque em razão de ser um dos grandes desafios que se colocam nos currículos bilíngues que, como indicado nos trechos acima, dão preferência ao início precoce da aprendizagem da língua estrangeira, uma vez que os professores habilitados para o trabalho nos anos iniciais devem ter formação superior em Pedagogia, mas, geralmente, não têm formação na área das línguas estrangeiras, nem no que concerne aos conhecimentos do idioma em si, nem no que tange às competências necessárias para o ensino de língua estrangeira. Os formados em Letras, por sua vez, raramente têm preparação para o trabalho com os anos iniciais do Ensino Fundamental. A seguir, são apresentados os enunciados que se podem localizar nos sites das escolas analisadas e que fazem referência aos professores que conduzem o trabalho nos currículos bilíngues: Instituição Evangélica de Novo Hamburgo (IENH) O incentivo às práticas tecnológicas, a partir da implantação das aulas de Programação foi uma das reformulações inovadoras do Currículo Bilíngue. Aplicadas na Língua Inglesa, as aulas de Programação já estão ocorrendo nas turmas de 1º ano 4º ano do Ensino Fundamental. Para estarem aptos a desenvolverem o Componente Curricular, durante dois anos, os Professores SUMÁR I O 72 foram capacitados com as ferramentas tecnológicas da Google e um programa específico de programação para crianças. Colégio Sinodal de São Leopoldo Os professores que atuam no Sinodal Bilíngue têm formação pedagógica e linguística. Os planos de aula do ensino bilíngue são planejados por eles, com o apoio e a revisão da coordenação pedagógica do nível. Reagindo a esse desafio referente à formação inicial dos professores, os interessados procuraram e constituíram caminhos alternativos que passam por cursos de extensão, cursos livres, formações internas e cursos de Pós-Graduação Lato sensu. Nos últimos anos, pode-se observar a inserção de questões tais como o bilinguismo e os processos de ensino e aprendizagem nos currículos dos Cursos de Letras indicando o reconhecimento da discussão e de sua relevância. Paralelamente, pode-se identificar incremento da produção científica e das publicações acerca da temática, seja de artigos em periódicos, seja de livros. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio da análise dos textos de sites de escolas que se posicionam como escolas com currículo bilíngue na região da Grande Porto Alegre, Rio Grande do Sul, foi possível, mesmo que partindo de material de pesquisa não extenso, identificar os principais pontos de discussão e desafio da educação bilíngue presentes na produção científica sobre esse assunto. Durante muito tempo, foi possível identificar um certo vácuo em termos de legislação e de formação de professores no que concerne à educação bilíngue no Brasil, mas a aprovação de novos parâmetros curriculares e movimentos relativos à formação de professores, bem como o aprofundamento dos estudos SUMÁR I O 73 nessa área apontam para a importância da temática e para seu lugar na sociedade contemporânea. De uma oferta de cursos de extensão e de pós-graduação, passou-se, em algumas universidades, a integrar discussões acerca do bilinguismo e do letramento bilíngue ao currículo. Entende-se, ainda, que outros aspectos podem ser tematizados dentro dessa discussão, uma vez que se constata que há escolas que, apesar de toda sua história e vinculação a movimentos migratórios, optam pelo idioma inglês como língua estrangeira componente do currículo bilíngue e não pelo alemão, ou italiano, seguindo tendências que valorizam o status de um idioma no contexto internacional e seu valor na sociedade. A perspectiva de Megale (2018), que, em vários textos, denomina essa tendência rumo ao currículo bilíngue de “bilinguismo de elite” igualmente anuncia outras possibilidades de pesquisa, reforçadas por análises como as de Staudt (2018), que descreve a importância do bilinguismo em localidade do interior do Rio Grande do Sul, em que a competência de comunicar em língua alemã é crucial no trabalho de agente de saúde. Contudo, não há currículos bilíngues na localidade em questão, havendo, todavia, ensino de alemão como língua estrangeira em escolas do município. Por fim, merece destaque a sugestão de Megale (2014) de que um dos elementos cruciais em um currículo bilíngue seja o “desenvolvimento de práticas linguísticas complexas” (MEGALE, 2014, p. 4) permitindo o desenvolvimento de competências que levem o aluno a realmente usar a língua em situações significativas e de forma significativa. SUMÁR I O 74 REFERÊNCIAS ALTENHOFEN, C. V. O conceito de língua materna e suas implicações para o estudo do bilinguismo (alemão-português). Jahrbuch Institut Martius-Staden. São Paulo, v.49, p: 141-161, 2002. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, 225, DF, v. 134, n. 248, 23 dez. 1996. Seção I, p. 2783427841. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/busca?q=Art.+62 +da+Lei+de+Diretrizes+e+Bases+-+Lei+9394%2F96>. Acesso em: setembro de 2020. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Disponível em: http:// basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.pdf Acesso em setembro de 2020. BRASIL. Parecer CNE/CEB Nº: 2/2020. Disponível em: http://portal.mec.gov. br/programa-mais-educacao/30000-uncategorised/85191-parecer-ceb-2020. Acesso em setembro de 2020. BREDEMEIER, M. L. L. O português como segunda língua nas escolas da imigração alemã: um estudo do Jornal da Associação de Professores Teutobrasileiros Católicos do Rio Grande do Sul (1900-1939). Tese (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2010. BREUNIG, C. G. “Eu tenho que falar alemão, senão, eles choram!” Bilinguismo como pedagogia culturalmente sensível. Calidoscópio, São Leopoldo, vol. 5, n° 1, p. 31-44, jan.-abr. 2007. CAVALCANTI, M. C. Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil. D.E.L.T.A. vol. 15, n° especial, p. 385-417, 1999, disponível em: http://www.ceielo. php?pid=S010244501999000300015&script=sci_arttext: Acesso em: outubro de 2007. CENTRO DE ENSINO MÉDIO PASTOR DOHMS. Disponível em: http://www. dohms.org.br/higienopolis5/.Acesso em setembro de 2020. Acesso em novembro de 2020. COLÉGIO METODISTA PORTO ALEGRE. Disponível em: http:// colegiometodista.g12.br/americano. Acesso em setembro de 2020. COLÉGIO SINAL DE SÃO LEOPOLDO. Disponível em: http://web.sinodal. com.br/sao-leopoldo-1/n/bilingue-44. Acesso em setembro de 2020. SUMÁR I O 75 FRITZEN, M. P. Desafios para a educação em contexto bilíngue (alemão/ português) de língua minoritária. Educação Unisinos, vol. 16, n° 2, maio/ agosto 2012, p. 161-168. Instituição Evangélica de Novo Hamburgo. https://educacaobasica.ienh.com. br/br/apresentacao-educacao-bilingue. Acesso em setembro de 2020. INSTITUTO IVOTI. Disponível em: https://www.institutoivoti.com.br/educacaobasica/ensino-fundamental. Acesso em setembro de 2020. KLUG, J. Wir Deutschbrasilianer. Tópicos – Deutsch-Brasilianische Hefte. Bonn, vol. 1, 2004, p. 26-27. LIBERALI, F. C, MEGALE, A. H. Elite bilingual education in Brazil: an applied linguist’s perspective. Colombian Applied Linguistics Journal, 18, n° 2, 2016, p. 95-108. LUCCHESE, T. A. O processo escolar entre imigrantes da região colonial italiana do RS – 1875 a 1930. Leggere, scrivere e calcolare per essere alcuno nella vita. Tese (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2007. MESSA, R. M. O papel do dialeto no aprendizado do alemão padrão. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2009. MEGALE, A. H. Bilinguismo e educação bilíngue – discutindo conceitos. Revista virtual de estudos da linguagem – ReVEL, v. 3, n° 5, agosto 2005, p. 1-13. MEGALE, A. H. Bilinguismo e formação docente. Pátio Educação infantil, 1° abril 2014, p. 12-15. MEGALE, A. H. Educação bilíngue de línguas de prestígio no Brasil: uma análise dos documentos oficiais. The Especialist, vol. 39, n° 2, 2018, p. 1-17. MELLO, H. A. B. Educação bilíngue, uma breve discussão. Horizontes de linguística aplicada, v. 9, n° 1, 2010, p. 118-140. Organização para a cooperação e o desenvolvimento econômico. L’éducation aujourd’hui 2013: La perspective de l’OCDE. 2013a. Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/education/l-education-aujourd-hui-2013_edu_ today-2013-fr. Acesso em: setembro de 2020. Organização para a cooperação e o desenvolvimento econômico. Les grandes mutations que transforment l’éducation 2013b. Disponível em: https:// www.oecd-ilibrary.org/education/les-grandes-mutations-qui-transforment-leducation-2013_trends_edu-2013-fr. Acesso em: setembro de 2016. SUMÁR I O 76 SPINASSÉ, K. P. O aprendizado do alemão-padrão por alunos bilíngues? Pesquisas e ações. Contingentia, vol. 4, n° 2, novembro 2009, p. 100-109. STAUDT, K. R. Alternância de código “Dialeto alemão X Português” em Capela do Rosário (São José do Hortêncio/RS). Trabalho de Conclusão de Curso (Curso de Letras). Universidade do Vale do Rio dos Sino, São Leopoldo: 2018. UYENO, E. Y. Determinações identitárias do bilinguismo. A eterna promessa da língua materna. In: CORACINI, M. J. Identidade & Discurso. Campinas, Chapecó: Unicamp, Argos Editora Universitária, 2003, p. 37-56. WANDERER, F. Escola e matemática escolar: Mecanismos de regulação sobre sujeitos escolares de uma localidade rural de colonização alemã no Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2007. WEI, L. Dimensions of bilingualism. In: WEI, L. The bilingualism reader. London, New York: Routledge, 2000. SUMÁR I O 77 Capítulo 4 4 AS QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL Mônica Nunes Mônica Nunes AS QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.78-97 DESENHANDO OS CENÁRIOS O presente capítulo discute questões relacionadas aos tensionamentos étnico-raciais na área da Educação. Em especial, o intuito é examinar enunciações de alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental sobre os marcadores étnico-raciais que operam na escola e na cidade onde residem: o município de Estrela, pertencente ao Vale do Taquari (RS), uma região fortemente vinculada aos processos de colonização alemã. Como aportes teóricos, o estudo sustenta-se em teorizações contemporâneas sobre raça, etnia e a constituição do sujeito, como analisado por Michel Foucault. Estudos recentes como os de Weschenfelder (2012) e Wanderer (2014), apoiados no pensamento de Michel Foucault, problematizam as relações étnico-raciais em regiões do Rio Grande do Sul fortemente marcadas pela colonização alemã, como os Vales do Rio Pardo e Taquari. Weschenfelder (2012), quando se refere à historiografia de cidades como Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires, pertencentes ao Vale do Rio Pardo, que é muito próximo, geograficamente, ao Vale do Taquari, destaca a presença de uma narrativa identitária que valorizou os colonos alemães e acabou por ignorar a presença de outros grupos étnicos, como os negros. Já o trabalho de Wanderer (2014), focado nas tensões étnicoraciais que constituíram subjetividades específicas para alunos de Estrela que frequentavam uma escola rural no período da Campanha de Nacionalização (1937-1945), mostra que as relações entre brancos e negros eram marcadas por preconceito e desigualdades. Nas entrevistas realizadas pela autora com homens e mulheres que estudaram naquele período, foram recorrentes enunciações dizendo que os alunos negros foram aceitos na escola para amenizar os efeitos da fiscalização do governo, que exigia que as aulas fossem SUMÁR I O 79 direcionadas à promoção dos elementos nacionais e, portanto, não enaltecessem elementos de outras culturas, no caso, a germânica. Naquele contexto, os negros também eram aceitos na escola para ensinar a língua portuguesa aos colegas, os quais, em suas famílias, só falavam em alemão. A pesquisa mostra que as discriminações raciais impediam o acesso das crianças negras à escola antes do período da Campanha de Nacionalização. Porém, a partir do final da década de 30, com a efetivação dos decretos da Campanha, as crianças negras passaram a frequentar a escola, mas, a todo instante, eram posicionadas como “burras” ou “causadoras de pequenos furtos”. Apoiando-se em Hardt e Negri, Wanderer argumenta, então, que operava nas escolas um mecanismo de inclusão diferenciada, ou seja, todas as crianças (brancas e negras) entravam na escola, no entanto, as relações entre elas, bem como o trabalho pedagógico realizado, posicionavam de diferentes formas brancos e negros. A pesquisa apresentada neste capítulo segue na esteira desse trabalho, uma vez que foi realizada na mesma cidade, Estrela-RS, e analisa enunciações de alunos sobre as questões étnico-raciais. No entanto, a diferença encontra-se no espaço-tempo examinado: enquanto Wanderer (2014) investigou esses processos no período da Campanha de Nacionalização, este trabalho está focado no tempo presente, em uma escola pública municipal que atende diferentes grupos étnicos, incluindo os haitianos que, a partir de 2012, chegaram na Região e provocaram novas e complexas relações entre os moradores das cidades e seus novos habitantes. METODOLOGIA E MATERIAL DE PESQUISA A parte empírica da investigação foi realizada em uma escola municipal da cidade de Estrela-RS, no ano de 2016. A instituição atende o SUMÁR I O 80 maior número de alunos da cidade e enfrenta problemas que se fazem presentes no cenário educacional: violência, pouca relação entre a escola e os pais dos alunos, evasão e repetência. Este trabalho foi realizado em uma turma do 8º ano, formada por 19 alunos que frequentavam a escola no período diurno. Essa escolha não foi aleatória. Segundo relato da direção, era a que tinha o maior número de negros naquele período. O início do trabalho de campo envolveu contatos com a Secretaria Municipal de Educação e, após sua aprovação, a direção da escola foi contatada para perguntar sobre a disponibilidade de realizar a parte empírica do estudo com os alunos. Cabe ressaltar que, de acordo com as normas de ética nas pesquisas em Educação, a direção assinou o Termo de Assentimento da Instituição, e os responsáveis por todos os alunos entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após serem informados sobre os objetivos da pesquisa. A investigação envolveu técnicas de inspiração etnográfica, como Diário de Campo, entrevistas, observações e aplicação de questionários. A emergência da pesquisa de caráter etnográfico nas escolas é um fenômeno recente. Segundo observam Green, Dixon e Zaharlick (2005), o reconhecimento da etnografia como abordagem de pesquisa para os problemas e as investigações pertinentes à educação iniciou na metade do século XX. As autoras afirmam que a tarefa do etnógrafo dentro da escola é apontar “as maneiras pelas quais os membros do grupo estudado percebem sua realidade e seu mundo, e como, por intermédio de suas ações (e interações) constituem seus valores, crenças, ideias e sistemas simbólicos significativos.” (GREEN; DIXON; ZAHARLICK, 2005, p. 13). O trabalho de campo envolveu diferentes estratégias, que se configuraram no decorrer da investigação. Ao todo foram oito meses em que estivemos envolvidas com o objeto de estudo, realizando movimentos como: observações de aulas com registros no Diário de Campo, entrevistas com quatro alunos e aplicação de um questionário. SUMÁR I O 81 Foram observadas aulas que ocorriam nas quartas-feiras, uma vez que esse era o dia disponível para frequentarmos a escola. Busquei, sempre, permanecer na turma, observando as aulas e, mais do que isso, atentar para os diálogos e as conversas que ocorriam entre os estudantes. Essas observações foram registradas no Diário de Campo. Estou ciente de que essa descrição sempre corresponderá a uma interpretação. Nesse sentido, Geertz (1989) nos lembra que toda descrição etnográfica é, sempre, a descrição de quem descreve, e não a de quem é descrito. Portanto, por mais inserido que o investigador esteja na cultura que deseja analisar ou no cotidiano dos sujeitos que pretende descrever, seu trabalho corresponde ao que ele próprio julga como relevante para ser interpretado a partir dos aportes teóricos que utiliza. A seleção dos alunos entrevistados, em um primeiro momento, foi definida pelo marcador étnico-racial, sendo escolhidos uma aluna e um aluno negros. Posteriormente, outros foram entrevistados; desta vez, estudantes brancos. As entrevistas realizaram-se durante o período de aulas, conforme sugestão da direção, visto que os alunos não possuem o hábito de frequentar a escola em outro turno. Os encontros duraram, em média, meia hora cada um. O propósito era “mapear” o contexto dos alunos, a fim de identificar a forma pela qual eles se nomeiam e como interagem em seu mundo. Foram feitas perguntas sobre a família, seus gostos, a relação com os colegas, com os amigos e moradores do bairro e da cidade, bem como a entrada de alunos haitianos na escola e possíveis tensionamentos étnico-raciais. O material de pesquisa reunido envolveu também questionários aplicados a todos os alunos da turma. As questões presentes abrangeram tópicos como: descrições do modo de ser enquanto jovem aluno; casos de bullying que já sofreu ou conheceu; atitudes racistas na escola e na cidade. Os questionários foram respondidos individualmente, durante uma das aulas em que estivemos presentes. SUMÁR I O 82 A estratégia analítica utilizada para operar sobre os materiais é a análise do discurso, na perspectiva de Michel Foucault (2009). Na entrevista sobre o lançamento da obra A Arqueologia do Saber, o filósofo buscou explicar quais são os objetivos da análise do discurso, deixando evidente que não se trata puramente de descrever um discurso ou buscar fatos “escondidos”, como se algo devesse ser escavado. “Tento, ao contrário, definir relações que estão na superfície dos discursos; tento tornar visível o que só é invisível por estar muito na superfície das coisas.” (FOUCAULT, 2000, p. 56). Mas de que forma analisar as enunciações dos alunos entrevistados ou escritas nos questionários? Qual é o procedimento que Foucault nos recomenda? Para ele, de acordo com Fischer (2012, p. 74), “nada há por trás das cortinas, nem sob o chão que pisamos. Há enunciados e relações, que o próprio discurso põe em funcionamento. Analisar o discurso seria dar conta exatamente disso: de relações históricas, de práticas muito concretas, que estão ‘vivas’ nos discursos.”. Seguindo a inspiração foucaultiana, analisei as enunciações produzidas pelos alunos, não no sentido de encontrar o que está oculto, mas de dar ênfase a certos enunciados que costumam ser esquecidos ou ignorados. O resultado dessa operação será apresentado a seguir. AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Michel Foucault (1995), um dos filósofos mais utilizados nas pesquisas contemporâneas da área da Educação (AQUINO, 2013), dedicou-se a examinar, entre outros, processos vinculados à constituição do sujeito. Em O sujeito e o poder, Foucault (1995, p. 231) afirma que é o sujeito o tema geral de suas pesquisas, expressando que o objetivo de sua obra foi “criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos”. Nes- SUMÁR I O 83 se sentido, Fischer (2012) apresenta duas razões pelas quais Foucault tem o sujeito e as diversas formas de assujeitamento como o tema geral de suas investigações. A primeira é o entendimento de que os mecanismos de sujeição do indivíduo não constituiriam um momento final, “mas sim processos circularmente relacionados com outras formas de dominação, de tal forma que um ou outro desses tipos de dominação poderia prevalecer, conforme o momento histórico.” (FISCHER, 2012, p. 56). A segunda razão seria a ideia de que o Estado ocidental moderno alcançou “uma combinação complexa de técnicas de individualização e procedimentos totalizantes” (FISCHER, 2012, p. 56). Dessa forma, seguindo os argumentos de Foucault, no Estado ocidental moderno estaria prevalecendo um poder pulverizado, presente em todas as relações e em todos os lugares. Um poder que atinge o cotidiano imediato das pessoas, “preocupado com o bemestar da população e a saúde de cada um em particular, um poder que se reveste de bondade e sincera dedicação a toda a comunidade” e por isso não tem condições de se exercer, “senão munindo-se de toda a informação sobre cada grupo, sobre o que pensam e sentem todos os indivíduos e como eles podem ser mais bem dirigidos.” (FISCHER, 2012, p. 56). Seguindo esse entendimento, os sujeitos são resultado de um processo que se dá no interior das redes de poderes que os capturam, dividem, classificam. Os processos de constituição do sujeito, segundo refere Foucault, passam pelos processos de objetivação e subjetivação. Esses processos são contínuos de ida e vinda entre o interior e o exterior, entre o eu e o outro. A objetivação corresponderia à construção e identificação de representações sociais e coletivas. Conforme observar Fonseca (2003, p. 35), esse processo constrói e mantém funções sociais a serem ocupadas pelos sujeitos a partir de “formas estáveis do visível e do enunciável”. A subjetivação corresponderia a processos pelos quais o indivíduo se identifica ou não com essas objetivações, essas representações, ou a forma como ele se identifica às suas singularidades. SUMÁR I O 84 A parte da obra em que Foucault trabalha o conceito de subjetivação é classificada por Veiga-Neto (2014) como o domínio foucaultiano da ética. Contudo, o autor salienta que a ética, entendida “como cada um se vê a si mesmo” (VEIGA-NETO, 2014, p. 82), só pode ser colocada em movimento a partir dos eixos dos outros dois domínios: o “ser-saber” e o “ser-poder”. Em outras palavras, “o sujeito é um produto, ao mesmo tempo, dos saberes, dos poderes e da ética” (VEIGA-NETO, 2014, p. 82). Com ênfase na subjetivação, Foucault escreve sobre um conjunto de tecnologias, destacando-se as tecnologias do eu que foram reunidas nos segundo e terceiro volumes da obra História da sexualidade. Relacionando a discussão até aqui empreendida com esta investigação, diria que os alunos (brancos, negros, indígenas, entre outros) são produzidos pelas diferentes experiências dentro e fora da sala de aula, pelas diferentes linguagens por meio das quais são nomeados, descritos, tipificados. Há, portanto, uma constante luta entre discursos que pretendem capturar os sujeitos que, ao mesmo tempo, são interpelados por diversas narrativas, transformam-se de acordo com as narrativas que eles próprios produzem sobre suas histórias de vida. Nesse processo, complexo e instável, a escola constitui-se como o espaço em que os alunos articulam muitas posições, rejeitam e abandonam algumas e assumem outras que lhes conferem provisoriamente um sentido de pertencimento a um determinado grupo social. Analisando o material de pesquisa reunido, percebe-se um grande tensionamento presente nas formas pelas quais os alunos negros são subjetivados dentro e fora da escola. Esse tensionamento permitiu construir uma analítica que evidencia três resultados para esta pesquisa, os quais estão articulados. O primeiro deles refere-se à autodenominação. Nenhum dos alunos pertencentes ao grupo que, inicialmente, reconheceríamos como sendo negros, autodenominouse dessa forma. A maior ocorrência foi nomearem-se “morenos”. Isso ocorreu, principalmente, nas respostas de uma das questões do questionário, a qual se referia a uma descrição de cada estudante: SUMÁR I O 85 Eu sou uma menina de pele de cor morena, meus cabelos são pretos, lisos e longos. Eu gosto de jogar vôlei e eu penso em fazer uma faculdade e ser bióloga marinha. Sou alto, moreno e tenho cabelo crespo. Gosto de ouvir música, jogar videogame, praticar esportes, gosto de dar um rolé com os parça e andar de skate. Eu sou uma menina que tem cabelo cacheado, meio morena, não sou muito alta, e sou magra, tenho olhos castanhos claros. Gosto muito de amizades novas, de comer doces e músicas internacionais. Sou uma menina meio escurinha, tenho olhos verdes, sou muito “8” ou “80”, não gosto de “ah, talvez, não sei”, sou muito perfeccionista. Gosto muito mesmo de passear e de passar minha tarde nas redes sociais: WhatsApp, Instagram, Snapchat e a que sou mais viciada: Youtube. No primeiro excerto, a aluna refere-se especificamente à cor de sua pele, e indica que se percebe como “menina de pele de cor morena”. O segundo, por sua vez, autodenomina-se, simplesmente, “moreno”, termo que, no contexto, pode ser entendido como se referindo à cor de sua pele ou, de maneira mais ampla, à de seu cabelo. Já os demais estudantes narraram-se como “meio” morenos, uma palavra que, de certa maneira, parece corresponder a mais uma forma de, como afirmou Silva (2007), “amolecer” a rigidez das polarizações. As alunas usam a palavra “meio”, um advérbio de intensidade que, no caso, atenua o adjetivo empregado na sequência: “meio morena”, “meio escurinha” (neste último caso, o diminutivo é outro atenuante). Dessa forma, demonstram que não se reconhecem simplesmente como “morenas”, mas como pertencentes a um grupo menos “escuro” do que este. Essa dificuldade de identificar-se com um grupo étnico-racial é própria dos tensionamentos relativos a essa questão, conforme explicado por Kaercher (2010). SUMÁR I O 86 Durante as observações de aulas, ocorreu um diálogo que merece destaque. Um dos alunos disse que era moreno. E continuou: “Não sei porque me chamam de preto. Eu não sou preto, sou moreno. Preto é quando não dá para enxergar”. E, na sequência, afirmou: “os pretos são os haitianos”. Percebemos, novamente, que o pertencimento étnico-racial se constitui em um processo envolto em tensões que frequentemente geram negação ou rejeição ao sentimento de pertença a um determinado grupo. Nesse caso, mais uma vez, emerge a enunciação de que os alunos da escola não são negros, e a justificativa está na comparação que estes realizam com os haitianos, cuja cor da pele identificam como sendo “mais escura”. Nas falas dos alunos é possível notar um traço bastante característico da questão racial no Brasil. Diferentemente do que acontece em outros países, nos quais as diferenças raciais se limitam a grandes grupos, como brancos, negros e amarelos, no Brasil criaramse diversas outras denominações para, supostamente, referir-se às muitas configurações raciais provenientes do complexo processo de miscigenação que produziu o nosso povo. Silva (2007), no entanto, chama a atenção para o fato de que há, na criação dessas novas denominações, um aspecto igualmente cultural, não relacionado apenas à cor da pele, mas contendo uma acepção que diz respeito às representações sociais, e que, em certo sentido, indicam as tensões étnico-raciais presentes em nosso País. Segundo menciona ele, merece justamente “atenção especial a categoria ‘moreno(a)’, ‘claro(a)’ ou ‘escuro(a)’” (SILVA, 2007, p. 74). Isso porque, de acordo com o autor, o “moreno não apenas amolece a rigidez das polarizações, mas também implica um processo de deslizamento do ‘preto’ para o ‘branco’” (SILVA, 2007, p. 74). Nesse sentido, percebe-se, nessa visão, a ideia de que ser negro é algo negativo, enquanto ser “moreno” reduz essa negatividade. Como as histórias pessoais desses alunos estavam marcadas pelos tensionamentos étnico-raciais, uma das perguntas do SUMÁR I O 87 questionário aplicado era “O que você entende por racismo?”. As respostas mostram diferentes pontos de vista acerca da questão: “Eu sei que racismo é feito por pessoas que não têm caráter, que racismo é desnecessário e que normalmente quem sofre racismo são os morenos”. Outro aluno respondeu: “Sei que racismo é crime”. A fala do primeiro aluno indica três dimensões importantes: em primeiro lugar, o aluno relaciona o racismo a um defeito de caráter de quem o pratica; em segundo, afirma que se trata de algo “desnecessário”; por fim, repete a designação de “morenos” para referir-se às pessoas que sofrem discriminação racial, evitando utilizar-se da palavra “negros”. Dessa forma, reforça-se a ideia de que há, também entre os alunos dessa escola, uma tendência para “amolecer a rigidez das polarizações”, mediante o uso do termo “moreno”. Já a resposta do outro aluno mostrou-se, de certa forma, capturada por marcas de caráter político e jurídico. Em sua enunciação, percebem-se as capilaridades do poder, mais precisamente do poder jurídico, cujo discurso, como visto, é capaz de capturar inclusive os adolescentes em questão. O segundo resultado deste estudo diz respeito à discriminação racial presente na cidade de Estrela. Nas entrevistas, essa questão foi evidenciada quando questionados sobre a vivência de práticas racistas no município: “Junto com meu primo, que é negro, dentro do mercado. A dona do mercado começou a nos seguir achando que nós ia roubar alguma coisa. Nós nos indignemos e falemos umas verdades pra ela”. Outro aluno, na mesma direção, explicitou: “Não tem motivo especial para ter racismo aqui [em Estrela], mas a gente consegue ver pela reação das pessoas quando a gente passa. Muitas vezes as pessoas te olham torto, ou elas começam a cochichar, ou alguma coisa assim”. Nesse sentido, é importante notar o quanto o “olhar torto” e os comentários dessas pessoas podem deixar marcas na identidade dos sujeitos negros, isso porque, conforme enfatizam Ramos, Santana e Santana (2011, p. 17): “É pelo olhar do outro que me constituo SUMÁR I O 88 como sujeito. É a qualidade desse olhar que contribui para o grau de autoestima da criança”, no caso, os estudantes negros da escola. No excerto a seguir, um aluno relaciona o preconceito que percebe estar presente nas relações sociais da cidade à história da colonização do município. Segundo relata ele, “eu acho que os negros sofrem preconceito. Ainda mais que aqui em Estrela foi colonização alemã, então as pessoas não estão acostumadas com algo diferente. Isso vai melhorar com o tempo, com a cabeça das pessoas”. Nessa enunciação, fica evidente que o negro é o “diferente”, assim identificado porque os descendentes de alemães se constituem como a norma. Conforme refere Silva (2007), nas regiões do Estado do Rio Grande do Sul marcadas pela colonização alemã, essa forma de vida se estabeleceu como a norma que posiciona os indivíduos de outras etnias como sendo “os diferentes”. Segundo observa ele, criouse um “discurso mítico” fundador da identidade germânica. Nessa perspectiva, o autor destaca que “a naturalização da identidade cultural permite, assim, o estabelecimento de fronteiras culturais/étnicas fixas, coexistentes no mesmo espaço” (SILVA, 2007, p. 125), como é o caso dos descendentes de imigrantes alemães e os negros. Para os estudantes entrevistados, os imigrantes haitianos sofrem discriminação, inclusive dentro do bairro onde residem. Neste excerto, um aluno destaca que os haitianos não são vistos apenas como pessoas negras, mas que há, em sua negritude, algo “diferente”: Acho que [os haitianos] estão sofrendo bastante racismo. Porque, tipo, além deles, tá, eles são negros, mas de uma forma um pouco diferente, vamos dizer, e todo mundo faz chacota, “ah, olha só, quando acabar a luz não vamos ver mais ele”, tipo, isso é uma coisa chata pra eles, e pra gente também, tipo, a gente acaba sentido por eles, daí isso é chato. Evidencia-se que o racismo praticado contra os haitianos diz respeito ao fato de estes serem “mais negros”. Dessa forma, pode-se SUMÁR I O 89 traçar um paralelo entre essa situação e os tensionamentos étnicoraciais presentes em relação aos que se autodenominam morenos, bem como ao mito da democracia racial, pois fica claro que ela é uma criação discursiva. Ideia semelhante foi defendida por Schwarcz (1998), que reflete sobre o modo como o racismo está presente na vida privada dos brasileiros, bem como em sua intimidade. Segundo refere ela, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio consolidada em 1976, na qual os respondentes diziam qual era a sua cor sem que houvesse termos pré-estabelecidos, houve 136 denominações diferentes, o que a autora chamou de “aquarela do Brasil”, e que corroborou suas ideias acerca do caráter íntimo e privado do racismo no País. Para a autora, a raça e a etnia dos sujeitos dependem de uma série de elementos muito mais complexos do que um dado supostamente objetivo proveniente da observação da cor da pele, uma vez que esta não depende de uma “essência”, mas da relação social e cultural entre diversos sujeitos que, continuamente, colocam-se comparativamente aos outros. O terceiro resultado desta pesquisa se relaciona às práticas racistas na escola. Quando questionados sobre as tensões étnicoraciais no interior da escola, os alunos foram unânimes em afirmar que nela as práticas discriminatórias não ocorrem. Um dos alunos foi enfático: “Não! Não! Nunca vi! Nunca fizeram comigo! Nunca senti nada diferente, tipo em relação à minha cor”. Outro destacou: “Racismo, não, aqui [na escola] não tem racismo. Acho que todo mundo é aceito assim”. Contudo, é preciso observar algumas enunciações que carregam uma maior complexidade. O aluno a seguir refere-se ao fato de que a presença de negros na escola é pequena. Em sua fala, refere-se ainda aos que denomina como mulatos: “Nós somos amigos, mesmo tendo poucos negros, né? Tem até uns três ou quatro que são mulatos também, sabe!? Mas nada de preconceito [...] Daí todos aqueles lá são amigos faz tempo”. O aluno explica que não há preconceito, porque são todos “amigos”, e isso porque estudam juntos “desde o primeiro ano”. Dessa forma, percebe-se que sua enunciação SUMÁR I O 90 demonstra que a discriminação racial é evitada pelo fato de os alunos estudarem juntos durante vários anos, desde muito jovens. Nos questionários, a maior parte das respostas apontou ideias muito semelhantes às desenvolvidas anteriormente: “Que eu saiba não existe racismo na nossa escola, mas na nossa cidade existe, pois já vi várias pessoas sofrendo racismo ou algo parecido”. “Eu acho que aqui na escola não existe racismo, pois quase todos nós somos iguais, pelo menos eu nunca vi”. Tal como observado nas entrevistas, o primeiro aluno menciona duas realidades distintas: o racismo enfrentado na cidade e a ausência dele na escola. O segundo, por sua vez, procura explicar por que não há racismo na escola. Notase, em sua fala, que o racismo supostamente não existe na escola, porquanto os alunos se identificam como pertencentes a um mesmo grupo étnico-racial: “pois quase todos nós somos iguais”. Por outro lado, há enunciações que apresentam perspectivas diferentes daquelas que apontam para a não existência de práticas de discriminação racial, como se observa nestas falas: “Racismo existe em todo lugar, tanto na fila do supermercado, no banco, na rua, na escola, e os exemplos é só acompanhar as notícias”. “Na minha escola, acho que é pouco racismo, é só quando o preto tem cabelo feio, daí acontece por isso”. “Na minha cidade acho que não, nunca me deparei com algo assim”. O primeiro aluno generaliza a presença do racismo em nossa sociedade, e cita alguns lugares para exemplificar sua ocorrência. Entre estes a escola e, portanto, na sua concepção, percebe o racismo presente também nesse ambiente. O segundo aluno parece corroborar essa opinião, pois, ao afirmar que, na escola, há “pouco racismo”, mostra que intui a existência de racismo nesse ambiente, embora reconheça sua reduzida ocorrência. No entanto, é importante perceber o que ele afirma na sequência, isto é, que o racismo ocorre “só quando o preto tem cabelo feio, daí acontece por isso”. Depreende-se que, nesse contexto, o racismo não diz respeito à cor da pele, mas a algo que os estudantes relacionam à “estética” do cabelo. SUMÁR I O 91 Podemos, por um lado, explicar a ausência de racismo na escola pelo modo como os alunos se descrevem. Eles não se reconhecem como negros, autodenominando-se “morenos” e “meio morenos”. Logo, ao não se identificarem como negros, não se observa a possibilidade, em um primeiro momento, de práticas de discriminação racial. Contudo, há existência de tensionamentos, como ficou exemplificado no caso do aluno que se mostra incomodado ao chamarem-no de preto, pois ele se considera moreno. Ao mesmo tempo, estes mesmos alunos, que não se reconhecem como negros, relatam sofrer preconceito racial quando circulam em ambientes fora da escola. Essa diferença de percepção ocorre devido à produção da identificação racial, que é contingente e depende do contexto em que estamos inseridos. Conforme Kaercher (2010, p. 87): A cor da pele é o fator que determina, para esse sujeito branco que julga, e para quase todos nós, negros e brancos educados dentro de uma pedagogia da racialização voltada para a construção de um determinado tipo de brancos e negros, um elemento que indica e, por fim, define quem é branco(a), quem é negro(a). Para os alunos que participaram deste estudo, os “tipos” de brancos e negros parecem ser diferentes dos “tipos” de brancos e negros percebidos pelas pessoas de ascendência alemã que os discriminam na cidade, seguindo-os no interior dos mercados, olhando-os “torto” e “cochichando” na rua quando os veem passar. Para estas pessoas, esses estudantes são negros, enquanto, para eles, não são. Isso porque o contexto onde vivem aquelas pessoas é diferente do contexto em que vivem esses alunos. Os descendentes de alemães têm a sua cor como marca de branquitude e, por conseguinte, consideram como negros todos aqueles que não correspondem à sua cor de pele, inclusive, portanto, os alunos referidos. Enquanto isso, estes, por sua vez, colocam em rasura a sua cor e, como observamos, consideram, por exemplo, os haitianos como sendo negros. Além disso, autodenominam-se “morenos”, SUMÁR I O 92 como uma forma de “amolecer a rigidez das polarizações”, conforme refere Silva (2007). No mesmo sentido, Kaercher (2010, p. 87) afirma que “não é necessário um esforço muito grande para que possamos localizar um punhado de exemplos onde, por força dos modos como nos educou a pedagogia da racialização, temos dificuldade de lidar com a pertença racial [...]”, como é o caso dos alunos em questão. CONSIDERAÇÕES FINAIS No encerramento deste capítulo, não tenho a pretensão de apresentar possíveis conclusões, no sentido de indicar um “ponto final” ou resultados gerais que possam ser aplicados a outros contextos educacionais. Seguindo o referencial teórico adotado nesta investigação, estou ciente de que o estudo gerou, apenas, algumas possibilidades de discutirmos e pensarmos mais sobre as formas pelas quais a temática étnico-racial se articula com o campo da Educação. Interessada em dar visibilidade ao modo pelos quais os alunos de uma escola pública estão subjetivados, em especial pelos marcadores étnico-raciais, busquei respaldo nas teorizações de Foucault, dado que, em grande parte de sua obra, o filósofo dedicouse a mostrar de que maneiras nos constituímos como sujeitos. Para ele, o sujeito é entendido como um artifício da linguagem, uma produção discursiva e um efeito de relações de poder-saber. Enfim, a partir da obra de Foucault, pode-se dizer que “o sujeito passa a ser [...] aquilo que dele se diz.” (MEYER; PARAÍSO, 2014, p. 29). Sobre esse aspecto, a investigação mostrou três resultados, os quais estão diretamente implicados com as formas pelas quais os alunos se identificam e percebem as relações étnico-raciais na escola e na cidade onde residem. Em primeiro lugar, as enunciações SUMÁR I O 93 examinadas mostraram um não reconhecimento da negritude dos estudantes que preferem denominar-se como “morenos” ou “escuros”. Este aspecto corroborou as afirmações de Silva (2007), quando menciona que, no Brasil, há um “amolecimento” da rigidez das polarizações, o qual se materializa em novas denominações, como é o caso do “moreno” e da “meio escurinha”. Para os discentes entrevistados, negros são apenas os haitianos, em função do tom mais escuro de sua pele. Além disso, a pesquisa destaca que os alunos negam a existência de racismo na escola, mesmo afirmando que práticas racistas são vivenciadas no município. A partir desses resultados, outras questões podem ser destacadas. Uma delas é que o trabalho, de certa forma, ajuda a sustentar as discussões já empreendidas sobre os conceitos de “raça” e “etnia”. De acordo com Meyer (2011, p. 47), tais conceitos podem ser compreendidos como “contingências históricas, produzidas umas em relação a outras, em contextos sociais específicos”. São, dessa forma, “construções que se dão no interior dos processos sociais, resultados de uma relação de poder entre forças que se exercem tanto para a dominação como para a resistência” (MEYER, 2011, p. 47). Ciente de que essas definições estão carregadas de tensionamentos políticos e atravessadas por relações de poder, este estudo procurou justamente entender como essas categorias operam no sentido de construir as subjetividades dos alunos. Assim, estive interessada em analisar os modos pelos quais os alunos se identificam e se percebem como moradores de uma cidade marcada pela colonização alemã. Por fim, ressalto que nestes tempos líquidos em que vivemos, a escola pós-moderna tem-se configurado como um espaço de problematização de algumas das grandes “verdades” que aceitamos e tomamos como naturais, sem questionamento. Nesse sentido, não temos como pensar a Educação de modo desarticulado das questões da diferença, cultura, raça, etnia, gênero e tantas outras. SUMÁR I O 94 Desta forma, considero que a pesquisa contribuiu abrindo espaço para narrativas dos alunos acerca das questões étnico-raciais. Essa abordagem possibilitou aos discentes refletirem sobre si mesmos e sobre questões mais amplas relativas à sociedade em que vivem. Este exercício de questionamento, quem sabe, pode abrir espaço para outras possibilidades de pensarmos a sociedade e nós mesmos. REFERÊNCIAS ANJOS, G. L. (Re)Conhecimento e negritude: uma questão da educação? Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2012. AQUINO, J. G. A difusão do pensamento de Michel Foucault na educação brasileira: um itinerário bibliográfico. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 18, n. 53, p. 301-324, 2013. BARBOSA, L. S. Imigrantes Haitianos no Rio Grande do Sul: uma etnografia de sua inserção no contexto sociocultural brasileiro. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria: 2015. DIEHL, F. O fenômeno da estigmatização dos imigrantes haitianos em Lajeado no Rio Grande do Sul. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n.47, p. 90-106, 2016. FERRI, G. História do rio Taquari-Antas. Encantado: Grafen, 1991. FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. FONSECA, M. A. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo: EDUC, 2003. FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. (Org.). Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 273-295. FOUCAULT, M. Michel Foucault explica seu último livro. Ditos e escritos II. Rio de Janeiro: Forense, 2000 p. 145-152. FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France. São Paulo: Edições Loyola, 2009. SUMÁR I O 95 FOUCAULT, M. História da Sexualidade II – O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 2010. GEERTZ, C. Estar lá, escrever aqui. Diálogo, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 58-63, 1989. GOMES, N. L. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 23, p. 75-85, 2003. GREEN, J. L.; DIXON, C. N.; ZAHARLICK, A. A etnografia como uma lógica de investigação. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 42, p. 13-79, 2005. HESSEL, L. O município de Estrela: história e crônica. Porto Alegre: Editora da UFRGS,1983. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Características étnicoraciais da população. Brasília, DF: IBGE, 2008. Disponível em: <http://www. ibge.gov.br/ home/estatistica/populacao/caracteristicas_raciais/default_zip. shtm>. Acesso em 23 jul. 2016. KAERCHER, G. E. P. S. Pedagogias da racialização ou dos modos como se aprende a “ter” raça e/ou cor. In: BUJES, M. I. E.; BONIN, I. T. (Org.). Pedagogias sem fronteiras. Canoas: Ed. ULBRA, 2010. p. 85-91. KREUTZ, L. O professor paroquial: magistério e imigração alemã. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1991. MARGUTI, B. O. et al. Relatório de pesquisa: a nova plataforma da vulnerabilidade social: primeiros resultados do índice de vulnerabilidade social para a série histórica da PNAD (2011-2015) e desagregações por sexo, cor e situação de domicílio. Brasília, DF: IPEA, 2017. Disponível em: http:// dapp.fgv.br/haitianos-no-brasil-hipoteses-sobre-distribuicao-espacial-dosimigrantes-pelo-territorio-brasileiro/. Acesso em 26 de set. 2017. MEYER, D. E. Das (im)possibilidades de se ver como anjo... In: GOMES, N. L.; SILVA, P. B. G. (Org.). Experiências étnico-culturais para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 51-69. MEYER, D. E.; PARAÍSO, M. A. (Org.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte: Mazza, 2014. MUGGE, M. H.; MOREIRA, P. R. A fim de adquirir algum escravo, que possa aplicar ao serviço da lavoura nas terras que lhe foram destinadas: notas sobre imigração alemã e escravidão no Brasil meridional nos Oitocentos. MÉTIS: História & Cultura, Caxias do Sul, v. 11, n. 22, p. 175-196, 2012. RAGO, M. A história do presente em Michel Foucault. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 18., 2006, Assis. Anais... Assis: UNESP, 2006. p. SUMÁR I O 96 1-8. Disponível em: < http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20 XVIII/pdf/ ORDEM%20ALFAB%C9TICA/Luzia%20Margareth%20Rago.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2017. RAMBO, A. B. A escola comunitária teuto-brasileira católica. São Leopoldo: UNISINOS, 1994. RAMOS, A. O.; SANTANA, M.; SANTANA, J. V. J. Relações étnico-raciais no ambiente escolar: reflexões a partir de uma escola pública no município de Itapetinga/BA. Educação, Gestão e Sociedade, São Paulo, ano 1, n. 2, 2011. SCHWARCZ, L. M. (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. SCHWARCZ, L. M. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001. SILVA, M. L. Educação, etnicidade e preconceito no Brasil. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. SILVEIRA, R. M. H. A entrevista na pesquisa em educação: uma arena de significados. In: COSTA, M. V. (Org.). Caminhos Investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 119-142. VEIGA-NETO, A. Dominação, violência, poder e educação escolar em tempos de império. In: RAGO, M. e VEIGA-NETO, A. (Org.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 13-38. VEIGA-NETO, A. Foucault & Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. WANDERER, F. Educação Matemática, jogos de linguagem e regulação. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2014. WESCHENFELDER, V. A produção do sujeito negro: uma analítica das verdades que circulam em Venâncio Aires. Dissertação (Mestrado). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2012. WITT, M. A. Sobre escravidão e imigração: relações interétnicas. História: Debates e Tendências, Passo Fundo, v. 14, n. 1, p. 21-35, 2014. SUMÁR I O 97 Capítulo 5 5 PRÁTICAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA NA ESCOLA Daiane Martins Bocasanta Luciane Andreia Leite dos Santos Tanise Müller Ramos Daiane Martins Bocasanta Luciane Andreia Leite dos Santos Tanise Müller Ramos PRÁTICAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA NA ESCOLA DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.98-116 INTRODUÇÃO O capítulo aqui apresentado nasceu da discussão levantada por três professoras pesquisadoras do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAp/UFRGS), tendo como base seus interesses de estudos. Esta escrita tem por objetivo geral apresentar algumas reflexões acerca de práticas pedagógicas realizadas nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (EF) e na Educação de Jovens e Adultos (EJA), suscitadas por desafios com os quais nos deparamos todos os dias na instituição escolar, em especial, os processos de in/exclusão. Especificamente, o objetivo desta investigação foi examinar efeitos de práticas de Iniciação Científica (IC) realizadas junto a crianças, adolescentes e adultos no CAp/UFRGS que, em nosso entendimento, ajudam-nos a refletir acerca de possibilidades de ressignificação da docência na escola contemporânea. Nosso exercício analítico se estruturou desta forma: primeiramente, na introdução, descrevemos de modo breve o contexto institucional onde estamos inseridas e alguns desafios ligados às condições de permanência que alunos e professores enfrentam em seu cotidiano. Na seção seguinte, discutimos os caminhos da pesquisa. Após, o capítulo passa a ocupar-se das práticas pedagógicas propriamente ditas, tanto aquelas já consagradas no currículo da instituição, quanto algumas que consideramos representativas de nossas intenções em qualificar o trabalho docente e as condições de permanência do corpo discente. Encerramos o texto com considerações finais, as quais sinalizam o caráter não-prescritivo de nossas análises, sugerindo a abertura de nossas produções para a inclusão de novos olhares e novas discussões. SUMÁR I O 99 SITUANDO O LOCAL DE PESQUISA: O COLÉGIO DE APLICAÇÃO DA UFRGS O CAp/UFRGS é uma escola de Educação Básica que tem entre seus objetivos servir como laboratório de práticas pedagógicas inovadoras e como campo de estágio para alunos das diferentes licenciaturas e cursos da instituição. A escola foi fundada em 1954, pelo Decreto Lei 9.043, de 1946, e desde então se firmou na sociedade porto-alegrense como uma instituição de ensino público de qualidade. O ingresso na escola dava-se mediante aprovação em “rigorosos testes de seleção” ou pela reserva de vagas para os filhos de professores ou de “famílias ligadas à Universidade e de reconhecida importância social” (SAENGER, 1999, p. 34-35). Em 1981, por meio de ação judicial, essas formas de acesso à escola foram contestadas, o que obrigou a instituição a optar por caminhos mais democráticos de ingresso. Como alternativa, o CAp/UFRGS passou a adotar o sorteio público, pois possibilitaria o preenchimento das vagas “em igualdade de condições para todos” (MORAES; TEIXEIRA, 1983, p. 88). Essa mudança na forma de ingresso repercutiu significativamente na composição do quadro discente. Dados do Serviço de Orientação e Psicologia Educacional mostraram que a partir de 1982, o nível de escolaridade dos pais, em sua maioria, até aquele momento com ensino superior completo, mudou consideravelmente, bem como a forma da organização familiar (STUMPF, 1995). Essa nova forma de acesso também refletiu mudanças em outros dois aspectos: o local de moradia dos alunos, o qual se ampliou para outros bairros da cidade de Porto Alegre e área metropolitana, e as motivações para a escolha dessa escola. Primeiramente, essa escolha era centrada na questão da qualidade do ensino ou aprovação no vestibular, porém, nessa nova configuração, ocorre por ser uma escola pública, gratuita e com o 2º Grau completo (atual Ensino Médio) (BRUGALLI et al., 1998). Tais mudanças foram SUMÁR I O 100 intensificadas, segundo observa Mutti (2004, p. 48), com a transferência da escola, ocorrida no ano de 1996, do centro da capital gaúcha, para o Campus do Vale, no bairro Agronomia. Podemos dizer que isso contribuiu para que o perfil dos alunos se tornasse “mais heterogêneo, semelhante ao de outras escolas públicas”. Ao receber esses grupos cada vez mais heterogêneos, principalmente no que concerne aos aspectos socioculturais, o CAp/ UFRGS enfrentou (e enfrenta) algo semelhante ao que outras escolas já enfrentavam: a dificuldade em trabalhar com alunos que possuem referenciais culturais diversos, principalmente referenciais que divergem daqueles historicamente valorizados pela escola. Nossa observação sobre o trabalho desenvolvido na instituição, a partir da vivência como professoras dos Anos Iniciais, levou-nos a perceber que vários estudantes que ingressavam nas diferentes etapas de ensino não concluíam seus estudos no CAp/UFRGS. Buscando compreender os motivos que justificavam a saída dos alunos, uma vez que as vagas eram (e ainda são) muito disputadas, surgiu o interesse pelo estudo das trajetórias de um grupo de alunos para entender as permanências ou as transferências ocorridas. Este estudo nos possibilitou conhecer um pouco da história desses estudantes e como suas trajetórias foram sendo constituídas a partir das práticas escolares, que por sua vez eram pautadas em concepções de escola, aluno e família, às quais alguns alunos sorteados “se adequavam” e outros não. Embora se entenda, na perspectiva teórica que embasou este trabalho, que nenhum sujeito está totalmente incluído ou excluído, seja em ações, práticas ou espaços (LOPES, 2010; LUNARDI, 2001), problematizar situações como essas contribuiu para desnaturalizar justificativas pautadas na responsabilização apenas dos alunos e de suas famílias frente aos insucessos escolares, bem como permitiu a reflexão acerca de uma possível desresponsabilização da instituição no processo ocorrido (DOEBBER, 2011). SUMÁR I O 101 Dado esse contexto, temos discutido, especialmente entre as professoras que compõem a área dos Anos Iniciais, acerca da elaboração e realização de práticas pedagógicas alternativas, significativas e inclusivas, que possam contribuir para garantir as condições de permanência dos estudantes do CAp/UFRGS. Assim, após a descrição dos caminhos da pesquisa, passaremos para a discussão de algumas ações que temos posto em prática. TRILHANDO CAMINHOS DE PESQUISA Esta pesquisa se ampara em uma metodologia de inspiração etnográfica. O referencial teórico situa-se no campo dos Estudos Culturais em Educação, em seus entrecruzamentos com o campo dos Estudos Foucaultianos. Para iniciar, é preciso situar que nesse referencial teórico não existe uma metodologia específica ou única, podendo o pesquisador, em seu percurso, construir/reconstruir sua trajetória e, ainda, fazer uso de diferentes metodologias, independentemente do campo de estudos das mesmas: o estudo de caso, a etnografia, a pesquisa qualitativa, entre outras. Isto é, os “Estudos Culturais se aproveitam de quaisquer campos que forem necessários para produzir o conhecimento exigido por um projeto particular [...] sua metodologia, ambígua desde o início, pode ser mais bem entendida como uma bricolage” (NELSON; TREICCHLER; GROSSBERG, 2008, p. 9). Nesse movimento, de acordo com Wortmann (2010), ao buscar contribuições de outros campos e parcerias, as próprias possibilidades interpretativas do que se entende por pedagógico se ampliam. Apoiando-nos em formulações foucaultianas, podemos dizer que a abordagem escolhida nos retira a estabilidade do solo firme proporcionado pela escolha a priori de uma determinada metodologia de pesquisa. Seguindo Veiga-Neto e Lopes (2010, SUMÁR I O 102 p. 7), “[...] não há um solo-base por onde caminhar, senão que, mais do que o caminho, é o próprio solo sobre o qual repousa esse caminho é que é feito durante o ato de caminhar”. Assim, se há disposição de escutar Foucault, “o método não é o caminho seguro como queriam Descartes e Ramus, até porque nada mais é seguro, previsível: nem os pontos de partida, nem o percurso, nem os pontos de chegada” (VEIGA-NETO; LOPES, 2010, p. 6). A temática desta investigação surgiu a partir do diálogo entre as autoras do presente capítulo, três pesquisadoras/docentes atuantes no CAp/UFRGS, que, ao compartilharem suas dúvidas, interesses de pesquisa e projetos investigativos individuais, perceberam a produtividade de realizar uma escrita que conectasse tudo isso. Dentre os pontos de encontro dessas pesquisas, é preciso evidenciar a atitude de questionamento frente a crenças e objetos naturalizados. Isso possibilita, como argumenta Fischer (2012, p. 103), questionar “como algumas práticas acabam por objetivar e nomear de determinada forma os sujeitos, os grupos, suas ações, gestos, vidas”. Guiadas por tais pressupostos, colocamos em prática um percurso investigativo que visou a identificar no material de pesquisa – composto por observações e anotações em Diário de Campo de atividades escolares, documentos e entrevistas produzidas com professores, alunos e ex-alunos da instituição – as recorrências, as rupturas, as continuidades e descontinuidades presentes, amparadas sobretudo pelas contribuições de Michel Foucault. ANALISANDO A INICIAÇÃO CIENTÍFICA NA ESCOLA Há alguns anos, o CAp/UFRGS tem a IC como parte do currículo escolar, realizada desde o primeiro ano dos Anos Iniciais do EF até o SUMÁR I O 103 final do Ensino Médio e na EJA6. Nos Anos Iniciais, além de ocupar três períodos semanais da carga-horária em todas as turmas, a IC geralmente acontece com a atuação de mais de um professor por turma. A escolha das questões de pesquisa a serem estudadas é feita de diferentes modos, como, por exemplo, a partir de atividades disparadoras. O Manual do Novato no CAp/UFRGS (2018), que está presente no site da instituição, evidencia a ideia de que há a necessidade de engajamento de todos os sujeitos em atividades de ensino, pesquisa e extensão, como forma de alcançar uma formação plena. Nesse texto está presente a argumentação de que esse engajamento seria essencial para o cumprimento do potencial de criação de conhecimento e de transformação social da escola. Podemos inferir, a partir desse documento e da inserção da IC como atividade semanal presente no currículo escolar desde os Anos Iniciais do EF, que se espera, portanto, que professores e estudantes do CAp/UFRGS sejam comprometidos com uma formação voltada para o aprender a pesquisar. Para Noguera-Ramírez (2011), o conhecimento, em nossa sociedade pós-capitalista, ocupa um lugar de extrema relevância, o que implica uma nova forma de pensarmos a educação como algo que deixa de ser um monopólio das escolas. Ele destaca que o relatório apresentado à UNESCO pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, sob a presidência de J. Delors, demarca que o ingresso para o século XXI se daria pelo conceito de “educação ao longo da vida”. Esse conceito supõe a capacidade de “aprender a aprender”, visando a aproveitar todas as possibilidades ofertadas pela educação permanente (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011). Esse discurso, presente em documentos como os que Noguera-Ramirez (2011) analisou e os documentos escolares que guiam as atividades realizadas no âmbito da instituição escolar a qual 6 SUMÁR I O Na Educação de Jovens e Adultos, são realizados os Projetos de Investigação (PI), que, mesmo sendo semelhantes à IC realizada nos outros segmentos da escola, possuem suas particularidades. 104 pertencemos, está presente também em publicações voltadas a formar professores capazes de utilizar a IC em sala de aula, como mostraremos a seguir. Observamos que esses documentos posicionam o uso da metodologia científica como um caminho de via única para a realização desse tipo de trabalho nas instituições escolares. Dito isso, cabe trazermos ao texto um breve exame da obra de Celicina B. Azevedo, Metodologia científica ao alcance de todos, que se mostra elucidativa a esse respeito. Conforme explica a autora, o objetivo de sua obra seria disseminar a ideia de que o trabalho com a metodologia científica deveria ser expandido desde os laboratórios onde atuam pesquisadores para todas as salas de aula, inclusive as da Educação Infantil. Ademais, Azevedo (2013, p. XVII) explica que escreveu o livro por acreditar “[...] que um estudante - do ensino fundamental à pós-graduação - pode aplicar o método científico nos seus trabalhos escolares sem que para tanto necessite ter profundos conhecimentos científicos”. Desse modo, aprender a pensar teria a ver com “dar asas à imaginação”, “não impor limites ao pensamento”, “pensar qualquer coisa, por mais absurda que ela possa parecer”, pois, “como você já sabe, pensar sem bloqueios é muito importante para ser um cientista” (AZEVEDO, 2013, p. 5). Entretanto, conforme nossa análise, podemos inferir que a autora argumenta que esse pensar necessariamente deveria estar circunscrito aos ditames do método científico, isto é, o pensar precisaria estar subordinado à racionalidade científica da Modernidade. Azevedo (2013, p. 6) explicaria inclusive como devem ser feitas as perguntas: “[...] você precisa ser mais objetivo na sua pergunta, isto é, a pergunta deve ser clara e precisa, por exemplo: ‘Quais doenças parasitárias incidem com maior frequência nas crianças da sua cidade?’”. E, complementa dizendo: “observe que a pergunta deve ter uma solução possível, isto é, por meio da questão formulada você deve chegar a uma resposta [...]” (AZEVEDO, 2013, p. 6). SUMÁR I O 105 Embora argumente que aprender a pensar seria o primeiro passo para se fazer pesquisa e que isso estaria fortemente relacionado a “ter mais coragem de emitir nossa opinião sobre as coisas” (AZEVEDO, 2013, p. 4), em seu texto, a autora mostra como alguém que vai fazer uma pesquisa deve formular suas perguntas e, desse modo, como deve pensar suas curiosidades. Ao mesmo tempo, mostra que as curiosidades que “valem a pena” são aquelas que têm uma solução possível. Não bastaria saber formular a pergunta: “você precisa também formular uma possível resposta por meio de uma proposição, isto é, uma frase que possa ser declarada falsa ou verdadeira após uma investigação” (AZEVEDO, 2013, p. 7). A autora define o Método Científico como “um processo rigoroso pelo qual são testadas novas ideias acerca de como a natureza funciona” (AZEVEDO, 2013, p. 11). Nesse sentido, nossas tentativas têm se centrado na possibilidade de realizarmos práticas pedagógicas investigativas que não sigam passos homogêneos e absolutos como os que apontam manuais como os que aqui analisamos. Assim, perguntas que não sejam do campo das Ciências Exatas ou Naturais, ou ainda, que não tenham uma solução única possível, mas que abram um leque de reflexões que levem os alunos a repensar o mundo em que vivem sob diferentes perspectivas, tem pautado algumas das práticas pedagógicas de IC que buscamos implementar no CAp/UFRGS, como apresentaremos a seguir. DESENCAIXANDO PRÁTICAS É interessante considerar que todas essas conceptualizações aqui trazidas são produzidas também pelo cenário brasileiro contemporâneo, no que concerne especialmente às políticas em Educação. Desde 2003, temos no Brasil uma reorientação nas bases legais educacionais, no que diz respeito à inclusão obrigatória do ensino SUMÁR I O 106 de história e cultura africana e afro-brasileira, ampliada em 2008 para história e cultura indígena, nos currículos escolares de abrangência nacional. Alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996), as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 produziram como um de seus importantes efeitos a reorientação e a produção de práticas pedagógicas atentas à educação das relações étnico-raciais (ERER). Assim, as novas bases legais terminaram por gerar deslocamentos curriculares e novas práticas pedagógicas, que colocam a escola enquanto um espaço em que se educa para uma ação antirracista. Nos Anos Iniciais do CAp/UFRGS, essas novas orientações legais vêm direcionando o foco dos professores para suas práticas pedagógicas, as quais cada vez mais vêm sendo provocadas pelo desafio da inclusão da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas rotinas escolares. A IC, deste modo, também vem sendo repensada em função desses novos desafios e indagações curriculares, principalmente no que concerne à seleção e organização dos saberes e conteúdos valorizados na escola. Atentos à construção de uma proposta de ERER, os professores vêm reinventando suas próprias práticas docentes, no sentido de romper com abordagens curriculares eurocentradas e valorizando conhecimentos oriundos dos modos de pensar e fazer de matrizes africanas e indígenas. Sobre tais desencaixes curriculares, optamos por destacar uma experiência com uma turma de quinto ano do EF, cujo projeto de pesquisa de IC em 2017 partiu da pergunta de pesquisa “Como fazer um mundo melhor para todos?”, sob orientação da professora Tanise Müller Ramos. Essa pergunta nasceu após uma saída de campo a uma aldeia indígena, em que os alunos tiveram contato com alguns aspectos da cultura mbya-guarani, um dos povos fundantes da história e cultura brasileira. Guiadas pela obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, as professoras planejaram como atividade disparadora essa visita a SUMÁR I O 107 um lugar considerado “fora” da ordem escolar, rompendo com a invisibilidade da história e cultura dos povos originários no currículo. Desta forma, as relações entre os seres que habitam o planeta acabaram sendo o centro deste projeto, não na perspectiva tradicional da ciência escolar, que tende a focar no viés biológico dessas relações, mas, sim, no enfoque histórico-cultural, em que as relações étnicoraciais, de gênero, de classe, de geração, de culturas familiares, dentre outras, acabaram por interessar muito aquele grupo. Problemas sociais contemporâneos, tais como o racismo, a desigualdade de gênero, a violência, as ameaças aos direitos humanos, a demarcação de terras indígenas, a homofobia, o machismo, a intolerância religiosa, dentre outras questões, foram pensadas como motes para se discutir ações alternativas para a consecução de um mundo mais justo e igualitário. Além disto, continuamos investindo durante todo o projeto em práticas intersetoriais, que extravasavam os muros escolares, por meio de saídas de campo e apoio de parceiros para dialogar com a turma. Neste sentido, merece destaque nossa visita a uma comunidade quilombola, além da visita de lideranças negras, lideranças indígenas e lideranças femininas no Colégio, em que os alunos foram analisando cada temática sob múltiplas perspectivas, percebendo o quanto um mesmo problema social pode ser percebido e interpretado a partir de diferentes concepções e paradigmas. Essas experiências nos levam a afirmar que é preciso, pois, “visibilizar outras narrativas dentro da escola, as quais acabam por romper com formas de narrar únicas e excludentes já consolidadas no espaço escolar” (RAMOS, 2015, p. 18), o que impõe à escola um movimento profundo de revisão de suas práticas, de seus saberes arraigados, de seus espaços e tempos, de seus objetivos e de suas concepções. A conclusão do grupo com este estudo foi a de que as ciências, em suas diferentes áreas, ajudam-nos a analisar os problemas ambientais, sociais, históricos e culturais do planeta, contribuindo para SUMÁR I O 108 ações e tomadas de decisões cada vez mais plurais e interessadas pela diversidade. Para esse grupo, o projeto de IC naquele contexto esteve o tempo todo imbricado com a educação das relações entre os sujeitos, submetendo as “verdades científicas” aos atravessamentos de ordem social, histórico e cultural. Pensando em “ações para um mundo melhor”, a turma acabou por construir relações mais éticas e respeitosas entre si, evidenciando a relevância que possuem as ciências para a visibilidade de saberes e fazeres silenciados ou excluídos, capazes de potencializarem o diálogo, o respeito e a tolerância. Neste processo, a atitude de indagar o currículo escolar (GOMES, 2008) esteve presente enquanto estratégia para a construção de práticas alternativas àquelas já consagradas no espaço escolar, rompendo com verdades cristalizadas e, assim, ampliando a visibilidade de outras possibilidades para a produção do conhecimento. O resultado deste trabalho, além de um prêmio destaque conquistado pelas crianças e por uma de suas professoras ao apresentarem estes estudos no maior evento de IC da Universidade da qual o Colégio faz parte, foi a formação de posicionamentos daqueles sujeitos em uma perspectiva de combate à violência, à intolerância e à desigualdade em suas diferentes nuances. Considerando o conceito de identidade de Stuart Hall (1998), nós, professoras, conduzimos este projeto todo o tempo pela afirmação de que as identidades culturais são construções contingentes, portanto, sujeitas a deslocamentos e reconfigurações dependentes dos diferentes contextos sociais. Dessa forma, somos levadas a afirmar que as identidades dos alunos também podem ser construídas. Acreditamos, portanto, que a escola funciona como um contexto cultural produtor de identidades, em que operam condições de classe, gênero, sexualidade, raça, etnia e nacionalidade, dentre tantas. Em outras palavras, terminamos por produzir identidades negras, indígenas, antirracistas, feministas e de combate à intolerância e à desigualdade naquele projeto. SUMÁR I O 109 Para encerrar a análise desta experiência, associamo-nos a Jorge Larrosa (1996, p. 147), quando diz que “o sentido de quem somos está construído narrativamente”. Ao sustentarmos uma saída de campo a um local que rompia com a “ordem” escolar, ao autorizar as crianças a levarem adiante uma pergunta de pesquisa complexa, que extravasava as fronteiras daqueles conteúdos que eram tradicionalmente eleitos para o trabalho nos Anos Iniciais, ao selecionar, planejar e organizar experiências para além dos muros escolares, percebemos que estávamos produzindo novas narrativas, as quais visibilizavam de modo afirmativo as histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas em especial, concebendo que tais formas de narrar possuíam potencial para constituir as identidades dos alunos dos Anos Iniciais do CAp/UFRGS. PROBLEMATIZANDO O SALÃO UFRGS JOVEM Nesta seção, descrevemos outra experiência que nos levou a “desencaixar” nosso pensamento acerca da IC escolar. A experiência aqui descrita se refere à orientação de uma estudante de 50 anos, aluna do Ensino Médio da EJA, do CAp/UFRGS. Em meados de 2017, essa estudante foi selecionada por uma das autoras deste artigo para ser bolsista de Iniciação Científica Júnior ligada a uma pesquisa desenvolvida no âmbito da instituição. O tipo de bolsa a que essa aluna foi vinculada só pode ser concedido a alguém que não tenha vínculo profissional formal, o que geralmente já é um impeditivo para que alunos da EJA possam ser contemplados nesse sentido. O trabalho de pesquisa desenvolvido pela aluna consistia em examinar livros didáticos voltados para os Anos Iniciais da EJA, objetivando identificar como esses alunos eram posicionados em relação ao que consideramos conhecimentos tecnocientíficos. A diferença de idade entre a aluna e sua orientadora era significativa SUMÁR I O 110 e sempre gerava, nos encontros de orientação, comentários da estudante, tais como: “minha cabeça já não ajuda”, “eu não entendo por que tu me escolheste e não um mais novinho” ou “será que eu vou conseguir? Eu já não tenho a mesma cabeça de um jovem”. As falas da estudante, que eram sempre colocadas em questão, refletem um discurso presente em materiais didáticos, documentos governamentais e regulamentos de eventos de IC, que garantem um papel de protagonismo aos jovens, como produtores de inovação no campo científico. Como escrevemos em outro espaço: Ao mesmo tempo em que o jovem aparece como alvo a ser atingido pelas políticas de desenvolvimento de ciência e tecnologia, ele é apresentado, nos documentos, como o produtor por excelência da C&T brasileira: “o sistema [de C&T brasileiro] é jovem, também em termos de idade média de seus pesquisadores. Esta juventude é uma das grandes forças do Brasil” (BRASIL, 2001, p. 256). [...] Esse processo de valorização das culturas juvenis, em que “atributos associados a ideias de juventude, como beleza, saúde, estilos de vestimenta, acessórios e práticas identificadas como juvenis ganham força e relevância cultural na sociedade contemporânea” (SILVA, 2009), está diretamente implicado em um fenômeno bem maior que tem tomado conta do mundo ocidental nos últimos anos (BOCASANTA, 2013, p. 88). Apesar das dificuldades enfrentadas e, principalmente, contra um discurso corrente que a aluna assumia, a pesquisa foi realizada com grande qualidade. Surgiu então, a ideia de divulgar a pesquisa, inscrevendo-a no Salão UFRGS Jovem. Ao conversar sobre essa possibilidade com a bolsista, mais uma vez ela questionou se deveria participar dessa atividade. Explicou-se, então, que, apesar do título, o evento era voltado para alunos da Educação Básica e, por estar cursando o Ensino Médio, nada mais justo do que ela participar. Criado em 2006, o Salãozinho, como é popularmente chamado, surgiu em consequência de uma mostra realizada para alunos da Educação Básica durante a semana acadêmica da universidade. Na SUMÁR I O 111 chamada para o VII Salão UFRGS Jovem, ocorrido em 2012, já na chamada do evento, os jovens eram colocados como o público-alvo, ignorando-se o fato de que a EJA, composta majoritariamente por adultos e idosos, também é espaço onde ocorre a Educação Básica. Realizado de forma integrada ao Salão UFRGS 2012, este evento buscar estimular os jovens a aprenderem a interagir de forma crítica e criativa com o mundo que os cerca. [...] É muito importante que a pesquisa possa acontecer desde muito cedo, mesmo no âmbito da educação fundamental, pois é neste estágio inicial da formação do ser humano que se potencializa a sua capacidade criativa. [...] É tocante ver as crianças e adolescentes apresentando os seus resultados da sua pesquisa na escola! (UFRGS, 2012) No dia da apresentação do trabalho da bolsista, observamos que ela era a única aluna da EJA participando do evento e, com certeza, a estudante mais velha entre todos ali presentes. Como reconhecimento de nossos intentos, o trabalho recebeu premiação de destaque, que consiste em um troféu, entregue ao final do evento, em cerimônia própria. Logo após o recebimento do prêmio, a aluna foi chamada a dar uma entrevista para o jornal da universidade, que publicou o seguinte: No conjunto de destaques premiados, uma pesquisa chamou a atenção por ser realizada no Colégio de Aplicação da UFRGS por uma aluna do Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Aos 50 anos de idade, a estudante Odete Bernardo subiu ao palco acompanhada da professora Daiane Martins Bocasanta para receber seu troféu. [...] Revelando que pretende continuar estudando e pesquisando, Odete disse que a experiência com a pesquisa e no Salão Jovem mostrou a ela sua capacidade: “vejo que, aos 50 anos, tenho as mesmas condições que os jovens. Quero ir além” (UFRGS, 2018). É interessante notar que, por não ser comum a participação de adultos nesse tipo de evento, a presença da aluna causou um certo tipo de “comoção”, que levou sua situação a se constituir como uma “notícia” que “chamou atenção”. Nesse sentido, entendemos que isso SUMÁR I O 112 provoca desacomodações curriculares também, afinal, problematiza a não participação dos adultos e idosos em um evento que, apesar de voltado também para estudantes da EJA, já os exclui de antemão pelo próprio título que o constitui. APONTANDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS Como conclusão, afirmamos a necessidade de reorganização do cotidiano da escola na contemporaneidade, levando em consideração os aspectos legais e problematizando os discursos e as práticas historicamente arraigados à cultura escolar, como foi o foco deste estudo. Assim, é possível criar canais de visibilidade para outras abordagens científicas até então silenciadas ou marginalizadas, desconstruindo os esquemas únicos com os quais estamos habituados a enxergar o mundo em nosso contexto ocidental (RAMOS, 2015). Questionar a ciência em sua abordagem única e ampliá-la por meio de outras perspectivas potencializa nossa capacidade de pensar e agir em um mundo marcado pela diversidade. Para a escola, isso possibilita condições de permanência e sucesso para todos os alunos, pois o público que a acessa é marcado por trajetórias, experiências e pertencimentos diversos, demandando práticas pedagógicas alternativas para a garantia do direito de aprendizagem de todos. Isso remete à necessidade de repensarmos e discutirmos o que foi se constituindo como conhecimento válido dentro da escola. Além disso, provoca-nos a pensar sobre a relevância do conhecimento científico que investigamos, transmitimos e produzimos com nossos alunos e formas de potencializar seu uso no combate às desigualdades e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. SUMÁR I O 113 REFERÊNCIAS AZEVEDO, C. B. Metodologia científica ao alcance de todos. Barueri: Manole, 2013. BOCASANTA, D. M. Dispositivo da tecnocientificidade: a iniciação científica ao alcance de todos. (Tese de Doutorado). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2013. BRASIL. Lei Federal n°9394 de 20 de dezembro de 1996. Lei que estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 1996. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394. htm: Acesso em: 18/06/2019 BRASIL. Lei Federal n°10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática «História e Cultura Afro-Brasileira», e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2003. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 18/06/19. BRASIL. Lei Federal n°11.645 de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, 2008, DF: Presidência da República, 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 18/06/2019. BRUGALLI, M. Por que heterogeneidade. Cadernos do Aplicação, v.11, n. 1, p. 15- 50. COLÉGIO DE APLICAÇÃO DA UFRGS. Manual do Novato, 1998. Disponível em: https://www.ufrgs.br/colegiodeaplicacao/wp-content/uploads/2018/09/ MANUAL-DO-NOVATO-revisado.pdf. Acesso em: 10/06/2018. DOEBBER, M. B. Reconhecer-se Diferente é a condição de entrada – Tornar-se igual é a estratégia de permanência: Das práticas Institucionais à constituição de estudantes cotistas negros na UFRGS. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2011. FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. GOMES, N. L. A questão racial na escola: desafios colocados pela implementação da lei 10.639/03. In: MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. (Org.). SUMÁR I O 114 Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 1998. LARROSA, J. Literatura, experiência e formação: uma entrevista de Jorge Larrosa para Alfredo Veiga-Neto. In: Costa, M. V. (Org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Porto Alegre: Mediação, 1996. LOPES, M. C. et al. Inclusão e Biopolítica. Cadernos IHU ideias, São Leopoldo, ano 8, n. 144, 3-30, 2010. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/images/ stories/cadernos/ideias/144cadernosihuideias.pdf . Acesso em 30/10/2020. LUNARDI, M. Inclusão/exclusão: duas faces da mesma moeda. Cadernos de Educação Especial, Santa Maria, n.18, 2001. MORAES, V. R. P., Teixeira, C. M. Colégio de Aplicação, 1982. Educação e Realidade, v. 8, n. 1, 83-93, jan/abr., 1993. MUTTI, R. M. V. Memórias. Cadernos do Aplicação, Porto Alegre, v. 17, n. 1/2, 37-51, jan./dez., 2004. NELSON, C.; TREICHLER, P.; GROSSBERG, L. Estudos Culturais: uma introdução. In: Silva, T. T. da (Org.) Alienígenas em sala de aula. Petrópolis: Vozes, 1995. NOGUERA-RAMÍREZ, C. E. Pedagogia e governamentalidade ou da modernidade como uma sociedade educativa. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. RAMOS, T. M. “Nossos antepassados eram africanos, então somos negros também!”: as intervenções pedagógicas na promoção das relações etnicorraciais e na constituição das identidades discentes. (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2015. SAENGER, L. A identidade construída: Identidade, consciência e historicidade. Cadernos do Aplicação, Porto Alegre, v.12, n. 1/2, jan./dez., 1999. STUMPFT, M. C. T. Quem são os alunos do Colégio de Aplicação? Cadernos do Aplicação, Porto Alegre, v. 8, n. 2, jul./dez., 1995. UFRGS. VII Salão UFRGS Jovem, 2012. Disponível em: http://www.ufrgs. br/salaoufrgs2012/o-salao-ufrgs-2012/vii-salao-ufrgs-jovem. Acesso em 30/10/2020. UFRGS. Alegria e otimismo marcam cerimônia de premiação do XII Salão Jovem, 2018. Disponível em: https://www.ufrgs.br/salaoufrgs/2018/10/22/ SUMÁR I O 115 alegria-e-otimismo-marcam-cerimonia-de-premiacao-do-xii-salao-jovem/ Acesso em: 30/10/2020. VEIGA-NETO, A.; LOPES, M. C. Há teoria e método em Michel Foucault? implicações educacionais. In: Clareto, S. M.; Ferrari, A. (Org.). Foucault, Deleuze & Educação. Juiz de Fora: UFJF, 33-47, 2010. WORTMANN, M. L. C. Pedagogia, cultura e mídia: algumas tendências, estudos e perspectivas. In BUJES, M. I. E; BONIN, I. T (Org.) Pedagogias sem Fronteiras. Canoas: Ed. Ulbra, p. 105-122, 2010. SUMÁR I O 116 Capítulo 6 6 ENSINAR MATEMÁTICA NOS ANOS INICIAIS: ENUNCIADOS QUE CONSTITUEM DOCÊNCIAS Fernanda Longo Fernanda Longo ENSINAR MATEMÁTICA NOS ANOS INICIAIS: enunciados que constituem docências DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.117-134 Neste capítulo se apresenta uma pesquisa desenvolvida com professoras que atuam no Ensino Fundamental sobre as práticas pedagógicas colocadas em funcionamento ao ensinarem a disciplina Matemática7 nos anos iniciais. Por meio da problematização de enunciados que conformam o discurso da Educação Matemática, com as lentes do pós-estruturalismo e dos estudos de Michel Foucault, foram realizadas entrevistas com docentes da rede privada do município de Porto Alegre/RS, buscando perceber os efeitos de verdade de tais enunciados sobre as práticas pedagógicas. ENUNCIADOS DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA “Como fazer meu estudante aprender a fazer cálculo? O que tu achas sobre ‘decorar a tabuada’? Qual é a melhor forma de ensinar matemática para meus estudantes? Como posso fazer meus estudantes se interessarem pelas minhas aulas? Qual é o melhor método? Ainda pode-se usar o método tradicional?” Quando um pesquisador diz, em meio a um grupo de professores e professoras, que estuda a docência e as formas de ser professor, o diálogo segue por esse caminho de forma automática. Falar em docência no século XXI traz alguns desafios que ultrapassam a opinião sobre qual método seria o melhor para um estudante da escola de modo geral, já que temos uma sociedade bem mais complexa e que demonstra a incapacidade da prescrição de métodos, por exemplo. O que funciona em uma escola da rede privada de uma cidade grande não necessariamente faz sentido e adquire significado na escola pública no meio rural. 7 SUMÁR I O Neste texto, a palavra Matemática será usada com letra maiúscula quando tratar da disciplina Matemática e com letra minúscula quando tratar do conjunto de saberes matemáticos institucionalizados ou não. 118 Essas considerações colocam a escola e a docência em uma perspectiva diferente da escola moderna, onde tudo e todos teriam acesso aos mesmos conceitos e abordagens transcendentais e que funcionariam para todos. As respostas para aquelas perguntas são ditas e repetidas continuamente e, aos poucos, vão compondo os discursos escolares e compondo formas de ser professor e professora na escola. Ao mesmo tempo que perguntam, os docentes compõem modos de ser e de agir, ou seja, estabelecem uma relação com verdades do discurso pedagógico. Os estudos realizados pelo filósofo Michel Foucault e seus comentadores compõem o solo teórico deste texto. Estudar a docência em uma perspectiva foucaultiana significa algo muito diferente de afirmar quem é esse sujeito, descrever o que o(a) professor(a) faz ao dar aulas ou prescrever métodos a serem seguidos. Escrever, pensar, ler, buscar entender o fazer docente significa pensar em modos de subjetivação, pensar na relação que existe entre as verdades que fazem parte do discurso escolar. Busca-se, portanto, neste texto analisar algumas verdades e enunciados que, de alguma maneira, acabam por reger o modo de ser e de agir enquanto sujeitos professores que dão aula de matemática nos Anos Iniciais. Nos últimos anos, a área da Educação Matemática tem se servido das ferramentas foucaultianas para discutir e problematizar questões que envolvem tanto o currículo escolar (KNIJNIK, 2012; KNIJNIK; WANDERER, 2015), como as relações mais amplas entre o conhecimento matemático e a sociedade neoliberal (VALERO, 2013; KNIJNIK, 2017; SANTOS, 2019). Nessas pesquisas, os conceitos foucaultianos de discurso, governamentalidade, relações de poder/ saber e regimes de verdade, basicamente, constituíram-se em vetores analíticos com o propósito de potencializar reflexões desenvolvidas em diferentes formas de vida, incluindo a escolar. SUMÁR I O 119 Ao entrevistar algumas professoras da rede privada de Porto Alegre/RS, que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, sobre as suas aulas de Matemática, algumas enunciações acerca do uso de material concreto como forma de facilitar a compreensão de conceitos matemáticos, sobre a dificuldade de aprender e ensinar Matemática e sobre a importância da contextualização e aproximação da realidade foram ditas de forma recorrente. Tais enunciações não são novas; são repetições, recorrências de legislações, textos teóricos, orientações metodológicas de livros didáticos. Estas enunciações podem ser consideradas enunciados que, para Foucault, não necessariamente é um ato de fala, ou seja, “[...] uma fotografia ou um mapa podem ser um enunciado, desde que funcionem como tal, ou seja, desde que sejam tomados como manifestações de um saber e que, por isso, sejam aceitos, repetidos e transmitidos” (VEIGA-NETO, 2007, p. 94). Desse modo, pensar em enunciado é considerar um ato raro, que não é facilmente visto, mas torna-se visível nas recorrências daquilo que é dito. Pesquisas como as de Valero (2013), Knijnik e Duarte (2010) e Knijnik e Wanderer (2007) demonstram que efeitos tais enunciados provocam na escola. Por meio da análise de anais de eventos nacionais com enfoque na Etnomatemática, Knijnik e Duarte (2010) evidenciaram que o enunciado “trazer a realidade para as aulas de matemática” é recorrente e justificaria a incorporação de diferentes contextos em sala de aula com o enfoque na assimilação de conteúdos com mais facilidade. Assim, enfatizam que o movimento de trazer a realidade do aluno para a escola está vinculado ao propósito de ensinar os jogos de linguagem da escola, não para valorizar ou legitimar a cultura dos alunos. Especificamente nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental predomina um enunciado que afirma “a importância de trabalhar com materiais concretos nas aulas de matemática”, problematizado por Knijnik e Wanderer (2007). Segundo observam elas, os materiais manipuláveis ganham espaço nas orientações para o ensino de SUMÁR I O 120 Matemática nos Anos Iniciais, pois funcionariam como uma ponte entre o “concreto” e o “abstrato”. Tal ponte torna-se quase obrigatória durante as aulas, enredando-se em uma verdade do discurso psicológico: apenas se aprende o abstrato a partir da sua relação com o concreto. No entrecruzamento dessas verdades, o discurso da Educação Matemática acaba por posicionar os conceitos matemáticos como únicos, universais e não construídos conforme o contexto em que se desenvolvem. Sobre esse aspecto, Foucault nos ajuda a compreender a Educação Matemática como um discurso que forma os objetos de que falam. Essa ideia nos possibilita pensar que somos regulados e constituídos continuamente pelos discursos que nos perpassam e regulam nossa forma de ser e de agir. Para o filósofo (FOUCAULT, 2007), o discurso vai além do que é dito, além do que é visível a ‘olho nu’, sendo compreendido como práticas que formam e regulam as formas de agir em diferentes formas de vida, como aqueles presentes na rede privada de ensino de Porto Alegre. Nesse sentido, “aprender matemática é difícil”, “’é importante trabalhar com a realidade nas aulas de matemática” e “para aprender matemática é preciso usar materiais concretos” são enunciados que conformam o discurso da Educação Matemática e que, ao serem proferidos, acabam por produzir efeitos de verdade em quem ouve e em quem fala. Os trabalhos referidos serviram de inspiração para a composição desta investigação. Assim como nas pesquisas descritas, em nosso estudo, buscamos analisar o discurso da Educação Matemática assumindo que existiram condições de possibilidade para a constituição de práticas discursivas que fizeram sentido em um determinado tempo e espaço. Na próxima seção, o material empírico examinado e a metodologia empreendida para a realização da pesquisa que envolveu um grupo de professoras que atuam nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental serão apresentados. SUMÁR I O 121 CONHECENDO OS CENÁRIOS E AS METODOLOGIAS Para realizar este estudo, foram entrevistadas professoras que atuavam, durante o ano de 2017, nos 4º e 5º anos do Ensino Fundamental em escolas da rede privada da cidade de Porto Alegre. Tais professoras foram selecionadas por estarem atuando em mais de uma escola da rede privada, ou seja, em escolas diferentes nos diferentes turnos. Dessa forma, essas docentes estariam circulando por diferentes ambientes, sendo expostas a diferentes regramentos e projetos pedagógicos. A escolha pela etapa justifica-se pelo fato de ser um importante momento de sistematização dos conhecimentos matemáticos apresentados nos Anos Iniciais. Segundo a apresentação encontrada na Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018), o trabalho nessa faixa etária fica responsável pela “progressiva sistematização” das experiências desenvolvidas na Educação Infantil bem como por “[...] novas formas de relação com o mundo, novas possibilidades de ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá-las, de refutálas, de elaborar conclusões” (BRASIL, 2018, p. 55-56). Ao todo, participaram da pesquisa quatro educadoras com diferentes formações, diferentes experiências como docentes e aqui denominadas, de forma fictícia, por: Paula, 16 anos atuando no magistério; Julia, 8 anos de atuação; Helena, 25 anos de atuação na rede privada, e Gabriela, 9 anos atuando como professora da rede privada. Dentre as formações, encontram-se os cursos de Pedagogia com ênfase em Orientação Educacional, Pedagogia com habilitação em Educação Infantil e Anos Iniciais, Ciências Sociais, Letras e Curso Normal de Nível Médio. Essas professoras também estudaram em três diferentes instituições de Ensino Superior. SUMÁR I O 122 O contato com as educadoras que participaram do estudo foi feito por intermédio de um convite para que participassem do estudo. A entrevista tinha alguns tópicos, planejados anteriormente como a trajetória pessoal e formação da entrevistada, opinião sobre as melhores estratégias e atividades utilizadas nessa faixa etária e recursos utilizados para o ensino, que facilidades e dificuldades são percebidas no processo de aprendizagem da Matemática pelos alunos. Cada entrevista teve duração média de 40 minutos e, ao todo, foram transcritas um pouco mais de duas horas corridas de gravação. Em alguns casos, foi realizada mais de uma entrevista com a mesma participante, a fim de complementar algumas discussões iniciadas e rever pontos que foram pouco discutidos. As escolas onde as entrevistadas lecionavam não eram, segundo relataram elas, capturadas por avaliações externas como a Prova Brasil ou o PISA, mas respondiam à necessidade das aprovações nas universidades (principalmente as federais) por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e dos vestibulares. As escolas apresentavam uma infraestrutura considerada adequada ao desenvolvimento de um leque de escolhas pedagógicas, com acesso a diversos materiais pedagógicos, salas com tecnologias de ensino de ponta. A escolha pelas entrevistas foi mobilizada em função da necessidade de mapear práticas e enunciações acerca do ensino de Matemática nos Anos Iniciais. Autores como Paz e Frade (2016) destacam que a entrevista consiste em um dos melhores recursos capazes de apreender os sentidos atribuídos pelos sujeitos, no nosso caso, as professoras, às suas realidades, seus modos de ver e conceber as práticas pedagógicas que produzem nas escolas e àquilo que pensam sobre a Educação Matemática que praticam. O material foi organizado em agrupamentos temáticos, a partir do referencial teórico apresentado, atribuindo-lhes sentido. O conjunto de falas das professoras foi sendo examinado de acordo SUMÁR I O 123 com a análise do discurso, como discutido anteriormente, com a intenção de delinear alguns enunciados que têm se naturalizado como verdadeiros no ensino de Matemática. A partir das recorrências, foi possível perceber as descontinuidades e continuidades que os enunciados mantêm com outros enunciados. Não se trata de encontrar explicações nas falas, mas examinar quais regras estão sendo colocadas em funcionamento para que as professoras possam falar sobre a Educação Matemática, formular determinadas perguntas e ocupar uma determinada posição no interior desse discurso. O resultado desse exercício analítico será apresentado a seguir. ENSINAR MATEMÁTICA: O MATERIAL CONCRETO E A TECNOLOGIA Os enunciados problematizados aqui, dentre outros, acabam por prescrever formas de agir e regulam escolhas pedagógicas nas aulas de Matemática (BELLO; AURICH, 2018). Tais prescrições tanto incluem, quanto excluem determinadas práticas, visibilizando e inibindo certas formas de ser professor. Buscando atribuir alguns sentidos ao material empírico examinado, a análise apresentou a presença de dois enunciados: “a importância do uso do material concreto e dos recursos digitais nas aulas de Matemática” e “a relevância do registro e da formalização do conhecimento matemático como garantia da aprendizagem”. O primeiro enunciado citado apareceu de forma recorrente nas entrevistas das educadoras. O trabalho com os chamados materiais concretos em sala de aula fora descrito como uma necessidade, conforme podemos observar nos excertos a seguir: A gente tenta usar vários materiais, eu gosto bastante do material concreto, que é a base 10. A gente trabalha também com ábaco, SUMÁR I O 124 tem trabalhado pouco, mas a gente trabalha. A gente trabalha com QVL [quadro valor-lugar], que também faz com que o aluno entenda a questão da posição do valor do numeral, enfim, e a gente trabalha com outros materiais. [...] Trabalhamos com a tabela pitagórica, trabalhamos com livrinhos, vários materiais [...] (Entrevista com Gabriela, 2017). Eu acho que a gente tem que fazer uma mistura dos recursos mais lúdicos, uma aula mais lúdica, mais concreta, que vá para o concreto, que vai relacionar com o dia- a- dia e usar aquele método mais tradicional mesmo, mais de sistematização no caderno. Eu acho que tem que ter os dois, [...] aqueles que têm mais dificuldade precisam de coisas mais objetivas, mais básicas e nós temos que realmente fazer o aluno refletir mais sobre a matemática e botar ela para o dia- a- dia. [...] Eu gosto de fazer essa relação mais concreta com os alunos, que eles tenham esse tipo de conhecimento, mas sem deixar o método um pouco mais tradicional de sistematização, principalmente pensando no aluno que precisa (Entrevista com Julia, 2017). Quando o aluno tem dificuldade eu acho importante uma intervenção de desenhar, o Material Dourado ou alguma coisa assim, ele dá um clique (Entrevista com Paula, 2017). Ábaco, Material Dourado (Base 10), desenho, livrinhos de tabuada, tabelas pitagóricas são alguns dos instrumentos que constituem o leque de materiais concretos citados e utilizados pelas entrevistadas como forma de garantir a aprendizagem de conteúdos da matemática escolar, uma vez que o uso dessas ferramentas é associado aos momentos de construção do conhecimento. Mais do que isso, para elas, essa garantia ocorre pelo fato de os materiais potencializarem a passagem do concreto (manuseio de objetos) para o próximo estágio, a abstração, permitindo aos estudantes a compreensão desse processo. A fala de Gabriela expressa essa verdade ao afirmar que “O primeiro ano trabalha tudo com material concreto, porque na verdade eles estão na fase da construção” “no terceiro [ano], quando eles começam a entender o processo, a gente começa então a deixar o material concreto de lado e eles já vão pra parte da abstração”. SUMÁR I O 125 Percebe-se nessas falas uma forte relação desse enunciado com as teorias construtivistas de aprendizagem e as ideias de Jean Piaget sobre o processo de aprendizagem. A relevância dos materiais para a construção do conhecimento e o uso do concreto para sanar as dificuldades de aprendizagem dos alunos é uma regra que tem se instituído e circulado no discurso da Educação Matemática proveniente das teorias construtivistas, como apresentam Knijnik e Wanderer (2007). Além disso, evidencia-se um forte entrelaçamento entre o enunciado que traz a importância de se trabalhar com materiais concretos nas aulas de Matemática com o que diz “é relevante usar as tecnologias na escola”. Nas falas a seguir, podemos perceber que os alunos dos Anos Iniciais, na rede privada, são posicionados como sujeitos tecnológicos. Desta forma, os recursos digitais (o computador, a calculadora) estão no rol de falas das entrevistadas como mais um apoio ao aprendizado do aluno: A gente trabalha às vezes integrado ao trabalho da informática, daí, então, a professora de informática, dependendo do que nós estamos trabalhando, algumas situações, ela usa. Calculadora a gente não usa muito, a gente quase não usa. Isso até é bem legal, de repente de usar, mas a gente não usa... porque eles são tecnológicos! (Entrevista com Gabriela, 2017). Eu tenho recursos digitais nas duas escolas e eu tenho livros didáticos que eu gosto muito [...] eu vejo como foram bons professores de matemática que fizeram esses materiais e que realmente me auxiliam a dar uma aula melhor. Então nem é tanto mérito meu, mas também de onde eu falo. Eu estou há oito anos numa escola particular e três na outra e eu sinto que realmente eu fui beneficiada como docente com esse tipo de recurso que eu tenho nas duas escolas. Eu tenho um livro digital, eu tenho o projetor [...] (Entrevista com Julia, 2017). Com o acesso fácil às tecnologias educacionais, o material concreto ganha novos portadores, como os recursos digitais. Nos documentos do Ministério da Educação, em especial nas Diretrizes SUMÁR I O 126 Curriculares Nacionais, aparece a importância de se oferecerem processos formativos aos professores para um uso mais efetivo dos recursos digitais em sala de aula a fim de aproximar aluno e professor: É importante que a escola contribua para transformar os alunos em consumidores críticos dos produtos oferecidos por esses meios, ao mesmo tempo em que se vale dos recursos midiáticos como instrumentos relevantes no processo de aprendizagem, o que também pode favorecer o diálogo e a comunicação entre professores e alunos. Para tanto, é preciso que se ofereça aos professores formação adequada para o uso das tecnologias da informação e comunicação e que seja assegurada a provisão de recursos midiáticos atualizados e em número suficiente para os alunos (BRASIL, 2013, p. 111). Os ditos presentes nas Diretrizes nacionais relacionam-se às enunciações das entrevistadas, principalmente no que diz respeito ao uso do recurso tecnológico como uma forma de atribuir sentido aos conhecimentos matemáticos. Acontece uma relação do sujeito com essa verdade, que conduz e que dá regramento às ações, neste caso, em sala de aula. Julia diz que a tecnologia “realmente auxilia a dar uma aula melhor” e, ao mesmo tempo, sente-se “beneficiada como docente com esse tipo de recurso”. As outras entrevistadas também trazem palavras relacionadas ao uso dos recursos tecnológicos como algo que “favorecem”, “facilitam” ou “estimulam” o ensino de Matemática. Essa recorrência, normalmente utilizada como uma forma de dar sentido aos conteúdos, reforça a ideia de que a articulação entre a inovação tecnológica e a Educação Matemática promove uma educação com mais qualidade, satisfazendo as necessidades atuais do País. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) também incentiva o uso da tecnologia como uma ferramenta importante no processo do ensino de Matemática. No documento há uma forte indicação aos professores: “Utilizar processos e ferramentas matemáticas, inclusive tecnologias digitais disponíveis, para modelar e resolver problemas cotidianos, sociais e de outras áreas de conhecimento, validando estratégias e resultados” (BRASIL, 2018, p. 265). Além disso, a BNCC orienta que: SUMÁR I O 127 Os recursos didáticos como malhas quadriculadas, ábacos, jogos, livros, vídeos, calculadoras, planilhas eletrônicas e softwares de geometria dinâmica têm um papel essencial para a compreensão e utilização das noções matemáticas. Entretanto, esses materiais precisam estar integrados a situações que levem à reflexão e à sistematização, para que se inicie um processo de formalização (BRASIL, 2018, p. 274). Em uma pesquisa realizada por Santos (2009) com professoras alunas de um curso de Pedagogia à distância, a autora percebe que a necessidade da inovação do ensino está sempre atrelada ao uso de computadores, softwares, calculadoras. Milano et al. (2016), ao examinarem artigos da Revista BOLEMA (Boletim de Educação Matemática) que traziam a temática da tecnologia em articulação com a Educação Matemática, publicados entre 2010 e 2016, destacam que uma das recorrências encontradas diz respeito ao uso dos recursos digitais como uma forma de “[...] despertar nos alunos o interesse pelo conhecimento, proporcionando significado ao aprendizado” (MILANO et al., 2016, p. 100). Em consonância com os autores, pode-se dizer que as pesquisas sobre as tecnologias na escola esboçam um perfil de professor de Matemática inovador, que renova a sua prática para responder a uma cultura informatizada. Levando em conta as reflexões propostas até o momento, podemos perceber fortes semelhanças nas enunciações das educadoras, das legislações e de outras pesquisas da área acerca do uso do material concreto e dos recursos digitais, já que ambos são colocados como apoio, como facilitadores do processo de aprendizagem dos conteúdos da matemática escolar. Estas enunciações, que acabam constituindo o enunciado acerca da “importância de trabalhar com materiais concretos nas aulas de Matemática”, funcionam como engrenagens do discurso da Educação Matemática e que se alimentam de maneira indissociável, demonstrando o quanto os sujeitos desta pesquisa estão capturados SUMÁR I O 128 pelos discursos dos quais esses enunciados fazem parte. Ao mesmo tempo, tanto as educadoras entrevistadas, quanto documentos oficiais, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mostram que o uso dos recursos didáticos serve para levar a situações de sistematização, etapa fundamental no processo de formalização que irá conduzir à abstração, tema discutido na próxima seção. ENSINAR MATEMÁTICA: FORMALIZAÇÃO E ABSTRACIONISMO Ao mesmo tempo que a preocupação das entrevistadas é com o uso de material concreto, seja ele concreto ou digital, a vontade de dar sentido aos conceitos matemáticos apareceu de forma recorrente nas falas das entrevistadas. Quando falamos de dar sentido aos conceitos, estamos assumindo de antemão que tais conceitos estão em algum lugar a-histórico, universal, a priori, pronto e que não teriam um sentido próprio. As falas das educadoras levam-nos a pensar que a finalidade do processo de ensino em Matemática no contexto pesquisado é a formalização como etapa para alcançar a abstração e o caminho para tal inicia com a manipulação do material concreto e segue-se com o registro escrito, o objetivo é a abstração. Os excertos a seguir indicam essa questão: Lá no algoritmo eles precisam também mostrar de que forma pensam, então tem que ter também um modelo do professor, tem que ir pra quadro, tem que fazer, aí eles fazem o registro coletivo, [...] eu acho que é importantíssimo, até por que alguns alunos, não a maioria, mas alguns, voltam às vezes para a pasta e pegam o registro para olhar [...] (Entrevista com Gabriela, 2017). Eu acho que a criança deve saber todas as quatro operações, que é o básico, a técnica operatória... tem que saber o que aquilo significa, o que cada parte significa, que aquele 2 é duas dezenas e não é 2 unidades, enfim... Eu digo a técnica no SUMÁR I O 129 sentido de ele identificar, usar o raciocínio, não sei como é que a gente diria isso... (Entrevista com Paula, 2017). Tenho uma experiência que eu faço e acho que dá resultado: eles [os alunos] leem matemática. Pergunto “o que tu fez, ‘ah eu agrupei aqui’, porque tu agrupou? Então escreve isso’”. Eu consegui que um aluno entendesse a divisão desta forma. Ele não conseguia entender a técnica. ‘Então tu escreve: por que tu fez isso? Qual foi o segundo passo? E o terceiro? Tem crianças que têm que entender que eles podem ler matemática. Eu acho que é importante esse registro, acho importante (Entrevista com Helena, 2017). Nessas falas está evidenciada a importância dada aos registros, sejam eles orientados ou não. A palavra técnica parece adquirir um status importante dentro do contexto da escola privada. Cabe perguntar o motivo de esses aspectos ainda terem força nas salas de aula, apesar da emergência de teorizações que enxergam os conhecimentos matemáticos como resultados de práticas sociais, que devem valorizar as diferentes formas de se pensar e fazer matemática ou matemáticas de acordo com a Etnomatemática. A abstração e a formalização, traduzidas nas falas das entrevistadas como ‘técnicas’ ou ‘registros’, remontam a uma postura platônica de enxergar a Matemática como aquilo que existe independente dos seres humanos. Sobre esse ponto, Quartieri (2012) realiza uma discussão que nos ajuda a compreender as semelhanças de família que os jogos de linguagem emergentes das falas das educadoras mantêm com a filosofia de Platão. Nessa filosofia, os conhecimentos matemáticos são concebidos como uma verdade que independe da realidade, os objetos matemáticos servem como um modelo. Nesse sentido, o estudante descobre os objetos que estão em algum lugar prontos para serem acessados e não os cria ou inventa. “A Matemática era considerada um elemento fundamental para todos, sendo concebida como um conhecimento importante não pelo valor prático, mas pela sua capacidade de SUMÁR I O 130 acessar o potencial do ser humano” (QUARTIERI, 2012, p. 154). Além disso, a filosofia platônica posiciona o conceito, a ideia como “[...] uma verdade atemporal, universal, que o pensamento descobre por meio da razão” (QUARTIERI, 2012, p. 141). “Seguir um modelo” é uma das regras que conformam o discurso da Educação Matemática que emerge do formalismo, fortemente associado aos princípios das filosofias de Platão e Kant (MONTEIRO; POMPEU, 2001). Enquanto o formalismo kantiano consiste em imitar ou prever um comportamento humano a partir de um modelo, o formalismo platônico postula que o conjunto de conhecimentos (matemáticos) é pré-existente ao mundo. Ambos, entretanto, sustentam que a Matemática é única e que todos podem chegar a mesma conclusão. Ao encontro disso, vemos nos excertos que as professoras entrevistadas utilizam várias vezes a palavra “repetição” como forma de garantia da aprendizagem. O relato de Gabriela ilustra bem o exposto ao dizer que “Mesmo com material concreto, com exploração no quadro, com atendimento individual, alguns não conseguem... então tu vais ter que achar uma outra estratégia, ou de novo repetir, porque alguns alunos precisam de muita repetição pra tu chegar neles” [grifos meus] (LONGO, 2019). A escola privada busca sempre estar à frente, apresentarse como um espaço de inovação, de novas estratégias de ensino e de infraestrutura. Porém, ao longo da pesquisa, percebemos que determinadas verdades são tão fortemente arraigadas que acabam sendo reproduzidas sem questionamentos ou reflexões. Neste caso, ao observarmos as análises, observou-se que os materiais concretos, sejam eles tecnológicos ou não, têm o seu espaço de importância na sala de aula, mas apenas nos primeiros anos da escolarização, pois o desejo das professoras é que os alunos possam abandoná-los ao longo do percurso. As entrevistadas acreditam que a aprendizagem acontece quando os alunos abstraem ou quando são capazes de SUMÁR I O 131 representar as técnicas que são próprias da linguagem matemática sem apoio do material. Nesse sentido, suas ações e escolhas pedagógicas respondem a regras de discursos piagetianos e platônicos, constituindo, assim, uma forma de ser professor de Matemática nos Anos Iniciais. Ainda inspiradas nos estudos foucaultianos, podemos afirmar que não só o discurso da Educação Matemática é continuamente produzido, como produz os sujeitos que dele fazem parte. A docência configura-se como um efeito do discurso, como uma invenção. “Se nós acreditamos que, quando se fala de algo, também se inventa, institui-se esse algo, é porque aquilo só pode ser pensado em estreita dependência e correlação com o que pode ser ‘dito’” (BELLO, 2010, p. 550). O uso dos materiais como apoio, facilitador ou sistematização ainda é uma verdade inquestionável. No entanto, cabe perguntar se os artefatos tecnológicos, que são utilizados como facilitadores ou para substituir os materiais concretos, não produzem novos conhecimentos e mobilizam outras racionalidades? Aparece também, como resultado do trabalho, a formalização e abstração como algo que não se questiona, materializado nas falas das entrevistadas nas palavras treinar, sistematizar, formalizar, registrar. A ideia de que só aprende matemática quem escreve em contraponto ao uso do concreto posiciona as ações das professoras entrevistadas na intersecção de dois grandes campos teóricos que conformam o discurso da Educação Matemática: o construtivista e o platônico. Percebe-se também que as práticas do campo da Pedagogia estão se produzindo e se reatualizando constantemente, não no sentido de inventar coisas novas, mas no sentido de (re)ver, (re)viver e, até mesmo, (re)inventar saberes sobre as melhores formas de se ensinar Matemática para crianças entre oito e dez anos de idade. Assim, podese configurar a sala de aula, em uma perspectiva foucaultiana, como uma tecnologia que se utiliza da produção de saberes para estabelecer verdades, as quais passam a ser tomadas como inquestionáveis. O SUMÁR I O 132 estudo realizado buscou perceber algumas dessas verdades que circulam nos Anos Iniciais, que encontram terreno para irromper nas escolas e se configuram como inquestionáveis no campo da Educação. REFERÊNCIAS AURICH, G.; BELLO, S. E. O dado na docência em Matemática e Foucault: uma constituição docente entre penduricalhos e ética. Em teia – Revista de Educação Matemática e Tecnológica Iberoamericana, Recife, v. 9, n. 2, p. 1-23, ago./out. 2018. BELLO, S. E. Jogos de Linguagem, práticas discursivas e produção de verdade: contribuições para a Educação (Matemática) contemporânea. Zetetike, Campinas (UNICAMP), v. 18, p. 545-588, 2010. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica. Brasília: MEC, 2013. BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular - BNCC. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase. Acesso em: nov. 2018. FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. KNIJNIK, G. Differentially positioned language games: ethnomathematics from a philosophical perspective. Educational Studies in Mathematics, New York, v. 80, p. 87-100, 2012. KNIJNIK, G. et al. Etnomatemática em Movimento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. KNIJNIK, G. A ordem do discurso da matemática escolar e jogos de linguagem de outras formas de vida. Perspectivas da Educação Matemática, v. 10, n. 22, p. 46-64, 2017. KNIJNIK, G.; DUARTE, C. G. Entrelaçamentos e dispersões de enunciados no discurso da Educação Matemática Escolar: um estudo sobre a importância de trazer a realidade dos alunos para as aulas de matemática. Bolema – Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, v. 23, n. 37, p. 863-886, 2010. KNIJNIK, G.; WANDERER, F. Da importância do uso de materiais concretos nas aulas de matemática: um estudo sobre os regimes de verdade sobre a educação matemática camponesa. In: IX ENCONTRO NACIONAL DE SUMÁR I O 133 EDUCAÇÃO MATEMÁTICA – ENEM, 9., 2007, Belo Horizonte, MG. Anais ... Belo Horizonte: SBEM, 2007. p. 1-17. KNIJNIK, G.; WANDERER, F. Mathematics Education in Brazilian Rural Areas: An analysis of the Escola Ativa public policy and the Landless Movement Pedagogy. Open Review of Educational Research, v. 2, p. 143-154, 2015. LONGO, F. A docência em Matemática nos Anos Iniciais: enunciados que a constitui. (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2019. MILANO, T. B. et al. Educação Matemática e Tecnologia: uma análise de discursos presentes no BOLEMA. Revista Eletrônica da Matemática (online), Caxias do Sul, v. 2, n. 2, p. 92-104, 2016. MONTEIRO, A.; POMPEU JR, G. A Matemática e os Temas Transversais. São Paulo: Moderna, 2001. PAZ, M. L.; FRADE, C. A História de Nair: a força da identidade institucional para a permanência na docência em Matemática. Bolema, Rio Claro (SP), v. 30, n. 56, p. 1260-1279, dez. 2016. QUARTIERI, M. T. A modelagem matemática na escola básica: a mobilização do interesse do aluno e o privilegiamento da matemática escolar. (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2012. SANTOS, J. W. Relações saber-poder: discursos, tensões e estratégias que (re)orientam a constituição do livro didático de Matemática. (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande: 2019. SANTOS, S. A. Experiências narradas no ciberespaço: um olhar para as formas de se pensar e ser professora que ensina matemática. (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2009. VALERO, P. Mathematics for All and the Promise of a Bright Future. In: HASER, B.; MARIOTTI, M. A. (Edsed.). Proceedings of the Eight Congress of the European Society for Research in Mathematics Education Middle East Technical University. Ankara, Turkey: European Society for Research in Mathematics Education, 2013. VEIGA-NETO, A. Foucault e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. SUMÁR I O 134 Capítulo 7 7 GOVERNAMENTALIDADE E O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO (ENEM) Marília Dal Moro Marília Dal Moro GOVERNAMENTALIDADE E O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO (ENEM) DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.135-151 INTRODUÇÃO Em um artigo que aborda as possibilidades e reflexões acerca da filosofia de Michel Foucault, Sílvio Gallo e Alfredo Veiga-Neto (2007) discutem que o objetivo do filósofo foi o de “[...] trazer problematizações sobre o que se considerava verdadeiro em determinado campo do saber e em determinado momento histórico.” (GALLO; VEIGA-NETO, 2007, p. 3). Em algumas pesquisas realizadas no campo dos Estudos Culturais, a problematização está justamente na tentativa de olhar, de forma diferenciada, para uma prática instituída e que dita determinados modos de operação. Um exemplo são as problematizações empreendidas em relação às avaliações externas brasileiras, aplicadas em larga escala, que não se comportam apenas como um instrumento para obtenção de um diagnóstico do ensino brasileiro, mas, sim, como um conjunto de avaliações que geram efeitos em todo um sistema educacional. É o caso do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que produz efeitos nas escolas, nos cursos de preparação para vestibulares, nas editoras de materiais didáticos, na formação dos professores da Educação Básica, e também nos modos pelos quais os estudantes que se preparam para o Exame são conduzidos por meio de mecanismos que os fazem “ser” e “se comportarem” de determinadas formas em detrimento de outras. Na esteira dessas problematizações, este texto é um recorte de minha pesquisa de mestrado intitulada “O Exame Nacional do Ensino Médio e a constituição do estudante nota 1000: Seja qual for a sua escolha, preste o ENEM!” (DAL MORO, 2017) e tem como objetivo dar luz a algumas discussões teóricas realizadas acerca dos processos envolvendo a governamentalidade que fundamentaram a pesquisa. Na dissertação, procurei observar o Enem não para analisar sua eficiência enquanto avaliação em larga escala ou enquanto processo SUMÁR I O 136 seletivo para ingresso em Universidades ou como meio de diagnóstico da educação brasileira, mas, sim, busquei colocar sob suspeição o olhar naturalizado sobre a funcionalidade desse Exame. Ao longo dos anos de atuação do Enem no cenário educacional brasileiro, estudos e pesquisas com foco nessa política passaram a ser produzidos, com diversas matrizes teórico-metodológicas: alguns trabalhos analisam o Exame enquanto política de avaliação (DIAS, 2013; MACHADO, 2012; SARAIVA, 2015) e outros abordam as suas relações com o currículo escolar e as áreas do conhecimento (SERRA, 2015; LUFT, 2014; MIRAGEM, 2013; LERINA, 2013). Seguindo as discussões foucaultianas sobre a governamentalidade, considerei o Enem um mecanismo de condução de condutas que captura os sujeitos escolares e produz efeitos sobre o currículo escolar, a formação inicial e continuada de professores e também sobre os candidatos que se preparam para sua realização. Nessa direção, o estudo se aproximou de trabalhos que usaram como referencial teórico a matriz foucaultiana para analisar, especificamente, ações de programas do Governo Federal sobre a população, como evidenciado nas pesquisas de Anadon (2012), Pinheiro (2014) e Lockmann (2013). Como o próprio Foucault destaca, sua obra indica um viés da desacomodação e da transgressão, mas não com a finalidade de apenas contestar ou contrariar, “mas para instigar e desconstruir determinadas maneiras tradicionais de pensar.” (GALLO; VEIGANETO, 2007, p. 3). Nesse sentido, tomando como pano de fundo a intenção foucaultiana de enxergar determinadas “verdades” que circulam no campo da Educação e nas enunciações difundidas pela mídia, busquei, em sua obra e nas produções arquitetadas a partir dela, outras possibilidades de olhar para o Exame Nacional do Ensino Médio e sua relação com os sujeitos que com ele se envolvem. SUMÁR I O 137 AS AVALIAÇÕES EM LARGA ESCALA NO BRASIL E O ENEM Analisando essa questão, Werle (2010) explica que as avaliações externas são todas aquelas realizadas por uma empresa ou profissionais especializados, contratados para tal fim, que podem abranger toda ou parte da instituição. Já as avaliações em larga escala fazem parte de um procedimento mais amplo, realizado também por agências reconhecidas e especializadas, que abarcam todo um sistema de ensino. A autora destaca, ainda, que, geralmente, essas avaliações em larga escala se preocupam em obter dados generalizáveis sobre determinado sistema. Argumenta, ademais, que as avaliações externas e de larga escala não eliminam a importância de outras formas de avaliação, pois são considerados níveis diferentes de avaliação. Baseada em Werle (2010), optei por utilizar, na pesquisa, o termo avaliação em larga escala para referirme ao modelo de programa de avaliação no qual o Enem se insere. No Brasil, essas avaliações são geralmente organizadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) – atingindo instituições públicas e privadas – ou por institutos privados como o Instituto de Avaliação e Desenvolvimento Educacional (Inade) e como o Avalia Educacional. Internacionalmente, avaliações desse tipo são realizadas pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudante (PISA). O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é uma política de avaliação em larga escala, criada em 1998 pelo Inep, com o objetivo de diagnosticar a aprendizagem dos estudantes que finalizam o Ensino Médio. O Exame insere-se no conjunto de avaliações externas presentes no Brasil, que busca analisar o sistema de educação do País. As avaliações em larga escala, na concepção do Governo Federal, SUMÁR I O 138 “possibilitam a produção de dados em nível nacional/regional/local, subsidiando as políticas públicas para o desenvolvimento de estratégias de intervenção em possíveis dificuldades [...]” (BRASIL, 2013, p. 13). DISCUSSÕES ACERCA DA GOVERNAMENTALIDADE Em efeito, à medida que as avaliações em larga escala passaram a se difundir no Brasil, percebemos manifestações do que Foucault (1995) expressa como sendo modos de conduzir condutas ou como uma prática de governamento, discussão realizada pelo filósofo ao final da década de 1970. Na obra Segurança, Território e População, Foucault (2008a) problematiza questões acerca do problema do governo no século XVI, não limitadas à concepção de governo do Estado. Em especial, na aula de primeiro de fevereiro de 1978, define o conceito de governamentalidade, que seria: 1. O conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permite exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais: os dispositivos de segurança. 2. A tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina etc. – e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. 3. O resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado (FOUCAULT, 2008a, p. 143-144). Em sua argumentação, o autor explica que o conceito de governar é diferente do conceito de reinar ou comandar, sendo SUMÁR I O 139 este ato de governo específico devido a uma forma peculiar de poder. Assim, Foucault (2008a) passa a analisar as relações de poder, focando no problema do Estado e da população, a partir da perspectiva da governamentalidade. Por meio de uma descrição sobre o funcionamento do hospital psiquiátrico e da prisão, ele fundamenta a questão da ordem existente na organização estratégica dessas instituições, que seria externa a elas. Faz, então, um resgate histórico dos conceitos de governo concebidos ao longo da história, desde sua concepção material e moral até no sentido de seguir um caminho ou conduzir alguém. Foucault (2008a) descreve a metáfora do pastor (remetendo-se a um poder da Igreja Cristã), a partir da qual é analisada a ideia de conduzir os homens como se conduz um rebanho. Para minha pesquisa, interessou-me destacar uma das definições do poder pastoral que mostra o poder individualizante: É verdade que o pastor dirige todo o rebanho, mas ele só pode dirigi-lo bem na medida em que não haja uma só ovelha que lhe possa escapar. O pastor conta as ovelhas, conta-as de manhã, na hora de levá-las a campina, conta-as à noite, para saber se estão todas ali, e cuida delas uma a uma. Ele faz tudo pela totalidade do rebanho, mas faz tudo também para cada uma das ovelhas do rebanho (FOUCAULT, 2008a, p. 172). Ou seja, esse poder pastoral, como um poder individualizante (de estar preocupado com a totalidade do rebanho, mas também com a individualidade de cada sujeito), é um dos grandes paradoxos do pastor e pode ser vinculado, na investigação realizada, à necessidade de governo e condução de condutas de uma parcela da população brasileira por meio do Enem, mas que exige também um cuidado com cada indivíduo que será avaliado (pessoas com necessidades especiais, lactantes, sabatistas, entre outros). Em suma, o filósofo esclarece que o poder pastoral é o poder sobre uma multiplicidade e que guia a população a um objetivo, sendo assim, um poder que visa a todos e, ao mesmo tempo, a cada um. SUMÁR I O 140 Autores como Veiga-Neto e Lopes (2007), ao discutirem sobre a governamentalidade, destacam que, para evitar possíveis equívocos entre os diferentes tipos de governo, utilizam a palavra “governamento” para designar um conjunto de ações de conduta sobre si ou sobre os outros e “governo” para referirem-se às instâncias do Estado. Para eles, “[...] pode-se dizer então que, de certa maneira, o governamento é a manifestação ‘visível’, ‘material’, do poder” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 953). Baseada nessas afirmações, utilizo a expressão “governamento” para referir-nos aos mecanismos de regulação de condutas traduzidos pelos programas de avaliação externa, como o Enem. Na área da Educação, discussões envolvendo a governamentalidade tornaram-se potentes nos últimos anos, como evidenciam Veiga-Neto e Lopes (2007) e Traversini e Bello (2009). Seguindo essas teorizações, é possível dizer que, de um modo geral, o conceito de governamentalidade pode ser entendido como um conjunto de práticas de condução de conduta, ou então: “o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si” (FOUCAULT apud VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 954). Na esteira dessas produções, entendo o Enem como um mecanismo de captura dos sujeitos escolares por meio de determinadas técnicas de dominação. Fimyar (2009) destaca que Foucault, “ao fundir o governar (gouverner) e a mentalidade (mentalité) no neologismo governamentalidade”, enfatizou a relação direta entre as práticas – que seria o exercício de governamento – e as “mentalidades que sustentam tais práticas.” (FIMYAR, 2009, p. 38). A governamentalidade seria o “esforço de criar sujeitos governáveis através de várias técnicas desenvolvidas de controle, normalização e moldagem das condutas das pessoas.” (FIMYAR, 2009, p. 38). Outro destaque importante dado pela autora, é que “[...] a governamentalidade enfatiza a interdependência entre as práticas governamentais e as mentalidades de governamento que racionalizem e com frequência perpetuem práticas existentes de conduta da conduta [...]” (FIMYAR, 2009, p. 41, grifos do autor). SUMÁR I O 141 GOVERNAMENTALIDADE NOS ESTUDOS EDUCACIONAIS Nesta seção, destaco alguns estudos da área da Educação, que utilizaram elementos do governamento e da governamentalidade como arcabouço teórico. Entre eles, Knijnik e Wanderer (2013) construíram uma análise acerca do Programa Escola Ativa (PEA), política pública federal endereçada às escolas multisseriadas do campo, especialmente no âmbito da Educação Matemática. As autoras, ao analisarem os documentos do PEA e também os questionários respondidos pelos professores que participaram dos encontros de capacitação oferecidos por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, percebem que “[...] há um tensionamento entre as orientações pedagógicas oferecidas aos professores e as atividades propostas aos alunos na área da matemática [...]” (KNIJNIK; WANDERER, 2013, p. 211) e que, a partir dessas orientações e propostas, “[...] o programa conduz a conduta dos professores, dos alunos e, de modo mais amplo, da população camponesa.” (KNIJNIK; WANDERER, 2013, p. 211). As autoras perceberam esse tensionamento, por exemplo, nas falas dos professores, quando eles demonstram que há uma valorização da cultura urbana em relação à cultura rural, na qual a maioria das crianças das escolas do PEA se inserem. Conforme mostra o material empírico da pesquisa, existe uma tendência dos professores a acreditarem que é na escola que as crianças das zonas rurais têm acesso à informação e à cultura. Ao mesmo tempo, os professores também representam as crianças como “ativas”; “criativas, alegres, meigas”; “com receptividade imensa”; “carentes, mas com bastante potencial, que até então não foi trabalhado”; que “respeitam o professor e a escola” (KNIJNIK; WANDERER, 2013, p. 219), instituindo e reforçando o que seria uma forma de vida camponesa, diferente da configuração de vida dos estudantes de zonas urbanas. Compreendo, a partir da discussão tratada por SUMÁR I O 142 Knijnik e Wanderer, que as práticas dos professores das escolas do PEA acabam por alimentar um ciclo de condução de condutas, dos próprios professores e também das crianças e de suas famílias. Outro estudo que destaco é o de Marín-Díaz (2012), que realizou uma pesquisa sobre práticas difundidas na literatura de autoajuda. Em sua tese de doutorado, a autora construiu uma análise sobre exercícios e técnicas presentes nos discursos de autoajuda, sendo esta uma forte estratégia de condução de condutas de si e dos outros, muito difundida no atual século. Como material de pesquisa, Marín-Díaz analisou uma série de obras de autoajuda, pois, de acordo com ela, esses livros “[...] permitem perceber o funcionamento de práticas dirigidas para o autogoverno, isto é, para a condução da própria conduta.” (MARÍN-DÍAZ, 2012, p. 20). A autora, ao tratar da desinstitucionalização do poder, com inspiração foucaultiana, destaca que esse tipo de análise sobre a qual ela se debruçou: Trata-se de identificar e descrever práticas de governamento que nem sempre estão vinculadas de forma direta e explícita às instituições de Governo e seus discursos, mas que são centrais na operação da razão governamental, constituída numa determinada época e para certas sociedades. Então, é possível pensar algumas formas de governamento contemporâneas através da análise dos discursos educativos que circulam amplamente e que não necessariamente são produzidos por instituições estatais ou circulam através delas (MARÍN-DÍAZ, 2012, p. 24). Penso que os discursos8 circulantes sobre o Enem não são todos, necessariamente, produzidos por instituições estatais (embora muitos materiais empíricos da pesquisa são veiculados pelo próprio Ministério da Educação), mas que estão presentes em 8 SUMÁR I O Utilizo aqui o conceito de discurso no sentido foucaultiano, mas que se configura “[...] como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam [...]” (FOUCAULT, 2008b, p. 55), ou seja, constituem objetos e sujeitos imbricados nas produções que a linguagem estabelece (no caso, sobre o Enem). 143 inúmeros lugares frequentados pelos sujeitos que, de alguma forma, são capturados pelo Exame. Nas empirias investigadas, percebi inúmeras estratégias que visam à regulação de condutas, sejam estas veiculadas pelo Estado ou por outras instituições. Inspiradas também nos conceitos foucaultianos de governamento e governamentalidade, Loureiro e Lopes (2015) buscam problematizar os discursos que difundem os usos das Tecnologias Digitais nas escolas. Conforme as autoras, tais discursos, mobilizados pelas políticas públicas analisadas no estudo9, criam “as condições de possibilidade para a condução eletrônica das condutas e operam na constituição de sujeitos, cujo comportamento deve afinar-se com as condições de vida próprias da contemporaneidade.” (LOUREIRO; LOPES, 2015, p. 359). Essa necessidade de os comportamentos dos sujeitos estarem afinados às condições da vida contemporânea é representada pela ideia de que todas as pessoas devem estar digitalmente incluídas, pois somente assim elas estariam participando de forma integral da sociedade. Nesse sentido, é preciso assegurar, de acordo com as autoras, que todos tenham acesso ao mundo digital, sendo as intervenções na maquinaria escolar – por intermédio de inúmeras políticas públicas – possibilidades de garantia para esse acesso. Loureiro e Lopes (2015) destacam que é necessária, para o exercício da governamentalidade, a existência de tecnologias de governamento (ações dos outros) e práticas de subjetivação (nas quais cada indivíduo é responsável pela sua conduta, ou seja, pelo autogoverno). Justamente à escola, como uma das poucas instituições em que circula obrigatoriamente grande parte da população, foi concedida a tarefa de ensinar as crianças a se disciplinarem por si mesmas. As autoras recordam que é na escola moderna que as 9 SUMÁR I O Projeto EDUCOM, Programa Nacional de Informática Educativa (PRONINFE), Programa Nacional de Informática na Educação (PROINFO) e Programa Um Computador por Aluno (PROUCA). 144 crianças aprendem a disciplinar seus corpos, por meio de regras, horários, espaços e avaliações. Apoiadas em Foucault (2014), ressaltam que esses investimentos direcionados à escola buscam organizar as multidões confusas, perigosas, para que estas entendem as regras sociais de condutas as quais estão submetidas. Entendo que não somente a escola propriamente dita, mas os mecanismos criados para avaliá-la, controlá-la e gerenciá-la, de acordo com os interesses das “multiplicidades organizadas”, também operam como práticas do exercício da governamentalidade. Estudos como o de Lockmann (2013) e Santaiana (2015), por exemplo, preocuparam-se em discutir acerca dessas práticas, seja por intermédio dos programas de assistência social que são direcionados à escola, como é o caso de Lockmann, seja por meio das políticas de Educação Integral que também possibilitam que as áreas da saúde e da assistência social ganhem espaço de controle na escola, como enfatizou Santaiana. Busquei também inspirar-me em estudos em que o conceito de governamentalidade estava mais diretamente relacionado com o ENEM, meu interesse de pesquisa, e deparei-me com o estudo de Roberto Silva (2011). O autor, em sua tese de doutorado, discute algumas tecnologias de governo que operam na constituição dos docentes do Ensino Médio e utiliza como material empírico um conjunto de 45 edições da revista Carta na Escola (publicadas entre 2005 e 2010). Ao utilizar um periódico destinado a professores de Ensino Médio como superfície analítica, o estudo inspirou-me também ao apresentar estratégias metodológicas que se aproximavam do meu interesse de pesquisa. Assim, Silva (2011) procurou mapear “algumas dessas tecnologias que operam na produção de sujeitos contemporâneos e de suas formas de condução das condutas” (SILVA, 2011, p. 15), sempre tendo como enfoque os docentes do Ensino Médio. Embora o foco da tese não seja o ENEM, Silva estende seu olhar para essa política, por entendê-la como uma tendência dos currículos SUMÁR I O 145 do Ensino Médio. Silva problematiza alguns textos de um Relatório Pedagógico do Enem publicado em 2008 e afirma que este documento “visibiliza que tais pressupostos [citados no documento] devem orientar não apenas a organização da avaliação em larga escala, mas também encaminhar rápidas e profundas reformas dos sistemas de ensino do Ensino Médio.” (SILVA, 2011, p. 42). Por meio dessas e de outras análises, Silva (2011), utilizando como ferramenta analítica a governamentalidade, identifica três tecnologias de governo – a inovação, a interatividade e as proteções – que demarcam a constituição da docência do Ensino Médio que, de acordo com o autor, deve manifestar-se como sendo uma docência politicamente útil e economicamente produtiva. ALGUMAS COSTURAS ANALÍTICAS Em uma das reportagens analisadas, publicada pelo portal G1, em agosto de 2015, destaca-se a importância dada por escolas consideradas de referência aos resultados alcançados pelos estudos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A reportagem menciona uma escola de Manaus que obteve a melhor nota do Amazonas no Enem 2014 e que trabalha com carga horária estendida. Além disso, a coordenadora pedagógica da escola destaca os investimentos e as mudanças curriculares feitas pela instituição, com o objetivo de melhorar o desempenho dos estudantes no Exame e também em outros vestibulares. A coordenadora exemplifica uma das mudanças ocorridas no currículo do Ensino Médio, em que a carga horária da disciplina de Química passou de três horas semanais para cinco horas semanais. Outro exemplo trazido por ela é a metodologia da realização de Simulados que “são realizados com frequência para ‘iniciar’ o aluno como vestibulando”. De acordo com ela, tal prática se aplica desde a Educação Infantil. SUMÁR I O 146 Esse recorte de material empírico aponta uma pequena fração dos efeitos que o Exame Nacional do Ensino Médio tem gerado nas escolas de Educação Básica, confirmando o que Werle (2011) discute sobre o espaço que o Exame foi adquirindo ao longo dos anos. Mesmo que, no início de sua concepção, na década de 90, o Enem foi pouco valorizado por Universidades e estudantes (um dos questionamentos eram as taxas cobradas para a participação), o Exame progressivamente adquiriu um status de maior importância. Werle (2011) identifica três razões para essa situação: Primeiro, com a adesão de Universidades que passaram a considerar os resultados obtidos pelos estudantes para o ingresso no Ensino Superior, em segundo lugar, com o Programa Universidade para Todos (ProUni) cujo critério de ingresso no Ensino Superior apenas considera os resultados do Enem e, em terceiro lugar, com a implantação do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) (WERLE, 2011, p. 776). Ao governar condutas, o currículo produz modos de ser sujeitos e intervém nas dinâmicas escolares. Ainda na reportagem mencionada, a coordenadora pedagógica ressalta que, para obtenção do resultado esperado, o trabalho com os estudantes iniciais “na base”, de acordo com ela, “desde o maternal um com crianças de dois anos até a terceira série”. Percebemos, assim, que as intervenções curriculares atingem toda a Educação Básica e, embora não estejam diretamente vinculadas ao Exame e a outras avaliações em larga escala, fazem parte de uma tendência à formação de determinados sujeitos que essas avaliações ajudam a formar. Instituições investem em estratégias curriculares e de formação de professores, por exemplo, para garantirem os resultados dos estudantes e uma posição de destaque nos rankings que são divulgados. Além disso, os candidatos também conduzem seus estudos tendo como base os conteúdos exigidos no Exame. Outra dimensão da governamentalidade que se faz presente nas teias do SUMÁR I O 147 Enem se refere ao uso de números e medidas, como bem discutido por Traversini e Bello (2009). Para os autores, conduzir e normalizar uma população não exige apenas o conhecimento sobre suas características, mas, sim, a criação de registros sobre as intervenções e ações realizadas, a fim de que elas possam ser acompanhadas e avaliadas. Uma das técnicas que permitem que esses programas tenham continuidade são os processos de auditoria. Este “formato auditável” (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 147) pode ser visto nas avaliações em larga escala, pois os resultados são analisados de acordo com os objetivos e, no caso do Enem, por meio da Teoria de Resposta ao Item, podem ser comparados ao longo dos anos. “Esta maquinaria avaliativa opera utilizando o saber estatístico que gera comparabilidade entre o investimento público e os resultados apresentados” (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 147). A partir dos índices obtidos, são valorizadas determinadas práticas pedagógicas e modelos de educação, como é o caso de sistemas de ensino que utilizam o desempenho das escolas parceiras no Enem como marketing de venda para prospecção de novas parcerias. Entendo o Enem como uma das técnicas que, por intermédio da sua condição de auditoria e das possibilidades de comparação atreladas a ele, acabam por contribuir com os processos de governamento e de engrenagem da governamentalidade. A comparação entre diferentes grupos de candidatos que realizaram a prova em anos distintos permite que se tenha um acompanhamento dos desempenhos dos estudantes, ou seja, possibilita que os gestores das escolas, dos municípios e estados “auditem” seus processos pedagógicos, fazendo mudanças e avaliando se estas foram adequadas ou não, conforme o desempenho de sua escola ou rede. Do exposto até aqui, pode-se dizer que o Exame tem funcionado como um mecanismo de captura das populações, pois é considerado etapa praticamente “obrigatória” para quem deseja SUMÁR I O 148 ingressar no Ensino Superior. Além disso, seus efeitos são vistos à medida que escolas, sistemas de ensino e empresas do ramo educacional vêm criando estratégias para auxiliar os estudantes a obterem desempenhos cada vez mais altos. REFERÊNCIAS ANADON, S. B. Prova Brasil uma estratégia de governamentalidade. (Doutorado em Educação). Universidade Federal de Pelotas, Pelotas: 2012. BRASIL. Avaliação nacional da alfabetização (ANA): documento básico. Brasília, DF: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2013b. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_ basica/saeb/2013/ livreto_ANA_online.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2017. DAL MORO, M. B. O Exame Nacional do Ensino Médio e a constituição do estudante nota 1000: Seja qual for a sua escolha, preste o ENEM! (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2017. DIAS, L. C. O. Trajetórias de jovens egressos do Ensino Médio de uma escola pública de Santa Maria e o ENEM como ferramenta de inserção social. (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2013. FIMYAR, O. Governamentalidade como ferramenta conceitual na pesquisa de políticas educacionais. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 35-56, 2009. FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 231-249. FOUCAULT, M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008b. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. SUMÁR I O 149 GALLO, S. D.; VEIGA-NETO, A. Ensaio para uma filosofia da educação. Educação, São Paulo, v. 3, n. especial, p. 16-25, mar. 2007. [Edição especial intitulada “Foucault pensa a educação”]. KNIJNIK, G.; WANDERER, F. Programa Escola Ativa, escolas multisseriadas do campo e educação matemática. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 211-225, jan./mar. 2013. LERINA, M. I. Ensinar geografia em tempos de complexidade: a práxis pedagógica e os desafios frente ao ENEM. (Mestrado em Geografia). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2013. LOCKMANN, K. A proliferação das políticas de assistência social na educação escolarizada: estratégias da governamentalidade neoliberal. (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2013. LOUREIRO, C. B.; LOPES, M. C. A condução eletrônica das condutas: a educação como estratégia de disseminação de práticas. Educação em revista, v. 31, n. 3, p. 359-378, 2015. LUFT, G. Retrato de uma disciplina ameaçada: a literatura nos documentos oficiais e no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). (Doutorado em Literatura Brasileira). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2014. MACHADO, P. H. A. O ENEM no contexto das políticas para o Ensino Médio. (Mestrado em Educação). Universidade do Estado de Mato Grosso, Cáceres: 2012. MARÍN-DÍAZ, D. L. Autoajuda e educação: uma genealogia das antropotécnicas contemporâneas. (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2012. MIRAGEM, F. F. Vozes de professores acerca do ensino de matemática: ênfase em funções nas provas do ENEM. (Mestrado Profissionalizante em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2013. SANTAIANA, R. S. Educação Integral no Brasil: a emergência do dispositivo de intersetorialidade. (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2015. SARAIVA, M. ENEM e SEAP: os possíveis significados da avaliação em comunidades escolares. (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2015. SUMÁR I O 150 SERRA, D. S. A contribuição da prova de matemática do ENEM para o ensino de probabilidade e estatística. (Mestrado Profissionalizante em Matemática). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2015. SILVA, R. R. D. A constituição da docência no Ensino Médio no Brasil contemporâneo: uma analítica de governo. (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2011. TRAVERSINI, C.; BELLO, S. E. L. O numerável, o mensurável e o auditável: estatística como tecnologia para governar. Educação & Realidade, Porto Alegre, n. 34, n. 2, p. 135-52, maio/ago. 2009. VEIGA-NETO, A.; LOPES; M. C. Inclusão e Governamentalidade. Educação & Sociedade, v. 28, n. 100, p. 645-1272, 2007. WERLE, F. O. C. (Org.) Avaliação em Larga Escala: foco na escola. São Leopoldo: OIKOS; Brasília: Liber Livro, 2010. WERLE, F. O. C. Políticas de avaliação em larga escala na educação básica: do controle de resultados à intervenção nos processos de operacionalização do ensino. Revista Ensaio: avaliação e políticas públicas em educação. Rio de Janeiro, v. 19, n. 73, p. 769-792, out/dez. 2011. SUMÁR I O 151 Capítulo 8 8 REDESENHOS CURRICULARES EM CENÁRIOS DE PANDEMIA Camila da Silva Fabis Caroline Brandelli Garziera Camila da Silva Fabis Caroline Brandelli Garziera REDESENHOS CURRICULARES EM CENÁRIOS DE PANDEMIA DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.152-167 Neste capítulo discutiremos sobre as mudanças advindas do período de paralisação das aulas presenciais nos colégios privados do Estado de Rio Grande do Sul, durante o ano letivo de 2020, decorrente da pandemia do Coronavírus/COVID-19. Ao tomarmos o neoliberalismo como racionalidade condutora de vidas contemporâneas, a partir dos estudos de Michel Foucault e seus comentadores, discutiremos os efeitos da crise como operador estratégico (DARDOT; LAVAL, 2014), fabricando formas escolares que se tramam nesse contexto com ênfase no capital. Propomo-nos a problematizar como as interfaces de mercado, caracterizadas pelo debate sociológico acerca da cultura de um novo capitalismo contemporâneo (SENNET, 2006), impulsionaram escolhas, tensionaram desenhos e tornaram a manutenção do vínculo com a escola uma oferta pautada pela intensidade nos tempos de conexão, pela quantidade de propostas ofertadas, pela competitividade na personalização dos atendimentos junto às famílias e estudantes e pela retórica de reinvenção permanente da docência. DISCUSSÕES CONTEXTUAIS: A CRISE COMO ESTRATÉGIA Mencionar os contornos realizados pelo cenário educacional diante de uma das crises sanitárias mais sérias que a população mundial já viveu é referir que as instituições de educação, de um modo geral, seja em nível básico ou superior, precisaram reconfigurar modos de dar aulas e de interagir com seus estudantes desde a chegada do Coronavírus/Covid-19, em território mundial. Em cada contexto, seja público ou privado, a paralisação imediata das atividades escolares foi a estratégia da maioria dos governantes de todo o mundo para a não proliferação do contágio do vírus. Em obra recente intitulada: A Cruel Pedagogia do Vírus, o autor português Boaventura de Sousa Santos discute a atual situação de pandemia por meio de uma análise SUMÁR I O 153 sociológica, que problematiza o contexto neoliberal. Santos (2020) destaca que, desde a década de 1980, quando o neoliberalismo se impôs como versão predominante do capitalismo e este se sujeitando cada vez mais à lógica do setor financeiro, o mundo tem passado por estados permanentes de crise. Para o autor, essa é uma situação duplamente anômala; pois, no sentido etimológico da palavra crise, temos a excepcionalidade e a brevidade, tendo a natureza da palavra vinculada a algo que é passageiro, constituindo-se como oportunidade de superação, para dar origem a uma melhoria do estado das coisas. Visto por outra perspectiva, também para Santos (2020, p. 5), “quando a crise é passageira, ela deve ser explicada pelos factores que a provocam. Mas quando se torna permanente, a crise transformase na causa que explica todo o resto”. A título de exemplo, Santos (2020) destaca as crises financeiras permanentes que têm servido de justificativa para os cortes em políticas públicas em setores como a saúde, a educação, a previdência e a precarização dos salários. Ainda, para o mesmo autor, “o objetivo da crise permanente é não ser resolvida” (SANTOS, 2020, p. 6). Estudos de grande relevância, como os de Dardot e Laval (2016, p. 7), destacam que a lógica neoliberal é um tipo de política econômica cujo sistema normativo com abrangência ampliada no mundo inteiro estende “a lógica do capital a todas as relações sociais e todas as esferas da vida”. E, sublinham, ainda, que a crise global do neoliberalismo opera como modo de governo das sociedades. Assim sendo, “A crise mundial é uma crise geral da “governamentalidade neoliberal”, isto é, de um modo de governo das economias e das sociedades baseado na generalização do mercado de concorrência” (DARDOT; LAVAL, 2008, p. 27). Nesta direção, para Santos (2020), ao vivermos há mais de quarenta anos sob essas lógicas de operação, uma pandemia como essa só agrava uma situação de crise na qual todos já estávamos sujeitos. Nos contextos de escolarização, a notícia da pandemia gerou SUMÁR I O 154 a primeira ação de suspensão imediata das atividades escolares, para a migração das atividades domiciliares associadas ao ensino remoto. Essas ações passaram a ser as estratégias recorrentes para a chegada das atividades pedagógicas até as residências dos estudantes. Propomo-nos, neste breve estudo, a debater as pertinências dessas discussões a partir das condições culturais do capitalismo contemporâneo cujos tensionamentos redesenharam a operacionalização das práticas pedagógicas. De tal modo, a partir de uma análise crítica sobre as mudanças advindas do período de paralisação das aulas presenciais, decorrentes da pandemia, o presente capítulo discute a lógica que pautou as mudanças curriculares realizadas pelos colégios privados do Estado de Rio Grande do Sul, no ano letivo de 2020. Ao tomarmos o neoliberalismo como racionalidade condutora de vidas contemporâneas, discutiremos os efeitos da crise como operador estratégico (DARDOT; LAVAL, 2014), fabricando formas escolares que se tramam neste contexto com ênfase no capital. Ao examinarmos uma pesquisa recente realizada pelo Sindicato do Ensino Privado do RS – SINEPE/RS –, os colégios respondentes mencionam como realizaram as mudanças para manter os estudantes vinculados às atividades escolares. O que foi possível perceber é que a ênfase na (re)organização das práticas pedagógicas teve como focos: a manutenção no contato com os discentes; a realização expressiva de aulas online, e o desenvolvimento misto de atividades síncronas e/ou assíncronas, durante o período de paralisação. Neste trabalho, discutimos como as interfaces de mercado impulsionaram escolhas, tensionaram desenhos e tornaram a manutenção do vínculo dos colégios uma oferta pautada pela intensidade nos tempos de conexão, pela quantidade de propostas ofertadas e pelos atendimentos realizados pelos professores aos estudantes e suas famílias, tensionados pela retórica da reinvenção e da capacitação. Em um contexto em que a pauta econômica deu o “tom” para os redesenhos das práticas educacionais, a oferta pedagógica organizou-se em perspectiva relacionadas às condições, SUMÁR I O 155 insumos, recursos e possibilidades, tramando outras modalidades de educação remota e online em uma transposição didática aproximada das práticas expositivas do cenário presencial para o online. REDESENHOS CURRICULARES NA PANDEMIA No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde – OMS – caracterizou a COVID-19 como uma pandemia. Na semana seguinte a essa declaração, os colégios do estado do RS, orientados por legislações estaduais e municipais, paralisaram as atividades escolares presenciais no contexto das escolas. No contexto privado, de forma rápida e imediata, as atividades remotas tornaramse estratégias cotidianas de manutenção do vínculo dos estudantes com a escola. Escolas privadas que já utilizavam plataformas online passaram a ter esse espaço como intermédio exclusivo de interação com os estudantes. No dia 18 de março de 2020, o Conselho Estadual de Educação – CEEd RS – exarou o Parecer nº 01/2020 que “Orienta as Instituições integrantes do Sistema Estadual de Ensino sobre o desenvolvimento das atividades escolares, excepcionalmente, enquanto permanecerem as medidas de prevenção ao novo Coronavírus – COVID-19” (CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO/ RS, 2020, fl. 1). Ainda, nesse documento, o CEE sergio.franco@ufrgs. br d RS, em caráter de excepcionalidade, orienta os colégios do RS a desenvolverem atividades domiciliares, conforme o excerto a seguir: [...] este Colegiado entende que se caracteriza a situação emergencial para o momento atual e que as alternativas possíveis, para validação do ano letivo 2020, podem ser por meio das atividades domiciliares e/ou de reorganização do Calendário Escolar com atividades presenciais, findo o período de excepcionalidade (CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO/RS, 2010, fl. 2). SUMÁR I O 156 A situação da pandemia mobilizou os órgãos normativos a regulamentarem medidas para condução das situações de substituições das atividades presenciais nos níveis de Educação Básica, Profissional e Superior. Essa medida desenhou contornos abrangentes de possibilidades às instituições de ensino, e, em particular, às escolas, permitindo uma abrangência de ações cujos delineamentos foram pautados pelos desenhos organizados aos públicos matriculados nas escolas privadas. Em estudos recentes sobre políticas curriculares, os autores Ball; Maguir e Braun (2016, p. 173), em uma perspectiva foucaultiana, referem que “as políticas são formações discursivas; [...] conjuntos de textos, eventos e práticas que falam com processos sociais mais amplos de escolaridade, tais como a produção do “aluno”, o “propósito da escolaridade” e a construção do “professor”. Os mesmos autores, ao citarem Foucault (1986, p. 118), referem que, na compreensão do filósofo, as formações discursivas “[...] convergem com instituições e práticas, e carregam significados que podem ser comuns a um período inteiro”. De tal modo, poderemos perceber “em discursos educacionais a necessidade de gerenciar comportamentos, para promover aprendizagem efetiva [..]” (BALL; MAGUIR; BRAUN; 2016, p. 173). Na esteira dessas reflexões, podemos inserir o debate sobre as políticas normativas escritas pelos órgãos reguladores no cenário de pandemia, cuja flexibilidade e abertura acerca dos modos de operar as práticas pedagógicas nas escolas estiveram em destaque. A opção por não normatizar a Educação a distância – EAD –, nos moldes como a conhecemos no Ensino Superior, podendo ser ofertada em caráter de excepcionalidade na Educação Básica no momento da paralisação, parece ter ocorrido em decorrência da possibilidade de não burocratizar e simplificar um processo que exigiria uma série de regulamentações, direitos e políticas, presentes atualmente nas políticas de educação a distância. Diante desse cenário, o que foi possível evidenciar, devido ao curto espaço de tempo, foi uma transposição de práticas que SUMÁR I O 157 estavam sendo realizadas no ensino presencial para a modalidade virtual, redesenhando as interações entre professores e estudantes em ambientes virtuais de aprendizagem. No contexto da educação privada, ocorreu o predomínio de interações síncronas, como veremos mais adiante em uma enquete realizada pelo Sindicato do Ensino Privado. A partir da publicação do Parecer CEEd RS de nº 01/2020, anteriormente mencionado, o rápido desenho das atividades domiciliares, por meio de interações síncronas e assíncronas, ocorreu de diversas formas com predomínio da oferta de atividades síncronas. A enquete intitulada: “Pesquisa sobre aulas remotas”, realizada pelo SINEPE/RS com instituições associadas, teve por objetivo compreender como as instituições seguiram com suas atividades domiciliares e/ou ensino remoto no período de suspensão das aulas presenciais. Sobre os recursos utilizados, um mês após o período de paralisação (abril de 2020), observa-se na Figura 1, a seguir, as modalidades utilizadas com maior recorrência. Figura 1: Recursos tecnológicos usados pelas escolas Fonte: SINEPE/RS10 10 SUMÁR I O Os dados desta pesquisa foram enviados aos colégios associados ao Sindicato e parte dos dados publicados no site: https://www.sinepe-rs.org.br/ . Acesso em: maio/2020. 158 O SINEPE/RS realizou a pesquisa com um conjunto de 131 escolas associadas, que representam um pouco mais de 50% do total de escolas privadas no Estado do Rio Grande do Sul. Ao evidenciar os meios pelos quais os colégios mobilizaram suas práticas pedagógicas, observamos um predomínio de plataformas online e aplicativos como recursos utilizados. Figura 2: Períodos de aulas online Fonte: SINEPE/RS Nessa perspectiva, observamos que as escolas mencionaram um significativo volume de horas ofertadas às atividades síncronas (aula online) na Figura 2; e, embora, a orientações do CEEd RS tenham sido sobre o desenvolvimento de atividades domiciliares, sem mencionar interações ou meios digitais, o predomínio ocorreu com a mediação online dos professores regentes, conforme a Figura 3. SUMÁR I O 159 Figura 3: Interação professor e aluno Fonte: SINEPE/RS Os colégios privados mantinham algum tipo de vinculação com plataforma ou recursos educacionais de modalidade online, o que ficou evidenciado pala rapidez com que a oferta de atividades pedagógicas mediadas por tecnologias digitais foi disponibilizada para os estudantes matriculados nessas escolas. Ao descrever que as interações entre professor e aluno ocorreram com 100% das atividades síncronas planejadas, observamos que a disponibilidade do docente na cargahorária contratada foi transposta das atividades presenciais para o online. CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E A CRISE COMO ESTRATÉGIA Há um pouco mais de uma década, Pierre Dardot e Laval (2008) publicaram uma relevante obra intitulada A nova Razão do Mundo, a partir de uma releitura dos estudos de Karl Marx e da obra O Nascimento da Biopolítica de Michel Foucault. No cruzamento dessas abordagens transfronteiriças, examinaram a sociedade neoliberal, ampliando o debate acerca de uma racionalidade política que se engendra em diversas dimensões da vida humana. SUMÁR I O 160 Na sequência da crise econômica de 2008, em âmbito americano e europeu, cogitava-se o fim do neoliberalismo, traçando a hipótese de um possível “retorno do estado” e de uma regulação dos mercados. O cenário sensível de queda dos bancos e o fortalecimento da esfera econômica estatal impulsionou essa crença. Contudo, distante de provocar o abrandamento das políticas neoliberais, “a crise conduziu a seu brutal fortalecimento, na forma de planos de austeridade adotados por Estados cada vez mais ativos na promoção da lógica da concorrência dos mercados financeiros” (DARDOT; LAVAL, 2008, p. 14). Nessa perspectiva, para além da compreensão de que o neoliberalismo possa ser configurado como uma ideologia ou uma política econômica, o conceito passa a ser compreendido como uma racionalidade, um modo de conduzir vidas, estruturando as ações de quem governa, perpassando a conduta dos governados (DARDOT; LAVAL, 2008). Sendo assim, o neoliberalismo para Dardot e Laval (2008, p. 17) é “a razão do capitalismo contemporâneo” uma vez que este capitalismo desmedido tem sua referência nos modos de atuação histórica e enquanto regra geral de vida. Ampliando essas discussões, para os autores, o que está em jogo nesta racionalidade neoliberal “é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos” (DARDOT; LAVAL, 2008, p. 16). Essa definição acerca de uma norma de vida potencializa a generalização da competição nas sociedades ocidentais, pois impõe relações sociais que se regulam por meio dos jogos do mercado. O indivíduo tende a comportar-se como uma empresa, no contexto da competição, tensionado por uma norma que orienta as políticas públicas, conduz as relações econômicas mundiais, produzindo transformações na sociedade, modelando as subjetividades e fazendo surgir um novo sujeito. Todas essas perspectivas são oriundas e complementares a esta nova razão do mundo. Pois, para Dardot e Laval (2008): SUMÁR I O 161 Devemos entender, [...] que essa razão é global, nos dois sentidos que pode ter o termo: é “mundial”, no sentido de que vale de imediato para o mundo todo; e, ademais, longe de limitar-se à esfera econômica, tende à totalização, isto é, a “fazer o mundo” por seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana. Razão do mundo, mas ao mesmo tempo uma razão-mundo” (DARDOT; LAVAL, 2008, p. 16 – grifos do autor). Ademais, o neoliberalismo pode ser definido como “[...] o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (DARDOT; LAVAL, 2008, p. 17). Ao considerar esses modos de operação do neoliberalismo, faz-se importante atentarmo-nos para a ênfase específica da crise como modo de vida permanente, tomada como um operador estratégico com efeitos subjetivos. Diante de uma crise causada por um vírus, quando o índice de mortalidade aumentava no Estado e no Brasil, no cenário escolar, os efeitos da liberdade de mercado, no contexto privado, e a não regulação dos moldes de oferta do ensino remoto criaram condições de acesso pautadas pelo aumento de interações síncronas, quantidade de horas/aulas disponibilizadas aos estudantes, disponibilidade do tempo nas interações com os estudantes. O mercado opera sua própria regulação nesse contexto de crise, e o desenho das propostas pedagógicas permite a comparabilidade entre escolas e entre famílias para a avaliação de quem produz mais interações online. A pauta das questões educacionais fica a cargo da perspectiva do negócio. O regulador das práticas direciona-se aos índices de oferta com maior ou menor intensidade de tempo. Pesquisadores de referência da área (SANTOS, 2009; LEMOS, 2015) destacam que a Educação Online, enquanto fenômeno da cibercultura, torna-se potente quando mediada por tecnologias digitais, em perspectiva de hibridismo tecnológico, promovendo “conteúdos e situações de aprendizagem baseados nos conceitos de interatividade e hipertexto” (SANTOS, 2009). SUMÁR I O 162 Estudos dessa natureza referem que a opção pela diversificação metodológica na educação online permite atingir espaços de cocriação, autoria e participação em ambientes virtuais de aprendizagem – AVA –, no sentido de alcançar a diversidade de aprendizagens presentes em um grupo de estudantes, uma vez que as singularidades são marcas importantes na multiplicidade de processos e de dimensões do aprender (GALLO, 2012). De tal modo, o equilíbrio entre atividades síncronas e assíncronas e as diferenciações das ofertas estariam entre as propostas que melhor corroboram para as aprendizagens no ensino remoto, produzindo uma espécie de bricolagem nas escolhas para interação e comunicabilidade (SANTOS, 2009). Debates que cotejam e evidenciam a dimensão da proposta educacional, diante de um cenário de paralisação das atividades presenciais, entram em cena em paralelo às questões relacionadas à sustentabilidade a ao contexto de mercado que atravessa a iniciativa privada, esmaecendo intencionalidades importantes da pauta pedagógica. Em um estado de exceção, as preocupações que se acentuam perpassam pela dinamicidade da eficiência e da eficácia das entregas dos serviços contratados e as quantidades dos tempos de interação, os tempos em que os docentes se dedicam às tarefas de atendimentos de estudantes e famílias. Ampliando esse debate, destaca-se o redesenho dos processos educativos fabricados no emaranhado das racionalidades emergentes da vida contemporânea. Em sua obra A cultura do novo Capitalismo, Sennet (2006), nos quatro capítulos organizados com propostas temáticas que visam a tornar compreensível a cultura deste capitalismo contemporâneo, assinala três importantes mudanças que deslocam as sólidas pilastras do capitalismo social. Silva e Fabris (2010) ao realizarem a resenha da obra, pontuam que a primeira se refere a uma transferência do poder gerencial ou acionário ao dos grandes burocratas e investidores, e que a segunda é preferência por resultados breves, insurge pelo apelo das permanentes atualizações e constantes reengenharias. SUMÁR I O 163 Neste ponto, o autor sublinha sobre reinventar-se permanentemente ou sobre fenecer no mercado (SENNET, 2006). E a terceira mudança recai sobre as novas tecnologias que seguem amplificando suas comunicações instantâneas em escala mundial. As marcas desta cultura de um novo capitalismo se engendram nas relações e nos modos de fazer escola. No cenário de criação de meios para as interações online entre estudantes e professores, observamos a retórica da reinvenção docente se intensificar ao mesmo tempo que a pauta da atualização e dos espaços de formação e capacitação ganham novas ênfases e novos contornos. A crise vivida acelera processos de desenvolvimento profissional no que concerne à interação com as tecnologias digitais, ao mesmo tempo, intensifica o risco da precarização dos processos pedagógicos, marcados pela intensidade, quantidade e eficácia. Na esteira dessas reflexões, em fevereiro de 2020, a Sociedade Brasileira de Pediatria11 emitiu uma nota em seu site recomendando a não exposição de crianças pequenas em frente às telas por tempo excessivo. Destacamos, a seguir, as três primeiras notas referentes ao tema: Essa publicação foi realizada em contexto anterior ao da pandemia, e a inclusão dessa notícia neste estudo tem a intenção de evidenciar as produções discursivas acerca da temática dos tempos de conexão com crianças e jovens. Não pretendemos neste estudo nos posicionarmos sobre essa questão, mas, mostrar como circulam as discursividades relacionadas à exposição às tecnologias digitais. Nesse contexto, importa salientar que a Sociedade Brasileira de Oftalmologia12 também emitiu nota e mantém uma matéria no site sobre SUMÁR I O 11 Recomendação retirada do site: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sbpatualiza-recomendacoes-sobre-saude-de-criancas-e-adolescentes-na-era-digital/ da Sociedade Brasileira de Pediatria sobre a saúde de crianças e adolescentes na era digital Acesso em: maio/2020. 12 https://www.sboportal.org.br/imprensa/sindrome-visual-relacionada-a-computadores. Acesso em: outubro/2020. 164 uma síndrome relacionada ao uso de computadores. Junto à mídia, especialistas dessa área, inclusive, recomendaram pausas e exercícios oculares neste momento em que crianças, jovens e adultos estão com aulas online e atividades profissionais, respectivamente, e, por isso, mais expostos à atividades de leitura e interação diante das telas. Na pesquisa do SINEPE/RS, referida anteriormente, nos itens por etapas de ensino não divulgados aqui – há um mês da suspensão das aulas (em abril) – a enquete mencionava que 50% das escolas que responderam as questões já ofertavam mais de 10 períodos por semana de atividades síncronas e 30% mais de 20 períodos por semana. Nos Anos Iniciais o percentual era de 72% de atividades síncronas e mais de 50% dos estudantes com mais de 20 períodos por semana. Isso corresponderia a um percentual de exposição de em média 3 a 4 horas por dia frente às telas. Vemos nessa perspectiva os efeitos da produtividade e da eficiência no atendimento dos objetivos pedagógicos se sobreporem às questões relacionadas às dimensões educacionais e de saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS No decorrer deste capítulo, procuramos construir um debate crítico em relação aos redesenhos realizados pelos colégios privados do RS no cenário de pandemia, trazendo ênfase para as marcas dos cenários contemporâneos que ganham novos tons no contexto de Educação Online. Em aproximação aos estudos de inspiração foucaultiana, a partir do pensamento de Dardot e Laval (2008), percebemos as marcas do neoliberalismo e do capitalismo contemporâneo como modos de vida engendrados nas escolhas curriculares, nas decisões pedagógicas e nas reconfigurações das interações entre professores e estudantes, em especial neste momento de pandemia. SUMÁR I O 165 Para Dardot e Laval (2008, p. 21), “trata-se de compreender como a governamentalidade neoliberal escora-se num quadro normativo global” e, assim, “em nome da liberdade e apoiando-se nas margens de manobra concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos”. No funcionamento da racionalidade neoliberal como modo de vida, a crise instaura-se como operador estratégico que atua nos cenários sociais, econômicos e subjetivos dos sujeitos. Destarte, cotejamos que, a partir das políticas curriculares condutoras da organização das práticas pedagógicas (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016), os arranjos curriculares emergentes advindos deste ano letivo, um tanto incomum, sublinharam-se com ênfase pelas demandas advindas do capital. Por fim, para pensar as relações entre os redesenhos decorrentes da educação online e os cenários contemporâneos, buscamos alguns traços conceituais que emergem dessas experiências pedagógicas, tais como as ofertas pautadas pela intensidade nos tempos de conexão, pela quantidade de propostas disponibilizadas e pela competitividade na personalização dos atendimentos, além da retórica de reinvenção das práticas docentes. SUMÁR I O 166 REFERÊNCIAS BALL, S. MAGUIRE, M. BRAUN, A. Como as escolas fazem políticas: atuação em escolas secundárias. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016. CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO (Rio Grande do Sul). Parecer CEEd RS de nº 01/2020 de 18 de março de 2020. Orienta as Instituições integrantes do Sistema Estadual de Ensino sobre o desenvolvimento das atividades escolares, excepcionalmente, enquanto permanecerem as medidas de prevenção ao novo Coronavírus – COVID-19. Comissão de Legislação e Normas, fl.3, 2020. DARDOT, P. LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2009. GALLO, S. As múltiplas dimensões do aprender. COEB, 2012. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/13_02_2012_10.54.50. a0ac3b8a140676ef8ae0dbf32e662762.pdf Acesso em: Jan/2019. LEMOS. A. O que é cibercultura? Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=hCFXsKeIs0w&t=1s. TV UFBA conecta, 2005. Acesso em: maio/2020. SANTOS, E. Actas do X Congresso Internacional Galego-Português de Psicopedagogia. Braga: Universidade do Minho, 2009. Disponível em: https:// www.educacion.udc.es/grupos/gipdae/documentos/congreso/xcongreso/ pdfs/t12/t12c427.pdf. Acesso em: maio/2020. SENNET, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006. SUMÁR I O 167 Capítulo 9 9 LITERATURA POTENCIAL: UMA ALIADA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Josaine de Moura Josaine de Moura LITERATURA POTENCIAL: uma aliada da Educação Matemática DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.168-184 RECOMEÇAMOS A COMEÇAR UM COMEÇO SEM INÍCIO: PELO MEIO Não há como deixar de apontar o momento único que foi o da invenção do estudo que motivou a escrita deste capítulo. Esse momento foi gestado em um solo não imaginado, nem pensado, nem, quiçá, hipoteticamente cogitado, mas que estamos sendo obrigados a viver – ou seria mais adequado dizer que estamos sendo obrigados a não morrer, ou ainda, a panviver? Há que reinventar a cada amanhecer outra maneira, nunca vivida, nem pensada, de desconstruir rotinas que não podem ser seguidas, para construir não rotinas. É nestas idas e vindas, sem nenhum ponto de chegada conhecido e almejado, que podemos pensar o quão potente pode ser esse estado de restrição. Restrição da liberdade regulada, restrição das possibilidades que estavam à nossa disposição e foram reduzidas a quase apenas uma: “ficar em casa”. Fomos obrigados a aceitar que o que pensávamos poder controlar, o futuro, é algo incontrolável que está em devir. Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade do seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será. Ele não é consequência de uma intenção, uma vontade, uma finalidade própria, com ele não se faz a tentativa de alcançar um “ideal de ser humano” ou um “ideal de felicidade” ou um “ideal de moralidade” – é absurdo querer empurrar o ser para uma finalidade qualquer. Nós é que inventamos o conceito de “finalidade” [...] O fato de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo do ser não pode ser remontado a uma causa prima, [...] somente com isso é novamente estabelecida a inocência do vir-a-ser (NIETZSCHE, 2006, p. 46-47). SUMÁR I O 169 Para além de nosso ego de deuses, o que existe é um caos13 em que estamos imersos e onde apenas podemos “continuar a nadar”, como diz a Dore, do filme Procurando Nemo. Dore, aquela peixinha azulzinha, aprendeu uma maneira não deusa de viver o caos, que é a vida. Imersos em um caos que difere do caos com que estávamos acostumados, deparamo-nos com a possibilidade de inventar outras formas de utilizar restrições para potencializar maneiras de ensinar. Neste momento de aparente inércia, calmaria, passividade e incapacidade de ir e vir, reinventamos uma prática que parecia estar esquecida: pensar – e com tempo, não tendo o relógio como carrasco. Muito pelo contrário, o relógio tornou-se um aliado para nos tornar alienados dos controles das horas e das demandas de uma sociedade que, até há pouco tinha como mantra “tempo é dinheiro”, mas agora “é o instante que não sabemos se é longo demais ou curto demais para o tempo” (DELEUZE, 1992, p. 259). Agora que o relógio não controla mais, a mente volta a pensar. [...] é, às vezes, no justo momento em que tudo nos parece perdido, que ocorre o aviso que nos pode salvar; batemos a todas as portas que não abrem para nada, e na única pela qual podemos entrar, e que teríamos buscado em vão durante um século, esbarramos por acaso e ela se abre (PROUST, 2002, p. 661). Pensar exige um tempo não controlado, e começamos a perdêlo com inquietações que já nem mais sabíamos que existiam, mas que estavam imersas no caos de nossos pensamentos e sufocadas pelas demandas de uma vida controlada pelo tempo cronológico. Com essa outra forma inventada de viver, passamos a prestar atenção aos barulhos que alguns rastros de nossas constituições estão fazendo e 13 SUMÁR I O “Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que o pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem. São velocidades infinitas, que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem, sem natureza nem pensamento” (DELEUZE, 1992, p. 259). 170 a nos permitir rasgar os silêncios que estavámos impondo ao filósofo, ao cientista e ao artista que habitam em nós, professores. Podemos, então, mergulhar no caos que insurgiu desse nosso encontro com as restrições impostas pela pandemia, e cada faceta nossa, quando sai desse mergulho, traz [...] variações que permanecem infinitas, mas tornam-se inseparáveis sobre superfícies ou em volumes absolutos, que traçam um plano de imanência secante: não mais são associações de ideias distintas, mas re-encadeamentos, por zona de distinção, num conceito. [...] variáveis, tornadas independentes por desaceleração, isto é, por eliminação de outras variabilidades quaisquer, suscetíveis de intervir, de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis numa função: [...], mas coordenadas finitas sobre um plano secante de referência. [...] variedades que não constituem mais uma reprodução do sensível no órgão, mas erigem um ser do sensível, um ser da sensação sobre um plano de composição (DELEUZE, 1992, p. 260). Munidos de uma escuta e escolhendo um, dentre inúmeros, dos desassossegos que são compartilhados por muitos colegas professores na educação contemporânea, particularmente na Educação Matemática, queremos perquirir alternativas para que os alunos participem do processo de aprendizagem de maneira a protagonizar essa prática. A Educação Matemática está em consonância com esse desassossego, pois se alia a outras áreas de conhecimentos a fim de tornar o ensinar e o aprender afinados e próximos. Este movimento de inventar14 outras formas de construir os conhecimentos matemáticos resulta nas tendências da Educação Matemática. Na medida em que a área da Educação Matemática se apresenta como uma área interdisciplinar, podemos enumerar 14 SUMÁR I O Aventuramo-nos a utilizar o termo inventar “[...] para reforçar a ideia de que os objetos de estudo não estão aí à espera para serem descobertos (não há problemas esperando por nós para serem resolvidos). Todavia, essa invenção (construção) depende da forma como examinamos, escrutinamos ou olhamos alguma coisa.” (PINHEIRO, 2014, p. 22). 171 uma variedade de tendências de estudos e pesquisas na confluência com as diversas áreas as quais ela compartilha pressupostos e interesses. [...] tendências que ocupam lugares de destaque no campo acadêmico, tais como, a Modelagem Matemática, a Resolução de Problemas, a História da Matemática, a Interdisciplinaridade, a Ludicidade, a Etnomatemática, as linhas cognitivistas e as especificamente construtivistas (SANTOS, 2017, p. 58). O mosaico formado pelas tendências da Educação Matemática está em constante movimento, pois a escola é um espaço que transborda os limites dos muros da instituição, e esse excesso impulsiona demandas de outras maneiras de ensinar, do que ensinar, de como aprender e do que aprender. Não estamos procurando recomeçar pelo início; queremos começar pelo meio, sem que este seja a média, a metade do tempo, o ponto central, mas que seja o que movimenta, o que impulsiona, o que deixa sem fôlego e faz transbordar. [...] Ora, o meio não quer dizer absolutamente estar dentro de seu tempo, ser de seu tempo, ser histórico; ao contrário: é aquilo por meio do qual os tempos mais difíceis se comunicam. Não é nem o histórico nem o eterno, mas o intempestivo. E um autor menor é justamente isso: sem futuro nem passado, ele só tem um devir, um meio pelo qual se comunica com outro tempo, outros espaços (DELEUZE, 2010, p. 35). Começamos, então, a afundar no turbilhão de sensações despertadas pelos encontros com os escritos do OuLiPo (Oficina de Literatura Potencial) e a comunicar-nos com outra maneira de ensinar matemática, utilizando as variações, variáveis e variedades que emergiram de nosso mergulho na literatura potencial. SUMÁR I O 172 OuLiPo (OUVROIR DE LITTÉRATURE POTENTIELLE) Para iniciar, descrevemos brevemente o grupo OuLiPo, por ter sido no encontro15 com os escritos produzidos pelos integrantes desse grupo que começamos a inventar outra forma de ensinar matemática, que aproxima a literatura potencial e a Educação Matemática. O OuLiPo foi criado em 1960 e inicialmente era composto apenas por escritores franceses, tendo como fundadores Raymond Queneau16 e François Le Lionnais. Queneau rompeu com o movimento surrealista17 da época e inventou uma alternativa para produzir seus escritos, indo pela contramão da literatura espontânea. Uma das características principais dos escritos produzidos pelos integrantes do OuLiPo é o uso de restrições prévias na construção de seus textos. Essas restrições podem ser restrições matemáticas ou de outros tipos. A literatura produzida por esse grupo é denominada literatura potencial e busca formas, estruturas, fórmulas matemáticas, entre outras coisas, como fios condutores para ser produzida. O grupo negava-se a reconhecer que o que estava propondo seria um novo movimento literário. Os oulipianos poderiam ser ditos SUMÁR I O 15 “E não se têm encontros com pessoas. As pessoas acham que é com pessoas que se têm encontros. É terrível, isso faz parte da cultura, intelectuais que se encontram, essa sujeira de colóquios, essa infâmia, mas não se tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com obras: encontro um quadro, encontro uma ária de música, uma música, assim entendo o que quer dizer um encontro. Quando as pessoas querem juntar a isso um encontro com elas próprias, com pessoas, não dá certo. Isso não é um encontro. Daí os encontros serem decepcionantes, é uma catástrofe os encontros com pessoas.” (DELEUZE, 2005, p. 10). 16 Raymond Queneau foi escritor, poeta, ensaísta, humorista, crítico literário e interessado em jogos matemáticos. Foi um dos fundadores do movimento surrealista na década de 20, mas acabou dando as costas ao movimento em 1958 e criou o OuLiPo, no qual se produzia literatura não espontânea, por meio de experiências matemático-literárias. 17 “O surrealismo é concebido por seus fundadores não como uma nova escola artística, mas como um meio de conhecimento, em particular de continentes que até então não tinham sido sistematicamente explorados: o inconsciente, o maravilhoso, o sonho, a loucura, os estados alucinatórios, em resumo, o avesso do que se apresenta como cenário lógico.” (NADEAU, 1958, p. 46). 173 escritores que eram contra a espontaneidade. Seus escritos eram regidos por regras conhecidas como travas, constrições ou restrições iniciais (contraintes), tornando o escrever algo não espontâneo – algo controlável, estruturado, regulado e previsível. O OuLipo reuniu e reúne nomes de destaques, sendo que, para integrá-lo, o indivíduo deve ser convidado formalmente pelo grupo; mesmo que venha a falecer, ele não deixa de ser oulipiano. Nem todas as produções de seus integrantes são gestadas por restrições. Atualmente, há 41 integrantes no OuLipo18, a saber: Noël Arnaud (1919-2003), Michèle Audin (1954), Valérie Beaudouin (1968), Marcel Bénabou (1939), Jacques Bens (1931-2001), Claude Berge (19262002), Eduardo Berti (1964), André Blavier (1922-2001), Paul Braffort (1923), Italo Calvino (1923-1985), François Caradec (1924-2008), Bernard Cerquiglini (1947), Ross Chambers (1932-2017), Stanley Chapman (1925-2009), Marcel Duchamp (1887-1968), Jacques Duchateau (1929-2017), Luc Etienne (1908-1984), Frédéric Forte (1973), Paul Fournel (1947), Anne F. Garréta (1962), Michelle Grangaud (1941), Jacques Jouet (1947), Latis (1913-1973), François Le Lionnais (19011984), Hervé Le Tellier (1957), Étienne Lécroart (1960), Jean Lescure (1912-2005), Daniel Levin Becker (1984), Pablo Martín Sánchez (1977), Harry Mathews (1930-2017), Clémentine Mélois (1980), Michèle Métail (1950), Ian Monk (1960), Oskar Pastior (1927-2006), Georges Perec (1936-1982), Raymond Queneau (1903-1976), Jean Queval (19131990), Pierre Rosenstiehl (1933), Jacques Roubaud (1932), Olivier Salon (1955) e Albert-Marie Schmidt (1901-1966). Não há registro de algum integrante do grupo ser lusófono19, mas existem escritores brasileiros que têm produções regidas por restrições, tais como: Osman Lins, de Avalovara; Alberto Mussa, de O Movimento Pendular; José Castello de Ribamar e Jacques Fux, de Antiterapias e Brochadas20. 18 SUMÁR I O https://www.oulipo.net acessado no dia 5 de outubro de 2020. 19 Aquele que fala português. 20 https://piaui.folha.uol.com.br/materia/ratos-no-labirinto-2/ acessado em 5 de outubro de 2020. 174 Na produção textual dos integrantes do OuLiPo, as estruturas previamente definidas evitam a escrita espontânea e, segundo aponta Queneau, ajudam no desenvolvimento do trabalho. [...] inspiração que consiste em obedecer cegamente a qualquer impulso é na realidade uma escravidão. O clássico que escreve a sua tragédia observando um certo número de regras que conhece é mais livre que o poeta que escreve aquilo que se passa pela cabeça e é escravo de outras regras que ignora (QUENEAU apud CALVINO, 1993, p. 261). A inspiração, para o OuLiPo, é algo a ser evitado a qualquer custo, pois ela escraviza quem escreve, deixando o ato de escrever como uma ação feita para poucos e na esfera da metafísica. [...] diversas teorias estéticas afirmavam que a poesia era uma questão de inspiração vinda de sabe-se lá que alturas ou brotada de sabe-se lá que profundidade ou intuição pura ou instante não identificado da vida do espírito; ou uma voz dos tempos com que o espírito do mundo decida falar por intermédio do poeta (CALVINO, 2009, p. 205). Contrapondo a escrita movida pela espontaneidade e dando as costas ao movimento surrealista, Calvino (2009) descreve que, para ele, fazer literatura é uma ação regida por restrições iniciais que tornam a escrita possível, mas múltipla. “[...] a literatura, da maneira como eu a conhecia, era obstinada série de tentativas de colocar uma palavra atrás da outra, conforme determinadas regras definidas” (CALVINO, 2009, p. 205). A imposição de restrições para escrever os textos pode parecer uma forma de limitar a escrita, porém, para o OuLiPo, as limitações propostas voluntariamente são multiplicadores de maneiras de se escrever. Está aí um paradoxo! As restrições não restringem, e, sim, multiplicam. Com as restrições, multiplicam-se os textos que podem ser produzidos. As produções literárias do OuLiPo estão divididas em duas linhas, segundo descreve Le Lionnais. São elas: anulipismo e sintulipismo. SUMÁR I O 175 [...] nas pesquisas que pretende começar o Ouvroir, duas tendências principais, torneadas respectivamente, acerca da Análise e da Síntese. A tendência analítica trabalha sobre as obras do passado, a fim de pesquisar as possibilidades que ultrapassaram frequentemente as possibilidades que os autores tinham asssumido. [...] A tendência sintética é mais ambiciosa; ela constitui a vocação essencial do OuLiPo. Trata-se de propor novas vias desconhecidas dos nossos predecessores (LIONNAIS apud FUX, 2016, p. 46). Neste estudo, inspiramo-nos no anulipismo; em outras palavras, tomamos textos já escritos e, a partir deles, propomos restrições matemáticas para que sejam produzidos outros textos. Para ler as obras desses escritores, pode-se pensar que teríamos de possuir um conhecimento matemático avançado, mas isso é um engano. Mesmo não conhecendo as restrições impostas pelo autor para produzir sua obra, seu escrito pode ser lido por quem não tem um conhecimento matemático, sem nenhum prejuízo. Quem gosta de matemática pode desafiar-se a procurar, durante a leitura das obras do OuLiPo, as restrições que foram usadas. Vários dos integrantes do grupo explicitam suas restrições. Por exemplo, o livro escrito por George Perec, La Disparition, lançado em 1969, não utiliza, em nenhuma das 220 páginas, a letra “e”, que no francês é a vogal mais usada. Teria muito mais a descrever sobre o OuLiPo e, principalmente, sobre as produções de seus integrantes, as quais são de uma complexidade e inventividade sem iguais, porém, com o que foi descrito, já se pode ter uma ideia da produção literária do grupo. LITERATURA POTENCIAL A combinação de matemática e literatura parece ser uma maneira de utilizar a escrita e a leitura com outra lógica. Utilizam-se SUMÁR I O 176 conceitos, fórmulas, equações, contextualização e problemas advindos da matemática para potencializar a produção literária, ou buscam-se, em diversos tipos de textos, modos de impulsionar a invenção de uma matemática que tenha múltiplos significados. Propomos, neste estudo, outra forma de aproximar a literatura e a matemática, a saber, a literatura potencial. Não pretendemos definir literatura potencial, visto que isso não era uma preocupação do OuLiPo em seus escritos, mas Meira (2008, p. 3) aventura-se a pontuar que, por literatura potencial, “entenda-se, finalmente, o conjunto de procedimentos de que se servem os matemáticos e escritores do grupo OuLiPo para produzir textos, guiados por um protocolo, uma equação, uma forma qualquer que se defina como regra”. Essa maneira de entender a literatura potencial parece ser adequada para o estudo que aqui se realiza. Muitas são as formas de se escrever utilizando restrições voluntárias iniciais. Algumas delas estão categorizadas, e as descrevemos a seguir. MÉTODO M +/-N Essa forma de escrever, sugerida por Jean Lescure, implica que a produção textual consiste em trocar palavras da mesma classe gramatical, de um dado texto, por outras palavras da mesma classe que as sucedem ou as precedem no dicionário. Nessa forma de restrição inicial, a modificação ocorre apenas em palavras de uma mesma classe de palavras (substantivo, verbo, adjetivo). Essa restrição pode ser vista como uma relação matemática, sucessor ou antecessor, ou até como uma função afim. SUMÁR I O 177 Particularmente, quando se usa S+/-n, modificam-se todos os substantivos do parágrafo pelo n-ésimo substantivo posterior ou anterior ao que aparece no dicionário. Exercício matemático-literário utilizando o método M+/-n Toma-se a restrição S – 1, ou seja, vamos substituir todos os substantivos do parágrafo pelo primeiro substantivo anterior do dicionário. PARÁGRAFO ORIGINAL: “Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Embora não aguente bem ouvir um assovio no escuro, e passos.” (LISPECTOR, 1998, p. 18). USO DA RESTRIÇÃO a. 21 SUMÁR I O Primeiro passo: listar os substantivos do parágrafo e encontrar no dicionário21 o primeiro substantivo antecedente de cada substantivo listado substantivo S–1 medo medinuidade chuvas chuteiras ventanias ventas escuro escuridão noite noitada assovio assoviador passos passividades O dicionário utilizado foi o Silveira Bueno. 178 b. Segundo passo: reescrever a frase com os novos substantivos. Poderíamos tomar V – 1, no qual trocaríamos os verbos do parágrafo pelos primeiros verbos antecessores no dicionário; ou A – 1, em que trocaríamos os adjetivos do parágrafo pelos primeiros adjetivos antecessores no dicionário. MÉTODO DAS PERMUTAÇÕES Essa forma de escrever, sugerida por Jean Lescure, implica que a produção textual consiste em permutar as palavras da mesma classe gramatical no parágrafo dado. É uma permuta de palavras em certa ordem previamente definida, o que faz obter impactantes surpresas no novo parágrafo. Nada é mais fácil de permutar do que adjetivos, no entanto, permutar substantivos é algo mais complexo, visto que o parágrafo resultante pode ter um resultado estranho. Vamos aplicar o que não é o mais fácil no método das permutações: permutar os substantivos, ou seja, o primeiro substantivo da frase pelo segundo substantivo, o terceiro pelo quarto, e assim sucessivamente; ou ainda, permutar o primeiro com o terceiro e o segundo com o quarto; ou o primeiro com o quarto, e o segundo com o terceiro. Esse método é indicado para parágrafos longos formados por numerosas frases. Pode-se realizar a mais variada combinação de permutação, como, por exemplo, permutar o primeiro substantivo pelo último substantivo, o segundo pelo antepenúltimo, e assim por diante. Esse SUMÁR I O 179 tipo de permutação se desenvolve adequadamente se a quantidade de substantivos envolvidos for um número par; caso for ímpar, o substantivo do meio não será permutado. Exercício matemático-literário utilizando o método das permutações PARÁGRAFO ORIGINAL Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho. Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca para comer. Então a menina inventou que só cabia criar as pulgas pois não merecia o amor de um cão. Do contato com a tia ficaralhe a cabeça baixa. Mas a sua beatice não lhe pegara: morta a tia, ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas (LISPECTOR, 1998, p. 29). USO DA PERMUTAÇÃO a. Primeiro passo: numerar os substantivos. substantivo SUMÁR I O ordenação vontade primeiro bicho segundo tia terceiro bicho quarto boca quinto menina sexto pulgas sétimo amor oitavo cão nono 180 b. tia décimo cabeça décimo primeiro beatice décimo segundo tia décimo terceiro igreja décimo quarto divindades décimo quinto Segundo passo: escolher a permutação que será realizada, observando que temos um número ímpar de substantivos, assim, o substantivo cão não será permutado. b.1 permutar: o primeiro substantivo com o segundo substantivo, o terceiro substantivo com o quarto substantivo, o quinto substantivo com o sexto substantivo, o sétimo substantivo com o oitavo substantivo, o nono substantivo não permuta com nenhum, o décimo substantivo com o décimo primeiro substantivo, o décimo segundo substantivo com o décimo terceiro substantivo, o décimo quarto substantivo com o décimo quinto substantivo. PARÁGRAFO MODIFICADO b.2 permutar: o primeiro substantivo com o terceiro substantivo, o segundo substantivo com o quarto substantivo, o quinto substantivo com o sétimo substantivo, o sexto substantivo não permuta com nenhum, o oitava substantivo com o décimo substantivo, o nono substantivo com o décimo primeiro substantivo, o décimo segundo substantivo com o décimo quarto substantivo, e o décimo terceiro substantivo com o décimo quinto substantivo. SUMÁR I O 181 PARÁGRAFO MODIFICADO Podem-se explorar inúmeras restrições e inúmeros textos. Essas escolhas devem estar em consonância com a idade do aluno, os objetos de conhecimentos matemáticos, os tipos de escrita que devem ser aprendidos e o interesse do aluno, dentre tantos outros requisitos que o professor deve considerar, de acordo com seu planejamento. REVERBERAÇÕES DOS BARULHOS QUE POSSIBILITARAM PENSAR O estudo realizado até o momento mostra que ensinar matemática é uma prática que está em constante movimento. Quando se ensina algo a alguém, utiliza-se a linguagem como uma das maneiras de comunicação. Particularmente, quando se ensina matemática, utilizam-se duas linguagens diferentes, a saber, a linguagem que usamos para nos comunicar com outras pessoas e a linguagem própria da matemática. Esta última é carregada de significados e significantes que são inventados e fazem sentido no campo da matemática. Como a prática de ensinar tem o objetivo principal de fazer com que o outro aprenda, e há um abismo entre o que pensamos estar ensinando e o que o outro realmente está aprendendo, a necessidade de outras maneiras de ensinar se faz presente – uma demanda cada vez mais urgente. Mesmo as metodologias já existentes estão sendo atualizadas para que possam desempenhar da melhor forma a sua função: facilitar o ensino para que a aprendizagem aconteça para o maior número possível de alunos, quiçá, todos. SUMÁR I O 182 Atentando-se às demandas da escola e às mudanças cada dia mais rápidas, buscou-se mostrar a literatura potencial, desenvolvida pelo OuLiPo, como uma alternativa para o ensino de matemática. Abordaram-se duas dentre as muitas restrições inventadas pelos integrantes do OuLiPo, que resultaram no método M+/-n e no método das permutações. Cada uma dessas maneiras de produção textual, além da restrição inicial, possui outro ponto em comum, que é a necessidade da escolha de um texto, no qual será aplicada a restrição. Qualquer uma das maneiras descritas no trabalho demonstra a necessidade de utilização do dicionário e do conhecimento de classes gramaticais, sinônimos, sucessor, antecessor, permutações e relações matemáticas. A criação de outras restrições pode vir a ser outro modo de utilizar a literatura potencial no ensino da matemática, com a produção textual a partir dessas restrições espontâneas, sem texto prévio. Inspirados na literatura potencial para estudar como ensinar matemática utilizando restrições, pode ser que somente com um tempo sem tempo possamos inventar algo potente, ou ainda, perigoso. Este estudo quer fugir da cilada da totalidade, que procura uma resposta para saber se a literatura potencial serve ou não para ensinar matemática. Queremos pensar e seguir inventando outras formas de ensinar que levem tempo e que sejam no tempo de cada um. REFERÊNCIAS BUENO, S. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 2000. CALVINO, Í. Assunto encerrado: Discursos sobre literatura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CALVINO, Í. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. SUMÁR I O 183 DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. DELEUZE, G. Sobre o Teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. FUX, J. Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OuLiPo. São Paulo: Perspectiva, 2016. HOUSAISS, A.; VITAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MEIRA, V. Do OuLiPo ao Iólipo: Osman Lins e a literatura potencial. Anais do XI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada, São Paulo, 2008. Disponível em https://abralic.org.br/eventos/ cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/066/VINICIUS_MEIRA.pdf Acessado em 25 de janeiro de 2020. MIGUEL, A.; GARNICA, A.V.M.; IGLIORI, S.B.C.; D’AMBROSIO, U. A educação matemática: breve histórico, ações implementadas e questões sobre sua disciplinarização. Revista Brasileira de Educação. Set/Dez, n.27, 2004. NADEAU, M. Histoire du Surréalisme. Paris, Seuil, 1978. NIETZCHE, F. O crepúsculo dos ídolos (ou como se filosofar com o martelo). São Paulo: Companhia das Letras, 2006. PINHEIRO, J. M. Estudantes forjados nas arcadas do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA): “novos talentos” da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2014. PROUST, M. A prisioneira; A fugitiva; O tempo recuperado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. SANTOS, S. A. Pesquisar “O Quê”, “Como” e “Para Quê” [Em Educação Matemática]? In: SANTOS, S. A.; PINHEIRO, J. M. (Orgs.). Educação Matemática: pesquisas, tendências e propostas. Porto Alegre: Canto - Cultura e Arte, 2017. SUMÁR I O 184 Capítulo 10 10 ENSINAR E APRENDER MATEMÁTICA COM O YOUTUBE Débora de Lima Velho Junges Lucas Pereira da Rosa Débora de Lima Velho Junges Lucas Pereira da Rosa ENSINAR E APRENDER MATEMÁTICA COM O YOUTUBE DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.185-200 Na contemporaneidade, Educação e sociedade têm passado por transformações decorrentes das inovações tecnológicas relacionadas com o acesso à informação e às formas de comunicação e de interação entre as pessoas, que se encontram cada vez mais inseridas no ambiente digital. Nos últimos anos, o debate sobre o uso de tecnologias na Educação cresceu, impulsionado pela popularização das graduações e cursos técnicos na modalidade Educação a Distância (EAD) (SIBILIA, 2012). Essa discussão foi reforçada com a disseminação de conceitos como a “sala de aula invertida”, e o uso consciente da internet e todo o seu potencial para a educação (PACHECO, 2014). Isso se deu tanto no meio acadêmico, em pesquisas e publicações que analisam como é possível adaptar para essa nova realidade práticas pedagógicas estabelecidas e reconhecidas no contexto escolar, e como criar novas formas de ensinar (AMANTE, 2011; ARRUDA, 2013), quanto por uma iniciativa dos alunos, que desenvolveram maneiras próprias de buscar conhecimento (CANDAU, 2014). Os novos ambientes digitais, em que a aprendizagem ganha espaço, têm possibilitado a observação de uma série de experiências educacionais vinculadas ao desenvolvimento de diferentes processos e ferramentas, sejam estas originalmente pensadas e criadas para serem utilizadas com propósito educativo ou não (BURGESS; GREEN, 2009). Uma dessas ferramentas é o Youtube, plataforma de compartilhamento de vídeos consolidada como um dos maiores serviços de Internet do mundo. Com mais de 2 bilhões de usuários ativos mensais ao redor do mundo e cerca de 100 milhões apenas no Brasil, o Youtube exerce grande influência cultural e social (YOUTUBE, 2020). Um dos motivos identificados para o sucesso da plataforma colaborativa deve-se pela facilidade com que os usuários podem hospedar e divulgar vídeos produzidos, principalmente, para fins de entretenimento (BAREFOOT; SZABO, 2016). SUMÁR I O 186 No entanto, cada vez mais, o Youtube tem sido utilizado como uma ferramenta de ensino e de aprendizagem de conteúdos curriculares. Em termos de uso, o Youtube pode ter fins diversos. No sentido de distribuição de um conteúdo criado – funcionalidade primordial –, pode ser compreendido como uma plataforma, na qual o vídeo está hospedado, e, por meio da ferramenta de player de vídeo, outros usuários podem acessá-lo. Entretanto, o Youtube é compreendido como uma ferramenta quando passa a ter uma usabilidade específica. No contexto educacional, uma ferramenta de aprendizagem (CORREA; PEREIRA, 2016). Assim, o Youtube não foi criado inicialmente com o intuito de educar, mas os criadores de conteúdo e os usuários aproveitaram do seu potencial e de seus recursos para tal objetivo. Ele se tornou “[...] fascinante, pois, expor a opinião, produzir informação, debates, conteúdos científicos, educacionais, humorístico entre outros […] o torna útil para a compreensão das relações sociais, evolução das tecnologias e das mídias, auxiliando na práxis escolar” (ALMEIDA et al., 2016, p. 4). Essa consideração corrobora os dados de uma pesquisa realizada por nós em 2018 que procurou analisar a utilização do Youtube como ferramenta de aprendizagem pelos alunos do Ensino Médio Integrado de uma instituição de ensino da rede federal no município brasileiro de Fraiburgo, estado de Santa Catarina (SC) (JUNGES; GATTI, 2019). Nesse estudo, observou-se que 96% dos alunos acessavam o Youtube e, destes, 89% utilizavam o Youtube para aprender/buscar conhecimento. Esse resultado significativo apresenta proximidades com outras pesquisas (KAMERS, 2013; OLIVEIRA, 2016; SILVA, 2016), as quais evidenciam que a linguagem audiovisual, presente nos vídeos postados no Youtube, pode ser considerada como um formato mediador de conhecimento para os alunos que frequentam a Educação Básica. Ainda com relação aos resultados da pesquisa, constatou-se que 98% dos alunos que faziam uso do Youtube para fins educacionais SUMÁR I O 187 acreditavam que o acesso e a visualização de vídeos relacionados à aprendizagem e à construção do conhecimento influenciavam de forma positiva em seu desempenho escolar. Ao considerarem o Youtube como uma ferramenta capaz de qualificar o seu próprio processo de ensino e de aprendizagem, é possível inferir que esta prática, para além de uma escolha pessoal, repercute nos processos educacionais inseridos no espaço escolar, promove uma alteração na dinâmica da sala de aula (tendo em vista um provável desempenho melhor dos alunos nos conteúdos curriculares) e demonstra que, para aquele grupo de jovens, a web também se constituía como um espaço que promove a aprendizagem e a construção do conhecimento. Neste sentido, o uso de diferentes recursos digitais, como o Youtube, “aproxima a juventude das formas de aprender intimamente vinculadas às tecnologias digitais” (SILVA, 2016, p. 69). YOUTUBE E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Diversos autores têm defendido o uso das mídias sociais (como o Youtube) como instrumento de ensino e de aprendizagem (PECHANSKY, 2016; ALMEIDA et al., 2016; CORREA, PEREIRA, 2016). Isso ocorre porque as mídias sociais, enquanto ferramentas de comunicação por meio da web, “permitem criar e transmitir facilmente o conteúdo na forma de palavras, imagens, vídeos e áudios” (SAFKO; BRAKE, 2010, p. 5). Gomez (2004), por exemplo, elenca como pontos positivos do uso das mídias sociais para fins educacionais os seguintes aspectos: possibilidade de construção de conhecimentos, estabelecimento de espaços colaborativos e a abordagem de assuntos que vão além do conhecimento em si e que passam por questões éticas e legais. Além desses pontos, para a prática educativa, as mídias sociais permitem “a troca de conhecimentos entre pessoas de diversos níveis sociais, educacionais, culturais, políticos e econômicos” (RIBEIRO et al., 2016, SUMÁR I O 188 p. 3), ou seja, as mídias sociais podem ser compreendidas como uma forma de democratização do acesso e da divulgação do conhecimento. A própria plataforma do Youtube possui iniciativas voltadas, especificamente, à questão educacional. Lançada em 2013, a versão brasileira do Youtube Edu é fruto de uma parceria entre Google, Youtube e Fundação Lemann, com a participação de equipes de curadoria formadas por profissionais do Sistema de Ensino Poliedro (SEP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Essa iniciativa consiste em uma página exclusiva na plataforma, totalmente gratuita e em português, que disponibiliza conteúdos educacionais. “Os vídeos educativos são voltados para os Ensino Fundamental e Médio e englobam as seguintes disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências (Química, Física e Biologia), História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Língua Espanhola e Língua Inglesa” (YOUTUBE EDU, 2020). Atualmente, o Youtube Edu possui, aproximadamente, 422 mil usuários inscritos e 22 milhões de visualizações (YOUTUBE EDU, 2020). Das diversas temáticas encontradas na referida plataforma, o Youtube Edu contém canais que procuram disponibilizar videoaulas focadas em conteúdo da matemática escolar. Vale a pena destacar que os canais que compõem a plataforma foram avaliados por professores especialistas selecionados pelo Sistema de Ensino Poliedro e coordenados pela Fundação Lemann (YOUTUBE EDU, 2020). Estudos relacionados ao campo da Educação Matemática têm focado em discutir a utilização de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) como recurso didático dos professores. Com o propósito de qualificar o ensino, na busca de torná-lo mais atrativo para os jovens que cresceram em um período no qual as tecnologias digitais são presentes e fazem parte de suas vidas, há uma preocupação por parte dos educadores quanto à adequação dos recursos disponíveis para integrá-los ao processo de ensino. A utilização de vídeos no contexto da Educação Matemática é um desses recursos. SUMÁR I O 189 Contudo, na área da pesquisa em Educação Matemática, observa-se um número reduzido de produções que têm focado na questão da busca pela aprendizagem dos conteúdos de Matemática fora do ambiente escolar por meio da utilização de vídeos (JUNGES, ROSA, 2020). Podemos citar, por exemplo, os estudos produzidos por Santos et al. (2014) e Vieira (2017). Na pesquisa desenvolvida por Santos et al. (2014), buscou-se analisar o uso da mesa digitalizadora como recurso à produção de vídeos, visando a proporcionar aos alunos do Ensino Médio uma fonte de pesquisa e aprendizagem em Matemática. Enquanto a pesquisa de Vieira (2017) procurou investigar a percepção dos alunos do Ensino Médio Integrado, de uma escola pública, quanto à relação entre o uso de videoaulas e o seu desempenho em Matemática. Conforme apontado pelo relatório do movimento Todos Pela Educação (2020), somente 9% dos estudantes concluintes do Ensino Médio atingem níveis satisfatórios de aprendizado em Matemática. Um dado alarmante da Educação no Brasil relacionado a esse componente curricular. Considerados como de difícil aprendizagem por muitas pessoas, os conteúdos da Matemática escolar são tratados em diversos vídeos no Youtube. Inclusive, há uma quantidade significativa de canais que focam na questão do ensino da Matemática. Neste contexto, em que se verifica que os jovens têm utilizado o Youtube para fins educacionais (JUNGES; GATTI, 2019), faz sentido compreender como a Matemática escolar tem sido abordada pelos canais que focam na apresentação dos conteúdos relacionados a esse componente. Assim, nas páginas que seguem, iremos apresentar os dados produzidos por duas pesquisas desenvolvidas por nós. Na primeira, o estudo é fruto de um projeto que teve como objetivo analisar as principais características de cinco canais brasileiros, vinculados ao Youtube Edu, especializados em transmitir/ensinar conteúdos SUMÁR I O 190 matemáticos, com maior número de inscritos. Enquanto na segunda, relatamos brevemente a história da Khan Academy e discutimos como tal iniciativa se utilizou do Youtube para ensinar Matemática CANAIS ESPECIALIZADOS NA MATEMÁTICA ESCOLAR Tomando como tema de pesquisa o cenário do ciberespaço vinculado ao ensino e à aprendizagem da Matemática por meio do Youtube, o projeto de pesquisa intitulado “Youtube e Educação Matemática: um estudo dos canais especializados em ensinar matemática escolar”, desenvolvido em 2019, procurou responder ao seguinte questionamento: quais são as principais características dos canais brasileiros especializados em transmitir/ensinar conteúdos matemáticos? A fim de produzir dados que viessem a responder à questão de pesquisa, foi utilizada como metodologia a netnografia, um método de pesquisa aplicado em estudos que têm como contexto o cenário digital (HINE, 2000). A netnografia é compreendida como uma metodologia de pesquisa de culturas presentes na internet (HINE, 2000), um método que se utiliza das comunicações mediadas por computador como fonte de dados para a compreensão e para a representação de um determinado comportamento ou fenômeno cultural no ciberespaço e de comunidades online (KOZINETS, 2014). Os estudos netnográficos voltam-se “para a descrição de realidades sociais virtualizadas, ou seja, de compreensão das novas formas de sociabilidade no ciberespaço” (REBS, 2011, p. 81). Assim, é preciso atentar para que não se cause nenhum dano ou prejuízo tanto à comunidade pesquisada quanto aos seus membros (HINE, 2000), que, no caso específico desta pesquisa, foram os canais brasileiros vinculados ao Youtube Edu. SUMÁR I O 191 Na parte empírica da pesquisa, selecionamos os cinco canais com maior número de inscritos vinculados ao Youtube Edu, especializados em transmitir/ensinar conteúdos matemáticos. Em uma das fases de análise dos canais, identificamos os cinco vídeos mais visualizados pelos usuários do Youtube de cada um deles. Desta forma, conseguimos observar as características que aproximavam cada um dos canais e que se estabeleceram como pontos recorrentes nas videoaulas analisadas. Um ponto a ser destacado refere-se, justamente, às formas de apresentação dos conteúdos matemáticos. De maneira geral, os youtubers fizeram uso de apenas três estratégias metodológicas e didáticas em seus vídeos: o espelhamento de tela do computador/ notebook com o uso de slides, a fim de apresentar o desenvolvimento de cálculos matemáticos, ao mesmo tempo em que as resoluções são explicadas verbalmente; o uso de uma folha e uma caneta, mostrando apenas as mãos dos youtubers para a realização dos cálculos matemáticos junto com a explicação verbal; ou ainda, a apresentação do youtuber com a utilização de uma lousa e um canetão para explicar o tema abordado. “Como complemento à escrita, a explanação é realizada ou apenas pela fala do professor ou com aparições pontuais do docente em alguns momentos de explicação do conteúdo matemático” (SANTOS; GONÇALVES, 2017, p. 11). Diante disso, percebe-se que as estratégias e os recursos utilizados pelos youtubers se assemelham àquelas comumente utilizadas no ensino presencial, fortemente pautadas em aulas ditas como “expositivas”. Ou seja, não há uma significativa diferenciação entre o ensino presencial e o ensino à distância no que se refere à transmissão dos conteúdos matemáticos. Contudo, uma diferença bastante significativa se refere à duração das videoaulas, quando comparadas com a duração padrão das aulas presenciais. Enquanto, em sua grande maioria, as videoaulas possuem de 8 a 14 minutos, a duração de aulas SUMÁR I O 192 presenciais, em média, é de 40 a 50 minutos. Este dado indica uma tendência no momento do planejamento e elaboração das videoaulas de que estas não sejam muito longas. Quanto à participação dos usuários dos canais, é importante ressaltar a grande diferença entre os canais com maior número de inscritos e os com menor número. Isto porque, nos canais mais “famosos”, a quantidade de comentários foi maior e mais distribuída entre as videoaulas no período de produção dos materiais deste estudo. Esses dados nos levam a inferir que, por mais que alguns vídeos tenham mais visualizações que outros, nos canais cujo número de inscritos era superior a um milhão (Ferretto Matemática e Matemática Rio com Prof. Rafael Procopio), grande parte das videoaulas postadas são visualizadas pelos usuários. Possíveis motivadores para esses dados se devem à regularidade das postagens, à metodologia utilizada e à produção/edição aplicada. Em contrapartida, nos canais que possuem menor número de inscritos, foi possível observar que, enquanto algumas videoaulas apresentaram uma quantidade razoavelmente significativa de comentários, outros não computaram interações. Uma explicação para esses dados pode estar relacionada ao conteúdo matemático abordado. Em relação à natureza dos comentários, é interessante considerar a grande presença de agradecimentos e, diretamente relacionado a este ponto, a necessidade dos usuários em afirmar aos desenvolvedores dos canais que sua atividade tem gerado frutos em suas vidas acadêmicas e suas rotinas de estudo. Cabe ressaltar, também, que os internautas, com frequência, buscam tirar dúvidas vinculadas ao conteúdo, por meio dos comentários. Por fim, outro destaque se relaciona com os comentários que indicam “problemas” que, na opinião de determinados usuários, a(s) videoaula(s) apresentam, principalmente em relação à metodologia SUMÁR I O 193 utilizada. Uma constatação interessante a esse respeito é que tais comentários não se assemelham aos feitos pelos haters (“odiadores”, pessoas que praticam o bullying virtual e têm como objetivo principal desestabilizar o canal ou o youtuber em questão (CAMINADA et al., 2016)), pelo contrário, são comentários de natureza construtiva, a fim de agregar/sugerir mudanças positivas. KHAN ACADEMY E A EXPERIÊNCIA DO ALUNO A Khan Academy, hoje uma organização com foco em educação, começou de forma bastante informal em 2004, quando Salman Khan, durante o seu casamento, encontrou-se com a sua prima Nadia. Ele via grande potencial nela, que na época cursava a sexta série, mas estava passando por dificuldades nas aulas de matemática. Por isso, mesmo separados por milhares de quilômetros (ele morava em Boston; ela, em Nova Orleans), Khan começou a dar aulas particulares à Nadia, utilizando uma ferramenta chamada Yahoo Doodle e o seu telefone (KHAN ACADEMY, 2020). Essas aulas eram realizadas com o uso de uma mesa digitalizadora, para que Khan pudesse escrever como no uso de uma lousa digital. Anos depois, em 2006, conforme o desempenho escolar de Nadia foi melhorando, surgiu o interesse de seus colegas de escola, que também queriam participar das aulas de matemática com o seu primo. Ao perceber isso, e vendo que teria muito mais alunos do que poderia dar conta com o formato inicial de suas aulas, Salman Khan adotou a prática do compartilhamento dessas aulas da seguinte maneira: a tela e a explicação eram gravadas e transformadas em videoaulas que eram postadas em um canal do Youtube. A partir daí, os colegas de Nadia também poderiam ter acesso às explicações de Salman Khan sobre os conteúdos da matemática escolar (KHAN ACADEMY, 2012). SUMÁR I O 194 A metodologia de Salman Khan atraiu a atenção de diversos alunos da escola de sua prima, e depois de seus amigos que estudavam em outras escolas. O Youtube foi a plataforma de lançamento da filosofia de ensino da Khan Academy, que foi fundada oficialmente em 2008, e recebeu aportes da Fundação Bill e Melinda Gates e da Google que, somadas, chegaram a 3,5 milhões de dólares, permitindo que o canal de Youtube se transformasse em uma plataforma para o ensino (KHAN ACADEMY, 2020). Hoje em dia, além de ter uma plataforma própria, a Khan Academy não ensina mais apenas Matemática, ofertando cursos de história e de cinema (como o curso desenvolvido em uma parceria com a Pixar). Mas, mesmo assim, o Youtube ainda é utilizado pela iniciativa. A plataforma, mesmo tendo adotado diversos novos formatos de vídeo, que fazem uso de outras linguagens, quando se trata dos conteúdos de Matemática, ainda faz uso das técnicas de vídeo que deram início a tudo. Seja quando ele é o recurso principal, e será obrigatoriamente assistido pelo aluno, seja como no curso World of Mathematics, em que o aluno é apresentado aos problemas que deve resolver, e só assistirá aos vídeos com as explicações, caso deseje. Entretanto, apesar de este breve relato a respeito da história da Khan Academy demonstrar evidências do interesse dos alunos em aprender através do Youtube, um dos pontos que talvez seja o mais interessante, refere-se a algumas das características que se observam nas videoaulas elaboradas por Salman Khan. Em seu livro, Salman Khan (2012) compartilha que as aulas gravadas duravam, no máximo, 10 minutos. E, o que antes era uma restrição que o Youtube aplicava na época, acabou se mostrando uma vantagem quando ele teve acesso a um estudo de 1996 sobre a capacidade de manutenção da atenção dos alunos (MIDDENDORF; KALISH, 1996). Segundo a publicação, os alunos universitários não conseguiam se manter focados por mais que 10 ou 15 minutos. SUMÁR I O 195 Estudos mais recentes demonstram que o aluno tem dois momentos principais de fadiga, em que ele tem maiores chances de perder o foco. O primeiro é entre 10 e 13 minutos de vídeo. Neste momento, o aluno ainda pode ter a sua atenção recuperada de maneira mais fácil. No segundo momento, a partir dos 22 minutos, é bem mais difícil fazer com que o aluno continue a dar atenção ao vídeo (PI; HONG, 2015). Contudo não é incomum que os alunos vejam menos do que 10 minutos de um vídeo (BAUER; MALCHOW; MEINEL, 2019). Portanto, mesmo que o Youtube não tenha mais esta restrição em relação ao tempo, buscar manter a duração das videoaulas em, no máximo, 10 minutos parece uma boa decisão ainda hoje. Esses são alguns estudos, e a Khan Academy é apenas um exemplo dentre vários sobre como é importante compreender a existência de uma adaptação na transposição das aulas comumente realizadas em um modelo mais “tradicional” e de forma presencial, para aquelas que fazem uso de uma plataforma como o Youtube para alcançar os seus estudantes. Simplesmente gravar uma aula presencial, com duração de tempo que pode ultrapassar 40 minutos, não parece ser uma boa opção. É preciso que aqueles decididos a tirar proveito das vantagens apresentadas pela plataforma saibam levar em conta a experiência que o estudante terá ao acessar o vídeo. E a Khan Academy, na nossa opinião, continua sendo uma boa referência para quem se interesse por um exemplo que demonstre boas práticas na utilização do Youtube para a Educação Matemática. Mais do que isso. A Khan Academy pode ser um exemplo seminal sobre como a educação contemporânea vem se transformando, em parte, pela utilização das tecnologias digitais. Ao levarmos em conta os aspectos relacionados à experiência dos alunos, seja em relação à forma com que aprendem, seja em relação ao uso da tecnologia, podemos criar conteúdos e experiências de ensino-aprendizagem que foquem nas características de cada um. Isso auxilia a personalizar a SUMÁR I O 196 forma com que cada aluno constrói o conhecimento, além de permitir que ele tenha mais autonomia na hora de aprender. MATEMÁTICA ESCOLAR “FORA DA CAIXA” Considerando o momento que se faz presente e o futuro da Educação (em um cenário com e pós-pandemia), reflexões sobre o uso das plataformas digitais como recursos educacionais disponíveis gratuitamente para ensinar e aprender se fazem urgentes e necessárias. Isto porque a instituição escolar “deixou de ser o único lugar de legitimação de saber, pois existe uma multiplicidade de saberes que circulam por outros canais, difusos, descentralizados” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 126), como é o caso do Youtube. A sociedade está utilizando cada vez mais a interação social em um contexto midiático. Por isso, é necessário que a escola, como uma das instituições que promovem a interação entre pessoas, acompanhe esse desenvolvimento. As linguagens multimídia fazem parte do cotidiano de todos e repercutem no contexto das instituições escolares. Acreditamos que, diante de uma sociedade que valoriza e utiliza as mais diversas tecnologias, a educação e, mais especificamente, o ambiente escolar, não deveriam permanecer indiferentes ao uso destes recursos que podem contribuir para a qualificação dos processos de ensino e de aprendizagem. Ao contrário, a compreensão desse fenômeno deveria instigar ações que procurassem inserir, cada vez mais, o Youtube e outras tecnologias de informação e comunicação como ferramentas pedagógicas, principalmente, porque, o uso intencional e criterioso dessas ferramentas tende a tornar as aulas mais criativas e interessantes, facilitando o processo de ensino e auxiliando na compreensão de conteúdo. SUMÁR I O 197 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Í. et al. Tecnologias e educação: o uso do Youtube na sala de aula. Anais... Congresso Nacional de Educação. Campina Grande, n. 2., p. 1-12, 2016. AMANTE, L. Tecnologias digitais, escola e aprendizagem. Ensino em Re-Vista. v. 18, n. 2, p. 221-404, 2011. ARRUDA, E. P. Ensino e aprendizagem na sociedade do entretenimento: desafios para a formação docente. Educação (PUCRS Impresso). v. 36, p. 232-239, 2013. BAREFOOT, D.; SZABO, J. Manual de marketing em mídias sociais. São Paulo: Novatec Editora, 2016. BAUER, M.; MALCHOW, M.; MEINEL, C. Full Lecture Recording Watching Behavior, or Why Students Watch 90-Min Lectures in 5 Min. IMCL 2018: Mobile Technologies and Applications for the Internet of Things, p. 347-358, 2019. BURGESS, J.; GREEN, J. Youtube e a revolução digital: como o maior fenômeno da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. São Paulo: Aleph, 2009. CAMINADA, T. A.; SCHLINDWEIN, A. F.; JOHN, V. M. Entre o escárnio e o ódio: haters e trolls no Facebook do G1. Anais... ENPECOM. Curitiba: UFPR, 2016. CANDAU, V. M. Educação intercultural: entre afirmações e desafios. In: MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. (Orgs.) Currículos, disciplinas escolares e culturas. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. CORREA, A. M. S.; PEREIRA, H. P. O Youtube como ferramenta pedagógica em sala de aula: uma prática de letramento. Revista de Pesquisa Interdisciplinar. Cajazeiras, v. 1, Ed. Especial, p. 381–389, set./dez. 2016. HINE, C. Virtual Ethnography. London: Sage, 2000. JUNGES, D. L. V.; GATTI, A. Estudando por vídeos: o Youtube como ferramenta de aprendizagem. Informática na Educação, v. 22, p. 143-158, 2019. JUNGES, D. L. V.; ROSA, L. P. Canais do Youtube especializados na matemática escolar: o que eles têm em comum? Anais... V Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação, Curitiba (PR), v. 5, n.1, p. 625-636, 2020. SUMÁR I O 198 KAMERS, N. J. O Youtube como Ferramenta Pedagógica no Ensino de Física. (Mestrado em Educação). Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis: 2013. KHAN ACADEMY. Qual é a história da Khan Academy? Disponível em: <https://support.khanacademy.org/hc/pt-br/articles/202483180-Qual%C3%A9-a-hist%C3%B3ria-da-Khan-Academy>. Acesso em: 21 set. 2020. KHAN, S. Um mundo, uma escola. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012. KOZINETS, R. Netnografia: Realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso, 2014. MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. MIDDENDORF, J.; KALISH, A. The “change-up” in lectures. TRC Newsletter, v. 5, n. 2, p. 1-5. 1996. OLIVEIRA, J. A. Educação Histórica e Aprendizagem da “História Difícil” em Vídeos de Youtube. (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Paraná, Curitiba: 2016. PACHECO, J. Sala de aula invertida. Revista Educação, v. 205, mai. 2014. PECHANSKY, R. C. O Youtube como plataforma educacional: reflexões acerca do canal Me Salva. XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul. Anais. Porto Alegre, p. 1-13, mai. 2016. PI, Z.; HONG, J. Learning process and learning outcomes of video podcasts including the instructor and PPT slides: a Chinese case. Innovations in Educational and Teaching International, v. 53, n. 2, p. 135-144, 2015. REBS, R. R. Reflexão Epistemológica da Pesquisa Netnográfica. Revista de Comunicação e Epistemologia da Universidade Católica de Brasília. Brasília, n. 8, p. 74-102, 2011. RIBEIRO, E. et al. A importância e contribuição das mídias sociais no processo de ensino e aprendizagem no ensino fundamental II. Congresso Nacional de Educação, 3., 2016, Natal. Anais... Natal: [s.n.], p. 1-8, 2016. SAFKO, L.; BRAKE, D. K. A Bíblia da Mídia Social: Táticas, Ferramentas e Estratégias para construir e transformar negócios. São Paulo: Blucher, 2010. SANTOS, J. W. et al. A produção de vídeo aulas como recurso e complemento de ensino. 8º Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão. Anais... Mato Grosso do Sul, p. 1-6, 2014. SUMÁR I O 199 SANTOS, A. R. G.; GONÇALVES, P. G. F. Videoaulas na aprendizagem em matemática: um olhar para os canais do Youtube. Revista Tecnologias na Educação. v. 19, n. 9, p. 1-13, jul. 2017. SIBILIA, P. A escola no mundo hiperconectado: Redes em vez de muros? Matrizes. Ano 5, n. 2, p. 195-211, 2012. SILVA, M. P. O. Youtube, juventude e escola em conexão: a produção da aprendizagem ciborgue. (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte: 2016. TODOS PELA EDUCAÇÃO. Relatório Anual de Acompanhamento do Educação Já!. Disponível em: <https://www.todospelaeducacao.org.br/_ uploads/_posts/417.pdf?229296618%2F=&utm_source=Download-Relatorioanual>. Acesso em: 08 set. 2020. VIEIRA, K. P. Videoaulas no processo de ensino e aprendizagem de Matemática: possibilidades e entraves. Monografia (Graduação). Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, Campos dos Goytacazes: 2017. YOUTUBE EDU. Disponível em: <https://www.youtube.com/c/educacao/ featured>. Acesso em: 07 set. 2020. SUMÁR I O 200 Capítulo 11 11 ESTRATÉGIAS DE ENSINO EM TEMPOS DE VIRTUALIZAÇÃO Ieda Maria Giongo José Cláudio del Pino Marli Teresinha Quartieri Ieda Maria Giongo José Cláudio del Pino Marli Teresinha Quartieri ESTRATÉGIAS DE ENSINO EM TEMPOS DE VIRTUALIZAÇÃO DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.201-216 PANDEMIA E VIRTUALIZAÇÃO: OUTROS RUMOS PARA OS PROCESSOS DE ENSINO A professora prepara seu material para iniciar mais uma aula. Faz um check list: câmera, microfone, materiais disponibilizados (inclusive vídeos) no ambiente virtual, slides, internet funcionando, sala organizada. Em poucos minutos, iniciará mais uma aula. Para um momento e pensa: Será que, hoje, os alunos abrirão suas câmeras, interagindo? Poderei ver todos? E as aprendizagens? Os materiais que postei são adequados? E as avaliações? Conseguirei avaliar o que aprenderam? Provas? Trabalhos? Chats…. Essa cena, impensável há poucos meses, tornou-se recorrente em muitos lares. Em todos os níveis de ensino, as salas de aula, como as conhecíamos, mudaram seus espaços, passando a figurar, muitas vezes, em pequenos cômodos das residências dos professores e alunos. E os recursos tecnológicos passam a configurar-se como imprescindíveis para o “sucesso” da aula. Barbosa, Viegas e Batista (2020, p. 1) problematizam essa questão, enfatizando que “em um mundo em que a tecnologia é a ferramenta que tanto ansiamos e necessitamos para a solução de problemas, seja de ordem profissional, sentimental e/ou familiar, esta torna-se a única aliada” [para ministrar aulas]. Nesse sentido, pesquisadores advertem que, no panorama da cultura da interatividade, é imprescindível destacar a importância do elo entre pedagogia e informação. Nessa ótica, a sala de aula deveria estar sintonizada com essa emergência da interatividade, de acordo com a postura da nova dimensão da comunicação. Takahashi (2000, p. 3) já referenciava que “uma nova era em que a informação flui a velocidades e em quantidades há apenas poucos anos inimagináveis, assumindo valores sociais e econômicos fundamentais”, parece cada vez mais disseminada no SUMÁR I O 202 contexto atual. Assim, as expressões “sociedade da informação” e “sociedade do conhecimento” têm sido utilizadas para caracterizar, entre outros, o conjunto dessas relações, a inexorabilidade de suas cristalizações e a anunciação de um novo horizonte da humanidade. Nesse desenho, apregoam enunciações aludindo que as redes sociais são aliadas dos processos de ensinar e aprender, já que se configuram como aparatos inovadores, possibilitando novas estratégias aos professores. Segundo referem Silva e Cogo (2007), essas tecnologias estão transformando a maneira de ensinar e de aprender, oferecendo maior versatilidade, interatividade e flexibilidade de tempo e de espaço no processo educacional. Ao corroborar essas concepções, Balbino e Anacleto (2011) refletem que o ambiente das redes sociais na internet se caracteriza como um meio potencial para a extensão de práticas educativas. Nessa linha argumentativa, Werhmuller e Silveira (2012) afirmam que esse espaço virtual abre a oportunidade de alunos e professores interagirem entre si, trocando informações, experiências pessoais e profissionais, compartilhando conhecimentos de forma colaborativa, dinâmica. Essa sociedade em rede pode, de certa forma, favorecer o elo existente entre professor e aluno, pois, de acordo com os autores, essa associação moderna de afinidades e tecnologias permite uma liberdade e/ou uma configuração variável que dependem, quase exclusivamente, da vontade dos sujeitos em formação, extensão ou extinção. Rosa e Cecílio (2010) inferem que, nessa perspectiva, podem ser introduzidas novas formas de socializar informações e de se produzirem conhecimento e cultura no mundo contemporâneo por meio das tecnologias. Imersos em tais enunciações, poder-se-ia questionar outras, tais como as que problematizam o acesso dos estudantes a ferramentas que lhes possibilitem a interagir, local adequado para eles e seus professores desenvolverem suas tarefas. Entretanto, o que se propõe aqui é evidenciar possibilidades e limitações de, em um curto espaço de SUMÁR I O 203 tempo, modificar a metodologia de aula de uma disciplina presencial – vinculada a um Programa de Pós-Graduação em Ensino, consolidada e bem avaliada entre os estudantes – para o ensino virtualizado. (RE)PENSANDO A AULA EM TEMPOS DE VIRTUALIZAÇÃO Diante desse contexto, este capítulo pretende socializar uma experiência realizada na disciplina de Estratégias de Ensino I, que faz parte do currículo do Programa de Pós-Graduação em Ensino (Mestrado e Doutorado), de uma Instituição Comunitária do interior do Rio Grande do Sul. Obrigatória para mestrandos e doutorandos, com carga horária de trinta horas, seu intuito é discutir e analisar relações entre ensino e aprendizagem, problematizar o uso de estratégias e de recursos tecnológicos nos processos de ensino e de aprendizagem, implementar e avaliar o uso de diferentes estratégias de ensino e/ou recursos tecnológicos na prática pedagógica, investigar diferentes formas de integrar atividades no contexto de sala de aula. Aliados a isso, são proporcionados momentos constantes de reflexão sobre a prática pedagógica, focando-se a importância do uso de diferentes estratégias de ensino em espaços formais ou não formais. Anastasiou e Alves (2015) fazem uso do termo “estratégias de ensinagem” para ampliar as possibilidades de um trabalho em sala de aula com atividades diferenciadas; porém, elas não podem estar distanciadas da compreensão do que seja ensinar e aprender, das concepções do curso, do contexto e organização do currículo, entre outros aspectos. Ainda afirmam que é dentro desse universo de possibilidades que “[...] se constrói o trabalho docente e que o professor se vê frente a frente com a necessidade e o desafio de organizá-lo e operacionalizá-lo. É também nesse contexto relacional que se inserem as estratégias de ensinagem” (ANASTASIOU e ALVES, 2015, p. 68). SUMÁR I O 204 Portanto, de acordo com as autoras, nos processos de ensinar e aprender, compete ao professor planejar as atividades, tendo o cuidado de orientar e auxiliar os alunos, levando-os à construção de seus conhecimentos. Assim, é produtivo o docente estudar, selecionar, organizar e propor as melhores ferramentas facilitadoras para que os estudantes se apropriem do conhecimento” (ANASTASIOU, ALVES, 2015, p. 76). Nessa ótica, é fundamental o professor conhecer seus discentes para utilizar a estratégia mais adequada conforme o contexto em que estão inseridos. Além disso, é necessário conhecer a lógica do conteúdo para identificar a melhor estratégia a ser utilizada. Por exemplo, “um conteúdo predominantemente factual exigirá uma estratégia diferente de um procedimental” (ANASTASIOU, ALVES, 2015, p. 77). Diante desse contexto, na disciplina de Estratégias de Ensino I, o propósito é que os estudantes (que já são docentes de diversos níveis de escolaridade – desde a Educação Infantil até o Ensino Superior) vivenciem diversas estratégias de ensino para que possam utilizá-las em sua prática pedagógica. Desse modo, a metodologia da referida disciplina consta de levantamento de ideias dos alunos sobre estratégias de ensino, recursos tecnológicos no ensino, planejamento de aulas, concepção sobre uma “boa aula”, experiências em relação ao uso de diferentes estratégias tanto na vivência do discente como na de professor. Além disso, são proporcionados diversos momentos de leitura, discussão e reflexão de textos referentes a distintas estratégias de ensino, relacionando-as aos processos de ensino e de aprendizagem; estudos de artigos acadêmicos com relatos de experiências “bemsucedidas” com o uso de diversas estratégias de ensino; aplicação de diferentes estratégias na turma por grupo de alunos; desenvolvimento de estratégias diferenciadas na prática pedagógica dos discentes e relato, por escrito, dos resultados. Salienta-se que a maioria das atividades da disciplina são efetivadas em grupos, pois acredita-se que elas possibilitam ações colaborativas que se ampliam e se desenvolvem SUMÁR I O 205 de forma cooperativa, proporcionando o compartilhamento de ideias; o redimensionamento dos saberes já existentes e o desenvolvimento de novos e o comprometimento com os envolvidos. Importa também destacar que, na sua forma presencial, a disciplina em questão previa que as estratégias problematizadas fossem efetivamente disponibilizadas em turmas nas quais os docentes atuassem. No decorrer da disciplina, uma das tarefas é a divisão da turma de alunos em pequenos grupos, em que cada um destes fica responsável por aplicar uma estratégia aos demais colegas. Estas são escolhidas após a leitura de artigos, sendo diversas delas citadas, e cada aluno escolhe duas que não conhece ou esteja disposto a saber mais detalhes. As mais votadas são desenvolvidas pelos pequenos grupos em sala de aula. A ideia é que o estudante seja agente participante e, ao final da aplicação, ocorre uma discussão em relação à viabilidade, produtividade e dificuldades da estratégia. Mas, em se tratando de aulas virtualizadas relativas às discussões e atividades em pequenos grupos, qual a dinâmica mais apropriada para que continuem produtivas? E como tornar viável a aplicação de estratégias pelos grupos? Quais destas são viáveis em um ensino virtualizado? Nas aulas virtualizadas, em todos os níveis de ensino, o aluno é acompanhado constantemente pelo professor. Na disciplina em questão, três docentes a ministram. Nessa perspectiva, ocorrem as interações virtuais síncronas em que os participantes estão conectados em tempo real de forma simultânea, e o acesso é possibilitado pelas tecnologias digitais (bate-papos virtuais, webconferências, videoconferências, lives). De acordo com os autores anteriormente citados, o ensino remoto não envolve simplesmente a transposição de “modelos educativos presenciais para espaços virtuais, pois requer adaptações de planejamentos didáticos, estratégias, metodologias, recursos educacionais, no sentido de apoiar os estudantes na construção de percursos ativos de aprendizagem” (OLIVEIRA et al., 2020, p. 12). SUMÁR I O 206 A pandemia ocasionou a reformulação da disciplina para essa nova forma de ensino. A Instituição usa o Google Meet (https://meet. google.com) para as aulas virtualizadas, plataforma com uma interface rápida que promove encontros virtuais e possibilita que, mesmo geograficamente distantes, os participantes mantenham interações on-line, compartilhando telas do computador, áudios, vídeos, textos, imagens. Além disso, permite a criação de salas para videochamadas e a ferramenta chat para bate-papo. Diante desse contexto, foi necessário pensar e (re)planejar ações, fazendo surgir outras formas de ensinar. Assim, na disciplina de Estratégias de Ensino I, em alguns momentos, criaram-se diversas salas no Google Meet para os trabalhos e discussões em pequenos grupos. Essa possibilidade auxiliou nas atividades em grupo, mas fica a questão: como viabilizar as diferentes estratégias de ensino? Na primeira aula da disciplina de forma virtualizada, após a leitura dos textos, contendo diferentes estratégias de ensino, solicitou-se que os alunos citassem as discutidas nos referidos textos. Como não havia um quadro (como em aula de formato presencial), pediu-se que um aluno compartilhasse a tela do computador e fosse escrevendo em um arquivo no word as estratégias que iam sendo citadas pelos colegas. Em seguida, cada estudante escolheu duas de que desejava obter um conhecimento maior. A turma continha vinte alunos; assim foram criados seis grupos (dois com quatro componentes; quatro, com três) e escolhidas as seis estratégias mais citadas: tempestade cerebral, grupo de verbalização e observação, seis chapéus do pensamento, painel integrado ou grupos com integração horizontal e vertical, portfólio, Phillips 66. Cumpre informar que as estratégias foram sorteadas entre os grupos. No seguimento, lançou-se o desafio para a turma: cada grupo deveria aplicar a estratégia em uma aula subsequente da disciplina, podendo escolher o tema. Além disso, cada equipe disporia de vinte a trinta minutos para desenvolver a estratégia de acordo com SUMÁR I O 207 os autores estudados. Se necessário, deveriam adequá-la de acordo com a virtualização e o número de alunos. Então, foi disponibilizado um tempo para os grupos conversarem. Destaca-se que o professor da disciplina percorreu as seis salas com o intuito de orientar os estudantes quanto à estratégia. A princípio, alguns grupos, perplexos, questionaram como seria possível desenvolvê-la de forma virtualizada; outros comentaram que não havia como aplicá-la. Entretanto, paulatinamente, foram pensando em conjunto e expondo ideias de adequações e possibilidades de efetivar a proposta. Assim, como para os professores da disciplina, os alunos também se sentiram desafiados a encontrar uma forma de aplicar as estratégias, que foram criadas para o ensino presencial, na forma de ensino virtualizado. Este fazer diferente nos deixa inseguros, mas, ao mesmo tempo, provoca-nos (OLIVEIRA et al., 2020). Destaca-se que, no dia do desenvolvimento das estratégias, todos os grupos estavam ansiosos por aplicar as tarefas planejadas e participar ativamente das atividades dos demais grupos. A seguir, relatam-se as estratégias exploradas, bem como a síntese das discussões referente à viabilidade e adequabilidade ao ensino remoto. As seis estratégias selecionadas foram: tempestade cerebral, painel integrado ou grupos com integração horizontal e vertical, portfólio, seis chapéus do pensamento, grupo de verbalização e de observação (GV/GO), Phillips 66. A tempestade cerebral, de acordo com Anastasiou e Alves (2015, p. 89), “é uma possibilidade de estimular a geração de novas ideias de forma espontânea e natural, deixando funcionar a imaginação. Não há certo ou errado. Tudo o que for levantado será considerado, solicitando-se, se necessário, uma explicação posterior do estudante”. A dinâmica dessa estratégia é que os estudantes, ao serem questionados sobre um tema ou problema, expressem, em palavras ou frases, o que pensam sobre a questão/situação. O professor deve evitar uma atitude crítica; limita-se a registrar todas as ideias; fazer uma organização final das ideias SUMÁR I O 208 apresentadas para identificar o que os alunos já possuem sobre determinado tema. Esta pode ser realizada no coletivo, com participações individuais ou em pequenos grupos, e, posteriormente, a socialização. O grupo, ao aplicar a estratégia da Tempestade Cerebral, solicitou que os colegas pegassem uma folha de ofício, dividindo-a em oito partes iguais, e, em cada uma, escrevessem sobre o tema dado. Finda essa etapa, reuniram-se em pequenos grupos em que discutiram e sintetizaram as ideias e, no final, socializaram no coletivo, e os componentes do grupo proponente fizeram o fechamento da atividade. Para a discussão, as professoras criaram salas paralelas, e os grupos foram os mesmos da atividade de aplicação das estratégias. Terminada a aplicação, ocorreu a discussão sobre a viabilidade da estratégia, pontos produtivos e dificuldades. A turma concluiu que essa estratégia pode ser desenvolvida de forma virtualizada, inclusive em pequenos grupos conforme o proposto. Ademais, destacaram que coletivamente também seria possível, cabendo ao docente, em um texto na forma .doc, expor as ideias dos alunos. A estratégia “painel integrado ou grupos com integração horizontal e vertical” é realizada em três momentos. No primeiro, dividese a turma em grupos de, no máximo seis pessoas, sendo indicada a tarefa a ser realizada. A resolução da atividade deve ser anotada por todos os componentes do grupo. Cada integrante recebe um número – de um a seis – (ou até o número de alunos no grupo). No segundo momento, reúnem-se em pequenos grupos todos os números um, os números dois, e assim sucessivamente. Nessa etapa, acontece a troca de informações, pois cada componente relata o que ocorreu no primeiro grupo e, ao final, é feita uma síntese, a ser anotada por todos os participantes. O terceiro momento é o do professor, que, no decorrer do segundo momento, participa dos grupos e anota as dificuldades e os avanços sobre o tema proposto. Nessa fase, ele cita as dificuldades que observou, expõe conclusões, debate pontos que ficaram duvidosos. De SUMÁR I O 209 acordo com Masetto (2003, p. 115), essa estratégia é uma “forma de naturalmente se quebrarem “as panelas” existentes nas turmas, levando aleatoriamente os alunos a se encontrarem com os colegas junto aos quais até esse instante não haviam trabalhado e que nem conheciam”. O grupo que aplicou essa estratégia dividiu a turma de alunos em quatro grupos, sendo que cada um foi para uma sala diferente, criada no Google Meet, e a tarefa foi dada por um dos componentes da equipe proponente. Após um tempo determinado, os estudantes deveriam se dirigir a outra sala do Google Meet para o segundo momento da estratégia. Nesse momento, houve muita confusão, pois, no início, o grupo proponente não deixou explícito para qual sala do Google Meet cada estudante deveria ir, além de não explicar que, no primeiro momento, todos deveriam anotar as conclusões (no primeiro grupo). Assim, as discussões do segundo momento não aconteceram conforme proposto pela estratégia. Ao fazerem a análise dessa estratégia, os alunos destacaram a importância das orientações iniciais, fato também destacado por Masetto (2003) quando salienta que, para o bom funcionamento de uma estratégia, é importante que o professor organize o ambiente e explique os passos antes de iniciar sua aplicação. Os participantes destacaram que, se fosse em ambiente presencial de sala de aula, a confusão do segundo momento teria sido logo resolvida, pois o docente informaria ao aluno qual o seu grupo, caso não soubesse. Ao final, o grupo conclui que essa estratégia, em ambiente virtualizado, pode ser usada, mas deve ser melhor orientada no início. Entretanto, explicitaram que é difícil para um único professor estar com todos os grupos no segundo momento, pois as salas dos Google Meet são em locais separados. Como três professores atuavam na disciplina, foi possível um acompanhamento mais sistematizado nos pequenos grupos. No entanto, os estudantes acreditam que, em sala presencial, a citada estratégia é mais produtiva e de simples execução. SUMÁR I O 210 O portfólio é uma estratégia que “possibilita o acompanhamento de construção do conhecimento do docente e do discente durante o próprio processo, e não apenas ao final deste” (ANASTASIOU E ALVES, 2015, p. 88), pois é a construção de registro, análise, seleção e reflexão dos avanços e das dificuldades em relação ao objeto de estudo, assim como das formas de superação das dificuldades. De acordo com as autoras, a preparação do portfólio pode seguir estes passos: combinar as formas de registro (manual, digital, caderno, dentre outras); escrever apenas em um lado da página para que o professor escreva no outro; nomear todos os relatos; registros podem ser em forma de textos individuais ou coletivos, acrescidos de reflexão; inserir avaliação do desempenho pessoal do professor. Este deve ler as produções e fazer apontamentos, estabelecendo diálogo com os alunos. O grupo que aplicou o portfólio utilizou como tema os estudos efetivados na primeira aula da disciplina sobre o que são estratégias de ensino e recursos didáticos, usando o aplicativo Padlet22, uma ferramenta que possibilita a criação de quadros virtuais para organizar estudos ou rotinas de trabalho. Tais quadros podem ser compartilhados com outros usuários, o que facilita a visualização das tarefas em equipes de trabalho. A turma foi dividida em pequenos grupos, e os componentes, em conjunto, compartilharam suas aprendizagens e dificuldades no aplicativo, o que possibilitou um portfólio virtual colaborativo. Essa estratégia foi considerada viável para o uso em aulas virtualizadas, não ocorrendo dificuldades no decorrer da aplicação. Os alunos destacaram que o uso do aplicativo Padlet (que a maioria deles não conhecia) foi o diferencial da proposta e que este poderia ser mais usado pelo professor. A estratégia denominada “seis chapéus do pensamento” tem como objetivo analisar tomadas de decisão, considerando diferentes pontos de vista, ou seja, seis formas de pensar sobre um determinado assunto. Assim, são usados seis chapéus de cores diferentes e, de 22 SUMÁR I O O site pode ser acessado em https://pt฀br.padlet.com/ 211 acordo com cada momento/situação, é utilizado o mais apropriado, pois cada cor representa um estilo diferente de pensar. Dessa forma, quando é usada determinada cor do chapéu de pensamento, muda-se também a forma habitual de pensar para o que a cor do chapéu representa. O grupo proponente, que ficou com a cor azul, dividiu a turma em cinco grupos, designando uma cor para cada um. Seus componentes solicitaram que cada colega viesse para a aula vestindo uma camisa ou algum objeto que identificasse a cor que lhe foi determinada, bem como enviou o estilo de pensamento que deveria ser adotado no decorrer da análise do problema a ser proposto. A primeira tarefa do grupo proponente foi solicitar que todos os alunos abrissem a câmara para que as pessoas identificassem os componentes das respectivas cores (branco, preto, azul, vermelho, amarelo e verde). Então, um dos proponentes leu a situação problema a ser analisada e resolvida e solicitou que os colegas que vestiam ou carregavam algo de cor branca fizessem a sua análise conforme descrição da cor (fatos concretos). Em seguida, o grupo com a cor verde analisou a situação de acordo com o estilo proposto (apresentação de ideias criativas); após os de cor amarela (enumerar vantagens), os de cor preta (enumerar desvantagens), os de cor vermelha (uso da emoção/sentimentos). E, no final, o grupo proponente, que tinha a cor azul, fez um fechamento da situação. A maioria dos alunos não conhecia a estratégia, inclusive os componentes do grupo proponente. Os alunos observaram a dificuldade de alguns colegas em adotar o estilo de pensamento determinado pela cor. Nesses momentos, o grupo que estava no papel de professor relembrava que era necessário se concentrar no estilo definido pela cor. Todos consideraram a estratégia viável para as aulas virtualizadas. Como dificuldades, apontaram-se algumas situações, como a não abertura da câmara, podendo prejudicar em parte o desenvolvimento dessa estratégia. SUMÁR I O 212 A estratégia grupo de verbalização e observação (GV/GO) possibilita “o desenvolvimento de várias habilidades, tais como: verbalizar, ouvir, observar, dialogar, trabalhar em grupo” (MASETTO, 2003, p. 115). Nessa estratégia, o professor divide a turma em dois grupos de alunos, sendo um de verbalização (GV) de um tema/problema, e o outro de observação (GO). Ato contínuo, organiza a sala em dois círculos, um interno, em que fica o GV; outro externo, o GO. Então, aquele verbaliza, expõe, discute um tema, enquanto este observa, registra conforme a tarefa que o professor atribuiu a esse grupo. Em seguida, o GO apresenta as considerações de acordo com a tarefa proposta. Depois, podem-se inverter os papéis dos dois grupos. Ao final, o professor faz o fechamento, discutindo os principais pontos do tema em estudo. A preocupação maior desse grupo era o planejamento, em como aplicar essa estratégia, uma vez que, no ambiente do Google Meet, não seria possível organizar os dois círculos. Assim, aplicou-a, usando como tema central uma discussão acerca do retorno presencial às aulas, por meio de uma notícia veiculada em site da Web. Os colegas foram divididos em duas salas e, nelas, em dois outros grupos (GV e GO). Ao final, as quatro equipes se reuniram novamente em uma única sala, e os proponentes procederam às discussões finais. Mesmo com a constante troca de ambientes, os estudantes alegaram que tal estratégia pode ser muito produtiva em todos os níveis de ensino desde que o tema escolhido esteja de acordo com os interesses e a faixa etária dos alunos. A estratégia Phillips 66, conforme Anastasiou e Alves (2015), é uma atividade em grupos em que são realizadas a análise e a discussão de um tema/problema. Ela consiste em dividir a turma em seis grupos, com seis membros, que, durante seis minutos, discutem um tema/ problema, dispondo de seis minutos para apresentar as conclusões. Essa estratégia pode ser usada tanto “para momentos de mobilização quanto para a elaboração de sínteses. Permite feedback ao professor SUMÁR I O 213 a respeito de dúvidas dos estudantes sobre um assunto estudado ou em discussão” (ANASTASIOU; ALVES, 2015, p. 94). O grupo proponente dessa estratégia fez uso de uma entrevista acerca dos problemas econômicos gerados pela pandemia em função do distanciamento social e a impossibilidade de determinadas áreas econômicas seguirem operando. Ela proporcionou ampla discussão, inicialmente em pequenos grupos e, por fim, em grande grupo. No entanto, a avaliação final evidenciou que os seis minutos não foram respeitados por todos, razão por que o debate se estendeu mais do que o previsto. CONCLUINDO A oferta da disciplina de modo virtualizado permitiu que fossem elencadas algumas possibilidades e limitações. Com relação às primeiras, tanto no ensino presencial como na forma virtualizada, as estratégias têm suas potencialidades e desafios. Há que se atentar para a importância de o professor conhecer os passos da estratégia antes de usá-la, bem como ter definido os objetivos que pretende atingir e o contexto em que será desenvolvida. Além disso, é fundamental que ele selecione e combine estratégias, identificando as principais dificuldades nos percursos de aprendizagens dos discentes. Assim, terá chances de adaptá-la à sua prática pedagógica de forma que seus resultados sejam produtivos à aprendizagem do aluno. Entende-se que os resultados adquiridos superaram as expectativas, tendo em vista que os estudantes – eles também professores – esperavam, com o curso da disciplina, obter informações/ideias acerca de estratégias de ensino. Por esse motivo, reitera-se que este estudo é parcial e datado, não sendo possível SUMÁR I O 214 emitir generalizações. Não se pode afirmar que, caso fosse aplicada a estudantes dos Ensinos Fundamental e Médio, por exemplo, produziria os mesmos resultados. Entretanto, configura-se em mais um elemento a ser utilizado na virtualização, pois, em meio a tantas incertezas, desafios, alterações, mudanças, estamos, segundo considera Wandscheer (2020, p. 245), em processo de reinvenção “diariamente, viramos youtubers, editores de vídeos, com os celulares que temos, com a qualidade de internet que disponibilizamos”. As limitações foram evidenciadas quando os estudantes não conseguiam acompanhar adequadamente as aulas, em função de problemas com conexão. Em determinados momentos, alguns não tinham acesso à sala virtual, relatando que, em seus locais de moradia, o sinal era restrito e, em algumas horas do dia, inexistente. Outros, frequentemente, não faziam uso do vídeo, restringindo-se ao microfone, pois, desse modo, poderiam interagir com os colegas e professores. Houve momentos em que compartilhar documentos na tela também se mostrou difícil e demandou tempo, já que o sinal de internet era considerado “fraco” pelos estudantes. Em síntese, diante deste cenário de pandemia em que estamos vivendo, seguimos (re)pensando os processos de ensino, pois, de acordo com Valle e Marcom (2020, p. 151), Neste momento histórico os professores têm se constituído artesãos da sua prática, descobrindo caminhos, possibilidades, inventando, adaptando e experimentando recursos e diferentes formas de intervenção num processo de tentativa x erro x acerto. Afinal, estamos vivenciando um processo permeado por incertezas, fragilidades, desafios, para o qual não estávamos preparados para exercer a docência, onde certezas, crenças, concepções e práticas se tornaram instáveis, voláteis, colocadas em evidência e muitas vezes em questionamento pela sociedade, mas que merecem ser revisitadas, refletidas e ressignificadas diante do tão propagado “novo normal”. SUMÁR I O 215 REFERÊNCIAS ANASTASIOU, L. G. C.; ALVES, L. P. (Org.). Ensinar, aprender, apreender e processos de ensinagem. Joinville: Univille. p. 11-38, 2015. BALBINO, F. C.; ANACLETO, J. C. Redes Sociais Online Orientadas à Difusão de Inovações como Suporte à Extensão de Práticas Educativas. Anais... do XXII SBIE – XVII WIE, 2011. MASETTO, M. T. Competência pedagógica do professor universitário. São Paulo, SP: Summus, 2003. OLIVEIRA, M. S. L. et al. Diálogos com docentes sobre ensino remoto e planejamento didático. Recife: EDUFRPE, 2020. ROSA, R.; CECÍLIO, S. Educação e o uso pedagógico das tecnologias da informação e comunicação: a produção do conhecimento em análise. Educação em foco, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 107-126, 2010. SILVA, A. P. S. S.; COGO, A. L. P. Aprendizagem de punção venosa com objeto educacional digital no curso de graduação em enfermagem. Revista Gaúcha de Enfermagem. Porto Alegre, v. 28, n. 2, p.185-192, 2007. TAKAHASHI, T. (Org.). Sociedade da Informação no Brasil – Livro Verde. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000. VALLE, P. D., MARCOM, J. L. R. Desafios da prática pedagógica e as competências para ensinar em tempos de pandemia. In: PALÚ, J., SCHÜTZ, J. A., MAYER, L. (Org.) Desafios da educação em tempos de pandemia. Cruz Alta: Ilustração, p. 139-153, 2020. WANDSCHEER, K. T. Ensino Remoto: um caminhar de possibilidades educativas. In: PALÚ, J., SCHÜTZ, J. A., MAYER, L. (Org.) Desafios da educação em tempos de pandemia. Cruz Alta: Ilustração, p. 235-246, 2020. SUMÁR I O 216 Capítulo 12 12 EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, CURRÍCULO E CURSO TÉCNICO AGRÍCOLA Neila de Toledo e Toledo Neila de Toledo e Toledo EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, CURRÍCULO E CURSO TÉCNICO AGRÍCOLA DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.217-235 INTRODUÇÃO Este capítulo apresenta os resultados de uma pesquisa desenvolvida com o propósito de analisar os efeitos do discurso da tecnociência presentes na Educação Matemática praticada na disciplina de Matemática e na Educação Matemática gestada nas disciplinas técnicas do curso Técnico em Agropecuária do IFRSSertão23, na década de 198024 e na atualidade (no período de 2008 até 2015). Para isso, o material de pesquisa foi produzido a partir de entrevistas25 com egressos desses dois momentos, de documentos institucionais e de materiais escolares. As bases teóricas que, neste estudo, sustentam o exercício analítico empreendido sobre o material de pesquisa estão construídas a partir, principalmente, de noções advindas das ideias de Ludwig Wittgenstein, que correspondem ao que é conhecido como período tardio de sua obra. Nas últimas décadas, o capitalismo e a ciência, por meio da nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia digital etc. interferem em e acarretam transformações nos modos de conceber a vida e de fazer ciência (BOCASANTA; KNIJNIK, 2016). Este novo entendimento de ciência que emergiu junto com a modernidade, nomeada por Latour (2011) como tecnociência, provocou mudanças na prática científica, SUMÁR I O 23 O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Campus Sertão (IFRS-Sertão) originou-se da Escola Agrotécnica Federal de Sertão (EAFS), em decorrência do plano de reconfiguração da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica (RFEPT), desencadeado juntamente com a política de sua expansão, na criação dos Institutos Federais no Brasil. A instituição localiza-se no munícipio de Sertão RS (TOLEDO, 2017). 24 A escolha por esse recorte temporal e não outro se deu em função de ter sido os anos 80 o marco principal da modernização do campo brasileiro. Já a opção pelo momento atual, a partir dos anos de 2000, porque foi nesse momento que ocorreu a significativa expansão dessa modernização (FILHO, 2014). 25 Este estudo tem o parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Unisinos, e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, deliberado pelo Comitê. Para preservar o anonimato dos participantes da pesquisa, escolhi identificá-los ao longo da pesquisa como Carlos e Luis, quando se trata do período da década de 1980, e como Jean, Gabriel e Maria, quando analiso o que chamo de momento atual (de 2008 até 2015). 218 de modo que o conhecimento científico deixou de ser entendido como um fim e um bem em si mesmo para se transformar em um meio para outras finalidades (econômicas, políticas e sociais). A tecnociência contemporânea representa o entrelaçamento da produção de conhecimento científico, das técnicas e do capitalismo no interior da racionalidade neoliberal vigente (TOLEDO et al., 2018). Na atualidade, estudos (BOCASANTA; KNIJNIK, 2016) mostram o lugar privilegiado que a educação escolarizada e não escolarizada ocupa na busca por tecnocientifizar (todos) os indivíduos e a sociedade, ou seja, a tecnociência em nossos tempos é posicionada no centro do processo educativo como um meio de garantia do progresso socioeconômico do indivíduo e da nação. Cabe, então, indagar: como a formação do técnico agrícola do IFRS-Sertão é atingida por essas configurações? Em particular, na área da Educação Matemática, como isso se realiza? Conforme mostra o trabalho de Valero (2013a), na contemporaneidade, os discursos da Educação Matemática, por meio da matemática escolar, fabricam um “sujeito racional, objetivo, universal” comprometido em tornar-se um “cidadão cosmopolita moderno” (VALERO, 2013b, p. 9, tradução minha). Assim, analiso os efeitos produzidos pelo discurso da Educação Matemática na produção das subjetividades dos sujeitos escolares, bem como os modos como esse discurso agiu sobre os estudantes, conduzindo as suas condutas e fazendo-os conduzir a si mesmos (autogovernar-se), ou seja, governando a todos e a cada um, subjetivando-os de acordo com a racionalidade de seu tempo. Nessa linha de entendimento, uma das verdades postas em movimento na área da Educação Matemática é a de “que a matemática é poderosa e a Educação Matemática empodera” (KNIJNIK; VALERO; JØRGENSEN, 2014, p. 2, tradução minha). Na analítica realizada por alguns pesquisadores (VALERO; KNIJNIK, 2015; KNIJNIK; VALERO; JØRGENSEN, 2014), fazer uso dessas discussões na área da SUMÁR I O 219 Educação Matemática possibilita expandir o entendimento de como a Educação Matemática “fabrica a criança desejada nas sociedades contemporâneas” (VALERO; KNIJNIK, 2015, p. 33). Em outras palavras, trata-se de considerar “[...] um discurso produzido em diferentes esferas da vida social, por meio de políticas da educação pública, programas escolares, livros didáticos, de pesquisa, a prática de sala de aula, exames e assim por diante” (KNIJNIK; VALERO; JØRGENSEN, 2014, p. 3, tradução minha). Essas áreas não se apresentam isoladas; pelo contrário, interagem umas com as outras na produção de verdades que moldam e compõem o discurso da Educação Matemática (KNIJNIK; VALERO; JØRGENSEN, 2014). A seguir, discorro sobre o processo de produção do material de pesquisa e o referencial teórico-metodológico. CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO Para fins de análise, no presente estudo, considerei como material de pesquisa entrevistas (realizadas no período de maio de 2015 a dezembro de 2016) com três recém-formados e dois ex-alunos que frequentaram o curso nos anos 80, documentos institucionais e materiais escolares (cadernos e avaliações da disciplina de Matemática) desses alunos. A estratégia analítica posta em ação para operar com esse material se orientou pela análise do discurso em uma perspectiva foucaultiana. Seguindo as formulações de Foucault, considero a noção de discurso “como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2013, p. 60), e não como um “[...] puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras” (FOUCAULT, 2013, p. 59). Para o filósofo, discurso é “[...] um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva” ou um SUMÁR I O 220 “número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência” (FOUCAULT, 2013, p. 143). No decorrer das entrevistas, escolhi, inspirada em Souza (2015, p. 48), formular uma questão (chamada pelo autor de “motivadora”) para dar início às entrevistas, seguida de outras perguntas cujas respostas poderiam contribuir para a investigação. A questão “motivadora” foi: “relate sobre a sua formação no curso Técnico em Agropecuária – IFRS-Sertão: que lembranças o curso traz à tona?”. A partir dela, os participantes narraram sua trajetória profissional como técnicos agrícolas e detalharam sua formação no IFRS, comentando sobre as aulas das disciplinas da formação técnica e da formação básica. Cada uma das entrevistas foi gravada após autorização para tal e todas as entrevistas foram transcritas na íntegra. Além disso, cada uma das entrevistas teve duração aproximada de 200 minutos. A respeito da escolha dos recém-formados técnicos agrícolas do Campus Sertão, destaco que os três foram indicados por um professor da instituição, da área de formação técnica, que os conhecia por terem sido alunos que se destacavam na participação, muitas vezes voluntária, em projetos de pesquisa e extensão e em monitorias das disciplinas. Os egressos da década de 1980 foram selecionados a partir da indicação de uma professora do Campus que estudou na época na instituição. Decidi entrevistar só as pessoas que residiam no mesmo município do Rio Grande do Sul, pois ficaria mais acessível o deslocamento para as entrevistas. Logo após as primeiras análises das transcrições, organizei os dados em uma tabela que possibilitou conhecer de forma mais detalhada as informações contidas nas entrevistas, o que foi me oportunizando fazer cruzamentos e perceber recorrências discursivas entre esses dados. Em seguida, resolvi voltar a entrar em contato com os entrevistados com a finalidade de esclarecer melhor alguns aspectos e fazer “novas” perguntas. Alguns sujeitos da pesquisa entregaram a SUMÁR I O 221 mim, no primeiro contato que fiz com eles, em agosto de 2015, alguns cadernos, provas e trabalhos de várias disciplinas cursadas durante o Ensino Técnico Agrícola no IFRS-Sertão. Na segunda rodada de entrevistas que realizei com os participantes do estudo, utilizei esse material escolar na tentativa de fazê-los relembrar das aulas, de suas vivências escolares etc. Além disso, para essas “novas” entrevistas, usei a seguinte estratégia: apresentei a entrevista transcrita ao entrevistado e solicitei que lesse e completasse (ou suprimisse) alguma ideia. A partir disso, novas questões eram feitas por mim. Na próxima sessão, mostro alguns resultados e discussões deste estudo. ALGUNS RESULTADOS E DISCUSSÕES Na análise do material de pesquisa que a seguir apresento, examino os efeitos do discurso da tecnociência presentes na Educação Matemática praticada na disciplina de Matemática e da Educação Matemática gestada nas disciplinas técnicas do curso Técnico em Agropecuária do IFRS-Sertão. Levando em conta essa analítica, a questão a ser respondida refere-se a como “[...] a maquinaria escolar está instituindo novos processos de subjetivação e fabricando novos sujeitos” (VEIGA-NETO, 2008, p. 55), em particular, com relação à Educação Matemática presente no espaço e tempos estudados nesta pesquisa. Trata-se de pesquisar as mudanças que estão acontecendo “[...] nas máquinas, artefatos e dispositivos que, ao mesmo tempo que transformam a si mesmos, transformam (diretamente) os sujeitos que tomam para si e (indiretamente) a sociedade” (VEIGA-NETO, 2008, p. 55). Veiga-Neto (2008, p. 5) enfatiza que é por meio da educação que os indivíduos na contemporaneidade são “[...] introduzidos em um grupo social e moldados pelas formas-de-vida ali partilhadas, de modo a imergir nas condições materiais e nos jogos de linguagem que são singulares e próprios do grupo que os recebe”. SUMÁR I O 222 Um primeiro resultado produzido pelo exercício analítico que realizei com os documentos – Projeto Pedagógico do Curso (IFRS, 2011) e Plano Pedagógico (BRASIL, 1980) – e, em especial, os documentos relativos à disciplina de Matemática, constatei que tanto no material atual como no que estava em vigor nos anos de 1980, a lista de conteúdos da disciplina Matemática coincidia. No documento dos anos de 1980, não se especificam detalhes, como objetivo(s) da disciplina ou referências bibliográficas, ao contrário do documento atual, que apresenta essas especificações. Os trechos retirados dos cadernos de Matemática do segundo ano do curso – do recém-formado e do egresso de 1983 – indicam a presença do formalismo nas definições de ciclo trigonométrico e de circunferência e suas medidas, bem como na explicitação do conceito de cilindro. Considerando os dois tempos analisados no trabalho, uma mesma ordenação no processo de ensino se faz presente em cada conteúdo abordado: primeiro, o conceito é enunciado; a seguir, há um ou mais exemplos e, em seguida, listas de exercícios, pautadas por questões, na maioria das vezes, semelhantes ou iguais aos exemplos. Assim como apontado por Giongo (2008), também em minha análise documental percebi o estabelecimento de uma ordem, uma hierarquia e uma sequência para a Matemática escolar, que regula o modo de pensar dos futuros técnicos agrícolas. Isso me fez pensar que “operações de seleção e hierarquização foram postas em ação” (GIONGO, 2008, p. 141) no curso, em ambos os momentos estudados, as quais acabaram instituindo uma determinada maneira de ministrar os conteúdos da disciplina Matemática. Nos dois períodos estudados neste estudo, identifiquei uma quantidade significativa de exercícios após cada conteúdo apresentado. Esses exercícios eram semelhantes aos exemplos trabalhados pela professora e, por isso, prezavam por rigor, ordem, abstração e formalismo. Quando me refiro a exercícios semelhantes, SUMÁR I O 223 digo que eles tinham um enunciado similar, ou o enunciado idêntico ao dos exemplos, somente com alteração dos valores numéricos. As operações matemáticas expressas no material escolar analisado foram efetuadas com o auxílio de “algoritmos escritos, que se sustentam por uma racionalidade específica, que exige o cumprimento de regras” (WANDERER; KNIJNIK, 2008, p. 561). Essa procura incessante pela ordem e por um saber rigoroso, preciso, exato e absoluto fez com que a matemática, desde o século XIX, fosse vista como “um instrumento essencial e poderoso no mundo moderno”, o que a tornou um meio de validação em todas as áreas do conhecimento (D’AMBROSIO, 2011, p. 75). A repetição exigida pelas listas de exercícios da matemática conduz ao domínio dessa gramática: o uso, ainda que, em certo sentido, livre, “é regido por regras que distinguem o uso correto do incorreto das palavras” (CONDÉ, 2004, p. 89). A seguir, apresento um conjunto de excertos que me possibilitaram perceber como se dá o processo de aprender e ensinar na disciplina de Matemática. Esse material também permite identificar as enunciações recorrentes que circulavam no discurso da Educação Matemática da disciplina de Matemática que indicam os jogos de linguagem26 praticados ali. Com relação à Educação Matemática praticada na disciplina de Matemática no curso atual, fica evidenciada a existência de 26 SUMÁR I O Para Wittgenstein, a concepção de linguagem está associada ao uso feito da palavra ou expressão em determinado contexto, isto é, em uma específica forma de vida (CONDÉ, 1998). A significação de uma palavra emerge do uso que dela fazemos nas variadas situações. Portanto, não existe uma única linguagem, mas “simplesmente linguagens”, isto é, “uma variedade imensa de usos, uma pluralidade de funções ou papéis que poderíamos compreender como jogos de linguagem” (CONDÉ, 1998, p. 86, grifos do autor). “Se a mesma expressão linguística for usada de outra forma ou em outro contexto, sua significação poderá ser outra, isto é, poderá ter uma significação totalmente diversa da anterior, dependendo do uso no novo contexto” (CONDÉ, 1998, p. 89). A esse respeito, Wittgenstein salienta que se pode, “para uma grande classe de casos de utilização da palavra ‘significação’ – se não para todos os casos de sua utilização –, explicá-la assim: a significação de uma palavra é seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN, 1999, § 43, p. 43, grifos do autor). 224 “bastante exercício”. Maria pontua que as listas de exercícios eram “pra nós fazermos como tema de casa” e, “na próxima aula, a gente corrigir junto” com a professora. Com relação ao número significativo de “exercícios”, a recém-formada considera que “ajudava muito, mas muito mesmo, a gente a aprender”. Desse modo, por meio da lista de exercícios como tarefa de casa, “o professor conseguia meio que analisar como que estava o andamento, como que estava o nível da turma”. O quadro era o recurso usado com frequência nas aulas de matemática. O livro didático é enfatizado pelos recémformados como ferramenta utilizada pelos professores em suas aulas de matemática. Eles expressam, de modo recorrente, a ausência de recursos tecnológicos nas aulas da disciplina de Matemática. Outra questão pertinente, que emergiu do material de pesquisa analisado, diz respeito aos jogos de linguagem que circulavam na disciplina de Matemática nos dois momentos estudados. Com relação a isso, apresento algumas enunciações extraídas do material de pesquisa dos dois tempos estudados: [...] eu decorava as fórmulas [...] se não for fazendo passo por passo, se perde viu, se perde mesmo, tem que fazer passo por passo mas, mesmo assim, tinha que decorar as fórmulas; tem que ler o problema e prestar atenção, entender o que pede no problema, pra ver qual usar [fórmula] (Carlos - Entrevista realizada em fevereiro de 2016). [...] colocando a fórmula primeiro e, no lugar do seno, quanto ele vale, de acordo com o que a professora deu aqui no começo, no enunciado da questão; por fim, vai fazendo, fazendo a conta, e coloca aqui e passa pra cá [detalhes da resolução que ele estava olhando no caderno] e até chegar à resposta (Jean Entrevista realizada em fevereiro de 2016). [...] tem que fazer passo por passo e tem que seguir certinho em cada linha, fazer uma coisa de cada vez [refere-se a uma parte do cálculo] (Maria - Entrevista realizada em abril de 2016). SUMÁR I O 225 [...] nas provas de matemática a professora cobrava tudo [...], fórmulas de seno, cosseno; a exigência era a questão toda, toda ela feita, todos os passos. Caso o aluno não seguisse o modelo de resolução visto nas aulas, isto é, as orientações da professora para resolver um cálculo, ela [professora] dava meia questão (Luis - Entrevista realizada em fevereiro de 2016). Acompanhando as ideias do segundo Wittgenstein (1999), ao examinar esses fragmentos, observo que, nos jogos de linguagem matemáticos praticados na disciplina de Matemática, é priorizado o uso da escrita, da exatidão, da abstração e do formalismo, presentes na matemática escolar. Assim, em conformidade com os critérios de racionalidade gestados na forma de vida escolar. Conforme observa Condé (2004), seguindo Wittgenstein, o modelo de racionalidade é, em parte, resultado das “interações entre os jogos de linguagem” (CONDÉ, 2004, p. 58). A linguagem articula-se no “interior de uma forma de vida”, estabelecendo “[...] a racionalidade que nos possibilita determinar o que aceitamos, de acordo com os jogos de linguagem e sua gramática, como correto ou não”. Sobre a gramática de uma forma de vida, ela “[...] não é fechada e é a partir desse aspecto que ela possui, em medidas diversas, ramificações que se constituem como ‘semelhanças de família’, podendo interconectar-se com gramáticas de outras formas de vida” (CONDÉ, 2004, p. 29-30). É por meio da “[...] gramática e dos jogos de linguagem que se situa a possibilidade do estabelecimento de critérios de racionalidade que possam ser compreendidos e até mesmo aceitos por diferentes formas de vida” (CONDÉ, 2004, p. 30). As pesquisas produzidas pela autora (KNIJNIK, 2015) têm mostrado que “[...] a lógica que rege os jogos de linguagem matemáticos da forma de vida escolar é bem outra da lógica que rege os jogos de fora da escola” (KNIJNIK, 2015, p. 18), visto que a “primeira tem as marcas da abstração, do formalismo, da transcendência, enquanto a lógica da vida cotidiana não escolar, por exemplo, é SUMÁR I O 226 marcada pela contingência...” (KNIJNIK, 2015, p. 18). Pode-se pensar as matemáticas produzidas nas diferentes formas de vida como jogos de linguagem que se constituem por meio de “múltiplos usos” e, assim, ganham sentido em seus usos (KNIJNIK, 2015, p. 14). Volta-se agora a atenção às disciplinas que compõem o currículo da formação técnica do curso analisado neste estudo, em especial, sobre a Educação Matemática presente nas disciplinas técnicas. A partir do exame das entrevistas, concluí que, enquanto a Educação Matemática da disciplina de Matemática manteve a sua abordagem abstrata e formal tradicional, a Educação Matemática associada às tarefas agrícolas, praticada nas disciplinas técnicas, passou a incluir novos recursos tecnológicos. Estes excertos apontam para essa conclusão: O professor de mecanização agrícola trabalhava bastante com GPS até, como na matéria dele nós tínhamos que usa muito GPS, ele incentivava muito e ensinava usar os aplicativos de celular pra usar no trabalho. [...] também em Gestão rural, o professor usava o Excel pra controle dos gastos e tudo tipo fazer a contabilidade da nossa propriedade rural. [...] Ah! A disciplina de topografia, assim, a gente tirava os pontos pelo teodolito moderno, o professor disse que eram os mais modernos e tinham comprado novinhos a pouco tempo, [...] mas esses aparelhos também dão os cálculos mais exatos (Maria - Entrevista realizada em fevereiro de 2016). Eu tive que fazer um dimensionamento de sistema de irrigação na aula de irrigação, por exemplo, eu dizia pra o professor é muito mais fácil fazer uma planilha no Excel, tu digita a fórmula e os dados e ele dá pronto. [...] Por exemplo em irrigação tem muito cálculo pra fazer, tem muita fórmula, você precisa dimensionar reservatório, precisa dimensionar bomba, [...] teve algumas aulas que nós fazíamos os cálculos no Excel, o professor levava nós no laboratório de informática e ensinava nós fazer no Excel (Gabriel - 2ª Entrevista realizada em novembro de 2015). O fato de a Educação Matemática das disciplinas técnicas ter incluído novas tecnologias em suas práticas pedagógicas me SUMÁR I O 227 fez questionar o que foi indagado por Veiga-Neto (1999, p. 5): nos tempos e espaços estudados nesta pesquisa, é possível dizer que o currículo das disciplinas técnicas é um “artefato que em termos gerais, quais (seriam) os objetivos da escolarização na e para a lógica neoliberal?”. Acompanhando o autor, considero que a escola, inserida nas tramas do neoliberalismo, tem como uma das suas funções “criar/moldar o sujeito-cliente” (VEIGA-NETO, 1999, p. 15). Isso não implica, necessariamente, a demissão daquele propósito que conduziu a escolarização na “[...] Modernidade: uma escola pensada – e ainda vem funcionando – como uma imensa maquinaria de confinamento disciplinar, a maior encarregada pela ampla normalização das sociedades modernas” (VEIGA-NETO, 1999, p. 15). Em ambos os casos, a escola deve desempenhar papéis fundamentais, de modo que prepare sujeitos que sejam capazes de “[...] compreender e manejar — ou, pelo menos, sobreviver em... — cenários fantasmagóricos e de constante tensão entre o individual e o cooperativo, entre o local e o global” (VEIGA-NETO, 1999, p. 18). Nessa linha de entendimento, Knijnik (2015, p. 12) afirma que a “lógica neoliberal que conforma o mundo globalizado de hoje opera em cada um de nós”. Nesse sentido, cada uma de nós está diretamente envolvido na condução da conduta das “[...] novas gerações e na condução de nossas próprias condutas em uma determinada direção, a saber, na constituição de indivíduos que aprendam, por exemplo, a ser flexíveis, competitivos, empreendedores de si mesmos...” (KNIJNIK, 2015, p. 12). A seguir, apresento alguns fragmentos extraídos das entrevistas realizadas com um egresso da década de 1980, a fim de evidenciar aspectos dos modos como a Educação Matemática operava nas disciplinas técnicas nos anos de 1980. SUMÁR I O 228 Pesquisadora: Estou olhando aqui, o caderno de topografia de um aluno que estudou na mesma época que o senhor. Deixa lhe mostrar [mostrei]. Será que o profissional, o técnico agrícola, faz todos esses cálculos como está aqui [mostrei] no caderno? Luis: Hum! Mas hoje o profissional não faz mais à mão, tudo é informatizado, tem programa de computador pra fazer tudo, tem GPS, aparelhos modernos. Lá em 1988 e 89, quando eu comecei como técnico na cooperativa, nessa época, a topografia era assim, óh! Eu caminhava 7 dias pra fazer demarcação dos limites das propriedades, fazendo terraço. E [pensativo] na aula dessa matéria tinha umas quantas fórmulas e eu resolvia a mão esses cálculos e eu sabia resolver tudo [mostrou no caderno de topografia], com tudo isso de cálculo como aparece aqui [mostrou no caderno]. Pesquisadora: Era usado algum instrumento nas aulas práticas de topografia? Luis: Hum! Às vezes, tinha um ou outro teodolito simples [...]. Olha aí o caderno [mostrou o caderno], tinham muitas fórmulas pra resolver à mão e nós encontrávamos uns valores altos e na aula prática nós usávamos um teodolito simples e básico e esses valores encontrados no caderno nós ajustava, deixava redondinho! Mas nem sempre nós usávamos o teodolito, porque [pensativo] tinham poucos, poucos mesmo [teodolitos] e, a turma era grande. Acho que por isso o professor quase nem levava o teodolito pra aula no campo [aula prática]. Eu sei que tinha fórmulas pra calcular. Daí como nós fazíamos? O professor levava nós pra o campo [refere-se as aulas práticas] e nós fazíamos tudo a mão, com trena grande, contando os passos, marcando os pontos com umas estacas e tal. Hoje em dia, você digita os pontos no GPS e pronto! Na época que eu estudava [na EAFS] e me formei, e logo que comecei a trabalha a gente calculava a mão. Tinha que entrar no mato, atravessar rio e marcar os pontos, levava dias pra fazer o que hoje se faz numa tarde. [...]. Era muito precário os instrumentos na minha época de escola [EAFS]. Luis - 2ª Entrevista realizada em outubro de 2015). Esses excertos estão em conformidade no que se refere ao processo de modernização do campo, iniciado na década de SUMÁR I O 229 1960 e intensificado nos anos 1980. Segundo referem autores como Pizzolatti (2004) e Buainain (et al., 2014), a tecnologia no setor agropecuário brasileiro e mundial continua avançando significativamente nas últimas três décadas e, com isso, modifica os processos de produzir no campo. Isso faz com que o produtor rural e os profissionais envolvidos com o setor busquem aperfeiçoamento constante, para que aprendam por toda a vida. Nesse cenário, as “práticas de gestão” da propriedade rural são fundamentais para que o agricultor possa competir e manter-se competitivo no mercado agrícola vigente (PIZZOLATTI, 2004, p. 10), ou seja, os “empreendimentos rurais precisam ter características empresariais” para se manterem “viáveis técnica e economicamente” (PIZZOLATTI, 2004, p. 10). Essas considerações me levam a afirmar que, no passado, as práticas pedagógicas na Educação Matemática gestada nas disciplinas técnicas acompanharam o processo inicial de modernização do campo, uma vez que elas estavam em sintonia com a racionalidade daquela época, em que os recursos tecnológicos eram ainda incipientes. Na atualidade, a Educação Matemática presente na formação técnica está em concordância com o discurso da tecnociência. Isso não é surpreendente, tendo em vista o cenário atual de modernização e os efeitos produzidos pelo discurso da tecnociência. As práticas pedagógicas governam os sujeitos escolares na tentativa de produzir um futuro técnico agrícola com condições de atuar no cenário atual do campo brasileiro. Trata-se de um contexto inserido nas tramas da racionalidade neoliberal, que indicam ao profissional do setor agropecuário que, para jogar o jogo neoliberal, é necessário ser um sujeito que “aprenda para toda a vida”. Em consonância com as ideias acima expostas, afirmo que, na Educação Matemática gestada nas disciplinas técnicas em sala de aula, era priorizado o uso da escrita e o formalismo, presentes também na disciplina de Matemática. Mas não só isso. Também ali estavam SUMÁR I O 230 presentes jogos de linguagem que, por exemplo, realizavam um “ajuste” dos valores numéricos encontrados. Acompanhando Knijnik e Giongo (2009), afirmo que, nas disciplinas técnicas, eram postos em prática jogos de linguagem associados a duas diferentes lógicas: aqueles praticados nas aulas teóricas, que possuíam semelhanças de família com os da matemática escolar. Por sua vez, os jogos de linguagem matemáticos presentes nas atividades agropecuárias, ou seja, nas aulas práticas, apresentavam semelhanças de família com aquelas gestadas na forma de vida camponesa (KNIJNIK, 2006a, 2006b). A esse respeito, a chamada “matemática das disciplinas técnicas” coloca em uso a aproximação – o “olhômetro” para referir-se às estimativas – e a oralidade. Essa expressão foi referenciada por alunos e professores entrevistados no estudo realizado por Knijnik e Giongo (2009). Diferentemente da assepsia, do formalismo e da abstração presentes na Educação Matemática da disciplina Matemática, os alunos “[...] valiam-se de regras diferentes daquelas conformadas nessa disciplina, quando lhes era solicitado que resolvessem, nas disciplinas técnicas, problemas ligados à lida do campo” (KNIJNIK; GIONGO, 2009, p. 71). Assim, mais do que obedecer às regras ditadas pela matemática da disciplina Matemática, “[...] a matemática das disciplinas técnicas estava amalgamada às práticas cotidianas produtivas e sustentada por uma gramática cujas regras incluíam arredondamentos e estimativas” (KNIJNIK; GIONGO, 2009, p. 72). PALAVRAS FINAIS Nesta seção, que encerra o artigo, destaco mais uma vez que o propósito deste estudo foi examinar os efeitos do discurso da tecnociência presentes na Educação Matemática praticada na disciplina de Matemática e nas disciplinas técnicas do Curso Técnico SUMÁR I O 231 em Agropecuária do IFRS-Sertão. A análise do material de pesquisa – entrevistas com egressos do curso, documentos institucionais e materiais escolares – que teve, principalmente, como balizas teóricas as noções advindas das ideias de Ludwig Wittgenstein, mostrou que, nas últimas três décadas, a listagem de conteúdos da disciplina de Matemática não se alterou. A Educação Matemática da disciplina Matemática manteve sua abordagem abstrata e formal, e a Educação Matemática presente nas disciplinas técnicas alinhou-se com o discurso da tecnociência, incluindo recursos tecnológicos. Resumidamente, no mundo globalizado em que vivemos, a tecnociência vinculada à racionalidade neoliberal é sustentada por determinadas verdades que atuam sobre os sujeitos, conduzindo-os e fazendo-os conduzir a si mesmos. Nesse contexto, a tecnociência assume uma posição de destaque na produção do conhecimento científico e é concebida como fundamental para que indivíduos e a nação tenham um futuro próspero. Dessa forma, como apresentei ao longo do texto, esse cenário reverbera no currículo escolar de curso Técnico Agrícola do IFRS-Sertão, de modo que “[...] a tecnociência é inevitável. Ela é uma máquina, uma locomotiva em marcha, e sua marcha e neutral e imanente: não pode e não deve ser interrompida. Não pode e não deve ser obstaculizada, dirigida, politizada”. Em outras palavras, é parte do “[...]funcionamento de um dispositivo que contribui, ao mesmo tempo, para modular a construção dos saberes, a constituição dos sujeitos, o funcionamento do governo de si e dos outros” (CASTELFRANCHI, 2008, p. 10). SUMÁR I O 232 REFERÊNCIAS AVELINO, N. Foucault e a anarqueologia dos saberes. In: FOUCAULT, M. Do governo dos vivos: curso no Collège de France, 1979-1980 (excertos). São Paulo: Centro de Cultura Social; Rio de Janeiro: Achiamé, 2011. p. 17-37. BALSAN, R. Impactos decorrentes da modernização da agricultura brasileira. Campo Território: Revista de Geografia Agrária, Uberlândia, v. 1, n. 2, p. 123151, ago. 2006. BENSAUDE-VICENT, B. As vertigens da tecnociência: moldar o mundo átomo por átomo. São Paulo: Ideias & Letras, 2013. BOCASANTA, D. M.; KNIJNIK, G. Dispositivo da tecnocientificidade e iniciação científica na educação básica. Currículo sem Fronteiras, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 139-158, jan./abr. 2016. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Ensino de 1º e 2º graus, Coordenação Nacional de Ensino Agropecuário. Plano Pedagógico. Brasília: MEC/SEPS/COAGRI, 1980. BUAINAIN, A. M. et al. O mundo rural no Brasil do século 21: a formação de um novo padrão agrário e agrícola. Brasília: Embrapa, 2014. CASTELFRANCHI, J. As serpentes e o bastão: tecnociência, neoliberalismo e inexorabilidade. (Doutorado em Filosofia). Universidade Estadual de Campinas, Campinas: 2008. CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. CONDÉ, M. L. L. As teias da razão: Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2004. CONDÉ, M. L. L. Wittgenstein: linguagem e mundo. São Paulo: Annablume, 1998. D’AMBROSIO, U. Etnomatemática – elo entre as tradições e a modernidade. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. FILHO, J. E. R. V. Transformação histórica e padrões tecnológicos da agricultura brasileira. In: BUAINAIN, A. M. et al. O mundo rural no Brasil do século 21: a formação de um novo padrão agrário e agrícola. Brasília: Embrapa, 2014, p. 395-422. FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. SUMÁR I O 233 GIONGO, I. M. Disciplinamento e resistência dos corpos e dos saberes: um estudo sobre a educação matemática da Escola Estadual Técnica Agrícola Guaporé. (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2008. INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL (IFRS-SERTÃO). Projeto Pedagógico do Curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio (PPC). Sertão, 2011. JØRGENSEN, K. M.; STRAND, A. M. C. Material Storytelling – Learning as Intra-Active Becoming. In: JØRGENSEN, K. M.; LARGARCHA-MARTINEZ, C. Critical Narrative Inquiry – Storytelling, Sustainability and Power. New York: Nova Publishers 2014. p. 53-72. KNIJNIK, G. Educação Matemática, culturas e conhecimento na luta pela terra. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006a. KNIJNIK, G. Educação matemática e diferença cultural: o desafio de “virar ao avesso” saberes matemáticos e pedagógicos. Anais... Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino – ENDIPE. Recife: Bagaço, 2006b. p. 1-8. KNIJNIK, G. Fazer perguntas... ter a cabeça cheia de pontos de interrogação: uma discussão sobre etnomatemática e modelagem matemática escolar. Unión, San Cristobal de La Laguna, v. 44, p. 1023, 2015. KNIJNIK, G. et al. Etnomatemática em movimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. KNIJNIK, G.; VALERO, P.; JØRGENSEN, K. M. El discurso de la educación matemática en la perspectiva de la gubernamentalidad. II Seminario Internacional pensar de outro modo: Resonancias de Foucault en la educación. 2014. p. 1-10. KNIJNIK, G.; GIONGO, I. M. Educação matemática e currículo escolar: um estudo das matemáticas da escola estadual técnica agrícola Guaporé. Zetetiké, Campinas, v. 17, n. 32, jul./dez. 2009. LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Ed. Unesp, 2011. PIZZOLATTI, I. J. Visão e Conceito de Agribusiness. 2004. Disponível em: http://bis.sebrae.com.br/bis/conteudoPublicacao.zhtml?id=298. Acesso em: 8 mar., 2016. RUBELO, J. G. N. O processo de modernização da agricultura brasileira pluriatividade da agricultura familiar. Economia e Pesquisa, Araçatuba, v. 6, n. 6, p. l 08-122, mar. 2004. SUMÁR I O 234 SOUZA, D. M. X. B. Narrativas de uma professora de matemática: uma construção de significados sobre avaliação. (Mestrado em Educação Matemática). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul: 2015. TOLEDO, N. T.; KNIJNIK, G.; VALERO, P. Mathematics education in the neoliberal and corporate curriculum: the case of Brazilian agricultural high schools. Educational Studies in Mathematics, v. 98, p. 1-15, 2018. TOLEDO, N. T. Educação matemática e formação do técnico agrícola: entre o “aprender pela pesquisa” e o “aprender a fazer fazendo”. (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2017. VALERO, P. Investigación en educación matemática, currículo escolar y constitución de la subjetividad. Anais VII CIBEM, Montevideo, Uruguai, 16 a 20 de setembro, 2013a. VALERO, P. Mathematics for all and the promise of a bright future. Papers for the CERME 8 Conference, Turkey, 2013b, p. 1-10. Disponível em: <http://vbn. aau.dk/files/76731132/WG10_Valero.pdf>. Acesso em: 28 out., 2016. VALERO, P.; KNIJNIK, G. Governing the modern, neoliberal child through ict research in mathematics education. For the Learning of Mathematics, v. 35, n. 2, p. 33-38, jul. 2015. VEIGA-NETO, A. Educação e governamentalidade neoliberal: novos dispositivos, novas subjetividades. Colóquio Foucault. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), novembro, 1999. Disponível em: http:// www.lite.fe.unicamp.br/cursos/nt/ta5.13.htm. Acesso em: 20 jun., 2016. VEIGA-NETO, A. Crise da Modernidade e inovações curriculares: da disciplina para o controle. In: PERES, E. et al. (Orgs.). Trajetórias e processos de ensinar e aprender: sujeitos, currículos e culturas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 35-58. WANDERER, F.; KNIJNIK, G. Discursos produzidos por colonos do sul do país sobre a matemática e a escola de seu tempo. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 39, set./dez. 2008. WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999. SUMÁR I O 235 Capítulo 13 13 FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS PARA AS ÁREAS TECNOCIENTÍFICAS Giovana Alexandra Stevanato Giovana Alexandra Stevanato FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS PARA AS ÁREAS TECNOCIENTÍFICAS DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.236-254 INTRODUÇÃO Este capítulo apresenta algumas reflexões sobre a formação de recursos humanos para as áreas tecnocientíficas na contemporaneidade. Tais reflexões foram construídas na pesquisa de doutorado, realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no período de 2014 a 2018, que resultou na tese intitulada “Formação de recursos humanos para as áreas tecnocientíficas: uma análise do Programa Ciência sem Fronteiras”. O objetivo do estudo era analisar o Programa Ciência sem Fronteiras (CsF), buscando compreender seu caráter performativo e sua relação com o Dispositivo da Tecnocientificidade. O material de pesquisa foram os documentos do Programa “Ciência Sem Fronteira” (CsF) disponibilizados no site do Programa. A estratégia analítica utilizada para examinar o material de pesquisa foi a análise do discurso em Foucault e a governamentalidade, como uma ferramenta analítica, para compreender a proveniência e emergência do Programa Ciência sem Fronteiras. O filósofo Michel Foucault (2008, p. 55) trata os discursos não mais como “conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”. Para o filósofo, “certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas” (FOUCAULT, 2008, p. 55). As condições que possibilitam o aparecimento de um determinado objeto de discurso são importantes para se “dizer alguma coisa” sobre ele, ou ainda para possibilitar que várias pessoas possam dizer coisas diferentes, em uma determinada época (FOUCAULT, 2008). As estratégias criadas pelo Governo Federal podem ser entendidas como uma rede que compõe determinados dispositivos, que tem como finalidade conduzir a conduta de todos e de cada SUMÁR I O 237 um para um determinado fim. As tecnologias governamentais podem ser tanto do governo da educação quanto da transformação dos indivíduos, ao governo das relações familiares e ao governo das instituições (REVEL, 2011, p. 74). Uma das justificativas para esta pesquisa se refere à importância que a tecnociência vem assumindo, de modo cada vez mais radical, na contemporaneidade, e os esforços, em nível global, que têm sido feitos pelos governos, em anos mais recentes, para educar cientificamente as novas gerações. EDUCAÇÃO PARA AS ÁREAS TECNOCIENTÍFICAS Na contemporaneidade, no plano mundial, ciência, tecnologia e inovação são consideradas alavancas que serviriam para impulsionar o desenvolvimento e o progresso científico e tecnológico das nações. No Brasil estudos demonstram que existe uma “fé” que a ciência é responsável pelo progresso do País e que irá resolver e atender aos anseios da sociedade (BOCASANTA, 2014), e, portanto, que a “a ciência, a tecnologia e a inovação são imperativas para o desenvolvimento do País” (ALMEIDA, 2012, p. 22). Há três décadas, o Brasil desenvolve uma política de ciência e tecnologia e mais recentemente de inovação, que tem favorecido o aumento da qualificação do parque de pesquisa e de inovação tecnológica e, consequentemente, vem gerando riquezas ao País, resultado de um trabalho conjunto entre inúmeros atores: governo e sociedade, essa representada, dentre outros, pela academia, setor empresarial, entidades de categorias profissionais e do terceiro setor (ALMEIDA, 2012, p. 22). Segundo evidencia a autora, o Governo Federal Brasileiro investiu, nas últimas décadas, fortemente nas políticas e nos programas de formação de recursos humanos qualificados nas SUMÁR I O 238 competências e habilidades necessárias para o avanço da ciência na “Sociedade do Conhecimento”27. Sobre o tema, Silva (2015a, p. 385) escreve que “nas condições da nomeada sociedade do conhecimento, aspira-se que a formação de jovens estabeleça maior aproximação com as questões de seus interesses, com os avanços tecnológicos e com o mercado profissional”. Uma das estratégias para o avanço do conhecimento tecnocientífico e inovador é a formação de recursos humanos, pois nessa sociedade o conhecimento é o capital mais importante do trabalhador (SILVA, 2015a). Uma das características da sociedade contemporânea é o papel central do conhecimento nos processos de produção, ao ponto do qualificativo mais freqüente hoje empregado ser o de sociedade do conhecimento. Estamos assistindo à emergência de um novo paradigma econômico e produtivo no qual o fator mais importante deixa de ser a disponibilidade de capital, trabalho, matérias-primas ou energia, passando a ser o uso intensivo de conhecimento e informação (BERNHEIM, 2008, p. 7). Sobre essa questão, Gadelha (2009) evidencia que, nesta nova “modalidade de governamentalidade” onde se produz e se acumula o chamado “capital humano”, a formação e capacitação são tidas como elementos estratégicos, pois, não só aumentam a produtividade do “indivíduo-trabalhador, mas também a maximização crescente de seus rendimentos ao longo da vida” (GADELHA, 2009, p. 177). Nesta governamentalidade centrada na economia e no mercado, o princípio de inteligibilidade busca: (...) programar estrategicamente as atividades e os comportamentos dos indivíduos; trata-se, em última instância, de um tipo de governamentalidade que busca programá-los e controlá-los em suas formas de agir, de sentir, de pensar e de situar-se diante de si mesmos, da vida que levam e do mundo em que vivem, através de determinados processos e políticas 27 SUMÁR I O Peter Drucker foi um dos primeiros a discutir o tema “Sociedade do Conhecimento”, no período de 1964 a 1998. Para o autor, tratava-se de uma sociedade baseada no conhecimento, na produção e distribuição de informação e conhecimento. 239 de subjetivação: novas tecnologias gerenciais no campo da administração (management), práticas e saberes psicológicos voltados à dinâmica e à gestão de grupos e das organizações, propaganda, publicidade, marketing, branding, literatura de autoajuda etc. Esses processos e políticas de subjetivação, traduzindo um movimento mais amplo e estratégico que faz dos princípios econômicos (de mercado) os princípios normativos de toda a sociedade, por sua vez, transformam o que seria uma sociedade de consumo numa sociedade de empresa (sociedade empresarial, ou de serviços), induzindo os indivíduos a modificarem a percepção que têm de suas escolhas e atitudes referentes às suas próprias vidas e às de seus pares, de modo a que estabeleçam cada vez mais entre si relações de concorrência (GADELHA, 2009. p. 178). Nesse sentido, o Governo, as instituições de ensino, as empresas e organizações não governamentais estão desenvolvendo políticas públicas, programas, estratégias e ações voltadas à formação educacional e profissional dos indivíduos. “[...] num curto espaço de tempo, solucionar problemas de interesse nacional” (ALMEIDA, 2012, p. 22). Serão essas pessoas com qualificação que posicionarão o Brasil em um lugar estratégico para competir internacionalmente com os países desenvolvidos. A autora aponta ainda que os países que investem no fortalecimento e na ampliação de capital humano altamente qualificado “se destacam científica e tecnologicamente em relação aos demais” (ALMEIDA, 2012, p. 22). Em relação aos investimentos em Educação Científica, Silva (2015a, p. 396) destaca que estes “investimentos no Ensino Médio têm se constituído como um dos principais campos de investimento das atividades atuais da Unesco”, que tem duas possibilidades de ação: “ora contribuindo para o desenvolvimento econômico do País, ora desencadeando práticas que popularizem o acesso à ciência e à tecnologia como forma de despertar talentos” (SILVA, 2015a, p. 396). O autor observou que, nas duas ênfases, existe um entrelaçamento entre as práticas educativas tecnocientíficas e o desenvolvimento econômico. SUMÁR I O 240 Países como o Brasil têm que realizar um enorme esforço para avançar na geração e utilização do conhecimento científico e tecnológico, criando capacidades e competências em áreas estratégicas e produzindo estratégias para avançar na estruturação de uma base econômica apoiada em um processo endógeno e dinâmico de inovação (BRASIL, 2012). Esse avanço só será possível se a industrialização se apoiar no desenvolvimento científico e tecnológico e avançar nas políticas de CT&I: “O avanço da industrialização tem que se apoiar fundamentalmente, no desenvolvimento científico e tecnológico endógeno e em sua incorporação crescente ao processo produtivo” (BRASIL, 2012, p. 11). Neste contexto, onde ciência, tecnologia e inovação são predominantes para o avanço técnico e para o desenvolvimento do país, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante, em seu discurso de posse, em janeiro de 2011, assinalou que o principal desafio do Brasil para se tornar efetivamente desenvolvido e com uma economia eficaz e competitiva é se preparar para a “sociedade do conhecimento” e que alcançar esse desafio envolve combinar educação de qualidade para todos, pesquisa científica, inovação e inclusão social (BRASIL, 2012, p. 9). Nessa perspectiva, o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (MCTI) ampliou, no período dos governos Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), o apoio à infraestrutura de pesquisa no Brasil mediante a implantação de políticas públicas voltadas ao incentivo da ciência e da tecnologia, investindo em novos projetos e programas que fomentassem o desenvolvimento científico e tecnológico, como por exemplo, o Programa Ciência sem Fronteiras (CsF), como uma estratégia de governo, para formação de recursos humanos para as áreas tecnocientíficas. SUMÁR I O 241 POLÍTICAS DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA Nas últimas décadas, o mundo presenciou uma notável ampliação da utilização na produção industrial, dos avanços realizados em diversas esferas do conhecimento científico, especialmente nas áreas de automação, microeletrônica e informatização. Esta nova onda de inovação, a chamada “Terceira Revolução Industrial”28, ocorreu em um grupo pequeno de países que estiveram na vanguarda do desenvolvimento científico: os Estados Unidos, o Japão e as principais economias da Europa, principalmente a Alemanha, expandindose mais recentemente a Coréia e a China (BRASIL, 2012, p. 9). O progresso técnico penetrou transversalmente em diversos segmentos da estrutura produtiva desses países, modificando os padrões de organização, “gerando aumento da produtividade e redução dos custos unitários de produção, aumentando o campo tecnológico e a competitividade entre esse núcleo e as economias emergentes ou de menor desenvolvimento relativo” (BRASIL, 2012, p. 9). Nesse contexto, o Brasil vem, no decorrer de décadas, realizando esforços para se enquadrar nos moldes em que se encontra organizada a economia mundial moderna, no sentido de avançar na produção e utilização de conhecimentos técnicos e científicos, criando capacidades e competências em áreas consideradas estratégicas para atingir tal patamar tecnocientífico. Uma das linhas de ação para esse fim é por meio da formação de recursos humanos (BRASIL, 2012). Na contemporaneidade, o discurso tecnocientífico está entranhado em todos os setores da sociedade, nas escolas, nas universidades, nas empresas, nos meios de comunicação e em diversas áreas do conhecimento, como aquele que será responsável pelo progresso dos sujeitos e consequentemente da nação. A ciência 28 SUMÁR I O O que Echeverría (2003) chama de Revolución tecnocientífica. 242 e tecnologia, nos últimos trinta anos, vêm passando por inúmeras transformações gerando avanços, principalmente nas áreas das Ciências da Saúde, das Engenharias e das tecnológicas. A relação entre ciência e tecnologia está cada vez mais imbricada o que levou alguns teóricos a denominarem de Tecnociência. O uso do termo Tecnociência29 vem sendo usado na sociedade contemporânea em substituição do binômio, ciência e tecnologia, entretanto, muitas vezes, sem a reflexão devida dada a complexidade que o termo aborda. As políticas públicas são “manifestações da governamentalização do Estado moderno, envolvidas com (e destinadas a) uma maior economia entre a mobilização dos poderes e a condução das condutas humanas” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 955). Neste contexto, o CsF se apresentou como uma política pública em ciência, tecnologia e inovação destinada a conduzir as condutas de seus participantes. Como observa Pereira (2013, p. 57), o Programa “[...] é um conjunto de ações introduzidas para a solução de problemas políticos, que incorporam a agenda governamental [...]”. As políticas públicas são criadas para “[...] solucionar problemas e dar resposta a demanda social [...]”, portanto, pode-se dizer que o CsF foi criado para atender a uma “urgência” de promover a internacionalização da ciência, tecnologia e inovação, bem como contribuir para o desenvolvimento científico, tecnológico e competitivo do País, na tentativa de alavancar ranking de produção científica mundial (CsF, 2011a). 29 SUMÁR I O O termo “Tecnociência”, mesmo sendo usado com muita frequência nos últimos anos, pelos pesquisadores e cientistas, nos meios acadêmicos, de pesquisa, de laboratório, nas indústrias e na sociedade em geral, não é referendado em nenhum momento nos documentos oficiais do Governo Federal, entre eles do Ministério da Ciência e Tecnologia e do Ministério da Educação, nos programas e nas políticas de governo, analisados nesta tese. 243 O PROGRAMA CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS O Programa Ciência sem Fronteiras (CsF) foi lançado em dia 26 de julho de 2011, na 38ª reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), em Brasília, com a presença da, então, presidenta da República, Dilma Rousseff, do ministro Aloízio Mercadante, do MCTI, do presidente do CNPq, Glaucius Oliva, entre outras autoridades e empresários (CsF, 2011a). O Programa foi uma iniciativa do Governo Federal em parceria com o MCTI e MEC, por meio de suas respectivas instituições de fomento, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e Secretarias de Ensino Superior e de Ensino Tecnológico. Uma das finalidades era promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional (CsF, 2011a). Foi oficialmente instituído pela Presidência da República por meio do Decreto n. 7.642, de 13 de dezembro de 2011, com os objetivos de: I - promover, por meio da concessão de bolsas de estudos, a formação de estudantes brasileiros, conferindo-lhes a oportunidade de novas experiências educacionais e profissionais voltadas para a qualidade, o empreendedorismo, a competitividade e a inovação em áreas prioritárias e estratégicas para o Brasil; II - ampliar a participação e a mobilidade internacional de estudantes de cursos técnicos, graduação e pós-graduação, docentes, pesquisadores, especialistas, técnicos, tecnólogos e engenheiros, pessoal técnico-científico de empresas e centros de pesquisa e de inovação tecnológica brasileiros, para o desenvolvimento de projetos de pesquisa, estudos, treinamentos e capacitação em instituições de excelência no exterior; SUMÁR I O 244 III - criar oportunidade de cooperação entre grupos de pesquisa brasileiros e estrangeiros de universidades, instituições de educação profissional e tecnológica e centros de pesquisa de reconhecido padrão internacional; IV – promovera cooperação técnico-científica entre pesquisadores brasileiros e pesquisadores de reconhecida liderança científica residentes no exterior por meio de projetos de cooperação bilateral e programas para fixação no País, na condição de pesquisadores visitantes ou em caráter permanente; V - promover a cooperação internacional na área de ciência, tecnologia e inovação; VI - contribuir para o processo de internacionalização das instituições de ensino superior e dos centros de pesquisa brasileiros; VII - propiciar maior visibilidade internacional à pesquisa acadêmica e científica realizada no Brasil; VIII - contribuir para o aumento da competitividade das empresas brasileiras; IX - estimular e aperfeiçoar as pesquisas aplicadas no País, visando ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação (BRASIL, 2011). Esses objetivos convergem em uma mesma rede discursiva os objetivos do CsF apresentados na Página do Programa30: investir na formação de pessoal altamente qualificado nas competências e habilidades necessárias para o avanço da sociedade do conhecimento; aumentar a presença de pesquisadores e estudantes de vários níveis em instituições de excelência no exterior; promover a inserção internacional das instituições brasileiras pela abertura de oportunidades semelhantes para cientistas e estudantes estrangeiros; ampliar o conhecimento inovador de pessoal das indústrias tecnológicas; atrair jovens talentos científicos e investigadores altamente qualificados para trabalhar no Brasil (CsF, 2016). 30 SUMÁR I O http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf 245 Para atingirem essas propostas, foram elencadas algumas áreas de conhecimento consideradas prioritárias e estratégicas: Engenharias e demais áreas tecnológicas; Ciências Exatas e da Terra; Biologia, Ciências Biomédicas e da Saúde; Computação e Tecnologias da Informação; Tecnologia Aeroespacial; Fármacos; Produção Agrícola Sustentável; Petróleo, Gás e Carvão Mineral; Energias Renováveis; Tecnologia Mineral; Biotecnologia; Nanotecnologia e Novos Materiais; Tecnologias de Prevenção e Mitigação de Desastres Naturais; Biodiversidade e Bioprospecção; Ciências do Mar; Indústria Criativa (voltada a produtos e processos para desenvolvimento tecnológico e inovação); Novas Tecnologias de Engenharia Construtiva; Formação de Tecnólogos (CsF, 2016). Quando de sua emergência, o CsF foi apresentado com uma previsão de atingir a meta de até 101 mil bolsas, entre seu período de lançamento e o ano de 2015. Essa meta tinha o intuito de promover intercâmbio, de modo que alunos da Graduação e Pós-Graduação pudessem realizar estágio no exterior, com a finalidade de manter contato com sistemas educacionais competitivos em relação à tecnologia e inovação. Além disso, buscava atrair pesquisadores do exterior que quisessem se fixar no Brasil ou estabelecer parcerias com os pesquisadores brasileiros nas áreas prioritárias definidas no Programa, bem como criar oportunidade para que pesquisadores de empresas recebessem treinamento especializado no exterior. Das 101.000 bolsas oferecidas, 75.000 foram financiadas com recursos do Governo Federal e 26.000 concedidas com recursos da iniciativa privada. No planejamento traçado pelo Governo Federal para o período entre 2011 e 2015, o CsF ocupou posição de destaque com um investimento inicial previsto de R$ 3,2 bilhões (CsF, 2016). O CsF possuiu acordos e parcerias com diversas instituições de ensino, programas de intercâmbio e institutos de pesquisa de diversos países ao redor do mundo. A ideia, como consta nos SUMÁR I O 246 documentos, seria que os estudantes e pesquisadores tivessem formação nas melhores instituições e grupos de pesquisa, os mais bem-conceituados para cada grande área do conhecimento de acordo com os principais rankings internacionais. Podiam participar do CsF Instituições de Ensino Superior (IES), públicas ou privadas, constituídas sob as leis brasileiras e com sede administrativa no Brasil, vinculadas ao Acordo de Adesão ao Programa Ciência sem Fronteiras (SILVA, 2012). A IES teria que assumir o compromisso de reconhecimento dos créditos obtidos pelos estudantes na instituição estrangeira, como parte do currículo disciplinar de formação dos seus estudantes nos respectivos cursos de graduação no Brasil, ficando responsável por acompanhar todo o processo de seleção, estadia e retorno dos participantes. Foram oferecidas várias modalidades de bolsas no exterior: graduação sanduíche, para acadêmicos(as) de cursos de graduação nas áreas prioritárias do CsF; tecnólogo, para acadêmicos(as) de cursos superiores de tecnologia nas áreas prioritárias do CsF; desenvolvimento tecnológico e inovação, para pesquisadores, especialistas e técnicos em atividades de aperfeiçoamento, reciclagem ou treinamento no exterior, por meio da realização de estágios e cursos; e ainda para, doutorado sanduíche, doutorado pleno e mestrado profissional. O principal critério de seleção para os participantes do CsF foi o mérito acadêmico. Para os alunos da Graduação, foi a nota do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) e do Sistema de Seleção Unificada (SISU). A pontuação mínima para participar era de 600 pontos (CsF, 2016). Também foram oferecidas modalidades de bolsas no país, para Pesquisador Visitante Especial e para Jovens Talentos. Para Pesquisador visitante Especial, teria que ser pesquisador com liderança internacional, que viria ao Brasil por pelo menos um mês a cada ano por, no máximo, três anos, e para Jovens Talentos eram para jovens pesquisadores doutores com atuação altamente relevante em pesquisa nas áreas e nos temas definidos como prioritários no CsF (CsF, 2016). SUMÁR I O 247 Os documentos de avaliação do Programa Ciência sem Fronteiras, Documento Técnico contendo estudo analítico, teórico e metodológico sobre o impacto e a organização do Programa Ciência sem Fronteiras nas políticas públicas da Educação Superior” (BRASIL, 2013), e o Relatório Nº 21 - CCT, de 2015, Avaliação de Políticas Públicas, Programa Ciência sem Fronteiras (BRASIL, 2015) apontam vários problemas durante a execução do Programa. Esses documentos apontaram muitos pontos que deveriam ser reformulados, abrangendo desde a saída dos brasileiros do país, durante a estadia no exterior e depois no retorno ao Brasil. Segundo consta nos documentos, não houve um sistema de acompanhamento e acolhimento, faltaram orientações adequadas quanto às atividades disponibilizadas pelas universidades no exterior, para subsidiar os bolsistas nas suas atividades, bem como quando do retorno, da aplicabilidade dos conhecimentos adquiridos aqui no país. Outro ponto foi a barreira com o idioma, nesse caso, durante o Programa foi criado o Idioma sem Fronteiras, para sanar ou amenizar o problema. Quanto à distribuição das bolsas nas modalidades, o que se pode perceber foi que a ênfase do CsF foi realmente a modalidade Graduação. Esse fato mereceu bastante destaque nos relatórios de avaliação, pois se questionou o fato de os cursos de PósGraduação, onde supostamente se faz pesquisa, não terem uma maior concentração de bolsas. Ademais, um fato que percebi durante a análise dos documentos do CsF foi que, nos critérios para participar do Programa, não havia a necessidade de participar de um grupo de pesquisa no Brasil. Enviar estudantes com vínculos em grupos de pesquisa iria contribuir para a internacionalização, não só individual como foi o caso do Programa, mas das universidades como um todo, trazendo resultados mais concretos ao país. Os documentos de avaliação não tiveram o objetivo somente de apontar problemas; muitos pontos positivos do CsF foram levantados SUMÁR I O 248 e devem ser levados em consideração. O Programa Ciência sem Fronteiras foi o maior programa de formação de recursos humanos para a ciência e para a tecnologia, não só em investimentos financeiros, mas também em termos de abrangência. O CsF atingiu todas os níveis de ensino, todas as regiões do Brasil, e enfim todo o continente, com mais de 101.000 estudantes e um investimento financeiro no montante de R$ 10,5 bilhões, valor bem maior do que o estipulado no seu lançamento. Esse investimento se justificou quando se pensa em tratar o campo da Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) como uma opção estratégica para o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Ademais, diante dos números apresentados nos documentos, a participação de estudantes brasileiros sai de 2.977 estudantes em 2004, para 43.900 em 2014 e 101.446 em 2016, em universidades do exterior. Por exemplo, o Documento Técnico (BRASIL, 2013) apresenta um ranking dos países que mais enviaram estudantes aos EUA, no período de 2010 a 2011. Os três primeiros colocados neste ranking são a China, a Índia e a Coréia do Sul, países com amplo desenvolvimento técnicocientífico e econômico. Em 2011, o Brasil encontrava-se em 14º lugar do ranking dos países, com 8.777 estudantes enviados aos EUA. Em 2013/14, o Brasil ficou em 6º lugar no mesmo ranking das universidades que enviam estudantes aos Estados Unidos, com 13.286 estudantes e, em 2014/15, com 23.675 estudantes. No total, foram 27.821 estudantes somente aos EUA, no período de vigência do Programa (BRASIL, 2013). Para a Comissão responsável pelas avaliações, ainda seria uma situação muito inferior em relação aos quatro primeiros colocados do ranking, mas o avanço foi, sem dúvidas, produto do CsF. Diante desses dados, o Documento Técnico (BRASIL, 2013) aponta que o CsF causou impactos considerados significativos em relação ao incremento das bolsas para cursos no exterior. Ademais, também causou impacto na ampliação dos convênios entre agências de pesquisa e universidades; no aumento da visibilidade SUMÁR I O 249 internacional do Brasil; no interesse das universidades de outros países em abrirem escritórios no Brasil, e inicia uma forte jornada na área das relações internacionais (BRASIL, 2013). Nesse sentido, “permitir que esse impulso se enfraqueça seria lamentável para a internacionalização da educação superior brasileira e para o desenvolvimento da CT&I em nosso País” (BRASIL, 2015, p. 42). O Programa Ciência sem Fronteiras constituiu-se como uma das estratégias utilizadas pelo Governo Federal para ampliar e fortalecer o avanço da pesquisa científica e tecnológica, da inovação e da competitividade, por meio da mobilidade internacional (CsF, 2011a), compondo, desse modo, o que Bocasanta (2014, p. 104) nomeou de dispositivo da tecnocientificidade, no sentido de que “[...] conduz a conduta dos sujeitos e, para isso, utiliza-se, dentre outras estratégias, da disseminação de uma ideia de universalização do progresso individual e social a partir da democratização do acesso à ciência e tecnologia”. CONSIDERAÇÕES FINAIS O CsF emergiu em um cenário de contínuo e crescente incentivo às políticas públicas de formação de recursos humanos voltados para a ciência e para a tecnologia, constituindo-se como uma estratégia do Governo concebida com o objetivo de ampliar a base de recursos humanos qualificados do país. O foco foi ampliar o conhecimento tecnológico, científico e inovador, por meio da cooperação entre países com reconhecimento científico de alto padrão, o que poderia propiciar desenvolvimento científico e tecnológico, maior visibilidade e maior competitividade do Brasil em relação a outros países, com ênfase na mobilidade internacional de estudantes. SUMÁR I O 250 Os documentos do CsF enunciaram que o desenvolvimento científico e tecnológico é o responsável por colocar o país em um patamar competitivo economicamente e que uma das estratégias para isso seria a formação de recursos humanos “altamente qualificados”. Desse modo, a análise dos documentos me proporcionou compreender que a finalidade do CSF foi a formação e capacitação de recursos humanos, com elevada qualificação, em universidades estrangeiros, oferecendo formação técnico-científica em áreas de conhecimento definidas como prioritárias e estratégicas para o suprimento das demandas de crescimento e desenvolvimento do Brasil. Também ficou evidenciado que os estudantes brasileiros tiveram a oportunidade de novas experiências educacionais e profissionais voltadas para a qualidade, o empreendedorismo, a competitividade e a inovação em áreas prioritárias e estratégicas para o Brasil, visando ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional. Conhecer profundamente o Programa, com base em seus documentos e documentos correlatos, assim como produções acadêmicas relacionadas a ele, acompanhado de um grande esforço intelectual, possibilitou-me entendê-lo como uma estratégia de Governo, criada para promover o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da inovação. Ficou também evidenciado na construção da tese que o Programa Ciência sem Fronteiras é uma das linhas de força do dispositivo da tecnocientificidade, que opera, via performatividade, na condução das condutas da população no sentido de encaminhar as novas gerações para as carreiras técnico-científicas, que possibilitarão ao País se desenvolver em áreas estratégicas, melhor se posicionando no cenário internacional. Corroborando com o que Bocasanta (2014, p. 29) escreveu, entendo que o dispositivo da tecnocientificidade “opera por meio de múltiplas estratégias que visam ao governamento de todos e de cada um” e, como a autora ressalta, “a condução da conduta não se SUMÁR I O 251 efetiva de forma imposta ou violenta. Ela ocorre em relação a sujeitos que se deixam conduzir. Isso também envolve a captura da alma, do desejo e do interesse de todos e de cada um” (2014, p. 108). A autora ainda conclui que o dispositivo da tecnocientificidade visa a “subjetivar os indivíduos de determinado modo”, a partir de um conjunto de estratégias (BOCASANTA, 2014, p. 189). O Programa Ciências sem Fronteiras é parte do dispositivo de tecnocientificidade, pois faz parte das estratégias que o compõem, porquanto teve como finalidade inserir o maior número possível de indivíduos nas carreiras tecnocientíficas. Durante a pesquisa, no escrutínio do material de pesquisa, ao analisar depoimentos dados pelos bolsistas, inseridos nas notícias do Programa, na página oficial do CsF, nos projetos realizados no exterior pelos bolsistas, e o que eles têm desenvolvido, quando de seu retorno ao Brasil, compreendi que o CsF, como parte da rede que compõe o dispositivo da tecnocientificidade, opera na constituição do que nomeei de subjetividades tecnocientificizadas. REFERÊNCIAS ALMEIDA, L. B. Inserção profissional dos ex-bolsistas de doutorado do CNPq e da CAPES dos Programas em Engenharias e Ciência da Computação no período de 1996 a 2006. (Doutorado em Políticas Públicas, Cultura e Sustentabilidade). Universidade de Brasília, Brasília: 2012. BOCASANTA, D.; WANDERER, F.; KNIJNIK, G. Educação de Jovens e Adultos e os conhecimentos tecnocientíficos: analisando as relações entre Ciência, Tecnologia e Matemática. Horizontes, v. 34, número temático, p. 8192, dez. 2016. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto N. 7.642, de 13 de dezembro de 2011. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2011-2014/2011/Decreto/D7642.htm> Acesso em: 10 nov. 2015. SUMÁR I O 252 BRASIL. Ministério de Ciência Tecnologia e Inovação. Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 2012-2015. Balanço das Atividades Estruturantes 2011. Brasília-DF: MCTI, 2012. Disponível em: < ttp:// livroaberto.ibict.br/218981.pdf> Acesso em: mar. 2018 BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Documento Técnico contendo estudo analítico, teórico e metodológico sobre o impacto e a organização do Programa Ciência sem Fronteiras nas políticas públicas da Educação Superior. Brasília-DF: MEC, 2013. Disponível em: <http://portal. mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13938produto-1-ciencia-sem-fronteira-pdf&category_slug=setembro-2013pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 23 abr. 2016. BRASIL. Senado Federal. Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática. Relatório Nº 21 CCT, de 2015. Avaliação de Políticas Públicas. Programa Ciência sem Fronteiras. Brasília-DF: CCT, 2015. Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/ documento?dm=3789268&disposition=inline>. Acesso em: 14 de ago. 2017. CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS (CsF). Disponível em: < http://www. cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf/home >. Acesso em: 25 abr. 2016 CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS (CsF). Mercadante lança o Programa Ciência sem Fronteiras. 2011a. Disponível em: <http://www.cienciasemfronteiras. gov.br/web/csf/noticias/-/asset_publisher/Dh91/content/mercadantelanca-o-programa-ciencia-sem-fronteiras?redirect=http%3A%2F%2Fwww. cienciasemfronteiras.gov.br%2Fweb%2Fcsf%2Fnoticias%3Fp_p_id%3D101_ INSTANCE_Dh91%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_ mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-2%26p_p_col_ count%3D1%26_101_INSTANCE_Dh91_advancedSearch%3Dfalse%26_101_ INSTANCE_Dh91_keywords%3D%26_101_INSTANCE_Dh91_ delta%3D10%26_101_INSTANCE_Dh91_cur%3D58%26_101_INSTANCE_ Dh91_andOperator%3Dtrue>. Acesso em: 28 mar. 2016. FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. 7ª ed. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2008. GADELHA, S. S. C. Biopolítica, governamentalidade e educação. Introdução e conexões, a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. PEREIRA, V. M. Relatos de uma Política: uma análise sobre o Programa Ciência sem Fronteiras. (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável). Universidade de Brasília, Brasília: 2013. REVEL, J. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. SUMÁR I O 253 SILVA, R. R. D. Formação tecnocientífica nas políticas educacionais para o Ensino Médio: uma perspectiva curricular. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 21, n. 45, p. 383-403, mai./ago. 2015. SILVA, S. M. W. Cooperação Acadêmica Internacional da CAPES na perspectiva do Programa Ciência sem Fronteiras. (Mestrado em Ensino). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2012. STEVANATO, Giovana Alexandra. Formação de Recursos Humanos para as áreas tecnocientíficas: uma análise do Programa Ciência sem Fronteiras. (Doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo: 2018. VEIGA-NETO, A.; LOPES, M. C. Inclusão e Governamentalidade. Educ. Soc., v.28, n.100, 2007, p. 947-963. WANDERER, F.; SCHEFER, M. C. Metodologias de pesquisa na área da educação (matemática). In: WANDERER, F.; KNIJNIK, G. (org.). Educação matemática e sociedade. São Paulo: Editora da Física, 2016, p. 37-53. SUMÁR I O 254 Capítulo 14 14 AVANÇOS TECNOCIENTÍFICOS, MATEMÁTICA ESCOLAR E FORMAÇÃO DE PROFESSORES Fernanda Zorzi Juliana Meregalli Schreiber Karine Pertile Fernanda Zorzi Juliana Meregalli Schreiber Karine Pertile AVANÇOS TECNOCIENTÍFICOS, MATEMÁTICA ESCOLAR E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DOI: 10.31560/pimentacultural/2021.400.255-274 INTRODUÇÃO Neste capítulo, buscamos problematizar a formação continuada de professores para a Matemática escolar pensando na sua relação com os avanços científicos e tecnológicos contemporâneos, em especial, no contexto atual vivido no ano de 2020 - a pandemia causada pelo novo coronavírus. Bocasanta e Knijnik (2018) explicitam que a tecnologia é, ao mesmo tempo, decorrência dos avanços científicos e suas condições de possibilidade, ou seja, a tecnologia não é uma aplicação nos processos investigativos, mas os avanços tecnológicos têm oferecido possibilidades para novas pesquisas nas mais variadas áreas do conhecimento. A dependência da tecnologia na realização de atividades cotidianas está ainda mais acentuada no contexto pandêmico. Hoje, essa ênfase ocorre, mais fortemente, também no contexto escolar. As mudanças decorrentes desse processo fazem emergir e acentuar discussões sobre os conhecimentos científico e tecnológico. Autores como Latour (2000) e Díaz (2007) aprofundaram essas discussões ao inaugurarem os termos tecnociência e pós-ciência, respectivamente. Silva (2012) ajuda-nos a entender que a ciência e seus diferentes modos de organização e expressão estão em constante modificação e andam na direção de uma articulação com a produção tecnológica. Díaz (2000), ao definir a pós-ciência, diz-nos que a tecnologia marca os rumos da ciência “não só porque a tecnologia digital com enorme potencialidade atravessa absolutamente todas as disciplinas científicas, mas também porque a informática surgiu diretamente como tecnologia” (DÍAZ, 2000, p. 20). Essa autora explora a mudança de ênfase da ciência na atualidade no sentido de que, embora a tecnologia seja filha da ciência, ela “[...] tem ocupado o lugar de verdade-poder que, até meados do século passado, ocupava a ciência, entendida como busca do conhecimento pelo conhecimento” (DÍAZ, 2000, p. 35). SUMÁR I O 256 Knijnik (2016), ao mostrar que a tecnociência tem ocupado um lugar central no mundo globalizado, salienta que não se pode, nos dias de hoje, negar a introdução das novas gerações nos avanços científicos e tecnológicos, ou seja, não há como impedir que aprendam a interpretar cientificamente o mundo, no entanto, há de se questionar o fato de que esse seja o único modo de interpretação. Ainda, para a referida autora, é preciso possibilitar que as novas gerações questionem os riscos, as vantagens e as transformações que esse “mundo tecnocientificizado” pode trazer para suas vidas e para a sociedade. De fato, não há como imaginar a vida, especialmente no momento atual de isolamento social, sem os avanços e benefícios que a ciência e a tecnologia proporcionaram, proporcionam e ainda proporcionarão, nem deixar de considerar suas consequências. Resta-nos, como sugere Martins (2012), participar das discussões conceituais e morais a respeito da ciência atual, para pensar como os jovens estão sendo introduzidos no mundo tecnocientífico contemporâneo e, no contexto da educação escolar e da formação de professores, pensar em como essas relações alteraram as práticas pedagógicas, as relações sociais e de poder, dentro e fora da escola. Com relação à constituição da docência, é necessário, como sugerem Masschelein e Simons (2017, p. 109), “buscar que a pedagogia se redesenhe à luz dos desafios contemporâneos”. Para esses autores, a escola não é mais o único lugar onde se aprende, mas “o lugar onde a sociedade se renova” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 161). Eles defendem que “o que estamos enfrentando é a própria reinvenção da escola” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 161), na perspectiva do estudo, prática e pensamento. Considerando o contexto pandêmico e as perspectivas sobre o retorno ao convívio nas escolas no chamado “novo normal”, esses autores nos conduzem a reflexões necessárias acerca dos processos de ensino e de aprendizagem, especialmente no que concerne à autonomia, à artesania e à autoria do pensamento intelectual do professor. SUMÁR I O 257 No que diz respeito à relação entre a Matemática e o desenvolvimento científico e tecnológico, os estudos de Kalinke, Mocrosky e Estephan (2013) mostraram que os matemáticos tiveram participação decisiva no desenvolvimento das novas tecnologias, de modo que alguns matemáticos contribuíram para o nível de tecnocientificidade que o mundo atual atingiu. De acordo com o estudo desenvolvido por esses pesquisadores, a articulação entre Matemática e tecnologia também repercutiu no contexto educacional, pois alguns educadores matemáticos passaram, nas últimas décadas, a desenvolver estudos e aplicar metodologias que fazem uso das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs), as quais interferem e modificam as relações entre a Educação Matemática escolar e a tecnologia, e podem promover melhorias no ensino de Matemática. Na perspectiva desses autores, as TDICs são o modo mais evidente da presença, na sociedade contemporânea, da tecnologia, a qual cresce em ritmo acelerado e vem se popularizando a cada dia. No que concerne ao uso de tecnologias no âmbito escolar, esses autores afirmam que “os desenvolvimentos matemático e tecnológico acontecem juntos” e, mais do que isso, “pode-se observar que sem o primeiro não havia o segundo” (KALINKE; MOCROSKY; ESTEPHAN, 2013, p. 361). Feitas essas considerações e na perspectiva de contribuir com o campo da formação de professores e com a Matemática no contexto escolar, neste capítulo problematizamos o que expressaram os professores que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental da Educação Básica brasileira e estão em processo de formação continuada acerca do ensino remoto em tempos de impedimento de interação social com os estudantes, em tempos de pandemia de Covid-19. O capítulo está assim organizado: na primeira seção, apresentamos os caminhos metodológicos percorridos durante a pesquisa; na segunda, as relações entre a Matemática escolar e as SUMÁR I O 258 TDICs, e, por último, a análise das narrativas dos participantes na perspectiva do referencial teórico aqui abordado. CAMINHOS METODOLÓGICOS O material de pesquisa examinado consiste em um conjunto de narrativas sobre a Educação Matemática produzidas por professores de Matemática de escolas públicas da Região Metropolitana da Serra Gaúcha, com maior participação de docentes do município de Bento Gonçalves – RS, os quais participaram de um curso de extensão ofertado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) – Campus Bento Gonçalves, em 2020. Nossa surpresa, ao analisar os dados informados pelos participantes, foi que, além dos municípios para o qual o curso foi proposto, tais como Bento Gonçalves, Boa Vista do Sul, Garibaldi, Nova Bassano, Nova Prata, Santa Tereza e Veranópolis, todos da região, tínhamos um participante de São Borja, município também do Rio Grande do Sul. Pode-se dizer que a formação obteve uma boa abrangência regional e contemplou o universo dos Anos Finais do Ensino Fundamental, pois, dos 39 professores inscritos (64,1% de servidores municipais e 35,9%, estaduais), 32 acessaram a plataforma Moodle e, no momento da análise, 19 professores haviam respondido o questionário inicial no Google Formulários. Os professores declararam ter vínculo com 6 escolas da rede estadual, 11 da municipal, além de três docentes atuarem nas duas redes e atuarem de 6º a 9º ano (12 em 6º, 12 em 7º, 17 em 8º e 12 em 9º). O processo de formação continuada denominado “Matemática Escolar e uso das TDICs: Formação de Professores” ocorreu de forma remota, com reuniões quinzenais no Google Meet SUMÁR I O 259 e acompanhamento de atividades na plataforma Moodle. Nos anos anteriores, ocorreram formações voltadas para os docentes da rede municipal da cidade de Bento Gonçalves – RS na modalidade presencial, e o foco não era, especificamente, o uso de TDICs. Em razão da pandemia, ocorreu a ampliação de vagas, com a inclusão dos docentes da rede estadual, e as discussões foram direcionadas para a temática em voga: o uso de tecnologias no ensino remoto. O curso teve uma carga horária total de 30 horas e objetivou dialogar com os docentes sobre a atualidade do uso das TDICs nas aulas de Matemática e ampliar as possibilidades dos processos de ensino e de aprendizagem por meio da proposição de alternativas diferenciadas para o ensino de Matemática. Acompanharam o planejamento, a organização e a avaliação do curso de extensão três estudantes do curso de Licenciatura em Matemática e um licenciando em Pedagogia do Campus. Para examinar o material empírico, foi utilizada a análise do discurso, discutida pelo filósofo Michel Foucault, já amplamente difundida em pesquisas da área da Educação. O discurso, segundo evidencia o filósofo, geralmente designa “um conjunto de enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns” (REVEL, 2011, p. 41). Tais regras reproduzem “uma série de divisões historicamente determinadas”, constituindo uma “ordem do discurso” que é “própria de um período particular” e que tem uma “função normativa e reguladora”, estabelecendo “mecanismos de organização real por meio da produção de saberes, de estratégias e de práticas” (REVEL, 2011, p. 41). Uma prática discursiva “não é uma ação concreta e individual de pronunciar discursos” (VEIGA-NETO, 2011, p. 93), mas o conjunto de enunciados que compõe o discurso e que se conecta com outros e mais outros. Como instrumento de pesquisa, utilizamos questionários semiestruturados, caracterizando-se por ter uma abordagem qualitativa. O questionário foi criado e disponibilizado online, por intermédio do SUMÁR I O 260 Google Formulários, um serviço gratuito para criação de formulários on-line. O serviço é bastante eficiente, e a ideia de realizar a pesquisa por meio dessa ferramenta permitiu o anonimato dos entrevistados de forma a manter sigilo das respostas. Na seção referente à análise do material de pesquisa, apresentamos excertos das narrativas produzidas pelos participantes, os quais estão identificados com números de acordo com a classificação alfabética organizada pelo próprio Google Formulários, no qual foi realizado o questionário. As narrativas selecionadas foram colocadas na íntegra e aparecem no texto em itálico. Para pensarmos sobre o âmbito da Matemática escolar na contemporaneidade, traremos na próxima seção contribuições de autores que apontam para o uso das TDICs na escola. MATEMÁTICA ESCOLAR E TDICS Nas últimas décadas, pesquisadores vêm discutindo o uso de tecnologias em sala de aula e, também, no ensino a distância. No entanto, nunca a preocupação sobre como inserir as TDICs no processo de aprendizagem esteve tão destacada quanto no momento atual, em que o processo de ensino não pode apenas deter-se em aulas presenciais expositivas. Os professores têm buscado novas formas de ensinar, por meio dessas tecnologias, já que a interação presencial e o uso de material manipulativo com a supervisão dos professores não são possíveis no atual cenário. Todavia, é neste momento que os docentes estão pensando com mais propriedade sobre o uso das TDICs no ensino da Matemática como um avanço para o desenvolvimento do pensamento matemático. SUMÁR I O 261 Borba e Villarreal (2005), ao apresentarem o conceito de seres-humanos-com-mídias, afirmam que o pensamento matemático se modifica frente às tecnologias utilizadas, apontando uma série de aplicações para novas tecnologias em atividades educacionais. Na perspectiva desses autores, as TDICs podem ser geradores de novas formas de pensar e abordar problemas matemáticos, dentre outras possibilidades. Para Gravina e Basso (2011, p. 13), as TDICs disponibilizam “diferentes ferramentas interativas que descortinam na tela do computador objetos dinâmicos e manipuláveis”. Os autores afirmam que a variedade de recursos tecnológicos disponíveis permite discutir a inserção da escola na “cultura do virtual” (GRAVINA; BASSO, 2011, p. 14, grifo dos autores). Quase uma década depois, os recursos e a acessibilidade a eles tornam-se cada vez mais acessíveis. Temos à disposição ferramentas interativas, capazes de representar objetos denominados pelos autores como concretos-abstratos. São concretos porque existem na tela do computador e podem ser manipulados e são abstratos porque respondem às nossas elaborações e construções mentais. Isto porque consideramos que as mídias digitais se tornam realmente interessantes quando elas nos ajudam a mudar a dinâmica da sala de aula na direção de valorizar o desenvolvimento de habilidades cognitivas com a concomitante aprendizagem da Matemática (GRAVINA; BASSO, 2011, p. 14). A partir dessa breve contextualização, sem nos estendermos muito sobre os estudos realizados acerca do uso das TDICs para o ensino de Matemática na Educação Básica, podemos dizer que concordamos com os teóricos. Isso porque eles defendem o uso de tecnologias como modo de mudar a dinâmica das aulas, valorizar o desenvolvimento do pensamento matemático e de habilidades cognitivas, pois podem fortemente contribuir para o processo de ensino e de aprendizagem no contexto escolar. SUMÁR I O 262 Contudo, não podemos perder de vista a necessária crítica acerca da perspectiva da lógica neoliberal. É ela que rege o mundo globalizado e os pilares atuais da educação brasileira, que se sustentam na cultura da performatividade e da prescrição prevista na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) voltada para o ensino de conteúdos, esvaziada de conhecimentos. Essa perspectiva pode dificultar a artesania docente, principalmente na perspectiva de comprometer a autonomia intelectual do professor ao desenvolver sua prática pedagógica. Outra questão importante a ser considerada na contemporaneidade é que a escola, como parte dessa sociedade, e o professor, em particular, têm sido, frequentemente, responsabilizados pelo insucesso da educação, na perspectiva de tirar a responsabilidade do Estado pelos índices insuficientes apresentados pelos estudantes nas avaliações em larga escala. Nosso objetivo, a partir da articulação entre as ações realizadas no âmbito da Universidade e da escola de Educação Básica, é pensar em caminhos possíveis para auxiliar o professor que está em sala de aula a refletir sobre sua prática à luz dos avanços científicos e tecnológicos. O próximo tópico apresenta as impressões dos participantes da formação acerca do uso das tecnologias para o ensino de Matemática na sala de aula. DO EXERCÍCIO ANALÍTICO As expectativas e as razões que levaram os professores a procurar esse curso de formação continuada podem ser definidas pelo interesse no uso das tecnologias, para conhecer novas tecnologias, possibilidade do uso interdisciplinar e troca de experiências e ideias com outros professores que atuam na área da Matemática. Destacamos três narrativas que mostram as expectativas: (a) participar da formação para ampliar o conhecimento sobre TDICs e seu uso no SUMÁR I O 263 ensino: “Conhecer apps e softwares que atraem os estudantes para após utilizá-los em minha prática tanto no ensino presencial quanto neste momento de ensino remoto” (P-01); (b) promover a articulação com as demais áreas do conhecimento: “Espero ampliar meu conhecimento a fim de aplicar de forma interdisciplinar” (P-02); (c) socializar experiências de uso de tecnologias: “Conhecer a aprender sobre possíveis recursos tecnológicos a serem usados em sala de aula e trocar experiências e ideias sobre essas possibilidades” (P-03). É perceptível a busca dos professores por conhecimentos sobre as TDICs, a fim de dominar as tecnologias, e fazer destas um bom recurso para o desenvolvimento de competências. Esse saber é descrito por Mishra e Koehler (2006) como conhecimento tecnológico e pedagógico de conteúdo, e vai muito além de apenas aprender a usar ferramentas disponíveis. O conhecimento tecnológico e pedagógico do conteúdo é a base de um bom ensino com tecnologia e requer um entendimento da representação de conceitos por meio de tecnologias; técnicas pedagógicas que usam tecnologias de forma construtiva para ensinar conteúdos; conhecimento do que torna os conceitos difíceis ou fáceis de aprender e como a tecnologia pode ajudar a corrigir alguns dos problemas que os alunos enfrentam; conhecimento dos conhecimentos prévios dos alunos e teorias de epistemologia, e conhecimento de como as tecnologias podem ser usadas para construir sobre o conhecimento existente e para desenvolver novas epistemologias ou fortalecer as antigas (MISHRA; KOEHLER, 2006). Como os próprios autores apontam, da mesma forma que o conhecimento de conteúdo e o conhecimento pedagógico eram vistos como independentes antes dos estudos de Shulman (1986), que discorrem sobre o conhecimento pedagógico do conteúdo, o conhecimento da tecnologia é frequentemente considerado separado do conhecimento pedagógico e do conteúdo (MISHRA; KOEHLER, 2006), o que é refutado pelos autores. SUMÁR I O 264 Também analisamos as narrativas que expressam tensionamentos acerca do “ser professor” na contemporaneidade, em tempos de isolamento social, fechamento (prudente) das escolas e ensino remoto. Desse modo, buscamos entender o que expressam os professores que atuam na Educação Básica que estiveram em processo de formação continuada, quanto ao ensino remoto em tempos de impedimento de interação social com os alunos, em função da Covid-19. Quando questionados sobre os conhecimentos que mobilizaram para a efetivação do ensino remoto, os participantes mencionaram, majoritariamente, o conhecimento sobre ferramentas tecnológicas e seu uso para tornar as aulas dinâmicas e atrativas. As principais ferramentas mencionadas foram as plataformas Google Meet, Zoom, Jambord, Google Classroom, Mentimeter, oCam, Zoom, Kahoot, pesquisa virtual, uso de formulários, organização de apresentações, criação de vídeos, uso do WhatsApp, softwares matemáticos adequados para o ensino de cada conteúdo, além do uso do computador ou do aparelho celular como “instrumento de trabalho”.Com relação à Matemática, foram citados o Geogebra e o Graphmática como ferramentas usadas para o planejamento das aulas. Os excertos que seguem sintetizam as angústias e as preocupações em relação ao ensino e à aprendizagem dos conceitos matemáticos propostos pelos professores de maneira remota. As narrativas expressam alguns tensionamentos, tais como a mudança repentina dos processos educacionais e a falta de domínio de ferramentas tecnológicas e o modo de pensar o tempo do professor (planejamento, ensino, avaliação) e o tempo do aluno. Esses aspectos são muito relevantes, também, para o contexto do ensino presencial. Nesse sentido, a formação pode ser uma contribuição importante para o “novo normal” para o período pós-pandemia, como expressam as professoras nos excertos que seguem: SUMÁR I O 265 Foi uma mudança repentina fazendo com que eu utilizasse outras estratégias de aprendizagem para ensinar meus alunos. Além de utilizar muitos vídeos no YouTube, vídeos caseiros realizados por mim, tive que aprender a ser mais ágil e valorizar o tempo, além de aprender a pensar o processo de ensino e de aprendizagem de forma remota, sem interação presencial com o aluno. Sinto-me um pouco frustrada por não ter conhecimento dos instrumentos utilizados na tecnologia de informação e comunicação, o que poderia auxiliar muito nas minhas aulas de matemática. Com base nisso, este curso será uma ótima oportunidade para obter esse conhecimento e conseguir utilizar a tecnologia em minhas aulas ajudando na contextualização do conteúdo (P-04). Foi necessário pesquisar novas estratégias para não trocar o quadro por simples arquivos com atividades (P-05). Nessas narrativas, observamos a preocupação dos professores com o processo de aprendizagem. Ponte e Oliveira (2002) enfatizam que uma parte do conhecimento profissional do professor intervém diretamente em sua prática letiva, denominado pelos autores como conhecimento didático. Os autores desdobram tal conhecimento em quatro vertentes: o conhecimento da Matemática, do currículo, dos processos de aprendizagem dos alunos sob sua responsabilidade – o que inclui o conhecimento do aluno – e o conhecimento do processo instrucional. O conhecimento do processo instrucional contempla tudo o que diz respeito à condução efetiva das situações de aprendizagem. Aqui, são incluídos os planejamentos, tanto de curto quanto de médio e longo prazos, bem como tudo o que envolve a estruturação e condução das aulas de Matemática. Esse conhecimento é fundamental para a organização dos trabalhos dos alunos, a criação e variação de métodos de aprendizagem em sala de aula, bem como a avaliação da aprendizagem dos alunos e do ensino (PONTE; OLIVEIRA, 2002). SUMÁR I O 266 A formação continuada, de acordo com o que expressaram os participantes, assume um caráter de qualificação instrumental e técnica, por vezes salvacionista, mas, também, como algo que abre possibilidades de qualificação da prática por meio da utilização de novas técnicas e novos métodos para a condução da prática educativa. Também é vista como um momento de formação intelectual, pessoal, tanto para o professor, quanto para seu aluno a partir de suas novas formas de adquirir conhecimentos e estudar conteúdos matemáticos escolares. As teorizações de António Nóvoa ajudam a compreender essa relação: [...] a formação do professor é, por vezes, excessivamente teórica, outras vezes metodológica, mas há um déficit de práticas, de saber como fazer. É desesperante ver como certos professores que têm genuinamente uma enorme vontade de fazer de outro modo e não sabem como (NÓVOA, 2007, p. 14). Nesse mesmo viés, encontram-se os estudos de Shulman (1986, 2014), que buscou compreender como os conhecimentos dos professores são adquiridos e como os novos conhecimentos se combinam com os velhos, para formar uma base de conhecimentos. Enfatizamos aqui os conhecimentos que corroboram a citação de Nóvoa (2007): o conhecimento do conteúdo e o conhecimento pedagógico do conteúdo. O primeiro refere-se às compreensões do professor sobre a estrutura da disciplina, à forma como ele entende o conhecimento que será objeto de ensino. O conhecimento pedagógico do conteúdo refere-se aos modos de formular e apresentar o conteúdo, para torná-lo compreensível aos alunos. A comunicação do professor deve prever a diversidade de alunos e ser flexível, para conceber explicações alternativas de conceitos e princípios (SHULMAN, 1986). Outro desafio destacado pelos participantes relaciona-se à dificuldade de acesso dos estudantes aos meios digitais e retorno da aprendizagem propostas aos estudantes, como pode ser observado nestes excertos: SUMÁR I O 267 Estou sempre à disposição deles, mas são poucos que procuram para tirar dúvidas. Na minha opinião, nem todos os alunos possuem as mesmas condições, muitos não têm acesso à internet, tendo que retirar as atividades impressas na escola. Muitas famílias não se organizaram para retirar o material, o que gerou acúmulo para as crianças (P-09). Bem como as dificuldades relativas à organização e proposição das tarefas pelo professor, como está expresso nas seguintes narrativas: Tive dificuldade em ser clara e objetiva nas atividades propostas (P-06). Dificuldade de compreender onde o aluno está no processo de aprendizagem. Se ele compreendeu, se não compreendeu, quais as dificuldades para que se possa supri-las. Do meu ponto de vista, as explicações de conteúdo precisam de contato, do olho no olho (P-07). O planejamento das atividades precisou ser remodelado, pois o volume do conteúdo foi reduzido. Avaliar a aprendizagem também tem sido um desafio (P-08). Com relação ao que os professores consideravam como boas práticas que teriam realizado nesse período, os participantes narraram as seguintes situações: (a) uso de ferramentas e tecnologias digitais: “Utilização de Kahoot, nuvem de palavras, jamboard de forma colaborativa e google forms, geralmente trazem melhores resultado, ou seja, o número de participantes é sempre maior do que nas aulas que se solicita a resolução de exercícios do livro, por exemplo” (P01); “O Google formulários, não que seja totalmente adequado, mas está proporcionando uma boa participação e retorno dos alunos” (P11); (b) abordagem de temáticas do cotidiano como estratégia para abordar os conteúdos matemáticos: “Pensando em algo que fizesse parte do dia a dia deles, resolvi trabalhar com a conta de água com a turma do 6º ano, eles tinham que verificar as informações da conta, a média de consumo dos últimos meses, fazer o gráfico, a média diária e verificar se ela estava de acordo com as regras dos órgãos brasileiros. SUMÁR I O 268 Verificando essas informações eles elencaram ações para diminuir o consumo de água de sua casa. Foi uma atividade muito legal e proveitosa” (P-06); (c) manter, permanentemente, contato síncronos para que os estudantes desenvolvessem as propostas assíncronas: “O que percebi nas minhas aulas é que a maioria das atividades realizadas pelos alunos foram entregues após ter realizado uma aula online e que, de modo indireto, houve uma interação com eles o que os torna mais motivados em realizar as tarefas propostas” (P-07). A partir da análise das narrativas, podemos dizer que, na perspectiva dos participantes, alguns elementos da prática pedagógica foram atenuados no contexto atual e necessitam da articulação com as tecnologias: (1) é preciso conhecer além do objeto de conhecimento, caracterizando o conhecimento pedagógico do conteúdo (SHULMAN, 1986), como afirma a participante: “Não basta que ele [o professor] saiba apenas o conteúdo que irá apresentar. É preciso ir além, conhecer diversos conceitos matemáticos, bem como utilizar a linguagem específica e dominar ferramentas para abordar” (P-10). (2) a importância do planejamento docente: “Quando um professor estrutura sua aula buscando promover a articulação do que havia sido aprendido anteriormente com um objetivo a ser atingido, ele está oferecendo a seus alunos a oportunidade de construir as relações necessárias para a compreensão e a aquisição de novos conteúdos. Assim o aluno vai saber onde e o que pesquisar para complementar seus estudos” (P-04). O que verificamos aqui é o que Shulman (1986) define como conhecimento do currículo, que se refere ao conhecimento do professor acerca dos programas de ensino, dos recursos didáticos que podem ser utilizados, o conhecimento das relações entre conteúdos e contextos, e a familiaridade com os outros tópicos desse conteúdo que já foram ou serão estudados na mesma disciplina nos anos anteriores e posteriores. SUMÁR I O 269 (3) contextualização da aprendizagem: “É fundamental contextualizar o conteúdo a ser apresentado para que os alunos atribuam sentido ao que estão aprendendo. Um dos grandes problemas é a dificuldade dos alunos em compreender os textos matemáticos, principalmente os enunciados de situações problema” (P-05). Este é o saber docente caracterizado por Shulman (1986, 2014) como conhecimento pedagógico do conteúdo, que se refere aos modos de formular e apresentar o conteúdo, para torná-lo compreensível aos alunos. Para Shulman (2014), o conhecimento pedagógico de conteúdo é o que distingue a compreensão de um especialista em um assunto da de um professor. (4) respeito ao tempo de aprendizagem do estudante: “É essencial que o professor reserve um tempo para que os alunos pensem sobre o desafio proposto. Isso quer dizer que eles precisam ter espaço para pensar, ensaiar, errar, comparar seu procedimento com o dos colegas” (P-06). Para Ponte e Oliveira (2002), o conhecimento dos processos de aprendizagem, que dizem respeito ao saber do professor sobre o seu aluno e sobre a forma pela qual ele aprende, compõe o conhecimento didático necessário à prática docente. Esse conhecimento é fundamental para o sucesso na atividade de ensinar e, consequentemente, para o processo de aprendizagem. Não basta cumprir integralmente o currículo se os alunos não conseguiram aprender os conteúdos ensinados. Os autores (PONTE; OLIVEIRA, 2002) ainda indicam que o professor deve ter conhecimento instrucional, que contempla tudo o que diz respeito à condução efetiva das situações de aprendizagem. Aqui, são incluídos os planejamentos, tanto de curto quanto de médio e longo prazos, bem como tudo o que envolve a estruturação das aulas de Matemática. (5) o valor da comunicação: “Os professores utilizam com muita frequência a exposição oral do conteúdo com o auxílio do quadro ou do projetor na sala de aula e agora com uso de vídeos. SUMÁR I O 270 [...]. Com frequência, os alunos jovens dispersam facilmente sua atenção se a exposição for muito longa” (P-08). Novamente identificamos referências ao conhecimento pedagógico do conteúdo. A comunicação do professor deve prever a diversidade de alunos e ser flexível, para conceber explicações alternativas de conceitos e princípios. Em outras palavras, deve incluir analogias, ilustrações, exemplos, explanações e demonstrações (SHULMAN, 1986). (6) a falta que a interação social faz: “O trabalho em grupos favorece a troca e a negociação de ideias entre os pares, estimula o uso de argumentação, fundamentação e justificativa para convencer o outro e ativa comportamentos cooperativos que resultam em aprendizagem” (P-09). Em tempos de isolamento social e fechamento das escolas, os professores expressaram a dificuldade de “dar aula” sem ver os estudantes e, sem ter o retorno imediato de sua aprendizagem. Embora o uso das tecnologias possibilite o desenvolvimento das atividades escolares, na perspectiva dos professores, não substitui a intensidade das relações pessoais que se estabelecem no contexto da sala de sala, como disse P-07, do “contato”, do “olho no olho”. Nesse mesmo sentido, expressam Dussel e Caruso (2003, p. 237): [...] a função de transmitir a cultura provavelmente continuará existindo; e até o momento, por muitos motivos, e apesar de sua crise, a escola é a instituição mais eficaz e poderosa para produzir este efeito. Desejamos que o faça melhor, que o faça integrando os novos saberes e indivíduos que hoje pululam em nossos mundos, que o faça repensando suas próprias tradições. Os participantes expressam que a escola é um lugar importante para que a cultura tenha continuidade através do processo de sua transmissão, mas também é o lugar que pode integrar os saberes do nosso tempo, caracterizado por um crescimento tecnocientífico acelerado, ou seja, a escola pode cumprir com o seu papel de transmitir os novos e diferentes saberes sem deixar de repensar as suas tradições, especialmente com o conhecimento, não somente com o repasse de informações, como defendem os autores citados. SUMÁR I O 271 PALAVRAS FINAIS Ao concluir este capítulo, podemos dizer que, na perspectiva dos participantes do curso de formação continuada, docentes de Matemática dos anos finais do Ensino Fundamental, a tecnologia está cada vez mais inserida em todos os espaços e tempos. As TDICs podem contribuir para a aprendizagem de Matemática de modo autônomo, a partir da pesquisa e baseada na metodologia proposta para a aprendizagem do estudante, tendo em vista que a tecnologia em si não é a metodologia do professor, assim como o livro didático, no contexto da sala de aula, não o é. Ela é uma ferramenta para que o professor organize sua prática. Esse pensamento é exposto por Silva (2008) quando explora o uso das TDICs como uma linguagem diferente para representação do conhecimento, como o som, a imagem e a animação. É preciso considerar que as tecnologias - sejam elas novas (como o computador e a Internet) ou velhas (como o giz e a lousa) condicionam os princípios, a organização e as práticas educativas e impõem profundas mudanças na maneira de organizar os conteúdos a serem ensinados, as formas como serão trabalhadas e acessadas as fontes de informação, e os modos, individuais e coletivos, como irão ocorrer as aprendizagens (SILVA, 2008, p. 76). O momento atual permite outras perspectivas em relação aos fenômenos científicos e tecnológicos, pois permite um ensino mais interativo e processual, mesmo que virtual, visto que o conhecimento pode abranger a escola e outros espaços possíveis, por consequência, a tecnologia pode possibilitar novas perspectivas de aprendizagem por intermédio da autoria individual e/ou coletiva dos estudantes e dos docentes. Também enfatizamos a importância da aproximação entre as Universidades e as escolas de Educação Básica, por meio da oferta SUMÁR I O 272 de ações de extensão para a formação continuada de professores, a fim de aprimorar e ressignificar os conhecimentos destes acerca das TDICs e de suas aplicações pedagógicas. Por fim, é importante destacar que, no cenário em que vivemos, “questionar as premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos” (BAUMAN, 1999, p. 11). REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. BOCASANTA, D. M.; KNIJNIK, G. A Iniciação Científica na educação básica e o dispositivo da tecnocientificidade. In: WANDERER, Fernanda, KNIJNIK, G., (Org.) Educação e tecnociência na contemporaneidade. São Paulo: Pimenta Cultural, 2018. BORBA, M. C.; VILLARREAL, M. E. Humans – with – Media and the Reorganization of Mathematical Thinking: Information and Communication Technologies, Modeling, Experimentation and Visualization. New York: Springer, 2005. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC/CNE, 2017. DÍAZ, E. Entre la tecnociencia y el deseo: la construcción de una epistemología ampliada. Buenos Aires: Biblos, 2000. DUSSEL, I.; CARUSO, M. A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. São Paulo: Moderna, 2003. GRAVINA, M. A; BASSO, M. V. de A. Mídias Digitais na Educação Matemática. In: GRAVINA, M. A. et al (Org.). Matemática, Mídias Digitais e Didática: tripé para formação de professores de Matemática. Porto Alegre: UFRGS, 2011. p. 4-25. KALINKE, M. A.; MOCROSKY, L.; ESTEPHAN, V. M. Matemáticos, educadores matemáticos e tecnologias: uma articulação possível. Educ. Matem. Pesq., São Paulo, v.15, n.2, p. 359-378, 2013. SUMÁR I O 273 KNIJNIK, G; WANDERER, F. Introdução: de que trata o livro. In: WANDERER, Fernanda; KNIJNIK, Gelsa. (Org.). Educação Matemática e Sociedade. São Paulo: Editora da Física, 2016. p. 13-20. LATOUR, B. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. MARTINS, H. Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição humana. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. MASSCHELEIN, J.; MAARTEN, S. Em defesa da escola: uma questão pública. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. MISHRA, P.; KOEHLER, M. J. Technological Pedagogical Content Knowledge: A Framework for Teacher Knowledge. Teachers College Record, Nova York, v. 108, n. 6, p. 1017–1054, jun. 2006. NÓVOA, A. Desafios do professor no mundo contemporâneo. São Paulo: SINPRO-SP, 2007. Disponível em: <http://bit.do/cSE8s>. Acesso em 07 out. 2020. PONTE, J. P.; OLIVEIRA, H. Remar contra a maré: a construção do conhecimento e da identidade profissional na formação inicial. Revista da Educação, Lisboa, v. 11, n. 2, p. 145-163, 2002. REVEL, J. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. SHULMAN, L. Conhecimento e ensino: fundamentos para a nova reforma. Cadernos Cenpec | Nova série, v. 4, n. 2, dez. 2014. Disponível em: <http:// cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/cadernos/article/view/293>. Acesso em 24 jul. 2020. SHULMAN, L. Those who understand: Knowledge growth in teaching. Educational Researcher, Washington, v. 15, n. 2, p. 4-14, feb. 1986. SILVA, C. E. L. Ideias sobre a natureza da ciência e suas repercussões na estruturação de uma prática de iniciação científica infantil. (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Pará, Belém: 2008. SILVA, R. R. D. Educação e tecnociência no Brasil contemporâneo: perspectivas investigativas aos estudos curriculares. Revista Ensaio, Belo Horizonte, v.14, n. 02, mai./ago., p. 47-60, 2012. VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. SUMÁR I O 274 SOBRE AS ORGANIZADORAS Daiane Martins Bocasanta Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e Licenciada em Pedagogia (UNISINOS). Atua como docente no Colégio de Aplicação da UFRGS (CAp/UFRGS), lotada no Departamento de Humanidades, Área dos Anos Iniciais. Pesquisadora do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade (GIPEMS). Seu interesse investigativo se conecta aos processos educativos dos Anos Iniciais e Educação de Jovens e Adultos, em especial, na Iniciação Científica na Educação Básica. Coordena o projeto “Tecnocientificidade, Matemática e Educação de Jovens e Adultos” e participa como colaboradora em outros projetos de pesquisa na área da Educação. E-mail: professoradaianecap@gmail.com Fernanda Wanderer Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e Licenciada em Matemática (UFRGS). Atualmente é professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFRGS), integrada à Linha de Pesquisa “Estudos Culturais em Educação”. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Matemática e Estudos Foucaultianos. Os trabalhos mais recentes incluem a organização dos livros: WANDERER, Fernanda; KNIJNIK, Gelsa (Org.). Educação e tecnociência na contemporaneidade. São Paulo: Pimenta Cultural, 2018, e WANDERER, Fernanda; KNIJNIK, Gelsa (Org.). Educação Matemática e Sociedade. São Paulo: Livraria da Física, 2016. E-mail: fernandawanderer@gmail.com SUMÁR I O 275 SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS Camila da Silva Fabis Doutoranda em Educação (UFRGS), Mestra em Educação (PUC-RS) e graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional (PUC-RS). Atua como Supervisora Pedagógica da Rede Marista de Colégios. Entre seus interesses de pesquisa estão as Políticas Curriculares, os Estudos Foucaultianos, o Ensino Médio e as Juventudes. E-mail: fabiscamila@gmail.com Caroline Brandelli Garziera Mestranda em Educação (UFRGS), Especialista em Psicopedagogia Clínica (UNIVILLE/ISEPG) e graduada em Pedagogia (UNISINOS). Atualmente, atua como Coordenadora Pedagógica no Colégio Marista Rosário (Porto Alegre / RS). Entre seus temas de interesses estão os Estudos Curriculares, os Estudos Foucaultianos e as pesquisas sobre a escola na contemporaneidade. E-mail: carolinebrandelligarziera@gmail.com Débora de Lima Velho Junges Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e Licenciada em Matemática (UNISINOS). Atualmente, é Técnica em Assuntos Educacionais, atuando no cargo de Diretora de Ensino, Pesquisa e Extensão junto ao Instituto Federal Catarinense (IFC). Também atua como professora conteudista, colaboradora, revisora técnica e avaliadora de materiais didáticos. É líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar Educação, Sociedade e Tecnologias (GESTEC: http://gestec.fraiburgo.ifc.edu.br) e membro do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade (GIPEMS) e do Grupo Interdisciplinar Pomares do Saber (GIPS) que integram o Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Interessada nos seguintes temas: Educação, Educação Matemática, Práticas Pedagógicas, Mulheres nas Ciências. E-mail: deborajunges@gmail.com Fernanda Longo Doutoranda em Educação (UFRGS), Mestre em Educação (UFRGS), Especialista em Estudos Culturais na Educação Básica (UFRGS) e Licenciada em Matemática (UFRGS). Atua como professora dos Anos Iniciais, na rede privada de Porto Alegre. Desenvolve pesquisas relacionadas aos processos de docência dos saberes matemáticos escolares nessa faixa etária com as lentes teóricas do pós-estruturalismo. E-mail: fernandalongo25@gmail.com SUMÁR I O 276 Fernanda Zorzi Doutora em Educação (UNISINOS), Mestra em Educação (PUC-GO), Especialista em Matemática (UNISINOS) e licenciada em Matemática (UCS). Professora de Matemática no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Bento Gonçalves. Atua com projetos de ensino, pesquisa e extensão na área de ensino e aprendizagem de Matemática, com foco na formação de professores. E-mail: fernanda.zorzi@ bento.ifrs.edu.br Fernando Henrique Fogaça Carneiro Doutorando em Educação (UFRGS), Mestre em Educação (UFRGS) e licenciado em Matemática (UFRGS). Professor do Departamento de Estudos Especializados da UFRGS, área de Libras e Educação Especial. Temáticas abordadas nos últimos anos: Estudos Foucaultianos, Educação Matemática para Surdos, Escrita da Língua de Sinais. E-mail: fernando.carneiro@ufrgs.br Giovana Alexandra Stevanato Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UCLV), graduada em Pedagogia (FACEDUTS). Atualmente é professora na UNIR, Campus de Vilhena, no Departamento Acadêmico de Ciências da Educação. Participa do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade (GIPEMS), do Grupo de Pesquisa em Educação (GEP) e do HUMANIZE – Grupo de Pesquisa sobre História, Educação Social e Vida Cotidiana. É professora pesquisadora no Projeto “Educação Infantil: políticas e práticas”, na UFAM. E-mail: giovanastevanato@gmail.com Ieda Maria Giongo Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e licenciada em Matemática (FURG). Professora da UNIVATES vinculada aos Programas de Pós-Graduação em Ensino e em Ensino de Ciências Exatas. Bolsista Produtividade do CNPq, nível 2. E-mail: igiongo@univates.br Josaine de Moura Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Matemática Aplicada (UFRGS) e licenciada em Matemática (UFSM). Atuou durante 20 anos no Ensino Superior. Atualmente, é professora do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) e colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Exatas (FURG). Pesquisadora do GEEMCO-UFRGS: Grupo de Estudos em Educação Matemática e Contemporaneidade. Seu interesse investigativo tem como focos a Literatura Potencial e questões da constituição de sujeitos, em sua relação com a Educação Matemática, inserida na perspectiva pósestruturalista. E-mail: josainemoura@icloud.com SUMÁR I O 277 José Cláudio del Pino Doutor em Engenharia de Biomassa e professor da UNIVATES vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Ensino e em Ensino de Ciências Exatas. Bolsista Produtividade do CNPq, nível 1D. E-mail: jose.pino@univates.br Juliana Meregalli Schreiber Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Educação (UNISINOS) e licenciada em Matemática (UNISINOS). Atualmente é Líder do Projeto ENADE e ministra disciplinas da área da Matemática na UNILASSALE. Participa do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade (GIPEMS). Desenvolve trabalhos vinculados à Educação Matemática, Formação de Professores e Práticas Pedagógicas. E-mail: julianamsm2@gmail.com Karine Pertile Doutora em Ensino de Ciências e Matemática (ULBRA), Mestra em Educação em Ciências e Matemática (PUC-RS) e licenciada em Matemática (UNISINOS). Professora de Matemática no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Bento Gonçalves. Atua com projetos de ensino, pesquisa e extensão na área de ensino e aprendizagem de Matemática, com foco na formação de professores. E-mail: karine.pertile@ bento.ifrs.edu.br Lucas Pereira da Rosa Mestrando em Indústria Criativa (FEEVALE), Especialista em Comunicação Empresarial e Marketing Digital (UNICESUMAR) e graduado em Marketing (UNICID). Em 2018, fundou o Lernen Edtech, focando na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias educacionais para instituições de ensino e empresas. Já atuou no desenvolvimento de projetos com grandes marcas nacionais e internacionais, principalmente nas áreas de tecnologia, varejo e educação. Interessado, principalmente, nas seguintes áreas: Educação, Realidade Virtual, Realidade Estendida, User Experience (UX) para realidade estendida e Game Design para serious games. E-mail: lucaseditor@gmail.com SUMÁR I O 278 Luciane Andreia Leite dos Santos Mestre em Educação (UFRGS), Especialista em Psicopedagogia (UCB) e graduada em Pedagogia (UFRGS). Atua como docente no Colégio de Aplicação da UFRGS (CAp/UFRGS), lotada no Departamento de Humanidades, Área dos Anos Iniciais. Atualmente coordena a Equipe de professores do Projeto Unialfas dos Anos Inicias do Colégio de Aplicação. Coordena o projeto “Abordagens inclusivas e recursos concretos para o ensino da matemática nos anos iniciais”. Participa do projeto “Contratempos no percurso: análise e compreensão das taxas de reprovação nos anos finais do Ensino Fundamental (Ivoti/RS)”. Seu interesse de pesquisa se foca nas práticas inclusivas, o acesso e a permanência dos alunos ingressantes na escola pública. E-mail: luciane.leite@ufrgs.br Maria Luísa Lenhard Bredemeier Doutora em Educação (UNISINOS), com estágio de pesquisa na Universidade Koblenz-Landau (Alemanha), Mestre em Germanística na Universidade Koblenz-Landau (Alemanha) e graduada em Letras (UNISINOS). Atua junto aos cursos de Letras e Relações Internacionais (UNISINOS). Coordenadora de oferta e matrícula da Unidade Acadêmica de Graduação dessa universidade. Interesses de pesquisa são a Linguística Aplicada e a Educação Bilíngue. E-mail: mlbredemeier@unisinos.br Marília Bervian Dal Moro Mestre em Educação (UFRGS), Especialista em Gestão da Educação (PUCRS) e graduada em Pedagogia (UFRGS). Atualmente é Orientadora Pedagógica no Colégio Farroupilha de Porto Alegre. Seus interesses de pesquisa têm circulado no viés do Currículo, dos Processos Pedagógicos e da Gestão de Espaços Escolares. E-mail: dalmoro.marilia@gmail.com Marli Teresinha Quartieri Doutora em Educação (UNISINOS). Professora da UNIVATES, vinculada aos Programas de Pós-Graduação em Ensino e em Ensino de Ciências Exatas. Bolsista Produtividade do CNPq, nível 2. E-mail: mtquartieri@univates.br Mônica Nunes Mestra em Educação (UFRGS), Especialista em Psicopedagogia Institucional (UCB) e graduada em História (UNISINOS). Atualmente, é professora alfabetizadora no Colégio Teutônia, em Teutônia – RS. Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: relações étnico-raciais, Práticas Pedagógicas e Alfabetização. E-mail: monicanunes150@gmail.com SUMÁR I O 279 Neila de Toledo e Toledo Doutora em Educação (UNISINOS), Mestre em Modelagem Matemática (UNIJUI) e graduada em Ciências/Matemática (UNICRUZ). Atualmente, é professora do Instituto Federal Catarinense – Campus Rio do Sul (SC). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Matemática, atuando principalmente nos seguintes temas: Formação de Professores, Práticas Pedagógicas, Currículo e Etnomatemática. E-mail: neila.toledo@ifc.edu.br Tanise Müller Ramos Doutora em Educação (UFRGS), Mestre em Educação (UFRGS) e graduada em Pedagogia (UFRGS). Atua como docente no Colégio de Aplicação da UFRGS (CAp/UFRGS), lotada no Departamento de Humanidades, Área dos Anos Iniciais. Desenvolve projetos de ensino, pesquisa e extensão com o foco na Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) e na Educação Antirracista. Compõe a coordenação do Grupo de Trabalho ERER no CAp e é integrante do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros (NEAB) da UFRGS. Coordena o projeto de pesquisa “A construção de metodologias de ensino para a ERER no cotidiano escolar” e o projeto de extensão “Diálogos Interculturais para a ERER”. E-mail: tanisemr@gmail.com SUMÁR I O 280 ÍNDICE REMISSIVO SUMÁR I O A B agrícola 12, 33, 34, 37, 219, 227, 229, 230, 233, 234, 235 Agropecuária 17, 29, 218, 221, 222, 232, 234 alunos 14, 15, 16, 17, 26, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 36, 40, 46, 48, 50, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 67, 70, 71, 72, 77, 79, 80, 81, 82, 83, 85, 87, 88, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 99, 100, 101, 103, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 113, 115, 120, 123, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 133, 142, 171, 182, 186, 187, 188, 190, 194, 195, 196, 202, 203, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213, 220, 221, 231, 246, 247, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 271, 279 anacronismos 13 aprender 11, 17, 48, 56, 104, 105, 106, 118, 120, 121, 163, 167, 171, 172, 185, 187, 188, 195, 197, 203, 204, 205, 216, 224, 225, 235, 264, 266, 270 aprendizagem 14, 15, 17, 31, 52, 58, 59, 68, 72, 73, 113, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 131, 138, 157, 158, 162, 163, 171, 182, 186, 187, 188, 190, 191, 196, 197, 198, 199, 200, 204, 205, 206, 214, 257, 260, 261, 262, 265, 266, 267, 268, 270, 271, 272, 277, 278 aulas 16, 50, 51, 58, 61, 68, 72, 79, 81, 82, 87, 118, 119, 120, 121, 124, 126, 128, 133, 153, 155, 158, 159, 162, 165, 192, 194, 195, 196, 197, 199, 202, 205, 206, 207, 211, 212, 213, 215, 221, 222, 225, 226, 227, 229, 231, 260, 261, 262, 265, 266, 268, 269, 270 aulas presenciais 16, 153, 155, 158, 192, 261 bilíngue 10, 15, 46, 48, 49, 59, 63, 64, 66, 67, 68, 69, 70, 73, 74, 75, 76, 281 C campo 10, 14, 15, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 42, 43, 46, 47, 49, 51, 53, 81, 93, 100, 102, 106, 107, 108, 110, 111, 132, 133, 136, 137, 142, 150, 172, 182, 189, 218, 229, 230, 231, 240, 242, 249, 258 contemporaneidade 13, 14, 15, 18, 24, 46, 61, 64, 113, 144, 186, 219, 222, 237, 238, 242, 261, 263, 265, 273, 275, 276 convivência 14 coronavírus 18, 256 COVID-19 14, 16, 17, 153, 156, 167 Currículo 10, 15, 17, 34, 43, 63, 70, 72, 217, 233, 279, 280 curso técnico 12 Curso Técnico 17, 217, 231, 234 D desafios 13, 15, 24, 61, 65, 72, 99, 107, 114, 118, 150, 198, 214, 215, 257 discente 16, 99, 100, 205, 211 disciplina 17, 28, 34, 50, 53, 54, 118, 139, 146, 150, 204, 205, 206, 207, 208, 210, 211, 214, 218, 220, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 230, 231, 232, 235, 267, 269 dissociações 13 docências 11, 16, 117 E educação 10, 11, 17, 24, 25, 33, 37, 39, 40, 41, 43, 44, 46, 49, 53, 59, 60, 61, 62, 64, 66, 67, 68, 70, 73, 75, 76, 81, 95, 96, 281 97, 104, 107, 109, 112, 114, 115, 127, 133, 137, 138, 148, 150, 151, 153, 154, 156, 157, 158, 163, 166, 171, 186, 194, 196, 197, 198, 216, 219, 220, 222, 233, 234, 238, 241, 245, 250, 253, 254, 257, 263, 273, 278 educação básica 10, 70, 151, 233, 273 educação do campo 10, 24, 25, 33, 39, 40 ENEM 11, 16, 123, 134, 135, 136, 138, 145, 149, 150, 151, 247 Ensinar 11, 16, 17, 117, 150, 185, 216 ensino 10, 11, 14, 17, 21, 24, 43, 49, 60, 64, 65, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 76, 100, 101, 104, 105, 106, 107, 114, 120, 121, 123, 124, 127, 128, 129, 131, 136, 138, 146, 148, 149, 150, 151, 155, 157, 158, 162, 163, 165, 182, 183, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 195, 196, 197, 199, 200, 201, 202, 204, 205, 206, 207, 208, 211, 213, 214, 215, 216, 223, 240, 245, 246, 249, 257, 258, 260, 261, 262, 263, 264, 265, 266, 267, 269, 272, 274, 277, 278, 279, 280 ensino fundamental 10, 105, 199 ensino médio 11 enunciados 11, 15, 16, 30, 51, 52, 60, 72, 83, 117, 118, 119, 120, 121, 124, 129, 133, 134, 220, 221, 260, 270 Escola 10, 25, 26, 43, 44, 45, 62, 77, 98, 134, 142, 145, 150, 218, 234 escola do campo 15, 24, 28, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 38, 39, 40, 42, 43 escolar 12, 15, 18, 24, 28, 33, 34, 40, 46, 47, 48, 54, 56, 59, 68, 76, 77, 97, 99, 103, 104, 108, 109, 110, 113, 119, 125, 128, 133, 134, 137, 144, 162, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 194, 197, 198, 219, 222, 223, 224, 226, 231, 232, 234, 235, 255, 256, 257, 258, 261, 262, 280 estudantes 15, 16, 24, 25, 27, 29, 32, 33, 34, 35, 39, 41, 42, 44, 54, 57, 59, 71, 82, 86, 89, 91, 92, 94, 101, 102, 104, 113, 114, SUMÁR I O 118, 125, 136, 138, 142, 146, 147, 148, 149, 153, 155, 156, 158, 160, 162, 163, 164, 165, 190, 196, 203, 204, 205, 206, 208, 210, 213, 214, 215, 219, 244, 245, 247, 248, 249, 250, 251, 258, 260, 263, 264, 267, 269, 271, 272 estudos 14, 22, 25, 28, 41, 46, 47, 48, 71, 73, 76, 99, 101, 102, 109, 116, 118, 119, 132, 137, 142, 145, 146, 147, 153, 157, 160, 165, 172, 190, 191, 196, 205, 211, 219, 238, 244, 258, 262, 264, 267, 269, 274 étnico-raciais 10, 16, 78, 79, 80, 82, 87, 90, 93, 95, 96, 97, 107, 108, 279 exame nacional 11 F ferramenta 17, 43, 48, 68, 70, 127, 146, 149, 187, 188, 194, 198, 202, 207, 211, 225, 237, 261, 272 Formação 12, 18, 25, 42, 44, 236, 237, 246, 254, 259, 278, 280 formação de professores 12, 18, 73, 96, 147, 255, 257, 258, 273, 277, 278 G Governamentalidade 11, 16, 43, 135, 149, 151, 254 I iniciação científica 10, 114, 233, 274 L Literatura 11, 17, 115, 150, 168, 172, 184, 277, 282 M matemática 10, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 27, 41, 43, 44, 45, 47, 48, 53, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 77, 117, 118, 119, 120, 121, 125, 126, 128, 130, 132, 133, 134, 142, 150, 151, 172, 173, 176, 177, 182, 183, 282 185, 189, 191, 194, 198, 200, 219, 224, 225, 226, 231, 234, 235, 254, 255, 266, 279 materiais didáticos 16, 111, 136, 276 metodologia 15, 17, 31, 32, 102, 105, 121, 146, 191, 193, 195, 204, 205, 272 R paralisação 16, 153, 155, 157, 158, 163 pesquisas 13, 14, 28, 36, 48, 50, 64, 81, 83, 96, 103, 119, 121, 128, 136, 137, 172, 176, 184, 186, 187, 190, 226, 245, 256, 260, 276 potencial 11, 17, 104, 110, 131, 142, 168, 172, 173, 177, 183, 184, 186, 187, 194, 203 práticas 16, 25, 26, 30, 34, 38, 40, 41, 42, 48, 50, 57, 58, 59, 72, 74, 83, 88, 90, 91, 92, 94, 99, 100, 101, 102, 103, 106, 107, 108, 109, 111, 113, 114, 115, 118, 121, 123, 124, 130, 132, 133, 141, 143, 144, 145, 148, 150, 155, 156, 157, 159, 162, 166, 186, 196, 203, 215, 220, 227, 229, 230, 231, 237, 240, 257, 260, 267, 268, 272, 277, 279 práticas pedagógicas 16, 38, 41, 57, 99, 100, 102, 106, 107, 113, 115, 118, 123, 148, 155, 157, 159, 166, 186, 227, 230, 257 professores 12, 14, 18, 24, 26, 27, 29, 48, 69, 71, 72, 73, 96, 99, 100, 103, 104, 105, 107, 118, 119, 126, 127, 136, 137, 142, 143, 145, 147, 150, 155, 158, 159, 164, 165, 171, 189, 202, 203, 208, 210, 214, 215, 225, 231, 255, 256, 257, 258, 259, 261, 263, 264, 265, 266, 267, 268, 270, 271, 273, 277, 278, 279, 282 S realidade 10, 15, 23, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 60, 81, 120, 121, 130, 133, 175, 186, 278 recursos 12, 17, 18, 25, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 156, 158, 159, 160, 187, N 188, 189, 192, 197, 202, 204, 205, 206, normalização 10, 15, 45, 46, 55, 56, 59, 211, 215, 225, 227, 230, 232, 236, 237, 141, 228 238, 239, 241, 242, 246, 249, 250, 251, 262, 264, 269, 279, 282 P pandemia 11, 14, 16, 17, 18, 152, 153, 154, recursos humanos 12, 18, 236, 237, 238, 239, 241, 242, 249, 250, 251, 282 155, 156, 157, 164, 165, 171, 197, 207, resistência 14, 57, 94, 234 214, 215, 216, 256, 258, 260, 265 SUMÁR I O surdos 10, 15, 45, 46, 48, 49, 50, 53, 58, 59, 60 T tecnociência 17, 218, 219, 222, 230, 231, 232, 233, 238, 256, 257, 273, 274, 275 tecnocientíficas 12, 18, 236, 237, 240, 241, 252, 254 tempo 13, 14, 17, 19, 20, 27, 37, 40, 51, 53, 54, 55, 56, 67, 73, 80, 85, 89, 90, 92, 106, 109, 111, 119, 121, 127, 129, 139, 140, 142, 157, 162, 164, 170, 172, 183, 184, 192, 196, 203, 204, 206, 208, 210, 215, 219, 222, 227, 232, 235, 240, 256, 265, 266, 270, 271 V vestibulares 16, 70, 123, 136, 146 virtualização 11, 17, 201, 208, 215 Y Youtube 11, 17, 86, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 200 283